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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

SILBENE CORRÊA PERASSOLO DA SILVA

A FESTA DE SÃO BENEDITO


ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE UMA
TRADIÇÃO CUIABANA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação


em História da Universidade Federal de Mato Grosso na área de
concentração de “Territórios e Fronteiras” - “Ensino de História,
Memória e Patrimônio”, sob a orientação do Prof. Dr. Renilson Rosa
Ribeiro.

Este exemplar corresponde à redação final da


Dissertação de Mestrado defendida e aprovada
pela Comissão Julgadora em 30/05/2014.

BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro (UFMT – Orientador)
Prof. Dr. Mairon Escorsi Valério (UFFS - Examinador Externo)
Prof.ª Dr.ª Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo Gomes (UFMT - Examinador Interno)
Profª. Drª. Alexandra Lima da Silva (UFMT – Suplente)

Cuiabá/MT – Abril de 2014.

i
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL DA UFMT

Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Etrúria: Laboratório de Estudos de Memória,


Patrimônio e Ensino de História, vinculado ao Departamento de História/ICHS/UFMT.

ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

A FESTA DE SÃO BENEDITO


ESTUDO SOBRE A “INVENÇÃO” DE UMA
TRADIÇÃO CUIABANA

SILBENE CORRÊA PERASSOLO DA SILVA

iii
RESUMO

A devoção a São Benedito em Mato Grosso surgiu no mesmo tempo que a cidade de Cuiabá,
no século XVIII, com a vinda dos portugueses e escravos africanos, que encontraram nesta
Vila toda a sorte de dificuldades e se “uniram” para promover momentos de religiosidade e
festa em honra ao santo negro. Os primeiros construtores dessa devoção encontraram, em
Mato Grosso, condições favoráveis para a sua disseminação, e a festa, durante toda a sua
trajetória, provocou mudanças na paisagem urbana. Este estudo tem como objetivo apresentar
uma parte do “fazer religioso” em Cuiabá, capital de Mato Grosso, por meio da festa de São
Benedito, refletindo acerca do seu papel no cenário de manifestações culturais da cidade,
oferecendo, assim, algumas contribuições para a historiografia da Igreja Católica e da festa de
São Benedito no Mato Grosso, com um novo olhar sobre o papel da história, cultura e
religião. Considerado pelos cuiabanos – de confissão católica – como um santo forte e que faz
milagres, São Benedito é hoje o santo da comunidade, sendo sua festa é realizada no mês de
julho de cada ano. Essa comemoração é dividida em duas partes – a celebração religiosa e a
festa, participando a Igreja na sua organização, mas são os devotos que mantêm a tradição de
cultuar São Benedito.

Palavras-chave: História e Historiografia. Religião. Cuiabá-MT. Festividade religiosa.


Cultura Cuiabana.

iv
ABSTRACT

Devotion to St. Benedict in Mato Grosso came while the city of Cuiabá in the eighteenth
century with the arrival of the Portuguese and African slaves, who found this village all sorts
of difficulties and " joined " to promote moments of religiosity and party in honor of the black
saint. The first builders of this devotion found in Mato Grosso, favorable conditions for its
spread, and throughout its history the party participated in the changes that have occurred in
the urban life. This study aims to present a part of the "religious do" in Cuiaba, capital of
Mato Grosso, through the feast of St. Benedict, reflecting on the role of this feast of cultural
events in the city scenario, thus providing some contributions on the historiography of the
Catholic Church and the feast of St. Benedict in Mato Grosso with a new look at the role of
history, culture and religion . Considered by cuiabanos – Catholic confession – as a holy
strong and doing miracles, St. Benedict is now the holy community, a party is held in July
each year and is divided into two parts – the religious ceremony and the party , and Church
participates in the organization, but are the devotees who keep the tradition of worshiping St.
Benedict.

Keywords: 1) Religion - Religious Festivities. 2) Cuiabá - Mato Grosso, nineteenth and


twentieth centuries 3) History and Historiography of Mato Grosso. 4) Cultural History. 5)
Cuiabana Culture.

v
RÉSUMÉ

La dévotion à São Benedito dans l‟état de Mato Grosso est apparue en même temps que la
ville de Cuia dans le VIII siècle, à l'arrivée des Portugais et des esclaves africains qui ont
trouvé dans ce village toute sorte de difficultés et «ils se sont joints» pour promouvoir des
moments de religiosité et de fête à l‟honneur du saint noir. Les premiers constructeurs de cette
dévotion ont trouvé dans cet état des conditions favorables pour sa dissémination et, pendant
toute sa trajectoire, la fête a participé des changements qui se sont produits grâce à l'évolution
urbaine. Cette étude a pour objectif de présenter une partie du “faire réligieux” à Cuia -Mato
Grosso au moyen de la Fête de São Benedito, reflétant sur le rôle de cette fête dans le scénario
de manifestations culturelles de la ville, offrant ainsi quelques contributions sur
l‟historiografie de l‟église catholique de Cuia et de la Fête de São Benedito, un nouveau
regard sur le rôle de l'histoire, culture et réligion, pour les habitants de Cuiabá. Considéré par
les cuiabanos - de confession catholique - comme un saint fort et qui fait des miracles, São
Benedito est aujourd'hui le saint de la communauté, sa fête est célébrée au mois de juillet de
chaque année, et est divisée en deux parties, la célé ration religieuse et la fête, l‟Église
participe de l'organisation, mais ce sont les fidèles qui gardent la tradition du culte à São
Benedito.

Mots-clés: 1) Religion - Festivités religieuses. 2) Cuiabá - Mato Grosso, XIXe et XXe siècles.
3) Histoire et historiographie du Mato Grosso du XXe siècle. 4) l'histoire culturelle. 5)
Culture Cuiabana.

vi
Para minha avó Pequena; ao companheiro de todos os tempos, Donato, e amadas
minhas filhas, Letícia e Gabriela.

vii
Não somos mais que poeira no tempo.
N. A.

viii
AGRADECIMENTOS

O estudo aqui apresentado deve muito ao apoio de algumas pessoas e instituições


às quais, por diferentes razões, agradeço especialmente:
Ao meu orientador, Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro, pela generosidade e
paciência durante todo o processo de reflexão. Por sua amizade, principalmente pela
compreensão silenciosa nos momentos difíceis que passei, sempre respeitando meus limites.
Obrigada pelas valiosas contribuições.
Às Profª Drª Cristiane Thais do Amaral Cerzósimo Gomes e à Profª Drª Alexandra
Lima da Silva, que ofereceram muitas sugestões e críticas fundamentais durante o exame de
qualificação, auxiliando-me na reelaboração de todo o trabalho.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFMT, Otávio
Canavarros, Pio Penna Filho, Fernando Tadeu de Miranda Borges, Leonice Aparecida de
Fátima Alves, Marcus Silva da Cruz, Pablo Dienner, Ana Maria Marques, Leandro Duarte
Rust e Oswaldo Machado Filho, pelas reflexões e discussões importantes para a concepção e
norteamento das abordagens de meu objeto de estudo.
Aos meus amigos, Anderson Domingos, pela ajuda e motivação no processo de
seleção para o Programa, e Viviane Gonçalves, pelas trocas de saberes e conselhos históricos
importantes. Mas, principalmente, pela amizade de vocês.
À secretária do Programa de Pós-Graduação em História, Valdomira Ribeiro, e
sua filha Amanda, pelas longas conversas e também pelo auxílio nas pesquisas na Biblioteca
do Programa.
À Vanessa Gonçalves, Zullu Zaira Figueiredo, Gabriel Kolling de Oliveira,
Danielle Batista, Gabriela Santos, pelo carinho, compreensão, paciência durante o processo
inicial da pesquisa, digitalização e digitação dos materiais encontrados, entre 2010 e 2012.
À Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), por me apresentar caminhos
outrora nunca imaginados. Ali, fui aluna da Escolinha de Música, fiz graduação,
especialização, cursei o mestrado e hoje sou servidora da instituição.
Ao padre Felisberto Samoel da Cruz, por ter sido merecedora de sua confiança e
do seu companheirismo. Grata por compartilhar comigo seus conhecimentos e acesso ao
Arquivo da Cúria.
Ao Padre José de Moura Silva, por disponibilizar seu conhecimento e amor pela
história de Cuiabá e pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.

ix
Às equipes do Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá, Arquivo Público de
Mato Grosso, Núcleo de Documentação e Informação História Regional, Instituto Memória
do Poder Legislativo de Mato Grosso, Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em História,
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto Histórico e Geográfico
de Mato Grosso e Biblioteca Nacional, pela eficiência e disponibilização de informações,
mas, também, pelas sugestões bibliográficas.
À Márcia Vialogo, minha eterna professora, Beto Seror, Dorit Kolling, Clovis
Gonçalves de Oliveira, Márcia Dias, Clevis, Bruna, Andréa e Jussara, por me oferecerem
amizade incondicional, manancial de amor para toda a vida.
À equipe da Multigráfica Digital, na pessoa da Sra. Elizabete e Sr. Marcos, pelo
suporte técnico na produção do material desta pesquisa.
À toda minha família, em especial: meu pai, José Viturino Corrêa (motorista,
assistente e historiador nato), e minha mãe, Terezinha de Oliveira, meus sogros, Donato da
Silva e Maria Neusa Perassolo da Silva, meus irmãos, Carlei, Melissa, Josemar, Carbene e
Cláudio, aos meus cunhados, Adriana, Pedro, Rossana, Welington e Melissa, aos meus
sobrinhos, Ana Luisa, Alessandra, Milena, Jonatan, Pedro, Paulo e Leonardo.
Ao esposo Donato e minhas filhas Leticia e Gabriela, por todo amor,
compreensão, apoio, suporte emocional nos momentos mais difíceis – para vocês, dedico este
trabalho.
E, finalmente, ofereço tudo o que sou para o autor da minha fé.

x
SUMÁRIO

Introdução
Cuiabá nas f(r)estas, p. 01

Primeiro Capítulo –
As narrativas da festa de São Benedito em Cuiabá
História, Historiografia e Fontes, p. 17

Segundo Capítulo –
A festa de São Benedito
A invenção de uma tradição da cultura cuiabana, p. 50

Terceiro Capítulo –
As festas de São Benedito na baixada cuiabana
Análise das festividades no entorno da capital, p. 80

Quarto Capítulo –
As festas de São Benedito na Igreja de Nossa Senhora
Novas fontes, outras histórias, p. 139

Considerações Finais –
São Benedito em festa, p. 199

Referências
Acervos e Fontes, p. 206

Bibliografia, p. 219

Anexos, p. 225

xi
INTRODUÇÃO

CUIABÁ NAS F(R)ESTAS

Este trabalho é resultado de uma pesquisa que pretendeu, por meio da festa de São
Benedito na cidade de Cuiabá, descortinar referências importantes na construção da tradição
desse evento religioso na capital mato-grossense, que, atualmente é considerada a maior festa
religiosa cuiabana. São abordados seus elementos constitutivos e ligações com a história da
cidade de Cuiabá, mas, principalmente, analisado o processo evolutivo, de uma festa realizada
por negros, para uma festa que privilegia a diversidade étnica e cultural.
A pesquisa está inserida na Linha de Pesquisa III: Ensino de História, Memória e
Patrimônio, do Programa de Pós-Graduação em História, a partir do entendimento que a festa
de São Benedito em Cuiabá proporciona espaço de reflexão entre passado e presente, onde as
memórias são fundamentais na preservação desse patrimônio imaterial cuiabano.
O contato com a festa de São Benedito deu-se na infância, nos passeios aos
domingos. Lembro-me que num deles, diante da procissão do santo negro, meu pai, disse-me:
“olhe, a festa dos pobres, a festa do santo negro”1. Assim, a partir dessa afirmação, passei a
vida a admirar essa reunião de pessoas diferentes num mesmo lugar, à medida em que fui
amadurecendo.
A vida cotidiana da cidade influenciou-me na escolha do objeto de pesquisa. O
interesse primeiro pela festa foi gastronômico, pois a paçoca de pilão2, oferecida nas festas de
São Benedito em Cuiabá, era famosa, mas nunca consegui chegar a tempo para consumi-la e
foi assim ano após ano.

1
José Vitorino Corrêa, conhecido como Juquinha dos Fogões, entrevista concedida a autora em 23 de março de
2014.
2
A paçoca de pilão é uma comida tradicional da gastronomia cuiabana, uma herança dos primeiros nordestinos
que aqui chegaram. A paçoca é a mistura de carne seca, farinha de mandioca e temperos, que são mistura e
batidos em um pilão. Ingredientes: 500 g de carne seca, 500 g de farinha de mandioca ou de milho, 1 cebola
picada, 1 fio de óleo, 2 dentes de alho picados, 1 colher (sopa) de salsa seca. Modo de Preparo: Dessalgue a
carne certa e corte em cubos. Refogue a cebola e alho, acrescente a carne e deixe fritar. Retire a carne com uma
escumadeira e coloque no pilão de madeira, socando até ficar totalmente desfiada. Após, acrescente a carne
desfiada na mesma panela dos temperos, coloque farinha a gosto e deixe esquentar. (Recita tradicional de
Cuiabá).
1
Durante a década de 1990, passamos a fazer parte da comissão ecumênica, como
representante da Igreja Metodista do Brasil, sendo que as reuniões eram realizadas na Igreja
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Nesse espaço percorria-se o templo ouvindo as
palavras do padre José de Moura, seu amor pela história, passando a conhecer e respeitar,
ainda mais, a festa de São Benedito, enquanto festa de fé e alegria.
Na academia, no final de 2006, ao concorrer à vaga, como aluna especial, no
Mestrado em História da Universidade Federal de Mato Grosso, a festa de São Benedito
passou a ser objeto de reflexão. E o caminho percorrido foi longo, até a materialização deste
estudo.
Em 2011, ingressamos como aluna regular no citado Programa, que oportunizou, a
partir das leituras de cada disciplina, ampliarmos os conhecimentos adquiridos com os
conteúdos que foram fundamentais no processo de formulação do tema estudado. Neste
trabalho buscamos investigar a festa de São Benedito, tentando reconstituir alguns dos
aspectos históricos da festividade para refletir-se sobre os elementos de suas origens,
transformações e/ou atualizações que, ao longo do tempo, fortaleceram as festividades em
honra ao santo negro.
Para tanto, num primeiro momento empreendemos a busca pelos vestígios deixados
pela festa junto às bibliotecas e acervos da Capital de Mato Grosso, e, na medida do possível,
levantar os autores mato-grossenses que registraram a festa de São Benedito. Num segundo
momento, utilizando a ferramenta de busca on-line, realizamos uma pesquisa em acervos e
bibliotecas virtuais na busca dos jornais que circularam em Cuiabá no século XIX até a
primeira metade do século XX; após a análise inicial de todo o material pesquisado,
percebemos que diversas lacunas não haviam sido preenchidas. Assim, acessamos o acervo
físico da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e da Cúria Metropolitana de Cuiabá, de
extrema importância para a elaboração deste trabalho. Utilizando da ferramenta das imagens
fotográficas do celular, digitalizamos muitas páginas de documentos, entre Provisões,
Compromissos, jornais, cartas, entre outros.
Desta forma, o corpus documental foi se ampliando a partir de documentos
encontrados nos acervos da Cúria Metropolitana de Cuiabá, do Arquivo Público de Mato
Grosso, do Núcleo de Documentação e Informação História Regional, do Instituto Memória
da Assembleia Legislativa, da Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em História e da
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso, no Arquivo da Casa Barão de
Melgaço e na Biblioteca Digital do Brasil.
No acervo da Cúria Metropolitana tivemos acesso aos documentos oficiais
eclesiásticos, ocasião em que foram privilegiadas as Provisões autorizando a realização das
2
festividades de São Benedito no estado de Mato Grosso, e também os artigos do jornal A
Cruz, compilados pelo padre Pedro Cometti, contendo informações sobre a festa e devoção a
São Benedito. No Arquivo Público de Mato Grosso, especialmente no jornal A Gazeta
Official, do final do século XIX, foram localizados anúncios evidenciando a manutenção da
tradição na realização da festa. No Acervo do Núcleo de Documentação e Informação
História Regional, consultou-se o arquivo microfilmado da revista A Violeta, contemplando
aspectos cotidianos de Cuiabá na visão da mulher. No acervo Instituto Memória do Poder
Legislativo (Assembleia Legislativa) foram acessados as Leis e Decretos Provinciais e os
Códigos de Posturas de Cuiabá. Na Biblioteca do Programa de Pós-Graduação em História
privilegiamos o banco de dissertações referentes ao tema no período em questão. Na
Biblioteca Central da Universidade Federal de Mato Grosso procuramos os autores que
narraram a história da cidade de Cuiabá. Na Casa Barão de Melgaço privilegiamos a
documentação concernente às diversas festividades religiosas de Mato Grosso. Na Biblioteca
Digital do Brasil examinamos os jornais: A Província de Matto-Grosso, A Imprensa de
Cuyabá, O Pharol, O Povo, O Republicano, O Pequeno Mensageiro, Echo Cuiabano, A
Reacção e a Revista Mato Grosso, e também os Relatórios de Presidentes da Província, de
1892 a 1930.
As balizas temporais do presente estudo se constituíram num grande feixe que
tentamos desenrolar durante toda a pesquisa. Incialmente, delimitamos a pesquisa da década
de 1830, com a chegada da tipografia em Mato Grosso, até a década de 1930, considerando
que, provavelmente, foi nesse período que os divertimentos profanos da festa de São Benedito
foram proibidos pela Igreja Católica, e a festa “em ranqueceu”. Mas, à medida que
prosseguíamos, aventamos para a necessidade de expandir tais balizas. Assim, embora nossa
pesquisa estivesse situada na primeira metade do século XX, se tornou necessário recorrer à
longa duração para explicar de que forma a festa perdurou ao longo do tempo. Uma provável
justificativa pode ser encontrada na própria história do festejar o santo negro em Cuiabá, que
não seguia um calendário rígido, ora mudando de dia e mês, sem qualquer explicação. Cabe
aqui esclarecer que resolvemos seguir as balizar imposta pelo próprio santo, recuando ou
avançando, para tentar oferecermos uma maior compreensão da importância desta festa para
Cuiabá.
De posse de toda a documentação utilizada na construção deste trabalho, tornou-se
necessário e essencial a análise do material e separação das fontes impressas e virtuais, assim
como das orais, que possibilitaram a construção da narrativa historiográfica, permitindo uma
abordagem fundamentada dos meandros da festa.

3
O recorte temático, tendo como pano de fundo a festa de São Benedito, se deu na
tentativa de analisar as vivências do povo cuiabano, permeadas de crenças e tradições, visto
que um povo que “mantém” a religiosidade e a devoção ao santo negro na última metade do
século XIX até a primeira metade do século XX – visível nos “discursos” divulgados pela
imprensa de Mato Grosso – permite repensar toda a história da festa, principalmente no
quesito do sagrado e do profano. Esperamos, com a presente dissertação, sinalizar uma nova
possibilidade de reflexão sobre a festa de São Benedito em Cuiabá, sem a pretensão de
esgotar o assunto, mas indicar um novo olhar sobre essa festa.
Nosso objetivo é o de apresentar uma parte do fazer religioso cuiabano por meio da
festa de São Benedito, refletindo acerca do papel do evento no cenário das manifestações
culturais da cidade, oferecendo algumas contribuições para a historiografia da Igreja Católica
da Capital e da mesma festa: um novo olhar sobre o lugar da história, cultura e religião para
os habitantes de Cuiabá.
Algumas questões nortearam a pesquisa: a festa de São Benedito é a festa religiosa
mais tradicional de Cuiabá? Quais fatores motivaram os fiéis, ano a ano, cultuar o santo negro
na Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito? Como a festa se consolidou como
tradição cuiabana? Essa festa guarda realmente antigas tradições em louvar ao santo negro?
Quais caminhos percorreram os festeiros na organização e manutenção das festividades na
atualidade, como “sím olo” de fé do povo cuiabano?
A historiografia acerca da festa cuiabana de São Benedito procurou dar conta dos
momentos mais marcantes de seu processo de transformação, mas, em sua maioria, buscou
oferecer o percurso da festa tradicional, numa concepção estanque sobre alguns pontos
relevantes dessa devoção, incorrendo, em pelo menos, dois pontos discutíveis: primeiro, que a
festa de São Benedito em Cuiabá era realizada logo após as festividades do Divino Espírito
Santo, e que foi no século XX que a festa embranqueceu, transformando, de uma festa de
pobres e negros, comemorada por toda a sociedade cuiabana, incluindo o segmento branco e
letrado.
Dessa forma, objetivando reconstituir historicamente a festa de São Benedito e sua
herança cultural na atualidade, buscamos apresentar seu percurso intimamente ligado à cidade
de Cuiabá, como a maior festa religiosa, não só da Capital, mas de todo o estado de Mato
Grosso, numa perspectiva teórico-metodológica, centrada na produção jornalística e apoiada
em novos documentos.
A partir desse apontamento, foram redefinidos os objetivos e, em seguida, realizamos
os procedimentos investigatórios no âmbito da produção historiográfica referente a Cuiabá e
de São Benedito, acrescida da documentação que foi encontrada em acervos físicos e virtuais.
4
O tratamento desse conjunto de fontes, adicionado aos relatórios de Presidentes da Província,
como provisões eclesiásticas, legislação do Estado e do município, foram insuficientes para
dar conta da compreensão do papel da festa para o município de Cuiabá. Por isso foram
acrescentados os artigos de jornais da época, através dos quais conseguimos ampliar os
conhecimentos adquiridos ao longo da pesquisa, oferecendo um panorama da força da
devoção a São Benedito no estado de Mato Grosso.
Realizou-se a atualização bibliográfica do tema abordado com a produção
historiográfica recente e aproximou-se de outras disciplinas sempre que foi necessária a
elucidação de questões pertinente ao tema. As reflexões oferecidas pelo conjunto dos autores
foi de fundamental importância para a construção da narrativa deste trabalho e, neste sentido,
os diálogos da História Cultural, com a Sociologia, Geografia, entre outros, permitiram
observar aspectos intrínsecos à pesquisa, como religião, patrimônio, cidade, festa, tradição e
costume, não sendo possível abordar com profundidade a relação público/privado nos espaços
da festa, foram utilizados como base para os referenciais teóricos da pesquisa.
Sobre o papel do historiador, Jean Boutier apresenta primordialmente na
compreensão da história como uma ciência que, assim como outras, fundamenta-se na
aplicação rigorosa das regras da profissão. Para Boutier, cabe ao historiador retirar seu objeto
de estudo a partir de origens diversas dos fenômenos intrínsecos da vida humana. Assim, todo
documento passa a ter utilidade nas tentativas de se ampliar a história de uma sociedade ou de
uma época. De acordo com o mesmo autor, “não pode haver história senão erudita: a coleta
metódica dos dados repousa sobre o recurso frequente, ainda que variável segundo a época e
os lugares, às técnicas “auxiliares” – ou “ancilares” – cuja longa lista não cessa de se
enriquecer”. 3 Nessa perspectiva, o historiador, influenciado pela teoria positivista, passou a
recolher fontes escritas, para atestar a “verdade” que estava nos documentos. O pro lema é
que somente os documentos escritos podiam ser utilizados para conduzir o historiador rumo a
uma “verdadeira” reconstituição dos momentos históricos. 4
A partir dessas indagações sobre a aplicação das regras da profissão de historiador,
foi possível fazer uma reflexão do fazer história. Assim, reformulamos o problema e o objeto,
culminando no diálogo com as outras ciências sociais e humanas, expandindo o campo de
pesquisa do historiador, privilegiando-se, além dos documentos escritos, fontes das mais
diversas facetas, tais como: a vida privada, o medo da morte e, assim, oferecendo ao

3
BOUTIER, Jean; DOMINIQUE, Julia (Org.). Em que pensavam os historiadores? In: Passados Recompostos:
campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: EdUFRJ; EdFGV, 1981, p. 36-38.
4
Idem, p. 21-24.
5
historiador, a tarefa mergulhar na crítica dos novos documentos para escolhê-los ou descartá-
los. 5
A definição da noção de lugares da memória, de Pierre Nora, definiu o caminho das
reformulações dos espaços sociais como guardiões da memória. Segundo este autor, são antes
de tudo, os “restos” do passado: “Nesse sentido, o lugar da memória é um lugar duplo; um
lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade; e recolhido sobre
seu nome, mas constantemente a erto so re a extensão de suas significações”. 6
De acordo com Nora, na defesa dos lugares da memória cabe ao historiador a
reconstrução da história vivida, sendo que o desenvolvimento desse conceito se deu na
convicção que os grupos sociais mudaram suas relações com o passado, pois, “se
ha it ssemos ainda nossa memória não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares”. 7
Assim, por esse prisma, os pressupostos de Nora foram importantes na reconstrução do
percurso das festividades em Cuiabá, entre os séculos XIX e XX, principalmente o da festa de
São Benedito, que se mostrou como um dos símbolos de resistência frente à globalização e
modernização da cidade, tornando-se um lugar da memória cuiabana.
Na perspectiva dos lugares da memória, promoveu-se novo redimensionamento do
campo empírico da História, com o advento da História Nova, passando, o cotidiano, a
alimentação, os costumes, valores, os modos de vida, as tradições, crenças etc., a fazer parte
do laissez faire do historiador. Afinal, tudo pode ser o campo de pesquisa para o historiador.
No ensaio Operação historiográfica, Michel de Certeau traz uma explicação das
ligações da história com a operação histórica, onde se observa a combinação de um lugar
social, de práticas científicas e de uma escrita. Concluiu que a operação histórica tem efeito
duplo: por um lado, historiciza o atual e, por outro, a imagem do passado mantém o valor de
primeiro representar aquilo que falta. Por essa configuração, Certeau levantou as questões que
hoje envolvem a história, oferecendo suas reflexões sobre história e escrita, seu alerta sobre
como essas questões contribuíram para o entendimento de que o papel do historiador nesse
processo é de fundamental importância, visto que, pelo seu gesto, liga as "ideias" aos lugares,
dando voz ao não dito.8
Tendo por base o referencial teórico dos autores supracitados, e de acordo com as
reflexões apresentadas, nova fase foi iniciada: a investigação priorizando a documentação
como suporte ensejou o recurso do recorte cronológico condizente com a festa de São

5
Ibidem, p. 23-24.
6
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez.
1993, p. 12; 28.
7
Idem, p. 13.
8
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1982, p. 88.
6
Benedito, visando apresentar um novo olhar para o evento que pudesse contribuindo com a
historiografia cultural da cidade de Cuiabá.
O viajante que chegava a Cuiabá, no século XIX, necessariamente passava pela
Igreja de Nossa Senhora do Rosário para chegar ao centro da cidade. Essa igreja presenciou
toda a história cuiabana, dos seus primórdios até hoje, e é a única igreja ereta que guarda seus
contornos coloniais. O espaço do Rosário acompanhou a evolução urbana da cidade, de vila a
metrópole, e a cada ano se reinventa para acompanhar as transformações da urbe. Espaço de
muitas histórias, este patrimônio (i)material de Cuiabá abriga duas festas de santos, São
Benedito, foco central do presente estudo, e a de Nossa Senhora do Rosário.
Assim, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário encontra na festa de São Benedito o
irmão de fé, para auxiliá-la na manutenção das tradições culturais cuiabanas, transformando-
se num ambiente de resistência às transformações que, ao mesmo tempo, mudam transformam
separam, mas que também atualizam as práticas de devoção aos santos dessa Igreja.
A festa de São Benedito de 2013 guardou diversos aspectos da “tradição” de cultuar
São Benedito, da peregrinação das imagens de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, à
visita da bandeira de São Benedito, às missas nas alvoradas, levantamento de mastro e à
grande procissão pelas ruas da cidade, enfim, o lado sagrado da festa. O costume do chá com
bolo após as missas foi preservado. O lado profano da festa foi diversificado com muitas
programações culturais, jantar com comidas típicas e Baile Oficial.
Os meios de comunicação social oferecem nova proposta de análise teórico-
metodológica para o estudo da festa de São Benedito, veiculados pelos modernos meios de
comunicação, como televisão e rádio, bem como as novas mídias sociais e também com a
distribuição de panfletos nas ruas do centro, dando visibilidade aos festeiros sem precedentes
na história dessa festa, imprimindo nos devotos a dedicação para a preparação da festa – que
se baseia na renovação da tradição de se cultuar o santo negro.
Eric Hobsbawm, no livro A invenção das tradições9, utiliza o termo “tradição
inventada” em sentido amplo, porém nunca indefinido. Argumenta que essas tradições, que
podem ter sido inventadas ou institucionalizadas, conseguiram se estabelecer com muita
rapidez. 10

9
“Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou
abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, o que implica automaticamente: uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se esta elecer continuidade com um passado histórico apropriado”.
HOBSBAWM, Eric; TERENCE, Ranger (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
(Pensamento Crítico; v. 55), p. 9.
10
Idem, ibidem.
7
As muitas escolhas que fazemos podem funcionar ora como reação a coisas novas,
ora como referência com relação ao passado, por meio da repetição quase obrigatória,
caracterizando-se por estabelecer com este passado, uma continuidade muito artificial.
Hobsbawm propõe o debate com a divisão entre a tradição e o que se pode chamar de
costumes. Elucida ainda a diferença entre tradição e convenção, mas afirma que a convenção
não possui função simbólica, nem ritualística, embora admita que, em alguns casos, possa ser
adquirida eventualmente. Para efeito deste estudo, deixaremos de lado, as convenções e nos
concentraremos, na tradição e o costume. 11

A “tradição” neste sentido deve se nitidamente diferenciada do “costume”,


vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O o jetivo e a característica das
“tradições”, inclusive das inventadas, é a invaria ilidade. O passado real ou
forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente
formalizadas), tais como repetição. O “costume”, nas sociedades
tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as
inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido
pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao procedente. 12

Ele reconhece que o conceito “tradições inventadas” corresponde a uma questão


interdisciplinar que pode referendar não só os estudos historiográficos, mas que é também
comum estudos antropológicos e de outras áreas das ciências humanas. Podemos, então,
considerar a invenção das tradições como um processo que une formalização e ritualização,
referindo sempre ao passado, mesmo que seja somente imposta uma contínua a repetição.
Algumas vezes, esse processo é documentado desde sua criação, facilitando ou dificultando
sua investigação.
Outra variação proposta pelo autor aponta que elas podem se manifestar em situações
onde as tradições são parcialmente inventadas e desenvolvidas por um determinado grupo
fechado, ou mesmo as que são realizadas de maneira informal, em ambientes aberto e que,
mesmo assim, se perpetuaram: “Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem
transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da
oferta”.13
Segundo Hobsbawm, houve momentos importantes de adaptação pensando em
conservar os antigos costumes, mas em novo cenário; ou utilizar velhos modelos com objetivo
de se criar novos fins. Ele prossegue cintando o exemplo da Igreja Católica, uma instituição
antiga, que precisou se adaptar ao novo cenário político e ideológico, com as mudanças
ocorridas na nova composição dos fiéis, devido ao aumento do número de mulheres leigas, as

11
Idem, p. 10
12
Idem, ibidem.
13
Idem, p. 12.
8
devotas, coexistindo para conservar velhos costumes em condições novas, ou mesmo para
usar modelos antigos para novos fins:14

Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo


repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada,
composta de práticas e comunicações simbólicas. Ás vezes, as novas
tradições podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos para depósitos
bem supridos do ritual, simbolismo e princípios Morais oficiais [...] Por
outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não deve ser
confundida com a “invenção de tradições”. Não é necess rio recuperar nem
inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam. 15

Assim, o mesmo autor identifica quais são os espaços cedidos pela decadência das
velhas tradições e antigos costumes, que, apesar de abundantes, não foram preenchidos pelas
invenções. Por fim, ele explora os aspectos dos indícios e vestígios encontrados na tradição
“inventada”, que podem ser um problema para os historiadores e pesquisadores, pela
dificuldade de serem encontrados no tempo, salientando que as “tradições inventadas” têm
funções políticas e sociais importantes, e não poderiam ter nascido, nem se firmado se não se
pudessem ser adquiridas.
Outro historiador, Edward P. Thompson, em Costumes em Comum: estudos sobre a
cultura popular tradicional16, apresenta uma pesquisa histórica a partir das teias de costumes,
da cultura e das tradições populares do século XVIII inglês, dialogando com outras
disciplinas, como antropologia, direito e economia. Sua fonte foram os dados recolhidos na
esfera das anedotas ou da vitimização, analisando-as como uma defesa dos direitos,
estratégias de manipulação das leis da sociedade que começava a viver as imposições surgidas
pelas imposições do capitalismo.
Por outro lado, o costume – nas palavras de Thompson – constituía a retórica de
legitimar todas as práticas ou um direito que fora reclamado. O “costume” era visto com ons
olhos, uma “ oa palavra” que incorporava muitos sentidos atri uídos à “cultura” do outro,
diretamente ligados ao direito do costume, dos usos habituais de um determinado lugar,
muitas vezes, reduzidos às regras que “em certa circunstância eram codificados e podiam ter
força de lei”. 17 Para o autor,

No século XVIII, o costume constituía a retórica de legitimação de quase


todo o uso, pratica ou direito reclamado. Por isso, o costume não codificado
- e até mesmo o codificado - estava em fluxo continuo. longe de exibir a
14
Idem, p.13.
15
Idem, p.14 e 16.
16
Cf. THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
17
Idem, p. 16.
9
permanência sugerida pela palavra "tradição", o costume era um campo para
a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam
reinvindicações conflitantes [...], mas uma cultura é também um conjunto de
diferentes recursos, em que ha sempre uma troca entre o escrito e o oral, o
dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de
elementos conflitivos que somente sob uma pressão imperiosa [...] assume a
forma de um „sistema‟.18

Thompson alerta historiadores e pesquisadores dos perigos da utilização dos termos


cultura e costume com suas invocações confortáveis de “consenso” que “pode distrair nossa
atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro do
conjunto. Nesse ponto, as generalizações dos universais da "cultura popular" se esvaziam, a
não ser que sejam colocadas firmemente dentro de contextos históricos específicos”. Assim
os estudiosos do assunto possam desfazer o “feixe” que im ricam no uso dos voc ulos,
“examinando com olhar crítico os componentes que constituem os ritos, os modos sim ólicos,
os atri utos culturais dominantes, a “transmissão do costume de geração para geração como
forma de desenvolvimento das relações tanto sociais como de tra alho”. 19
O historiador pode e deve descobri-los para entender porquê essas sociedades
sentiram necessidades de continuar com a tradição, e as implicações surgidas nessa
flexibilização e espontaneidade que inclui a repetição e ao mesmo tempo inclui
transformações, visando um maior alcance social. Com isso, traz uma experiência que
perpassa o cotidiano das pessoas, e com isso, há uma contínua familiaridade com objeto,
tornando-o a expressão da cultura do povo de um lugar a partir de elementos próprios.
A relevância deste estudo justifica-se pela sua contribuição à historiografia de Mato
Grosso, especialmente no que fiz respeito ao espaço da memória cuiabana, revestindo a festa
de São Benedito de um significado relevante na construção do processo de identificação da
população cuiabana. A localização da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
constitui-se em um dos locais mais antigos da formação do núcleo urbano colonial, que, após
a descoberta do ouro, oportunizou um significativo aumento da população, alavancando o
crescimento da vila. Com a chegada dos padres e dos bandeirantes, passou por
transformações, consolidando duas instituições importantes na manutenção do poder local, o
Senado da Câmara e as irmandades e confrarias.20

18
Idem, p. 16 e 17.
19
Idem, p. 22.
20
Cf. ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk
Maria (Org.). A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Adriana, 2003.
10
A cidade, então, passa a se desenvolver da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em
direção ao centro e, em seguida, ao porto, local onde as famílias estabeleciam residência ou
instalavam pensões e hotéis para acolher os viajantes cansados da longa viagem até Cuiabá. 21
O Porto marcou a vida da população, quebrando a monotonia do dia-a-dia. A
chegada do vapor era marcada pela organização dos habitantes para receber e se fazer
presente neste momento de alegria, assim como pelas novidades que aportariam junto com os
passageiros que, em certas ocasiões, eram recebidos ou por uma banda ou por uma
orquestra.22 Assim, a cidade aos poucos foi formando seu traçado urbano rumo ao progresso e
desenvolvimento, num longo e gradativo processo de transformações urbanas que objetivaram
remodelar Cuiabá, como uma cidade civilizada, palco de lutas e dificuldades, mas de grande
interação social, mediadas pelas muitas festividades que aconteciam nesta cidade.
A leitura da obra As Cidade Invisíveis, de Ítalo Calvino, oportunizou-nos
compreender as articulações e movimentos dinâmicos das cidades, que deixaram de ser
apenas um conceito geográfico para se tornar o símbolo complexo e inesgotável da vida
humana. Por esta razão, as narrativas da visita do veneziano Marco Polo ao Extremo Oriente,
tornou-se a proposta ideal para se refletir sobre o fenômeno urbano a partir das relações
sociais, pois a “cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os
acontecimentos do passado”.23
A proposta de Michel de Certeau, em Andando na Cidade, de conceber a vida no
ambiente urbano enquanto recôndito de muitas histórias, está presa ao projeto urbanístico,
tradução do poder, que é em si mesma “ur anizante” pelos movimentos contraditórios, ora
contrabalançando, ora combinando, o que permite ao observador analisá-la em seus vários
momentos “fora do alcance do poder panóptico”.24
Segundo Certeau, a “vida ur ana permite cada vez mais a re-emergência do elemento
que o projeto urbanístico excluía", e para tanto, pretendeu-se outra forma de olhar a cidade e
sua realidade: de pé no seu ponto mais alto para ficar fora do alcance dela pois quando se sobe
ali “deixa-se para trás a massa que carrega e mistura em si própria toda a identidade de
autores e espectadores”. O distanciamento na visão de Certeau transforma-se em necessidade

21
O Porto recebeu muitos visitantes e foi lá que algumas famílias tradicionais cuia anas se fixaram: “[...] foram
erguidas residências de honradas famílias cuiabanas, a exemplo da Família Rodrigues – Bento José Rodrigues e
sua esposa Benedicta Alves Rodrigues, continuada por seus filhos, sendo um deles o emérito professor militar
Firmo José Rodrigues, casado com Maria Rita Deschamps Rodrigues e pais da inesquecível Dunga, Estela,
Helena, Olga, Newton e Francisco. [...]”.SIQUEIRA, Eliza eth Madureira et al (Org.). Cuiabá: de vila a
metrópole nascente. Cuiabá: Entrelinhas, 2006, p. 155.
22
O MATTO-GROSSO n. 1074, anno XXIII, Cuiabá, 26 de março de 1905.
23
CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras. 1990, p. 14.
24
Panóptico foi o termo idealizado pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham, a partir de um projeto de
escola militar onde era possível observar os alunos exercendo um papel de controle social sobre os indivíduos.
Disponível em : http//www.educ.fc.ul.pt. Acesso:17 de setembro de 2013.
11
para a manutenção do olhar objetivo do historiador evidenciando-se na busca da construção
de uma narrativa abrangendo-se da totalidade da história das cidades, a história dentro de
outras histórias.25
Na abordagem do passado da história da festa de São Benedito optou-se pelo
percurso proposto pela história cultural de Peter Burke, respaldo necessário para se chegar ao
produto final. Para o mesmo autor, a história cultural não é o único caminho, mas é parte
necessária para a compreensão do empreendimento histórico coletivo, contando-se, sempre
que for necessário, com o auxílio de outras disciplinas, oportunizando-se o diálogo com o
passado histórico, contribuição indispensável à visão da história como um todo, uma “história
total”. 26
Nos pressupostos sobre patrimônio cultural, de Néstor Canclini, encontramos uma
importante reflexão sobre as questões levantadas no tratamento dos espaços culturais dos
patrimônios e as “ameaças” presentes no cenário atual onde eles se encontram. Seu estudo
contribuiu na reflexão do redimensionamento sobre patrimônio histórico e identidade
nacional, no caso, a cuiabana. Levantou-se a necessidade do olhar do historiador para a
manutenção e recuperação dos espaços públicos já tombados, que são e foram projetados
tanto pela comunidade como pelo poder público e privado local. À luz de sua compreensão de
patrimônio cultural, identificou-se no espaço onde foram erguidos esses bens históricos, o
cenário envolto numa teia que expressa a solidariedade que une os que compartilham desse
conjunto de bens e práticas, local que oferece condições para tornar-se um lugar de
cumplicidade social. 27
Canclini aponta a necessidade de reflexão sobre a participação dos historiadores nos
debates atuais sobre patrimônio histórico, que “costuma-se ver como inimigos dos atuais
processos de mudança o desenvolvimento urbano, a mercantilização, as indústrias culturais e
o turismo”.28
As contribuições de João José Reis, em A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX, revelou, em riqueza de detalhes as atitudes de nossos
antepassados com relação à morte e às práticas de enterramento no século XIX. Tornou-se
essencial seus referenciais acerca do catolicismo barroco, as devoções aos santos e o papel das
irmandades e confrarias, consideradas como propulsores do processo de sedimentação da
Igreja Católica no Brasil.

25
CERTEAU, Michel de. Andando na Cidade. Revista do Patrimônio Histórico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23,
1994, p. 21-31.
26
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 163.
27
CANCLINI, Néstor García. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23, 1994, p. 95.
28
Idem, p. 97.
12
Nesse sentido, Reis propõe e amplia a historiografia das devoções e da força dos
santos, sem, contudo reduzir os acontecimentos somente na oposição entre livres e não livres.
Segundo este autor, a aglutinação de pessoas de diferentes origens e classes nos festejos aos
santos católicos se deu pela explicação da necessidade do santo de não se contentar somente
com uma prece individual, j que sua intercessão “ser tão mais eficaz quanto maior for a
capacidade dos indivíduos de se unirem para homenageá-lo de maneira espetacular. Para
receber força do santo, deve o devoto fortalecê-lo com as festas em seu louvor, festas que
representem exatamente um ritual de intercâm io de energias entre homens e divindades”. 29
Os apontamentos de Mary Del Priore, em Festas e utopias no Brasil colonial,
primam pela compreensão do “tempo” da festa, enquanto tempo de utopia, onde toda sorte de
atores sociais demonstram suas indignações, revoltas e valores, numa troca de conhecimentos
e experiências, projetando-se nessas festas seus anseios e aflições, utilizando-a como uma
válvula de escape ou como uma fuga da realidade vivida. 30
As reflexões de Felisberto Samoel da Cruz, em Arquidiocese de Cuiabá: História e
vida-1910-2010, permitem uma aproximação com a história da Igreja Católica em Mato
Grosso, atualizando-se a compreensão do modus operandi das suas realizações para a
evolução de Mato Grosso, elucidando lacunas sobre as atividades iniciais de evangelização e
sua organização desde o primeiro arcebispo de Cuiabá.
Dos principais memorialistas mato-grossenses, privilegiamos os escritores que
contri uíram para a “invenção” de uma tradição “cuia ana”, a partir do século XX. De modo
geral, os memorialistas produziram textos que traduziram as suas experiências de vida e os
conhecimentos do senso comum do povo cuiabano. A narrativa muitas vezes é recheada de
exaltações a Cuiabá e ao povo cuiabano, um povo que respeita as suas tradições e devoções,
criando, no imaginário popular, uma versão oficial de nossa história.
A análise das fontes e dos documentos foi ancorada em Jacques Le Goff, que aponta
o papel do historiador no processo de escolha do “documento, extraindo-o do conjunto dos
dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo
menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua
organização mental”. Outro ponto importante, alerta de Le Goff, sobre a função do
documento para a construção da narrativa histórica, entendendo-se como o resultado de um
esforço das sociedades históricas para impor ao futuro, uma imagem de si própria, devendo o
historiador não fazer o papel de ingênuo na critica dos documentos.31

29
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 61.
30
DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
31
Le GOFF, Jacques. Histórias e memória. 5 ed. Campinas: EdUNICAMP, 2003, p. 537-538.
13
A pesquisa em jornais que circularam em Mato Grosso entre o século XIX e XX, foi
uma tarefa árdua que empreendemos em acervos físicos e virtuais. Dos vários jornais e
revistas, poucos exemplares foram encontrados, mesmo assim, reunimos aproximadamente
700 páginas, todas priorizando as narrativas da festa de São Benedito e sua relação com a
evolução do estado.
A imprensa em Mato Grosso surgiu no início do século XIX e foi um instrumento
fundamental de comunicação entre os habitantes das cidades da província com o país e o
mundo, mas também atuou na propagação das ideias da elite política de cada época, uma vez
que os periódicos estavam quase sempre atrelados aos grupos oligárquicos.
Na pesquisa utilizou-se o recurso da fotografia para registrar os documentos mais
antigos, num total aproximado de 500, principalmente do século XIX. Quando não possível
fotografar, pelo receio de estragar ainda mais alguns documentos, realizamos uma cópia
manuscrita do mesmo que, após o término deste estudo serão doados ao acervo da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário. Na formatação final, realizamos o tratamento das fotos que serão
apreciadas no decorrer dos textos, para melhorar a nitidez das mesmas, nenhuma das
utilizadas sofreu alteração quanto ao seu conteúdo, como se pode observar a seguir:

Original digitalizado

Após tratamento

Por último, ressaltamos as contribuições das tecnologias de comunicação mediadas


pelo computador que facilitaram a formação do acervo da pesquisa, utilizados todas as vezes
que se fizeram necessários.
14
Este trabalho foi organizado em quatro capítulos. No Capítulo I – As narrativas da
festa de São Benedito em Cuiabá: fontes, histórias, historiografia, reflete e informa
minuciosamente aspectos relevantes da vida de São Benedito e sua devoção no Brasil e em
Cuiabá, por meio de pesquisa bibliográfica que incluiu diversos autores mato-grossenses.
Objetivou-se oferecer um panorama da festividade, tratando de alguns aspectos importantes
do culto ao santo negro, como o processo de embranquecimento da festa de São Benedito e a
proibição do divertimento do Congo, enquanto forte expressão de africanidade.
O Capítulo II - A Festa de São Benedito: a invenção de uma tradição da cultura
cuiabana trata de uma breve reflexão sobre festas de santo e a “invenção” da tradição, tendo
como pano de fundo a festa de São Benedito, a partir dos apontamentos de diversos autores.
O Capítulo III – As festas de São Benedito na baixada cuiabana - análise das
festividades no entorno da capital oferece um panorama da religiosidade da população das
cidades no entorno da capital, localidades estas que também realizavam as festividades em
devoção a São Benedito, e foi possível verificar que elas aconteciam, com certa regularidade,
nas cidades de Poconé, Rosário Oeste, Livramento, Diamantino, Brotas, assim como no 2º
distrito, São Gonçalo de Pedro 2º, e também no Coxipó do Ouro e Guia, considerados fora do
eixo da capital.
No último capítulo - A festa de São Benedito na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário: novas fontes, outras histórias, promoveu-se a contextualização espacial e
cronológica da festividade, tendo por base empírica o livro de “Termo da Irmandade de São
Benedito”, datado de 1822, que registrou a atividades dessa congregação até 1854, mas
também os jornais locais que circularam desde a década de 1830 até a primeira metade do
século XX. Buscou-se analisar seu papel na formação do “espírito” do povo cuia ano; dar a
conhecer alguns aspectos importantes de sua formação, tais como, quem era o público que
participava das festividades, sua periodicidade e a programação dessas festas, entre outros
fatores.
Nas Considerações Finais confrontaram-se as várias fases das representações da
Festa de São Benedito, do século XIX até a primeira metade do século XX, promovendo um
enfrentamento entre essas festas e a ocorrida em 2013, em busca da preservação e memória
desse patrimônio imaterial de Mato Grosso.
Este trabalho também surgiu da necessidade de ampliar a discussão sobre a história
cultural mato-grossense, propondo, por meio da festa de São Benedito, em Cuiabá, fazer
fulgurar os paradigmas que permearam e ainda permeiam essa festa, presentes na memória do
povo cuiabano, e com isso, segundo Thompson, se possa “iluminar o processo de formação
dos costumes e a complexidade do seu funcionamento”.
15
Caetano Veloso, músico e escritor brasileiro, escreveu uma canção que parece nos
dizer como realmente tudo acontece dia-a-dia, no cotidiano, com elementos que se repetem,
mas que são tam ém renovados: “Todo o dia, o sol levanta, e a gente canta ao sol de todo
dia. Finda a tarde a terra cora, e a gente chora porque finda a tarde. Quando a noite a lua
mansa, e a gente dança venerando a noite”.
Afinal, todo dia o sol se levanta.

16
CAPÍTULO I

AS NARRATIVAS DA FESTA DE SÃO BENEDITO EM


CUIABÁ: HISTÓRIAS, HISTORIOGRAFIA E FONTES

Benedito santo negro


É dos pobres, protetor
Leve a Deus nossos pedidos
Aumentai nosso fervor.32

Neste capítulo serão abordadas as diversas narrativas sobre a festa de São Benedito
de Cuiabá, produzida por diferentes autores e levantada por meio de uma minuciosa pesquisa
bibliográfica que, de alguma forma, contribuíram para a manutenção da festa. Este será o
nosso ponto de partida para compreender os caminhos da “invenção” dessa festa que é, sem
dúvida, um dos maiores festejos religiosos da Igreja Católica em Mato Grosso. Pretende-se
mostrar aqui, também, como cada autor, em seu tempo e espaço, participou desta construção
que transformou a festa de São Benedito, numa festividade celebrada pela sociedade cuiabana
“letrada” e “elitizada”.
Percebe-se nas leituras dessas narrativas a evidente intenção de se propagar a
“invenção” da tradição repassada de geração em geração, ora construindo ou reconstruindo.
Propomos, então, perscrutar e apresentar o panorama da festa de São Benedito elaborado por
estes autores para verificar não só do ponto de vista da longa duração, mas também para
avaliar os “conflitos” dentre os que abordaram a religiosidade do povo cuiabano,
generalizando a origem da festa ao âmbito da festa em honra santo negro, na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário, de Cuiabá.
Após a reunião das fontes e a leitura sequenciada, percebemos que há ainda muito
que se fazer, pois, lamentavelmente, muitas lacunas não foram preenchidas na descrição da
formação das festividades de São Benedito em Cuiabá. Percebemos também que, na maioria

32
Canto final da festa de São Benedito, sábado, 2 de julho de 2011 – Setor Centro. Folheto da missa que faz
parte do acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, gentilmente cedido pelo pesquisador e historiador Pe.
José de Moura e Silva.
17
das vezes, eles se remetem uns aos outros, reproduzindo a mesma informação em seus textos,
porém, sem oferecer as fontes privilegiadas, salvo raras exceções.
Para efeito de compreensão, apresenta-se uma contextualização sobre a origem do
culto ao santo negro no Brasil, seu “legado” cultural e religioso, e também, forte ligação com
Nossa Senhora do Rosário. De outro, procurou-se evidencias as contribuições historiográficas
sobre a festa de São Benedito de Cuiabá que permeiam a memória do povo cuiabano.
As leituras que serão utilizadas ao longo desse capítulo, para falar da historiografia
de Mato Grosso, Cuiabá e São Benedito da Igreja do Rosário, podem ser assim distribuídas:
na primeira fase, as informações sobre origens do estado tiveram como base os relatos dos
primeiros cronistas que registraram os acontecimentos na Vila Real do Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, bastante utilizados pela maioria dos autores mato-grossenses. Na segunda fase estão
as publicações dos membros do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, oferecendo
uma narrativa que objetivou não perder a memória da cultura cuiabana, propagando valores
culturais da cuiabania. Na terceira fase é discutida a historiografia de Mato Grosso e de São
Benedito publicadas e divulgadas graças à produção acadêmica de alunos, pesquisadores e
professores do Departamento de História, e também pela produção oriunda do Programa de
Pós-Graduação “Mestrado em História”, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Cabe aqui ressaltar que tais textos serão utilizados aleatoriamente, no sentido
cronológico do texto desta dissertação, perseguindo os fatos ocorridos ou a data de
publicação, sempre visando melhorar a compreensão das reflexões apresentadas ao longo
deste capítulo.

1.1 – A influência católica e o papel dos negros na formação do festejar São Benedito

Os estudos dos sistemas religiosos que foram trazidos pelos africanos para América
portuguesa, é algo bem recente, considerando que a reflexão aqui proposta inclui-se numa
abordagem histórica da religião das comunidades de origem africanas e seus descendentes, os
afro-brasileiros, englobando os negros que nasceram no Brasil no interior de um longo
processo de reorganização social entre negros e brancos, resultado da grande miscigenação
que timbrou o chamado o “ rasileiro”.33

33
Para ilustrar os termos utilizados pela historiografia sobre a origem no Brasil, Reginaldo Prandi, em De
africano a afro-brasileiro: etnia, identidade, religião, oferece algumas explicações sobre a origem dos negros
escravos que vieram da África, tentando mostrar como surgiu o chamado afro-brasileiro, termo muito utilizado
em diversas áreas do conhecimento. Segundo ele, conhecer a procedência desses escravos é caminho ainda a ser
trilhado, pois os escravos proviam de lugares onde fosse fácil capturá-los e de onde fosse rendoso embarcá-los
para os mais diversos locais do mundo. Ele afirma que a África já tinha essa prática de importar antes da
18
Não é possível precisar a quantidade de africanos trazida para o Brasil, porém,
estima-se que, entre 1525 e 1851, chegaram às capitanias e províncias brasileiras, cerca de
cinco milhões de africanos, na condição de escravos, mas os estudiosos do assunto concordam
que a vinda dos negros mudou os rumos da formação racial e cultural do Mundo Novo:

Não se tratava de um povo, mas de uma multiplicidade de etnias, nações,


línguas, culturais. No Brasil foram sendo introduzidos nas diferentes
capitanias e províncias, num fluxo que corresponde ponto a ponto à própria
história da economia brasileira. A prosperidade econômica estava
relacionada a uma intensificação da demanda de mão-de-obra escrava: não
havia a possibilidade do progresso material sem que mais negros fossem
importados, pois o trabalho era essencialmente africano e afro-descendente. 34

De fato, os africanos que vieram para o Brasil trouxeram suas práticas e culturas e
encontraram em solo brasileiro situações tão adversas que foi preciso se adaptar ao meio
hostil, como forma de sobreviver aos duros trabalhos a que foram submetidos. Assim, durante
mais de três séculos, devido à convivência entre portugueses e africanos, cada qual com suas
características, surgiram algumas novas e outras foram, ao longo dos anos, apagadas, mas
outras tantas reforçadas:

Inicialmente, no Brasil, os escravos urbanos e os negros livres eram


divididos em nações e o governo colonial permitia e incentivava que eles
tivessem seus próprios reis e seus governadores, política que visava evitar a
união generalizada dos negros e a possibilidade da sublevação, [...]
Especialmente entre os artesões e outros trabalhadores urbanos, os negos
reuniam-se em associações de compatriotas com o fim de celebrar
festivamente suas tradições, dissimulando, sob máscara católica, suas
crenças religiosas.35

Mas, nem mesmo esses ajustes aliviaram a vida dura dos escravos africanos e a
cultura deles foi aos poucos se entreamando na formação cultural brasileira: “As organizações
de nação tinham um caráter mais religioso e de ajuda mútua, sobretudo tratando-se do negro
livre, abandonado à própria sorte, não contando, em caso de doença e morte nem mesmo com
o amparo do senhor”.36
A procura pelos vestígios das práticas culturais dos africanos e afro-brasileiros,
buscando reconstruir seu passado histórico, encontra na religiosidade, principalmente, na
prática de cultuar os santos católicos, um vasto campo de estudo. Não pretende-se esgotar ou

descoberta do Novo Mundo. Mas foi somente após o tráfico para o lado do Atlântico que essa atividade se
tornou rentável para o próprio africano. Cf. PRANDI, 2000, p. 52-65.
34
Idem, p. 52.
35
Idem, p. 58.
36
Idem, ibidem.
19
encerrar as diversas possiblidades, mas propor uma discussão sobre o papel da Igreja Católica
na religiosidade dos negros africanos, e vice-versa.
O culto aos santos negros trazidos pelos portugueses no período colonial foi parte de
uma estratégia da Igreja Católica no sentido de tornar cristãos os escravos africanos e seus
descendentes, reforçando a política de evangelização por meio de devoções aos santos que
eram representações de pessoas comuns. Foram também grandes aliados para atrair novos
devotos com os mais diversos objetivos, como proteção e segurança, além de ser o santo que
protegia o povo e o lugar onde viviam. Em alguns espaços, muitas vezes, a imagem do santo
negro chegava antes dos padres, nas localidades mais distantes.
Contando e estimulando o conhecimento sobre a vida dos santos, a Igreja transmitia
aos fiéis os ensinamentos que julgava corretos e que deveriam ser imitados pelos escravos
que, em geral, traziam consigo crenças oriundas de suas terras de origem, práticas de fé
distintas do que era preconizado pelo catolicismo. Acreditando cumprir uma função
legitimadora da ordem social, a Igreja não descuidou das pessoas de origem africana,
apresentando santos de cor negra, numa tentativa de representação de sua etnia, com modelos
de santidade que exemplificassem o cultivo das virtudes cristãs e obediência ao poder.
No livro Império do Divino, Martha Abreu considera que o século XIX recebeu uma
herança de cunho religioso, a que ela chamou de “religiosidade colonial”, marcante na vida
nas cidades onde o clero exercia pouco poder sobre as festas, limitando-se às celebrações de
alguns sacramentos. Nessa medida, as ordens religiosas, consideradas como meio de
catequização mais preparadas para levar o catolicismo, também não conseguiram atingir a
todos os fiéis. Aparece, então, a figura do leigo, da pessoa comum, que se tornou o maior
agente do catolicismo, conseguindo atrair a comunidade negra.37
Surgiram as confrarias e irmandades, organizadas graças aos serviços de voluntários
civis. O papel dessas instituições era o de incentivar a devoção ao um santo protetor, oferecer
benefícios e segurança aos irmãos que se comprometiam a trabalhar efetivamente nas
atividades dessas congregações. O ponto alto das atividades eram as festas organizadas para o
santo protetor, que incluíam a parte sagrada e a profana, que, muitas vezes, desagradavam
autoridades civis e religiosas. Realizavam missas, sermões, novenas, procissões, mas também
produziam músicas e danças profanas: “Implantado juntamente com a colonização
portuguesa, graça ao direito de padroado, este catolicismo formava um sistema único de poder

37
Cf. ABREU, Martha O Império do Divino: festa religiosa e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, São Paulo: FAPESP, 1999.
20
e legitimação, associando, numa interpenetração estreita, o Estado e a Igreja, o profano e o
sagrado”.38
Ao repensarmos a festa de São Benedito como uma das “heranças”, culturais e
religiosas do período colonial, arraigada em Cuiabá do século XXI, percebe-se uma mistura
entre sagrado e profano, mas que uniu várias gerações de cuiabanos que deram continuidade a
essa tradição. Ao estudar o império do divino no Rio de Janeiro, Marta Abreu buscou, além
dos aspectos de continuísmo, mostrar a renovação dessa prática no período barroco, o que
serviu de inspiração para se analisar a devoção ao santo negro no entorno da Praça do Rosário
em Cuiabá.
Mas, afinal, quem foi São Benedito?
Apresentaremos agora um levantamento sobre a vida de São Benedito, sua origem e
seu legado para devotos e irmãos da fé católica, informações estas que resistiram ao tempo,
chegando ao século XXI praticamente inalteradas. A intenção é situar este ícone emblemático
da Igreja Católica, uma figura comum transformada em santo católico milagroso há 400 anos.
Benedito39 nasceu na Sicília, num lugar chamado San Filadelfo, hoje San Fratello,
em 1526. Era filho Cristóvão Manasseri e Diana Larcan, escravos etíopes em uma
propriedade próxima de Messina. Foi libertado ainda muito jovem por seu senhor. Era pastor
de rebanhos e tinha uma pronunciada tendência para a penitência e para a solidão. Sofria
maus tratos de seus companheiros, mas isso o fazia ainda mais firme na fé em Jesus Cristo.
Aos 18 anos já se mantinha e ainda ajudava os pobres com o dinheiro que recebia. Aos 21
anos foi insultado publicamente por sua cor, mas sofreu a humilhação com atitude digna e
paciente, chamando a atenção do líder de um grupo franciscano que o convidou para fazer
parte daquela comunidade. Ele aceitou e, com o tempo, passou a ser o novo líder.40
Pelos idos de 1564, essa comunidade se dispersou e Benedito foi aceito como leigo
na ordem franciscana de Palermo, indo exercer suas atividades na cozinha. Em 1578, ele se
tornou, apesar de leigo e analfabeto, em novo guardião da ordem. Lá, ele foi um bom
administrador, adotando uma interpretação rigorosa das regras franciscanas. Foi respeitoso e
respeitado pelos padres e muito carinhoso com os leigos, sempre recomendando ao porteiro
do mosteiro jamais recusar esmolas aos pobres que ali se apresentassem. Segundo seus
biógrafos, era exemplo de virtude, visitando os doentes, auxiliando nos exercícios da
comunidade e era sempre o primeiro no coro da igreja e no trabalho manual. Mesmo sem ler e

38
Idem, p. 34 e 35.
39
Apresentamos o resultado da pesquisa sobre a vida de São Benedito realizada a partir dos sites oficiais de
Paróquias, dos Devotos e do livro de Leila Borges de Lacerda e Nauk Maria de Jesus (2008).
40
Idem, p. 52.
21
escrever, era um guia no estudo das Escrituras e muitos mestres em Teologia, que o vinham
consultar, recebiam respostas surpreendentes, fato que o tornou muito conhecido.
Na direção do noviciado, demonstrou uma grande doçura e consumada prudência: os
noviços tiveram nele um guia, um pai e um excelente mestre da Escritura, cujas leituras do
Ofício lhes explicava com muita facilidade. Em seu processo de canonização, foi aceito que a
única explicação para a sua sabedoria era que ele possuía o dom da ciência infusa, ou seja,
iluminado pelo Espírito Santo; por isso esclarecia aos doutores e letrados de seu tempo a
respeito de vários assuntos. Como resultado de uma vida de exercício contínuo de todas as
virtudes, recebeu o dom de operar milagres e, mesmo após o término de seu tempo no cargo
de líder da ordem, retornou novamente ao oficio de cozinheiro, pois gostava de permanecer
no anonimato.
Em 1589 ficou muito doente e recebeu a revelação de que seu fim estava próximo, o
que aconteceu em 4 de abril daquele ano. Foi canonizado em 1807 e sua representação em
imagens traz o menino Jesus nos braços, que lhe foi colocado por Maria Santíssima, por sua
grande devoção. Foi enterrado em vala comum, sem distinção e poucas pessoas
compareceram ao seu enterro, pois havia uma festa popular no dia. É conhecido como o santo
dos po res, o santo dos pretos e o “santo mouro”, devido a sua cor negra. No calendário
litúrgico, sua festa é celebrada no dia 5 de outubro, e ainda hoje podemos ver o seu corpo
intato na Igreja de Santa Maria de Jesus, em Palermo, na Itália, há mais de 420 anos.
Muitos feitos extraordinários marcaram a vida do santo, como, por exemplo, receber
em seus braços o menino Jesus. Por isso, em muitas representações de São Benedito, ele
aparece com menino em suas mãos. Contudo, a história mais conhecida pelos seus biógrafos
e devotos é a que ilustra a vida de serviço ao próximo de São Benedito. Era preocupado com
os mais pobres e nunca lhes negavam alimentos diários e quem dele precisava sabia que podia
pedir sua ajuda, que ele sempre ajudava, retirando alguns mantimentos do Convento,
escondendo-os dentro de suas vestes e levando para os famintos que ficavam nas ruas da
cidade.
Conta a tradição que, em uma dessas saídas, o novo Superior do Convento o
surpreendeu e perguntou: Que escondes aí, embaixo de teu manto, irmão Benedito? E o santo
humildemente respondeu: “Rosas, meu senhor!” e, abrindo o manto, de fato apareceram rosas
de grande beleza e não os alimentos, de que suspeitava o Superior.
Pesquisando sobre a festa de São Benedito em outros estados, encontramos a
dissertação de mestrado de Dário Benedito Rodrigues Nonato da Silva, que discute as
imagens, representações e as lutas pelo controle da cultura na literatura de São Benedito, na
cidade de Bragança, estado do Pará. Esse autor analisou vasta bibliografia sobre os temas
22
relacionados à festividade a partir da década de 1930, tentando explicar como se construíram
as relações sociais entre os sujeitos históricos da Igreja Católica pela Prelazia do Guamá e da
Irmandade do Glorioso São Benedito de Bragança. Assim como em Mato Grosso, Bragança
sentiu as mudanças implantadas pela Igreja Católica, ainda que tardiamente, devido à falta de
sacerdotes. Lá em Bragança, observa Silva:

É verdade amplamente aceita em Bragança que a Marujada e sua festividade


são as máximes contribuições da história, do folclore e da cultura bragantina,
e que esses rituais são lugares onde essa cultura envolve sentimento de
pertença do povo mais humilde. Em especial, devoto de São Benedito. 41

Também em Bragança ocorreram conflitos entre a Igreja Católica e a Irmandade de


São Benedito, pelo poder eclesiástico sobre as festividades, que tinha o controle financeiro
das festas populares, onde as lideranças eram formadas por leigos. O exemplo de Bragança
traduziu resistência frente ao poder da Igreja Católica e, ainda hoje, o evento é realizado em
honra ao santo negro.

1.2 – A origem do culto a São Benedito no Brasil

A devoção a São Benedito foi trazida pelos portugueses nos tempos coloniais e que
se mantém atualmente, é um dos santos mais populares no Brasil, com inúmeras paróquias e
capelas que o elegeram como padroeiro, inspiradas em seu modelo admirável de caridade e
humildade.
Marina de Mello e Souza, ao estudar o catolicismo negro no Brasil42, confirma que a
vinda dos escravos africanos para o Brasil teve forte influência na formação das festas
religiosas dos centros urbanos. A partir das festas de Reis de Congo no Brasil, a autora
percebeu que, de um lado, as manifestações eram vivenciadas de diferentes formas para os
que a realizavam e, por outro lado, pela sociedade colonial lusitana, que mantinha uma
atitude, ora condescendente, ora repressora. Nesse sentido, Mello e Souza narra dois
momentos controversos das atividades exercidas pelas comunidades negra no Brasil, ou eram

41
NONATO DA SILVA, Dário Benedito Rodrigues Os donos de São Benedito: convenções e rebeldias na luta
entre o catolicismo tradicional e devocional na cultura de Bragança, século XX. 2006. Dissertação (Mestrado
em História) – Universidade Federal do Pará, Belém, 2006, p. 155-157.
42
Marina de Mello e Souza apresentou este texto em novem ro de 2002, em Gorée, Senegal, num Colóquio “A
construção transatlântica das noções de „raça‟, cultura negra, negritude e anti-racismo”. Cf. mais em MELLO E
SOUZA, Marina Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma reflexão sobre miscigenação cultural.
Revista Afro-Ásia. Salvador, n. 28, 2002, 125-146.
23
perseguidas e proibidas pelas autoridades e pelo discurso cristão, ou aceitas pela
administração colonial.
Portanto, algumas danças consideradas pagãs eram aceitas nessas festas, em devoção
aos santos padroeiros das irmandades negras. Segundo a autora, o que facilitou a penetração
das festas, principalmente a do rei do Congo, foi que o catolicismo já se fazia presente na
África, especificamente no Congo, desde o final do século XV, e foi a ponte de ligação para a
formação da nova identidade no contexto brasileiro:

Ao serem arrancados de seus lugares de origem e escravizados, ao deixarem


de pertencer a um grupo social no qual construíam suas identidades, ao
viverem experiências de grande potencial traumático, tanto físico como
psicológico, ao transporem a grande água e terem que se dobrar ao jugo dos
senhores americanos, os africanos eram compelidos a se integrarem, de uma
forma ou de outra, às terras às quais chegavam. Novas alianças eram feitas,
novas identidades eram percebidas, novas identidades eram construídas
sobre bases diversas: de aproximação étnica, religiosa, da esfera do trabalho,
da moradia.43

Podemos pensar, então, que o catolicismo colonial brasileiro usou de mecanismos


próprios para misturar as suas crenças às negras, resultando numa nova forma de devoção,
mas mantendo certa tradição e maneiras originárias:

Nesse sentido, os estudos sobre os minkisi centro-africano lançam novas


luzes sobre os santos envoltos em panos gastos, com colares de contas e
sementes e adereços de penas na cabeça. À maneira das penas colocadas na
cabeça dos baganga (plural de nganda) e dos minkisi, o adereço de cabeça
do São Benedito fotografado no mocambo do Pacoval reforça a conexão
entre este mundo e o outro, a relação dos homens com o além, permitida
pelo objeto-mágico-religioso, seja ele um santo católico, um nkisi, ou um
produto mestiço do encontro entre as diferentes culturas.44

Houve naquele momento um encontro importante entre duas culturas diferentes, a


dos africanos negros escravizados e a dos portugueses que vieram para o Brasil, com o
objetivo de dominar a terra e expandir seus domínios além-mar. Os primeiros escravos negros
foram egressos de seus países, deixando para trás o seu povo e suas tradições culturais, mas
no Brasil buscaram reproduzir sua cultura, evitando que a mesma se perdesse. Esse caráter de
resistência só pode ser percebido muito tempo depois, por intermédio de estudos sobre a
cultura negra no Brasil.

43
Idem, p. 128.
44
Idem, p. 144 e 145.
24
São Benedito oferece, aos seus primeiros devotos no Brasil, a dualidade necessária
para a sobrevivência de um modo de pensar aliado às novas ideias pregadas pelos portugueses
no processo de catequização:

Em 1619 já existia em Lisboa uma Confraria de São Benedito e nas


procissões e festas ao Santo era grande o número de escravos negros. Em
1686, na Bahia, o Santo Negro já era festejado com toda a pompa e, no
mesmo ano, eram aprovados pelo Bispo da Bahia os Estatutos da Irmandade
do Bem Aventurado Frei Benedito de Palermo. Oficialmente, porém o culto
a São Benedito, no Brasil, só seria aprovado em 1743.45

Interessante comentar que essa devoção já existia em Lisboa, desde o ano 1619, e 67
anos depois o santo negro já era festejado na Bahia, com toda a pompa. Analisando a
cronologia de São Benedito e considerando as dificuldades do século XVIII, no quesito
comunicação, essa devoção se alastrou rapidamente, graças à presença negra no continente
europeu e brasileiro:

A devoção de São Benedito, difundida desde a morte do santo (1589), foi


autorizada pela Igreja somente em 1743. Isto retardou consideravelmente a
organização de Irmandades dedicadas exclusivamente ao mouro siciliano. A
da Bahia, por exemplo pôde funcionar antes de 1812, porém, Benedito e a
Senhora do Rosário andavam de mãos dadas. Onde estava o atrativo dessas
Irmandades? Estava nas procissões e as festas ruidosas, tão do agrado dos
negros, promoviam, como descreveu o beneditino Domingos do Loreto
Couto, “danças, e outros lícitos divertimentos” – os cortejos de reis do
Congo, as cantatas das taieiras, os terços e ladainhas pelas ruas, as bandeiras
do Rosário e, à moda das do Divino, as folias de São Benedito – propiciando
aos irmãos um ambiente social de que os privara a escravidão. As
irmandades davam segurança e ajuda nas necessidades, sepultura gratuita e
projeção social colonial. 46

Nesse período, as irmandades eram responsáveis pela realização das festas religiosas
em honra ao santo negro, transformando esses momentos de devoção em momentos de
sociabilização, de prazer e ascensão social:

O homem comum, muitas vezes se reunia com os que tinha a mesma


devoção, formando então, uma irmandade. Esses devotos elaboravam um
Estatuto ou livro de Compromisso, que devia ser confirmado pela Coroa
Portuguesa. Nele, registravam-se os deveres e os direitos dos irmãos. Como
dever: pagar a entrada e os anuais; rezar pelos irmãos, acompanhando
funerais. Como direito: ser assistido pela irmandade em caso de doença,
viuvez e desgraça pessoal (prisão, falência...); receber missa em sufrágio (em
intenção) pela alma; enterro solene, acompanhado pela irmandade e seu

45
ROSA, Carlos Alberto. Almanaque de São Benedito 1976. Coxipó do Ouro, junho de 1976, p. 04.
46
CARNEIRO, Edson Ladinos e Crioulos (estudos sobre o negro no Brasil). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1964, p. 34.
25
capelão e sepultura em solo sagrado. No Brasil colonial e imperial existiram
muitas irmandades, pois elas praticavam uma assistência mútua. Os devotos
tendiam a se unir conforme um critério racial e econômico.47

Foi assim que as irmandades passaram a representar um papel importante na


realização das festas em devoção ao santo negro, dando visibilidade ao homem comum e
oferecendo-lhe direitos e deveres, cumprindo a função de ampará-los nas dificuldades durante
a vida, mas garantindo-lhe principalmente uma morte digna.

1.3 - Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, irmãos de fé

Existe uma forte ligação entre dois santos católicos, Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, que se uniram em muitas localidades do Brasil, união que resistiu a toda sorte de
adversidades, ao longo dos séculos inaugurais e resistindo até contemporaneamente.
Em relação ao surgimento da devoção à Senhora do Rosário em Portugal, José
Ramos Tinhorão, em Os negros em Portugal: uma presença silenciosa 48, afirma que em
Portugal a confraria de Nossa Senhora do Rosário, originalmente, era dos brancos e não
aceitava o ingresso de negros:

[...] os escravos africanos levados para Lisboa a partir de 1441 haviam


conseguido, pelo menos desde 1520, instituir em São Domingos, ao lado da
Confraria de Nossa Senhora do Rosário - dos brancos locais - , uma entidade
paralela que, não sendo assimilada, viria por isso a construir como que uma
variante daquela sob o nome – que passaria ao Brasil – de Confraria de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. 49

Ao que parece, os negros encontraram dificuldades, em Portugal, para cultuar seus


santos junto às irmandades formadas por brancos, mas encontraram na Senhora do Rosário,
como é chamada Nossa Senhora do Rosário, a afinidade de fé e devoção para afastar as
dificuldades e saudade de sua terra natal. Essa união foi firmada em vários lugares,
principalmente pelas festas profanas que acompanhavam essas duas devoções.

47
Idem, p. 31.
48
TINHORÃO, José Ramos Os Negros em Portugal, uma presença silenciosa. Lisboa: Caminho-Coleção
Universitária, 1997, p. 87.
49
TINHORÃO, José Ramos As Festas no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 87.
26
Tinhorão explica que a escolha de confrarias ou irmandades pela cor da pele levou à
aproximação dos negros com Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e que isso se deve ao seu
rosário, que lembraria o similar usado pelos africanos em consultas sobre o futuro ou a sorte.50
Mello e Souza considera que na cultura popular ibérica ocorreu a mistura do
catolicismo com as tradições pagãs dos afrodescendentes, promovendo uma interação
sociocultural de elementos de origem europeus e africanos:

[...] os santos eram invocados para afastar epidemias de peste e pragas das
plantações, trazer chuva e curar as pessoas, os minkisi. Divididos em várias
categorias e com especializações próprias, eram chamados a identificar
malfeitores, curar ou provocar doenças. Garantir a fertilidade da terra e das
mulheres. Constituídos por esculturas, vasilhames ou amarrações, recebiam
em ritos conduzidos pelos baganga ingredientes que os tornavam portadores
de poderes próprios dos espíritos da natureza ou dos antepassados. A elesos
santos católicos levados para a África pelos missionários foram associados.
Na América, ao reconstituir suas formas de organização e relação com as
coisas do mundo terreno e sobre natural, os africanos e seus descendentes
recorreram aos santos católicos para neles imprimir elementos de suas
crenças tradicionais, utilizando-se dos espaços permitidos pela sociedade
escravista, tal como fizeram com os festejos em torno de um rei negro, [...].51

Ao estudar a cultura negra africana, a mesma autora analisou as similaridades das


formas de cultos dos afrodescendentes, que, assim como os santos católicos, são evocados
para tratar de males físicos e espirituais. A devoção à Senhora do Rosário tornou-se a ligação
entre a sua cultura e a cultura dominante dos ibero-americanos.
Podemos afirmar que, provavelmente, os negros africanos e seus descendentes,
juntamente com a vinda dos portugueses para o Brasil, trouxeram os santos católicos, neles
imprimindo elementos de suas crenças tradicionais e envolvendo-os em variada gama de
trocas religiosas.
As devoções a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, no Brasil, iniciaram-se
com as construções de capelas, igrejas e constituição de irmandades, que serviram de agentes
catequizadores católicos dos novos fiéis de origem afrodescendentes:

A política de catequeses adotada pela Companhia de Jesus para emprego na


“conversão do gentio”, ao partir do pressuposto espiritual da verdade única
da fé cristã, e etnocêntrico da superioridade da civilização europeia, não
permitiria o surgimento de qualquer forma nova que se pudesse esperar de
um encontro de diferenças culturas. Desde a chegada da primeira missão
jesuítica à Bahia, a 29 de março de 1549, os cinco padres liderados por seu
Superior, Manoel da Nóbrega, tomaram seus princípios ético-religiosos e sua
50
Essa informação encontra-se no livro Música Popular: de índios e mestiços, do mesmo autor, que defende a
hipótese da preferência dos negros por Nossa Senhora do Rosário. Idem, p. 96.
51
MELLO E SOUZA, Marina de Catolicismo Negro no Brasil: santos e Minkisi, uma reflexão sobre
miscigenação cultural, 2002, p. 145-146.
27
cultura letrada como paradigma na comparação com a dos naturais da terra,
passando imediatamente a interpretar as diferenças encontradas como
resultado da inocência e do desconhecimento, por parte dos “gentios”, das
verdades que lhes traziam.52

Percebemos que a cultura dominante dos portugueses tentou impor aos negros
africanos suas crenças, porém, estratégias de resistência foram forjadas em terras coloniais.
No Brasil, encontramos um exemplo da construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no
Recife, durante o reinado de Afonso VI, onde também eram realizadas as festas de coroação
do rei do Congo, ritual trazido pelos africanos da região de Angola e da atual República do
Congo, e que foi incorporado às celebrações religiosas. Os africanos, além da coroação,
encenavam a dança do congo, com uso de tambores de diversos tamanhos, trajes e
coreografias típicas:

Era em base tribal que se organizava a devoção, para os naturais da África.


As primeiras confrarias do Rosário compunham-se exclusivamente de
negros vindos de Angola, os mais numerosos nas cidades de então – e às
vezes constava, dos seus estatutos, a exigência expressa da afiliação tribal.
Teria esta cláusula, por objetivo a catequeses? Em algumas delas, como foi o
caso em Pernambuco, desde o começo o cargo mais importante, o de
Tesouro, era desempenhado, obrigatoriamente, [...], por um homem branco,
abastado de bens, zeloso e temente a Deus. Também os negros jêjesse
organizaram em Irmandade, a do Senhor da redenção, na Bahia, quando
mais considerável do seu contingente de escravos (1752). Parece que havia o
propósito deliberado de não misturar nações diferentes nas mesmas
Irmandades.53

Em seu estudo, Tinhorão cita o depoimento de um estrangeiro de passagem pelo


Recife em 1666, que mostra a eleição dos juízes e juízas e demais oficiais para servirem à
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. De acordo com o depoimento, havia o registro em livro
as despesas com os festejos.54. Por meio dessa fonte, registrou-se a primeira descrição de um
desfile do rei do Congo no Brasil:

Apesar do duro cativeiro em que vivem, os negros não deixam de se divertir


algumas vezes. No domingo 10 de setembro de 1666 teve lugar a sua festa
em Pernambuco. Depois de terem ido a missa, em número de cerca de
quatrocentos homens e cem mulheres, elegeram um rei e uma rainha,
marcharam pelas ruas cantando e recitando versos por eles improvisados,
precedidos de atabaques, trombetas e pandeiros. Vestiam as roupas de seus
senhores e senhoras, trazendo correntes de ouro e pérolas; alguns estavam
mascarados. Os gastos da cerimônia lhes custaram cem escudos. Durante
52
TINHORÃO, José Ramos As Festas no Brasil Colonial, p. 23.
53
Idem, p. 33.
54
José Gomes Tinhorão explica que o estrangeiro era o Marquês de Montevergue, que, em 1666, esteve no
Recife e sua estada foi relatada e descrita por Urbain Souchut de Renefort, em Histoire des Indes Orienteles. o
(apud TINHORÃO, 1997, p. 23)
28
toda a semana o rei e os seus oficiais não fizeram outra coisa senão
passearem gravemente pelas ruas, de espada e punhal. 55

Esse processo só foi possível graças à vinda de escravos africanos para o Brasil
colonial que, segundo Tinhorão, só em Pernambuco e Bahia chegavam a uma média de três
mil, ainda no início do século XVII. A partir daí, começou uma mistura entre negros, mulatos,
pardos – transformando, pouco depois, no que se poderia chamar de “povo” do Brasil:

Seria essa massa de gente negra e mestiça que, ao integrar-se ao campo de


trabalho por sua incorporação aos mais variados ofícios mecânicos, estariam
destinadas a formar nas cidades, ao lado da minoria branca de portugueses e
mazombos, o elenco e o público das procissões festivas [...].56

É certo que chegou à Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá um número significativo de
negros, que, com suas festividades profanas, causavam grande preocupação às autoridades
locais. Contudo, as mesmas permitiam a participação, nos eventos públicos, de negros e
pardos, possibilitando o surgimento de uma camada paralela, que dava sustentação ao próprio
ritual:57

O cuidado com as festividades profanas, não era apenas para diminuir os


excessos praticados nos eventos religiosos, mas também para dissipar aos
poucos os elementos negros presentes no ritual. Tarefa difícil, pois a
sociedade girava em torno do elemento negro, livre ou escravo. Na Vila do
Cuiabá, o temor se apresentava quanto a possível organização de pardos e
negros no espaço urbano, por serem a maioria. Havia indagações das
autoridades locais e dos homens bons, de quais medidas seriam
empreendidas para diminuir a força negra na região. 58

Surge em pleno sertão oeste a Irmandade do Rosário e São Benedito, como


agregadora dos menos favorecidos, envoltos em uma teia denominada por Cristiane Santos
Silva como “teia de solidariedade” – que aproximavam os irmãos de religião em “parentes
sim ólicos”. Sabendo da sua importância, que segundo a autora, os encontros religiosos se
transformaram em lugar de identidade e comunhão: “tanto as autoridades locais, como os
membros das irmandades, sabiam da importância de manifestações de ordem sincrética na
vila, principalmente quando os festejos eram para São Benedito – santo protetor dos
negros”.59

55
Idem, p. 88 e 89.
56
Idem, p. 79.
57
Cf. mais em SILVA, Cristiane dos Santos. Fronteiras culturais na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá
(1727-1808). Monografia de Especialização em Metodologia de Pesquisa em História. Cuiabá, Universidade
Federal de Mato Grosso, 1998.
58
Idem, p. 71.
59
Idem, p. 76 e 77.
29
Realizamos uma investigação e observamos que muitos santos negros são cultuados
em diversas regiões do Brasil e do mundo. Ao todo, são 48 santos, sendo que houve na
história da Igreja Católica três papas africanos que vieram de uma região do norte da África
onde os povos eram predominantemente pretos. Embora não haja nenhum retrato autêntico
destes papas, existem desenhos na enciclopédia católica, a respeito. Foram eles: Vencedor ou
Victor, Gelasius, e Melquiades ou Miltiades.
Buscamos conhecer o culto aos santos negros no Brasil e nos deparamos com quatro
representantes expressivos: São Benedito, Santo Antônio de Categeró, ou de Noto, Santo
Elesbão e Santa Efigênia. Desses mais cultuados no Brasil, somente temos, em Cuiabá, a
devoção a São Benedito.

1.4 – A historiografia mato-grossense sobre a festa de São Benedito em Mato Grosso

As primeiras informações significativas sobre a festa de São Benedito vieram através


dos cronistas do século XVIII e hoje são as referências para os estudiosos da Cuiabá colonial.
“Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até o presente e
Diálogos geográficos, cronológicos, políticos e naturais”, de autoria de Joseph Barboza de
Sá, escrita no ano de 1769, é ainda hoje a obra que respalda a historiografia mato-grossense.
Nela, estão cronologicamente relacionais os acontecimentos iniciais da povoação de Cuiabá.
É neste documento que também encontramos o primeiro registro de São Benedito, que por
pouco, não nasceu junto com Cuiabá.
Considerando a importância deste documento, segue o texto na íntegra:

Neste mesmo ano levantou o Capitão Mor Jacinto Barbosa Lopes uma igreja
à sua causa, coberta de palha, que logo serviu de freguesia no mesmo lugar
em que se ache a que existe atualmente, dando-lhe o título de IGREJA DO
SENHOR BOM JESUS DE CUIABÁ. Neste lugar foi celebrada a primeira
Missa pelo seu irmão, Padre Frei Pacífico dos Anjos, religioso franciscano.
Consequentemente levantaram os pretos uma Capelinha a São Benedito no
lugar que depois seria chamado “Rua do Se o”. Tal construção caiu em
pouco tempo e não foi mais levantada.60

Cometti61, estudioso da história da Igreja Católica, considerou o ano de 1722 como a


“certidão de nascimento” da devoção para São Benedito em Cuiabá, amplamente citada pelos

60
COMETTI, Pe. Pedro (SDB) Apontamentos da História Eclesiástica de Mato Grosso – Paróquia e Prelazia
Volume I. Instituto Histórico geográfico do Mato Grosso e Academia Mato-grossense de Letras, Cuiabá, 06 de
dezembro de 1996, p. 12.
61
Idem, ibidem.
30
estudiosos da religiosidade local. Sabe-se que, desse período, poucos vestígios resistiram e
muito se perdeu, mas é consenso entre os autores que a capela ao santo negro ruíra e não fora
mais levantada. A maioria dos autores afirma que os devotos e as irmandades de São Benedito
foram amparados pela Senhora do Rosário, passando a funcionar na Igreja da mesma santa,
que aceitou os devotos de São Benedito. Infelizmente, esta transição não foi documentada.
Estes devotos, saudosos de sua terra natal e de suas raízes, encontraram no culto
religioso e na sociabilização proporcionada pelas Confrarias/Irmandades o convívio social
perdido. O certo é que em 1745, quando a região já se chamava Mato Grosso, São Benedito já
tinha sua confraria constituída.62 Como vimos anteriormente, a autorização para o louvor ao
santo negro, morto em 1589, se deu em 1743, mas, desde 1722 já se cultuava em Cuiabá o
louvor a São Benedito .
Os próximos relatos sobre São Benedito foram extraídos das publicações do Instituto
Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) do início do século XX, através de artigos
de autoria de mato-grossenses de nascimento ou de coração, que propagaram valores culturais
que até hoje estão presentes na manutenção da memória desse povo. A maioria já foi
amplamente discutida, servindo de base para os estudos da história da religiosidade cuiabana
e serão citados ao longo da construção do texto, tais como padre José de Moura e Silva,
Octayde Jorge da Silva, padre Pedro Cometti, Rubens de Mendonça e Francisco Alexandre
Ferreira Mendes.
Quanto ao regime administrativo, é consenso afirmar que as festividades e
comemorações em louvor a São Benedito surgiram em Cuiabá sob a organização do governo
português, através do padroado63, juntamente com a concessão para o funcionamento da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário no Brasil e o Guia de Visitação da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito, do padre José de Moura e Silva, é a fonte amplamente
utilizada para respaldar o início da devoção em Mato Grosso:

A alma Católica cuiabana foi formada num ambiente de cristandade,


dependente fortemente da tradição popular, pouco influenciada pelo clero.
Mas no convívio de Estado e Religião Católica, o Estado prevaleceu. No

62
SILVA, Octhayde Jorge da. Cuiabá-São Benedito. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato
Grosso. Cuiabá, Ano L, 1978, p. 48.
63
“Padroado é um grau de controle da Igreja dado a um administrador civil, por meio de uma ula. Cada
concessão de controle era um padroado. O papado concedeu a Portugal mais de um padroado. Devido ao regime
do padroado, coube aos reis de Portugal e imperadores do Brasil o controle virtual sobre a Igreja Católica. Criar
circunscrições eclesiásticas, paróquias, indicar quem seria bispo, determinar a disciplina eclesiástica, incorporar
os dízimos ao erário civil, usar o placete, isto é: o direito de decidir sobre a aplicação dos atos papais,
intermediar o relacionamento entre o legado pontifício e o papa”. SILVA, Jose de Moura e, Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito. Guia de Visitação. Cuiabá: Entrelinhas, 2006, p. 10.
31
regime do padroado, a igreja era algo frágil, sem força estrutural própria,
pois dependia do rei de Portugal e, depois, do imperador do Brasil. 64

Mesmo com as dificuldades na Cuiabá colonial, foi registrada a existência de três


capelas que foram erguidas e até hoje se fazem presentes: a do padroeiro da cidade, Senhor
Bom Jesus de Cuiabá; a de Nossa Senhora do Rosário e a de Nossa Senhora do Bom
Despacho. Consequentemente, cada uma delas, constituiu suas irmandades.65 A existência
dessas igrejas foi atestada nos diários dos viajantes europeus que passaram por Cuiabá no
século XIX, tornando-se a principal referência para estudos sobre a Igreja Católica em Mato
Grosso.
Hercule Florence, segundo desenhista da expedição do Barão de Lansgdorff no
Brasil66, registrou em seus diários as descrições da cidade Cuiabá, informando a quantidade
de igrejas em funcionamento na capital do Mato Grosso:

[...] a de Bom Jesus que é a cathedral, se nada exteriormente que a


recomende, a de Nossa Senhora do Bom Despacho, a de Nosso Senhor dos
Passos, e a da Boa Morte. Além de uma capella consagrada à Nossa Senhora
do Rosário. Outra capella fica no hospital da Misericordia, edifício não
concluído e onde mora o bispo.67

Karl von den Steinen visitou Cuiabá no final do século XIX e registrou, em Durch
Central-Brasilien, ao relatar so re as “generalidades” da cidade constatou as mesmas igrejas:
a Matriz, da Boa-Morte, do Senhor dos Passos, de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa
Senhora do Bom-Despacho, afirmando que Cuiabá não teria edifícios públicos de grandes
valores arquitetônicos, somente o palácio Episcopal e a Santa Casa de Misericórdia. 68 Os
relatos desses viajantes foram utilizados para comprovar a existências dos templos religiosos
erguidos na capital de Cuiabá, há mais de três séculos.
O estudo A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Capela à chegada do
primeiro Bispo (1722 - 1808), do historiador Kleber Roberto Lopes de Corbalan, ilustra o
cenário religioso e a forte influência da Igreja na vida dos habitantes, apoiado nos relatos dos
cronistas Joaquim da Costa Siqueira e José Barboza de Sá, nos Annaes do Senado da Câmara
da Vila Real do Senhor Bom Jesus, em Cartas, Termos e Ata, dentre outros, documentos

64
Idem, p. 10 e 11.
65
CORBALAN, Kleber Roberto Lopes. A Igreja Católica na Cuiabá colonial: da primeira Capela à chegada do
primeiro Bispo (1722-1808). 2006. Dissertação de Mestrado em História.
Cuiabá, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2006, p. 39.
66
Nos próximos capítulos veremos outras informações sobre esta expedição, que passou pelo Brasil de 1824 a
1829.
67
Cf. mais em A expedição do Consul Langsdorff ao interior do Brasil, por Alfredo D‟Escragnolle. Bi lioteca
Digital Curt Nimuendajo, p. 443.
68
STEINEN, Karl von den. Durch Central-Brasilien. Leipzig, F. A. Brockhauss, 1886, p. 48.
32
publicados que se tornaram referência para os historiadores e pesquisadores da religiosidade
cuiabana, assim como das irmandades eretas nesta capital. Mas, vamos priorizar a Irmandade
do Rosário, pela proximidade espacial e espiritual com a irmandade de São Benedito.69
Quanto à Irmandade do Rosário, o trabalho da historiadora Cristiane dos Santos
Silva, intitulado Irmãos de fé, irmão no poder, oferece muitas informações sobre sua
composição político e religiosa dessa Irmandade, mostrando a área de atuação na Vila Real do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá, e a agregação dos chamados de “Irmãos de Fé” no espaço
urbano da Vila. Para a autora, os franciscanos foram os responsáveis pela vinda e incentivo à
devoção a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, juntamente com a de São Francisco de
Paula, porém, mesmo com a existência de um compromisso, sem data, da irmandade desse
santo, sua devoção não foi reconhecida pelos irmãos do Rosário, ao contrário da irmandade de
São Benedito, que, além de ser aceita, possui uma capela anexada à sua igreja, onde são
realizadas as festividades em honra ao santo negro.70
A pesquisadora e antropóloga Rita do Amaral realizou um estudo antropológico
sobre a festa à brasileira, destacando as funções do festejar no Brasil colonial, a partir de
algumas festas. Para a autora, “[...] estabelecer a comunicação entre as culturas foi a tarefa
principal da festa no período colonial, ao mesmo tempo em que, através desta comunicação,
exercitou e estabeleceu o controle social brasileiro e nosso modelo de sociabilidade [...].”71
Assim como aconteceu em todo o Brasil, as festas religiosas72 foram marcantes na
formação da cultura e aqui não foi diferente. Nesse sentido, é novamente Silva que afirma
que a Vila de Cuiabá observava suas festas, controlada pelo governo português, acreditando
incentivar a catequização e o lazer na colônia:

A Vila havia se preparado também para o festejo do Divino Espirito Santo e


os pretos cuidavam também para festejar Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito. A menção à confraria negra não acontece sem propósito. O temor
de revoltas e turbas provocadas pelos negros na América Portuguesa era
constante. Durante o governo Real de D. Maria I, houve um período de auge
nas manifestações de fé, por parte das irmandades. [...] o governo de Luiz de
69
Cf. mais em CORBALAN, Kleber Roberto Lopes. A Igreja Católica na Cuiabá Colonial: da primeira Capela
à chegada do primeiro Bispo (1722 - 1808).
70
Cf. mais em SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder: a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). 2001. Dissertação (Mestrado em
História) –ICHS/Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2001.
71
AMARAL, Rita de Cassia. Festa à brasileira – significados do festejar, no país que “não é sério”. Tese de
Doutorado em Antropologia. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 47.
72
A leitura da pesquisa de Rita de Cássia Amaral foi importante para nossa pesquisa principalmente a
contextualização teórica sobre a festa e ainda a reflexão sobre os vários aspectos. A autora afirma e defende a
ideia da existência de um modelo “ rasileiro de festa”. Ela aponta que o primeiro ponto a chamar a nossa
atenção é a sua forma: “Em geral, tanto as festas de massa como as locais, de grupos menores, são festas
processionais, em que os valores, religiosos ou profanos, tornados signos e símbolos desfilam pelas avenidas
das cidades, na forma de andores, berlindas, alegorias, carros de som, seguidos pelos que festejam, ligados uns
aos outros, compartilhando-os”. Idem, p. 274-275.
33
Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres [...] incentivador de festas e
procissões no espaço urbano influenciando no aumento de demonstração das
devoções de fé. A festividade mesmo quando incentivada pelas autoridades,
causava certa preocupação no que respeita às manifestações sagradas,
misturando-se estas com as práticas pagãs, a exemplo do batuque e do
cururu.73

A preocupação das autoridades era quanto à desordem, associada aos negros, como
brigas e excessos de toda ordem, que culminou com algumas regras no Código de Postura,
como exemplo o caso de Vila Bela. O historiador Carlos Alberto Rosa nos mostra que os
negros que para lá foram, cultuavam São Benedito, desde 1730. Quando a capital da capitania
foi transferida a nova vila os negros persistiram e mantiveram a devoção ao santo negro
inclusive, com a pretensão de lá formar a Irmandade de São Benedito. Segundo o autor, os
negros de Vila Bela tiveram muitas dificuldades, pois em 4 de dezembro de 1753 a câmara
aprovou seus Estatutos ou Posturas. Em relação à devoção a São Benedito em Vila Bela, ele
cita o Código de Postura que afirma:

[...] Acordaram que nunca esta Câmara desse licença [...] para se formar
outra alguma Igreja ou Capela e principalmente aos pretos e mulatos [...]”.
Para a festa da SS. Trindade acordaram que a Câmara nomeariam um ano
antes, na véspera do dito, e por mais votos, três festeiros dos homens bons e
de mais posses destas Minas, cuja eleição mandaria ao R. Vigário, assinada
pela Câmara, para no dia da festa fazê-la publicar pelo pregador, evitando-se
por este modo as incivilidades de Irmandades [...]. 74

No Almanaque de São Benedito, Rosa aponta as dificuldades para trilhar os vestígios


da devoção a São Benedito em Cuiabá, pois a documentação é escassa. Este historiador
credita ser a forte influência do santo negro em Cuiabá devido ao desempenho do franciscano
Pacífico dos Anjos, mas também pelas características dos negros que para cá vieram, talvez
conhecedores dos milagres de São Benedito, ou por meio da devoção conversão baiana. 75 O
certo é que os africanos e seus descendentes tenham se espalhado pela Vila Real.
Em “A Terra da conquista: história de Mato Grosso colonial, do mesmo autor,
encontramos o caminho trilhado pelos africanos e seus descendentes na Vila de Cuiabá. A
explicação para a fixação dos negros nos entornos da Igreja do Rosário. Rosa aponta que é no
eixo Mandioca/Igreja do Rosário em Cuiabá, onde a presença negra era mais acentuada,
dominadas pelas famílias negras forras e seus escravos: Havia grande número de domicílios
enca eçados por mulheres negras, na rua denominada “das Pretas”. Costumeiramente, o
73
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819), p. 47.
74
ROSA, Carlos. Almanaque de São Benedito 1976: para um estudo sobre as origens das festas de São Benedito
na cuiabania, p. 9.
75
Idem, p. 5.
34
entorno da Igreja do Rosário passou-se a ser chamado de lugar dos pretos na Vila Real, um
espaço de lutas e de resistências. Ele ainda afirma que até 1751, só existia a Matriz, o oratório
de Nossa Senhora do Rosário, a capela de Nossa Senhora do Bom Despacho e uma capelinha
no Bairro do Porto.76
Sobre a fixação dos negros ao redor da Igreja do Rosário, Silva é referência na
explicação das razões da proliferação das irmandades nesse local, haja vista que havia poucos
espaços para não brancos na capitania de Mato Grosso77. Assim os brancos participavam da
Irmandade do Senhor Bom Jesus de Cuiabá ereto na Matriz e os negros e mestiços, nas
irmandades da Senhora do Rosário e de São Benedito:78

A religião cristã, em compensação, difundiu o culto aos santos negros, ou de


pele morena. Era uma forma de conseguir a adesão de ameríndios e
africanos, que se identificavam com tais santos. Por este motivo, o capitulo
20, a irmandade do Rosário demonstra necessidade de garantir a presença da
imagem de São Benedito na igreja de Vila Bela. E mesmo não estando
escrito, a irmandade de Cuiabá, também tratou de edificar anexa a capela de
São Benedito. Sem dúvida, dentre os santos existentes, São Benedito se
destaca pela devoção e pela difusão na religiosidade dos não brancos.79

Quanto às Irmandades de São Benedito em Cuiabá do século XVIII, Rosa afirma que
certamente a mesma já existia em 1745, inclusive aponta que era nas irmandades que a
preservação de alguns padrões culturais dos africanos era mais propícia, espaço que servia
como instrumento para a compra da liberdade dos irmãos escravos:

Além dessas, outras funções como a “ascensão social” o tenível através da


ocupação de cargos nas Irmandades, ou a simples garantia de um enterro e
de uma sepultura “dignos”, faziam-se presentes tantos nas Irmandades
negras como nas dos Pardos. Mas não há que concluir-se, desde já, que a
criação de Irmandades por negros e pardos fosse obra de fácil consecução.
[...] Só mesmo nos “meios ur anos” da época, onde os “negros de ganho”, os

76
ROSA, Carlos Alberto. O urbano colonial na terra da conquista. In: ROSA, Carlos Alberto; JESUS, Nauk
Maria de (Org.). A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial, p. 24 e 29.
77
Para efeito de entendimento, Carlos Rosa nos oferece umas datas importantes sobre a formação da Capitania
de Mato Grosso e de Cuiabá. A colonização de Cuiabá foi iniciada nas primeiras décadas do séc. XVIII, mais
precisamente em 1722. Mas somente em 1727, o Governador de São Paulo veio a Cuiabá fundar a Vila. Fundar
aqui significa criar a câmara, com eleições, estatutos, posturas municipais entre outros. Somente em 1734,
achou-se ouro na região dos Parecis, conhecida como “Mato Grosso”. Inicialmente, Rosa diz que era Mato
Grosso dos Pareci ou o Mato Grosso do sertão dos Pareci e depois só Mato Grosso. Em 1741, o governo
português recomendou a povoação do Mato Grosso, oferecendo privilégios e isenções. Em 1743 foi criada a
freguesia e vigararia forânea do Mato Grosso. Já em 1745, recebeu autorização papal para instalar a prelazia em
Cuiabá, legitimando domínio até o Mato Grosso. Em 1746, o governo português mandou fundar uma vila no
Mato Grosso que segundo Rosa, o distrito do Mato Grosso era uma parcela do termo da Vila Real que passou a
receber tratamento especial ficando assim definida a fronteira entre Cuiabá e Mato Grosso. Pra resumir, a
capitania surgiu composta por dois termos, a de Cuiabá e a de Mato Grosso. Idem, ibidem.
78
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819), 2001, p. 25; 30.
79
Idem, p. 73.
35
“negros de aluguel”, os artesãos e milicianos puderem acumular algum
capital, é que as Irmandades negras e pardas puderam nascer e sobreviver.80

Não encontramos explicação, mas a Irmandade de São Benedito se firmou, sendo


que a de São Francisco de Paula não conseguiu se estabelecer na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário81. Somente a de São Benedito recebeu autorização para a construção da capela em
honra ao santo negro. Foi possível observar que essa concessão não se cindiu à questão
espacial. Silva analisa o conflito que encontrou em documentos sobre um protesto de dívida
por falta de pagamento da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário a São Benedito:

A solução do caso foi ministrado pelo bispo diocesano, o padre Manoel


Pereira Mendes, estabelecendo os direitos recíprocos das referidas
irmandades, de forma oficial: Art. 5º - Ficam pertencendo a confraria de N.
Sra. do Rosário, os rendimentos que houverem, ou seja provenientes de
dobres de sinos ou de cera que ficar por ocasião de Festas, e enterros. Art. 6º
- A chave da porta principal da Capela fica a cargo da Confraria de N. Sra.
do Rosário, ficando porém esta obrigada a ter a mesma porta aberta todas as
vezes e sempre que a confraria de São Benedito tenha de celebrar qualquer
de seus atos religiosos.82

Dessa forma, oficialmente a Irmandade de São Benedito, além de usufruir do espaço


físico, conseguiu também ter seus direitos reconhecidos pela irmandade do Rosário, com a
força recebida por essa Congregação. A irmandade cresceu e assumiu proporção que não se
esperava.
A historiadora Simone Ribeiro Nolasco, em As devoções na Vila Real do Senhor
Bom Jesus do Cuiabá 83, apresenta alguns indícios dos festejos de São Benedito, que assim
com outras festas, foram momentos de devoção pública, pelo seu caráter dualístico entre
profano/sacro. A autora discute o povoamento desta região passou por um processo que ela
chama de “ritualização”, sendo que os templos religiosos ocupavam o centro, como um lugar
alto, um lugar de culto, e suas referências são muito utilizadas pelos historiadores que
estudam a construção da espacialidade da parte central da Vila Real do Senhor Bom Jesus do
século XVIII e XIX:

80
ROSA, Carlos Alberto. Almanaque de São Benedito 1976: para um estudo sobre as origens das festas de São
Benedito na cuiabania, p. 6-7.
81
Como vimos anteriormente, Carlos Alberto Rosa afirma que a Igreja de Nossa Senhora do Rosário não é
referida antes de 1754.
82
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819), 2001, p. 76-77.
83
Esta pesquisa trata dos vestígios iconográficos setecentistas que ainda mantém vivo a memória das crenças,
práticas e devoções na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá no período de 1723 a 1808, encontrados pela
pesquisadora em acervos de colecionadores particulares, igrejas e museus, mostrando que a materialização da
representação pl stica das imagens de santos de devoção “protegia a casa e seus moradores”. Era nos templos e
nas irmandades que as bandeiras dos padroeiros, as imagens pintadas ou escultóricas deixavam a marca da
presença divina, avivando a memória do catolicismo na vila.
36
Neste ínterim cabe lembrar que as formas locais de culto que destacassem a
especificidade da comunidade eram consideradas perigosas e perniciosas
ante os olhos das autoridades (políticas e religiosas) uma vez que se
pretendia conservar uma Igreja Uma com seus cultos devidamente
ordenados, afinal, os festejos religiosos continham em suas manifestações
aspectos considerados profanos, ocasiões de fuga do cotidiano, excessos
gastronômicos e de bebida. Nestes momentos a afirmação de identidades e a
vitalidade dos moradores vinham à tona. A elite local, porém, reconhecia a
necessidade de não se coibir totalmente as expressões populares; era preciso
permitir certo grau de liberdade (ainda que vigiada) para que se não
fomentasse insatisfações.84

A mesma autora relata que foi encontrada em uma carta do juiz de fora para o
capitão-general da Capitania, onde se confirmava os “festejos ao Senhor Divino Espírito
Santo, mas receava em comemorar as festas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito
“por serem profanas” e que se faziam com cavalhadas, comédias e danças”.85
O memorialista Octhayde Jorge da Silva, em São Benedito, assim como Carlos Rosa
afirmam que, em 1745, já existia a Irmandade de São Benedito em Cuiabá, mas que pela
carência de documentos, seus vestígios se perderam no tempo: “Quanto ao século VIII,
apenas uma ilação, que nos parece adequada, poderia ser feita. Um Livro de Registro de
Irmãos e Irmãs da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, datado de 1767, acusa a presença
de grande número de escravos em suas páginas. 86 A referência inicialmente mais concreta
sobre a Irmandade de São Benedito foi encontrado por Rosa num Livro dos Termos de Mesa
da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, datado de 1817.87
Dejacy de Arruda Abreu, em A educação na festa: tessituras da cultura popular na
festa de São Benedito em Cuiabá, localiza um documento sobre a Irmandade de São Benedito,
pesquisando no Arquivo Público de Mato Grosso, um exemplar da Gazeta Official, publicada
em Cuiabá no século XIX, que traz o pedido de funcionamento da Irmandade de São Benedito
em 1828 a Dom Pedro I. Este documento veio a público nas Comemorações do 50°
Aniversário da Paróquia Nossa Senhora do Rosário e São Benedito em Cuiabá, realizada em
1995:88

Dizem os Devotos, Rey, Juiz, Officiaes e Irmãos de Meza da Confraria do


Glorioso S. Benedito, cuja Veneravel Imagem se acha collocada em hum dos
84
NOLASCO, Simone Ribeiro. As devoções na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá – o culto aos
Padroeiros – 1723 a 1808. 2002. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá, Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, 2002, p. 71.
85
Idem, p. 114.
86
SILVA, Octayde Jorge da. Cuiabá, São Benedito. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
Cuiabá, Ano L, 1979, p. 6-8.
87
ROSA, Carlos Alberto. Almanaque de São Benedito 1976: para um estudo sobre as origens das festas de São
Benedito na cuiabania, p. 6.
88
Dejacy Arruda Abreu se apoiou em informações contidas no livro Tombo digitalizado da Paróquia do Rosário
e São Benedito.
37
altares Collateraes da Capella de Nossa Senhora do Rozario da cidade do
Cuiabá que há 60 annos se congregarão os Devotos da mesma venerável
imagem, construirão huma Confraria sem alcançar a Imperial Permissão
necessaria para isso, porem reconhecendo sempre ser a dita Confraria da
Jurisdicção Imperial, por ser pleno jure pertencente ao Grão Mestrado,
Cavallaria e Ordens de Nosso Senhor Jesus Christo, humildes, e submissos
prostão-se os Supplicantes ante o Throno de Vossa Magestade Imperial,
rogando que por bem do Serviço de Deos, Vossa Magestade Imperial se
digne Approvar a instituição da dita Irmandade, revalidando-a com a
Imperial Sancção, sem embargo da nulidade com que foi instituida, e
confirmando os vinte seis Capitulos de Compromisso, que com esta
apresentão para servir de regra à mesma Confraria.89

Observamos que neste pedido há evidência que, em 1828, foi feita a solicitação, mas
que provavelmente desde 1768 a irmandade de São Benedito já funcionava dentro das normas
da igreja, porém, sem autorização legal para seu funcionamento. Também nesse documento,
vimos que a irmandade já funcionava há sessenta anos na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário. Provavelmente, sua festa já era realizada logo após a festa do Divino.
A leitura dos historiadores mato-grossenses apontou uma forte relação entre a festa
do Divino e a festa de São Benedito, e essa ligação permeia o imaginário coletivo dos
cuiabanos que, durante muito tempo, em Cuiabá, a festa de São Benedito ocorria logo após a
festa do Divino, assim como ocorria em Vila Bela.
Dentre os escritores mato-grossenses, Francisco Alexandre Ferreira Mendes,90 em
Lendas e tradições cuiabanas, registrou as principais manifestações culturais de Cuiabá e,
dentre elas, as festas do Divino Espírito Santo. Ele informa que antes da chegada do cinema,
as diversões eram apenas de caráter religioso e, em especial, as festas do Espírito Santo, que
avivavam o cotidiano da cidade, uma vez que eram realizadas as touradas, um espetáculo
profano que trazia alegria para o povo e era dedicada em honra ao Espírito Santo.
Para Mendes, as touradas foram encerradas devido às transformações promovidas
pelo discurso civilizador, e Cuia continuou a festejar o Divino, mas sem o “antigo
esplendor de outrora”:

A proibição das diversões tauromáquicas no Brasil encerrou em Cuiabá essa


festa tradicional, tão do gosto da velha gente cuiabana. Continuaram as
festividades do Espírito Santo na metrópole do centro-oeste brasileiro, com
as solenidades do ritual católico, que perderam, entretanto, muito do antigo
esplendor das realizações passadas, já não mais existindo as alegrias nas
casas dos festeiros, adrede escolhidos, e a tradição desapareceu, para dar
lugar às festividades de São Benedito (grifo meu), apenas nas solenidades
89
ABREU, Dejacy Arruda A educação na festa: tessituras da cultura popular na festa de São Benedito em
Cuiabá. 2007. Dissertação de Mestrado em Educação. Cuiabá, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
2007, p. 218.
90
MENDES, Francisco Alexandre Ferreira. Lendas e tradições cuiabanas. Cuiabá: Edição da Fundação Cultural
de Mato Grosso, 1977.
38
religiosas, que continuam alegrando a velha cidade do Senhor Bom Jesus de
Cuiabá.91

Mendes parece traduzir o sentimento dos moradores de Cuia ao afirmar que “tudo
na vida passa” e as touradas passaram e deram lugar à festa de São Benedito, mas sem a
tradição de outrora. Será que a festa de São Benedito fora responsável pelo fim das touradas?
Outro escritor e historiador mato-grossense, Rubens de Mendonça, no livro Roteiro
Histórico & Sentimental da Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá92 registrou a prática das
Touradas na festa do Divino Espírito Santo em Cuiabá, organizadas pela elite branca da
Irmandade do Divino Espírito Santo, sendo que, até 1936, as touradas eram realizadas nas
noites dessa festa, sendo que nas festas de São Benedito, só havia dança de Congos:

Aconteceu que a Lei de Proteção aos Animais, já então em vigor não permite
a realização desse festejo popular e o Governador, por insistência de amigos,
dentre eles o saudoso Antônio Tenuta, italiano de nascimento, mas cuiabano
de coração, aqui radicado com numerosa família, tomaram a peito as
realizações daqueles festejos. O Chefe de Policia do Estado, Dr. Waldomiro
Corrêa da Costa, irmão do governador, por ordem do Ministro da Justiça que
atendendo ao apelo do jornalista Augusto de Araújo, Pastor da Igreja
Evangélica de Cuiabá, ordenou a sua suspensão já em véspera da realização,
quando no “Campo d‟Ourique”, j se encontrava armado o anfiteatro. Diante
da ordem proibitiva do Chefe de Policia, o governador se contrariou de tal
maneira que foi acometido dessa doença que lhe havia de roubar a vida a 7
de setembro de 1937, perdendo assim Mato Grosso um dos seus mais ilustres
filhos. Mas, voltemos às festas de São Benedito. Em homenagem a São
Benedito eram organizadas as “Congadas” ou melhor as “Danças do
Congos”. A festa de São Benedito se realiza no primeiro domingo de julho.
Como são quase idênticas as festas de São Benedito e de Nossa Senhora do
Rosário, ambas na mesma Igreja, sendo que a de São Benedito é mais
popular.93

Ferreira Mendes e Mendonça são memorialistas do início do século XX,


influenciados pelo discurso sanitarista de proteção aos animais, mas que apontava para a
manutenção das tradições do povo cuiabano. As contribuições desses dois autores são
amplamente utilizadas quando o assunto é o fim das Touradas e a cultura “cuia ana”. Não foi
possível atestar se foram eles que propagaram que a suspensão aconteceu porque o então
governador do Estado na época, Mário Corrêa da Costa, organizou uma tourada para São

91
Idem, p. 96.
92
MENDONÇA, Rubens de. Roteiro Histórico & Sentimental da Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá. 3 ed.
Cuiabá, 1975. 3 ed. Comemorativa ao Duocentésimo Quinquagésimo aniversário da elevação do Arraial a
categoria de Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, 1727 – 1977. Cuiabá: Edições Igrejinha, 1975.
93
Idem, 1975, s/p.
39
Benedito, o que deve ter ensejado a afirmação de que “antigamente nas festas de São
Benedito de Cuiabá também se realizavam as touradas”94
Josiane Rosa da Silva, em Os festejos do Senhor Divino Espírito Santo e São
Benedito em Vila Bela da Santíssima Trindade-MT, apresenta uma explicação para a ligação
das duas devoções: “São Benedito é o santo da comunidade, é o santo preto dos pretos, é o
santo maior entre os santos do céu e os santos dos que Deus deixou na terra”. 95 Segundo a
mesma autora, pelo poder dos santos suas festas eram comemoradas uma após a outra, e por
ser o mais poderosos deles, São Benedito está assentado à direita do Divino. Por isso as duas
festas são comemoradas em sequência, sendo que a programação das festividades, para São
Benedito em Vila Bela, era dividida em duas partes: a sacra, com a celebração religiosa, e a
profana, com a Dança do Congo 96, considerado o ponto alto da festa, realizada na segunda-
feira após a celebração religiosa no domingo 97:

Essas características são influenciadas desde o período da escravidão em que


os negros reforçavam sua fé para suportar os maus tratos dos sinhozinhos,
[...]: A condição primeira para ser festeiro de São Benedito é pertencer a sua
irmandade. A irmandade compõe-se da diretoria e do corpo associado. Os
irmãos que fazem parte da diretoria são designados como Irmãos da Mesa, e
os demais como Irmãos de Roda. Cabe aos Irmãos da Mesa fazer a escolha
dos festeiros de cada ano. 98

Utilizamos o exemplo de Vila Bela para ilustrar que a Irmandade de São Benedito
que, assim como a de Cuiabá, era formada por negros que se responsabilizavam pela
organização das solenidades religiosas, mas também da parte profana da festa, a dança do
Congo.
Roberto Loureiro, em Cultura Mato-Grossense, oferece uma síntese da cultura mato-
grossense a partir das festas de santos, que respalda os estudos culturais de Mato Grosso para
estudiosos da religiosidade, apesar de ter deixado poucos vestígios de sua pesquisa. Loureiro
considera que as primeiras festas de São Benedito em Cuiabá, no século XVIII, não tinham o
esplendor e pompa das festas no início do século XX, confirmando que o divertimento do
Congo era realizado somente nas festas de São Benedito:

Além dos rituais sagrados, comuns a todas as festas de Irmandade, nas


Festas de São Benedito, realizadas pela Irmandade de São Benedito,
94
N. A.
95
Ver mais em: SILVA, Josiane Rosa et all. Os festejos do Senhor Divino Espírito Santo e São Benedito em
Vila Bela da Santíssima Trindade-MT. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso. Cuiabá, n.
63, 2005, p. 81 a 93.
96
Dança originário na África, trazida para o Brasil pelos escravos africanos.
97
Idem, p. 89
98
Idem, p. 83.
40
destacava-se a presença do Rei, um negro, que levava na cabeça uma coroa
de prata, e que, junto com os Juízes, saíam em procissão, acompanhados de
música de banda e um grande numero de irmãos com chapéu de sol e a
realização das Congadas ou Danças do Congo, evento profano mais
marcante da festa. Com alguns pontos em comum com essa configuração, a
festa ocorre em algumas cidades no interior do Estado, como Vila Bela da
Santíssima Trindade e Nossa Senhora do Livramento, principalmente quanto
à apresentação da Dança do Congo. A antiga Festa de São Benedito, em
Cuiabá, era uma festa de negros, a grande maioria escravos, mas já
apresentava a beleza e riqueza da sua cultura de origem africana.99

Loureiro registra que a festa se destacava pela presença de um rei negro, suposto
festeiro que comandava todas as solenidades, numa tentativa de recriar o reinado do Congo,
para rememorar as lembranças da origem desses negros. As festas religiosas se tornaram
importantes elos entre a cultura original africana e a nova cultura surgida da mistura com os
habitantes do Brasil, devido à junção de vários fatores, sendo que, um deles, o isolamento da
população dos grandes centros do país, permitiu que a criatividade do povo fosse expressa
mais livremente.100
Para as comemorações dos 250 anos de fundação da cidade de Cuiabá, dois autores
cada com suas características, apresentaram suas propostas para resgatar a origem dessa festa
em Cuiabá. O primeiro deles, Carlos Rosa, com o “Almanaque de São Benedito 1976”, e
Octayde Jorge da Silva, em São Benedito, sendo que este último empregou um tom saudosista
para pontuar algumas marcações cronológicas da cidade e sua relação com a festa:

O Santo Preto continua: como fenômeno sócio-cultural-religioso. É culto


popular. É consciência coletiva. É comunicação – expressão de uma etnia. É
o comportamento-participação numa comunidade negra. Inicialmente, auto-
sustentação, depois tradição religiosa e processo cultural. A quermesse, a
procissão, a missa em tríduo, os festeiros, o rei, a rainha, os juízes de vara e
ramalhete, os juízes de promessa. O Capitão de Mastro. Este se levanta no
primeiro dia, na 5a.feira, de madrugada. É um pipocar de foguete. Mas era
festa de pretos. E as girândolas ficam suspensas entre o céu e a terra!... julho,
domingo primeiro, a festa. Até 1868 as congadas compunham o processo.
Luta entre dois potentados: cristãos contra mouros. Os festeiros desciam a
colina. Em baixo, a dança dos Congos. Na congada, o rei Negro é vitorioso
em Vila Bela “Voltando so re ele, o oi enraivecido” CUIABÁ teve
TOURADAS. Primeiro, no Divino Espírito Santo, festa de brancos. O
arcebispo Dom Aquino proibiu. Depois, em 1936, no São Benedito, Campo
d‟Ourique. Imolou Governador. Camarotes, toureador-jacuba, cavalo,
cavaleiro e pajem – a aristocracia no curro. Cavalo era status. Depois,
capinhas e máscaras, a pé – a hierarquia das classes sociais. Nos camarotes,
ainda a estrutura social: em cima, a estirpe da época, com cadeiras e cortinas

99
LOUREIRO, Roberto. Cultura mato-grossense - Festas de santos e outras tradições. Cuiabá: Entrelinhas,
2006, p. 45.
100
Idem, p.23.
41
coloridas. Panos de cores a servir-lhes de paredes; e em baixo, ao rés do
chão o que convencionou chamar-se “povo. 101

O autor pontua vários aspectos do festejar em Cuiabá, esclarecendo que, até 1868,
ainda eram encenadas as Congadas durante as comemorações da festa de São Benedito,
recriando a guerra entre mouros e cristãos, com a presença do rei, da rainha, juízes e capitão
do mastro, no séquito montado para as procissões; que a festa do Divino era a festa dos
brancos, que também organizavam as Touradas; que, até 1936 aconteciam, sendo que a última
foi em honra a São Benedito, organizado pelo governador devoto de São Benedito; sem
precisar os eventos cronologicamente, mostra a distinção das camadas sociais pela
distri uição delas no espaço do Campo d‟Ourique, reservado para essa pr tica: a elite branca,
de poder aquisitivo mais “elevado”, ficava nos camarotes, e o povo em baixo, no chão.
Silva termina seu texto afirmando que, em 1977, a festa embranqueceu e lamentava
as mudanças que ocorreram no cerne dessa festividade, uma vez que provocaram muitas
mudanças na festa em 1977, e terminou dizendo: “[...] menos ao SANTO e mais ao POVO,
mais SOCIAL que RELIGIOSA”.102
Será que a festa de São Benedito de Cuiabá é realmente uma festa religiosa? Essa é
uma pergunta para a qual ainda não temos a resposta.

1.5 - A negritude e o embranquecimento da festa de São Benedito em Cuiabá

Carlos Rosa foi o primeiro pesquisador a buscar entender o fenômeno da questão da


negritude e embranquecimento dentro da festa de São Benedito. Em seus apontamentos, a
questão é bastante utilizada pelos estudiosos da presença negra no Brasil. Para ele, a negritude
deu origem à festa, no século XVII, com os africanos negros, objetivando a preservação da
cultura natal entranhada nas origens da devoção ao santo negro: “[...] o recurso ao imaginário
(fetiches, mitos, religião) e à utilização do corpo como instrumento de prazer (erotismo,
dança, canto), permanece como categoria irredutível e iluminadora daquilo que denominamos
negritude”. A devoção a São Benedito cumpriu papel duplo, satisfazendo tanto aos
portugueses quanto aos africanos e seus descendentes, pela submissão ao sistema em vigor.103

101
SILVA, Octayde Jorge da. Cuiabá, São Benedito. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato
Grosso, p. 49.
102
Idem, p. 50
103
ROSA, Carlos Alberto. Almanaque de São Benedito 1976: para um estudo sobre as origens das festas de São
Benedito na cuiabania, p. 12.
42
Para o mesmo autor, os africanos negros, muitas vezes, buscavam escape através do
suicídio, na formação de quilombolas, revoltas e nos crimes. Mas é na questão do imaginário
que, segundo ele, tem na dança do Congo como ponto nevrálgico, pois são considerados
como rituais profanos, em que a utilização do corpo como instrumento de prazer se manifesta
com força, remetendo-nos de volta a um outro nível do imaginário, numa síntese da negritude
em possível contexto colonial. 104
Em Festa de São Benedito na Igreja do Rosário em Cuiabá105, Marcos Amaral
Mendes conclui que o processo de embranquecimento ocorreu no início do século XX, no
instante que a elite cuiabana assumiu a devoção ao santo negro. Com isso, a hegemonia negra
foi quebrada, promovendo mudanças do festejar São Benedito em Cuiabá, onde ainda havia a
presença negra na organização das atividades, contudo, sem a visibilidade de outrora.
Sobre a dança do Congo, Mendes identificou que a Igreja Católica, desde o século
XVIII, queria eliminar a parte profana da festa, vista como supersticiosas pelo poder
eclesiástico. Por isso, a dança do Congo foi desaparecendo aos poucos, até que em meados do
século XX foi realizada a última festa do congado.106
De acordo com a historiografia, o fator que marca esse embranquecimento coincide
com o término das festas de reinado do Congo no interior da festa de São Benedito em
Cuiabá. Esta é a “verdade” encontrada no imagin rio coletivo dos cuia anos que: “com as
proibições das partes profana da festa do Divino, os devotos migraram a para São Benedito”.
Mesmo que esse assunto, a dança do Congo, já foi exposto anteriormente, achamos
por bem auxiliar no seu entendimento, apresentando uma reflexão sobre os prováveis motivos
do embranquecimento da festa de São Benedito, descritos pelos autores mato-grossenses.
A aceitação da devoção ao santo negro em Cuiabá, durante o período colonial,
fortaleceu a cultura dos negros trazidos da África, mas também incorporou aspectos europeus.
Parece que a congada ou dança do Congo foi o marco divisor no embranquecimento da festa.
Sabe-se por Carlos Rosa e Octhayde Jorge da Silva que essa prática ainda era realizada por
volta de 1868, e, assim como as touradas, as congadas foram raleando até desaparecer.
A historiografia que versa sobre a festa de São Benedito aponta que seu
embranquecimento teve início na primeira metade do século XX, concomitantemente com o
fim das touradas. Dois aspectos foram relevantes para esse processo: primeiro quando as
touradas da festa do Divino em Cuiabá foram suspensas por ordem de Dom Francisco de
Aquino Corrêa, arcebispo metropolitano de Cuiabá. A festa do Divino, sendo organizada

104
Idem, p. 12.
105
AMARAL, Marcos Mendes. Festa de São Benedito na Igreja do Rosário em Cuiabá: origens, estruturação e
transformações (1787-1979). Revista Eletrônica Documento Monumento. Cuiabá, vol. 04, 2011.
106
Idem, p. 155.
43
predominantemente por brancos, segundo Rosa, acredita ter sido o primeiro ponto para a
migração desse segmento para a festa de São Benedito, que também sofreu alterações, com a
proibição das congadas. Consequentemente, a vinda dos descontentes pelo término das
touradas no Divino colaborou para que o embranquecimento se firmasse.
Mariza de Oliveira Camargo, em seu estudo A Tauromaquia Cuiabana: festa,
barbárie e tradição107, procura oferecer um panorama das diversas faces do espetáculo das
touradas em Cuiabá, entre 1936 e 1970, realizadas no Campo d'Ourique. 108 De acordo com a
autora, esse evento foi trazido para Mato Grosso pelos portugueses, logo após a elevação de
Cuiabá à condição de vila, em 1727, compondo, juntamente com outras atividades, o
calendário das festas religiosas e profanas na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá,
integrando a programação de encerramento da festa do Senhor Divino. 109
Camargo credita que o discurso da modernidade tenha colaborado para a extinção da
prática cultural conhecida como Touradas, que aconteceram em Cuiabá até 1936. Ela delimita
três momentos históricos importante das touradas cuiabanas: o primeiro definiu como um dos
maiores divertimentos profanos da festa do Divino Espírito Santo; o segundo foi o que a
postulou como uma festa barbárie e, por isso, deveria ser banida, e o terceiro que a definiu
como uma autêntica tradição cuiabana:

A partir do final da década de 1920, através de jornais podemos perceber que


a igreja católica se encarregou de, aos poucos, ir se desfazendo dos aspectos
profanos de suas festas. No mesmo período em que fazia critica da
ocorrência de touradas durante a festa do divino em Cuiabá, a igreja também
condenou a ocorrência de congadas na festa de São Benedito.110

O ano de 1920 é registrado pelos escritores como sendo o momento de finalização


dos aspectos profanos nas duas festas religiosas mais conhecidas em Cuiabá: a do Divino e a
de São Benedito, por causa do crescente discurso da necessidade de “modernização” da
cidade, ocasião em que alguns políticos se aproveitaram para inculcar esta ideia nos
habitantes da capital de Mato Grosso.

107
CAMARGO, Marisa de Oliveira. A tauromaquia cuiabana: festa, barbárie e tradição (1936-1970). 2005.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2005.
108
A última tourada ocorreu em 1936, quando a sociedade protetora de animais, interferiu para impedir, que esse
evento continuasse em vigência, alegando maus tratos aos touros. Esse mesmo espaço, logo depois do fim das
touradas, foi sede da primeira Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso, com as novas demandas da
cidade, o espaço já não abrigava como deveria, e hoje abriga a Câmara Municipal dos Vereadores, outro ponto
importante desse espaço, é que nele existe o marco do centro geodésico da América do Sul, estudo feito pelo
Marechal Cândido Rondon.
109
Cf. mais em CAMARGO, Marisa de Oliveira. A tauromaquia cuiabana: festa, barbárie e tradição (1936-
1970).
110
Idem, p. 62.
44
João Edson de Arruda Fanaia expõe, a partir do estudo das elites políticas mato-
grossenses que disputavam a primazia em torno do controle e permanência no poder durante a
Primeira República, o cenário privilegiado do estudo da relação de força entre os poderes
central e local, definindo o quadro político local a partir da capital do país, e nos mostrou o
jogo político que as elites queriam realizar na cidade de Cuiabá, a partir do discurso da
civilização, leia-se, da modernidade:

[...] O ideário civilizador a ser materializado através do progresso e do


desenvolvimento a ser expandido ao que então se denominava vagamente de
sertões foi transformado em eixo norteador e um dos principais tópicos
responsáveis pelo embasamento e construção dos argumentos a serem
utilizados na tribuna (pelos políticos). Dentro e fora do estado a idéia força
de um porvir promissor tornou-se lugar comum, ainda que não houvesse na
tentativa de via ilizar o acalentado “processo civilizatório” necessariamente
uma simetria nos investimentos realizados, tanto o nível de articulação como
a intensidade das ações eram variáveis. 111

Como a capital, Cuiabá, tinha a maior população do Estado, e era o centro político-
administrativo, contava com uma população, no final do século XIX, de 27.093 habitantes. Já
em 1920, esse total chegou a 33.678, passando a ser o centro urbano da região, inclusive com
expressivo número de funcionários públicos. Complementando a questão, Fanaia afirma que
as elites desse período tinham dois problemas: de um lado, mostrar as potencialidades do
Estado, criando uma imagem mais civilizada e, de outro lado, conviver com as lutas políticas
intestinas à própria elite.112 Esse ideal civilizatório também chegou na festa de São Beneditos,
no início do século XX.
A historiadora Adinéia da Silva Leme também estudou as transformações da festa de
São Benedito, em seu artigo Festa de São Benedito em Cuiabá: significados e re-
significações113, indicando que essas transformações não fizeram desaparecer a festa de São
Benedito: “Muito pelo contr rio, ela passou por algumas mudanças, como o fim das
congadas, no decorrer do século XX e na década de trinta ocorreu o embranquecimento da
festa de são Benedito”. Diferentemente de outros autores, ela credita o embranquecimento da
festa se deveu ao grande número de pessoas que para cá vieram, o que de fato aconteceu.114
Outra questão levantada por Leme foi encontrada nas análises que a autora realizou
observando os convites dos últimos trinta anos, percebendo que somente ocupavam os cargos

111
FANAIA, João Edson de Arruda. Elite e práticas políticas em Mato Grosso na primeira república (1889-
1930). Cuiabá: EdUFMT, 2010, p. 256.
112
Idem, p 49.
113
LEME, Adnéia da Silva. Festa de São Benedito em Cuiabá: significados e re-significações. Trabalho de
Conclusão de Curso em Bacharelado e Licenciatura Plena em História. Cuiabá, Universidade Federal de Mato
Grosso, 2005.
114
Idem, p. 06.
45
de rei e rainha nomes de destaque da elite cuia ana: “A Festa do Divino perdeu seu esplendor
e a de São Benedito alçou vôo e hoje é o maior evento religioso popular de Cuiabá, e com sua
grandiosidade passou a fazer parte do Calend rio Turístico Religioso de Mato Grosso”. 115
Vários autores privilegiaram e discutiram a festa de São Benedito de Cuiabá, porém
optou-se por apresentar somente as narrativas que contribuíram com novas informações
publicadas partir da década de 2000.
Retornamos aos trabalhos de Marcos Amaral Mendes, que apresentam dados
relevantes para os estudos sobre a festa de São Benedito, ao todo foram três deles, a saber,
dois artigos e uma dissertação de mestrado, que contribuíram para uma reflexão dessa prática.
No artigo Lugar, identidade e imaginário: o universo dos devotos de São Benedito
em Cuiabá-MT, Mendes trabalha a questão do lugar ligado à identidade e ao imaginário dos
devotos de São Benedito, destacando que desde o início da formação da Vila, a Igreja do
Rosário teve um lugar privilegiado para o culto de São Benedito.116 Segundo o autor, essa
localização foi o centro de convergência, um fixo religioso que atraiu os devotos para São
Benedito por sua forte carga simbólica, traduzida no jeito de ser do povo cuiabano.117 Nesse
sentido, conclui que é pelo seu caráter de ordem geográfica que esse processo ocorre até hoje:

Dessa forma, embora ocupando uma capela lateral ao templo de Nossa


Senhora do Rosário como hóspede da confraria homônima, a Irmandade de
São Benedito, por meio de diversas ações e práticas, acabou estabelecendo
uma territorialização sobre a Igreja do Rosário, de forma que, com o passar
do tempo, ela passou a ser referenciada pelos cuiabanos como sendo de São
Benedito, o que permanece até hoje.118

A Capela de São Benedito, como foi visto, ocupa uma lateral da Igreja do Rosário,
mas sua territorialização é muito maior que a Senhora do Rosário, na memória dos cuiabanos
e para Amaral, até mesmo o nome da igreja foi renomeada como sendo de São Benedito.
Mendes, em outro artigo Festa de São Benedito na Igreja do Rosário em Cuiabá:
origens, estruturação e transformações119, procura mostrar as origens, as estruturações e
transformações ocorridas na festa no período de 1787 a 1979. O recorte temporal deu-se em
1787, por ser a data do primeiro registro da festa, e 1979 como sendo a última festa realizada

115
Idem, p. 14.
116
Marcos Amaral Mendes publicou este artigo na Revista Geonordeste com objetivo identificar e analisar a
prática da devoção a São Benedito na Igreja do Rosário. Ele partiu de uma experiência de observação como
participantes e por meio de entrevistas para compreender, como é tecida a realizada desta prática e como isso, foi
de alguma forma o veículo que fomentou o culto ao santo.
117
AMARAL, Marcos Mendes. Lugar, identidade e imaginário: o universo dos devotos de São Benedito em
Cuiabá-MT. Revista Geonordeste. São Cristovão, Ano XXII, n. 01, 2011, p. 69.
118
Idem, p. 55.
119
MENDES, Marcos Amaral. Festa de São Benedito na Igreja do Rosário em Cuiabá: origens, estruturação e
transformações (1787-1979).
46
pela Irmandade de São Benedito. Embasado no Livro de Registro dos Termos da Irmandade
de São Benedito, concluiu o mesmo autor que houve regularidade dos festejos durante a
primeira metade do século XIX, e que somente em dois períodos, entre 1825 e 1848, a festa
não foi realizada. 120
Este autor continua explicando que houve muita variação de dia e de mês para a
realização dos festejos, deixando claro que havia intensa mobilidade nas datas das festas
visando atender aos argumentos econômicos, pois as festas consumiam os recursos
financeiros da Irmandade. Ele encontra nos registros de mesa que em 1834 a festa teve que ser
cancelada, em virtude da violência promovida pela chamada “Rusga” 121, mas não encontrou o
motivo do cancelamento da festa em 1839.122
Na obra Identidade e Território: estudo sobre a devoção a São Benedito em Cuiabá-
Mato Grosso123, Marcos Amaral Mendes desenvolve seu trabalho com o objetivo principal
identificar e analisar a festa de São Benedito ligada aos conceitos de território, lugar e
paisagem, numa abordagem complementada pelo espaço e tempo sagrado da devoção e da
“realidade material e sim ólica, que se fazem visíveis no seu território”.124
Mendes constata que muitos devotos de São Benedito possuem outra religião,
principalmente de origem africana, como a umbanda e o candomblé, mas que participam das
missas católicas na madrugada; à noite, frequentam os “terreiros”. De acordo com ele, isso
pode ser atestado pelos inúmeros “despachos” que são colocados no cruzeiro da igreja, uma
das muitas particularidades da devoção em Cuiabá.
Nesse estudo, o autor analisa os territórios de realização da festa de São Benedito que
seguia regras rígidas e vigilância impostas pelas autoridades locais, assim, o lado sagrado da
festa era realizada na Igreja do Rosário, com as despesas anotadas no registro dos termos de
mesa, mas as celebrações profanas aconteciam em territórios distintos. Na festa, a população
negra, escrava ou forra, não perdia a oportunidade de tocar seus batuques e executar suas
danças. 125

120
Idem, ibidem.
121
Rusga foi um movimento armado entre brasileiros e portugueses após o processo de independência do Brasil,
fragmentando os dois maiores setores politico nacional. De um lado os liberais que defendiam a autonomia
politica das províncias e a renovação das práticas coloniais instauradas durante a colonização. Por outro lado, os
portugueses que defendiam uma estrutura política mais centralizada e a manutenção dos privilégios adquiridos
anterior à Independência. Em Mato Grosso, duas tendências acirraram as re eliões: a “Sociedade dos Zelosos da
Independência” e a “Sociedade Filantrópica”, culminando num confronto violento que foi chamado de Rusga.
122
AMARAL, Marcos Mendes. Lugar, identidade e imaginário: o universo dos devotos de São Benedito em
Cuiabá-MT, p. 155.
123
MENDES, Marcos Amaral Identidade e Território: Estudo sobre a devoção a São Benedito em Cuiabá-Mato
Grosso. 2010. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2010.
124
Idem, p. 17.
125
AMARAL, Marcos Mendes. Lugar, identidade e imaginário: o universo dos devotos de São Benedito em
Cuiabá-MT, p. 152.
47
Sonia Romancini apresenta, em “Cuiabá: paisagens e espaços da memória” 126, um
estudo sobre as memórias dos espaços cuiabano e suas temporalidades nos séculos XVIII,
XIX, XX, analisando também aspectos arquitetônicos recentes. A autora descreve a cidade de
Cuiabá explorando a sua história arquitetônica enfocando o conjunto que compõe os eixos
principais formados pelas suas três grandes vias: a Avenida da Prainha, a Avenida XV de
Novembro e a Avenida Historiador Rubens de Mendonça. Sua explicação para o
desenvolvimento do aglomerado urbano se dá a partir dos morros, nesse caso, o morro onde
está situado a Igreja do Rosário, local onde se realiza a festa de São Benedito.
Segundo Romancini, o desenvolvimento da cidade moderna em torno do que ela
mesma chama: triângulo Centro Velho, Centro Político Administrativo e Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT), no que se refere aos espaços de lazer em Cuiabá, a festa de
São Benedito da Igreja do Rosário foi a mais citada pelos entrevistados, seguida por outras,
como a festa do Divino na Catedral:127

Conforme observa-se, no centro principal de Cuiabá, no local onde, a partir


da Prainha, foi traçada a Avenida Historiador Rubens de Mendonça,
desponta a Igreja do Rosário, construída pelos escravos no inicio do século
XVIII, quando as casas dos mineradores se estendiam pelo vale.A Igreja do
Rosário e São Benedito é um dos principais símbolos da cultura cuiabana,
testemunho da história, espaço de reencontro entre as pessoas que se
mudaram do centro principal para outros bairros, espaço da festa de São
Benedito, maior expressão da religiosidade popular dos cidadãos cuiabanos.
Por constituir uma permanência na paisagem, atravessando quase três
séculos, a igreja é, nos dias atuais, o principal referencial da memória da
cidade. Nessa igreja acontece a festa popular que reúne o maior número de
pessoas, em Cuiabá, a festa de São Benedito, com mais de 280 anos de
tradição, considerada pela comunidade como um tempo de festejos e
celebrações, que se inicia com um mês de antecedência, tendo como ponto
culminante o primeiro domingo do mês de julho. No período que antecede à
festa, ocorre a visita da bandeira de São Benedito, o chá com bolo na missa
de terça-feira de madrugada, os jantares nas terças à noite e o levantamento
do mastro com a Bandeira de São Benedito”. (grifo meu)128

De acordo com Romancini, o espaço do entorno do Rosário foi analisado com sendo
um território de resistência às transformação espaciais ao longo da história da cidade de
Cuia , “podendo confirmar que a etnia de um povo pode atravessar processos históricos em
tempos diferentes e manter seus costumes”. 129
Assim como Mendes, Romancini também observa que, na memória do cuiabano, o
nome da Igreja do Rosário mudou, passando a ser chamada de Igreja do Rosário e São
126
Cf. mais em: ROMANCINI, Sonia Regina. Cuiabá: paisagens e espaços da memória – 1 ed. – Cuiabá:
Cathedral Publicações, 2005 – (Tibanaré, 6).
127
Idem, p.101.
128
Idem, p. 148-149.
129
Idem, p. 92.
48
Benedito. A Arquidiocese de Cuiabá também incorporou em seu discurso que a Igreja do
Rosário também é de São Benedito. Porém, administrativamente, a Paróquia de Nossa
Senhora do Rosário está sediada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, sem constar o nome
de São Benedito.
Como vimos, este espaço foi estrategicamente escolhido para abrigar a Igreja de
Nossa Senhora do Rosário, que realiza duas festas anuais, em julho, em honra a São Benedito,
e em outubro, Nossa Senhora do Rosário, sendo que a mais conhecida é a festa de São
Benedito.

49
CAPÍTULO II

A FESTA DE SÃO BENEDITO: A INVENÇÃO DE UMA


TRADIÇÃO DA CULTURA CUIABANA

Cultuado especialmente por pobres, negros, doentes e desempregados, São


Benedito é o santo que superlota a igreja antes do dia amanhecer. Todas as
terças-feiras centenas de idosos, jovens e até criança acordam às 4h30 para
ir ao santuário agradecer ou pedir alguma graça ao santo negro mais
popular de Cuiabá. São Benedito não é o padroeiro de Cuiabá, essa função
há década foi atribuída ao Senhor Divino, mas “carrega nos ombros” o
peso do título de “protetor da cidade”.130

A festa de São Benedito em Cuiabá “carrega nos om ros” uma tarefa importante, a
de proteger a cidade, atribuição imputada a ele pelos cuiabanos. O evento perdura há mais de
duzentos anos e ainda hoje ela é considerada, nos meios de comunicação, como sendo festa de
pobres, negros, os doentes e até mesmo dos desempregados.
Pretendemos analisar neste capítulo como essa festa passou a ser considerada como
tradicional dentro da cultura cuiabana, sendo hoje vista como a maior festa religiosa e
tradicional de Mato Grosso, uma vez que testemunhou todo a crescimento da cidade de
Cuiabá, de vila a metrópole, que acompanhou também as mudanças que ocorreram na
formação do catolicismo e da Igreja Católica, de Prelazia a Arquidiocese.
Conhecida por ser uma homenagem ao santo dos pobres, essa festa adquiriu um
caráter de festa da cidade, tamanha a devoção dos cuiabanos. Nos quatro dias acontecem
missas e chá com bolo, procissões, apresentações culturais, shows e, sem esquecer, a culinária
da região, um dos seus pontos altos. O espaço da festa é formado por um conjunto de práticas
que vai desde as preliminares até a realização do evento, numa mistura de sagrado e profano.
Entretanto, a festa como tal envolve um conjunto de ações e de relações sociais muito

130
REVISTA ALPHAVILLE & CONDOMÍNIOS. Publicação independente de circulação bimestral e destina-se
aos associados e moradores do Alphaville. Cuiabá, Setembro e outubro de 2013, p. 69.
50
intensas, mediadas pela comida, bebida, dança e outras diversas possibilidades ligadas à vida
profana.
A temática da festa de 2013 teve como foco a juventude e São Benedito: “Jovens
unidos pelo amor de São Benedito, cada dia de tríduo teve um lema131, com missa seguida de
chá com bolo.132 Foi amplamente divulgada pelos meios de comunicações tradicionais, bem
como por meio das mídias sociais, como Twitter, Facebook e Blogs. A festa deste ano
aconteceu na praça central da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e teve o
patrocínio de empresas públicas e privadas, integrando o calendário de Eventos da Secretaria
Estadual de Turismo de Mato Grosso.

Vista da Igreja de Nossa Senhora do Rosáro/Capela de São Benedito (2014)

Foto: Silbene Perassolo da Silva

O capítulo abordará a presença da festa na imprensa, além de mostrar se sua


evolução foi realmente promovida pelas principais famílias cuiabanas, ou foi o povo cuiabano
que encontrou em São Benedito o santo para sua devoção.

131
Dia 04 de julho de 2013, primeiro dia do Tríduo, o Lema foi “Juventude e devotos caminham com São
Benedito no ano da fé”. No segundo dia, o lema foi “De mãos dadas com São Benedito e a juventude, vamos
cele rar a nossa fé” e no terceiro dia, o lema foi “Fraternidade e Juventude, com São Benedito, estamos aqui”.
No dia da grande festa em 7 de julho de 2013, o lema foi “Jovens e devotos cele ram com São Beneditos a fé e a
fraternidade”. Acervo da Pesquisa. 2013 (FOLHETO promocional da Festa, 2013).
132
O chá com bolo cuiabano, ou tchá com bolo, é um costumes da sociedade cuiabana, de se reunirem ao redor
de uma mesa farta, onde são servidos, chás, café, diversos tipos de bolos, sendo o mais conhecido, o bolo de
arroz, para comer e conversar.
51
O festejar está marcado no ser brasileiro. Temos festas para todos os tipos e gostos,
de santos, da cidade, de escola e muitas outras. Foi nos centros urbanos que o festejar
encontrou sua forma de sobreviver e chegar até os dias atuais. Para efeito de análise,
enfocaremos as festas de santos. Duas pesquisadoras desenvolveram importantes estudos
sobre as funções do festejar na formação do povo brasileiro: Mary Del Priore e Rita do
Amaral.
Mary Del Piore, em Festas e Utopias no Brasil Colonial133, defendeu que o momento
da festa tem sido considerado como um tempo de utopias, idealizações, lazer e troca de
experiências, constituindo-se em espaços de expressão da imaginação coletiva e individual,
mas também válvula de escape para as várias facetas das dificuldades da sociedade e dos
personagens que a compõe. De outro, as festas serviram de base para vivências e reafirmação
do poder para controlar os habitantes do Brasil colonial.
Segundo essa autora, as formas de expressão que acontecem dentro das festas, como
danças, músicas, comida e as roupas, entre outros, possui o espaço social necessário para
compartilhamento de sentimentos, valores e regras. Para ela, nenhum aspecto da festa pode
ser esquecido, pois ela “maquia” a realidade e foi, no período colonial, a forma que o governo
português encontrou para representar Portugal, mas também uma forma de se criar vínculos
entre os membros da sociedade e habitantes das vilas, decorrendo disso certa “união”, tendo
como pano de fundo as festas religiosas e profanas:

Índios, negros, mulatos e brancos manipulam as brechas no ritual da festa e


as impregnam de representações de sua cultura específica. Eles transformam
as comemorações religiosas em oportunidade para recriar seus mitos, sua
musicalidade, sua dança, sua maneira de vestir-se e aí reproduzir suas
hierarquias tribais, aristocráticas e religiosas. 134

A festa de São Benedito, surgida no início da povoação de Cuiabá, transformou-se


num importante meio de controle social, mas também foi um grande instrumentos de
mediação entre os primeiros habitantes da Vila Real. O festejar, em Cuiabá, também
funcionou com uma válvula de escape que maquiava as dificuldades do dia-a-dia, dificuldades
que adentraram nos séculos XVIII, XIX e XX, com diferentes tonalidades. Era um período
onde os excessos eram permitidos, gastos podiam ser realizados, a cidade era iluminada, os
fogos pipocavam e a monotonia era quebrada, promovendo um tempo de utopias, como diria
Del Priore.

133
DEL PRIORE, Mary. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000.
134
Idem, p. 89.
52
Rita de Cássia do Amaral, em Festa à brasileira, afirma que as festas, de modo geral,
têm um espaço privilegiado dentro da cultura brasileira, sendo desde o início da colonização
portuguesa um elemento importante das relações sociais. Assim, como Del Priori, aponta que
a festa e seu contexto era o espaço onde se podia ritualizar ou sacralizar, celebrar todas as
experiências dos grupos que a realizavam. Ambas concordam que a “festa à rasileira”
favorece a mediação entre sistemas culturais, suas categorias e seus símbolos. 135
Aos poucos, a festa deixou de ser controlada pelo Estado e a Igreja assumiu o
comando, “de modo, particular captando e fazendo uso do seu sentido de construção,
elaboração da identidade e solidariedade entre os diferentes, a ponto de fazer dela um modo
de ação e participação particularmente marcada na história dos rasileiros”. 136
Em Cuiabá não foi diferente, nos seus primórdios, o Estado e a Igreja promoviam as
festas religiosas e as profanas, mas, com o passar do tempo houve uma lenta inversão, com a
presença do leigo assumindo alguns papéis. Esta inversão foi a principal causa da manutenção
do costume de se festejar os santos católicos no lugar. Desta forma, foi graças aos devotos que
alavancaram as festas tornando-as tradicionais, favorecendo os momentos de transformações,
superação e resistência numa cidade distante de outras capitais do país:137

Toda festa ultrapassa o tempo cotidiano, ainda que seja para desenrolar-se
numa pura sucessão de instantes, de que o “happening” constitui o caso
limite. Toda festa acontece de modo extra-cotidiano, mas precisa selecionar
elementos característicos da vida cotidiana. Toda festa é ritualizada nos
imperativos que permitem identificá-la, mas ultrapassa o rito por meio de
invenções nos elementos livres.138

A sobrevivência da festa de São Benedito se deu graças ao seu caráter dualístico, um


misto de sagrado e profano. Segundo Amaral, a festa brasileira oscila entre a cerimônia e a
festividade e aponta que ela se refere a um objeto sagrado ou sacralizado, mas com
necessidades profanas. Nas festas de São Benedito, podemos observar que elementos da vida
cotidiana foram introduzidos, e isso aconteceu porque ela absorveu alguns elementos novos, a
partir das necessidades de cada época e de cada geração Hobsbawm e Amaral concordam que
é por meio das invenções dos elementos livres da festa que ela encontra o espaço necessário
para sua renovação.
Isso se deve aos elementos da vida cotidiana e por ser um santo negro, que cuidava
da cozinha – a culinária é o ponto forte das comemorações – e que encontra na manutenção da

135
AMARAL, Rita de Cássia de Mello Peixoto Festa à brasileira: significados do festejar, no país que “não é
sério”. Tese de Doutorado em Antropologia. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 07 e 08.
136
Idem, p. 11.
137
Idem, p. 16.
138
Idem, p. 38 e 39.
53
tradição uma forma de resistir ao progresso. Cumpre dizer que, ainda hoje, a festa tem dupla
função – a religiosa e a laica, que guarda muitos elementos de sua fundação, mas que se
“atualiza” a cada ano.
Analisando alguns desses elementos, como a culinária, o foguetório nas madrugadas
de domingos, assim como a inclusão de ritmos e melodias nas missas, entre outros, a festa
ainda hoje cumpre o papel de proporcionar lazer, cumprindo o calendário religioso, visto que
realizada anualmente e sob a autoridade da Igreja Católica. Os dias dos festejo são escolhidos
mediante a necessidade de seus devotos.
Para José Gomes Tinhorão, estudioso das festas que ocorreram no Brasil colonial, as
festas foram momentos lúdicos, ora controlados pelo poder do Estado, ora pelo calendário
religioso:

Assim, o que durante mais de duzentos anos se registra como


aproveitamento coletivo do lazer na colônia americana de Portugal não
seriam propriamente festas dedicadas à fruição do impulso individual para o
lúdico, mas momentos de sociabilidade festiva, propiciados ora por
efemérides ligados ao poder do Estado, ora pelo calendário religioso
estabelecido pelo poder espiritual da igreja. Essa dupla determinação, oficial
e religiosa, em termos de oportunidade de cultivo do lazer por parte da
população dos núcleos urbanos coloniais, tornou-se evidente ainda quando
as primeiras vilas não passavam de pequenos aglomerados de gente ligada à
administração europeia e de grupos de naturais da terra reunidos à volta dos
colégios dos jesuítas.139

Outro fator importante para a sobrevivência da festa de São Benedito se deve ao fato
de que a festa propiciava aos seus devotos, o homem “comum”, o povo, passassem a ter
visibilidade, quase como um figurante principalmente nas procissões. Essas pessoas deixavam
de ser “meros espectadores” e cada um tinha a oportunidade de se tornar um personagem
ativo:140

Essa passagem da representação ritual para formas quase declaradas de


diversão coletiva se daria por uma espécie de transbordamento das festas
litúrgicas do calendário religioso do interior das igrejas para as ruas, [...] esse
movimento no sentido do encaminhamento das festividades, da área limitada
do interior dos templos para o céu aberto do espaço publico, iria provocar
desde logo um competente deslocamento da diretriz religiosa de tais
manifestações (baseada no estimulo à fé e à devoção) para objetivos
profanos (cujo maior interesse era a firmação do poder secular e a busca de
diversão).141

139
TINHORÃO, Jose Ramos. As festas no Brasil colonial, p. 7.
140
Idem, p. 67.
141
Idem, ibidem.
54
A passagem do interior do templo para o espaço público, aberto, foi muito
importante para a manutenção da festa brasileira, constituindo-se em um dos fatores que
facilitaram a propagação da devoção a São Benedito, nosso caso de estudo. A relação
público/privado não será discutida aqui, pois consideramos que este tema merece um
aprofundamento teórico e metodológico só possibilitado por uma nova pesquisa, tendo a festa
de São Benedito como ponto de partida.
Assim como Rita de Cássia Amaral, Del Priore explica que o modo de se fazer a
festa mostrava o cuidado tanto do poder público quanto da Igreja e suas irmandades. Para ela,
a festa era um momento de utopias, onde os diversos setores sociais vão se manifestar e todos
os participantes da festa projetam os seus conhecimentos e experiências, buscando, assim,
fugir de sua realidade. Com isso, observa-se uma diminuição das diferenças sociais, ou pelo
menos uma suposta harmonia entre as diversas classes. O que importa realmente é que as
festas, assim como em toda religião, tenha a característica de oferecer momentos de fruição
coletiva.
Rita de Cássia Amaral salienta que o critério de participação evidencia as
negociações entre vários aspectos, tais como as diferenças de classe social, gênero e cor,
elementos positivos para uma maior participação nas festividades. Isso porque, para ser
considerada uma boa festa, quanto mais pessoas participando melhor. Ninguém quer ir a uma
festa com pouca participação da comunidade. 142
Émile Durkheim, considerado um dos pais da Sociologia, acredita que toda festa tem
como característica promover a superação das distâncias sociais entre indivíduos, podendo
oferecer um estado de “efervescência coletiva” e promovendo a transgressão das regras e
normas coletivas. Assim como na religião, o indivíduo desaparece, tornando-se parte do
coletivo, e são nestes momentos, em que a crença e as regras são reafirmadas, que fazem com
que a vida em sociedade torne-se possível.
Em As formas elementares da vida religiosa, o mesmo autor mostra que é possível
apreender observando as formas elementares, a essência de um fenômeno social. Ele inaugura
uma linha de estudo muito importante que é a sociologia da religião, pois as religiões são
simples do ponto de vista de sua organização. Mas o ponto central de sua obra é que ele
acredita que a religião é uma característica geral da sociedade humana, e compreendê-la como
um aspecto, permanente e essencial, nos permite dar a conhecer os diversos setores sociais.143
Ele conclui ponderando que a religião tem a função de ajudar a viver melhor e que
ela é definitivamente social, visto se constituir em uma instituição humana, que surgiu de uma
142
Idem, p. 40.
143
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: O sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
55
necessidade dos homens. Vários são os fatores considerados eternos para a religião, como as
cerimônias, os rituais e a fé. Durkheim acredita que esses elementos acabam por tonificar a
religião, pois são frutos de um coletivo que cria e recria tais elementos, tornando-os úteis pelo
seu poder de perpassar o tempo, como fruto do comportamento social e sua relevância para a
formação dos ideais sociais:

Primeiramente, não podemos chegar a compreender as religiões mais


recentes senão seguindo na história a maneira pela qual elas se compuseram
progressivamente. Com efeito, a história é o único método de análise
explicativa que é possível aplicar-lhes. Apenas ela nos permite resolver uma
instituição em seus elementos constitutivos. Porque ela no-los mostra
nascendo no tempo, uns após os outros. [...] Portanto, todas as vezes que se
empreender explicar uma coisa humana, tomada em um momento
determinado do tempo – quer se trate de uma crença religiosa, de uma regra
geral, quer de um preceito jurídico de uma técnica estética, de um regime
econômico -, é preciso começar por retroceder [...] procurar dar conta dos
caracteres pelos quais ela se define neste período de sua existência, depois de
mostrar como ela se desenvolveu e se complicou pouco a pouco, como ela se
tornou o que é no momento considerado. 144

Está é a grande tarefa que empreitamos nesta dissertação: buscar os vestígios desta
festa e, por meio dela, retroceder no tempo, como sugerem Durkheim e Roger Chartier,
compreender de que forma essa instituição resistiu e chegou até nós.
Contudo, Roger Chartier 145 nos adverte sobre as consequências de nossas escolhas
devido às dificuldades que podemos encontrar para reconhecer o objeto fundamental para se
contar esta ou outra história:

Em consequência, o objeto fundamental de uma história que visa a


reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e
seus discursos parece residir na tensão entre as capacidades inventivas dos
indivíduos ou das comunidades e, de outro lado, as restrições, as normas, as
convenções que limitam – mais ou menos fortemente de acordo com sua
posição nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, enunciar e
fazer.146

Acreditamos que a história da festa de São Benedito possa proporcionar um maior


conhecimento de como a festa é um tempo que muda a rotina de uma cidade, mesclando
sagrado e profano, mas que tem também o poder de se renovar a cada ano pelas mãos dos
devotos do santo negro e, assim, mostrar como os atores sociais da festa dão sentido às suas
práticas e experiências.

144
Idem, p. 207.
145
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora
Universidade, 2002, p. 91.
146
Idem, p. 91.
56
De qualquer maneira, a festa brasileira, em especial, as festas de santos, não
nasceram no Brasil, foram trazidas pelos portugueses que as usaram como instrumento de
inserção de negros e índios no interior da sociedade, constituindo-se em motivo de aceitação
do novo regime. Sobretudo, as festas foram instrumento que ajudaram a população alvo a
suportar os lugares estranhos, num ambiente inóspito, desconhecido e hostil. 147

2.1 - O sagrado e o profano nas festas de santo

Toda festa de santo tem como característica oferecer, para os seus participantes, o
lado sagrado, que são os rituais, e o lado profano, as festas, os bailes e apresentações. Uma
breve análise destes aspectos importante das festas de santos se faz necessária, dialogando
com a História e também com outras ciências. Espera-se contribuir com os debates sobre a
religiosidade cuia ana e a sua “cultura” e, para isso, vamos recorrer aos estudiosos do
sagrado, do profano e da cultura para embasar esta reflexão. Nossa proposta não é iniciar uma
discussão na tentativa de analisar os “feixes” que envolvem a festa de São Benedito e verificar
se realmente ela é uma festa para o santo ou para o povo.
Peter Berger, sociólogo e teólogo luterano, em sua obra Dossel sagrado, oferece uma
análise sociológica da religião, lançando como base dois pressupostos básicos: o homem
constrói a sociedade e ela constrói o homem148 Essa construção acontece com uma
instabilidade que ele considera inerente ao ser humano. Ao analisar a sociedade através do
conceito de controle social, afirma que a força coercitiva impõe aos indivíduos que integram a
sociedade, dando-lhes papéis pré-definidos a desempenhar no processo da construção do
mundo. Segundo o mesmo autor, o homem, em virtude de sua própria atividade, especializa
seus impulsos e vai em busca para prover a si mesmo uma certa estabilidade:

Esse mundo, naturalmente, é a cultura [Grifo meu]. Seu escopo fundamental


é fornecer à vida humana as estruturas firmes que lhe faltam biologicamente.
[...] a cultura em ora se torne para o homem uma “segunda natureza”,
permanece algo de muito diferente da natureza, justamente por ser o produto
da própria atividade do homem. A cultura consiste na totalidade dos
produtos do homem. Alguns destes são materiais, outros não. [...] seja como
for, a sociedade, naturalmente, nada mais é do que parte e parcela da cultura
não material. A sociedade é aquele aspecto desta ultima que estrutura as
incessantes relações do homem com seus semelhantes. Como apenas um

147
TINHORÃO, Jose Ramos: As festas no Brasil colonial, p. 57.
148
BERGER, Peter Ludwig O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo:
Paulus, 1985. (Sociologia e Religião, 2).
57
elemento da cultura, a sociedade compartilha do caráter desta como produto
humano. A sociedade é constituída e mantida por seres humanos em ação. 149

Partindo da proposta de Berger, religião é um “empreendimento humano que pelo


qual o homem esta elece um cosmos sagrado”. Dito de outra forma, a religião é a
“cosmificação” realizada de maneira sagrada, entendida como uma qualidade distinta do
homem, pelo poder misterioso e poderoso do sagrado, que pode residir em alguns objetos da
experiência:150

As manifestações históricas do sagrado variam muito, embora


transversamente se observem uniformidades na cultura (pouco importando,
aqui, que essas uniformidades se devam interpretar como resultantes da
difusão cultural ou de uma logica interna da imaginação religiosa do
homem). O sagrado é apreendido como algo que “salta para fora” das rotinas
normais do dia a dia [grifo meu], como algo extraordinário e potencialmente
perigoso, embora seus perigos possam ser domesticados e sua força
aproveitada para as necessidades cotidianas. Embora o sagrado seja
apreendido como distinto do homem, refere-se ao homem, relacionando-se
de um modo em que não o fazem outros fenômenos não humanos. [...] O
homem enfrenta o sagrado como realidade imensamente poderosa distinta
dele. Essa realidade a ele se dirige, no entanto, e coloca sua vida numa
ordem, dotada de significado. Num certo nível, o antônimo do sagrado é o
profano, que se define simplesmente como ausência do caráter sagrado. 151

Berger conclui o que o inverso do sagrado é o profano, reduzindo o viver a estas duas
esferas, algo necessário para explicar e justificar uma ordem social. A religião tem essa
função de trazer o homem para a realidade socialmente construída. Para ele, a religião é vista
como um dossel sagrado, que serve para explicar ao homem os fenômenos – um meio
necessário para a manutenção da ordem na sociedade:

Os homens esquecem. Precisam, por isso, que se lhes refresque


constantemente a memória. Alias, pode-se alegar que um dos mais antigos e
importantes pré-requisitos para o estabelecimento da cultura é a instituição
desses “lem retes”, cujo o car ter terrível durante muitos séculos é
perfeitamente logico à vista da “desmemoria” que se destinavam a com ater.
O ritual religioso tem sido instrumento decisivo desse processo de
“rememoramento”. Repetidas vezes “torna presente” aos que nele tomam
parte as fundamentais definições da realidade e suas apropriadas
legitimações. [...] As execuções do ritual estão estreitamente ligadas à
reiteração das formulas sagradas que “tornam presentes” uma vez mais os
nomes e feitos dos deuses. Outro modo de exprimir isto é dizer que a ideação
religiosa se funda na atividade religiosa, relacionando-se com ela, de
maneira dialética análoga à dialética entre a atividade humana e seus
produtos já discutida por contextos mais amplos. Tanto os atos religiosos

149
Idem, p. 19 e 20.
150
Idem, p. 69.
151
Idem, p. 39.
58
como as legitimações religiosas, rituais e mitológicas, dromena e legoumena,
servem juntos para “relem rar”, os significados tradicionais encarnados na
cultura e suas instituições mais importantes. 152

Rudolf Otto, teólogo protestante, ao escrever a obra O sagrado153, busca descrever e


analisar como, em diferentes credos e religiões, as pessoas percebem e reagem diante do
sagrado. Sua intenção foi observar as características do elemento não racional em contraste
com o racional, no interior do universo religioso. Para chegar ao sagrado em seu aspeto não
racional ele cria a palavra numinoso, que também possui aspectos racionais. Para o autor, a
categoria do sagrado apresenta um momento específico que não se encontra por meio do
acesso racional, quando este foge totalmente a uma apreensão conceitual. Detectar e
reconhecer algo como sendo “sagrado” é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que
ocorre somente no campo religioso.154
Otto nos alerta que muitas vezes usamos a designação de “sagrado” num sentido que
não é o original, e entendemos como um tributo ligado à moral, como tudo o que é
perfeitamente om. Por isso ele cunhou o termo “numinoso”, de origem do latim numen, para
se referir aos aspectos do não racional do sagrado. O termo numinoso, explica ele, não pode
ser entendido, porque não poder ser explicado devido ao seu caráter inefável:

[...] Para tal eu cunho o termo “o numinoso” (j que do latim omen se pode
formar “ominoso”, de numen, então numinoso), referindo-me a uma
categoria numinosa de interpretação e valoração bem como a um estado
psíquico numinoso, que sempre ocorre quando aquela é aplicada, ou seja,
onde se julgue tratar-se de objeto numinoso. 155

Dito de outra forma, o numinoso é ao mesmo tempo fascinante e assombroso. Apesar


de pouco usado, numinoso provém do latim, que significa divindade. Normalmente quando
encontramos algo sobrenatural, a tendência humana é o de torná-lo compreensível. É nesse
ponto que Otto afirma que nós só apreendemos o fato religioso como algo mais que puro
sentimento, pela possibilidade de novas formulações, mais claras e distintas. Outro aspecto
salientado pelo mesmo autor trata dos sentimentos envoltos na experiência religiosa. O amor,
a segurança, a gratidão, a confiança, a submissão, a resignação e a dependência são
sentimentos muito mais intensos no interior desta experiência, traduzido no “sentimento de
ser criatura”:

152
Idem, p. 53.
153
Esta obra foi publicada em 1917 e trata de buscar analisar, com base em Kant, a essência irracional da
religião, o numinoso e sua relação com o componente racional. Este livro figura entre os clássicos da filosofia da
religião.
154
OTTO, Rudolf. O sagrado. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 37.
155
Idem, p. 38.
59
Trata-se de um sentimento confesso de dependência que, além de ser muito
mais do que todos os sentimentos naturais de dependência, é ao mesmo
tempo algo qualitativamente diferente. Ao procurar um nome para isso,
deparo-me com sentimento de criatura – o sentimento da criatura que afunda
de desvanece em sua nulidade perante o que esta acima de toda a criatura.156

É esse sentimento que muitas vezes impulsionam a devoção, quer seja pela gratidão,
ou pela dependência, traduzidas, nas festas de santos, pelos sentimentos dos devotos que a
cada ano buscam aprimorar os valores de forte apelo religioso e acabam se tornando um
instrumento de continuidade, na mediação do santo com o divino, o sobrenatural.
Assim como Otto, Berger acredita que os atos e as legitimações religiosas nos
ajudam a relembrar, pela cultura, os significados tradicionais de suas instituições mais
importantes. Para tanto, as festas de santo têm sido usada como um instrumento fundamental
no processo de rememorar os valores para a sociedade humana. 157 Para Martha Abreu,

Essas brechas no espaço da Festa de S. Benedito são caracterizadas como


manifestações culturais que transitam ora como sagradas, ora como profanas,
ligadas às atividades não-religiosas, voltadas para o divertimento. O entorno
da igreja é o lugar das manifestações, sejam culturais, sociais, sejam
políticas, mas em constante ligação com o espaço sagrado da igreja.158

Encontramos na festa de São Benedito, principalmente nos dias dedicados a ela, a


nítida separação entre os espaços sagrado e profano. Os aspectos sagrados são visíveis nas
missas e procissões, e os aspectos profanos nas apresentações culturais e na culinária.
Mas, quando falamos so re “cultura” e suas diversidades, muitas perguntas nos
intrigam, afinal, festa de santo é também cultura, ou não? Essa questão há muito formulada,
mas sem ser respondida, foi o ponto de partida para uma reflexão sobre o significado das
festas de santo para a sociedade pelo viés cultural, sem deixarmos nos distrair, como diria
Edward Thompson, com os componentes que a integram. Compreender as teias e significados
do que chamamos de “cultura” ser a tarefa rdua que empreenderemos uscando uma
reflexão sobre a cultura “cuia ana”.
Nessa discussão, iremos recorrer a dois teóricos que se debruçaram sobre o termo
“cultura”: Raymond Willians e Clifford Geertz.

156
Idem, p. 41.
157
BERGER, Peter Ludwig O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião, p. 57.
158
ABREU, Martha. O Império do Divino: festa religiosa e cultura popular no Rio de Janeiro - 1830-1900, p.
211.
60
Raymond Williams propõe, na obra Cultura159, descrever as relações e os
mecanismos que são produzidos no processo prático da elaboração da cultura e seu produto
cultural. Em Cultura e sociedade160, apresenta seus principais pensamentos e interpretação
dos aspectos que envolvem a cultura, vista por ele como uma resposta para os diversos
acontecimentos.
Segundo o autor, cultura está em toda a sociedade, em todas as mentes de seus
participantes. Ela agrega, conjuga, pois carrega em si, significados e valores formulados no
coletivo das interações humanas. Nesse sentido, alerta para os perigos de se fixar um conceito
sem, antes, localizá-lo em um determinado contexto histórico.
Ele recupera a trajetória do termo cultura desde o século XVI, quando ela estava
associada ao cultivo, quer seja de animais, colheitas etc. Somente no século XVIII, que o
significado de cultura foi ampliado, passando a significar também todo o conhecimento
erudito, produzido com vistas ao desenvolvimento e progresso social. De fato, essa mudança
pode ser mais percebida pela situação de transformação econômica e social, pela qual passava
a Europa naquele período. Ao conceito de cultura juntou-se a outro, o de civilização. Mas a
relação foi muito questionada pelos pensadores alemães a partir do século XIX, devido ao
entendimento que um não leva a outro. A partir daí, o termo passou a ser associado à religião,
à família, às artes, à vida pessoal, com seus significados e valores:

Enquanto isso, no uso mais geral, houve grande desenvolvimento do sentido


de “cultura” como o cultivo da mente. Podemos distinguir uma gama de
significados desde (i) um estado mental desenvolvido – como em “pessoa de
cultura”, “pessoa culta”, passando por (ii) os processos desse
desenvolvimento – como em “interesses culturais”, “atividades culturais”,
até (iii)os meios desses processos – como em cultura considerada como “as
artes” e “o tra alho intelectual do homem”. Em nossa época, (iii) é o sentido
geral mais comum, embora todos eles sejam usuais. Ele coexiste, muitas
vezes desconfortavelmente, com o uso antropológico para indicar “modo de
vida glo al” de determinado povo ou algum outro grupo social. 161

Ao entrar na segunda metade do século XX, surge uma nova forma de convergência
ainda que as ideias anteriores tenham se mantido. Esta nova convergência entre os sentidos
antropológicos e sociológicos de cultura, como “modo de vida glo al”, distinto do sistema de
significações, “essencialmente envolvidos em todas as formas de atividade social, “[...] de
modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicionais, mas

159
WILLIAMS, Raymond Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
160
Esta o ra foi a sua primeira tentativa para conceituar o termo “Cultura” e neste texto ele critica pincipalmente
o conceito de “massa”.
161
Idem, p. 11.
61
tam ém as “pr ticas significativas” [...] que agora constituem esse campo complexo e
necessariamente extenso”.162
É nesse ponto que fica clara a concepção de Williams: pensar uma teoria materialista
da cultura levando em conta seu papel social, tornando a história cultural em material. Ele o
faz redefinindo e aprofundando o conceito de cultura, que por essa nova perspectiva é
entendida em um sistema de significações, mediante “uma dada ordem social é comunicada,
reproduzida, vivenciada e estudada”.163
Assim como Williams, Clifford Geertz, em A interpretação das Culturas, busca
estudar a cultura humana ousando em falar de culturas no plural, entendendo que para
compreender o que o homem faz, torna-se necessário, primeiro, entender que dentro de uma
ação existem várias outras e que o ser humano só expressa as experiências que foram por ele
vividas:

O conceito de cultura que eu defendo, [...] é essencialmente semiótico.


Acreditando como Max Webber, que o homem é um animal amarrado em
teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo
essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em
busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado.164

Geertz afirma que essa análise é realizada no momento em que escolhemos as


estruturas de significação para determinar sua base social e, com isso, a sua importância, visto
que o comportamento humano é uma ação simbólica, e que devemos, para entendê-la
perguntando: qual é a sua importância?, e descobrir o porquê ela, está sendo transmitido com
a sua ocorrência.165
O conceito de cultura de Geertz não está cerceado pela ambiguidade fora do comum,
parecendo que cultura denota um determinado padrão de significados que são transmitidos
historicamente pelos símbolos, sistemas de concepções que foram herdadas e expressadas nas
formas simbólicas com as quais o homem se comunica, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e atitudes em relação à vida.166
Ainda pensando em como devemos lidar com os significados, admite que os
símbolos sagrados funcionam para marcar o que ele chama de ethos167 de um povo, uma vez
que é na crença e prática religiosa que o “ethos” se torna plausível, pois vai demonstrar um

162
Idem, p. 13.
163
Idem, ibidem.
164
GEERTZ, Clifford A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978 p.15.
165
Idem p. 20.
166
Idem, p. 103.
167
Ethos para Clifford Geertz (1978, p. 103) é “o tom, o car ter e a qualidade da vida, seu estilo e disposições
morais e estéticos”. Idem, ibidem.
62
tipo de vida emocionalmente convincente, enquanto ele é apresentado como uma coisa que é
verdadeira.168
Pelos símbolos religiosos é promovida uma coincidência básica entre o estilo
particular de vida e uma realidade específica, e, quando isso acontece, cada um deles é
sustentado com a autoridade emprestada do outro. Um fato é certo, destaca Geertz: “a noção
de que a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens
da ordem cósmica no plano da experiência humana não é novidade”. O pro lema é que não
sa emos como esse milagre particular é realizado. Podemos dizer que “todo o dia o sol se
levanta”, mas não sa emos como isso afeta as pessoas por falta de um arca ouço teórico que
para Geertz não existe.169 Por isso, ele sem cerimônias afirma que:

[...] uma religião é: (1) Um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e
(4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as
disposições e motivações parecem singularmente realistas.170

A proposta que Geertz parte do pressuposto de que é necessário pensar e analisar a


religião pela dimensão cultural, afinal, o estudo de uma atividade cultural pode ser a
realização de uma análise social. Assim, a religião apresenta modos de comportamento para
os homens, mostra aos homens que a realidade, as dificuldades, incertezas e o medo,
encontram na sua crença as respostas que precisam para colocar seu mundo em ordem. 171
Ser devoto não é “estar” praticando algum tipo de devoção, e sim ser capaz de
praticar no dia-a-dia a sua devoção. Nesse sentido, Geertz completa afirmando que tais
práticas induzem duas disposições diferentes, o ânimo e a motivação.
Portanto, encontramos nas festas de santo, nesse caso da festa de São Benedito em
Cuiabá, aspectos significativos de uma cultura de origem popular, entremeados por elementos
tradicionais, tanto nas festividades quanto nos momentos sagrados, que se traduzem na
aproximação dos cuiabanos natos, ou não, numa grande integração mediada pela festa. Ainda
que seja uma mediação simbólica, a festa movimenta a cidade, reafirma a cultura local e
resgata a memória do povo cuiabano.

168
Idem, p. 103 e 104.
169
Idem, p. 104.
170
Idem, p. 105 e 106.
171
Idem, p. 107.
63
2.2 – Invenção da tradição da “cultura cuiabana”

No início do século XX, um grupo de escritores, alguns ligados ao Instituto Histórico


e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) deram início à fabricação da chamada “cultura
cuia ana”. Desde então, as tentativas de manter a tradição, levou-os a falar, escrever e
defender a ideia de identidade “cuia ana”, um conceito que pudesse atestar e reforçar que “Eu
vim, eu vim eu vim. Eu vim de l pr c . Eu sou, eu sou, eu sou, de Cuia ”. 172
Qual a necessidade que sentimos para dizer que este ou aquele pertence a um grupo
social ou não? Qual o motivo principal para que seja exaltado um ou outro aspecto de uma
determinada cultura? Quem precisa deste tipo de identificação? Essas indagações, muitas
vezes, ficam sem resposta. A crítica a uma ideia de “identidade” tem sido estudada por várias
áreas, além da vertente da História.
Stuart Hall, teórico cultural jamaicano, trata da questão de identidade e diferença, em
seu ensaio “Quem precisa de identidade?” – um tema que ele considera a parte central da
teoria social e da prática política contemporânea. Ele explora questões sobre a identidade
cultural na modernidade, se existe realmente a “crise de identidade” e em que direção ela
caminha. Ele concentra sua discussão na problemática da formação da identidade e da
subjetividade:173

O conceito de “identificação” aca a por ser um dos conceitos menos em


desenvolvidos da teoria social e cultural, quase ardiloso – embora preferível
– quanto o de “identidade”. Ele não nos d certamente, nenhuma garantia
contra as dificuldades conceituais que têm assolado o último. 174

Hall, na busca por compreender os processos que envolvem estes dois conceitos,
recorre tanto ao repertório discursivo quanto ao psicanalítico, porém sem se limitar a qualquer
deles. Comumente, falamos que a identidade é que aquilo que somos. Identificamo-nos a
partir de alguma origem em comum, ou quando partilhamos nossas características com outros
grupos sociais, ou ainda por partilhar um mesmo ideal: É em cima dessa fundação que ocorre
o natural fechamento que forma a base de solidariedade e da fidelidade do grupo em
questão.175

172
Trecho da música regional que exalta as “coisas” da terra entre elas, dois personagens conhecidos do cenário
mato-grossense, Dom Francisco de Aquino, que foi govenador de Mato Grosso de 1916 a 1918 e Arcebispo de
Cuiabá e Zé Bolo-flor, figura conhecida pelos habitantes de Cuiabá nos anos de 1960 e 1970, pelas muitas
estórias que contava.
173
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu (Org.) Identidade e diferença - A
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2007.
174
Idem, p. 105.
175
Idem, p. 106.
64
Numa abordagem discursiva, a identidade é vista como uma construção que está
sempre em processo. Para Hall, identificação é um processo articulado, como uma “sutura”, e
o conceito de identidade é mais um conceito estratégico e posicional:

[...] Ou seja, um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir o


pertencimento cultural ou uma “unidade” imut vel que se so repões a todas
as outras diferenças – supostamente superficiais. Essa concepção aceita que
as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade
tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; [...] As identidades parecem
invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas
continuariam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto,
com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da
cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos
tornamos.176

Assim como Hobsbawm, Hall afirma que as identidades tem tudo a ver com a
“invenção da tradição” quanto com a própria tradição. Ele acredita que isso ocorre porque as
identidades são “construídas dentro e não fora do discurso [...] produzidas em locais históricos
e práticas discursivas específicas, por isso identidade significa o ponto de encontro, o ponto
de sutura, entre discurso e prática que nos induz a falar e convocar para atuarmos como
sujeitos sociais, mesmo sabendo que são representações, construídas na falta, na divisão a
partir do lugar do outro.177
A grande dificuldade reside no fato de que as identidades sempre estão em constate
processo de mudança e transformação, além do fato de sofrerem perturbações do chamado
processo de globalização, que coincide com a modernidade, e os processos forçados de
migração, que parece ser um fenômeno global.178
Todas essas mudanças e discussões no campo da identidade acabaram por causar
uma “crise de identidade”. Ser que podemos ter um sentimento de identidade face aos
tempos globais? Será que é possível manter a tradição?
Ainda pensando nos efeitos da globalização, Hall aponta que as identidades locais
podem acabar se fortalecendo, ao perceber que sua cultura está sendo ameaçada:

Outro efeito desse processo foi o de ter provocado um alargamento do


campo das identidades e uma proliferação de novas posições – de –
identidade, juntamente com o aumento de polarização entre elas. Esses
processos constituem a segunda e a terceira consequências possíveis da
globalização, anteriormente referidas – a possibilidade de que a globalização
possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou à produção de
novas identidades. O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na

176
Idem, 108 e 109.
177
Idem, p. 111 e 112.
178
Idem, p. 108.
65
forte reação daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem
ameaçados pela presença de outras culturas.179

Neste cenário globalizado, Hall defende que não há somente uma identidade capaz
de nomear o sujeito, mas cada pessoa possui várias formas de se sentir como parte de uma
sociedade. Nesse sentido, quando uma pessoa passa a conviver num ambiente urbano, ela é
forçada a ter contato com os mais diversos tipos de pessoas, como exemplo, o devoto de São
Benedito, acabando por ser absorvido pelo grupo e passando a fazer parte dele:180

Acompanhando a Festa de S. Benedito, percebo que a igreja faz parte de um


espaço diferente, e tudo que está em seu entorno não consegue mudar o que
ela representa, ela mesmo representa para os devotos fiéis a S. Benedito uma
certeza de continuidade, de esperança de uma vida melhor mediada por uma
força celestial.181

Nosso objeto é considera a festa tradicional da capital de Mato Grosso como um


encontro de diversos sujeitos que se unem ao redor de um santo. Na análise do papel da festa
de São Benedito como o protetor da cidade, o santo que mais atrai pessoas, pode indicar que a
cultura “cuia ana” estaria se fortalecendo ano a ano com a realização desta festa. Seria essa
uma verdade inquestionável?
Ao pensar em cultura “cuia ana”, acreditamos, assim como Hall, que esse conceito
aca a por criar um divisor de guas entre “eu sou cuia ano” e “eu não sou cuia ano”.
Participar da festa pode oferecer um sentimento de pertencimento na cultura local, que
sustente e reafirme, a cada ano, este sentimento, sem o qual, o sujeito social passa pela “crise
de identidade”.
A festa de São Benedito em Cuiabá oferece este sentimento de pertencimento ao
guardar aspectos tradicionais, mas com incorporações do processo de globalização, graças aos
meios modernos de comunicação. Se podemos afirmar que a festa, surgida no Brasil Colônia,
perdura até hoje, podemos sugerir que tal representação aproxima os cuiabanos, possibilitando
reafirmar o que somos, o “povo cuia ano”:

179
Id Ibidem, p.84 e 85.
180
Cf. mais em Hall, Stuart A identidade cultural na pós-modernidade. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
181
ABREU, Martha. O Império do Divino: festa religiosa e cultura popular no Rio de Janeiro -1830-1900, p. 211
66
O Cruzeiro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário - 2013
Vista do centro de Cuiabá

Foto: Donato Perassolo

Essa resistência/indignação e luta ganham eco na Festa de S. Benedito em


Cuiabá na Praça do Rosário, onde milhares de devotos são capazes, dentro
de um processo histórico de consciência social cidadã, de levantar bandeiras
de luta, de indignação social e de uma contra-ordem consentida. Suas preces
ao santo passam a limpo a vida social, cultural, política e econômica do
Brasil. A figura do santo é, então, relacionada à sua capacidade de
intercessão junto ao Todo Poderoso, sendo seu seguidor e mensageiro.182

A festa de São Benedito é vista como um espaço de resistência e indignação frente às


mudanças promovidas pelo próprio processo histórico da cidade de Cuiabá, onde as tentativas
de manutenção das tradições culturais são aceitas pela sociedade, principalmente no que tange
aos elementos constitutivos da sua formação e desenvolvimento urbano. São Benedito foi
testemunha dessas mudanças e seus devotos aproveitam da sua força de intercessão para
“passar a limpo” todos os aspectos de suas vidas di rias.

182
Idem, p. 208.
67
Ainda pensando na preservação da cultura cuiabana, Júlio De Lamônica, arquiteto e
urbanista cuiabano, tomou como ponto de referência para a formação urbana de Cuiabá, a
partir de três ciclos: “1. Ciclo da Mineração (1722-1820); 2. Ciclo da Sedimentação
Administrativa (1820-1968); e 3. Ciclo da Modernização (a partir de 1968)” para justificar as
transformações econômicas e políticas de Mato Grosso.183
Júlio De Lamônica credita ao último ciclo como o momento onde importantes
transformações ocorreram na cidade, iniciando-se com a Interventoria no Estado Novo até o
final da década de 1960, marcada pela estagnação da economia que teve como consequência a
paralização do crescimento urbano e que encontrou no cultivo das tradições “cuia anas” e
certa efervescência cultural, uma compensação: [...] cultivou-se a cuiabania, definiu-se o seu
papel, a sua identidade”. 184
A proposta do mesmo autor só leva em conta o traçado urbano como padrão,
abordando a cidade como construção social do espaço em movimento. Oferece respostas
importantes para a formação de Cuiabá, mas não dá resposta sobre a formação histórica da
cultura.
Para efeito da presente dissertação, vamos propor outra divisão, que consideramos
importante para a compreensão da “invenção” da “cultura cuia ana”. Contudo, informamos
que não pretendemos esgotar a temática, oferecendo um sistema fechado, mas fomentar as
discussões futuras sobre cultura com uma rápida reflexão sobre o assunto. Nossa proposta é a
seguinte:

Antiga planta de Cuiabá

Fonte: Prefeitura Municipal de Cuiabá – PMC

183
Cf. mais em BRANDÃO, Ludmila de Lima. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como
prática social. Cuiabá: EdUFMT, 1997.
184
FREIRE, Júlio De Lamônica. Por uma poética popular da arquitetura. Cuiabá: EDUFMT, 1997, p. 47 e 48.
68
A primeira fase inicia-se em 1719, com o início do povoamento do arraial de Cuiabá,
que, assim como em outras cidades brasileiras do século XVIII, tiveram muitas dificuldades
para a solidificação administrativa, e termina em 1892, quando se deu a posse do 1°
Presidente do estado de Mato Grosso, doutor Manoel José Murtinho.

Vista de Cuiabá no início do século XIX

Fonte: Acervo Dunga Rodrigues/Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

Nessa fase, a cidade desenvolveu-se devido à mineração, dando início ao processo de


formação da nova “cultura cuia ana” e duas passagens corro oram com a ideia de que foram
as festas religiosas e profanas fatores de manutenção da vida na localidade:

As pessoas que vinham de outras províncias, principalmente da Corte,


queixavam-se da falta de opção de lazer existente em Cuiabá. [...] porque
Cuiabá não tinha teatro, nem ópera, ou passeio público. Para os naturais da
terra, a ausência desses prazeres passava despercebida. Acostumadas com as
opções de lazer próprias da Província, entretinham-se com os diversos bailes
e saraus transcorridos em residências particulares e com os diversos
piqueniques que tinham lugar nas aprazíveis chácaras localizadas ás margens
dos rios Coxipó ou Cuiabá.185

E, complementa a mesma autora:

As grandes oportunidades de distração eram proporcionadas pelas festas


religiosas, tanto por ocasião da Semana Santa, quanto dos padroeiros das
185
VOLPATO, Luiza Ricci Rios. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888. São
Paulo: Marco Zero; EdUFMT, 1993, p. 38.
69
irmandades, quando havia procissões, leilões de prendas e quitandas e
bailes.186

Os religiosos foram os grandes responsáveis pela religiosidade, pois logo que se


instalavam, já procuravam evangelizar os naturais da terra. Construíam igrejas para oferecer
os ofícios religiosos aos habitantes.187 Deu-se assim, por meio da devoção, a incorporação dos
elementos dos negros e índios pela nova população:

Graças a esta mistura, valores que tinham influencia africana e ameríndia


não foram identificados como sincretismo, mas integrando a crença local.
Isso causou ainda mais dificuldades para que as autoridades religiosas
distinguissem o profano do sagrado.188

Durante a primeira fase, a vida social, cultural e religiosa foram marcadas pelas
realizações de diversas festividades e as notícias dessas festividades, na Vila Real do Senhor
Bom Jesus de Cuiabá, sempre realizadas com muita pompa:189

As festas religiosas, em seus dias mais importantes, tornam-se um grande


acontecimento e tomam conta dos povoados e cidades. O calendário cristão
passa a ser estritamente observado, chegando-se, muitas vezes, a identificar
as pessoas pelos hábitos religiosos, é o essencial entre as datas rituais e as
maneiras de fazer. As festas criam espaços de convívio especiais, além de
trazer a esperança para quebrar a monotonia da vida, permitindo diversas
festanças e a possibilidade dos encontros. As organizações festivas, de
caráter religioso ou não – sem que seja possível delimitar tais fronteiras –
têm o poder de funcionar como força aglutinadora das práticas sociais e, por
isso, são fundamentais à teia da construção da memória coletiva, abrindo
fecundas possibilidades de abordagem do passado: Os cultos, com seus
cerimoniais, com as suas festas[...] realizavam continuamente a fusão entre
esses dois materiais da memória (passado individual e passado coletivo) 190

Dois fatores foram importantes para a cultura local, a fundação de uma tipografia191,
era também um anseio cultural do povo cuiabano, que além das festas encontravam no teatro

186
Idem, p. 37.
187
COMETTI, Pe. Pedro (SDB) Apontamentos da História Eclesiástica de Mato Grosso – Paróquia e Prelazia
Volume I, p. 9.
188
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de Fé, Irmão no Poder: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819), p. 108.
189
Como exemplo, temos o nascimento da princesa da Beira, o Senado da Câmara ordenou a publicação de um
edital para logo em seguida, iniciar as comemorações que contava com “missa, pompa, sermão e Senhor
exposto”. Essas comemorações e festejos duraram aproximadamente 04 meses. Ver mais em: A “Cabeça da
República” e as festividades na fronteira Oeste da América de Nauk Maria de Jesus in: Rosa, Carlos Alberto
(Org.) A Terra da Conquista: historia colonial de Mato Grosso. Cuiabá: Ed. Adriana, 2003, p. 105 e 106.
190
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz Cidades da mineração: memória e práticas: Mato Grosso na primeira
metade do Século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2006, p. 218 a 220
191
Sônia Zaramella (2004) informa que “foi o jurista Antônio José Pimenta Bueno, depois Marques de São
Vicente, quem mostrou, por meio de Relatório Presidencial lido perante a Assembléia Legislativa Provincial em
1º de março de 1837, a necessidade de implantar uma tipografia na Província de Mato Grosso”. Ela estudou os
jornais impressos que circulavam em Mato Grosso no século XIX, confirma que a chegada da tipografia se deu
70
seu maior anseio cultural, e com o surgimento de salas para espetáculos há notícias que, pelo
menos, 80 peças de teatro foram representadas aqui neste período.192
A segunda fase teve início com a elevação de Mato Grosso à categoria de Estado,
entre 1892 até o final de 1910/12, quando o discurso de isolamento da cidade, pronunciados
pelos políticos e habitantes da cidade de Cuiabá, e a chegada dos veículos automotivos, foram
signos da nova identidade. A cidade chegou ao fim do século XIX com uma pequena
população, pouco mais de nove mil habitantes, marcada por guerras, doenças e problemas de
fronteira.

Cartão Postal de Cuiabá – 1906

Fonte: Acervo Dunga Rodrigues/Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

A mobilidade era feita com a utilização de bondes puxados por tração animal,
principalmente entre o primeiro e o segundo distritos, e também por via fluvial, que chegavam
ao Porto de Cuiabá193: “Por essa época, foi também se constituindo na Capital uma nascente

em 1839, destacando que a participação popular foi importante neste processo, fazendo com que as dificuldades
de comunicação e de transporte não comprometeram as práticas culturais em Cuiabá. ZARAMELLA, Sônia.
Jornal em Mato Grosso - no começo de tudo, a participação popular. II Encontro Nacional da Rede Alfredo de
Carvalho, Florianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004, GT História das Mídias Impressa, Coordenação: Prof. Luís
Guilherme Tavares (NEHIB), s/p.
192
Ver mais em DORILEO, Benedito Pedro Egéria Cuiabana. Cuiabá, 1976, p. 39.
193
Ver mais em PINHO, Raquel Tegon de. Cidade e Loucura. Cuiabá: Central Texto; EdUFMT, 2007, p. 21, 40
e 41.
71
classe média, composta por profissionais liberais: médicos, dentistas, advogados e mais tarde
agrimensores, que, através de anúncios nos jornais, ofereciam seus serviços à comunidade”.194
Neste período, foram inauguradas a Sociedade Carnavalesca, em 1861, a Sociedade
Dramática Amor à Arte, em 1877, o Clube Literário, em 1882, a Sociedade Instrução e
Recreio, em 1883, a Sociedade Beneficente dos Artistas e a Sociedade Internacional de
Estudos Científicos, em 1899, o Clube de Leitura Tiradentes, em 1907, a Liga Mato-
grossense de Livres Pensadores e a Biblioteca Pública do Estado, em 1912. 195 As festas de
família e aquelas constantes do calendário religioso ainda aconteciam e passaram a ser
consideradas importantes meio de inserção social na elite cuiabana:

[...] Pelas ruas cuiabanas [em 1910, grifo meu] há a circulação de pessoas de
todos os tipos: negociantes, desocupados, ambulantes, profissionais liberais,
funcionários públicos, inspetores de quarteirão e outros. O fluxo de pessoas
de ambos os sexos e idades pelas ruas da capital intensificava-se por ocasião
dos preparativos das festas religiosas, entre as quais se destacavam as festas
de Sto Antônio, São João, São Benedito e a festa do Senhor Divino – esta
ultima aparece nos periódicos locais como o principal evento dessa natureza
no período, possivelmente por congregar o maior numero de pessoas,
sobretudo aquelas oriundas da elite cuiabana.196

Rua do Centro de Cuiabá no início do século XX (sem asfalto)

Fonte: Acervo Dunga Rodrigues/Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

194
VOLPATO, Luiza Ricci Rios. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888, p.
98.
195
DORILEO, Benedito Pedro. Egéria Cuiabana. Cuiabá, p. 39.
196
PINHO, Raquel Tegon de. Cidade e Loucura, p. 41.
72
A terceira fase vai de 1912, com o início do discurso da modernidade à década de
1970, com a criação da Universidade Federal de Mato Grosso, marco fundamental para a
consolidação Cuiabá como capital do Estado, no processo de divisão de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. A mudança veio quando foram construídas as duas ferrovias: Madeira-
Mamoré e a Noroeste do Brasil, no início do séc. XX. Surgiram as rodovias e teve início,
gradualmente em especial durante o Estado Novo, o uso de viação aérea, para o transporte de
passageiros:
[...] a noção de isolamento construída positivamente entre os anos de 1918 –
1922 por ocasião da criação do instituto geográfico de mato grosso –
IHGMT “1919 – compõe um repertório de enunciados e práticas com o qual
foi possível materializar o estado de Mato Grosso a partir de um mito de
origem criado pelos intelectuais da região.
197

Surge, então, o discurso do progresso e da civilização para o crescimento da cidade


de Cuiabá, com enfoque para a modernidade, seja com a construção das ferrovias, ou
acreditando na melhoria da comunicação, A ideia de modernidade, veiculada pelas elites,
chegou até aos habitantes de Cuiabá, que almejavam que o progresso chegasse com maior
rapidez e eficiência. Essa elite, segundo Guimarães, precisava mostrar as potencialidades do
Estado, criou uma imagem positiva, visando atrair mais pessoas e, de outro lado, tinham que
lidar com as disputas de poder que acabavam por desmontar a imagem de cidade
“civilizada”:198

O ideário civilizador a ser materializado através do progresso e do


desenvolvimento a ser expandido ao que então se denominava vagamente de
sertões foi transformado em eixo norteador e um dos principais tópicos
responsáveis pelo embasamento e construção dos argumentos a serem
utilizados na tribuna. Dentro e fora do estado a idéia força de um porvir
promissor tornou-se lugar comum, ainda que não houvesse na tentativa de
via ilizar o acalentado “processo civilizatório” necessariamente uma
simetria nos investimentos realizados, tanto o nível de articulação como a
intensidade das ações eram variáveis.199

Neste período foram criados a Companhia de Higiene e Profilaxia, o Instituto


Histórico e Geográfico de Mato Grosso – fundado pelos intelectuais para valorizar o Estado
defendendo a integridade do território nacional 200, o Clube Feminino, a Faculdade de Direito,
em 1934, considerado o embrião da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Zulmira

197
GUIMARÃES, Suzana Cristina Souza. Arte na Rua: o imperativo da natureza. Cuiabá: EdUFMT, 2007, p.
86.
198
Idem, p. 65,66, 69, 269 e 286.
199
Idem, p. 256.
200
BOMFIM, Márcia. As engrenagens da cidade: centralidade e poder em Cuiabá na segunda metade do século
XIX. Cuiabá: EdUFMT; Carlíni & Caniato, 2010, p. 87.
73
Canavarros oficializou o Instituto Mato-Grossense de Música, em 1939. Neste mesmo ano
aconteceu a primeira emissão de ondas de rádio, futuro embrião da rádio A Voz d´Oeste.

Baile no Clube Feminino de Cuiabá

Fonte: Acervo Dunga Rodrigues/Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Foram exibidos vários filmes no Cine Teatro República, antigo Cine Parisien. Em
1942, Júlio Strünbing Müller inaugurava o Cine Teatro Cuiabá e mais outros prédios públicos
do centro da Capital. Fundou-se nessa época o Centro Artístico e Musical. 201

201
Idem, p. 39 a 70.
74
Vista de Cuiabá de 1960

Fonte: Acervo Dunga Rodrigues/Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso

Nas últimas de década de 1960 e 1970, o governo federal acelerou o processo de


ocupação territorial desta parte do Brasil, como desdobramento da “Marcha para o Oeste”202
varguista:

No âmbito de uma política autoritária, instaurada pelo golpe militar de 1964,


os projetos de modernização e desenvolvimento nacional, convergiam para
os espaços amazônicos incentivados por diferentes programas como o PIN
(Plano de Integração Nacional), o Prodoeste (Programa de Desenvolvimento
do Centro Oeste). Nesse projeto de modernização nacional, a ocupação das
fronteiras e dos espaços considerados “vazios” justificava-se como questão
do desenvolvimento político e econômico. [...] Neste contexto produz-se um
movimento de desterritorialização desses espaços sociais: a ocupação de
novas áreas de terra, a abertura de novas estradas e rodovias e a criação de
novas cidades operam transformações nos modos de existência de grupos
sociais tradicionais, sobretudo grupos indígenas, posseiro, e trabalhadores
com base na agricultura familiar.203

O processo de desterritorialização dos espaços promoveram muitas transformações


que afetaram o modo de viver em Cuiabá, um deles foi a abertura do comércio local no
horário de almoço, para atender necessidades crescentes da população que veio de outros

202
Marcha para o Oeste foi um projeto do governo federal para ocupar o centro oeste brasileiro. O projeto foi
lançado em 1938, com o discurso progressista de Getúlio Vargas, de ser a solução para os problemas da nação.
203
SOUZA. Ana Maria de. Relatos da cidade: nomadismo, territorialidades urbanas e imprensa. Cuiabá:
Entrelinhas; EdUFMT, 2007, p. 33-34.
75
Estados e que se fixaram em Cuiabá. Nessa fase, houve um encolhimento cultural dos
cuiabanos, que se fecharam como forma de proteger seus valores culturais.

Centro de Cuiabá – meados do século XX (com calçamento)

Fonte: Acervo Família Mendonça/Arquivo da Casa Barão de Melgaço

Por fim, a última fase, que abrange o ano de 1970, com a criação da Universidade
Federal de Mato Grosso, até a fundação do Muxirum Cuiabano204, em 1990. Como cuiabana
205
de “Tchapa e Cruz” , propomos um “novo” olhar para a cultura local presentes na vida
diária dos habitantes de Cuiabá. Destacamos também o papel da Universidade Federal de
Mato Grosso como fundamental para o desenvolvimento artístico e cultural do Estado, com a
formação dos grupos artísticos com o objetivo de cultivar a música clássica e popular. 206
Infelizmente, a historiografia mato-grossense ainda não registrou ou analisou o papel dos
equipamentos culturais da Universidade Federal de Mato Grosso para a cultura regional, a
exemplo do Coral e a Orquestra, o Cineclube Coxiponés, o Museu de Arte e Cultura Popular,
o Teatro e o Ateliê Livre de Artes, e a extinta Escola de Artes da Universidade Federal de
Mato Grosso, fundada em 2003.
No final da década de 1970, um fato foi marcante para o povo mato-grossense, a
divisão do Estado, trazendo consigo os anseios de se construir uma nova Cuiabá:

204
Movimento cultural de resgate e fortalecimento da cultura cuiabana, que pretendia salvaguardar os principais
aspectos dessa cultura, dentre eles o linguajar cuiabano, a culinária, as danças do Cururu. Siriri e o Rasqueado.
Muxirum é o jeito cuia ano de falar “mutirão”.
205
Tchapa e Cruz designa o cuiabano autêntico, "puro de origem", similar às expressões carioca da gema e
gaúcho pêlo-duro.
206
DORILEO, Benedito Pedro. Centenário da Egéria Cuiabana. Cuiabá, 1995, p. 33; 41.
76
Se anteriormente à divisão do Estado, o objetivo de Cuiabá era manter sua
condição de capital, passada a fase, o desafio era transformar a “velha
cidade” de passado colonial numa “nova capital”, moderna e digna de
representar um “novo Estado”. Mas, para lançar mão desse ideal e fazer as
modificações na materialidade da cidade, seria necessário produzir nas
pessoas uma necessidade, que seria transformada em desejo e que, com o
passar do tempo, se confundiria com um anseio popular, levando-as à
ação.207

As mudanças tam ém influenciaram a formação da cultura “cuia ana”, que sofreu


com os efeitos das modificações dos valores, costumes, a tradição, e, para sobreviver, teve
que se adaptar a essas mudanças face às novas desigualdades que surgiram, com o
desenvolvimento econômico.
Em Cuiabá, em 1990, nasceu o Muxirum Cuiabano, com objetivo de fortalecer a
“identidade cultural cuia ana” frente ao avanço da cultura de outros estados, ingressada em
Mato Grosso pelo processo migratório, que provocou um verdadeiro choque cultural,
especialmente em Cuiabá. A partir do Muxirum, teve início uma reação dos cuiabanos que
viam, de forma negativa, o fenômeno da migração, com forte rejeição articulada por grupos
locais frente ao novo parâmetro cultural trazido pelo movimento migratório, cujos integrantes
continuaram a preservar elementos de sua cultura.208
Vimos que a cultura cuiabana tem em seu imaginário a insistente visão do progresso.
Ao longo das décadas e dado os processos econômicos e políticos do país, a cidade de Cuiabá
viu despontar as primeiras nuances de sua derradeira modernidade. Diante de um fenômeno
tão avassalador, houve a iminente necessidade de um rearranjo político e econômico, trocando
conforme as exigências do sistema produtivo capitalista os atores sociais e seus cenários.
Contudo, as disputas que surgem a partir deste reposicionamento dos sujeitos históricos
ganham premência no campo cultural. 209
O movimento Muxirum teve papel de destaque também na propagação da
experiência da festa de São Benedito como tradição de uma cultura. Como um modo variado
de diversos contextos sociais, o Muxirum encontrou na festa de São Benedito de Cuiabá um
exemplo repleto de significados, que reunia e agregava as várias camadas sociais, não sendo
somente mais um espetáculo, mas uma manifestação da cultura do povo deste lugar.210
Considerado como um espaço onde acontece o congraçamento de todas as classes
sociais cuiabanas, um lugar de memória, como diria Pierre Nora. Objetivando reviver esses

207
AMEDI, Nathália da Costa. A cidade (res) significa: a ideologia de modernização de Cuiabá no período pós-
divisão do Estado de Mato Grosso Revista Angelus Novus. São Paulo, n. 04, dezembro 2012, p. 49.
208
BEZERRA, Silvia Ramos Contradições culturais do cortejo triunfante da Modernidade em Cuiabá. Fenix:
Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, vol. 05, ano V, n. 03, 2008, p. 08.
209
Idem, p. 12.
210
REVISTA CUIABÁ 259. Cuiabá, 1978, p. 42-43.
77
lugares, em um breve passeio pelo centro histórico de Cuiabá, pode se observar alguns dos
elementos que constituem o patrimônio histórico cultural do cuiabano, em torno dos quais os
integrantes do Muxirum “uniram forças para uscar os restos, propondo junt -los na
esperança de restituir a identidade perdida. [grifo meu] que deveria ser protegida e
conservada como marca indenitária capaz de religar os homens do presente a um passado e
possivelmente a um futuro”.211
Esse é outro discurso que permeou a cultura cuiabana, de que as mudanças do mundo
atual foram as responsáveis pela perda da identidade do cuiabano. Um estudioso das relações
entre a modernidade sociocultural e modernização econômica dos países latino-americanos,
afirma que, por aqui, as tradições ainda não se acabaram e a modernização, ainda não findou
sua chegada.
O estudioso Néstor Canclini aponta que as abordagens do que é tradicional e o que se
pode chamar de moderno, acabam reforçando a longa construção de uma “cultura hí rida”,
onde modernidade significa pluralidade, entremeando as relações entre tradicional e moderno,
popular e massivo, onde se pode entender que hibridação é “processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, o jetos e pr ticas”:212

Em um mundo tão fluidamente interconectado, as sedimentações identitárias


organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis (etnias, nações,
classes) se reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e
transnacionais. As diversas formas em que os membros de cada grupo se
apropriam dos repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos
circuitos transnacionais geram novos modos de segmentação.213

Cuiabá é uma cidade que procura seus lugares de memória, pois ela não é feita disso,
mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado.214 Nesse
processo, a cidade experimenta, durante a festa de São Benedito, momentos de solidariedade
entre seus habitantes, uma vez que esse evento necessita ano-a-ano se reinventar para
continuar a ter significados. A “festa do “Santo Milagroso” revela a força afetiva da

211
SOUZA. Ana Maria de. Relatos da cidade: nomadismo, territorialidades urbanas e imprensa, p. 33.
212
Néstor Canclini aponta os riscos de se definir uma identidade pelos processos de abstração de traços como a
tradição e a língua. Definir pode levar-nos a desvincular como a história dessas práticas de mistura aconteceram
e acabariam por obturar as possibilidades de modificação da cultura pois já não se trata mais, de falar de
identidade formada por traços fixos. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo: EdUSP, 2011, p.
xix.
213
Idem, p. xxiii.
214
CALVINO, Ítalo As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
78
comunidade e possibilita aos participantes se reconhecerem e serem reconhecidos como
“irmãos”, reforçando, assim, os seus laços de solidariedade”. 215
A Revista Cuiabá 259, em editorial comemorativo dos 259 anos de fundação da
cidade de Cuiabá, apresentou uma cidade em crescente aumento demográfico, afirmando que,
pela sua localização estratégica e sua tradição e sua cultura, tornou-se uma das capitais mais
discutidas do Brasil, que se prepara para o desafio de se tornar o “portal da Amazônia” 216.
Para efeito de nosso estudo priorizamos a festa de São Benedito, mas muitos outros
símbolos são considerados representativos da cultura cuiabana, tais como, o cururu e o siriri, a
viola de cocho e as lendas, qualificando o mato-grossense como um povo que, de geração a
geração, transmite suas manifestações culturais, a exemplo da festa de São Benedito
Vista como símbolo da cultura cuiabana, a festa de São Benedito assistiu toda a
história da formação de Mato Grosso, desde a primeira vila até os dias atuais. Nosso papel
será perceber como as transformações culturais, em especial o crescimento populacional e os
meios de comunicação, influenciaram o car ter “hí rido” dessa festa na atualidade. Ser que é
possível uma festa ser o símbolo de uma cultura?
Vamos percorrer várias trilhas na tentativa de responder a essa pergunta.

215
LEME, Adnéia da Silva. Festa de São Benedito em Cuiabá: significados e re-significações, p. 12.
216
A “Marcha para Oeste” também visava a ocupação da Amazônia e Cuiabá recebeu o cunho de ser o porta de
entrada deste processo.
79
CAPÍTULO III

AS FESTAS DE SÃO BENEDITO NA BAIXADA


CUIABANA - ANÁLISE DAS FESTIVIDADES NO
ENTORNO DA CAPITAL

Esta gente, este povo


Veio hoje te louvar
Na Paróquia do Rosário
Teu reinado em Cuiabá

Durante a realização da pesquisa, encontramos diversos vestígios da realização da


devoção ao santo negro, mas também a outros santos, em várias localidades do Estado. Assim
sendo, procuraremos neste capítulo oferecer um panorama da religiosidade da população
mato-grossense e sua devoção a São Benedito, bastante difundido desde a Cuiabá colonial,
perdurando até a metade do século XX.
Como vemos no mapa a seguir, Mato Grosso encontrava-se numa posição
privilegiada do território português que logo tratou de limitar suas terras e fixar suas
demarcações com outras capitanias.
Mapa da tríplice fronteira Goiás, São Paulo, Mato Grosso, mostrando Triângulo Mineiro e rio Uberaba.

Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira


80
Com base na documentação encontrada, foi possível verificar com certa regularidade
que os festejos aconteciam nas cidades de Poconé, Rosário Oeste, Livramento, Diamantino,
Brotas, assim como no 2º Distrito, São Gonçalo de Pedro 2º e Coxipó do Ouro, Guia,
considerados fora do eixo da capital, Cuiabá.
Após análise, serão oferecidas somente as informações que atestaram a realização de
São Benedito nessas localidades e como era o modus operandi de cada local, na tentativa de
conhecer a existência, ou não, de similaridades com a festa de São Benedito da Igreja do
Rosário em Cuiabá. Acreditamos que este panorama pode contribuir para a historiografia
mato-grossense.
O mapa que se segue mostra que essas localidades fazem parte do território mato-
grossense até os dias atuais:

Divisão econômica do estado de Mato Grosso

Fonte: AMM – Associação Mato-grossense dos Municípios


Página da web: http://www.amm.org.br

Graças à evolução dos núcleos urbanos ao redor da Vila, foram criadas novos arraiais
anexados a Cuiabá. O primeiro distrito foi criado e anexado em 1814 à Vila Real do Senhor
Bom Jesus de Cuiabá, foi o distrito de Chapada.217 Em 1818, a Vila é elevada à condição de

217
MATO GROSSO. Alvará de 28 de setembro de 1814. Cria o distrito de Chapada. Acervo da Biblioteca do
IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br. Acesso: 21 de agosto de 2013.
81
cidade, com o nome de Cuiabá.218 Em seguida vieram os distritos de Brotas, hoje conhecido
como Acorizal, e o distrito de Nossa Senhora do Rosário do Rio Acima, hoje Rosário Oeste, e
também Várzea Grande. Somente em 1835 Cuiabá foi declarada capital da província de Mato
Grosso.
Em 1850 ocorreram novas repartições das Freguesias ou Paróquias da Província e
Bispado de Mato Grosso, fruto da junção entre Estado e Igreja, através de uma Resolução n. 9
de 1850, dividindo a província segundo o plano delineador: Freguesia de Mato Grosso,
Freguesia de Vila Maria, Freguesia de Poconé, Freguesia de Albuquerque, Freguesia de
Miranda, Freguesia de Paranahyba, Freguesia do Piquiry, Freguesia de Santo Antônio,
Freguesia de Sant‟Ana da Chapada, Freguesia de Pedro 2º, Freguesia da Sé, Freguesia da
Guia, Freguesia do Livramento, Freguesia das Brotas, Freguesia do Rosário, Freguesia do
Diamantino.219
Importante ressaltar que um dos fatores que contribuíram para o contínuo
desmembramento foi devido aos minérios encontrados em algumas dessas localidades,
principalmente na segunda metade do século XIX, ocasião em que a Capital de Mato Grosso
se desmembrou:

[...] desmembram-se também do município de Cuiabá os municípios de


Cáceres (1850), Rosário Oeste (1861), Nossa Senhora do Livramento (1883)
e Santo Antônio do Leverger (1899). Na primeira metade do século XX, são
criados os seguintes municípios: Barra do Garças (1913), Poxoréu (1938) e
Várzea Grande (1948) e na segunda metade do século XX os municípios de
Acorizal (1953), Chapada dos Guimarães (1953) e Nortelândia (1953),
[...].220

Para efeito de entendimento, delimitaremos a análise dos festejos religiosos que


ocorreram durante século XIX até a primeira metade do século XX nas cidades situadas no
entorno da capital, sendo a cidade de Diamantino a mais distante em relação às demais.
Cabe aqui esclarecer que foi preciso delimitar o espaço físico da pesquisa para a
elaboração deste capítulo, devido à grande área do Estado e, sendo assim, não foi possível
incluir os festejos de São Benedito da cidade de Vila Bela da Santíssima Trindade, uma das
mais belas festas em honra ao santo negro de Mato Grosso.

218
MATO GROSSO. Lei de 17 de setembro de 1813. Eleva Cuiabá a condição de cidade. Acervo da Biblioteca
do IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br. Acesso: 21 de agosto de 2013.
219
MATO GROSSO. Resolução n. 9 de 1850. Dispõe sobre a divisão das Freguesias ou Paróquias da Província e
Bispado de Mato Grosso segundo o plano delineado e marcado, assim como erigindo em Freguesia a Capela de
Nossa Senhora da Guia. Acervo do Instituto Memória da Assembléia Legislativa de Mato Grosso.
220
CUIABÁ. Prefeitura Municipal de Cuiabá, Organização Geopolítica. IPDU – Instituto de Planejamento e
Desenvolvimento Urbano. Cuiabá: 2007, p. 3.
82
Ressaltamos que a sequência utilizada no decorrer do capítulo não seguiu qualquer
critério, como veremos a seguir.

3.1 - Freguesia de São Gonçalo de Pedro 2º

A historiografia sobre a festa de São Benedito aponta que o evento dedicado ao santo
negro, que ocorria na Igreja de Nossa do Senhora do Rosário, foi considerada a única
celebração que acontecia na Cuiabá entre os séculos XIX e XX, mas encontramos vestígios da
realização da festa de São Benedito, que atestaram a prática de devoção ao santo na Freguesia
de São Gonçalo de Pedro 2º, a segunda maior incidência de participação popular nas
festividades de São Benedito no Estado, propiciada graças à sua proximidade geográfica com
a Capital.
Inicialmente criada com o nome de Freguesia de Pedro 2º mais tarde passou a ser
chamado de São Gonçalo de Pedro II (hoje Bairro do Porto), como o segundo distrito da
capital de Mato Grosso (Cuiabá). Atualmente, o distrito se transformou num bairro da capital,
o Porto, onde está situada a Paróquia de São Gonçalo:

Em torno do núcleo central representado pela Sé encontravam-se a


administração da cidade e as maiores concentrações de vida e poder local,
representados pelo Quartel, a Cadeia Publica, a Casa da Câmara. Havia
também um outro núcleo desenvolvido em torno do rio formando um
pequeno conglomerado de casa definida pela freguesia de São Gonçalo de
Pedro II, onde se localizava o porto, que também identificava esse núcleo,
assim como algumas casas de comércio .221

Não foi possível precisar quando as festas em honra a São Benedito foram iniciadas,
mas, encontramos um documento atestando sua realização a partir de meados do século XIX.
Há uma provisão de Dom Antônio dos Reis, datada de 1856, concedendo licença da Diocese
para a realização dos festejos na Freguesia de São Gonçalo de Pedro II:

Prov. P. exposição do SS. Na Festa de S. Bendicto do Porto (ilegível).


Dom José dos Reis por Mercê de Deos e graça da Santa Sé Apostholica,
Bispo desta Santa Igreja do Senhor Bom Jesus de Cuiaba, do Conselho S. M.
Imperador, etc, etc, etc. Aos que esta Provisão vivem, saúde, pas, e Benção
em o Senhor. Faremos saber que atendendo Nós ao que pela petição Nos
requerem o Festeiro do Glorioso São Bendicto da Freguesia de São Gonçalo
de Pedro 2º, Havemos por bem, pela presente conceder Licença para que o
Revendo Parocho daquela Freguezia possa expor o Santissimo Sacramento

221
ROCHA, Maria Aparecida Borges de Barros. Transformações no Espaço Urbano de Cuiabá na Segunda
Metade do Século XIX. ANPUH – XXII Simpósio Nacional de História – João Pessoa, 2003.
83
tão somente no acto da Missa solemne da dita festividades, e
Recommendamos a decência devida a tão Augusto Sacramento conforme
exigências Const. Eccl. 222

Nessa provisão, notamos que o distrito realizava suas festividades religiosas dentro
dos padrões da Igreja Católica, pois a licença foi expedida autorizando “o Reverendo P roco”
a expor o Santíssimo Sacramento. Como veremos adiante, a exposição da eucaristia nas
missas, o ponto alto da celebração religiosa, era fator de distinção na devoção religiosa, como
também nos festejos de São Benedito.
Mesmo com dificuldades de toda ordem, o distrito desenvolveu-se, e encontrou nos
seus moradores - formados em sua maioria por militares e comerciantes – a religiosidade
necessária para a continuidade da devoção a São Benedito e outros santos, difundidos e
comemorados ano-a-ano, pelos festeiros e irmãos de fé. 223
Outra provisão, datada de 1857, escrita nos mesmos termos da anterior, concedeu
licença ao festeiro, José Ribeiro, representante da Irmandade de São Benedito de São Gonçalo
de Pedro II, confirmando, assim, a continuidade dos festejos, ainda que a Provisão não
oferecesse informações sobre a programação das festividades. 224
Durante a pesquisa pudemos perceber que os jornais impressos, dos séculos XIX e
do XX, tinham a prática de divulgar os festejos religiosos assim como todas as festividades
em honra ao santo negro. Dias antes do início da festa, a imprensa divulgava insistentemente,
aos habitantes da Freguesia de São Gonçalo de Pedro II, convidando-os para concorrer aos
“atos da festa”.
Num primeiro momento, a festa de São Benedito era realmente celebrada após a
festa do Divino Espírito Santo e, como veremos posteriormente, a chegada do progresso
trouxe consequências também para as festividades de São Benedito:

Foi celebrada na Freguesia de São Gonçalo de Pedro II, a festa do Divino


Espírito Santo, no dia 08 de agosto de 1859, onde orou o Evangelho o
Reverendo Vig rio Camargo. Interessante que após „a realização desta festa,
teve no dia seguinte, dia 09 de agosto, a celebração da festividade de São

222
PROVISÃO. Dom José Antônio dos Reis. Dada e passar nesta Cidade de Cuiabá, sob o nosso Signal e Sello
de Nossas Armas aos 31 de julho de 1856. Acervo da Cúria Metropolitana de Cuiabá.
223
“Por essa época, foi tam ém se constituindo em Cuia uma nascente classe média, composta por
profissionais liberais: médicos, dentistas, advogados e mais tarde agrimensores, que, através de anúncios nos
jornais, ofereciam seus serviços à comunidade. Todas essas mudanças e questionamentos vividos em Cuiabá a
partir de 1870 permitiram que aí também florescesse o debate sobre o tema mais crucial para o Brasil neste
período: a superação do escravismo”. Ver mais em VOLPATO, Luiza Ricci Rios. Cativos do Sertão: vida
cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888, p. 98.
224
PROVISÃO de Dom José Antônio do Reis. Dada e passada nesta Cidade de Cuiabá, sob o Nosso Signal e
Sello das Nossas Armas, aos 26 de setembro de 1857. Exm e Padre José Joaquim dos Santos Ferreira, Escrivão
da Camara e do Auditório Ecclesiastico, que a escrevi.= José, Bispo de Cuiabá. 2:4 am=. Acervo da Cúria
Metropolitana de Cuiabá.
84
Benedito, onde o Evangelho foi orado pelo Reverendo José Joaquim dos
Santos Ferreira. 225

Aqui encontramos uma possível explicação para um dos mais antigos paradigmas
ligados à festas de São Benedito em Cuiabá, amplamente divulgado e hoje ainda se faz
presente no imaginário dos cuiabanos: que as festas de São Benedito de antigamente eram
realizadas após a festa do Divino.
No início do século XIX, as duas festas eram realizadas uma após a outra, devido à
precariedade de acesso ao distrito de São Gonçalo de Pedro II. Parece plausível afirmar que a
explicação encontra-se na condição urbana dos dois distritos, São Gonçalo (Porto) e Sé
(Centro), que naquela época era de difícil comunicação, pois ambos eram ligados pelo córrego
da Prainha, que se apresentava em alguns trechos intransponível, tanto a pé como a cavalo.
No início do século XIX, Cuiabá conseguiu desbancar Vila Bela e se tornou a sede
da província de Mato Grosso, ganhando novos impulsos rumo ao desenvolvimento: “No ano
de 1821, objetivando a integração de Mato Grosso com outros países, sua capital foi
transferida de Vila Bela para a cidade de Cuiabá... desta forma, Cuiabá começava a se
destacar como entreposto comercial”.226
Graças à evolução urbana que os dois principais distritos da província cresceram
devido às ações desencadeadoras rumo ao progresso de Cuiabá. Algumas mudanças foram
sentidas pela população, principalmente a melhoria do acesso entre os dois distritos. Essas
consequências chegaram até a festa de São Benedito de São Gonçalo de Pedro II, que
encontrou forças para se emancipar da festa do Divino, passando a ter uma festividade em dia
e mês próprios, em honra ao santo negro.

225
A IMPRENSA DE CUYABÁ. n. 04, Anno I. Cuiabá, 14 de agosto de 1859.
226
ROMANCINI, Sonia Regina. Cuiabá: paisagens e espaços da memória, p. 37.
85
Foto Antiga da Igreja de São Gonçalo do Porto – Cuiabá/MT

Foto: MENDONÇA, Estevão de. Igrejas & Sobrados de Cuiabá.


Cadernos Cuiabanos 7, Cuiabá: abril 1978.

A ilustração mostra a localização da Igreja de São Gonçalo de Pedro II que,


juntamente com a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, foram importantes para o crescimento
urbano de Cuiabá, pois essa última igreja oferecia acesso ao Rio Cuiabá, conhecido como
Porto Geral:

O governo da província construiu o Porto de Cuiabá e instalou a Capitania


dos Portos. Em 1836, procedeu-se a retificação do córrego da Prainha, com a
abertura de um canal até o rio Cuiabá, para desobstruir o seu leito atulhado
pelas sobras da mineração.227

Todas essas transformações foram proporcionadas aos principais distritos da Capital,


tornando-se também testemunhas da evolução do traçado urbano da capital. Assim, a
Freguesia de São Gonçalo de Pedro 2°, a partir de 1836, era o segundo mais populoso da
província: “Em 1845, [...] registrou um total de 6 a 7 mil habitantes, elevando-se essa
população em 1869 para 10 mil ha itantes”. 228 Mas este processo foi lento e gradativo,
constituindo na primeira explicação para as realizações das festividades, seguida uma da
outra.

227
Idem, p. 37.
228
Idem, p. 38.
86
Outra alegação para a realização das festividades em conjunto deve-se à falta
sacerdotes na província, levando muitas vezes a Igreja Católica a cortar gastos com as
provisões, condensando-se às missas num só período, devido as distância entre os dois
distritos, de, aproximadamente 4.000 metros.229
Mas o cotidiano da vida das pessoas que moravam em Cuiabá e no segundo distrito
foi brutalmente alterado a partir de 1860, quando teve início a Guerra do Paraguai, evento que
gerou consequências irreversíveis à população, mesmo alguns anos após o seu término. 230
Para completar o quadro das dificuldades do distrito de São Gonçalo de Pedro 2º, em 1865 “as
cheias do rio Cuiabá causaram volumosa inundação, que devastou grande parte do bairro do
Porto, bem como as plantações ribeirinhas, especialmente as situadas em Rio Abaixo”.231
Embora encontremos escassas informações sobre a festa de São Benedito em São
Gonçalo de Pedro 2º, acreditamos que homens e mulheres continuaram a cultuar o santo
negro, mesmo com as dificuldades descritas. Graças a elas, uma aproximação maior das
camadas sociais se deu na luta pela sobrevivência, pelas condições específicas da localidade,
como símbolo de resistência frente às intempéries que atingiam o distrito. Assim, dos pobres
ao mais abastado membro da elite local, foram colocados no mesmo patamar social, passando
a ser percebidos e louvados como uma das características do povo cuiabano, tido como um
povo alegre e receptivo.232
Evidenciamos pela imprensa local a divulgação dos festejos religiosos, suscitando, na
população, a força necessária para retomada da rotina no distrito de São Gonçalo de Pedro II.
Assim, em 1864 noticiou-se que os festeiros e festeiras de São Benedito convidavam os fiéis e
devotos para a missa cantada e procissão, uma programação curta, condensada em um só dia,
o que ensejou grande participação popular.233 A matéria veiculada pelo jornal A Imprensa de
Cuyabá, apresentou as comemorações da festa de São Benedito dissociadas da festa do
Divino, culminando com a separação dessas duas festividades.
Data desse período uma evolução dos signos do progresso e da civilização, com
melhorias significavas da comunicação, mais rápida e eficiente com a Corte Imperial:

229
VOLPATO, Luiza Ricci Rios. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888,
1993, p. 27.
230
“Quando ao que diz respeito à sua interferência no cotidiano das pessoas que vivam em Cuia , a Guerra do
Paraguai pode ser dividida em duas etapas: a primeira, compreendida entre a invasão do sul da Província e a
retomada de Corumbá pelas tropas brasileiras e a segunda, daí até o final do conflito. Na fase compreendida
entre 1867 – retomada de Corumbá – e o final da guerra em 1870, os agravos causados à população continuaram
a se fazer sentir”. Idem, p. 59-60
231
Idem, p. 16; 56.
232
Idem, p. 227 e 228.
233
A IMPRENSA DE CUYABÁ n. 284, Anno VI. Cuiabá, 23 de junho de 1864. Sessão Anúncio.
87
As inovações tecnológicas colocaram à disposição do homem do século XIX
novas alternativas de solução de seus problemas cotidianos, tais como
comunicação e transporte, ou diversão e lazer. A estrada de ferro, os passeios
públicos, o teatro da ópera criaram novas opções na vida do homem
moderno e ao mesmo tempo trouxeram uma nova fisionomia às cidades. Ao
findar a primeira metade do século XIX, a sociedade capitalista já havia
construído um de seus marcos mais visíveis: a vida urbana.234

O aumento populacional desse distrito oportunizou uma melhor organização da


igreja local quanto às festividades de São Benedito. Assim, em 1865 foi aprovado o
Compromisso da nova Irmandade de São Benedito, ereta na Freguesia de São Gonçalo de
Pedro II, autorizando seu funcionamento da irmandade. Esse documento regulatório foi
concebido em dez capítulos e setenta artigos.235
De acordo com o Compromisso, a finalidade maior era “adorar a Deus”, promover o
“culto” ao santo negro e prosperidade da Irmandade. Analisando os artigos, observamos na
leitura do primeiro capítulo, que as normas de aceitação de Irmãos e Irmãs na Irmandade eram
rígidas, visto que deveriam professar a fé católica apostólica romana, admitindo-se, sem
distinção de sexo, “condição” ou idade, homens e mulheres livres de vícios considerados
desprezíveis aos olhos da comunidade, podendo-se fazer parte do rol dos irmãos número
ilimitado de componentes, divididos em três classes distintas, a saber, Ordinários, de Mesa
Perpétua e Remidos.236 O Compromisso que foi aprovado mostrou-se como norteador das
ações e atividades que deveria ser cumprida por todos os Irmãos e Irmãs.
Ainda sofrendo os efeitos da Guerra do Paraguai, era de se espantar que a Irmandade
encontrasse ânimo para continuar suas atividades. Antes mesmo da completa restauração da
cidade, dois anos depois, ela seria assolada novamente, só que agora pela varíola, que atingiu
todas as camadas sociais, dizimando-se boa parte da população.
Acreditamos que tais dificuldades originaram as poucas informações que relatam dos
festejos de São Benedito da Freguesia de São Gonçalo de Pedro II. Assim, a notícia datada de
1880, a nosso ver, foi uma a tentativa de se estabelecer novamente a rotina neste núcleo
urbano:

[...] em nome da respectiva Irmandade, fazem a público que será esta festa
celebrada no 2º Domingo de Maio venturo, 9 do mês, constando de tríduo,

234
VOLPATO, Luiza Ricci Rios. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850-1888, p.
40-41.
235
MATO GROSSO. Lei Provincial n. 10 de 1865. Dispõe sobre a aprovação do Compromisso da Irmandade de
São Benedito ereta canonicamente na Parochia de São Gonçalo com dez capítulos e setenta artigos. Acervo do
Instituto Memória da Assembléia Legislativa de Mato Grosso.
236
Remido. Adj. Quitado, desobrigado de qualquer prestação. Sócio remido, aquele que já pagou a sua cota, e
que por isso está desobrigado de qualquer outra contribuição. Disponível em:
http://www.dicionariodoaurelio.com. Acesso: 21 de agosto de 2013.
88
Missas nas madrugadas precedentes, Missa solene com sermão do Cônego
Vigário, Procissão a tarde sendo a festividade do dia honrada com a
assistência das autoridades superiores, dignando-se S. Ex. Revma o sr Bispo
Diocesano administrar nessa ocasião o Santo Sacramento do Crisma.
Convidam pois a todos Irmãos da Confraria, aos devotos do Glorioso Santo,
e geralmente a todos os fiéis a assistirem os atos acima mencionados,
prevenindo aos habitantes da Paróquia que as esmolas do costume para fazer
a mesma festa começaram a ser tiradas no dia 3 do dito mês. Assina João
Francisco da Rocha.237

As informações divulgadas pela matéria, além de trazer a programação das


festividades em honra a São Benedito de São Gonçalo de Pedro II, que no final do século XIX
apresentava a fórmula para os festejos religiosos para essa e outras localidades, constando de
tríduo, cantado nas missas nas madrugadas, missa solene, com sermão, e procissão no último
dia. Na da matéria, pode-se observar a conservação da prática de esmolar, comum na
província, porém elas somente podiam ser tiradas exclusivamente na região da paróquia,
devido à proibição que impedia os festeiros sair do seu distrito, sob pena de ter que pagar uma
multa de dez mil réis e, em caso de reincidência, o valor seria dobrado.238
Ao divulgar a rotina das atividades públicas e privadas no período, a imprensa se
valeu do privilégio do poder da comunicação para exaltar as “qualidades” do povo cuia ano,
um povo que “guarda” as suas tradições encontrando-se na devoção ao Glorioso São Benedito
o espaço favorável para a visibilidade dessas qualidades.
Assim, a festa de São Benedito no Brasil e em Cuiabá apresenta dados curiosos em
relação ao tempo das festividades religiosas, visto que uma matéria sobre a realização dos
festejos de São Benedito de São Gonçalo de Pedro II, datada de 1880, anunciava os festejos
no segundo domingo de “maio”. Apesar de existirem poucas informações dos festejos em São
Gonçalo de Pedro II, evidenciamos por essa matéria novamente a proximidade com o período
dos festejos do Divino, comemorado sempre no período do Tempo Pascal, que antecede
Pentecostes, uma festa litúrgica da Igreja Católica.239
Diferentemente da festa de São Benedito da Sé (1º Distrito), realizadas em julho de
cada ano, as festividades em honra ao santo negro eram organizadas, de acordo com as
necessidades de cada freguesia, com muita flexibilidade no calendário litúrgico.240
A realização da festa de São Benedito de 1880 recebeu autorização por provisão que
apontava a necessidade de ser observada uma cláusula ordenada pelo bispo diocesano, Dom
Carlos Luiz D‟Amour, que concedeu a licença para se expor o Santíssimo Sacramento nas
237
A PROVÍNCIA DE MATTO-GROSSO n. 68, Anno II, Cuiabá, 18 de abril de 1880.
238
Idem, 1865.
239
Essas informações sobre as comemorações do tempo litúrgico católico, encontra-se no site oficial da
Arquidiocese de Cuiabá. Disponível em: www.arquidiocesecuiaba.org.br. Acesso: 15 de setembro de 2013.
240
A PROVÍNCIA DE MATTO-GROSSO n. 68, Anno II, Cuiabá, 18 de abril de 1880, e n. 75, Anno I., Cuiabá 25
de abril de 1880,
89
festividades do Glorioso São Benedito, porém, limitando o espaço de sua exposição, onde não
houvesse a presença de outras imagens ou vultos, em lugar exclusivo, mostrando o cuidado
das autoridades eclesiásticas na preservação dos rituais católicos.241
A ordem social era observada pelos responsáveis pela organização da Irmandade de
São de Benedito na Matriz da Freguesia de São Gonçalo (2º Distrito). Os altos cargos dentro
da irmandade eram ocupados por membros da elite local, nos mesmos moldes das festas de
São Benedito de outras localidades da província. A partir de 1882, e provavelmente bem antes
disso, os nomes dos festeiros passaram a ser divulgados pelas matérias jornalísticas, porém
não foi possível precisar a data correta.
Para ilustrar, a matéria de 1887 divulgando a festa de São Benedito, estampando
além da figura do festeiro, a organização de toda a programação, que tinha como
personalidade de destaque o tenente João Sant‟Iago Arinos, que, além de organizar a parte
religiosa da festividade, ofereceu também um baile. O evento recebeu elogios pela sua
realização, considerado pela imprensa como “ rilhante”, do início ao fim, tendo a festa como
um todo sido classificada como pomposa.242
A leitura dos jornais dos anos seguintes deixou claro o esforço dos festeiros, que se
esmeravam para suplantar a festa anterior, e esse esforço não passava despercebido pela
imprensa, que noticiava tudo com muita efusão:

Realizaram-se com a solenidade do estilo os festeiros do glorioso São


Benedito, no distrito de Pedro 2º sendo Juíza a Exma Sra Anna Garcia da
Silva, extremosa mãe do nosso correligionário tenente João Vieira de
Azevedo. A noite do dia 17 do corrente, depois do leilão que esteve bem
concorrido e animado, seguiu-se um esplendido baile, prolongando-se até as
4 horas da madrugada. Na noite do dia 20 houve bonita iluminação no largo
da matriz de São Gonçalo, sendo enorme a afluência do povo que ali se
achava para assistir queimar os fogos de artificio primorosamente
trabalhados. Em a noite do dia 21, que foi da festa. Teve lugar um grandioso
baile, onde viam-se os rostos os mais gentis toilettes de alto gosto ostentados
pelo nosso high-life.243

A notícia mostra o requinte das festividades de São Benedito do Distrito de Pedro II,
a julgar pela Juíza, que provavelmente era muito conhecida pelos habitantes, tendo seu nome
destaque na matéria, onde também foram mencionadas suas qualidades como mãe
“extremosa” do “correligion rio” Tenente João Vieira de Azevedo. No ano de 1888, o tempo
da festa dilatou, com o acréscimo de mais um dia, sendo que em dois deles foram realizados

241
PROVISÃO, de Dom Carlos Luiz d‟Amour. Dada aos 7 de maio de 1880. Acervo da Cúria Metropolitana de
Cuiabá.
242
A PROVÍNCIA DE MATO-GROSSO n. 448, Anno IX. Cuiabá, 7 de agosto de 1887.
243
A PROVINCIA DE MATTO-GROSSO n. 513, Anno X. Cuiabá, 28 de outubro de 1888.
90
bailes muito concorridos e animados, onde podia se constatar o poder econômico do high-life
da época.
Quanto à manutenção do poder econômico e social pela elite local, encontramos
outra matéria evidenciando a força da Irmandade de São Benedito de São Gonçalo de Pedro II
sobre a vida privada de seus Irmãos. Assim, em 1895, houve problemas de disputas internas
para realização da parte profana dos festejos, o que foi divulgado pela imprensa.
De acordo com a matéria, a Mesa de São Benedito “resolveu” que o senhor José
Alves de Oliveira Leitão não poderia realizar a festa daquele ano, tendo como justificativa o
próprio Compromisso da Irmandade, aprovado em 1865. Valendo-se do direito adquirido, a
Mesa, com base no capítulo nove, artigo cinquenta e sete, que normatizava a festa e também
pelo artigo cinquenta e oito, alegava: “a festa exterior de véspera será determinada pela Mesa
ao Procurador, ou pessoa encarregada, marcando tanto a festa e despesas que devera fazer”. O
compromisso só foi acessado como ferramenta de veto naquele ano, provavelmente como
forma de mostrar o poder da Mesa, que, notadamente não aceitava os referido senhor como
festeiro.
Mesmo com a proibição, os festejos de 1865 foram realizados com extensa
programação, constando de reza e bênção do Santíssimo Sacramento, iluminação, queima de
fogos preparados por um pirotécnico contratado pela irmandade, leilão e apresentações
musicais executadas pela banda do Arsenal de Guerra, além de missa cantada, com a
participação do coro dos meninos do Colégio São Gonçalo, que abrilhantaram a missa com A.
F. A. Sary e o Credo de J. De-Vecchi, sermão ao Evangelho com panegírico do santo, e
procissão que percorreu as ruas de costume, sendo que na volta foi cantado, a três vozes, o
Tatum Ergo244, de autoria do mestre Ervo e no encerramento a benção do Santíssimo
Sacramento. Em resumo, uma grande celebração, com todos os elementos importantes do
culto a São Benedito, oferecendo à sociedade cuiabana os requintes de intelectualidade e de
poder socioeconômico da Irmandade.
Nos anos seguintes foram registradas pela imprensa as atividades rotineiras da
Irmandade, como missas fúnebres, de finados e as festas em honra para São Benedito, mas
sem muito alarde. Outra data celebrada pela irmandade era a missa solene pela alma dos
falecidos, realizadas no dia 3 de abril de cada ano, data de aniversário de São Benedito,

244
“O Tantum ergo integra os dois segmentos finais do hino Pange lingua … Corporis, que por sua vez é cantado
na trasladação do Santíssimo Sacramento na Quinta-feira Santa, após a Missa, e na procissão de Corpus Christi.
Durante todo o ano litúrgico, excetuando as duas festas anteriormente citadas, no ato da benção solene do
Santíssimo Sacramento, canta-se somente o Tantum ergo. Um Autor para o Tantum Ergo, CT2 337 – Francisco
Manoel da Silva, José Maurício Jr. e Antônio da Silva Leite. BIASON, Mary Angela. Um autor para o Tantum
Ergo. Anais do XIII Encontro Nacional da ANPPOM Música no Século XXI: Tendências, Perspectivas e
Paradigmas. Escola de Música da UFMG, Belo Horizonte – MG, 23 a 27 de abril de 2001.
91
objetivando-se a rememoração dos Irmãos vivos e dos Irmãos mortos, assim como aos
benfeitores da irmandade. 245
A festa continuou acontecendo dentro das normas que regem o Compromisso da
Irmandade de São Benedito de São Gonçalo de Pedro II, tendo à frente os festeiros que
observavam as obrigações, bem como os direitos e regalias dos irmãos, que garantiam a
realização de todo o ritual de celebração da morte: as missas fúnebres, a garantia do direito a
ser enterrado no cemitério público, dobro de sinos tocados e acompanhamento da irmandade
durante os cortejos fúnebres.
As comemorações em honra ao santo negro de 1897 foram realizadas no mês de
dezembro.246 Nesse sentido, cabe destacar que o calendário das festividades de São Benedito
em todo o Brasil é, até hoje, flexível e de acordo com as conveniências de cada lugar.
Poucos vestígios foram encontrados sobre as festividades de São Benedito em São
Gonçalo de Pedro II após 1897, somente registramos uma provisão do início do século XX.
Em 1905, Dom Carlos d‟Amour expediu provisão concedendo licença para cele rar
a festa de São Benedito nessa Freguesia, apresentando a determinação sobre o direcionamento
do esmolar que seriam retirado dos fiéis, ordenando aos festeiros que a metade recebida
deveria ser deslocada para a comissão encarregada das obras da igreja Matriz de São Gonçalo
de Pedro II, que precisava de reparos.247
As questões envolvendo os valores das esmolas e sua destinação mostraram também
um espaço de disputa e conflito entre a Irmandade e o bispo diocesano. Por este prisma,
podemos compreender matéria divulgada pela imprensa sobre um fato que aconteceu na festa
de São Benedito de 1909, em São Gonçalo de Pedro II: O festeiro daquele ano, Anselmo Pires
de Miranda, quando se aproximava o período de realização das festas, iniciou a coleta de
esmolas, como de costume, acompanhado pela banda de música do Batalhão da Polícia, que
fora previamente convidada pelo festeiro. Após o término do recolhimento no distrito, o
festeiro passou para o distrito da Sé, devidamente munido de licença da Câmara Municipal,
autorizando o esmolar para a festa de São Benedito também naquele distrito. Ao chegar ao
primeiro distrito, foi surpreendido ao passar na residência episcopal de Dom Carlos Luiz
d‟Amour, que, além de recu