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MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Catarinas e Iracemas: sobre casamentos interétnicos de mulheres indígenas em Manaus
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Catarinas e Iracemas: sobre casamentos interétnicos de mulheres indígenas em Manaus
________________________________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho (Presidente)
PPGAS/MN/UFRJ
_________________________________________________
Profª. Drª. Maria Elvira Díaz Benítez
PPGAS/MN/UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque
PPCIS/UERJ
__________________________________________________
Profª. Drª. Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente)
PPGAS/MN/UFRJ
__________________________________________________
Prof. Dr. Andrey Cordeiro Ferreira (Suplente)
CPDA/UFRRJ
Às mulheres indígenas do Sol Nascente.
AGRADECIMENTOS
This thesis intends to analyze the process of construction, appropriation and identitarian
expropriation of indigenous women and their descendants, in view of the wedding with white
men. The study of this modality of marital relationship, appears as a fertile field for the analysis
of ethnicity in a more individualizing and quotidian perspective, sustained mostly within family
relationships. So, when understanding the interethnic marriages as an intercultural encounter in
which both involved are active subjects in this exchange, it is shown that although there could
be unequal power relations, especially when it comes to gender and race dynamics, the
formation of the family unit does not imply concealment or rejection of the indigenous identity
in favor of the non-indigenous. In this scenario, to marry a white man does not make the woman,
neither their children, mestizo or white, on the contrary, both are defined as Indians, and in
some cases the husband also recognizes himself this way. This change in the way of treating
the insertion of indigenous in the white families, results in large part from a broader movement,
focused on the the assertion of indigenous rights, which assures them "special rights" in relation
to the regular poor brazilian. The ethnic condition, therefore, is not an aggravating factor for
marriage, nor to establish family ties, when both belong to the same social class, which does
not occur when there is a socioeconomic difference. From the studied context, it is noted then,
that ethnicity is not only situational, but also activated whilst a political and social resource.
Figura 1 – População do Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente segundo suas regiões
de origem ................................................................................................................................. 47
Tabela 1 – Ranking das 10 cidades com maior população indígena do Brasil com base no Censo
Demográfico de 2010 ............................................................................................................... 34
Tabela 2 – Associações/comunidades indígenas em Manaus .................................................. 40
Tabela 3 – População residente no Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente ................ 46
LISTA DE IMAGENS
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
17
Ao chegar nessa casa, me deparei com uma senhora que lavava o chão. Era dona Maria,
mãe de Eledilson. Cumprimentei-a e perguntei pelo cacique. Ela imediatamente convidou-me
para entrar, ordenou a uma das crianças que fosse buscar uma cadeira para eu me sentar e
desculpou-se por, coincidentemente, estar fazendo faxina. Quando trouxeram a cadeira,
percebendo que estava com alguns pingos d’água, ela apressou-se para secá-la, ignorando meu
apelo de que aquilo não era necessário.
Assim que me sentei, sua neta, Kauane, de aproximadamente 03 anos, sentou-se no
chão, atrás de mim, e com olhar curioso observava-me calada. Em seguida, chegaram outras
crianças, dentre elas, um dos filhos do cacique, a quem conheci na mesma ocasião em que fui
apresentada ao seu pai. Desinibido, o menino de 11 anos, estendeu a mão para me
cumprimentar, tendo seu gesto repetido pelas outras crianças, que o acompanhavam. Dona
Maria então ordenou-lhe que fosse chamar seu pai, e imediatamente todos saíram correndo,
com exceção da pequena Kauane, que permanecia ali no chão, às minhas costas.
Enquanto aguardávamos Eledilson, apresentei-me a dona Maria, lhe expliquei que
estava fazendo uma pesquisa sobre o cotidiano de mulheres indígenas na cidade, que tinha
interesse em saber um pouco sobre essa realidade, sobre o porquê que deixaram suas
comunidades de origem, sobre os filhos, casamentos, trabalho, etc.
Muito atenciosa, dona Maria começou a me contar um pouco de sua história. Falou sobre
sua comunidade, sobre os filhos e sobre a vida no Assentamento, enfatizando o trabalho e
dedicação do filho enquanto cacique. Nisso, Eledilson chegou. Estava de pés descalços, sem
camisa, usando colares de sementes de seringa e um adereço de couro na cabeça.
Nos dirigimos para a cabana de lona azul, que fica ao lado da casa de dona Maria. Ali,
na tenda – como chamam o local -, explicou-me ele, é onde ocorrem as reuniões e atividades
culturais do Assentamento, e, também, onde costumam receber os visitantes. Nessa ocasião,
logo na entrada, dentro um casco de tartaruga, queimavam folhas secas de ervas aromáticas,
enquanto que, no aparelho de som, tocavam músicas de religiões de matriz africana.
Sob uma velha mesa, estavam expostas algumas pastas com recortes de jornais que
noticiavam a “invasão” da área, e mais uma série de documentos, que ele calmamente foi me
mostrando. Enquanto isso, silenciosamente, seu pai, um senhor de aparência franzina, de quase
70 anos, se aproximou, sentando-se ao meu lado. Inicialmente, permaneceu calado, apenas
ouvindo nossa conversa, mas assim que teve oportunidade, timidamente iniciou um assunto, e
logo depois esforçava-se para me ensinar algumas palavras na língua tikuna.
Nesse interim, Eledilson discretamente levantou-se e saiu, voltando minutos depois
18
acompanhado por um pequeno grupo de mulheres indígenas, a quem me apresentou dizendo-
lhes que ao decorrer dos próximos meses eu andaria pelo Assentando, podendo, em algum
momento visita-las. Repeti então a explicação que dei à dona Maria, dizendo-lhes que era
estudante de antropologia e gostaria de saber um pouco sobre a vida das mulheres indígenas
na cidade, iniciando assim, minha jornada de 60 dias de trabalho de campo.
A presença de indígenas no contexto urbano, conforme destaca Caleffi (2003), pode ser
identificada ainda no Período Colonial, quando era comum a construção de vilas e cidades
próximas às aldeias, para, deste modo, usufruir da mão de obra nativa no provimento da
alimentação dos colonos. Nessa época, no atual estado de São Paulo, havia também os
chamados descimentos, “[...] que configuravam-se no deslocamento de aldeias inteiras do
interior para as periferias das vilas, com os mesmos propósitos acima citados” (CALEFFI,
2003, p. 32). Na obra de Debret, prossegue a autora, também encontramos casos de indígenas
e as atividades por eles exercidas na cidade de Rio de Janeiro, por volta de 1823. No Arquivo
Público de Porto Alegre, há registros de processos envolvendo indígenas que ali viviam e
trabalhavam – exercendo funções de sapateiros, músicos, etc. – no final do século XVIII e
durante o século XIX. No século XX, cidades como Manaus, Cuiabá e Campo Grande, dentre
outras, apresentavam uma expressiva população indígena.
Muito embora a presença de indígenas nos centros urbanos perpassa séculos, como bem
demonstra Caleffi (2003), os estudos sobre essa problemática ainda hoje são pouco
expressivos. Na concepção de Lima (2010), o descaso da antropologia brasileira para com esse
fenômeno deve-se, de certo modo, a própria constituição desse campo de conhecimento em
nosso país. Para essa autora, com base na tipologia2 formulada por Mariza Peirano sobre o
campo da antropologia no Brasil, “[...] o estudo das populações indígenas está situado na busca
pela alteridade radical ou do contato com a alteridade e a questão urbana é vista como a
alteridade próxima”. Assim, prossegue, “localizados em planos distintos, essa separação
persiste até a atualidade, onde podemos constatar que estas abordagens têm destinado pouca
1
Detenho-me especificamente à análise de dissertações, teses e livros publicados no âmbito de Programas de Pós-
Graduações em Antropologia de universidades brasileiras, não contemplando, deste modo, publicações em revistas
ou eventos científicos. Vale destacar, ainda, que aqui não conseguirei dar conta de todo esse universo de pesquisa.
2
Ver mais em: PEIRANO, Mariza. Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada). In: MICELI, Sergio. O
que ler nas Ciências Sociais Brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré/ANPOCS; Brasília: CAPES, 1999.
19
atenção a um fenômeno antigo, consolidado e em contínua expansão: os índios na cidade”
(LIMA, 2010, p. 62).
O primeiro estudo sobre populações indígenas nas cidades foi realizado em meados da
década de 1950, por Roberto Cardoso de Oliveira junto aos índios Terena, em Mato Grosso do
Sul. Essa pesquisa, à época, dividida em dois projetos, resultou na publicação do livro O
processo de Assimilação dos Terêna, em 1960, e do artigo Grupo Doméstico, Família e
Parentesco: Ideias para uma pesquisa em Antropologia Social (Boletim do Museu Nacional),
em 1961. No livro, autor apresenta o survey realizado em todas as aldeias e reservas habitadas
pelos Terena. O objetivo desse estudo, como o próprio título sugere, foi analisar o processo de
assimilação desse grupo, “[...] incluindo, simultaneamente, o estudo dos Terêna citadinos,
através da observação direta e da aplicação de formulários nas cidades de Campo Grande,
Aquidauana e Miranda” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968, p. 09). Já no artigo, embora dê
continuidade à observação dos Terena citadinos, o objetivo foi analisar “[...] esse segmento da
população Terêna em processo de urbanização, atendo-se à organização dos grupos domésticos
e familiais egressos do meio rural e instalados nas cidades de Campo Grande e Aquidauana”
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968, p. 10).
Posteriormente, essa pesquisa deu origem à sua tese de doutoramento em Ciências
Sociais pela Universidade de São Paulo, defendida em 1966, sob orientação de Florestan
Fernandes. A partir de algumas modificações decorrentes da apreciação da banca examinadora,
a monografia foi publicada, em 1968, sob o título Urbanização e tribalismo: a integração dos
índios Terêna numa sociedade de classes. Nesta ocasião, por sua vez, como destaca Cardoso
de Oliveira (1968, p. 10-11), visava-se identificar “ [...] qual o mecanismo que leva os Terêna
a se manterem social e psicologicamente unificados na diversidade de suas situações”. Assim,
por meio do estudo de indígenas aldeados e citadinos, rurais e urbanos enquanto pontos
extremos, esperava-se entender o processo de mobilidade aldeia-cidade, denominado
urbanização. Constatou-se então, que a mobilidade, embora incluía deslocamentos físicos e
sociais, migração e acomodação em uma sociedade de classe, não implicava na perda da
identidade étnica, persistindo, deste modo, os elos tribais – fenômeno de tribalismo, conforme
definição do autor.
Na sequência, já na década de 1980, Roberto Cardoso de Oliveira juntamente com
Roque de Barros Laraia, elaboram o Projeto Índios Citadinos: identidade e etnicidade em
Manaus, Amazonas, realizado pela Universidade de Brasília e coordenado por Alcida Rita
Ramos. Tal proposta debruçava-se sobre as relações interétnicas na Amazônia urbana e suas
20
representações ideológicas (LIMA, 2010; FARIAS COSTA, 2014). Dessa pesquisa, que
segundo Melatti (1983), teria estabelecido uma ponte entre a Etnologia Indígena e a
Antropologia Urbana, resultaram três dissertações de mestrado: A descida ao Rio Purus (uma
experiência de contato interétnico), Índios proletários en Manaus: El caso Sateré-Mawé
citadinos e Identidad étnica y regional: tayecto constitutivo de una identidade social, de
autoria de Marcos Lazarin (1981), Jorge Romano (1982) e Leonardo Fígole (1982),
respectivamente.
Dez anos depois, também na Universidade de Brasília, Ana Gita de Oliveira, sob
orientação de Gustavo Lins Ribeiro, defendeu sua tese de doutoramento em Antropologia,
intitulada O mundo transformado: um estudo da “Cultura de Fronteira” no Alto Rio Negro,3
cujo foco foi a análise das transformações sociais ocorridas, especificamente, em São Gabriel
da Cachoeira. Essa autora, ao lançar mão da noção de “cultura de fronteira” demonstra como
a atuação de diferentes segmentos sociais presentes na região – missionários, administradores
do Estado, militares, trabalhadores vindos de diversos lugares – alterou o sistema cultural, bem
como as relações sociais entre a população indígena ali existente. Esse trabalho, segundo Lima
(2010), tem como referencial teórico, sobretudo, o modelo de sistema interétnico formulado
por Cardoso de Oliveira. Assim, Oliveira (1995) demonstra que “estruturantes da “cultura de
fronteira”, as noções de fronteira, etnicidade e condição urbana, na situação do Alto Rio Negro,
ocasionaram um contexto em que a oposição simplificadora de uma suposta homogeneidade
nacional contraria a heterogeneidade regional” (LIMA, 2010, p. 69).
Em 2005, Priscila Matta, com orientação de Beatriz Perrone-Moisés, defendeu a
dissertação de mestrado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, sob o título
Dois elos da mesma corrente – uma etnografia da Corrida do Imbu e da Penitência entre os
Pankararu, cujo foco foi, por meio desses dois rituais, compreender a relação entre os homens
e os “espíritos vivos” e mortos. Os Pankararu, destaca a autora, embora originários da região
do submédio São Franscico, em Pernambuco, desde a década de 1950, encontram-se em um
constante processo de migração para a cidade de São Paulo, onde concentram-se, sobretudo,
em áreas periféricas, como, por exemplo, o Real Parque. Esse processo de migração, no
entanto, não resulta na perda do pertencimento étnico, ou seja, da “ciência Pankararu”, que os
une independentemente do local em que residem, deste modo, a pesquisa foi realizada em
ambos os locais – na aldeia Brejo dos Padres e na favela Parque Real.
3
Defendida em 1992, esta tese foi publicada pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, em 1995, como o livro de título
homônimo.
21
Seguindo por outros caminhos, que não o trilhado por Roberto Cardoso de Oliveira e de
outros etnólogos que se apropriam de sua noção de “fricção interétnica”, Cristiane Lasmar
publica, também em 2005, o livro De volta ao lago de leite – gênero e transformação no Alto
Rio Negro, resultado de sua tese de doutoramento em Antropologia Social pelo Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação de Bruna Franchetto. Essa
autora, sob inspiração do perspectivismo ameríndio proposto por Eduardo Viveiros de Castro,
procura “[...] refletir sobre o movimento dos habitantes do rio Uaupés (afluente do rio Negro)
em direção ao mundo dos brancos, buscando delinear o seu sentido segundo os princípios da
sociocosmologia nativa” (LASMAR, 2005, p. 23). Assim, ao se debruçar sobre a trajetória de
algumas mulheres indígenas, enfatizando suas escolhas matrimonias – que indicam a
preferência por homens brancos -, Lasmar (2005) afirma que os casamentos, de certo modo,
fazem parte de uma estratégia das indígenas para acessarem com maior facilidade o “mundo
dos brancos”, e, com isso, reordenarem sua posição na estrutura familiar.
Em 2006, também tendo o perspectivismo ameríndio como um de seus referenciais
teóricos, Geraldo Andrello publicou Cidade do índio: transformações e cotidiano em Iauratê,
que corresponde a uma versão revisada de sua tese de doutoramento em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas, defendida em 2004, sob orientação de Mauto William
Barbosa de Almeida. Este trabalho consiste em uma etnografia realizada no povoado indígena
multiétnico Iauratê, localizado no médio rio Uaupés, no lado brasileiro da fronteira entre Brasil
e Colômbia. Nele, o esforço do autor reside em tentar “[...] aprender as premissas
sociocosmológicas com base nas quais alguns grupos indígenas do rio Uaupés descrevem e
vivenciam as transformações sociais que se processaram na região desde a colonização”
(ANDRELLO, 2006, p. 17).
No ano seguinte, 2007, Alexandra Barbosa da Silva, com a orientação de João Pacheco
de Oliveira, defendeu sua tese de doutoramento em Antropologia Social pelo Museu
Nacional/UFRJ, sob o título Mais além da “aldeia”: território e redes sociais entre os Guarani
de Mato Grosso do Sul, cujo objetivo foi identificar como as famílias indígenas que vivem em
diferentes localidades – aldeias, núcleos urbanos, fazendas e acampamentos de beira de estrada
– configuram suas redes de relações entre índios e brancos. Sua constatação foi que,
independentemente do local em que residam, o princípio orientador das ações, relações e
condutas, é a família extensa. Deste modo, Barbosa da Silva (2007, p. 09), afirma que, “o fato
de se optar por morar em uma fazenda, cidade ou beira de rodovia, depende, entre outros
fatores, não apenas de uma falta de espaço nas reservas indígenas, mas em grande medida dos
22
recursos que são identificados como significativos e que estão ou não presentes nestes
ambientes”. As relações com não-indígenas, por sua vez, eram estabelecidas com a finalidade
de potencializar recursos para o grupo doméstico.
Em 2008, surge uma sequência de pesquisas sobre indígenas na cidade de Manaus,
realizadas em parceria com o PNCSA. Dessa iniciativa, resultaram as dissertações de mestrado
em Sociedade e Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas, de autoria de
Claudina Azevedo Maximiniano e Glademir Sales dos Santos. A primeira delas, orientada por
Alfredo Wagner Berno de Almeida, sob o título Mulheres indígenas em Manaus: identidade
étnica e organização como forma de construir comunidade, a partir da trajetória de um grupo
de mulheres indígenas do Alto Rio Negro, que vivem em Manaus, se propôs a refletir sobre o
processo de emergência da identidade étnica como resultante do associativismo. Já, o trabalho
de Sales (2008), Identidade étnica: os Sateré-Mawé no bairro Redenção, Manaus-AM,
orientado por Selda Vale da Costa, também teve como foco privilegiado de análise a
elaboração/emergência da identidade étnica, porém, concentrou-se no estudo de uma
comunidade da etnia Sateré-Mawé, lançando luz sobre o processo de territorialização desse
grupo no perímetro urbano.
Dessa mesma iniciativa, no ano de 2009, foi publicado o livro Estigmatização e
Território: mapeamento situacional dos indígenas em Manaus, organizado por Alfredo Wagner
Berno de Almeida e Glademir Sales dos Santos. Composta por 10 artigos, de diferentes autores,
essa coletânea demonstra que, embora haja o risco de os indígenas em contexto urbano serem
tratados como uma “pobreza exótica”, “[...] num sentido contrário, as condições reais de
emergência desta diversidade de expressões culturais que estariam imprimindo uma nova
“fisionomia étnica” às cidades” (ALMEIDA, 2009, p. 11).
Ainda sobre indígenas na cidade de Manaus, também em 2009, temos a obra Índios
Urbanos: processo de reconformação das identidades étnicas indígenas em Manaus, de
Roberto Jaramillo Bernal e a tese de doutoramento em Antropologia Social pela Universidade
de Brasília, Identidades Fluidas: ser e perceber-se como Baré (Aruak) na Manaus
contemporânea, de Juliana Gonçalves Melo sob a orientação de Paul Elliot Little. Bernal (2009,
p. 19) estrutura seu trabalho a partir de três questões norteadoras: “qual é a situação dos índios
em Manaus? Quais são as dinâmicas de ‘reconformação’ da identidade étnica na cidade? Quais
são as formas sociais que esse processo gera? ”. Sobre a identidade étnica propriamente, cabe
destacar que o autor a compreende como um fato social que se constrói por meio da interação
entre grupos sociais diversos. Melo (2009), por sua vez, apresenta um panorama sobre a recente
23
retomada da identidade Baré (Aruak), grupo dado como extinto no final da década de 1970.
Assim, por meio da análise das histórias de vida de um pequeno grupo Baré residente em
Manaus, a autora aponta para “[...] uma noção de identidade essencialmente fluida e dada a
transformações constantes já que construída na interação com o “outro” e transformação do
“outro” em identidade, fato que, inclusive, os transformou nos “índios brancos” (MELO, 2009,
p. 07).
Até então, como bem se nota, todas as pesquisas sobre indígenas em contexto urbano
privilegiaram, de modo geral, populações residentes nas regiões Sudeste, Centro-oeste e Norte
do Brasil. Mesmo aquela voltada ao estudo dos Pankararu (MATTA, 2005), contemplou ao
mesmo tempo, o segmento dessa população que reside na cidade de São Paulo. É em 2010, com
a tese de doutoramento em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco, sob o título
Etnicidade indígena no contexto urbano: uma etnografia sobre os Kalabaça, Kariri, Potiguara,
Tabajara e Tupinambá de Cratéus, de Carmen Lúcia Silva Lima com orientação de Renato
Monteiro Athias, que os índios citadinos do Nordeste, se tornaram alvo de uma maior atenção.
Vale destacar, entretanto, como demonstra Pacheco de Oliveira (1997), que historicamente, os
índios do Nordeste, em decorrência do estigma de “índios misturados”, são objeto de pouco
interesse por parte dos etnólogos brasileiros.
Neste trabalho, Lima (2010, p. 8), busca “[...] analisar a etnicidade dos que compõem
essas coletividades, considerando as implicações do contexto urbano”. Para tanto, relaciona
etnicidade, etnologia e antropologia urbana. Por meio da abordagem das trajetórias dos núcleos
familiares, a autora demonstra como os grupos étnicos são constituídos, destaca a influência de
agentes externos, bem como os diversos contextos de edificação da identidade étnica.
Problematiza também a política indígena e as relações interétnicas, de modo a lançar luz sobre
os conflitos e protagonismos dos sujeitos envolvidos no processo de institucionalização da
etnicidade. Além disso, aborda os impasses para reconhecimento da indianidade e acesso aos
direitos indígenas, em virtude de sua localização em contexto urbano.
Em 2011, a tese de doutoramento em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Santa Catarina, de Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque, sob orientação de Antonella
Tassinari, também privilegiou os Pankararu de São Paulo. Intitulado O regime imagético
Pankararu (tradução intercultural na cidade de São Paulo), este estudo se dedicou à análise
da emergência da performance e o ingresso do praiá nesse grupo de indígenas urbanos. Para
Albuquerque (2011), em decorrência do modelo “museu” como paradigma da etnicidade, essa
população é invisibilizada enquanto comunidade etnicamente diferenciada, e, por isso, faz da
24
performance uma forma de tradução intercultural contra-hegemônica, cuja finalidade é dotá-
los de capital simbólico. Deste modo, ao afirmarem sua condição étnica por meio da dança dos
praiá, os Pankararu de São Paulo, visam superar o “preconceito de autencidade”, que os rotula
de assimilados, aculturados e desaldeados.
No ano de 2012, na Universidade de Brasília, Eduardo Soares Nunes, sob orientação de
Marcela Coelho de Souza, defendeu sua dissertação de mestrado em Antropologia Social
intitulada No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformações entre os Karajá de
Buridina (Aruanã-GO). Esse autor, assim como Lasmar (2005) e Andrello (2006), adota como
referencial teórico o perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro. Os Karajá de Buridina,
segundo Nunes (2012), há décadas casam-se com os brancos, por isso, nesse estudo, o autor
elabora a ideia de mistura para se referir tanto aos filhos de tais casamentos, como também,
aos índios puros. Dessa mistura, para ele, não resulta uma população mestiça, mas sim uma
comunidade composta por pessoas misturadas.
Já há algum tempo, o Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da Universidade de São
Paulo também tem se dedicado ao estudo de populações indígenas em contexto urbano, tendo
realizado algumas edições do Seminário de Etnologia Urbana4. Estas pesquisas, de modo
geral, visam compreender a relação entre cosmologias e formas de políticas ameríndias com a
cidade, adotando, sobretudo, as ideias de trajetos e circuitos5 desenvolvidas por José
Guilherme Magnani (2012; 2013).
Vinculado ao NAU, e com orientação de José Guilherme Magnani, José Agnello de
Andrade, defendeu, em 2012, sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, sob o título
Indigenização da cidade: etnografia do circuito Sateré-Mawé em Manaus-AM e arredores.
Nesse estudo, Andrade (2012), recorre à noção de indigenização de Sahlins e procura explorar
as possibilidades que seu uso oferece para a compreensão da relação entre cosmologias e o
contexto urbano por meio da metodologia denominada “de perto e de dentro”6 de Magnani.
No ano seguinte, em 2013, o NAU em parceria com a Departamento de Antropologia
da UFAM, publicou a coletânea Paisagens Ameríndias: lugares, circuitos e modos de vida na
4
Os trabalhos apresentados na edição de 2012 podem ser visualizados no site do evento
(http://seminariodeetnologiaurbana.blogspot.com.br/).
5
Por trajeto esse autor refere-se “[...] aos fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das
manchas urbanas” (MAGNANI; ANDRADE, 2013, p. 48). Essas manchas, por sua vez, são áreas contíguas da
cidade, dotadas de equipamentos, que marcam limites ou viabilizam uma atividade predominante. Já, a noção de
circuito é empregada pelo autor com a finalidade de descrever “[...] um uso do espaço e dos equipamentos urbanos
que possibilita o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos, porém de
forma mais independente com o espaço, sem se ater à contiguidade [...]” (MAGNANI; ANDRADE, 2013, p. 48).
6
Ver mais em MAGNANI, José Guilherme. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, vol. 17, n. 49, 2002.
25
Amazônia, organizada por Marta Amoroso e Gilton Mendes dos Santos. Essa coletânea é
composta por quinze artigos, que “[...] apresentam os resultados de pesquisas em diferentes
níveis acadêmicos, nas áreas de etnologia, história indígena e antropologia urbana”, e
concentram-se, sobretudo, em dois tópicos principais: “os circuitos e trajetos enquanto
inscrições espaciais e temporais das unidades sociais, e os modos de cultivo do ambiente nesta
vasta região, resultantes das estabilizações que se produzem dos afastamentos diferenciais da
humanidade com espíritos, animais, plantas, minerais, objetos e fenômenos” (AMOROSO;
SANTOS, 2013, p. 08).
Sob influência da família de categorias – pedaço, mancha, trajeto e circuito7 – cunhadas
por José Guilherme Magnani, Michely Aline Espíndola, à época, mestranda em Antropologia
Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, iniciou sua pesquisa sobre jovens
Terena em Campo Grande. Contudo, logo no início do trabalho de campo, a autora relata ter
constatado que tais ferramentas analíticas, naquele contexto, não funcionariam da maneira
como foram propostas, fazendo com que mudasse o foco da pesquisa. O resultado dessa
pesquisa foi divulgado por meio de sua dissertação de mestrado, Jovens Terena na cidade de
Campo Grande (MS): Política e geração, defendida no ano de 2013 sob a orientação de
Edmundo Marcelo Mendes Pereira. A partir desse reordenamento analítico e metodológico,
Espíndola (2013) concentrou na trajetória de seis jovens Terena, analisando suas diferentes
maneiras de significar o espaço urbano e vivenciar esse cotidiano.
Também no ano de 2013, Aldenor Moçambite da Silva, um indígena Tikuna, com
orientação de Artemis de Araújo Soares, defendeu sua dissertação de mestrado em Sociedade
e Cultura na Amazônia, pela UFAM, sob o título A inserção dos Tikuna no tecido social
urbano de Manaus. Nesse trabalho, Silva (2013) analisa como a comunidade Tikuna
Wotchimaücü, desde o início do processo de deslocamento para a cidade na década de 1980,
tem se inserido nesse novo tecido social. Deste modo, o autor conclui que “[...] os Tikuna
entenderam o mundo que os cerca e o processo desse “novo viver” (SILVA, 2013, p. 08), e,
por isso, têm buscado se capacitar e qualificar, apesar de todos os desafios. Além disso, destaca
também a importância da Associação Comunitária para a preservação cultural desse povo em
Manaus.
Por fim, o trabalho mais recente sobre essa temática do qual tenho conhecimento, é a
tese de doutoramento em Antropologia Social pela UFSC, Circulação e permanência de
7
Ver mais em MAGNANI, J.G.; ANDRADE, J. A. Uma experiência de Etnologia Urbana: a presença indígena
em cidade da Amazônia. In: AMOROSO, M.; SANTOS, G.M. (orgs) Paisagens Ameríndias: lugares, circuitos e
modos de vida na Amazônia. São Paulo: Terceiro nome, 2013.
26
indígenas Kaingang e Guarani na cidade de Florianópolis, Santa Catarina: Desafiando
ausências, paradoxos e outras imagens, de autoria de Sandra Portela Garcia, defendida em
2015 sob orientação de Esther Jean Langdon,. Nesse estudo a autora demonstra existirem
diversas dinâmicas de circulação e permanência por meio das quais essa população se apropria
e experimenta a cidade, não só criando e recriando suas identidades, mas também o espaço
geográfico que ocupam.
Estou certa de que não consegui contemplar a totalidade de produções antropológicas
sobre essa temática, contudo, a partir desses trabalhos aqui listados, apesar de sua imensa
diversidade, é possível percebermos que os estudos sobre indígenas em contexto urbano
realizados pela antropologia brasileira, estruturam-se, em termos gerais, a partir três eixos
principais: questões de identidade e etnicidade, com base em Roberto Cardoso de Oliveira e
João Pacheco de Oliveira; o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro; e, as
noções de trajeto e circuito de José Guilherme Magnani.
A presente dissertação, como se virá adiante, insere-se nesse primeiro eixo,
contemplando, sobretudo, questões referentes ao processo de construção, apropriação e
expropriação identitária de mulheres indígenas, bem como de seus descendentes, em face do
casamento com brancos. Tais casamentos, por sua vez, aqui são usados como metáforas para
pensar o “encontro colonial” em sua dimensão mais individualizadora e cotidiana, em que a
interação entre tutor e tutelado implica em uma troca cultural bilateral (PACHECO DE
OLIVEIRA, 2007). Deste modo, ao invés de interpretá-los a partir da sociocosmologia
indígena, procuro pensa-los como uma modalidade de encontro intercultural, em que ambos
os envolvidos são afetados pelo processo de intercâmbio (PACHECO DE OLIVEIRA, 2007;
WITTMANN, 2007), muito embora esse intercâmbio seja marcado por relações desiguais de
poder, especialmente no que toca às dinâmicas de gênero e raça (DAS, 1996; MAHMOOD,
2006; MCCLINTOCK, 2010).
Neste trabalho, ainda, contraponho-me à crítica de Magnani; Andrade (2013), de que
abordar a presença de indígenas nas cidades pela via do processo periferização urbana em que,
de modo geral, se encontra essa população, seja pouco produtivo. Para os autores, ao invés
dessa abordagem, deve-se buscar entender as seguintes perguntas: “o que é a cidade, na
concepção dos diferentes coletivos indígenas que nela habitam? Que transformações sua
presença acarreta na própria dinâmica da cidade? Como nela estabelecem seus vínculos,
estratégias e alianças? Quais são seus trajetos no tecido urbano e que instituições acionam na
busca da manutenção de um modo de vida diferenciado? ” (MAGNANI; ANDRADE, 2013,
27
p. 46). Tais questionamentos, ainda que tenham significativa importância, devem ser
precedidos por outros, que informem antes de tudo, sobre qual índio estamos falando. Por que
a cidade seria algo tão indecifrável para esses indígenas, como sugerem as indagações dos
autores? E, o que seria esse modo de vida diferenciado? Não estaríamos aqui diante de
problematizações pautadas no “modelo museu de autencidade” de que fala Albuquerque
(2011)? Em minha concepção, deixar de considerar as circunstâncias materiais em que essas
vidas são forjadas, seria deixar de lado aspectos fundamentais para o entendimento do
cotidiano dessa população no contexto urbano. E, sendo essas circunstâncias materiais
justamente o processo de periferização urbana, não há como deixar de falar sobre ele.
Por fim, julgo relevante dizer que minha chegada a este tema resulta de um percurso
iniciado ainda durante a graduação, quando, no 4º período do curso de Ciências Sociais na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ingressei, como bolsista de iniciação científica,
na pesquisa Desenvolvimento, agronegócio e territorialização: políticas (bio) energéticas e
conflitos étnicos e agrários no Brasil (FERREIRA, 2010; 2011; 2013), coordenada por Andrey
Cordeiro Ferreira, professor do CPDA/UFRRJ. Essa pesquisa se propunha a analisar os
processos de desenvolvimento, agronegócio e territorialização e seus efeitos sobre os grupos
indígenas dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, deste modo, colocando-me em
contato com uma vasta bibliografia sobre os povos indígenas no Brasil, sobretudo, da região
Centro-oeste. A partir dessa experiência, passei a me interessar pelas dinâmicas em torno da
reivindicação da identidade étnica enquanto estratégia política para acessar direitos
específicos. Evidente naquele momento, era a força do fenômeno de etnogênese, com uma
população indígena superior a 800 mil indivíduos autodeclarados, segundo as estatísticas
oficiais.
Em contrapartida, crescente também era – e ainda é – o movimento político de
resistência às demandas indígenas, que se consolidou, no Congresso Nacional, com a formação
de um bloco de parlamentares que fazem oposição direta aos direitos indígenas assegurados
pela Constituição Federal de 1988. À época, entre as ofensivas legislativas contra os povos
indígenas em tramitação, estava o Projeto de Lei 1057, voltado à criminalização do infanticídio
indígena, que se tornou foco de análise de minha monografia de conclusão de curso (ROSA,
2012; 2013; 2014).
No mestrado, ainda mantendo esses mesmos interesses no que toca à etnicidade, o
estudo de casamentos interétnicos de mulheres indígenas com homens brancos, mostrou-se um
campo fértil para pensar essas dinâmicas em uma perspectiva mais individualizadora e cotidiana
28
sustentada, sobretudo, no interior das relações familiares. Ao mesmo tempo, tornou-se
instigante o fato de a incorporação de indígenas às famílias brancas, ser um tema historicamente
pouco investigado pelas ciências sociais, que de modo geral, analisa a miscigenação apenas a
partir do entrecruzamento de negros e brancos, como enfatiza Pacheco de Oliveira (2014).
Assim, Manaus, com sua expressiva concentração de índios em contexto urbano, cujas
etnias e origens são inúmeras, apresentou-se como um local interessante para a realização da
pesquisa de campo, embora, até lá chegar, não conhecesse os movimentos em torno das
reivindicações territoriais na cidade.
Esta dissertação, portanto, em face de suas diversas limitações, sobretudo, de ordem
cronológica, consiste em uma análise preliminar de fenômenos complexos, que requerem uma
maior problematização em um momento futuro.
29
deslocamento e transporte público, alteração dos hábitos alimentares e adaptação à economia
monetária. Em seguida, também por meio dessas narrativas, problematizo a ideia de um
descompasso entre a lei e a cultura no que toca à inserção de crianças no trabalho doméstico
sob o preceito de ajuda mútua, prática que juridicamente se configura como crime, mas que é
recorrente e culturalmente aceitável nessa região.
No terceiro capítulo, por sua vez, adentro efetivamente no tema dos casamentos
interétnicos de mulheres indígenas. Aqui, a partir das trajetórias de dona Ana, Analice, Adriana
e Patrícia, mãe e filhas, filhas e esposas de não-indígenas, reflito sobre as motivações para o
estabelecimento dessa modalidade de relação conjugal. Analiso também como a analogia entre
corpo feminino e a terra conquistada influenciou as interpretações sobre a vida na América
Portuguesa, de modo a erotizar as mulheres indígenas. Na sequência, procuro construir a
sociogênese dos casamentos interétnicos desde o Período Colonial até contextos recentes.
Por fim, no quarto capítulo, a intenção é compreender como as identidades individuais
– e me refiro aqui à identidade étnica, especificamente – são acionadas ou ocultadas em relação
às características e dinâmicas familiares. Para tanto, inicialmente apresento alguns casos de
incorporação de indígenas às famílias brancas por meio de adoção – já que sobre os casamentos,
estritamente, tais relatos encontram-se sobretudo no campo da literatura, com as personagens
de Catarina e Iracema, que inspiraram o título deste trabalho. Na sequência, por meio das
trajetórias de Mabel, Adriana e Patrícia, todas casadas com homens brancos, reflito sobre o peso
atribuído à identidade étnica no interior das relações familiares. Tais experiências demonstram
que, ao contrário de outrora em que o casamento entre indígenas e brancos implicava em uma
absorção completa ou negação da identidade indígena em favor da não-indígena, atualmente,
essas mulheres, bem como seus filhos, se autoidentificam e são identificadas pelos maridos
como indígenas – inclusive, alguns deles também assim se percebem.
Considerações gerais
30
O primeiro deles refere-se à opção deliberada pelo uso, no texto etnográfico, dos nomes
verdadeiros de minhas interlocutoras. Ainda que, à época do trabalho de campo, quando as
consultei todas responderam-me afirmativamente – já que “não tinham nada a esconder” -,
durante a escrita, em muitos momentos me senti completamente indecisa sobre quais seriam os
limites éticos dessa escolha. Estou certa de que quero poupá-las de qualquer constrangimento
que possa derivar deste trabalho, contudo, depois de muito refletir, convenci-me de que, como
já advertira Fonseca (2007, p. 04), o anonimato, não necessariamente, é um sinal de respeito,
“pelo contrário, mascarar nomes de pessoas ou de determinada comunidade pode trazer a
mesma impressão que trazem os rostos borrados ou as tarjas pretas cobrindo os olhos que vemos
em filmes e fotos de jovens infratores. Parece designar justamente as pessoas que têm algo a
esconder”. Por isso, nessa situação, omitir seus nomes, seria torna-las menos dignas de serem
vistas – logo elas, que se orgulhavam por não terem nada a esconder -, seria, em certo sentido,
torna-las coadjuvantes de suas próprias vidas, narrando suas histórias por meio de personagens
fictícias, que nada representam para elas ou para mim. Seria, novamente, lhes tirar o direito de
fala e a possibilidade de serem ouvidas.
Também com o intuito de não invisibiliza-las ou silencia-las, optei pela reprodução de
falas extensas, ainda que essa escolha possa suscitar no leitor ou leitora, o interesse por
caminhos que, nessa ocasião, não percorri. Com isso, procuro dar visibilidade às pessoas
concretas, cujas histórias de vida permitem-me esboçar aqui alguma interpretação
antropológica, valorizando, dessa forma, o aspecto subjetivo do encontro etnográfico. São
experiências, que, acredito, perderiam parte de sua riqueza caso fossem simplesmente por mim
reescritas. Reconheço, entretanto, “[...] que esta tática apenas começa a romper a autoridade
monofônica” (CLIFFORD, 2002, p. 54), estando longe de expressar qualquer possibilidade de
uma heteroglossia na construção etnográfica. Ainda que essas falas apareçam aqui em espaços
autônomos e transcritas de forma extensa, elas são alocadas por mim de acordo com o meu
planejamento para o texto, mantendo, deste modo, a desigualdade política, que subjaz toda
etnografia, entre quem descreve e quem é descrito.
A última consideração, deve-se a opção por histórias de vida, privilegiando, sobretudo,
o universo doméstico e pessoal dessas trajetórias. Penso que, uma vez que este trabalho se
propõe a refletir sobre matrimônio e relações familiares – esferas da vida privada – o recurso
às histórias de vida se faz apropriado por possibilitar a construção de um diálogo entre o
pesquisador e os sujeitos estudados. Por meio desse diálogo, evita-se não só a violência de lhes
impor categorias externas aos seus sistemas de valores, como também lhes dá as condições “[...]
31
de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a problemática, que
através deles, nos propomos a analisar” (DEBERT, 1986, p. 142).
Por fim, deixo claro que, nenhuma dessas escolhas me eximem de minha
responsabilidade autoral e dos possíveis indesejáveis que possam advir deste trabalho.
32
CAPÍTULO 1 – LOCALIZANDO-OS: ONDE ESTÃO, QUANTOS SÃO, COMO
VIVEM?
8
É consenso entre os estudiosos sobre o tema que, os dados sobre índios urbanos obtidos pelos pelo IBGE, são
subestimados em todas as regiões do país.
9
A região Nordeste apresenta a maior participação de indígenas residentes em áreas urbanas, com 33,7%.
33
Município Urbana
São Paulo 11.918
São Gabriel da Cachoeira 11.016
Salvador 7.560
Rio de Janeiro 6.764
Boa Vista 6.072
Brasília 5.941
Campo Grande 5.657
Pesqueira 4.048
Manaus 3.837
Recife 3.665
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.
A cidade de Manaus, segundo o Censo 2010, ocupa o 9º lugar no ranking das cidades
com maiores populações indígenas do país, com um total de 3.837 indivíduos autodeclarados.
Na região Norte, onde se concentra o maior percentual (37,4%) da população indígena total,
Manaus é a 3ª cidade com maior contingente indígena, estando atrás apenas de São Gabriel da
Cachoeira – AM e Boa Vista – RR.
Nas últimas três décadas, período que marca a inserção da categoria indígena no quesito
cor/raça dos Censos Demográficos do IBGE, registra-se uma constante oscilação na população
indígena residente em Manaus – entre os anos de 1991 e 2000, houve um crescimento
vertiginoso de 727,5%, que acabou caindo em 50,7% de 2000 para 2010. Contudo, conforme
destaca Silva (2013), há uma divergência entre os dados divulgados pelo IBGE e os dados
estimados pelo Movimento Indígena, que afirma residirem em Manaus, aproximadamente, 30
mil índios.
6000
3.837
4000
2000 941
0
1991 2000 2010
34
Bernal (2009) em seu estudo sobre índios em Manaus, faz menção a algumas tentativas
de recensear essa população, que por dificuldades metodológicas e financeiras, limitaram-se à
pesquisa amostral, estimando, a partir de 145 domicílios visitados, um total de 8.500 índios na
cidade, isso em 1999. Mainbourg et al (2002), por sua vez, cita estimativas divulgas pela
Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que aponta para
algo entre 15 e 20 mil índios em Manaus, no início dos anos 2000. Já, para a Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), atualmente, o número de indígenas na cidade seria algo em torno de 50 mil
indivíduos10.
Não há, portanto, como bem assevera Bernal (2009, p. 35) “[...] nenhum dado
quantitativo credível e tecnicamente irrepreensível referente ao número de indígenas vivendo
em Manaus”, uma vez que, “os números mudam em função dos critérios de “definição de” ou
de “adesão a” Índio”, o que nos impossibilita de afirmar com exatidão o tamanho real dessa
população.
Para Melo (2012), no entanto, a dificuldade na captação dessas informações pode estar
ligada ao fato de a presença indígena em Manaus ser quase sempre ocultada. Segundo a autora,
“ao pesquisar nesta cidade imediatamente surgirá uma primeira dificuldade. O simples fato de
perguntar a uma pessoa acerca de sua identidade étnica corre o risco de ser interpretado como
uma ofensa. Se a indagação é aceita, a resposta é negativa”11 (MELO, 2012, p. 3).
De todo modo, embora não saibamos apontar com exatidão o tamanho da população
indígena urbana, sabe-se que, os índios em Manaus, em decorrência da omissão do órgão
indigenista responsável no que se refere à atenção de indígenas na cidade, seguida pela omissão
dos poderes públicos em face do fornecimento dos serviços básicos essenciais ao bem-estar
físico, psicológico e social, encontram-se à margem da cidade legal, estando impossibilitados
de usufruir do aparelhamento urbano.
Historicamente, a política indigenista tem como foco os indígenas que vivem nas Terras
Indígenas, que, de modo geral, situam-se na zona rural, assim, deixando desassistidos aqueles
que residem em contextos urbanos. Além disso, “a legislação brasileira também não trata
especificamente da questão dos indígenas que vivem fora das TI’s, os quais são às vezes
chamados, erroneamente, de “índios desaldeados” (NAKASHIMA E ALBURQUERQUE,
10
Este é um número estimado, pois o órgão não dispõe de dados concretos.
11
Devo destacar, entretanto, que ao decorrer de minha pesquisa de campo não me deparei com a situação descrita
pela autora, isso porque, a disputa territorial pela área ocupada é pautada no pertencimento étnico das pessoas que
lá residem. Ainda assim, foram recorrentes as situações em que esses indígenas falaram sobre já terem se sentido
envergonhados por sua identidade étnica e, por isso, a negavam.
35
2011, p. 184). Essa concepção resulta, como assevera Nunes (2010, p. 11), da associação
equivocada “[...] entre índios e floresta/natureza, por um lado, e não-índios e
cidade/civilização, por outro”. Sob essa perspectiva, prossegue o autor, “[...] a passagem
(lógica) dos indígenas ao ambiente urbano tende a ser pensado como um processo de
“desagregação cultural”, aculturação, tornar-se igual ao outro e, em consequência, perder-se de
seu próprio ser” (NUNES, 2010, p. 11). Desconsidera-se, deste modo, a gama de fatores
históricos de opressão e discriminação que permeiam o processo de saída dos indígenas de suas
terras tradicionais.
Conforme o relatório “Housing Indigenous Peoples in Cities” publicado pela ONU-
HABITAT (2009), o número de indígenas vivendo em áreas urbanas têm crescido
mundialmente, sendo, inclusive, superior à população das áreas rurais em países como Canadá
e Chile. Embora em muitos casos essa migração possa ser voluntária, de modo geral, ela está
estreitamente relacionada à violação de direitos humanos nos territórios tradicionais.
36
virtude de conflitos e mortes); 27% educação; e 13% por falta de assistência à saúde e questões
concernentes ao uso da terra12.
Entre minhas interlocutoras, as condições adversas de suas comunidades de origem, com
suas roças sucumbindo às cheias dos rios, a falta de escola para os filhos, a inexistência de
trabalho para si e seus maridos, bem como a desatenção à saúde, que não raro ceifava-lhes a
vida de um familiar, são apontados como os motivos pelos quais decidiram mudar para a cidade.
Dona Maria, mãe do atual cacique do assentamento Povo Indígena do Sol Nascente, por
exemplo, contou-me que perdera um filho com sarampo, e que não raro, as doenças abatiam
famílias inteiras.
Meu filho adoeceu, o depois dele [Eledilson], morreu meu filho. Apareceu um tipo de
doença, sarampo, e a gente sai pra cá, a gente foi lá pra dentro do igarapé. Não foi só
uma pessoa que morreu, não. Acabava com a família. De uma virada assim, acabou
uma família todinho, e desse meio meu filho foi também, porque a falta de médico, né.
Fica difícil assim o interior, assim, isolado, né, porque não tem e até que a gente vai à
canoa remando, né, pra chegar onde tem socorro, morre a pessoa. Aqui não. Aqui você
adoeceu, se não tem como você ir, liga, chama uma ambulância, né, leva rapidinho pro
Pronto Socorro, e lá, lá... aqui é bom por isso (Dona Maria, indígena kaixana, 69 anos).
A cidade surge-lhes então, como o horizonte de uma vida melhor. Porém, a vida nos
centros urbanos não suprime a importância que suas comunidades de origem, enquanto
referencial simbólico, exercem sobre essa população. Seus relatos, permeados por certa
nostalgia e conformismo à vida na cidade, tornam evidente a incompletude dessa adaptação.
Eu sinto falta, muita falta, é por causo que quando a gente tava lá eu ia pro igapó,
pegava um peixe, botava na malhadeira, tarrafeava, pegava um tambaqui fresquinho,
uns pacu e coisa, e aí lá você pode até fazer o peixe até sem verdura, que você sente o
gosto do peixe naquele caldo, entendeu? E aqui já não, parece assim que o peixe está
muito tempo na geladeira, no congelador e no gelo, que você não sente mais aquele
paladar dele gostoso (Mabel, etnia Mura, 36 anos).
12
Os resultados dessa pesquisa, sob título “Indígenas no Brasil – Demandas dos povos e percepções da Opinião
Pública”, encontra-se disponível no sítio da instituição (http://csbh.fpabramo.org.br/node/7986). As respostas têm
caráter espontâneo e múltiplo, por isso a soma total dos percentuais de cada variável excede 100%.
37
concentração de uma determinada etnia, como é o caso, por exemplo, dos Tikuna no bairro
Cidade de Deus, na Zona Norte.
Também na Zona Norte, no bairro Cidade Nova, fica localizada a ocupação irregular de
caráter multiétnico, identificada como Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente, onde
realizei a pesquisa de campo e sobre o qual falarei mais adiante. No bairro Tarumã, Zona Oeste,
há outra ocupação também multiétnica, identificada como Assentamento Indígena Parque das
Tribos. Nessa mesma região, no bairro Compensa, há famílias Kambeba. Na Zona Centro-
Oeste, no bairro Redenção, há uma comunidade Sateré-Mawé. Na Zona Leste, no bairro Jorge
Teixeira, há uma expressiva concentração de indígenas de diferentes etnias, e no bairro
Puraquequera, há uma comunidade Kokama. Contudo, ainda que estejam distribuídos pelas
diferentes regiões da cidade, essas populações, de modo geral, instalam-se em áreas de
periferias, ou nos limites entre a cidade e a zona rural, separando-se assim de bairros nobres da
mesma região, como, por exemplo, o bairro Ponta Negra, que faz divisa com o Tarumã na Zona
Oeste.
38
Fonte: ALMEIDA; SANTOS (2009, p. 218).
39
Assim, motivados pela certeza de que na cidade terão acesso à educação, saúde e
emprego, os indígenas, ao chegarem em Manaus, passam a engrossar a massa de pobres e
excluídos, que como demonstra Almeida (2009, p. 10), acaba por diluir a “[...] força da
expressão dos fatores étnicos nas cidades”. Deste modo, a fim vencerem essa invisibilidade
étnica, os indígenas têm se organizado através uma rede de associações, “[...] cujas iniciativas
e mobilizações evidenciam uma intensa presença indígena, cuja relevância cultural começa a
se expressar tanto em termos demográficos, quanto em termos políticos” (MAXIMIANO, 2009,
p. 79). Tais organizações, nas palavras de Bernal (2009, p. 193), “[...] dão uma forma pública
clara às fronteiras que definem, por contraste, os contornos da identidade étnica nas relações
urbanas: elas tornam visível o invisível”.
Atualmente, conforme dados apurados pela Coordenação Regional da FUNAI, existem,
em Manaus, um total de 37 associações/comunidades indígenas, algumas comportando apenas
famílias extensas, que mesmo não estando todas legalmente registradas, se autorrepresentam
enquanto um coletivo organizado. A principal pauta dessas associações refere-se, sobretudo, ao
direito à moradia e mobilizações de ocupações de terrenos vagos.
40
12 Comunidade Indígena do Bairro da Mura Zona Centro-Sul
União
13 Comunidade Ramal do Uberê Tariano/ Kokama/ Zona Leste
Tukano/ Tuiuka
14 Comunidade Sateré I’Apyrehyt Sateré-Mawé/ Mura Zona Centro-Sul
15 Comunidade Munduruku do Ramal do Munduruku Zona Leste
Brasileirinho
16 Comunidade Indígena Waikiru Sateré-Mawé/ Zona Centro-Sul
Munduruku
17 Comunidade Indígena Apurinã do Val Apurinã Zona Leste
Paraiso
18 Família Indígena Dessana Dessana Zona Leste
19 Associação Kokama da Grande Vitória Kokama Zona Leste
20 Wotchimaucu Tikuna Zona Norte
21 Família Indígena Tariano Tariano Zona Leste
22 Omism Waty Amã Sateré-Mawé Zona Centro-Sul
23 Associação das Mulheres Indígenas Kambeba Zona Oeste
Kambeba - AMIK
24 Famílias Indígenas Munduruku Munduruku Zona Leste
25 Icrasim Kambeba Zona Centro-Oeste
26 Kokama da Garagem Kokama Zona Sul
27 Comunidade Deni da Cidade de Deus Deni Zona Norte
28 Famílias Indígenas Miranha Miranha Zona Leste
29 Bairro das Nações Indígenas Kokama/ Mura/ Zona Oeste
Tikuna/ Miranha
30 Comunidade Nossa Vitória - Zona Leste
31 Karapana do Tarumã-açu Karapana Zona Oeste
32 Kokama da Matinha Kokama Zona Sul
33 Kokama do João Paulo II Kokama Zona Leste
34 Kokama Karawara Kokama -
35 Aaciam Tukano Zona Norte
36 Kokama Conjunto Cidadão VII Kokama Zona Norte
37 Munduruku da Grande Circular Munduruku Zona Leste
41
Fonte: ALMEIDA; SANTOS (2009, p. 217).
42
Na cidade, em virtude da divisão social do trabalho e de suas respectivas exigências de
especializações funcionais dos indivíduos, os indígenas, com pouco ou nenhum grau de
escolaridade, tornam-se mão de obra barata e desqualificada, e não raro, recebem menos de um
salário mínimo por mês. As mulheres, via de regra, inserem-se na dinâmica do trabalho
doméstico, que em muitos casos, rende-lhes apenas moradia e alimentação na casa do patrão e,
em ocasiões esparsas, algumas vestimentas.
Consequentemente, a moradia no contexto urbano, surge-lhes como um dos mais
expressivos problemas, pois em virtude da baixa renda mensal, veem-se impossibilitados de
pagar aluguel. Sem saída, juntam-se a outras famílias indígenas que residem em ocupações
irregulares instaladas em áreas públicas, que identificadas como comunidades ou aldeias
urbanas “[...] constituem-se de habitações precárias, edificadas em áreas de risco e sujeitas a
acidentes naturais. Foram erguidas em planos inclinados e barrancos ou em áreas palafitadas e
passíveis de alagação, com dificuldade de acesso a serviços básicos” (ALMEIDA, 2009, p. 25).
Além das precárias condições, o futuro nessas ocupações irregulares é incerto, pois a qualquer
momento pode haver a reintegração de posse, marcada, de modo geral, por ações violentas por
parte dos policiais13.
De acordo com a FUNAI, atualmente, existem, na cidade de Manaus, 05 ocupações
indígenas, envolvendo aproximadamente 900 famílias14. Durante a pesquisa de campo,
concentrei-me especificamente em uma, o “Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente”, na
Zona Norte da cidade. No entanto, cheguei a visitar outra ocupação, o “Parque das tribos”, no
Ramal da Anaconda, na Zona Oeste e, conheci moradores da comunidade “Nações Indígenas”,
do bairro Tarumã, também Zona Oeste.
A comunidade “Nações Indígenas” existe há 04 anos, sendo a mais antiga ocupação
indígena da cidade. Ali vivem hoje aproximadamente 1.300 indígenas, de 12 etnias.
Recentemente, às vésperas da comemoração do último Dia do Índio, a comunidade foi
comunicada sobre a existência de um mandato de reintegração de posse em favor da Prefeitura
de Manaus. Desde então, o clima no local é de tensão.
A ocupação do “Parque das Tribos”, por sua vez, é mais recente, remonta a abril de
2013, porém, atualmente vive o drama da segunda Decisão Judicial de reintegração de posse
em favor de Hélio Carlos de Carli e Márcia Cristina Lopes, emitida pela 3ª Vara da Justiça
13
Um caso emblemático de violência policial perpetrada contra os indígenas durante ações despejo forçado, foi a
da ocupação denominada Lagoa Azul II, localizada na rodovia AM-010 km 11, em 11 de março de 2008.
14
Com uma média de 6 pessoas por família, seriam um total de 54 mil indígenas, somente vivendo em ocupações
irregulares.
43
Federal do Amazonas, em 29 de julho de 2015. Residem no local um total de 200 famílias
indígenas, pertencentes a 17 etnias.
Imagens 1 e 2: Casas no Assentamento Indígena Parque das Tribos. Por Marlise Rosa, 11 fev. 2015| Imagem 3:
Ruínas de uma casa demolida após reintegração de posse no Assentamento Indígena Par que das Tribos. Por
Marlise Rosa, 11 fev. 2015| Imagem 4: Casa reconstruída após ser demolida em decorrência de reintegração de
posse no Assentamento Indígena Parque das Tribos. Marlise Rosa, 11 fev. 2015| Imagens 5 e 6: Casas no
Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
44
1.1.1 Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente
46
Essa convivência, no entanto, é permeada por uma série de conflitos, que não raro
resultam em enfrentamentos violentos e agressões físicas. Tais conflitos decorrem,
principalmente, da desaprovação da comercialização de terra por parte do cacique Eledilson, e
da maioria dos indígenas que ali vivem. Além disso, afirmam que a prática recorrente de venda
dos terrenos por parte de não-indígenas e até mesmo de indígenas a eles ligados, dificulta a
estabilidade do grupo de moradores.
As famílias indígenas que ali vivem, subdividem-se em 11 etnias originárias de
diferentes regiões do estado do Amazonas: Alto Rio Negro, Alto e Médio Solimões, Baixo
Purus e Baixo e Médio Amazonas.
A migração para a cidade teria sido motivada pela necessidade de trabalho e acesso à
educação para os filhos. Há casos, no entanto, de indivíduos já nascidos em contexto urbano,
porém, inseridos nessa mesma dinâmica de migração para as cidades em busca de melhores
condições de vida.
As mulheres contam que, na maioria das vezes, só conseguem emprego como
empregada doméstica, e não raro, já trabalharam apenas em troca de moradia, roupas e
alimentos. Muitas delas se declaram analfabetas, e nunca tiveram a Carteira de Trabalho e
Previdência Social assinada.
47
De modo geral, cada família tem entre 03 e 05 filhos, que, atualmente ainda são crianças.
Incapacitadas de trabalhar fora em virtude do cuidado com os filhos, as mulheres enfatizam a
importância para a renda familiar do valor recebido através do Programa do Governo Federal
“Bolsa Família”. Além disso, destacam a importância de não estarem pagando aluguel, pois
assim esse dinheiro pode ser usado para a compra de alimentos. A fim de complementarem a
renda, algumas mulheres fazem artesanatos e produtos alimentícios, como pães e salgados para
vender.
Entre os homens também é grande a incidência de casos de trabalho sem registro, ainda
assim, são os principais provedores da família. As funções exercidas são das mais diversas,
porém, na maioria dos casos tratam-se de atividades que exigem pouca ou nenhuma
qualificação.
Entre os idosos são recorrentes os relatos referentes à dificuldade para se aposentar em
decorrência da ausência de documentação exigida, ou em virtude da divergência de informações
entre um documento e outro.
Não há escola nem unidade de saúde no interior do assentamento. As crianças
frequentam escolas em bairros próximos, contudo, as mulheres dizem que é comum não
conseguirem vaga para todos os filhos em uma mesma escola.
Com relação ao atendimento à saúde, a principal reclamação consiste na dificuldade em
conseguir atendimento médico em virtude da irregularidade da área em que residem. Ao
procurarem as unidades de saúde, são informados que seu endereço por ser uma ocupação
irregular, não faz parte da área de abrangência do atendimento, por isso, não podem ser
atendidas. A fim de driblar essas barreiras, em muitos casos, confessam utilizar endereços de
familiares que residem em outros bairros, ou então, declarações emitidas por caciques de sua
família que ainda vivem em aldeias.
As casas são construídas com diferentes materiais, tais como, madeira, compensados,
lonas e tijolos. Seu interior, na maioria dos casos, não possui mais de um cômodo, estando
cozinha e quarto conjugados. Quando há a separação entre os cômodos, o quarto do casal e dos
filhos ocupa o mesmo espaço. Comumente, há uma tentativa de divisória realizada com cortinas
afixadas no teto.
Todas as casas são tidas por seus moradores como inacabadas, que além da falta de
recursos, alegam a insegurança com relação à irregularidade da ocupação. Em ocasiões de fortes
chuvas, reclamam da ocorrência de vazamentos nos telhados, ou entrada de água pelas laterais
cobertas por lonas.
48
Os móveis são velhos, e muitas vezes, as mesas e bancos são construídos com restos de
madeira. Em algumas casas não há mesas, cadeiras ou similares, e as refeições são realizadas
no chão, sentados em círculo.
A instalação elétrica é irregular, bem como o abastecimento de água, que resultam de
instalações clandestinas realizadas pelo próprio morador. Geralmente, o encanamento d’água
chega até o quintal da casa, onde constroem um “jirau” – uma espécie de bancada de madeira
utilizada para lavar roupa e utensílios de cozinha.
Os banheiros ficam nos fundos das casas, e com exceção de algumas famílias extensas,
que compartilham o mesmo banheiro, cada casa possuiu o seu. São fossas no solo cavadas
manualmente sobre a qual constroem uma estrutura de madeira ou lona e instalam um vaso
sanitário, realizando manualmente o serviço de descarga.
Por fim, no que toca à reprodução cultural, os indígenas relatam que, a partir do cacicado
de Eledilson, passou a existir um processo de resgate cultural no que concerne às danças,
pinturas corporais e práticas rituais. Há um barracão de lona, denominado por eles como
“tenda”, localizado próximo à casa do cacique, onde realizam suas atividades culturais e
assembleias, no entanto, alegam que a falta de estrutura da ocupação os impossibilita de
realizarem todos os rituais, conforme ocorrem em seus locais de origem.
Sob esse aspecto, Eledilson, já em nossa primeira conversa mostrou-se muito insatisfeito
com as igrejas que têm se instalado no interior da ocupação. Disse que muitos pastores não
permitem que seus fiéis participem dos rituais indígenas, pois seriam coisas do Diabo.
Incomodado falou, que sua vontade é pedir que se retirem, mas que não pode fazer isso, pois
perderia o apoio de muitos parentes. À época, existiam três igrejas no assentamento, sendo uma
delas dirigida por um não-indígena, casado com uma índia Miranha.
Além disso, por ser localizado na periferia, em uma área em que afirmam se tratar de
uma “zona vermelha”, dominada pelo tráfico de drogas, é comum nas falas dos moradores a
preocupação com a presença de traficantes no interior da ocupação, principalmente por se tratar
de um grupo rival àquele instalado na ocupação vizinha. Dizem ser comum, no final na tarde,
um homem armado circular na última rua, onde fica a divisa com a outra ocupação.
Sobre essa ocupação vizinha, em várias conversas contavam-me, geralmente, indicando
o local, que o dono de um barracão que avistávamos logo abaixo, havia sido assassinado, e que
aqueles homens que atualmente o ocupavam, seriam os supostos responsáveis pela execução.
Ninguém sabe exatamente, ao menos diziam não saber, o que funcionava lá, embora
49
diariamente se registrasse a presença de três a quatro homens jovens no local. Estes, sempre
que viam, comentavam entre si ou acenavam me chamando de “Americana”.
Durante o período em que fiz o trabalho de campo, a polícia invadiu uma casa prendendo
o suspeito, que portava armas e drogas, ao que todos afobadamente comentavam, enquanto que
as crianças divertiam-se colhendo mangas no quintal, agora vazio, do acusado. Denúncias
policiais nesse sentido, parecem ser frequentes, e, na maioria dos casos são atribuídas ao
cacique, Eledilson, que apesar de negá-las, tornou-se alvo de muitas ameaças e agressões.
Recentemente, Eledilson foi eleito membro do Conselho Municipal de Política Cultural
– CONCULTURA, para o segmento de cultura étnica, e também, venceu a eleição para a
escolha de um candidato indígena para concorrer ao cargo de vereador nas próximas eleições
municipais.
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Imagem 8: Cacique Eledilson sendo empossado como conselheiro – segmento cultura étnica, no Conselho
Municipal de Política Cultural de Manaus. Reprodução de seu perfil em rede social| Imagem 9: Cacique Eledilson
e outras lideranças indígenas durante manifestação contra a proposta de extinção da Secretaria de Estado para
Povos Indígenas – SEIND, em fevereiro de 2015. Reprodução do site Portal do Movimento Popular.
51
Imagem 10: Rua Kaixana, primeira rua do Assentamento Povo do Sol Nascente acesso pelo Conjunto Francisca
Mendes. Por Marlise Rosa, 26 jan. 2015| Imagem 11: Rua Apurinã, primeira rua acesso pelo bairro Alfredo
Nascimento. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
52
Imagem 12 e 13: Rua Baré. Todas
as ruas do Assentamento, com exceção da
Rua Kauíxe, em homenagem ao atual
cacique da etnia Kaixana, são identificadas
conforme os grupos indígenas que ali
vivem. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
53
Imagem 14: Casa na Rua Kaixana, onde vende-se pão caseiro. A venda de pães e salgados é comum entre as
mulheres afim de contribuir para a renda familiar. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015| Imagem 15: Casa na Rua
Miranha, onde funciona um pequeno comércio. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
54
Imagem 16: Uma das três igrejas
em funcionamento no interior do
Assentamento Povo Indígena do Sol
Nascente. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015|
Imagem 17: Placa em um terreno baldio
indicando a construção de uma nova igreja.
Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
55
Imagens 18 e 19: Área com desmatamento recente, que, segundo os indígenas foi provocado por não-indígenas.
No momento da ocupação da área, contam que, este local, por se tratar de um terreno acidentado, não deveria ser
destinado à habitação, conservando assim, sua vegetação original. Na imagem 16 nota-se também a delimitação
do terreno para o início da construção de uma casa. Por Marlise Rosa, 14 fev. 2015.
56
Imagens 20 e 21: Crianças indígenas durante brincadeira em um domingo pela manhã. Durante a semana, mesmo
sendo período de férias escolar, eu pouco as via. As encontrava quando ia até suas casas, onde estavam entretidas
vendo televisão, enquanto que as maiores, ajudavam no trabalho doméstico. Aos domingos, era comum também
encontra-las na “escola dominical”, oferecida por uma das igrejas. Por Marlise Rosa, 08 fev. 2015.
57
CAPÍTULO 2 – SER ÍNDIO NA CIDADE: URBANIZAÇÃO E TRABALHO
A urbanização, conforme Wirth (1967), não pode ser entendida meramente como o
processo pelo qual as pessoas são atraídas à cidade e incorporadas ao seu sistema de vida. “Ela
se refere também àquela acentuação cumulativa das características que distinguem o modo de
vida associado com o crescimento das cidades e, finalmente, com as mudanças de sentido dos
novos modos de vida reconhecidos como urbanos que são aparentes entre os povos [...]”
(WIRTH, 1967, p. 92). Ou seja, a urbanização corresponde a um modo de vida, que embora
tenha sua origem na cidade, não é limítrofe a ela, “manifestando-se em graus variáveis onde
quer que cheguem as influências das cidades” (WIRTH, 1967, p. 94).
A partir desse ponto de vista, ainda que possamos entender a urbanização como um
modo de vida, é válido destacar que, esse modo de existência não é próprio aos indígenas, ao
menos não, para não ser generalizante, às mulheres indígenas com quais interagi durante a
pesquisa de campo.
A vida nas cidades, encerra em si mecanismos individualistas e individualizantes que
não são comuns à vida rural (SIMMEL, 1967), tampouco às sociedades indígenas, logo, mesmo
59
que involuntariamente, os indígenas na cidade passam a constituir um novo habitus
(BOURDIEU, 1989), que em termos comportamentais, passa a distingui-los daqueles que
mantêm uma vida contínua no interior das aldeias. É claro que, como bem destacou Cardoso
de Oliveira (1968), cidade e aldeia fundem-se por meio da “presença” da cidade na
aldeia/reserva, e da “persistência” da aldeia na cidade – a presença da cidade na aldeia refere-
se à incorporação de costumes e valores urbanos ao modo de vida indígena, ao passo que, a
persistência da aldeia na cidade corresponde à manutenção dos elos tribais, principalmente de
parentesco, na vida urbana. Deste modo, para Nunes (2010, p. 22), “[...] Cardoso de Oliveira
abre espaço para pensar tanto os indivíduos nas reservas quanto os nas cidades como igual e
legitimamente indígenas”, uma vez que, “[...] em ambos os ambientes, a mesma lógica está a
operar no fundo, ordenando e dando sentido às ações e relações”.
Sob essa perspectiva, mesmo que “[...] os processos vivenciados não são inerentes ao
ambiente urbano, apenas aí se concentram, pois daí se originam” (NUNES, 2010, p. 22), em
termos práticos, os indígenas quando recém-chegados à cidade depararam-se com uma série de
dificuldades de inserção nesse novo cenário social, que exige-lhes a formulação de um novo
instrumental analítico e operacional que comporte, a grosso modo, o transporte público, a
economia monetária e os diferentes hábitos alimentares.
Foi muito difícil, né, porque, assim, difícil acho porque pra mim, nunca morei assim na
cidade grande com meus filho. Tudo é perigoso assim pra mim, né, depois assim, por
pouco, por pouco eu fui me acostumando com as coisa, né, agora já me acostumei um
pouco, né, porque a cidade grande, a senhora sabe como que é, né, que a gente vem do
interior é difícil, né. A gente estranha, mas agora até que me acostumei. Essas criança
também já acostumaram, né, porque vão pra escola, né, aí foram se acostumando
(Eliane, etnia Baré, 34 anos).
O que eu estranhei? Rapaz, eu me senti perdida. Sério, às vezes ele [o marido] fica
rindo quando eu tô conversando com ele, eu me senti perdida, eu me senti assim, tipo
uma formiga no meio do nada, por causa que eu não conhecia nada, eu não sabia...Só
de eu sair pra comprar pão, eu me perdi. Aí eu fiquei rodando, parei e fiquei sentada,
aí lá vinha um homem que eu tinha visto morando lá perto de casa, aí "que foi?", "nada,
porque eu não sei voltar", ele olhou pra mim e disse "é bem aqui, ó, desce aí", pois eu
tava bem perto e não sabia. [...] eu não tinha conhecimento ainda de como procurar
um emprego, como eu chegar até um emprego, como eu pegar um ônibus, entendeu. Eu
não sabia nem o que era tirar um currículo, né. Eu não tinha nenhum documento nem
nada, aí depois que eu fui, entendeu? Alguém foi me orientando que eu fui tirar os meus
documento (Mabel, etnia Mura, 36 anos).
Eu estranhei, porque onde a gente morava a gente comia mais era peixe, meu pai
pescava, né, comia muito peixe. Aí quando eu vim pra cá é tudo comprado, galinha,
carne, né, peixe é aquele absurdo, né. Você vai comprar um peixe é um absurdo de caro.
Então lá, onde a gente morava eu era acostumada a comer fruta tirada da árvore, ali
na hora, né, peixe meu pai saia pra pescar e trazia um monte de peixe pra gente comer
[...]. Fruta a gente tem que comprar e é tudo caro, né (Kelliandra, etnia Miranha, 27
anos).
Quando cheguei aqui eu estranhei, né, que, né, aqui é só com dinheiro, né. A gente quer
comer uma fruta é com dinheiro, quer comprar uma coisa assim, comida, é com
dinheiro, e lá não. Lá na minha cidade a gente pesca, né, pesca, tira da árvore da gente,
não compra, né, e aqui não. É por isso que a minha mãe inda não quer vir pra cá, ela
estranha muito [...]. Eu quando cheguei aqui também estranhei, né, que é com dinheiro
pra gente viver, né, como a gente tem as plantinha da gente, era pra gente viver, né,
aqui é só com dinheiro (Sirlea, etnia Kaixana, 47 anos).
Dona Ana (etnia Tukano, 65 anos) também fez as mesmas reclamações com relação ao
dinheiro, queixando-se por precisar comprar tudo, e quando “não se tem dinheiro não tem como
ter as coisas, comida”. Na maioria dessas famílias, de modo geral, com filhos pequenos e com
apenas o marido empregado, a renda familiar é muito baixa, muitas vezes não ultrapassando
61
um salário mínimo, logo, realmente, quando não se tem dinheiro, não se come, como elas
próprias tantas vezes enfatizaram.
No que toca aos estranhamentos com relação ao dinheiro como um todo, Bernal (2009,
p. 256), destaca que:
62
Deste modo, afeitas a outros hábitos culinários, com carne e peixe “no sangue”15, como
se percebe na fala de dona Sueli, todas relatam grande dificuldade para habituarem-se a comer
carnes congeladas, “no gelo”16, prova de que, como bem enfatiza Maciel (2001), não se escolhe
apenas o que se come, mas também como se come.
Não foi fácil não pra mim. Ai, não me acostumava com comida daqui que era só gelo.
Pra mim que aquela comida fedia só gelo. Eu não queria, queria comida fresquinha
que nem a gente comia. O pescador ia pescar, trazia aquele peixe no sangue, e aqui era
um gelo, ai, ficava doente. Aí que me adoecia, passava mal. Agora, agora já me
acostumei, porque o meu marido procura comprar só o que vem novo. Peixe no sangue
ele procura comprar, né, e ele traz. Tambaqui, curimatã, piranha, tudo esses peixe
(Dona Sueli, indígena Kaixana, 67 anos).
Mesmo para aquelas cuja chegada a Manaus remonta há mais de uma década, as
reclamações sobre a comida ainda são frequentes, demonstrando mais um conformismo
propriamente, que uma completa adaptação ao modo de vida urbano.
Eu estranhei a comida porque quem é nascido assim, e criado no interior, ali não tem
o negócio de gelo, não, né, tudo é peixe, carne é no sangue mesmo, né. Aí depois que
eu cheguei aqui em Manaus eu estranhei assim, por isso, né, porque a gente só comia
do gelo. [...] Mas não me acostumei bem não, que até hoje... a gente come porque é o
jeito, né (Dona Maria, etnia Kaixana, 69 anos).
Seu Raimundo, marido de dona Maria, em várias ocasiões em que falávamos algo
relacionado à comida, sempre destacava seu desconforto com o uso de fogão a gás. Dizia-me
que só come porque não tem opção, porque comida boa é aquela que se faz na brasa,
principalmente se tratando de peixe.
Com igual insatisfação, dona Ana, que vive em Manaus há quase 20 anos, diz que
atualmente come feijão e arroz, mas que sente falta da sua comida, de “comida mesmo”, pois
“nós indígena, a gente come diferente dos brancos”. Para suas filhas, a alimentação da mãe é
motivo de grande preocupação, pois como ela não se acostuma com a comida, muitas vezes
acaba ficando sem comer. Contam que ela quer comer peixe frito, beiju, mas que nem sempre
elas têm dinheiro para comprar, por isso, a mãe reclama e diz que está passando fome.
Contudo, além da dificuldade de adaptação no que toca à alimentação e à economia
monetária, nos centros urbanos, a mobilidade física dos indivíduos com a facilidade de acesso
15
Expressão usada para se referir às carnes, peixes abatidos especificamente para uma dada refeição.
16
Expressão usada para se referir às carnes e peixes congelados.
63
aos meios de transporte, bem como a necessidade de usá-los em virtude da extensão territorial
da cidade, exigiu-lhes não só a construção de uma sociabilidade específica, mas também de
novos mapas cognitivos. Trata-se não só de se habituar a andar de ônibus, mas de aprender a
transitar e reconhecer as diferentes zonas da paisagem urbana, que para além do medo de se
perder em virtude de não conhecer a cidade, há também o medo de, ao se perder, não dispor de
dinheiro para pagar outra passagem.
Eu tinha medo de pegar ônibus, de pegar ônibus errado, não sabia ler o número certo.
Eu não sabia se ele ia pro bairro, eu não sabia ler mesmo. Já pensou se eu pego um
ônibus que vai para o outro bairro, como é que eu vou voltar aqui sem dinheiro, né?
Isso era minha preocupação às vezes, por isso eu não saia de casa por causo disso
(Kelliandra, etnia Miranha, 27 anos).
É difícil, né, assim esperar ônibus, as coisas que você quer tem que pegar ônibus, né,
aí isso daí eu achei muito estranho também quando eu cheguei, porque onde eu morava
não precisava essas coisa, não, porque a cidade era pequena, né. Agora aqui não,
porque é cidade grande, né (Eliana, etnia Baré, 34 anos).
Muitas dessas mulheres, antes de sua vinda para Manaus, já haviam residido em cidades
menores, como São Gabriel da Cachoeira, Tefé, Tonantins e Santo Antônio do Iça, no entanto,
nessas localidades não teriam vivenciado o que se pode chamar de uma verdadeira experiência
urbana. Dito de outro modo, conforme Carneiro (2007, p. 57):
Deve-se ter em mente, como bem destaca a autora, que esses espaços, quando
observados a partir de uma perspectiva relacional, “poderão ser reconhecidos como “cidades”
para os moradores das áreas rurais sob sua influência, como poderão, também, ser classificados
como “rurais” ou “interior” (CARNEIRO, 2007, p. 57) para moradores de cidades maiores.
Desta maneira, ao atentar para esse fato poder-se-á identificar “[...] os diferentes modos de vida
colocados em convivência” (CARNEIRO, 2007, p. 57).
64
Concorda-se, portanto, que ser índio na cidade requer a constituição de um novo modo
de vida, que embora não os torne “menos índios”, acaba distinguindo-os de seus parentes que
permaneceram em suas comunidades, e, até mesmo, em cidades menores. Lasmar (2005),
também lança mão desse pressuposto, porém, de forma mais enfática, analisando-o a partir dos
binômios índio-comunidade e branco-cidade. Para essa autora, trata-se de dois modos de
existência que estão estritamente relacionados ao mundo dos índios e ao mundo dos brancos,
respectivamente. Assim, “à medida que alguém se move na escala que vai do polo indígena ao
polo branco, ocorrem transformações em seu estilo de vida” (LASMAR, 2005, p. 148).
Minhas interlocutoras, entretanto, embora reconheçam as dificuldades com relação ao
processo de adaptação à vida na cidade, não percebem o espaço urbano como um lugar de
brancos, como Lasmar (2005) afirma ocorrer em São Gabriel da Cachoeira. A cidade para elas,
é um lugar de possibilidades de emprego, saúde e educação, mas é claro que, ainda assim, a
condição etnicorracial e econômica interfere na maneira através da qual se inserem na paisagem
urbana. Não se trata do “mundo dos brancos” em oposição ao “mundo dos índios”, mas sim, de
um menor ou maior aparato que possa possibilitar-lhes melhores condições de vida. Nesse
sentido, cidade e comunidade, como afirma Melo (2009, p. 59) em sua pesquisa sobre os Baré,
“[...] não são pensadas como modelos que se opõe, mas que estão em contínua interação”.
Deste modo, a cidade passa a ser, como já identificado pela Comissão Pró-índio de São
Paulo (2013), um local de afirmação dos direitos indígenas, que se autoorganizam em torno de
demandas como moradia, saúde, educação, trabalho e renda, reivindicando e gerando, ainda
que de forma pontual e limitada, experiências concretas por parte do poder público.
Além disso, parto do pressuposto de que os binômios índio-comunidade e branco-
cidade acabam reforçando o preconceito sofrido pelos indígenas nas cidades, que
constantemente, deparam-se com situações de discriminação, por estarem, em tese, fora de seu
habitat natural, a floresta. Ilustrativo desse fato é a narrativa de Nara, que ainda hoje, apesar de
adulta, carrega as marcas emocionais da violência e discriminação racial que sofrera quando
criança. Em dada ocasião, quando lhe perguntei se algo havia lhe marcado ao longo de tantos
anos em Manaus, ela prontamente respondeu-me que sim, e que se tratava de uma situação de
preconceito.
Pra gente, logo que nós viemos, a gente que era maior, foi muito difícil, porque, tem
uma pessoas que eles, como é que se diz, abraçam a gente, né, a gente tem todo um
apoio, mas tem muita discriminação. Na época por a gente não falar a linguagem
portuguesa, que a gente falava só a linguagem dos sateré, sofremos muita
discriminação de filho de pessoa, né, que às vezes quando a gente não sabia o que era
65
uma televisão, aí as pessoa nos discriminavam, chamavam de fedorento, cuspiam na
gente, tudinho a gente passou, né. Então, chegou uma época que assim que eu acho que
com 9, 10 ano e meu irmão com 11, 12, uma coisa assim, ele chorava muito pra voltar
pra lá porque a gente era visto de uma maneira assim, por alguns, né, muito
discriminado, né. Eles tinham a gente como um bicho, sei lá (Nara, etnia Sateré-mawé,
38 anos).
66
verbais citados acima, a tônica recaí sobre o questionamento de sua indianidade por meio da
atribuição do status de bugres e caboclos, como ocorre em Mato Grosso do Sul e Amazonas,
respectivamente. Trata-se, portanto, como bem demonstra Albuquerque (2011), em seu estudo
sobre os Pankararu em São Paulo, de um “preconceito de autenticidade”, que opera por meio
das categorias de “assimilados”, “aculturados” e “desaldeados”, assim, criando a invisibilidade
social do indígena, que coloca em risco seus direitos.
Não obstante, cada uma dessas categorias implica em um tipo específico de preconceito:
“assimilados” não teriam mais “cara de índio”, expressando então o preconceito fenotípico;
“aculturados” não falariam a língua ancestral, sendo vítimas de um preconceito linguístico; e,
“desaldeados” teriam abdicado da “proteção” do poder tutelar e da assistência de outros órgãos
públicos, que denota um preconceito político-administrativo (ALBUQUERQUE, 2011).
Pressupõe-se com isso, que esses bugres e caboclos, não seriam “índios de verdade”,
pois já teriam passado por um processo de assimilação, aculturação, e afastamento étnico-
territorial, já que não vivem mais em suas comunidades de origem, portanto, não seriam mais
detentores de direitos e políticas diferenciadas. Essa visão é sustentada por aquilo que
Albuquerque (2011) define como “modelo museu de autencidade”, que desconsidera, como
sublinha Pacheco de Oliveira (1998), que as sociedades indígenas situam-se na mesma
temporalidade que a nossa, logo, estabelecem interações socioculturais que requerem maiores
problematizações. Desse modo, adverte o autor, deve-se “[...] abandonar imagens
arquitetônicas de sistemas fechados e se passar a trabalhar com processos de circulação de
significados, enfatizando que o caráter não estrutural, dinâmico e virtual é constitutivo da
cultura” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p. 69). Ao mesmo tempo, não se pode perder de
vista, como assevera Barth (1998, p. 188), que “as diferenças culturais podem permanecer
apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos”, portanto, ao residir na cidade,
não significa que o indígena tenha rompido com seu pertencimento étnico.
67
experiência no mercado de trabalho (TORRES, 2005). Na Amazônia, no entanto, além dessas
características, esse quadro apresenta uma dimensão étnica, pois as mulheres indígenas, quando
recém-chegadas à cidade, sejam elas meninas, jovens ou adultas, encontram no trabalho
doméstico o principal meio de sobrevivência no espaço urbano. Essa dinâmica na região
encontra suas bases no Período Colonial, quando, com a chegada dos portugueses, os homens
foram remanejados para o trabalho agrícola, até então desempenhado pelas mulheres, “[...] e
estas desviadas para o serviço doméstico na casa dos colonizadores, tornando-se suas escravas
e sendo submetidas aos seus caprichos sexuais” (MIRANDA, 2003, p. 07).
Com a publicação do Regimento das Missões, em 1686, a Coroa Portuguesa passou a
controlar as atividades dos jesuítas nos aldeamentos indígenas (GUZMÁN, 2008),
regulamentando também a repartição e salário dos índios. Com isso, não poderiam entrar na
repartição de serviços, índios de 13 a 50 anos, mulheres e crianças, exceto as índias destinadas
às funções de farinheira e ama de leite (MIRANDA, 2003; MELLO, 2009), atividades restritas
ao âmbito doméstico.
Posteriormente, já nos séculos XIX e XX, no auge da economia da borracha, passou a
ocorrer na Amazônia a movimentação de um expressivo contingente de homens vindos de
outras regiões brasileiras, principalmente do Nordeste, para trabalhar na extração de látex. Esses
trabalhadores migravam sozinhos, deixando para trás mulheres e filhos e, consequentemente,
mulher tornou-se um “objeto” escasso nos seringais. Frente a isso, as mulheres indígenas
passaram a ser capturadas por meio das correrias17, e uma vez “amansadas”, tornavam-se
esposas dos seringueiros, cabendo-lhes a execução das tarefas domésticas – “cozinhar, criar
pequenos animais (galinhas patos, por exemplo), limpar a caça, pescar (mariscar) e limpar os
peixes, lavar roupas entre outras” (WOLFF, 1999, p. 76).
Sem precisar a data, Costa (2005), faz menção à outra prática recorrente na Amazônia,
que tinha por finalidade fornecer serviçais domésticos aos brancos residentes na região: o rapto
e venda de crianças e mulheres indígenas. Relata essa autora que “Bates, em sua viagem a Ega
(hoje Tefé), no interior do Amazonas, surpreendeu-se pelo fato de todos os empregados
domésticos do lugar serem selvagens que antes viviam na beira dos rios vizinhos” (COSTA,
2005, p. 319-320), e, a maior parte destes, acredita-se ter sido vendida pelos caciques ainda
quando crianças.
17
As correrias correspondem a incursões violentas contra aldeias indígenas, que, sob a ordem dos seringalistas,
visavam expulsar os índios de suas terras, para assim extrair livremente seringa e caucho. Os homens eram
assassinados ou escravizados, e as mulheres capturas para fins de casamentos e execução de trabalhos domésticos
nos seringais.
68
Essa prática constituiu-se como uma espécie de mercado ilegal e informal. Os brancos
residentes nos povoados e cidades, encomendavam mulheres e crianças aos barqueiros
indígenas, que as capturavam por meio de ataques surpresas às aldeias de outras etnias. Após
capturadas:
2.2.1 Analice
Filha de uma índia Tukano com um “peão”18 branco, que as abandonou quando
completara 03 anos de idade, Analice retrata em suas palavras o desejo da mãe de possibilitar-
lhe melhores condições de vida: mesmo que para isso, fosse necessário entrega-la a outra
família, que pudesse ensinar-lhe os costumes e a língua dos brancos. Assim, sob o objetivo de
que aprendesse a falar português, com 06 anos de idade passou a morar na casa de sua madrinha
em São Gabriel da Cachoeira. Nesse período, ajudava na realização das atividades domésticas,
e frequentava o “colégio de freiras”, onde foi alfabetizada e também aprendeu alguns trabalhos
18
Peão é a denominação dada pelos índios do Alto Rio Negro aos operários que lá chegaram no início da década
de 1970, para a abertura de estradas na região – rodovia Perimetral Norte e a estrada que liga São Gabriel da
Cachoeira a Cucuí, na Venezuela (LASMAR, 2005).
69
manuais, como bordado e crochê. Por conta da escola, passou a frequentar a igreja católica,
religião que segue ainda hoje.
Com 12 anos, Analice se mudou para Manaus para trabalhar como babá dos sobrinhos
de sua madrinha, permanecendo na casa dessa família por 07 anos. Lá, realizava os afazeres
domésticos e cuidava das crianças, recebendo roupas e algum dinheiro como pagamento por
seu trabalho, como ela própria descreve:
Ela comprava tudo o que precisava, no caso de roupa, de asseio, de tudo, mas sempre
ela me dava um dinheiro por fora. Quando ela me dava, eu mandava pra mamãe. Era
assim, ó, a minha vida todinha. [...] Todo mês ela me dava esse dinheiro, todo mês, aí
eu comprava o que queria, ia pro cinema, pro shopping, né, e o que sobrava eu mandava
pra minha mãe pra lá, pra São Gabriel da Cachoeira, porque ela não tinha ajuda de
custo, ela trabalhava e vivia da aposentadoria da minha vó na época [...](Analice, etnia
Tukano, 37 anos).
Anos depois, já adulta, divorciada e mãe de 02 filhas gêmeas, recebeu em Manaus sua
mãe e suas 03 irmãs mais novas – até então, não conhecia a caçula, à época com 6 anos. Sua
mãe deixara São Gabriel da Cachoeira para ajudá-la no cuidado com as filhas pequenas, pois
como Analice era a única provedora da casa, trabalhava em turnos dobrados para garantir o
sustento da família.
Nessa ocasião, a dinâmica de doação de filhos se repetiu em sua família com suas irmãs
mais novas, Adriana e, posteriormente, Patrícia. Entretanto, Adriana relata que a iniciativa
partira dela para assim poder ajudar sua mãe e suas irmãs que passavam por necessidades. Dona
Ana, tivera 04 filhas de pais diferentes, casando-se apenas com o pai da mais nova – o único
indígena – porém, ele morrera pouco tempo depois. Sempre criou as filhas sozinha, mas, em
São Gabriel da Cachoeira, recebia farinha, goma e outros produtos agrícolas de seus familiares
que viviam na comunidade. Em Manaus, sem um círculo de relações constituídas, analfabeta e
com domínio limitado da língua portuguesa, o quadro de dificuldades se agravou.
2.2.2 Adriana
Adriana, assim, como Analice, cresceu sem a presença do pai. Quando chegou em
Manaus, com 09 anos, conta que apesar da pouca idade, tinha consciência dos problemas
financeiros pelos quais sua família estava passando, por isso, havendo a oportunidade, insistiu
para que a mãe a deixasse morar com outra família.
70
Essa senhora que a criou tinha um pequeno comércio perto da casa de Analice, e Adriana
costumava ir até lá para assistir televisão. Quando ela estava sozinha, conta que passou a ajudá-
la a empacotar as compras e foi então que ela a convidou para morar em sua casa. De imediato,
sua mãe não concordou, mas diante das dificuldades pelas quais passavam e de sua insistência,
dona Ana acabou aceitando.
Aí foi quando ela foi lá pedir da mamãe, né, pra mim ir morar com ela. Aí ela pediu, aí
a mamãe "mas minha filha, você quer morar com essa senhora? Não sei o que... você
vai sofrer". Aí eu falei "não, mamãe, eu quero ir", e na época a gente tava passando
por dificuldade, né, minha irmã mais velha não tinha condições de sustentar todo
mundo, e eu já tinha essa noção, né, eu já entendia [...]. Aí foi quando eu falei pra
mamãe "mamãe, eu quero. Aí o dinheiro que ela me dá eu dou pra senhora, não sei o
que...", aí foi quando ela deixou, né, aí eu fui morar com essa senhora. Aí em troca ela
dava o dinheiro pra mamãe, né, e dava um rancho, essas coisas assim. E pra mim, como
eu morava com ela, eu comia, dormia, as roupas quem comprava era ela, tudinho, né,
aí foi isso. [...](Adriana, etnia Tukano, 25 anos).
Durante o período em que trabalhou na casa dessa família, Adriana bem como Analice,
não recebeu pagamento formal por seu trabalho – como de costume, compravam-lhes roupas,
calçados e, mensalmente um valor em dinheiro era entregue diretamente para sua mãe.
Passado já algum tempo vivendo com outra família, Patrícia, sua irmã caçula também
manifestara o desejo de mudar-se para lá, porém, por sentir muita falta da mãe, não permaneceu
por muito tempo. Adriana, por sua vez, lá morara dos 10 até os 17 anos, e diz que sempre foi
tratada como alguém da família, por isso, considera essa senhora como uma “segunda mãe”.
Sempre permitiram que visitasse sua mãe e irmãs e frequentou a escola regularmente. Deixou
essa casa em face de um desentendimento com o marido dessa senhora, ainda assim, afirma que
apesar de muito rígido, sempre a tratou com respeito e cuidado. Passou então a morar na casa
de outra família, onde cuidava de uma senhora idosa, mas como os familiares não lhe
concediam folgas para que pudesse visitar sua mãe, lá permanecera por apenas 06 meses. Já
com 18 anos completos, passou a trabalhar como garçonete em uma praça de alimentação.
2.2.3 Claudina
71
Amazônia. Filha do cacique de uma comunidade do povo Tukano no rio Uaupés, aos 13 anos
de idade, Claudina fugira com uma amiga para São Gabriel da Cachoeira, passando a usar um
nome falso para não ser reconhecida. Em São Gabriel, trabalhou como babá na casa de um
militar, até que, passado algum tempo, seu pai foi procura-la. Assim que o viu, conta que se
escondeu para que ele não a encontrasse e a levasse de volta para a aldeia. Dois anos depois,
quando já estava com 15 anos, conheceu uma moça que trabalha como doméstica em Manaus,
e aceitou o convite de ir com ela.
Embora já trabalhasse como babá em São Gabriel da Cachoeira, nunca havia morado na
casa dos patrões – dividia um cômodo alugado com outras meninas que também trabalham
como babás ou domésticas – por isso, conta que, em Manaus, ficou assustada com o fato de
passar a viver em outra casa e com outra família.
Aí minha patroa veio me conhecer, aí eu saí, quando eu vi aquela mulher, uma mulher
branca mesmo, porque em São Gabriel não tem assim, mas tem se vem de fora, é uma
vila, né. Aí quando ela chegou com um carrão, loura, branca, olhou da cabeça aos pé
pra mim, aí eu conheci a minha patroa, nem perguntei, eu ficava assim calada "meu
Deus, essa mulher vai me levar". Ela disse "pega tuas coisas que eu vou te levar", aí
peguei e fui morar lá no conjunto [...]. Ela me levou, tinha as filha dela, tinha a menina
de 05 ano e uma de 08, aí ela disse assim "eu trabalho nisso, nisso e naquele, e daqui a
pouco meu marido vai chegando", eu disse "meu Deus", chega eu me tremia dentro
daquele casarão. "O que que eu vou fazer?". Nunca tinha trabalhado na minha vida
assim, casarão enorme, e por onde que eu ia começar? Aí ela disse assim "daqui a
pouco meu marido chega. Estranha não, minha filha". Primeira coisa, ela me viu da
cabeça aos pés pra saber se tinha alguma coisa, algumas pereba [risos]. Aí viu meu
cabelo pa ver se tinha uns piolho, eu tinha meu cabelo assim, sempre liso [...]. Aí meu
cabelo, "deixa eu ver, minha filha, pra ti", se eu não tinha umas coisa, uma coceira. Aí
"tira, fica só de calcinha e de xutinha" [sutiã], eu "meu Deus do céu". "Eu vou te cuidar
bem", ela falou "eu vou te cuidar muito bem pra ti, não estranha não". Aí ela suspendeu
minha roupa, não tirou tudo não, "ah, não tem não". Aí, "deixa eu ver esse cabelo, se
não tem piolho", aí eu falei "tenho também não", só isso que eu falava, né. Aí, "deixa
eu ver sua boca", aí eu falei "também não tinha", dente podre eu acho, né. Aí tinha
cárie, eu acho, aí ela disse "amanhã eu vou te levar lá no Parque 10", é amigo dela que
só, aqui num, tinha clínica particular lá, dentista. Aí ela me levou, mandou limpar
tudinho os meu dente, fizeram canal, limparam eles todinho. (Claudia, etnia Tukano,
40 anos).
Apesar da insegurança sentida nesse primeiro contato, Claudina afirma que sempre foi
muito bem tratada por sua patroa e demais familiares. Contou-me que, à época, chegou a trocar
de emprego duas vezes, mas como não se acostumava em outras casas, chorava e a ex patroa
acabava lhe buscando. Emocionada, disse “pra mim, eu sentia igual se fosse a minha mãe”, e
confessou-me que queria aprender a escrever para “poder mandar mensagem”. Esse afeto,
72
serviu-lhe, inclusive, como justificativa para a ausência de uma remuneração formal, não
demonstrando nenhum estranhamento com o fato de não receber pagamento em dinheiro.
Hoje em dia eu vejo, minhas colega, né, "ai, recebi tanto", "ah, minha patroa paga
tanto". Eu, sabe lá, essas coisa eu nunca, às vezes meu marido fala, né, "como é que?",
mas sim, eu nunca cheguei a pegar tanto dinheiro da patroa não. Só que pra mim era
muito legal, assim, nunca chegou a gritar comigo, nunca me bateu, assim, faz isso e
aquilo, não. Quando meu patrão chegou me viu, assim, ele é de bigodizão. Também
meu patrão, graça, nunca foi assim enxerido pro meu lado, nunca foram... (Claudia,
etnia Tukano, 40 anos).
A ligação com a patroa era tanta, que Claudina chegara a aceitar o convite de mudar-se
com ela para o interior de São Paulo em virtude do fim de seu casamento. A desistência da
viagem teria sido motivada pelo medo de não conseguir mais rever sua família biológica, que
permanecera em São Gabriel da Cachoeira e arredores.
Atualmente, Claudina é casada com um índio Desana, tem duas filhas adolescentes e
quando nos conhecemos, estava grávida da terceira. Seu marido trabalha como segurança em
uma empresa pública, mas, à época, estava afastado por motivo de doença – desenvolvera um
problema de coluna e também depressão. Em algumas ocasiões, cheguei a encontra-lo durante
o trabalho de campo, inclusive, por ser muito próximo ao atual cacique, chegou a nos
acompanhar em algumas caminhadas pelo Assentamento.
Quando encontrei Claudina pela primeira vez, ela disse se sentir um pouco constrangida,
pois como as suas cunhadas haviam lhe visitado durante o fim de semana, só se comunicaram
na língua tukano, por isso, ela estava “enrolando a língua”. Pediu então que sua filha mais
velha, de 18 anos, se sentasse conosco, mas não houve a necessidade de tradução.
Muito comunicativa, contou-me que seus sobrinhos que vivem em São Gabriel da
Cachoeira, “não querem ser índios”, e que embora saibam tukano, só se comunicam em
português. Incomodada, afirmou: “Os branco, aqueles branco mesmo quer ser índio, e nós
índio quer ser branco. Mas aonde tava chegando, né? ”. Em outra ocasião, entre brincadeiras,
disse que em Manaus não tem brancos de verdade, que a população de lá é toda misturada, pois
branco mesmo são só aqueles iguais a mim, que teriam “até os pelos loiros”.
Sobre as filhas, disse que apesar de terem nascido e crescido na cidade, “são filha de
indígena mesmo, mas elas não sabem como se criamos mesmo, eles não sabem, porque minhas
filha sempre foi criada pra cá”. Em vista disso, contou-me que gostaria muito de leva-las até a
comunidade onde cresceu, mas que se preocupa com o fato de elas não gostarem das comidas
indígenas. Rindo da situação, disse que elas passariam fome. Além disso, não dispõe de recursos
73
para custear as passagens até São Gabriel da Cachoeira, já que apenas o marido trabalha, por
isso, há muito tempo não vê seus pais, mas, recentemente, um irmão esteve em Manaus para o
tratamento de saúde do filho, hospedando-se em sua casa.
2.2.4 Kelliandra
Kelliandra tinha 12 anos quando mudara para Manaus, trazida por uma missionária para
que a ajudasse no cuidado com a mãe doente, que passava longos períodos hospitalizada. Na
época, recém-chegada do interior e analfabeta, revela ter sido submetida pela patroa, a uma
série situações difíceis e humilhantes.
Ela era muito assim, ela queria humilhar muito as pessoas, né. Ela me butava pra fazer
um monte de coisa, além de eu ficar no hospital com a mãe dela, que a mãe dela tava
internada. Eu ficava às vezes semana, às vezes só com uma roupa lá no hospital. [...]
Eu lavava a minha calcinha, espremia, espremia, eu tinha que vestir a mesma calcinha.
Foi muito assim, foi muito triste pra mim, entendeu. [...] Eu era do interior, menina do
interior que não sabia de nada, não sabia nem, nem o número do ônibus, não sabia ler,
não sabia escrever, não sabia nada. Então eu ficava ali, às vezes, para mim pegar
comida no hospital, uma mulher que ficava no mesmo, no mesmo leito, né, que a gente,
que pegava pra mim, eu não sabia nem passar na roleta. Eu era do interior mesmo, né,
então eu sofri muito logo que eu cheguei aqui (Kelliandra, etnia Miranha, 27 anos).
Nessa ocasião, Kelliandra, não soube dizer-me com exatidão por quanto tempo
trabalhou para essa pessoa. Posteriormente, ao deixar essa casa, passou a trabalhar como babá
para outra família, mantinha uma boa relação com essa patroa, que assim como ela “também
era bem novinha”, com 16 anos à época, e lá permanecera por cinco anos. Deixou esse emprego
em virtude do divórcio do casal, indo então para São Paulo, trabalhar como babá para a irmã de
sua antiga patroa, lá permanecendo durante 01 ano e meio. Sobre esse período, disse-me que se
sentia como uma prisioneira, que ficava sempre em casa com as crianças ou na chácara de
propriedade da família, pois tinha medo de sair sozinha e se perder, por conta disso, não fez
amizades, convivendo estritamente com a família para a qual trabalhara.
Em todos esses empregos, Kelliandra nunca chegara a receber pagamento em dinheiro
– morava na casa da família, recebia alguns trocados e, às vezes, roupas e calçados. Somente
passara a receber pagamentos em dinheiro conforme o salário mínimo vigente, depois de ter
alçado a maior idade, ainda assim, sem ter a Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS
assinada.
74
Kelliandra se alfabetizou aos 22 anos de idade, depois de conhecer seu atual marido com
quem tem um filho de 04 anos. Este, por sua vez, também se considera indígena, porém, não
sabe a que etnia pertence. Desde que seu filho nasceu, Kelliandra não teve mais empregos
regulares, pois não tem com quem deixa-lo, então, presta serviços pontuais como manicure e
diarista, complementando a renda com o dinheiro recebido pelo programa Bolsa Família. Seu
marido trabalho como pedreiro, e aos finais de semana vai arrumando a pequena casa do casal,
ao que ela, orgulhosa, conta-me:
No ano passado a nossa casa só era na lona, era tudo no barro mesmo. O meu filho
dormia, a gente forrava com plástico e butava um colchonete velhinho pra meu filho
dormir. Carapanã, carapanã, carapanã, correndo o risco de ser picado por algum
bicho, porque ainda era tudo só mato. A gente só fez limpar por baixo. Esse ano, graças
a Deus, a gente já tá com piso, já tá cercadinho, já tem já porta, que antes não tinha
nada disso (Kelliandra, etnia Miranha, 27 anos).
***
Assim como Kelliandra, Analice, Claudina e Adriana nunca tiveram registro em CTPS
durante o período que exerceram a função de doméstica. Analice, posteriormente, passou a
trabalhar como cobradora de ônibus, e Adriana como garçonete e, atualmente, como auxiliar
administrativo, só então se inseriram no trabalho formal. Claudina, por sua vez, desde que se
casou não voltou a trabalhar.
Histórias semelhantes se repetiram inúmeras vezes ao longo da pesquisa de campo. De
uma forma ou de outra, todas as mulheres indígenas com quem conversei, relatam já terem sido
submetidas a algum tipo de situação que pode ser caracterizada como exploração de sua força
de trabalho, porém, poucas delas se percebem nestes termos. Dentre as 04 trajetórias que
75
reconstruo aqui, apenas Kelliandra se autorreconhece como explorada, mas isso quando se
refere às famílias com as quais não estabeleceu um vínculo afetivo. Na família em que
trabalhara por mais tempo – durante 05 anos -, embora também não recebesse remuneração
formal por seu trabalho, a proximidade de idade e a amizade que construíra com sua patroa a
impedem de atribuir o status de exploração a essa relação. Nota-se, portanto, que o sentido de
exploração para ela é definido, principalmente, em termos morais e não econômicos ou físicos.
2.3 “Filhas de criação” ou pequenas serviçais? Sobre o descompasso entre a lei e cultura
[...] que vão desde a exploração mais cruel do trabalho infantil (exploração
inclusive sexual), da violência física (até resultante em morte), a um tipo, tão
ilegítimo quanto, de relação “suavizada” pela afetividade, a dedicação, a
obediência assim exigida e atendida da parte da cria que permite, tem
permitido, segundo nossos dados, longas e fiéis ligações entre mulheres (e
suas famílias) nas opostas posições da “cria” e da “dona” (MOTTA-MAUÉS,
et al., 2008, p. 10-11).
77
et al, 2005, p. 19), cuja finalidade seria introduzir a criança/adolescente na dinâmica doméstica,
de modo que o mesmo contribua na vida familiar, sem comprometer todo o seu tempo.
Por fim, o “trabalho infantil doméstico com caráter de ajuda é aquele realizado na casa
da família ou de terceiros, em que a criança ou o adolescente assume responsabilidades pelo
cuidado da casa ou de pessoas (crianças, velhos ou doentes)” (ALBERTO et al, 2005, p. 19).
Quando essa modalidade de TID ocorre na casa da própria família, em muitos casos, o menor,
ao assumir as responsabilidades domésticas, libera outros adultos para o trabalho fora de casa,
assim, pode ou não receber algum pagamento. Já, quando esse trabalho é realizado na casa de
terceiros, não ocorre uma remuneração formal, fato que faz com que, de acordo com Alberto et
al (2005, p 19), “o caráter de ajuda esconde a precariedade da relação ou a situação de
exploração”.
Nestes termos, Analice, Claudina, Adriana e Kelliandra, como bem vimos, se inseriram
no trabalho doméstico ainda quando crianças sob o preceito de “dar ajuda”. Contudo, apesar da
ilegalidade jurídica dessa prática, faz-se importante não perder de vista o depoimento de
Adriana, que relata que a iniciativa de morar/trabalhar com outra família partira dela. Em outras
palavras, o que quero dizer é que, embora o trabalho doméstico infantil se configure como uma
violação dos direitos assegurados às crianças e adolescentes, não podemos desconsiderar a
capacidade de agência dessas meninas e meninos quando inseridos nessa dinâmica. É óbvio
que, igualmente, não podemos ignorar as dimensões biológicas e psicológicas de formação da
personalidade de um indivíduo adulto, porém, ao tomá-los apenas como vítimas, nega-se todo
e qualquer traço de reflexividade sobre sua realidade concreta.
Deste modo, em sintonia com Mahamood (2006, p. 123), “[...] sugiro que pensemos na
agência não como sinônimo de resistência em relações de dominação, mas sim como uma
capacidade para a acção criada e propiciada por relações concretas de subordinação
historicamente configuradas”. Deve-se levar em conta, portanto, a capacidade de as pessoas
agirem motivadas por interesses individuais, em que sobreviver ao invés de ser uma antítese da
agência, é também uma de suas modalidades.
Para essas meninas, de modo geral, inseridas em contextos de extrema pobreza, forçadas
desde a mais tenra idade a enfrentar a fome e outras adversidades cotidianas, a possibilidade de
morar com outra família apresenta-se, em certo sentido, como uma oportunidade para
intervirem em sua própria realidade. Em casos mais extremos, trata-se da alternativa mais
conveniente para garantir sua sobrevivência, bem como a sobrevivência de seus familiares por
meio das contribuições feitas pela família receptora em troca de seu trabalho.
78
Trata-se, portanto, da realidade que Hecht apud Fonseca; Candarello (1999) define
como “infância provedora” (nurturing childhood), que se destinge e ao mesmo tempo se
justapõe à noção de “infância nutrida” (nurtured childhood). A infância nutrida refere-se às
crianças das camadas altas, em que os filhos são eximidos da responsabilidade de contribuir
para o orçamento familiar, dormem até tarde, não participam dos afazeres domésticos, e passam
férias na Disney World. Já a infância provedora, em contraposição, corresponde à “experiência
de grande parte das crianças pobres no Brasil, que em vez de viverem a infância como período
prolongado de dependência e escolarização, tornam-se desde cedo independentes e muitas
vezes ajudam no sustento de seus familiares (FONSECA; CANDARRELLO, 1999, p. 110).
A partir desse ponto de vista, considero problemáticas as análises que compreendem e
definem essas relações apenas em termos de algoz e vítima, ou explorador e explorada, pois,
acredito que, por mais controverso que possa se configurar o preceito de “dar uma ajuda”, ele
não é de um todo inapropriado para refletir sobre essa modalidade de relação social, como
também não é quando usado para refletir sobre determinada modalidade de intercâmbio sexual,
em que contribuições econômicas são trocadas por sexo, muitas vezes vinculado a afeto
(PISCITELLI, 2011). A ajuda aqui, bem como no caso estudado por Piscitelli (2011, p. 554)
“[...] possibilita algum futuro. Essa última palavra não remete necessariamente a poupança ou
planejamento, mas adquire o sentido de possibilitar uma vida mais confortável, a longo prazo,
em termos econômicos”. Deste modo, embora seja evidente que se trata de uma relação de
dominação, deve-se ter em mente que isso não dilui por completo a capacidade de agência dos
sujeitos envolvidos, até porque, todo agir se faz a partir de um “campo de possibilidades”19
(VELHO, 2003).
Ao nos limitarmos apenas aos casos aqui descritos – de Analice, Adriana, Claudina e
Kelliandra – percebe-se que a casa da família receptora, é de longe um ambiente com melhores
condições que a casa de seus genitores, por isso, não podemos desconsiderar o fato de que para
essas meninas, à época, a situação pode ter sido conveniente. Embora fossem responsáveis pelo
trabalho doméstico e cuidado de crianças, tiveram acesso à escola e alimentação, recebiam
material escolar, roupas e calçados novos e, geralmente, um pequeno valor em dinheiro, bens
que não teriam acesso junto à sua família de origem, onde também participariam do trabalho
doméstico e do cuidado de irmãos menores.
19
Velho (2003, p. 40), define campo de possibilidades como a “dimensão sociocultural, espaço para formulação e
implementação de projetos”, ao passo que projeto seria “[...] a conduta organizada para atingir finalidades
específicas”. Tais noções, segundo o autor, são úteis para analisar “[...] trajetórias e biografias enquanto expressão
de um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e singularidades”.
79
Nesse sentido, como bem indagaram Fonseca; Candarello (1999, p. 101-102), se por um
lado por meio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Em outras palavras, o que quero mostrar é que as condições enfrentadas junto à família
de origem, podem, em alguns casos, serem mais adversas que aquelas vividas junto à família
receptora. Patrícia, irmã caçula de Adriana, por exemplo, teve de parar de estudar quando voltou
a morar com a mãe, pois não dispunha de recursos para pagar a passagem de ônibus para ir à
escola, como bem relata:
Quando eu morava com a senhora que criou a gente, eu estudava normal, ia pra escola
todo dia, só que aí depois eu fui morar com a mãe, aí ficou mais difícil por causa que
eu morava na Cidade Nova, ali perto do Sumaúma, né, no Grupo Eu 5. Aí tinha escola
lá e eu estudava bem na principal, Júlio César, estudava lá. Aí eu vim morar com a
mamãe, aí como não tinha dinheiro pra pagar a minha passagem pra mim ir pra lá, aí
eu desisti. Aí voltei a estudar depois, já estava com o meu marido, que ele que pagou a
minha passagem pra eu poder estudar (Patrícia, etnia Tukano, 23 anos).
Claro que devemos considerar os casos em que essas meninas são vítimas de violência,
inclusive, sexual, porém, isso não ocorreu, ao menos não me foi revelado, entre minhas
interlocutoras.
Além disso, em uma sociedade em que a maternidade, bem como o casamento “precoce”
de adolescentes é uma prática culturalmente instituída e, reforçada em contextos de periferia,
torna-se complexo idealizar uma realidade outra, que as distancie desse cenário. Acredito,
portanto, que se tratam de escolhas que são social, histórica e culturalmente orientadas.
Frente a isso, faz-se fundamental superar a retórica de “salvar” o outro, reconhecendo
as implicações da superioridade moral e violência desse discurso (ABU-LUGHOD, 2012).
Deve-se não somente entender, mas também aceitar que essas meninas podem perfeitamente
escolherem essa condição, e que atribuir-lhes o status de vítimas/exploradas sem que assim elas
se percebam faz parte justamente dessa retórica de salvação e libertação – sem que para isso
nos questionemos se de fato esse outro precisa ou que ser salvo. Além do que, como bem
80
advertiu Abu-Lughod (2012, p. 465), deve-se ter em mente que “quando se salva alguém,
assume-se que a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando para
alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão
sendo feitas sobre a superioridade daquilo para o qual você a está salvando? ”.
Qual seria, portanto, a possibilidade de um futuro outro que poderíamos oferecer a essas
meninas? Como seriam supridas suas necessidades imediatas atualmente asseguradas por seu
trabalho? Como e quem lhes garantiria o acesso à saúde, educação, moradia e alimentação?
Como podemos negar-lhes a possiblidade de garantir seu sustento e parte do sustento de sua
família mediante seu trabalho, se vivemos em um país que não investe em escolas ou políticas
públicas para a infância e juventude?
Diante disso, talvez, de uma forma um tanto quanto radical, aproprio-me da exortação
de Lane e Rubinstein apud Diniz (2001, p. 30) com relação à circuncisão feminina: “Para
colocar o problema de forma muito simples, se nós cuidarmos da genitália das mulheres dessas
culturas, nós necessitamos também cuidar de seus sentimentos”. Ou seja, não basta apenas
retirá-las das casas das famílias receptoras, nem criminalizar tais famílias por isso, sem que
antes possamos criar formas de garantir que essas crianças quando criadas por sua própria
família, tenham acesso à saúde, educação, moradia e alimentação. É claro que o programa do
Governo Federal, “Bolsa Família”, tem contribuído significativamente para a mudança dessa
realidade, mas ainda não de forma completa, senão, essas situações já não mais se repetiriam.
Precisamos entender que enquanto seguirmos com uma compreensão de infância
elaborada a partir da vida protegida das crianças de classe média e alta, continuaremos
silenciando milhares de meninas e meninos, que de forma precoce tornam-se responsáveis por
seu sustento e parte do sustento de sua família. Deste modo, a exemplo de Fonseca; Candarello
(1999, p. 110), busco “[...] chamar a atenção para a coexistência de diferentes experiências de
infância no Brasil e de questionar as abordagens que tendem a ignorar a voz e agency dos que
divergem do “ideal”. Ou seja, não estou me colocando a favor do trabalho infantil, mas apenas
destacando a necessidade de concedermos a essas crianças e adolescentes o direito de fala, pois
com certeza, conhecem sua própria realidade melhor que nós, meros expectadores.
Além disso, também não podemos esquecer que em muitos desses casos, uma vez que,
como já dito, na região em questão trata-se de uma prática social, histórico e culturalmente
orientada, não há por parte do empregador, se assim o pudermos definir, a intenção clara de
exploração. Trata-se de um consenso cultural que se percebe como ajuda mútua – a família
receptora está ajudando essa criança com casa e comida, enquanto que a criança os ajuda
81
auxiliando no serviço doméstico e no cuidado com filhos. Frente a isso, como lidar com esse
descompasso entre a lei e a cultura?
Tampouco, na realidade concreta desses sujeitos, para nada serve o nosso orgulho de
termos uma legislação sobre a proteção à infância nos moldes do “Primeiro Mundo”. O que
deveria de fato nos preocupar é, “[...] como viabilizar princípios básicos de justiça num contexto
em que, manifestadamente, a maioria das famílias não vivem em condições de “primeiro
mundo”. Como dar ouvido a esses outros, também, enquanto sujeitos de direito?” (FONSECA;
CANDARRELLO, 1999, p. 112).
É óbvio que não podemos perder de vista o ideal de alcançarmos uma completa
erradicação de toda e qualquer forma de trabalho infantil, porém, temos de estar cientes de que
isso só será possível quando houverem políticas públicas e programas que contemplem essas
populações que se encontram em situação de vulnerabilidade social – suponho que aqui esteja
a resposta para a indagação de Fonseca; Candarello (1999) acerca de quem seria o “negligente”,
os pais ou o Estado?
82
CAPÍTULO 3 – MULHERES INDÍGENAS E HOMENS BRANCOS: SOBRE OS
CASAMENTOS INTERÉTNICOS
Neste capítulo, a partir das trajetórias de dona Ana Maria e de três de suas filhas –
Analice, Adriana e Patrícia -, dedico-me à análise dos casamentos interétnicos de mulheres
indígenas em Manaus, principalmente, no que toca às motivações para o estabelecimento dessa
modalidade de relação conjugal. Por meio dessas narrativas, portanto, busco entender se tais
casamentos resultam de alguma estratégia de união conjugal, ou se seriam apenas baseados na
satisfação das necessidades individuais de ordem emocional.
Para tanto, sob inspiração da metáfora adotada por Das (1996), de que ao apropriar-se
do território enquanto nação apropriar-se-ia dos corpos das mulheres como território, inicio essa
reflexão por meio da problematização da analogia entre o corpo feminino e a terra conquistada.
Pretendo, dessa forma, evidenciar como essa concepção influenciou as interpretações não só
sobre a vida na América Portuguesa em um contexto mais amplo, mas, sobretudo, sobre as
mulheres indígenas.
Nesse cenário de “quase intoxicação sexual”, conforme as palavras de Freyre (2006
[1933]), os casamentos entre indígenas e portugueses passaram a ser realizados pelos padres da
Companhia, a fim de evitar que se atingisse um quadro de “completa libertinagem”. A partir
desse ponto então, procuro reconstruir a sociogênese dos casamentos interétnicos de mulheres
indígenas com homens brancos, até me aproximar da situação relativamente recente,
investigada por Lasmar (2005), em São Gabriel da Cachoeira.
Em sua análise, Lasmar (2005) compreende os casamentos interétnicos a partir de duas
perspectivas: a primeira refere-se à capacidade de agência feminina no que toca à escolha do
marido, e a segunda corresponde ao que ela chama de movimento dos índios “na direção do
mundo dos brancos e aquilo que o representa” (LASMAR, 2005, p. 144).
Por meio da ideia de agência feminina, a autora defende a tese de que ao escolherem
como marido um homem branco, essas mulheres almejariam o reordenamento da sua posição
na estrutura familiar, de forma a inverter a simetria característica das relações entre irmão e
irmã. Assim, ao disporem de uma situação financeira privilegiada, se tornam uma espécie de
arrimo de família: “presta auxílio aos pais e irmãos, recebe parentes em sua casa, ampara-os em
caso de necessidade”, uma vez que, “ajudar os parentes necessitados é, sem dúvida, uma forma
de incrementar o seu prestígio no interior da família extensa (LASMAR, 2005, p. 168).
83
Ao mesmo tempo, ao casar-se com um homem branco, essas mulheres, bem como seus
familiares, teriam o acesso facilitado à escola, hospital e mercadorias, instituições e bens
exclusivos do mundo dos brancos. Deste modo, ao incorporarem em seu cotidiano a dieta
ocidental e um figurino parecido com o das mulheres brancas, essas indígenas se aproximam
daquilo que seria, na concepção dos índios, o modo branco de viver na cidade. Sua casa seria,
então, “[...] um ponto de apoio e transformação, uma espécie de fronteira entre o mundo dos
índios e o mundo dos brancos” (LASMAR, 2005, p. 248).
A partir dos depoimentos de dona Ana, Analice, Adriana e Patrícia, entretanto, todas
filhas e em algum momento parceiras e/ou esposas de não-indígenas, advogo que a ideia de
agência feminina, tampouco, o suposto antagonismo entre mundo dos brancos e mundo dos
índios, não são válidos para refletir sobre os casamentos interétnicos de mulheres indígenas em
Manaus. Frente a isso, como se notará a seguir, procuro entender tais casamentos sob uma ótica
que contemple a sentimentalização da conjugalidade, de modo a refutar toda e qualquer hipótese
de possível estratégia para a união conjugal.
Sobre seus respectivos maridos, esclareço de antemão que, lamentavelmente, não tive a
oportunidade de conhece-los. Durante a semana passavam o dia no trabalho, e mesmo aos
domingos, não cheguei a encontra-los. Sobre eles, como se virá adiante, com exceção do marido
de Adriana, que é empresário, os demais exercem funções de baixa remuneração, sendo um
mecânico e o outro porteiro.
85
gentilizarem, o que os fazia ceder ao encantamento das ameríndias e viver em
pecado.
86
indivíduos na condição de colonizados ou colonizadores. As mulheres colonizadas, mesmo
antes do reordenamento de seu trabalho sexual e econômico, decorrente do domínio colonial,
já obtinham resultados diferentes que os homens colonizados. Posteriormente, “[...] tinham de
negociar não só os equilíbrios em suas relações com seus próprios homens, mas também o barroco e
violento conjunto das regras e restrições hierárquicas que estruturavam suas novas relações com os
homens e as mulheres do império” (MCCLINTOCK, 2010, p. 21). As mulheres coloniais, por sua vez,
ainda que fossem “barradas nos corredores do poder formal”, em virtude do privilégio de raça,
assumiam:
88
88. Entre os meios, mais proporcionados para se conseguir taõ virtuoso,
util, e santo fim, nenhum he mais efficaz, que procurar por via de
casamentos esta importantissima uniaõ. Pelo que recommendo aos
Directores, que appliquem um incessante cuidado em facilitar, e promover
pela sua parte os matrimonios entre os Brancos, e os Indios, para que por meio
deste sagrado vinculo se acabe de extinguir totalmente aquella odiosissima
distinçaõ, que a Naçoens mais polidas do Mundo abominaraõ sempre, como
inimigo commum do seu verdadeiro, e fundamental estabelecimento
(DIRETÓRIO apud COELHO, 2000, p. 158).
Acreditava-se, deste modo, que por meio dos casamentos se atingiria a fase conclusiva
do processo de união entre portugueses e indígenas (COELHO, 2000; 2007; 2008; GARCIA,
2007; SAMPAIO, 2001), em que, a mulher indígena, ao deixar seu grupo familiar, adotar o
sobrenome e os costumes do marido, assumiria uma nova identidade, supostamente,
abandonando sua condição étnica (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014). Assim, por meio dos
casamentos promover-se-ia a miscigenação, que por sua vez, representava uma estratégia para
a educação e civilização dos índios.
Nesse projeto, como bem destacam Garcia (2007) e Paraíso (2013), as escolas
desempenhavam uma função central: ensinavam às meninas indígenas as habituais atividades
do trabalho feminino, preparando-as para serem boas esposas e mães, de modo a gestar e educar
os filhos de acordo com os padrões adequados para a nova sociedade. Retiradas do convívio
de suas famílias para serem educadas, essas meninas:
No Alto Rio Negro, ainda no século XX, as escolas da Missão Salesiana davam
continuidade a esse modelo de educação - “os índios mais idosos contam que os padres
percorriam as comunidades recrutando crianças de 6 a 7 anos que seriam levadas para estudar
nos internatos dos centros missionários” (LASMAR 2005, p. 36). Lá, as crianças aprendiam
ofícios manuais, como carpintaria e costura, além do acesso aos conhecimentos, que, de acordo
com o dizer das freiras, os fariam “ser alguém na vida”.
Ainda que empreendida com rigidez e truculência, a educação escolar oferecida pelos
salesianos passou a conferir prestígio a esses alunos indígenas, fazendo com que as famílias
passassem a investir na sua formação escolar completa. Entre as meninas, conforme Lasmar
89
(2005, p. 170), “aquelas que se mostravam mais dedicadas aos estudos costumavam ser
poupadas do trabalho na roça, ao passo que as menos estudiosas serão orientadas mais
intensamente para a atividade agrícola”. Originou-se então, a oposição entre roça/escola como
opções de percursos de vida, estabelecendo assim a distinção entre aptos e não aptos ao trabalho
agrícola.
Conforme a autora, a roça não somente constitui-se como um elemento central no
cotidiano feminino, mas também exerce papel importante na constituição da identidade das
mulheres indígenas dessa região. A roça seria, portanto, juntamente com o casamento e os
filhos, a fonte de prazer e autoestima dessas mulheres, uma vez que, “as mais “trabalhadeiras”,
isto é, aquelas que são vistas indo para a roça com regularidade e sempre apresentam seus
produtos nas reuniões coletivas, são frequentemente elogiadas por homens e mulheres nas
conversas cotidianas” (LASMAR, 2005, p. 119).
Deste modo, a falta de conhecimento e habilidade para a execução da atividade agrícola
seria, na concepção de Maximiano (2008), um dos motivadores para a migração de mulheres
indígenas para os centros urbanos, bem como para a opção por casamentos interétnicos. Essas
mulheres não estariam capacitadas para realizar as funções exigidas às esposas indígenas,
como declarara uma de suas interlocutoras da etnia Tariano, à época com 40 anos de idade:
Para Lasmar (2005), entretanto, há uma mudança no valor atribuído à roça pelas novas
gerações de mulheres indígenas que nasceram e cresceram na cidade, por conta disso, a opção
de se casar com um homem branco por parte dessas mulheres resulta de uma estratégia de união
conjugal. Tais casamentos, além de benefícios econômicos, lhes oferecem a possibilidade de
permanecer perto de sua família.
90
3.3 Casando-se com branco: aconteceu!
Dona Ana atualmente tem 65 anos de idade e mora em Manaus desde os 48. Contou-me
que nasceu em um povoado na Amazônia Colombiana, mas que ainda criança mudou-se com a
família para uma comunidade indígena do povo Tukano no interior do município de São Gabriel
da Cachoeira, no Brasil. Lá, cresceu em uma Missão Salesiana, chegando a ser interna do
colégio, porém, em virtude de um desentendimento com as freiras, não quis mais retornar.
Analfabeta e com domínio limitado da língua portuguesa, encontra muita dificuldade
para se expressar, bem como para narrar sua história, não conseguindo estabelecer uma
linearidade entre os fatos. Patrícia, sua filha mais nova, percebendo a dificuldade da mãe em
reconstruir sua trajetória, aproximou-se e interviu dizendo:
Ela não sabe se expressar muito bem, como eu falo pra ela, às vezes a senhora tá
conversando com uma pessoa, só que a pessoa não entende o que a senhora quer passar
pra ela, né, quer explicar, porque ela fala de um jeito e a pessoa entende de outra forma.
Eu falo pra ela, tudo que a gente fala tem duas formas da pessoa entender. Ela fica
enrolada, porque às vezes ela não sabe explicar direito, né, aí do jeito que a pessoa
quiser entender, ela entende. Mesmo quando a gente tá falando alguma coisa pra ela,
a gente tá falando assim, alguma coisa de bem, né, pra ela, ela acha, do jeito que ela
entende, ela acha que a gente não gosta dela, que não sei o que. Ela também não
entende direito o português (Patrícia, etnia Tukano, 23 anos).
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Deste momento em diante, Patrícia sentou-se conosco e participou da conversa,
explicando-me ela própria partes que conhecia da trajetória da mãe. Dona Ana falava pouco,
acrescentava alguns detalhes às narrativas da filha, ou acenava afirmativamente com a cabeça.
Contaram-me que, foi ainda enquanto vivia na Missão que dona Ana conheceu o pai de
sua primeira filha, Analice. Cearense, branco e de olhos claros, ele fora para sua comunidade
trabalhar na construção da igreja. Lá permaneceu por pouco mais de 03 anos, quando, ao
terminar as obras foi embora. À época, os padres souberam de que ele deixara família no Ceará
e, por conta disso, não permitiram que se casassem.
Teve a Analice a primeira filha dela, que como lá em São Gabriel era assim que os
indígenas não podiam se envolver com o homem branco, como ela foi criada também
nesse negócio de padre, essas coisa lá, não podia se envolver com gente que não era da
sua aldeia, que não era índio. Aí ela conheceu o pai da minha irmã, ela se envolveu
com ele, só que aí os padre descobriram que ele era casado, só que ele era separado,
não vivia com a mulher, aí então fizeram com que ela se separasse dele e ela criou a
minha irmã sozinha. Não quis, porque eles disse que não podia porque ele era casado,
que não podia viver com ela amigado, eles não aceitavam. Aí eles eram que protegiam,
aí eu falo pra ela bem assim "protegeram tanto que não ajudaram a senhora a criar
sua filha também, a senhora criou sozinha, né". Aí depois foi aí que também se envolveu
com o pai da minha outra irmã, aí se envolveu com o pai da outra, e tudo abandonaram
também ela, iam embora, né, já tinham outra família também. Iam pra lá com trabalho,
né, aí conhecia as índia e engravidavam elas e vinham embora (Patrícia, etnia Tukano,
23 anos).
Sete anos mais tarde, como relata Patrícia, dona Ana conheceu o pai de sua segunda
filha, Gleide, também um homem branco e quatro anos depois, o pai de Adriana, sua terceira
filha. Sobre ambos nem dona Ana, nem Patrícia fizeram comentários. Posteriormente, quando
conheci Adriana, ela contou-me que seu pai era negro, e que supunha ser um militar, mas que
a mãe nunca lhe dissera nada sobre ele.
Dona Ana permanecera em sua comunidade cuidando dos pais, porém, deixou Analice,
sua filha mais velha, aos cuidados de sua madrinha em São Gabriel da Cachoeira. Solteira,
criando as filhas sozinha, aceitou se casar com o pai de Patrícia, um índio Tukano de uma
comunidade vizinha. Contou-me que ele a pedira em casamento muito tempo antes, mas que
não aceitara, porque não queria se casar com índio, pois como “já sou índio, tem que procurar
melhoria pra gente”. Anos depois, no entanto, diante da insistência do rapaz, concordou em se
casar, engravidando de sua quarta filha.
92
Este foi o primeiro e único casamento de dona Ana, que, fatalmente durou pouco, pois
ficara viúva quando Patrícia completou 03 anos de idade. Perguntado qual foi a causa da morte
de seu marido, ela não soube dizer-me, e nem mesmo Patrícia sabe ao certo o que aconteceu.
Desde então, não teve nenhum outro relacionamento, criando as quatro filhas sem o apoio dos
respectivos pais.
Eu criei minhas filha sozinha, quatro filha, mas essa daí (Patrícia), eu casei com o pai
dessa menina, casei com ele. No mês que a filha dele nasceu, quando ela tinha 03 aninho
ele morreu. Essa é a caçula. Eu tô sozinha agora. Tem muito tempo, né, criei sozinha
elas. Por isso que eu falo "eu criei sozinha vocês. Eu trabalhava em São Gabriel, né,
lavava roupa, no fim do mês eu recebia meu dinheirinho e eu comprava comida, roupa
delas, tudo... Nunca passei fome. Final da semana ia embora pra meu parente fazer
farinha, ganhava farinha, ganhava beiju pra trazer pra mama, foi assim que criei
minhas filha (Ana Maria, etnia Tukano,65 anos).
Quando me disse que não queria se casar com um índio, acrescentou que “a maioria é
tudo misturado lá, tudo filho de branco”. Então, perguntei como os indígenas lidavam com isso,
e Patrícia apressou-se em responder-me que “eles não aceitavam antes não, mas agora já não
é como uma aldeia lá, antes era, né. Aí falavam, achavam que não podia ter, que não era pra
se envolver. Eles não aceitavam, né, agora já, como a maioria já é os filhos misturado [...]”.
Dona Ana permaneceu na comunidade até o falecimento de seu pai, quando, em virtude
do adoecimento de sua mãe mudou-se para São Gabriel da Cachoeira. Lá passou a morar em
uma casa cedida, trabalhava como lavadeira e vendia hortaliças para garantir o sustento da
família. Nessa ocasião, Analice, sua filha mais velha, já estava morando em Manaus há alguns
anos, e contribuía para o orçamento familiar com simbólicas remessas de dinheiro que enviava
à mãe. Foi então que, após o falecimento de sua mãe, e do nascimento das filhas gêmeas de
Analice, dona Ana mudou-se para Manaus para cuidar das netas enquanto a filha, recém
divorciada, trabalhava em turnos dobrados para sustentar a família.
Em Manaus, o quadro de dificuldades enfrentadas por dona Ana e as filhas se agravou,
pois, distante da família e sem uma rede de relações constituídas, não dispunha de nenhum
suporte afetivo ou financeiro e, por conta disso, suas filhas, ainda crianças passaram a
trabalhar/morar com outras famílias.
Atualmente, dona Ana mora com sua filha Patrícia, seu genro e seus 03 netos em uma
casa de dois cômodos no Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente. Ainda não conseguiu
se aposentar em decorrência de problemas com seus documentos pessoais, deste modo, vivem,
basicamente com salário do genro e com a ajuda de Adriana, sua terceira filha, que dispõe de
93
maior estabilidade financeira. Essa filha chegou a convidá-la para morar em sua casa, mas dona
Ana não aceitou, pois não quer “ficar no meio dos brancos”.
3.3.2 Analice
Analice é a filha mais velha de dona Ana. Atualmente tem com 37 anos, está no seu
segundo casamento, e é mãe de 04 filhas. Com 06 anos de idade, a fim de aprender português,
passou a morar em São Gabriel da Cachoeira na casa de sua madrinha que era professora. Aos
12 anos, mudou-se para Manaus para trabalhar como babá/doméstica na casa de um irmão dessa
senhora, retornando para São Gabriel apenas aos 19 anos, em virtude do adoecimento de sua
avó. À época, estava grávida de 08 meses de suas filhas mais velhas, gêmeas, que acabaram
nascendo lá.
94
Conheci Analice por intermédio do cacique, Eledilson, em uma tarde que andávamos
pelo Assentamento. Nessa ocasião, nossa conversa foi interrompida por uma forte chuva, e
combinei de visita-la em outro momento. Ela fora a primeira pessoa da família de dona Ana
que conheci. Até então, não sabia de sua história, por isso, quando a visitei e perguntei-lhe
acerca de seu pai, ela respondeu-me:
Analice: Quando a mamãe, no caso a gente morava lá na aldeia, aí na época, como ela
conta, ela diz que ela não queria índio [risos]. Porque tinha aqueles pessoal que iam
pra lá pra construir igreja, capelas, né, aí chamava de peão que era os branco, ela se
engraçou por um lá, que era o meu pai, que era cearense. É... um homem branco dos
olhos verdes, e eu não puxei nadinha pra esse homem, meu Deus [risos]. Ela já
engraçou por ele e ficou com ele, então não era, só que quando eu tava com 03 ano de
idade ele foi embora porque ele terminou as construção de capela naquelas comunidade
indígenas. Todas as aldeias por lá quase todo mundo tinha aqueles costume, andavam
nu, então os padre tavam civilizando, colonizando tudinho, né, aí foi na época que ela
conheceu ele, aí quando terminou todas essas obras, essas construções ele veio embora
pra cá.
Analice: Perdi contato. Quando eu tinha 12 anos ela me disse que ele tinha mandado
uma carta querendo me conhecer tudinho. Mora aqui em Manaus, só que eu não sei
aonde.
Analice: Nunca mais eu vi ele. Dizendo ela que viu um dia desse ali perto da Feira do
Produtor, mas também não sabe...
Analice: Dizendo ela que era ele. Aí eu passo por lá procurando. O meu Deus, onde eu
vou achar esse homem? [...] Todo final de semana eu levo ela lá que a gente vai comprar
goma, a gente vai comprar farinha, peixe, essas verduras e frutas, né. Aí eu levo ela pra
vê se eu vejo, mas nunca... Ela fica quietinha, calada. Não, no dia que ela viu, ela ficou
calada, muda e surda. Ela tava com a minha irmã. Quando chegou aqui em casa que
ela foi falar pra ela que ela tinha visto ele. Ah, eu fiquei arrasada nesse dia. Disse
"poxa, por que a senhora não falou pa Patrícia, né, pra ela ir lá perguntar se era ele
ou não?".
Abandonada pelo pai ainda quando pequena, com a mãe dispondo de escassos recursos
para cria-la, Analice foi criada por outras duas famílias. Sobre o pai, como se nota, demonstra
sentir vontade de conhece-lo, sem demonstrar nenhuma espécie de rancor ou questionamento
em face de sua partida, embora lamente ter crescido sem sua presença:
95
Nenhuma da gente, das minhas irmãs, a gente tem, tivemos um pai assim que
convivemos, porque olha, eu tenho 37 anos, vou fazer 38, e o pai da minha irmã já é
outro, o pai de outra é outro, o pai da caçula que era indígena, dessa que mora aqui,
dela era indígena mesmo, quase da mesma etnia, se não me engano. Então é assim, mas
nós superamos tudo isso, né. Quem é que não quer ter um pai e mãe do lado, então... só
isso mesmo, mas nem por isso a gente se afastou, deixamos de ter os nossos costumes...
(Analice, etnia Tukano, 37 anos).
Ela afirma manter uma boa relação com todas as suas irmãs, porém, diz ter menos
contato com uma delas, que por ser casada com um empresário, “vive uma vida diferente” e,
embora o cunhado a trate bem, não os visita porque não se sente à vontade em decorrência da
diferença econômica.
Com relação às experiências enquanto fora “filha de criação” em outras famílias,
também não fizera relatos detalhados. Contou-me apenas que recebera uma educação rígida e
que “tudo o que sabe lhe foi ensinado nessas casas”.
Em Manaus, permaneceu na casa da mesma família por 07 anos, cuidando das crianças
e dos afazeres domésticos. Não recebia uma remuneração formal por seu trabalho, mas conta
que além de roupas e produtos de uso pessoal, mensalmente davam-lhe um pequeno valor em
dinheiro, que ela enviava para dona Ana em São Gabriel da Cachoeira.
Posteriormente, já casada e mãe de duas filhas, passou a trabalhar como cobradora de
ônibus, função que exercera durante 12 anos. Quando suas filhas estavam com
aproximadamente 05 anos, Analice divorciou-se do marido, foi então que dona Ana e suas irmãs
mudaram-se para Manaus, a fim de ajudá-la no cuidado com as filhas. Nessa época, moravam
em uma casa cedida, e ela trabalhava em turnos dobrados para garantir o sustento da família:
Como eu trabalhava, quem cuidava das minhas filhas era minha mãe. Como eu não
tinha marido, depois que eu me separei do pai das minhas filhas, fiquei um bom tempo
sem marido, que eu não queria mais, ganhei trauma porque ele me batia muito. Aí eu
trabalhava e quem ficava com as minhas filhas era minha mãe, então a minha mãe, é...
elas tiveram os mesmos costume da minha mãe, que era minha mãe que tomava de conta
delas, cuidava elas, tudo por elas, porque chegava em casa só pra dormir. Eu
trabalhava de cobradora em transporte coletivo. Eu saia 03 e meia da manhã de casa
e chegava só meia noite, uma hora, eu fazia 02 turnos pra poder suprir as necessidade
da casa. Era minha mãe, minhas filhas e minhas 02 irmãs, porque ele nunca me deu
pensão (Analice, etnia Tukano, 37 anos).
Atualmente, Analice está casada novamente, e teve mais duas filhas. Perguntei-lhe então
sobre os maridos, se o atual e o anterior, também eram indígenas, ao que ela prontamente
96
respondeu-me: “Nenhum deles é indígena, não, graças a Deus”. Demonstrando-me surpresa,
perguntei-lhe então o porquê:
Porque já pensou, eu sou índia, né, no caso ele índio assim, é.... porque índio tem aquele
outro costume, e eu sou muito... índio não gosta muito de trabalhar, oh meu Senhor!
[Risos]. Eu sou muito chata, entendeu? Se você andar essa aldeia aqui todinha você vai
ver a maioria dos homens tudo dentro de casa, quem tem que trabalhar é as mulheres.
Ele é aquele mau costume, entendeu, que índio, não tinha comida ia caçar, né. Não
tinha isso, ia.... Também não sei, porque aqui tem várias tribos, então eu não sei quais
são os costumes das outras etnias, né. Aqui a gente vê assim, né. Mas eu digo assim,
porque índio é daquele jeito, é acomodado, né, porque não é à toa que todos, que as
outras pessoas de outras cidades chegam e fazem a vida e tudo, e nós que somos
indígenas, a gente já não consegue. Porque índio já é acomodado, já é parado, tem os
costumes, se tiver comida pra ele tá tudo muito bem, já homem branco não, ele gosta
de trabalhar, de ter coisas, de ter o conforto, essas coisas assim. Mas não é que eu
distrate ou ache ruim, só acho ruim só nesse ponto, porque homem dentro de casa pra
mim, Ave Maria. Aí eu já não... é porque eu já convivi muito também, né, sei como que
índio é (Analice, etnia Tukano, 37 anos).
Já tenho outros costumes, já morei na casa de gente assim, que já, totalmente diferente
da nossa, né. O apartamento tinha de tudo, ela era advogada e ele também advogado.
Ele é advogado, economista, já viajou o mundo todo, então, a educação que eu tive foi
essa, foi muito rígida, foi muito diferente [...] (Analice, etnia Tukano, 37 anos).
A opção de casar-se com um não-indígena, para Analice, seria então, em certo sentido,
resultante da educação que recebera na família para a qual trabalhara e com quem morara
durante 07 anos. Embora isso não lhe tenha sido induzido, a convivência fez com que
constituísse outro referencial de casamento, que comporta a figura do homem enquanto
provedor da família. Ainda assim, isso não significa que esse “parceiro ideal” deva ser,
obrigatoriamente, um homem branco.
Seu atual marido trabalha como mecânico, e ela, desde que engravidou de sua quarta
filha, hoje com 03 anos de idade, parou de trabalhar, mas afirma que pretende voltar em breve.
Além de retornar ao trabalho, contou-me também que pretende voltar a estudar, terminar o
Ensino Médio – cursou até o segundo ano – e fazer uma faculdade.
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Imagem 23: Casa de Analice. Por Marlise Rosa, 08 fev. 2015
Suas filhas mais velhas, as gêmeas, estão com 17 anos e atualmente já são mães. Uma
delas está casada, e a outra vive na casa de uma senhora que a acolheu. Ambas não trabalham,
não mantêm contato com o pai, e dependem da ajuda de Analice, fato que, causa-lhe
desentendimentos com seu atual marido, uma vez que a renda da família é baixa.
3.3.3 Adriana
Adriana é a terceira filha de dona Ana. Tem 25 anos, e assim como suas outras 03 irmãs,
não chegou a conhecer seu pai. Sobre ele, sabe apenas que se trata de um homem negro e supõe
que, à época, fosse militar. Criada somente pela mãe, desde cedo passou a ajudar no orçamento
doméstico vendendo hortaliças que dona Ana cultivava. Por volta de 10 anos de idade, quando
se mudaram para Manaus, em face das dificuldades que enfrentavam, pediu para a mãe que a
deixasse morar com outra família, onde permanecera por 07 anos.
Nessa casa, cuidava de uma criança, realizava os afazes domésticos e preparava as
refeições para os funcionários da pequena padaria da família. Em troca de seu trabalho, recebia
roupas, calçados, e um pequeno valor em dinheiro entregue diretamente à sua mãe. Durante
98
todos esses anos, afirma que sempre foi muito bem tratada, tanto que considera essa senhora
como uma “segunda mãe”.
Saiu de lá com 18 anos, quando teve um desentendimento com seu patrão – ela
esquecera de guardar na geladeira alimentos que acabaram estragando em decorrência da falta
de refrigeração. Disse que ele era muito rígido em relação ao desperdício de alimentos, pois
alegara que, quando criança passara por muitas necessidades.
Quando deixou de trabalhar nessa casa, passou a morar com outra família para cuidar
de uma idosa, porém, como não lhe concediam folgas para que pudesse visitar sua mãe,
permanecera nesse emprego por apenas 06 meses. Foi então que conseguiu um novo emprego,
dessa vez, como garçonete – seu primeiro trabalho com registro na Carteira de Trabalho e
Previdência Social (CTPS) – em uma praça de alimentação, e passou a morar sozinha.
Trabalhava durante à noite, de modo que era possível continuar estudando na parte da
tarde, contudo, teve de trocar de emprego antes de concluir o Ensino Médio, sendo forçada a
abandonar os estudos. Passou então a trabalhar como balconista em uma padaria, quando
conheceu seu atual marido que era cliente do estabelecimento.
No início do namoro, falou-me que não sabia qual era a profissão do namorado, pois ele
lhe dizia apenas que trabalhava em uma empresa:
Lembro que na época eu nem sabia o que ele fazia ainda que ele não me contava, né.
Acho que ele tinha medo de eu ser uma mulher interesseira, essas coisas, né. E eu
também nunca perguntei dele. Ele falava que ele era funcionário de uma empresa, essas
coisas assim, né. Falava, mas não falava que ele era o dono, que ele era isso, que ele
era o diretor, entendeu? E eu contava a minha vida todinha pra ele [risos]. Eu sempre
fui muito de falar. Ixiii, eu não tenho vergonha de falar de onde eu sou, do interior, que
minha mãe é indígena, eu nunca tive vergonha de falar isso não. Tem gente que tem
vergonha, né, eu nunca tive, não. Aí foi quando eu me apaixonei por esse jeito dele, né,
bem bacana mesmo, de ajudar as pessoas, que eu também sou assim (Adriana, etnia
Tukano, 25 anos).
Seu marido tem 45 anos, é divorciado e pai de 03 filhos já adultos. Juntos há 03 anos,
esse é o primeiro casamento de Adriana, que, com ar descontraído, ri ao dizer que o marido é o
oposto do perfil de homem por quem costumava se interessar:
Aí ele sempre foi gentil. Bonito ele não é. Ele é gordo, por isso que eu falo que ele é o
oposto do tipo de homem que eu gosto. Sempre gostei de homem magro, não sei o que,
homem magro, malhado, e ele é o oposto. Ele é gordo [risos], ele é bem mais velho do
que eu, mas assim, eu comecei a ver o interior dele, né, que ele é gentil, ele é educado.
Nunca vi esse homem assim, maltratar ninguém, sabe? Ele daquele tipo que não tem
99
preconceito com nada, respeita os homossexuais. Sabe, ele não liga, trata bem todo
mundo independente de qualquer coisa, cor, raça, ele é super humilde. E ele poderia
ser, tinha tudo pra ser uma pessoa arrogante, que ele tem, como é que fala, condição
financeira muito boa mesmo. Ele pode ter a casa que ele quiser, o carro que ele quiser,
só que ele gosta do mais simples possível [...]. Aí foi quando eu comecei a admirar
(Adriana, etnia Tukano, 25 anos).
100
3.3.4 Patrícia
Patrícia é a filha mais nova de dona Ana, a única, dentre as 04 irmãs, cujo pai é indígena.
Tem 23 anos, é casada e mãe de 03 meninos. Chegou em Manaus com 07 anos de idade, e logo
depois, em virtude das dificuldades financeiras pelas quais passavam, pediu que a mãe a
deixasse morar com outra família – a mesma que acolhera sua irmã Adriana. Nessa casa,
embora realizasse serviços domésticos, diz que ela e a irmã eram tratadas como filhas. Lá
permaneceu até completar 15 anos, quando decidiu voltar a morar com a mãe. Foi então que,
sem recursos, parou de estudar e ainda não concluiu o Ensino Fundamental. Recentemente,
passou a cursar o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas acabara perdendo a vaga
em decorrência das faltas.
Seu marido não é pai biológico de seu primeiro filho, hoje com 05 anos. Contou-me que
se conheceram logo depois do nascimento da criança, e que ele não se importara em assumi-lo
como filho. Atualmente, o marido trabalha como porteiro em um hospital, emprego conseguido
pelo esposo de Adriana. Ele é o principal provedor da família, ajudando, inclusive, uma das
filhas de Analice, mãe de uma menina – ela explicou-me que como eles tiveram apenas
meninos, o marido apadrinhou a sobrinha.
Logo que se casaram, moraram no quintal de sua sogra, mas não tinham uma boa relação
com o padrasto do marido, que não concordava que o enteado assumisse o filho e a mãe da
esposa. Saindo de lá, mudaram-se para o Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente, onde
vivem em uma casa de 02 cômodos. Essa casa é de dona Ana, que mora com eles, pois a casa
de Patrícia, também nesse mesmo assentamento, encontra-se interditada em decorrência de um
deslizamento de terra. Contou-me que seu filho mais velho, de 05 anos, não gosta de morar ali,
diz que a casa é feia, e que quer ter uma casa igual à da tia Adriana, onde possa ter um quarto
só seu.
101
Imagem 24: Casa de Dona Ana, onde mora com Patrícia, seu genro e seus três netos. Por Marlise Rosa, 08 fev.
2015.
***
103
sombra de dúvidas, uma divergência com relação aos modos de vida, mas isso não evidencia a
existência de um antagonismo entre um mundo dos brancos e um mundo dos índios. Como
demonstrei no capítulo anterior, a cidade não é percebida pelos indígenas como um espaço que
não lhes pertence, ao contrário, tanto se sentem parte da cidade que são crescentes os
movimentos para a construção de territorialidades étnicas, bem como para a reafirmação dos
direitos indígenas no espaço urbano.
Nesse cenário, o casamento com um homem branco, tampouco, a mudança dos hábitos
alimentares e vestimentas, não as aproxima de um modo de ser branco especificamente, mas
sim, um modo de ser índio na cidade, que por força das circunstâncias, se distingue do modo
de ser índio na comunidade ou, até mesmo, nas cidades do interior. Por força das circunstâncias,
me refiro aqui principalmente aos aspectos econômicos, que os obriga a sobreviverem com
recursos escassos. Por conta disso, os hábitos alimentares são alterados, sobretudo, em virtude
da necessidade de, nos centros urbanos, terem de comprar produtos que, no interior, cultivam
em suas roças. As roupas são aquelas vestidas por qualquer outra mulher pobre residente na
periferia, independentemente de ser branca, negra ou indígena. O acesso à saúde, educação e
moradia, continua excludente, pois nem mesmo seus maridos brancos, porém pobres,
conseguem acessá-los com dignidade.
Casar-se com um homem branco, portanto, neste contexto em específico, não concedeu
a essas mulheres indígenas nenhuma espécie de privilégio ou ascensão social em seu grupo de
origem ou na sociedade envolvente, logo, a interpretação desses matrimônios sob a perspectiva
de uma provável estratégia de união conjugal, nesse caso, torna-se equivocada.
Esses relacionamentos são, assim como foi o casamento de dona Ana com um índio –
mesmo que a contragosto –, escolhas que se dão dentro de um “campo de possibilidades”
(VELHO, 2003) e, se tratando de um centro urbano, consequentemente, o leque de
possibilidades se alarga, especialmente, no que toca à oferta de parceiros não-indígenas.
Além disso, ainda sobre a ideia de alteração do modo de vida, deve-se levar em conta
que, na situação investigada, a ida dessas mulheres para as cidades ocorreu quando eram
crianças, portanto, o casamento não seria para elas um meio de inserção em um novo cenário
social, uma vez que, essa inserção já teria se dado através das famílias de não-indígenas com as
quais moraram e trabalharam.
Deste modo, defendo que para o real entendimento dessas relações, a melhor opção
teórico-metodológica é aquela que contemple a sentimentalização da conjugalidade, e não
104
apenas que se limite ao sentido que lhes é atribuído segundo os princípios da sociocosmologia
indígena.
Partindo desse pressuposto, procuro entender os casamentos interétnicos de mulheres
indígenas com homens brancos em Manaus, a partir da definição de matrimônio elaborada por
Velho (2006 [1986], p. 26), em que “o casamento, [...], é caracterizado como sendo uma escolha
recíproca, baseada em critérios afetivos, sexuais e na noção de amor”. Esse amor, por sua vez,
seria um “amor confluente”, conforme Giddens (1993), que “presume igualdade na doação e
no recebimento emocionais”, de forma a se aproximar do protótipo do relacionamento puro –
aquele em que ambos os parceiros, com igual aceitação, ficam juntos enquanto cada um obter
da relação benefício suficiente que justifique sua continuidade (GIDDENS, 1993).
Em resumo, casa-se com quem se ama, embora esse ideal de amor, como nos lembra
Heilborn (2004, p. 136) “[...] está muito longe do mito ‘do-amor-rompe-todas-as-barreiras’”,
pois o sustentar-se da relação a dois, no cotidiano, demanda uma série de esforços e condutas,
de modo que possa atingir certa estabilidade.
A partir desse ponto de vista, sugiro que entendamos tais uniões pela via da emoção, da
afetividade, em que a escolha do parceiro envolve questões de afinidade e cuidado não só para
consigo, mas também para com seus familiares, já que, de modo geral, todas têm filhos de
relações anteriores, ou então são responsáveis pelo sustento da mãe. A cor/raça não seria aqui
um fator determinante dessas relações, bem pelo contrário, seria algo de pouca relevância para
a maioria delas, pois, até mesmo quando um parceiro indígena é preterido, não se evidencia a
preferência por homens brancos.
Seria um equívoco, entretanto, como adverte Le Breton (2009), pensar razão e emoção
enquanto opostos, uma vez que, emoção por si só segue uma lógica cultural e moral, logo, ela
também tem sua razão, ao passo que a própria razão, não é algo maquinal, assim, também é
atravessada pela afetividade. Os afetos, portanto, não deixam de expressar interesses sociais,
mas, ainda assim, os casamentos com homens brancos, nesse contexto, não devem ser pensados
como uma estratégia de união conjugal.
Além disso, deve-se destacar o caráter eventual com que o casamento é pesando por
essas mulheres, podendo ou não acontecer, deste modo, não representando um “projeto”
(VELHO, 2003) de vida. A ideia do “aconteceu” expressa tanto a escolha do parceiro, como
também o próprio casamento em si.
Por fim, deve-se ter em mente que, nessa modalidade de relação conjugal, embora
possamos pensa-la enquanto um encontro intercultural, em que ambos os parceiros são afetados
105
pelo processo de troca, não podemos desconsiderar a existência de relações de poder, sobretudo
no que toca ao gênero e à raça, que inviabilizam o prevalecimento de valores pautados em
igualdade, liberdade e singularidade individuais – constitutivos dos casamentos na sociedade
contemporânea -, como viremos no próximo capítulo.
106
CAPÍTULO 4 – SER ÍNDIO EM UMA FAMÍLIA DE BRANCOS: SOBRE A
IDENTIDADE ÉTNICA NO INTERIOR DAS RELAÇÕES FAMILIARES
Ainda que autores clássicos do pensamento social brasileiro, como, por exemplo,
Gilberto Freyre (2006 [1933]), reconheça a grande participação dos indígenas na constituição
da sociedade brasileira desde que aqui aportaram os portugueses, os estudos sobre essa
temática são, até os dias de hoje, inexpressivos. Essa negligência histórica, no que toca ao lugar
do índio nesse “cadinho das raças”, deve-se, como bem assevera Pacheco de Oliveira (2014),
a tendência de pensar a mestiçagem no Brasil apenas como resultante do entrecruzamento entre
descendentes de portugueses e africanos.
Deste modo, a fim de demonstrar que a incorporação de indígenas às famílias brancas
via adoção ou casamento foram práticas muito comuns em diferentes momentos da história de
nosso país, inicio este capítulo apresentando uma espécie de mapeamento de alguns casos que
se fizeram conhecidos. Sobre os casamentos, especialmente, os registros disponíveis
encontrarem-se sobretudo no campo da literatura, com as personagens de Catarina e Iracema
– que inspiraram o título desta dissertação. Já, com relação às adoções, encontramos registros
de casos verídicos envolvendo uma criança Bororo, em Mato Grosso, e outras cinco crianças
do povo Xokleng, em Santa Catarina. Tais situações, como sugere Pacheco de Oliveira (2007),
são tomadas aqui como uma metáfora para pensar o “encontro colonial” em sua dimensão mais
individualizadora e cotidiana, em que a interação entre o tutor e tutelado resulta em um
processo de troca cultural bilateral.
Na sequência então, a partir das histórias de Mabel, Adriana e Patrícia, mulheres
indígenas casadas com homens brancos, busca-se compreender como as identidades
individuais – e me refiro aqui à identidade étnica, especificamente – são acionadas ou ocultadas
em relação às características e dinâmicas familiares. Ou seja, como os indígenas envolvidos –
a mulher, esposa e mãe, ou os filhos – lidam com a identidade étnica no interior das relações
familiares, e nas demais relações sociais. Se é índio? Não se é índio? Ou se é “misturado”? Ao
mesmo tempo, por meio desses depoimentos, também busca-se refletir sobre como os maridos
e outros familiares não-indígenas lidam com a identidade étnica dessas mulheres e crianças.
Destaca-se que, nessa situação em específico, não podemos desconsiderar a importância
da disputa política em torno da posse da área ocupada, reivindicada enquanto um território
étnico. Logo, a afirmação da identidade étnica por todos que ali residem é, antes de tudo, uma
estratégia política para a concretização desse projeto.
107
4.1 Adoção e casamento: das formas de incorporação de indígenas às famílias brancas
108
de sua mãe, conforme as palavras de Pacheco de Oliveira (2007, p. 88-89), permitiram-lhe
“desenvolver sua capacidade intelectual e artística sem necessitar para isso escamotear ou
recusar por completo a sua condição de indígena”.
A partir dessa convivência, D. Maria do Carmo desenvolveu um interesse especial pela
cultura indígena, em específico a do grupo de origem de seu querido filho. Durante sua
permanência na Província de Mato Grosso, reuniu cerca de 400 peças etnográficas, sendo
aproximadamente 240 destas pertencentes aos índios Bororo. Após o falecimento de Guido,
essa coleção, juntamente com algumas pinturas, foi doada por ela para o Museu Nacional.
Além do caso do menino Guido, encontramos em Wittmann (2007) registros de outros
cinco casos de adoção de crianças indígenas pertencentes ao povo Xokleng, habitantes do Vale
do Itajaí, em Santa Catarina. Essas crianças, identificadas como Benedita, Isabel, Pedro,
Francisco e Maria, foram capturadas por bugreiros e na sequência, sob o intuito de civiliza-
las, batizadas e adotadas por imigrantes alemães, como bem relata a autora:
Benedita foi adotada por Sofia e seu marido, o médico, Wiegand Engelke. A menina,
“diziam, cresceu “bem educada, prendada e obediente. [...] A esposa do médico, Dona Sofia,
era uma dona de casa exemplar e tinha noção bem clara da verdadeira educadora. Assim,
orientou a criação da bugrinha com carinho de mãe e energia de mestra” (WITTMANN, 2007,
p. 103). Já adulta, Benedita conheceu um funcionário da Estrada de Ferro Santa Catarina, “um
brasileiro” de nome José Inglat, com quem se casou20 e teve três filhos: José, Rodolfo e Sofia -
em homenagem à avó -, todos falecendo prematuramente.
Isabel, a outra menina indígena, cuja história é contada por Wittmann (2007), foi
adotada pela família de Ricardo Ebert. Assim como Benedita, Isabel “[...] aprendeu as tarefas
domésticas incumbidas à mulher naquela sociedade” (WITTMANN, 2007, p. 104), contudo,
em um dia chuvoso, não retornou das aulas particulares na casa da professora, para onde
costumava ir a pé. Seus pais aflitos, passaram a procura-la, até que meses depois souberam que
ela estava se prostituindo em Joinville. Quiseram busca-la, mas foram desencorajados por
20
De acordo com a autora, Benedita foi a única mulher indígena que se casou no Vale do Itajaí. “O matrimônio
ímpar foi realizado entre membros de grupos marginalizados: um brasileiro e uma índia” (WITTMANN, 2007, p.
103).
109
amigos, pois, prostituída, Isabel havia contraído uma série de doenças venéreas, a ponto de ser
expulsa do bordel em que trabalhava. Após a realização de tratamento médico, foi entregue à
família de um cônsul inglês, que vivia em São Francisco do Sul. Lá, conheceu um suboficial
da marinha brasileira, com quem mudou-se para o Rio de Janeiro. Logo depois, o marinheiro,
ao tomar conhecimento das inúmeras traições de sua amásia, abandonou-a, assim, Isabel voltou
a se prostituir, sendo, mais tarde, sepultada como indigente.
Pedro, por sua vez, após ser batizado, foi escolhido como afilhado pelo governador do
Estado de Santa Catarina, Vidal Ramos Júnior, e estudou durante anos no colégio dos padres
jesuítas, o prestigiado Ginásio Catarinense. “Em 1906, entrou no Primeiro Curso Preliminar.
Em 1907, frequentou o Curso Preliminar Seção Superior” (WITTMANN, 2007, p. 106), ano
em que ficou em terceiro lugar no “prêmio de excelência em procedimento, aplicação e
progresso”, sendo o melhor aluno nas matérias de História Bíblica e Doutrina Religiosa. No
ano de 1908, cursou o Segundo Preliminar, quando se destacou na matéria esportiva,
modalidade barra. Nos anos seguintes, Pedro frequentou o Primeiro e o Segundo Ginasial,
reprovando neste último. Em 1912, foi aprovado no Terceiro Ginasial, porém, sem honrarias.
“No Quarto Ginasial, ele ficou novamente próximo aos alunos premiados e dignos de menção
honrosa. Em 1914 ele terminou o Quinto Ginasial recebendo o prêmio em futebol”
(WITTMANN, 2007, p. 106-107). Terminada sua etapa escolar, cessaram-se os registros sobre
sua trajetória, de modo que, não se sabe o destinou que o acometeu.
A outra história é a do menino Francisco, adotado por um renomado padre, Francisco
Cogogn Topp, responsável pela institucionalização da Igreja Católica em Santa Catarina.
Segundo relatos, Francisco chegou a entrar no seminário, havendo rumores de que faria
estudos superiores de teologia em Roma, porém, “nem o sacerdócio nem as missões
evangelizadoras o mantiveram na Igreja. Durante uma viagem à Europa, ele “apaixonou-se, no
vapor, pela filha de um rico fazendeiro gaúcho. Mais tarde, casou e se tornou escrivão distrital”
(WITTMANN, 2007, p. 111).
Por fim, chegamos ao caso de Maria, cujo nome indígena era Korikrã, adotada pelo
médico alemão, Hugo Gensch. Embora fosse uma prática comum para as famílias da região
irem até a Congregação da Divina Providência escolherem uma criança indígena para adotar,
Gensch, por não ser filiado a nenhuma comunidade religiosa, aguardou durante dois anos até
conseguir adotar uma criança – a maior do grupo, com 13 anos, que ninguém se animara a
pegar devido à idade.
Como bem relata Wittmann (2007, p. 127), “influenciado pelos referenciais teóricos do
110
evolucionismo social, Gensch acreditava na possibilidade de civilizar os índios, que
superariam estágios através da educação”. Assim, a fim de comprovar essa tese, Gensch
educou Maria para que se tornasse o modelo desse projeto, registrando todas as etapas do seu
processo educacional, mais tarde compiladas na monografia sob o título A educação de uma
menina indígena. Através de Maria, assevera a autora, “[...] ele pretendia provar para a
comunidade a veracidade do discurso e da prática da adoção civilizatória” (WITTMANN,
2007, p. 141).
Em 1918, passados mais de dez anos desde sua adoção, Gensch juntamente com
Eduardo Hoerhann, responsável pelo aldeamento dos índios em Ibirama, decidiram promover
um encontro de Maria e com seu pai biológico. Ao se encontrar com os índios – seu pai, três
irmãos e uma tia -, estes não a reconheceram em virtude das vestimentas elegantes e do
penteado.
Depois que Eduardo apontou para ela, os índios começaram a apalpá-la. Logo
alguém se lembrou de procurar a sua marca ritual feminina, dois sinais na
perna esquerda. Enquanto isso, “outros lhe arrancavam a blusa, o pai tirava o
chapéu e desmanchava o penteado, tentando refazer a imagem da filha tão
cedo arrancada de seu convívio, naquela figura estranha e apavorada”. Ao
levantar sua saia, além das cicatrizes do ritual, ele viu uma outra que era
resultado de uma queda. Não havia mais dúvidas: era Kokikrã. Obrigando-a a
encará-lo, ele prendeu a cabeça de Maria entre as mãos. O homem perguntava
indignado se ela não reconhecia o próprio pai. A mãe adotiva se esgueirava
horrorizada. Gensch, já arrependido, temia o resultado daquilo. O velho índio
insistia, Maria, porém, não falou uma palavra se quer (WITTMANN, 2007, p.
142).
Diante da reação de Maria, prossegue a autora, seu pai com raiva a empurra
violentamente, dizendo que para eles ela não valia mais nada. Rejeitada por seu povo, e
rejeitando-os também, Maria continuou vivendo com seus pais adotivos, até completar 42
anos, quando falecera vítima de tuberculose.
Todas essas narrativas, sejam elas fictícias ou reais, casamentos ou adoções, podem ser
usadas, como sugere Pacheco de Oliveira (2007, p. 85), “[...] como metáfora para pensar o
“encontro colonial” em sua dimensão mais individualizadora e cotidiana, referida aos
procedimentos pelos quais pessoas de uma sociedade e cultura vêm a ser incorporadas de modo
rotineiro e capilar às instituições e aos grupos de uma outra sociedade e cultura”. Elas relevam
situações em que mulheres e crianças indígenas, ao serem incorporadas a famílias brancas,
ocasionam uma troca cultural, de modo a evidenciar que:
111
O encontro intercultural [...] não se realiza apenas por um movimento
unilateral e pedagógico, pelo qual o tutelado e aprendiz é levado a incorporar
à sua vida os modos e os sonhos do tutor, vindo assim a tentar aproximar-se
de um modelo idealizado. O tutor também acaba por adequar-se àquela
situação de interação, desenvolvendo condutas e priorizando valores que lhe
permitem aproximar-se do tutelado, aumentando o grau de intercomunicação
e mútua compreensão (PACHECO DE OLIVEIRA, 2007, p. 80-81).
Nas situações aqui descritas, esse fato é percebido com maior clareza nos casos de Guido
e Maria, em que os pais adotivos a fim de se aproximarem dos filhos, passam a se interessar
por sua cultura tomando notas sobre seus comportamentos ou colecionando objetos. Há,
contudo, nesses dois casos, uma diferença em termos dos propósitos da adoção: para D. Maria
do Carmo, mãe de Guido, o objetivo era fazer do filho um “índio civilizado”, sem negar sua
identidade étnica, ao passo que para Gensch, pai de Maria, a adoção cumpriria o papel de
integrar a menina à sociedade, diluindo o seu pertencimento étnico.
No que toca aos casamentos interétnicos como um todo, essa troca cultural também
ocorre, alterando os hábitos alimentares e o cuidado com os filhos, como falarei a seguir.
113
4.2.1 Mabel
Mabel é filha de uma mulher do povo Mura com um não-indígena. Atualmente, tem 36
anos, é mãe de quatro filhos adolescentes – três meninas e um menino -, e é casada com um
homem branco.
Mudou-se para Manaus há 15 anos, vindo sozinha com os filhos ainda pequenos. Sua
comunidade de origem fica às margens do rio Amazonas, e em decorrência do constante fluxo
de embarcações, as roças eram inundadas fazendo com que perdessem toda a plantação. Ao
chegar em Manaus, seguiu para o endereço de sua mãe, que ali já vivia há algum tempo, porém,
a mesma se negou a recebe-la, dizendo que ela poderia ficar, mas que não poderia acomodar
seus filhos, pois sua casa era pequena. Magoada, Mabel foi embora, e sem ter para onde ir,
passou os próximos três dias na rua. Foi então que conheceu uma senhora que lhe alugou uma
pequena casa por um valor simbólico – algo em torno de R$ 12,00, na época.
Sem dinheiro e sem emprego, conta que “batia de porta em porta” se oferecendo para
limpar o quintal e lavar roupa. Aceitava qualquer pagamento “R$ 10, ia no outro, me dava 03,
na época, outro me dava os 05, aí um me dava um ranchinho, assim eu ia mantendo os meus
filho e também pagando o meu aluguel”. Passados alguns dias, não conseguiu mais serviços
nas proximidades de onde morava, assim, preocupada com o sustento das crianças, preparou-
lhes o restante da comida que tinha em casa, e saiu em busca de emprego, deixando-os sozinhos.
Não muito distante de sua casa, conta que se deparou com uma obra e foi até lá pedir
emprego. Como não tinha nenhuma experiência em construção civil, se ofereceu para trabalhar
de graça durante uma semana, proposta que foi aceita. Muito esforçada e disposta a aprender,
foi contratada em seguir. Contou-lhes então sobre sua situação, que, compadecidos ajudaram-
lhe com um botijão de gás e um fogão de duas bocas. Além disso, nesse emprego, lembra que
os colegas também a ajudavam com alimentos, dividindo a refeição para que à noite ela pudesse
levar para as crianças.
E tinha mais, quando eu ia pra obra que eles me davam meu almoço, eu não almoçava.
Meu almoço, merenda, eu não almoçava, eu guardava. Aí vez o patrão dizia "pra onde
cê vai levar?", "não, vou levar pro meus filho, que tá sem nada", aí os menino dizia
assim "bora pedir mais", "pede mais 3", aí eles davam 2,3 pra mim levar pros menino
jantar e ainda ficava pro outro dia. Eles faziam isso comigo. Aí quando iam na cozinha,
falavam "a gente vai pegar pão", aí eles tiravam pão escondido e me davam aquele
monte de pão pa mim levar. [...] Aí eu ia pa cozinha pegava aquele saquinho de
macarrão seco, saco de copo descartável, enchia de carne de picadinho, amarrava e
botava pro outro, botava pro outro, até chegava até a mim, e trazia pra casa pros meus
filho (Mabel, etnia Mura, 36 anos).
114
Terminada essa obra, Mabel, novamente, viu-se desempregada. Foi então que, prestes a
ser despejada da casa onde morava, conheceu seu atual marido, sendo, de imediato, acolhida
por sua família. Diante da insistência do rapaz, conta que o levou até sua casa e apresentou-lhe
seus filhos, dizendo-lhe que não era sozinha.
Aí ele disse que queria ficar comigo, aí eu digo "tu quer mesmo ficar comigo, quer saber
mesmo, me conhecer? vai lá em casa", e quando eu vinha chegando do trabalho, ele foi
lá em casa eu falei "ó, esses 04 aí são meu, são meu filho, porque se você quiser alguma
coisa comigo, eu não sou só, tenho 04", e eu falei pra ele, "eu não tenho nem pra onde
ir porque praticamente tô sendo despejada", falei pra ele. Aí ele foi, me levou lá pro
irmão dele, aí ele foi, conversou com a mãe dele e quando deu umas 05 hora da tarde
vem a mãe dele, ela disse assim "bora minha filha", nem conhecia, "bora minha filha,
bora pra casa, que a gente vai tentar arrumar um emprego, eu vou cuidar dos teu filho
enquanto tu arruma um emprego", entendeu. Então quer dizer que foi um apoio que eu
jamais esperei encontrar (Mabel, etnia Mura, 36 anos).
Durante os três anos seguintes, Mabel morou na casa da sogra, juntamente com seus
filhos e outros familiares de seu marido. Lembra que, para as refeições, reuniam-se um total de
42 pessoas. Todos ajudavam na compra de alimentos, e sua sogra os preparava, servindo cada
um individualmente, de modo que, a refeição fosse igualmente dividida.
Sua sogra, além de acolhê-la em sua casa, a ajudou a procurar emprego e cuidava de
seus filhos enquanto ela estava no trabalho, por isso, para a Mabel, a família do marido foi a
família que encontrou em Manaus, foi quem sempre a apoiou. Com a ajuda da sogra, emitiu
seus documentos pessoais e chegou a trabalhar como cozinheira e auxiliar de serviços gerais,
ambos empregos com registro em CTPS.
Passado algum tempo, estabilizados economicamente, Mabel e o marido decidiram sair
da casa da sogra para morar sozinhos, fato que, inicialmente, a deixou chateada, mas que logo
acabara aceitando. Aproximadamente dois anos depois, quando sua sogra adoeceu, voltaram a
morar com ela.
Aí eu fiquei lá com ele, acho que uns 02 anos, aí quando ela adoeceu a gente voltou.
Mas voltou porque assim, se ela adoecia eu cuidava dela e cuidava do resto, eu sempre
cuidei dela, entendeu [...]. Tudo o que ela fez pra mim eu reconheci, então, ela tava
doente eu ia com ela po hospital, entendeu, por causo que, em caso eu fazia comida pra
ela, fazia as coisa pra ela, o que desse pra mim fazer, de noite eu chegava do trabalho
ela tava com o pé dela inchado, eu ficava lavando roupa até de madrugada pra ela não
ter que levar no outro dia por causo que ela ficava com meus filho, entendeu. Aí, o
115
aniversário da minha filha de 15 anos ela fez o maior gosto de trazer todo mundo, em
ajudar fazer [...](Mabel, etnia Mura, 36 anos).
Para Mabel, sua sogra, e toda a família do marido, tornaram-se sua verdadeira família,
fazendo por ela coisas que sua família biológica se negara a fazer. Sobre sua mãe, disse que
atualmente conversam, mas que ainda guarda mágoas por ela ter se negado a acolher seus filhos
quando chegaram em Manaus. Na família do marido, conta que sua identidade étnica nunca
precisou ser escondida, nem mesmo gerou nenhuma espécie de desconforto. Nessa ocasião, o
marido que acompanhava nossa conversa, com ar descontraído, interviu chamando-a de
“selvagem”. Ela riu e disse que ele sempre brinca com ela, mas que não se incomoda, que é
“todo mundo tranquilo, ele me apoia, eu apoio ele”. Na manhã que os visitei – era um domingo
-, haviam acabado de chegar em casa, pois ele a convidara para tomar café da manhã fora, e
enquanto ela guardava as compras de supermercado e começava os preparativos para o almoço,
ele a ajudava alimentando o cachorro, o gato e as galinhas que criam em um pequeno galinheiro
no quintal.
Atualmente, os filhos de Mabel não moram mais com o casal. Duas das meninas já estão
casadas, e outra, juntamente com o irmão, moram com uma tia na comunidade, que fica no rio
Amazonas. Mabel trabalha como revendedora de cosméticos e seu marido como pintor.
4.2.2 Adriana
Não, não é porque eu era indígena, não, mas eles sempre falavam um monte de coisa
pra me provocar, assim, me chamando, tipo assim, tinha um deles que falava "pra mim
todo índio tinha que morrer, não sei o que", essas coisas assim, sabe, que magoavam.
Mas eu nunca liguei, eu sempre chorava escondido. Aí eu lembro que ele [o marido]
me brigava que só, e falava "óh, tem que parar com isso de ficar chorando por aí", ele
falou "não liga pro que eles falam, é isso que eles querem, eles querem te magoar". Eu
116
sei que quase que eu desisto dele por causa desses filhos dele... (Adriana, etnia Tukano,
25 anos).
Seu marido, contudo, embora não manifeste nenhum desconforto com relação à sua
condição étnica, não costuma visitar sua família. Perguntei-lhe então o porquê disso, e ela
respondeu-me ser “o jeito dele”. Brincando, disse que, na verdade, ele que é índio, pois não
gosta de ir na casa dos outros, preferindo recebe-los em sua casa.
Sua mãe e suas irmãs afirmam que ele as trata muito bem, e, inclusive, como comentei
anteriormente, convidou dona Ana para morar com ele e Adriana, mas ela não aceitou. Além
disso, foi ele que arrumou um emprego para o marido de Patrícia. Contaram-me também que
ele gosta das comidas que dona Ana faz, e sempre pede que Adriana leve um pouco para casa.
Dona Ana disse-me que já chegou a visita-los algumas vezes, mas se sente incomodada
porque um dos filhos do genro mora na mesma casa. Dentre as irmãs, Patrícia é a que costuma
visita-los com alguma regularidade, já Analice disse que, embora o cunhado sempre a convide,
não se sente à vontade em decorrência da diferença econômica.
4.2.3 Patrícia
Patrícia, irmã caçula de Adriana e de Analice, é a quarta filha de dona Ana, a única cujo
pai também é indígena. Atualmente, está casada com um não-indígena, com quem tem três
filhos, todos menores de 05 anos. Seu primeiro filho, contudo, não é filho biológico do marido.
Atualmente, Patrícia, o marido e os filhos moram com dona Ana, em uma casa de dois
cômodos no Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente. Logo que se casou, foram morar
no quintal da sogra, em uma pequena casa que o marido construíra, mas em virtude de um
desentendimento com o padrasto, saíram de lá e passaram a pagar aluguel. Essa briga, segundo
Patrícia, foi motivada pelo fato de que seu sogro não aceita o casamento do enteado, pois o
considera muito jovem para assumir tal compromisso, ainda mais com uma mulher que tem
filhos e cuida da mãe. Em sua defesa, ela afirma que sempre diz ao marido que quando a
conheceu ele sabia disso, que, na época, ela já morava com a mãe, portanto, ele “assumiu a
gente com o pacote completo [risos], então tem que aceitar, não tem que falar nada não”.
Após deixarem a casa da sogra, Patrícia e o marido ainda mantinham contato com ela,
até que, um tempo depois, desentenderam-se novamente por motivos financeiros. Desde então,
falam-se muito raramente por telefone.
117
Sobre a relação com o marido, Patrícia afirma ser muito tranquila. Disse que algumas
vezes ele reclama das comidas, dizendo que não vai “comer essa gororoba”, mas no final acaba
provando. Também reclama quando ela oferece para as crianças, alegando que não estão
passando fome e, por isso, não precisariam de outra dieta senão a ocidental. Ela, no entanto, diz
que não abre mão de, sempre que possível, fazer tais pratos, pois “isso aí é o que a gente se
criou”, são alimentos que consome desde a infância. Declarou, inclusive, que quer que seus
filhos experimentem, para que não estranhem caso em algum momento retornem para o Alto
Rio Negro.
Meu marido que repara "não dá isso pros menino, parece que tá passando fome" ele
fala. "Não é, não é passar fome", eu falei, porque eu fui criada assim, pra mim é o
costume, e eu já vou acostumar eles também desse jeito, porque quem sabe um dia eu
não volto pra São Gabriel eu também e levo eles. Aí acostumar, né, porque criança que
não é acostumada com nada, só é acostumada com uma coisa assim, passa fome.
(Patrícia, etnia Tukano, 23 anos).
Sob esse aspecto especificamente, criticou uma de suas irmãs, que também casada com
um branco, cortou da dieta dos filhos todas as comidas indígenas, por isso, as crianças só
comeriam bife, frango e enlatados, enquanto que os seus filhos comeriam de tudo.
Esses daqui já come. Ele [apontando para um dos meninos] vê a mamãe comendo,
molhando o beiju no caldo de peixe e comendo, ele fica doido pra fazer isso. Ele gosta,
esse daqui. Aí foi fazer isso na frente do pai dele [risos], "ah, fica comendo esses troço.
Não é pra fazer isso não, menino, não come assim. A gente não come desse jeito não".
Eu falo: "Come sim, pode comer, não vai morrer, não. Eu nunca morri, por que eles