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Frederico Füllgraf - Fitzcarraldo: genocídio e Cinema no coração das trevas

Ensaio

Published in: https://fuellgrafianas.blogspot.com/2010/09/25-anos-de-fitzcarraldo-


genocidio-e.html

No início era o cinematographo...

Consta que Silvino Santos, o comerciário e fotógrafo amador português, que no início do séc.
20 se aventurou por Belém e Manaus, terá sido o pioneiro do Cinema da Amazônia e do
Brasil, crédito que lhe confere também meu ex-vizinho de escritório no Rio Comprido, Márcio
Souza, para o documentário rodado por Silvino em 1912 sobre o Rio Putumayo, no Peru.
Mas a informação não procede: o primeiro cinematógrafo arrastado pela jungla amazônica foi
o do etnólogo e lingüista Theodor Koch-Grünberg e o primeiro filme ali rodado foi “Taulipang”,
em 1911. Logo depois vem Edgard Roquette Pinto, com seus registros etnográficos
realizados em 1912 para o Museu Nacional, durante a expedição amazônica da Comissão
Rondon. Com uma agravante para Silvino Santos. Por mais que quisesse, ficou devendo à
história o ônus da prova: em 1914 eclode a 1ª. Guerra Mundial, o navio que transporta seus
negativos, que deverão ser copiados num laboratório dos Estados Unidos, é colocado a
pique, e o filme submerge... O segundo filme do português também se perdeu. Em 1918 os
comerciantes Manoel Gonçalves e Avelino Cardoso encomendam a Silvino um documentário
com o título “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”, para comemorar a inauguração da primeira
produtora da hiléia, a Amazônia Cine Film. Com o pretexto de copiar o filme em Londres,
Propércio Saraiva, noivo da filha de Cardozo, desaparece com os originais, deixando Silvino
a ver navios nas barrancas do Rio Negro... Este é da tragédia somente o antelóquio, a
história da “cinemateca submergida” apenas começa a ser escrita.

A conquista do inútil

Quando a câmera abandonou seu enquadramento de plano semifechado, abrindo para a


bestificante cena de um barco com cerca de trinta metros de comprimento e fora d’água,
sendo empurrado por legiões de figurantes indígenas morro cima, o público delirou.
Levantou-se das poltronas do Grand Palais de Cannes, para ovacionar a ousadia do
alemão fou, o doidivano Werner Herzog, que detonara sua pré-produção de três anos e
rasgara seu contrato com a 20th Century Fox, porque esta condicionara o financiamento da
produção à filmagem da cena da transposição da montanha em estúdio. Insurgindo-se contra
“as mentiras [leia-se: os artificialismos] de Hollywood”, o diretor contratou seu próprio
irmão Lucki Stipetic e rodou esta e outras passagens desaforadas do filme on location, em
plena selva amazônica; a um custo humano limítrofe, diga-se. Era o dia 5 de março de 1982
e, sacudido por aquela estréia mundial, o personagem Fitzcarraldo ganhou o mundo como
mensageiro de seu alter-ego: a História é (ou “há estórias que são...” ?) uma “conquista do
inútil”...
Para o crítico stricto senso bastaria aquela cena para justificar um resgate de
“Fitzcarraldo”, que comemora vinte e cinco anos e é um dos filmes memoráveis da história do
Cinema. Sua evocação estará sempre associada ao modo de produção do fazer
cinematográfico de Herzog: ampla liberdade autoral, a escolha de personagens marginais e
espetacularistas, enredos complexos, a opção pelo caminho mais difícil e (vide a relação
Herzog-Kinski!) a aliança com colaboradores idem – desafio presente em todos os filmes do
diretor, que sente prazer no andar de pés descalços sobre o fio da navalha. Aquela
caminhada solitária, por exemplo, flagrada pela TV Alemã no final dos anos 70. Mochila ao
ombro, Herzog marcha pelos bosques nevados da Alsácia e quando é questionado sobre
motivo e destino de sua peregrinação, responde que prestava tributo à diva-pensadora do
Cinema Expressionista, Lotte Eisner, que agonizava na França. E Herzog caminhou uns 800
km, de Munique a Paris, para homenagear sua musa inspiradora e desconstrutora, apesar de
sua obra indisfarçavelmente impressionista e romântica. Meu segundo sobressalto com seu
projeto dramático e filosófico foi em 1981, com notícias que corriam das profundezas da
selva amazônica, acusando o diretor de reinar “no coração das trevas” como o sombrio cel.
Kurtz, personagem de Conrad - metáfora que na versão simplificada por lideranças indígenas
e potenciada pela hipocrisia de algumas ONGs, reverberou mundo afora como “o imperialista
que está violando os direitos humanos”, mas desmentida por convincente investigação da
Anistia Internacional.

“O louco e o possesso”

O que acirrou ânimos contra o diretor, de suspeita semelhança com as imputações já


ocorridas durante a produção de “Aguirre” (1972), também em locações da Amazônia
Ocidental, foi sua obstinação em conduzir com “mão de ferro” e a qualquer custo - como a
renúncia ao apoio condicional de Francis F. Coppola - um projeto autoral penosamente
estruturado. Pesa aqui o conturbado, mas insistente relacionamento com o falecido ator
Klaus Kinski, protagonista da maioria de seus filmes (Woyzeck, Nosferatu, Aguirre,
Fitzcarraldo e Cobra Verde), que num flash do set de filmagem de Aguirre, reproduzido no
documentário „Meu inimigo mais querido “(2000), salta à jugular de Herzog com uma faca em
punho; cena tenebrosamente real, de um „filme sobre o filme“... E a recíproca foi verdadeira,
pois em seu diário de campo sobre os sets de Aguirre e Fitzcarraldo, Herzog confessa ter
ameaçado Kinski de morte em mais de uma vez. Mas o ator não era um problema particular
de Herzog. Dia sim, dia não, o talentosíssimo e irascível Kinski conseguia mergulhar o set no
completo caos, com ataques de fúria, gritos, desmandos e ameaças. Comovidos com a sorte
do sofrido Herzog, dois caciques indígenas lhe cochicharam ao pé-do-ouvido, que estavam
dispostos a „dar cabo do excruciante espírito“. - Políiicia, chamem a polícia!!, bradou o
paranóico Kinski nas profundezas da desassistida floresta e o set veio abaixo com
estrepitosas gargalhadas.

Como a neurótica relação Rimbaud-Verlaine, mas sem nenhuma conotação homossexual, a


sociedade Herzog & Kinski foi congenial, versão trash daquela teia estroinada dos rufiões
franceses; com direito a bate-bocas, pancadaria, facadas e tiroteio. Questionado por um
repórter, por que, afinal, depois de tantas brigas, os dois continuvam trabalhando juntos,
Kinski debochou: “Because he`s crazy. And so am I... that`s why.” E Herzog endossou: “It`s a
perfect combination of the mad people, of the mad men”. Herzog incomodou seus sets com
audácia, brio, intrepidez e nobreza. Já a especialidade de Kinski era o terrorismo psicológico
e sua disposição em reduzir ao pó qualquer interlocutor que ameaçasse sua tirânica aura, de
preferência Herzog: “sujeito miserável, odioso, mesquinho, coberto dos pés à cabeça pelo
fedor da cobiça e a gula por grana, tipo maldoso, sádico, traiçoeiro, achacador, covarde e
descaradamente mentiroso“ ... Mas foi ninguém menos que Kinski quem “comprou“, resoluto,
a “passagem“ e vestiu a camisa, do começo ao fim, para as desvairadas “viagens“ de Herzog
às profundezas do inferno – e isto, apesar de seu casting para o personagem
do cauchero peruano, somente após o abandono do papel por Jack Nicholson e o
adoecimento no set do seu substituto Jason Robards. Em suma: a inspirada cumplicidade
estética entre „o louco (Herzog) e bad boy (Kinski)“ foi a que fez navegar Aguirre e salvou
Fitzcarraldo do colapso.

“Fáustico desbravador de fronteiras” soa algo patética, mas é uma das adjetivações da crítica
alemã que cai como uma luva no personagem Herzog. Suas exigências sempre beiraram a
fronteiras do suportável e se refletem em toda sua obra, d´“O enigma de Kaspar Hauser” por
“Aguirre” (subtítulo : “a ira de Deus”) a seus documentários sobre a escalada do Torre
Catedral na Patagônia ou do inferno nos campos de petróleo, durante a 1ª. Guerra do Golfo;
todos de uma beleza estóica e comovente. Que Herzog faz sucesso domo encenador de
óperas, principalmente do “fáustico” Wagner, não surpreende, apenas ironiza a obsessão do
diretor por rasantes no olho do furacão. Quem os pilota são anti-heróis de causas perdidas,
no máximo de “conquistas inúteis”. Fitzcarraldo é o Aguirre reembarcado: este é o espanhol
delirante à caça do “Eldorado” e aquele, o seringalista obcecado em construir a Ópera de
Manaus, sua releitura e farsa. O que os define e une é sua obsessão.

O agente Wickham

Mas há um outro, talvez o principal motivo para o resgate de Fitzcarraldo, cujo realismo é
escamoteada pela aura do filme cult. A História por trás da estória - nunca referida, nem
pelo making of “Burden Of Dreams“ (Perseguir o sonho) de Les Blank, muito menos por
Herzog - é a brutalidade da “febre da borracha” na selva amazônica no final do séc. 19.
“Descoberta” por monsieur Charles Marie de la Condamine durante sua expedição de 1736
ao Equador, mas conhecida há séculos como cahuchu ou caoutchouc por quase todas as
tribos indígenas da Amazônia ou como pau de xiringa pelos conquistadores
portugueses, a hevea brasiliensis e o látex dela extraído (substância perecível e pegajosa,
devido à ação da temperatura) são redescobertos como produto de utilidade industrial com a
invenção da técnica de vulcanização pelo britânico Charles Goodyear em 1842; época em
que a vila de Barra do Rio Negro fundada pelos portugueses, se reinventa como a cintilante
Manaus da febre do “ouro branco”. O certo é que o ocaso do ciclo da borracha já se escrevia
desde 1876, como crônica de um desastre anunciado. Seu autor: Henry Wickham,
aventureiro fracassado do British Empire, boçal e imperialista convicto. Este desembarca em
Santarém e mediante a arregimentação de indígenas ingênuos, consegue coletar 70 mil
sementes de seringueira, que são escondidas em 819 cestos com castanhas do Pará e
contrabandeadas pelo capitão Murray a bordo do cargueiro Amazonas para Liverpool, e de lá
para o Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra. Wickham fez seu primeiro pé-de-meia
recebendo 10 libras esterlinas por cada lote de 1.000 sementes viáveis. Essa operação de
contrabando e imperialismo biológico mudaria o curso da História Mundial na véspera da 1ª.
Guerra mundial, quando as primeiras sementes da seringueira germinavam em solo da
Malásia e da Índia, quebrando os barões da Amazônia.

A História como opereta


E la nave va..., ao encontro de mais uma imagem inenarrável e mitológica: a bordo do Molly-
Aída e gramofone em punho, Fitzcarraldo ouve eletrizado a voz de Caruso e contempla
possuído(r) a misteriosa floresta que emoldura o rio. Mas este que está embarcado é o
diretor de óperas Werner Herzog, que nos conta uma versão tão glamurizada de Fitz, como é
glamour já decadente aquela Manaus das “Veias abertas...” de Eduardo Galeano: “mansões
de arquitetura extravagante e decoração suntuosa, com madeiras preciosas do Oriente,
azulejos de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de ébano francês" (nota de
coluna social, não registrada por Galeano: também francesa era a água mineral Perrier e em
alguns casos os srs. “barões”, tão incultos quanto neo-ricos, mandavam lavar sua roupa suja
em Paris).

Mas aqueles cartazes que anunciam a apresentação do tenor Caruso no Teatro Amazonas,
inaugurado em 1896, são uma tremenda cascata (e obsessão) de Werner Herzog. Ironia da
história: com medo do cólera, Caruso ficou em Belém e Manaus ficou a ver navios; os que
vinham da Amazônia Profunda, onde a História de fato começa a ser escrita em 1888, por
um tal de Isaías Fermín Fitzcarrald – cenário ao qual convergem, unidos por desencontros,
acasos e obsessões, personagens tão dessemelhantes como o fotógrafo alemão Georg
Hübner, seu amigo e antropólogo, também alemão, Theodor Koch-Grünberg, o cônsul
britânico em Santos, Roger Casement, e Silvino Santos. Em 1888 Hübner e seu conterrâneo
Charles Kröhle vão tentar a sorte na Amazônia peruana. Sua motivação é comercial,
mergulham na floresta com a expectativa de reconhecimento. Seu projeto é a construção de
um acervo fotográfico inédito de “regiões em parte desconhecidas e de tribos selvagens para
além dos Andes” (Hübner), capaz de torná-los fotógrafos imprescindíveis para acompanhar
os naturalistas em suas expedições na floresta. Em 1895 Hübner se estabelece em Manaus,
dando início ao mercado da fotografia paisagística e etnográfica da Amazônia e à sua sólida
amizade de mais de vinte anos com Koch-Grünberg.

O "paraíso do diabo"

Obsessões movem montanhas. E Isaías Fermín Fitzcarrald tinha a sua: descobrir uma
passagem entre dois rios da Amazônia Peruana, que viabilizassem o acesso ao Rio Acre-
Purus, e através dele, a navegabilidade até Manaus, com o escoamento da vasta produção
de látex para os mercados europeus. Nascido em 1862 como filho primogênito do marinheiro
e imigrante irlandês, William Fitzgerald, Carlos Fermín irrompe em cena em 1888 no assim
chamado “oriente peruano”, depois de ser condenado à morte como espião chileno durante a
Guerra do Pacífico, escapar do fuzilamento por um fio, perder o amado pai e - sentindo-se
impotente para desfazer o estigma que o humilhava – desaparecer nas profundezas da
floresta amazônica; sem pistas, por isso dado por morto, por familiares e amigos. Na floresta
começou a circular um causo. Dizia de um “índio branco” nas cabeceiras do Ucayali, que se
apresentava aos índios Campas como “filho do Sol”: “Hablaba la lengua de los campas y les
dijo que el ´Padre Sol´ lo haba enviado con un mensaje, para que las tribus errantes viviesen
como hombres civilizados, formando pueblos con su iglesia respectiva”, conta seu biógrafo
Ernesto Reyna.

Durante dez anos o filho de irlandês vive entre os índios, explora seu território, aprende a
técnica do sangramento da shiringa e a confecção do látex e, como autoproclamada
reencarnação do Inca Juan Santos Atahuallpa, ganha-os como súditos, pregando os
evangelhos cristãos – incansável gesto de gratidão ao Padre Carlos (“Padre Sol”), que o
reconhecera na prisão, salvara-o do fuzilamento e que, agora, abençoava o método
Fitzcarraldo de submissão dos Campas mediante a chantagem: “ou obedeciam cegamente,
ou secariam os rios e desapareceria a caça” (sic!). Em torno de 1890 Fitzcarraldo se instala
festivamente em Iquitos como todo-poderoso senhor das matas de Madre de Dios,
cujos seringais nativos se estendiam aos rios Manu, Tahuamanu, Las Piedras e Los
Amigos, e tem a seus pés mais de 2 mil peões indígenas, fiéis escudeiros de sua obsessão:
a saída para Manaus.
O varadero ou istmo de Fitzcarrald

A bordo da recém-comprada e reformada nau-capitânea “Contamana” (fonte de inspiração do


barco Molly-Aída do filme) o Fitzcarrald(o) da história real parte de Iquitos em abril de 1894
à frente de 2 mil índios e uma frota de lanchas, na qual navegam um rebocador e
embarcações menores carregadas de provisões, mercadorias, ferramentas e armas, rumo
ao varadero virtual – com a palavra, o biógrafo Ernesto Reyna (1):

"... indios piros y campas y un centenar de blancos, unidos a la voluntad férrea de


Fitzcarrald, acometieron la hazaña de hacer rodar el casco de la lancha Contamana por un
camino de diez kilómetros de largo, subiendo alturas hasta de 469 metros. Más de dos
meses duró el paso del Istmo, y Fitzcarrald, con posteriores reparaciones del camino, gastó
cerca de cincuenta mil soles. (…)
En el informe de 400 páginas que el ingeniero Juan M. Torres presentó a la Junta de Vías
Fluviales sobre el Istmo de Fitzcarrald se hace un estudio minucioso sobre este camino,
probando las dificultades que tuvo que afrontar Fitzcarrald al trazarlo, y su capacidad de
ingeniero pera construirlo sin emplear explosivos.
"El varadero de Fitzcarrald parte de la margen derecha del río Serjali a media vuelta antes de
la afluencia de la Huaman-Quebrada, y a los 332 metros sobre el nivel del mar, con rumbo
total N. 70° E., para ir a morir en la margen derecha del Caspajali a los 352 metros sobre el
nivel del mar, después de ascender hasta el divortium aquarum de las aguas de los ríos, a
los 469 m. sobre el nivel del mar, en el kilómetro 7. Su extensión horizontal es de 11
kilómetros. 615 metros aparte de las sinuosidades debidas a la configuración del terreno (...)
Esta hazaña fue considerada por todos como asombrosa, y no ha sido imitada hasta la
fecha."

A metáfora da história
A imitação da façanha tardou 87 anos, a repetição da história buscava um novo ator. E é
possível que tudo tenha começado certa noite em Karnac (Bretanha), conta Herzog com
ensaiada imprecisão. Ele buscava uma cenário para “O enigma de Kaspar Hauser” e na
paisagem deparou-se com menires e dolmens gigantescos. Imaginou, então, um “propósito
demencial”: transportar aquelas pedras enormes e pesadíssimas, cada uma com 150
toneladas de peso e uma altura de 12 metros – “uma tarefa possível”, afinal, seus escultores
o tinham feito séculos atrás, dispondo de meios parecidos: alguns milhares de operários e
alguns troncos de madeira. E foi assim que a idéia de um barco atravessando uma montanha
no braço, foi se impondo à imaginação, porque subitamente lembrou-se de um “episódio” que
tinha ouvido no Peru, no qual um seringalista tinha conseguido uma façanha semelhante,
desconversa Herzog, que voltaria ao Peru e repetiria a façanha; mais uma vez nos braços
dos índios Campas.

Um barco que escala e um filme que move montanhas: esta é “uma metáfora monstruosa,
animista, deslocadora das leis da natureza [materializada]... antes que a maquinária da
ilusão eletrônica dos Spielbergs e Lucas, mormente conhecida por simulação
computadorizada, fizesse dinosauros caminhar, alcançando resultados confundíveis com o
real! ... Alcançar o impossível na contramão da lei da gravidade: esta foi a (absurda) utopia
do fazedor de filmes Werner Herzog; ser „titânico“ mesmo no fracasso, sua esperança
estética“ (2).

Carlos Fermín Fitzcarrald, o Rey del Caucho e fazedor de história, morreu em 9 de


julho de 1897 nas corredeiras do rio Alto Urubamba; afogado.

O efeito Koch-Grünberg

Outro barco fora d´água, capotado; canoa comprida, cheia de carga. E outra vez, a peleja
com a lei da gravidade: um grupo de homens a carrega no braço, cachoeira acima. Ao fundo,
uma caudalosa corredeira. É uma foto, sua legenda explica: “Barco virou, Rio Uaupés, Koch-
Grünberg, 1904”. Justaposta à imagem da Contamana de Fitzcarrald, contará uma nova
estória - “montagem de atrações”, diria Vlasevlod Pudovkin. Também esta foto indica certa
obsessão, a do antropólogo Koch-Grünberg, forcejando contra o curso do Rio Negro e a
maré da História nas entranhas de suas florestas. É sua primeira expedição à Amazônia. Da
realizada entre 1898 e 1900, ao Xingu, em companhia de Hermann Meyer, prefere não se
lembrar; quase morreram, de fome e vertigem. Não é o primeiro alemão desvairado a
embrenhar-se nestas paragens. Em 1820 os obcecados Carl Friedrich Phillip Martius e
Johann Baptist Spix xeretaram pelo Negro e o Japurá até as raias da Colômbia. A propósito:
no Südfriedhof, o cemitério da zona sul de Munique, há uma lápide com a efígie de Éolo, o
deus dos ventos glaciais do norte; os que mataram de frio a Isabela e Yuri, os dois curumins
arrancados em 1820 destas matas e levados por Martius para a Baviera –
descabeçada Völkerkunde, “etnologia” aquela!

Este, no entanto, é um pesquisador que chega sem nariz empinado, que não arma sua
barraca na “clareira da academia”, mas que participa criativamente do quotidiano no interior
das malocas. Muito presente e participativo, apesar de extenuado, K.-Grünberg se instala
nas aldeias do Alto Rio Negro. Seu diário (Dois anos entre os indígenas, 1903-1905) registra
intensa comunicação e interação com os “visitados”. Não está preocupado consigo mesmo,
sua atitude da „jovialidade participativa“ contracena radicalmente e rejeita aquela
“observação melancólica”, fatalista, as lamuriantes (narcisistas?) “auto-reflexões” de um Lévi-
Strauss (ah, estes tristes franceses!...). Paciente e respeitoso, somente muitos meses após
sua aceitação, é que o antropólogo inicia seu projeto sonhado: o ateliê da selva,
chamado Anfänge der Kunst im Urwald – “Inícios da Arte na Floresta”... Distribui enormes
quantidades de lápis e papel aos seus anfitriões e incita-os ao desenho. O resultado é
espantoso, sublime: argutos observadores e hábeis desenhistas (escolados nas filigranas da
pintura corporal e do geometrismo de cestaria), centenas de índios recriam seu universo.
Koch-Grünberg exulta, mas os tambores do Putumayo e do Caquetá interrompem a alegria
do alemão e de seus amigos.

No coração das trevas

A descoberta de Fitzcarrald causa alvoroço no departamento de Madre de Dios. Em 1903


Julio César Araña sente o cheiro de borracha e de dinheiro, muito dinheiro. Depois de
amealhar boa fortuna como comerciante no oriente peruano, resolve mudar de ramo e funda
a Casa Araña Hermanos, com sede em La Chorrera, já em território colombiano. Num átimo
percebe que está com a faca e o queijo na mão: imensos seringais nativos e mão-de-obra a
custo virtualmente zero (3). Lembra-se então de certa “tradição” colonial, a correria, espécie
de arrastão, formado por um exército de mercenários, fortemente armados, que cercam
malocas indígenas, apreendem os nativos e arrastam-nos como prisioneiros para campos de
trabalhos forçados. Senhor sobre milhares de indígenas, principalmente da etnia Huitoto, é
assim que Araña estende sua rede de barracões de seringa pelos imensos territórios, que
vão do Putumayo (Içá) ao Caquetá (Japurá), alcançando mais de 5 mil km2; em parte
localizados em território colombiano invadido. Sem telégrafo, Araña e os
demais caucheros comunicam-se com seus vassalos através de sinais sonoros, por
tambores.

Mais ao sul, em território boliviano, entre o Acre e o Mamoré, começa outro império, o do
caudilho Suárez. Beneficiado pela outorga de terras públicas e concessões econômicas,
Suárez se estabelece em Cachuela Esperanza. Entre 1880 y 1886 duplica a exportação da
borracha e eclodem as inevitáveis rivalidades com seu conterrâneo Antonio Vaca Diez e o
peruano Carlos Fermín Fitzcarrald. Estradeiro, ladino, Fitzcarrald negocia acordos e faz
sociedades com ambos os bolivianos: se apossa dos seringais até o rio Manu e empurra seu
mitológico barco Contamana para o lambe-pratos Suárez; senhor do rio Acre até o momento
das invasões brasileiras e a entrada em cena de um mercenário espanhol chamado Galvés.
Apesar da perda do Acre para o Brasil, Suárez continuará ampliando seus negócios. Com a
morte de Fitzcarraldo e Vaca Diez, controlará mais de 60 % da produção da borracha
boliviana e de parte da Madre de Dios peruana. Quando as plantações inglesas das
seringueiras roubadas começaram a germinar no Ceilão e na Malásia, sinalizando o ocaso
da borracha amazônica, Suárez tinha entesourado uma fortuna de aprox. 2,7 milhões de
libras esterlinas e suas propriedades cobriam 4,9 milhões de hectares; algo em torno de 4,4
% do território nacional boliviano. Titular de um cargo de senador, o boliviano sonhara com
um Reich amazônico de longa duração: nas sedes de seus barracões instalou campos de
concentração para jovens e mulheres indígenas, violadas sistematicamente por “clientes
especiais” para a procriação de uma nova “raça seringueira”, escrava. Encarnação virtual de
Himmler e Pol Pot, Suárez encharcou a Amazônia profunda com sangue e obscenidade.

A Missão Casement

Sir Roger Casement

Talvez porque a barbárie de Suárez demorasse em reverberar até a distante Iquitos, o editor
Benjamin Saldaña Roca concentrou-se na denúncia das atrocidades cometidas por J.C.
Araña contra “seringueiros colombianos”, leia-se: os índios Huitoto, anfitriões de Koch-
Grünberg. Sua fonte de informação: o reverendo norte-americano Walter Hardenburg,
visitante indignado com o que testemunhara nos barracões de Aranã e por isso tornado
“prisioneiro” pelo seringalista. Alardeado, mas safado, Araña arquiteta uma manobra: em
1907 viaja a Londres e refunda a Casa Araña com o nome “laranja” de Peruvian Amazon
Company, instituindo uma junta diretiva de empresários ingleses. Hardenburg segue-o até a
Grã-Bretanha e entrega seu testemunho (Putumayo, the Devil´s Paradise) ao jornal Truth.
Este faz circular reportagens sobre um “Congo [belga] com donos britânicos” – indigestão e
constrangimento às margens do Tamisa.

Apesar do choque, a Chancelaria inglesa leva quase três anos para designar seu cônsul em
Santos para investigar os fatos; em território colombiano. Seu nome: Roger Casement.
Acompanhado de mais três súditos, durante um ano Casement mergulha no âmago da
caligem e não deixa dúvidas em seu The Blue Book of Putumayo (azuis eram todos os
relatórios confidenciais do Foreign Office): “No início do ano de 1900, a zona de Putumayo
foi palco da morte de aproximadamente 40 mil indígenas. As mortes foram atrozes y cruéis:
banhando seus cabelos em querosene, foram queimados vivos, torturados até encasularem-
se como vermes, estuprados, aplicações de cepos, morte de anciãos, mulheres e crianças.
Estas mortes brutais foram lideradas pelo cauchero de então, Julio C. Araña” (Roger
Casement). Em seu clássico A acumulação do Capital (1919) a legendária deputada e
militante marxista alemã Rosa Luxemburg já dedica um parágrafo indignado ao caso
Putumayo. "Tive a sensação de não ter lido um livro, mas ter estado presente no sítio da
ação", desabafou um Jorge Luis Borges abismado com a sordidez e a truculência narradas
pelo colombiano José Eustacio Rivera em sua novela La vorágine, de 1924, ainda inédita no
Brasil: mulheres e meninas indígenas mantidas como prostitutas em cativeiro, pelourinho,
chibata, afogamentos, velhos, jovens e crianças queimados vivos em fogueiras; 30 mil
assassinatos, 10 mil sobreviventes mutilados... (4)

O cineasta acidental

No auge das denúncias na Grã-Bretanha, uma novidade estrepitosa, capaz de reverter sua
sorte, chega aos ouvidos de J.C. Araña : o cinematógrafo. Atuando como comerciário
fotógrafo ocasional em Belém do Pará, é quando a História, a grande prostituta, escolhe o
distraído português Silvino Santos para conduzir a trama de J.C. Araña: enviado a Paris, sua
missão consiste em aprender a operação do cinematógrafo nas oficinas dos irmãos Pathé e
o desenvolvimento de uma película resistente ao calor tropical, nos laboratórios Lumière.
Retornando ao Brasil, é enviado ao rio Putumayo, próximo à atual fronteira com o Acre, e em
1912 começa a rodar um filme, cuja versão “Paraíso” desmentiria a versão “Diabo” sobre os
seringais de Araña. Tal foi a afeição de J.C. por Silvino, que aquele lhe entregou a mão de
Anna Maria Schermuly, descendente de alemães, sua tutelada.

Destituído de seu filme publicitário, cujos negativos jaziam em algum lugar no fundo do
Atlântico, J.C. Araña enfrenta a Corte britânica em 1913 com uma nova versão
“cinematográfica” para seu genocídio: ”medidas necessárias para enfrentar a agressividade
de índios antropófagos”... A propósito: enquanto Joseph Conrad escrevia “No coração das
trevas”, o cônsul inglês no Congo tinha sido um tal de Roger Casement. Seu relatório sobre
as atrocidades belgas, corroborado pelos relatos do amigo Conrad, custou-lhe a
transferência para o Brasil, difamado como homossexual e “degenerado”. Mas essa é outra,
uma longa estória: Casement era irlandês de cepa rebelde, um dos fundadores do futuro
IRA. Agia na clandestinidade, conseguiu apoio e armas na Alemanha. Foi enforcado
naqueles dias, quando seu arquiinimigo, o canalha J.C. Araña, baixava chasqueando as
escadarias da Supreme Court; solto, porque cidadão não pertencente à jurisdição britânica.

Morte em Vista Alegre - Silvino e Koch-Grünberg


Koch-Grünberg, 1912

Retronarrativa. Amargurado, em 1910 um europeu desabafa em seu diário de campo sobre


seu reencontro com o Rio Negro:

“Minha primeira visita foi há menos de cinco anos...


Quem pisar esta região, agora, não mais encontrará o lugar aprazível
que eu conheci. Uma pseudocivilização pestilenta abateu-se sobre o povo moreno que não
têm direitos. Feita nuvem de gafanhotos vorazes, a quadrilha desumana de barões da
borracha continua avançando. Os colombianos já se instalaram na cabeceira do Kuduyari e
carregam consigo meus amigos para os seringais assassinos. Na ordem do dia
estão maus-tratos cruéis, brutalidade e assassinato. Os brasileiros
do baixo Cairary não são melhores. As aldeias indígenas estão devastadas, suas casas
foram reduzidas a cinzas e seus jardins, despojados das mãos
que deles cuidam, foram tomados pela selva.
Assim, uma raça vigorosa, um povo dotado de um magnífico dom,
de brilhante intelecto e gentil disposição, serão reduzidos ao nada.
Recursos humanos capazes de desenvolvimento serão aniquilados pela brutalidade desses
modernos bárbaros da civilização”.
O europeu chamava-se Theodor Koch-Grünberg e iniciava sua terceira expedição
brasileira, Do Roraima ao Orinoco (1911-1913). É nesta expedição que K.-Grünberg realiza
em Roraima o primeiro filme (documentário) da Amazônia, em parceria com H.Schmidt.
Filmado na aldeia de Koimélemong, “Aus dem Leben der Taulipang” (Da vida dos Taurepang,
1911) é o primeiro registro etnográfico gravado em suporte fílmico, com imagens sobre o
preparo do milho e da mandioca, a tecelagem do algodão, recreações e danças do ritual
Parisherá. São dos registros desta expedição que o turista acidental Mário de Andrade se
apropriará para a criação de seu personagem Macunaíma.

Em 1924 K.-Grünberg retorna ao Brasil para sua última expedição à Amazônia, organizada
pelo geógrafo norte-americano Hamilton Rice. É quando, inusitadamente, se cruzam os
caminhos do antropólogo e de Silvino Santos, escalado como cinegrafista da missão. Seu
objetivo era o levantamento cartográfico e etnográfico das cabeceiras do Rio Branco, entre o
Brasil e a Venezuela, com a busca de canais de ligação com a Bacia do Rio Orenoco –
missão à qual Alexander Von Humboldt já se aferrara 120 anos antes, descobrindo o Canal
de Cassiquiare. Uma feroz epidemia de malária engolfa a Amazônia. Pressionado pela
esposa em Manaus, Rice decide atrasar sua partida para Roraima, onde é esperado durante
muitos dias por K. Grünberg, que morre subitamente na localidade de Vista Alegre, vitimado
pela malária da qual Rice se esconde. O bravo antropólogo é sepultado nas próprias
margens do Branco. E aqui arrebenta o filme e “dá um branco” na tela da história: onde
estava Silvino naquele momento? E Georg Hübner, o “diretor de produção” de K.-Grünberg,
quê fazia? Por que não foi feito nenhum registro do antropólogo em Vista Alegre? O fotógrafo
e o cinegrafista estavam com Rice em Manaus? ...
As coleções etnográficas de K.-Grünberg foram destruídas nos bombardeios de Berlim pelos
norte-americanos e britânicos durante a 2a. guerra mundial. Não foi outra a sorte das fotos
de Hübner (incluída aí a primeira coleção de fotografia botânica da Amazônia), em grande
parte destruídas pelas bombas incendiárias, as famosas blockbusters testadas em Dresden.
Notas

(1) Ernesto Reyna – El rey Del caucho – Lima, 1942;


(2) Wolfram Schütte, sobre o livro de Herzog, Die Eroberung des Nutzlosen - A conquista do
inútil, 2004, inédito no Brasil; in http://www.titel-forum.de/, 23.09.2004;
(3) Grande contingente dos peões de Araña foi contratado durante visitas pessoais do
seringalista no Nordeste do Brasil. Peões de Araña ou futuros “soldados da borracha”, sua
aventura não lhes deu direito à passagem da volta. Somente uns 6 mil homens conseguiram
salvar-se e regressar por iniciativa própria. A maioria, cerca de 30 mil seringueiros brasileiros,
morreu abandonada na Amazônia, esgotando suas forças na extração do ouro branco.
Morreram de malária, febre amarela, hepatite e atacados por onças, cobras
e escorpiões. O governo brasileiro não cumpriu sua promessa de resgatá-los e trazê-los de
volta a seus lugares de origem no final da “guerra”. Entre os trabalhadores de Aranã
constava ainda um contingente de negros trazidos das Ilhas Barbados pelos sócios
britânicos;
(4) Não menos assombrosa, porém, é a hipocrisia do mesmo Império, que em 1911, no auge
das denúncias, decide premiar o agente Wickham com uma medalha de prata, um cheque de
1 mil libras esterlinas e uma espécie de pensão anual de outras 1 mil libras, por seus méritos
de contrabandista. Por seus “Serviços em conexão com a indústria de cultivo da borracha no
Oriente” em 1920 o sinistro Wickham ascendeu à nobreza com o título de Sir. Em 1926, ano
de seu 80º. Aniversário, o petromagnata norte-americano Edgar B.Davis presenteou-lhe um
cheque de 6 mil libras, às quais se somaram outras 8 mil, patrocinadas pelo governo
britânico da Malásia, em 1926. Dois anos mais tarde Wickham morreu. Como herói do
imperialismo da borracha.

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