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IX ENCONTRO

ANPUH-DF
“Pesquisas e Ensinos em História: a profissão
do historiador e historiadora – perspectivas e
desafios no século XXI”
02, 03 e 04 de dezembro de 2020

ANAIS
IX Encontro da ANPUH DF
“Pesquisas e Ensinos em História: a profissão do historiador e
historiadora – perspectivas e desafios no século XXI”

Universidade de Brasília-UnB

ISBN 978-65-00-10634-3
Ficha Catalográfica

Torres, Mateus Gamba; Brilhante, Neuma; Lopes, Luiz Fernando Rodrigues; Sá Júnior,
Luiz César de; Pegoraro, Jonas Wilson; Barroso, Eloísa Pereira; Valadão, Leny; Queiroz,
Vanessa de Jesus; Franco, Yuri Soares; Gomes, Rafael Nascimento; Carvalho, Daniel
Gomes de; Carvalho, Bruno Leal Pastor de; Souza, Técia Goulart de; Chaves Junior, José
Inaldo (Orgs.).
Anais do IX Encontro de História da ANPUH DF: “Pesquisas e Ensinos em
História: a profissão do historiador e historiadora – perspectivas e desafios no século
XXI” / Brasília: Universidade de Brasília, 2020.
1733 p.

ISBN 978-65-00-10634-3

1. Profissão do historiador e historiadora. 2. Pesquisas e ensinos em História. 3.


Perspectivas. 4. Século XXI. I. Autores. II. Títulos.
Associação Nacional de História - ANPUH Diretoria Regional da ANPUH DF
Presidente: Márcia Maria Menendes Motta - UFF Diretor: Mateus Gamba Torres - UnB
Vice-presidente: Tito Barros L. de P. Medeiros - UVA Diretora Adjunta: Neuma Brilhante - UnB

Comitê Científico
Dra. Albene Menezes Klemi - UnB Dr. Murilo Borges Silva - UFG
Ms. Amanda Monteiro Bortoluzzi Pires - UnB Ms. Octávio Becker Neto - UNISINOS
Dra. Ana Flávia Magalhães Pinto - UnB Ms. Paula Franco - UnB
Dr. André Barbosa Fraga – SEEDUC-RJ Dr. Rafael Nascimento Gomes - UnB
Dr. André Cabral Honor - UnB Dr. Luiz Fernando Rodrigues Lopes - UFB
Dr. Bruno Leal Pastor de Carvalho - UnB Ms. Renata Melo B. do Nascimento - UnB
Ms. Carla Drielly dos Santos Teixeira - UFMG Dra Susane Rodrigues de Oliveira - UnB
Dra. Carolinne Mendes da Silva - USP Dr. Thiago Cavaliere Mourelle - UFF
Dra. Cristiane de Assis Portela - UnB Ms. Vanessa de Jesus Queiroz - UnB
Dr. Daniel Gomes de Carvalho - UnB Ms. Yuri Soares Franco - SEEDF
Ms. Daniela Linkevicius de Andrade - UnB
Dr. Fernando Comiran - IFRS Comissão Organizadora
Dr. Florisvaldo Paulo Ribeiro Júnior - UFU Dr. Mateus Gamba Torres - UnB
Ms. Herbert Gler Mendes dos Anjos - UFMG Dra. Neuma Brilhante - UnB
Dra. Iara Toscano Correia - UFU Dr. Luiz Fernando Rodrigues Lopes - IFB
Dra. Ione Fátima de Oliveira - UnB Dr. Luiz César de Sá Júnior - UnB
Ms. Isabela Gomes Parucker - UnB Dr. Jonas Wilson Pegoraro - UnB
Dra. Jaqueline A. M. Zarbato Schmitt - UFMS Dra. Eloísa Pereira Barroso - UnB
Dr. Jonas Wilson Pegoraro - UnB Profa. Leny Valadão - UnB
Dr. José Inaldo Chaves Júnior - UnB Ms. Vanessa de Jesus Queiroz - UnB
Ms. Júlia Leite Gregory - UNISINOS Ms. Yuri Soares Franco - SEEDF
Dra. Kelly Eleutério Machado Oliveira - UFOP Dr. Rafael Nascimento Gomes - UnB
Dra. Léa Maria Carrer Iamashita - UnB Dr. Daniel Gomes de Carvalho - UnB
Prof. Lucas Monteiro Dr. Bruno Leal Pastor de Carvalho - UnB
Dr. Luiz César de Sá Júnior - UnB Profa. Técia Goulart de Souza - UFSC
Dr. Mateus Gamba Torres - UnB Dr. José Inaldo Chaves Júnior – UnB

Realização: ANPUH DF, Departamento de História – HIS/UnB e Programa de Pós-Graduação em


História – PPGHIS/UnB
SUMÁRIO

Apresentação................................................................................................................................... 16

O ensino de História no contexto de ressignificação do tempo histórico............................. 17


Adriana Oliveira da Silva

A trajetória intelectual de Frei Betto: Religião, Marxismo e Teologia da Libertação........... 26


Adriano Mendes da Fonseca

Os antigos Quinametzin: apropriação e ressignificação dos mitos mexicanos pelos padres


dominicanos e franciscanos no México colonial durante os séculos XVI e XVII................ 41
Adriano Rodrigues de Oliveira

O Império Português no Atlântico Sul dos Séculos XVI e XVII. Historiografia,


atenuações e perspectivas.............................................................................................................. 52
Alec Ichiro Ito

Deus, Pátria e Família: o Integralismo na Bahia dos anos 1930.............................................. 63


Alex de J. Oliveira

O Novo Argos e o estabelecimento de fronteiras entre o Liberalismo Moderado e o


Exaltado em Minas Gerais (1829-1831)...................................................................................... 71
Alex Lombello Amaral

Racismo e luta por identidades no filme A Última Ceia: um rascunho ainda rasurado da
historiografia afro-cubana.............................................................................................................. 81
Alexandre Augusto da Costa

A imortalidade do mal: continuidades de descontinuidades na ressignificação do Coringa


nos arcos narrativos Morte da Família (2012), Ano Zero (2013) e Fim de Jogo (2014)..... 96
Alexandre de Carvalho Rodrigues da Silva

O Museu Municipal Albino Busato - Casca/RS: possibilidades de integração


escola/museu como metodologia de ensino de História.......................................................... 111
Aline Nizzola Berton

Eleição presidencial do Peru em 1990 e a influência do Plano Collor................................... 124


Álisson Fontenele

O Movimento Estudantil da UnB no período da distensão política, de 1974 a 1988......... 133


Amanda Maria Abreu de Moura

Golpe de 2016 ou Impeachment? Um estudo da acusação de crime de responsabilidade


fiscal que sustentou o processo de afastamento de Dilma Rousseff...................................... 152
Amarildo Mendes Lemos

Palavras como forma de ação: usos e sentidos atribuídos aos “espacios libres” no Proyecto
Orgánico de 1925 (Buenos Aires)................................................................................................... 171
Ana Carolina Oliveira Alves

Os morgados Cabo (ou Madre de Deus) e Juriçaca: a vinculação de bens como estratégia
de perpetuação social e econômica da família Pais Barreto. Pernambuco, 1580-1837........ 180
Ana Lunara da Silva Morais

Livros diário-caixa e conta-corrente da Sociedade de Auxílios Mútuos União Operária,


de São Borja (1905-1911): de documento à fonte de informação para a historiografia...... 192
Anderson Romário Pereira Corrêa

“Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”: exaltação da identidade feminina na voz
de Rita Lee durante o processo de ditadura e a busca por equidade de direitos nas
composições de cantoras atuais.................................................................................................... 206
Ana Maria Sousa Braga Vieira

Os institucionalismos histórico e sociológico: aplicação na escolha da sede do TRF5 no


Recife (1987-1989).......................................................................................................................... 216
Analândia Aguiar de Freitas Leite

Os intelectuais mediadores e as políticas culturais: a trajetória de Heloísa Juaçaba no


campo das Artes Plásticas do Ceará............................................................................................. 230
Anderson de Sousa Silva

Raízes do Brasil, um “clássico de nascença”?............................................................................. 242


André Augusto Abreu Villela

Quem é o Pai da Aviação? batalhas de memória entre Brasil e Estados Unidos durante o
governo Vargas................................................................................................................................ 255
André Barbosa Fraga

Por uma política externa independente: o brasil frente à revolução cubana e a conferência
de punta del este (1962) no contexto da guerra fria.................................................................. 264
André de Oliveira Mendes

Na providência divina, a origem de nossa história; em nossa história, a certeza de nossas


vitórias: uma análise dos sermões do Padre Antonio Vieira, no Portugal restauracionista. 280
Andrea Gomes Bedin

A fragmentação de propriedades e o processo de reterritorialização em fazendas


pecuaristas do sul do Brasil na Primeira República................................................................... 297
Andréa Pagno Pegoraro

Notas sobre mãos invisíveis: escravização indígena e desigualdade em São Paulo


de Piratininga (1562-1592)............................................................................................... 312
Andrei Álvaro Santos Arruda

Repressão aos olhos da comunidade acadêmica: atuação da Assessoria Especial de


Informação na UFBA (1969 – 1974)........................................................................................... 322
Anne Alves da Silveira

Entre a Bíblia e Rousseau - as referências intelectuais dos primeiros periódicos brasileiros. 336
Arthur Ferreira Reis

A produção do intelectual da educação e a publicação do livro Escolas da Comunidade de


Felipe Tiago Gomes....................................................................................................................... 344
Arthur Rodrigues de Lima

Águas que movem e lavam: a luta por água e fixação na Vila Paranoá.................................. 354
Artur Araujo Santos

Ensinar sobre o nazismo nas redes sociais: a experiência do NEPAT-UFMG.................... 371


Bárbara Deoti Silva Rodrigues

Educação Patrimonial no Parque Três Meninas: o despertar de uma relação de


pertencimento dos moradores de Samambaia com o Parque.................................................. 380
Bibiana Soyaux de Almeida Rosa; Lais Ayres da Fonseca; Mayara Freire Costa; Monica Patricia
Daduch

Comércio Britânico no Império brasileiro: a atuação da firma Francis Le Breton, 1818-


c.1831................................................................................................................................................ 392
Bruna Digiacomo Cerveira Coutinho

As transformações no cotidiano fúnebre aracajuano durante as epidemias de varíola e


febre amarela (1873-1874) ............................................................................................................ 404
Bruna Morrana dos Santos

Os Jesuítas e a Inquisição no século XVII: um ambiente de batalha sobre as faces da


misericórdia (1605 – 1643) ........................................................................................................... 420
Bruno Fernando Silva Mato Ribeiro

Suor, memória e narrativa: Os memoriais da Justiça do Trabalho do Brasil na pandemia


do Novo Coronavírus (2020)........................................................................................................ 427
Carla Bianca Carneiro Amarante Correia

A imigração no cinema: possibilidades de ensino...................................................................... 438


Carla Cristine Spies Stallbaum

Televisão e culturas políticas no Brasil Republicano: a Assembleia Nacional Constituinte,


1987-1988......................................................................................................................................... 446
Carla Drielly dos Santos Teixeira

ERER na escola: a importância da valorização de histórias, memórias e narrativas da


população negra no ensinar história............................................................................................. 457
Carol Lima de Carvalho

Entre fontes hemerográficas e micro-história: trajetórias de camponeses durante a


Revolta de Porecatu (1944-1951)................................................................................................. 466
Caroline Gonzaga

Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957): uma análise fílmica com perspectiva
interseccional................................................................................................................................... 478
Carolinne Mendes da Silva
Estado, poder e direito: a concepção jurídica (tridimensional), autoritária de Miguel Reale
dos anos 1940.................................................................................................................................. 488
Cícero João da Costa Filho

Narrativas orais do povo Xavante de Marãiwatsédé como prática decolonial na luta por
memória e reparação....................................................................................................................... 510
Clarisse Drummond

Latifúndio e especulação imobiliária Moura Andrade: ocupação e expansionismo


territorial no processo de colonização de Nova Andradina-MS............................................. 516
Claudinei Araújo dos Santos e Marcelino de Andrade Gonçalves

A História que se conta sobre Pelotas: uma revisão bibliográfica necessária........................ 532
Daniel de Souza Lemos

A Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal: Memórias, Educação para o Patrimônio


e Ensino de História....................................................................................................................... 546
Daniela Karine dos Santos Acordi

Imigração e vadiagem: os ciganos e os processos de exclusão no Espírito Santo................ 561


Daniela Simiqueli Durante

Imprensa, Memória e a Ditadura Militar no Espírito Santo (1971-1975).............................. 573


Davi Elias Rangel Santos

A disciplina Estudo(s) de Problemas Brasileiros e o projeto de nação dos governos


militares para a juventude universitária (1969-1974)................................................................. 589
Davison Hugo Rocha Alves

Em busca da legitimidade: a proposta da Constituinte de 1967 no Jornal do Brasil............... 598


Dayane Cristina Guarnieri

Os de cima e os de baixo: Brasília, histórias sob distintas lentes................................................... 611


Diego Martins

O Conselho Continental da Nação Guarani frente ao Parlamento do Mercosul................. 625


Edson Dos Santos Junior

Uma metodologia selvagem (a pesquisa como processo artístico)............................................. 638


Eliane Carvalho

“Fé em ação”: Neopentecostalismo e conservadorismo no Tempo Presente paraense..... 646


Eliezer da Rocha Gonçalves

“A Serviço de Deus e Meu”: o Padroado Régio e a hierarquização eclesiástica centro-


meridional brasileira no reinado de Dom João V (1706-1750)................................................ 662
Eraldo de Souza Leão Filho

Uma História Intelectual em perspectiva regional: questões, problemas,


possibilidades................................................................................................................................... 672
Erivan Cassiano Karvat
A formação da Boca do Lixo e seu flâneur marginal: cotidiano e escrita de si....................... 685
Everton Behrmann

O Combate do Fão no contexto da Guerra Civil de 1932....................................................... 695


Fabian Filatow

Os pergaminhos musicais da lírica profana galego-portuguesa: materialidade, desafios e


propostas.......................................................................................................................................... 708
Felipe Ferreira de Paula Pessoa

Metodologia e fontes: Relações sociais de uma família escrava em São José dos Pinhais.. 719
Fernanda Nascimento de Brito

À terceira margem: políticas públicas de memória no Brasil pós-ditadura (1985-2015)...... 728


Fernanda R. Abreu Silva

O histórico de lutas pelos direitos trabalhistas do positivismo................................................ 740


Francisco Quartim de Moraes

A implementação da BNCC e os sentido de ensinar história na rede ensino público de


Ananindeua-Pará............................................................................................................................. 758
Francivaldo Alves Nunes

A Legião Brasileira de Assistência (LBA) e a assistência à saúde materno-infantil em


Teresina (1942-1945)...................................................................................................................... 772
Francilene Teles da Silva Sousa e Joseanne Zingleara Soares Marinho

Limitações da noção de “violência de estado” na análise de três casos ocorridos no Vale


do Ribeira, São Paulo...................................................................................................................... 788
Gabriel da Silva Teixeira

Apontamentos sobre a Crise da década de 1920 e a Revolução de 1930.............................. 805


George Zeidan Araújo

“Encontro com o Brasil profundo”: culturas políticas e injustiças sociais durante a


transição brasileira (1974-1985).................................................................................................... 817
Geovanni Rocha Junior

Doenças e rituais de curas indígenas - século XVIII no Grão-Pará....................................... 826


Gilmara Cruz de Araújo

Recordações conflitantes: A disputa sobre a memória das ditaduras de Segurança


Nacional em Brasil, Argentina, Chile e Uruguai......................................................................... 836
Guilherme da Conceição de Lima

O Serviço de Registro de Estrangeiros do Distrito Federal: um “modelo” da


reestruturação dos serviços de imigração.................................................................................... 851
Guilherme dos S. C. Marques

Editora Alfa-Omega: a história intelectual através dos editores.............................................. 866


Gustavo Orsolon de Souza
Anarquia e cinema na Revolução Espanhola.............................................................................. 874
Gustavo Pierzchalski Vieira

Esporte jogado pelo Estado: a construção da legislação esportiva na Era Vargas............... 883
Harian Pires Braga

A Primeira Comissão Especial Revisora de Títulos de Terras como brecha: considerações


sobre a propriedade e os projetos do governo Vargas para o campo no Estado Novo
(1938-1945)...................................................................................................................................... 895
Henrique Dias Sobral Silva

O papel das relações de sucesso na queda e reconquista da Bahia pela coroa hispânica.... 903
Isis Macedo Tejo

Antonio Africano: Liberdade, Liberdade.................................................................................... 916


Ivan da Silva Oliveira

O ensino de História e a educação das relações étnico-raciais na educação básica: um


olhar para além do livro didático.................................................................................................. 922
Jaqueline Souza Drumond Pagés

Ditadura Militar e Abertura Política em uma cidade de interior (Arapongas-PR): Ensino


História a partir da proposição de Aulas-Oficina...................................................................... 931
Jeferson José Gevigier

O pensamento do Elemento Servil na política brasileira no ano de 1871 e os seus reflexos


com a Lei Nº 2.040......................................................................................................................... 947
Jefferson Alexandre Prado e Souza

O debate historiográfico acerca do Contrailuminismo.............................................................. 963


José Lourenço de Sant’Anna Filho

Estudo de sentimentos amorosos em processos criminais da cidade de Vigia-PA (1909-


1938)................................................................................................................................................. 975
José Renato Carneiro do Nascimento

Histórias, cultura e identidades negras em Parintins – AM...................................................... 983


Jessica Dayse Matos Gomes e Renilda Aparecida Costa

A relação da Igreja Católica no Brasil e o governo de Getúlio Vargas: a Arquidiocese de


São Paulo – o uso de jornais católicos......................................................................................... 996
Jéssica Thaís de Oliveira

Um Estudo Comparativo: A Negociação da Imigração Chinesa ao Brasil (1879-1889)..... 1007


Jinxu Wang

“Putanheiro, e desonrava mulheres”: aventuras e desventuras de um frei agostiniano no


Pernambuco holandês.................................................................................................................... 1017
João Guilherme Veloso Andrade dos Santos
Professores sob pressão: desafios e possibilidades de educar nas unidades prisionais de
Teresina............................................................................................................................................ 1027
Josi de Sousa Oliveira

Sobre as relações entre história e vida a partir da teoria da história: desafios


contemporâneos.............................................................................................................................. 1038
Josias José Freire Júnior

O cotidiano na cidade de São Paulo (1780-1820)...................................................................... 1046


Karla Maria da Silva

História Indígena em Planos de Aula: BNCC, Lei 11.645/08 e saberes docentes no site
da “Nova Escola”........................................................................................................................... 1055
Kátia Luzia Soares Oliveira

Análise de documentos: Diários da Câmara dos Deputados................................................... 1067


Kauê Pisetta Garcia

Ênio Silveira e a resistência cultural à ditadura militar: a criação do jornal Reunião (1965). 1074
Larissa Raele Cestari

Acidentes e incidentes nos caminhos do trem a vapor na capital de Pernambuco (1867-


1889)................................................................................................................................................. 1088
Lamarck Montenegro de Vasconcelos

Cultura política autoritária e permanência das desigualdades na sociedade brasileira.......... 1102


Léa Maria Carrer Iamashita

Marguerite Porete e o Movimento das Beguinas. Uma abordagem pela Teoria da Política
Sexual de Prudence Allen............................................................................................................... 1111
Leandro Oliveira

Representações indígenas nos livros didáticos propostos pelo PNLD 2018........................ 1115
Leidiane Lopes de Souza

O Império como “mero auxiliar”: estratégias militares e diplomáticas do Brasil na


campanha contra Rosas (1851-1852)............................................................................................ 1129
Leonardo dos Reis Gandia

Brasil Pinheiro Machado e a historiografia paranaense.............................................................. 1144


Letícia Leal de Almeida

A “questão jurídica” nas páginas de “A Província de São Paulo”: duas estratégias de


protesto de Luiz Gama................................................................................................................... 1156
Lizandra Júlia Silva Cruz

O Pentáculo das Três Ninfas – Feitiçaria e Corrupção no Santo Ofício Português (1616-
1618) ................................................................................................................................................. 1171
Lorena de Araújo Costa

“Brasil Outros 500”: marchas e manifestos de movimentos indígenas contra as


comemorações oficiais dos 500 anos e a colonialidade da história......................................... 1186
Lucas da Mota Farias

Centralidade do Corpo e Agência do Historiador à luz do Tempo Presente: pesquisa


histórica e escrita historiográfica entre o indivíduo e o mundo............................................... 1199
Luciano Chinda Doarte

Miguelismo: entre contrarrevolução e estado de exceção......................................................... 1212


Luciano dos Santos Abade

Poder e Posse de Terras em Santa Isabel do Paraguassú (MUCUGÊ – BA, 1844-1871)... 1222
Luiz Alexandre Brandão Freire

“De Portugal, onde meia nação está proscrita, exilada ou encarcerada”: exílios e culturas
políticas do Sul da Europa no Brasil Imperial (1820-1840)...................................................... 1236
Luiz Gustavo Martins da Silva

Nas areias quentes de Copacabana: uma praia em disputa (aproximações contrastes e


tensões) entre 1940 a 1980............................................................................................................ 1253
Luzimar Soares Bernardo

Osório Thaumaturgo César: pioneiro da Arte-terapia em São Paulo e no Brasil................. 1275


Mara Cristina Gonçalves da Silva

A história como linguagem política na França da Restauração Bourbônica (1815-1830) –


As Lettres sur l’histoire de France........................................................................................................ 1291
Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira

Fernando de Noronha no pós-abolição: relações de poder e arbitrariedade no isolamento


da ilha................................................................................................................................................ 1306
Maria Eduarda Rodrigues Antunes

A autoridade feminina de Santa Teresa D’Ávila ao reformar a Ordem das Carmelitas e ao


fundar mosteiros pela Espanha no século XVI......................................................................... 1314
Maria Júlia Guimarães Salgado

Mulheres em ações de liberdade: a arena judicial como estratégia de resistência no Recife


oitocentista (1871-1885)................................................................................................................. 1326

Maria Marinho Harten

A resistência estudantil no Território Federal do Amapá durante a ditadura militar no


Brasil................................................................................................................................................ 1340
Marcella vieira Viana

Pierre Seel: sujeito esquecido da memória entre a necessidade do lembrar e a prática do


testemunhar..................................................................................................................................... 1352
Mateus Henrique Siqueira Gonçalves

Imagens que dizem textos e contextos: representações do povo no filme “Os deuses e os
mortos”............................................................................................................................................... 1365
Michael Silva Roseno
Fronteiras do cativeiro: significados transnacionais de liberdade e escravidão
(Brasil/Uruguai, segunda metade do XIX)................................................................................. 1377
Michele dos Santos

Remodelando as Memórias dos Deslocados Compulsórios na cidade de Petrolândia,


Brasil e Aldeia da Luz. Portugal (1997/2002)............................................................................. 1391
Maria S. Ramalho Braga

Um estudo sobre o pensamento racial na obra de Lilia Katri Moritz Schwarcz.................. 1405
Micheli Longo Dorigan

Subsídios para uma História do Audiovisual Autoral dos Povos Indígenas de Mato
Grosso do Sul.................................................................................................................................. 1420
Miguel Angelo Corrêa

Resultados no Brasil da prática da desobsessão do médico Adolpho Bezerra de Menezes


desde o final do século XIX.......................................................................................................... 1436
Nadia Marcondes Luz

O neoinstitucionalismo como modelo de análise no estudo histórico das instituições....... 1447


Natalie Supeleto

Diálogos com a História do Tempo Presente: possibilidades teóricas e historiográficas


para um campo em construção..................................................................................................... 1458
Nathália Pereira Cabral

O Genocídio Indígena na Ditadura Civil-Militar: caso do povo Waimiri-Atroari (1964-


1985)................................................................................................................................................. 1465
Nathanael Martins Pereira

“O Leão de Sete Cabeças”, de Glauber Rocha: Intersecções entre Teatro Político,


História e Cinema............................................................................................................................ 1477
Nicolas Alexandria

“Amor às instituições livres”: Atuação do magistrado José Antônio de Pereira Ibiapina


em Campo Maior (Ceará, 1834-1835).......................................................................................... 1489
Noemia Dayana de Oliveira

As recomendações gerais das comissões estaduais da verdade: uma análise de suas


aproximações e distanciamentos (2012-2017)............................................................................ 1504
Pâmela Minuzi

Que Horas Ela Volta? E Casa Grande: A classe média brasileira e o medo diante das
conquistas sociais dos empregados domésticos........................................................................... 1517
Onesino Elias Miranda Neto

A reflexão político-educacional de Mário de Andrade em torno da modernização do


cidadão brasileiro, nas décadas de 1920-1930............................................................................. 1530
Paulo Henrique da Silva
A Construção do Modelo de Segurança Pública no Brasil em meio a transição do Estado
de Segurança Nacional para o regime democrático................................................................... 1543
Paulo Henrique Matos de Jesus

A Ditadura do Estado Novo no Amazonas: interventoria, sindicatos e trabalhadores na


Manaus da Era Vargas.................................................................................................................... 1553
Pedro Marcos Mansour Andes

Os quilombos contemporâneos e a construção da territorialidade negra: um retrato de


Helvécia Bahia e a luta pela preservação de suas terras (1970 – 2018)................................... 1571
Ramom Pereira de Jesus Moreira

Fernando VII: O rei que perdeu as Américas............................................................................ 1586


Rebeka Leite Costa

Mulheres Negras no Filme Rio 40 Graus: Subjetividades e representações na


interseccionalidade.......................................................................................................................... 1593
Renata Melo Barbosa do Nascimento

A Amazônia e a experiência de Mário de Andrade: reflexões sobre o diário “O Turista


Aprendiz” (1927-1928)................................................................................................................... 1605
Robert Madeiro Dias

As Outras ‘Brasílias’ de Brasília.................................................................................................... 1620


Sabrina Soares

Entre a defesa dos Direitos Humanos e a Segurança Nacional: uma análise da política
migratória brasileira nos discursos presidenciais entre os anos 2016 e
2020................................................................................................................................................... 1630
Tálita Cristina Reis de Mello

Uma nova História da África para uma nova sala de aula: estudos africanos como
possibilidades para uma educação antirracista............................................................................ 1645
Tamires Celi da Silva

As Práticas Escolares na Formação da Juventude para a Igreja e para a Pátria: Cultura


Escolar, Civismo e Eugenia no Estado Novo............................................................................ 1656
Tatiane Fátima de Rezende

Comando Vermelho e Ditadura: De que forma a ditadura civil-militar brasileira


influenciou na criação do Comando Vermelho de 1979-1985?............................................... 1671
Valentina de Carvalho Calderon

Disputas de terra e o consenso: Conflitos Cíveis de terra em Santo Antônio Da Patrulha


(Continente do Rio Grande de São Pedro c. 1804-1822)......................................................... 1683
Vanessa Ames Schommer

O Corpo Feminino em discurso: uma história das disputas de poder nos periódicos
médicos e na imprensa feminina no Rio de Janeiro e em Salvador (1850-1899).................. 1699
Victoria Carvalho Junqueira
Escritos em Pólvora: Narrativa e representação nos periódicos e a Primeira Revolta de
Boa Vista (1891-1894).................................................................................................................... 1709
Vinícius Victor do Prado Pereira

Aspectos da Marginalização do Mourisco na Granada do Século XVI................................. 1722


Ximena Isabel León Contrera
16

Apresentação

A cada dois anos a Seção do Distrito Federal da Associação Nacional de História realiza
seu encontro regional. No ano de 2020, se adaptando ao isolamento social resultante da Pandemia
da COVID-19, nosso encontro aconteceu de maneira totalmente virtual entre os dias 02, 03 e 04
de dezembro. A temática geral escolhida foi “Profissão: Historiador – Historiadora”, para que
pudéssemos no debruçar nos desafios futuros da profissão após sua regulamentação em agosto de
2020.

Além do debate sobre a profissão, o objetivo do encontro foi reunir historiadores de todo
país, cujos temas de pesquisa fossem os mais variados possíveis. Com o objetivo cumprido devido
a variedade de assuntos propostos nos simpósios temáticos, podemos agora publicar em forma de
Anais as contribuições e pesquisas que desenvolvem historiadores de todas as áreas.
Autoritarismos, gênero, diversidade étnico-racial, inquisição, temas relacionados a escravidão e
racismo estarão presentes nos anais, como forma de mostrar a força da pesquisa acadêmica, no
ramo da história, e como o historiador possui a capacidade de fazer os devidos questionamentos
ao presente na sociedade em que vivemos, em forma de artigos e debates acadêmicos. A perspectiva
do encontro foi debater a profissão, tão atacada, mas ao mesmo tempo com profissionais tão
resistentes. Os temas aqui presentes nos artigos mostram essa resistência.

Boa Leitura!
Mateus Gamba Torres
Diretor da Anpuh-DF
17

O ensino de História no contexto de ressignificação do tempo


histórico

Adriana Oliveira da Silva*

Resumo: A forma como as sociedades compreendem e significam o tempo histórico contribui


para alterar a vida social. Se na temporalidade moderna o presente esteve à sombra de um futuro
de progresso, a contemporaneidade, desdobrada a partir das crises do século XX, mostrou-se
menos confiante no futuro. Uma nova engrenagem de passado, presente e futuro foi constituída.
O passado não aparece mais como ponto de orientação, mas deve ser preservado. O futuro é
percebido não mais como promessa, mas como ameaça. O presente não é mais passagem ou
expectativa, é a convergência do passado e do futuro. Um tempo em constante expansão, onde o
acontecimento é efeito dos interesses do próprio presente. Essa relação das sociedades com a
passagem do tempo, mais especificamente com a cultura epistemológica do presente, gerou
mudanças na ciência História à medida em que o conhecimento histórico se voltou para uma
hermenêutica dos sentidos do tempo nas ações dos sujeitos. Por outro lado, essa forma de
compreensão do tempo foi influenciada pelo ritmo acelerado das transformações na área
tecnológica, e, numa via um pouco mais lenta, na linguagem. No avanço frenético das Tecnologias
de Informação e Comunicação, quase tudo acontece no imediato e nele também se desmancha,
desaparece. Isso implica na necessidade permanente de atualização, de não se tornar ultrapassado,
superado. Nesse presente em que a obsolescência se tornou risco iminente, que papel cumpre o
ensino de História? Como lidar com identidades cada vez mais fluidas e fragmentadas do presente
de simultaneidades onde o político é cada vez mais pessoal e diz menos respeito aos projetos de
transformação global? Como o ensino de História pode contribuir para formar sujeitos
questionadores, atentos e conscientes do jogo de intenções e práticas que compõem a concepção
do tempo atual? Sem dúvida, a compreensão da dinâmica do tempo a partir do fomento à
consciência histórica é um dos elementos vitais do ensino de História e deve servir de parâmetro
para a revisão de currículos, metodologias de ensino e para as práticas educativas. Faz-se necessário
articulação mais efetiva entre o conhecimento da ciência especializada e o cotidiano da
aprendizagem escolar para que as atualizações da produção científica alcancem a vida cotidiana,
proporcionando o desenvolvimento da capacidade de interpretação do tempo histórico e da
competência narrativa.

Palavras-chave: ensino de história, tempo histórico, competência narrativa.

O artigo que vos apresento é resultado de algumas tentativas de responder às angústias


decorrentes da experiência com o ensino de História. Como professora desta disciplina há quase
duas décadas, além de habilitada para tal, me sinto na obrigação do ofício de questionar teorias,
formas e métodos com os quais a disciplina vem sendo trabalhada – ensinada por mim e por meus

*
Mestre em História pela UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e professora de História do Ensino
Médio Integrado no IFBA (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia).
18

pares, em turmas de nível médio da Educação Básica. Para tanto, trago como referências
fundamentais nesse processo de reflexão crítica da prática do ensino de História na atualidade,
historiadores que pensaram o papel que a engrenagem do tempo histórico assumiu e assume sobre
as vivências cotidianas, como François Hartog e Hans Gumbrecht, bem como a relação entre a
vida prática com toda sua dimensão prévia com o ensino de História e deste com a formação da
consciência história e a capacidade, dela derivada, de orientação do tempo da própria vida prática,
é o caso do historiador alemão Jörn Rüsen.

Isto é, pretendo entender, de maneira ainda superficial e genérica, os possíveis efeitos


provocados pelos entendimentos sobre o tempo na forma como se ensina e como se aprende
História. Destaco a forma genérica, porque não há um estudo de caso. Não analisei nenhuma
experiência específica, nenhuma escola ou grupo de docentes e estudantes fora selecionado e
demarcado como campo de análise.

O texto é, portanto, um ensaio de aventura analítica voltada para fomentar uma autocrítica,
assim como forçar uma leitura, fundamentada em teorias do tempo histórico e da didática da
história, das formas de ensinar história, concatenando-as com a vida prática dos sujeitos envolvidos
nesse processo e suas relações com as ordens do tempo.

Então, vamos lá. O ensino de História é parte do todo complexo da grande área de
conhecimento que se chama História. Ainda que exista e se reproduza uma certa distância entre o
saber científico resultado da pesquisa histórica e a prática do ensino de História, essa distância vem
sendo questionada há algum tempo e, já se percebe um esforço entre os professores da disciplina
em associar o ensino à pesquisa e vice-versa (Selva; Silva, 2012, p. 39).

O acervo volumoso e capilarizado dos estudos históricos sobre novos temas e abordagens
historiográficas, parecem ter contribuído, em alguma medida, para a introdução da pesquisa
histórica como arcabouço teórico-metodológico dos professores de História da Educação Básica.
Já é comum encontrarmos entre as referências bibliográficas das ementas e dos planos de ensino
de História dos diversos campi do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia,
onde leciono, textos, artigos e livros de autores contemporâneos que trazem discussões inovadoras
sobre história de sujeitos, antes apagados ou silenciados, como história das mulheres, dos
escravizados, de indígenas e de outros grupos sociais subalternizados.

Segundo Selva Guimarães e Marcos Silva, “as mediações entre ensino e pesquisa precisam
ser pensadas em movimento, no qual as experiências do mundo acadêmico e o cotidiano escolar
não se desvinculam” (2012, p. 39). Desta forma, parece válido pensar o ensino de História à luz de
uma epistemologia do tempo histórico, ainda em construção, e das teorias da consciência histórica
19

e da competência narrativa. Esse esforço de reflexão, talvez ajude a redimensionar o papel que
cumpre o ensino de história na formação histórica dos sujeitos e os limites desse processo.

Para Jörn Rüsen, a consciência histórica, cara tanto para historiadores acadêmicos quanto
para professores de História (ainda que, em muitos casos, não há uma diferenciação entre uns e
outros), é um tipo de trabalho intelectual efetuado a partir da forma de interpretar as experiências
no tempo, permitindo aos sujeitos colocar-se e mover-se no mundo de acordo as suas intenções
de agir, sendo estas intenções baseadas nos sentidos provocados pela interpretação dessas
experiências de mudanças de si e do mundo (Rüsen, 2010, p. 89-103). Nesse ponto da constituição
dos sentidos das experiências do tempo e da própria ordem do tempo, relembro a contribuição do
François Hartog que definiu como “regimes de historicidade” a forma como as sociedades
concebem a passagem do tempo e articulam suas vivências a partir dessa concepção. Ou seja, a
ideia de tempo e do que ele representa e como isso atravessa as experiências dos diferentes sujeitos
sociais.

Articulando o interesse de Rüsen pela formação da consciência histórica com o estudo


desenvolvido por Hartog sobre ordens do tempo, cheguei à necessidade de pensar ou repensar o
ensino de História e de quais formas está vinculado às diversas engrenagens de tempo. Em outras
palavras, de quais maneiras as concepções sobre o tempo histórico acarretam mudanças ou
cristalizam formas de fazer no ensino de História e como isso repercute nesse processo tão
fundamental da formação da consciência histórica.

Por outro lado, é preciso entender em que ordem de tempo estamos envolvidos e como se
operacionaliza o ensino da História dentro desta ordem. François Hartog identifica como
presentista o atual regime de historicidade. O presente presentista é um tempo estabelecido entre
dois abismos, o passado e o futuro. O passado está abolido. Não se extrai mais dele nada para
orientar o presente. O futuro, cuja única certeza é que será marcado por catástrofes, também não
serve como tempo de orientação. Nesse sentido, estaríamos, segundo Hartog, diante de um
presente onipresente (Hartog, 2013, p. 20, 26).

Segundo Hartog, vivemos hoje uma experiência de crise do tempo, marcada por esse
presentismo. Isto é, um presente perpétuo, onde tudo passa como se não houvesse amanhãs,
apenas o hoje, o imediato. Presentismo é, portanto, o termo cunhado por Hartog para designar a
experiência mais recente com o tempo. (Hartog, p. 40-41). Mas, de onde viria, essa noção do
tempo? Em que momento a concepção de passado, de presente e de futuro teria mudado para as
sociedades ou para uma parte delas?
20

Entender essa passagem nos ajuda a perceber as transformações experimentadas pelas


sociedades e como estas veem a si mesmas. Sem dúvida, o trabalho do historiador e professor de
História passa pela compreensão da forma como as sociedades constroem sua consciência histórica
e do grau de historicidade que cada uma produz, bem como os usos que fazem dessa historicidade.
Mas, de que maneira as transformações nas concepções de passado, presente e futuro, comuns a
toda sociedade, se conectam e se materializam nas práticas de ensino e de aprendizagem em
História?

Em outras palavras, qual o peso que as visões de mundo – em sua abrangência política,
historiográfica, pedagógica - marcadas pelas concepções de tempo, estabelecem sobre as escolhas
didáticas e sobre outras definições feitas pelo professor de História? Teria a concepção de tempo
presentista transformado o jeito de se ensinar História? Um certo entendimento do passado e as
perspectivas de futuro típicas do atual momento alteraram a forma como os estudantes concebem
a História, enquanto área de saber sistematizado?

Um ontem obsoleto e um futuro não mais marcado pelo progresso, parece uma ideia que
prende a todos no imediato presente. Não seria diferente com os jovens que ingressam no Ensino
Médio. Esse presente marcado pelas formas aceleradas de produção, consumo e uso das
ferramentas tecnológicas, notadamente, as tecnologias de informação e comunicação, não admite
a desatualização. Quem não se atualiza corre o risco de se tornar obsoleto, passado. Como ficam
os professores de História diante do ritmo imposto por essa realidade, especialmente depois da
obrigatoriedade no uso de ferramentas tecnológicas que viabilizem – a qualquer custo – o ensino,
diante da catástrofe ocorrida neste ano 2020 marcado globalmente pela pandemia do COVID-19?

A impressão é que se estabeleceu nos últimos anos uma lógica da permanente atualização.
Absolutamente tudo e todos, incluindo os professores de história, precisam se atualizar. Isso
significa acompanhar a velocidade das tecnologias, essa profusão de ferramentas de todos os tipos,
capazes de armazenar uma infinidade de informações e saberes, acessíveis a partir de um clic.
Professores e estudantes da Educação Básica, certamente estão entre os que se deparam
cotidianamente com esse arsenal de conteúdos disponíveis em plataformas, redes sociais e em
outros ambientes virtuais. Portanto, atualizar e se atualizar se tornou parte da existência de pessoas
e coisas. Dessa forma, não haveria mais um limite entre o tempo vivido e sua atualização e exibição
(Araújo; Pereira, 2018, p. 29-40).

Os historiadores Valdei Araújo e Mateus Pereira identificaram uma gradual transição do


termo progresso para updatism (neologismo em língua inglesa) como vocábulo mais utilizado entre
usuários da rede mundial de computadores e introduzido nos diversos dicionários etimológicos
21

mundo a fora desde os anos 1960. De acordo com os autores, esse atualismo é um fenômeno
caracterizado como uma dimensão temporal, uma nova engrenagem do tempo que se expressa em
um aprisionamento das sociedades em estruturas de expansão infinita. Um jeito de ser presentista,
cujo fundamento é a permanente e infinita atualização (2018, p. 44-46).

A questão que nos afeta é, como esse fenômeno do atualismo atravessa as relações no
interior do ambiente escolar e, mais especificamente, quais mudanças provocou e provoca no
ensino de História e no aprendizado desta disciplina. Essa obrigatoriedade em estar por dentro de
tudo que acontece, desde a mais corriqueira e trivial ação cotidiana ao mais recente pronunciamento
de chefes de Estado através de uma rede social, está na ordem do dia, todos os dias. Uma condição
que parece incontornável hoje. Segundo os autores:

Atualizar opõe-se não apenas ao inatual, mas ao desatualizado como obsoleto.


(...) Entregar-se ao automatismo do gadget, aceitar suas atualizações automática
vendidas não mais como produto, mas como serviço, parece ser uma condição
incontornável do poder ser atual. (...) Pertencer ao seu tempo pode exigir estar
conectado 24 horas por dia/7 dias por semana a um canal de notícias em fluxo
ou fazer parte da história nas reações em tempo real aos grandes acontecimentos
pelas redes sociais. (Araújo e Pereira, 2018, p. 38-40).

O entendimento desses autores é de que o atualismo é um fenômeno de temporalização do


tempo, isto é, uma forma específica de conectar passado-presente-futuro. Desta maneira, esta
expressão nos ajuda a entender as transformações na vida hoje. O descolamento da noção
totalizante e orientadora de progresso é cada vez mais nítida, à medida que se intensifica a sensação
geral de aceleração e multiplicação de ocorrências. Queremos saber quais impactos, além do
evidente aprisionamento aos aparelhos eletrônicos, verdadeiros armazéns de novidades, esse
fenômeno tem gerado sobre o ensino de História. Os professores de História têm clareza sobre
essa nova dimensão de experiência com o tempo histórico, para além da prática imediata? Discutem
o tema e o incluem como aspecto fundamental na elaboração de seus planos e ementas? Em que
medida o aprendizado histórico é afetado pela dimensão temporal presentista?

Sem dúvidas, a crise sanitária internacional provocada pela pandemia do COVID 19, sua
repercussão e efeitos, como o do isolamento e distanciamento social, aprofundou a urgência desse
atualismo. Quase todas as relações foram/estão atravessadas pelo uso das tecnologias de informação
e comunicação. Com as salas de aula não foi diferente. Uma vez impedidas de seguirem o fluxo
normal de funcionamento, as diferentes áreas de saber tiveram que se reinventar em curto espaço
de tempo, adequando-se aos meios tecnológicos e a toda sua complexidade. Ainda não se pode
mensurar os impactos e possíveis efeitos disso para o ensino de História no futuro breve. Ainda
não sabemos quão obsoletos estarão os planos, os métodos e as práticas pedagógicas do ensino de
22

História para mais adiante, já que a introdução de novos meios de ensino e aprendizagem
atravessados pelo uso das tecnologias se fez de forma abrupta, obrigatória e bastante desigual ao
longo deste ano pandêmico.

A cena social atual marcada por desastres ambientais, descrédito sobre as instituições
políticas e jurídicas, aumento da pobreza e do desemprego, produz um indescritível impacto sobre
as consciências, notadamente entre os mais jovens. A falta de perspectiva para o futuro pode ser
explicada por essa simultaneidade entre o presente real e a ideia de futuro. Um outro autor que
discute as dimensões de experiência com o tempo é o historiador Hans Ulrich Gumbrecht. Para
ele, o cronótopo do presente amplo é marcado justamente pela convergência de passado e futuro no
presente. Um presente em expansão que se eterniza em simultaneidades (Gumbrecht, 2015, p. 16).

Em linhas gerais, a tese de Gumbrecht mostra como a noção que o historiador tem da
engrenagem do tempo em seu tempo afeta seu objeto de pesquisa, da mesma maneira que afeta
todas as pessoas em suas agências cotidianas. Mas, será necessário ter consciência disso. Como e
por que uma certa ordem do tempo é abandonada e outra se forma em seu lugar? Como crítico do
presentismo, do uso excessivo das ferramentas tecnológicas e da atualização sem fim, Gumbrecht
defende uma agência de sentido de presença e argumenta que as ferramentas tecnológicas nos
tornam onipresentes, dispensando a presença. Além de serem capazes de arquivar absolutamente
tudo (2015, p. 32). Como fica a construção da memória nessa perspectiva? E a ideia de passado e
seu entendimento? O ensino de História? E a formação da consciência histórica?

Numa linha gumbrechtiana, caberia ao historiador interpretar as fontes no sentido de entender


qual o cronótopo da sociedade que está pesquisando. Como aquelas pessoas viam o passado, quais
suas perspectivas para o futuro, e como essas projeções influenciavam seu presente. Pensando o
ensino de História, sabemos que não é possível retrocedermos ao tempo da presença pura e simples
sem o intermédio das ferramentas tecnológicas. Isso ficou mais nítido no contexto da crise
pandêmica. Aliás, muitos que foram obrigados a ingressar nos ambientes virtuais de ensino e
aprendizagem parecem já revelarem uma recusa do abandono. No entanto, a crítica feita por
Gumbrecht talvez nos ajude a traçar outros caminhos para o ensino de História, partindo de uma
compreensão histórica da produção social do tempo e de como isso reflete nas agências
entrecruzadas da vida prática no interior do ambiente de aprendizagem da História.

Assim como François Hartog, Hans Gumbrecht desnaturaliza o tempo. Esses autores nos
permitem refletir sobre a fabricação social do tempo. Os sentidos que as sociedades e, no interior
delas, os grupos sociais, produzem sobre a engrenagem do tempo. O que é o passado e para que
serve; o presente e o futuro nessa mesma dinâmica. Essa epistemologia do tempo é importante
23

tanto para a pesquisa e produção do conhecimento em História quanto para o ensino de História,
quando se tem claro que o objetivo fundamental do aprendizado histórico é aquilo que Jörn Rüsen
chama de competência narrativa, isto é, a capacidade de adquirir orientação temporal da própria
vida prática (Rüsen, 2010, p. 42-43).

Apesar de não usar o termo presentismo para caracterizar a sociedade atual e sua concepção
de tempo histórico, o historiador Luís Fernando Cerri (2011, p. 108-111) fala da fluidez e dos
diversos pertencimentos que marcam o sujeito pós-moderno. Uma certa flexibilização das
identidades que nubla ou distancia a identidade coletiva, hoje fragmentada. Cerri questiona o papel
da aprendizagem escolar da História em tempos de ausência de uma identidade global, em que o
político tende a ser cada vez mais pessoal, esvaziando o espaço público como campo de definição
de destinos. Ensinar História para quê, afinal? pergunta o autor e ele mesmo problematiza essa
questão nos dando pistas sobre a validade e a importância do ensino de História no tempo presente.

Cerri afirma que do ponto de vista da consciência histórica, essas questões atuais recolocam
o ensino escolar de História na sua dimensão real. O ensino de História não poderá continuar
sendo memória histórica, mas racionalização, com fins à formação da consciência histórica. A
função pedagógica do ensino de História é preparar a/o estudante para ser capaz de esquadrinhar
sujeitos e intenções por trás de ações; dimensionar e relativizar ocorrências; identificar e entender
processos históricos; compreender a dinâmica do tempo. Para tanto, a História ensinada não deve
ser aquela que aspira verdade assépticas, tampouco deve ser reduzida à condição contemplativa ou
à dimensão afetiva, voltada para a construção de identidades em sintonia com a ordem do tempo.

Influenciado pela ideia de uma Didática da História de Jörn Rüsen, Luís F. Cerri fala de
uma articulação efetiva de conhecimento e ação, entre ciência e o uso cotidiano da história pelos
indivíduos (2011, p. 117). Está em questão a metodização desse processo. A definição da matriz
disciplinar da História defendida com Rüsen e reforçada por Cerri, caminha no sentido de
estabelecer a relação dialógica entre o ensino de História e a vida prática, organizada por métodos,
isto é, regras científicas que orientam a produção do saber (2011, p. 119).

O que compõe o fundamento da matriz disciplinar da História, na perspectiva rüseniana, é


a carência de orientação da prática humana no tempo. O ensino de História tem, portanto, papel
central na construção dessa orientação temporal. Contribuir para formar sujeitos atentos,
questionadores, capazes de interpretar as experiências do tempo e se posicionar historicamente
passa, invariavelmente pelo aprendizado histórico, que, segundo Rüsen, deve ser entendido como
um processo de construção de sentidos sobre a experiência no tempo. Para Rüsen, o aprendizado
histórico capacita os sujeitos a perceberem o tempo como intenção e como experiência.
24

Na ordem lógica do desenvolvimento do aprendizado histórico, que entendemos ter


relação direta com o ensino de História, os sujeitos desenvolvem competências que os permitem
interpretar criticamente o passado, não o absorver, mas entender o processo temporal organizado
por trás das ocorrências. Sendo capaz de estabelecer um quadro interpretativo que o remova do
presente contínuo, entendendo também as mudanças de si e do mundo em qualquer regime de
historicidade. Para Jörn Rüsen:

A consciência histórica amalgama ser e dever em uma narrativa significante que


refere passado com o objetivo de fazer inteligível o presente e conferir uma
perspectiva futura a essa atividade atual. Contribuição essencial da consciência
histórica à consciência ética moral. (...) Para a constituição da consciência
histórica requer-se uma correlação expressa do presente com o passado, uma
atividade intelectual que pode ser identificada e descrita como narrativa histórica.
A narrativa histórica, sempre em uma consciência de tempo na qual passado,
presente e futuro formam uma unidade integrada, mediante a qual, justamente
constitui-se a consciência histórica (Rüsen, 1992, p. 29-36).

De maneira geral, acredito que a compreensão da ordem do tempo pelos sujeitos do ensino
e da aprendizagem em História é fundamental para a formação da consciência histórica. Me refiro,
à função educativa do ensino de História. Essa função se liga ao método histórico escolhido pelo
professor-pesquisador, e este método histórico deve estar vinculado ao compromisso de apresentar
ao estudante a relação do tempo histórico com a vida cotidiana, vislumbrando uma compreensão
da dinâmica do tempo, para que os agentes da aprendizagem percebam as engrenagens do tempo
e sejam capazes de atribuir-lhe sentidos e crítica.

Acreditamos como Luís F. Cerri que o perigo da vivência da concepção presentista do


tempo, afastado do aprendizado histórico, está na reprodução acrítica da condição atual – com
todas as suas mazelas. Nesse regime de tempo é comum a ausência de sujeitos interessados em
“fazer de outra forma” – fazer diferente. O que o ensino de História tem a ver com isso? Como o
ensino de História pode contribuir para a construção de um quadro interpretativo desta ordem de
tempo atual? Como pode ajudar a alterá-la se for lido como necessário? Como pode colaborar para
se romper com as ausências de perspectivas e fomentar novos entendimentos e práticas sociais?

Pensemos!

Referências

Cerri, Luís Fernando. Ensino de História e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão
contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
25

Gumbrecht, Hans Ulrich. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo:
Editora Unesp, 2015.

Hartog, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2013.

Schimidt, Maria Auxiliadora. Barca, Isabel & Martins, Estevão R. (Org.) Jörn Rüsen e o ensino de
História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

Silva, Marcos & Guimarães, Selva. Ensinar história no século XXI: em busca do tempo entendido.
Campinas, SP: Papirus, 2012.

Rüsen, Jörn. El desarollo de la competencia narrativa en el aprendizaje histórico. Una hipótesis


ontogenética relativa a la consciência moral. Propuesta Educativa, Buenos Aires, n. 7, p. 27-36,
1992.

___________História Viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico.


Brasília: UNB, 2010.
26

A trajetória intelectual de Frei Betto: Religião, Marxismo e


Teologia da Libertação

Adriano Mendes da Fonseca*

Resumo: o objetivo do trabalho é analisar a trajetória intelectual de Carlos Alberto Libânio Christo,
Frei Betto, no período entre 1974 e 1993, contexto da publicação das suas obras, fontes primárias
da pesquisa. Grande parte da produção do autor está ligada aos movimentos sociais e políticos de
esquerda e a ação católica na América Latina. Analisaremos por meio de obras e artigos de Frei
Betto como se deu a sua formação religiosa e intelectual, além de problematizar como ele objetiva
uma aproximação entre a religião e o Marxismo e defende a Teologia da Libertação.

Palavras-chave: socialismo, religião, revolução, marxismo, teologia.

Frei Betto: A formação religiosa e intelectual

Carlos Alberto Libânio Christo, Frei Betto, quando criança residiu com a família em Belo
Horizonte, estudou no jardim de infância Bueno Brandão e no Grupo Escolar Barão do Rio
Branco. Morando a poucos metros do Colégio Católico Dom Silvério, logo seu pai o matriculou
na instituição que recebia, em sua maioria, alunos da elite belorizontina. Cursando o ginásio no
Dom Silvério, Frei Betto observou que a educação na instituição primava pela cultura europeia,
particularmente a francesa, e excluía os negros, pela questão racial e social, os judeus e protestantes
pela ortodoxia religiosa. (Betto, 2002, p. 103)

Aos treze anos, através de dois vizinhos, Mauro Lambert e Rodrigo Dolabella, foi levado a
militar na Juventude Estudantil Católica (JEC). Mesmo com idade abaixo da permitida, Frei Betto
conseguiu ingressar no movimento, caso idêntico de um garoto de nome Henrique, que mais tarde
tornou-se conhecido como cartunista Henfil. Participando das reuniões da JEC, Frei Betto
estabeleceu contato com vários freis da ordem dominicana e integrantes da Juventude Universitária
Católica (JUC), que tinha como líderes o irmão do Henfil, Hebert José de Souza, conhecido como
Betinho, além de Vinícius Caldeira Brant e Hugo Assmann.

Os grupos como a JEC, da qual Frei Betto viria a ser líder nacional, surgiram com o
estabelecimento da Ação Católica, uma forma de “apostolado leigo” originando um movimento

*
Adriano Mendes da Fonseca é mestrando do PROFHistória - UFU, Mestrado Profissional em Ensino de História,
da Universidade Federal de Uberlândia.
27

católico social e progressista europeu do início da década de 1930, principalmente na Itália, França
e Bélgica. A Juventude Operária Católica (JOC) foi a primeira a ser reconhecida no Brasil em 1948,
e em 1950 foram lançadas a Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Independente Católica
(JIC), além da JEC e JUC. Segundo Emanuel de Kadt, o

[...] ramo de estudantes secundaristas, a JEC, não deve ser subestimado,


especialmente em seu impacto sobre os alunos das escolas dirigidas pela Igreja
[...] O catolicismo progressista no Brasil teve muitas fontes e, sem dúvida, já vinha
fermentando por algum tempo quanto surgiu como um corpo coerente de ideias e
atividades. Mas isto, quando aconteceu, o fez dentro de uma geração específica
de estudantes ativistas da JUC [...] (Kadt, 2003, p. 96-97).

Em 1961, foi organizada por Vinícius Caldeira Brant a Ação Popular (AP), movimento que
acenava para uma postura ofensiva dessa juventude cristã, disputando espaço com a militância
comunista, na luta pelos direitos sociais e políticos no Brasil. Frei Betto, apesar de grande simpatia
aos propósitos do movimento, ficou à margem, impedido de filiar-se por normas internas, já que
nesse momento era dirigente regional da JEC e menor de dezoito anos. (Betto, 2003, p. 183)

A postura política ofensiva de representantes da Igreja Católica na América Latina,


principalmente no Brasil, a partir da década de 1960, pode ser explicada a partir da eleição do Papa
João XXIII, que abre um novo capítulo na história da Igreja Católica através do Concílio Vaticano
II (1962-1965) e das encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963). As medidas de João
XXIII marcaram a renovação da Igreja, superando a visão postridentina. O Vaticano II em relação
à Trento foi marcado por maior participação dos Bispos da América Latina, o que possibilitou a
caracterização das posturas questionadoras nos campos político, social e cultural, além de
influenciar nas decisões tomadas nos concílios latino-americanos de Medelín (1968) e Puebla
(1979). (Rojas, 1986).

A efervescência dos conflitos como a luta anticolonialista em alguns países da África e Ásia,
a Revolução Cubana, a Guerra Fria, as ditaduras e o imperialismo norte-americano nas Américas
do Sul e Central, possivelmente impulsionou a ala progressista da Igreja Católica latino-americana
à militância política. A autora Lucilia de Almeida Neves analisa a nova conjuntura do catolicismo:

Em comparação com a linha tradicional, há um avanço significativo na


consciência da Igreja, no estilo do trabalho com a base e na forma de participação
do povo. A história foi gerando possibilidades e formando novos valores.
Através dos acontecimentos, a história compassou um novo olhar no mundo
católico. (Neves e Ferreira, 2007, p.109).

No seio dos grupos estudantis católicos, na década de 1960, surgiu uma geração de grandes
intelectuais. Através de uma análise dessa geração intelectual latino-americana, a qual se vincula
28

Frei Betto, verificam-se os conflitos políticos das décadas de 1950-60, como fatores
preponderantes para o estabelecimento de uma memória coletiva e de uma cultura política
socialista, tendo como principais símbolos a luta de classes e a revolução do proletariado, presente
no pensamento marxista-leninista. O impacto e a ruptura provocados pela vitória do Movimento
Revolucionário 26 de Julho1 em Cuba, em 1959, motivou essa geração à militância política, tendo
como auge as décadas de 60 e 70.

No ano de 1962, Frei Betto assumiu a direção nacional da JEC, mudando-se para o Rio de
Janeiro. Através da Ação Católica, com apoio financeiro de dom Hélder Câmara, teve a
oportunidade de viajar por todo o Brasil. Em contato com dirigentes da Ação Católica e do
Movimento de Educação de Base (MEB), teve acesso ao método de alfabetização de Paulo Freire.
Segundo Frei Betto, o método facilitaria a irradiação política da juventude Católica, pois naquele
contexto a alfabetização dos trabalhadores seria o fermento para a revolução:

Ao calcular, aprendiam vagamente o que é mais-valia, meios de produção,


alienação etc., noções elementares do marxismo vulgar, que serviam de substrato
a conscientização política. Precária apropriação de conceitos que, aos nossos
ouvidos, soavam como sementes de utopia, saciando o nosso apetite
revolucionário. (Betto, 2003, p.199)

Em 1964, passou a ser membro do Secretariado Nacional da Ação Católica Brasileira,


participou de reuniões da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), presenciando as
discussões da Conferência Católica que apoiou o golpe militar de 1964, baseando-se na ideologia
do anticomunismo. O apoio da CNBB ao golpe teve como consequência a retirada do apoio à
Ação Católica e o enfraquecimento dos movimentos estudantis especializados como a JEC e a
JUC, o que para Frei Betto foi lamentável. No entanto, posteriormente ganhariam força outras
organizações militantes advindas da Ação Popular e da Ação Católica: as Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação (TdL), que surgiram na América Latina em fins da
década de 1960.

No Rio de Janeiro, um mês antes do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart,
Frei Betto ingressou na Faculdade de jornalismo. Na madrugada de seis de junho, junto com outros
integrantes da JEC e JUC, foi preso e conduzido ao Arsenal de Marinha, sob acusação de
participação na AP, na época dirigida por Betinho, que, naquele momento, encontrava-se na
clandestinidade. Quinze dias depois, Frei Betto foi liberado e o processo arquivado. (Betto, 2003,
p. 218).

1Nome dado ao movimento revolucionário cubano, em homenagem aos combatentes rebeldes mortos no ataque ao
quartel Moncada, em 26 de julho de 1953.
29

No restante do ano de 1964, refletindo sobre sua religiosidade, chegou a fazer teste
vocacional na PUC do Rio de Janeiro, apesar da constatação das psicólogas de que não teria
vocação para o sacerdócio e de protestos dos companheiros de militância, no ano seguinte trancou
a matrícula do curso de jornalismo e retornou a Belo Horizonte, ingressando no noviciado da
ordem dominicana. A ordem dos dominicanos estabelecia estreita ligação com a JEC e a JUC,
segundo Marcelo Ridenti:

Especialmente a ordem dos dominicanos foi influenciada pela militância na JUC


naquele período, inclusive alguns frades que, depois de 1964, ligaram-se ao
esquema guerrilheiro organizado pelo líder comunista Carlos Marighella,
fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), em 1967. A relação entre os
frades e a ALN foi relatada por frei Betto no livro Batismo de Sangue [...] (Ridenti,
2002, p. 213-282).

Em meados de 1967, convencido da impossibilidade de separar a fé do compromisso social,


Frei Betto tem acesso às obras de Carlos Marighela, além de informações a respeito da formação
da Ação Libertadora Nacional (ALN), uma organização revolucionária que projetava a luta armada
contra a ditadura militar no Brasil, através de guerrilhas urbanas. Em 1968, ele voltou ao jornalismo
trabalhando como repórter da Folha da Tarde. Em dezembro do mesmo ano, foi decretado o Ato
Institucional nº 5, que ampliou o aparelho repressivo dos militares através do Departamento de
Ordem Política e Social (DOPS), atingindo a imprensa e até mesmo alguns religiosos da ordem dos
dominicanos. Temendo a repressão, Frei Betto afasta-se do jornal e da comunidade dominicana
passando a viver na clandestinidade em São Paulo.

Em 1969, mudou-se para o Rio Grande do Sul para estudar teologia em um seminário
Jesuíta. Atendendo a um pedido de Marighela, Frei Betto auxiliou refugiados políticos que iam de
Porto Alegre para o Uruguai. Do seminário onde estudava e morava na capital gaúcha, portando
identidade falsa, perseguido e cercado pelos militares, Frei Betto se refugiou em uma casa paroquial
de onde, a cinco de novembro de 1969, informou-se por meio de jornais sobre os acontecimentos
em São Paulo, ou seja, a morte de Marighela e a prisão de seus companheiros, os freis dominicanos
Ivo Lesbaupin, Fernando de Brito e Tito de Alencar Lima. Em seguida, abrigou-se em uma casa
de irmãs e no dia seis de novembro de 1969, foi levado a um sítio e logo depois a um apartamento
vazio no centro de Porto Alegre. (Betto, 1982, p. 77).

No dia nove de novembro de 1969, Frei Betto foi preso pela segunda vez, sob acusação de
crime de ordem política. No fim desse mês, ele foi transferido de Porto Alegre para São Paulo,
onde ficou preso em uma cela do DOPS paulista e em dezembro foi condenado a quatro anos de
cárcere, sendo transferido para o presídio Tiradentes.
30

Frei Betto e a Teologia da Libertação: Cristianismo e Marxismo

Um ano antes da segunda prisão de Frei Betto, em 1968, na Conferência Episcopal de


Medellín, o padre peruano Gustavo Gutierrez Merino2 defendeu a opção da Igreja pelos pobres e
que “a libertação podia ser alcançada, sim, por meio da sublevação, com a luta de classes e a
instauração de um sistema socialista”. (Mir, 2007 p. 186). Além de Gutierrez Merino, pode-se
apontar, principalmente a partir de fins da década de 60, uma geração intelectual latino-americana
produzindo em defesa da Teologia da Libertação. Entre esses intelectuais figuraram os brasileiros
Rubem Alves, Hugo Assmann, Carlos Mesters, Leonardo e Clodóvis Boff. Frei Betto, em O paraíso
perdido: nos bastidores do socialismo, estabeleceu o marco histórico da TdL:

Como qualquer outra teologia, a da libertação não nasceu das cabeças


privilegiadas de Gutiérrez ou de Boff. Brotou de um processo – que para não ir
muito longe no passado – emergiu durante a Segunda Guerra Mundial, quando,
na Europa, cristãos e comunistas deram-se as mão para enfrentar o nazifacismo.
Aquele cristianismo social chegou até nós através de autores como Mounier,
Maritain, De Lubac, Congar, Chenu, Rabner, Guardini, e de movimentos como
a Ação Católica. (Betto, 1993, p. 22).

Ao estudar o surgimento da Teologia da Libertação na América Latina, alguns autores são


consensuais ao apontarem Gutierrez Merino como seu percussor ideológico. No entanto, o autor
Michael Löwy observa o surgimento da TdL no Brasil, antes mesmo da produção de Gutiérrez no
início dos anos 60:

[...] a Teologia da Libertação é, ao mesmo tempo, reflexo de uma práxis anterior


e uma reflexão sobre essa práxis. Mais precisamente, é a expressão de um vasto
movimento que surgiu no começo da década de 60, bem antes dos novos escritos
teológicos. Esse movimento envolveu setores significativos da Igreja (padres,
ordens religiosas, bispos), movimentos religiosos laicos (Ação Católica,
Juventude Universitária Cristã, Juventude Operária Cristã, redes pastorais com
base popular, comunidades eclesiais de base [...]. (Löwy, 1996, p. 56).

O autor Marcelo Ridenti analisa o surgimento da Teologia da Libertação dentro do


processo histórico da Ação popular. Desta forma, é possível caracterizar seus precursores enquanto
uma geração intelectual que surgiu dos movimentos estudantis católicos no Brasil da década de
1960. Ridenti analisa a passagem de grupos cristãos militantes da Ação Popular e da Ação Católica
ao marxismo por:

2
“Nascido no ano de 1928, em Lima, Peru, é o fundador teórico e ideológico da TdL a partir da publicação de seu
livro Teología de la liberación – Perspectivas (1971), pretendente e guia religioso de libertação latino-americana”. (Mir, 2007,
p. 185).
31

[...] intermédio da versão do maoísmo difundida após a chamada revolução cultural


chinesa de 1966 [...]. Além disso, o processo que gerou a AP no seio da Igreja foi
precursor da Teologia da Libertação e de importantes movimentos católicos nos
anos subsequentes, por exemplo, as Comunidades Eclesiais de Base, herdeiras
do romantismo revolucionário do catolicismo de esquerda no Brasil nos anos 60.
(Ridenti, 2002, p.213-282).

O autor Michael Löwy propõe uma análise baseada no pensamento católico francês para o
surgimento da Teologia da Libertação:

Em vão se procurariam, na Teologia da Libertação brasileira, referências a Lebret,


Mounier ou Cavez. Mas, à medida que esses pensadores do catolicismo francês
mais avançado alimentaram o pensamento e a prática de toda uma geração de
cristãos brasileiros durante os anos da “grande virada”, de 1959 a1962, são uma
fonte essencial para compreender as origens dessa profunda transformação da
cultura religiosa que permitiu, mais no Brasil que no restante da América Latina,
um comprometimento massivo dos cristãos nos movimentos sociais com
vocação emancipadora. (Löwy, 1996, p. 255)

Para Luis Mir, a Teologia da Libertação em sua proposta de assumir a causa revolucionária
dos oprimidos, desvinculou-se, em grande parte, dos preceitos do catolicismo romano:

O teologismo libertador quer ser, antes de ensaio pastoral, um procedimento


político. E com a revolução na cabeça substituem o deus romano por um novo
deus, essencialmente vinculado a um novo povo escolhido, os carentes,
miseráveis, explorados, negros, indígenas, todos aqueles que as suas tropas
tinham executado, exterminado, perseguido e queimado durante cinco séculos
nestas paragens. (Mir, 2007, p. 232).

As discussões da conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em


Medelín (1968) representaram para alguns autores a afirmação das encíclicas Mater et Magistra e
Pacem in Terris e do Concílio Vaticano II. Para Gutierrez Merino, os cristãos passariam a ter o
compromisso com a libertação dos pobres da América Latina. É a partir desse discurso de
Gutierrez Merino que os Teólogos da Libertação, envolvidos nas Comunidades Eclesiais de Base,
passaram a utilizar alguns pontos da ideologia marxista, articulando-a ao cristianismo em sua
proposta de transformação social. Nessa proposta, os teólogos criticaram o comportamento dos
cristãos que se envolveram com o Estado ao longo da história, além de defenderem a possibilidade
de a religião ser mediadora da conscientização política das grandes massas. Segundo Michael Löwy,
a luta de classes marxista, “não apenas como instrumento de análise, mas como guia para ação,
torna-se uma peça essencial da nova Igreja dos pobres”. (Löwy, 1991, p. 97).

No fim do ano de 1973, cumprida a pena de quatro anos, Frei Betto foi solto, editando sua
primeira obra Cartas da prisão (1974), uma coletânea de cartas que enviara, de dentro do cárcere,
para parentes, amigos e irmãos de fé. De dentro da prisão o autor mantinha correspondência com
Leonardo Boff e Carlos Mesters, além de ter lido a obra Teologia da Libertação, de Gutierrez Merino.
32

Em meados da década de 1970, Frei Betto passou a dedicar-se a organização das CEBs e defender
o teologismo libertador latino-americano.

As CEBs são constituídas por “um pequeno grupo de vizinhos que pertencem a um mesmo
bairro popular, favela, vila ou zona rural, e que se reúnem regularmente para ler a Bíblia e discuti-
la a luz da sua própria experiência de vida”. (Löwy, 1991, p. 46). Para alguns autores, essas
comunidades desempenharam um papel decisivo na consolidação da Teologia da Libertação na
América Latina. Por se tratar de Comunidades Eclesiais de Base, os agentes pastorais passaram a
compartilhar a experiência cotidiana dos camponeses, operários e do povo pobre oprimido. A
liturgia e outros elementos da fé cristã passaram a ser articuladas com a realidade sociocultural
desses indivíduos, alijados do sistema político. Os elementos políticos, como já se viu, eram
introduzidos através do Movimento de Educação de Base (MEB). Segundo Irinéia M. Franco
Santos:

A vivência dessa fé cristã de forma plena exigia ações voltadas para a melhoria
das condições de existência. Baseando-se em uma leitura bíblica voltada para a
realidade deste mundo, a CEB procura resolver os problemas do cotidiano por
meio de ações coletivas com ênfase na solidariedade. As CEBs, como experiência
nova na Igreja da AL, possibilitaram o surgimento da Teologia da Libertação
latino-americana. (Santos, 2006, p. 2).

No fim da década de 1970, engajado nas CEBs, e na pastoral dos trabalhadores de São
Bernardo do Campo, Frei Betto apoiou as greves do ABC paulista, promovidas pela Central Única
dos Trabalhadores (CUT). Nesse período, o intelectual já havia publicado várias obras, dentre elas:
Das catacumbas (1976), Oração na ação (1977), Natal, a ameaça de um menino pobre (1978) e Diário de
Puebla em (1979). Esta última, um diário sobre a terceira Conferência dos Bispos da América Latina,
ocorrida em janeiro de 1979, em Puebla no México.
O crescimento considerável das CEBs, com a participação e liderança cada vez mais
constantes de leigos, em fins da década de 70, passou a chamar mais a atenção do Vaticano. A ala
conservadora da Igreja, que presidia o CELAM, já havia manifestado sua oposição aos teólogos
libertadores e endureceu as relações com a proibição da participação dos Bispos da Teologia da
Libertação na Conferência Episcopal de Puebla (1979). A articulação entre cristianismo e marxismo
proposta por religiosos da Teologia da Libertação, foi o principal fator desagregador com a cúria
romana, Michael Löwy aponta uma “Instrução” do Vaticano em 1984, “assinada pela Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé (dirigida pelo Cardeal Ratzinger) acusando a Teologia da
Libertação de ser um novo tipo de heresia baseada na utilização de conceitos marxistas.” (Löwy,
1996, p. 81-82).
33

No ano de 1979, a caminho de Puebla, com uma escala na Costa Rica, Frei Betto
reencontrou com Hugo Assmann, exilado desde os primórdios da ditadura militar no Brasil,
primeiro no Chile e, posteriormente, na Costa Rica. Assmann é da geração intelectual de 1960 e,
como Frei Betto, foi militante da Ação Católica. Em San José, cidade costarriquenha, através da
influência de Assmann, Frei Betto estabeleceu contato com líderes revolucionários nicaraguenses
da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), entre eles José Antônio Sanjinez e o escritor
e teólogo Ernesto Cardenal. A cidade de San José se tornara principal base de apoio aos jovens
revolucionários, o povo nicaraguense passava por um período de luta contra a ditadura da família
Somoza, apoiada pelos Estados Unidos.

Apesar da proibição da participação na Conferência Episcopal de Puebla, Frei Betto narrou


em sua obra O paraíso perdido nos bastidores do socialismo, que através de influências de bispos amigos,
eles conseguiram montar um sistema de comunicação clandestino, onde recebiam todas as
informações e repassavam suas análises, influindo nas decisões da Conferência. (Betto, 1993, p.
22). Através de informações de João Batista Libânio, Frei Betto tomou conhecimento que,
enquanto bispos avançados procuravam mostrar o contexto latino-americano de injustiças, os
conservadores, principalmente argentinos, colombianos e venezuelanos, tentavam minimizar as
críticas dos Bispos ligados à Teologia da Libertação.

Foram abertas na conferência as discussões em torno da Revolução sandinista na


Nicarágua. O Episcopado nicaraguense já havia se declarado contrário a ditadura de Somoza.
Ernesto Cardenal desembarcou em Puebla e reforçou o apelo aos bispos, pedindo apoio contra a
ditadura, apesar de alguma resistência, [...] “no domingo 11 de fevereiro de 1979, é divulgada a carta
contra a ditadura somozista, assinada por bispos de todo o continente [...]” (Betto, 1993, p. 22). Ao
analisar o documento final da Conferência de Puebla, em 13 de fevereiro de 1979, Frei Betto
verificou a reafirmação do compromisso com os pobres:

Terminou hoje a terceira conferência geral do episcopado latino-americano. O


documento final, Puebla 79, foi aprovado por 178 votos a favor e um em branco.
Uma Igreja mais comprometida com a ação libertadora frente às ditaduras, ao
terror, à marginalização, à opressão e à pobreza, é o que propõe os bispos. (Betto,
1979, p. 117)

As Comunidades Eclesiais de Base, nesse contexto, constituíram o principal canal de


divulgação da Teologia da Libertação. As CEBs para Frei Betto devem partir de uma relação
dialética de colaboração por parte dos agentes pastorais com as comunidades, isso possibilitaria
através de aprendizado cultural a aproximação com a realidade do povo. O autor definiu o papel
das CEBs dentro da Igreja latino-americana:
34

É o papel definido por Puebla. Lutar com o povo latino-americano pela sua
libertação em todas as dimensões: política, econômica, social e, inclusive,
espiritual. Nesse sentido, as CEBs ajudam o nosso povo a entender o processo
libertador, como um processo bíblico, como um processo que é parte integrante
e fundamental da promessa e, ao mesmo tempo, da História da Salvação. (Betto
e Filho, 1988, p. 95).

A relação de Frei Betto com a Nicarágua tornou-se mais próxima a cada dia. Em visita ao
país, ele observou a destruição causada pelo terremoto de 1972 e pelos conflitos gerados pelas
ações dos sandinistas. No entanto, em sua segunda passagem pela Nicarágua em 1980, ele ficou
atento e admirado com o projeto de reconstrução. Nas comemorações do aniversário da vitória da
Revolução Sandinista, no mês de julho, Frei Betto, acompanhado do líder grevista do ABC paulista,
Luis Inácio da Silva, se mostrou admirado pelo rumo dado a política e pelo trabalho cristão de
base, apoiando as comunidades através de comitês e juntas. É nesse contexto de comemorações
que surgiu o primeiro contato com Fidel Castro, além da escrita de Nicarágua livre: o primeiro passo.

No início da década de 80, a oposição vinda do cristianismo conservador intensificou-se


com o objetivo do Papa João Paulo II, recentemente empossado, de centralizar o poder decisório
da Igreja Católica em Roma. Os opositores latino-americanos da TdL se valeram da intenção do
novo Papa e intensificaram sua crítica ao movimento. No entanto, os teólogos argumentam receber
o apoio por parte de Roma à práxis dos religiosos latino-americanos. O trecho de um documento
do Vaticano de seis de agosto de 1984, citado por Leonardo Boff, teve o objetivo de fundamentar
esse apoio: “[...] Não é possível esquecer por um só instante as situações de dramática miséria de
onde brota a interpelação assim lançada aos teólogos [...] de elaborarem uma autêntica Teologia da
Libertação.” (Boff, 1986, p. 14).

De acordo com Irinéia M. Franco Santos, na década de 80 ocorreu grande mudança na


produção teológica, a TdL abandonou o discurso ideológico de vencedores para um discurso de
resistência dentro da instituição eclesiástica e na sociedade:

Pode-se perceber esta característica de resistência, nos anos 80, nas defesas dos
teólogos em relação ao aumento das repressões, pressões e críticas vindas do
novo Papado e da hierarquia conservadora. João Paulo II iniciou o seu
pontificado com a determinação de marcar mais fortemente a presença de Roma
nas Igrejas da AL, na tentativa de inserir uma nova orientação pastoral em relação
aos movimentos de base na Igreja e, consequentemente, à TdL. (Santos, 2006, p.
6).

As décadas de 1980 e 90, com a abertura política gradual da ditadura militar no Brasil,
configuraram o auge da produção intelectual de Frei Betto. Além de Nicarágua Livre: o primeiro passo,
o autor publicou várias obras, dentre elas: O fermento na Massa; CEBs, Rumo à Nova Sociedade; Fidel e
35

a religião; Cristianismo e marxismo; Sinal de contradição; O paraíso perdido nos bastidores do socialismo. Nesse
contexto, movido pela experiência na Nicarágua e pela produtiva entrevista a Fidel Castro em Cuba,
o autor passou a defender com veemência a articulação entre fé e política, caracterizando o
socialismo como a saída para uma sociedade mais justa.

Em agosto de 1984, foi publicada pelo Cardeal Ratzinger a Libertai Nuntius – instrução sobre
alguns aspectos da Teologia da Libertação. (Santos, 2006, p. 7). Nesse documento o Vaticano criticava
duramente a utilização da teoria marxista por parte da Teologia da Libertação e estabelecia os
aspectos do que seria a teologia ideal, diferenciando-a da ala radical. Ou seja, as discussões estavam
em torno de um maior controle de Roma sobre a TdL, que, segundo o documento publicado por
Ratzinger, deveria seguir a cartilha romana de teologia. Ainda no ano de 1984, o intelectual
Leonardo Boff sofreu uma punição da Congregação para a Doutrina da Fé, ex-santo ofício,
justificada pela publicação de seu livro Igreja, carisma e poder, de 1981. A punição a Boff causou
enorme descontentamento aos membros da TdL e acirrou as diferenças com o Vaticano.

Frei Betto estabeleceu uma crítica ao marxismo ortodoxo, que, para ele, além da práxis
revolucionária, pretendeu dogmatizar a teoria desconsiderando a subjetividade humana. O autor
fez uma análise da crítica filosófica de Karl Marx à religião:

Em seu ateísmo filosófico, Marx evolui para uma abordagem dialética da religião
na medida em que considera sua dimensão positiva de “protesto contra a miséria
real.” Como cientista, já não retoma sua indignação prometeica contra os deuses,
não diz que “Deus é o ópio do povo”, mas sim a religião, esse fenômeno
sociocultural [...] como a fé em Deus, escapa a todos os instrumentos científicos
de análise. (Betto, 1986, p. 27).

Apesar de análises de alguns autores apontando a Teologia da Libertação, fundamentada


na leitura marxista-leninista e de Mao Tse Tung, Frei Betto apontou que o importante na ideologia
marxista é o seu vigor revolucionário de libertação dos povos oprimidos, independentemente da
ótica em que é interpretada. Segundo ele, é nesse sentido que converge o diálogo entre cristianismo
e marxismo. De acordo com o autor, principalmente no contexto latino-americano, o regime
socialista deve desvincular-se do dogmatismo ideológico, reconhecendo o novo papel do
cristianismo libertador. A Nicarágua, para Frei Betto, foi o exemplo recente do Teologismo
Libertador, pois foi [...] “onde pela primeira vez na história os cristãos participaram ativamente do
processo de libertação”. (Betto, 1986, p. 38).

Em O partido de Deus, o autor Luiz Mir apontou que a Teologia da Libertação jamais possuiu
uma visão global capaz de fundar uma sociedade cristã revolucionária, pois não conseguira
transformar o catolicismo numa religião dinâmica, ficando presa ao conservadorismo romano. O
36

autor apontou que através do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica buscou reafirmar-se no mundo
ocidental. Segundo Mir:

[...] o Vaticano II constitui uma tentativa desesperada, entre outras coisas, de uma
nova cruzada naquele Ocidente que ainda podia chamar-se de cristão. Roma
encomendou aos prelados africanos e latino-americanos pós-concílio montar o
exército pastoral, desenhar os instrumentos político-religiosos para essa nova
evangelização, que começaria em Roma, autorizada por Roma, conduzida por
Roma e cuja única incumbência era reverter o declínio romano. Começam a se
esboçar ensaios de uma Teologia da Libertação na África, na América Latina e
na Ásia [...] (Mir, 2007, p. 224).

O engajamento sócio-político em favor dos pobres e oprimidos por parte dos teólogos da
libertação é definido por eles enquanto uma práxis3 cristã. A defesa do socialismo e a utilização de
termos marxistas não reduzem a Teologia da Libertação a um discurso sócio-político, segundo eles
antes de qualquer coisa, ela busca uma reflexão religiosa e espiritual em torno dos problemas
sociais. Os intelectuais Leonardo e Clodóvis Boff publicaram em 1985 um artigo respondendo as
instruções do Cardeal Ratzinger:

Ele [o marxismo] ajudou a esclarecer e a enriquecer certas noções teológicas


importantes: o povo, os pobres, a história e mesmo a práxis e a política. Isso não
significa que temos que reduzir o conteúdo teológico dessas noções aos limites
da forma marxista. Ao contrário, usamos o conteúdo teórico válido (que está de
acordo com a verdade) das noções marxistas no horizonte teológico. (Apud
Löwy, 1996, p. 129).

Frei Betto em sua obra Cristianismo e marxismo (1986) recorreu aos primórdios do
cristianismo para sustentar a prática da teologia, buscando fundamentar a luta revolucionária
libertadora latino-americana na opção pelos pobres de Jesus Cristo:

O Cristianismo surge da prática libertadora da comunidade de Jesus de Nazaré e


seus apóstolos, na Palestina do século I. Nesta região, dominada política,
econômica e militarmente pelo Império Romano, Jesus assume a causa dos
pobres, anunciando-lhes o Deus da vida [...] (Betto, 1986, p. 15).

Dentro da perspectiva das culturas políticas, é possível analisar a trajetória intelectual de


Frei Betto atrelada a uma cultura política socialista. Analisando a trajetória do autor desde a
militância estudantil é possível observar que a geração intelectual que se formou na década de 1960
foi envolvida por um ideal revolucionário marxista-leninista-maoista. A Revolução Cubana, apesar
de não possuir caráter ideológico marxista nos seus primórdios, foi um elemento a mais para esses
intelectuais de esquerda. Esse universo simbólico, da luta de classes e da Revolução do proletariado

3“Do grego, [...] significa fazer, agir, praticar ou exercitar uma arte, uma ciência ou uma habilidade”. (Mir, 2007, p.
186).
37

viria ainda motivar Frei Betto na coordenação das CEBs, nas participações no MEB e nos
movimentos grevistas das décadas de 1970 e 80.

Na segunda metade da década de 80, Frei Betto visitou a URSS duas vezes, em 1986 e 1987.
Na segunda vez, convidado pela Igreja Ortodoxa Russa e pelo conselho de assuntos religiosos,
participou juntamente com Leonardo e Clodóvis Boff, de debates onde defenderam a articulação
entre cristianismo e socialismo. A obra Cristianismo e marxismo (1986) busca aprofundar as
discussões entre cristianismo e marxismo em torno do projeto socialista. O autor argumenta que:

[...] O marxismo e os marxistas não podem ignorar o novo papel do Cristianismo


como fermento de libertação das massas oprimidas da América Latina. Contudo,
para apreender esse potencial revolucionário do Cristianismo, o marxismo deverá
romper a camisa-de-força de sua ótica objetivista e reconhecer o papel da
subjetividade humana na história. (Betto, 1986, p. 36).

Frei Betto afirmou que o socialismo é o regime político que mais atende o projeto libertador
latino-americano e que nos países que ingressaram no regime, a Igreja não perdeu o seu papel
evangelizador. O autor apontou que só haverá harmonia entre a Igreja e o Estado, quanto este
cumprir seus compromissos com o povo, tornando a sociedade mais igualitária:

Se a Igreja se encontra num regime onde o Estado representa os interesses


populares, em princípio não deve haver conflito. Evidentemente que o
socialismo, para a Teologia da Libertação, pelo menos, nas suas bases teóricas e
em muito de suas conquistas práticas, corresponde muito mais ao seu projeto
evangélico do que o capitalismo [...] O socialismo é uma proposta de construção
da fraternidade humana. (Betto e Filho, 1988, p. 105).

Os anos finais da década de 80 e o início da década de 90 foram desastrosos para as


pretensões dos Teólogos da Libertação. No Brasil, Luiz Inácio da Silva, o Lula, perdeu as eleições
de 1989 para Fernando Collor de Melo. No mesmo ano, na Alemanha, ocorreu a queda do muro
de Berlim, “golpe trágico” ao socialismo. Na Nicarágua, os contrarrevolucionários, apoiados pelos
norte-americanos desestabilizaram o governo de Daniel Ortega, eleito pela FSLN, em 1984. Diante
das pressões, as eleições de 1990 marcaram a derrota de Daniel Ortega para Violeta Chamorro,
candidata apoiada pelos Estados Unidos. A desintegração da União Soviética representava o fim
da Guerra Fria e o advento da Nova Ordem Mundial. O fim da URSS abalou bruscamente a
economia Cubana, que dependia quase que exclusivamente do investimento soviético. Em 1991,
Frei Betto organizou juntamente com Chico Buarque de Holanda, Leonardo Boff e outros amigos,
uma comitiva que levou alimentos e medicamentos em solidariedade a Cuba, apesar de que, pela
morte de seu sogro, Chico Buarque não embarcou. (Betto, 1993, p. 398).
38

Em sua obra O paraíso perdido nos bastidores do socialismo, Frei Betto apontou para a crise do
regime socialista, antes mesmo dos fatos que marcaram sua queda no fim da década de 80 e início
de 90:

Objetivamente, sua economia acha-se estagnada, sem avanços na área de


tecnologia de ponta. A centralização das decisões econômicas, a estatização como
princípio e não como imperativo frente às demandas sociais, a hipertrofia do
orçamento militar, são fatores que hoje comprometem a modernidade socialista.
Subjetivamente, preocupam-me o absenteísmo e a falta de formação política da
população. Uma coisa me parece consequência da outra. É um equivoco imaginar
que, por ser habitante de um país socialista, o cidadão está de acordo com este
projeto político. (Betto, 1993, p. 277).

A Conferência Episcopal de Santo Domingo, em 1992, marcou os esforços de Gutierrez


Merino e outros teólogos para o reconhecimento da Igreja ao sofrimento dos oprimidos da
América Latina, sobretudo os povos indígenas. No entanto, verificou-se a substituição do método
dos textos pastorais da TdL e a orientação do Vaticano para uma nova postura do movimento.
Michael Löwy aponta as observações da análise de Clodóvis Boff ao documento final da
conferência:

[...] uma abordagem doutrinal, em que cada seção tem início com referências às
declarações do papa; a linguagem da libertação praticamente desapareceu, sendo
substituída por um conceito muito mais vago de “progresso humano”; critica-se
a injustiça social, mas não se faz qualquer referência ao capitalismo: ou seja,
denuncia-se o crime, mas não os criminosos; os pobres aparecem como objetos
de atenção e não como sujeitos de sua própria história [...]. (Löwy, 1996, p. 225).

Apesar de Frei Betto ter afirmado que “o socialismo, como alternativa e utopia, está em
impasse” e que “a própria palavra socialismo entrou no Índex da política” [...] (Betto, 1993, p. 409).
Mesmo após o êxito do capitalismo e do projeto econômico neoliberal em fins do século XX, o
autor continuou argumentando em favor do regime socialista apontando-o como a única saída para
a sobrevivência da humanidade:

O socialismo é a única possibilidade – aritmética - de a humanidade sobreviver


neste planeta de recursos limitados, porém abundantes, desde que repartidos
entre todos [...] o socialismo deixou de ser um mito. Apagou-se a imagem
paradisíaca que ele projetava, restando, entretanto, a certeza de que socialização
dos bens é a única via capaz de arrancar a humanidade dessa longa etapa em que
a vida de uns nutre da morte de outros. (Betto, 1993, p. 417).

A vitória sandinista em 1979 renovou as pretensões socialistas, principalmente dos teólogos


da libertação da América Latina. Em suas inúmeras viagens aos países socialistas na década de 1980,
Frei Betto participou de seminários, convenções e comemorações. Em 1985, ele entrevistou Fidel
39

Castro, publicando o livro Fidel e a religião. Nesse contexto, a Teologia da Libertação tentava
intensificar o diálogo cristão libertador nos países socialistas.

O que podemos concluir diante do Paraíso perdido, de Frei Betto, é que se as décadas de 70
e 80 representaram o auge do projeto socialista, no entanto, os acontecimentos políticos e religiosos
do início da década de 1990 representaram um duro golpe para essa geração intelectual dos anos
60. A Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base, após Santo Domingo estavam
sobre rígido controle de Roma, que nomeara os Bispos mais conservadores para presidir os órgãos
católicos latino-americanos. O último suspiro da esquerda latino-americana possivelmente ainda
está em Cuba, que, no entanto, diante da miséria, a partir da década de 90, passou a se abrir para o
investimento capitalista internacional.

Referências

A – Obras de Frei Betto

Cartas da Prisão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

Diários de Puebla. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

Nicarágua livre: O primeiro passo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Batismo de sangue. São Paulo: Círculo do livro, 1982.

Fidel e a Religião. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

Cristianismo e marxismo. Petrópolis: Vozes, 1986.

Sinal de Contradição. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.

O paraíso perdido: nos bastidores do socialismo. São Paulo: Geração editorial, 1993.

Alfabetto autobiografia escolar. São Paulo: Ed. Ática, 2002.

B – Obras e artigos gerais

Bandeira, Luiz Alberto Moniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

Boff, Leonardo; Boff, Clodovis. Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.

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41

Os antigos Quinametzin: apropriação e ressignificação dos mitos


mexicanos pelos padres dominicanos e franciscanos no México
colonial durante os séculos XVI e XVII

Adriano Rodrigues de Oliveira*

Resumo: nesta comunicação analisamos o mito dos Quinametzin, criaturas cruéis, desmesuradas e
dotadas de grande força física que teriam habitado o Vale do México na aurora dos tempos. De
acordo com algumas variantes da lenda, coletadas pelos cronistas europeus dos relatos dos anciãos
mexicanos, os Quinametzin teriam habitado essas terras durante a Primeira Idade do Mundo, quando
finalmente foram destruídos após a ocorrência de um grande cataclismo. Eram senhores absolutos
dos antigos mexicanos, a quem escravizavam e impediam que cruzassem suas terras. Habitavam as
áreas montanhosas, ou seja, as regiões mais inóspitas e disformes possíveis. Feitas essas
considerações iniciais, vale destacar que a problemática central desse estudo, consiste em averiguar
como esses mitos indígenas, entendidos assim em sua pluralidade, foram descritos pelos cronistas
europeus a partir de modelos de pensamentos próprios do imaginário clássico e da tradição judaico-
cristã. Interessa-nos, ainda, analisar como essas lendas foram apropriadas e transformadas em
fábulas moralistas no contexto em que a Igreja ambicionava a dominação por meio da cristianização
dos povos americanos.

Palavras-chave: mito, imaginário, imagens, gigantes.

O mito dos gigantes

Os gigantes são antigas figuras mitológicas presentes no imaginário das mais diferentes
sociedades e culturas. De acordo com uma multiplicidade de lendas, originadas entre povos de
contextos temporais e cronológicos distintos, esses seres gigantescos, humanos ou humanoides,
habitavam o mundo em seus tempos primordiais. Eram dotados de aparência disforme e grande
força física, verdadeiros promotores do caos e inimigos ferrenhos de determinados povos e
divindades. Magasich e de Beer (2000), ao analisar esses mitos e sua origem nas sociedades antigas,
defendem a ideia de que:

A afirmação do gigantismo das primeiras gerações do mundo possui a sua lógica.


A criação da terra, dos oceanos, da abóbada celeste e dos seres que os povoam
deve ter sido uma obra incomensurável; em consequência, aqueles que, de um
modo ou de outro, participaram dela, ou que, simplesmente, viveram nesses
tempos, foram forçosamente seres igualmente desmensurados, dotados de força

*
Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). O estudo que resultou nessa comunicação
originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES - Código
de Financiamento 001.
42

extrema, tanto física quanto espiritual, e de uma estatura condizente com a


grandeza da época e das obras que então realizaram (Magasich-Airola; Marc de
Beer, 2000, p. 259).

Na Bíblia, especialmente no denominado Antigo Testamento, são diversas as referências a


esses entes desmesurados que teriam habitado a Terra antes e depois do dilúvio. No livro do Gênesis,
uma passagem anuncia que: “Havia naqueles dias, gigantes na terra, e também depois, quando os
filhos de Deus entraram às filhas dos homens, e delas geraram filhos; estes eram os valentes que
houve na antiguidade, os varões de fama” (Gênesis, 6, 4). Já no contexto bíblico pós-diluvial,
encontram-se as descrições sobre o gigante mais famoso, Golias, um arrogante guerreiro filisteu
que media seis côvados e um palmo de altura (pouco mais de 2,80 m). Portava uma couraça de
escamas e um capacete de bronze, sendo derrotado pelo jovem Davi que pronuncia as seguintes
palavras antes de decepar a cabeça do soberbo inimigo: “eu venho a ti em nome do Senhor dos
Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado” (I Samuel, 17, 45).

Em diferentes culturas e contextos essas criaturas gigantescas estão sempre em guerra


contra os homens e contra os próprios deuses. De acordo com os escritores clássicos, entre os
quais Homero, Ovídio, Apolodoro, Hesíodo e Píndaro, tais brutamontes, que moravam nas cadeias
montanhosas e vulcânicas, possuíam incrível poder e estatura, atributos somente superados pelo
tamanho da soberba e da astúcia (López, 2015, p. 7). Ainda segundo algumas versões desses mitos
gregos, os gigantes possuíam aparência terrível e monstruosa – cauda de serpente nos pés e longas
cabeleiras, acompanhadas de barba espessa e rugosa (Graves, 2018, p. 208).

Os antigos poetas gregos-romanos nos legaram ainda o mito da Gigantomaquia, a famosa


batalha entre deuses e gigantes travada na aurora dos tempos. Em Metamorfoses, do latino Ovídio
(43 a.C. – 18 d.C.), encontramos que esses indivíduos desmesurados, em sua grande soberba,
tentaram em vão a conquista do próprio Olimpo. Eles empilharam montes sobre montes até que
chegaram no topo do céu, mas finalmente foram vencidos pelo poderoso raio de Zeus (Predebon,
2006, p. 180). Em sua obra intitulada Biblioteca, Pseudo-Apolodoro acrescenta que o senhor do
Olimpo contou também com a ajuda das poderosas setas de seu filho Hércules e com a astúcia e
sabedoria da filha Atena (Apolodoro, 1985, p. 52-53).

Na Idade Média, Santo Agostinho (354-430 d. C.), em sua Cidade de Deus, destaca o poder
de Deus na Terra e a primazia sobre a fortaleza corporal, fazendo as seguintes advertências sobre
os antigos gigantes que habitaram o mundo antes do dilúvio: “Ali viveram os famosos gigantes que
houve no princípio, homens de grande estatura... Deus não os escolheu, nem lhes deu a senda da
ciência, e pereceram, porque careceram da sabedoria, e pereceram por sua estupidez” (Agostinho,
1990, p. 210-211). Mikhail Bakhtin (2010), ao estudar imagem grotesca do corpo em Rabelais,
43

enfatiza a notoriedade das personagens gigantescas nas diversas festas populares ao final da Idade
Média: “... diversas cidades possuíam, ao lado dos ‘bufões’ da cidade, os ‘gigantes da cidade’, e
mesmo uma ‘família de gigantes’, designados pela municipalidade e destinados a participar em todas
as procissões durante as diversas festas populares” (Bakhtin, 2010, p. 300).

No contexto das viagens exploratórias à América, os relatos de viajantes e navegadores


como Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio, inauguraram a transposição de diversos mitos
provenientes do imaginário clássico/medieval para as terras “recém-encontradas” à oeste do orbe
terrestre. O historiador chileno Miguel Roja Mix (1993), ao analisar a transferência geográfica do
imaginário europeu, destaca que durante esse período, “Los mitos, las leyendas, el mundo teratológico, las
quimeras, todo va a adquirir carta de ciudadanía en América, y todo a ser buscado allí con ahínco por los rastreadores
de fortuna y los cazadores de sueños...” (Rojas Mix, 1993, p. 125).

Acerca dos gigantes, encontramos uma das primeiras referências na Carta de Sevilha, escrita
por Vespúcio em 1500 para seu amigo Lorenzo Dei Médici. No referido texto, acham-se descrições
sobre uma ilha caribenha repleta de americanos que “eram da estatura de gigantes, segundo o seu
tamanho, e a proporção do corpo correspondia à altura. Cada uma das mulheres parecia uma
Pantasiléia, e os homens, Anteus” (Vespúcio, 2003, p. 142). Em 1520, o cronista italiano Antonio
Pigafetta (1491-1534), ao anotar em pormenores os acontecimentos da primeira viagem de circum-
navegação ao redor do globo, descreveu o encontro dos europeus com um índio “tão grande que
nossas cabeças chegavam apenas até à sua cintura” (Pigafetta, 2019, p. 312).

Em ambos os casos, nota-se o entrecruzamento de duas tradições distintas: a dos gigantes


dos mitos gregos, mencionados anteriormente, e a dos gigantes dos romances de cavalaria (Bénat,
2006). Em tais novelas, essas personagens gigantescas eram figuras obrigatórias, que
antagonizavam sempre com o herói principal da trama (Padilla, 2016). Para Heloisa Costa Milton
(2000), esses contos exerceram forte influência na construção do imaginário da literatura de viagem
no início do século XVI, uma vez que serviram “como provedores de imaginação e elevaram à
esfera mítica a figura do guerreiro merecedor de fama, fortuna e nobreza por seu esforço
individual...” (Milton, 2000, p. 159).

Conforme consta em diversos relatos, especialmente nos redigidos pelos padres


dominicanos e franciscanos que chegaram ao México colonial em diferentes momentos do
primeiro século da conquista e dominação espanhola na América, os gigantes já faziam parte da
memória coletiva e do imaginário dos diversos “povos mexicanos”, onde eram denominados de
Quinametzin. Dessa forma, interessa-nos discutir no presente texto, como essas lendas mexicanas
de gigantes foram apropriadas e transformadas pelo imaginário europeu a partir das narrativas
44

presentes nos mitos clássicos e no imaginário da tradição judaico-cristã. Tomamos como norte
teórico o conceito de mestiçagem, utilizado por Serge Gruzinski (2001) para nomear “as misturas
que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos, imaginários e formas de
vida, vindos dos quatro continentes”... (Gruzinski, 2001, p. 62).

O mito dos Quinametzin

Na mitologia asteca, os Quinametzin formavam uma “raça” de terríveis gigantes que teriam
habitado o mundo em seus tempos primordiais. Um dos primeiros relatos sobre essas criaturas
desmesuradas é o fornecido pelo padre franciscano André Olmos (1485-1571), um profundo
conhecedor da língua náuatle. O religioso analisou os antigos códices astecas e se valeu das
entrevistas concedidas pelos anciãos mexicanos para compor sua crônica intitulada Historia de los
mexicanos por sus Pinturas, escrita na década de 1530. De acordo com as descrições da referida obra,
esses seres teriam sido os primeiros habitantes do mundo, possuíam grande estatura e força física
suficiente para arrancar árvores inteiras com as mãos. Habitaram o mundo durante o primeiro sol,
quando foram devorados por jaguares enviados pelo deus Tezcatlipoca (Olmos, 1891. p. 3).

A denominada Era dos Gigantes não está suficientemente clara nos antigos códices
mexicanos e, tampouco nas crônicas espanholas que descreveram o processo de colonização e
dominação espanhola na Mesoamérica nos séculos XVI e XVII. Nas Crônicas das Índias
predominava-se uma visão judaico-cristã e providencialista da história, onde os mitos indígenas
eram tomados como meras fábulas ou mentiras. Ainda sobre as grandes eras do mundo e seus
habitantes gigantescos, o eclesiástico e cronista espanhol Francisco López de Gómara (1511-1566),
sem nunca ter pisado seus pés na América e, valendo-se dos relatos de outros cronistas, nos fornece
a seguinte narrativa:

Bien alcanzan estos de Culúa que los dioses criaron el mundo, mas no saben cómo; empero,
según ellos fingen y creen por las figuras o fábulas que de ello tienen, afirman que han pasado
después acá de la creación del mundo, cuatro soles, sin éste que ahora los alumbra. Dicen pues
cómo el primer Sol se perdió por agua, con que se ahogaron todos los hombres y perecieron todas
las cosas criadas; el segundo Sol pereció cayendo el cielo sobre la tierra, cuya caída mató la gente
y toda cosa viva; y dicen que había entonces gigantes, y que son de ellos los huesos que nuestros
españoles han hallado cavando minas y sepulturas, de cuya medida y proporción parece como
eran aquellos hombres de veinte palmos en alto; estatura es grandísima, pero certísima; el Sol
tercero faltó y se consumió por fuego; porque ardió muchos días todo el mundo, y murió abrasada
toda la gente y animales; el cuarto Sol feneció con aire; fue tanto y tan recio el viento que hizo
entonces, que derrocó todos los edificios y árboles, y aun deshizo las peñas; mas no perecieron los
hombres [...] Del quinto Sol, que al presente tienen, no dicen de qué manera se ha de perder...
(Gómara, 2007, p. 387).
45

No Codex Ríos, também conhecido como Codex Vaticanus A, documento escrito no final do
século XVI e atribuído ao padre dominicano Pedro de los Ríos, acham-se informações redigidas
em italiano e náuatle sobre um grande dilúvio que ocorrera na Primeira Idade do mundo. Conforme
o texto do referido códice, o mundo seria habitado nesse período por indivíduos colossais
denominados quinametzin. Tendo alguns desses gigantes sobrevivido às tormentas diluviais, e sob o
comando de um capitão de nome Xelhua, trataram de construir grandes torres em Cholula, como
forma de prevenção para uma provável segunda inundação do planeta (Loubat, 1900, p. 39).

Em uma das muitas lâminas desenhadas no Codex Ríos, encontra-se um pictograma que
mescla elementos iconográficos da tradição mesoamericana a outros próprios da arte europeia
renascentista (fig. 1). A imagem representa o grande cataclismo e a destruição do mundo
devidamente habitado por seres gigantescos. No centro superior da figura, a deusa Chalchiuhtlicue
está no centro das torrentes do dilúvio, que arrasta a todos e transforma os homens em peixes, tal
como nos mitos astecas. A gravura contém ainda diversos temas da cosmogonia mexicana, entre
os quais uma cova utilizada pelos habitantes da terra como proteção da inundação e inúmeros
símbolos indicando a data de tal acontecimento. No plano inferior da imagem, nota-se a figura de
um imenso homem estendido sobre o chão, seu nome é Tzocuillicxeque, ou “o que tem três pés”
(Anders; Jansen, 1996, p. 55-56).

Tanto o dilúvio universal, quanto a lenda dos gigantes quinametzin serão inseridos com
afinco pelos cronistas europeus no quadro do pensamento filosófico-teológico cristão vigente. O
cronista mestiço Diego Muñoz Camargo (1529 - 1599), autor do códice ilustrado intitulado História
de Tlaxcala, observa um “error muy grande entre estos naturales... pues decian que este mundo había tenido dos
acabamentos y fines, y que el uno había sido por diluvios... y que los que en aquellos tiempos vivían habían sido
gigantes, cuyos huesos se hallaban por las quebradas...” (Muñoz Camargo, 1892, p. 153).

Seguindo no mesmo caminho, o religioso franciscano Juan de Torquemada (1562 - 1624),


autor de Monarquía Indiana e um dos mais importantes missionários católicos do México colonial,
busca nas Sagradas Escrituras as provas irrefutáveis da existência desses antigos seres gigantescos.
Para o frei, não faltavam comprovações, e a única dúvida era “si los huesos que ahora parecen de estos
desemejados gigantes fueron de antes del Diluvio o después de él, para cuya inteligencia digo que he tenido en mi poder
una muela, que para estar entera le falta poco y es dos veces tan grande como el puño y tan pesada...” (Torquemada,
1975, p. 53). Por sua vez, outro frei franciscano, Toribio de Benavente Motolínia (1482-1568), após
consultar alguns códices astecas e outros documentos mexicanos originais, alega que esses
quinametzin eram verdadeiros filhos do demônio, originados das relações pecaminosas que ocorriam
fora do casamento entre os antigos mexicanos antes da chegada da Santa Fé Católica nas terras da
Nova Espanha (De Motolinía, 2014, p. 176).
46

Figura 1 - Gravura representando o dilúvio universal que ocorrera durante a Primeira Idade do
mundo e a destruição dos antigos gigantes denominados Quinametzin4

Fonte: The Internet Archive

Em Historia de las Indias de Nueva España, obra também conhecida como Códice Durán,
encontra-se uma das narrativas mais emblemáticas sobre esses fabulosos quinametzin. O autor do
referido manuscrito, o frade dominicano Diego Durán (1537 - 1588), natural de Sevilha, chegou ao
México com apenas cinco ou seis anos de idade. Viveria por toda sua viva na América,
empenhando-se no estudo e na compreensão da cultura e sobretudo da língua dos mexicanos. Ao
analisar a personagem Durán e sua obra, Tzvetan Todorov, em A Conquista da América, destaca que
ele era “o cristão convicto, o evangelizador obstinado; este decide que a conversão dos índios exige
um conhecimento mais profundo de sua antiga religião” (Todorov, 2016, p. 296).

Com esse intento, o padre dominicano mergulhou na religião e na história dos antigos
astecas, valendo-se, sobretudo, dos relatos oriundos das entrevistas concedidas pelos mais velhos
mexicanos. Ao conversar com um ancião centenário, morador de Cholula, Durán tomou tinta e
papel e anotou amiúde a seguinte narrativa sobre a origem do mundo e a existência dos famosos
gigantes:

En el principio, antes que la luz ni el sol fuese criado, estaba esta tierra en obscuridad y tiniebla
y vacia de toda cosa criada; toda llana, sin cerro ni quebrada, cercada de todas partes del agua,

4
Ilustração do Codex Ríos ou Códice Vaticano, manuscrito em italiano datado do final do século XVI e atribuído ao
padre dominicano Pedro de los Ríos.
47

sin árbol ni cosa criada, y luego que nació la luz y el sol en Oriente, aparecieron en ella unos
hombres gigantes de deforme estatura y poseyeron esta tierra; los quales, deseosos de ver el
nacimiento del sol y su ocaso, propusieron de lo ir á buscar, y dividiéndose dos partes, los unos
caminaron hacia Poniente, los otros hacia Oriente: estos caminaron hasta que la mar les atajó
el camino; de donde determinaron volverse al lugar donde auian salido, y vueltos á este lugar,
que tenia por nombre Iziacgulin Iztacçulin Ineminian, no aliando remedio para poder llegar al
sol, enamorados de su luz y hermosura, determinaron de edificar una torre tan alta que llegase
su cumbre al cielo; y llegando materiales para el efecto, hallaron un barro y betún muy pegadiço,
con el cual, á mucha priesa empegaron á edificar la torre, y auiendola subido lo mas que
pudieron, que dicen parecía llegar al cielo, enojado el Señor de las alturas dijo dios moradores
del cielo: “¿Aueis notado cómo los de la tierra han edificado una alta y soberbia torre para
subirse acá, enamorados de la luz del sol y de su hermosura? vení y confundámoslos, porque no
es justo que los de la tierra, viviendo en la carne, se mezclen con nosotros". Luego en aquel punto
salieron los moradores del cielo por las cuatro partes del mundo, así como rayos, y les derribaron
el edificio que auian edificado; de lo cual, asombrados los gigantes y llenos de temor, se dividieron
y derramaron por todas las partes de la tierra (Durán, 1867, p. 7).

É interessante observar a descrição que Durán faz da narrativa coletada do diálogo com o
índio mexicano, traduzindo-a, com efeito, a partir de suas leituras das Sagradas Escritas e dos textos
clássicos. Assim, como podemos perceber, a forma da Terra, escura e vazia, se assemelha às
descrições sobre a origem do mundo no Velho Testamento, precisamente o livro do Gênesis. É nesse
livro também que se encontra a passagem sobre a famosa Torre de Babel, similar à torre que os
gigantes teriam construído para chegar ao topo do céu. Por sua vez, a astúcia dos gigantes é a
mesma dos equivalentes gregos, que ousaram atingir o cume do Olimpo empilhando monte sobre
monte. Se na narrativa dos poetas gregos Zeus atinge seus inimigos desmesurados com raios, aqui
os anjos celestes se lançam como raios e, numa curiosa metáfora, saem pelas “quatro partes do
mundo”.

Ainda de acordo com o religioso espanhol, esses gigantes denominados Quiname, que queria
dizer “homens de grande estatura”, teriam se instalado no Vale do México, morando nos montes
e nas cavernas e tirando a paz de todas as nações mexicanas (Durán, 1867, p. 13). Eram seres
bestiais, comedores de carne crua e praticantes dos gestos mais desprezíveis. Para vencer a grande
força física desses cruéis brutamontes, os habitantes de Cholula e Tlaxcala se valeram da inteligência
e da astúcia: prepararam um banquete, reuniram os inimigos, deram-lhes muita comida e bebida,
retiraram suas armas e, na sequência, se lançaram sobre os oponentes desarmados. Sem suas
tradicionais armas, rodelas, espadas, bastões “e outros mil gêneros de armas que tinham para
ofender”, os Quiname procuraram se defender arrancando com enorme facilidade as árvores mais
próximas como se fossem nabos macios, mas finalmente pereceram e foram exterminados para
sempre das terras mexicanas (Durán, 1867, p. 15).
48

No final do século XVI, o jesuíta e cosmógrafo espanhol José de Acosta (1540-1600), em


sua obra Historia Natural y Moral de las Indias, descreve em detalhes a artimanha utilizada pelos
mexicanos para vencer seus adversários desmesurados:

...fingiendo paz con ellos, los convidaron a una gran comida; y, teniendo gente puesta en celada,
cuando más metidos estaban en su borrachera hurtaron les las armas con mucha disimulación
- que eran unas grandes porras y rodelas y espadas, de palo y otros géneros -. Hecho esto, dieron
de improviso en ellos; queriéndose poner en defensa y echando menos sus armas, acudieron a los
árboles cercanos, y echando mano de sus ramas así las desgajaban como otros deshojaran
lechugas. Pero al fin, como los tlascaltécas venían armados y en orden, desbarataron a los
gigantes e hirieron en ellos sin dejar hombre a vida” (Acosta, 2008, p. 235).

As passagens da morte dos Quinam pelos antigos Tlaxcaltecas, tanto na obra de Durán
quanto no relato de Acosta, se assemelham ao ilustre encontro de Ulisses com o gigantesco ciclope
Polifemo, um voraz devorador de carne crua que habitava as áreas montanhosas, não praticava a
agricultura, não possuía regras e leis ou qualquer forma de governo. Na Odisseia de Homero, uma
passagem narra a estratégia utilizada pelo rei de Ítaca para matar o grandalhão canibal após entupir
sua barriga monstruosa de um bom vinho: “Eles, então, levantaram o pau, cuja ponta afilada no
olho do monstro empurraram; por trás, apoiando-me nele, fi-lo girar, como fura com trado uma
viga de nave o carpinteiro...” (Homero, 2015, p. 162-163). Tais semelhanças entre mitos distintos,
não são desprovidas de significado, uma vez que como muito bem lembra Gruzinski, esses
cronistas europeus simpatizavam com o monstruoso e o fabuloso e faziam uso das mais diferentes
misturas de elementos, culturas e tradições (Gruzinski, 2001, p. 150).

Em Historia Antipodum, uma grande coleção de viagens ao Novo Mundo de autoria do editor
alemão Johann Ludwig Gottfried (1584-1633), o gravurista suíço Matthäus Merian (1593-1650), o
Velho, reproduz em detalhes a cena do embate entre os colossais quinametzin e os ancestrais dos
mexicanos (fig. 2). Na aludida imagem, vemos a representação do banquete preparado pelos
Tlaxcaltecas para vencer seus titânicos inimigos: no primeiro plano da ilustração, vê-se que os
gigantes são servidos com pão, vinho e peixes; já no segundo plano do desenho, encontra-se a
encenação da luta travada entre os ardilosos astecas e seus formidáveis adversários. Nota-se que,
enquanto os indígenas foram pintados com suas armas tradicionais – o arco e a flecha, e têm o
corpo parcialmente vestido, os oponentes foram ilustrados em sua nudez completa, e suas armas
são os rudes galhos de árvores que em vão lançam contra os anfitriões. Tais elementos
iconográficos procuram reforçar o grau de selvageria e primitivismo dos gigantescos quinametzin,
ao aproximá-los das representações clássicas/renascentistas, onde a nudez, o porte físico
avantajado, as armas rudimentares, os longos cabelos e as barbas espessas tornaram-se
características peculiares.
49

Figura 2 – Gravura de Matthäus Merian, para a obra de Johann Ludwig Gottfried5

Fonte: The Internet Archive.

Considerações finais

A análise da iconografia e, sobretudo das crônicas europeias datadas dos séculos XVI e
XVII, demonstra que os mitos astecas dos antigos quinametzin sofreram um verdadeiro processo
de mestiçagem e ressignificação, tanto ao serem incorporados aos elementos provenientes da
tradição clássica/judaico-cristã, quando os dilemas próprios do imaginário colonial europeu no
Novo Mundo. No caso das narrativas escritas pelos religiosos espanhóis, especialmente os padres
franciscanos e dominicanos, nota-se um processo de cristianização desses mitos indígenas e, a
transformação destes, em fábulas de cunho essencialmente moralista.

Assim, esses seres fabulosos, há muito presentes no imaginário dos diversos povos
mesoamericanos, foram inseridos no âmbito do imaginário europeu renascentista a partir da leitura
da Bíblia e dos inúmeros textos escritos pelos autores antigos e medievais. Com efeito, os gigantes
das lendas mesoamericanas, tornaram-se, nas Crônicas das Índias, criaturas “filhas do demônio”,
monstros dotados de selvageria, soberba e primitivismo. Tais adjetivos, externavam uma faceta da

5
Gravura impressa em Frankfurt am Main no ano de 1655. Os gigantescos e cruéis Quinametzin foram mortos pela
inteligência e astúcia dos antigos Tlaxcaltecas, conforme consta nos relatos dos padres espanhóis Diego Durán e José
de Acosta.
50

alteridade europeia em sua representação dos povos do Novo Mundo, que a partir de um viés
universalista, deveriam ser domesticados e ensinados nos princípios da fé cristã, abandonando, por
tabela, seus antigos ritos e mitos, tidos como meras fábulas e mentiras desprovidas de significados.

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52

O Império Português no Atlântico Sul dos Séculos XVI e XVII.


Historiografia, atenuações e perspectivas

Alec Ichiro Ito*

Resumo: abordaremos uma historiografia sobre o Império português nos séculos XVI e XVII
para averiguar alguns caminhos de pesquisa, suscitando como objeto de interesse o Atlântico Sul.
A título de palavras finais, esboçaremos duas hipóteses de trabalho, que pretendem ser
desenvolvidas em pesquisas empíricas. A primeira é a da existência de um projeto ibero-atlântico
para a organização das relações de dominância colonial; a segunda é aventar uma repactuação do
contrato sociopolítico entre centros e periferias.

Palavras-chave: Império português (sécs. XVI-XVII), História do Atlântico Sul (sécs. XVI-XVII),
História do Brasil Colônia, História do Império colonial Habsburgo, História Moderna.

Introdução

Entre os séculos XVI e XVII, Portugal deixou de ser um pequeno reino da Península
Ibérica para se tornar um Império global, com colônias e enclaves administrados na América, África
e Ásia. O fenômeno foi abordado em diferentes pesquisas, como identificaremos na primeira parte
deste texto. Notaremos que o debate acadêmico rendeu novos problemas e dilemas, garantindo
um entendimento mais aprofundado sobre a realidade coeva, bem como o desenvolvimento de
óticas diversificadas de análise e interpretação das fontes. Após averiguarmos a historiografia,
situaremos que a problemática entre centros e periferias, ou núcleos imperiais e as suas franjas,
ainda é produtiva. Será que as partes do Império geravam impactos nas políticas emanadas pelas
Cortes de Lisboa? Qual era o peso da agência local nessa dinâmica? Quais as relações entre as
idealizações, recalcitrantes nos conhecimentos e saberes coloniais, e a experiência dos agentes?
Essas são algumas de nossas inquietações. A título de palavras finais, esboçaremos duas hipóteses
de trabalho que pretendem ser desenvolvidas em pesquisas empíricas. A primeira é a da existência

*
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), sob a
orientação do Prof. Dr. Pedro Puntoni. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), processo 88887.571217/2020-00. Agradecemos ao Prof. Dr. José Inaldo Chaves Jr (UnB) pelos comentários
e pelas sugestões endereçados, bem como às contribuições dos integrantes do Simpósio Temático 11, “Governos,
gentes e territorialidades no Atlântico ibérico (séculos XVI-XIX)”.
53

de um projeto ibero-atlântico para a organização das relações de dominância colonial; a segunda é


aventar uma repactuação do contrato sociopolítico entre centros e periferias.

Posto dessa forma, propomos um breve recenseamento historiográfico sobre o


desenvolvimento do Império português nos séculos XVI e XVII, dando especial atenção ao
Atlântico Sul. Nossas fontes são as principais produções historiográficas sobre o assunto.
Apuraremos quais são as lacunas deixadas pela literatura acadêmica e determinaremos caminhos
possíveis de investigação.

Historiografia e justificativa

Depois da Segunda Guerra Mundial, Charles R. Boxer despontou como um dos principais
estudiosos do Império português no Atlântico Sul. Ao abordar as instituições monárquicas e
desvelar a atuação de alguns personagens históricos – o estudo sobre a família Sá nos itinerários
entre Brasil e Angola é o exemplo clássico –, o emérito professor indicou que a administração
ultramarina viabilizava um “Império marítimo português” interconectado pelo comércio (Boxer,
2006). Igualmente interessado no estudo político-institucional do ultramar lusitano, Luís Felipe
Thomaz (1994, p. 81-82) sublinhou que os “projetos expansionistas oficiais” da Coroa portuguesa
passaram a reunir três elementos a partir do século XVII: a vocação atlântica, a insularidade política
e a neutralidade diplomática”. De modo geral, tratava-se de um Império comercial, negociado e
policentrado em diferentes partes do globo, cuja grandeza advinha da “administração do Estado
da Índia” operada em “rede”, ou seja, por meio de um “sistema de comunicação” (Thomaz, 1994,
p. 208) entre os diferentes domínios do Índico. António Vasconcelos Saldanha adiantaria que a
diplomacia portuguesa e os contratos de vassalagem garantiriam uma “amizade política” perante
os potentados asiáticos. Pacífico, o contato interpolítico era estabelecido entre entes iguais,
permitindo o funcionamento intersistêmico de culturas diferentes. Assim, os “Monarcas
portugueses” figuravam como “Imperadores ou Reis de Reis”, cujos domínios ultramarinos
estariam expurgados de violência e dominação (Saldanha, 2001, p. 722-724). O Império de “papel
e letras” fundamentaria também a organização capitanias do Brasil, desde o século XVI até o XVIII
(Saldanha, 2001).

A perspectiva institucional e legal marcava a historiografia sobre o Império português. Uma


renovação historiográfica adensaria a abordagem, principalmente após John H. Elliott e António
54

Manuel Hespanha6 desafiarem o conceito de “Estado moderno territorial absoluto”. Os estudos


europeus reverberaram entre os brasilianistas e, assim, foram cunhados os conceitos de “antigo
regime nos trópicos” e de “monarquia pluricontinental”.7 João Fragoso, Francisco António Carlos
Jucá de Sampaio, Tiago Kraus e Roberto Guedes são expoentes dessa revisão. Por um lado, a seara
desenvolveu novas formas de enquadrar os comportamentos econômico-mentais que jogaram a
favor da construção de uma sociedade corporativa, ou “nobreza da terra” (Fragoso, 2000). Por
outro lado, os pesquisadores traspõem problemas e conclusões relacionados à Europa moderna
para os contextos coloniais do Atlântico Sul8, mitigando os fenômenos ligados à reprodução social
e à situação colonial. A base de produção exportadora, as relações sociais e de trabalho que
emanavam do escravismo, a circulação transcontinental de mercadorias e serviços, as novas formas
de socialização e hierarquias, as relações de dominância locais e transcontinentais, o ambiente
sociopolítico de conflito e as resistências dos agentes subalternos são elididos. Nessa perspectiva,
a territorialização do Estado Moderno – ou conversão do espaço, como “entidade geográfica”, em
território, como “entidade política” (Cardim e Hespanha, 2018, p. 79) – dá azo para compreender
a gestão política e a organização das jurisdições nas possessões ultramarinas. Quase não há menção
às rendas e à defesa das conquistas, duas matérias caras à documentação de época. A polissinodia
e a compositividade institucionais garantem uma autogestão fiscal e burocrática das longínquas
colônias; a justiça impõe um corolário de regras socialmente acatado. Assim como a nobreza
europeia, a elite colonial clama pelo arbítrio, pelas mercês e pela graça do monarca. As redes
clientelares e o compadrio não são desafiados, tampouco detalhados na ação efetiva das pessoas;
afinal de contas, é mais do que natural julgar que o comportamento dos atores históricos é ubíquo
e determinado pela mentalidade do Antigo Regime, independentemente dos espaços de
pertinência, do tempo e das circunstâncias.

6
Pelo menos esse é o parecer de Xavier Gil Pujol e Jean-Frédéric Schaub em: Pujol, Xavier Gil. Centralismo e
Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Europeias nos Séculos
XVI e XVII. Penélope: revista de história e ciências sociais. Lisboa: Cooperativa Penélope, Fazer e Desfazer a História, n.º 6,
1991. Schaub, Jean-Frédéric. Novas aproximações ao Antigo Regime Português. Penélope [...]. Lisboa: Cooperativa
Penélope, Fazer e Desfazer a História, n.º 22, 2000. Ver ainda: Elliott, John. A Europe of Composite Monarchies. Past
& Present. Oxford: Oxford University Press, n.º, 137, novembro de 1992. Hespanha, António Manuel. O Governo dos
Áustrias e a “Modernização” da Constituição Política Portuguesa. Penélope [...]. Lisboa: Cooperativa Penélope, Fazer e
Desfazer a História, n.º 23, 2000.
7
Dentre tantos livros e artigos escritos sobre o assunto, assinalamos a importância destes artigos, que figuram como
importantes marcos para a corrente de pensamento: Fragoso, João; Gouvêa, Maria de Fátima Silva; Bicalho, Maria
Fernanda Baptista (org.). Uma leitura do Brasil Colonial: Bases da materialidade e da governabilidade no Império.
Penélope: revista de história e ciências sociais. Lisboa: Cooperativa Penélope, Fazer e Desfazer a História, n.º 23, 2000.
Fragoso, João; Gouvêa, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas reflexões sobre a
América lusa nos séculos XVI–XVIII. Tempo. Niterói: Editora da EDUFF, vol. 14, n.º 27, 2009.
8
De fato, a abordagem suscitou acaloradas discussões e respostas. Parte delas pode ser conferida em: Hespanha,
António Manuel. Depois do Leviathan. Almanack Braziliense. São Paulo: Universidade de São Paulo (USP)/ Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB), n.º 5, maio de 2005, pp. 55-56.
55

A renovação engendrada pela historiografia brasílica é notória, mas há defasagens e deslizes


que podem ser reparadas. Insinuam-se problemas e revisões.

José Manuel Santos Pérez destaca que o período Habsburgo marcou a reorganização
institucional de centros e periferias por meio da promulgação das Ordenações Filipinas, da
fundação do Conselho da Índia e da Relação da Bahia. Fortificações foram soerguidas na América
portuguesa e a administração ultramarina foi reformulada. O “Estado do Maranhão” foi separado
no “Estado do Brasil” e se reafirmou a autonomia da “Repartição do Sul”. A América portuguesa
foi reposicionada no Império unificado, servindo como um escudo contra uma possível invasão de
Potosí, ou para dificultar o saque da prata que escoava para a Espanha. Além disso, a América
portuguesa recebeu novos incentivos para a produção de riquezas (Pérez, 2014, p. 108). A Coroa
de Habsburgo era mais centralizada e estratégica do que a de Avis. Por seu turno, Rafael Ruiz
demonstra que as “tensões”, “transgressões” e “resistências” perpetradas pelos colonos de São
Vicente não eram contrários aos interesses da Coroa, mas impuseram o “desejo manifesto de se
conduzirem como bons vassalos e de aplicarem a justiça proporcionalmente, nos seus devidos
termos, em cada uma das partes do território americano” (Ruiz, 2009, p. 197).9 De certa forma, o
único ponto de encontro entre as colônias portuguesa e espanhola ocorria no eixo sul, onde tensões
políticas foram acompanhadas pelo incentivo das rotas de comércio que interligavam São Vicente,
o Paraguai, a Bacia do Prata e as redes de comércio andinas, como também insiste José Carlos
Vilardaga (2002; 2017; 2016). A integração das colônias exigia da Coroa filipina o arbítrio em
relação às contendas e aos pleitos políticos e de jurisdição, embora nem o aval, nem o veto do
monarca, fossem impostos à periferia sulista pela força das armas.

Imperava uma “visão prudencialista ou probabilística do direito” para a mediação dos


conflitos (Viladarga, 2010, p. 79). Para Giuseppe Marcocci (2012), havia até uma “consciência”, ou
“vocação” do Império português que o guiava em todas as partes do globo. Decerto a monarquia
unificada não era “acéfala” ou “desmembrada”.

Caminho similar foi trilhado por Rodrigo Faustinoni Bonciani (2010; 2016), para quem as
políticas imperiais e atlânticas dos Felipes apregoavam a coordenação e complementaridade entre
Angola e Brasil.10 Examinando os antecedentes da unificação ibérica, Bonciani retomou as noções
de “dominação” e “pacto colonial”, para compreender o funcionamento da soberania
metropolitana. Mostrou como as guerras de Mem de Sá, no Rio de Janeiro, e Paulo Dias de Novais,

9
Ver ainda as pp. 179-180, onde o pesquisador situa o problema.
10
Na mesma senda, conferir o que afirmamos em: Ito, Alec I. Uma “tão pesada cruz”: o governo da Angola portuguesa
nos séculos XVI e XVII na perspectiva de Fernão de Sousa (1624-1630). 2016. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade de São Paulo (USP), 2016, pp. 228-229.
56

em Angola, estavam relacionadas com a promulgação das leis indigenistas e com as repartições
administrativas das capitanias do norte e do sul da América portuguesa, durante o século XVI
(Bonciani, 2016).11 A partir de Felipe II, essas políticas foram intensificadas, à guisa da concepção
de “dividir e imperar”.12 O monarca “diversificou as mediações sociais e institucionais em relação
ao domínio sobre os indígenas, estimulando as disputas entre os agentes e destacando sua
autoridade por meio da política de graça e mercê e como árbitro dos conflitos coloniais” (Bonciani,
2017, p. 52). Pedro Puntoni (2019; 2020) desbravou uma vereda distinta, expondo como as políticas
monetárias do Estado português foram organizadas na longa duração, conformando um “sistema
monetário” para o Império, embora também convivesse com regimes monetários variados. Com
efeito, as tentativas de centralização financeira harmonizavam o engrandecimento da fazenda real
com a centralização do Estado. Talvez o prosseguimento das pesquisas de Puntoni indique como
esse sistema financeiro, cambial e operacional foi gerido pelas Coroas ibéricas durante a dilatação
ou imposição capitalistas no Atlântico e no Índico, sem abdicar das nuances e especificações dos
diferentes espaços ultramarinos.

A premissa da transposição de ideias e instituições para o ultramar, sem mudança histórica


e ressignificação social nos diferentes contextos coloniais, é contestada por Pérez, Ruiz, Vilardaga,
Bonciani e Puntoni. Ao tentar compreender os núcleos metropolitanos, com seus próprios termos
e imperativos, entrançados com as franjas imperiais, conforme contextos e conflitos específicos,
esses investigadores revisitam a dinâmica entre centros e periferias. Sob o olhar da integração
econômica e da clivagem política, o processo histórico é alinhavado pela concretude da experiência
colonial. A reprodução social das colônias gera um ambiente conflituoso e violento, do qual
emergem grupos e indivíduos com hierarquias e dominâncias próprias. Nesse movimento de
negociação e conflito, os agentes recriam cultos e memórias, tecem novas formas de socialização e
pertencimento, revoltam-se contra os opressores quando possível, valem-se das instituições
coloniais para reivindicar direitos e contra-atacam os dominadores quando necessário.

Atenuação e problemática

A despeito dos ganhos, as novas sondagens trouxeram outros desafios e inquietações. É


necessário entender como a estrutura do Atlântico Sul englobava as economias domésticas e
integrava o sistema-mundo europeu, sem abdicar da variação ao longo do tempo e espaço. Na

11
Ver também: Bonciani, Rodrigo Faustinoni. “Havendo escravos se restaurará tudo”: trajetórias e políticas ibero-
atlânticas no fim do século XVI. Portuguese Studies Review. Porto: Universidade do Porto, vol. 25, 2017.
12
O conceito é latino, “divide et impera”.
57

macroperspectiva, os assuntos políticos e institucionais se relacionavam com a economia global,


abarcando uma escala de observação que passa do núcleo para as franças dos Impérios, ao mesmo
tempo que a microanálise indica que os agentes locais se comportem de maneira variada e a
composição das fontes primárias careça de trato filológico, a fim de ser analisada com rigor
histórico.

Ciente dos percalços metodológicos e interessado na inserção da América portuguesa na


esfera de influência dos Habsburgo, José Manuel Santos Pérez (2016; 2012) apontou para quatro
caminhos de investigação que estão espelhados na realidade documental, ligada às finanças e à
defesa:

1. A preocupação pela defesa do território;


2. A organização (falida) contra a ameaça holandesa, tanto militar quanto econômica;
3. A ideia de Brasil como outro Peru e, em relação com esta questão, uma mudança na política
para com os indígenas e os jesuítas;
4. E, finalmente, o desenvolvimento de uma reforma fiscal, com uma maior centralização e
controle por parte da coroa, junto com um maior desenvolvimento institucional (Pérez,
2016).

José Manuel Santos Pérez também chama atenção para o problema do enquadramento.
Para compreendermos as relações entre periferias e centros, é necessário “aplicar um enfoque de
tipo global e comparativo, sem fugir, é claro, de análises micro” (Pérez, 2016, p. 24). O olhar
comparado e global deve ser conciliado à análise empírica, principalmente no exame das elites
coloniais (Pérez, 2012, p. 253), mas não somente. Em uma alentada recensão historiográfica sobre
a questão ameríndia, Pedro Cardim (2019) aponta para a situação dos agentes “nativos”, diante da
“dominação” colonial. Parece-nos que o autor reabilita a discussão sobre duas posturas analíticas
que imperaram nos estudos sobre os contatos entre povos distintos: de um lado há a dominação
estrangeira imposta aos autóctones e, de outro, a intermediação negociada entre povos.13 O
problema da práxis humana incide sobre a política e a justiça extralocais, presentes no ultramar
através de promulgações, decretos e atos institucionais, dos quais os “vassalos do rei” estavam
excluídos de participação política e, ainda por cima, ficavam sujeitos à tributação e entregues à
autoproteção dos territórios monárquicos (Cardim, 2016). Afinal de contas, o governo ultramarino
era um “Império das letras” ou das “palavras”? Urge revisitar a relação entre centros e periferias

13
Verificar especificamente: Ito, Alec. Uma “tão pesada cruz”: o governo da Angola portuguesa nos séculos XVI e XVII
na perspectiva de Fernão de Sousa (1624-1630). Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo (USP), 2016.
(Introdução).
58

mediante essa ótica, na qual a territorialização ultramarina dos espaços ultramarinos estava
intimamente vinculada com um “realismo linguístico que assimile palavras a coisas” (Cardim e
Hespanha, 2018), na medida que “categorias de compreensão” acarretam a organização dos
espaços.

O aprofundamento analítico e metodológico de José Manuel Santos Pérez e Pedro Cardim


geram ganhos consideráveis para aguçarmos nossa compreensão sobre centros e periferias,
abstração e concretude. Subscrevemos as ponderações e problemáticas dos professores,
rearticulando-as em novas indagações. A política de domínio sobre a mão de obra ameríndia afetava
a gestão do tráfico de escravos atlântico? Como a reforma institucional e administrativa do centro
lidou com a autonomia das câmaras e alfândegas do ultramar? Afinal de contas, como os assuntos
de Estado repercutiam no governo do ultramar? Como os vocábulos eram ressignificados nos
contextos ultramarinos?

Perspectivas

À luz do breve recenseamento apresentado, apresentamos duas hipóteses de investigação,


passíveis de reformulações à medida que o os trabalhos empíricos forem realizados.

A primeira hipótese é a de que a Casa de Habsburgo tinha um projeto ibero-atlântico capaz


de ordenar as relações de dominância entre os agentes e grupos. Trata-se de uma ideia já abordada
por Rodrigo Faustinoni Bonciani (2010), para quem o dominium (posse, domínio, direito) era
distribuído e rearranjado pelas Coroas consoante a reprodução das sociedades escravistas nas duas
margens do Atlântico. Suspeitamos que é possível ir além, propondo que as ações dos agentes e as
experiências interconectadas poderiam causar mudanças na arquitetura do Atlântico Sul, a princípio
projetada para que o Estado do Brasil fosse o receptor de escravizados, vindos de uma Angola
percebida como um “manancial de cativos”. Argumentamos que essa razão de existência ganhava
outros contornos e facetas na dinâmica efetiva dos agentes, naquilo identificamos como sendo os
itinerários atlânticos. Outro ponto fundamental da abordagem proposta é que as relações de
domínio não se limitavam aos administradores régios e às elites locais, estendendo-se à
regulamentação do mundo do trabalho, como já insistiram Georg Thomas e Carlos Alberto de
Moura Ribeiro Zeron (Thomas, 2009). Afinal de contas, a singularidade das sociedades escravistas
nos trópicos é que nelas a reprodução social era garantida pelos escravos africanos e ameríndios,
fundamentais para a exploração das monoculturas agroexportadoras e do pau-brasil, algo que não
ocorria na Península Ibérica, como ensina Laura de Mello e Souza (2006). A realidade da dominação
colonial, imbricada com a necessidade de gerir o mundo do trabalho, influenciou na organização
59

do Império colonial Habsburgo, cujo projeto deveria arquitetar formas de distribuir e organizar os
domínios pertinentes à administração régia, à elite colonial e à exploração dos escravizados. Os
escritos de Domingos de Abreu e Brito e Garcia Mendes de Castelobranco são um importante
ponto de partida para entender como esse governo funcionava e como ele poderia ser otimizado,
sempre em vista do engrandecimento da fazenda real.

A reflexão sobre o projeto ibero-americano se insere em uma discussão maior, com


destaque para a obra A consciência do Império, de Giuseppe Marcocci (2012). Pesquisador de rara
erudição, Marcocci perscruta a teologia moral do Império português na busca de uma “vocação”
do Império lusitano, por meio da qual os agentes respondiam à “consciência” do centro difusor.
O problema é que o investigador abdica da concretude da experiência colonial Atlântica e da ação
dos agentes locais, dando importância à política nas Universidades e aos Conselhos. Além do mais,
a Angola portuguesa mal figura nas considerações dele, em um período no qual essa conquista tem
mais relevância do que a Abissínia e o Monomotapa, por exemplo (Marcocci, 2012). Aqui
destacamos que o processo histórico era intrincado e, assim, nossa segunda hipótese é a de que
outras agências e grupos podiam ir de encontro com os projetos ultramarinos, frustrando os
intuitos monárquicos, a ponto de causar uma repactuação do contrato sociopolítico vigente. Afinal de
contas, o equilíbrio imperial e o consentimento colonial operavam em uma via de mão-dupla,
sobrepondo as ambivalências entre a dominação e a contradominação. Quiçá as periferias pudessem
mover transformações nos centros (Cardim, 2004), ou talvez os projetos metropolitanos pudessem
ser desmantelados por experiências particulares. Urge refletirmos sobre o “aprendizado da
colonização”, nas palavras de Luiz Felipe de Alencastro (2000; 2014).

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63

Deus, Pátria e Família: o Integralismo na Bahia dos anos 1930

Alex de J. Oliveira*

Resumo: a Bahia esteve no "olho do furacão" na Revolução de 1930. O vice-presidente eleito, o


doutor Vital Henrique Batista Soares era um baiano que naquele momento representava os
interesses dos coronéis soteropolitanos e do interior e foi deposto pelo golpe da Aliança Liberal.
Após a Revolução, a "Bahia", segundo os autonomistas, se ver "tomada pelo forasteiro" Juracy
Magalhães que, astuto, buscou trazer para si os coronéis mantendo a política clientelista praticada
na República Velha. Diante do questionamento do governo Juracy, observa-se a constituição de
três grupos políticos distintos que tentavam desmantelar o governo do interventor. Eram esses
grupos: o Autonomismo, o Comunismo e em alguns momentos o Integralismo. No bojo das
discursões políticas Pós-Revolução de 30, a Bahia torna-se o palco de um debate constante entre o
Integralismo e o comunismo. Por outro lado, Juracy Magalhães fez uso da máquina política para
perseguir e desarticular os comunistas, e depois o Integralismo, uma vez que passou a incomodar
os coronéis. O integralismo possuía o slogan central “Deus, Pátria e Família” pautado na doutrina
conservadora Católica, por conta disto teve grande inserção em diversos estratos da sociedade.

Palavras-chave: Integralismo, Juracismo, Bahia.

Os arranjos políticos da Aliança Liberal nos anos 1930 acomodaram os dissidentes


oligárquicos, sobretudo, após a Revolução Constitucionalista de 1932, quando os paulistas
passaram a encontrar guarida no governo Varguista. O Estado, após o golpe de 1930, sofre,
paulatinamente, uma sofisticação burocrática, de modo que toda estrutura administrativa é
reconstruída, porém não há nenhuma política pública para, pelo menos, diminuir a pobreza e o
analfabetismo. O “estado de compromisso”, montando após o golpe, não atendia os marginalizados,
mas somente classes e frações de classes (Fausto, 1970).14

No contexto da Inserção do Integralismo na Bahia nos anos 1930, o Estado se encontrava


estável devido acordos entre lideranças como Miguel Calmon e Otávio Mangabeira, pois deliberam
em uma candidatura única para governo do Estado elegendo o Senador Pedro Lago para
governador. Externamente, a Bahia estava “ferida”, pois sendo conservadora e oligárquica,
encontrava-se sem expressão na política nacional. Vale ressaltar, que na Revolução de 1930, parte
dos políticos baianos se posicionaram contra Aliança Liberal (Sampaio, 1992).

*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais – PPHBC na Fundação Getúlio
Vargas –FGV/CPDOC.
14
Ver também: Forja, Maria Cecilia Spina. Industrialização, Estado e sociedade no Brasil (1930-1945). Rev. Adm. Empr.
Rio de Janeiro, vol. 24, n. 3, pp. 35-46, 1984.
64

Por conseguinte, J.J. Seabra, ex-governador da Bahia em quatro mandatos, foi a “voz” da
Aliança Liberal na Bahia. Não obstante, após a convulsão do golpe efetivada pelas manobras dos
tenentes e praças liderados por Juarez Távora, bem como a consolidação de Vargas no poder, J. J.
Seabra sentiu-se desprestigiado pelo governo, pois tendo propagado as pautas da Aliança Liberal
no Estado, não foi indicado para o cargo de interventor (Sampaio, 1992). Após as celeumas com
os primeiros interventores, Getúlio indicou Juracy Magalhães gerando uma grande revolta da
Oligarquia Baiana. Por conseguinte, Juracy Magalhães, para aproximar os coronéis, manteve a
política clientelista do “toma lá da cá” da “República Velha” (Leal, 1997).

Diante dessa situação política, o Coronelismo continuou forte na Bahia do Pós-Revolução


de 30, de modo que os trabalhadores rurais e urbanos viviam explorados pelos fazendeiros e não
tinham acesso a quase nenhum serviço do Estado (Batista, 2020)15. Eles encontravam na Igreja
Católica e em Religiões de Matriz Africana algum tipo de assistencialismo e, talvez, seja essa a razão
pela qual o Integralismo obteve grande imersão entre os trabalhadores, já que fez uso de elementos
discursivos do catolicismo para basilar suas ideias bem como o assistencialismo (Batista, 2020).

1 - Deus, Pátria e Família: o Integralismo na Bahia dos anos 1930

O integralismo parece ter encontrado nesse “vácuo” de assistência do Estado a “brecha


necessária” para sua expansão na Bahia (Ferreira, 2009). Assentando em um discurso nacionalista
e fazendo uma ligação com as ideias filosóficas e religiosas da Igreja Católica, o Integralismo se
expande como um rizoma por todo Brasil, encontrando, não só nas frações classes médias o apoio,
mas em parcelas da sociedade não absorvidas pelo novo sistema de “compromisso” pós-30
(Fausto, 1970, p. 1045). Na Bahia, a princípio, o “Estado de compromisso” não foi incorporado de
imediato, pois se manteve o “sistema clientelista”, política adotada por Juracy Magalhães.16

Vale lembrar que o “sistema oligárquico” começou a ruir com a crise econômica brasileira,
sobretudo, a partir de 1929. Foi um processo que teve início desde os anos de 1920 e se agravou
no bojo da crise mundial econômica. Naquele momento, havia se esgotado a possibilidade do
governo continuar valorizando o café com empréstimos no exterior, a qual era mantida a “duras
penas”, e não encontrava mais esteio no governo de Washington Luiz (Martins, 1982). Uma
hipótese relevante em relação ao sistema oligárquico brasileiro é que parece que no sudeste o

15 O autor afirma que: “posição dos coronéis do interior na tomada do estado da Bahia é controversa, pois aparece
tanto ligada ao governo quanto aos revolucionários.” (p. 634). Independente do apoio ou não à revolução as práticas
coronelistas continuaram na Bahia.
16 O estado de Compromisso para está ligando à um corporativismo em uma relação entre Estado e sociedade Civil

Organizada, excluindo, jornaleiros, trabalhadores(as) rurais e a população excluída de qualquer serviço do estado,
ressaltado aqui a massa da população negra que tinha apenas 42 anos de libertação.
65

impacto da Revolução de 30 foi imediato, mas em outras regiões o sistema pautado em favores, o
clientelismo permaneceu inalterado, sobretudo, na Bahia.

O que se percebe no pós 1930 é a forte investida no Estado na busca de diversificar a


economia dando ênfase à industrialização, ainda que não seja consenso na historiografia (Martins,
1982). Conforme aponta Francisco de Oliveira, a modernização do Brasil se dá por meio de uma
simbiose entre o “moderno” - industrialização - e o “atrasado” – agricultura (Gomes, 2012. p. 73-74).
Essa Modernização se dá não só do ponto de vista econômico, mas na construção política do
Estado pós 30, no qual, as classes sociais dominantes encontram-se representadas no governo
(Oliveira, 2011). Por conseguinte, a classe operária acabou sendo acomodada com a sofisticação
das leis trabalhistas o que acabou regulando “a cidadania pela carteira de trabalho” e mantendo os
trabalhadores “na mesa de negociação” do Estado (Santos, 1979).

Especificamente em relação a Bahia, a situação econômica era bastante delicada.


Endividada com a França e Inglaterra, a Bahia esperava na eleição de Vital Soares – candidato a
vice-presidente na chapa de Julio Prestes (eleito) – a “salvação” da falência do Estado e,
concomitantemente, a saída da Oligarquia baiana do “ostracismo político”, trazendo-a para dentro
do Catete.17 Por essa razão, a Revolução de 30 não foi interessante para a Oligarquia baiana apesar
da condição de desequilíbrio fiscal e os problemas sociais que se manifestavam com greves de
operários, a falta de investimentos em educação e a pobreza elevada da sua população (Negro,
2020). A Bahia, mesmo após a instalação da interventoria de Juracy Magalhães, ainda se manteve
em resistência ao governo varguista com movimentos como o Autonomismo liderado por Otávio
Mangabeira e os Seabristas liderados por J.J. Seabra (Batista, 2020).

Portanto, é nessa conjuntura de efervescência política e de confrontos entre Otávio


Mangabeira, J.J. Seabra e Juracy Magalhães que instala-se na Bahia os movimentos de Extrema
Direita e Extrema Esquerda, os quais, no Sudeste e Sul do Brasil já tinham sido organizados e
estavam em grande expansão de seus programas ideológicos.

O Estado da Bahia antes de 1930 era palco de intensos debates políticos, os quais, por
vezes, acabavam nas “vias de fato” com tiros, agressões físicas e mortes. As militâncias não
aceitavam nenhuma refutação e apelavam quase sempre para violência.18 É nessa conjuntura, do
ponto de vista político, que o Integralismo se organizou na Bahia e se expandiu de modo

17
O Estado que acabou sendo uma das principais “vítimas” do golpe de 1930 - olhando pelo ponto de vista das “elites
dominantes” - pois o Vice-Presidente eleito na chapa de Júlio Prestes era o baiano Vital Soares, o qual, naquele
momento representava os interesses de parcela expressiva dos políticos baianos.
18
O Jornal A Ordem de 2 de julho de 1934 – Jornal Publicado no Interior da Bahia na cidade Cachoeira relata que havia
um plano para matar Juracy Magalhães e que a oposição, no caso, Mangaberistas e Seabristas tinham conhecimento.
66

vertiginoso fazendo uma crítica ao Comunismo, mas, também, a Liberal Democracia propondo
um modelo de Estado centrado em um chefe supremo em um estado Corporativista-Classicista; o
Estado Integral (Salgado, 2009).

Entretanto, é possível dizer que bem antes de 1930 alguns pensadores da realidade brasileira
formulavam possibilidades de modelos de governo para o Brasil de caráter nacionalista-
corporativista. Um desses foi o mineiro Olbiano de Melo, sindicalista, que após a divulgação do
seu livro Republica Sindicalista dos Estados Unidos do Brasil ou esboço dum Estado Sindical Corporativo foi
convidado por Plínio Salgado a se unir à SEP (Sociedade de Estudos Políticos), organização
fundada por Plínio antes do Integralismo (Bertonha, 2014). Olbiano Melo, grande articulador
político em Minas Gerais nos últimos anos de 1920, possuía ideias bem próximas às ideias de Plínio,
focando, evidentemente, no sindicalismo-corporativismo. Por suas ideias serem tão próximas das
de Salgado ele recebeu o convite de Plínio por meio de carta para se afiliar ao movimento que
estava sendo organizado na Capital do País.

Diante da ligação de Olbiano de Melo com muitos baianos, entende-se que as ideias
Integralistas não passaram a circular na Bahia apenas a partir de 1933, como defendem diversos
estudiosos. Possivelmente as ideias de Plínio já circulavam na Bahia bem antes de 1932 e se reflete
no ambiente receptivo para as ideias da AIB19 na academia. Talvez, essa recepção fosse em função
da existência de SEP em Salvador.20 O que se pode notar é que o escopo das ideias do Integralismo
não era negligenciada pelos acadêmicos o que aponta para um possível conhecimento dessas ideias
bem antes da criação do primeiro Núcleo na Faculdade de Medicina e, depois, na Faculdade de
Direito da Bahia.

Entretanto, é no ano de 1933, que os líderes maiores da AIB discursaram na faculdade de


Direito. Tanto Plínio Salgado quanto Miguel Reale e Gustavo Barroso estiveram discursando na
Bahia defendendo as ideias de Sigma naquele ano. Rubem Nogueira afirma que somente no final
de 1933 tomou “conhecimento direto do Integralismo por meio da palavra de Gustavo barroso e
Miguel Reale, ambos os quais ouvi no salão da Associação dos Empregados do Comércio e na
AUB.” (Nogueira, 1997, p. 98).

Entretanto, é possível que o fortalecimento do Integralismo nas Universidades se deu a


partir do ano de 1935 quando a lei de Segurança Nacional colocou na ilegalidade a ANL. Não
obstante, como a Lei de Segurança Nacional só foi aprovada em 11 de julho de 1935, observa-se

19
AIB - Ação Integralista Brasileira criada por Plínio Salgado em 1932 a partir da SEP – Sociedade de Estudos Políticos.
Não foi encontrado documentação referindo-se à existência da SEP em Salvador, mas Olbiano, em Seu livro Marcha
do Integralismo, fala da Inserção do Integralismo entre pessoas ligadas ao comércio.
20
SEP – Sociedade de Estudos Políticos.
67

que, na época da fundação dos Núcleos Integralistas na Faculdade de Medicina a ANL, ainda se
encontrava em pleno funcionamento. O que leva a entender que o fortalecimento das ideias do
Sigma nas Universidades visava combater os argumentos comunistas.

Os embates entre Comunistas e Integralistas na Bahia eram constantes, algo natural para
uma época de defesa acirrada de ideologias extremistas. Não bastasse os conflitos nas ruas, as
Universidades passaram a ser, também, um local de intenso debate político. Ainda que, segundo
Rubem Nogueira, era vedado o funcionamento de qualquer entidade político- partidária dentro do
recinto da Faculdade de Direito da Bahia, o que não impedia que houvesse debates nos intervalos
das aulas (Nogueira, 1997). A fundação do Núcleo Integralista na Faculdade de Direito aconteceu
ao ar livre, pois segundo o diretor Felinto Bastos o estatuto da faculdade impedia que o
acontecimento se desse dentro das instalações.

Por conseguinte, essa expansão do integralismo nas Universidades é algo que não é
novidade, salvo as especificidades regionais. O que se aprende é o crescimento de um movimento
sofisticando do ponto de vista filosófico, com uma proposta de estado complexa que é absorvida
por uma imensa quantidade de pessoas analfabetas as quais, talvez, não compreendiam
perfeitamente as teses apresentadas pelos líderes, mas em nome de Deus, da Pátria e da família o
seguiam sem questionar. Isso não significa que eram pessoas ingênuas (Trindade, 1974). Eles e elas
estavam defendendo princípios básicos que acreditavam e que desde criança eram ensinados pela
Igreja Católica. Se não bastasse esse fato exposto, havia, também, os interesses pessoais como:
acessar a educação oferecida pelo Integralismo, tocar na banda marcial, participar dos saraus
poéticos e desfiles, e para isso não necessitavam possuir o conhecimento profundo da doutrina,
mas apenas militar. Era necessário que o movimento defendesse as ideias de Deus, apregoadas pela
Igreja Católica e fosse contra ao Diabo que naquele momento era representado pelos comunistas.
Para além dessas hipóteses, há perguntas ainda sem respostas como: quais elementos teológicos se
coadunaram com as ideias de extrema-direita na década de 1930 para reafirmar as doutrinas do
Integralismo diante das pessoas pobres no Brasil?

Por outro lado, as tensões na Bahia, a partir de 1936, entre o Integralismo e o Juracismo
foram intensas e perpassam tanto documentos oficiais quanto jornais Integralistas e/ou prosélitos.
Essa perseguição intensa parece ter duas hipóteses: 1 – O integralismo sendo um partido de massa
começava a crescer e tirar votos de Juracy Magalhães, o que o levou a perseguir o movimento. Essa
tese aparentemente não se sustenta, na medida em que nas eleições de 1936 o PSD teve uma
votação estrondosa, de modo que o Integralismo por mais crescimento que tenha tido não tornava-
se uma oposição temerosa para as eleições a nível estadual quase sempre assentada no coto de
“cabresto” (Leal, 1997); 2 – O fato de Juracy Magalhães ter um irmão comunista, o Eliezer
68

Magalhães - um dos líderes do levante comunista de 1935 - leva a pensar que Juracy não perseguia
os comunistas como deveria fazê-lo, mas pelo contrário, até soltava presos comunistas e perseguia
os Integralistas com força extrema. Essa hipótese não se enquadra perfeitamente, na medida em
que Juracy Magalhães se aproximava de Vargas com intenções que apontam a sua vontade em
disputar as eleições em 1938 para presidente, de modo que, protegendo os Comunistas, Juracy
Magalhaes nunca receberia o apoio de Vargas (Vargas, 1995). Há documentos que demonstram
que Juracy soltava professores comunistas do Ensino Médio com justificativas irrelevantes, mas
não se pode afirmar que protegia todos analisando casos isolados.21 Talvez, as ações de Juracy
Magalhães contra o Integralismo tenha sido resultado de pressões dos Coronéis locais que se viam
amedrontados com o movimento Integralistas que faziam desfiles com bandas de fanfarravas e
reuniões com vários grupos das cidades da Bahia reunidos demostrando uma capacidade de
mobilização política e organização paramilitar antes nunca vista.

De fato, o integralismo se tornou o primeiro partido de massas no Brasil articulado sob


uma hierarquia e uma dedicação de militância até então nunca vista no Brasil (Caldeira, 1999).
Jornais e panfletos eram publicados para doutrinar os militantes letrados (Cavalari, 1999). O
Integralismo foi uma expressão do Modernismo brasileiro, que pensa a possibilidade real de ser
mimético aos fascismos europeus.22 Ora, se o Estado de Compromisso inaugurado com o Golpe
de 1930 foi implantando para deslocar e depois reaproximar as Oligarquias sobre outras bases de
relações com o Estado, sobretudo, por meio do corporativismo em uma relação próxima com a
sociedade civil organizada (Vannucchi, s.d.), por qual razão uma expressiva quantidade de pessoas
da classe média, trabalhadores e pessoas pobres de todo Brasil, quase sempre sem acesso a nenhum
serviço do Estado, não se apoiaram no novo regime, mas antes, buscaram como alternativa a
militância em um partido de extrema-direita que tinha um modelo de estado autoritário?

Considerações Finais

As questões colocadas requerem respostas que tragam uma análise profunda do cotidiano
das experiências das pessoas e não apenas uma visão conjunta de classes e/ou grupos. Deve-se
olhar, quando possível, as caraterísticas específicas do movimento em todo Brasil.

21
Consulta ao Fundo Juracy Magalhães depositado em FGV/CPDOC.
22
Não queremos aqui fazer esse debate, para quem o deseja, leiam os clássicos sobre o tema: Trindade, Hélgio.
Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 1930. Porto Alegre: Editora UFRGS. São Paulo; Difel, 1974. Chasin. J.
O Integralismo de Plinio Salgado: forma de regressividade no Capitalismo Hiper-tardio. São Paulo: Editora Ciências
Humans, 1978. Vasconcellos, Gilberto. Ideologia curupira: Analise do discurso integralista. Editora Brasiliense, 1978.
69

Na Bahia, não podemos concluir sobre a participação popular no Integralismo, mas


levantamos a hipótese que, especificamente, as interventórias implantadas em 1930 não davam
conta de conseguir construir uma política econômica que abarcasse a “massa de pobres”, pelo
contrário, os cortes efetivados por Juracy Magalhaes aumentou a crise socioeconômica. Apenas a
Igreja Católica e Candomblés eram os locais onde podiam ser ouvidos e assistidos. É justamente
nessa brecha que o Integralismo entra e se expande (Negro e Brito, 2020).23

Na Bahia, um estado essencialmente negro, a exclusão era gritante após 42 anos de abolição.
Analfabetismo, Desemprego, e quase nenhum serviço do estado. Diante dessa conjuntura de
exclusão social, muitas pessoas, possivelmente, decidiram fazer parte do Integralismo para acessar
as escolas, bem como participar de todas as recreações que ofereciam. Ser militante no Integralismo
era, também, uma maneira de sentir-se importante e valorizado dentro do movimento, pois muitos
excluídos de “classes”, bem como alguns “classicistas” encontram nos núcleos da AIB uma “porta”
para se expressar politicamente pela defesa de Deus, da Pátria e da Família (Doria, 2020).

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23
Sobre isso, a tese de Antônio Luigi Negro e Jonas Brito é salutar ao afirmar que no bojo da Revolução de 1930 na
Bahia uma parcela da sociedade foi para as ruas e quebram bondes em uma revolta contra as condições do serviço de
transportes e suas taxas abusivas. Os autores apontam que essa seria uma maneira dos trabalhadores urbanos chamarem
atenção para suas condições existenciais, de modo que aproveitaram da ausência de policiamento para efetivarem “o
levante”.
70

Ferreira, Laís Mônica Reis. O Integralismo na Bahia: Gênero, Educação e Assistência Social em o
imparcial 1933-1937. Salvador, EDUFBA, 2009.

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Vasconcellos, Gilberto. Ideologia curupira: análise do discurso integralista. São Paulo: Editora
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71

O Novo Argos e o estabelecimento de fronteiras entre o


Liberalismo Moderado e o Exaltado em Minas Gerais
(1829-1831)

Alex Lombello Amaral*

Resumo: o objetivo desse artigo é pensar as delimitações entre Liberais Moderados e Exaltados
na Província de Minas Gerais. São estudados dois episódios da história da imprensa mineira,
envolvendo O Novo Argos, de Ouro Preto, a Sentinella do Serro, de Vila do Príncipe, e outras folhas
periódicas como o Astro de Minas, de São João Del Rei, e o Pregoeiro Constitucional, de Pouso Alegre.
Além da bibliografia de referência, foram utilizados como fontes primárias os periódicos O Novo
Argos, Pregoeiro Constitucional, O Correio de Minas, Constitucional Mineiro e Astro de Minas, além da Circular
dedicada aos Srs. Eleitores, de Teófilo Ottoni. A força dos Moderados na Província de Minas Gerais,
e a quase inexistência de Exaltados, desperta o interesse de vários historiadores. Já é sabido que
posições que em outras Províncias eram consideradas Exaltadas, em Minas Gerais eram toleradas
entre os Moderados, mas o que não era tolerado? Inicialmente, o artigo trata do único episódio
conhecido de atuação tida pelos seus contemporâneos como Exaltada na Província, envolvendo a
Sentinella do Serro, cujo redator foi Teófilo Benedito Ottoni, e outras folhas do norte de Minas. Para
comparar com a Sentinella do Serro foram estudadas as características do Pregoeiro Constitucional,
redigido pelos padres Bento e Aranha, que não foi considerado Exaltado. Para finalizar e
compreender o nascimento dos critérios que fizeram com que a Sentinella do Serro fosse considerada
Exaltada e o Pregoeiro Constitucional não o fosse, foi estudada a passagem em que O Novo Argos, então
sob a redação de Herculano Ferreira Penna, atingiu o que por muitos anos foi a maior tiragem de
um só número de uma folha mineira. Nota-se que é pressuposto do artigo que a unidade entre
forças políticas e órgãos de imprensa era tão completa que as folhas eram mais que porta-vozes, a
própria direção das forças políticas. Em outras palavras, a história desses periódicos é a história das
forças políticas de que eram parte.

Palavras-chave: Partido Moderado, Regência, Imprensa.

Na história do Brasil existe esse vulto chamado pelos seus contemporâneos de partido
Moderado. Os adversários de D. Pedro I tinham tomado a designação de Liberais. Ao se dividirem
designaram-se como Exaltados e Moderados. Os Exaltados eram bem mais fracos e diferentes
entre si, incluindo alguns republicanos, antilusitanos, alguns que aceitavam-se Exaltados, e até
publicaram uma folha com esse nome, e outros que não. Os Moderados revelaram-se de longe a
maioria dos Liberais, foram monarquistas constitucionais, e nos primeiros anos da Regência, com
as rédeas do governo, extinguiram politicamente seus adversários.

*
Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
72

Com 20 deputados e 10 senadores, que eram cerca de 20% dos parlamentares nacionais, a
influência de Minas Gerais era gritante sobre todo o Império. Uma força política que fosse
poderosa em Minas Gerais, como foram os Moderados, só por isso já exercia grande influência
nacional, ou dito de outra forma, “a hegemonia moderada em Minas era um dos sustentáculos do
governo regencial” (Silva, 2009, p. 324). Minas Gerais foi de fato o grande baluarte dos Moderados,
o que torna importante entender mais sobre a história local dessa força política.

Tal era a força dos Moderados que só se conhece um caso em que aparecem Exaltados
atuando em Minas Gerais, relacionado ao Sentinella do Serro, que para Luciano Moreira é
“considerada o principal periódico exaltado na Província de Minas Gerais”. Circulava em Vila do
Príncipe (Serro). O nome dessa folha parece inspirado nas Sentinelas de Cipriano Barata, de quem
Ottoni fora correligionário no Clube dos Amigos Unidos (Moreira, 2011, p. 208, 168, 188). Para
os adversários era a “republicana Sentinela do Serro” (O Correio de Minas, 30/10/1841). Segundo
Ottoni, o próprio Ato Adicional teria sido resultado do número 43 da Sentinella do Serro (Ottoni,
1860, p. 30). Infelizmente, os arquivos públicos não têm nem um número dessa folha. Já em 1902,
Sacramento Blake (1902, p. 267) disse, “nunca vi esse periódico”. Duraria até o número 80, de 17
de março de 1832 (O Novo Argos, 6/4/1832).

Em 1832, o Sentinella do Serro foi chamado a jurados pelo Promotor do Júri, acusado por
abusos da liberdade de imprensa. Em 17 de março de 1832, o número 80 da Sentinella do Serro
publicou dois avisos, “Interrompe-se por hora os trabalhos da Sociedade Promotora do Bem
Público”, e “Interrompem-se por ora a publicação da Sentinella do Serro” (O Novo Argos,
6/4/1832).

Mais de um mês antes, dia 4 de fevereiro, a Sociedade Promotora do Bem Público da Vila
de Príncipe (Serro) lançou já no manifesto de sua criação, no número 74 da Sentinella do Serro
(Ottoni, 1860, p. 22-23), a proposta de que, se:

até o dia da convocação da futura assembleia legislativa não tenha ainda passado
ou tenha sido rejeitado no senado o projeto das reformas constitucionais, se
esforcem de comum acordo para que nos respectivos círculos eleitorais se deem
poderes constituintes aos futuros deputados para reformarem a constituição, na
forma do projeto aprovado na câmara dos deputados, fazendo-se a reforma
independente do senado.

A Sociedade Promotora da Instrução Pública, de Ouro Preto, e diversas outras sociedades


de Minas Gerais e de outras Províncias, responderam negativamente à proposta da Sociedade de
Vila do Príncipe, taxando-a de inconstitucional. Quando essas respostas começaram a chegar à Vila
do Príncipe “saíram a campo os Telegráficos” dizendo “que a Sociedade era composta de
73

Republicanos”. Dada a má recepção geral, a Sociedade Promotora do Bem Público encerrou sua
recém iniciada atuação, e a Sentinella do Serro acabou junto, e foi chamada a jurados pelos excessos
de seu último número (O Novo Argos, 13/4/1832). Embora o Novo Argos tenha dito que “nunca
nos pareceu Republicana a Sociedade Promotora do Bem Público” (O Novo Argos, 6/4/1832).
Também disse que:

nós a vimos censurar o Governo, a Assembleia Geral Legislativa, e o Partido


Moderado; ao mesmo tempo que descarregava golpes sobre a Constituição do
Estado, até que no seu N.80 negou a existência de um Imperador no Brasil, e
sustentou a necessidade de se extinguir a Monarquia... (O Novo Argos,
13/4/1832).

Segundo o Constitucional Mineiro, o Sentinella do Serro teria publicado:

Quem impera ou governa é a Regência, e não o Imperador, que não o é ainda de


fato. Virá a ser, terminada a minoridade, se a Nação antes disso não reformar a
Constituição, e extirpar dela o elemento Europeu, o que nos parece
indispensável.... porque o Dia 7 de Abril derrubou no Brasil o monarquismo!
(Constitucional Mineiro, 20/11/1832, 8/2/1833).

E ainda que:

Só juramos fidelidade ao Imperador enquanto Constitucional, o que a respeito


de um menino, que não pode ter ainda opinião, significa enquanto a Constituição
reconhecer Imperador... (Constitucional Mineiro, 20/11/1832, 8/2/1833).

Em resumo, a Sentinella do Serro vinha ferindo a lei de imprensa (das acusações do Novo Argos
só não eram crimes os ataques ao Partido Moderado, talvez únicos pelos quais a Sentinella pagou),
e quando resolveu terminar suas publicações passou dos limites. Assinou no fim “Redator Teófilo
Benedito Ottoni” (O Novo Argos, 6/4/1832), com uma coragem de pagar pelos seus crimes que
se repetiria ao final da Revolta de 1842.24 Por muito menos outros redatores arranjavam testas de
ferro. Se a Sentinella do Serro realmente foi processada pelo seu número 80, ela não terminou sua
publicação porque foi chamada a jurados, ela foi chamada a jurados pela forma como terminou sua
publicação. Os jurados absolveram Ottoni (O Novo Argos, 19/5/1832). Ele, próprio, em 1860,
explicou que “A Sentinella do Serro cedeu, menos prudentemente, às provocações das gazetas

24
Benedito Teófilo Ottoni tornou-se conhecido por ter sido redator do Sentinela do Serro. Também escreveu no
Universal, no Astro de Minas, no Echo do Serro, no Guarda Nacional Mineiro, no Despertador Mineiro, no Itacolomy, no Itamontano
e em várias outras folhas. Ainda menor de idade escrevia para a Astréia, para o Astro de Minas e para o Echo do Serro
(Ottoni, 1860, p. 10). Nasceu na Vila do Príncipe (Serro) em 1807, e faleceu no Rio de Janeiro em 1869. Estudou na
Escola Naval. Foi deputado provincial, geral, e senador (Veiga, 1898, p. 193). Foi um dos principais envolvidos e
tornou-se o mais famoso chefe da revolta de 1842.
74

moderadas: foi processada, e viu-se na necessidade de suspender a sua publicação” e “ceder-lhes a


tipografia e retirar-se completamente da cena”, dando a entender que o processo não foi pelo
último número (p. 24). Está claro que nesse momento os Liberais não estavam unidos em Minas,
uma vez que Ottoni se refere às “gazetas moderadas” como adversárias.

Figura 1 – Theophilo Benedito Ottoni

Fonte: Arquivo Público Mineiro

O Diamantino, embora não tenha adquirido a fama da Sentinela do Serro, também defendeu
fazer as reformas sem o Senado e também foi perseguido. Em 1832, no arraial de Itambé (hoje
Santo Antônio do Itambé), surgiu o Liberal do Serro, redigido por Giraldo Pacheco de Melo25
“também ourives, sem ter noção alguma da arte tipográfica, tratava igualmente de montar uma
tipografia e fundia tipos para esse fim” (Veiga, 1898, p. 103). Assim como a Sentinella do Serro,
defendeu a Sociedade Promotora do Bem Público e denunciou suborno eleitoral (O Novo Argos,
19/5/1832). Para o Novo Argos o Liberal do Serro era Exaltado assim como a Sentinella do Serro. Mas
também não foram encontrados números do Liberal do Serro e do Diamantino, que multiplicariam o
que se sabe sobre os Exaltados que existiram em Minas Gerais.

A falta de folhas Exaltadas nos arquivos nos leva a adotar um recurso lógico, observar a
folha mineira com posições menos conservadoras entre as que podem ser estudadas, que foi o

25
Giraldo Pacheco de Melo foi o criador do Liberal do Serro. Por ser ourives e mecânico é fácil deduzir que era
autodidata, mesmo porque ainda não tinha saído de seu arraial, onde não se ensinava mais do que ler. É nome de
rua em Santo Antônio de Itambé. Na década de 1860 foi editor do Jequitinhonha (Saldanha, 2020, p. 81). Teria
sido editor do Buletim da Legalidade no Serro, em 1842.
75

Pregoeiro Constitucional. Como essa folha não foi considerada Exaltada, estudando-a podemos inferir
o que não era suficiente para uma folha ser considerada Exaltada.

Tendo nascido em um 7 de setembro de 1830, o Pregoeiro publicou um grande artigo sobre


a independência conseguindo não citar D. Pedro I nenhuma vez. No número seguinte explicou
que a independência fora feita pelo povo com a “...coadjuvação do Grande Pedro, que por seu
mérito pessoal foi por nós aclamado Imperador” (Pregoeiro Constitucional, 11/9/1830).

Os redatores do Pregoeiro Constitucional eram o padre José Bento Leite Ferreira de Mello26 e
o cônego João Dias de Quadros Aranha27 (Veiga, 1898, p. 192; Blake, 1898, p. 338; Sisson, 1999,
p. 424). Deve-se saber que esses padres eram do tipo que escreviam que “Ótima coisa se nos
apresenta um rei Constitucional, um ser neutro. Doce é esta ilusão, mas ela é tão real como padres
celibatários...” (Pregoeiro Constitucional, 25/5/1831), e que “...os bispos excetuados alguns, são
os mais inimigos da perfeição social...” (Pregoeiro Constitucional, 1/12/1830).

Em relação às mulheres eram muito avançados. Existem inúmeros exemplos, mas o que
combate o tabu da perda da virgindade é marcante:

A donzela, que teve a desgraça de cegar-se com a sedução habilmente manejada


pela astúcia, tem de sofrer irrevogavelmente a infâmia, a penúria, e todos os males
anexos a sua eterna degradação; entretanto que uma sabia Legislação, e uma
Opinião Pública mais esclarecida podiam remediar a sua desventura... (Pregoeiro
Constitucional, 13/10/1830).

Também suas opiniões sobre a escravidão são atípicas para os anos 1830, quanto mais para
senhores de escravos, membros de famílias de senhores de escravos. Denuncia os “brutais castigos,
nudez, e falta de sustento”, o “descuido de promover o matrimônio”, a “falta de método em educar

26 Cônego José Bento Leite Ferreira de Mello foi redator do Pregoeiro Constitucional e do Recompilador Mineiro. Nasceu
em Campanha em 1785, e morreu em Pouso Alegre, assassinado em uma emboscada, em fevereiro de 1844, em um
complô envolvendo inimigos pessoais e políticos. Ordenado padre em 1809, no mesmo ano de Feijó (Lenharo, 1993,
p. 101). José Bento conseguiu que Mandu fosse elevada à freguesia e ser nomeado vigário da mesma em 1811. Era
proprietário da fazenda do Engenho. Mantinha em sua companhia uma filha publicamente reconhecida (Souza, 2010,
p. 36-41). Foi vereador, membro da primeira Junta Provisória de Governo em 1821, membro do Conselho Geral da
Província, deputado provincial e geral, senador, mas sobretudo, um dos maiores líderes políticos de seu tempo
(Paschoal, 2007, p. 214). Como deputado geral foi autor do projeto de Guarda Nacional aprovado em 1831. Criou a
Sociedade Defensora em várias povoações do sul de Minas. Pe. Bento era tão influente que ao se tornar vigário de
Mandu decidiu mudar a urbe de lugar, e criou Pouso Alegre, decidindo até o traçado das ruas, o que significa que
Pauso Alegre pode ter sido a primeira cidade planejada do Brasil. Essa localidade cresceu de 41 imóveis urbanos em
1810, para 136 em 1817, 188 em 1821, 217 em 1826 e 281 em 1827. Foi um dos articuladores da Revolta de 1842,
embora tenha permanecido no Rio de Janeiro durante sua eclosão.
27 Cônego João Dias de Quadros Aranha (1784-1865) foi redator do Pregoeiro Constitucional e do Recompilador Mineiro.

Nasceu em Itu, São Paulo. Tinha terras e se não tinha um homônimo foi negociante em Bom Jesus. Foi vigário de
Pouso Alegre, vereador, deputado geral e provincial. Como vereador de Campanha aprovou a criação de uma
Guarda Nacional às vésperas do 7 de Abril. Em 1832, foi ferido em um conflito político em Pouso Alegre. Não tinha
o hábito de usar batina, mas sim a farda de Guarda Nacional (Rezende, 1944). Seria “probo e severo” (Almanach Sul
Mineiro, 1874). É nome de praça em Cachoeira de Minas, onde rezou a primeira missa.
76

os recém nascidos”, isso dada a “lembrança de que o serviço de três, ou quatro anos seria suficiente
para indenizar o despendido...” (Pregoeiro Constitucional, 2/10/ 1830), mas isso não era assim tão
raro de se ler. Defende que “...a natureza proclamou a igualdade entre os homens, e nem em tempo
algum criou raças de homens para serem escravos...” (Idem), no que também não estava sozinho
na imprensa da época. Também era possível encontrar outros afirmando que a escravidão
“...fomenta a imoralidade, e atrasa a nossa população...” (Idem). Para essa folha o direito de
propriedade dos escravos seria “precário”, “nominal” (Pregoeiro Constitucional, 27/10/1830).
Coragem enorme para uma folha encravada no então Arraial de Pouso Alegre. Ademais, a
escravidão para ele seria “um sorvedouro de nossos capitais” (Idem). Defende, como exemplo dos
EUA, escolas para libertos (Pregoeiro Constitucional, 1/12/1830). Mas o que realmente o destaca
mesmo das folhas que contava como aliadas é que ele não era contra simplesmente o tráfico, como
era comum entre folhas de seu campo político na época, mas defendia mesmo a “...emancipação
dos escravos (embora lenta)...” (Pregoeiro Constitucional, 20/11/1830). O Pregoeiro não publicou
nem um só anúncio de fuga de escravos, ao contrário do que faziam folhas das quais era aliado,
como O Universal e O Astro de Minas.

Na escalada de ataques da imprensa mineira contra os governos de D. Pedro I, em 17 de


novembro de 1830 o Pregoeiro usou pela primeira vez o termo “S.M.I. e C.”, Sua Majestade Imperial
“enquanto Constitucional!” Claramente uma ameaça, que se repetiu em vários artigos, e que seria
usada novamente às vésperas da Revolta de 1842.

Figura 2 – Herculano Ferreira Penna

Fonte: Instituto Histórico e Geográfico do Brasil


77

Como já se viu, a Sentinella do Serro foi considerada Exaltada por seus contemporâneos, e o
Pregoeiro Constitucional não foi. Não pelo que publicou. Os Liberais de Pouso Alegre só foram
estigmatizados pelos demais Liberais quando, ainda em 1832, participaram da tentativa de golpe
parlamentar “dos 3 padres”. Nessa ocasião, a tipografia do Pregoeiro ficou famosa por imprimir o
documento que ficou na história como a Constituição de Pouso Alegre, que seria a Constituição
caso o golpe tivesse sucesso.

Observando outro caso, com outras folhas mineiras, podemos entender qual o critério
estava sendo usado. O Novo Argos surgiu em 10 de novembro de 1829, semanário, rodado na
tipografia d’O Universal. O padre Antônio José Ribeiro Bhering28 assinou o primeiro artigo
assumindo-se como redator. Em Março de 1830 foi substituído por Herculano Ferreira Pena29, que
em 1833 foi substituído pelo padre José Antônio Marinho (Luz, 2017, p. 3).30 A epígrafe era
confiante no progresso humano, “Le genre humain est em marche, et rien ne le fera retrograder”,
de Pradt.

Em 1 de março de 1831, O Novo Argos adotou um novo cabeçalho, com o artigo 174 da
Constituição. Era uma resposta ao Repúblico, da Corte, que propusera a Federação. O Novo Argos
“se enunciou muito terminantemente contra a Federação proposta pelo Repúblico, e não duvida
confessar, que esta sua franqueza lhe custou a perda de muitos assinantes” (O Novo Argos,
1/3/1831). O artigo 174 previa a reforma da Constituição, ou seja, a possibilidade de conseguir as

28
Antônio José Ribeiro Bhering redigiu o Novo Argos, o Revisor, o Homem Social e colaborou com a União Fraternal e
com O Universal. Manteve um gabinete de leitura em sua casa. Nasceu em Ouro Preto em 1803, de origem pobre.
Ordenado em 1826, adotou o sobrenome Bhering. Nomeado professor no Seminário de Mariana em 1827, em 1828
foi exonerado desse cargo pelo Bispo Santíssima Trindade, pelas ideias que ensinava. Conseguiu retomar sua cátedra.
29
Herculano Ferreira Pena nasceu em Diamantina, Minas Gerais, em 1800 ou 1811, e faleceu em 1867. Provavelmente
autodidata. Foi professor, inclusive pioneiro do Ensino Mútuo até 1832 (O Universal, 30/4/1841), deputado provincial
e geral, senador pelo Amazonas, presidente de Minas Gerais e de mais sete províncias. Ninguém presidiu mais
províncias (Blake, 1895, p.236). Era grande dignatário da Ordem da Rosa e cavaleiro da Casa Imperial. Chegou a Ouro
Preto em 1830 e logo foi colocado à frente d’O Novo Argos. Era o típico político de centro, o “mais luzia dos saquaremas,
o mais saquarema dos luzias”. Como presidente defendia recursos para a educação e para os estudantes pobres. Um
dos pioneiros na defesa do ensino obrigatório no Brasil (Nogueira; Paula, 2017). Em 1840, como continuou servindo
de secretário ao Gabinete da Maioridade, teve votos também dos Liberais, embora já tivesse se afastado desse lado
político (O Universal, 14/12/1840). Em 1842, como vice-presidente legal da província de Minas Gerais, teve grande
papel na direção dos negócios públicos, tendo apresentado relatório próprio à Assembleia Legislativa.
30
José Antônio Marinho (1803-1853), foi redator ou colaborador no Jornal da Sociedade Promotora da Instrução Pública, no
Novo Argos, no Astro de Minas, no Oposição Constitucional, no Americano, no Despertador Mineiro, no Itacolomy, no Itamontano,
no Monarquista e no Constitucional, para contar só folhas mineiras. Nasceu em Brejo do Salgado, nas margens do São
Francisco, negro e pobre. Teria se encaminhado para o sacerdócio por uma paixão não correspondida, e quando
seminarista em Olinda participou da Confederação do Equador, sendo castigado com a expulsão. Terminou seus
estudos no Caraça, onde também lecionou. Foi vereador, deputado provincial e geral, professor e diretor de diferentes
colégios. Era filho de Antônio José Marinho, e neto do Capitão Francisco Alves Passos e de Romana Cardoso de
Toledo. Afirmou que nasceu pobre por “negócios falhados da parte de meu avô, e meu Pai nos reduziu a pobreza”,
mas que “a nossa casa, ou a de meu avô, se chamava por antonomásia – a casa grande” (Astro de Minas, 29/10/1836).
Em outras palavras, Marinho tinha capital cultural. Além de um dos principais envolvidos da Revolta de 1842, foi seu
mais famoso memorialista, ou se isso existe, um historiador oficial dos rebeldes, tendo publicado sua versão já em
1844.
78

reformas desejadas dentro da legalidade. O Novo Argos propunha dar mais poderes aos Conselhos
Gerais das Províncias e limitar o poder do Imperador de escolha de Presidentes de Províncias,
Bispos e Comandantes de Armas a listas tríplices.

A lembrança d’O Novo Argos, de que a Constituição tinha a chave para sua própria reforma,
desenvolvida nos números 67, 68 e 69, teve tanto sucesso que “mil exemplares de cada número
foram vendidos dentro de três dias, o que pela primeira vez acontece no Ouro Preto” (O Novo
Argos, 26/3/1831). E pensar que os arquivos públicos não têm nenhum exemplar do número 67!

Quando a notícia da Noite das Garrafadas chegou a Ouro Preto O Novo Argos acrescentou
à epígrafe o Artigo 145 da Constituição (O Novo Argos, 2/4/1831). O Astro de Minas adotou o
mesmo cabeçalho, com os mesmos dois artigos da Constituição, evidenciando que estava na mesma
linha política.

Figura 3 – Cabeçalhos d’O Novo Argos e do Astro de Minas

Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional


79

Assim alguns chefes políticos revelaram que formavam algum tipo de aliança, que tinham
um programa básico com dois itens principais – defender a independência do Brasil e reformar a
Constituição dentro da lei. Se negaram a aceitar uma federação muito descentralizada, e sobretudo
que a mesma fosse conquistada a força. Era o nascimento dos Moderados mineiros, pouco antes
do 7 de Abril. Quando a Regência chegou, eles já tinham definido seus limites e estavam unidos.

Essa delimitação proposta pelo Novo Argos permitiu manter grande diversidade de ideias
entre os Liberais Moderados mineiros. De 26 redatores que antes de 7 de abril de 1831 escreveram
em folhas consideradas Liberais, após 1831 todos escreveram em folhas Moderadas, inclusive os
poucos que passaram por folhas tidas por Exaltadas. Podia-se defender tudo o que se viu acima
que o Pregoeiro Constitucional defendia, contanto que respeitando os limites da legalidade.

Merece nota que esse episódio aconteceu quando O Novo Argos estava sob a redação de
Herculano Ferreira Penna. Conhecido por sua inteligência e competência, foi o político que mais
Províncias presidiu durante o Império. Mas seu papel na criação do Partido Moderado não é bem
conhecido. Talvez ser “o mais Saquarema dos Luzias e o mais Luzia dos Saquaremas”, como era
conhecido pelos seus contemporâneos, tenha contribuído para seu esquecimento, uma vez que os
nomes mais lembrados da história política do Império são os dos líderes dos diferentes lados
políticos.

Contudo, os dois limites representados pelos artigos 145 e 174 da Constituição do Império
foram propostos pelo Novo Argos sob a redação de Herculano, e logo receberam apoio da opinião
pública, não só por meio de compras de exemplares, como pela decisão do Astro de Minas de
estampar os mesmo dois artigos. Esses limites não guiaram somente os Moderados. Muito tempo
depois de dividido e extinto o partido Moderado, as forças políticas que se seguiram respeitaram,
por décadas, essas mesmas fronteiras.

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Racismo e luta por identidades no filme A Última Ceia:


um rascunho ainda rasurado da historiografia afro-cubana

Alexandre Augusto da Costa*

Resumo: este trabalho propõe, a partir de uma leitura crítica do filme A Última Ceia, lançado em
1976, pelo cineasta Tomás Gutiérrez Alea, um debate das identidades afro-cubanas sufocadas pelo
racismo. O longa-metragem, inspirado em uma antiga notícia de recorte de jornal, narra a curiosa
história de um Conde, que no final do século XVIII, atendendo a um pedido do padre de suas
terras de catequizar os escravizados, convida doze deles para uma ceia na Quinta-feira Santa. O
gesto, que a princípio foi inspirado no exemplo de humildade de Cristo, se desdobra em uma
violenta perseguição com a morte e decapitação dos cativos. Os acontecimentos narrados no filme
durante a Semana Santa revelam questões ainda mal-digeridas em Cuba como, a ausência de um
debate profundo sobre o racismo, o papel dos afro-cubanos na luta pela independência e o
sufocamento das identidades em favor de uma suposta união frente ao imperialismo.

Palavras-chave: identidades, racismo, escravidão, cinema cubano.

Introdução

Este artigo propõe fazer uma discussão das questões que envolvem identidades e racismo
no filme cubano A Última Ceia31. Filmado em 1975 e lançado no ano posterior em Cuba, o longa-
metragem é considerado pela crítica um dos melhores trabalhos do diretor Tomás Gutiérrez Alea
(1928-1996).

A película é uma bela construção em narrativa linear de uma trágica história baseada em
um recorte de notícia comentada que havia sido encontrada pelo historiador Manuel Moreno
Fraginals (1920-2001) e lançada em uma breve passagem no livro El Ingenio (1964). O conto narra
um episódio que provavelmente havia ocorrido em finais do século XVIII em um engenho de
açúcar em Cuba. O Conde da Casa Bayona, proprietário da fazenda, atendendo a um pedido do
padre local, convida doze escravos para cear na Quinta-feira Santa, a exemplo de Jesus Cristo com
seus apóstolos. De acordo com a narrativa original, no dia seguinte, revoltados com o não-
cumprimento da promessa do Conde em dispensá-los do trabalho no dia santo, os escravizados
dão início a uma grande rebelião que acaba com a morte e decapitação de vinte rebeldes32.

*
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História pela UFJF, docente do curso de Publicidade e Propaganda
do Unipac Barbacena/MG, bolsista CAPES.
31
Neste artigo, fizemos a opção de utilizar a tradução em português do título original La Última Cena, para melhor
fruição da leitura.
32
No conto original é feita a menção a vinte escravos decapitados. Provavelmente buscando dar uma dramaticidade
maior à película, o diretor Alea escolheu doze.
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O longa, como bem analisa Mariana Martins Villaça (2011, p.195)33 em A cena político-cultural
cubana dos anos 1970: uma análise histórica do filme A Última Ceia, é dividido em três blocos principais
em cenas que transcorrem de quarta-feira à domingo da Semana Santa: 1) escolha e preparação
para a cerimônia (quarta à quinta-feira); 2) a ceia (noite de quinta-feira); e 3) a rebelião, que é seguida
de uma forte repressão (sexta a domingo). As personagens principais da película são: o Conde, o
feitor do engenho Dom Manuel, o técnico de produção de açúcar, Dom Gaspar Duclé e alguns
escravizados. Dentre eles se destacam Bagonchê, ex-rei africano que lidera a rebelião ao lado de
Sebastián (recém-capturado no início do filme e que se torna um protagonista durante a ceia);
Antonio, um cativo de toques mais refinados e que é leal ao Conde; Congo, dançarino, cantador e
brincalhão; Pascoal, o ancião; e Ambrósio, irônico e falastrão.

A ceia do Conde, recheada de simbologias e parábolas, pode ser considerada uma paródia
bíblica dos últimos dias de Cristo. Porém, se no cristianismo o desfecho busca representar uma
mensagem de esperança, em A Última Ceia, ela até encontrada no escravizado Sebastián – o único
que consegue escapar do violento massacre – mas é superada por ambiguidades, que vão da
fraternidade, ao cinismo. Durante a ceia, o Conde se mostra generoso, convida os doze
escravizados a comer e beber com fartura e faz a promessa que os dispensaria do trabalho na Sexta-
feira Santa. A promessa não é cumprida e Dom Manuel obriga-os a trabalhar. A atitude causa
revolta e é recebida como uma traição do senhor da fazenda. Em poucas horas o feitor vira refém,
é morto pelos rebeldes e o engenho é incendiado. Começa então uma furiosa repressão aos negros
que participaram da ceia, que, desesperados, tentam escapar dos cães e dos capitães-do-mato
contratados pelo Conde. Quase todos são mortos, à exceção de Sebastián, o mais corajoso, que
consegue fugir da chacina e se vangloria de, supostamente, possuir poderes mágicos. O desfecho
da trágica história se encerra no domingo, quando o Conde, do alto da colina, com as doze estacas
fincadas e onze cabeças decapitadas, promete a construção de uma nova igreja e anuncia o
renascimento do engenho.

Desperta a atenção no enredo o uso constante de metáforas pelas personagens para definir
as fronteiras das identidades e as relações de poder que ocorrem na forma de violência simbólica –
para tomar emprestado um conceito de Pierre Bourdieu (2001) – entre o homem branco e os
negros escravos, entre imperialismo e resistência, que vai sendo quebrada aos poucos, à medida
que os cativos vão tomando consciência de suas posições e condições sociais. Neste sentido, é
premente analisar as ligações entre identidade e racismo presentes no filme.

33
O citado artigo é um desdobramento da tese da autora, de mesmo nome, denominado Instituto Cubano del Arte e
Industria Cinematográficos (ICAIC) e a política cultural em Cuba (1959-1991), transformado em capítulo de livro.
83

Considerando o contexto em que foi lançado (ano de 1976), Vilaça (2010, p. 196-197)
defende a tese de que o diretor Tomás Gutiérrez Alea não fez uma crítica direta ao regime cubano
que se instalou com a Revolução de 1959, mesmo porque as circunstâncias da época dificultavam
essa postura. No mesmo ano que tomou o poder, o governo criou o Instituto Cubano del Arte e
Indústria Cinematográficos (ICAIC), que selecionava, produzia e distribuía todas as produções
fílmicas. Após um primeiro momento em que o cinema buscava o vanguardismo da ilha nas
produções, a partir de 1970, ocorreu uma “virada” nas intenções do governo que se reaproximou
da URSS e consequentemente, do cinema do realismo soviético. Toda e qualquer produção que
fizesse alguma crítica direta ao governo cubano era considerada traidora da revolução. Essa postura
já havia sido antecipada por Che Guevara em uma comunicação em Montevideu, no ano de 1965,
denominada El socialismo y el hombre em Cuba, em que acusava os intelectuais não-revolucionários de
cometerem o “pecado original”. Essa expressão foi levada ao fim e ao cabo, pressionou artistas,
cineastas e intelectuais para se aproximarem do homem do campo e dos operários para viver a
experiência do cotidiano simples. A censura às artes avançou nos fins de 1960 e, principalmente,
no início da década seguinte (Vilaça, 2010, p. 205)34.

Mas antes de nos atermos a estas questões é imprescindível, mesmo que de forma breve,
fazermos o percurso historiográfico do papel dos escravos na luta pela independência cubana.

Revisitando o protagonismo dos escravizados na construção de Cuba

A Última Ceia traz uma importante discussão que ilumina o protagonismo do espírito
revolucionário do povo sofrido, apropriado por Fidel Castro após a tomada do poder, contra o
imperialismo35. Na película, esta postura resistente nasce do escravo negro, que reluta e não aceita
a dominação colonial, ao custo de dar a própria vida em nome de uma mudança estrutural.

O contexto da narrativa mostra o momento em que Cuba assumiu a liderança mundial na


produção do açúcar, após a rebelião escrava de São Domingos no Haiti em 1791, que culminou
em 1804 na independência daquele país. Estes acontecimentos desestruturaram de forma
significativa o mercado negreiro no Haiti e abalaram os pilares, da então, maior potência mundial

34
Após o Congreso Cultural de La Habana em 1968, ocorreu o “Caso Padilha”, que se desenrolou até 1971, culminando
na prisão, julgamento e confissão forçada do intelectual. A partir deste episódio, o regime endureceu a postura contra
os intelectuais e artistas. Na sequência, houve a destituição da direção da revista El Caimán Barbudo, o fechamento da
revista Pensamiento Crítico e do Departamento de Filosofia da Universidad de La Habana – espaços que concentravam a
maioria dos intelectuais não-comunistas.
35
Cabe aqui pontuarmos que não faremos uma revisão historiográfica que se inicia com a colonização espanhola da
ilha. Parece-nos pertinente, destacarmos as discussões que se são inauguradas em fins do século XVIII, principalmente
no pensamento revolucionário que inspirou a libertação do Haiti e que inspirou rebeliões em Cuba.
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na produção do açúcar. A partir de 1792, Cuba assumiria este papel central, alcançando em 1830 a
liderança mundial da fabricação deste produto.

A película destaca este anseio do aumento da produção, ao mostrar a personagem, Dom


Gaspar, provavelmente um franco-haitiano, exibindo algumas inovações que havia promovido na
Casa de Purgar (engenho da narrativa), com o objetivo de elevar a produção para 11 mil arrobas,
por meio do aproveitamento do bagaço da cana. Além disso, é importante ressaltarmos, que a
demanda por maior produção açucareira alterou significativamente a demografia cubana. Entre
1790 e 1820 a população triplicou. Como bem explica Aline Helg (2014, p. 30): “A raza de color (raça
de cor, segundo a terminologia da época, que englobava escravos e negros livres) tornou-se
majoritária, enquanto os brancos não representavam mais do que 44% do total”. Em 1827, ainda
de acordo com a autora (Helg, 2014, p. 30), negros e mulatos constituíam 56% da população, mas
apenas um quarto era livre. Os outros três quartos eram compostos por escravizados. Em 1841, a
população escrava alcançava 347 mil pessoas, tornando-se assim mais numerosa do que os brancos
e dos afrodescendentes livres.

Essa preocupação é manifestada no filme pelo técnico de produção de açúcar Dom Gaspar.
Durante a visita do Conde e do seu feitor Dom Manuel ao engenho, em que o senhor da fazenda
havia incentivado a aquisição de mais escravos para aumentar a produção, o franco-haitiano, alertou
que era preciso cuidado para que os negros não superassem a população dos homens brancos. Para
além da película, essa situação realmente ocorreu. Em 1827, a proporção de homens livres de cor
em relação aos escravos diminuiu: negros e mulatos constituíam 56% da população, mas, entre eles,
apenas um quarto era livre, sendo os outros três quartos escravos. Em 1841, ao somarem 347.000,
os escravizados se tornaram mais numerosos do que os brancos, muito à frente dos
afrodescendentes livres.

A recente revolta haitiana causou um temor entre os produtores de açúcar em Cuba. À


medida que a produção exigia o aumento da demanda por mão-de-obra, mais escravizados
chegavam à ilha e a demografia ia se alterando. “Os antídotos para este cenário de catástrofe iam
desde a promoção da imigração massiva de espanhóis, ao ‘regresso’ forçado dos negros à África e
a anexação ao sul escravagista dos Estados Unidos, passando pela autonomia no seio da Espanha”
(Helg, 2014, p. 31). Esta posição de liderança alcançada em fins do século XVIII, no entanto, traria
muitos problemas à expansão da atividade, como destaca Vilaça (2010, p. 199):

[...] a demanda internacional pela produção canavieira cubana, conduziu à modernização


da produção e do comércio, bem como o aumento da população escrava que, entretanto,
não se deu em proporção suficiente para atender às novas metas, acarretando a
superexploração dessa mão-de-obra.
85

Atenta a estas transformações, a Coroa Espanhola elaborou, em 1789. a Real cédula y


instrucción circular a Indias, sobre la educacíon, trato y ocupación de los esclavos, documento que fixava normas
aos senhores de escravos para conterem abusos e rebeliões em nome da defesa dos dogmas da
Igreja Católica. Estas regras seriam inculcadas pela catequização, obrigatoriamente realizada nos
domingos e feriados, dias em que os escravizados estariam dispensados do trabalho na produção
do açúcar (Vilaça, 2010). É, supostamente, atendendo a estas normativas, que o Conde da Casa
Bayona, no filme, aceita ao pedido do padre para se aproximar dos escravos e dispensá-los do
trabalho na Sexta-feira Santa.
Neste contexto é importante, porém, ressaltar a função central que as confrarias adquiriam
na dominação e consequente funcionamento do sistema de produção:

Sujeitos às vexações e exclusões crescentes, os homens negros livres


reaproximaram-se dos escravos. Neste processo, os cabildos de nación africana,
confrarias inicialmente promovidas pela Igreja católica para integrar os escravos
africanos à cristandade mantendo as suas divisões étnicas, multiplicaram-se e
tornaram-se espaços privilegiados de encontro e ajuda mútua entre africanos e
afrodescendentes, cativos e livres, trabalhadores e artesãos, homens, mulheres e
crianças, alguns dos quais sabiam ler e escrever. Ligando as cidades às plantações
formando uma rede, os cabildos eram locais cruciais de socialização da raza de
color36, com a sua forma de governança, suas finanças cooperativas, mas também
suas práticas religiosas e culturais (Helg, 2014, p. 30).

A resistência aos dogmas e aos princípios da colonização, porém, seria travada em um longo
caminho. O primeiro movimento de independência cubana aconteceria somente em 1868 e a
abolição da escravatura, ainda mais tarde, em 1886.

Para se ter uma ideia da dimensão dessas lutas, de 1780 até 1866, como destaca Helg (2014,
p. 30), a importação de milhares de escravos africanos, fazia com que a dimensão humana fosse
totalmente instrumental, “[...] ao ponto de os fazendeiros considerarem mais rentável explorar até
à morte e substituir regularmente a mão-de-obra cativa, do que encorajar o seu crescimento
natural”. Gloria García (2003) e Alain Yacou (2009) ressaltam que até o momento da abolição em
1886, as revoltas foram marcadas por incêndios das plantações e fuga de escravizados, que
almejavam formar quilombos.

É exatamente o que ocorreu em A Última Ceia, quando os negros, revoltados com a falsa
promessa do Conde em liberá-los do trabalho na Sexta-feira Santa, tomam o feitor de refém,
executam-no e tacam fogo no canavial. A atitude dos rebeldes na película, como dissemos no início

36
Grifos nossos.
86

deste artigo, deu início a uma sangrenta caçada que culminou na morte e decapitação de onze dos
doze líderes da revolta.

É necessário lembrar que no primeiro quinquênio do século XIX a Revolta de Aponte, em


1812 e a de La Escalera (a escada, em que os denunciados eram torturados), foram marcadas por
violentas repressões, como: deportações, torturas, prisões seguidas de mutilações em praça pública
e execuções. Como bem detalha Helg (2014, p. 31), ao resgatar as informações de Childs (2001) e
Palmié (2002), a primeira revolta, liderada por José António Aponte, artesão e miliciano negro, teve
34 execuções. Nesta rebelião, “[...] os homens livres de cor de Havana se lançavam na continuidade
da Revolução do Haiti e dos movimentos independentistas da América Continental exigindo a
liberdade dos escravos e o fim do domínio espanhol”. Já a Conspiração de La Escalera, o número
de execuções foi maior (78), e muito provavelmente foi inspirada no abolicionismo inglês após a
emancipação dos negros das colônias britânicas em 1838. Para combater a revolta, as autoridades

[...] recorreram de forma massiva à tortura, frequentemente mortal para os


escravos, e incriminaram numerosos homens livres de cor famosos, como o
poeta Gabriel de la Concepción Valdés, conhecido como Plácido, que
totalizaram a metade das execuções, 433 penas exílio, centenas de condenações
a prisão e confisco sistemático dos bens. Além disso, as milícias de cor foram
abolidas e novas regras submeteram os escravos e homens livres de cor a uma
vigilância ainda mais rígida. O ano de 1844 ficou gravado na memória histórica
dos afro-cubanos como “o ano do chicote”37 (Helg, 2014, p. 32).

Para boa parte dos euro-cubanos, mesmo aqueles que desejavam a abolição da escravatura,
a independência poderia ter um alto custo, como a instabilidade social que se verificava no Haiti.
O Grito de Céspedes em 1868, e em seguida a Guerra dos Dez anos “diminuiriam” esse temor de
ameaças e insurgências, já que houve uma suposta “suspensão” das diferenças entre artesãos,
agricultores, na maioria, homens negros livres, na luta pela independência daquele país.

O protagonismo do papel dos afro-cubanos na libertação da ilha foi rasurado nas páginas
da história. Os negros em fins do século XIX, ficavam com uma espécie de “dívida” com os
brancos por estes últimos terem abolido a escravidão e estabelecido a “igualdade” entre o povo
cubano.

Ficava excluída qualquer ideia de reparação por um passado agora imputado à


monarquia espanhola, ao mesmo tempo em que autorizava que qualquer
mobilização autónoma dos afro-cubanos fosse vista como ameaça a segurança e
a unidade da nação baseado no dogma “con todos . . . y para todos” (Helg, 2014,
p. 34).

37
Grifo nosso.
87

No século XX, o sentimento semeado pelo regime Castro, especialmente a partir dos anos
1970, com a reaproximação com a URSS, artistas e intelectuais da ilha fizeram uma série de
questionamentos. A busca de um controle cada vez maior por parte do governo nas artes e no
pensamento crítico elevou a temperatura do debate sobre o papel do negro na historiografia
cubana. Alea, em seu filme, mesmo sendo componente do Instituto Cubano del Arte e Industria
Cinematográficos (ICAIC), buscou, de forma sutil, apresentar críticas a este apagamento da
memória coletiva de Cuba e criticar a postura naive da esquerda da ilha, que ignorou as diferenças
étnicas em nome da luta contra o imperialismo. Haveria pouca disposição da elite cubana em
discutir o racismo?

Apagamento da memória e controle das artes

Quando o Movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, toma o poder em 1959, os
afro-cubanos, após longas e sangrentas revoltas pela independência de Cuba – mesmo as lutas
travadas na implantação e legalização do Partido Independente de Cor (PIC)37 – já haviam perdido
a força no debate na arena política (Helg, 1995). O novo regime ainda era visto com uma certa
desconfiança:

À exceção de Juan Almeida, um afro-Cubano de origem modesta frequentemente


posto em destaque, o movimento de Castro era composto por uma maioria de
euro-cubanos de classe média que não mostrava interesse em combater o racismo
(Helg, 2014b, p. 43).

Desde 1800, na ótica da na visão de Carbonell (1961), a nação cubana havia sido cunhada
nas disputas entre escravos/senhores, Espanha/África, Igreja Católica/religiões africanas. Desta
forma, o principal agente na independência da ilha teria sido o escravizado. Porém, a historiografia
cubana apagaria, em grande parte, este papel, dando os louros da luta abolicionista ao Grito de
Yara em 1868, culminando na Revolução de 1959. Mais especificamente, a disputa simbólica seria
vencida pelo centralismo euro-cubano.
Para piorar o quadro, a tentativa da superação do racismo viria de forma descendente, sem
que houvesse uma discussão mais profunda a respeito do tema.

37
O Partido Independente de Cor (PIC) foi o primeiro partido político organizado por negros na América – com o
seu jornal, Previsión. Sofreu fortes repressões desde a sua fundação no início do século XX. Os debates travados neste
espaço buscavam resgatar a autonomia do homem negro na historiografia cubana e transformá-la por meio da política.
88

A solução viria de cima, graças à nacionalização, em 1960 e 1961, de todo o setor


privado, das escolas às fábricas e às lojas, passando pelos centros de recreação.
Todos os clubes, incluindo as sociedades da raza de color, foram fechados, o que
pôs fim à segregação nos locais públicos, sem que houvesse espaço para um
debate sobre a discriminação e o racismo. Ao mesmo tempo, o governo lançou
várias políticas em favor dos mais pobres, dentre os quais os afro-cubanos eram
sobre-representados, como por exemplo, uma campanha nacional de
alfabetização (Helg, 2014b, p. 44).

Em fins da década de 1960 a questão racial parecia incomodar o regime Castro. A cobrança
governamental veio especialmente na Ofensiva Revolucionária (1968-1969) e nas resoluções do
Congreso Cultural de La Habana (1968). A partir destes eventos, o regime começou a combater
duramente o individualismo e a se esforçar para cumprir, sem sucesso, metas coletivas de produção
através do trabalho voluntário que seria gratificado por honrarias e condecorações. As tarefas eram
essencialmente braçais e a ordem do dia era ser “leal” à Cuba.
Neste contexto, “o pecado original” que consistia no fato do intelectual abdicar de ser
revolucionário, como Che Guevara havia denunciado em 1965, foi novamente apropriado pelo
governo, na tentativa de impor uma vigilância ainda maior em produtores e artistas. Se na primeira
década pós-revolução, o regime alimentava o protagonismo e vanguarda do cinema cubano e a
negação do realismo soviético, nos anos 1970, com a reaproximação da URSS o governo mudou
radicalmente o discurso e passou a exigir que intelectuais e artistas defendessem claramente o
marxismo e instruíssem o povo a proteger estes princípios (Vilaça, 2010)38. Especificamente, nesta
década, a questão racial também foi deixada de lado.

Simultaneamente, a análise oficial repetia que a Revolução de 1959 tinha


concretizado a igualdade racial, e que o racismo e aquilo a que ainda se chamava
“o problema negro” estavam ligados ao capitalismo e ao imperialismo dos
Estados Unidos, pertencendo por isso, ao passado (Helg, 2014b, p. 43).

O endurecimento desta postura viria ainda mais forte em 1975, a partir do I Congreso del
Partido Comunista de Cuba. Neste evento, foram elaboradas as Tesis sobre al Cultura Artística y Literária,
que condenavam qualquer tentativa do uso das artes para divulgar e sustentar ideias opostas ao
socialismo (Vilaça, 2010). Em 1976, com a criação do Ministério da Cultura, o Instituto Cubano da
Arte e Indústria Cinematográficas (ICAIC), que até então, gozava de certa autonomia, passou a ser
submetido a esta pasta.

A política de cultura adotada pelo Ministério da Cultura, sob o comando de


Aramando Hart, estabeleceu um pacto de tolerância com os intelectuais e artistas,
no qual imperava, entretanto, a prática generalizada da autocensura: as obras

38No filme A Última Ceia essa atitude teria sido demonstrada pelo Conde ao usar a religião para realizar a ceia e
posteriormente, de forma inversa, justificar o massacre.
89

passavam a ser previamente moldadas às formas e aos conteúdos permitidos pelo


governo. Este por sua vez, se mostrava cada vez mais centralizado: apesar de
haver separação entre Estado, Governo e Forças Armadas, as direções desses
três setores – e a do partido único do país – estavam concentradas na mesma
pessoa, Fidel Castro (Vilaça, 2010, p. 206).

A narrativa de uma união nacional em defesa da revolução, acabava, desta maneira,


silenciando dissidências importantes como a questão racial – suspensa das discussões para uma luta
mais homogênea do povo cubano contra o imperialismo dos Estados Unidos da América.

Para Vilaça (2010) a Última Ceia leva estas tensões ao telespectador: no autoritarismo e no
centralismo na figura do Conde; no impasse do diálogo dos “intelectuais”, que no filme são
travados pelo padre (dogmático) e Dom Gaspar, ateu e liberal que via com ceticismo a iniciativa
de aproximação com os escravizados; na dependência do discurso à prática nas diferentes
utilizações da palavra de Deus; na impotência daqueles que veem a violência mas não podem reagir
(como fica evidente na própria postura do técnico do engenho); à resistência e descrença do feitor
na preparação da cerimônia; ou ainda na tentativa frustrada do padre em suspender o trabalho na
Sexta-feira Santa. O filme também destaca a importância da rebelião na conformação da
consciência política, do aprendizado através da experiência, da autoridade do discurso e da
liderança eficaz39.

A violência como linguagem, a busca da superação das diferenças e as relações de poder


são escancaradas na película. Ainda que, de uma forma subjetiva, através do uso de uma história
encontrada de um comentário de uma notícia de jornal, A Última Ceia coloca todas estas tensões
no tabuleiro. O espectador move as peças conforme a intuição e conhecimento histórico. As
possibilidades de associações são diversas. Iremos nos ater neste artigo, especialmente às conexões
entre racismo e identidades.

Identidades e racismo: a ceia de Cristo às avessas

Stuart Hall (2006), ao se debruçar no pensamento de Kobena Mercer, argumenta que a


identidade somente ganha relevância quando está em crise. Indo ao encontro desta perspectiva, o
longa-metragem A Última Ceia tenciona esta característica o tempo todo, a começar pela apreensão
de Sebastián, o escravo fugido. Por escapar tantas vezes, ganha a fama de feiticeiro, que
supostamente possuía poderes mágicos. Durante a visita do Conde ao engenho, o escravizado é
capturado pela terceira vez, e o feitor, Dom Manuel, arranca-lhe a orelha e a joga aos cães. O senhor

39
Mariana Martins Vilaça (2010, p. 207-220) faz uma abordagem profunda destas questões que envolvem o contexto
em que o filme foi produzido, nos anos de chumbo do regime de Fidel, dialogando estas chaves de leitura à luz da
película.
90

do canavial, até então, com alguns traços forçados de refinamento europeu, se choca com a cena e
começa a golfar – o recorte mostra o poder do Conde sendo ameaçado por um escravo rebelde. A
modernização do engenho, somente, não garantiria a plena produção. Seria preciso, sempre que
necessário, usar da violência para disciplinar a mão-de-obra.

Ainda, no início do filme, há um tenso diálogo travado entre o padre e o técnico do engenho
Dom Gaspar. Este último, mulato, tenta minimizar o caráter uníssono das raças e questiona a fé
do padre, argumentando que na natureza tudo pode ser relativo. Como exemplo, mostra que, na
produção do açúcar, o verde do melaço se transforma em matéria escura. Dessa forma, tenta
argumentar que, aquilo que é claro, advém, antes, de material negro. O padre, por sua vez, condena
a incredulidade de Dom Gaspar, acusando-o de ser adepto à feitiçaria e compara o processo de
etapas da produção do açúcar ao purgatório, onde o fogo teria o papel de purificação das almas
(Vilaça, 2010).

Após obter sucesso em convencer o Conde a fazer um gesto de solidariedade, quando este
último, se inclina e dá ao pároco a tarefa de escolher doze escravizados (à exceção do ex-fugitivo
Sebastián, o qual o dono da Casa Bayona fazia questão que viesse à mesa), o padre inicia a
evangelização e batismo. Primeiro, tenta convencê-los a aceitar o destino de servidão para
alcançarem o Paraíso. Depois leva-os a um rio para se banharem, numa espécie de “purificação”
ou “purgatório” para poderem cear na Quinta-feira Santa com o Conde. Nestes dois exemplos (a
conversa do padre com Dom Gaspar e a sessão de preparação dos escravizados para a ceia),
podemos ver, claramente, o que Stuart Hall (2006, p. 11-12) argumentava a respeito da ligação dos
sujeitos aos valores da estrutura à qual pertencem.

O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais,


ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os
"parte de nós", contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os
lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então,
costura (ou, para usar uma metáfora médica, "sutura") o sujeito à estrutura.
Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tornando ambos reciprocamente mais unificados e predízíveis.

Ou seja, para o Padre, havia, somente, um caminho para salvação. Tudo o que escapasse
desta rota dogmática – como o que foi apresentado pelo técnico do engenho ao questionar a
“pureza” do que é branco – seria uma iresia. A “purificação” também era necessária, já que se
tratava de um rito de “limpeza” dos pecadores para poderem estar com o amo. Já para Dom Gaspar
e os escravizados – estes limites não eram, necessariamente, claros. O primeiro, era mestiço e
buscou questionar os dogmas e o racismo existentes no discurso do padre. Já os escravizados, na
incompreensão da catequização e do banho de batismo, fizeram deboche e riram. É o que também
91

ocorre na cena seguinte, quando o Conde lava os pés dos “convidados”, que, sem entenderem do
que se tratava, novamente fazem escárnio.

As tensões entre identidade e racismo seguem mais intensas durante a ceia. Ao lado do
Conde, Antonio, um jovem negro que se diz Cristão, questiona as razões de ser escravizado. Alega
que foi para o engenho repreendido por Dom Manuel que o chamou de preguiçoso. Começa então
a bajular o Conde e pede para voltar à antiga função de trabalho doméstico.

Também neste sentido, mas, mostrando não ter nenhum pouco de humildade, Bagonchê,
ex-rei na África (preso na Guiné) gaba-se de ter habilidades de negociar bons acordos com
comerciantes de escravos. Apesar de trabalhar no engenho com o feitor Dom Manuel não se sente
escravizado. Se identifica mais como um rei que perdeu a batalha.

Os exemplos acima denotam que as identidades são construídas em um processo, já que


elas surgem da narrativização do “eu”. No entanto, como alerta Hall (2007, p. 109):

[...] a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma


alguma, sua eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a sensação de
pertencimento, ou seja, a "suturação à história" por meio da qual as identidades
surgem, esteja, em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e, portanto,
sempre, em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo
fantasmático.

Se inclinarmos a pensar nesta perspectiva, concordaremos que o sujeito assume diferentes


papéis em momentos distintos, e que as identidades não são necessariamente coerentes, já que “[...]
dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que
nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (Hall, 2006, p. 13).

É o que observamos na postura assumida pelo Conde ao propor a ceia. Durante o jantar
tenta convencer os escravos de sua bondade e de que está disposto a atender aos pedidos que
fossem feitos. Sinaliza isso ao conceder a liberdade a Pascoal, o ancião. O idoso reclama que não
tem mais condições de trabalhar por causa da idade avançada. O amo atende ao pedido e o concede
a alforria. Porém, Pascoal, ao levantar-se e dirigir-se à porta, se dá conta que não tem para onde ir
e chora, lamentando seu destino. O Conde, de forma cínica, questiona o porquê do ancião não
estar feliz, já que, livre, poderia voltar ao seu país. O papel de caridoso, supostamente assumido
pelo anfitrião foi lançado por terra no dia seguinte, com a perseguição e assassinato de Pascoal.

Na tentativa de convencer os escravizados da vida dura, necessária a uma purificação em


direção ao Paraíso, o senhor do engenho evoca o passado. Se apoia em um conto de São Francisco
de Assis sobre a verdadeira felicidade. A longa da parábola, narrada em tom eloquente, tem como
92

moral a justificativa de que todo sofrimento seria válido para se cumprir a vontade de Deus na
Terra. É nesse sentido que o Conde orienta aos servos a obedecer ao maioral a fim de evitarem
castigos. Os mesmos debocham da parábola e questionam a submissão a Dom Manuel. Um deles,
o perspicaz Ambrósio, indaga: “Quando o capataz me bater, devo ficar contente”? As atitudes do
Conde correspondem à perspectiva de Hall (2007, p. 108-109) quando afirma que:

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado


histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência. Elas
têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história, da
linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo
no qual nos tornamos.

O Conde ainda iria além. Numa atitude racista, defende que o homem negro nasceu para o
trabalho pesado nas lavouras, já que seria capaz de fazer árduas tarefas cantando. A vida do escravo
só teria algum sentido se concordasse com a perspectiva cristã, como salienta Ana Laudelina
Ferreira Gomes (2014, p. 371):

Através do Conde, o catolicismo colonial espanhol do século XVIII traz o Deus


dos dois mundos, o mundo terrestre, no qual se sofre, e o mundo celeste, pós-
morte, onde todos são iguais e onde se pode então ser feliz. Esta seria a
recompensa deste Deus a seus bons filhos, àqueles que sabem servi-lo com
conformismo: o Paraíso celeste.

Ao proceder desta forma, o anfitrião do jantar, realmente, acreditava que a sua posição
social atendia à vontade de Deus na Terra e que era um gesto muito nobre de sua parte, admoestar
os negros ignorantes, sem nenhuma instrução das Escrituras. Isso nos leva a refletir para o fato de
que o conceito de identidade (a princípio do que se espera inequívoco do nascimento à morte)
talvez não seja suficiente para a compreensão dos sujeitos, já que a mesma é forjada na
representação. Esta última, nas palavras de Hall (2007, p. 112), “[...] é sempre construída ao longo
de uma ‘falta’, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do Outro [...] assim, elas [as identidades]
não podem, nunca, ser ajustadas idênticas – aos processos de sujeito que são nelas investidos”. À
medida que os sistemas de representação se multiplicam, este processo se altera, possibilitando que
os sujeitos assumam posições temporárias (Hall, 2006). Aí, talvez seria mais apropriado pensarmos,
não em “identidade”, mas em “identificação”, já que esta última não é completamente acabada e
pode ser sustentada ou abandonada (Hall, 2007). A subjetivação dos indivíduos seria, nesta rota, um
processo sempre inacabado, indeterminado, em que se pode ganhar ou perder certas características ou
vínculos identitários.
93

As atitudes racistas também sinalizam a estigmatização das diferenças entre brancos e


negros, ocultando desigualdades para, provavelmente, justificar a posição de poder e os abusos
cometidos. “Trata-se de uma postura e prática racistas não por estabelecer distinções e identificar
diferenças, mas por desqualificar o outro (no caso, o negro escravo) para, a partir desta
desqualificação, se qualificar, se enaltecendo” (Gomes, 2014, p. 371).

O Conde, na trama, só é desafiado por Sebastián – apelidado por ele de Judas – que,
aparentemente abatido pela orelha molestada, vai demonstrando ser um poderoso algoz. Após
quase desmaiar durante a parábola de São Francisco contada pelo Conde, o anfitrião o convida a
sentar-se ao seu lado. A tentativa de aproximação não se efetua, já que o escravizado, respondendo
a uma provocação lhe dá uma cusparada na cara. Quando o dono do engenho desmaia, após beber
muito no banquete, Sebastián admoesta aos seus a não acreditarem nas falsas promessas e começa
a contar uma instigante lenda iorubá. Na trama, a divindade Oloffin havia criado a Verdade e a
Mentira e presenteado esta última com uma espada, já que era mais feia e frágil. Em uma das
discussões, a Mentira decapitou a Verdade. Mais forte e desesperada, esta última arrancou-lhe a
cabeça e a tomou para si. A Verdade, assim, passaria a ter o corpo da Verdade e a cabeça da Mentira.
Desta forma, confundiria para sempre as pessoas.

Mais uma vez a identidade (negra, escravizada) na narrativa, indica ser construída para a
afirmação de uma fronteira – neste caso, ao demarcar as posições sociais e acusar a dominação do
homem branco. No âmbito da ceia, o fugitivo Sebastián também assume um papel que poderia ser
atribuído a Judas, como apelidou o Conde. Embora, nas Escrituras a traição tenha ocorrido com
ambições pessoais (a troco de 30 moedas de prata), na película, a razão seria mais nobre: a de
conscientizar os oprimidos. Sebastián, ainda, seria o único que escaparia da perseguição e
assassinato dos colegas presentes na mesa. No dia seguinte à ceia, após tomar notícia, através do
feitor, de que os escravizados não teriam descanso, lidera a rebelião que causa a morte do capataz
e põe fogo no engenho.

Comovido pela morte de Dom Manuel, o Conde inicia uma violenta caçada aos revoltosos.
No Domingo da Ressurreição assume um discurso duro em que afirma ter sido humilhado pelos
escravizados e que seria um civilizador iluminado por Deus para combater os selvagens. Diante de
uma cruz com vários servos ajoelhados, doze estacas e onze cabeças decapitadas, anuncia a
recriação do engenho.

Considerações finais
94

O filme A Última Ceia aponta para uma importante revisão do papel dos afro-cubanos na
independência de Cuba. Historicamente, como demonstramos, houve um profundo silenciamento
e uma forte repressão aos movimentos políticos e aos intelectuais e artistas que reivindicavam este
legado.

Ao criar o ICAIC, logo após a revolução de 1959, o regime Castro contribuiu, ainda mais,
para este “apagamento”, ao censurar debates que denunciavam as diferenças, especialmente o
racismo, com políticas e normativas que ligavam as produções artísticas críticas, ao imperialismo.
Neste sentido, Alea foi muito feliz ao recorrer à literatura, para trazer à tona as lutas contra a
colonização espanhola. Ao mostrar o uso da ideologia como ferramenta de exercício de poder,
revelou, não apenas, a ambiciosa parceria entre a Igreja Católica e o sistema de produção, mas
também – mesmo que de uma forma subjetiva – ao uso instrumental do discurso na sustentação
de uma identidade única (cubana) frente às forças imperiais/colonizadoras.

Além disso, a película suscitou um pertinente debate da conformação das identidades.


Como podemos verificar, não há uma posição muito estável, nem do Conde – que se contradiz
entre um senhor de engenho e um homem que atende ao chamado de Deus – ou mesmo dos
escravizados, que se confundem ao acreditarem nas próprias crenças ou nas promessas do
dominador. Neste aspecto, concordamos com Hall (2007), ao pensar, não em identidades, mas em
identificação, que pode ser sustentada ou abandonada – por completa ou em partes – de acordo
com as necessidades e o contexto. A representação, desta forma, parece ganhar relevância, já que
os papéis se multiplicam e se contradizem o tempo todo

Infelizmente, o racismo não foi enfrentado de maneira profunda em Cuba. Isso é evidente,
não apenas no filme discutido neste artigo, que aborda o duro período da escravidão, mas também
na ausência de um debate mais equivalente na sociedade cubana pós-revolução de 1959. O diretor
Tomás Gutiérrez Alea, assim, em A Última Ceia, não apenas, nos faz ter um olhar mais atento a
estas problemáticas, mas desperta também, em toda a comunidade de artistas, pesquisadores e, em
especial, do povo cubano, a necessidade imperativa de revelar a historiografia escrita a lápis preto
que foi, reescrita à tinta, por mãos de homens brancos.

Referências

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Carbonell, Walterio. Crítica: Cómo surgió la cultura nacional. La Habana: Editorial Yaka, 1961.
95

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Última Cena. Inter-Legere - Revista do PPGCS/UFRN, n. 15, pp. 370-374, 2014.

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_____. Quem precisa da identidade? Silva, Thomaz Tadeu da; Hall, Stuart; Woodward, Kathryn.
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Helg, Aline. Our Rightful Share. The Afro-Cuban Struggle for Equality, 1886-1912. Chapel Hill:
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____. Os afro-cubanos, Protagonistas silenciados da história cubana. Revista de Estudos & Pesquisas
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Vilaça, Mariana Martins. A cena político-cultural cubana dos anos setenta: uma análise histórica
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Saliba, Elias. (orgs.). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. – 2ª ed. - São Paulo: Editora
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Yacou, Alain. La longue guerre des nègres marrons de Cuba (1796-1852). Paris: Karthala, 2009.
96

A imortalidade do mal: continuidades de descontinuidades na


ressignificação do Coringa nos arcos narrativos Morte da Família
(2012), Ano Zero (2013) e Fim de Jogo (2014)

Alexandre de Carvalho Rodrigues da Silva*

Resumo: no presente trabalho, pretende-se estudar a ressignificação da caracterização do


personagem de história em quadrinhos do gênero super-heróis conhecido como Coringa, um vilão
do universo das narrativas gráficas de Batman, nos arcos Morte na Família (2012), Ano Zero (2013)
e Fim de Jogo (2014), analisando as possíveis mudanças na concepção criativa do “Príncipe Palhaço
do Crime”, apresentadas nessas obras e em sua cronologia oficial por meio da concepção de história
e memória em Walter Benjamin em suas continuidades e descontinuidades.

Palavras-chave: Coringa, quadrinhos, História, continuidades, descontinuidades.

Abstratc: in the present work, we intend to study the reframing of the characterization of the
comic book character of the superhero genre known as Joker, a villain from the universe of
Batman's graphic narratives, in the arches Death in the Family (2012), Year Zero (2013 ) and
Endgame (2015) analyzing the possible changes in the creative conception of “crime clown prince”,
presented in these works and in their official chronology through the conception of history and
memory in Walter Benjamin in his continuities and discontinuities.

Key Words: Joker, comics, History, continuities, discontinuities.

No meio acadêmico brasileiro, durante muito tempo, era comum a ideia de que as histórias
em quadrinhos eram uma forma descartável de conhecimento, sem valor artístico e exclusivamente
destinadas às crianças (Vergueiro e Santos, 2006, p. 1). Os leitores de quadrinhos nesta época (eu
me incluo entre eles), acompanhavam as aventuras do super-heróis da Marvel e DC comics pelas
adaptações das editoras brasileiras, como a EBAL (Editora Brasil-América), Editora Abril e Globo.
Eram os anos 1970/80/90, e, para muitos, que se tornaram colecionadores também, cada
lançamento dos super-heróis nos Estados Unidos era aguardado com bastante ansiedade.

Assim, ser leitor de quadrinhos de super-heróis era estar vinculado ao universo infantil e a
uma tradição já marginalizada pela sociedade brasileira há anos, apesar do crescimento e sucesso
de vendas desses personagens em suas narrativas. Os quadrinhos se tornaram definitivamente um

*
Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB), 2011.
97

produto cultural lucrativo em 1960, só no mercado brasileiro, contava com 15 milhões de edições
vendidas por mês -180 milhões por ano (Junior, 2004, p. 3).

Os super-heróis eram também costumeiramente interpretados de maneira depreciativa,


indiferenciada, como um subproduto da indústria de entretenimento. Mas, com o passar dos anos,
um grupo específico de roteiristas e desenhistas apresentaram algumas mudanças significativas na
caracterização destes personagens. Acabaram renovando a linguagem, desenvolvendo conceitos e
temáticas contemporâneos; apresentaram novas possibilidades para a concepção de super-heróis a
partir da década de 1960. Com a ressignificação desses personagens, incluindo a caracterização de
cada um deles40, acabaram influenciando não apenas o desenvolvimento dos quadrinhos, mas como
podemos ver anos depois, os campos do cinema e séries de televisão.

Os quadrinhos destes personagens passaram a apresentar conteúdo que ia além da luta do


“bem contra o mal”41. A caracterização que roteiristas e desenhistas se propuseram a desenvolver
aproximaram a figura até então infantilizada do super-herói de uma sociedade que questionava
principalmente seus valores mais tradicionais.

Os costumeiros super-heróis da National/DC42 ganharam assim uma “nova caracterização”,


contextualizada pelo mundo que as cercava. Um exemplo da mudança de caracterização de um
personagem deste contexto de super-heróis é a Mulher Maravilha, que em sua cronologia oficial
nos quadrinhos passou a ter versões inspiradas na “mulher emancipada dos anos 1960”,
demonstrando mais “atitude” em suas narrativas gráficas. A caracterização da figura feminina nos
quadrinhos de super-heróis, depois de feita de maneira tão “pura” nos anos 1950, agora, na virada
dos 1960 para os 1970, muda radicalmente para os padrões até há pouco vigentes, com jovens e
vilãs superpoderosas desenhadas de maneira a valorizar as formas femininas.

40
Neste trabalho, vamos considerar a caracterização como a concepção criativa de roteirista e desenhista sobre seus
personagens em suas obras específicas. Os quadrinhos abordam uma arte que tem como característica uma linguagem
própria e autônoma através de textos e/ou imagens, e por isso, para interpretarmos a caracterização de uma
personagem serão levadas em conta a construção da cena narrativa pelo roteirista e desenhista, levando em conta
também, se necessário, as decisões editoriais.
41
Em artigo publicado anteriormente, trabalhei com o personagem da DC comics conhecido como Flash. O velocista
escarlate de forma alegórica em Walter Benjamin na interpretação das temporalidades históricas nos quadrinhos de
super-heróis. Ver: Silva, Alexandre de Carvalho Rodrigues da. Flash nas aulas de história: a interpretação das
temporalidades históricas nos quadrinhos de super-heróis. In: Ferrer, F. C. S.; Nascimento, C. P. (Org.). Ensino e
Pesquisa em Licenciaturas. - 1ª. ed.- Brasília: Editora Projeção, 2018. v. 1. 260 p.
42
Em 1961, a editora mudou de nome pela terceira vez e passou a se chamar National Periodical Publications. Mas 1967,
a Kinney National Services, um conglomerado que tinha de funerárias a serviços de limpeza, compra a National Periodical,
mas mantém o nome da editora.
98

Figura 1 – As mudanças na caracterização da heroína da DC comics “Mulher-Maravilha”


que aconteceram desde 1942 até 196043

A proposta deste trabalho é apresentar a caracterização da personagem de quadrinhos de


super-heróis, na perspectiva de interpretarmos suas continuidades e descontinuidades, tendo como
foco três narrativas gráficas da cronologia oficial que marcaram e marcam profundamente minha
visão do que eu já li e leio de quadrinhos contemporâneos do gênero. Meu olhar de pesquisador se
debruçará sobre o vilão dos quadrinhos do Batman – o Coringa, nas obras Morte da Família (2012)44,
Ano Zero (2013)45 e Fim do Jogo (2014)46, na tentativa de entender a concepção criativa do
personagem atualmente e a ressignificação do mal presente em sua caracterização com o passar dos
anos.

Coringa e os “velhos tempos”

43 A capa da revista número 178 de outubro de 1960 apresenta a seguinte informação: “Esqueça o velho. A nova
mulher maravilha é essa”.
44
Roteiro de Scott Snyder e desenhos de Greg Capullo. É um arco narrativo com 23 edições lançadas nos Estados
Unidos em 2012.
45
Roteiro de Scott Snyder e James Tynion IV e desenhos de Greg Capullo, Danny Miki e Rafael Albuquerque. É um
arco narrativo lançado nos Estados Unidos em 2013/2014.
46
Roteiro de Scott Snyder e desenhos de Greg Capullo. É um arco narrativo com 06 edições lançadas nos Estados
Unidos em 2014/2015.
99

A atualidade da sociedade muitas vezes esteve presente nos quadrinhos de super-heróis,


sem que houvesse a preocupação exagerada e um controle, que já existiu em outras épocas47. As
narrativas gráficas apresentam até certo ponto, questões atuais, fomentando debates significativos
e reflexões poderosas. Nas histórias de Batman, desde 2012, muitas se estendem até o presente
momento e apontam possibilidades para interpretarmos a sociedade em que estamos e suas
temporalidades históricas.

A contemporaneidade, em História, é mais que um campo temático ou um


recorte de periodização. Ela é parte constitutiva do próprio conceito de História
e se apresenta, teimosamente, até para quem procura fugir dela, abrigando-se em
passados mais ou menos remotos e idealizados. (Silva, 2007, p. 3).

Em Morte da Família (2012) o personagem Coringa48 reaparece após um tempo


desaparecido, sua caracterização aponta aspectos muito diferentes de suas últimas aparições nos
quadrinhos. Até então, os vilões ao descobrirem suas habilidades, aplicam-nas em seu próprio
benefício, sem se preocupar com o próximo, causando um mal coletivo e não se importando com
vítimas desde que não sejam eles mesmos. No caso do Coringa, não se via uma mudança tão aguda
em sua caracterização desde as obras O Cavaleiro das Trevas (Miller, 1986) e Asilo Arkhan (Morrison,
1989) e neste contexto, o próprio Batman tinha uma caracterização semelhante as suas primeiras
edições no final dos anos 1930, agora, em plena década revisionista dos quadrinhos de super-heróis.

Batman não se importa em ferir aqueles que ele acredita serem merecedores deste
tipo de punição física (...). A violência usada por Batman, portanto, não seria,
dentro de sua perspectiva, gratuita. Ele é violento com quem merece este tipo de
tratamento. (...) a função de aterrorizar os bandidos não serve apenas para criar
vantagem ao Batman em relação a eles em sua missão de combatente, mas para
amedrontá-los a ponto de se tornar um fator capaz de impedi-los de retornar a
vida criminosa. (Cunha, 2006, p. 195)

Contudo, o Coringa apresenta de forma acentuada uma caracterização poucas vezes vista
em um vilão de quadrinhos na narrativa gráfica de Morte da Família (2012), uma vez que de volta a

47
Nos anos 1950, com a publicação do livro A Sedução dos Inocentes, os quadrinhos passaram a ser combatidos pelos
acadêmicos ligados à área da Psicologia e do Comportamento. Como resposta às pressões, as editoras desenvolveram
o Código de Ética dos Quadrinhos, estabelecendo mudanças significativas na caracterização dos personagens.
48
Existem duas versões para a criação do personagem. Bob Kane (1915-1998) diz em sua biografia que fez um esboço
do personagem e o apresentou a Bill Finger (1914-1974), que o achou parecido com o ator alemão Conrad Veidt no
filme “O Homem que ri” de 1928. Jerry Robinson (1922-) diz que a ideia de criar o Coringa foi sua, visando dar a
Batman um adversário diferente dos gangsters. A semelhança com o curinga desenhado em um baralho, dizem que foi
fundamental. Segundo Fred Finger (filho de Bill Finger) seu pai revelou-lhe que a aparência do Coringa na verdade foi
inspirada em um sorridente rosto impresso em um anúncio do Steeplechase Park, um entre os vários parques de
diversões que existiam entre os anos vinte e setenta em Coney Island, uma famosa estância balneária americana. Em
suas primeiras publicações no Brasil o Coringa ficou conhecido como “Galhofeiro” (na EBAL) ou “Risonho”, porque
já existia um herói de quadrinhos chamado Coringa (The Jester, da Quality Comics). Mais tarde, quando a EBAL passou
a ter exclusividade sobre os personagens da DC Comics no Brasil, foi definitivamente nomeado “Coringa”.
100

Gotham City, a primeira parada do Palhaço do Crime é o Departamento de Polícia da cidade, onde
aterroriza o Comissário Gordon e deixa um rastro de dezenas de policiais mortos, apenas para dizer
que “está de volta e quer recuperar o seu rosto da sala de evidências”. Em sua última aparição, o
personagem fez o vilão Criador de Bonecas arrancar o seu próprio rosto para deixá-lo de lembrança
para o Batman. No decorrer da narrativa, enquanto recria vários de seus antigos e mais famosos
crimes, o Coringa vai revelando seu verdadeiro propósito para Batman, enquanto anda pela cidade
com a pele do rosto amarrada com tiras de couro na cabeça.

Somos apresentados aos poucos ao possível motivo do Coringa ter voltado diferente em
sua caracterização. A visão que temos mais tradicional do personagem com o passar dos anos é a
pele do rosto branca, cabelo verdes, batom vermelho na boca e a vestimenta terno de cor roxa.
Extremamente “diferente”, usa a pele do rosto como máscara e um uniforme de técnico de
informática na cor laranja, preservando os cabelos na cor verde, motivado a trazer de volta
o “seu Batman”, que em sua concepção está mudado e mais fraco, devido ao fato de ter, com o
passar dos anos, criado laços com a “família morcego”. O criminoso decide então planejar um
encontro, literalmente um banquete para Batman e sua família, no qual supostamente dará ao
herói a opção de abandonar aqueles que o deixam limitado, optando por uma vida livre onde os
dois poderão caçar um ao outro, como nos “velhos tempos”.

Figura 2 – A caracterização do vilão nas primeiras edições de Batman nos anos 1940 e a
concepção criativa do Coringa na obra Morte da Família (2012) em busca dos “velhos-tempos” e
usando uma máscara retirada da pele do próprio rosto

Assim, para o Coringa nos “velhos tempos” quando o herói agia sozinho, sua postura era
outra, mais durão, mais violento em seu combate contra o crime49. A relação do criminoso passa a
ser o “resgate” do antigo Batman, do “seu Batman”. Para isso, ele não se importa em matar todos
os que passarem no seu caminho, por isso, somos apresentados durante a narrativa a uma

49
Batman, nos seus momentos iniciais, não se incomodava em matar, chegando mesmo a dar um tiro em um magnata
corrupto. In: Patati, Carlos e Braga, Flávio. Almanaque dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 68.
101

meticulosa experiência de acompanhar esse processo de desestabilização emocional de Batman e


de todos que o cercam. O Coringa é caracterizado como um assassino frio, louco e calculista.

O Coringa mergulhado na violência de seus atos nos quadrinhos contemporâneos

Em obras anteriores à Morte da Família (2012), esta perspectiva de um Coringa caracterizado


como um assassino frio e calculista, mergulhado na loucura, se faz presente e com o passar dos
anos, só vão se acentuando. Uma que mais se destaca é a de O Cavaleiro das Trevas (Miller, 1986)
onde o vilão é apresentado como um louco desmemoriado que desperta de uma catarse de dez
anos trancado no Asilo Arkham50, após ver no noticiário que o herói havia retornado à ativa.

Na obra o Palhaço do Crime é caracterizado no ápice de sua insanidade pelos desenhos do


argumentista/desenhista Frank Miller. Mata todos no estúdio de televisão onde havia sido
convidado a dar uma entrevista, assassinando a sangue frio centenas de pessoas inocentes. O
Coringa de Miller chega a atirar aleatoriamente em diversas pessoas fugindo de uma perseguição
de Batman num parque de diversões da cidade, mostrando total desprezo pelas vidas ao seu redor.
A narrativa mostra que o desejo do Coringa era que Batman o caçasse, como um jogo de gato e
rato, como nos “velhos tempos”. Assim a caracterização do personagem em Miller (1986) encontra
continuidade em Snyder/Capullo (2012), apresentando um vilão retratado como um assassino que
sabe as consequências de suas ações, que se mantém indiferente na hora matar, motivado em
prejudicar de forma específica Batman e todos que o cercam.

Tal caracterização também pode ser interpretada na obra A Vingança Quíntupla do Coringa
(1973) com roteiros de Deny O’neil e desenhos de Neal Adams, onde podemos identificar o retrato
assassino, louco, sem remorso e alucinado do vilão, porém, sem atingir os extremos da
caracterização da dupla Snider/Capullo em Morte da Família (2012).

50
Hospital psiquiátrico dos quadrinhos de Batman para onde são levados os vilões como o Coringa, o Pinguim, Hera
Venenosa, o Charada, Duas-Caras, Espantalho, Bane, Crocodilo e Arlequina.
102

Figura 3 – A caracterização do Coringa em O Cavaleiro das Trevas (1986). Cabelos verdes, olhos
insanos, usa armas de fogo e facas. Ao lado, a caracterização do vilão em Morte da Família (2012)
com os cabelos verdes, olhos insanos e usa uma máscara da própria pele do rosto durante a
narrativa51

A partir de Morte da Família (2012) as obras que virão na sequência acentuam a


caracterização assassina do personagem, mostrando um nível de maldade cada vez mais extremo.
Os desenhos de Greg Capullo apresentam a expressividade da loucura e o nível de insanidade,
como podemos ver na decomposição da máscara de pele do rosto do Coringa ao longo da narrativa.
De uma face meio rígida no início, vai se tornando mais flácida e rodeada de moscas ao longo da
trama, passando uma imagem repugnante do criminoso como nunca antes.

Figura 4 – A máscara de pele do rosto do Coringa apresentada como uma marca de insanidade
do personagem. Um dos pontos de loucura e morte de uma personalidade doente

Em artigo publicado anteriormente sobre a personagem pude enxergá-lo também como


uma reverberação não só das narrativas do homem morcego, do contexto de violência e suas
possíveis caracterizações ao longo dos anos, mas como muitas vezes, o Coringa como mediador
da loucura em um contexto de desordem e caos que vem desde sua primeira publicação no final
da década de 1930 (Silva, 2017).

51Em partes da narrativa se veste com um uniforme de técnico em informática. Já em 1973, a caracterização do vilão
assassino e louco já apresentava traços semelhantes com as da atualidade, que se fortaleceriam na cronologia do
personagem, na obra A Vingança Quíntupla do Coringa (1973).
103

Caracterizações extremamente violentas do vilão também aparecem nas obras A Piada


Mortal (1987) com roteiro de Alam Moore e desenhos de Brian Bolland, onde temos a personagem
apresentado de forma acentuada em seu sadismo, senso de humor doentio e um instinto violento
imprevisível.

Na arte de Bolland e no roteiro de Moore, o Coringa lança mão de diversas armas, desde
os revólveres de mentira (com a famosa bandeirinha de BANG!) até bazucas. No entanto, as marcas
desta caracterização são o anel com um botão que dispara uma letal descarga elétrica contra o
desavisado que se deixa apertar sua mão e o gás do riso, um composto químico que literalmente
mata de tanto rir quem o respira. A obra resgata tais características desenvolvidas em outras
narrativas do passado do personagem deixando-as à mostra. Cabe salientar a expressividade mais
uma vez da face do palhaço do crime. O Coringa de Bolland é perturbador ao ponto de
interpretarmos a loucura, as frustrações e medo estampadas no rosto do personagem e ficam cada
vez mais realistas e assustadoras ao longo da narrativa.

Figura 5 – O sorriso aberto mostrando os dentes aparece em grande parte da caracterização nos
desenhos de Bolland sobre o Coringa. Em A Piada Mortal (1987) temos também apresentação de
uma face da personagem menos distorcida e até mesmo um olhar de dor e melancolia

Logo após o final de Morte da Família (2012) voltamos a cronologia oficial da personagem
com o arco Fim do Jogo (2014) com o Coringa sob uma nova perspectiva de matar o Batman. Dessa
104

vez, após mais um tempo desaparecido52, somos apresentados a uma caracterização da personagem
em que seu rosto nasceu novamente, e agora, ele conta com um visual mais limpo, dotado até de
alguma elegância para os padrões estéticos atuais.
Figura 6 – A caracterização do Coringa para Fim do Jogo (2015)

Desta vez a narrativa gráfica apresenta a possibilidade do vilão ser, na verdade, um ser
imortal, pois teria sido “contaminado” por uma substância líquida encontrada no subterrâneo de
Gotham City, que lhe faria ter centenas de anos de idade. O Coringa então, seria um ser imortal.

Essa caracterização está envolvida na tentativa de explicar como o vilão sobrevive a cada
confronto mortífero contra o Batman, com a substância sendo ativada apenas em momentos de
extremo dano físico para o vilão. Essa versão não apresenta o personagem com as vestimentas
tradicionais em terno da cor roxa, nem a boca de cor avermelhada pelo batom, mas o sorriso aberto
e os cabelos esverdeados ainda estão presentes como uma marca, durante a narrativa.

A boca escancarada e vermelha do Coringa, mostrando os dentes num sorriso


estático, é o elo de ligação entre o cômico e a morte. Rimos da morte para afastar
a angústia da finitude e das incertezas, rimos do vazio e da falta de sentido, e
assim é que o riso do personagem remete a uma queda do alto, denuncia a
derrocada da superioridade humana frente ao inevitável da morte, pois ele
debocha da morte iminente. (Yida e Andraus, 2016, p. 79).

O Coringa em Fim de Jogo (2014) envolve e provoca Batman a compreender que ele sempre
existiu, desde o começo da humanidade. Ainda por cima, o Coringa envenena toda a população de
Gotham City levando-os a loucura com a sua toxina, a mesma que transforma as pessoas em
"Coringas", que as fazem perder a cabeça e agir segundo a personalidade insana do palhaço.

A maldade do personagem não encontra limites e sua caracterização reforça a perspectiva


do assassino voltado para conseguir o que quer. O Coringa amputa a mão direita do mordomo

52
Ainda neste artigo veremos o arco narrativo Ano Zero (2013) que foi publicado no período de “desaparecimento do
Coringa” entre Morte da Família (2012) e Fim de Jogo (2014). Optamos em dar sequência à análise da caracterização
obedecendo a cronologia do personagem na atualidade, apresentando outras obras referenciais da trajetória dos
quadrinhos de Batman como fonte de conhecimento sobre o personagem.
105

Alfred, o colocando a sua mercê. Durante o confronto final entre o Coringa e Batman, o super-
herói recebe dois punhais nas costas e três cartas de baralho, sendo que uma atinge seu olho
esquerdo, cegando-o, muito semelhante ao que houve com a caracterização do Coringa de Frank
Miller em O Cavaleiro das Trevas (1986). O embate é brutal, violento e sanguinário, até que numa
tentativa de finalmente matar o morcego com o último de seus punhais, Batman reage e tem uma
estarrecedora revelação, segurando o Coringa o quanto pode, para que ele não chegue até a poça
próxima com a substância que o curaria. Após isso, os dois, mortalmente feridos, são soterrados
nos escombros da caverna aonde acontecia a violenta luta.

Figura 7 – O confronto final entre Batman e Coringa na narrativa de Fim do Jogo (2015)

Durante esta luta é que Batman descobre que o Coringa estava conseguindo se revitalizar,
refazer seu rosto e se fortalecer com o bálsamo Dionysium, usado pela Corte das Corujas53 para
devolver a vida a seus guerreiros. O poço com o líquido foi descoberto pelo vilão quando ele
aparentemente caía para a morte em um penhasco subterrâneo ao final do arco Morte da Família
(2012).

Para mim, o Coringa sempre representou um senso de despropósito, de alguém


que ri quando você faz qualquer coisa que não seja esperar a própria morte, que
é a única coisa que importa. Para mim, Batman é o oposto disso; foi abatido por
um evento trágico e usou isso para se tornar algo que dê sentido à vida. 'Endgame'
é a síntese disso - Batman quer que a vida tenha sentido e o Coringa acha que ela
nunca terá. (Snyder, 2015).

53
A Corte das Corujas é uma organização secreta que exerce a sua influência em Gotham City há várias centenas de
anos, toda a cidade foi moldada por este grupo. Com o objetivo de derrotar todos aqueles que tentassem se colocar
no seu caminho, a Corte possuía um grupo de assassinos altamente treinados que tinha o nome de Garras. As
personagens foram criadas por Scott Snider em 2011 para os quadrinhos de Batman.
106

É importante salientar que entre as obras Morte da Família (2012) e Fim de Jogo (2014) Scott
Snyder e Greg Capullo apresentaram uma nova visão para os primeiros meses de atuação do
Batman como vigilante de Gotham City54. Na obra Ano Zero (2013) temos Bruce Wayne patrulhando
as ruas da cidade assumindo uma série de disfarces e buscando enfrentar a Gangue do Capuz
Vermelho, um bando de criminosos que se utilizava do anonimato para espalhar o crime e o medo
por toda Gotham. O grupo assumia um perfil de sigilo onde nem os próprios integrantes sabiam a
identidade dos membros da gangue, e eram todos liderados pelo Capuz Vermelho Um.

Na cronologia oficial dos quadrinhos de Batman esse vilão nunca teve a identidade revelada,
nem mesmo se sabe se era a mesma pessoa que utilizava a roupa em todos os casos. Pois nessa
época criminosos usavam a fantasia do vilão para, depois do crime, por a culpa no encapuzado,
que não era um, e sim vários criminosos. Na primeira narrativa datada dos anos 1950, escrita
por Bill Finger – um dos principais criadores do Batman, e desenhos de Sheldom Moldoff, o
homem que mais tarde se transformaria no Coringa foi um dos homens que usou o manto do
Capuz Vermelho55.

Figura 8 – A caracterização de Snyder/Capullo para o personagem Capuz Vermelho em Ano


Zero (2013). Ao lado, a capa da revista Detective Comics número168 (1951), que apresenta a
possibilidade de que ao tentar escapar de Batman num assalto à Fábrica de Baralhos
Monarca, um criminoso vestido com os trajes de Capuz Vermelho caiu num tonel de produtos
químicos que deixou sua pele branca, os cabelos verdes e os lábios vermelhos

Entender quem foi o Capuz Vermelho torna-se tão importante para compreender a
caracterização do Coringa, que, por muitos anos, a queda acidental no tonel de produtos químicos
fugindo de Batman, passou a ser uma das possíveis explicações sobre a caracterização do
personagem com a pele branca, os cabelos verdes e a boca avermelhada. Na narrativa gráfica A

54
Em 2011 a DC Comics realizou um reboot que deu origem aos Novos 52, reboot onde as origens dos heróis foram
recriadas. Inicialmente, não havia sido proposta uma nova origem para o Batman, mas isso acabou acontecendo em
2013.
55
Originalmente publicada na revista Detective Comics 168, em 1951, a história Quem é o Capuz Vermelho?.
107

Piada Mortal (1987) - já citada neste trabalho, o roteiro revisionista da época mostra o Coringa como
um comediante fracassado e infeliz, em suas origens, que vivia com a esposa grávida em muitas
dificuldades econômicas, aceitando participar de um assalto usando os trajes do Capuz Vermelho56.
O final da narrativa é muito semelhante à proposta de Finger (1951) na obra Quem é o Capuz
Vermelho? com o personagem surgindo após o acidente no tanque de produtos químicos totalmente
insano e caracterizado com a pele branca, cabelos verdes e boca avermelhada.

Figura 9 – As cenas narrativas que apresentam a possibilidade do Capuz Vermelho ser uma das
origens da caracterização do Coringa em dois momentos de sua cronologia. À esquerda, a de
Finger/Moldoff (1951), e a da direita, a versão de Moore/Bolland (1987)

É interessante salientar que Allan Moore deixa em aberto a possibilidade dos


acontecimentos apresentados em A Piada Mortal não serem exatamente como mostrado no
decorrer das cenas narrativas, já que o vilão não tem certeza de que os eventos aconteceram dessa
maneira, afirmando que se lembra dos acontecimentos de diversas formas diferentes e que se
precisa ter um passado, prefere ter “múltipla escolha”, podendo escolher o que mais lhe agrada
(Avila, s.d.).

A imortalidade do mal: a continuidade da caracterização assassina

Nessa perspectiva, fui percebendo que, desde a sua criação, o Coringa foi um personagem
que pouco se adaptou e se modificou com o passar dos anos. Sua própria concepção e de muitos
criminosos que conhecemos atualmente é uma adaptação de outros gêneros misturados à temática
do vilão de quadrinhos de super-heróis. Contudo, sua caracterização tem alcançado limites
extremos na violência, frieza e loucura apresentados nos roteiros de sua cronologia oficial,
principalmente nas obras da dupla Snider/Capullo analisadas neste trabalho.

56
De última hora, foi avisado que sua esposa havia morrido em um acidente doméstico, assim como seu futuro filho.
O homem tentou desistir, mas era tarde, e os outros criminosos o forçaram a continuar.
108

Seguindo essa trilha na qual o historiador crítico reconstrói aquilo que não está na história
e na historiografia tradicional por meio da pesquisa e do estudo da caracterização do Coringa em
sua cronologia oficial, vivenciei aspectos que foram reconhecidos por Benjamin em seus
argumentos sobre “terra escura”, que aos poucos foram me mostrando uma maneira singular e
significativa de trabalhar com o passado. (Benjamin, 1987, p. 239)

Neste sentido, o Coringa foi caracterizado com o pior que possamos ser como seres
humanos em diferentes épocas da história. Muitas vezes foi mostrado nos quadrinhos como um
vilão à frente do seu tempo, nem sempre interpretado como um palhaço de vestimenta terno roxo,
cabelo verde, pele esbranquiçada e lábios vermelhos, apenas. O personagem carrega a maldade
extrema em todos os seus atos e a caracterização está de forma consoante à essas ações criminosas.
É como se a maldade do personagem nunca acabasse e ele representasse nas narrativas gráficas de
Batman a experiência legítima de toda a maldade que o homem foi capaz de fazer até a atualidade.

Diferente da figura de Adolf Eichmann apresentada por Arendt (1999) que presenciou seu
julgamento em Jerusalém, o Coringa dos quadrinhos atuais não apresenta a incapacidade de pensar,
notada por exemplo, nas reações do criminoso nazista e no fato de ter cometido atrocidades de
que era acusado. No curso da investigação, Hannah Arendt foi levada a ocupar-se do “complexo
problema do mal”, que a fez relacionar sobre a ausência de pensamento daqueles que o cometem.
Na perspectiva da pesquisadora, o juízo poderia ser a mediação que possibilita ao sujeito pensante
retornar ao mundo concreto, a morada habitual dos homens. (Jardim, 2011, p. 12)

Na obra ela ainda conclui sobre Eichmann: “Apesar de todos os esforços da promotoria,
todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que
fosse um palhaço” (Arendt, 1999, p. 67).

Já o que é distintivo no “Palhaço do crime” dos quadrinhos de Batman em sua


caracterização da atualidade, é a sua capacidade de avaliar as consequências devastadoras de seus
atos, planejados em detalhes, mesmo quando consideradas instrumentalmente como meio de
vingança ou como ele mesmo justifica, retorno aos “velhos tempos”. A caracterização como louco,
por assim dizer, se assenta na sua incapacidade de enxergar o outro de forma altruísta. O Coringa
nos quadrinhos de Snider/Capullo é caracterizado como um ser humano muito inteligente, acima
da média, muito articulado e conhecedor de segredos da vida de seu inimigo, que chega ao ponto
de ser considerado uma força imparável, principalmente por sua determinação em fazer o mal
contra tudo e contra todos para atingir seus objetivos mortais.

Neste caso, os quadrinhos de super-heróis nos apontam uma outra possibilidade de


conhecer de forma aprofundada a sociedade contemporânea ao interpretarmos a caracterização de
109

um personagem tão representativo como o Coringa. E não passa atualmente apenas pelos debates
acadêmicos que abordam a realidade por meio das histórias em quadrinhos, mas também na
possibilidade de refletir com a História na avaliação crítica do mundo onde vivemos, onde o
conhecimento na mão de poucos pode ser tornar politicamente perigoso.

O interessante é que ninguém lê quadrinhos de super-heróis como tabula rasa em relação


à Cultura Histórica, ao conjunto de saberes que circulam socialmente e participam da construção
de determinadas concepções de História, Tempo Social, Presente/Passado/Futuro (Rüsen, 1994,
p. 3-26). As histórias em quadrinhos de super-heróis, entre tantas, acompanharam ou até mesmo
alimentaram uma grande parte das transformações da cultura mundial em suas mais variadas
formas.

Tal processo nada tem de automático ou conspiratório. Sua elaboração requer


articulações políticas em torno de um projeto de sociedade expressas
publicamente através de diferentes suportes, em múltiplos lugares. Isso significa
que modalidades de memória social se expressam a partir de personagens,
acontecimentos, monumentos, objetos, narrativas, iconografia e tantas outras
formas. (Silva, 1995, p. 63).

Assim, ao abordar os quadrinhos e seus personagens como fonte de conhecimento


histórico, busco um modo de fazer e pensar a História vinculado à dimensão da cultura, que se
distancia dos modelos explicativos que há tempos vêm sendo contestados, das noções de causa,
linearidade e progresso que sustentavam uma história de cunho teleológico e racionalista. Por
intermédio das reflexões de Benjamin (Benjamin, 1987, p. 226) e outros autores, tento interpretar
o sentido histórico dos quadrinhos, neste caso específico, a caracterização de seus personagens
como o Coringa, enxergando o descontínuo e o que é continuo na trajetória deles. São
interpretações que envolvem mais os aspectos criativos do que os editoriais. (Cirne, 2002, p. 24).

Minha interpretação do Coringa por meio de uma perspectiva alegórica benjaminiana se


constrói na medida em que interpreto o vilão como sendo mutável nas suas revistas desde sua
concepção até os dias de hoje. Contudo, percebo a continuidade da caracterização do personagem
como portador da maldade extrema encontrada em nossa sociedade em diferentes contextos com
o passar dos anos. Este Coringa pode ser também interpretado de forma semelhante nas obras da
atualidade com sua caracterização extremamente maléfica (Snider/Capullo) e em obras anteriores,
numa crescente de atos nocivos que fortalecem essa perspectiva do personagem e fazem parte de
sua cronologia oficial.
110

Referências

Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.

Avila, Grabriela. “As várias origens do Coringa.” Site Omelete. (03/10/2019). Disponível em
https://www.omelete.com.br/coringa-joker/coringa-filme/coringa-origens#13.

Benjamin, Walter. Obras Escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: editora
brasiliense,1987.

Cirne, Moacy. Por que ler quadrinhos. In Moya, Álvaro de e Cirne, Moacy (org.) Literatura em
quadrinhos no Brasil: acervo Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Fundação
Biblioteca Nacional, 2002.

Cunha, A. C. A Luta pela Justiça: uma análise fenomenológica das histórias em quadrinhos do
Batman. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2006.

Junior, Gonçalo. A Guerra dos Gibis: a Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos
Quadrinhos, 1933-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Patati, Carlos e Braga, Flávio. Almanaque dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

Rüsen, Jörn. Que es la cultura historica?: reflexiones sobre uma nueva manera de abordar la
historia. Tradução de F. Sánchez Costa eIb Schumacher. Disponível em:
http://www.culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf

Silva, Alexandre de Carvalho Rodrigues da. A Piada Mortal: Um dia ruim na vida do Coringa.
Revista Projeção e Docência, vol. 8, n. 1, pp. 91-111, 2017.

Silva, Alexandre de Carvalho Rodrigues da. Cenas narrativas em Batman-ano um: descontinuidades e
continuidades na caracterização do super-herói. 2011. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade de Brasília (UnB), 2011.

Silva, Alexandre de Carvalho Rodrigues da. Flash nas aulas de história: a interpretação das
temporalidades históricas nos quadrinhos de super-heróis. In: Ferrer, F. C. S.; Nascimento, C. P.
(Org.). Ensino e Pesquisa em Licenciaturas. 1. ed. Brasília: Editora Projeção, 2018. v. 1. 260 p.

Silva, Marcos. O prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995.

Silva, Marcos. O Historiador e seu tempo. Conferência na posse como sócio-correspondente do


Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 25 de janeiro de 2007. Disponível em:
http://historia.fflch.usp.br/sites/historia.fflch.usp.br/files/oHistoriadorSeuTempo.pdf

Yida, Valéria. Andraus, Gazy. As cores do personagem na história em quadrinhos. Revista 9ª Arte, vol. 5, n.
1, 2016.

Vergueiro, Waldomiro. Santos, Roberto Elísio dos. A pesquisa sobre histórias em quadrinhos na
Universidade de São Paulo: análise da produção de 1972 a 2005. Unirevista, vol. 1, n. 3, 2006.
111

O Museu Municipal Albino Busato - Casca/RS: possibilidades


de integração escola/museu como metodologia de ensino de
História

Aline Nizzola Berton*

Resumo: este trabalho irá versar sobre as experiências de integração escola/museu desenvolvidas
durante o ano de 2019 no município de Casca/RS. O Museu Municipal Albino Busato, inaugurado
no ano de 2018, possui um acervo multiétnico e pluricultural, contemplando as etnias dos
imigrantes italianos, alemães e poloneses que se estabeleceram na região no início do século XX e
finais do século XIX, também conta com um acervo arqueológico indígena proveniente das
escavações que ocorreram no município de Casca na década de 1970. A partir da necessidade de
integrar o Museu na comunidade enquanto centro cultural, buscando a sua consolidação
institucional, um projeto de educação patrimonial foi pensado através da realização de oficinas,
tendo como público alvo, inicialmente, crianças e jovens da educação básica do município. Essa
experiência de integração escola/museu, ainda no curto prazo, rendeu positivos avanços na
consolidação do espaço cultural, bem como se demonstrou uma metodologia inovadora para as
aulas de história, agregando saberes significativos para os alunos. Oferecer aos alunos a
possibilidade de reflexões e aprendizagens que vão além dos muros das salas de aula, contando
com um espaço cultural como ambiente de trabalho, estimula a formação cidadã e a consciência
crítica desses jovens. Utilizamo-nos do conceito de alteridade para nortear o trabalho tendo em
vista uma educação integradora.

Palavras-chave: museu, escola, patrimônio, integração, alteridade.

Introdução

O município de Casca se localiza na região norte do Rio Grande do Sul, distante 230 Km da
capital Porto Alegre. Com pouco mais de 9 mil habitantes (IBGE 2018), o município se destaca na
produção agrícola e leiteira. A formação étnica do município apresenta predominância italiana e
polonesa, com respectivamente 70% e 20% da população; e os outros 10% são compostos por
outros grupos étnicos. Isso se deve muito à formação histórica do município de Casca,
tradicionalmente uma região de colonização predominantemente italiana. As primeiras
informações que se tem sobre a localidade são do ano de 1890, quando da chegada das primeiras
famílias proveniente das colônias mais antigas e da Colônia Guaporé, recém fundada. A

*
Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo/RS; Mestranda em História PPGH UPF; Bolsista FUPF;
Historiadora no Museu Municipal Albino Busato/Casca-RS; Professora do Estado do Rio Grande do Sul – Carneiro
de Campos/Serafina Corrêa-RS; Professora do dialeto Talian; Aluna do Curso de Especialização em Artes –
UFPEL/RS.
112

denominação oficial foi de São Luiz de Guaporé, quando em 1904, foi considerado como 2°
Distrito de Guaporé. O nome foi dado em homenagem ao padroeiro da localidade: São Luiz
Gonzaga. O povoado foi crescendo às margens de um arroio e passou a ser conhecido como São
Luiz de Casca. O censo de 1920 acusou 8.281 habitantes no distrito, destes a maioria eram
analfabetos. A sede do distrito em 1914 somava 66 casas na área urbana e 1140 na zona rural.
(Gelatti, 1985, p. 21). A emancipação se daria no ano de 1954, quando os distritos de Casca, São
Domingos e Evangelista tornariam-se um município só, com sede em Casca. Processo que se
concretizou graças ao entendimento entre as lideranças políticas dos distritos, que viviam um bom
momento de desenvolvimento econômico e a emancipação era vista como um atenuante para o
progresso. (Filho, Silveira, 2015, p. 22).

Figura 1 – Localização geográfica do município de Casca no estado do Rio Grande do Sul

Fonte: GuascaTur.com.br. Acesso em 16 de junho de 2019.

Diante disso, podemos compreender de onde se origina boa parte do acervo salvaguardado
pelo Museu Municipal Albino Busato, bem como podemos historicizar a própria casa que serve de
abrigo a esse acervo, que também tem suas origens situadas nesse processo de formação do
povoado, tendo sido a primeira casa de comércio da localidade, fundada pela família Busato.

O Museu Municipal Albino Busato foi inaugurado no ano de 2018 e pode ser considerado
uma conquista para a população local, pois é resultado de anos de impasses gerados nas trocas de
administrações públicas municipais. A casa que abriga o Museu, “Casa Busato” e o acervo que
compõe o Museu possuem histórias e trajetórias diferenciadas. A Casa Busato foi tombada no ano
de 1994, pelo Ministério Público, mas sua construção data do ano de 1904, passou por inúmeras
reformas, que apesar de manterem as características originais, acabaram por substituir boa parte da
113

estrutura da construção original. Já o acervo museológico do município começou a ser constituído


no início da década de 1990, quando da criação de um espaço de Museu no município, que por
anos ficou concentrado em uma sala junto a Prefeitura Municipal de Casca. Posteriormente o
museu foi desativado e as peças ficaram guardadas junto a uma sala na Casa da Cultura de Casca.
A doação do acervo do antigo Museu Besson, no ano de 2012, veio a engrandecer esse acervo, o
qual pensou-se em transformar a Casa Busato em um Museu que pudesse abrigar todo esse acervo
museológico do município. O acervo do Museu Municipal Albino Busato atualmente possui 580
peças catalogadas, sendo elas pertencentes a várias categorias diferenciadas.

Figura 2 – Cerimônia de inauguração do Museu Municipal Albino Busato, fevereiro de


2018

Fonte: Página oficial no Facebook do Museu Municipal Albino Busato. Acesso em: 22 de dezembro de 2020

Após sua inauguração constatou-se a necessidade de promover projetos que pudessem


contribuir para a consolidação desse espaço cultural na comunidade, tornando-o atuante. Diante
disto e da possibilidade de uma parceria construtiva com as escolas do município, pensou-se em
realizar oficinas de educação patrimonial no Museu, além de trabalhar interdisciplinarmente com
outros campos do conhecimento, oferecendo possibilidades de novas abordagens para o ensino de
História. Segundo Chagas (1993, p. 1), os museus têm despertado, nas últimas quatro décadas,
interesse crescente, não só por parte de instituições ligadas à educação, quer governamentais quer
privadas, como também por parte do público em geral. Este interesse tem conduzido à criação de
novos museus e à formulação de abordagens museológicas inovadoras.

Parte-se do princípio de que a cultura de visitar museus ainda é pouco difusa no Brasil.
Historicamente os espaços culturais eram frequentados pelas elites e usufruir desses recursos era
“privilégio” para poucos. Com a abertura de mais museus e a promoção de atividades culturais,
esses espaços foram sendo popularizados, porém, é notável que o brasileiro ainda não visita museus
114

com frequência, pelo menos não tanto quanto visita shopping centers. Parece-me que não temos
hoje, no Brasil, uma cultura de museu constituída. Conforme Coelho, até pouco tempo atrás a
imagem que se tinha dos museus era de espaços que serviam para guardar objetos velhos, coisas
do passado, que acabavam por despertar pouco interesse. Entretanto, nas últimas décadas, não só
essa visão está sendo superada, como também o Museu se transformou num ambiente dinâmico,
que comporta diversas atividades e possibilidades. Os números de visitantes têm aumentado
significativamente, como também os projetos que relacionam os museus com a comunidade.
(Coelho, 2009, p. 16-17).

Em contrapartida, os benefícios dessa parceria escola/museu extrapola os objetivos do


espaço cultural, sendo um importante componente para diversificação do currículo escolar,
principalmente na disciplina de História. Uma aula de história no Museu, trabalhar um conteúdo
histórico a partir de um espaço cultural, configura uma possibilidade interdisciplinar entre história
e museologia, e resulta em aprendizagens muito mais significativas e amplas. Assim, o museu pode
se tornar um aliado do professor, fornecendo novas ferramentas de ensino-aprendizagem. Percebe-
se que os professores estão em um contínuo esforço para produzir materiais e pensar em
possibilidades que chamem a atenção dos alunos, novas abordagens e metodologias são pensadas
o tempo todo, seja na academia ou na preparação das aulas. Acreditamos que as cidades que
possuem essa possibilidade de intercambiar conhecimentos com museus locais devam explorar
essas possibilidades, que resultam em crescimentos mútuos. A ação educativa em museus visa
ampliar as possibilidades de aproveitamento pedagógico dos acervos, para que o visitante acentue
seu espirito crítico em relação a sua realidade e daqueles que estão sua volta.

Diante disso, além das demandas do museu, ouvimos professores do município que nos
colocaram questões que abarcavam a importância da formação desta parceria. Assim, formulamos
uma tabela contendo as principais demandas observadas pelas duas instituições, e com isso
concluímos que a aproximação de ambas dialoga de forma positiva

Tabela 1: Análise das necessidades do Museu e da Escola


Problemas / Objetivos Problemas / Objetivos
Necessidade de tornar o Museu Necessidade de novos recursos
atuante na comunidade; didático/metodológicos;

Dar visibilidade e despertar o Despertar o interesse do aluno;


interesse da comunidade e região;
115

Sensibilizar para a necessidade de Aprendizagens significativas;


preservação do Patrimônio;

Oferecer oficinas/aulas no Educação extramuros;


Museu;

Iniciar parcerias entre Iniciar parcerias entre


Museu/Escola; Museu/Escola;

Valorização da memória das Novas possibilidades no ensino


etnias locais e outras; de História e outras disciplinas;

Identidades. Interdisciplinaridade.

Fonte: Tabela elaborada pela autora, março de 2019.

Educação em museus, além de complementar o currículo formal, é um exercício de


afetividade e preservação da memória e do patrimônio cultural. Segundo Almeida (1997, p. 52), os
museus tem potencial para provocar uma experiência de aprendizagem que vai além da simples
complementaridade do ensino escolar e que ocorre por meio de estratégias e métodos diferentes
daqueles utilizados na escola.

Para iniciar nosso trabalho foi necessário buscar o apoio da Prefeitura Municipal de Casca,
especificamente junto à Secretária de Educação e Cultura, bem como estabelecemos diálogo com
as escolas do município e professores. A proposta de trabalhar conjuntamente e da realização das
oficinas de educação patrimonial gerou uma grande expectativa, tanto para o Museu, professores e
alunos. Esse público alvo foi escolhido pela possibilidade de estarmos contribuindo para suas
formações e também por acreditarmos que os estudantes poderiam ser divulgadores desse projeto,
falando para suas famílias sobre as aprendizagens, difundindo suas experiências, levando mais
pessoas a se interessarem pela questão. As oficinas foram pensadas como instrumento de efetivação
do projeto, levando os alunos a participarem de maneira teórico-prática.

O conceito de alteridade aplicado na educação e preservação patrimonial

A alteridade enquanto noção construtiva pode se integrar a educação e a preservação


patrimonial, ou também a educação patrimonial, tendo em vista uma experiência de aprendizagens
mais significativas e integradoras. Neste item vamos versar sobre a questão da importância de
integrar a alteridade à educação e à preservação do patrimônio cultural.
116

O Brasil é composto historicamente como um país multiétnico e de imensa pluralidade


social, todavia, o reconhecimento de tamanha diversidade, implica, necessariamente, em se ter
clareza de que os fatores que constituem a identidade não se caracterizam pela rigidez, pelo
contrário, inserem-se no campo da fluidez, de uma multiplicidade identitária. (Molar, 2011, p. 65). A
educação pensada a partir da alteridade é concebida como um processo de construção particular e
intensa entre os diferentes sujeitos, os quais possuem suas peculiaridades. Assim, a partir dessa
perspectiva o sujeito reconhece a própria essência a partir da sua relação com o outro; com a
alteridade, compreende principalmente os sentidos que as ações dos sujeitos podem gerar nos
respectivos contextos. (Molar, 2008, p. 1452).

O caminho para se construir a noção de alteridade no campo escolar é cheio de desafios e


pressupõe uma necessidade de envolvimento dos docentes que necessitam integrar a alteridade às
suas práticas diárias, para posteriormente fazerem parte do cotidiano da comunidade escolar e das
aulas. Sente-se que o valor que a alteridade representa dentro do campo educacional é cada vez
mais amplo, pois presume-se que a escola é o meio social pelo qual o Estado semeia seus ideais
humanizantes. (Molar, 2008, p. 1453). A questão da alteridade percorre toda obra de Lacan e
encontramos suas diferentes modalidades tematizadas a cada avanço de seu ensino. Para Lacan,
não há sujeito sem outro. O inconsciente é o campo, o eu e o outro são as raízes; ou seja, essa
questão subjetiva da construção do eu é de extrema relevância para a noção de alteridade, no qual
vamos identificar as diferenças socioculturais entre o indivíduo e o outro. (Quinet, 2012, p. 6).

A noção de alteridade possui uma perspectiva ampla, que não pode ser enquadrada em
explicações generalizantes. Uma atribuição imponente é que essa noção se enquadra em uma
alternativa no mundo globalizado, para a superação de preconceitos e xenofobias. Pensar na
diversidade é uma importante forma de lutar contra formas discriminatório das, compreendendo
as pluralidades de modo a ressignifica-las. (Molar, 2008, p. 1452).

No que tange à alteridade no campo educacional, a escola é o lugar em que convergem as


tensões sociais. Um ambiente que possui uma estrutura plural em sentidos socioeconômicos e
também intelectuais e filosóficos. Por isso, a escola se apresenta como produtora de conhecimento
e mediadora de conflitos. Com o surgimento dos PCN’s (Parâmetros curriculares nacionais), a
pluralidade cultural figurou como um tema transversal, portanto a multiculturalidade ou a
compreensão da diversidade ganhou respaldo na área educacional, garantindo essa abertura de
diálogo fundamental para se fazer nas escolas, com toda comunidade escolar. (Molar, 2008, p.
1450.) A questão da pluralidade cultural do Brasil advém da multietnicidade que compõe a
sociedade brasileira, historicamente marcada por ondas imigratórias de vários países que se fixaram
aqui, mesclando-se aos povos originários. Isso implica em se ter clareza de que os fatores que
117

constituem a identidade não podem ser rígidos, mas sim flexíveis, as identidades não são
automatizadamente formadas. (Molar, 2008, p. 1447). Com isso, pensamos que agregar a alteridade,
torna-se extremamente necessário, tendo em vista que para desenvolver aprendizagens
significativas sobre diversas culturas é necessário dialogar com respeito e igualdade sobre aquilo
que é do outro.

A Educação Patrimonial é uma proposta que procura fomentar não só o desenvolvimento,


como a busca do saber no que diz respeito ao patrimônio, seja ele histórico, cultural ou natural. As
atividades da Educação Patrimonial servem de subsídio para que a comunidade em geral desperte
para uma reapropriação de seus bens, sugerindo uma retomada dos valores culturais e históricos
relativos a esta sociedade. A Educação Patrimonial tem como proposta chave à conscientização da
população para com o patrimônio, trabalhando para que haja o resgate e a valorização de uma
identidade local, regional ou nacional. Ainda, enquanto metodologia, pretende envolver a
comunidade escolar e ainda todos aqueles que tem uma relação de pertença com a cultura local,
para que sejam perpetuadores do conhecimento e sirvam de objeto disseminador da identidade e
da valorização do patrimônio nos futuros cidadãos. Dentro de uma comunidade o trabalho da
Educação Patrimonial é o de valorizar as formas de manifestação da identidade e do patrimônio,
abrangendo todas as camadas sociais e econômicas da sociedade, pois todas fazem parte dessa
comunidade. (Oliveira; Soares, 2006, p. 8).

O projeto das oficinas de educação patrimonial e a integração escola/museu

Ao ir ao museu, a escola proporciona aos seus alunos o contato com objetos e a vivência
de experiências que, em geral, não fazem parte do universo da escola. Os museus dispõem
de recursos físicos e humanos que permitem a construção de ambientes em que o aluno
experimenta, em contexto, aspectos concretos de conceitos científicos. (Chagas, 1993, p.
11).

A Constituinte de 1988, ampliou o entendimento de bem cultural, ciente da pluralidade da


cultura do país, mas, sobretudo, atendendo às novas demandas internacionais de debates culturais,
que exigiam práticas e posturas de seleção e preservação do patrimônio afinadas com a nova ordem
mundial. A democratização da memória social, contemplando o estudo das minorias, outrora
esquecidas, ampliava espaços, objetos, grupos sociais, saberes e fazeres do universo das
representações do patrimônio cultural brasileiro. A cultura é uma rede de significados que dá
sentido ao mundo que cerca o indivíduo, ou seja, a sociedade. Dessa forma, a cultura representa o
patrimônio social de um grupo sendo a soma de padrões dos comportamentos humanos e que
118

envolve o conjunto de tradições, crenças, costumes, registros e vestígios do passado material e


imaterial das diversas comunidades humanas. (Coelho, 2009, p. 23-24).

É a partir do século XX, que o Museu vai assumir um papel preponderante na difusão da
cultura na sociedade, com a disseminação da criação de museus ao redor do mundo e a
popularização dos mesmos. Os museus são lugares que abrigam diferentes representações culturais
e também são importantes meios para a preservação do patrimônio das sociedades. Assim, o museu
entendido como instituição democrática, tem o papel primordial de explicitar conhecimentos por
meio dos diversos recursos que dispõe socializando-os, colocando-os ao alcance de todos os
cidadãos. A visita ao museu nos permite explorar novos mundos ou conhecer melhor o nosso,
preservando a memória e a cultura local.

A proposta das oficinas de educação patrimonial inicialmente seguiu três eixos temáticos:
Patrimônio material, imaterial e arqueológico. Tendo em vista uma apropriação dos conceitos e do
aproveitamento do espaço cultural e da história local para tal empreendimento.

Tabela 2 – Oficinas de Educação Patrimonial


Oficina 1: Patrimônios Oficina 2: Modos de Oficina 3: Patrimônio
edificados Fazer e Viver arqueológico

Objetivo geral Objetivo geral Objetivo geral

- Promover discussões e - Promover discussões e - Promover discussões e


ações de educação ações de educação ações de educação
patrimonial com estudantes patrimonial com estudantes patrimonial com estudantes
do ensino médio e do ensino médio e do ensino médio e
fundamental no município fundamental no município fundamental no município
de Casca. de Casca. de Casca.

Objetivos específicos Objetivos específicos Objetivos específicos

- Discutir a formação - Discutir a formação - Discutir a presença da


histórica do município de histórica do município de cultura indígena e seus
Casca. Casca. remanescentes

- Definir conceito de - Definir conceito de arqueológicos em Casca.

patrimônio cultural e os patrimônio cultural e os


119

decorrentes (material, decorrentes (material, - Promover a aproximação


imaterial, arqueológico, imaterial, arqueológico, das crianças com as peças
natural...) natural...) arqueológicas do Museu.

- Conhecer e analisar os - Conhecer e analisar a - Promover a


patrimônios materiais partir do patrimônio museal desmistificação de mitos
da Vila Histórica de os saberes e vivências da sobre os povos indígenas e
Evangelista e do Museu comunidade. despertar o interesse sobre
Municipal Albino a história dos povos
Busato. originários.

- Desenvolver uma opinião


crítica sobre a temática e
promover o respeito
interétnico.

Fonte: Tabela elaborada pela autora, março de 2019.

Esses três eixos, portanto, comportavam inúmeros campos interdisciplinares, além de


propiciar o envolvimento dos alunos com o espaço cultural, a história local, comunidades étnicas
diversas, saberes, vivências, artefatos arqueológicos, entre outros. Os museus, tidos como espaços
não formais de educação, podem ser aproveitados e se tornarem espaços agregadores para as
escolas, espaços formais de educação. Conforme Coelho, a relação museu-escola apresenta
possibilidades culturais e didáticas. A possibilidade de uma educação extramuros se torna mais real
quando concretizada a partir de instituições como Museus e centros de cultura, pois possuem
afinidades com o campo educacional. A relação museu-escola, traz a ideia de um espaço de
encontro, um espaço de debate, um espaço em que as coisas se produzem e não apenas o já
produzido é comunicado. (2009, p. 19).

Sabemos que o museu é muito mais que um local de acumulação de objetos, sua função
é conservar, estudar, valorizar e expor ao público elementos da vida social que estejam
ligados de formas diversas à história e à memória. Os museus são fontes de
conhecimento, pois materializam um contexto histórico e através de objetos e de outras
maneiras preservam a realidade de uma época, de um costume, de uma utilidade, enfim
daquilo que foi, pois, a partir do momento da entrada de um objeto em um museu ele
deixa de exercer sua função original e passa a ser conservado para fins de preservação de
memória. (Coelho, 2009, p. 17).

As oficinas foram realizadas durante o ano de 2019, onde tivemos um fluxo contínuo de
alunos e escolas do município que participaram das atividades, em diversas faixas etárias. Tendo
120

em vista a autonomia dos professores, o museu oferecia as oficinas conforme a necessidade e/ou
preferência dos mesmos. Em grande parte, foram os professores de História que trouxeram
durante seus períodos de aula os alunos, por entenderem que essas oficinas eram uma possibilidade
metodológica de trabalhar o conteúdo de maneira inovadora com seus alunos.
Figuras 3 e 4 – Realização de oficina de arqueologia e patrimônio

Fonte: Acervo pessoal da autora, agosto de 2019.


121

Figuras 5 e 6 – Realização das oficinas Modos de Fazer e Viver

Fonte: Acervo pessoal da autora, agosto de 2019.

Considerações finais

Este projeto apresentou um relato da experiência aplicada no município de Casca RS, sobre
a possibilidade de integração escola/museu, a partir de demandas de ambas instituições que através
da educação patrimonial puderam experimentar uma possibilidade de educação integradora. Apesar
da experiência ter se dado em um curto espaço de tempo e também em uma localidade específica,
pode servir como objeto de análise e base para outros projetos, por ter efetivamente concretizado
essa parceria e apresentado possibilidades inovadoras para o ensino de História.
122

O Brasil é um país pluricultural, formado por povos oriundos de vários lugares, por isso
possui uma enorme diversidade cultural. Diversidade essa que passada de geração a geração, vai
formando nossa identidade. (Oliveira; Soares, 2006, p. 1-2). A educação para o patrimônio tem se
mostrado cada vez mais necessária. A inserção dessa proposta nos currículos das escolas de ensino
fundamental e médio possibilita discutir, aprender, valorizar e preservar o patrimônio, levando-os
a um processo ativo do conhecimento. Apenas após estas medidas de “alfabetização cultural” é
que a comunidade passará a valorizar e preservar seu patrimônio. Mas, antes de mais nada, vamos
definir o que é patrimônio. (Oliveira; Soares, 2006, p. 6).

Referências

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pp. 50-56, set./dez. 1997.

Barreto, Euder Arrais, et. Al. Patrimônio Cultural e Educação: artigos e resultados. Gráfica Talento:
Goiânia, 2010.

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Educação: artigos e resultados. Gráfica Talento: Goiânia, 2010.

Coelho, Erica Andreza. A relação entre Museu e Escola. 2009. Relatório (Estágio Curricular do curso
de História) – UNISAL, São Paulo, 2009.

Chagas, Isabel. Aprendizagem não formal/formal das ciências. Relações entre os museus de
ciências e as escolas. Revista de Educação, vol. 3, n. 1, pp. 51-59, 1993.

De Boni, Luis Alberto; Costa, Rovílio. Os italianos no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST/UCS,
1979.

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Gelatti, Roque. Casca, ontem e hoje. Passo Fundo: Instituto Social P. Berthier, 1985.

Molar, Jonathan de Oliveira. Alteridade: Uma noção em construção. UEPG: 2008.

Molar, Jonathan Oliveira. A alteridade na educação: Uma Noção em Construção. Revista


NUPEM, v. 3, n. 5, pp. 61-72, 2011.

Oliveira, Fabiana de; Soares, André Luís Ramos. Educação Patrimonial e a Pesquisa arqueológica
do “Sítio Casa de David Canabarro” em Santana do Livramento, RS. In: Cidade Revelada –
Encontro sobre Patrimônio Cultural, Fórum Nacional de Conselhos de Patrimônio Cultural, IX,
I., 2006, Itajaí Anais... Itajaí, 2006.
123

Leal, Ana Paula da Rosa. Arqueologia, Museologia e Conservação: Documentação e


Gerenciamento da Coleção proveniente do Sítio Santa Bárbara (Pelotas-RS). Dissertação
(Mestrado) - Pelotas, 2014.

Quinet, Antonio. Os outros em Lacan. ZAHAR, 2012.

Fontes Primárias

Documentação Histórica do Museu Municipal Albino Busato.


Acervo do Museu Municipal Albino Busato.
124

Eleição presidencial do Peru em 1990 e a influência do Plano


Collor

Álisson Fontenele*

Resumo: neste texto, buscamos analisar a disputa presidencial de 1990 no Peru a partir da visão
dos periódicos brasileiros, como eles relataram e se prostraram durante a corrida presidencial. A
eleição teve como destaque, desde o início, o famoso escritor, intelectual e político liberal Mario
Vargas Llosa. As impressões que os periódicos dedicam à figura de Vargas Llosa demonstram
admiração pelo talento e pela divulgação de seus trabalhos que já eram difundidos pelo mundo.
Vargas Llosa é destacado unanimemente como o grande favorito a vencer as eleições no Peru, e
como esperado, ele vence no primeiro turno. O que não se esperava era uma queda drástica de
Vargas Llosa e a ascensão de um candidato até então desconhecido no mundo político, o
engenheiro agrônomo de ascendência japonesa, Alberto Fujimori. Ele teve um grande crescimento
durante a corrida e acabou criando um incômodo ao seu adversário Vargas Llosa, chegando ao
segundo turno e superando seu adversário nas pesquisas poucos dias antes da eleição. Fujimori
acabou se elegendo presidente do Peru com uma folgada margem de erro, em uma eleição marcada
por reviravoltas. A década de 1990 foi marcada por um pensamento que afirmava que o liberalismo
havia vencido as ditaduras, o consenso de Washington cumpriu um papel importante na
constituição de políticas neoliberais na América Latina. A partir dos periódicos, buscamos entender
a influência da política brasileira nas eleições peruanas, no que diz respeito às políticas neoliberais
do governo Collor, principalmente o desenvolvimento do plano Collor, e como se alinhou às
políticas promovidas no plano de governo de Vargas Llosa. Ao analisar a relação entre a eleição
peruana e as políticas econômicas do governo Collor, conclui-se que os periódicos, a partir da
política externa peruana, discutem a política interna nacional e o desenvolvimento do governo
Collor.

Palavras-Chave: eleição, imprensa, Peru, neoliberalismo, Plano Collor.

Introdução

Para este texto, foram usados periódicos brasileiros de 1990 que comentam a corrida
presidencial da eleição do Peru. Os periódicos analisados foram: Tribuna da Imprensa e o Jornal
do Brasil, ambos do Rio de Janeiro. A escolha desses dois jornais se deu devido à importância e
relevância no contexto nacional, além da tradição em assuntos políticos. De acordo com Tânia de
Luca (2010), a pesquisa através dos periódicos deve levar em consideração a subjetividade da fonte,
identificando o seu local de produção, as motivações ideológicas e tendenciosas do jornal, do
jornalista que escreveu o periódico etc. Os fatos contidos nos periódicos não são descritos tal como

*
Estudante de História da Universidade de Brasília.
125

aconteceram, o que não é característica própria dos periódicos, já que nenhuma fonte possui
objetividade no sentido de reconstrução verdadeiramente efetiva do passado. Outro cuidado a se
tomar é o de não recorrer à fonte periódica apenas como um receptáculo das perguntas do
pesquisador, a qual ele iria apenas confirmar suas hipóteses diante da imensa produção que os
periódicos oferecem. Por fim, as fontes devem passar pelo crivo da crítica, atividade do historiador.

A História é um processo complexo que envolve realidades variáveis de sujeitos individuais


e sujeitos coletivos. A história política é um exemplo dessa cadeia de realidades heterogêneas. Em
uma eleição, tem-se diferentes candidatos individuais com suas histórias pessoais e que se
dispuseram a viver uma vida pública e política; personagens que se dedicam à militância política e
partidária, ao mesmo tempo que se tem o público eleitor composto por milhões de pessoas
individuais, que se apresentam como um coletivo para decidir o futuro do país, por meio do direito
democrático do voto. Essas dinâmicas - muitas vezes consensuais, e em outras conflituosas -
apresentam resistências e discordâncias.

Me esforcei para analisar a corrida presidencial da eleição do Peru em 1990 a partir dos
periódicos. Em alguns momentos, a pesquisa faz uma abordagem mais enfática sobre o periódico
e a situação política do Brasil do que sobre o Peru, como no caso das críticas às propostas
neoliberais do plano de governo de Vargas Llosa em comparação ao Plano Collor em
desenvolvimento no Brasil. Nesta eleição, tem-se um famoso candidato, o escritor e político liberal
Mario Vargas Llosa, do partido Frente Democrática, que desde o princípio é indicado como o
grande favorito a ganhar as eleições e se tornar presidente do Peru. Durante esse percurso, ascendeu
um candidato até então desconhecido, o engenheiro agrônomo Alberto Fujimori, que se
candidatou pelo partido recém criado, o Cambio 90. Essa superioridade do candidato Vargas Llosa
é abalada com a inesperada e surpreendente ascensão do engenheiro descendente de japoneses,
Alberto Fujimori.

O Tempo do Neoliberalismo

A história do Peru no século XX é marcada pela instabilidade. Em 1980, o país se


encontrava em um processo de advento da democracia, assim como o povo passava pela
experiência de redemocratização, após um período de ditaduras e de governos instáveis e corruptos.
A eleição de 1990 aconteceu diante de um cenário no qual o Peru buscava se recuperar de uma
série de conflitos sociais e políticos - ascensão de grupos políticos armados e de movimentos sociais
-, e crise econômica (Degregori; Grompone, 1991). Um povo marcado pela insegurança e pela
angústia. Esse sentimento na década de 1980 não era característico somente da história do Peru,
podendo se estender a praticamente toda América Latina. Esse período é relatado por muitos
126

historiadores como a “década perdida”. A retórica era de que o liberalismo havia vencido as
ditaduras.

No período pós Segunda Guerra, destacou-se o pensamento desenvolvimentista da


Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). Com a diminuição das
importações devido às consequências da Segunda Guerra, os governos locais precisaram
desenvolver suas indústrias, essa política ficou conhecida como Industrialização por Substituição
de Importação, com destaque ao investimento da CEPAL, além do controle estatal centralizador
desse desenvolvimento. No final da década de 1950, a estratégia baseou-se na formação de um
mercado comum latino-americano de integração regional. A partir de 1965, com os regimes
militares na América Latina, a política cepalina passa para uma atitude altamente protecionista. Esse
protecionismo característico da década de 1970 terá duras consequências na década de 1980,
causando desequilíbrio econômico, principalmente por causa da dívida externa latino-americana.
As consequências foram: a alta inflação, a recessão generalizada e problemas na balança de
pagamentos. Além disso, soma-se ao desprezo pelo investimento estrangeiro que ficou conhecido
como Teoria da Dependência (Martínez Rangel; Soto Reyes, 2012).

O consenso de Washington de 1989 resultou de uma tentativa de um modelo econômico


aberto, estável e liberal. Em novembro de 1989, o Instituto Internacional de Economia realizou
uma conferência com o título Latin American Adjustment: How Much Has Happened?. Nessa
conferência, participaram economistas e representantes das organizações internacionais, em que
chegaram a um consenso sobre os instrumentos de política econômica e sobre o que os Estados
latino-americanos deveriam possuir para sair da recessão econômica. Essa foi a origem do
Consenso de Washington, o seu fundamento teórico baseava-se na economia neoclássica e no
modelo ideológico e político do neoliberalismo, entendendo a interferência do Estado na
Economia como um fator que dificultava o desenvolvimento do setor privado, essa atitude atendia
o interesse de importantes capitalistas que buscavam cada vez menos intervenção do Estado em
suas atividades. A partir de então, as prioridades da América Latina eram: alcançar a estabilidade
econômica e desmontar os elementos do modelo protecionista de desenvolvimento. Nos princípios
da década de 1990, muitos países da América Latina - incluindo o Peru - abriram seus mercados ao
comércio exterior, a isso soma-se às privatizações de empresas paraestatais (Martínez Rangel; Soto
Reyes, 2012).

O Consenso de Washington serviu como uma engrenagem que fazia com que uma reforma
levasse à outra, inevitavelmente. Assim, o Consenso serviu como forma de assegurar essas reformas
neoliberais na América Latina imposta pelos EUA por meio dos organismos internacionais com
sede em Washington. Um dos problemas fundamentais elencado por José Ocampo foi que a
127

primeira versão do Consenso de Washington se restringiu à macroeconomia, além de colocar as


políticas sociais e econômicas em situação hierárquica, às quais a última possuía posição privilegiada
na balança. De toda forma, essas políticas acabaram favorecendo as desigualdades e a má
distribuição de renda (Martínez Rangel; Soto Reyes, 2012).

O Peru era o país líder em termos de pobreza crítica em números percentuais na América
Latina, cerca de 70% da população se encontrava nessa situação (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 7).
A violência também fazia parte do cotidiano dos peruanos, com destaque aos grupos terroristas
Sendero Luminoso e Movimento Revolucionário Tupac Amaru, além da atuação do narcotráfico.
A inflação chegava a níveis inacreditáveis, 5000% ao ano. O desemprego alcançava 45% da
população.

Em 1990, ano da eleição presidencial, o Peru estava passando por um desgaste devido às
crises e ao alto personalismo do governo de Alan García, o que refletiu nas intenções de votos,
tendo o partido do governo Alianza Popular Revolucionaria Americana (APRA) uma baixa,
enquanto a direita unida Frente Democrática (FREDEMO) obteve uma considerável ascensão. O
partido de centro-esquerda, APRA, havia caído de 48% em 1985 para 19% em 1990, isso foi um
demonstrativo de que apesar de toda a capacidade de convocação do partido que levou o país à
inflação e à recessão mais séria de sua história, o povo estava cansado da política do governo
peruano. Alan García deixava a presidência com 80% de desaprovação em 1990. Os dois partidos
da esquerda estavam em baixa: Izquierda Unida (IU) e Izquierda Socialista (IS) não vinham
satisfazendo os eleitores e se encontravam em conflitos ideológicos e de representatividade. Já a
Frente Democrática demonstrava possuir tudo para vencer a eleição, eles contavam com um
programa neoliberal bem desenvolvido, um candidato com um espectro intelectual, o apoio do
empresariado e dos grupos do alto poder econômico, uma das melhores empresas de marketing
político etc. Dentro desse contexto político já bem desenhado, o candidato da Frente Democrática
aparece com boas vantagens sobre os demais, buscando a eleição ainda no primeiro turno. Diante
disso, ascendeu um candidato até então desconhecido, o engenheiro agrônomo Alberto Fujimori,
candidato do movimento independente Cambio 90. Seu eleitorado partiu do agrupamento das
camadas mais baixas da sociedade: pequenos industriais, comerciantes e microempreendedores
"informais", profissionais e pastores evangélicos. (Degregori; Grompone, 1991).

Praticamente eleito

Lo que no parecía ni por asomo era la actividad que, por capricho de la rueda de la
fortuna, monopolizaría mi vida los próximos tres años: la política. (Vargas Llosa,
1993).
128

A decisão que Vargas Llosa fala na epígrafe se deu em um contexto muito bem definido: o
anúncio do presidente Alan García sobre a nacionalização e estatização dos bancos, companhias
seguradoras e financeiras do Peru, em julho de 1987. Vargas Llosa se posicionou contrário à
estatização, foi à imprensa e verbalizou sua indignação. Com isso, e para surpresa do escritor,
funcionários de bancos e outras empresas ameaçadas saíram às ruas do Peru em pequenas
manifestações também contrárias à estatização. Nesse sentido, foi organizado o Encuentro por la
Libertad na praça San Martín com a participação popular em torno de 130 mil pessoas. O encontro
obteve grande repercussão e, apesar da aprovação no congresso, a lei de estatização acabou sendo
revogada. Com discursos inflamados, Vargas Llosa se destacou como um representante político da
direita peruana e naquela altura do campeonato, a candidatura à presidência já era uma realidade.
O movimento deu sobrevida para os partidos de oposição, Acción Popular e Partido Popular Cristiano,
e acabou resultando nas bases do que viria a ser a Frente Democrática (Llosa, 1993). Não se pode
deixar de mencionar que durante a campanha desatada por Vargas Llosa contra a estatização dos
bancos, os meio de comunicação do Peru projetaram a imagem do escritor como a de um novo
líder capaz de agrupar os partidos da oposição para as futuras eleições de 1990, como uma aliança
que enfrentaria nas urnas à APRA e à Izquierda Unida (Doria, 1996). Vargas Llosa era um liberal
convicto e decidido dos seus ideais, um peruano que não era político, mas que estava entrando no
mundo da política com um discurso esperançoso de melhorar a situação de seu país por meio de
uma ideologia de cunho neoliberal.

Nos periódicos analisados, o “escritor e intelectual”57 Vargas Llosa é constantemente


referido como o grande favorito a se eleger como novo presidente do Peru, superando com
facilidade todos seus adversários. Outras vezes, Llosa é denominado como o “já praticamente eleito
presidente do Peru” (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 10; Jornal do Brasil, 1990, p. 9). Os periódicos
relatam uma grande probabilidade do candidato da Frente Democrática se eleger ainda no primeiro
turno (Jornal do Brasil, 1990, p. 3). O jornalista Paulo Francis esperava que Llosa se elegesse com
a grande maioria dos votos (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 6).

Doria (1996) apresenta dados interessantes sobre a pesquisa de intenção de votos. Para o
autor, até março de 1990, Vargas Llosa não havia sido incomodado, o candidato que chegou mais
próximo de o incomodar foi Alfonso Barrantes da Izquierda Socialista, durante o período de janeiro
a abril de 1990. Fujimori nem sequer demonstra relevância nas intenções de voto. Nos periódicos
analisados, durante esse período não há sequer menção sobre o obscuro Fujimori.

57
Os periódicos, constantemente, destacam a divulgação internacional dos trabalhos e da pessoa de Vargas Llosa.
129

Vargas Llosa possuía uma boa assessoria para sua candidatura, alto investimento financeiro
na campanha e um plano de governo bem construído. A eleição de Vargas Llosa já era praticamente
certa de acordo com os periódicos. A discussão que se fazia à época era se seria no primeiro ou no
segundo turno. Fato é que realmente Vargas Llosa vence o primeiro turno, mas ainda não a eleição.
A disputa se estendeu para o segundo turno, agora com a grande novidade, a significativa ascensão
do engenheiro Alberto Fujimori.

O Plano Collor

Em apenas duas semanas, Alberto Fujimori obteve um crescimento significativo nas pesquisas
de intenção de votos, causando insegurança à candidatura de Llosa. (Degregori; Grompone, 1991).
Diante da mudança drástica no quadro eleitoral, naturalmente os periódicos buscam elencar
explicações. Aqui, priorizamos a tentativa de explicação a partir do desenvolvimento do Plano Collor.
O discurso antiliberalismo é um discurso que está intrínseco na América Latina, preconiza que o
liberalismo não funciona e privilegia as camadas mais altas da sociedade.

Llosa fez duas visitas ao presidente do Brasil, Fernando Collor, ainda na época da corrida
presidencial, uma em fevereiro e outra em março. Collor, eleito no final de 1989, estava em início de
mandato, organizando o seu governo, ele foi o primeiro presidente eleito pelo voto popular desde
Jânio Quadros, eleito quase três décadas antes. De acordo com os periódicos, Llosa elogiava e
concordava com o plano liberal de economia proposto pelo governo Collor “Plano Brasil Novo”, que
ficou popularmente conhecido como “Plano Collor”, além de considerá-los ideologicamente
semelhantes, especialmente a ideia de acabar com o isolamento da América Latina em relação com os
países desenvolvidos (Jornal do Brasil, 1990, p. 3), “dizem que se entenderam pelo olhar” (Jornal do
Brasil, 1990, p. 28). Segundo o periódico, o Plano Collor circulou na imprensa peruana e foi usado
contra a candidatura de Llosa por seus opositores, já que “a plataforma econômica de Vargas Llosa é
a que mais se assemelha ao de Collor de Mello”. O jornal La Republica, de centro esquerda, alegava que
“médias e pequenas empresas são as mais afetadas do Brasil” (Jornal do Brasil, 1990, p. 15). O
jornalista Mário Jakobskind apresenta essa relação entre Llosa e o Plano Collor como um dos motivos
da queda de preferência por Llosa (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 4). Ele se mostra crítico à proposta
neoliberal de Llosa, acreditando que faria com que o Peru fosse submetido a uma recessão ainda maior
do que a que já vivia. Jakobskind compara com o Brasil que, em sua visão, estava entrando em uma
recessão sem precedentes (Idem). Em outro momento, o jornalista afirma que os periódicos peruanos
relatavam diariamente, na primeira página, o andamento do Plano Collor no Brasil, e que analistas
afirmavam o perigo de tal política caso fosse aplicada no Peru (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 2). A
130

visita de Llosa a Collor coincidiu com o andamento da implantação do Plano Collor no Brasil, o plano
visava a retirada do Brasil da inflação e da recessão que o assolava, mas o plano falhou e juntamente
com outros fatores negativos levaram, posteriormente, à renúncia do presidente. Segundo a
economista Lavinia de Castro, “os planos econômicos Collor I e II não apenas fracassaram em
eliminar a inflação, como resultaram em recessão e perda de credibilidade das instituições de
poupança” (Castro, 2011, p. 132). Em outro momento, o jornalista Rodrigo Farias Lima afirma que
o “Plano Collor é a maior arma do adversário do escritor” e que Fujimori não tirava os olhos dos
acontecimentos relacionados ao Plano Collor. Para ele, o medo dos peruanos era que Vargas Llosa
assumisse e realizasse um confisco temporário em suas poupanças semelhante ao que aconteceu no
Brasil e que acabou obtendo divulgação internacional (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 2) e “após uma
série de escândalos, revelação de esquemas de corrupção e dois planos econômicos mal sucedidos,
Fernando Collor de Mello foi destituído do poder, no final de 1992” (Castro, 2011, p. 132). O jornalista
Paulo Francis relata que havia comentários que Llosa era elogioso ao programa brasileiro, mas que ele
duvidava muito disso. Segundo ele: “Llosa quer vender as estatais todas, a quem der mais, ou a quem
assuma o prejuízo”, enquanto Collor “quer privatizar goela abaixo estatais falidas com os tais
certificados de privatização” (Tribuna da Imprensa, 1990, p. 8). Nota-se no mesmo periódico que, por
um lado, Jakobskind coloca Llosa como admirador do plano político e econômico do governo Collor,
enquanto do outro lado, Paulo Francis rebate afirmando serem propostas bem divergentes, às quais
as do peruano são mais inteligentes e melhor intencionadas. Mesmo com visões diferentes, os dois
lados atribuem tons de crítica às propostas do governo Collor. Nota-se a partir disso, que a experiência
brasileira acerca dos fatos advindos do Peru e o contato de Llosa com o Collor, parece dizer mais
respeito à experiência política dos brasileiros, refletindo assim, os acontecimentos políticos do Peru
para a política nacional interna, principalmente no que tange à economia e à ideologia neoliberal.

Conclusão

O Peru de 1990 é marcado pela alta inflação, crise social, política e econômica. Desgaste com
os partidos políticos e com a política do governo García e problemas com grupos terroristas como o
Sendero Luminoso, que espalhava violência e causava insegurança ao povo peruano. Um tempo
marcado pela angústia. Diante deste texto, pode-se concluir que a eleição do Peru de 1990 foi marcada
por reviravoltas. Tem-se um candidato famoso, conhecido internacionalmente, o grande favorito a
vencer as eleições: Mario Vargas Llosa. E do outro lado, tem-se um candidato que em apenas dois
meses antes das eleições era completamente desconhecido no mundo político e que se candidatou por
um partido recém criado, o engenheiro agrônomo Alberto Fujimori. A eleição de Vargas Llosa era
tida como praticamente certa, a discussão estava mais em conjecturar se seria no primeiro ou segundo
131

turno. Porém, durante a corrida surge uma pedra no caminho de Llosa.

Fujimori teve uma grande e rápida ascensão nas pesquisas de intenção de voto. Um dos fatores
apresentados nos periódicos se encontra na proposta política neoliberal de Mario Vargas Llosa. A
resposta do público do Peru, que não é diferente de toda a América Latina, consiste no discurso
antiliberal, nesse fator notamos que essa crítica diz mais respeito aos acontecimentos políticos e
econômicos do Brasil que do Peru, já que o país se encontrava em um contexto de desenvolvimento
do plano político-econômico que ficou conhecido popularmente como “Plano Collor”. O público
eleitor de Fujimori era formado principalmente pelas classes mais baixas da sociedade peruana,
juntamente com indígenas e a população campesina e evangélica. Enquanto o público eleitor de Vargas
Llosa, era composto pela classe alta e média, e impulsionado pelo empresariado, embora tenha
conquistado setores populares de origem criolla. Fujimori acabou recebendo o apoio da APRA e dos
partidos da esquerda, enquanto Vargas Llosa foi bastante crítico durante a corrida presidencial.

Por fim, deu zebra! A eleição resultou na vitória do engenheiro agrônomo e descendente de
japoneses, Alberto Fujimori, candidato do partido recém criado Cambio 90, fundado em 1989. Tomou
posse como presidente em 28 de julho de 1990, derrotando o hoje Nobel de Literatura Mario Vargas
Llosa. Os resultados finais resultaram na larga vitória de Fujimori com 57% dos votos contra 33,5%
alcançados por Vargas Llosa. Fujimori assume o Peru em meio à grave crise política, social, econômica
e moral. A violência se tornava cada vez mais cotidiana, em especial com o grupo terrorista maoísta
Sendero Luminoso e, em menor escala, do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. O Peru deixado
por García estava em um estado verdadeiramente caótico, um grande desafio para o novato Fujimori.

Referências

Castro, L. B. de. Privatização, Abertura e Desindexação: A Primeira Metade dos anos 90. In:
Giambiagi, F. (org.). Economia Brasileira Contemporânea (1945-2010). Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

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dos vueltas. Lima: IEP, 1991.

Doria, Wilfredo José Césare. Fenômeno Fujimori: a conjuntura que construiu um presidente. A
experiência eleitoral peruana de 1990. 1996. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, 1996.

Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1990.

Llosa, Mario Vargas. El Pez en el Agua. Barcelona: Editorial Seix Barral, S. A, 1993.

Luca, Tânia Regina de. Fontes Impressas: História Dos, Nos e Por Meio Dos Periódicos. In: Pinsky,
Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010.
132

Martínez Rangel, Rubí; Soto Reyes, Garmendia Ernesto. El Consenso de Washington: la


instauración de las políticas neoliberales en América Latina. Revista Política y Cultura, n. 37, pp. 35-
64, 2012.

Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 1990.


133

O Movimento Estudantil da UnB no período da distensão política,


de 1974 a 1988

Amanda Maria Abreu de Moura

Resumo: neste artigo, buscamos analisar o Movimento Estudantil da UnB por meio de
documentos produzidos por estudantes da universidade durante o período da distensão política,
entre 1974 e 1990, ocorrida durante e após o Regime Militar no Brasil. Grande quantidade dos
documentos disponíveis estão preservados graças ao Projeto Memória do Movimento Estudantil
(PROMEMEU), desenvolvido por estudantes da UnB, de diferentes cursos, no fim dos anos 1980.
No projeto, os alunos passaram a arquivar todos os documentos e publicações, encontrados em
centros acadêmicos e outros locais, que foram produzidos por estudantes no contexto da ditadura.
Os documentos coletados estão organizados em aproximadamente 141 caixas, todas arquivadas no
Arquivo Público da UnB, sendo documentos das mais diversas naturezas, indo de arquivos
confidenciais a publicações em formato jornalístico. Serão estes últimos que abordaremos aqui.
Essa gama de informações possibilita conhecer mais o Movimento Estudantil da UnB, sua atuação
sob os anos do Regime Militar e sua contribuição para a história da Universidade de Brasília. Nossa
perspectiva de análise compreende o trabalho historiográfico mediante as seguintes etapas: reunião
dos documentos a serem trabalhados, sua análise crítica e encadeamento das ideias que o conjunto
documental disponibiliza, associando-o às bibliografias consultadas. Assim, buscaremos interpretar
as ideias e informações que circularam entre os estudantes da UnB por intermédio da linguagem
jornalística, que tem sua dinâmica própria, a qual abarca textos argumentativos, informativos e
também charges. Analisaremos as informações obtidas contrapondo-as às conjunturas do período,
a saber, Ditatura Militar, Reforma Universitária, criação da UnB e distensão política. (Samara e
Tupy, 2010).

Palavras-chave: Movimento Estudantil, Universidade, Ditadura, UnB

A Universidade de Brasília compõe hoje o quadro dentre as instituições de ensino superior


mais relevantes do país. Sua concepção e seu início se deram sob anseios por uma universidade
nova e pioneira que viesse a mudar os rumos das universidades do Brasil, inovando o ensino e a
pesquisa por meio de um carácter crítico e social. Foi feliz em concretizar tais objetivos, mas não
sem grandes dificuldades considerando que em tão pouco tempo de vida já enfrentou os desafios
de viver ante uma ditadura.

Diante desses aspectos, bem como da relevância e contribuição da Universidade de Brasília


para o Brasil, buscamos compreender mais a fundo a história da instituição. Outros trabalhos já
foram feitos com o mesmo objetivo, contudo sob ângulos diferentes do qual empregamos aqui.
Para este artigo, investigamos o papel político-ideológico do Movimento Estudantil da UnB atuante
no período da distensão política, sua participação na luta pela redemocratização do país e sua
134

contribuição para a história da Universidade de Brasília. Para além das contribuições do Movimento
Estudantil à universidade, demonstramos também a atuação deste como movimento de resistência
frente aos aparatos repressivos da ditatura.

A perspectiva utilizada durante a pesquisa foi a de que os Movimentos Sociais possibilitam


a historicização de determinados processos e lutas, pois um grupo social tem origem, processo de
desenvolvimento histórico, articulações, relações sociais, demandas e projetos político-ideológicos;
além disso, suas reivindicações influenciam as decisões de caráter político, em geral, pois o alto
escalão da política necessita de legitimidade para permanecer no poder. Em outras palavras, os
Movimentos Sociais têm força ativa e essa constatação pode ser verificada na atuação política do
Movimento Estudantil da UnB durante o processo de redemocratização do país. (Gohn, 2001).

Partindo deste entendimento, de que o Movimento Estudantil se caracteriza como


movimento político e se articula diretamente com as imposições do Estado, averiguamos a
participação do movimento dos estudantes na estruturação da universidade e suas contribuições
para aquele espaço, buscando abordar também os impactos do Regime Militar nessa instituição.
Aqui, almejamos evidenciar as principais demandas dos estudantes do período estudado, contudo,
até este momento, estamos longe de esgotar a pesquisa, pois a documentação da qual dispomos
ainda segue em análise.

Para a análise documental, utilizamos os documentos obtidos no Arquivo Público da UnB,


na Hemeroteca Digital Brasileira e no Arquivo Nacional. No que se refere aos dois últimos, os
documentos encontram-se catalogados e digitalizados, com acesso on-line. No caso dos
documentos localizados no arquivo da UnB, os quais ainda não se encontram digitalizados, a
pesquisa foi presencial. É importante ressaltar que, até o momento de elaboração deste artigo, as
caixas onde se encontram os documentos não estão devidamente catalogadas, pois ainda precisam
passar pelo processo de arquivística. A análise dos documentos foi realizada com base nas
colocações dos estudantes em suas publicações e no contraste destas com outras colocações em
documentações do período, como leis, publicações oficiais e imprensa tradicional.

Por fim, é importante ressaltar que, haja a vista a grande quantidade de documentação
disponível coletada pelo projeto PROMEMEU, selecionamos somente as publicações estudantis
que seguiam o modelo de periódicos, ainda que alguns exemplares só tenham sido publicados uma
única vez.

A politização social vivida pela sociedade brasileira na década de 1960


135

A década de 1960 do século XX abrangeu agitações sociais de diferentes categorias e em


diversas localidades do mundo, configurando-se como ápice de movimentos contestadores das
ordens políticas, econômicas e sociais vigentes. No Brasil, grupos reformistas ganharam vida e, em
conjunto com a esfera cultural, influenciada pelos movimentos da contracultura, fomentaram o
quadro de politização da sociedade brasileira. Nesse aspecto, movimentos culturais como o Centro
Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), o Movimento de Cultura
Popular do Recife, as mobilizações em torno da educação, como as campanhas por alfabetização
de Paulo Freire, e a criação do Movimento de Educação de Base, apoiado pela Igreja Católica,
ganharam espaço na sociedade brasileira. (Napolitano, 2019; Ridente, 2008).

Particularmente quanto à politização do meio estudantil, destaca-se a criação de


universidades públicas, após os anos 30, por meio da junção de institutos isolados de ensino
superior e o vínculo de estudantes aos valores da Igreja Católica, no âmbito das convicções que
colocavam o ser humano e os problemas das comunidades como foco das ações sociais,
propiciando, dessa forma, perspectivas políticas sobre os problemas da sociedade. Somando-se a
esses aspectos, a politização estudantil experimentou grande influência da crescente classe operária
urbana, fruto do processo acelerado de urbanização e industrialização, e das ligas e dos sindicatos
camponeses, os quais retornaram ao cenário político em meados dos anos 1950. (Martins Filho,
2007).

Martins Filho sintetiza a conjuntura de aumento da politização estudantil, na década de


1960, segundo dois aspectos: “a abertura da universidade aos setores médios da sociedade; [e] [...]
o surgimento de uma corrente política que serviu como canal de introdução de setores importantes
dos estudantes, tanto secundários como universitários, no campo da política”. (Martins Filho, 2007,
p. 186-187).

Criação da Universidade de Brasília

A legislação que deu início à Universidade de Brasília foi a Lei nº 3.998, de 15 de dezembro
de 1961, a qual autorizou o Poder Executivo a criar a Fundação Universidade de Brasília. Entre as
personalidades à frente do projeto, o destaque à figura de Darcy Ribeiro fez-se necessário, na
medida em que muitas conquistas foram resultado de sua determinação.

Após a fundação da universidade, em 1962, o antropólogo publicou um texto, patrocinado


pelo Ministério da Educação e Cultura, com percepções sobre o projeto de lei e o novo modelo de
organização universitária. As concepções e perspectivas que fundamentaram o início da UnB foram
136

refletidas no discurso do antropólogo e de outros educadores que opinaram na obra. São elas:
comunicação entre os saberes; articulação entre pesquisa, ensino e tecnologia; adaptabilidade de
currículos e flexibilidade de cursos oferecidos; e renovação da estrutura universitária. (Ribeiro,
2012; Salmeron, 2007).

Nas outras universidades do país, a estrutura organizacional ainda era resultado da última
reforma do ensino superior brasileiro, sob a gestão do Ministro da Educação, Francisco Campos,
na década de 1930. Trinta anos depois, os efeitos decorrentes da reforma Campos não
correspondiam mais às demandas do país, resultando em um ambiente de tensão que exigia
mudanças. O debate de ideias a respeito da necessária reforma circulou nos meios acadêmicos e
políticos da década de 1960.

Uma das questões mais discutidas foi a organização universitária alicerçada em cátedras,
que consistia em professores de prestígio a comandar determinadas áreas do saber, estabelecendo
os programas de ensino e escolhendo pessoalmente seus assistentes, professores e pesquisadores.
Esse quadro conferia à pesquisa científica um caráter personalista, o que comprometia a produção
de conhecimento e a circulação de ideias. (Motta, 2014).

Outras questões também entraram em debate, como a estruturação das universidades por
intermédio da junção de faculdades autônomas, a distribuição orçamentária desvinculada entre as
faculdades de uma mesma universidade e a questão da falta de vagas para atender à crescente
demanda de estudantes. Isso posto, os debates para encontrar as soluções divergiam no período,
ocorrendo disputas entre esquerdas e liberais, com parcelas do primeiro grupo favoráveis a uma
universidade crítica e popular, voltada para pensar as questões sociais do país. (Motta, 2014).

Nesse ambiente de discussões políticas, Darcy Ribeiro, em sua análise sobre a tradição
universitária no país, afirmou que, na verdade, esta não existia. Para o intelectual, o modelo de
constituição das carreiras docentes em cátedra inviabilizava, em muitos momentos, a pesquisa
científica, o que impedia o avanço dela. Por isso, definiu a imprescindível reforma nas seguintes
palavras: “Nas condições presentes, só uma universidade nova, inteiramente planificada, poderá
estruturar-se em bases mais flexíveis e abrir perspectivas de pronta renovação de nosso ensino
superior”. (Ribeiro, 2012, p. 15).

Sob tais aspirações, a UnB foi projetada e fundamentada em um modelo de sistema duplo
e integrado, com institutos especializados em cursos de formação comum, aos quais os alunos
dedicar-se-iam no início da graduação e, após o tempo estabelecido, prosseguiriam para as
faculdades específicas de formação de carreiras profissionais ou como pesquisadores. Essa nova
estrutura viria a possibilitar melhor alocação de recursos, proporcionar aos estudantes maior
137

flexibilidade em sua escolha profissional e viabilizar uma integração mais completa entre os
diferentes setores do saber. (Ribeiro, 2012).

Assim, a moderna Universidade de Brasília iniciou suas atividades em 9 de abril de 1962.


Contudo, as estruturas físicas da universidade ainda não estavam prontas, devendo-se o início das
aulas a Anísio Teixeira, que intermediou o empréstimo de salas pelo Ministério da Educação e
Cultura.

A Universidade de Brasília teve o papel de pioneira ao se tornar o modelo de


implementação para o novo sistema de organização universitária, o que se processou sob o
contexto das reformas de base, ainda no governo Goulart, junto ao aumento do número de vagas
universitárias em todo o Brasil, que passou de cerca de 100 mil, em 1961, para 140 mil, em 1964.
Esse aumento certamente contribuiu para as expressivas articulações estudantis durante as
negociações relacionadas à Reforma Universitária, já no período ditatorial. (SALMERON, 2007).

A inserção dos estudantes brasilienses no debate político nacional

A alvorada das atividades estudantis em Brasília desenrolou-se ainda no ambiente


secundarista, por meio do Centro Integrado do Ensino Médio (CIEM). Esse foi um projeto de
experiência educacional ligado à UnB durante os anos iniciais da universidade, com diversos de
seus estudantes secundaristas integrando o quadro discente da Universidade de Brasília
posteriormente. Esses estudantes, ainda como secundaristas, protagonizaram eventos de atuação
política dentro e fora do CIEM. Honestino Guimarães, por exemplo, seguiu essa trajetória.
(CATMV – UnB, 2015; Salmeron, 2007).

O CIEM surgiu por iniciativa de Darcy Ribeiro e foi desenvolvido pelo professor José
Aloísio Aragão. A instituição foi moldada para inovar a educação básica e vinculá-la a projetos da
universidade. Assim, almejando a integração ao ensino superior, o colégio desenvolveu concepções
de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, vindo a ser um importante instrumento de exercício
da democracia. A experiência fundamentou as demandas de outro futuro estudante da
Universidade de Brasília, Aylê-Salassié Quintão, o qual concebeu um jornal para divulgação de
ideias tanto no âmbito do CIEM quanto da universidade. (CATMV – UnB, 2015).

Desse modo, o contato dos secundaristas com um contexto de práticas políticas, como
votações em grêmios, convocações para assembleias gerais, debates estudantis, entre outros,
fundamentaram as concepções dos primeiros estudantes da UnB e, consequentemente, dos
primeiros componentes do Movimento Estudantil dela. Essa vanguarda estudantil formou-se
138

diante de grande expectativa por uma educação de valores específicos, como igualdade,
pensamento crítico e liberdade. Entretanto, diante do golpe de 1964, defrontaram-se com uma
hostilidade a esses mesmos valores, muitas vezes, considerados subversivos, de esquerda ou
comunistas, o que para o novo regime significavam concepções a serem combatidas. (CATMV -
UnB, 2015).

A atuação política dos estudantes da UnB pode ser verificada na experiência de Brasília,
que teve como organização estudantil dominante o grupo de esquerda cristã Ação Popular (AP),
criado em 1962, tendo entre seus representantes os estudantes Honestino Guimarães, Luís
Travassos e Catarina Melloni. No período ditatorial, o grupo obteve grande destaque de
contestação política, tendo como líder, em 1967, o também presidente da UNE, a saber, Aldo
Arantes58.

A Reforma Universitária implantada pelo Regime Militar, em 1967

Quanto à reforma, as primeiras legislações a regularem o processo foram o Decreto-Lei nº


53, de 18 de novembro de 1966, e o Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 1967. Os dispositivos
instituíram mudanças importantes como a organização da universidade em departamentos,
cabendo a esses a organização do trabalho e sua divisão entre os docentes, e a estruturação das
universidades de modo a serem institutos com funções simultâneas de ensino e pesquisa. A função
da cátedra não foi extinta no texto, mas conforme as medidas que a lei impôs, os catedráticos
perderam prerrogativas, o que incluiu a cessão de muitas de suas funções para os departamentos.
(Motta, 2014).

Entre as discussões sobre a reforma, sua real necessidade e qual caminho adotar, não havia
consenso entre os diferentes interessados. Agravando essa situação, a atmosfera para discussão
democrática estava abafada. Como resultado, houve a imposição da reforma pelos militares. Nesse
sentido, o governo coordenou as discussões com a área econômica e asseverou a necessidade da
reforma, argumentando que esta implicaria no crescimento do país. No fim de 1968, a legislação
final da reforma foi aprovada, tendo sido elaborada pela Comissão Meira Mattos, criada em
dezembro de 1967, e pelo Grupo de Trabalho da Reforma Universitária (GTRU), criado em julho
de 1968. (Motta, 2014).

Determinadas áreas do governo militar compreendiam as universidades enquanto


instrumentos para o alcance de metas de desenvolvimento no país, como a diminuição das

58
Aldo Arantes foi líder da UNE, entre os anos 1961 e 1962.
139

desigualdades e dos problemas sociais. Essa perspectiva pode ser assimilada como um dos
principais motivos para a empreitada assumida pelos militares com relação à reforma, mas não foi
o único. Entre eles, havia o entendimento das universidades como ambientes sensíveis para a
segurança nacional, pois eram concebidas como locais vulneráveis à circulação de ideologias vistas
como perigosas, a título de exemplo, os ideais marxistas e outras perspectivas contrárias à ditadura.
Nessa lógica, a reforma do ensino superior tornou-se imprescindível. (Motta, 2014).

Outro setor a contribuir para o andamento da reforma foi o dos técnicos da área
econômica, os quais encaminharam estudos estratégicos para a área da educação. Além disso, as
fontes principais de investimento na área da educação precisavam passar primeiro pelo crivo desses
especialistas, como era no caso dos técnicos ligados à Secretaria de Planejamento (Seplan). A
concretude da influência de técnicos econômicos na Reforma Universitária se deu na atuação de
João Paulo dos Reis Velloso59 e do ministro dos Transportes, Mario Andreazza, ao sugerirem a
criação do GTRU. (Motta, 2014).

O resultado do GTRU foi a efetivação da Reforma Universitária por meio da Lei nº 5.540,
de 28 de novembro de 1968. O grupo foi constituído por professores envolvidos com as questões
relacionadas à reforma e técnicos da área econômica, como Velloso. Os técnicos foram
fundamentais para a concretude do empreendimento, na medida em que a presença destes no
GTRU garantiu os recursos públicos necessários, principalmente os fornecidos pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento (FNDE), o qual custeou a mudança no regime de trabalho dos
professores. Outro aspecto que contribuiu para o andamento da reforma foi o fato de os
professores componentes do GTRU levarem o debate aos meios universitários, favorecendo sua
aceitação nesse ambiente. (Motta, 2014).

Assim, as mudanças provocadas pela Lei nº 5.540 foram a extinção das cátedras, a
organização das universidades por meio de departamentos e a formação de institutos de pesquisa
com base nas faculdades já existentes. Com a lei, verificou-se também a ampliação da competência
dos reitores, que passaram a ter mais verba e mais controle sobre os diretores, que outrora tinham
mais autonomia.

Para a nomeação de reitor, adotou-se o uso de lista sêxtupla – anteriormente era utilizada a
lista tríplice –, característica esta que aumentou as chances de nomeações alinhadas ao governo.
Outra implementação realizou-se na organização dos cursos em ciclos bases para a formação inicial
dos alunos e posterior formação profissional durante os anos finais da graduação. (Motta, 2014).

59
Velloso foi secretário-geral do Ministério do Planejamento em 1968 e Ministro do Planejamento entre os anos
1969 e 1979.
140

Em síntese, a reforma concretizou-se durante o regime militar, todavia, com uma junção
de vertentes, envolvendo partes estruturais de seu conteúdo pensadas e elaboradas, em anos
anteriores, por aqueles considerados inimigos políticos do governo, como Darcy Ribeiro e outros
importantes nomes, muitos deles participantes do projeto de elaboração da Universidade de
Brasília.60 Assim, sua aplicabilidade realizou-se por meio de fatores ambíguos, como imposição à
força e modernização. Quanto à força política estudantil e sua participação no processo da reforma,
apesar de barrada nos momentos de discussões formais, foi sentida na prática pelas manifestações.
(Motta, 2014; Salmeron, 2007).

Movimentos Sociais no Brasil e o período da distensão política

A importância do tema da redemocratização no Brasil está em evitarmos seu esquecimento


e seu uso como arma política, condição perigosa para a democracia. Nesse sentido, compactuamos
com a seguinte perspectiva:

[...] dever-se-á assegurar a multiplicidade dos lugares de fala, dos diversos atores
qualificados como enunciadores de uma memória dos chamados anos de
chumbo; [...] devemos ter claro que boa parte do que nos próximos anos será
denominado de história terá agora a delimitação de sua legitimidade como objeto
histórico, o que nos exige, por fim – como historiadores –, [...] um claro
engajamento em direção à salvação de acervos, depoimentos, arquivos e lugares
de memória – atingidos claramente como alvos a serem destruídos em nome da
unidade nacional. (Silva, 2007, p. 246).

Entre os anos 1970 e 1980, ocorreu o findar de diferentes ditaduras que dominavam a
América Latina. Os países passavam por processos de redemocratização, cada qual com suas
especificidades. No Brasil, podemos evidenciar algumas características como: crítica ao
bipartidarismo; crises econômicas externas, com impactos internos; aumento da liberdade de
expressão e denúncias das repressões que as oposições sofriam. Com relação à repressão, podemos
citar os universitários e as universidades como foco de atenção da polícia política do regime militar.
Essa repressão foi mais ferrenha na década de 60 e no início da década de 70, porém, continuou
sistemática em anos posteriores, mesmo sob o período de distensão. (Silva, 2007).

Alguns eventos são importantes para compreendermos a conjuntura em que se deu a


redemocratização do Brasil, são eles: a política externa estadunidense sob a gestão Carter; as crises
econômicas internacionais oriundas dos bloqueios petrolíferos, ocorridos em 1973 e, com maior
impacto, após a guerra Irã-Iraque, a partir de 1980; e a crise do milagre econômico brasileiro, a

60
Pedro Calmon, João Christovão Cardoso, Anísio Teixeira, Ernesto Luís de Oliveira Júnior e Almir de Castro.
141

partir de 1980. Contudo, é importante ressaltar que a crise econômica não foi a motivação inicial
para o processo de abertura e, sim, o que regulou seu ritmo. (Silva, 2007).

Existia um projeto de abertura envolvendo Geisel-Golbery e outras figuras da tradição


política castelista, os quais estavam interessados em uma reconstitucionalização do país. A esse
projeto foi somada a conjuntura internacional de pressão norte-americana e a crise econômica, o
que contribuiu para agilizar o processo de abertura política. A força política emedebista também
impulsionou o processo de abertura. Contudo: “Tal quadro [...] não encerra toda dimensão múltipla
e fluida do processo político de abertura”. (Silva, 2007, p. 255).

A sociedade civil teve papel fundamental para o enfraquecimento político do regime militar
ao exercer oposição ferrenha por meio dos sindicatos, da Igreja, da imprensa e das universidades.
Na perspectiva de Geisel, a abertura deveria ser lenta devido às acomodações e aceitações dos
oficiais da linha dura e gradual para evitar a necessidade de volta ao regime. O transcurso para a
democracia deveria culminar com um sucessor que fosse seguro, segundo as interpretações
militares. Estes queriam evitar que o processo fosse direcionado por forças políticas da sociedade.
Nesse sentido, podemos afirmar que a constituinte de 1988 foi uma vitória democrática, com
diferentes grupos atuando em sua composição. (Silva, 2007).

Assim, o regime militar não foi capaz de estabelecer uma narrativa que o permitisse sair do
poder de forma honrosa. A ditadura acabou com as ruas cada vez mais ocupadas em manifestações
de oposição. A política econômica do regime militar e a grande repressão dispensada aos opositores
do governo nos períodos mais duros resultaram, respectivamente, em grande inflação e intensa
insatisfação da sociedade. A força política da sociedade civil passou a ser percebida e a potência de
suas ações políticas influíram nos rumos da redemocratização do país.

A partir de 1983, mobilizações populares em torno da pauta por eleições diretas para
presidente e demais cargos governamentais, começaram a se formar e foram batizadas como Diretas
já!. Em 1984, o movimento ganhou grande expressão e o clima de otimismo tomou conta dos
brasileiros. Houve manifestações em Brasília mesmo diante do decreto publicado em abril pelo
presidente Figueiredo, que determinava medidas de emergência para impedir movimentações no
Distrito Federal e em Goiás que fossem consideradas como perturbação da ordem pública. Ao fim
da abertura política, em 1988, o processo foi finalizado com a constituinte elaborada por deputados
e senadores eleitos por meio do voto popular. (Rodrigues, 1994; Silva, 2007).

Desse modo, as manifestações populares experimentaram um novo sentido na época da


distensão. Durante o período mais duro da ditadura, predominava o foco na resistência política.
Conforme o regime foi afrouxando, a repressão e a abertura política se ampliando, muitos dos
142

movimentos passaram a ser institucionalizados, alguns com orientação partidária, outros como
associações importantes no dia a dia da democracia. Como exemplo, é possível observar os
trabalhadores e operários com maior espaço para articulação política. (Rodrigues, 1994).

A agenda do Movimento Estudantil da UnB durante a distensão política e a luta pela


redemocratização do país, de 1974 a 1988

Abrir o regime significava programar o afrouxamento gradual das típicas amarras tecidas
pelos regimes ditatoriais: a centralização férrea do poder, a supressão de direitos legais, a repressão
por proibições ou pela violência física, a censura, a espionagem e outros.

Ao anunciar a liberalização do regime, o presidente Geisel acenava com o planejamento


governamental para o retorno à democracia, deixando claro que tudo se daria de forma “lenta,
gradual e segura”, ou seja, de forma bem controlada pelo governo militar. Ao anunciar que a
distensão se daria de “forma segura”, Geisel quis sinalizar pontualmente que seria “sob controle”,
ou seja, soltando e retendo as amarras, conforme decorresse o processo. Concomitante a esse
afrouxamento, a sociedade iria gradualmente retomando espaços e reclamando direitos.

Isso significou a passagem a um momento de tensão com características bem específicas,


ou seja, seria permitido à sociedade fazer algumas reclamações ou denúncias, mas não todas, nem
qualquer denúncia. Quanto de direitos suspensos poderiam ser demandados? Quais as formas
"seguras" ou "permitidas" de se pressionar pelo retorno dos direitos? Qual dose de pressão poderia
se aplicar quanto à velocidade do processo? Até quanto se poderia esticar a corda?

Assim, as ações governamentais para a distensão implicaram não só na gradação da


liberalização de medidas repressivas, como também em avanços e recuos, explicitando-se como
um processo repleto de ambiguidades. Por exemplo, se, na distensão pós-1974, houve o
enquadramento de militares da chamada "linha dura" e o abandono da orientação anticomunista
na política externa da Guerra Fria, por outro lado, o Congresso Nacional foi fechado em abril de
1977, foram assassinados dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o jornalista Vladimir
Herzog (1975). (Fico, 2003).

Esse processo ambíguo também marcou o meio estudantil universitário. Com a publicação
da Lei n. 6.680, de 16 de agosto de 197961, ficaram revogados leis e decretos da década de 1960 que

61
Art. 5º Ficam revogados os artigos 38 e 39 da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, o Decreto-lei nº 228, de 28
de fevereiro de 1967, e o Decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969.
143

limitavam as ações estudantis no Diretório Central dos Estudantes (DCE), instituições que, antes
do golpe militar, haviam se consolidado como espaço político de defesa de melhores condições de
ensino, aumento do número de vagas, subsídio a alunos carentes e, também, projetos sociais e de
desenvolvimento nacional. A publicação de jornais voltados aos discentes era uma das principais
ações desses diretórios, pois difundiam-se à comunidade os pontos priorizados para o debate
político, as estratégias para recuperação de direitos e para novas demandas, e, principalmente,
conscientizavam-se e mobilizavam-se os estudantes sobre diferentes pautas.

Contudo, no caso da Universidade de Brasília, a manutenção de publicações estudantis, no


findar da década 1970, era difícil em decorrência da ainda censura imposta pelo regime e da escassez
de recursos e espaços para a produção de conteúdo de natureza jornalística, como evidenciado no
trecho a seguir por um jornal publicado na UnB, provavelmente em 1979, que se autodeclarou o
primeiro jornal do Diretório Universitário:

O Diretório Universitário, então, iniciava suas atividades depois de vários anos


sem uma entidade centralizadora, exatamente com uma Assembléia. E iniciava
nas condições materiais mais precárias. Sem dinheiro, sem material de divulgação,
mas com a opinião pública compreendendo a nossa luta e com a centralização
do Diretório, conseguimos manter o boicote diário [boicote ao restaurante
universitário] por mais de duas semanas. A reitoria se manteve blindada,
irredutível com ameaças constantes à diretoria do Diretório. Nos mantivemos
firmes mesmo depois da violência sofrida por 38 colegas nossos que foram
presos quando faziam um pedágio na L-2 norte. Nos mantivemos firmes, mesmo
quando a polícia circulava dentro do campus pedindo identificação aos
estudantes. Nos mantivemos firmes e, nos manteremos firmes, porque a nossa
luta é justa. (Jornal do Diretório Universitário. Arquivo da UnB, Caixa
PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D).

Quanto à censura, um documento da Divisão de Segurança e Informações (DSI), do


Ministério da Educação e Cultura, de 10 de maio de 1976, deixa evidente que, mesmo após dois
anos de anunciada a distensão, a censura quanto às publicações estudantis continuava firme:

Já em fevereiro de 1973, o Sr. Ministro da Educação expediu aos Srs. Reitores de


Universidades uma Informação Circular Confidencial, recomendando o
disciplinamento das publicações estudantis, com matérias “consideradas
subversivas pelas autoridades universitárias”, “a fim de prevenir a ocorrência de
punições com base no Decreto-lei nº 477/6962”. É que o intercâmbio dessas

62
Art. 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino
público ou particular que: I - Alicie ou incite à deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralisação de
atividade escolar ou participe nesse movimento;
II - Atente contra pessoas ou bens tanto em prédio ou instalações, de qualquer natureza, dentro de estabelecimentos
de ensino, como fora dêle;
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não
autorizados, ou dêle participe;
IV - Conduza ou realize, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza;
144

publicações constituía-se (como ainda se constitui) num dos importantes fatores


de reorganização do ME. (Ministério da Educação e Cultura. Divisão de
Segurança e Informações. Informação nº 040/SICI/1/DSI/MEC/76).

Apesar das dificuldades, os estudantes da UnB perseveraram e mantiveram as publicações


estudantis, o que nos permite, hoje, observar suas demandas. Uma das abordagens recorrentes
tratava sobre o ensino superior pago. No mesmo jornal já mencionado, em tópico intitulado “A
implantação do Ensino Superior Pago, Bandejão: o que será? À Flor da Fome”, os estudantes
apontavam que privatização do ensino superior retiraria da universidade, situada em um país
subdesenvolvido, seu caráter social. No mesmo tópico, afirmavam que a diminuição de recursos
para universidade por parte do governo fazia os preços dos serviços oferecidos aos estudantes
aumentarem. Os pesos dessas medidas recaiam, portanto, sobre os estudantes, sendo esta condição
mais uma forma de elitização do ensino.

Tema também recorrente nas publicações estudantis versava sobre o jubilamento. No


jornal em questão, os regimentos e leis que regulavam o jubilamento eram mencionados e
contestados pelo caráter autoritário e elitista, pois prejudicavam especialmente os estudantes que
precisavam trabalhar e estudar. A gravidade da questão com relação à quantidade de jubilados é
apontada na mudança do modo de divulgação dos jubilados: antes, divulgados em uma lista aberta
para o público, passando à informação privada ao estudante de sua situação. Segundo o jornal, tal
estratégia visava impedir que o caso fosse muito comentado, o que implicaria mobilização
estudantil.

O jornal do Diretório Universitário utilizou uma série de recursos, inclusive artísticos, para
explorar as questões abordadas, como a charge, Figura 1, na qual a UnB é representada por um
enorme macaco em postura autoritária que expulsa alguns estudantes enquanto outros observam
tristes e apreensivos. Pousado no ombro do macaco, aparece um passarinho com a mesma postura
autoritária. As referências ficam claras quando associadas às figuras do poder no período, como o
reitor da UnB, entre os anos de 1976 e 1985, José Carlos de Almeida Azevedo e o Ministro da
Educação, entre os anos de 1969 e 1974, Jarbas Passarinho.
145

Figura 1 - Jornal do Diretório Estudantil

Fonte: Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

Com relação aos jornais estudantis publicados na década de 1980, o assunto que mais se
destaca é o retorno à democracia e às reclamações pela incompetência da gestão militar na área
econômica. As críticas são mais audazes e com indicação de nomes das autoridades a que se atribui
a má gestão.

No jornal da chapa Todos Juntos..., publicado em 1982, um texto sobre economia é


acompanhado pelos dizeres: “Construir um Brasil democrático! Pôr fim à repressão!”, e, pela
charge, Figura 2. Nesta, uma pessoa está com o corpo coberto por um barril, pois suas roupas são
retiradas por um homem de terno e entregues a outro que tem em seu chapéu a sigla do Fundo
Monetário Internacional (FMI).

Figura 2 - Jornal da chapa Todos Juntos....

Fonte: Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

O jornal criticava as perspectivas do governo, representadas nas figuras dos ministros


Delfim Netto, Ernane Galvêas e Carlos Langoni, ao afirmar que estes direcionavam as políticas
econômicas sob a ótica de um capital monopolista internacional. Segundo o jornal, as
146

consequências da ida ao FMI foram um arrocho salarial, que pesava sobre os trabalhadores, e cortes
nas verbas, que prejudicavam as áreas de interesse social.

O jornal da chapa Todos Juntos..., que concorria nas eleições para o DCE, colocava, como
um dos principais problemas da Universidade de Brasília, a falta de democracia. Como solução,
apresentavam caminhos para a política institucional do diretório, afirmando que o DCE deveria
aproximar-se dos Centros Acadêmicos e estreitar as relações com a Associação dos Docentes da
Universidade de Brasília (ADUnB).

O mesmo jornal abordou também a importância política das eleições de 1982 que
possibilitaram a manifestação de repúdio ao Regime Militar por diferentes setores populares. No
que se refere a eleições, afirmavam que os partidos do governo perdiam eleições desde 1974.
Argumentavam sobre a crise econômica e responsabilizavam o regime de 1964 como cúmplice
dela. Ao propor os caminhos para lidar com a crise, enfatizavam a necessidade de um governo
democrático.

O que o povo percebeu e manifestou em 82 foi que existe um outro caminho


para a superação desta situação, que passa pela constituição de um governo
democrático, com bases sociais amplas o suficiente para obrigarem os grandes
monopólios internacionais a arcar com a maior parte dos efeitos da crise. (Jornal
da chapa Todos Juntos.... Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1
S/D).

Com anseios democráticos, afirmavam que a:

Construção da CUT [Central única dos trabalhadores], a legalização da UNE, a


legalização de todos os partidos políticos, a luta por uma constituinte livre e
soberana, o fim da Lei de Segurança Nacional e da Lei de Greve e o aumento das
prerrogativas do congresso são os caminhos para consolidar a democracia.
(Jornal da chapa Todos Juntos.... Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa
2.3.1 S/D).

Continuando no jornal Todos Juntos..., sob o título “Todos juntos também na UNE”, os
estudantes discorriam sobre as perspectivas de apoio e união para que a entidade fosse legalizada.
Afirmavam como essencial o papel de apoio do DCE, compreendendo que as representações
estudantis de grande alcance deveriam apoiar a causa.

Não se pode mais admitir que o processo de democratização transcorra sem a


legalidade dessa entidade que é democrática e que historicamente sempre
representou os mais legítimos interesses nacionais e dos estudantes. (Jornal da
chapa Todos Juntos.... Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1
S/D).
147

Já o jornal Manifesto Viração, publicado em 1982, carrega no nome o espírito do período. O


próprio título compõe uma charge, Figura 3, em que a palavra “viração” chuta a figura de um
homem identificado como reitor, referência ao então ocupante do cargo, José Carlos de Almeida
Azevedo, a quem atribuíam uma presença autoritária que dificultava as lutas estudantis e as
tentativas de redemocratização da UnB. No editorial, ressaltavam a importância do Movimento
Estudantil como entidade da sociedade civil e destacavam o contexto em que o jornal fora criado.

Figura 3 – Jornal Manifesto Viração

Fonte: Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

O jornal também levantava críticas quanto à política econômica do governo, atribuindo as


crises e as greves que o país enfrentava à gestão militar. Defendiam que a política do regime
beneficiara os grandes monopólios nacionais e estrangeiros em detrimento das necessidades
essenciais do povo. Afirmavam, também, que a truculência do regime permanecia até aquele
momento, apesar da fachada democrática. Destacavam que a condução do país pelos militares já
havia saturado a população, afirmando que a esmagadora vitória da oposição nas eleições de 15 de
novembro de 1982 corroborava tal constatação.

Em tópico sobre o Movimento Estudantil Nacional, atribuíram a crise na educação à


redução do orçamento e da suplementação de verbas para as Universidades Federais,
responsabilizando, mais uma vez, a política econômica do regime, a qual definiam como entreguista
e dependente do capital externo. Vislumbravam, nos movimentos sociais, em especial, no
estudantil, a saída para as questões levantadas.

O Movimento Estudantil Nacional adquire, neste contexto, uma importância


fundamental na luta pela reestruturação da Universidade e pela resolução dos
problemas da Nação em geral, tendo em vista que os estudantes sempre foram
uma parcela da sociedade sensível às lutas populares e sociais, aparecendo, assim,
como parte componente das forças progressistas, juntamente com a classe
operária - vanguarda - e demais setores oprimidos da sociedade, que irão libertar
a Nação da política de dependência externa, de descaso com o povo e da
148

economia ditada pelo capitalismo monopolista e financeiro internacional. (Jornal


Manifesto Viração. Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.1.4).

Ainda sob a análise do Manifesto Viração, com relação à UNE, evidenciavam-se as


dificuldades da entidade em decorrência dos entraves postos pelo governo, por exemplo, seu não
reconhecimento, demonstrando que o estabelecimento da democracia para os universitários seguia
a passos muito lentos.

Dificuldades de estruturação vindas de seu não reconhecimento pelo Governo,


que através dos entraves impostos a toda comunidade discente universitária,
procura negar a mais de um milhão e duzentos mil universitários o usufruto das
conquistas da redemocratização do país, conseguida com grande participação
dessa parcela da sociedade. (Jornal Manifesto Viração. Arquivo da UnB, Caixa
PROMEMEU 47, Camisa 2.1.4).

As tensões entre a UNE e o governo foram evidenciadas também em jornal de grande


circulação do período, o Jornal do Brasil. Em diferentes edições, o periódico narra a escalada do
conflito envolvendo a ocupação do antigo prédio da UNE por estudantes, em 1980, que culminou
com sua demolição. (Jornal do Brasil/Ano 1980/Edição 00342(2)/página 6 e Jornal do Brasil/Ano
1980/Edição 00337(1)/página 20).

Sobre a questão da anistia, a crítica dos estudantes pôde ser percebida em um panfleto de
22 de julho de 1979, que convocava à participação de comício, para o dia 26 do mesmo mês, por
uma anistia ampla, geral e irrestrita. Para os estudantes, a proposta do governo, enviada em 28 de
junho do mesmo ano, buscava beneficiar somente os torturadores. Como forma de protesto,
fizeram greve de fome para pressionar os poderes. Entre os tópicos levantados, dois merecem
destaque.

Projeto que não garante o direito de plena liberdade de organização partidária, que
não abre as portas dos cárceres, que exclui os operários demitidos pela CLT, os
estudantes atingidos pelo 477, que exige dos opositores anistiados toda sorte de
vexames e humilhações para que possam ser readmitidos em seus cargos e funções.
[...]
Projeto que comete contra nós, presos políticos, toda sorte de aberrações jurídicas
e injustiças, nos excluindo pelo fato de termos sido condenados por leis
discriminatórias e tribunais de exceção. (Panfleto. Arquivo da UnB, Caixa
PROMEMEU 47, Camisa 2.2.2/1975, 79, 80)

Por fim, constatamos a autocrítica dos estudantes, no tocante ao Movimento Estudantil,


em nota dos representantes do Centro Acadêmico de História da UnB, sobre o Encontro Nacional
de Entidades de Base, em agosto de 1988. O argumento central do documento aponta a reflexão
crítica como meio para mudar o quadro de esvaziamento da UNE. Com respeito à perspectiva
149

democrática no ano de elaboração da nova Constituição Federal, identificamos a preocupação dos


estudantes em ampliar a participação nos processos de elaboração de projetos do Movimento
Estudantil.

Conclusão

Neste trabalho, objetivamos compreender os aspectos do Movimento Estudantil da


Universidade de Brasília sob as constatações dos próprios estudantes. Por meio das publicações
analisadas, pudemos perceber as dificuldades enfrentadas por eles em meio ao cenário autoritário
da Ditatura Militar. Por exemplo, ao contrastarmos as reivindicações em panfleto que tratava sobre
a questão da anistia com o documento da Divisão de Segurança e Informação do Ministério da
Cultura, observamos a autenticidade das colocações estudantis. O Decreto-Lei nº 477/69 havia
prejudicado muitos universitários no decorrer do Regime Militar e estes questionavam o projeto
para a Lei da Anistia a fim de que o cenário fosse revertido, e, de fato, foi o que ocorreu
posteriormente. A Lei da Anistia, Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, foi regulada pelo Decreto
nº 84.143, de 31 de outubro de 1979, que tratava em seu artigo 2062 sobre a situação dos estudantes.

Além disso, pudemos averiguar o posicionamento político dos estudantes por meio das
charges publicadas em diferentes jornais. Elas denunciavam, questionavam e repudiavam os
aspectos autoritários aos quais os estudantes estavam submetidos. Nesse sentido, a atuação do
Movimento Estudantil da UnB no período da distensão política e sua participação na luta pela
redemocratização do país ocorreram, também, por meio de jornais, os quais foram publicados em
meio a um cenário difícil, como declarado no jornal do Diretório Universitário. Os obstáculos não
vinham somente das condições materiais, mas também em decorrência da censura imposta pelo
governo sobre a imprensa estudantil.

Concluímos informando que a nossa pesquisa segue em andamento, sendo este artigo fruto
do projeto inicial para o trabalho de conclusão de curso, que será finalizado no segundo semestre
letivo de 2020. Contudo, mesmo no início do processo, já foi possível chegarmos a algumas
conclusões, sendo elas a compreensão do Movimento Estudantil da UnB, no período da distensão,
como movimento relevante em prol de uma universidade democrática e crítica, como almejaram
os idealizadores da UnB. Outra contribuição, e de grande expressão, foi o projeto PROMEMEU,

62
Art. 20. Os dirigentes dos estabelecimentos de ensino de qualquer grau promoverão, independentemente de
requerimento dos interessados, o cancelamento de quaisquer anotações referentes a punições disciplinares impostas a
estudantes no período a que alude o artigo 1º deste Decreto.
150

pois possibilitou o fazer histórico com relação aos processos e lutas dos estudantes da Universidade
de Brasília.

Fontes

Jornal do Diretório Universitário. Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

Ministério da Educação e Cultura. Divisão de Segurança e Informações. Informação nº


040/SICI/1/DSI/MEC/76.

Jornal da chapa Todos Juntos.... Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

Jornal Manifesto Viração. Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.3.1 S/D.

Jornal do Brasil/Ano 1980/Edição 00342(2)/página 6 e Jornal do Brasil/Ano 1980/Edição


00337(1)/página 20.

Panfleto. Arquivo da UnB, Caixa PROMEMEU 47, Camisa 2.2.2/1975, 79, 80

Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961.

Decreto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966.

Decreto-lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969.

Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 1967.

Decreto-Lei nº 228, de 28 de fevereiro de 1967.

Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968.

Lei nº 6.680, de 16 de agosto de 1979.

Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.

Decreto nº 84.143, de 31 de outubro de 1979.

Referências

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e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Gohn, Maria da Glória Marcondes. Movimentos sociais e educação. - 4. ed. - Coleção Questões da
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151

FREIRE, Silene de Moraes. Movimento Estudantil no Brasil: lutas passadas, desafios presentes.
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Napolitano, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto,
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Ribeiro, Darcy. (org.). Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de


educadores e cientistas e Lei nº 3.998 de 15 de dezembro de 1961. Brasília: Editora Universidade
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Ridenti, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias. In: Reis Filho, Daniel A. e Ferreira J. e Zenha, Celeste
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Rodrigues, Marly. A Década de 80: Brasil – quando a multidão voltou às praças. - 2. ed. - São
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Salmeron, Roberto Aureliano. A universidade interrompida: Brasília: 1964-1965. Brasília: Editora
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Samara, Eni M. e Tupy, Ismênia S. História, Documento e Metodologia de Pesquisa. Belo Horizonte:
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Silva, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no
Brasil, 1974-1985. In: Ferreira, Jorge; Delgado, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil
republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX.
Volume 4. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
152

Golpe de 2016 ou Impeachment? Um estudo da acusação de crime


de responsabilidade fiscal que sustentou o processo de
afastamento de Dilma Rousseff

Amarildo Mendes Lemos*

Resumo: de acordo com Fabiano dos Santos (1997), a patronagem e o poder de agenda do
parlamento brasileiro vis-à-vis à presidência da República são elementos fundamentais para
manutenção da governabilidade. A partir dessa reflexão, identificamos, na votação do PLN
05/2015, que a condenação das políticas heterodoxas ou anticíclicas adotadas pelos governos do
Partido dos Trabalhadores - PT deram sustentação à argumentação da oposição na defesa da tese
de que a presidenta cometeu crime de responsabilidade fiscal. Diante disso, o presente trabalho
tem por objetivo identificar aspectos políticos e ideológicos presentes na cobertura jornalística, na
votação do PLN 05/2015 e no parecer favorável à admissibilidade do impedimento de Dilma
Rousseff, produzido pelo senador Antônio Anastasia (PSDB-MG), o qual embasou o julgamento
da presidenta pelo plenário do Senado Federal em 31 de agosto de 2016. Partimos da hipótese de
que a ortodoxia liberal - que fundamentou o texto da Lei de Responsabilidade Fiscal e a criação do
chamado tripé macroeconômico, a partir de 1999 – se apresentava como agenda dominante no
parlamento brasileiro e, dessa forma, como elemento fundamental para explicar a derrota do PT
em 2016.

Palavras-chave: golpe parlamentar, liberalismo econômico, Lei de Responsabilidade Fiscal

Abstract: the present work aims to identify political and ideological aspects present in the opinion
favorable to the admissibility of the impediment of Dilma Rousseff, produced by Senator Antônio
Anastasia (PSDB-MG), which supported the President's judgment by the plenary of the Federal
Senate on 31 August 2016. According to Fabiano dos Santos (1997), both patronage and the power
of agenda of the Brazilian parliament vis-à-vis the presidency of the Republic are fundamental
elements in governance. Thus, it is essential to understand the political-ideological aspects present
in the relationship between the executive and legislative branches. Therefore, we seek to understand
how such aspects are reflected in the report of the aforementioned senator and how he assesses
the defense thesis summarized in the following statement “impeachment without a crime of
responsibility is a coup”. We started from the hypothesis that the accusation was based on
assumptions of liberal orthodoxy and on the criminalization of public spending present in the
norms produced after the 1999 crisis, but that it was not enough to prove the crime of
responsibility, which removes its nature from the process and evidences its purely political
character.

Keywords: Parliamentary coup, economic liberalism, Fiscal Responsibility Law

*
Mestre em História (PPGHIS-UFES), professor do campus Serra do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES),
e-mail: amarildo.lemos@ifes.edu.br.
153

Apresentação

Aqui vamos fazer algumas observações sobre o contexto histórico do final da década de
1990 e analisaremos o processo de votação do PLN 05/2015 e o parecer do senador Antônio
Anastasia (PSDB-MG), que foi relator da Comissão Especial do Impeachment no Senado Federal.
De acordo com Fabiano dos Santos (1997), a patronagem e o poder de agenda do parlamento
brasileiro vis-à-vis à presidência da República são elementos fundamentais para manutenção da
governabilidade. A partir dessa reflexão, identificamos, na votação do PLN 05/2015, que a
condenação das políticas heterodoxas ou anticíclicas adotadas pelos governos do Partido dos
Trabalhadores - PT deram sustentação à argumentação da oposição na defesa da tese de que a
presidenta cometeu crime de responsabilidade fiscal.

Diante disso, o presente trabalho tem por objetivo identificar aspectos políticos e
ideológicos presentes na cobertura jornalística, na votação do PLN 05/2015 e no parecer favorável
à admissibilidade do impedimento de Dilma Rousseff, produzido pelo senador Antônio Anastasia
(PSDB-MG), o qual embasou o julgamento da presidenta pelo plenário do Senado Federal em 31
de agosto de 2016.

A Lei de Responsabilidade Fiscal e o tripé macroeconômico: a modelagem institucional


do estado brasileiro na década de 1990 à imagem do liberalismo econômico

O início da Nova República, com a eleição para a Assembleia Nacional Constituinte em


1986 e a posse dos parlamentares determinariam o texto do ordenamento jurídico, foi marcado por
conflitos explícitos entre, de um lado, as forças populares ligadas a partidos de esquerda, sindicatos
e movimentos sociais, e de outro, por partidos de direita, sindicatos patronais, e organizações
empresariais. Naquele contexto, Ives Gandra, então consultor da FENABAN alertou empresários
e banqueiros sobre a “possibilidade de que bancos estrangeiros fossem impedidos de operar no
mercado interno e a possibilidade de redução do papel dos bancos privados nacionais” (Dreifuss,
1989, p.193). No confronto na Assembleia Nacional Constituinte - ANC com as posições
estatizantes vindas dos segmentos de representantes dos trabalhadores, surgiu a matéria que deu
origem à LRF, apresentada primeiramente no parecer de José Serra (PMDB-SP) em 1987, relator
da comissão de Tributos, Orçamentos e Finanças, presidida por Francisco Dornelles (PFL-RJ)
(Campos, 2010, p. 3).

A Lei de Responsabilidade Fiscal é parte do acordo entre governo Fernando Henrique


Cardoso - FHC e o Fundo Monetário Internacional e foi apresentada como solução à crise pela
154

qual o Brasil passava no final da década de 1990. As suas premissas centrais estavam contidas no
memorando técnico feito entre o Brasil e o FMI (Oswald, 1999), o qual traduzia o interesse do
FMI e do capital internacional em relação a três exigências que foram adotadas por FHC: 1) Meta
fiscal com produção de superávit primário, ou seja, economia com gastos primários para
pagamento de despesas financeiras; 2) Estabilidade monetária com cumprimento de metas de
inflação para garantir a remuneração dos capitais aplicados em títulos da dívida pública; 3) Câmbio
flutuante para garantir a volatilidade e a fuga de capitais de acordo atendendo exclusivamente a
ganhos privados em prejuízo do interesse público.

Naquele contexto, o governo brasileiro tentava conter depreciação cambial câmbio e, com
isso, evitar o colapso do Plano Real com a reafirmação de seus esforços para manutenção dos
“baixos índices de inflação”, para “modernizar o sistema financeiro” e para “reforçar a
independência operacional” do Banco Central. Para tanto, as discussões entre o Ministério da
Fazenda e o FMI se concentravam no programa que o governo brasileiro deveria executar, que
consistia nas chamadas reformas estruturais (reformas tributária, administrativa e da previdência
social), política social focalizada no lugar de direitos universais, aprovação da Lei de
Responsabilidade Fiscal, flexibilização do mercado de trabalho e privatizações.

Para implementar essa agenda liberal, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de


Desenvolvimento deram apoio técnico e financeiro ao governo brasileiro, que apesar de seus
esforços não consegui aprovar tudo que vinha sendo apresentado no Memorando de Política
Econômica como agenda comum do governo federal, do FMI e do Banco Mundial. Nesse
documento, apoiado pela “comunidade financeira internacional” o governo de FHC reafirmava a
intenção de intensificar e ampliar o esforço de privatização e desinvestimento público (incluindo
setores energético e financeiro), compreendidos como parte fundamental da modernização do
Estado, para que esses “setores-chave da economia” atuassem de forma eficiente.
Emergencialmente, com essas declarações, as autoridades brasileiras e a equipe do FMI esperavam
a volta gradual do fluxo de capitais ao Brasil e o fortalecimento da taxa de câmbio (Jornal do Brasil,
1999).

A previsão de impedimento do chefe do executivo federal não está prevista na LRF, o que
inclusive foi alvo de crítica pelos técnicos da comissão que atuou junto ao governo de FHC. Diante
disso,

é preciso repisar, a intervenção do Supremo Tribunal Federal não torna


automática/definitivamente o processo legítimo. Em verdade, o STF estabeleceu
as balizas constitucionais do rito do impeachment e não o juízo de tipicidade ou
de culpabilidade do crime de responsabilidade: o Tribunal não se manifestou nem
155

sobre a existência de justa causa, nem sobre o mérito do caso (a ocorrência ou


não de crime de responsabilidade), mas somente sobre questões procedimentais.
Aliás, a depender da própria atuação no caso concreto, por parte do Supremo
Tribunal Federal, o atual processo de impeachment se terá tornado ilegítimo. (...)
os fatos atribuídos à presidente Dilma Rousseff na denúncia apresentada perante
a Câmara dos Deputados são atípicos, isto é, não configuram crimes de
responsabilidade. (...) as chamadas pedaladas fiscais sequer são operações de
crédito, valendo aduzir que o TCU afirmou que são apenas assemelhadas a tais,
daí que impossível também o enquadramento no art. 11, 3, da Lei no 1.079/1950.
Inclusive, é preciso assentar que a posição contrária do TCU em emitir parecer
contrário à aprovação das contas da presidente da República se deu a partir de
uma mudança de entendimento: até um certo momento ele considerava os atos
acima elencados como atos legais e não passíveis de reprovação. Ora, um
princípio básico de coerência e integridade no ordenamento (Dworkin) é que
mudanças de entendimento devem vir acompanhadas do enfrentamento da
posição anterior, de forma que o órgão mostra que havia um entendimento, que
este estava incorreto e se apresentam razões para isso; de igual modo, coerência
e integridade exigem que o órgão não viole a segurança jurídica (traduzível
também como vedação à surpresa) gerada pela expectativa de comportamento
anterior: se agora a compreensão é outra, esta apenas deve se aplicar
ao futuro, devendo o órgão apenas “sinalizar” no sentido de que, pro futuro,
aqueles atos não seriam mais considerados válidos. (...) As instituições
republicanas precisam agir dentro da conformidade do projeto constitucional,
sob pena de vivenciarmos um “estado de exceção”. (...) a omissão do STF nesse
caso seria uma atitude que se coadunaria com a corrosão de nosso Estado
Democrático de Direito, tornando legítimo algo, desde o princípio, ilegítimo. Ou
temos um Estado Democrático de Direito, isto é, um regime no qual as decisões
são tomadas por meio do código do Direito (Habermas), ou estamos jogados a
uma espécie de estado de natureza em que vale apenas a “lei do mais forte”.
(Bahia; Silva; Oliveira, 2016, p. 32-3).

Apesar disso, no seu parecer, Antônio Anastasia (PSDB) argumenta afirmando o crime de
responsabilidade fiscal e utiliza dados parciais para sustentar a legitimidade das ações do governo
FHC e reprovar as políticas econômicas dos governos petistas. A seguir passamos a analisar alguns
aspectos da votação do PLN 05/2015 e do parecer de Antônio Anastasia.

O PLN 05/2015, a meta fiscal e o pedido de Impeachment

A expectativa de crescimento do Brasil apresentada no Boletim Focus produzido pelo


Banco Central do Brasil com base em informações contidas nos relatórios de cerca de 140
instituições financeiras reforça a expectativa de crescimento 2015, realizadas no final de 2014.
Contudo, tais expectativas positivas, reconhecidas não só pelo governo federal, mas, também por
instituições do mercado, não foram confirmadas. Assim, diante da queda das receitas, em 22 de
julho de 2015, a mensagem nº 269 propôs a alteração dos dispositivos da Lei nº 13.080, de 02 de
janeiro de 2015, com proposição de modificação da meta de superávit primário do setor público
para 2015. O comprometimento do orçamento público com despesas obrigatórias em 2015
consumiu 97% da receita líquida daquele ano, mesmo com o contingenciamento de recursos, como
156

fica evidenciado no Resultado do Tesouro Nacional publicado no último ano de governo de Michel
Temer, que mostra que a evolução das despesas obrigatórias em relação à receita líquida do governo
federal.

O Projeto de Lei nº 05 de 2015 (PLN 05/2015), datado de 22 de julho de 2015 e contido


na Mensagem no 269/2015, foi apresentado à Câmara dos Deputados em 23/07/2015, recebido
pelo Senado Federal em 03/08/2015, aprovado na Comissão Mista de Orçamento em 17/11/2015
e incluído na ordem do dia de 03/12/2015. Originalmente, o PLN 05/2015 solicitava a redução
da meta de superávit primário de R$ 55,3 bilhões (1,0% do PIB) para R$ 5,8 bilhões (0,1% do PIB),
porém, o texto aprovado não foi o texto original, mas, o substitutivo do relator Hugo Leal que
autorizou o déficit no orçamento do governo federal. Antes da aprovação, Hugo Leal ainda inseriu
durante a tramitação no plenário, além do substitutivo que já havia apresentado, um adendo com
ampliação do déficit fiscal em 10 bilhões de reais, que gerou forte reação do PSDB e do DEM
(Brasil, 2015, p. 81).

Argumentando redução das receitas provocada pela queda do preço das commodities desde
2014 e, internamente, pela crise hídrica combinada com a crise no setor de construção civil, o
governo federal anunciava a “forte incerteza sobre o cenário macroeconômico” e a deterioração
dos indicadores de confiança. A justificativa do PLN 05/2015 anunciava, assim, que o mercado
projetava uma “retração de 1,7% do PIB em 2015, elevação da taxa Selic para 14,50% e elevação
da taxa de inflação para 9,15%, conforme apontado pelo Relatório Focus de 17/07/2015”. Diante
disso,

Para garantir que essa meta fosse atingida, o Governo adotou um amplo conjunto
de medidas para reduzir despesas e para recuperar a arrecadação.
No âmbito do controle dos gastos, destacam-se: (i) aumento das taxas de juros
em diversas linhas de crédito para reduzir os subsídios pagos pelo Tesouro
Nacional; (ii) racionalização dos gastos de diversos programas de Governo, com
revisão das metas; (iii) fim do subsídio à CDE no valor de R$ 9,0 bilhões; (iv)
revisão das regras de pensão por morte e auxílio doença; e (v) revisão do seguro
defeso, do seguro desemprego e do abono salarial.
Adicionalmente, deve-se considerar o contingenciamento de gastos no valor de
R$ 69,9 bilhões. O governo reviu até mesmo as regras do Fundo de
Financiamento Estudantil (FIES), anunciando novos limites de
comprometimento, prazos e taxas de juros, de forma a assegurar a
sustentabilidade econômica do programa.
Em relação à receita, destacam-se as seguintes medidas já tomadas com o
objetivo de elevar a arrecadação: (i) IPI para automóveis, móveis, laminados e
painéis de madeira e cosméticos; (ii) PIS/Cofins sobre importação; (iii) IOF-
Crédito para pessoa física; (iv) PIS/Cofins e CIDE sobre combustíveis; (v)
PIS/Cofins sobre receitas financeiras das empresas; e (vi) correção de taxas e
preços públicos.
Além disso, foram enviadas propostas legislativas que visam ao aumento da
arrecadação: (i) o Projeto de Lei no 863, de 2015, que reverte parte da
157

desoneração da folha de pagamento e; (ii) a Medida Provisória no 675, de 21 de


maio de 2015, que aumenta a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL
cobrada das instituições financeiras de 15% para 20%63.

Já ao final do ano, quando o PLN 05/2015 foi à votação no Congresso Nacional, o quadro
econômico estava ainda mais deteriorado e a crise política se aprofundado. Com isso, o parecer do
relator do PLN 05/2015, o deputado Hugo Leal (PROS-RJ), apresenta a defesa de um substitutivo
propondo a revisão da meta fiscal de 2015. No plenário, durante o processo de votação, no dia 03
de dezembro de 2015, Hugo Leal (PROS) diz o seguinte:

(...) O que aconteceu em 2015? Realmente, foi estabelecida uma meta de superávit
e, no primeiro bimestre, de fevereiro para março, já se detectou um
enfrentamento de um ano com grandes dificuldades e se estabeleceu logo em
março o maior contingenciamento já visto nos últimos anos, de quase 70 bilhões
de reais nas despesas discricionárias. Ou seja, quando sobe alguém à tribuna para
dizer que o País, a equipe econômica e o Governo não tiveram responsabilidade,
digo que desde o início está-se demonstrando, infelizmente, uma situação
delicada do ponto de vista do País. Iniciou-se o ano — e não só o Governo, mas
também as agências de avaliação — com a perspectiva de crescimento do PIB
em 1,5%. (...) No terceiro e quarto bimestres já demonstravam as receitas uma
queda em torno de 3% a 4% ao mês, só para se ter uma ideia, Sr. Presidente. Em
se tratando só de despesas discricionárias, nós temos em torno de 200 bilhões de
reais. Já havia sido contingenciado algo em torno de 70 bilhões de reais, depois
foram contingenciados mais 10 bilhões de reais, e mais 9 bilhões de reais. Ou
seja, nós estamos falando de um contingenciamento que quase ultrapassa 90
bilhões de reais. (...) Nós estamos vendo queda nas receitas ordinárias; nós
estamos vendo retração do momento econômico. (...) E acho interessante que
hoje, discutindo, conversando, ouvindo, muitos venham aqui dizer que seria uma
grande irresponsabilidade, que o País chegou a isso por consequência de um
Governo, ou de uma Governante. Isso chega a me surpreender, como se toda a
responsabilidade fosse exclusivamente da Governante ou especificamente do
Governo. (...) Mas fatores econômicos ligados a fatores mundiais, como a queda
do preço das commodities, como a queda do preço do petróleo, que caiu pela
metade, quebraram vários Estados, a exemplo do meu Estado, o Rio de Janeiro,
onde foi criada uma situação quase de não pagamento, de inadimplência,
inclusive de servidores. Além disso, a crise hídrica que se abateu sobre o País no
final do ano passado e uma série de circunstâncias de natureza econômica e de
natureza política também influenciaram nessa questão da meta. Ao chegar aqui,
em julho, a nova meta, ainda prevendo um superávit de 0,15%, algo em torno de
8,7 bilhões de reais, avaliou-se — e aí já é responsabilidade da Comissão Mista
de Orçamento, da qual sou membro e Relator — o comportamento dos meses
de agosto e setembro para entender o que aconteceria com o mercado. (...) Não
é só uma questão do Brasil. O Brasil não está isolado nisso. (...) É isto o que nós
queremos, Presidente: aprovar a meta fiscal que é prevista, que é possível. A cada
bimestre é feita sua reavaliação. Não é uma meta que tenha que estar fechada, já
prevista. Já foi, inclusive, avaliada em outros momentos pelo próprio Tribunal de
Contas da União, que reconheceu metas fiscais modificadas até em outubro.
Lembro que, desde a sua edição, essa meta foi modificada outras vezes, inclusive
em 2001. Para quem não sabe, a meta fiscal que foi prevista na Lei de

63
Texto original, tramitação, árvore de apensados, requerimentos e outras informações podem ser consultadas nos
sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal: https://www.camara.leg.br/propostas-
legislativas/1594497#entenda-modal e https://www.congressonacional.leg.br/materias/pesquisa/-/materia/122481.
158

Responsabilidade Fiscal foi também votada em 2001 e modificada, inclusive por


medida provisória. Isso em 2001! (...) (Brasil, 2015, p. 70-1)

Mesmo com a desestabilização provocada pela Operação Lava Jato que usava os
vazamentos seletivos para a grande mídia como combustível para mobilizar a opinião pública e
garantir sucesso aos seus intentos, o governo ainda conseguiu mobilizar a base de apoio ao governo
no parlamento para garantir a aprovação da revisão meta fiscal de 2015 com déficit. Marcando
posição na defesa da ortodoxia liberal e do setor patronal, o PSDB se utilizava o argumento
simplista utilizado amplamente pela oposição, ou seja, a analogia com a dona de casa que não pode
gastar mais do que ganha. Reforçando essa linha vemos o discurso do deputado federal Samuel
Moreira (PSDB-SP).

(...) Gastar mais do que arrecada é praticamente um ato rotineiro do Governo. É


déficit em cima de déficit. (...) E aí propõe CPMF e aumento de carga tributária,
onerando ainda mais quem produz. O Governo propõe também redução de
gastos. E corta primeiro o quê? Investimento. (...) É o Custo Brasil em cima de
quem produz. (...) Não é possível achar que um governo possa gastar mais do
que arrecada. Esse é um princípio básico da administração pública! (...) Eu estou
só dizendo o seguinte: não é possível mais aceitarmos que um governo gaste mais
do que arrecada. (...) Quem produz, famílias e pessoas jurídicas, fica apenas com
60%, só uma vez e meia. Tudo é para gasto público. É gasto público o tempo
todo, espremendo quem produz (...) (Brasil, 2015, p. 84-85)

(...) Nós somos contra a votação desse Projeto de Lei do Congresso Nacional nº
5, de 2015, que altera a meta fiscal de 55,3 bilhões de reais de superávit para 120
bilhões de déficit, 300% de diferença, de alteração. É algo inacreditável! É algo
praticamente intolerável, perante uma sociedade que quer o equilíbrio das contas
públicas. Fazer déficit virou um método de Governo. É inacreditável que o
Governo tenha adotado como método o déficit! Em 2014, foram 35 bilhões de
reais de déficit. Em 2015, foram 120 bilhões de reais de déficit. E mandam um
Orçamento para 2016 com 30 bilhões e meio de reais de déficit! Déficit significa
aumentar imposto, o que nós não queremos; cortar investimento, o que gera
desemprego. O que nós estamos vivendo no País é fruto dessa inconsequência
de se gastar mais do que se arrecada. Portanto, nós vamos orientar pela obstrução
neste momento, contra a votação desse PLN (Ibidem, p. 109).

Apesar da crise política e econômica instalada, vemos que a base aliada do governo ainda
não havia sido completamente desarticulada. O PRB, um partido da direita conservadora ligado à
Igreja Universal, se mostrava naquele momento alinhado ao governo federal. Nesse sentido, o
senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), que tinha sido ministro da Pesca e Aquicultura entre 2012 e
2014, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, defendeu o déficit fiscal proposto no substitutivo
do parecer do deputado Hugo Leal (PROS). Em sua fala, o senador Crivella disse:

Sr. Presidente, o PRB tem a nítida e a clara visão de que a Presidenta Dilma e o
povo brasileiro não têm saída. Não é que gastamos muito e queremos compensar
aumentando impostos. Nós já contingenciamos 70 bilhões. A arrecadação caiu
159

muito. Há uma crise no Brasil e no mundo, Sr. Presidente. Se nós não mudarmos
a meta, vamos punir, sobretudo, o setor público. Não haverá recursos para os
programas sociais e, ao final do ano, não poderemos sequer arcar com a folha de
pagamento. (...) Não há saída, Sr. Presidente. Oposição é Oposição, e Governo
é Governo, mas a crise é nossa e, para combatê-la, nós precisamos de prudência,
e o prudente é aprovar o projeto (Brasil, 2015, p. 90).

Fora da base aliada, porém, na oposição ao esforço de criminalização do gasto público e ao


corte de gastos sociais, o PSOL também participou da base de apoio ao governo federal na votação
do substitutivo do deputado Hugo Leal (PROS). Corroborando essa posição, o deputado federal
Edmilson Rodrigues (PSOL-PA) acusou a oposição de defender solução liberal para a crise o que
garantiria o pagamento de juros para banqueiros e o corte dos gastos públicos com programas
sociais. Edmilson Rodrigues (PSOL) fez o seguinte discurso:

Sr. Presidente, o PSOL encaminha “sim” por entender que há certa hipocrisia
nos argumentos do Governo e da Oposição neoliberal. A minha assessoria acaba
de fazer um cálculo. Sem atualização monetária, de 2002 a 2015, 963 bilhões é o
que se produziu de superávit. Ou seja, sem atualização, é quase 1 trilhão de reais.
Se nós falarmos em swaps cambiais, só nos últimos 12 meses, já são 200 bilhões
de reais que o Banco Central dá de prêmio cada vez que o real desvaloriza em
relação ao dólar. Isso é uma crueldade, uma violência contra os direitos sociais,
contra o futuro digno do povo brasileiro, contra a soberania nacional. Então,
metade do Orçamento está destinada à dívida externa, e nós ficamos discutindo
se são 11, ou 30, ou 40 bilhões de reais. (...) Vamos discutir o que é principal. Por
que só superávit ou déficit primário? Por que não tocar na ferida? Aí vem aqui
um neoliberal e diz “Nós temos a PETROBRAS, temos muita coisa para
privatizar”, e a privataria grita, e o povo grita de fome e de miséria! Não são os
gastos sociais que inviabilizam o País. Por isso, vamos avançar. Votamos “sim”,
porque não é esse déficit, mas o déficit brutal do sistema da dívida que impõe ao
povo brasileiro a condição de ajoelhado diante do mundo (Brasil, 2015, p. 93).

A solução liberal para o problema da dívida pública aparecia em seu formato mais radical
com negação da Constituição de 1988, como, por exemplo, na proposta de shutdown existente nos
EUA que permite que o governo deixe de pagar os salários de uma grande parcela do funcionalismo
público diante de problemas relacionados à aprovação do orçamento público. Diante disso,
Lindbergh Farias (PT-RJ) denuncia as práticas do PSDB no governo FHC e o fundamento liberal
da crítica feita pela oposição à aprovação do substitutivo do PLN 05/2015:

A LRF foi votada no ano 2000 e, no primeiro ano, em 2001, Fernando Henrique
Cardoso mudou a meta por medida provisória. (...) Nos últimos 4 anos, de 2011
a 2014, em Minas Gerais, houve mudança de meta todos os anos. (...) O Governo
de São Paulo mudou a meta em 2012, 2013, 2015. (...) Sabem o que aconteceu,
no ano de 2014, no Paraná? Era para haver um superávit de 2,4 bilhões de reais.
Sabem o que houve? Um déficit de 1,1 bilhão. E sabem o que eles fizeram? Não
alteraram a meta em 2014, só alteraram este ano, em 2015. (...) Há 3 semanas
houve uma reunião dos economistas do PSDB no Senado Federal. Estavam lá
Armínio Fraga, Samuel Pessoa. Sabe qual é a receita deles para sair da crise?
Superávit primário superior a 3% do PIB. Disseram que o Plano Nacional de
160

Educação é uma irresponsabilidade fiscal. (...) No entanto, o que mais me


impressiona é a seletividade do discurso da questão fiscal. Eles falam só do
resultado primário, mas não falam do resultado nominal, porque não querem
falar de juros, não querem falar do sistema financeiro. (...) eles escondem que o
grande déficit do Brasil é o déficit nominal. No ano passado, o déficit nominal
foi de 6,7% do PIB e o déficit primário foi apenas de 0,6% — 6,1% foram para
pagamento de juros (...) nós estamos introduzindo algo muito perigoso no País:
esse debate sobre shutdown, o fechamento do Estado. (...) E os senhores da
Oposição parece que estão se espelhando no Partido Republicano, no Tea Party.
(...) (Brasil, 2015, p. 94-5).

A Comissão Mista de Orçamento concluiu pela rejeição das emendas e apresentação de


substitutivo. A votação do substitutivo do deputado Hugo Leal (PROS) deu vitória ao governo
federal tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal. Abaixo temos uma tabela com
as orientações das bancadas e com o cálculo das divergências e relação à orientação que os partidos
deram aos parlamentares, o que nos permite identificar o grau de indisciplina e o apoio que o
governo recebeu para aprovação da meta fiscal com déficit em cada uma das casas.

Tabela 1 - Votação da Proposição na Câmara dos Deputados:


PLN Nº5/2015 – Substitutivo da Comissão Mista de Orçamento
Partido/ Bloco orientação partido indiscipli- Orientação individual
bancada na total sim Não Obstrução
PP-PTB-PSC-PHS Sim PP 10 8 2
PSC 4 2 2
PTB 2 1 1
PR-PSD-PROS Sim PR 1 1
PROS 1 1
PMDB-PEN Sim PMDB 4 4
PT Sim
PSDB Não 2 2
PSB Não 6 6
PRB-PTN-PMN-PTC-PTdoB Sim
DEM Não
PMB Sim 1 1
PDT Sim
Solidariedade Não 1 1
PC do B Sim
PPS Não
PV Liberado
PSOL Sim
REDE Sim 1 1
Minoria Não
Governo Sim
Subtotal da Pró-governo 9
Indisciplina Contra o governo 24
Total de deputados indisciplinados 33
Fonte: Tabela elaborada pelo autor com dados do Congresso Nacional (Brasil, 2015).

Tabela 2 - Orientação por estado na votação da proposição na Câmara dos Deputados:


PLN Nº5/2015 – Substitutivo da Comissão Mista de Orçamento
161

Estado Sim (% do total Não Obstrução Deputados Deputados


por estado) na sessão por estado
Roraima 7 (87,5%) - - 7 8
Amapá 5 (62,5%) - - 5 8
Pará 14 (82,4%) - 1 15 17
Amazonas 5 (62,5%) 3 - 8 8
Rondônia 4 (50%) - 2 6 8
Acre 6 (75%) 2 - 8 8
Tocantins 6 (75%) 1 - 7 8
Maranhão 14 (77,8%) 2 - 16 18
Ceará 14 (63,3%) 5 - 19 22
Piauí 7 (70%) 2 - 9 10
Rio Grande do Norte 5 (62,5%) 2 - 7 8
Paraíba 9 (75%) 1 1 11 12
Pernambuco 11 (44%) 10 - 21 25
Alagoas 7 (77,8%) 2 - 9 9
Sergipe 6 (75%) - - 6 8
Bahia 25 (64,1%) 1 1 27 39
Minas Gerais 34 (64,2%) 9 2 45 53
Espírito Santo 5 (50%) 4 - 9 10
Rio de Janeiro 32 (69,6%) 3 2 37 46
São Paulo 32 (45,7%) 21 1 54 70
Mato Grosso 5 (62,5%) 2 - 7 8
Distrito Federal 3 (37,5%) 4 - 7 8
Goiás 5 (29,4%) 5 1 11 17
Mato Grosso do Sul 5 (62,5%) 2 - 7 8
Paraná 19 (63,3%) 7 1 27 30
Santa Catarina 10 (62,5%) 3 - 13 16
Rio Grande do Sul 19 (61,3%) 8 1 28 31
Totais 314 (61,2%) 99 (19,3%) 13 (2,5%) 426 (83%) 513 (100%)
Fonte: Tabela elaborada pelo autor com dados do Congresso Nacional (Brasil, 2015).

Os líderes partidários que garantiram apoio ao governo e orientaram o voto “sim” à


aprovação do PNL 05/2015 às suas respectivas bancadas foram: PMDB, PT, PDT, PP, PR, PSD
e PC do B. No Senado Federal, o PSB orientou o voto “sim”, diferentemente da orientação dada
na Câmara dos Deputados, que foi “não”. Subscrito pelos deputados federais Danilo Forte (PSB-
CE) e Heráclito Fortes (PSB-PI), o líder do PSB na Câmara dos Deputados, Fernando Coelho
Filho, apresentou “destaque para a supressão do Inciso II, do § 5º do Art. 2º da Lei 13.080, de
2015, constante do art. 1º do Substitutivo da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e
Fiscalização, apresentado ao PLN nº 5, de 2015” (Brasil, 2015, p. 107). Contudo, divergindo da
liderança partidária, o PSB foi o segundo maior partido com quantidade de votos divergentes em
relação à orientação de bancada, na Câmara dos Deputados, contando, dessa forma, com cinco
votos favoráveis à aprovação do PNL 05/2015 de deputados.

Enquanto que a indisciplina no PSB favoreceu o governo federal, a indisciplina dos


deputados federais do PP engrossou o coro da oposição. Já no Senado Federal, só registramos um
caso de indisciplina partidária com o voto do senador Lasier Martins (PDT-RS), sendo contrário
ao PNL 05/2015. No Senado, somente PSDB, DEM e PSC orientaram os parlamentares a
votarem contra o governo federal na alteração da meta fiscal. Favoravelmente ao governo PNL
05/2015
162

Tabela 3 – Orientação por estado na votação da proposição no Senado Federal:


PLN Nº5/2015 – Substitutivo da Comissão Mista de Orçamento
Sim Não Ausente
Roraima 3 0 -
Amapá 2 1 -
Pará 1 1 1
Amazonas 1 0 2
Rondônia 3 0 -
Acre 1 0 2
Tocantins 2 1 -
Maranhão 3 0 -
Ceará 2 1 -
Piauí 3 0 -
Rio Grande do Norte 2 1 -
Paraíba 1 1 1
Pernambuco 3 0 -
Alagoas 2 0 Abstenção - Art.51.
Renan Calheiros
Sergipe 1 1 1
Bahia 3 0 -
Minas Gerais 0 2 1
Espírito Santo 1 1 1
Rio de Janeiro 1 0 2
São Paulo 1 1 1
Mato Grosso 1 0 2
Distrito Federal 1 1 1
Goiás 2 0 1
Mato Grosso do Sul 2 0 1
Paraná 1 1 1
Santa Catarina 1 2 0
Rio Grande do Sul 2 1 0
Subtotal 46 16 18
Quorum total 63
Fonte: Tabela elaborada pelo autor com dados do Congresso Nacional (BRASIL, 2015)

O relatório de Antônio Anastasia (PSDB-MG): aspectos ideológicos e políticos do parecer

Antônio Anastasia não leva em consideração o substitutivo do PLN 05/2015, desconsidera


que houve a anuência do Congresso Nacional que com ampla maioria votou favorável ao governo
federal e, por fim, ignora também o poder que o parlamento tem de revisar a meta fiscal. Segundo
ele,

ao enviar o PLN nº 5/2015 ao Congresso Nacional, o Poder Executivo passou


a operacionalizar a política fiscal com manifesta unilateralidade, chegando ao
ponto de editar decretos que, no seu entender, teriam o condão de alterar a metas
definidas em lei, tanto para efeito de contingenciamento como para efeito de
demonstração de cumprimento da meta fiscal do 2º quadrimestre de 2015
perante o Parlamento (Brasil, 2016, p. 196).

Ora, não são os decretos que revisaram a meta, foi o próprio Congresso Nacional por meio
de um substitutivo feito por um parlamentar. Passando da argumentação jurídica e observando
aspectos propriamente políticos do parecer de Antônio Anastasia, um gráfico (imagem 1) que é
163

“elaboração própria” do senador observamos o seguinte texto que acompanha a imagem que serve
de base para a condenação das políticas econômicas PT: “Pode-se observar que, em percentual do
PIB, essa dívida vinha sendo paulatinamente reduzida desde o início da série apresentada até que,
a partir de 2014, passa a crescer de modo preocupante” (Brasil, 2016, p. 33).

Contudo, ao comparar o gráfico do senador com os outros que apresentam uma série mais
ampla, verificamos que a redução paulatina da dívida bruta não é um acontecimento ligado ao
governo de FHC. Pelo contrário, tanto o pico da dívida líquida, que ele não cita no seu parecer,
quanto o pico da dívida bruta ocorrem ao final do segundo mandato de FHC no segundo semestre
de 2002.

Figura 1 – Gráfico com Resultados Fiscais de Anastasia

Fonte: Relatório gráfico de Anastasia

O esforço de controle da dívida deve ser atribuído aos governos do Partido dos
Trabalhadores - PT, Lula e Dilma. Contudo, isso não está presente no julgamento de Antônio
Anastasia. Oculta esse esforço, ao mesmo tempo que oculta também o descontrole das contas
públicas com pagamento de juros para manutenção do câmbio na crise do final dos anos 1990.

O ataque especulativo produzia a elevação da taxa de câmbio e, consequentemente, da


dívida interna, uma vez que boa parte dos títulos públicos indexados ao câmbio. Esses aspectos
ficam evidentes no gráfico (imagem 2) produzido pelo ex-ministro Nelson Barbosa (2020).
Somente em 2020 no governo Bolsonaro, quatro anos depois do golpe parlamentar de 2016, com
aprofundamento da crise econômica que seria resolvida com o afastamento de Dilma segundo seus
acusadores, que a dívida líquida do governo central chega ao patamar do final do segundo mandato
do governo de FHC.
164

Figura 2 – Gráfico com Dívida Líquida de Nelson Barbosa

Fonte: Barbosa, 2020

Antônio Anastasia (PSDB) se mostra estupefato, ao constatar que “ao final de 2015, a
dívida bruta do Governo Federal atinge 62,3% do PIB, o que corresponde a R$ 3,7 trilhões” (Brasil,
2016, p. 33). Parece que 62,3% de dívida em relação ao PIB é superior a 64,9% e que esse último
valor nada tem a ver com o PSDB e com as políticas liberais adotadas pelos tucanos para enfrentar
a crise do final da década de 1990.

Figura 3 – Gráfico com Dívida Bruta de Bráulio Borges

Fonte: Borges, 2017

Observando a o gráfico produzido por Bráulio Borges (imagem 3) conseguimos reforçar o


entendimento de que há um descontrole em relação à divida bruta no governo FHC
165

completamente ignorado por Antônio Anastasia. Essa avaliação positiva dos governos tucanos e
da solução liberal para a crise é tratada da seguinte forma pelo senador:

De posse desse registro histórico, passamos a discorrer sobre a relevante relação


entre os dois últimos ciclos de crescimento e o bem jurídico tutelado em jogo
neste processo de impeachment. No primeiro caso, o encerramento do ciclo que
vai de 1993 a 1997 se deu diante da crise asiática, de 1997, e da crise russa, de
1998. À época, havíamos recém conquistado a tão almejada estabilidade
monetária. e nossa estratégia de combate à inflação ainda dependia da chamada
âncora cambial. Déficits comerciais crescentes, contudo, somados à iminência de
um ataque especulativo da nossa moeda, precipitaram uma mudança de estratégia
de estabilização monetária. No lugar de âncora cambial, passamos a nos apoiar
na âncora fiscal.

Passada a crise de 1997/1998, e completada a transição da âncora cambial para a


fiscal, seguida da instituição de um novo regime jurídico consubstanciado com a
edição da LRF, em vigor desde 5 de maio de 2000, o País reconfigura seu
ambiente macroeconômico, tornando-se menos vulnerável a crises cambiais e
mais propício à retomada do crescimento. A aprovação do código de conduta
fiscal, nesse passo, irradiou a responsabilidade fiscal pelo arcabouço nacional das
finanças públicas. A conquista de fundamentos macroeconômicos sólidos,
portanto, foi uma construção histórica, que perpassou diferentes governos
(Brasil, 2016, p. 38-40).

Contudo, Nelson Barbosa, ministro e economista cuja orientação das suas políticas
econômicas é condenada por Anastasia evidencia que

O pico de dívida de 2002 marcou o final do processo de aumento de


endividamento público, que começou com o Plano Real e ganhou força a partir
de 1997, quando as crises cambiais do leste asiático e objetivo de reeleição de FH
fizeram governo federal “pagar o que for” para sustentar um câmbio apreciado
pelo menos até as eleições de 1998. Passado o pleito, a crise veio no início de
1999 e levou o Brasil a adotar o câmbio flutuante e meta de inflação, com grande
aumento do endividamento público na “transição”, que durou até 2005, quando
Lula liquidou a dívida contraída por FH junto ao FMI (Barbosa, 2020).

Além disso, não é possível compreender as políticas de preservação do emprego e das


cadeias produtivas sem levar em consideração o contexto internacional, que justificava a demanda
empresarial de se garantir a competitividade da indústria brasileira e a demanda dos trabalhadores
pela busca de proteção ao emprego. A crise de 2008 foi sucedida pela crise europeia de 2011, e em
2014, o quadro internacional ainda era desfavorável, sendo que em 2013 a China havia atingido o
limite do modelo expansionista iniciado em 1979 e mudou sua estratégia, diante da desaceleração
econômica, voltando-se para o mercado interno. Tudo isso, gerava pressões sobre os poderes
executivo e legislativo que serão tratados por nós em outra ocasião.

A China, na sua fase de expansão passou a competir com os produtos industrializados do


Brasil, que tinha o gigante comunista como destino de 18% de suas exportações em 2014. Assim,
166

com fim do boom das commodities as receitas brasileiras sofreram grande contração (Pereira; Ribeiro,
2016, p. 243). Diante disso, viu-se uma maior deterioração do quadro fiscal do governo federal
causada pela desestabilização do governo federal promovida pela ação conjunta da oposição
parlamentar, da Operação Lava Jato, de entidades empresariais e dos movimentos na sociedade
civil (Vem Pra Rua, MBL etc.). Assim como a justa causa do processo de impeachment não foi
apreciada pelo poder judiciário, tudo isso, ficou de fora do relatório de Antônio Anastasia (PSDB).
No entanto, parece explicar mais sobre o comportamento dos parlamentares no golpe parlamentar
desferido contra a presidenta Dilma Rousseff do que a argumentação jurídica do relator.

Considerações finais

No mesmo dia em que o substitutivo do PLN 05/2015 foi aprovado pelo Congresso
Nacional, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) determinou a
abertura do processo de impeachment, logo após o Partido dos Trabalhadores - PT se negar a
apoiá-lo na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados onde era investigado por atos de
corrupção. A acusação de crime de responsabilidade foi alvo de intenso debate e gerou grande
mobilização sociedade, inclusive da Associação Nacional de História (ANPUH) que fez uma carta
aberta afirmando que “Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”.

Reforçando esse entendimento no campo jurídico citamos a análise de Fábio Tomkowski,


que defende que

as chamadas “pedaladas fiscais”, quando utilizadas para atrasar o repasse de


verbas aos Poderes Legislativo e Judiciário, por exemplo, implicam crime de
responsabilidade, pois violam o livre exercício dos demais poderes, servindo
como embasamento para pedido de impeachment. Já quando utilizadas para os
demais casos, não caracterizam crime de responsabilidade. Por sua vez, crimes
de responsabilidade em nada se confundem, a não ser pela nomenclatura similar,
com crimes decorrentes de violação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pois,
enquanto os primeiros encontram-se no âmbito dos Direitos Constitucional,
Financeiro e Administrativo, os segundos estão no âmbito do Direito Penal, ou
seja, são crimes comuns. Desse modo, no caso de violação à Lei de
Responsabilidade Fiscal, o que pode ocorrer é a responsabilização criminal, nos
termos do art. 359-A a 359-H, do Código Penal (2016, p. 25).

O entendimento de Antônio Anastasia contesta tal posição e diz contra a tese de que se
trata na verdade da criminalização da política fiscal do governo Dilma:

Argumenta a defesa, contudo, que a simples abertura de créditos suplementares,


por si só, não afetaria a obtenção da meta de resultado primário. Seria necessário
executá-los com efetivo desembolso para que se pudesse falar em
167

incompatibilidade com a meta fiscal. E essa execução seria controlada pelos


decretos de contingenciamento. Ocorre que a execução dos créditos
suplementares também não constitui o escopo da denúncia. O que se questiona é o
ato de abertura dos créditos, não a sua execução. Retomamos, nesse sentido, o
entendimento gravado em nosso Parecer de Admissibilidade de que a
compatibilidade com a meta fiscal deve estar presente tanto no plano das
autorizações orçamentárias quanto no da execução financeira. E se o objeto da
denúncia se refere a créditos suplementares, que são instrumentos de retificação
da lei orçamentária, então é neste campo específico que a análise de
compatibilidade fiscal deve se realizar (Brasil, 2016, p.65 - destaques meus).

Com uma tautologia, busca a comprovação de que o que está apurando não tem influência
ideológica, mas trata-se de uma previsão legal. O governo federal encerrou o ano de 2015 com o
resultado primário deficitário em R$ 114,9 bilhões. Foi o pior resultado desde 1997, quando foi
iniciada a série histórica. Contudo, a aprovação da nova meta primária para o ano de 2015 autorizou
o governo federal a fechar 2015 com déficit de até R$ 118,7 bilhões. Assim, mesmo com o trágico
recorde, ainda havia uma permissão de déficit de mais R$ 3,7 bilhões no total permitido (Lima,
2016).

A forma e a velocidade da tramitação que a acusação de crime de responsabilidade tomou


tornou evidente que aspectos políticos ignoraram a “justa causa” para abertura do processo de
impeachment, que não pode ser assemelhado ao recall ou ao Abberufungsrecht, de outros países. O
parecer de Anastasia buscou cumprir essa função de demonstrar a ocorrência de crime de
responsabilidade, ou seja, o exame da justa causa, que poderia ser realizado pelo Supremo Tribunal
Federal. Ao fazer isso, o Senado Federal aceitou a natureza exclusivamente política do processo de
impeachment pois não submeteu ao poder judiciário o exame da “justa causa” (Labanca e Roman,
2016, p. 21).

Tudo isso aponta para as soluções contidas no relatório de Antônio Anastasia (PSDB) de
que a deveriam ter sido realizadas mudanças estruturais do Estado Brasileiro para se adequar às
premissas liberais do “estado mínimo”, em detrimento dos direitos sociais que são deveres
constitucionais do governo federal. Esse tipo de solução já havia sido denunciada pelo senador
Lindberg Farias (PT) na crítica às influências do Tea Party (movimento político ultraliberal dos
EUA) no parlamento brasileiro que apontavam para a realização de shutdow como saída para
impasses no orçamento. Nesse sentido, reforçando a presença dessas orientações ideológicas como
caminho para a crise econômica no Brasil, reproduzimos o receituário de Anastasia:

Em momentos de desajustes como esses, é natural que se busque evitar novos


déficits e que se passe a perseguir metas de superávit capazes de trazer as contas
públicas aos trilhos do equilíbrio. É o que se pretendeu fazer, por exemplo, nos
Estados Unidos da América, em 1985. Dada a conjuntura de déficits
orçamentários persistentes, com risco de descontrole das contas públicas, o
168

combate temporário ao déficit foi alçado ao topo das prioridades do Congresso


americano. Nesse cenário, foi aprovado o Balanced Budget and Emergency
Deficit Control Act of 1985, também conhecido como “Gramm-Rudman-
Hollings”, em referência a seus principais autores (Senadores Phil Gramm,
Warran Rudman e Ernest Hollings). Essa lei estabelecia metas anuais de redução
do déficit público, por um período de cinco anos, com vistas à recuperação do
equilíbrio orçamentário até o ano fiscal de 1991. Em acréscimo, fixava
procedimentos automáticos para a contenção de despesas (“sequestration”), a
serem acionados caso essas metas não fossem alcançadas (Brasil, 2016, p. 60).

Apesar disso, em sintonia com o Consenso de Washington e com as diretrizes adotadas


pelo governo dos EUA, o relatório que subsidiou o impeachment toma como referência de política
fiscal justamente as duras medidas adotadas durante o reaganismo, símbolo junto com Margareth
Thatcher, da austeridade econômica e do combate aos direitos sociais que a classe trabalhadora
conquistou ao longo do século XX. Entre outros argumentos apresentados pela defesa, foram
ignorados fatos importantes, a alteração da meta fiscal com a aprovação do substitutivo
apresentado pelo relator Hugo Leal (PROS-RJ), o fato do gasto público previsto nos decretos não
promoverem impacto na meta fiscal, a mudança de orientação pelo TCU acerca das “pedaladas
fiscais” ocorrerem durante o ano fiscal de 2015 e o contingenciamento de gastos feitos pelo
governo federal.

Para Antônio Anastasia (PSDB), o “governo demonstrou total inépcia na condução de


reformas estruturais destinadas à contenção do crescimento de despesas obrigatórias, de forte
impacto no financiamento do gasto público” (Brasil, 2016, p. 50). Ou seja, fora do projeto de
modernização capitalista liberal não havia outra solução. Diante disso, fica evidenciado a orientação
liberal que sustentou o golpe parlamentar que traria a “confiança do mercado”. Após a queda de
Dilma Rousseff, Michel Temer avançou nas reformas estruturais, já previstas no seu “programa
político”, o documento Ponte para o futuro (2015).

Essas reformas compreendiam o entendimento do segmento político liberal conservador


representada na fala do ministro da Fazenda, o banqueiro Henrique Meirelles que justificou a
redução do gasto público com programas sociais afirmando que a “Constituição não cabe no
orçamento”. Embora não seja possível demonstrar aqui que a agenda do parlamento brasileiro
estava pautada pela ortodoxia liberal, fica claro que os pressupostos usados para o golpe
parlamentar são procedentes do receituário econômico presente nessa ideologia.
169

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171

Palavras como forma de ação: usos e sentidos atribuídos aos


“espacios libres” no Proyecto Orgánico de 1925 (Buenos Aires)

Ana Carolina Oliveira Alves*

Resumo: este trabalho faz parte de uma pesquisa sobre o Proyecto Orgánico para Urbanización del
Município, proposta de intervenção urbana publicada em 1925 e pensada para a cidade de Buenos
Aires pela Comisión de Estetica Edilícia - CEE. O projeto da comissão engloba estratégias que tem
como alvo espaços livres da cidade, dentre os quais praças, parques, jardins, alamedas, e outros.
Longe de serem simples sinônimos, o documento nos faz perceber que seu uso é específico e que
o léxico construído em torno das propostas de intervenção urbana deve ser também instrumento
de nossa análise. Encaramos, portanto, as palavras como instrumentos de definição já que as
formas como estas são articuladas apontam para caminhos de interpretação sobre o espaço urbano.
As palavras tem seus usos e sentidos alterados temporal e espacialmente. Faremos aqui um
movimento inicial para compreender a tipologia dos espaços livres da cidade estabelecida no
Proyecto de 1925 e como cada uma dessas áreas não edificadas é integrada nas propostas da CEE. O
que a análise lexical nos diz sobre as escolhas da comissão? A localização pensada para praças,
passeios e jardins públicos é a mesma? O que essas localizações indicam sobre cada um desses
espaços? É possível compreender as funções atribuídas a eles pela comissão a partir desse
movimento? Essas palavras, entendidas enquanto conceitos, não são estáticas e o processo de
compreender a configuração da cidade perpassa a compreensão das transformações e
ressignificações destas palavras. Propomos, assim, uma análise dos processos de construção dos
discursos que, ao falar da cidade, a adjetivam, qualificam, ordenam e identificam. Atentar para como
se descreve a cidade torna-se essencial já que as palavras e discursos sobre esta, ainda que versem
sobre estratégias não necessariamente materializadas, expressam sentidos e apropriações de
conceitos urbanísticos que norteiam debates e concepções sobre as cidades.
Palavras-chave: espaços livres, urbanismo, história dos conceitos, Buenos Aires.

Partindo da conhecida frase de Epiteto segundo a qual não seriam os fatos que abalariam
os homens, mas sim o que se escreve sobre eles o historiador alemão Reinhart Koselleck (2006)
reitera a força peculiar que possuem as palavras, essenciais para a transmissão das experiências
humanas. A relação intrínseca entre História e linguagem é o ponto de partida de Koselleck que
reconhece a capacidade das palavras de passaram por constantes mutações defendendo, portanto,
uma abordagem específica sobre esse campo de estudos. Valorizando a historicidade dos conceitos
e dos pensamentos sócio-políticos, o autor os compreende de forma articulada com a realidade
social, o que destaca uma dinâmica entre os sentidos atribuídos possibilitando a existência até
mesmo de diferentes significados dentro de um mesmo espectro temporal ou em um grupo
específico.

* Doutoranda da Universidade Estadual de campinas, bolsista FAPESP processo nº 2018/15544.


172

Afastando-se do enfoque collingwoodiano dos autores da Escola de Cambridge, Koselleck


enfatiza a importância de compreender as palavras a partir de uma análise linguística e semântica
das diferentes dimensões da sociedade. A história dos conceitos, portanto, estaria calcada nesse
tipo de procedimento teórico-metodológico que permite compreender os distintos processos de
(re)significação de um determinado conceito. Seria, neste caso, essencial para qualquer
interpretação histórica.

A linguagem é, para Koselleck, essencial para a compreensão de um dado conceito, mas


não suficiente pois este não é encarado pelo autor apenas enquanto um fenômeno linguístico. Os
conceitos indicam algo situado para além da língua, uma relação diretamente estabelecida entre esta
e a dita “realidade”. Uma palavra, convertida enquanto conceito, estaria diretamente ligada com a
complexidade dos contextos de experiências em que aparece e dos significados que assume. Os
conceitos, assim, amalgamariam experiências históricas, associando redes de construção de sentido
de maneira múltipla: projetando-se tanto no tempo quanto no espaço, estando imersos em fluxos
não estáveis. A história destes conceitos, portanto, estaria ligada com a compreensão não só
daqueles elementos que parecessem se encaixar linearmente em seu sentido inicial, mas em todas
as variações e diacronias envolvidas em sua trajetória semântica.

A história dos conceitos põe em evidência, portanto, a estratificação dos


significados de um mesmo conceito em épocas diferentes. Com isso, ela
ultrapassa a alternativa estreita entre diacronia ou sincronia, passando a remeter
à possibilidade de simultaneidade da não simultaneidade que pode estar contida
em um conceito. […] A História dos conceitos trabalha, portanto, sob a premissa
teórica da obrigatoriedade de confrontar e medir permanência e alteração, tendo
esta como referência daquele. (Koselleck, 2006, p. 115).

Corroborando a ideia sobre a temporalidade dos conceitos, reforçamos que estes


apresentam seus sentidos em distintas camadas, com várias temporalidades, construindo vários
níveis de compreensão daquilo que pretendem comunicar. Como Koselleck, consideramos que a
operação de compreensão conceitual, por estar imersa dentro dos próprios meandros da teoria da
história, é essencial para qualquer interpretação histórica, estando esta diretamente comprometida
com o estudo das palavras ou não.

Inserimos aqui nossa pesquisa que, ao centrar-se na história e constituição do urbanismo


em Buenos Aires, também se perfaz de conceitos que, ao aparecerem em nossa trajetória, precisam
ser entendidos enquanto tais pois revelam conceituações específicas sobre a cidade. Retomamos
aqui, também, as ideias da linguista francesa Lorenza Mondada que se reforça a importância de
analisar os processos de emergência, estabilização e disseminação das categorias descritivas
173

(Mondada, 2000). Na realização desse movimento, a autora destaca o a relevância de abarcar todo
o processo operacional que estrutura tais categorias em totalidades coerentes e seu trabalho emerge
como associação da importância de compreender as especificidades da semântica lexical com o
pensamento sobre a cidade.

Les spécificités urbaines de la ville se font et se défont dans leur élaboration discursive au sein
des activités descriptives des acteurs. La ville ne se laisse pas définir exclusivement par des critères
objectifs et factuels, relatifs par exemple à la densité de sa population ou bien à la concentration
d´activités économiques ou de services : la ville est une entité matérielle et immatérielle configurée
par les pratiques des acteurs qui l’habitent et la fréquentent, y travaillent e y vivent, ainsi que
par leurs discours, que la qualifient et la requalifient, lui confèrent un ordre, s’y identifient ou
s’écartent. (Mondada, 2000, p. 251)

Seguindo essa forma de pensar e concordando que a cidade se define também pelas práticas
nela inseridas e pelos discursos construídos sobre ela, utilizaremos os pressupostos aqui expostos
para analisar uma proposta de intervenção urbana publicada em 1925 e pensada para a cidade de
Buenos Aires. O Proyecto Orgánico para Urbanización del Município, elaborado pela Comisión de Estetica
Edilícia - CEE, teve como objetivo a realização de uma série de estudos sobre a cidade e a proposta
de uma gama de intervenções que colaborassem com sua transformação, legislando sobre ela e
ordenando-a. A CEE foi formada por membros de quatro importantes instituições municipais e
nacionais e contou, ainda, com visitas e consultorias do paisagista francês Jean-Claude Nicolas
Forestier, que colaborou com a estruturação de um sistema de parques e jardins a partir de uma
concepção de que a cidade moderna demandava um reequilíbrio da estrutura urbana.

Os diversos tipos de espacios libres ocupam, neste documento, um papel central. Os distintos
conceitos utilizados para descrever as ações a serem implementadas no ambiente urbano
demonstram que seu uso é específico e que o léxico construído em torno das propostas de
intervenção urbana deve ser também instrumento de nossa análise. Encaramos, portanto, as
palavras como instrumentos de definição já que as formas como estas são articuladas apontam para
caminhos de interpretação sobre o espaço urbano. As palavras tem seus usos e sentidos alterados
temporal e espacialmente e, nesse sentido, o estudo de sua semântica é um movimento essencial
para os estudos sobre a cidade.

Neste trabalho, executamos um movimento inicial de aproximação com alguns conceitos


que aparecem com frequência no Proyecto da CEE buscando compreender a forma como são
utilizados bem como o que sua semântica revela sobre concepções da cidade veiculadas pela
comissão. Por ser um movimento inicial, emerge a demanda de ampliação futura para pensar, a
174

partir dos pressupostos aqui explorados, de maneira mais específica sobre algumas das propostas
presentes no documento.

A ideia de organicidade, presente já no título do Proyecto, será nosso ponto de partida para
buscar compreender algumas das concepções da CEE para a cidade e como nestas se articulam os
espacios libres (Buenos Aires, 1925). O entendimento da cidade enquanto um organismo demonstra
uma forma de pensar o espaço urbano que o concebe, metaforicamente, como interligado. A
menção à organicidade estabelece uma comparação direta com os organismos vivos, adaptando a
diferentes sistemas características similares aquelas identificáveis em uma estrutura orgânica.

Cabe aqui, antes de continuar a seguir o caminho destes conceitos, pensarmos um pouco
sobre a importância e força das metáforas enquanto elementos comunicativos. Ted Cohen nos
lembra que os escritos de muitos filósofos reiteram a mensagem de que as metáforas são
secundárias, perigosas e logicamente incorretas. Essa concepção, para o autor, negaria a tais figuras
de linguagem tanto a capacidade de conter e transmitir conhecimento quanto qualquer conexão
com os fatos e até mesmo qualquer significado real (Cohen, 1992). O autor situa apenas
recentemente a conversão desse tipo de avaliação sobre as metáforas citando o trabalho de Max
Black, Metaphor, como ponto de inflexão, por se afastar da concepção de que as únicas capacidades
legítimas da metáfora seriam as emotivas advogando em favor também de sua função cognitiva.

Na mesma linha argumentativa, Paul Ricoeur insiste na capacidade metafórica de


fornecimento de informações intraduzíveis e também na pretensão de proposta de um tipo de
insight sobre a realidade. Ricoeur analisa a construção metafórica enquanto processo complexo
reforçando a importância de considerar, em sua compreensão, fatores paralelos e extrínsecos
(Ricoeur, 1992). A teoria do autor sobre esse processo sugere uma analogia estrutural entre
componentes cognitivos, imaginativos e emocionais presentes no ato metafórico que faria que sua
compreensão acontecesse por meio de três fases: a do insight a partir da semelhança – que provoca
a aproximação de dois termos distantes no espaço lógico –; a da dimensão figurativa – operando
uma ampliação icônica que possibilita a esquematização da assimilação – e a da interrupção – que
a partir do elemento de ficção gera novas possibilidades de ver o mundo advindas da mobilização
do elemento sentimental.

Essas perspectivas reforçam a necessidade de compreender os efeitos que se depreendem


da utilização dessas figuras de linguagem que, atuando na imaginação e no sentimento, se deslocam
diretamente para a dimensão cognitiva do processo de apreensão semântica. Justamente por seu
caráter múltiplo, funcionando a partir da interação complementar entre essas esferas, a metáfora
175

assume um caráter altamente persuasivo, como é o caso dessa associação direta entre a cidade e
seus elementos com o corpo humano, recorrentemente utilizada.

Rykwert define que o termo orgânico, muito utilizado por arquitetos e urbanistas no final
do século XIX e no início do XX, originalmente qualificava a organização intencional das partes
dentro de uma dada totalidade (Rykwert, 1988). De toda ideia de organismo depreende-se, ainda,
uma implícita de harmonia segundo a qual toda unidade básica que compõe o sistema teria uma
função específica e se integraria de forma coerente em toda a estrutura – num processo não
conflitivo. No caso da transposição dessa ideia para as intervenções urbanas, estaria colocada uma
necessidade de superação de um todo fragmentado e a valorização de uma visão na qual o conjunto
e a harmonia permitiriam uma ordenação que levaria a estrutura a um bom funcionamento, tal
como os organismos vivos.

Nesta concepção, os elementos presentes na cidade funcionam em conjunto, estabelecendo


entre si relações e cumprindo funções específicas dentro de um sistema ordenado. A unidade seria
um sistema em si, com características particulares, mas estas se relacionariam com outras unidades
conformando um sistema maior, com outras características. Dessa ideia que constrói a relação das
partes com o todo depreende-se que qualquer elemento urbano dentro dessa estrutura teria um
sentido em si e deveria ser pensado a partir dessa lógica. A ideia da ligação, o estabelecimento de
uma rede entre os elementos, adquire, portanto, papel fundamental. As relações complexas
estabelecidas entre estes são essenciais para pensar o conjunto.

Philip Gunn e Telma de Barros Correia destacam a recorrente utilização de termos da


biologia tanto nas técnicas de análise e intervenção quanto para nomear partes ou componentes da
cidade (Gunn & Correia, 2001). Os autores destacam a conversão do corpo e da sua estrutura de
funcionamento enquanto modelo para definir tanto a ordem quanto a desordem urbana nos
autores do Renascimento, período quando tais metáforas orgânicas teriam se estendido do campo
da arquitetura para o da cidade. O sentido e a força de recorrer a tais metáforas, como exploramos
anteriormente, deve ser pensado por nós tendo em vista que funcionam, quando utilizadas, também
como formas de conceber e ordenar o espaço urbano.

O próprio conceito de ordem também deve ser pensado em meio a definição de práticas e
intervenções próprias do urbanismo. Associado com a ideia de uma razão geral que serve como
guia de determinada organização, o conceito tem como cerne a ideia de que existe uma relação
inteligível, lógica, a ser estabelecida – se opondo diretamente ao que seria descrito enquanto
irracional e desordeiro. Essa ideia, herdeira de certo racionalismo, persiste na ideia de que essa
oposição é algo quase natural e previamente estabelecido de maneira neutra, quando, ao contrário,
176

a própria definição dos pólos dessa equação dependem de uma série de fatores e interesses
construídos socialmente.

A persistência da imagem do corpo como modelo de ordem e desordem urbana, atestada


pelos autores em diversos contextos, é observada em diversos conceitos do Proyecto de 1925 que
enfatiza a necessidade de pensar a cidade utilizando conceitos como de circulação para descrever
o fluxo de pessoas e transportes, pensa na resolução de problemas dessa ordem a partir da criação
de vias arteriais, dentre outros.

A forma da CEE pensar a relação orgânica das partes com o conjunto da cidade aparece
em propostas de intervenção que se perfazem para lugares específicos da cidade, mas também
apresentam relações diretas entre si, como aponta o conceito muito citado de circulação. A forma
de organização do espaço público proposta no proyecto incluiu propostas como a valorização do
contato com da cidade com o Rio, qualificação do centro, a expansão dos serviços sanitários e a
ampliação dos espaços verdes.

O discurso da CEE evidencia a intenção de repensar o equilíbrio da cidade, afetado pelo


exacerbado crescimento populacional desde as últimas décadas do século XIX e também por
questões como a incorporação de novos terrenos a sua jurisdição a partir da consagração do status
de capital nacional. Nota-se, em meio a isso, a aproximação com a ideia da cidade jardim, modelo
concebido por Ebenezer Howard no final do XIX a partir da ideia de aproximar o ambiente urbano
das vantagens do campo. As concepções de Howard partiram das observações das condições
degradantes de vida da cidade surgida no contexto pós-industrial e se basearam justamente na ideia
de equacionar a relação entre o ambiente urbano e o rural.

Seguindo ideia semelhante, o Proyecto inclui, para alcançar este fim, um plano de espaços
livres e uma série de previsões gerais relacionadas com parques, jardins, praças e passeios. Antes
mesmo da chegada de Forestier, os membros da comissão já haviam se dedicado a estudar os
projetos de espaços livres existentes, em conjunto com a Dirección de Paseos. Estes estudos prévios
foram repassados ao paisagista francês que, na posição de técnico especializado, se encarregaria de
visitar os locais indicados avaliando sua adequação para os fins propostos. Forestier teria, apesar
destes documentos já reunidos, liberdade para propor soluções distintas daquelas projetadas pela
CEE.

Forestier propôs como complemento ao sistema de parques e jardins um traçado de


Avenidas-Passeios que deveriam unir estes espacios libres. A proposta do paisagista indicaria que,
com uma limitação de duzentos habitantes por hectar, cada um deste deveria dispor, ao menos, de
7m² de espaços não edificados, proporção que, no caso de Buenos Aires, apontaria cerca de 14%
177

do território da cidade. As projeções da CEE totalizavam 2.482 hectares voltados para este fim,
correspondendo a esta proporção mínima. A obtenção deste percentual se daria de distintas formas:
(a) criação e formação de novas praças e parques; (b) Avenida de Circunvalación; (c) Balneario Municipal
e Avenida 9 de Julio; (d) Avenida Costanera e terrenos próximos ao rio da prata; (e) superfície de parques
e praças já existentes.

Este último fator, totalizava, ainda naquele momento, cerca de 1.042 hectares, o que
significa que as intervenções do Proyecto planejavam mais do que duplicar os terrenos livres da
cidade. A proporção de 14% do território destinado para este fim, proposta por Forestier, era
defendida também pela CEE que utilizava para isso, novamente, uma série de argumentos versando
sobre a importância de certo equilíbrio no planejamento urbano. A densidade excessiva tanto de
edificação quanto populacional era considerada fator prejudicial ao elemento de salubridade da
chamada cidade moderna onde a congestão – novamente uma metáfora biológica – era vista como
empecilho ao equilíbrio. Os cerca de cinquenta espaços destinados para tornarem-se livres,
divididos entre as zona norte e sul da cidade, eram defendidos como suficientes também quando
confrontados com uma maior proporção de outras cidades já que a densidade populacional
portenha era bem menor em termos comparados.

Pensando especificamente na importância desses espaços, o discurso da CEE insiste em


uma proporção entre área da cidade a ser construída e aquela que deveria ficar livre. Nas propostas
de criação, ampliação ou modificação de espaços livres emergem diferentes concepções para cada
um deles. Os jardins, por exemplo, aparecem enquanto espaços importantes para aumentar a
circulação de ar da cidade. As Avenidas-Passeio são projetadas como formas de unir estes espaços
entre si e com outros elementos urbanos, ainda que também confluam nestes elementos de
recreação. A multiplicação de parques, jardins e praças públicas é considerada necessária, mas estes
espaços são descritos como tendo distintos fins. Estes fins são, muitas vezes, intercambiáveis.

Alguns destes espaços, na maioria as explanadas, passeios e parques, são pensados a partir
de propostas ligadas a recreação e a integração da sociabilidade da população na cidade. Os jardins,
sempre pensados a partir da noção higiênica e sanitária podem aparecer sozinhos enquanto
elementos públicos, mas também compor parte de outros como parques e praças. As praças,
dependendo de sua localização parecem também consolidar distintas funções como é possível
perceber por aquelas que recebem capítulos destacados do documento e são descritas como
178

importantes centros cívicos devendo ter esse aspecto reforçado – ao contrário de muitas outras
que não funcionariam como tal64.

As variadas propostas e suas nuances serão melhor exploradas em trabalhos futuros. Essa
aproximação inicial com os conceitos utilizados pela CEE indica que a ideia da cidade com o
funcionamento ideal estava associada a mesma ideia para o corpo humano, na qual convergiam
requisitos de saúde e também de estética. A despeito do caráter aparentemente persistente destas
metáforas na construção do campo conceitual, discursivo e das práticas do urbanismo, é importante
pensar no impacto que estas têm nas formas de compreensão da cidade e nas intervenções
propostas para esta. Percebemos que as estratégias pensadas para o espaço urbano dialogam
diretamente, no caso da CEE, com preceitos das teorias de cidade-jardim e da necessidade de
repensar o equilíbrio da cidade a partir de sua relação com a natureza.

Essas palavras, entendidas enquanto conceitos, não são estáticas e o processo de


compreender a configuração da cidade perpassa a compreensão das transformações e
ressignificações destas palavras. Nossa ideia, assim, foi propor uma análise dos processos de
construção dos discursos que, ao falar da cidade, a adjetivam, qualificam, ordenam e identificam.
Atentar para como se descreve a cidade torna-se essencial já que as palavras e discursos sobre esta,
ainda que versem sobre estratégias não necessariamente materializadas, expressam sentidos e
apropriações de conceitos urbanísticos que norteiam debates e concepções sobre as cidades.

Referências

Buenos Aires. Comisión de Estética Edilicia. Proyecto Orgánico para la urbanización del municipio, el
plano regulador y de reforma de la Capital Federal. Bueno Aires: Peuser, 1925.

Cohen, Ted. A metáfora e o cultivo da intimidade. In: Sacks, Sheldon. (org.). Da metáfora. São Paulo:
Editora da PUC-SP & Pontes, 1992. pp. 9-17.

Gunn, Philip & Correia, Telma de Barros. O Urbanismo, a Medicina e a Biologia nas palavras e
imagens da cidade. Pós - Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP,
vol. 10, pp. 34-61, 2001.

Koselleck, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

Mondada, Lorenza. Décrire la ville: la construction des savoirs urbains dans l’interaction et dans le
texte. Paris: Anthropos, 2000.

64A Plaza de Mayo, onde localiza-se a sede do governo executivo federal, a Plaza del Congreso, local da sede do legislativo
federal e a Plaza de la Municipalidad são exemplos de praças que amalgamam simbolicamente o discurso da civilidade,
reforçado pela CEE.
179

Ricoeur, Paul. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In: Sacks, Sheldon.
(org.). Da metáfora. São Paulo: Editora da PUC-SP & Pontes, 1992, pp. 145-160.

Rykwert, Joseph. Organique. In: Merlin, Pierre; Choay, Françoise. Dictionnaire de l’urbanisme et de
l’aménagement. Paris: Presses Universitaire de France, 1988.
180

Os morgados Cabo (ou Madre de Deus) e Juriçaca: a vinculação


de bens como estratégia de perpetuação social e econômica da
família Pais Barreto. Pernambuco, 1580-1837

Ana Lunara da Silva Morais*

Resumo: A família Pais Barreto, originária da pequena nobreza reinol da região do Minho,
Portugal, assentou-se em Pernambuco na segunda metade do século XVI. Nessa capitania, lutaram
na Restauração contra os holandeses, atuaram na produção do açúcar e passaram a integrar a
nobreza da terra. Essa família, por meio da contínua associação entre diferentes mercês régias,
exercício de postos militares e ofícios administrativos, da atuação em instituições prestigiosas locais
e da ativa participação no setor açucareiro, principal atividade econômica desenvolvida no Estado
do Brasil, angariou alto status social. Os membros da família Pais Barreto destacaram-se pela
instituição de dois morgadios, chamados Cabo ou Madre de Deus (1580-1837) e Juriçaca (1617-
1837). Com relação ao primeiro, não há conhecimento de outro vínculo na América portuguesa
que teve tanta durabilidade, estimando o período de sua instituição e extinção. A fundação de um
morgado define-se como um ato de regulamentação jurídica de um patrimônio, com regras estritas
de indivisibilidade e inalienabilidade, no qual também se transmitem modelos de comportamento,
regras de conduta social e formas de relacionamento com o mundo dos antepassados, destinados
a vigorar durante gerações e condicionando tanto a posse dos bens como a chefia da linhagem. É
nessa consideração, de que a vinculação de bens sob a forma de morgadio tem por objetivo não
apenas evitar o esfacelamento patrimonial de uma linhagem, como também preservar sua memória,
que se analisará como a família Pais Barreto angariou seus bens, e como ocorreu a fundação e
gestão de seus morgadios. A pesquisa evidencia que a perpetuação de antigas estirpes de
Pernambuco, ao longo do período colonial, ocorreu de modo complexo e multifacetado, sendo a
vinculação de parte de seus bens uma questão fulcral para a perpetuação social e econômica da
família. Este trabalho é fruto de uma pesquisa de doutorado, para a qual se realizou o cruzamento
de diversas fontes de variados fundos, sendo algumas delas inéditas, como as existentes no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo - ANTT.

Palavras-chave: Pernambuco, família Pais Barreto, morgadio, propriedade.

A família Pais Barreto, originária da pequena nobreza reinol da região do Minho, Portugal,
assentou-se em Pernambuco na segunda metade do século XVI. Nessa capitania, lutaram na
Restauração contra os holandeses, atuaram na produção do açúcar e passaram a integrar a nobreza
da terra. Essa família angariou alto status social por meio da contínua associação entre diferentes
mercês régias, como exercício de postos militares e ofícios administrativos, da atuação em

*
Doutoranda pelo PIUDHist – CIDEHUS, Universidade de Évora, Portugal.
181

instituições prestigiosas locais, como a Santa Casa de Misericórdia, e da ativa participação no setor
açucareiro, principal atividade econômica desenvolvida no Estado do Brasil.

Os membros da família Pais Barreto destacaram-se pela instituição de dois morgadios,


chamados Cabo ou Madre de Deus (1580-1837) e Juriçaca (1617-1837). Com relação ao primeiro,
não há conhecimento de outro vínculo na América portuguesa que teve tanta durabilidade,
estimando o período de sua instituição e extinção. Esta pesquisa evidencia que a perpetuação de
antigas estirpes de Pernambuco, ao longo do período colonial, ocorreu de modo complexo e
multifacetado, sendo a vinculação de parte de seus bens uma questão fulcral para a perpetuação
social e econômica da família.

A fundação de um morgado define-se como um ato de regulamentação jurídica de um


patrimônio, com regras estritas de indivisibilidade e inalienabilidade, pelo qual também se
transmitem modelos de comportamento, regras de conduta social e formas de relacionamento com
a família, destinados a vigorar durante gerações e condicionando tanto a posse dos bens como a
chefia da linhagem. É nessa consideração, de que a vinculação de bens sob a forma de morgadio
tem por objetivo não apenas evitar o esfacelamento patrimonial de uma linhagem, como também
preservar sua memória, que se analisará a seguir como a família Pais Barreto angariou seus bens, e
como ocorreu a fundação e gestão de seus morgadios.

A vinculação de bens e as querelas pela sucessão do morgadio

Um instituidor de morgado manifesta sua vontade de vincular parte dos seus bens por meio
de testamento ou de contrato (Caldeira, 2007, p. 36). Para o caso de João Pais Barreto, “o velho”,
que instituiu o morgado do Cabo, também chamado Madre de Deus, não dispomos de nenhum
desses documentos. Sobre os bens e vontades do instituidor existe apenas o codicilo – escrito no
qual são expressas as últimas vontades de um indivíduo, que se pode adicionar ao testamento –,
datado de 1617, mas neste apenas foram mencionados os bens livres e o cumprimento da
instituição do morgado Juriçaca, como será analisado adiante, e não do morgado do Cabo (Pio,
1969, p. 13-15). Todavia, a fundação, sucessão e bens do morgado do Cabo foram reconstruídas
por meio de diferentes fontes memorialistas que, em alguns casos, se utilizaram de documentos
notariais, atualmente desaparecidos, cujas informações foram comparadas e cruzadas com as fontes
históricas ainda hoje disponíveis.

Segundo Pereira da Costa (1983, p. 488-490), no ano de 1580, João Pais Barreto, “o velho”,
visando salvaguardar parte do patrimônio construído por ele e, consequentemente, preservar sua
182

família, instituiu um morgadio juntamente com sua esposa, Inês Guardes, em nome de seu filho
primogênito e homônimo e para os descendentes primogênitos varões deste. Como esclareceu João
Luís Picão Caldeira (2007), o qual analisou as Ordenações e alguns tratadistas juristas, como Manuel
Álvares Pegas e Vilanova Portugal, não era necessário licença régia para instituir vínculos, desde
que o bem doado não fosse da Coroa ou que a vinculação contivesse alguma cláusula que
importasse derrogação de preceito legal. Isto porque, no direito português, os bens de livre
disposição de um testador correspondiam a um terço de seu patrimônio – a terça. Os dois terços
restantes deveriam ser partilhados em igualdade entre os herdeiros legítimos e legitimados – a
legítima.65 A este propósito, sublinha-se que os vínculos sem licença régia, chamados regulares, os
quais parecem ter sido maioria, não poderiam ser instituídos sobre a legítima dos filhos, somente
poderiam ser fundados com o patrimônio ou valor da(s) terça(s) do(s) instituidor(es).

Os bens vinculados do morgado do Cabo, originais das terças partes do patrimônio do


casal, foram duas casas situadas na vila de Olinda e o engenho Madre de Deus, depois chamado de
Velho, por ser o primeiro fundado por João Pais Barreto, situado em uma sesmaria de uma légua
que ele recebeu na freguesia do Cabo de Santo Agostinho, litoral da capitania de Pernambuco, por
ter combatido os índios Caetés da região (Salvador, 1918, p. 198; Costa, 1983, p. 115). Ao que
parece, foi a obrigatoriedade de vincular somente a terça parte de seu patrimônio que impossibilitou
João Pais Barreto e sua esposa de vincularem ao morgado outros engenhos, tendo em vista que
eles chegaram a possuir dez engenhos (Morais, 2021). O vínculo, conhecido por morgado dos Pais,
do Cabo ou ainda Madre de Deus, foi confirmado, segundo Pereira da Costa (1983, p. 488-490),
em 1603, sendo sua renda estimada em mil cruzados anuais (400$000 réis).

Nas primeiras décadas do século XVII, o sucessor do morgado do Cabo, João Pais Barreto,
“o moço”, parece ter vinculado mais um engenho, pois em 1635, o marquês de Basto, afirmou que
o sucessor “largou dois engenhos, muito gado e outras fazendas” para participar da retirada de
Matias de Albuquerque para Alagoas no contexto da invasão holandesa (Coelho, 1944, p. 203). No
mesmo sentido, em outro documento da mesma época, consta que o morgado – o termo também
diz respeito ao sucessor de um vínculo de morgadio – foi confiscado em dois engenhos, Velho e
Guerra, ambos na freguesia do Cabo (Breve, 1887, p. 146-148). Segundo Gilberto Osório de
Andrade e Rachel Caldas Lins (1982, p. 53-54), o morgado do Cabo teria perdido para a West
Indische Company - WIC um terceiro engenho, chamado Jacaré, localizado na freguesia de Goiana,
capitania de Itamaracá. Todavia, acredita-se que este engenho, embora fosse propriedade da família,

65
As mudanças no direito sucessório e testamentário a partir de meados do século XVIII – mais especificamente por
meio das leis de 9 de novembro de 1754, 9 de setembro de 1769 e 31 de janeiro de 1775 –, implicaram em uma maior
restrição aos possíveis herdeiros, como parentes distantes e instituições religiosas (Lewin, 2003, p. 24, 34-35; Rodrigues,
2015, p. 307-345).
183

não havia sido vinculado ao morgado do Cabo, pois em 1655, o referido engenho era propriedade
do sobrinho do morgado, João de Sousa (Mello, 2012, p. 147; Costa, 1983, fls. 64).

Um outro engenho que a historiografia equivocadamente aponta como parte desse vínculo
é o engenho Ilhetas (Felipe, 2015, p. 32-40). Esse último foi erigido ainda no século XVI, por João
Pais Barreto, “o velho”, e herdado pelo irmão do morgado do Cabo, Estevão Pais Barreto, o qual
posteriormente sucedeu o irmão na administração do morgado. No ano de 1655, o filho de
Estevão, João Pais Castro, consta como proprietário do engenho (Mello, 2012, p. 132-133). É
possível que esse ramo da família tenha tentado vincular o engenho Ilhetas ao morgado. Por não
haver mais informações sobre esse engenho, a historiografia passou a associá-lo a outro engenho,
de nome semelhante, chamado Ilha, que aparece como propriedade do morgado do Cabo, João
Pais Barreto, a partir do ano de 1760, conforme consta em uma lista elaborada pela recém-criada
Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1760-1780) (AHU, Cód. 1821, doc. 10, fls. 20-26).

No entanto, não se acredita que o engenho Ilheta e Ilha fossem o mesmo, pois, além do
nome, há outra diferença ainda mais relevante: a localização. O engenho Ilheta, como consta na
documentação da primeira metade do século XVII, estava localizado na freguesia de Sirinhaém-
Una, à margem esquerda do rio Ilhetas, afluente do rio Una. Por sua vez, o engenho Ilha estava
localizado na freguesia do Cabo. Essas freguesias, embora próximas, não eram vizinhas, pois a
freguesia de Ipojuca localizava-se entre uma e outra, não havendo possibilidade, portanto, mesmo
em face às variações dos limites das freguesias de Sirinhaém-Una e Cabo, que esses engenhos se
situassem na mesma freguesia. Complementa ainda essa ideia, o fato de que na já mencionada lista
dos engenhos existentes nas Capitanias do Norte do Estado do Brasil, elaborada pela Companhia
do Comércio em 1760, consta um engenho chamado São João das Ilhetas, possivelmente, o antigo
engenho Ilhetas, na freguesia do Una, propriedade de Luiz Nunes da Silva, cuja origem é
desconhecida, e um engenho Ilha, na freguesia do Cabo, pertencente ao morgado do Cabo (AHU,
Cód. 1821, doc. 10, fls. 20-26).

O morgadio do Cabo, diferentemente do que apontaram alguns historiadores, passou a


vincular outros engenhos apenas muitos anos depois de sua instituição, ou seja, por volta do
terceiro quartel do século XVIII (Felipe, 2015, p. 40). Segundo o autor da Nobiliarquia Pernambucana,
Borges da Fonseca (1935, Vol.2, p. 27), o morgado, na época em que ele escreveu a genealogia,
entre 1748 e 1777, vinculava os engenhos Velho, Guerra, Ilha, e tinha a pretensão de vincular o
Santo Estevão. Entretanto, tal pretensão não parece ter sido concretizada pois, esse último engenho
consta como propriedade de José Rodrigues de Castro, membro da família, mas que não era
sucessor do morgadio, entre os anos de 1760 e 1780, conforme se pode ver na documentação
elaborada pela Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (AHU, Cód. 1821, doc. 10, fls. 20-26;
184

AHU, PA, PE, Cx. 137, doc. 10206). Assim, embora o engenho Santo Estevão fosse da família
Pais Barreto, não era vinculado ao morgado do Cabo.

A sucessão desse vínculo não ocorreu sem conflitos familiares. Conforme consta em uma
sentença de 1678, transcrita por Manuel Álvares Pegas em sua obra Tractatus de exclusione, inclusione,
sucesione & erectione maioratus (1685, Tomo I, p. 507-508), Estevão Pais Barreto era o morgado do
Cabo naquele ano. Ele havia sucedido a seu irmão, João Pais Barreto de Castro, na administração
do vínculo pelo fato desse último não ter tido herdeiros. Na sentença, um primo de Estevão,
chamado João Pais Melo, filho de Cristóvão Pais Barreto e de Maria Melo, requereu que Estevão
fosse afastado da administração do morgadio. João Pais Melo alegou que o antecessor de Estevão,
João Pais Barreto de Castro, o qual havia administrado o vínculo por dezessete anos, não havia
cumprido obrigações impostas pelo instituidor do vínculo, como mandar rezar uma missa
anualmente no dia da Anunciação de Nossa Senhora e acrescentar metade da terça parte do seu
patrimônio ao vínculo de bens.

Como destacou Maria de Lurdes Rosa (1995, p. 202-204) para o período medieval tardio,
os documentos de fundação de morgadio, em sua totalidade, obrigavam a preservação integral do
patrimônio, e por vezes, o seu aumento ou “melhoria”. A obrigatoriedade de anexação das terças,
ou de parte destas, parece ter sido uma cláusula mais frequente entre os séculos XVI e XVIII, como
apontou José Damião Rodrigues (2003, p. 759) para o caso dos vínculos açorianos, e Nuno
Gonçalo Monteiro (2002, p. 76-80) para o reino. A cláusula de anexação integral das terças passou
a ser proibida a partir da lei de 3 de agosto de 1770 (Lei, 1858. Vol. 2, p. 476-483).

João Pais Melo alegou que a administração de João Pais Barreto de Castro e de seu sucessor
era injusta, pois eles empenhavam e desbaratavam os bens do vínculo, devendo ele, como o
“parente mais chegado”, assumir a administração do vínculo do Cabo.66 Contudo, as afirmações
do primo para suceder na administração do vínculo foram refutadas, pois comprovou-se que João
Pais Barreto de Castro não havia cumprido com a obrigação de anexar a metade de sua terça ao
vínculo porque faleceu pobre, sem bens, com apenas 160$000 réis, sendo irrelevante a metade da
terça parte do seu patrimônio. A pobreza do morgado anterior ainda foi justificada pelo fato de ele
ter reconstruído todo o engenho Velho, principal propriedade do vínculo, tendo gastado para tanto
cerca de 15 mil cruzados (6:000$000 réis) (Pegas, 1685, p. 507-508).

Além do morgado Madre de Deus, João Pais Barreto, “o velho”, em seu codicilo de 1617,
solicitou ao filho homônimo, que cumprisse a escritura de dote da sua filha Catarina Barreto, casada

66
Trata-se da convicção de que o parentesco possível de sucessão se alarga para além das linhas e graus primários
(Rosa, 1995, p. 97-98).
185

com dom Luís de Sousa – filho de Francisco de Sousa, governador-geral do Brasil (1592-1602) e
primo homônimo de outro governador-geral do Brasil (1618-1621). O dote consistia no engenho
Juriçaca, com uma légua de terra, localizado na freguesia do Cabo, Pernambuco, onde também se
deveria instituir um morgadio. Este deveria gerar a renda anual de mil cruzados (400$000 réis),
como o morgado do Cabo, e tinha a obrigação de realizarem cinco missas em memória de seu
instituidor (Pio, 1969, p. 15; Leão Filho, 1969, p. 67). A instituição de morgadio por meio do
contrato de casamento parece ter sido prática comum pois também foi verificada em Portugal, nas
primeiras décadas do século XV, em São Miguel, nos Açores, no início do século XVIII, e ainda
na Bahia, em 1681, para a instituição do icônico morgado da Casa da Torre (Bandeira, 2007, p. 183.
Rodrigues, 2003, p. 753; Rosa, 1995, p. 48).

Dom Luís de Sousa não formalizou a criação do morgadio, mas assim o fez dom João de
Sousa, seu filho, que anexou outros bens ao morgado, possivelmente por meio de seu casamento
com Inês Barreto, sua prima. O casal não deixou descendência legítima. Por consequência, sucedeu
no morgado Juriçaca um filho natural legitimado de dom João, o mestre de campo Francisco de
Sousa, o qual foi meeiro dos bens de seu pai juntamente com a viúva do defunto (Costa, 1983, Vol.
5, p. 321-3). Além do engenho Juriçaca, o casal sem herdeiros possuía outros bens, com os quais
fizeram generosas doações a instituições religiosas. Doaram, em 1684, um edifício para sediar o
hospital do Paraíso. A viúva, por testamento realizado em 1697, e aberto por volta de 1709, doou
o engenho Algodoais para o mesmo hospital (Costa, 1983, p. 239-42; Souza, 2007, p. 167).

Francisco de Sousa, o filho legitimado, teria trilhado caminho semelhante: instituiu a Santa
Casa de Misericórdia do Recife, tendo a vinculado ao hospital do Paraíso, o qual administrava
(AHU, PA, PE, Cx. 48, doc. 4319). Sucedeu Francisco da Sousa, o seu filho João de Sousa (ver
quadro 01: Sucessão dos morgados dos Pais Barreto), que faleceu em 1749, sem herdeiros, motivo
pelo qual doou ao hospital o morgado Juriçaca e vários outros bens: o engenho Trapiche, localizado
na freguesia de Ipojuca; duas fazendas de gado chamadas Bonito e Sariema, no sertão do Cariri, na
Paraíba; umas moradas de casa no Recife; duas terras na freguesia do Cabo, sendo uma na praia do
Paiva, na barra da Jangada; e uma terra em Cajabuçu, onde não se sabe a localização (Costas, 1983,
p. 239-42).

A doação do morgado, bem como sua sucessão ilegítima, infringia as regras de sucessão do
vínculo – era cláusula quase unânime, como a primogenitura e varonia, a legitimidade do
nascimento, isto é, a nascença proveniente do casamento do morgado anterior (Caldeira, 2007, p.
96; Rosa, 1995, p. 107). Tal ilegitimidade fez com que quatro parentes – João Pais Barreto,
Francisco de Sousa, João Marinho Falcão e João de Sousa Passos – pleiteassem a sucessão do
morgado Juriçaca, bem como a administração dos bens do hospital. Após dez anos de avaliações e
186

de querelas judiciais, João Pais Barreto ganhou a causa conforme a decisão do juiz das capelas, João
Rodrigues Colaço, de 3 de dezembro de 1753, confirmada pela Relação da Bahia e de Lisboa (Costa,
1983, fls. 239-42; Leão Filho, 1969, p. 68-78).

Quadro 1 - Sucessão dos morgados dos Pais Barreto: Cabo (ou Madre de Deus) e Juriçaca (1580 -
1837)
1544 - 1617
73

João Pais Inês


Velho Guardês de
Barreto Andrade

1580 - SI

Catarina Filipe Brites Catarina Luís de


Ana João Pais Estevão Sousa Eng. Juriçaca
Pais de Castro Pais de Barreto
Corte Barreto Távora Barreto Albuquerque Henriques
Real "o moço" Barreto

Eng. Juriçaca e
administração
Maria Catarina José Inês João Leonor
Engenho Velho, do Hospital do
João Pais Estevão de de Melo e de Sá Barreto de de Cabral
Guerra e moradas Paraíso
Barreto Pais Albuquerque Albuquerque Albuquerque Sousa
de Castro Barreto

SI - 1711
Francisco
Engenho Velho, de
Guerra e moradas João Fernão Brites Maria Sousa
Pais Rodrigues Maria da Maior de
Barreto de Castro Rocha Albuquerque SI - 1749
Eng. Juriçaca e
Sucessor do vínculo João
administração
do Hospital do
Engenho Velho,
Juriçaca e administração de Paraíso
Guerra, Ilha e João Manuela do Hospital do Paraíso Sousa
moradas Pais Luzia por ação judicial - 1753
Barreto de Melo

Engenho Velho, Guerra, Ilha,


moradas, Morgado Juriçaca Estevão
e administração do Hospital Maria
José Pais Isabel Pais
do Paraíso Barreto Barreto

1779 - 1848
Engenho Velho, Guerra, Ilha, 69
moradas, Morgado Juriçaca
João Francisco
e administração do Hospital
Pais Pais
do Paraíso
Barreto Barreto

Legenda:

- Mulher - Sucedeu o morgado Madre de Deus (ou Cabo) - Relação ilícita

- Homem
- Sucedeu os morgados Madre de Deus (ou Cabo) X - Sem Informação (SI) sobre
e Juriçaca a idade de falecimento
- Sucedeu o morgado Juriçaca

Fonte: Fonseca, 1935, p. 26-32; Costa, 1983, fls. 239-42; AHU, Cód. 1155; AHU, PA, PE, Cx. 116, doc. 8869; AHU,
PA, PE, Cx. 46, doc. 4121; AHU, PA, PE, Cx. 10, doc. 970; AHU, PA, PE, Cx. 146, doc. 10661; ANTT, CGPP, Liv.
481, n° 314.
187

Segundo Pereira da Costa (1983, fls. 239-42), sucederam na administração do vínculo os


descendentes de João Pais Barreto até as primeiras décadas do século XIX, sendo o último morgado
do Cabo, o capitão-mor Francisco Pais Barreto, o marquês do Recife. Corrobora as afirmações de
Costa, o fato de Estevão José Pais Barreto já constar como proprietário do engenho Juriçaca na
lista de 1760 da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (AHU, Cód. 1821, doc. 10). Ademais,
há uma carta que demonstra o morgado do Cabo, Estevão José Pais Barreto, como administrador
dos bens do hospital, datada de 1774 (AHU, PA, PE, Cx. 116, doc. 8869). Verificou-se ainda que
os Pais Barreto recebiam 200$000 réis anuais pela administração do hospital, como revela a penhora
de Felipe Pais Barreto, pela Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, em 1788. Esse último
devia à dita Companhia 253$164 réis e não pagou, motivo pelo qual foi executado em metade dos
rendimentos do hospital, 100$000 réis anuais (AHU, Cód. 1155).

Assim, como se pode observar no quadro 01, os Pais Barreto, em meio a algumas querelas,
conseguiram dar continuidade a dois morgados, Cabo e Juriçaca, ao longo de quase todo o período
colonial, por cerca de duas centúrias e meia. Ambos os morgados continuaram a serem geridos
pela família Pais Barreto até os vínculos de bens serem extintos no Brasil por meio do decreto
legislativo datado de 29 de maio de 1837 (Caldeira, 2007, p. 217).

Segundo a historiadora Mariely de Albuquerque Mello Felipe (2015, p. 54-55), a


administração do hospital por parte dos Pais Barreto foi bastante conflituosa. A família era acusada
de retardar obras de caridade, expulsar e convocar clérigos de forma imprudente e interessada, e
de destruir o patrimônio do hospital. No início da década de 1780, o padre Antônio Gorjão
escreveu uma carta à Rainha Maria I sobre o estado de decadência do hospital, denunciando,
especialmente, que o administrador, Estevão Pais Barreto, e seus parentes deviam ao hospital mais
de dez mil cruzados, e que era sabido que o mesmo administrador havia vendido umas peças de
prata da igreja do hospital, “cuja prata mandou converter em obra para o serviço de sua casa e
parentes”.

Atenta-se, dessa forma, que além dos bens que a família possuía, vinculados ou livres, eles
ainda administravam o patrimônio do hospital, o qual, como denunciou o padre, por vezes era
usurpado. É possível que os Pais Barreto se achassem no direito de usufruir dos bens do hospital,
tendo em vista que foi a sua própria família que fundara o hospital e a Santa Casa. É possível que
a família tenha facilitado o arrendamento dos bens do dito hospital para seus parentes, como se
observa no caso do engenho Algodoais, doado por Inês Barreto, como se afirmou, que, durante a
década de 1780, se encontrava arrendado a Felipe Pais Barreto (ANTT, CGPP, Liv. 481, n° 616).
O interesse da família em preservar os bens que haviam sido doados ao hospital torna-se notório
quando se observa que a família, no ano de 1857, conseguiu reaver a propriedade do Algodoais,
188

por meio de ação judicial, décadas após a dissolução dos vínculos Cabo, Juriçaca e a perda da
administração do hospital (LEÃO FILHO, 1969, Vol. 282, p. 67).

A vinculação de bens como símbolo de nobreza

Desde o período medieval até finais do século XVIII, como observou Maria de Lurdes
Rosa (1995, p. 110) e Nuno Gonçalo Monteiro (2005, p. 17), a instituição de morgadios em Portugal
possuía profundas conexões com a nobreza, especialmente por seu caráter simbólico, como o uso
de brasão das armas com o apelido da família no túmulo do fundador do vínculo, e na entrada da
capela. As Ordenações Filipinas (1603, Livro IV, título 100, § 5, p. 991), na mesma direção, apontavam
como o principal motivo da instituição de vínculos de bens a conservação e o engrandecimento da
nobreza.

Contudo, atenta-se que a instituição de vínculos pela nobreza, embora fosse a prática mais
disseminada, não era uma exigência definida, como atentou o jurista Manoel de Almeida e Sousa
Lobão (1807, p. 38). A ausência de um impedimento legítimo para a instituição de bens por plebeus
parece ter sido aproveitada especialmente nos Açores, onde muitos artesãos e mercadores
instituíram vínculos de bens, mormente capelas, entre a segunda metade do século XV e o século
XVIII (Rodrigues, 2003, p. 657-662).

A definição da qualidade dos indivíduos que poderiam instituir vínculos de bens foi
apontada somente na lei de 3 de agosto de 1770, a qual instituiu uma série de mudanças no direito
sucessório, inclusive na vinculação de bens. Essa lei decretou que poderiam instituir vínculos de
bens, além dos fidalgos ou pessoas de distinta nobreza, pessoas que por diferentes meios prestaram
serviços à Coroa pelas letras, pelas armas, ou pela aplicação ao comércio67, à agricultura ou às artes
liberais. A lei, dessa forma, estabeleceu que os indivíduos que não compunham a nobreza pudessem
vincular seus bens.68

No que se refere aos morgadios, essa lei dificultou sua regularização e novas instituições.
Implicou em restrições de sucessão de parentes mais distantes, obrigou a instituição a ser realizada
por meio de escritura e documentos comprobatórios, e introduziu o limite de um rendimento anual
mínimo no valor de um conto de réis (Caldeira, 2007, p. 100-107). Essa lei, dentre outras do

67
Tratava-se dos homens de negócio de grosso trato, como evidenciou o legislador da lei de 29 de novembro de 1775
(Caldeira, 2007, p. 102).
68
Anos depois, em 1773, complementou essa abertura de acesso a distinções sociais, que antes eram concentradas no
seio da nobreza, a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, que mudou as exigências para a
nobilitação dos indivíduos (Olival, 2001, p. 362-368).
189

Pombalismo, levou à extinção de muitos vínculos, cerca de 15 mil entre 1771 e 1777, segundo José
Vicente Serrão (1989).

Assim, diante da alteração das disposições e significados de um vínculo de bens ao longo


do tempo, chama-se atenção para dois aspectos dos morgadios da família Pais Barreto. Em
primeiro lugar, observa-se que tais vínculos foram instituídos anteriormente à lei de 1770, o que
corrobora o caráter nobiliárquico da família. Em segundo lugar, a família continuou de posse de
seus vínculos até o século XIX, o que sugere que esta cumpriu com os novos requisitos para
continuar a sua posse, como o rendimento mínimo de um conto de réis anualmente – embora não
se saiba como ocorreu essa fiscalização por parte da Coroa na América portuguesa.

Considerações

Através da apresentação da fundação, sucessão e gestão dos morgados dos Pais Barreto,
observa-se que a vinculação de bens em muito colaborou para a continuidade e aumento dos bens
da família e ainda para a perpetuação da memória da família. No codicilo de João Pais Barreto, “o
velho”, instituidor dos morgados do Cabo e Juriçaca, datado de 1617, ele solicitou que o filho
herdeiro do morgado do Cabo, o qual deixava como testamenteiro, fosse tutor de seus demais
filhos e filhas, que os acomodasse e repartisse a terra “direitamente”. Mesmo com as relações
hierárquicas estabelecidas no interior da família, devido à herança desigual, o instituidor do vínculo
presava pela boa convivência dos filhos. Aos demais filhos solicitou que, pelo amor de Deus,
agissem bem uns com outros, e que obedecessem ao irmão herdeiro do vínculo (Pio, 1969, p. 19).

Assim, a instituição de um vínculo reforçava os direitos e deveres mútuos entre os


familiares, sobretudo, os da mesma geração. O herdeiro do vínculo, passava a ser o administrador
de uma parcela considerável dos bens da família, e ainda era o tutor dos demais herdeiros dos pais.
A característica de base deste relacionamento com o fundador, segundo Maria de Lurdes Rosa
(1995, p. 50-51), é a convicção de que os presentes representantes da família não podem desmerecer
a herança recebida, tanto material como simbólica – a honra e a boa memória. O morgadio, era
invocado como fator que possibilitava a perpetuação, sendo o sucessor do vínculo uma
continuação do próprio instituidor.
190

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192

Livros diário-caixa e conta-corrente da Sociedade de Auxílios


Mútuos União Operária, de São Borja (1905-1911): de documento à
fonte de informação para a historiografia

Anderson Romário Pereira Corrêa*

Resumo: A Historiografia é uma das ciências que necessita da observação da informação. Essa
informação pode estar acondicionada em diversos tipos de suportes. Esses suportes podem ser
chamados de Documentos. Existe uma variedade de tipos de Documentos e que podem ser
conhecidos, também, dependendo de suas características, de vestígios e indícios. Entende-se,
portanto, que as informações para a Historiografia são chamadas genericamente de “Fontes de
Informação para a Historiografia” - FIH. Desde um método dedutivo, só existe FIH a partir da
definição do Problema e dos objetivos de uma pesquisa. São as perguntas do Historiador que
transformam os Documentos em FIH, tornando-os Testemunhos. Este trabalho pretende realizar
a tradicional Crítica dos Testemunhos, ou seja, a Depuração da Informação. Pretende-se saber se
as FIH, os livros Diários-Caixa e Conta-Corrente da Sociedade de Auxílios Mútuos União
Operária, de São Borja (1905-1911), são sinceros e podem responder à pergunta (ao problema):
“por que existem membros da elite local na entidade operária”? Os livros Diário-Caixa e Conta-
Corrente da S.A. M. União Operária, de São Borja (1905-1911), são as fontes desse trabalho que
se utiliza do método da Depuração da Informação: taxionomia, análise de fiabilidade e análise de
adequação: 1) A fiabilidade (crítica interna: autenticidade, veracidade, objetividade) e 2) A
adequação (crítica externa). A análise documental, a Depuração da Informação, é mais um elemento
que corrobora para a hipótese central de que os membros da elite local produziam e reproduziam
relações de dominação dentro da entidade mutualista Sociedade de Auxílios Mútuos União
Operária de São Borja. Conclui-se que os livros Diário-Caixa e Conta-Corrente são sinceros e
adequados para responder ao problema e objetivos da pesquisa.

Palavras-chave: Heurística, Fontes Históricas, Mutualismo, São Borja

Introdução

A pesquisa em andamento, com o título “O mutualismo operário em São Borja na


República Oligárquica”, tem por problema responder sobre a presença de membros da elite local
na associação Sociedade de Auxílios Mútuos União Operária, de São Borja (SAMUO). Para
responder os motivos da participação de membros da elite local numa associação operária é
importante um conjunto de registros (Documentos/fontes) que informem sobre o cotidiano da
entidade, um olhar por dentro da mesma. A pesquisa conta como principais Documentos (Fontes)
os livros Diário-Caixa e Conta-Corrente do período que vai de 1905 a 1911. De acordo com Biondi

*
Licenciado em História, Especialista em Gestão Escolar e Mestre em História. Professor Assistente na Universidade
Federal do Pampa (Unipampa), Cursos de Ciências Humanas e Ciências Sociais /Ciência Política – São Borja - RS.
Coordenador do Projeto de Pesquisa “O mutualismo operário em São Borja na República Oligárquica”
193

(2017), no Brasil, a partir do final dos anos 1970, as pesquisas sobre História do Trabalho
privilegiaram as fontes impressas oriundas do movimento operário. A grande imprensa da época,
da República Oligárquica, dava pouca atenção ao mundo do trabalho. Nos jornais, havia poucas
matérias e as que existiam reproduziam uma visão paternalista e preconceituosa sobre os
trabalhadores. Depois de 1920 a grande imprensa alargou a atenção para o mundo do trabalho.
Outro núcleo documental sobre o Mundo do Trabalho remete ao campo da memória, destacando
as testemunhas orais que foram exploradas intensamente na década de 1970. Também existem os
documentos de registros econômicos e estatísticos (recolhidas a partir de 1930), os documentos
policiais e judiciais (fontes da repressão) produzidas, principalmente, a partir de 1924. Os
documentos propriamente judiciais (justiça civil e penal, trabalhista) começaram a ser utilizados
pelos historiadores a partir de 1990. Sobre as fontes institucionais, tem-se o trabalho com os
relatórios de diversas instâncias executivas. Ainda existem as fontes do mundo empresarial que são
pouco exploradas. A partir do Século XXI aparecem as fontes do movimento sindical onde as
organizações sindicais vêm trabalhando no sentido de organização e preservação de seus acervos.
As mais antigas fontes, das organizações dos trabalhadores, são do Século XIX e transição do
Século XIX pro Século XX e são, sobretudo, documentos das mutuais69. A escassez de documentos
de outros períodos se dá devido aos vários momentos de repressão e ditaduras que o Brasil passou.
Existe uma rica documentação das organizações do movimento sindical de períodos mais recentes,
após 1980. (Biondi, 2017. p. 1-4) De acordo com Arostegui (2006), é importante separar o que
aconteceu daquilo que se sabe sobre o que aconteceu. Para ele, o passado é a História e uma das
formas de saber sobre o passado é a Historiografia. O mesmo autor escreve que a Historiografia é
uma das ciências que necessita da observação da informação. Essa informação pode estar
condicionada em diversos tipos de suportes, os Documentos. Existe um variado tipo de
Documentos e que podem ser chamados de vestígios e indícios. (Arostegui, 2006, p. 480s)
Entendemos, portanto, que as informações para a Historiografia são chamadas genericamente de
“Fontes de Informação para a Historiografia” (FIH). Para Arostegui (2006, p. 490s), desde um
método dedutivo, só existe FIH a partir da definição do problema e dos objetivos da pesquisa
(Idem). São as perguntas do Historiador que transformam os Documentos em FIH, tornando-os
Testemunhos. Este artigo pretende realizar a tradicional Critica dos Testemunhos, ou seja, a
Depuração da Informação (Arostegui, 2006, p. 490) Pretende-se saber se as FIH, os livros Diário-
Caixa e Conta-Corrente da SAMUO (1905-1911), são sinceros e podem responder à pergunta “por

69
Sociedades de Socorros Mútuos: “associações formadas voluntariamente com o objetivo de prover auxílio financeiro
a seus membros em caso de necessidade” In: Linden, Marcel van der (ed.). Social security mutualism. The comparative
history of Mutual Benefit Societies. Bern: Lang, 1996, p. 13-14. Apud. Silva Jr, Adhemar Lourenço da. As sociedades
de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas (estudo centrado no Rio Grande do Sul–Brasil, 1854-1940). 2004.
Tese (Doutorado em História) - PPGH da PUCRS, Porto Alegre, 2004, p.17
194

que existem membros da elite local na entidade operária”? Hipóteses: a elite pretende reproduzir
relações de dependência e dominação dentro da entidade operária (paternalismo). Então, essa elite
deve manipular e concentrar tipos de recursos fazendo com que os outros membros dependam
dela para ter acesso aos mesmos recursos. Para essas perguntas os Documentos, transformados em
Testemunhos, serão FIH.70

Este estudo dos Documentos pretende-se uma pesquisa bibliográfica, qualitativa e com
análise e observação da documentação primária (documentos originais não publicados). Os
Documentos (FIH) principais e objeto de análise deste estudo são os livros Diário-Caixa e Conta-
Corrente da SAMUO (1905-1911). Estes livros encontram-se no Arquivo Histórico Municipal de
São Borja, localizado na antiga Estação da Viação Férrea. O artigo será dividido em três capítulos:
Na Parte I será feita uma discussão conceitual e técnica sobre a definição e classificação dos
Documentos (vestígios, indícios, registros, provas), sua transição de documento pra Testemunho
(importância do testemunho) e o Testemunho como Fonte de Informação pra Historiografia; Na
Parte II, Será feito uma análise sobre a produção, guarda e disponibilização dos Documentos
(Fiabilidade); Na Parte III serão aplicados os conceitos técnicos na análise dos Documentos e a
transformação dos mesmos em Testemunhos e FIH (Adequação).

Parte I

O conhecimento da forma de produção de um documento é fundamental pra análise da


informação que ele produz. A tradicional Crítica das Fontes e ou Crítica dos Testemunhos deve
ser entendida, hoje em dia, dentro do campo de estudos da Documentação71, deve ser considerada
“depuração da informação”. (Arostegui, 2006. p. 490). Mais adiante, na mesma obra, Arostegui
escreve que a crítica das fontes pode ser substituída hoje de forma vantajosa pela análise
documental. (Idem, p. 506) O mesmo autor ratifica: “A análise documental poderia ser definida
como o conjunto de princípios e de operações que permite estabelecer a fiabilidade e adequação
de certo tipo de informações para o estudo e explicação de um determinado processo histórico”.
(Idem, p. 508).

70 Problema construído a partir da revisão historiográfica e principalmente nas discussões de Icaro Bittencourt sobre a
União Operária de Cachoeira do Sul.
71 Arquivologia, Biblioteconomia, Documentação Museológica. Isso só pra citar a gestão de informação (custodiada)

de acordo com seus mais diferentes suportes. Porém faz-se necessário também pensar na qualificação das informações
que não encontram-se custodiadas.
195

Petersen (2013.p.295) também corrobora com a ideia de que os Documentos, materiais


empíricos, só se tornam Fontes quando um historiador os interroga. De acordo com Petersen:

Por todas essas razoes, não é demais frisar que é preciso distinguir entre
documento (testemunhos potenciais), suscetíveis de se converterem em fontes, e
fontes, que são esses documentos interrogados pelo historiador nos vários
sentidos anteriormente mencionados. E é mais correto se dizer “fontes para a
história” – ou seja, um material que foi transformado em fonte – do que “fontes
da história”, um material que por si mesmo seria a história. (Petersen, 2013, p.
300).

Segundo Barros (2012), entram nessa possibilidade de se converterem em FIH tanto os


tradicionais documentos textuais (crônicas, memórias, registros cartoriais, processos criminais,
cartas legislativas, obras de literatura, correspondências públicas, correspondências privadas e
outros mais) como também os documentos arqueológicos e outras manifestações da cultura
material, representações pictóricas, imagéticas, a oralidade, as informações genéticas, as paisagens,
a linguística, as heranças imateriais sem suporte físico. (Barros, 2012, p, 130).72

Para fazer a depuração das informações é necessário trabalhar com os conceitos e critérios
sugeridos por Júlio Arostegui (2006). Os Critérios Taxionômicos: Posicional (direta e indireta),
Intencionalidade (voluntária/intencionais/testemunhais ou involuntária/não intencionais/não
testemunhais)73, Qualitativo (Materiais e ou culturais), Formal Quantitativo (Seriadas, não seriadas,
seriáveis e não seriáveis) (Arostegui, 2006, p. 493).

O melhor Documento é aquele que oferece informação de forma Direta (primária), de


forma involuntária, cultural e seriado ou seriável. Aqui cabe uma reflexão, depois que o
investigador/historiador observar os tipos de suportes de informações que ele tem e que tem as
perguntas (problema, objetivos), pode incluir (chamar para depor), para fornecer informação, os
testemunhos involuntários.74

72 De acordo com Barros o conceito de Documento Histórico era muito utilizado por uma linha positivista e num
período em que os historiadores buscavam “provas” do que aconteceu (no sentido jurídico do termo). Com o passar
do tempo, mudou a postura de muitos historiadores que já não procuram a verdade e sim os discursos do passado.
Assim deixaram de se referir aos Documentos e sim às Fontes Históricas. (Barros, 2012, p. 132).
73 “A fonte voluntaria, testemunhal, que foi produzir pra gerar um tipo de memória histórica, memória oficial, é a fonte

clássica. A fonte voluntária é a que constitui a memória oficial das sociedades. É o reflexo do imaginário que os
componentes de um grupo constroem, de sua mentalidade e ideologia.” (Arostegui, 2006, p. 498). Segundo esse autor,
é normal que a historiografia cientifica prefira trabalhar com fontes não testemunhais. As fontes testemunhais são as
mais manipuláveis. Então, dependendo do problema e dos objetivos, das perguntas, temos os testemunhos que se
oferecem (voluntários) e os testemunhos que são chamados pra depor (testemunhos involuntários).
74 “A testemunha viu, ouviu, sentiu algo. A testemunha quer certificar o que aconteceu. A testemunha é uma evidencia

e prova do que aconteceu. A prova testemunhal fundamenta a construção da verdade a posteriori. A primeira coisa
que o testemunho deve firmar é que “estava lá”. Em seguida vem a confiança no testemunho.” (Esperança, 2006, p.
239).
196

A Qualificação da Informação deve passar ainda pelos seguintes procedimentos: análise de


fiabilidade e adequação: 1) A fiabilidade (crítica interna: autenticidade, veracidade, objetividade) e
2) A adequação (crítica externa) (Ibdem, p. 509).

1) A fiabilidade: a) Autenticidade (técnicas de datação, linguística, história da fonte); b)


Depuração da informação (coerência interna e comprovação externa); c) Contextualização
(técnicas de classificação, análise de séries, comparação com fontes diversas) (Idem).

2) A adequação: A adequação demanda maior definição conceitual/teórico. a) Demanda


de informação (tipos de documentos requeridos, quantidade de informação precisa, variedade de
suportes e conteúdo); b) Recompilação documental (coleta, busca e análise); c) Seleção (hierarquia,
confrontação e novas buscas) (Ibidem, p. 511).

Parte II

Nesse momento da pesquisa será realizada uma análise da fiabilidade (conforme exposto
no item anterior). Será feito uma análise sobre a produção, guarda e disponibilização dos
Documentos. Os livros Diário-Caixa e Conta-Corrente da SAMUO foram produto da invenção e
criatividade dos membros da SAMUO? Será que eles pensaram em criar formas de registros das
atividades sem se orientarem em nada? Ou será que havia uma tradição costume, regulamentações,
normas e leis para a produção dos registros da entidade?75 É importante destacar que a forma de
atingir a autenticidade, depuração e contextualização é muitas vezes através dos mesmos
procedimentos e recursos. A distinção entre eles é muito tênue.

A sequência da análise será: autenticidade, depuração e contextualização.

a) Autenticidade: Os livros são de aproximadamente 35 cm X 22 cm, conhecidos por


Códices (manuscritos). Estão com as folhas ressequidas e amareladas (fator tempo e exposição à
luminosidade). Os registros são feitos à mão e com uma grafia anterior à reforma ortográfica de
1943. Nas páginas iniciais existe um “Termo de Abertura” com assinatura do presidente e com a
data e local. Nos livros em análise existe uma etiqueta onde está escrito “Archivo da Intendência
Municipal”. O período Intendência no Brasil tem início com a República e vai até o Estado Novo
(1889-1930). A Intendência era o poder executivo municipal. Após 1930, passou a ser chamado de
prefeitura. Antes da Reforma ortográfica no Brasil, de 1943, a palavra Arquivo era escrita Archivo.

75
Um Documento poder ser um sinal, vestígio, pegada, indício produzido de forma aleatória, única e sem
intencionalidade. Mas também pode pertencer a uma tradição, uma cultura, um habito, costume.
197

Ou seja, muito provavelmente os livros da União Operária, uma entidade privada, estavam
guardados no arquivo do poder público municipal, do executivo.

Figura – 1 Livro Diário-Caixa


da S de A.M. União Operária (1905-1911)

Fonte: Elaboração Própria

Termo de Abertura do livro Diário-Caixa:

“Termo de Abertura
Este livro com 149 cento e quarenta e nove folhas, por mim numeradas e rubricadas
com a rubrica Boscol de que uso será empregado como diários na tesouraria da S de A.
M. União Operária
São Borja, 1º de maio de 1905
Luiz Patrício Bascol
Presidente”

De fato, todas as páginas estão numeradas e rubricadas com esta rubrica. Este livro Caixa
traz uma lista dos sócios da S. de A.M. União Operária. Para que servia o Livro-Caixa? De acordo
com o Código Comercial, Lei 556 de 1850, em seu Artigos 12:

No Diário é o comerciante obrigado a lançar com individuação e clareza toda as


suas operações de comércio, letras e outros quaisquer papéis de crédito que
passar, aceitar, afiançar ou endossar, e em geral tudo quanto receber e despender
de sua ou alheia conta, seja por que título for, sendo suficiente que as parcelas de
despesas domésticas se lancem englobadas na data em que forem extraídas da
caixa. Os comerciantes de retalho deverão lançar diariamente no Diário a soma
total das suas vendas a dinheiro, e, em assento separado, a soma total das vendas
fiadas no mesmo dia. No mesmo Diário se lançará também em resumo o balanço
geral (artigo nº. 10, nº 4), devendo aquele conter todas as verbas deste,
apresentando cada uma verba a soma total das respectivas parcelas; e será
assinado na mesma data do balanço geral.
198

Figura 2 – Livro Conta-Corrente da S de A.M. União Operária (1905-1911)

Fonte: Elaboração Própria

Termo de Abertura do Livro Conta-Corrente:

“Termo de Abertura
Este livro, com 150 cinto e cinquenta folhas por mim numeradas e rubricadas com a
rubrica Bascol de que uso será para as contas Correntes dos sócios da S de A. M.
União Operária.
São Borja, 1º de Maio de 1905.
Luiz Patrício Bascol”

Pelo que se percebe, o livro Conta-Corrente exercia as funções e atribuições destinadas ao


Livro Copiador. Então, neste caso, o livro Conta-Corrente poderia ser chamado Copiador, que
possuía, de acordo com o Código Comercial - Lei 556 de 1850, em seu Artigos 12, a seguinte
atribuição: “No Copiador o comerciante é obrigado a lançar o registro de todas as cartas missivas
que expedir, com as contas, faturas ou instruções que as acompanharem.”

Os dois livros possuem as mesmas características físicas, no formato e tamanho, e os


mesmos padrões de registro (tipo de grafia). Os livros de registro possuem, entre outros registros,
os nomes dos sócios (aproximadamente 100 nomes de sócios aparecem nos registros). Entre os
nomes dos sócios aparecem vários nomes de pessoas que viveram no período em estudo
(comparando com a historiografia e com outras fontes primárias como o Almanak administrativo,
mercantil, e industrial do Rio de Janeiro. [Almanak Laemmert]). Os registros são contábeis e a
199

moeda e os valores são correspondentes aos valores e moeda do período (Reis). Os registros dos
Livros Diário-Caixa e Conta Corrente apresentam a forma e valores daquilo que prescreve as
normas estatutárias (Estatutos publicados na imprensa). Existe uma sequência de registros que
compreendem os anos de 1905 a 1911.

b) Depuração
Os livros da SAMUO são: primários, não intencionais, culturais, de administração privada,
não seriados e seriáveis. Mac Cord (2017, p.09) ao estudar a Sociedade dos Artistas Mecânicos e
Liberais, entre os séculos XIX e meados do Século XX, encontrou um conjunto documental
bastante completo, complexo e denso, que foi produzido por essa entidade. A grande parte dos
volumes de documentos eram administrativos e financeiros. Também haviam documentos de
outras atividades, como os pedagógicos. Os livros que o autor encontrou foram: Livros de atas do
Conselho Administrativo, Livro de atas da Assembleia Geral, Livro de atas dos trabalhos das Mesas
Eleitorais, Livro de contas correntes dos sócios, Livro de matrícula das aulas primárias, Livro de
matrícula das aulas de geometria, Livro de matrícula no francês, Livro de matrícula de primeiras
letras, Livros de matrícula dos sócios, Livro de mensalidade dos sócios, Livro de matrícula dos
alunos, Livro de balanço. (Ibdem, p. 10).

Pela descrição de documentos da sociedade dos artistas dá para perceber a quantidade e o


tipo de Documentação que pode ser produzida por uma entidade mutual. Essa documentação era
produzida por uma prática escriturária? Haviam leis e regulamentações que determinavam a
produção desses registros? Adhemar L. da Silva Jr (2003) nos fala sobre a relação das mutuais com
o Estado, que segundo ele, podem ser analisadas em três dimensões: normativo, administrativo e
político. Na esfera normativa, a legislação que regulamenta as mutuais é de 1893 (para o período
de 190-1911). Mas ocorrem legislações anteriores que podem ou não produzir uma prática e ou
“costume” burocrático. As leis são de 1860, 1872, 1882 e a de 1893. A Lei de 1893 permite a
constituição de pessoa jurídica após o registro de estatutos em cartórios e publicação de extratos
de estatutos em Diário Oficial. (Silva Jr, 2003.p.408) Em 1907, a lei de sindicalização permite aos
sindicatos a constituição de caixas de socorro mútuos e cooperativas com autonomia financeira e
escrituração em separado (Dec. n.1637, de janeiro de 1907, artigo 3º, alínea C). O Estado começa
a competir com as mutuais com a instituição compulsória de caixas. Debate na câmara dos
deputados federais, entre 1917 e 1919, sobre seguros para acidente de trabalho. Em 1923, foi criada
a caixa de aposentados e pensões dos ferroviários. Criação de estatais de previdência. Na esfera
administrativa era possível que as entidades recebessem subvenções estatais (federais, estaduais ou
municipais), isenção tributária. Não eram praticas racionais legais e talvez clientelistas. (Ibdem, p.
410)
200

A Lei 173, de 10 de setembro de 1893, promulgada por Floriano Peixoto, que regulamenta
a organização das associações para fins religiosos, científicos, artísticos, políticos ou de recreio (nos
termos do art. 72, § 3º, da Constituição) diz que as mesmas deverão fazer a inscrição do contrato
social no registro civil da circunscrição onde está sua sede. A inscrição será realizada com o estatuto
devidamente autenticado e que ficará arquivado no registro civil. Antes da inscrição os estatutos
serão publicados integralmente ou seus extratos. A publicação deverá ser feita no jornal oficial do
Estado. Todas as alterações, se houverem, deverão ser publicadas da mesma forma. É interessante
destacar, entre outros aspectos da Lei, que a associação não pode hipotecar seus bens. Que a
diretoria deve prestar contas anualmente em assembleia. Diz a Lei que se os administradores não
prestarem contas de acordo com os prazos dos estatutos poderão ser citados por qualquer sócio
para prestá-las em Juízo. Outro artigo importante da Lei 173 de 1893, com número 14, diz que as
associações não recebem benefícios de restituição e é proibido contratar com seus diretores e
administradores.

Em 1905, o Estatuto da União Operária de São Borja (SAMUO) foi publicado no jornal A
Federação (órgão oficial do Partido Republicano Rio-grandense e do Governo do Rio Grande do
Sul). Ao observar o Estatuto, é possível identificar algumas passagens em que era determinado, de
forma explicita, a produção de registros (Documentos). O secretário fica responsável pelo registro
de Atas, correspondências, livros de registros de sócios. O tesoureiro fica responsável pelas
escrituras de receitas e despesas “conforme as regras usuais do comercio”,76 registro de bens, talões
de recibos, notas. O bibliotecário fica responsável pelo Arquivo de Papeis, livros, publicações e
jornais. Os responsáveis pela escrituração dos livros Diário-Caixa e Conta-Corrente eram o
Tesoureiro e o Presidente. O presidente era Luiz Patrício Bascol, o Secretário Luiz Souto e o
Tesoureiro era João Gomes Jardim.

Esse, portanto, é o contexto do “surgimento” dos Documentos Diário-Caixa e Conta-


Corrente da SAMUO. Como escreveu Petersen (2013), tão importante quanto saber como o
documento foi produzido é saber como e em que circunstância em que foi guardado e chega até
nós. (Petersen, 2013, p. 298).

Os dois livros objetos deste estudo (Diário-Caixa e Conta-Corrente) estão no Arquivo


Histórico Municipal de São Borja, localizado na antiga estação da Viação Férrea de São Borja. O
Arquivo Histórico Municipal de São Borja foi criado pela Lei 1.317 de 14 de maio de 1985 e está
localizado no atual local desde 2010. O acervo, composto por diversos fundos com uma trajetória

76
Os registros contábeis obedeciam a uma legislação Código Comercial, Lei Nº556, de 25 de junho de 1850. De acordo
com essa Lei, o Artigo 11 diz que os dois livros que são indispensáveis são o Diário e o Copiador de Cartas.
201

também diferente. O acervo que consta no Arquivo tem origem em três “fundos” que estavam
localizados em locais diferentes. Havia uma parte da documentação no chamado Arquivo Brasília,
outra parte num prédio da antiga Usina de Energia e uma outra parte na Biblioteca Pública.77

Figura 3 – Prédio da antiga Estação Ferroviária de São Borja onde, desde 2010, funciona o
Arquivo Histórico Municipal de São Borja

Fonte: Publicado no perfil de rede social do pesquisador Fernando Correa Rodrigues (2015).

Figura 04 – Um pouco dos documentos que estão sob a custódia do


Arquivo Histórico Municipal de São Borja

Fonte: Perfil de rede social da Prefeitura Municipal de São Borja (2014).

77
Fontes sobre o Arquivo Histórico de São Borja.
Fonte 1: https://elmissioneiro.blogspot.com/2010/11/historia-
perigo.html?fbclid=IwAR2a8MC6UGEVG8qxzgCHJvNnydYYl-8Sma860SOiXFGG03QX3F_smfmpig4 Acesso:
15/10/2020 às 1h e 30 min
Fonte 2:
https://issuu.com/i4plataformadenoticias/docs/matiz_conclu__do_b542959da2259d?fbclid=IwAR3_Z_XDCiIlVa
1mL3lgUOctdxtmWx1sQRJsWGZfP7qluWnI5K31xxc3UlI Acesso: 15/10/2020 às 15h e 40 min.
Fonte 3: Conversas por aplicativo de celulares com Ronaldo Colvero, Rodrigo Maurer, Jandira Lopes, Fernando
Corrêa Rodrigues (Estes trabalharam no Projeto de salvamento dos documentos) e com Clóvis Benevenuto, curador
do Arquivo Histórico Municipal de São Borja, no dia 28/9/2020.
202

a) Sobre a contextualização

Como já foi exposto acima, é possível cruzar as informações contidas nos livros Diário-
Caixa e Conta-Corrente com outros documentos primários, da época, e com a historiografia. Os
documentos primários que confirmam as informações dos livros contábeis da Sociedade de
Auxílios Mútuos União Operária são o jornal A Federação (que publica o Estatuto da associação),
o Estatuto Social da Associação em estudo, o Almanak administrativo, mercantil, e industrial do
Rio de Janeiro (Anos de 1904 a 1913). Os registros desse Almanak confirmam a existência da
Associação e dos nomes citados como sócios com atividades administrativas, comerciais e
industriais na cidade de São Borja daquele contexto. A bibliografia que auxilia na contextualização
é o livro Missões Orientais e seus antigos Domínios, de autoria de Hermetério José Velloso,
publicado em 1909. Nesse livro, o autor descreve as cidades e tem uma parte dedicada a São Borja.
O livro de Alfredo Rodrigues da Costa, publicado em 1922, denominado O Rio Grande do Sul
também descreve os municípios do Rio Grande do Sul. Traz uma parte que descreve a cidade de
São Borja.

Parte III

Depois de tratar da Fiabilidade (Saber como e para que os documentos foram produzidos,
se são originais, da época que dizem ser) é o momento de saber se eles podem responder aos
“problemas”, os objetivos e perguntas dos historiadores. Essa fase chama-se Adequação e está
dividida em: a) Demanda de informação (tipos de documentos requeridos, quantidade de
informação precisa, variedade de suportes e conteúdo); b) Recompilação documental (coleta, busca
e análise); c) Seleção (hierarquia, confrontação e novas buscas). Nesse momento, que necessita de
maior definição conceitual e teórica, se os Documentos forem adequados, passam para a categoria
de Fontes de Informação para a Historiografia.

Os livros Diário-Caixa e Conta-Corrente na SAMUO de São Borja, não são fontes


testemunhais no sentido de terem sido feitos para contar a História da entidade. Eles são
transformados em testemunhos porque podem contar “sem querer”. É a perícia, técnica do
pesquisador/historiador que “chama-os para depor” e reconstituir o que aconteceu.

A pesquisa que dá origem a esse trabalho de Heurística é “O mutualismo operário em São


Borja na República Oligárquica (1905-1911)”. Pretende-se saber se as FIH, os livros Diário-Caixa
e Conta-Corrente da SAMUO (1905-1911), são sinceros e podem responder à pergunta “por que
existem membros da elite local na entidade operária”? Hipóteses: a elite pretende reproduzir
203

relações de dependência e dominação dentro da entidade operária (paternalismo/clientelismo). O


conceito de elite que será trabalhado segue as discussões de Barnabé (1999). Segundo esse autor

(...) buscando uma análise mais ampla sobre poder local, definimos elite política
não apenas como a somatória de prefeitos e vereadores de um município, mas
sim formada também por um conjunto de indivíduos com poder econômico,
político e ideológico que, influenciando de forma direta ou indireta o exercício
do poder e unidos por interesses comuns, apesar de eventuais contradições entre
si, formam um grupo coeso, trabalhando basicamente pelo mesmo interesse, qual
seja: o controle do poder local. (Barnabé, 1999, p. 14).

Então, essa elite, dentro da entidade ASMUO, deve manipular e concentrar tipos de
recursos fazendo com que os outros membros dependam dela para ter acesso aos mesmos
(recursos). Para responder a essas questões deve-se ter acesso a tipos de informações que
reproduzam o mais fielmente possível o cotidiano da associação. Primeiro, se é uma entidade
mutual ela trabalha com um caixa de recursos (financeiros), um pecúlio, que é compartilhado em
determinadas situações de necessidades de seus membros. Quais são as formas de “arrecadação”
desses recursos? Quais os critérios para que essa arrecadação? Quais são os tipos de benefícios que
os sócios têm ao participarem da entidade? Quais os critérios para receber esses benefícios? Quem
decide sobre isso? É necessário, portanto, uma fonte de informação que traga o cotidiano dos
recursos da entidade e esses documentos são os Livros Diário-Caixa e Conta-Corrente. Através
desses livros será possível identificar o nome dos sócios, cruzando com outras fontes será possível
identificar a diretoria e os papéis de cada membro (Estatutos) e quais as profissões, atividades
econômicas, se fazem parte da administração do município (político, militar) se eram profissionais,
operários, artesãos, empresários, estancieiros, etc. (Almanak). Será possível assim responder ao
problema “por que membros da elite local faziam parte da mutual operária?”

Para a analisar das informações contidas nos Livros Contábeis está sendo desenvolvido um
programa “Banco de Dados” digital com as seguintes informações: nome do sócio, atividade
econômica que desenvolve, se faz parte da elite local (sim ou não), se é imigrante (sim ou não), o
sexo (masculino/feminino), valor pago quadrimestralmente, se usufruiu ou recebeu algum valor ou
benefício da entidade. Um “Banco de Dados” que trabalha com os valores que a entidade recebeu
e quanto ela pagou e de quem. Um “Banco de Dados” com informações sobre a Banda Lira
Operária, quanto e de quem recebeu e quanto e pra quem pagou. Os dados desses três Banco de
Dados poderão ser cruzados.

Espera-se encontrar evidências de grupos da elite local manipulando os recursos da


entidade e estabelecendo relações de dependência.
204

Conclusão

Este estudo pretendeu analisar os documentos da Sociedade de Auxílios Mútuos União


Operária, de São Borja, do período de 1905 a 1911. Na República Oligárquica não havia políticas
públicas de amparo social. As ações de solidariedade eram do âmbito das relações privadas
(liberais). As entidades mutualistas existiam para suprir a falta de políticas públicas para os menos
favorecidos e oferecer vários tipos de socorros mútuos.

Os livros diário-Caixa e Conta-Corrente são classificados como “fontes” primárias, não


intencionais, culturais, de administração privada, não seriados e seriáveis. São autênticos (estão
dentro das normas e costumes administrativos/burocráticos da época). Foram guardados junto aos
documentos públicos do contexto de produção (Período da Intendência) e estão, atualmente, no
Arquivo Histórico Municipal de São Borja.

Conclui-se que os documentos Diário-Caixa e Conta-Corrente são sinceros (são da


registros originais do período em análise e suas informações pretendem-se verdadeiras) e
adequados para responder ao problema e objetivos da pesquisa a qual estão sendo requisitados para
dar seu testemunho. Saem do status de Documentos e passam, dessa forma, pra condição de Fonte
de Informação pra a Historiografia (FIH). A forma de produção e a forma em que foram
guardados/preservados corroboram na hipótese da pesquisa que trata sobre a presença da elite
entre os membros da entidade operária que é a reprodução de relações de dominação e
dependência. Dentro do contexto da República Oligárquica, do Liberalismo Excludente,
demonstram a confusão entre a esfera do público e do privado. Podem demonstrar tanto a presença
de elementos do paternalismo e clientelismo privatista quanto uma transição para políticas públicas
de amparo social.

Referências

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Unesp/Araraquara, v. 1, n.7, p. 103-118, 1999.

Biondi, Luigi. Apresentação: fontes para a história o trabalho. Revista Fontes, n. 7, pp. 1-4, 2017.
205

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historiadores. Em Questão, vol. 12, n. 2, p.235-251, 2006.

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recifense. Revista Fontes, n. 7, pp. 1-4, 2017.

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Petersen, Sílvia Regina Ferraz. Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: Edição
do autor, 2013.

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Original).

Silva Jr., Adhemar Lourenço da . Estado e mutualismo no Rio Grande do Sul (1854-1940). In:
Heinz, Flávio M.; Herrlein Jr., Ronaldo. (Org.). Histórias regionais do Cone Sul. Santa Cruz do Sul:
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Autentica, 2007.

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digitalizado pela Biblioteca Nacional, 1844-1889, 1891-1940. Disponível em: In:
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/almanak-administrativo-mercantil-industrial-rio-
janeiro/313394. Acesso: 14/11/2020.

Estatuto da Sociedade de Auxílios Mútuos União Operária, Fundada em 26 de maro de 1905, em


São Borja. Publicado A Federação, Porto Alegre, 07 de junho de 1905.

Livro Diário-Caixa da Sociedade de Auxilio Mútuos União Operária, de São Borja, 1905-1911

Livro Conta-Corrente da Sociedade de Auxílios Mútuos União Operária, de Sã Borja, 1905-1911.


206

“Liberdade,
Liberdade, abre as asas sobre nós”:
exaltação da identidade feminina na voz de Rita Lee durante o
processo de ditadura e a busca por equidade de direitos nas
composições de cantoras atuais

Ana Maria Sousa Braga Vieira*

Resumo: O trabalho aqui inscrito visa dissertar acerca da legitimação do poder feminino através
de letras de músicas cantadas por mulheres durante e após o período de repressão militar no Brasil,
chamado Ditadura Militar, e como estas colaboraram e continuam colaborando como alicerce a
movimentos feministas, contribuindo, à sua forma, para a manutenção de uma mentalidade e
cenário social majoritariamente desigual em relação a igualdade de gênero e a própria figura de
mulheres de etnias e culturas diferentes. As décadas de 60 e 70 são o grande enfoque deste trabalho,
haja vista que nessa época ocorreram transformações em diversas áreas da sociedade, atingindo
várias camadas sociais, incluindo a mulher, lhes proporcionando uma abertura rumo a um destino
melhor que outrora. Tendo como objetivo maior discorrer sobre a constituição de uma memória
social brasileira contemporânea no que concerne à construção de uma reestruturação cultural e
social do país, através de leitura bibliográfica, bem como leitura de músicas de autoria da cantora
Rita Lee, a fim de contestar ideais machistas e exaltar a imagem da mulher em diversos âmbitos,
primordialmente nas mídias culturais e sociais, como a música mostra-se essencial desde muitas
décadas.

Palavras-Chave: mulheres, identidade, gênero, música popular.

Introdução

Na idade contemporânea pode-se notar o início de uma nova mentalidade no que


desrespeito a imagem da mulher, e um avanço progressivo nas causas sociais femininas desde a ida
destas às fábricas, lugar especialmente masculino, como consequência da Revolução Industrial78 do
séc. XVIII. A partir de então, a figura feminina começa a ganhar uma modesta notoriedade no
cenário social, mas nada que possa se igualar ao prestígio dado à figura masculina desde os
primórdios.

Com o passar do tempo, e com as demasiadas transformações políticas, econômicas e


sociais de muitos países, o gênero feminino passa a absorver uma nova concepção de seu espaço
no mundo e a ir contra os ideais patriarcais trazidos desde a gênese da humanidade a

* Ana Maria Sousa Braga, graduanda do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade de Brasília;
annmarytt1@gmail.com
78 A Revolução industrial foi um conjunto de mudanças que aconteceram na Europa nos séculos XVIII e XIX. A

principal particularidade dessa revolução foi a substituição do trabalho artesanal pelo assalariado e com o uso das
máquinas.
207

contemporaneidade. Assim, procurando então se firmar de maneira livre e buscando sua própria
identidade, embora com lentos avanços e dificuldades de autonomia social e até mesmo emocional,
elas vêm produzindo mudanças gritantes no seu reconhecimento como mulher independente e
com direitos iguais ao sexo masculino.

Desde a origem do movimento feminista79, que ganhou força nos Estados Unidos, na
segunda metade da década de 1960, até os dias atuais, pode-se dizer que a mulher vem alcançando
direitos e espaços antes jamais imaginados por esta em diversos âmbitos, inclusive na música.

No Brasil, quando se fala de direitos para a mulher, muito se tem a mudar ainda, mas muito
já foi conseguido transformar. As décadas de 60 e 70 são o grande enfoque deste trabalho, haja
vista que nessa época ocorreram transformações em diversas áreas da sociedade, atingindo várias
camadas sociais inclusive a mulher, lhes proporcionando uma abertura rumo a um destino melhor
que outrora.

Através de leituras afins acerca do tema proposto, o trabalho busca fazer uma análise
sobre as nuances femininas destacadas em letras da música popular brasileira durante a ditadura e
suas composições atuais, trilhando por caminhos reflexivos sobre a condição de ser mulher. Como
isso interfere diretamente no sentimento de independência da mesma e em todas as outras esferas
cultural, social e até econômica, permeado por uma mentalidade no qual mulheres deixam de
exercer um papel de passividade perante aos homens, e passam a ter um protagonismo único no
cenário musical, modificando um discurso aceito por muito tempo, e dando novo sentido a letras
musicais, indo contra àquelas que corroboram a misoginia.

A condição da mulher brasileira antes dos anos 60

Mais do que qualquer outro, o olhar sobre a mulher é mediatizado;


É preciso decifrar a natureza dessa mediação.
(Michelle Perrot)

A mulher em larga escalada sempre esteve à margem no contexto histórico, não apenas do
Brasil, mas como de toda a humanidade. Sempre sob a luz de estereótipos, submissa sexual e
materialmente com relação ao homem, o modelo feminino era o que hoje denotam de “bela,
recatada e do lar”80. No qual, por serem mulher, detinham o dever de estar apta à procriação, aos

79 Feminismo é um movimento social, filosófico e político que tem como meta direitos equânimes e uma vivência
humana, por meio do empoderamento feminino e libertação de padrões opressores baseados em normas de gênero.
80 Os três adjetivos correspondem ao título da reportagem publicada pela revista Veja, apresentando Marcela Temer,

mulher do até então vice-presidente do Brasil, hoje presidente, Michel Temer – e “quase primeira-dama” nas palavras
da publicação. A expressão visava enaltecer Marcela Temer como a mulher que todas deveriam ser, à sombra, nunca à
frente de seu cônjuge.
208

cuidados da casa, marido e filhos, e consequentemente submissas aos comandos do “chefe” da


casa. Isso quando eram moças brancas e da elite; sendo negra e na condição de classe subalterna, a
situação ainda conseguia ser pior. Vistas como escravas e serviçais, opondo-se à imagem da mulher
de elite, estas eram vistas como alvo de promiscuidade e lascívia (Del Priore, 1989).

Além dos estereótipos popularmente disseminados acerca do corpo e das obrigações da


mulher, havia uma outra forma de subjugá-las. Isso porque, por muito tempo a mulher foi vista
como uma propriedade, principalmente durante o período colonial. Primeiro da sua família, de seu
pai especificamente – a figura masculina -, que arranjava o casamento da filha, como se fosse uma
transação comercial; e depois do marido, que casava esperando que a esposa fosse uma boa dona
de casa e boa progenitora, sendo-lhe dispensável conhecimento e cultura, para que a mesma não
tivesse meios de contestar a condição de submissão exigida por ele. Segundo Arceniaga em 1724,
citado por Del Priore em 1989: “... seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos, cuidar
com diligência das coisas da casa, não sair dela sem necessidade nem sem permissão do marido,
cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus.”

No período Imperial, as mulheres ainda continuavam “à mercê das vontades de seus


homens”, sejam eles pai ou esposo. Embora uma parcela destas já começavam a terem o privilégio
de serem instruídas de educação primária, maior parte das figuras femininas permaneciam na
ignorância, posto que a instrução era perigosa, pois poderia colocar em risco todo o esquema de
controle sobre esposas e filhas (Del Priore, 2016).

Sendo assim, é possível observar que desde o final do período imperial, a mulher carregava
ainda em si a inferioridade com relação ao homem, caracterizada pelo modelo patriarcal já antes
mencionado. Segundo Pedro:

As relações de gênero presentes no patriarcado pressupõem que o órgão sexual


determina as funções sociais. Dessa forma, a sociedade constrói uma identidade
social, que é construída através dos distintos papéis que são atribuídos a homens
e a mulheres. (Pedro, 2010).

Nas últimas décadas do século XIX começa a ganhar força não apenas a mentalidade de
que a mulher pode ser autônoma, mas também a discussão em torno do conceito de “gênero”,
facilitando a partir dessas contestações a visibilidade das discriminações contra a mulher. Neste
mesmo período eclode na Inglaterra o Movimento Women’s Suffrage81 onde milhares de mulheres
manifestaram-se pela garantia de seus direitos, em especial o direito ao voto. A conquista do

Movimento social, político e econômico de reforma, com o objetivo de estender o sufrágio (o direito de votar) às
81

mulheres. Participam do sufrágio feminino, mulheres e homens, denominados sufragistas.


209

sufrágio feminino aconteceu em 1913 no Reino Unido, caracterizando todo esse período como a
primeira onda do feminismo, seguida dos movimentos da mulher nos Estados Unidos, e por fim
abarcando a realidade das mulheres brasileiras.

A primeira onda de feminicídio no Brasil não foi tão forte quanto ocorreu fora do país.
Apenas em meados de 1960 é que pode-se dizer que ele volta a ter vez. Porém, justamente nessa
época é que desmonta um grande processo de mudanças no âmbito político, fazendo com que os
movimentos em prol da manutenção de direitos femininos se configurem em segundo plano.

No percurso musical que antecede os anos 60, a mulher é descrita em músicas, geralmente
cantadas por homens, como sexo frágil, ignorantes, sem voz, insensata, erotizada, vítima de
violência, sofredora, mentirosa, depreciada, louca, ingrata e até traidoras. Há uma imagem do
homem como o seu protetor, como um ser superior à mulher.

Como se pode observar na letra a seguir, de Mário Lago, a surpresa do autor da letra para
com uma mulher diferente de “Amélia”, uma mulher subserviente, frágil, sem voz e dita “mulher
de verdade” por servir aos comandos do homem.

Nunca vi fazer tanta exigência/ Nem fazer o que você me faz/ Você não sabe o
que é consciência/ Nem vê que eu sou um pobre rapaz/ Você só pensa em luxo
e riqueza/Tudo o que você vê, você quer/ Ai, meu Deus, que saudade da
Amélia/ Aquilo sim é que era mulher/ Às vezes passava fome ao meu lado/ E
achava bonito não ter o que comer/ Quando me via contrariado/Dizia: "Meu
filho, o que se há de fazer!"/ Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que
era mulher de verdade

Transmutação da figura feminina entre os anos que permeiam a Ditadura

Na década de 60 ocorreram várias mudanças no âmbito político, cultural e social no Brasil,


que propiciaram a mulher uma abertura a melhoria de vida em sociedade, alguns exemplos são: a
proibição da discriminação contra a mulher no emprego, a pílula anticoncepcional, advento do
biquíni, minissaia, modificação do Código Civil: o marido não possui mais o controle direto sobre
as decisões da família, entre outras.

Além de direitos legais, a mulher ganhava então mais notoriedade em outros campos. Tal
como a origem da participação feminina nas organizações de militância política e luta armada contra
a ditadura, sendo esta uma ruptura importantíssima da tradição, colocando em questão a tradicional
hierarquia de gênero. As ações femininas contestavam "as relações de poder tanto no mundo
naturalizado das relações entre homem e mulher, quanto em todos os âmbitos da sociedade,
210

articulando as relações de gênero à estrutura de classes" (Sarti, 2004, p. 37). Tanto Ferreira (1996)
quanto Abreu (1997) apontam que denominar essas rupturas de "iniciais" não se deve à participação
minoritária ou inédita das mulheres, mas principalmente pela indicação de uma participação
assimétrica: elas raramente ocupavam lugar de comando nas organizações. Na música, ainda eram
os homens que tomavam de conta das composições e das rádios. Mas ainda assim, chegando aos
anos 70, lá estava ela.

A partir dos anos 70 surgem composições em que as mulheres não são mais vistas como
frágeis, ignorantes e traidoras como no período que antecede 1960. Suas qualidades e direitos
passam a ser reconhecidos, a mulher deixa de ser vista a partir de uma interpretação sexista para
enfim representar a realidade. Virgindade, prazer, decisão e domínio sobre o próprio corpo, aborto,
maternidade, autoimagem, desejo e linguagem, foram transformados em temas da esfera de decisão
privados da mulher. Além dessa reforma estrutural das concepções sobre a mulher e a oposição ao
patriarcalismo tradicional, a realidade estava mudando e as músicas passaram a denotar a mulher
de uma maneira diferente, menos inferior. Independentemente de ser “de família” ou
``prostituída'', é reconhecida, exaltada, possuidora de desejos. Mas muito além disso, as próprias
mulheres começam a deixar de ser apenas o objeto do canto, deixam de ser a “musa” para ser
agente ativo de suas composições. Começaram a ser inseridas no cenário musical de maneira
empoderada, modificando o discurso e sentido que as letras das músicas davam a
representatividade feminina. Passam a compor e a cantar suas próprias histórias.

Nascem então grandes nomes da música popular brasileira na voz feminina. De acordo
com uma pesquisa feita por (Ferreira, 2005, p. 55) o número de mulheres compositoras aumentou
gradativamente entre as décadas de 70 e de 80, considerando que em 1928 existia uma compositora,
e nos anos 80 já existiam dez. Entre elas, Rita Lee Jones, ou simplesmente Rita Lee, foi uma das
cantoras e compositoras que mais se sobressaíram quando o assunto é representatividade feminina
em suas canções.

Enquanto Leila Diniz, atriz brasileira, foi denominada como revolucionária quando se trata
da imagem da nova mulher brasileira dos anos 60, no campo musical, anos mais tarde era o
Tropicalismo, e especialmente, Rita Lee quem exerceria esse papel, com seu grupo musical Os
Mutantes.

Auto expressão nas composições de Rita Lee e o Tropicalismo


211

O Tropicalismo coincidia com a Contracultura como fenômenos, ambos de uma cultura


de massa, da indústria cultural explodindo no mundo como força ideológica e mercadológica. Esse
resgate do espírito irreverente modernista, associado à Contracultura, teve seu cruzamento mais
nítido na figura de Rita Lee, uma garota despretensiosa, que encarnava bem essas vertentes e que
trouxe à cena tropicalista fortes tendências da multiplicidade que, aparentemente, se governava os
jovens pelo mundo todo. Drogas, loucura e nova sexualidade. Um caldeirão hedonista de grande
capacidade transformadora, invertendo o destino do “corpo civilizado”, corpo domesticado para
o trabalho.

A figura de Rita Lee, nesse momento, jogava com o múltiplo do cosmopolitismo e do


lúdico como resposta aos valores conservadores, mas não apenas isso: Rita Lee, investida de um
corpo de mulher, “brinca” com a indiferença de uma oposição moralista que parece não atingir sua
disposição para os experimentos. A busca do prazer propõe que se rompa com os dogmas que
delimitam o bom comportamento feminino, o comportamento único legítimo. O comportamento
que permeia o país séculos após séculos. A figura da cantora e compositora ignora o politicamente
correto e se sente no direito de ser o que bem quiser e atiçar a grande massa a tentar o mesmo,
principalmente as mulheres.

A Letra de “Agora só falta você82”, pode claramente ser considerada uma música que
retrata uma nova mentalidade feminina, embora seu viés da época fosse confrontar o grupo de Os
Mutantes que a expulsaram do grupo.

Um belo dia resolvi mudar/ E fazer tudo o que eu queria fazer/ Me libertei
daquela vida vulgar/ Que eu levava estando junto a você/ E em tudo que eu
faço/ Existe um porquê/ Eu sei que eu nasci/ Sei que eu nasci pra saber.

Observando a letra, pode-se dizer que esta traz como enfoque o fato de que a mulher pode
sim ser dona do próprio destino, a mulher passa a ganhar autonomia sobre o que quer, sobre o que
pensa e que não precisa necessariamente estar acompanhada para conseguir realizar seus ensejos.

Outra letra de música que pode ser amplamente analisada como parte da nova
representação feminina é “Elvira Pagã”:

Todos os homens desse nosso planeta / Pensam que mulher é tal e qual um
capeta / Conta a história que Eva inventou a maçã // Moça bonita, só de boca
fechada, / Menina feia, um travesseiro na cara, / Dona de casa só é bom no café
da manhã. Dama da noite não dá pra confiar, / Cinderela quer um sapatão pra

82foi um single em parceria da cantora brasileira Rita Lee e a banda Tutti Frutti, integrada no disco de vinil (1975) e
no álbum de estúdio (1995) Fruto Proibido, eleito pela revista "Rolling Stone" o 16º melhor disco brasileiro de todos
os tempos.
212

calçar, / Noiva neurótica sonha com o noivo galã (um lixo!) // Amiga do peito
fala mal pelas costas, / Namorada sempre dá a mesma resposta / Foi-se o tempo
em que nua era Elvira Pagã. Então eu digo: / Santa, santa, só a minha mãe (e
olhe lá) / É canja-canja, / O resto põe na sopa pra temperar!

Nessa letra, pode ser verificado a reprodução de lugares-comuns sobre a mulher, que
refletem uma visão machista generalizante do universo feminino, como explicita os versos
introdutórios: “Todos os homens desse nosso planeta / Pensam que mulher…”. Cada verso
seguinte expõe uma imagem da mulher estereotipada, um viés machista e desqualificador, por meio
de expressões que configuram um pensamento de “Visão masculina da mulher”. Inclusive, no
trecho em que a compositora diz “Santa, santa, só a minha mãe (e olhe lá)”, ela quebra a expectativa
tradicional de que a mulher seja santa e comportada, delata a atitude machista da atribuição de
aspectos clichê à figura feminina. Essa canção pode ser vista como um discurso de combate a uma
visão tradicional da mulher que há muito vinha sendo disseminada no cenário brasileiro.

Pela breve análise realizada, pode-se afirmar que as letras de música compostas por Rita
Lee empregavam a desconstrução de estereótipos femininos e construíam uma nova imagem da
mulher. A desqualificação da prática de exaltação dos atributos estéticos da mulher, de sua
erotização excessiva se dá também em canções como Fonte da juventude e Noviças do vício, além
de outras composições.

Com base nisso, é possível observar o quanto é importante a imagem da mulher na obra
de Rita Lee. A ênfase na expressão de um universo feminino construído pelo ponto de vista de
uma mulher ativa, crítica e rebelada nos mostra o quanto é peculiar o tema em seu trabalho, e o
quanto é coeso, estando presente nas suas primeiras canções e também nas mais recentes. Também
é possível ver a busca pela identidade expressa na voz de uma mulher num período de repressão
geral, e como esta conseguia driblar essa repressão, exaltando o sexo feminino.

Disseminação do Empoderamento feminino hoje

Rita Lee é uma das cantoras e compositoras que mais se posicionou em prol da liberdade
feminina em suas canções no auge da Música Popular Brasileira entre os anos 60 e 80. Nos dias
atuais, muitos são os nomes que continuam a exaltar de forma cada vez menos velada a imagem da
mulher.

Nos dias atuais, músicas falam abertamente sobre a sexualidade feminina, seus direitos e
anseios. Esse tipo de música vem como parte de movimentos que buscam fazer uma autorreflexão
de posicionamentos e posturas adotadas por estas. Enquanto na ditadura a indústria fonográfica
213

era a grande aliada de quem queria disseminar uma ideia, as grandes tecnologias é que prestam esse
papel. No que concerne a ideia de empoderamento da mulher, as tecnologias digitais permitem um
maior alcance de ideais femininos a grandes parcelas de mulheres, senão, todas. A acessibilidade
dessas canções e forma mais fácil contribui para a formação e manutenção da mentalidade
igualitária de mulheres, não só por parte destas, mas todas as camadas da sociedade, isso é,
incluindo os homens, principalmente.

O índice de machismo no Brasil ainda é grande, e após mais de 40 anos, ainda é difícil para
a mulher ser “dona de seu próprio nariz”, mesmo com tantas transformações sociais e econômicas.
Entretanto, no cenário cultural é possível observar uma abertura cada vez maior de
representatividade da mulher.

Na letra de “Tombei”, Karol Conka diz que a sociedade vai ter que se acostumar com a
ideia de que as mulheres não vão desistir de ter o que querem, ou a mesma sociedade corre o perigo
de “cair”. Demonstrando uma imagem da mulher, onde ela está ciente de seus direitos e suas
qualificações, e que ninguém vai mudar isso. No sertanejo, campo musical que mais tem dado
visibilidade à mulher hoje, há demasiadas composições de mulheres para mulheres. Canções que
falam sobre sua independência financeira, que trazem consigo uma reflexão sobre o papel da
mulher na sociedade e até mesmo em seus relacionamentos conjugais. Na letra de “50 Reais”, de
Naiara Azevedo, baseada em uma história vivida pela cantora, ela dialoga com todas as mulheres
que já foram traídas. Indiretamente, ela enfatiza que uma relação deve funcionar de igual para igual,
com respeito mútuo. Além de demonstrar que mulher pode sim ter independência financeira no
trecho que diz “...E pra pagar a dama que lhe satisfaz, toma aqui 50 reais...”

Neste viés, as mulheres, com o passar do tempo vem ganhando notoriedade quando se
trata de equidade perante os homens, e o mais importante, essa mentalidade é proveniente das lutas
das mesmas, a transformação de um cenário que há muito desvaloriza a imagem da mulher forte e
capaz de ser mentora de sua própria vida, transgredindo ideais tradicionalistas e machistas.

Conclusão

O estudo de gênero vem representando uma área de estudos que tem crescido cada vez
mais no Brasil e mundo afora, assim, a proposta do trabalho foi analisar algumas músicas
compostas por mulheres sobre o objeto de enfoque sendo a própria mulher em dissonância ao que
era costumeiramente disseminado até o início da década de 60, considerando a música como
artefato de informação e cultura, impregnada de imagens, lembranças e memórias individuais e
214

coletivas, que evidenciam representações sociais. Nesse sentido, a representação do feminino nas
músicas analisadas potencializa as características das mulheres que são vivificadas por meio da voz
de suas interlocutoras, dando-lhes o poder da fala numa sociedade que ainda é extremamente
machista.

Desse modo, foi analisada a trajetória feminina desde o período colonial através de leituras
de livros e artigos que evidenciam as transformações acerca da imagem da mulher ao longo dos
anos. As músicas analisadas trazem consigo variantes de uma progressiva onda de movimentos que
lhes confere uma nova posição social. Ou seja, a posição que lhes for melhor por conta de seu
próprio querer, de sua independência e autonomia, sem mais a submissão do que lhes é dito, seja
pelo padrão da sociedade ou pela figura masculina.

É de certo que ainda há muito caminho a ser percorrido para uma verdadeira equidade
entre homens e mulheres, mas os avanços silenciosos que acontece a cada mulher agredida que
denuncia seu agressor porque não quer fazer parte de uma parcela reprimida, ou por uma
adolescente que sabe que está no direito de abortar aquela criança que seria concebida através de
sexo não consentido porque ouviu que não deve se calar às violências contra seu corpo, é muito
importante. É revigorante saber que, aos poucos, as mulheres vêm ganhando suas lutas e
contribuindo para a libertação de outras através de movimentos de conscientização e por um
instrumento cultural de tão fácil disseminação, como é o caso da música.

Referências

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cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais (pp.181-195). Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

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355, 2004.

Pollak, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, vol. 5, n. 10, pp. 200-212, 1992.

Del Priore, Mary. Histórias Íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. Rio de Janeiro:
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215

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br/ritaLee/Joracus. htm. Acesso em: 30/06/2017.

Sarti, C.A. O feminismo brasileiro desde os anos de 1970: revisitando uma trajetória. Estudos
Feministas, vol. 12, n. 2, pp. 35-50, 2004.

Brazão, Analba & Oliveira, Guacira Cesar (Orgs.). Violência contra as mulheres - uma história
contada em décadas de lutas. Brasília: CFEMEA: MDG3 Fund, 2010. (Coleção 20 anos de
cidadania e feminismo).

Artigos

Rita Lee e a canção pop em tempos de censura: entre a sexualidade e a maternidade nos anos
1980. Disponível em:
http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1433930612_ARQUIVO_RitaLeeeacancao
popemtemposdecensura.pdf

Mulher: um produto transfigurado e renovado na MPB. Disponível em:


http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/4644229.pdf?1389373470

Esse tal de Roque Enrow! A trajetória de Rita Lee de outsider ao mainstream (1967-1985).
Disponivel em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/17182/1/2014_JeffersonWilliamGohl.pdf

Rita Lee tropicalista: o feminismo na contracultura.


216

Os institucionalismos histórico e sociológico: aplicação na escolha


da sede do TRF5 no Recife (1987-1989)

Analândia Aguiar de Freitas Leite*

Resumo: este trabalho tem como escopo caminhar brevemente sobre a evolução do velho
institucionalismo até o neo-institucionalismo, traçando os pontos de destaques na literatura sobre
as premissas adotadas pelos estudiosos da Ciência Política. Ademais, considerando os lugares
sociais dos atores e a alteração das constituições brasileiras, no tocante à estrutura do Poder
Judiciário e sua descentralização, ao longo do século XX, aplicam-se os paradigmas do
institucionalismo sociológico e o histórico para compreender o processo decisório da escolha do
Recife como sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Palavras-chave: institucionalismo, cultura política, sede do TRF5, escolha.

Dos vários institucionalismos e o comportamentalismo

Segundo Peres (2008, p. 65), o núcleo epistemológico das análises atuais sobre fenômenos
políticos é o de que “os atores respondem estratégica e moralmente a um conjunto de regras
formais ou informais que são circunscritas às instituições”. Essa é a orientação do neo-
institucionalismo, na abordagem adotada pela Ciência Política.

Antes da construção das teorias e metodologias do neo-institucionalismo, tivemos o velho


institucionalismo e o comportamentalismo, com as suas respectivas subcorrentes de estudos.

Para melhor compreensão do institucionalismo, trazemos a breve definição de Pereira


(2007, p. 11) acerca de instituição, que alerta que o “conceito de instituição, que acompanha a
sociologia (...) tem sido empregado em sentidos muitos diversos, em aportes teóricos os mais
distintos”:

As instituições são instâncias de saber que permitem a todo tempo recompor as


relações sociais, organizar espaços e recortar limites. A despeito de sua forma
virtual, imaginária e simbólica, não estão desvinculadas da prática social. Cada
sociedade, segundo o modelo infraestrutural a que obedece, cria um tipo de
instituição, que será mantida e sustentada em todos os níveis, do Estado à família,
Igreja, escola, relações de trabalho, sistema jurídico, etc. (Pereira, 2007, p. 11).

No início do sex. XX, conforme explica Peres (2008, p. 55), na Ciência Política, os
estudiosos se preocuparam mais em analisar criticamente ‘a letra’ das constituições de cada nação,

* Aluna do Programa de Pós-Graduação no Mestrado Profissional em História – UNICAP.


217

com o fito de alterá-las conforme princípios gerais, deduzidos do próprio pensamento racional que
contemple o ‘bem’, preocupavam-se mais em estabelecer modelos prescritivos.

Compreendia-se que os indivíduos agiam conforme as instituições, porque elas eram


estabelecidas tendo por base seus comportamentos, ou seja, eram naturais a suas vontades e, por
isso, detinham legitimidade e eficiência. Assumiam, assim, as instituições ares de leis gerais e
universais: era essa a vertente do velho institucionalismo, sendo as instituições o foco da
investigação dessa corrente teórica.

Troiano e Riscado (2016, p. 166-117) acenam as seguintes considerações acerca do velho


institucionalismo:

As interpretações tradicionais do institucionalismo, chamada por muitos autores


como velho institucionalismo ou institucionalismo de primeira geração,
entendiam as instituições como estruturas estáveis e mantidas por meio de
mecanismos constantes de reprodução institucional. Dessa forma, modelos
institucionais sustentáveis seriam aqueles que se renovam constantemente para
manterem a eficiência e a legitimidade, caso contrário uma reforma seria
necessária ou a instabilidade política poderia ser inevitável (...) (Troiano e
Riscado, 2016, p. 116).

Pode-se concluir que o antigo institucionalismo foi caracterizado por análises de


instituições com maior importância nas leis formais, regras e estruturas
administrativas como explicação do comportamento político e dos resultados
políticos (Steimo et all 1997, p. 3). Se fosse possível adjetivar o institucionalismo
desse período, poderíamos nomeá-lo de institucionalismo formalista e
normativo. (Troiano e Riscado, 2016, p. 117).

Todavia, diante dos fenômenos pré e pós as duas grandes Guerras Mundiais, os estudiosos
dessa disciplina questionaram tal característica generalizante e universalista e descritiva das
instituições, cuja teoria não conseguia mais responder aos questionamentos postos, focados
também nos novos fenômenos políticos, realçando que os comportamentos de sujeitos de uma
sociedade, necessariamente, não se repetem em outra.

Desta feita, buscou-se analisar a dinâmica “real” da política, com ênfase na investigação
factual, em busca de generalização empírica. Enveredaram-se no empirismo para fixar as novas
balizas no estudo do fenômeno político (Peres, 2008, p. 55). Sob a denominação de
comportamentalismo, a sua proposta inicial teórica consiste em prever e controlar o
comportamento, com maior cientificidade – objetividade – da análise psicológica, com observação
empírica do comportamento do ator social dentro do processo decisório (Peres, 2008, p. 56-57).

Nessa perspectiva dos estudos dos fenômenos políticos, Troiano; Riscado (2016, p. 117)
afirmam:
218

No início dos anos 60, o institucionalismo foi afetado diretamente pela busca da
estruturação da Política como Ciência, bem como sua diferenciação empírica e
metodológica das outras Ciências Sociais como a Filosofia e o Direito. Em um
discurso polêmico do presidente da American Political Science Association
(APSA), em 1961, deu-se o marco para a chamada revolução
comportamentalista, ou ainda, o que podemos chamar de primeiro momento de
reformulação do institucionalismo (...) trouxe com a onda behaviorista foi uma
convocação para um maior rigor científico durante a observação empírica do
comportamento dos atores. Logo, não se tratava de uma crítica direta ao
institucionalismo, mas de uma necessidade de uma maior preocupação com
objetividade da pesquisa, métodos de pesquisa, material empírico e
multidisciplinaridade teórica para o próprio fortalecimento (Troiano e Riscado,
2016, p. 117).

Impende ressaltar as influências metodológicas absorvidas pela Ciência Política


comportamentalista da Sociologia, Antropologia e Psicologia, campos de estudos que também
estavam interessados no comportamento humano, observando-se que a Economia, só a partir dos
anos 60, passou a influenciar mais os estudiosos do fenômeno político decisório (Peres, 2008, p.
57).

Retomando, noutra perspectiva, o raciocínio anterior, segundo Peres (2008, p. 58), com o
surgimento da escola comportamentalista, houve um deslocamento do foco de investigação, antes
nas “instituições jurídicas e administrativas, para os atores políticos, mais especificamente seu
comportamento, seus valores, seus objetivos”.

Aconteceu, porém, no final dos anos de 1960 (Peres, 2008, p. 59-60), uma crise sobre a
abordagem comportamentalista, surgindo o novo paradigma: o neo-institucionalismo, como
resultado de uma dupla rejeição às escolas anteriores, quais sejam: 1) “ausência de cientificidade do
antigo institucionalismo e (2) ausência de contexto institucional nas abordagens
comportamentalistas – tanto nas indutivas [sociológicas, antropológicas e psicológicas] como nas
dedutivas [econômica de viés neoclássico/rational choice ortodoxa]”. Ademais, havia a necessidade
de compreender os fenômenos políticos, para além do comportamento do indivíduo/agente, e sua
tendência egoísta e de escolhas racionais, no seu meio social. Todavia, a abordagem
comportamentalista não explicava coerentemente os fenômenos decisórios coletivos.

Diante de várias “dificuldades empíricas” para explicar os fenômenos políticos no seio de


decisões coletivas, a abordagem institucional ressurgiu, trazendo as instituições para o centro de
análise, porém, aderindo às preocupações do comportamentalismo quanto à cientificidade (Peres,
2008, p. 60-61).
219

Assim, a Peres (2008, p. 54) valeu anotar que as instituições importam decisivamente na
produção de resultados políticos, logo não poderia ser deixada de lado na análise desses fenômenos.
Além disso, apontou três áreas das Ciências Humanas, nos últimos cinquenta anos, em que ocorreu
a retomada do viés institucional como premissa analítica, quais sejam: a Economia, a Sociologia e
a Ciência Política, tendo esta área, segundo alguns autores, comportado subdivisão, sob três tipos
de enfoque: o “institucionalismo histórico”, o “institucionalismo sociológico” e o
“institucionalismo da escolha racional”.

Sobre detalhes dos acima indicados enfoques do neo-institucionalismo na Ciência Política,


trazemos as lições Troiano, Riscado (2016, p. 118-120):

No campo macro analítico, a interpretação comportamentalista viu-se incapaz de


explicar os processos de mudanças institucionais e de democratização dos países
emergentes nas décadas de 1970 e 1980 que se distinguiam do modelo norte-
americano
(...) a segunda geração do institucionalismo produziu um conjunto de novos
conceitos, categorias e relações causais para compreensão de novos movimentos
e combinações entre atores e instituições. Com isso, fortalecia a noção de que o
processo decisório seria responsável pelas decisões tomadas pelos atores, ou seja,
que as instituições condicionariam os comportamentos dos atores. Logo, no
novo institucionalismo, as instituições tornaram-se variáveis explicativas centrais,
permitindo uma análise da dinâmica democrática fundamentada entre atores e
instituições.
Essa dinamicidade dá-se a partir da combinação de movimentos exógeno e
endógeno. Em um primeiro momento, ocorre um mecanismo exógeno de
constrangimento das instituições sob [sobre] os indivíduos. Como por exemplo,
regras de convívio em sociedade.
(...)
Embora essa relação entre exógeno e endógeno seja estabelecida num spectrum
continuum em uma análise da dinâmica decisória, o neoinstitucionalismo não se
apresenta de forma homogênea. As diferentes restrições internalizadas que
moldam os atores marcam diferenciais entre as três principais vertentes do
neoinstitucionalismo e que foram organizadas no seminal trabalho de Hall e
Taylor (1996).
A primeira aproximação do institucionalismo foi com a Economia e dessa
preocupação com a maximização dos resultados dos atores e os cálculos dos
conflitos entre eles nasceu o institucionalismo da Escolha Racional ou a Rational
Choice. Essa vertente tem como referência os trabalhos fundamentados na teoria
da ação coletiva, tais como de Anthony Downs (1957) e Mancur Olson (1999).
(...)
A segunda vertente do neoinstitucionalismo trata-se do institucionalismo
sociológico. Essa abordagem é bastante utilizada na teoria das organizações
tendo à frente os trabalhos dos autores Dimaggio e Powell (1991) e Meyer e
Rowan (1977). No institucionalismo sociológico o enfoque cultural é a fonte
predominante das delimitações de ações, ou seja, os costumes e a visão de mundo
do ator exercem constante influência na interpretação das situações. Nesse caso,
as instituições corresponderiam aos “planos morais e cognitivos de referência
sobre os quais são baseadas a interpretação da ação” (Théret, 2003, p. 228). (...)
Por fim, a terceira vertente é o institucionalismo histórico. Este é considerado
como o mais “eclético” em relação aos expostos anteriormente, ou ainda,
220

entendido como um somatório de características das duas abordagens


precedentes. No institucionalismo histórico, os atores levam em conta seus
interesses nas tomadas de decisões e calculam seus resultados, mas ao mesmo
tempo, suas diferentes visões de mundo, correspondentes às suas posições e
contextos sociais também influenciam nas tomadas de decisões. Assim, os
interesses não seriam dados como as preferências no institucionalismo da escolha
racional, mas seriam construtos políticos (Immergut, 1998).
Uma das principais perspectivas de análise do institucionalismo histórico é a path
dependency ou a dependência de trajetória. Para Margareth Levi (1991) path
dependency não significa simplesmente que a história conta, remetendo a máxima
do institucionalismo, mas que os custos de uma reversão institucional têm seus
valores ampliados em relação ao caminho contínuo. Para Pierson (2000), a path
dependency está relacionada a uma ideia da economia de retornos crescentes, ou
seja, que a probabilidade de dar um passo à frente no mesmo caminho aumenta
cada vez que se avança no próprio trajeto (Fernandes, 2002) (Troiano e Riscado,
2016, p. 118-120).

O institucionalismo histórico

No tocante ao institucionalismo histórico, Pierson; Skocpol (2008, p. 9, tradução nossa)


afirmam que há três traços importantes nessa vertente de estudos do neo-institucionalismo. Nela
são tratadas questões amplas de interesse para diversas áreas do saber, especificam sequências e
rastreiam transformações e processos de escala e temporalidade variáveis. Analisam contextos
macros, com formulações de hipótese sobre combinações de instituições e processos. Essa
abordagem contribui para a compreensão do governo, política e políticas públicas.

No que se refere ao acompanhamento de processos históricos, Pierson e Skocpol (2008, p.


12, tradução nossa) frisam a característica mais distintiva dessa abordagem: “para essa corrente
institucional, entender um resultado interessante ou conjunto de arranjos em geral significa analisar
processos durante um período substantivo de tempo, talvez até várias décadas ou séculos”. Então,
para consecução dessa tarefa, “os estudiosos desenvolveram fortes justificativas teóricas e
metodológicas para pesquisas baseadas em história, que envolvem não apenas olhar para o passado,
mas analisar um processo ao longo do tempo”.

Interessante notar que os estudiosos do institucionalismo histórico adotam o termo path


dependence referindo-se à dinâmica dos processos de retroalimentação positiva em um sistema
político. Tais “processos dependentes de trajetória, estritamente definidos, envolvem uma lógica:
os resultados em uma "conjuntura crítica" desencadeiam mecanismos de retroalimentação que
reforçam a recorrência de um padrão particular no futuro” (Pierson e Skocpol, 2008, p. 13, tradução
nossa).

Cumpre destacar ademais que a abordagem do institucionalismo histórico também tem o


escopo de demonstrar “as maneiras pelas quais as instituições são reconstruídas ao longo do tempo
221

(Thelen, 1999, 2000)” e como “resultado dos fortes efeitos da dependência do caminho, as
instituições não são facilmente descartadas quando as condições mudam” (Pierson e Skocpol, 2008,
p. 22, tradução nossa).

De acordo com Abbott apud Pierson e Skocpol (2008, p. 23, tradução nossa), os
“institucionalistas históricos tendem a suspeitar desde o início que as variáveis causais de interesse
serão fortemente influenciadas por contextos culturais e institucionais mais amplos”. Por isso, sua
pesquisa “tende a se mover de instituições isoladas para contextos mais amplos (institucionalistas
históricos olham para floresta e árvores)”.

Ainda segundo Pierson e Skocpol (2008, p. 29-30, tradução nossa), há vantagens na


combinação das diversas abordagens da ciência política empírica contemporânea (behaviorismo,
escolha racional e institucionalismo histórico), explicitando que a ciência social - como um todo -
se beneficia da coexistência e competência de várias abordagens teóricas e de pesquisas.

O institucionalismo sociológico

Segundo Troiano e Riscado (2016, p. 119-120), no institucionalismo sociológico as ações


dos atores sofrem delimitações alinhavadas por seus costumes e visão do mundo, os quais
influenciam na interpretação das situações; os quais correspondem às instituições (de enfoque
cultural) que atuam no seu agir decisório.

Desse modo, o institucionalismo sociológico tem a sua abordagem em fatores sociais do


campo organizacional, com a presença de componentes emocionais (não-racionais) como
consequência do mesmo tipo de processo de transmissão que dá origem às práticas culturais em
geral (Mosca, 2006, p. 27 e 34).

Destacamos que esse conceito de campo, segundo Mohr apud Chaerki, Ribeiro e Ferreira
(2019, p. 72), “faz referência à noção de campo enquanto espaço comunicativo entre diferentes
atores sociais que, e por decorrência da configuração relacional entre eles, delimitam valores,
normas sociais, sanções e outros aspectos”.

Cultura política

De acordo com a percepção de Baptista (2015, p. 672), a “cultura política seria um conjunto
de normas, valores, tradições, práticas e representações difundidas e compartilhadas pelos
indivíduos na sua experiência num dado ambiente histórico e cultural”. Os sentimentos, leitura do
222

mundo, visão de uma sociedade ideal e opiniões políticas de homens e mulheres tendem a se
conformar a sua cultura política e, nesse sentido, também a suas ações políticas.

Todavia, alerta que “propor uma compreensão da dimensão política da sociedade por meio
de uma perspectiva cultural não deve significar que os elementos culturais possuem um valor
explicativo maior ou exclusivo para os fatos políticos, em detrimento das outras esferas da vida”
(Baptista, 2015, p. 675).

Assim, conforme as configurações de institucionalismo histórico e de institucionalismo


sociológico acima referidas, é possível vislumbrar os elementos presentes no conceito de cultura
política e suas implicações no enfrentamento do caso estudado à luz das abordagens daqueles
institucionalismos, vez que consideram as influências do meio social do agente nas suas decisões.

Caso Estudado

O presente estudo pretende analisar a trajetória da estruturação do Poder Judiciário nas


diversas Constituições brasileiras, seguindo a linha do institucionalismo histórico.

Noutra vertente, analisa-se o discurso do min. Presidente Gueiros, conforme revelado no


Diário de Pernambuco do dia 31 de março de 1989, sob a perspectiva do institucionalismo
sociológico, por sua abordagem em fatores sociais do campo organizacional, dado que o discurso
referido indica a presença de componentes emocionais (não-racionais) na escolha da sede do
Tribunal Regional Federal da 5ª Região, como consequência do mesmo tipo de processo de
transmissão que dá origem às práticas culturais em geral (Mosca, 2006).

A redemocratização do Brasil com a Constituição Federal de 1988 e a nova estrutura do


poder judiciário federal

Com a redemocratização do Brasil, em 1988, foi promulgada a Constituição Federal, dentre


os seus princípios basilares, conta que todo poder emana do povo, que o exerce nos termos daquela
Carta Política (art. 1º, parágrafo único). E os Poderes, independentes e harmônicos entre si, são o
Executivo, o Legislativo e o Judiciário (art. 2º). Desses Poderes, apenas o Judiciário não é
preenchido pelo voto popular (Capítulo IV).

O foco desta pesquisa é investigar pela historiografia a instalação de um dos Órgãos do


Poder Judiciário: o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que é parte da nova estrutura deste
Poder desenhada na Constituição Federal de 1988 (art. 92).
223

Antes disso, necessitamos discorrer sobre a estrutura do Judiciário nas Constituições


brasileiras anteriores e, assim, analisar a tendência de descentralização do Judiciário, os motivos
geradores dessa tendência e sua relação com a ordem democrática e de desenvolvimento do País,
levando a justiça para o mais próximo da população e a colaborando com a consequente paz social.

Nas Constituições de 1946 (art. 103, § 2º, incluído pela Emenda Constitucional 16, de 1965)
e de 1967 (art. 116, § 1º), já havia a previsão de descentralizar o Judiciário, com a divisão do Tribunal
Federal de Recursos, em diferentes regiões do País, (previsão na Lei Magna de 1946), e, por meio
de lei complementar, criar mais dois Tribunais Federais de Recursos, um no Estado de Pernambuco
e outro no Estado de São Paulo (previsão na Carta Política de 1967).

O objetivo da divisão do Judiciário foi minimizar os cursos do processo judicial, diminuir


o tempo de tramitação desses processos, sempre com o escopo de ampliar o acesso à justiça e
acelerar a entrega da justiça à população (Bastos, 2003, p. 88).

Quando se tratou da descentralização do Poder Judiciário, os Estados de Pernambuco e de


São Paulo foram citados como sedes, possivelmente por se localizarem em suas capitais: Recife e
São Paulo, renomados centros de excelência em estudos jurídicos, como a Faculdade de Direito do
Recife e a Faculdade do Largo de São Francisco.

Nessas faculdades, formaram-se profissionais de direito, alguns de grande relevância


histórica, a exemplo de José Bonifácio, Epitácio Pessoa, Nilo Peçanha, Pontes de Miranda, Castro
Alves, Olavo Bilac etc, os quais ocuparam cargos importantes na administração pública do Brasil.
E o Judiciário é Poder cuja atividade-fim mais necessita das habilitações daqueles profissionais, e
onde grande parte deles se encontram atuando, sendo esta característica verificada desde a época
do Império (Santos e Casimiro, 2012, p. 4850).

Nessa ordem de ideias, é possível adivinhar que a cultura política e profissional


desenvolvida nos centros formadores dos juristas influenciaram e influenciam de forma mais
determinante nas questões do Judiciário brasileiro, e aí também na formatação de sua nova
estrutura.

Quando a Constituição Federal de 1988 (art. 92) tratou do Poder Judiciário, deu-lhe nova
estrutura. A mudança foco deste trabalho envolve a repartição das competências e a extinção do
Tribunal Federal de Recursos, sediado em Brasília-DF, o qual recebia grande parte dos recursos
(processuais) da Justiça Federal Comum de Primeiro Grau sediadas ao longo do território nacional.

Com a indicada ‘reforma’ do Judiciário, parte da competência do Tribunal Federal de


Recursos foi para o Superior Tribunal de Justiça e o restante ficou a cargo dos cinco Tribunais
224

Regionais Federais, o primeiro extinto e os seis últimos criados pela Constituição Federal de 1988,
art. 92 (Oliveira, 2017, p. 98). No ADCT, art. 27, § 6º, ficou estabelecido que a fixação da jurisdição
e sede dos Tribunais Regionais Federais competia ao Tribunal Federal de Recursos, tendo em conta
o número de processos e sua localização geográfica. E a Resolução nº 1, de 6 de outubro de 1988,
do Tribunal Federal de Recursos, expedida em obediência ao disposto no § 6º do art. 27 do mesmo
Ato, estabeleceu as sedes e jurisdição de cada TRF, fixando a sede do Tribunal Regional Federal
da 5º Região em Recife-PE, com jurisdição sobre os Estados de Pernambuco, Alagoas, Paraíba,
Sergipe, Ceará e Rio Grande do Norte (item I, letra e).

Deve-se ressaltar que, por via da Emenda Constitucional n. 73/2013, acrescentou-se o §


11, ao art. 27 do ADCT, criando-se mais 04 Tribunais Regionais Federais. Todavia, foi ajuizada
ação direta de inconstitucionalidade n. 5017, questionando tal alteração constitucional83.

Naquele ano de 1988, o Tribunal Federal de Recursos era presidido pelo ministro Evandro
Gueiros Leite, que nasceu na cidade de Canhotinho-PE, em 07 de novembro de 1920, e se formou
na Faculdade de Direito do Recife84. E foi o Pleno daquele Tribunal que ficou encarregado pela
escolha das sedes nos novos Tribunais Federais Regionais, repetimos.

Na 26ª Sessão Ordinária do Tribunal Federal de Recursos, de 08 set. 1988. Brasília-DF, em


conversação sobre a escolha das sedes dos cinco Tribunais Regionais Federais, ficou estabelecido
que a sessão administrativa - para considerar e debater acerca da localização dessas sedes, bem
como o número de magistrados que a comporiam – seria secreta, observando-se que tal
convocação seria interna, porque até então a Constituição Federal não havia sido promulgada,
conforme se registrara em Ata85. O resultado do debate dessa sessão secreta ficou expresso na
Resolução nº 1, de 6 de outubro de 1988, do Tribunal Federal de Recursos, logo após a
promulgação da Lei Magna de 1988.

Observando a quantidade de processos judiciais a cargo de cada sede desses Regionais,


verificamos que esse critério pode não ter sido o mais importante para o estabelecimento das sedes
daqueles cinco Tribunais Regionais, haja vista a quantidade de Estado/população estabelecida para
competência de cada Regional. Por outro lado, também, por documento oficiais, não sabemos a
motivação primordial das escolhas de tais localizações.

83 http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADIN&s1=5017&processo=5017
84 https://ww2.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/presidentestj/article/view/1063/997).
85 Acervo da Ouvidoria do Superior Tribunal de Justiça

Ata da 26ª Sessão Ordinária do Tribunal Federal de Recursos,08 set. 1988. Brasília-DF.
225

Contudo, é possível traçarmos em linhas gerais tal motivação, no que diz respeito à escolha
do Recife como sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Para tanto, nos apoiaremos na
investigação da memória publicada no Diário de Pernambuco, do dia 31 de março de 1988, que
retrata as presenças de políticos e da sociedade na instalação do TRF5 no Recife, no Palácio Frei
Caneca.

A cerimônia dessa instalação, que contou com o apoio das lideranças políticas do Estado
de Pernambuco, foi presidida pelo presidente do extinto Tribunal Federal de Recursos, ministro
Evandro Gueiros Leite, em cujo discurso emocionado revelou seu empenho para trazer o TRF5
para Pernambuco, terra natal, Estado que expressou amar86.

Segundo Santos; Casimiro (2012, pp. 4845-4846), no Brasil, no que tange a formação do
Estado brasileiro existiria uma memória social:

que não, necessariamente, uma memória coletiva em sua essência, uma vez que
ela foi moldada e construída por uma elite política e intelectual.
A formação de uma memória nacional e do Estado propriamente dito além de
ter sido promovida pela elite da época, só se tornou viável por causa da existência
de um corpo burocratizado que se organizava no país. (Santos e Casimiro, 2012,
p. 4845).

(...) uma das explicações coerentes que indicam para a manutenção da integridade
do território e o fez se firmar como nação independente é o fato de a elite
brasileira conseguir envolver o Príncipe D. Pedro I em seus planos: declarar a
independência do Brasil. Portanto, faz-se claro a importância que os bacharéis
tiveram para a vida sócio-política do país, a ponto de colaborar com a construção
do Estado nacional e, consequentemente, com a constituição do Poder Judiciário
(corpo burocrático da nação). (Santos e Casimiro, 2012, p. 4846).

86 ESFORÇO
A instalação do Tribunal Regional Federal do Nordeste em Pernambuco deveu-se quase que exclusivamente ao esforço
do ministro Evandro Gueiros leite. Ontem à tarde, conversando com jornalistas, ele confirmou ter recebido milhares
de pedidos e pressões de todos os tipos da parte de governadores, senadores, deputados que queriam o tribunal para
os seus estados. No seu gabinete – contou – formavam-se filas enormes de políticos e foram incontáveis os telefonemas
que recebeu no mesmo sentido. De Pernambuco, porém, nem uma palavra. Um telefonema sequer da OAB, da
Assembleia ou de qualquer outro grupo. Então, tomou ele mesmo a iniciativa, telefonando para o Deputado Fausto
Freitas (seu sobrinho que entrou em contato com políticos no Estado e em Brasília. A partir daí, ressalta o ministro,
vários nomes se engajaram na luta, dentre os quais se destacam o Senador Ney Maranhão e Os Deputados Federais
Nilson Gibson e Inocencio Oliveira. A nível estadual, além do Deputado Fausto Freitas, o Governador Miguel Arraes
e o Vice-Governador Carlos Wilson Campos foram sensíveis ao pleito de se encontrar um local para instalação do
Tribunal Federal, cedendo o Palácio Frei Caneca, onde a corte foi ontem instalada.
AMOR
O discurso que o ministro Evandro Gueiros Leite fez ao instalar o TRF está pontilhado do amor que devota a sua
terra. Traçou, embora rapidamente, um passeio pelos seus tempos de estudante, pelo passado histórico do Estado e
citou o Ex-Governador Eraldo Gueiros Leite: “O futuro, nós o escreveremos”.
226

Dentro dessa lógica, é possível relacionar historiograficamente a educação e cultura jurídica


do Brasil, presentes no Império, com a construção do Estado Nacional e consequentemente com
o Poder Judiciário.

Ressalta-se ademais que o primeiro curso jurídico foi implantado no Brasil em 1827,
(inicialmente em Olinda, transferido após para Recife): A Faculdade de Direito de Recife, que foi
o berço ideológico da elite intelectual e também da elite dirigente na tentativa da construção do
Estado Nacional (Santos e Casimiro, 2012, p. 4849). Destarte, é válido associar a influência dos
profissionais formados nessa instituição sobre as questões do Estado brasileiro, já que muitos
exercem sua atividade profissional dentro do corpo burocrático estatal.

Ainda nesse ponto, reproduzimos as palavras de Santos; Casimiro (2012, p. 4851), ao


demonstrar a influência de bacharéis e magistrados na construção da nossa cultura jurídica e, por
meio dessa, na formação do Estado Nacional:

A tentativa foi a de demonstrar como os bacharéis e magistrados influenciaram


na construção de uma cultura jurídica e como a mesma esteve diretamente ligada
à formação do Estado Nacional. Nessa época, todos os magistrados e
professores eram bacharéis de Coimbra, todo o Brasil político e intelectual era
oriundo do único centro formador do mundo português. Assim, foi somente em
1827 que ocorreu definitivamente a implantação dos cursos jurídicos no Brasil.
Já declarada a independência e tendo em vista a necessidade de não se “importar”
bacharéis portugueses, mas de fundar as bases jurídicas para a construção do
Estado Nacional. Assim, o desejo de realizar essa pesquisa esteve pautado na
tentativa de compreender como as características culturais no âmbito sócio
jurídico, presentes na época do Império, manifestam-se até hoje como gerador
de diretrizes patrimonialistas e burocráticas que consolidaram o Brasil como um
Estado e também como nação. (Santos e Casimiro, 2012, p. 4851).

Conclusão

Segundo a análise institucional focada na corrente do institucionalismo histórico, é possível


interpretar a alteração Constitucional, no tocante à estrutura do Poder Judiciário, como uma
construção social iniciada desde Constituição Federal de 1946, vez que o antigo modelo do Poder
Judiciário provocava tensões por não atender aos anseios de justiça, colaborando com a paz social,
da população e, também e consequentemente, do centro de poder do Brasil.

Noutra perspectiva, conforme a corrente teórica do institucionalismo sociológico, observa-


se que, por envolver também a emoção, demonstrada no discurso de instalação do Tribunal
Regional Federal da 5ª Região, seria possível antever a escolha da sede desse Tribunal em
Pernambuco, considerando que os fatores individuais e sociais dos agentes à frente da tomada de
227

decisão, no caso o Ministro Gueiros Leite, ressaltando-se como elementos positivos a influência
cultural, história e, principalmente, jurídica emanada da Faculdade de Direito do Recife, sobre a
classe administrativa, política e jurídica na sociedade brasileira.

Fontes

Memorial do Tribunal Regional Federal da 5ª Região


Diário de Pernambuco, Recife, 31 mar. 1989.

Acervo da Ouvidoria do Superior Tribunal de Justiça


Ata da 26ª Sessão Ordinária do Tribunal Federal de Recursos,08 set. 1988. Brasília-DF.

Documentos Jurídicos

Constituição federal

Brasil. Constituição. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946. Rio
de Janeiro, 1946. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 10 jul. 2019.

Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. (vide Emenda


Constitucional nº 1, de 17.10.1969). Brasília, 1967. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: 10 jul. 2019.

Brasil. Constituição. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto da


Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967. Brasília, 1969. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-
69.htm. Acesso em: 10 jul. 2019.

Brasil. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Vide Emenda


Constitucional nº 91, de 2016. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Atos decorrentes
do disposto no § 3º do art. 5º. Brasília. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 jul. 2019.

Leis

Brasil. Lei nº 7.727, de 9 de janeiro de 1989. Dispõe sobre a composição inicial dos Tribunais
Regionais Federais e sua instalação, cria os respectivos quadros de pessoal e dá outras
providências

Resolução

Brasil. Resolução n. 1 de 6 de outubro de 1988, Tribunal Federal de Recursos (TFR). Dispõe


sobre a localização das sedes e a fixação da Jurisdição dos Tribunais Regionais Federais.
Publicada em Brasília, DF, em 31 mar. 1989. Disponível em:
228

https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/67714/RES_1_1988_TFR.pdf. Acesso em: 24 de


jul. 2019

Referências

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à historiografia contemporânea. Anais do V Encontro Internacional UFES/ Paris-Est. 2016.
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nov. 2020.

Bastos, Márcio Thomaz. Reforma do poder judiciário. Revista de Thomaz Bastos, n. 21, p. 87-91,
abr./jun. 2003.

Chaerki, Karine Francisconi; Ribeiro, Gutemberg; Ferreira, Jane Mendes. Uma introdução à
teoria institucional do ponto de vista sociológico. Caderno de Administração. Universidade Estadual
de Maringá. 2019. Disponível em:
www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CadAdm/article/view/48409. Acesso em: 01 dez. 2020.

Mosca, Hugo M. B. Fatores institucionais e organizacionais que afetam a profissionalização da gestão do


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Pierson, Paul; Skocpol, Theda. El institucionalismo histórico en la ciencia política


contemporânea. Revista Uruguaya de Ciencia Política. vol. 17, n°1 - ICP, pp. 7-37, 2008. Disponível
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Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”, 2012,
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Acesso em: 23 jul. 2019.
229

Troiano, Mariele; Riscado, Priscila. Instituições e o institucionalismo: notas acerca da construção


do debate e seus principais desafios na contemporaneidade. Revista Política Hoje, vol. 25, n. 1, 113-
132, 2016. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/download/3712/3014. Acesso em: 25
jul. 2019.
230

Os intelectuais mediadores e as políticas culturais: a trajetória de


Heloísa Juaçaba no campo das Artes Plásticas do Ceará

Anderson de Sousa Silva*

Resumo: a historiadora Angela de Castro Gomes (2016) lança mão da noção de intelectual mediador
para compreender a dinâmica do campo de produção cultural. A partir dessa perspectiva, este
trabalho analisa a atuação e a trajetória de Heloísa Juaçaba no campo das artes plásticas e das
políticas culturais do Ceará, especialmente entre os anos 1960 e 1970. Juaçaba foi a principal
idealizadora do Centro de Artes Visuais Casa Raimundo Cela, criado em 1967, pela Secretaria de
Cultura do Ceará. Desse modo, passou a ser reconhecida como uma das responsáveis pela
emergência de uma nova geração de artistas – a Geração Raimundo Cela. Jean François Sirinelli
(1998) aborda a atuação das elites culturais no campo da arte e da cultura. Primeiramente, o autor
faz uma diferenciação entre criadores e mediadores culturais, sendo os primeiros os responsáveis
pela criação artística e os últimos aqueles que contribuem, com suas influências, na difusão e
circulação da produção dos criadores. Muitas vezes, esses mediadores se tornam uma elite cultural
com fortes relações com os poderes públicos. Através das ponderações de Sirinelli, situamos o
lugar de Heloisa Juaçaba como uma mediadora ligada às elites culturais do Ceará, fazendo uso dos
seus acessos aos meios do poder, tanto econômicos quanto políticos, para dar visibilidade à
produção dos artistas da Casa Raimundo Cela. Heloísa Juaçaba transitou entre os diferentes grupos:
desde os espaços do poder político e econômico aos espaços dos artistas iniciantes desejosos de
uma melhor estrutura do circuito de arte. Assumiu, dessa forma, o papel de intermediária entre o
campo da arte e o campo econômico (do dinheiro!), emprestando seu capital social para
impulsionar a comercialização das obras dos artistas, especialmente os da Geração Raimundo Cela.
Além disso, obteve reconhecimento não apenas no cenário local, mas também no nacional, a partir
das trocas com gestores de outras instituições do país.

Palavras-chave: Heloísa Juaçaba, intelectual mediador, políticas culturais, campo da arte.

Heloísa Juaçaba consegue congregar os artistas bem jovens. Heloísa nos


acompanhou até nos profissionalizarmos mesmo. Heloísa carregava no seu carro,
um galaxie imenso, todas as obras que iam participar das exposições. Heloísa
financiava com dinheiro próprio catálogo, convites, correio. Heloísa montava
exposições para escolas, congressos; tudo isso com um bando de jovens que eram
quase meninos. Eu acho uma coisa magnífica! (Depoimento de Roberto Galvão
apud Santos, 2019, p .41).

O trecho de abertura deste texto trata-se de um fragmento do depoimento do artista


Roberto Galvão, sobre Heloísa Juaçaba, para o documentário Uma Senhora artista, produzido pela
TV Assembleia e pela TV Unifor, no ano de 2008 (Santos, 2019, p.41). Heloísa Juaçaba foi a
idealizadora do Centro de Artes Visuais Casa Raimundo Cela, instituição vinculada à Secretaria de

*
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Curso de Bacharelado em
Direito da Faculdade Princesa do Oeste (FPO), no município de Crateús-CE.
231

Cultura do Ceará e criada em 1967. A criação da Raimundo Cela foi fruto do trabalho de Heloísa
como conselheira do setor de Artes Plásticas, por dois mandatos, no Conselho Estadual de Cultura.
Além disso, Heloísa teve importante atuação em outros órgãos culturais do Ceará, tendo acumulado
as seguintes funções: diretora do Departamento Municipal de Cultura, durante a gestão do prefeito
José Walter Cavalcante (1967-1970); participação na formação do acervo do Museu de Arte da
Universidade Federal do Ceará - MAUC e do Museu de Arte e Cultura Populares, além de ter
tomado parte de várias comissões de organização e júri de importantes Salões de arte – o Salão de
Abril e o Salão Nacional de Artes Plásticas do Ceará – em Fortaleza, entre o final dos anos 1960 e
durante os 1970 (Carvalho, 2012, p. 17-18).

Em 1976, o crítico e jornalista Eliezer Rodrigues escreve um artigo comentando


que a conjuntura favorável à criação de galerias no Ceará começou com a
Raimundo Cela, com o auxílio de Heloísa Juaçaba que, em seu trânsito na alta
sociedade cearense, vem atraindo consumidores de arte, principalmente para os
artistas ligados à Secretaria de Cultura. Juaçaba exerce, dessa forma, um poder de
consagração junto aos artistas da Raimundo Cela (Barbalho, 1997, p.175).

Como o trecho informa, Heloísa Juaçaba foi uma mulher das elites. Casada com o médico
Haroldo Juaçaba, referência, no Ceará, a respeito dos estudos do câncer, Heloísa o acompanhava
em suas viagens a congressos internacionais de medicina, em Nova York e cidades europeias, sendo
que nessas viagens teve a oportunidade de conhecer os mais renomados museus e galerias de arte,
ampliando sua rede de sociabilidade internacional (Ruoso, 2016, p. 138). A aproximação de Heloísa
com Clarival do Prado Valladares, então membro do Conselho Federal de Cultura, aconteceu muito
em decorrência da amizade entre este e seu esposo, Haroldo Juaçaba. Os dois se conheceram
enquanto estudantes do curso de medicina, inclusive muitas correspondências de Valladares,
destinadas ao casal Juaçaba, expunha sentimentos de afeto e de amizade (Santos, 2019). A fluida
circulação de Heloísa entre os meios político, econômico e da alta sociedade cearense lhe
possibilitou emprestar seu capital social para o impulsionamento da divulgação e das vendas das
obras dos artistas, potencializando um mercado de arte ainda embrionário em Fortaleza.

Ao longo deste texto analisamos algumas correspondências destinadas à Heloísa Juaçaba


e/ou enviadas por ela, sendo importante elucidar o lugar do gênero “carta” como fonte histórica.
As correspondências são pensadas como gêneros discursivos, narrativas e literaturas de si; formas
de se apresentar ao olhar do outro, através do que é dito sobre si (Martins, 2011, p. 64-67). As
cartas trocadas com outros gestores culturais comunicam o lugar, ocupado por Heloísa, no campo
das artes plásticas do Ceará e evidenciam a dinâmica de uma rede de sociabilidade – ora pessoal,
ora institucional – entre sujeitos pertencentes às elites culturais. Essas correspondências foram
232

guardadas com a finalidade de compor um arquivo, indício de um ato de memória consciente e do


desejo de salvaguardar vestígios de uma trajetória de vida (Malastian, 2009, p. 200-202).

Jean François Sirinelli (1998, p.261-272) aborda a atuação das elites culturais no campo da
arte e da cultura. Primeiramente, o autor faz uma diferenciação entre criadores e mediadores
culturais, sendo os primeiros os responsáveis pela criação artística e os últimos aqueles que
contribuem, com seu poder de influência, para difundir o trabalho dos criadores. Muitas vezes,
esses mediadores se tornam uma elite cultural com fortes relações com os poderes públicos. A
partir das ponderações de Sirinelli, situamos o lugar de Heloisa Juaçaba como uma mediadora ligada
às elites culturais de Fortaleza, fazendo uso dos seus acessos aos meios do poder, tanto econômicos
quanto políticos, para dar visibilidade à produção dos artistas da Casa Raimundo Cela, também
conhecidos por Geração Raimundo Cela.87

As várias intermediações em favor dos artistas, feitas por Heloísa, exemplifica a questão
apresentada. Podemos citar um exemplo: o momento em que o artista Aderson Medeiros foi
selecionado para participar da 13º Bienal Internacional de São Paulo (1975). Heloísa redigiu um
documento88 destinado ao então governador do Ceará, César Cals, para que este concedesse uma
ajuda de custo ao supracitado artista e assim fosse possível sua participação na Bienal. Esta foi
apenas uma das várias intermediações de Heloísa Juaçaba, o que mais uma vez evidencia sua fluida
relação com o meio político do Ceará.

A partir dos anos 1950 e 1960 foi crescente a participação das mulheres no mercado de
trabalho, especialmente nos setores de educação e cultura. Em se tratando das mulheres da pequena
e média burguesia, a formação de um capital de gosto e procura por serviços culturais (Durand,
1989, p. 1969-171) funcionaram como dispositivos de distinção social. Outras mulheres, além de
Heloísa Juaçaba, marcaram o campo das artes plásticas do Ceará. Temos o exemplo de Ignéz Fiuza
– mulher pertencente a uma família de banqueiros e empresários – foi dona de uma galeria de arte,
criada em 1970 (Oliveira, 2015, p. 100), sendo uma das responsáveis pela circulação e
comercialização das obras plásticas na capital cearense. A galeria de Ignéz Fiuza “apresentou ao
público local nomes e vertentes que figuravam nacional e internacionalmente, como também
projetou artistas cearenses para o grande cenário das artes, em exposições, mostras, vernissages e
publicações de catálogos” (Oliveira, 2015, p. 100). Hilma Montenegro também teve uma
importante atuação, sendo conhecida por ministrar aulas de Arte e de História da Arte. Muitos
artistas tiveram contato com Hilma no início de suas trajetórias, inclusive pelo fato desta ter sido

87
Entre os artistas que fizeram parte da Geração Raimundo Cela destacamos: Roberto Galvão, Tarcísio Félix, Kleber
Ventura, Aderson Medeiros, Descartes Gadelha, Marcus Francisco, Descartes Gadelha, entre outros nomes.
88
Localizado no arquivo de Ana Virgínia Juaçaba.
233

convidada, por Heloísa Juaçaba e o então Secretário de Cultura Raimundo Girão, para ocupar o
cargo de primeira diretora da Casa Raimundo Cela89.

No âmbito da História cultural/intelectual, o conceito de intelectual mediador está ganhando


força. O campo da produção dos bens culturais é constituído tanto por criadores quanto por
mediadores, como já dito, por meio das observações de Sirinelli. Estes últimos, em sua maioria,
ocupam cargos estratégicos em instituições e associações, o que os propicia a acessarem uma rede
de sociabilidade que os torna influentes nas dinâmicas internas e externas do campo da produção
cultural (Gomes; Hansen, 2016, p. 19). É interessante o diálogo da noção de mediação com a de
autonomia do campo artístico, proposta por Bourdieu. O sociólogo lembra que o campo é relativamente
autônomo, ao mesmo passo em que é relativamente interdependente dos campos econômico e do
poder (Bourdieu, 1996, p. 67-68). Por essa ótica, a mediação entre os campos reflete a linha tênue
entre relativa autonomia e relativa dependência, com relação aos jogos internos e externos
experienciados no campo da arte.

Heloísa Juaçaba transitou entre os diferentes grupos: desde os espaços do poder político e
econômico aos espaços dos artistas iniciantes desejosos de uma melhor estrutura do circuito de
arte. Assumiu, dessa forma, o papel de intermediária entre o campo da arte e o campo econômico
(do dinheiro!), através da sua articulação para a comercialização das obras dos artistas. Além disso,
obteve reconhecimento não apenas no cenário local, mas também no nacional, a partir das trocas
com gestores de outras instituições do país.

89
Informações coletadas através das entrevistas dos artistas Tarcísio Félix e Roberto Galvão ao autor deste trabalho.
234

Figura 1 – Convite para o IV Colóquio dos Museus de Arte do Brasil, 1969

Fonte: Arquivo de Ana Virgínia Juaçaba

Heloísa Juaçaba foi convidada a participar do IV Colóquio de museus de Arte do Brasil, sediado
na cidade de Belo Horizonte, no ano de 1969. Esta carta-convite realça questões importantes a
respeito do trabalho realizado por Heloísa no campo das artes plásticas do Ceará, em especial na
Casa Raimundo Cela. É um indício que aponta o percurso trilhado para a inserção do Ceará num
sistema de arte nacional e isso dialoga com as propostas da Raimundo Cela, no qual uma delas foi
justamente proporcionar uma maior visibilidade da produção dos artistas cearenses, assim como
contribuir para uma profissionalização destes. Não podemos esquecer, contudo, que a participação
de Heloísa em eventos dessa natureza foi fruto de um impulsionamento da profissionalização do
campo da arte e do campo museológico no Brasil. A realização desses colóquios, com o objetivo
de examinar relatórios e programações das instituições, assim como a manutenção de uma
associação, demonstra uma procura pela formalização e institucionalização/profissionalização da
arte e dos museus de arte no Brasil90.

90
Heloísa Juaçaba também recebeu uma carta-convite, devido sua função de diretora de um Centro de Artes Visuais
de Fortaleza (a Casa Raimundo Cela), para participar do V Colóquio de museus de Arte do Brasil, dessa vez sediado
na cidade de Curitiba, no ano de 1970. O convite fora assinado por Fernando Velloso, então diretor do Museu de Arte
Contemporânea do Paraná.
235

Podemos elencar alguns elementos que mostram o trabalho em prol da concretização de


um projeto de inserção e/ou imbricação, do campo das artes plásticas do Ceará, com o circuito
nacional: a participação de críticos e gestores de arte, reconhecidos em âmbito nacional, na
programação da Casa Raimundo Cela; a realização de Salões de arte nacionais; o empenho para
que os artistas cearenses expusessem em outros centros culturais do país; a participação em eventos
e colóquios de museus e centros de arte brasileiros que, por sua vez, promoviam exposições das
obras de artistas dos estados participantes. Todos estes fatores reunidos destacam o envolvimento
de Heloísa Juaçaba como gestora das artes, interessada numa espécie de (re)estruturação do campo
das artes plásticas do Ceará. Ademais, a Casa Raimundo Cela, através das mediações de Heloísa,
também participou de ações de assistência social no Brasil, possivelmente como uma forma de
fazer circular os trabalhos dos artistas.

Figura 2 – Correspondência sobre confirmação de recebimento de obras de arte, 1972

Fonte: Arquivo de Ana Virgínia Juaçaba


236

A participação do Ceará em colóquios de museus e centros de arte do Brasil, possibilitou


aos artistas locais a oportunidade de apresentarem seus trabalhos nas exposições promovidas
nesses eventos. Todavia, os artistas da Casa Raimundo Cela também enviaram suas obras para
eventos de assistência social, entre estes a Feira dos municípios, realizado na cidade de Vitória (ES) e
promovido pela Unidade Comunitária de Integração Social, cuja presidente era a primeira-dama do
estado do Espírito Santo, Maria Clementina Velese Santos. Embora seja uma proposta diferente, a
doação de obras de arte para eventos de caráter beneficente também era uma forma de expandir a
circulação da produção dos artistas e do nome da Casa Raimundo Cela para outras regiões do país.
Além disso, reforçava o perfil filantrópico de Heloísa Juaçaba, que também se dedicava a atividades
de cunho assistencialista e social, como, por exemplo, campanhas, voltadas para o público feminino,
de conscientização, nas periferias de Fortaleza, sobre prevenção do câncer e campanhas de
arrecadação financeira para o auxílio de pacientes do Instituto do Câncer do Ceará – ICC (Santos,
2019, p. 34).

Heloísa Juaçaba assumia uma postura de engajamento profícuo no que se refere a circulação
do movimento artístico realizado no Ceará. Muitas vezes esse engajamento se apresentava em
ofícios onde eram listadas as ações desenvolvidas pela Casa Raimundo Cela e por outras
instituições, inclusive as galerias de arte. Um caso curioso – e até inusitado! – foi uma troca de
correspondências entre Heloísa e uma mulher chamada Augusta. Esta escreveu sugerindo a criação
de um movimento artístico no Ceará.
237

Figura 3 – Correspondência destinada à Heloísa Juaçaba, 1971

Fonte: Arquivo de Ana Virgínia Juaçaba

Resumidamente, o conteúdo da carta trata-se da proposta, por parte da remetente, para a


criação do MARCE – Movimento Artístico Cearense. A ideia era que pessoas dispostas e
qualificadas, para atuar nesse tipo de projeto, formassem uma espécie de equipe de trabalho, onde
cada qual exerceria uma função específica. Os artistas como sócios colaboradores e alguns
indivíduos, da elite econômica da cidade, como sócios beneméritos. Augusta sugeriu exposições
com premiações simbólicas, onde os artistas ganhariam medalhas e não prêmios em dinheiro. Além
disso, os meios de comunicação (impressos e audiovisuais) fariam a cobertura das programações
do idealizado Movimento Artístico Cearense. A correspondência foi enviada, do Rio de Janeiro, no
dia 26 de julho de 1971. Contudo, Augusta não obteve resposta e escreveu novamente91, em
outubro do mesmo ano, reforçando as mesmas ideias. Semanas depois, Heloísa Juaçaba envia um
ofício em resposta.

91
Correspondência localizada no arquivo de Ana Virgínia Juaçaba.
238

Figura 4 – Ofício redigido por Heloísa Juaçaba, 1971

Fonte: Arquivo de Ana Virgínia Juaçaba

O ofício acima, apesar de ter um caráter de natureza burocrática, insinua um sentimento


afetivo/pessoal, por parte de Heloísa Juaçaba, em narrar as programações das instituições de arte
do Ceará. Supomos, ainda, que a escolha em redigir um ofício e não uma carta mais informal tenha
tido a intencionalidade de publicizar – institucionalmente – as mostras realizadas tanto no Ceará
como em outras cidades, entre estas Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Observamos,
confundido a esse sentimento de dedicação, a fala de uma gestora cultural, ao divulgar “o
movimento artístico cearense muito intenso desde a fundação da Secretaria da Cultura que criou a
Casa de Raimundo Cela”.
239

Outrossim, quando Heloísa Juaçaba frisou que Augusta talvez desconhecesse o movimento
que estava sendo realizado no Ceará, notamos o quanto também era importante a divulgação da
política cultural, pensada e executada pelas instituições cearenses, e articulada com o circuito
nacional. O próprio tom da resposta de Heloísa ratifica uma tomada de posição e uma demarcação
do seu lugar no campo das artes plásticas do Ceará e do Brasil. Afinal, tudo que a autora da primeira
correspondência propusera já estava sendo realizado. Interessa, mais uma vez, trazer para nossa
discussão o gênero carta como fonte histórica. Teresa Malastian (2009, p.201), destaca que o
conteúdo de muitas correspondências exerce uma função de domínio da imagem de si, num ritual
de transmitir credibilidade ao destinatário – assim como fez Heloísa em sua resposta a Augusta.

O reconhecimento de Heloísa Juaçaba, enquanto mediadora e incentivadora de uma nova


geração de artistas, foi algo que também alcançou outras regiões do estado do Ceará. Além da
finalidade dos artistas locais ganharem notoriedade na cena nacional, também houve um
movimento na tentativa de integrar artistas de cidades mais distantes ao circuito de arte de
Fortaleza. Mencionamos como exemplo uma correspondência92, destinada à Heloísa, cujo
remetente, Marciano Lopes, apresenta o jovem artista cratense Margébio Lucena, que havia se
mudado para Fortaleza e almejava se inserir no circuito de arte da cidade. Marciano Lopes, uma
liderança do município do Crato, pede para Heloísa ver a possibilidade de Margébio expor no Salão
de Abril. Consultamos o catálogo do Salão de Abril de 196993 e constatamos que o artista Margébio
Cícero Rodrigues de Lucena expôs, na categoria de pintura, conforme havia solicitado Marciano
Lopes. Margébio expôs suas obras ao lado dos trabalhos de Aderson Medeiros, Tarcísio Félix,
Roberto Galvão, Descartes Gadelha, Kleber Ventura, entre outros jovens artistas que também
iniciavam seus percursos.

Heloísa Juaçaba também construiu uma imagem como mecenas e colecionadora, junto com
Haroldo Juaçaba, de obras de arte. No 20º Salão de Abril (1970) parte da Coleção Haroldo Juaçaba foi
exposta94. Heloísa costumava comprar obras dos artistas e muitos destes escreviam para ela em
agradecimento (Santos, 2019, p. 42). No ano de 1981, a então diretora da Casa Raimundo Cela,
Laura Heloísa Moraes da Silva, escreveu para Heloísa e Haroldo Juaçaba agradecendo a concessão
de um dos prêmios do 7º Salão Nacional de Artes Plásticas do Ceará, chamado de “Prêmio
Guaramiranga”95. Esse dado demostra que, apesar de Heloísa ter se afastado da gestão da
Raimundo Cela, ela permanecia contribuindo com a instituição, dessa vez como patrocinadora. A
partir do ano de 1980, Heloísa Juaçaba passou a exercer o cargo de diretora do Sistema Estadual

92 Encontrada no Arquivo de Ana Virgínia Juaçaba. A correspondência foi enviada no dia 19 de fevereiro de 1969.
93 Ver: http://www.salaodeabril.com.br/docs/catalogos/Catalogo+salao+de+abril+1969.pdf
94 Ver: http://www.salaodeabril.com.br/docs/catalogos/Catalogo+salao+de+abril+1970.pdf
95 Correspondência localizada no arquivo de Ana Virgínia Juaçaba.
240

de Museus (Santos, 2019, p. 38), mas sempre se manteve próxima das artes plásticas/visuais e da
Casa Raimundo Cela.

As correspondências e outros documentos acima apresentados, destinados à Heloísa


Juaçaba e/ou enviados por ela, mostra sua participação na esfera de uma rede de sociabilidade entre
artistas, críticos de arte, gestores e demais intelectuais envolvidos com o campo cultural. Inclusive,
o fato de Heloísa ter guardado, preservado e arquivado toda essa documentação – entre catálogos
de exposições, correspondências, ofícios, recortes de jornais, regulamentos – foi algo pensado para
que sua trajetória como gestora e mediadora cultural fosse lembrada posteriormente, pois a
preservação de um arquivo dessa natureza não deixa de ser uma forma de falar de si.

Nesse ínterim, ressaltamos que o papel de Heloísa Juaçaba como idealizadora e, durante
alguns anos, gestora da Casa Raimundo Cela a propiciou um lugar de influência e de autoridade no
campo das artes plásticas do Ceará. Tal reconhecimento, por parte de gestores culturais de outras
localidades do Ceará e do Brasil, isto é, por seus pares, faz parte da distribuição de um capital
específico para os sujeitos que ocupam determinados espaços na estrutura do campo (Bourdieu,
1996, p. 235).

Referências

Barbalho. Alexandre Almeida. Relações entre Estado e Cultura no Brasil: A Secretaria de Cultura do
Estado do Ceará (1966-78). 1997. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal
do Ceará, Fortaleza, 1997.

Bourdieu, Pierre. As regras da arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial
Presença, 1996.

Carvalho, Gilmar de. O voo do pássaro vermelho. In: agustinha, Núbia (org.). O inventário de uma
obra. Fortaleza: Lumiar Comunicação e Consultoria, 2012.

Durand, José Carlos. Arte, privilégio e distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil
(1955-1985). São Paulo: Perspectiva, 2009.

Gomes, Angela de Castro; Hansen, Patrícia Santos (Orgs). Intelectuais mediadores: práticas culturais
e ações políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

Malastian, Teresa. Cartas: Narrador, registro e arquivo. In: Pinsky, Carla Bassanezy; Luca, Tania
Regina de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

Martins, Vanessa Gandra Dutra. Reflexão sobre a escrita epistolar como fonte histórica a partir
da contribuição da teoria da literatura. Revista Língua e Literatura, Frederico Westphalen, vol. 13, n. 20,
pp. 61-72, ago. 2011.
241

Oliveira, Gerciane Maria da Costa. É ou não é um quadro Chico da Silva? Estratégias de autenticação
e singularização no mercado de pintura em Fortaleza. 2015. Tese (Doutorado em Sociologia) -
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.

Ruoso, Carolina. Casa de Morimbondos: nove tempos para nove atlas. História de um museu de arte
no Brasil. (1961-2011). 2016. Tese (Doutorado em História da Arte) - Escola Doutoral em
História da Arte, 411, Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne, Paris, 2016.

Santos, Núbia Agustinha Carvalho. Esboços cartográficos: Heloísa Juaçaba: mediadora cultural nas
Artes Visuais em Fortaleza (1967-1977). 2019. Monografia (Graduação em Licenciatura em Artes
Visuais) - Instituto Federal do Ceará, Fortaleza, 2019.

Sirinelli, Jean François. As elites culturais In: Rioux, Jean-Pierre; Sirinelli, Jean-François. Para uma
história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
242

Raízes do Brasil, um “clássico de nascença”?

André Augusto Abreu Villela*

Resumo: O presente artigo tende a desconstruir a narrativa da obra Raízes do Brasil de Sérgio
Buarque de Holanda, mostrando a evolução do autor de crítico literário a um historiador
profissional, passando por várias versões e “mutações” da obra, até sua versão definitiva.

Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Gilberto Freyre, Casa Grande e
Senzala e Historiografia Brasileira.

Introdução

Passado mais de 80 anos desde seu lançamento, a pergunta que se faz é, Raízes do Brasil é
um clássico de nascença, ou veio a se tornar com o passar dos anos? Esse questionamento ainda
gera discussões no campo historiográfico, mas é quase consenso no campo dos especialistas em
historiografia brasileira que o livro lançado em 1936, veio a se tornar um clássico após várias
edições, e várias “mutações” sofrida ao longo dos anos, vindo a se firmar como tal, somente na
quinta e última edição, com o famoso prefácio de Antonio Candido, lançado no ano de 1969, dando
solidez e um maior significado a obra. Segundo Lilia Schwarcs, esse foi um livro que sempre
“assombrou” Sérgio Buarque, tendo o mesmo, predileção por Visão do Paraíso. A recepção da
primeira edição não foi engajada ou festejada, pelo contrário, sofreu duras críticas, desconstruindo
a ideia de Candido de ser um clássico de nascença, sendo inclusive mal interpretada, e sendo
celebrada por entusiastas e intelectuais do Estado Novo de Vargas, como Cassiano Ricardo por
exemplo. Dessa forma, Candido acabou construindo uma narrativa, ou até mesmo um “cânone”
em torno de Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado
Júnior.

Segundo Fábio Franzini, é também sintomático que o próprio Antonio Candido tenha se
manifestado nos últimos tempos contra o estabelecimento desse paradigma, ou pior, de um cânone,
a partir de suas palavras. Segundo ele, isso ocorreu a sua revelia e em função da incompreensão de
seu texto, pois como declarou ao jornal Folha de São Paulo por ocasião dos 70 anos de Raízes do
Brasil, nunca negou tratar-se “de um relato pessoal de influências”, muito menos haver “livros tão

*
Graduado em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH); Graduado e Especialista em Ciências
Sociais pela Universidade de Franca.
243

importantes antes e depois dessa tríade nascida sob o governo de Getúlio Vargas”. Algo óbvio sem
dúvida, mas que não o impediu de “ter sido cobrado até por pessoas de responsabilidade pela
ausência deste ou daquele livro no suposto panteão do pensamento social brasileiro. (Franzini,
2011). Abaixo o aclamado prefácio de Antonio Candido, publicado na versão definitiva de Raízes
do Brasil, como brincou o próprio Sérgio Buarque, dizendo que o prefácio trouxe “sorte” ao livro.

Os homens que estão hoje um pouco pra cá ou um pouco pra lá dos cinquenta
anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de
passado e em função de três livros: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre,
publicado quando estávamos no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de
Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar; Formação do
Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, publicado quando estávamos na escola
superior. São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem
exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social
que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo
Estado Novo. (Candido, 2011, p. 9).

Casa Grande e Senzala e Raízes do Brasil, semelhanças e diferenças

Muitos se discute se Raízes do Brasil fosse uma resposta a obra de Gilberto Freyre, Casa
Grande e Senzala, lançado no ano de 1933, composto por cinco capítulos que, estendendo-se na
edição original por 517 páginas, onde o autor irá tecer elogios a colonização portuguesa nos
trópicos, “romantizando” a escravidão, criando assim um mito que perduraria por muitos anos, o
da Democracia Racial, tese essa ferrenhamente combatida pelos sociólogos da USP, principalmente
na figura de Florestan Fernandes. Ressaltando que a miscigenação é um tema também recorrente
por toda a obra. Freyre nascido em família aristocrática, de linhagem de senhores de engenho, era
um otimista em relação a colonização brasileira, olha para trás, sente saudades e nostalgia daquele
Brasil colonial, quando em 1888 estabelecia-se uma revolução no Brasil, lenta como diz Sérgio
Buarque de Holanda, porém importante na consolidação de uma identidade nacional formada na
libertação do Brasil de Portugal.

Se a data da Abolição marca no Brasil o fim do predomínio agrário, o quadro


político instituído no ano seguinte quer responder a conveniência de uma forma
adequada a nova composição social. Existe um ele secreto estabelecendo entre
esses dois acontecimentos e numerosos outros uma revolução lenta, mas segura
e concertada, a única que rigorosamente, temos experimentado em toda nossa
vida nacional. (Holanda, 2011, p. 171).

O livro de Sérgio Buarque era exatamente a antítese do de Freyre, via com maus olhos a
colonização e criticava duramente a figura do colonizador português. Porém ambos celebram a
vocação colonizadora do português, sua plasticidade para se moldar aos trópicos, seu hibridismo.
244

Segundo Pedro Monteiro, embora Casa Grande e Senzala seja o livro mais conhecido de Gilberto
Freyre, Sobrados e Mucambos, publicado em 1936, é a referência fundamental para a compreensão do
processo de urbanização e do declínio do patriarcalismo no Brasil. Raízes do Brasil se constrói sob
a marca do conflito: entre o individuo e a família, a pólis e o sujeito, o cidadão e o Pai, entre Creonte
e Antígona. Já Sobrados e Mucambos se constrói sob a marca da conciliação, do equilíbrio e da
acomodação. São todas questões de ordem política, que entanto não se separam. (Monteiro, 2015).

A abertura da primeira edição de Raízes do Brasil corrobora com o otimismo de Freyre,


dicções diferentes, porém afinadas ao mesmo tom fundamentalmente positivo. Cabe ressaltar que
Sérgio estará escrevendo essa obra sobre forte influência da sociologia weberiana e do historicismo
alemão, enquanto Freyre, inspirado principalmente na Antropologia de Franz Boas. Assim Freyre
descreveu seu professor e orientador, enquanto aluno da Universidade de Columbia em Nova
York, a separação entre raça e cultura, em um contexto de crescente racismo e teorias eugênicas
pelo mundo.

O professor Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior
impressão(...). Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do professor Boas
que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos
traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a
considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os
efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança
cultural e de meio. (Freyre, 2002, p. 7).

Sérgio Buarque, já na segunda edição de Raízes do Brasil, lançado em 1948, três anos após o
lançamento de Monções, irá ressaltar logo no prefácio, a mudança radical que se operou em sua obra,
doze anos após o lançamento da primeira edição. É quase certo do ponto de vista ideológico, que
o autor modificou suas posições políticas ao longo de sua trajetória intelectual. Sua estadia na
Alemanha, e leituras de Nietzsche e Carl Schmitt, pressupõe um pensador com ideias antiliberais,
e até admirador e entusiasta de um estado autoritário. O próprio Sérgio declararia anos mais tarde:
“Naquela época (da juventude) eu tinha uma certa inclinação monarquista”. (O Estado de São
Paulo, 19 de maio de 1977). Já na segunda versão, publicado doze anos após a primeira, a visão de
Sérgio Buarque parece ser mais republicana e democrática, chegando a afirmar “A democracia no
Brasil sempre foi um lamentável mal entendido”. (Holanda, 2011). A partir de então, o autor passa
a ser um teórico da democracia, trabalhando muito sobre a questão do público e privado,
patrimonialismo, desse ponto em diante o autor passa a adotar o conceito de cordialidade, onde as
relações no Brasil segundo Sérgio, são marcadas mais pela esfera afetiva e sentimental do que
propriamente pela racionalidade, o próprio intelectual assim definiu, “o homem cordial é a
expressão de um fundo emotivo, extremamente rico e transbordante”. Sérgio Buarque não faz
245

apologia a esse homem cordial, e nem o coloca no melhor dos mundos, pelo contrário, ele previne
que “a vida em sociedade para o brasileiro, é de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor
que ele sente de viver consigo mesmo”. E continua seu raciocínio: “Ele é antes um viver nos
outros”, e parafraseia Nietzsche citando Assim Falava Zaratustra quando diz: “Vosso mau amor de
vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. Em carta a Cassiano Ricardo, em um gesto
extremo, Sérgio Buarque faz questão de “matar” o homem cordial, sugerindo que a industrialização
e a urbanização martelariam o último prego no caixão daquele pobre defunto. Segundo Renato
Ortiz, Sérgio Buarque de Holanda, juntamente com Caio Prado Júnior, eram representantes dessa
nova sociedade brasileira que se descortinava a partir dos anos de 1930 no Brasil, eram a antítese
do pensamento conservador e reacionário de Gilberto Freyre.

A meu ver, Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior estão na origem de uma
instituição recente da sociedade brasileira, a universidade. Neste sentido eles são
fundadores de uma nova linhagem, que busca no universo acadêmico uma
compreensão distinta da realidade nacional. Não é por acaso que a USP é fundada
nos anos 1930; ela corresponde a criação de um espaço institucional onde se
ensinam técnicas e regras especificas ao universo acadêmico. Gilberto Freyre
representa o ápice de uma outra estirpe, que se inicia no século anterior, mas que
se prolongou até hoje como discurso ideológico. Sérgio Buarque e Caio Prado
Júnior significam rupturas não tanto pela qualidade de pensamento que
produzem, mas sobretudo pelo espaço social que criam e que dá suporte as suas
produções. Gilberto Freyre representa continuidade, permanência de uma
tradição, e não é por acaso que ele vai produzir seus escritos fora desta instituição
“moderna” que é a universidade, trabalhando numa organização que segue os
moldes dos antigos Institutos Históricos e Geográficos. (Ortiz, 1985, p. 40-41).

Cabe ressaltar que durante o período de reescrita de Raízes do Brasil, Sérgio também já estava
trabalhando na escrita de outro livro fundamental em sua bibliografia, Caminhos e Fronteiras,
publicado originalmente em 1957. É certo que no final dos anos 40, e começo dos anos 50, Sérgio
estava em várias frentes de trabalho como citado acima, inclusive sendo convidado a integrar um
projeto varguista, de criação de várias cátedras de ensino de História brasileira ao redor do mundo,
com a chamada crise das potências europeias no pós-guerra, essa chamada “fase italiana” de Sérgio
irá durar de 1952 a 1954, como professor da Universidade de Roma.

Segundo Thiago Lima Nicodemo, Lucien Febvre conhecia Sérgio Buarque de Holanda
desde os finais dos anos de 1940. Em uma carta de 15 de dezembro de 1948, o historiador francês
convidou-o para ministrar um trimestre de curso na Universidade de Sorbonne, em Paris. O convite
ocorreu por indicação de Fernand Braudel, líder da segunda geração dos Annales, que já vinha se
comunicando com o historiador nos meses anteriores, e que conhecera durante o período em que
havia lecionado na recém fundada Universidade de São Paulo, que viera junto a outros historiadores
e antropólogos franceses, na chamada “Missão Francesa”, principalmente na fundação da USP e da
246

Universidade do Distrito Federal, no qual Sérgio Buarque foi professor junto a outros jovens
intelectuais, sendo extinta durante o Estado Novo Varguista. Braudel reagia, provavelmente, a uma
tentativa de aproximação, pois na carta o historiador francês agradecia pelo envio da segunda
edição de Raízes do Brasil, que havia sido publicado no início de 1948, comentava uma indicação de
pesquisa em arquivos e o convidava para o congresso de história da colonização. Segundo a
cronologia escrita por sua esposa, Sérgio Buarque voltou a Paris ainda no mesmo ano para
participar de outras três reuniões de comitês da Unesco. (Nicodemo, 2014, p. 134).

Segundo Joao Kennedy Eugênio, foram inseridos cerca de 116 novos parágrafos de uma
edição para a outra, o que corresponde a um acréscimo da ordem de um terço do texto, que no
geral, podem se relacionar como uma insatisfação com generalidades e um desejo de se aproximar
do discurso de um historiador profissional. Sobretudo, há uma mudança de tom do livro, a
mudança que só se completa com a terceira edição da obra. (Eugênio, 2011). Importante salientar,
que Sérgio Buarque de Holanda era formado em Direito, tendo exercido sua profissão somente
uma única vez, no ano de 1927, Raízes do Brasil, irá representar uma mudança significativa na vida
de Sérgio Buarque, de um crítico literário e cronista, irá se converter em um historiador profissional,
principalmente em seus anos de estadia na Alemanha, onde irá entrar em contato com autores
como Meinecke, Simmel, Nietzsche, Weber entre outros, mudando assim completamente sua
escrita, interpretação dos fatos, e o modo de se fazer história. Maria Odila definiu bem essa
mudança no paradigma de escrita de Sérgio, “As inovações de estilo narrativo são óbvias(...). O
historiador jogou com a contextualização das palavras em diferentes épocas e contrastou a
movimentação da narrativa com ritmos de tempo que pretendia decifrar no passado”. (Dias, 2002).

Sérgio Milliet em 1964 afirmava que Sérgio Buarque representava uma ponte entre duas
gerações, o primeiro o ensaísta das crônicas nos jornais e revistas e colaborador das revistas
modernistas Klaxon e Estética nos anos de 1920. O segundo o que escreve Raízes do Brasil já na
década seguinte, passando de escritor a historiador profissional, ainda que o livro não representasse
ainda toda maturidade de um Sérgio Buarque de Holanda, como já na sua terceira fase, nos anos
de 1950, como escritor de clássicos para a historiografia brasileira como Caminhos e Fronteiras e Visão
do Paraíso. Maria Odila novamente de forma assertiva, assim como Milliet, irá dizer que Sérgio
Buarque foi um homem ponte entre os intelectuais da “rua” e os das “instituições”. Ela afirma:
“Pesquisador solitário em grande parte de sua vida, quis a todo custo acreditar que a universidade
era o meio profícuo para institucionalizar as condições necessárias para o estímulo à pesquisa.
(Dias, 1994, p. 274).

Em 1936, quando publica Raízes do Brasil, cujo teor político denunciava as permanências
das raízes ibéricas e era uma verdadeira provocação, na antessala do Estado Novo ao
247

conservadorismo e ao totalitarismo das elites brasileiras naquele momento. (Costa, 2004). Já na


segunda edição lançado em 1948, parece evidente que a revisão do tom político da obra tem relação
com a conjuntura posta em seu presente, no contexto do pós-Segunda Guerra e pós-Estado Novo.
Assim Sérgio Buarque fez prevalecer os vieses democráticos e antifascistas do livro. (Eugênio,
2011). O ponto central e nevrálgico do livro, era denunciar a permanência da oligarquia na
república.

O contexto e a construção do livro

Segundo o próprio Sérgio Buarque, Raízes do Brasil começou a ser escrito nos dois anos em
que permaneceu na Alemanha, como corresponde dos Diários Associados de Chateubriand.
Antonio Candido sempre afirmou que era um livro “meio alemão”, e que foi escrito na perspectiva
de se explicar as raízes da concepção do Brasil a um estrangeiro. Sérgio nutria um projeto de
escrever um ensaio histórico-sociológico intitulado Teoria da América, que na Alemanha, começou
a ganhar forma e corpo. Quando voltou ao Brasil, trouxe um calhamaço de 400 páginas de
manuscritos, que anos mais tarde já lapidado se tornaria Raízes do Brasil.

Importante salientar o contexto dos anos em que Sérgio viveu em Berlim. Era um período
entre guerras, ascensão de movimentos totalitários pela Europa, como o nazifascismo, que
propunha uma ruptura profunda com o passado, acompanhando ainda os agitados anos da
República de Weimar, e um clima pesado de revanchismo entre as nações europeias. Em artigo
publicado pelo O Jornal, em 1930, intitulado Nacionalismo e Monarquismo na Alemanha (Hitler, o
nacionalismo Prussiano e o fascismo de Mussolini – Sul contra o Norte – Como se fez o partido Nacional Socialista),
Sérgio Buarque traz uma reportagem mostrando a escalada vertiginosa do nazifascismo, e como o
partido Nacional Socialista de Hitler estava angariando cada vez mais uma quantidade enorme de
votos, mostrando como os teóricos racistas, tiveram um peso importante na chegada dos nazistas
ao poder, assim descreveu Sérgio ainda em 1930, em reportagem enviada ao Brasil.

Tudo nesse país depende principalmente de uma base ideológica, de uma visão
de mundo, ele não era certamente um teórico, mas não era difícil encontrar um
pensador de acordo com os princípios que se propunha conduzir a vitória. Assim
como os marxistas tinham Marx, os nacional socialistas adotariam Alfred
Rosenberg com seu livro Das Dritte Reich (O Terceiro Império), além disso, obras
de alguns pensadores políticos ou não, de brochuras populares sobre o
antissemitismo, a Igreja Católica, e a livre Maçonaria, completam a biblioteca
indispensável, de um adepto de Hitler. O indiscutível é que a facção de Hitler,
constitui a única agremiação partidária nacionalista em um progresso crescente
na Alemanha atual, as próximas eleições do Reichstag, dirão até que ponto os
últimos acontecimentos, tem contribuído para esse progresso. (O Jornal, 1930).
248

Antes da publicação original de Raízes do Brasil, ele foi publicado como um esboço, na
revista Espelho, em março de 1935, em um extenso artigo chamado Corpo e Alma do Brasil: ensaio da
psicologia social, o que serviu como uma síntese para a obra completa que viria a ser publicado um
ano depois. Sérgio Buarque começa o artigo discorrendo sobre Ribeiro Couto e a famosa tese do
Homem Cordial, por ele formulada, em um artigo publicado em 1932, na revista Monterrey: Correio
Literário de Alfonso Reyes, chamado “El hombre cordial, 248roduto americano”. Sérgio começa o artigo
dizendo: “O sr. Ribeiro Couto teve uma fórmula feliz quando disse que a contribuição para a
civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial”. (Revista Espelho, 1935).
E termina o artigo fazendo um elogio a monarquia brasileira e ao poder moderador: “Assim, a
monarquia brasileira trazia em si alguns elementos verdadeiramente afirmativos e construtivos, e
havia certa grandeza no ideal que se propôs. Hoje somos apenas um povo endomingado. Uma
periferia sem o centro”.

Finalmente no ano de 1936 veio a primeira edição de Raízes do Brasil, publicado pela coleção
“Documentos Brasileiros”, da editora José Olympio, coleção essa coordenada por Gilberto Freyre,
que escreveu o prefácio de cinco páginas, assim inaugurando a publicação de Raízes do Brasil.

Os organizadores desta coleção foram ainda felizes podendo fazer do trabalho


de Sérgio Buarque de Holanda o seu volume número 1. O escritor paulista é uma
daquelas inteligências brasileiras em que melhor se exprimem não só o desejo
como a capacidade de analisar, o gosto de interpretar, a alegria intelectual de
esclarecer. Quando apareceu há dez anos ou doze anos, ao lado de Prudente de
Moraes, neto – talvez a vocação mais pura de crítico que já surgiu entre nós – foi
logo revelando as qualidades e o gosto, que agora se afirmam vitoriosamente.
(Freyre, 1936).

Observa-se que Gilberto Freyre foi o prefaciador da primeira edição de Raízes do Brasil de
Sérgio Buarque de Holanda, ao mesmo tempo que pareciam tão antagônicos, ao mesmo tempo tão
próximos em se tratando de historiografia brasileira, embora de lados opostos em se tratando de
interpretação do que era o Brasil para ambos. A trilogia de Freyre sobre a interpretação do Brasil
se constitui em Casa Grande e Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e por último Ordem e Progresso
(1959). A respeito dessas obras, já em 1951, Sérgio Buarque irá escrever um artigo no Jornal Correio
da Manhã, no qual discorre sobre a importância da obra de Freyre para se entender a interpretação
do Brasil, mesmo tendo uma visão muitas vezes antagônica, Sérgio nutria uma amizade e respeito
pela obra do intelectual e amigo Gilberto Freyre.

Novo e generoso impulso aos estudos interpretativos, com base em amplo


material histórico, deu-o o Sr. Gilberto Freyre, a partir de 1933, com a publicação
249

de Casa Grande e Senzala. Um conhecimento extenso do passado rural,


sobretudo de seu nordeste, orientado pelo estimulo que lhe forneceram os
métodos difusionistas desenvolvidos por Franz Boas e seus discípulos norte-
americanos, e por numerosos estudos norte-americanos e europeus sobre
contatos sociais e miscigenação, abriu-lhe perspectivas ideais para abordar nossa
formação histórica. Para isso, tomou como ponto de partida o triângulo
representado pela família patriarcal, a grande lavoura e o trabalho escravo,
analisando suas repercussões sociais em uma série de estudos cujo último volume
ainda se encontra em preparo. (Jornal Correio da Manhã, 15 de julho de 1951).

Hermano Vianna, em seu livro intitulado O Mistério do Samba, onde o autor de forma
brilhante, resgata esse encontro acontecido na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1926. Onde se
encontraram Freyre, Sérgio Buarque, Prudente de Moraes, neto, Donga, Pixinguinha e Villa-Lobos.
Encontro esse articulado por Manuel Bandeira, outro pernambucano, um dos lumiares da cultura
de Recife assim como Freyre, foi o responsável por fazer essa “ponte” entre os intelectuais cariocas.
Sendo a primeira vez que Freyre conhecia a capital da república. O próprio Freyre anos mais tarde
relataria esse encontro ainda na sua mocidade: “Mais de uma vez amanhecemos, bebendo chope,
em bares tradicionalmente cariocas, ouvindo os para nós brasileiríssimos e como que mestres, além
de amigos, da cultura brasileira, Donga, Patrício e Pixinguinha”. (Freyre, 1987). Para Freyre, Sérgio
Buarque, seu amigo, “não seria apenas um erudito de gabinete, mas permaneceria sensível ao que
lhe chegasse aos ouvidos pela música popular brasileira ou pela memória de infância”.

O encontro juntava dois grupos bastante distintos da sociedade brasileira da


época. De um lado, representantes da intelectualidade e da arte erudita, todos
provenientes de “boas famílias brancas” (incluindo Prudente de Moraes Neto,
que tinha um avô presidente da república). Do outro lado, músicos negros ou
mestiços, saídos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro. De um lado dois
jovens escritores Freyre e Sérgio, que iniciavam suas pesquisas que resultaram
nos livros Casa Grande e Senzala e Raízes do Brasil, obras fundamentais na
definição do que seria o brasileiro no Brasil. A frente deles, os músicos
Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira, definiam a música que seria, também a
partir dos anos 30, considerada como o que no Brasil existe de mais brasileiro.
(Vianna, 1995, p. 20).

O certo é que a primeira edição de Raízes do Brasil não engrenou como esperado, gerando
mais dúvidas do que propriamente respostas como pretendia o livro. Segundo Conrado Pires de
Castro, o jornalista Múcio Leão (1898-1969), diz que Sérgio parecia incorrer em contradições ao
“sustentar, sem nenhum propósito possível de paradoxo”, apreciações deliberadamente reticentes
e ambíguas, atendo-se apenas aos “lineamentos essenciais” dos “modos de pensar republicano”,
“liberal-democrata” e das “tiranias”. Já na percepção de Oscar Mendes, o caráter inconclusivo do
ensaio conferia ao trabalho de Sérgio Buarque um aspecto mais negativista, mais céptico, mais
dubitativo, que restaurador e construtivo. Não diz o que quer e o que acha conveniente e
250

aconselhável, obrigando a gente a formular uma grande interrogação. Será o sr. Sérgio Buarque um
daqueles intelectuais “que se alimentam, ao mesmo tempo, de doutrinas dos mais variados
matizes”, sustentando, “simultaneamente, as convicções mais díspares”? Ou terá alguma “raiz”
mais vigorosa para suster a árvore, ou pretende revigorá-la, infundindo seiva nova, com “um galho”
estrangeiro, prudente ou violentamente enxertado? (Castro, 2016). Assim escreveu Múcio Leão ao
Jornal do Brasil, logo ao lançamento do livro.

[…] Seu pensamento, em tal campo, me parece cheio de contradições. Em uma


das páginas do livro, faz ele observar que o brasileiro tem a tendência a aceitar as
ideias mais díspares, associando, em seu espírito, convicções e preceitos que, no
espírito de qualquer outro povo, serão os inimigos mais ferrenhos. Parece-me
que o Sr. Sérgio Buarque de Holanda incorre um pouco em sua própria
observação. Assim é que o vemos, num trabalho que aparece em apêndice no
livro, combater vivamente o integralismo, a propósito do Sr. Otávio de Faria. E,
entretanto, na página 158 do volume o vemos sustentar sem nenhum propósito
possível de paradoxo, a vantagem das tiranias. Ouçamo-lo: “É claro que um amor
humano que se asfixia e morre fora do seu circuito restrito, não pode servir de
cimento a nenhuma organização humana concebida em escala mais ampla. Com
a cordialidade, a bondade, não se criam os bons princípios. É necessário um
elemento normativo, sólido, inato na alma do povo ou implantado pela tirania
para que possa haver cristalização social. A tese de que os expedientes tirânicos
nada realizam de duradouro é apenas uma das muitas invenções fraudulentas da
mitologia liberal, que a história está longe de confirmar”. Aí está uma maneira de
falar clara e sem rebuços. Será isso o modo de pensar de um republicano? de um
liberal-democrata? Ou será, antes, a maneira de doutrinar de um discípulo de
Hitler? [...] (Jornal do Brasil, 1936).

A bem da verdade é que o livro demorou a deslanchar, sua consagração viria apenas em
algumas edições posteriores, segundo João Eugênio Kennedy, alguns fatores foram
preponderantes para que isso acontecesse. Por exemplo, a complexidade de Raízes do Brasil
atrapalhou em muito o entendimento dos leitores, que só foram realmente entender do que se
tratava o texto praticamente na quinta edição, prefaciada pelo amigo Antonio Candido; O embate
com Casa Grande e Senzala, que desde o lançamento em 1933 já fui um sucesso arrebatador, havendo
apenas um hiato de três anos de separação entre as duas obras, que praticamente versavam sobre
o mesmo tema; Gilberto Freyre, em Casa-grande & Senzala, o faz preferencialmente através de
inúmeros prefácios que acompanham as muitas edições. Mas Sobrados e Mucambos, cuja primeira
edição é de 1936, foi refundido com acréscimo de cinco capítulos, inúmeras notas e uma importante
introdução para a segunda edição, como constata Elide Rugai Bastos (2012). O longo processo de
revisão e atualização da obra, que demorou praticamente entre a primeira e quinta edição cerca de
trinta e três anos até se chegar ao produto final. São esses alguns dos fatores determinantes para a
não alavancada da obra.
251

A mudança significativa vem com o crescente envolvimento de Sérgio Buarque de Holanda


com a pesquisa histórica, ficando claro essa preocupação na sua obra Monções de 1945, muito na
verdade incentivada pelos professores Henri Hauser e Henri Trouchon, durante os anos em que
Sérgio foi professor e assistente na Universidade do Distrito Federal. O próprio Sérgio declararia
anos mais tarde que seu contato com esses professores o levou a ampliar seus conhecimentos; Os
acréscimos, as supressões, a ampliação e a reformulação do livro também foram chave importante
na consagração da obra, fato esse já bem notado na versão de 1948, onde o mundo vivia um clima
menos hostil do pós-guerra, com o fim do nazismo e do fascismo na Europa, e o Brasil vivia a
partir de então um governo democrático, o que de certa forma foi algo interessante para uma nova
abordagem do livro e talvez por último a carta a Cassiano Ricardo, que enriqueceu muito a terceira
edição da obra. “Variações sobre o Homem Cordial”, publicado originalmente no segundo número
da revista Colégio, em 1948, e a resposta de Sérgio Buarque, “Carta a Cassiano Ricardo”, saída no
número seguinte da mesma revista, também em 1948, fator preponderante para que o livro
ganhasse uma feição mais acadêmica do que ensaística, traço definidor da primeira edição, onde o
autor estava mudando de um crítico literário para um historiador profissional. (Eugênio, 2016). Já
no prefácio a segunda edição, o próprio Sérgio Buarque tenta mostrar de forma clara a mudança
significativa da versão de 1936 para a de 1948.

Publicado pela primeira vez em 1936, este livro sai consideravelmente


modificado na presente versão. Reproduzi-lo em sua forma originária, sem
qualquer retoque, seria reeditar opiniões e pensamentos que em muitos pontos
deixaram de satisfazer-me. Se por vezes tive o receio de ousar uma revisão
verdadeiramente radical do texto — mais valeria, nesse caso, escrever um livro
novo — não hesitei, contudo, em alterá-lo abundantemente onde pareceu
necessário retificar, precisar ou ampliar sua substância. Entretanto, fugi
deliberadamente à tentação de examinar, na parte final da obra, alguns problemas
específicos sugeridos pelos sucessos deste último decênio. Em particular aqueles
que se relacionam com a circunstância da implantação, entre nós, de um regime
de ditadura pessoal de inspiração totalitária. Seria indispensável, para isso,
desprezar de modo arbitrário a situação histórica que presidiu e de algum modo
provocou a elaboração da obra, e isso não me pareceu possível, nem desejável.
Por outro lado, tenho a pretensão de julgar que a análise aqui esboçada de nossa
vida social e política do passado e do presente não necessitaria ser reformada à
luz dos aludidos sucessos. Sobre as mudanças simplesmente exteriores ou
formais agora introduzidas no livro, cabem ainda algumas palavras. Dois
capítulos, o 3 e o 4, que na primeira edição traziam um título comum — “O
passado agrário” —, passaram a chamar-se, respectivamente, “Herança rural” e
“O semeador e o ladrilhador”, denominações estas que melhor se ajustam aos
conteúdos, pelo menos aos conteúdos atuais, dos mesmos capítulos. As notas
complementares, ou destinadas a esclarecimento de passagem do texto, foram
dispostas, de preferência, no pé das respectivas páginas. Somente as mais
extensas, e que, de algum modo, podem ser lidas independentemente, ficaram
para o fim dos capítulos correspondentes. Para o fim do volume foram todas as
simples referências bibliográficas. (Holanda, 1947).
252

A quarta edição da obra viria a ser publicada no ano de 1963, pela Editora da Universidade
de Brasília, mais uma vez é revista, mas não ampliada, e possui o acréscimo de um prefácio de três
páginas de Antonio Candido. Por fim, em janeiro de 1969, é publicado a quinta e definitiva edição,
novamente pela editora José Olympio, novamente na mesma coleção de 1936, “Documentos
Brasileiros”, porém agora dirigida por Afonso Arinos de Melo Franco. Cabe ressaltar que Raízes do
Brasil recebeu versões em italiano, em 1954, e para o espanhol em 1955, em japonês a primeira
versão remonta ao ano de 1971, em alemão em 1995, e finalmente em francês no ano de 1988.
(Rocha, 2011).

Conclusão

Segundo João Kennedy, Raízes do Brasil não pode ser considerada uma obra uníssona, e que
geralmente costuma fugir das definições rígidas do campo historiográfico. Mas não se pode perder
de vista que o que está em jogo é a percepção do processo de adaptação do europeu e sua conversão
em algo novo. Esse novo segundo ele, são a nacionalidade, a cultura e a sociedade brasileira. Raízes
não só tende para pensar esse produto como positivo, mas sobretudo para encará-lo como acabado,
no sentido em que a nacionalidade brasileira está relativamente construída, pronta. Se não pronta,
determinada organicamente por suas forças e potencialidades históricas. Portando pode-se dizer,
que Monções e Caminhos e Fronteiras aprofundam um dos temas centrais de Raízes do Brasil, que é de
compreender o resultado da história de adaptação do europeu ao novo mundo. Sendo assim, as
versões subsequentes da obra, como a edição de 1948, parece evidente que a revisão do tom político
da obra tem relação com a conjuntura posta em seu presente, no contexto do pós-guerra e pós-
Estado Novo. Assim Sérgio Buarque fez prevalecer os vieses democráticos e antifascistas do livro.
(Eugênio, 2011).

Segundo Francisco Iglésias, o melhor da crítica a respeito, é o notável ensaio de Antonio


Candido, “O significado de Raízes do Brasil”, usado como prefácio em todas as edições desde então.
Como cita Candido “No tom geral, uma parcimoniosa elegância, um vigor de composição
escondido pelo ritmo despreocupado e às vezes sutilmente digressivo, o que faz lembrar Simmel e
nos parecia um corretivo a abundância nacional”. O ensaio assinala com justeza, no período
anterior, as matrizes desse pensamento: “O seu respaldo teórico prendia-se a nova história social
dos franceses, a sociologia da cultura dos alemães, a certos elementos de teoria sociológica e
etnológica também inéditos entre nós”. (Iglesias, 1992). Segundo familiares e amigos mais
próximos, sempre que confrontado acerca de Raízes do Brasil o mesmo dizia, “não leia esse livro, é
velho, ultrapassado, leia Visão do Paraíso que é muito melhor”. Antonio Candido afirmou no
253

prefácio da obra “Só um historiador erudito e minucioso, mas ao mesmo tempo capaz de
generalizar e descobrir as linhas fundamentais, poderia escrevê-lo, dando-lhe a eficiência que o
tornou um dos estudos básicos para compreender a sociedade brasileira”. (Candido, 1969). Mas é
certo que o grande intelectual Sérgio Buarque de Holanda não seria tão conhecido e reconhecido
se não fosse por Raízes do Brasil, talvez só ele com toda sua envergadura intelectual seria capaz de
escrever tamanha obra, e mesmo após várias edições, ter a paciência, o zelo, o trabalho de se
debruçar sobre ela até se tornar um clássico, mesmo tendo passado trinta e três anos do lançamento
original a última e definitiva edição de 1969, como diria Antonio Candido “Não existiu maior
intelectual que Sérgio Buarque de Holanda”.

Índice cronológico das edições de Raízes do Brasil

1° edição: outubro de 1936. Volume n° 1 da Coleção Documentos Brasileiros (dirigida por Gilberto
Freyre). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
2° edição, revista e ampliada: janeiro de 1948. Volume n° 1 da Coleção Documentos Brasileiros
(então dirigida por Otávio Tarquínio de Sousa). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
3° edição, revista: agosto de 1956. Volume n° 1 da Coleção Documentos Brasileiros (ainda dirigida
por Otávio Tarquínio de Sousa). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
4° edição: 1963. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. Coleção Biblioteca Básica Brasileira.
5° edição, revista: janeiro de 1969. Volume n° 1 da Coleção Documentos Brasileiros (então dirigida
por Afonso Arinos de Melo Franco). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.

Referências

Bastos, Elide Rugai. Um livro entre duas constituintes. In: Raízes do Brasil. Edição Crítica. São
Paulo: Editora Companhia das Letras, 2016.

Candido, Antonio. Prefácio de Raízes do Brasil, 1969. In: Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Castro, Conrado Pires de. A Eterna Juventude de um Clássico. In: Raízes do Brasil. Edição Crítica.
São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2016.

Costa, Marcos. Para uma Nova História: Textos de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo. Editora:
Fundação Perseu Abramo, 2004

Dias, Maria Odila da Silva. Sérgio Buarque de Holanda na USP. Estudos Avançados, vol. 8, n° 22,
1994.
254

Eugênio, João Kennedy. Ritmo Espontâneo: Organicismo em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de
Holanda. Teresina: Editora da UFPI, 2011.

__________. Entre Totem e Tabu: O Processo de Raízes do Brasil. In: Raízes do Brasil, Edição Crítica.
Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

Franzini, Fábio. A década de 1930, entre a memória e a história da historiografia brasileira. In:
Estudos de Historiografia Brasileira. Editora FGV, Rio de Janeiro, 2011.

Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. França: Allca, Université de Paris, 2002.

__________. Documentos Brasileiros. In: Hollanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Prefácio,
1936.

__________. Sérgio, mestre dos mestres. Revista do Brasil, n° 6, p. 117, 1987.

Holanda, Sérgio Buarque. Prefácio a Segunda Edição. In: Raízes do Brasil. 1948.

__________. Sérgio, Mestre dos Mestres. Revista do Brasil, 1982.

__________. Prefácio da segunda edição de Raízes do Brasil. 1947

__________. Nacionalismo e Monarquismo na Alemanha (Hitler, o nacionalismo Prussiano e o


fascismo de Mussolini – Sul contra o Norte – Como se fez o partido Nacional Socialista). O
Jornal, 1930.

__________. Corpo e alma do Brasil: ensaio de psicologia social. Revista Espelho, Rio de Janeiro,
1935.

__________. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

__________. Raízes do Brasil Edição Crítica 80 anos. Editora Companhia das Letras, São Paulo,
2016,

Iglésias, Francisco. Sérgio Buarque de Holanda, Historiador. Rio de Janeiro: UERJ, 1992.

Leão, Múcio Carneiro. Registro Literário. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1936.

Monteiro, Pedro Meira. Signo e Desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a Imaginação do Brasil.
Editora Hucitec. São Paulo, 2015.

Nicodemo, Thiago Lima. Alegoria Moderna: Crítica Literária e História da Literatura na Obra de
Sérgio Buarque de Holanda. Editora: FAP-UNIFESP, São Paulo, 2014.

Ortiz, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

Rocha, João Cezar de Castro. Biografia de um livro-problema. Edusp, 2011.

Vianna, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.


255

Quem é o Pai da Aviação? batalhas de memória entre Brasil e


Estados Unidos durante o governo Vargas

André Barbosa Fraga*

Resumo: O primeiro governo Vargas (1930-1945) mostrou-se um período marcado por


consideráveis mudanças e inovações provenientes de iniciativas públicas e privadas no campo da
aviação. O grupo político que chegou ao poder por meio da Revolução de 1930, e ampliou seus
poderes com a implantação do Estado Novo, identificou no fortalecimento do setor aéreo,
principalmente a partir de 1940, algo fundamental à própria legitimação do regime. Diante disso, o
caminho mais seguro encontrado pelo governo para empreender alterações profundas no setor foi
o de investir na elaboração de um projeto de Estado voltado à construção do que foi chamado na
época de uma mentalidade aeronáutica. Ela consistia na tentativa de se generalizar a compreensão
e o interesse da população pelo desenvolvimento da navegação aérea, despertando em cada
brasileiro o interesse de colaborar com a causa. A história ocupou um lugar central no discurso
governamental, que passou a procurar nela, principalmente a partir de 1940, personagens brasileiros
que de alguma maneira tivessem contribuído para o incremento da aviação mundial. Nesse
processo, o Estado Novo foi buscar no passado precursores da aviação que comprovassem, por
terem nascido no país, a existência de uma herança vocacional ao voo. Entre as figuras destacadas
estão Bartolomeu Lourenço de Gusmão, Júlio Cesar Ribeiro de Souza, Augusto Severo e Alberto
Santos Dumont. No entanto, apesar de existir o interesse de se valorizar esses quatro vultos
brasileiros considerados pioneiros da navegação aérea, os recursos materiais e simbólicos
disponíveis não foram empregados na mesma proporção. Santos Dumont foi referenciado pelo
regime com frequência superior à dispensada aos demais. Contudo, em 1940, um obstáculo
ocorreu: a contestação internacional das realizações atribuídas a ele. Os Estados Unidos passaram
a defender, com mais força, a versão de que o primeiro voo havia sido realizado em 17 de dezembro
de 1903 pelos irmãos Wright. A partir dessas informações, esta pesquisa pretende analisar uma
batalha de memória que o governo Vargas envolveu-se contra os Estados Unidos, para proteger a
interpretação que considerava 23 de outubro de 1906 a data do primeiro voo de um aeroplano na
história e que concedia ao inventor brasileiro o título de precursor da aviação mundial.

Palavras-chave: aviação, governo Vargas, Santos Dumont, batalha de memória.

O primeiro governo Vargas (1930-1945) mostrou-se um período marcado por


consideráveis mudanças e inovações provenientes de iniciativas públicas e privadas no campo da
aviação. Nas décadas de 1930 e de 1940, o avião alcançou protagonismo, sendo empregado como
meio de comunicação, de comércio e de defesa. Justamente nesse momento, no Brasil e no mundo,
os “pássaros mecânicos” acabaram integrados ao cotidiano da população. No contexto nacional, o

*
Doutor em História pela UFF. E-mail: andrebfraga@yahoo.com.br.
256

desenvolvimento do setor aéreo civil e militar revelou-se uma das principais ações estratégicas
elaboradas pela administração varguista na implantação de um modelo político, econômico e social
concebido por ela, no qual a nação transformar-se-ia em uma potência aérea, colaborando para o
país alcançar sua autonomia.

O caminho mais seguro encontrado para colocá-lo em prática foi o de investir na


elaboração de um projeto de Estado voltado à construção do que foi chamado na época de uma
“mentalidade aeronáutica”. Tal expressão foi recorrentemente empregada nos meios de
comunicação, inclusive nas publicações oficiais do regime, como livros e periódicos, conforme
aparece, por exemplo, no artigo “Evolução aeronáutica brasileira – Futuro aeronáutico do Brasil”
(Rodrigues, 1941). Dessa forma, valendo-se aqui da noção de “projeto”, no sentido atribuído pelo
antropólogo Gilberto Velho, a saber, “conduta organizada para atingir finalidades específicas”
(Velho, 1994, p. 101), pode-se afirmar que o governo Vargas empenhou consideravelmente
esforços materiais e simbólicos na elaboração dessa mentalidade aeronáutica. Ou seja, na tentativa
de se generalizarem a compreensão e o interesse da população pelo desenvolvimento da navegação
aérea, buscou-se despertar em cada brasileiro o desejo de colaborar com a causa da maneira que
pudesse, mobilizando os recursos materiais e simbólicos disponíveis.

A análise do desenvolvimento da navegação aérea de 1930 a 1945 permite dividir em duas


fases a trajetória de construção dessa mentalidade aeronáutica. A primeira, datada de 1930 a 1939,
ocorreu nos governos provisório e constitucional de Vargas, sendo marcada pela fragmentação do
controle sobre a aviação e, consequentemente, por medidas iniciais e modestas em benefício da
área. Nesse momento, o Ministério da Viação e Obras Públicas responsabilizava-se pela navegação
aérea civil, o da Guerra pela aviação do Exército, e o da Marinha pela aviação naval. Essa forma de
organização sofreu críticas ao longo do tempo, o que estimulou, principalmente a partir de 1935, o
aparecimento de campanhas para a criação de um “Ministério do Ar”, o qual concentraria o
controle unificado sobre toda a aviação nacional. Os adeptos à mudança a defendiam
principalmente porque ela daria uniformidade e traria economia às atividades da aviação (O Radical,
1940, p. 4).

Apesar das campanhas, o governo somente se mostrou favorável a uma reforma


significativa no setor no final de 1940, quando os resultados bem-sucedidos do emprego da aviação
na Segunda Guerra Mundial, sobretudo as investidas vitoriosas das aviações alemães e italianas no
início do conflito, forneceram provas definitivas da importância do campo aéreo militar para a
garantia da segurança nacional (Lavenère-Wanderley, 1975, p. 214). Esse contexto levou a
construção de uma mentalidade aeronáutica no Brasil a entrar em sua segunda fase, ocorrida de
1940 a 1945, sob a vigência da ditadura do Estado Novo. Ela foi marcada pelo consentimento do
257

presidente para a unificação do setor aéreo e pela criação efetiva do Ministério da Aeronáutica e da
Força Aérea Brasileira, em 20 de janeiro de 1941. Joaquim Pedro Salgado Filho, político gaúcho da
confiança do presidente e o nome escolhido para chefiar a pasta, passou a controlar todas as
aviações existentes no país, desenvolvendo uma série de ações que permitiu à construção dessa
mentalidade aeronáutica alcançar o seu auge.

A história ocupou um lugar central na construção dessa mentalidade aeronáutica, tanto que
o governo passou a procurar nela, principalmente a partir de 1940, personagens brasileiros que de
alguma maneira teriam contribuído para o desenvolvimento da aviação mundial. Nesse processo,
foram selecionadas principalmente quatro figuras: Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724),
Júlio Cesar Ribeiro de Souza (1843-1887), Augusto Severo (1864-1902) e Alberto Santos Dumont
(1873-1932) (Rodrigues, 1944). No caso de uma memória que o governo estava desenvolvendo
sobre a aeronáutica, um personagem foi referenciado pelo regime com frequência superior à
dispensada aos demais: Santos Dumont. De fato, o inventor era a figura brasileira ligada à aviação
de maior projeção internacional, ao ter recebido os prêmios Deutsch (em 13 de julho de 1901, por
ter resolvido o problema da dirigibilidade dos balões ao contornar com seu dirigível a Torre Eiffel)
e Archdeacon (em 23 de outubro de 1906, por ter desenvolvido o voo mecânico em percurso
controlado).

O empenho do governo Vargas em valorizar vultos da aviação nacional encontrou, em


1940, um significativo obstáculo: a aprovação, no Congresso dos Estados Unidos, de uma lei que
ampliava para o resto do continente uma data comemorada pelos norte-americanos como o “Dia
da Aviação Nacional”. Ela era celebrada no dia 17 de dezembro, data na qual consideravam ter os
irmãos Wilbur (1867-1912) e Orville Wright (1871-1948), realizado, em 1903, o primeiro voo em
aparelho mais pesado do que o ar, provido de motor. Tal lei criava, a partir de 17 de dezembro
daquele ano, o “Dia da Aviação Pan-americana”. No Brasil, a crítica à criação dessa comemoração
ocorreu logo após a informação chegar ao país, em outubro (Correio da Manhã, 1940a, p. 5). Logo,
vários setores se uniram e entraram em uma batalha de memória (Pollak, 1989, p. 4-8) internacional
para proteger a interpretação que considerava o Brasil o precursor histórico da aviação mundial.

O primeiro e mais atuante opositor a essa data foi o Aeroclube do Brasil, que organizou
uma campanha de boicote ao evento. Juntaram-se a ele o Touring Clube do Brasil, a Associação
Comercial do Rio de Janeiro e grande parte da imprensa de todos os estados brasileiros. Durante
dois meses de protesto, a repercussão foi significativa, esvaziando completamente o evento no
Brasil e enfraquecendo-o em muitos países do continente, sobretudo na América Latina. Várias
nações já estavam familiarizadas com a data de 23 de outubro de 1906, em que representantes, por
exemplo, da Argentina, do Chile, do Paraguai e do Uruguai vinham ao Rio de Janeiro para
258

comemorar o feito de Santos Dumont em Bagatelle, na França (Correio da Manhã, 1940b, p. 5).
Ou seja, o evento proposto pelos Estados Unidos não conseguiu criar empatia com os demais
países do continente nem tampouco em reverter a identificação que eles já haviam criado
anteriormente com o vulto brasileiro.

Além disso, a celebração planejada pelos Estados Unidos ao criar uma data que ignorou o
papel de Santos Dumont, percebido como legítimo representante da América Latina, foi
considerada pelos demais países do continente como uma afronta também a eles (Correio da
Manhã, 1941, p. 5). Percebendo que seus esforços de integração continental não haviam surtido o
efeito esperado com o “Dia da Aviação Pan-americana”, os Estados Unidos, para tentar salvar o
evento, resolveram fazer um pronunciamento oficial. Nele, argumentaram que escolheram o
aniversário da experiência dos irmãos Wright “porque acreditaram ser essa uma oportunidade
adequada para prestar tributo aos pioneiros do ar de todas as Repúblicas Americanas e ao progresso
da aviação no hemisfério ocidental” (Correio da Manhã, 1940c, p. 4). Portanto, os patrocinadores
da ideia divulgaram o desejo de homenagear não apenas a memória dos Irmãos Wright, mas de
Alberto Santos Dumont e de outros pioneiros nascidos nos demais países da América.

Apesar dos esclarecimentos, a explicação do representante dos Estados Unidos não foi bem
recebida e o impasse permaneceu. Para o Brasil, mesmo que a data lembrasse os principais vultos
da aviação da América, de nada adiantaria participar de uma comemoração cujo protagonismo seria
depositado nos irmãos Wright e não no inventor brasileiro. Chegada a data do “Dia da Aviação
Pan-americana”, a comemoração foi realizada nos Estados Unidos com um banquete para
membros do governo, chefes militares e representantes diplomáticos de outras nações. Em seguida,
os convidados assistiram à exibição de um filme sobre a história da aviação norte-americana
(Correio da Manhã, 1940d, p. 5). Já a imprensa brasileira publicou, ao longo do dia 17, artigos a
respeito dos feitos de Santos Dumont, os quais foram homologados pelo Aeroclube da França,
desqualificando o suposto pioneirismo dos irmãos Wright, alegando que não realizaram seus voos
publicamente, além de terem empregado para a decolagem aviões lançados de uma espécie de
catapulta, a qual não os faria voar, mas apenas planar (Correio da Manhã, 1940e, p. 5).

O governo Vargas se posicionou aderindo ao protesto. As principais lideranças políticas do


Estado Novo tinham a consciência de que a valorização de Santos Dumont era fundamental à
criação de uma mentalidade aeronáutica brasileira. Sendo assim, os integrantes do regime
perceberam que daria forças ao país defender a versão de que pertencia a Santos Dumont a primazia
de realizar o até então inédito voo totalmente controlado. Para esse conflito de versões históricas
que passou a travar com os Estados Unidos, o governo Vargas mobilizou uma parte considerável
de seus ministérios: o da Educação e Saúde, o da Aeronáutica e o das Relações Exteriores. Além
259

disso, contou também com o auxílio de seu órgão de propaganda e censura: o Departamento de
Imprensa e Propaganda. Eles desenvolveram principalmente três estratégias: intensificar a
produção de políticas culturais capazes de fortalecer o culto a Santos Dumont, reunir e divulgar
provas do pioneirismo do inventor brasileiro e obter o apoio de outras nações à causa,
principalmente latino-americanas.

Em uma das primeiras ações ligadas a um dos integrantes do grupo, o DIP desenvolveu, já
em 1940, duas produções. Uma delas foi o livro Quem foi que disse? Quem foi que fez?. Baseado em
perguntas e respostas, apresenta 38 frases e realizações de grandes vultos da história do Brasil.
Havia questões sobre expressões ou sobre ações que remetiam a um personagem histórico
considerado importante para o país, como: “Quem foi que disse ‘Sigam-me os que forem
brasileiros!’?”. Em seguida, dava-se a resposta (“– Foi o marechal duque de Caxias...”) e discorria
sobre aquele personagem. Ou ainda: “Quem foi que fez correr o primeiro trem no Brasil? – Foi
Irineu Evangelista de Sousa...”. Com o intuito de defender a primazia do voo de Santos Dumont,
o órgão aproveitou para inserir uma alusão ao inventor brasileiro muito bem escolhida, porque
colocava diretamente em xeque a versão divulgada pelos Estados Unidos. Abaixo, destaca-se um
trecho:

QUEM FOI QUE FEZ o primeiro voo no “mais pesado do que o ar”? – Foi,
sem nenhuma contestação possível, sem nenhuma dúvida lícita, o grande
aeronauta brasileiro Santos Dumont, cujo gênio conquistou a admiração de toda
a Europa quando, em Paris, realizou, com riscos e dificuldades que só a sua
tenacidade e desprendimento seriam capazes de vencer, as suas sensacionais
experiências de inventor. Por mais que queiram, não conseguirão os norte-
americanos arrebatar ao Brasil a glória de ter sido ele o pioneiro da aviação, para
atribuí-la aos irmãos Orville e Wilbur Wright. Esses engenheiros americanos
alegam haver antecedido Santos Dumont, quando foram, apenas, seguidores da
sua obra. A prioridade americana não está provada com fatos, mas apenas alegada
pelos próprios interessados. O documento das experiências de Santos Dumont
está não só na fotografia, nas reportagens da imprensa da época, como no
imponente monumento existente em Saint-Cloud, erigido em sua homenagem
pela França, e do qual se ergue uma cópia exata sobre o seu túmulo, no cemitério
São João Batista, no Rio de Janeiro. Esse monumento consagra Santos Dumont
como o “Pai da aviação”, título a que o grande brasileiro tem real direito (DIP,
1940, p. 54 e 55).

A segunda iniciativa do DIP foi a elaboração de um filme, desenvolvido pela equipe


responsável por produzir os Cinejornais Brasileiros. Como reflexo da disputa travada com os
Estados Unidos, o DIP aproveitou para desenvolver, no interior desse projeto, o curta intitulado
Santos Dumont, o dominador dos ares. Enquanto os norte-americanos comemoraram, em 17 de
dezembro, o “Dia da Aviação Pan-americana” assistindo a um filme sobre a história de sua aviação,
no mesmo dia, como resposta, o Brasil exibiu, pela primeira vez, o filme a respeito de Santos
260

Dumont, na sala de projeções do Departamento de Imprensa e Propaganda. Prestigiou o evento


um público diversificado, composto de jornalistas, representantes das aviações civil, da Marinha e
do Exército e do público em geral (Correio da Manhã, 1940, p. 5).

Ou seja, no momento em que a autoria do primeiro voo em um aeroplano estava sendo


discutida, esse filme objetivava rebater a argumentação dos Estados Unidos. Tal produção
cinematográfica apresentou “um documentário apreciável das experiências realizadas pelo Pai da
Aviação, em virtude das quais se tornaram possíveis a dirigibilidade dos balões e o voo do mais
pesado que o ar” (Aristheu, 1941). As experiências do inventor foram exibidas em uma sequência
cronológica, iniciando com os vários tipos de dirigíveis que criou ao longo da carreira e relatando
os acidentes ocorridos, alguns com risco de morte. Posteriormente, os espectadores assistiram às
primeiras provas efetuadas por Santos Dumont no campo de Bagatelle com o intuito de
experimentar a direção e as correntes de ar, sendo seguidas por imagens da arrancada do 14 Bis
deixando o solo sob os olhos atentos de uma multidão que foi vê-lo (Correio da Manhã, 1940f, p.
5).

O “Dia da Aviação Pan-americana”, anunciado nos últimos meses de 1940, sem dúvida
pegou a todos de surpresa. O Aeroclube do Brasil, o Touring Clube do Brasil, a imprensa nacional
e o próprio governo, desprevenidos diante daquele repentino acontecimento e não
disponibilizando no momento de tempo hábil para organizar uma resposta amparada em ações e
políticas culturais mais duradouras, excetuando-se as duas produções do DIP, praticamente
reagiram apenas com a contestação imediata da data. A chegada de 1941 marcou o início do período
de ápice do culto a Santos Dumont, patrocinado pelo Estado Novo e mantido com interesse até o
fim da ditadura. Como visto, uma das estratégias para defender o inventor brasileiro foi a de ampliar
ao máximo possível as ações em torno daquele personagem. Para a sorte do regime Vargas,
justamente aquele ano era propício ao investimento que se procurava fazer por ser marcado por
duas efemérides que ajudaram a fortalecer o projeto estabelecido: o 40° e o 35° aniversários,
respectivamente, dos prêmios Deutsch e Archdeacon.

Tais datas foram comemoradas durante a “Semana da Asa”, festividade que não à toa
alcançou um crescimento significativo a partir de 1941. A lógica de tornar tal evento mais grandioso
foi uma maneira encontrada pelo governo de desqualificar aquele criado pelos norte-americanos.
Ou seja, engrandecer as celebrações em torno do dia 23 de outubro, a partir daquele momento,
com uma maior participação do governo e dos recém-criados ministério da Aeronáutica e Força
Aérea Brasileira, era reconhecer o pioneirismo de Santos Dumont. Da mesma forma, ignorar o dia
17 de dezembro e as solenidades organizadas em torno dele, não reconhecendo sua legitimidade,
era atribuir aos irmãos Wright um papel periférico. Sendo assim, o Estado Novo aproveitou o
261

início de 1941 para pensar em maneiras de glorificar o inventor brasileiro e para marcar
internacionalmente a sua posição diante do “Dia da Aviação Pan-americana”.

Em 11 de janeiro de 1941, portanto menos de um mês após a cerimônia organizada pelos


Estados Unidos, Oswaldo Aranha, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, entrou em contato
com Carlos Martins Pereira e Sousa, o Embaixador do país em Washington, transmitindo o ponto
de vista do regime Vargas a respeito daquele festejo e o autorizando a explicar à National Aviation
Day Association Inc os motivos da recusa ao convite recebido daquela instituição:

Como Vossa Excelência não ignora, para o Brasil como para os demais países,
associar-se a tal celebração importaria em reconhecer a prioridade dos irmãos
Wright na descoberta da navegação aérea com aparelho mais pesado que o ar,
ponto de vista esse inaceitável não só para o Governo Brasileiro mas também
para todo aquele que investigue com isenção de ânimo a verdade histórica sobre
a quem caiba o mérito da precedência na referida descoberta. Decidiu, por
conseguinte, o Sr. Presidente da República recusar qualquer apoio à iniciativa da
aludida associação, a qual, tendo como patronos os mencionados irmãos Wright,
timbra por ignorar o feito realizado por Alberto Santos-Dumont em 12 de
novembro de 1906, devidamente comprovado por ata do Aeroclube de Paris
lavrada na mesma época (Ministério das Relações Exteriores, 1941, p. 14 e 15).

É preciso deixar claro que o Ministério das Relações Exteriores, a partir dessa ação, tornou-
se peça-chave nos esforços de culto a Santos Dumont, para muito além apenas de a posição oficial
do país em relação ao “Dia da Aviação pan-americana” ter sido transmitida por seu intermédio. Na
verdade, se aos ministérios da Aeronáutica e da Educação e Saúde e ao Departamento de Imprensa
e Propaganda coube, principalmente, produzir políticas culturais que colocassem em evidência o
inventor brasileiro, à pasta em questão o governo reservou tarefa mais árdua: advogar a favor de
Santos Dumont, com a missão de reunir o máximo possível de provas documentais em sua defesa,
que comprovassem a primazia do voo e que justificassem o uso da designação “Pai da Aviação”
unicamente pelo Brasil.

Após a minuciosa pesquisa realizada e os inúmeros documentos coletados por integrantes


dos quadros daquele ministério, decidiu-se reunir os resultados obtidos em dois livros cujo
lançamento coincidiria com a data comemorativa máxima da aviação no Brasil: o 23 de outubro, a
ser celebrado durante a “Semana da Asa” de 1941. O primeiro deles apresenta provas do
pioneirismo do inventor brasileiro: compilação de cartas enviadas pelos órgãos aeronáuticos de
algumas nações latino-americanas manifestando apoio integral à defesa da prioridade brasileira;
documentos contemporâneos dos feitos aeronáuticos de Santos Dumont, encontrados em livros,
periódicos e fotografias; opiniões de algumas enciclopédias e dois ofícios relativos aos êxitos do
aeronauta no exterior produzidos por representantes do Brasil em Londres e pelo Consulado do
262

Brasil em Paris; e a reprodução de um artigo da revista norte-americana Flying, de novembro de


1915, intitulado Alberto Santos-Dumont and his new mission, cujo texto afirma que foi ele que realizou
o primeiro voo público feito com um dirigível e com um aeroplano (Ministério das Relações
Exteriores, 1941).

Já no segundo livro, o regime Vargas deu atenção a um produto cultural que tem sido
indispensável a qualquer projeto de glorificação de personagens históricos, que vislumbre fazê-los
se perpetuarem na memória dos grupos aos quais se destinam: a biografia. Escrita pelo embaixador
Aluizio Napoleão, que, integrante do corpo diplomático do Itamaraty, foi convidado pelo governo
para executar tal tarefa. Nela, o autor, baseado nos documentos reunidos por si e pelo Ministério
das Relações exteriores, refuta a prioridade que se tentava conferir aos irmãos Wright, trazendo-a
ao patrimônio do Brasil. A publicação é dividida em duas partes, “Livro Primeiro”, dedicado à
biografia propriamente dita do inventor, e “Livro Segundo”, cujo espaço é voltado para analisar a
prioridade do voo em aeroplano e a disputa com os irmãos Wright (Napoleão, 1941).

Embora a contestação dos Estados Unidos objetivasse enfraquecer a representação dos


feitos de Santos Dumont, o resultado mais claro desse embate, ao menos no Brasil, foi, ao
contrário, o seu fortalecimento. A tradição histórica sobre a aviação que estava sendo ameaçada
serviu de estímulo para a valorização dos pioneiros brasileiros da navegação aérea, em especial
Santos Dumont. Em pouco tempo, nos cinco anos finais do Estado Novo, um volume
considerável de políticas culturais sobre o inventor brasileiro, em proporções nunca vistas até
então, foi cuidadosamente elaborado, sendo bons exemplos a construção, em 1942, de um
monumento em homenagem ao inventor, no Rio de Janeiro, e a inauguração, em 1943, do Museu
Casa de Santos Dumont, em Petrópolis.

Referências

Aristheu, Achilles. Aspectos da ação do DIP. Rio de Janeiro: DIP, 1941.

Correio da Manhã. “O dia da aviação pan-americana”. Rio de Janeiro, sábado, 12 de outubro de


1940a .

Correio da Manhã. “A aviação”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, quinta-feira, 21 de novembro


de 1940b.

Correio da Manhã. “A glória do pai da aviação”. Rio de Janeiro, sábado, 07 de dezembro de 1940c.
263

Correio da Manhã. “As comemorações do Dia da Aviação Pan-americana”. Rio de Janeiro, quinta-
feira, 19 de dezembro de 1940d.

Correio da Manhã. “A aviação”. Rio de Janeiro, quarta-feira, 18 de dezembro de 1940e.

Correio da Manhã. “O filme do DIP sobre Santos Dumont”. Rio de Janeiro, quarta-feira, 18 de
dezembro de 1940f.

Correio da Manhã. “O Dia da Aviação Pan-americana”. Rio de Janeiro, quarta-feira, 15 de janeiro


de 1941.

DIP. Quem foi que disse? Quem foi que fez? Rio de Janeiro: DIP, 1940.

Ministério das Relações Exteriores. Documentos e depoimentos sobre os trabalhos aeronáuticos de Santos
Dumont. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.

Napoleão, Aluizio. Santos Dumont e a conquista do ar. Rio de Janeiro: Ministério das Relações
Exteriores/Imprensa Nacional, 1941.

Pollak, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3,
pp. 3-15, 1989.

Rodrigues, Lisias A. Brasil aeronáutico. Rio de Janeiro: DIP, 1944.

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ano I, n°. 6, novembro. Rio de Janeiro: DIP, 1941, p. 75-77.

Velho, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.

O Radical. “Ministério do Ar”. Rio de Janeiro, quarta-feira, 11 de dezembro de 1940.

Lavenère-Wanderley, Nelson Freire. História da Força Aérea Brasileira. - 2ª ed. - Rio de Janeiro:
Editora Gráfica Brasileira Ltda, 1975.
264

Por uma política externa independente: o brasil frente à revolução


cubana e a conferência de punta del este (1962) no contexto da
guerra fria

André de Oliveira Mendes*

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação brasileira durante a VIII Reunião
de Consulta dos Chanceleres Americanos, conhecida como Conferência de Punta del Este,
realizada entre os dias 22 e 31 de janeiro de 1962, onde foram examinadas as medidas a serem
adotadas contra Fidel Castro e o governo revolucionário que emergiu em Cuba após a Revolução
de 1959. A delegação chefiada por San Tiago Dantas se destacou por manter-se contrária ao
emprego de sanções contra Cuba durante toda a Conferência, abstendo-se de votar a resolução que
determinou sua exclusão da Organização dos Estados Americanos. Assim, este trabalho se
debruçou sobre a conjuntura bipolar da Guerra Fria para buscar entender seus efeitos na
formulação da Política Externa Independente, assim como suas relações com o governo dos
Estados Unidos, a fim de compreender o posicionamento, os votos e, também, as limitações
brasileiras em Punta del Este.
Palavras-chave: Guerra Fria, Estados Unidos, Revolução Cubana, Brasil, Política Externa

Abstract: This article's goal is to analyze the Brazilian operation during the VIII Meeting of
Consultation of American Chancellors, also known as Punta del Este Conference that took place
between January 22nd and 31st 1962, in which were examined the measures to be adopted against
Fidel Castro and the revolutionary government that emerged in Cuba after the 1959 Revolution.
The delegation led by San Tiago Dantas was highlighted for maintaining themselves contrary to
the implementation of sanctions against Cuba during the Conference, abstaining to vote on the
resolution that resulted in its exclusion from the Organization of American States. That being, this
article investigated the bipolar conjuncture of the Cold War to better understand the effects in the
formulation of the Independent Foreign Policy, as its relations to the United States government,
to comprehend the approach, the votes and also, of Brazilian limitations in Punta del Este.
Keywords: Cold War, United States, Cuban Revolution, Brazil, Foreign Policy

Introdução

A edição do Correio da Manhã daquele sábado, 3 de janeiro de 1959, trazia em sua capa uma
reportagem sobre a vitória das tropas revolucionárias lideradas por Fidel Castro contra a ditadura
de Fulgêncio Batista – que, sem o apoio necessário para resistir às vitórias do Exército Rebelde,
fugira em direção à República Dominicana. Tais acontecimentos marcaram o início da Revolução

* Graduando em História pela UnB – Universidade de Brasília.


265

Cubana, episódio responsável por uma série de tensões político-diplomáticas na América Latina,
sobretudo nas relações entre a ilha e os Estados Unidos. Uma reportagem logo abaixo destacava o
lançamento de um foguete à lua pela União Soviética, bem como as duas tentativas norte-
americanas, ambas frustradas, de enviar uma aeronave em direção ao satélite – uma referência à
corrida espacial disputada pelas duas superpotências à época – e evidenciava o contexto no qual
emergira a revolução em Cuba (Correio da Manhã, 1959, p. 1.). No decorrer da Guerra Fria, Fidel
Castro e seus guerrilheiros atrairiam os olhares do mundo, sobretudo dos Estados Unidos, para
uma nova frente de batalha: a América Latina.

Quase que de forma paralela a estes acontecimentos foi que Jânio Quadros, presidente
brasileiro eleito no ano de 1960, inaugurou uma linha diplomática intitulada de Política Externa
Independente (PEI), que vigorou desde a sua assunção, em janeiro de 1961, até a deposição de seu
sucessor, João Goulart, em março de 1964 – mediante eclosão de um golpe militar. Fruto de uma
conjuntura nacional-desenvolvimentista, o estabelecimento da PEI procurou, acima de tudo,
alcançar os interesses do país de maneira pragmática, livre de preconceitos ideológicos (Cervo;
Bueno, 2012, p. 332). Em outras palavras, pretendia não amarrar a política externa do país em
compromissos exclusivos, visando com isso a obtenção de vantagens, mesmo em um mundo
altamente bipolarizado como o da Guerra Fria. Outro importante aspecto da PEI era voltado à
defesa de uma série de princípios, dos quais se destacavam o de não-intervenção e de
autodeterminação dos povos. Tais princípios, aliás, foram postos em prática já em 1962, com a
ocorrência da VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, realizada na cidade uruguaia
de Punta del Este entre os dias 22 e 31 de janeiro daquele ano. Também conhecida como
Conferência de Punta del Este, a reunião tinha por objetivo avaliar, entre outras coisas, a
permanência do governo cubano na Organização dos Estados Americanos - OEA, e era parte de
uma iniciativa liderada pelo governo dos Estados Unidos para contrastar o regime de Fidel Castro
com os demais países da região, bem como isolá-lo diplomaticamente.

Por 14 votos a 1 – sendo esse último o da própria delegação cubana – e com a abstenção
do Brasil e de outros cinco países, o governo revolucionário de Cuba acabou sendo excluído dos
organismos da OEA, bem como da Junta Interamericana de Defesa (Bezerra, 2010, pp. 55-6). O
presente artigo procura, então, analisar o contexto político de finais da década de 1950 e início dos
anos 1960 na América Latina, mas sobretudo no Brasil, para melhor compreender suas formulações
diplomáticas no que diz respeito à instauração da PEI. Para isso, tomará como norte as conjunturas
da Guerra Fria e da Revolução Cubana de 1959, bem como as vinculações entre o governo dos
Estados Unidos e a promoção de sua política externa em relação à América Latina, dando ênfase
às suas relações com o regime revolucionário cubano. É objetivo deste artigo, também, a
266

investigação referente às motivações por trás do voto de abstenção brasileira na resolução que
culminou com a expulsão do governo cubano da OEA e, ainda, sua posição no tocante às demais
resoluções. Por fim, procura-se entender em que nível as relações bilaterais entre o Brasil e os
Estados Unidos teriam influído, ou não, nas deliberações finais da delegação chefiada pelo Ministro
das Relações Exteriores brasileiro, San Tiago Dantas.

A revolução cubana, os estados unidos e a guerra fria

Em dezembro de 1956, desembarcava na província de Oriente, em Cuba, o iate Granma,


com 82 guerrilheiros – incluindo Fidel Castro – dispostos a avançar mais uma vez contra a ditadura
de Fulgêncio Batista.96 Não contavam, é claro, com a descomunal repressão por parte do exército
nacional, que depressa aniquilou a maioria dos rebeldes. Menos de uma dezena dos homens que
chegaram à ilha com Fidel conseguiriam sobreviver e segui-lo até as montanhas da Sierra Maestra,
onde começaria a recrutar camponeses e bandidos locais para uma prolongada guerra de guerrilhas
(Gott, 2008, pp. 180-1). Foi a partir da Sierra que o movimento passou a costurar alianças com os
demais setores da oposição cubana para, dali a pouco, conquistar o poder em Cuba. À medida que
as guerrilhas comandadas por Fidel Castro intensificavam suas atividades e conquistavam
relevância no contexto político e social cubano, as lideranças em Washington passaram a dedicar
uma maior atenção para as tensões presentes na ilha, bem como às suas possíveis repercussões para
a estratégia norte-americana desenhada para a América Latina durante a Guerra Fria.

E um dos pontos mais importantes para tal estratégia residia naqueles países do chamado
Terceiro Mundo – dos quais Cuba fazia parte – tendo em vista que tais países eram considerados
um verdadeiro “tesouro de recursos naturais necessários para o funcionamento das economias
avançadas e o desenvolvimento de poderosas tecnologias militares” (Anderson, 2015, p 67), os
quais deveriam ser resguardados de eventuais investidas soviéticas – ainda que, no período
posterior a II Guerra, a União Soviética não contasse com os recursos necessários para qualquer
ímpeto expansionista.97 No entanto, a despeito da importância estratégica e do fato destes países

96 Ainda em 1953, Fidel Castro e alguns guerrilheiros cubanos promoveram uma tentativa de assalto aos quartéis em
Moncada e em Bayamo, a fim de tomar o poder das mãos do ditador Fulgêncio Batista. Ambas as operações fracassaram
de tal forma que Fidel precisou rumar ao México, após cumprir dois anos de pena em Cuba, para reorganizar seu
movimento. As iniciativas tiveram como único mérito a fundação do M-26-7, pelo qual o nome de Castro ficaria
conhecido por toda a ilha. Ver: Gott, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 171.
97 Com um saldo de quase 27 milhões de mortes, além de sérios prejuízos às suas indústrias, a União Soviética que

emergiu da II Guerra não dispunha dos meios e tampouco dos anseios expansionistas que a ela foram atribuídos.
Embora almejassem uma sociedade livre de classes por todo o mundo, as lideranças soviéticas não a enxergavam num
horizonte próximo, já que não acreditavam em um colapso do capitalismo a curto prazo. Ver mais em: Gaddis, John
267

serem estruturalmente atrasados em relação às nações europeias, o governo dos Estados Unidos
não chegou a disponibilizar as verbas de um Plano Marshall98 ou algo que o valha para assegurar
junto a estas nações uma espécie de coalizão regional contra o comunismo. Pelo contrário, tal
alinhamento precisou ser forjado pelo emprego da força, na maioria das vezes como fruto de
acordos costurados entre as elites políticas locais e o governo dos Estados Unidos. Na América
Latina a situação seguiria a mesma lógica, apesar de a região ser definitivamente confortável para
os desígnios da política externa norte-americana. Tal comodidade, aliás, que havia sido diretamente
desenvolvida por Washington a partir da assinatura do Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca - TIAR, em 1947, e da criação da Organização dos Estados Americanos - OEA, em
1948.

O Tratado, acordado durante a Conferência Interamericana para Manutenção da Paz e da


Segurança, sediada no Rio de Janeiro, instituía que um ataque armado contra qualquer Estado
americano deveria ser considerado um ataque contra todos os Estados americanos, ao passo que
também determinava “os princípios, obrigações e mecanismos que deveriam ser postos em ação
em caso de necessidade” (Moura, 2006, p. 216). Já no tocante à OEA, fundada durante a IX
Conferência Internacional Americana, com sede em Bogotá, entende-se que a mesma ratificou a
institucionalização do sistema interamericano e proporcionou a este os meios necessários para pôr
em prática os compromissos estabelecidos durante a assinatura do TIAR. Embora ambas as
iniciativas tenham sido supostamente formuladas para a promoção, a preservação e a defesa da
democracia no continente americano, o contexto internacional já em muito influenciado pela
Guerra Fria lhes conferiu novas orientações. Tendo como principal diretriz a defesa continental
contra agressões externas, o TIAR acabou sendo conduzido para o combate a um premeditado
avanço soviético, àquela altura a única fonte possível de ameaças ao sistema político americano.
Assim, tanto o sistema interamericano quanto a própria OEA tornaram-se instrumentos norte-
americanos em sua cruzada contra o comunismo.

A despeito de todos os dispositivos acima mencionados, o governo dos Estados Unidos


ainda exigia dos países latino-americanos estabilidade política e um ambiente livre de agitações –
sob pretexto de criar as condições necessárias para a entrada de recursos privados, que seriam então
a principal fonte para projetos de desenvolvimento (Bethell; Roxborough, 1992, p. 331). Sendo
assim, a administração norte-americana resolveu respaldar uma série de figuras declaradamente

Lewis. História da Guerra Fria. São Paulo: Novas Fronteiras, 2006, p. 8; e Hobsbawm, Eric. A Era dos Extremos – o breve
século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 230.
98 Projeto de reestruturação econômica financiado pelo governo norte-americano para reerguer os países europeus que

haviam sido devastados pela guerra e tinha por objetivo, também, assegurar uma aliança militar antissoviética. Ver mais
em: Hobsbawm, op cit., pp. 237-8.
268

anticomunistas, confiante de que elas conseguiriam manter a ordem na região (Schoultz, 2000, p.
381) e conferiu suporte, inclusive militar, a ditadores como Fulgêncio Batista, em Cuba. A
revolução liderada por Fidel Castro contra Batista evidenciaria os defeitos dessa política, assim
como seus resultados desastrosos para a imagem dos Estados Unidos e de seu papel de liderança
no continente americano. E a assimilação que se fazia entre Washington e a brutalidade com que
o exército cubano reprimia os revolucionários, só fez recrudescer ainda mais o antiamericanismo
nas fileiras do movimento. A partir daí, os ataques promovidos contra plantações de cana-de-
açúcar, usinas e refinarias de petróleo – em sua maioria controladas pelo capital estadunidense –
tornaram-se frequentes. Embora o objetivo não fosse atacar diretamente as possessões norte-
americanas, mas sim deteriorar as bases do regime ditatorial de Batista, tais investidas preocupavam
as lideranças ianques e sua comunidade de negócios. Portanto, tornara-se necessário remover
Batista do poder, uma vez que o seu governo, “apodrecido pela corrupção e desmoralizado pelo
derramamento de sangue” (Bandeira, 2009, p. 190), fragmentava-se por inteiro, sem com isso
permitir a chegada de Fidel e seus guerrilheiros ao poder. Buscava-se uma terceira via, mais
compatível com os interesses norte-americanos.

Entretanto, as lideranças estadunidenses estavam, àquela altura, praticamente impedidas de


hostilizar abertamente a figura de Fidel Castro, que ainda gozava de prestígio junto à opinião
pública norte-americana, e nada puderam fazer para impedir que os rebeldes por ele liderados
marchassem sobre Havana já nos primeiros dias de 1959. A Batista, sem o apoio militar norte-
americano e com o exército já desmoralizado, restou apenas a possibilidade de abandonar a ilha
com seus amigos e familiares rumo à República Dominicana. Não demoraria muito para que as
reformas empreendidas pelo novo governo revolucionário cubano, a exemplo da lei de Reforma
Agrária, que atingiu em cheio parte dos investimentos econômicos dos Estados Unidos no país,
fossem incompatibilizando os novos governantes cubanos e a Casa Branca. Dentro de poucos
meses, a atitude passou da boa vontade com a qual os Estados Unidos reconheceram o governo
de Cuba logo em sua primeira semana para uma série de tentativas de intervenção política nos
assuntos internos da ilha. Assim, o presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, lançou
mão de diversos mecanismos de desestabilização contra Cuba, chegando mesmo a cortar a cota de
açúcar que esta vendia para os Estados Unidos – a qual, sabia-se, representava algo em torno de
60% da exportação de açúcar cubano (Idem, p. 250) – procurando com isso enfraquecer toda a
estrutura econômica e social de Cuba, provocando o total descontentamento da população em
relação ao governo revolucionário (Idem, p. 256).

A resposta de Fidel Castro não poderia ter sido outra senão estimular os vínculos – não
apenas diplomáticos como também comerciais – com a União Soviética, o que possibilitaria um
269

maior respiro econômico decorrente da absorção do açúcar pelos soviéticos, bem como uma
espécie de respaldo militar contra possíveis intervenções armadas por parte dos Estados Unidos.
E foi justamente essa cobertura soviética, entendida como uma ameaça direta contra o governo
norte-americano, que fez com que as lideranças políticas em Washington alterassem suas linhas de
ação em relação ao governo cubano. Agora, chamava-se a atenção para a intromissão de uma
potência extracontinental nos assuntos internos da região, o que poderia abrir margem para uma
eventual ação coletiva por parte dos países latino-americanos contra o governo de Cuba – e suas
relações com a União Soviética – tudo sob o manto institucional da OEA. E a essa mudança de
abordagem se deve, também, a eleição do presidente John F. Kennedy, em 1960. Consciente da
imagem negativa que o apoio dos Estados Unidos às ditaduras no continente, Kennedy buscou
promover uma série de reformas econômicas e sociais, sem com isso abrir mão de servir-se das
políticas “preventivas e repressivas de administrações anteriores” (Ayerbe, 2004, p. 47). Para o
primeiro objetivo, apresentou a Aliança para o Progresso, programa de caráter assistencialista que
possibilitaria uma certa melhoria na condição de vida das populações latino-americanas, e serviria
também como um atrativo para que os países da região engrossassem o coro, na OEA, das sanções
que Washington buscaria aplicar contra Cuba.

E o fracasso das chamadas políticas repressivas – ao menos no caso cubano – pareceu


confirmar essa tendência. Seu principal exemplo se deu por meio da tentativa de invasão à Baía dos
Porcos, organizada desde o governo Eisenhower, na qual cerca de 1500 homens – em sua maioria,
cubanos treinados pela CIA – foram rapidamente derrotados pelas forças de Fidel e de seu exército,
o que constrangeu ainda mais o governo dos Estados Unidos em sua política aberta de confronto
àqueles países que não se alinhassem aos seus interesses, bem como trouxe ainda uma série de
prejuízos para a credibilidade da Aliança para o Progresso. Sendo assim, impedido de se lançar em
uma nova investida direta e unilateral contra o governo de Cuba – inclusive por temer possíveis
retaliações por parte dos soviéticos no cenário europeu, em zonas estratégicas e de grande interesse
para a cúpula governamental em Washington – o governo norte-americano optou por recorrer aos
organismos regionais, notadamente a OEA, para prosseguir com a sua cruzada contra Fidel e
demais revolucionários cubanos. Chegou mesmo a condicionar o envio de recursos da Aliança ao
isolamento diplomático e à aplicação de sanções contra o governo de Cuba (Idem, p. 51), que seria
a principal pauta a ser discutida durante a Conferência de Punta del Este, entre os dias 22 e 31 de
janeiro de 1962.
270

O Brasil e a política externa independente

Durante a manhã do dia 31 de janeiro de 1961, em solenidade realizada no Congresso


Nacional, era empossado o novo presidente do Brasil, Jânio Quadros, que já em seus primeiros
dias viria a denunciar as precárias condições financeiras em que recebia o país das mãos de seu
antecessor. Altos índices de inflação, déficit orçamentário correspondente a um terço da receita
nacional e uma dívida externa que beirava a casa dos US$2 bilhões – dos quais US$600 milhões
deveriam ser pagos já no exercício de 1961 –, preocupavam o novo líder do poder Executivo e dele
exigiam ações capazes de contornar aquela situação. Consequentemente, Jânio adotou uma política
de austeridade e aderiu a uma série de medidas que, bem recebidas entre os principais credores do
país, colocaram seu governo em melhores condições para renegociar suas dívidas, bem como
atraíram a simpatia de Washington. Para além do apoio do Pentágono, que enxergava com bons
olhos a nomeação de “oficiais francamente conservadores e anticomunistas” para os ministérios
militares, o novo presidente brasileiro também obteve “a confiança dos banqueiros de Wall Street
no seu governo” (Bandeira, 1978, p. 405). Todavia, ainda que a sua política interna de caráter
ortodoxo tenha conquistado a benevolência de parte do governo dos Estados Unidos, o mesmo
não pode ser dito sobre a condução de sua política externa – cujas orientações marcaram um ponto
de inflexão na história diplomática do país.

Em mensagem enviada ao Congresso, no dia 15 de março de 1961, Quadros afirmou que


o Brasil deveria ter “uma política externa que, refletindo sua personalidade, suas condições e seus
interesses”, transcorresse de forma “mais propícia às aspirações gerais da humanidade, ao
desenvolvimento econômico [...] e à autodeterminação dos povos”.99 E na mesma mensagem
afirmou ter chegado a hora de o Brasil assumir uma posição mais afirmativa e independente no
cenário internacional, sem com isso abandonar sua posição histórica, alinhada ideologicamente ao
mundo ocidental. No entanto, ressaltou que o seu governo privilegiaria, a despeito de causas
ideológicas, atingir seus próprios interesses: vencer a pobreza e desenvolver-se de forma plena. A
posição de Quadros certamente esteve ligada a uma etapa histórica marcada pelo paradigma do
Estado desenvolvimentista, com o qual a política externa brasileira buscou alinhar-se a partir dos
anos 1950, nos quais o crescimento “da urbanização e da industrialização, a afirmação de uma
burguesia industrial, de segmentos médios urbanos, de uma jovem classe operária e outros
trabalhadores urbanos e rurais (Vizentini, 1994, p. 25) determinaram novas demandas para o

99Circular n. 3.863, de 20 de março de 1961. [Anexo] Mensagem Presidencial ao Congresso Nacional, cap. IV – Política Externa
do Brasil. In: Franco, Álvaro da Costa (org.). Documentos da Política Externa Independente – Volume I. Brasília: FUNAG,
2007, p. 50.
271

sistema político brasileiro, bem como para sua diplomacia. Nesse sentido, a política externa tornara-
se uma ferramenta imprescindível para a realização dos novos projetos nacionais (Idem, p. 30) e se
viu impulsada por um ímpeto desenvolvimentista, sobretudo a partir da chegada de Jânio Quadros
e de sua Política Externa Independente – PEI ao poder.

Assim, a política externa utilizada pelo governo Quadros – que teve como ministro das
Relações Exteriores o senador mineiro Afonso Arinos de Melo Franco – ficou marcada por uma
postura pragmática em relação aos interesses nacionais, bem como pela atuação além do âmbito
regional, apostando no multilateralismo, mesmo no cenário internacional bipolar decorrente da
Guerra Fria. E foi justamente dentro desse cenário que o pragmatismo da diplomacia brasileira
mais se destacou, uma vez que “a luta em prol do desenvolvimento e do aumento da produção
impunham ao país a necessidade de ampliação de seus mercados, independentemente de
preocupações ideológicas” (Cervo; Bueno, 2012, p. 336). Ou seja, para atingir os interesses
nacionais, o Brasil não poderia assumir compromissos exclusivos com nenhum dos dois blocos –
ainda que reafirmasse, sempre que possível, o posicionamento do país junto ao Ocidente. E a fim
de tirar proveito de todas as possibilidades dessa nova postura independente, o governo de Jânio
se propôs a manter relações com todas as nações, inclusive aquelas pertencentes ao bloco
comunista, com as quais procuraria recompor relações comerciais e diplomáticas. E como se a
mera possibilidade de um reatamento de relações entre o Brasil e os países soviéticos não fosse
motivo mais do que suficiente para causar desconfiança no governo dos Estados Unidos, Jânio
Quadros ainda adicionara uma série de comportamentos peculiares e outras atitudes histriônicas às
relações entre Brasília e Washington.100

Dessa forma, além das tentativas de aproximação com os países comunistas, Quadros ainda
“condecorou os integrantes da Missão de Boa Vontade da União Soviética e o astronauta Iuri
Gagarin”, menosprezou a ajuda ocidental concedida ao país, dizendo que a mesma “fora
insuficiente para as necessidades do Brasil”, e condecorou “Che” Guevara, um dos personagens
mais preeminentes da Revolução Cubana, com “a mais alta distinção brasileira” (Bandeira, 1978, p.
413) – o que por sua vez provocou uma série de reações contrárias no seio das Forças Armadas.
O simbolismo da insígnia conferida a “Che” Guevara envolveu ainda mais o governo de Jânio
Quadros e a PEI em um já controverso histórico das relações entre o Brasil, os Estados Unidos e
a Revolução Cubana, então a principal pauta em discussão no continente americano. Tais relações
estariam diretamente ligadas a uma outra característica da nova política externa brasileira: a defesa

100O descaso com que Jânio Quadros lidava com diplomatas e representantes norte-americanos lhe ajudaram a angariar
a antipatia – e no caso do presidente Kennedy, a incompreensão – do governo norte-americano. Conferir: Bandeira,
L. Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil (dois séculos de história). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978, pp. 410-1.
272

dos princípios de não-intervenção e de autodeterminação dos povos. Durante a repercussão da


frustrada invasão à Baía dos Porcos, o governo brasileiro saiu em defesa destes princípios para
recriminar a operação militar financiada pelo governo norte-americano contra Cuba.101 O
histrionismo de Quadros não lhe custaria apenas o agravo nas relações Brasil-Estados Unidos, mas
também a aparição de uma crise política interna decorrente de uma outra crise: a financeira. E não
demorou muito para que esta fizesse com que sua teatralidade se apresentasse mais uma vez, agora
sob a forma de uma dramática carta de renúncia entregue ao Congresso Nacional, por meio da qual
esperava obter – mediante delegação de poderes por parte dos congressistas e da aclamação popular
– maior autoridade e autonomia para suas movimentações governamentais., uma vez que sempre
enxergou a Constituição como algo “estreito demais para os seus movimentos (Idem, p. 414).

A estratégia não saiu como o esperado e os episódios que a ela se sucederam expuseram o
país a uma grave crise política no tocante à sucessão presidencial. A desconfiança em relação ao
nome de João Goulart, vice de Jânio Quadros, motivou um sem número de ameaças golpistas e
brados de resistência Brasil afora, que só foram solucionados com a instauração de um sistema
parlamentarista, onde Jango receberia poderes limitados e a companhia de uma figura até então
inédita: um Primeiro-Ministro. O escolhido acabou sendo o deputado do PSD, Tancredo Neves.
Entretanto, nem mesmo a atípica solução parlamentarista foi suficiente para colapsar ou mesmo
enfraquecer a PEI, que, de maneira oposta, se viu fortalecida a partir da chegada do sucessor de
Afonso Arinos no Itamaraty. Tratava-se do carioca Francisco Clementino de San Tiago Dantas.
Para ele, a condução da política externa brasileira em sua busca por independência conduziria o
país “a participar de iniciativas que, ora o aproximarão de determinados Estados, ora poderão
alinhá-lo com Estados de orientação diferente”, sendo estes alinhamentos ocasionais resultantes
da “procura do interesse nacional e do melhor meio de atingir os objetivos visados (Dantas, 2011,
pp. 22-3). Essa lógica serviria tanto para a ampliação dos mercados brasileiros rumo aos países
socialistas quanto para a defesa jurídica em relação a Cuba. A Conferência de Punta del Este, na
qual se discutiriam as medidas a serem aplicadas contra o governo cubano, apresentava-se, então,
como a prova de fogo para a nova política externa brasileira.

101Quadros manifestou, em telegrama enviado à ONU, sua apreensão e repúdio em relação aos ataques dirigidos
contra Cuba, clamando pelo fim das lutas e por investigações sobre a origem dos invasores participantes do
desembarque em Cuba. Ver: Bezerra, Gustavo Henrique M. Brasil - Cuba: relações político-diplomáticas no contexto
da Guerra Fria (1959-1986). Brasília: FUNAG, 2010, p. 43.
273

A Conferência de Punta Del Este

Em 14 de novembro de 1961, a Colômbia solicitava a convocação de todos os Ministros


das Relações Exteriores do continente para que se avaliasse a possibilidade de uma intervenção
coletiva contra o regime de Fidel Castro. Dali a pouco mais de um mês, em discurso transmitido
pela televisão para todo o país, Castro declararia ser marxista-leninista. “Sou marxista-leninista e
continuarei a sê-lo até o dia da minha morte”, teria dito (Jornal do Brasil, 1961, p. 7). Suas
declarações embaraçaram todos os países que, a exemplo do Brasil, procuravam impedir – ou ao
menos adiar – a convocação do Órgão de Consulta solicitada pela Colômbia, por estarem receosos
de que tudo não passasse de mais um capítulo da cruzada norte-americana contra o governo
revolucionário cubano, uma vez que creditava-se aos Estados Unidos a articulação nos bastidores
do pedido colombiano. A despeito das resistências, a solicitação foi aprovada já no dia 4 de
dezembro daquele ano, tendo como principal justificativa a ideia de que a associação de Cuba junto
à União Soviética criava consideráveis ameaças à paz e à segurança do continente, bem como a
incompatibilizavam com o sistema interamericano. Uma vez que o desejo brasileiro de adiar a
reunião foi completamente inviabilizado pela adesão explícita de Fidel ao marxismo-leninismo, San
Tiago Dantas teve de concentrar seus esforços em levar a Punta del Este, dali a pouco mais de um
mês, uma solução que fosse compatível com os princípios defendidos pela PEI.

Já no dia 12 de janeiro de 1962, San Tiago reuniu, no Itamaraty, os Chefes de Missões


diplomáticas dos Estados Americanos lotados no Brasil para lhes transmitir o posicionamento da
delegação que viajaria ao Uruguai para representar o país durante a VIII Reunião de Consulta dos
Chanceleres Americanos, bem como sua proposta de resolução para questão cubana. E, por
entender que ações militares – ainda que realizadas de maneira coletiva – poderiam colocar em
cheque a existência do sistema interamericano; que sanções econômicas seriam pouco ou nada
úteis; e que o isolamento diplomático de Cuba somente contribuiria para o seu deslocamento em
direção à órbita da União Soviética, o Ministro brasileiro sugeriu que, em relação ao regime
revolucionário cubano, fossem empregadas obrigações negativas ou limitações, compreendidas por
ele como “indispensáveis para que o sistema de segurança dos Estados americanos seja preservado
e para que as suas instituições e governos fiquem a salvo de qualquer possibilidade de infiltração
subversiva ou ideológica” (Dantas, 2011, p. 105). Ou seja, San Tiago propunha uma acomodação
entre o regime revolucionário cubano e o sistema democrático defendido pelo sistema
interamericano, e tinha por propósito resguardar a soberania de Cuba, sem causar com isso a
274

desintegração do sistema regional. A essa proposta, que acompanhou San Tiago e toda a delegação
brasileira até Punta del Este, se deu o nome de finlandização.102

O discurso inaugural da reunião ficou por conta do Ministro uruguaio Homero Martínez
Montero, que ressaltou a importância do encontro e a oportunidade de realizar, junto aos demais
países ali presentes, “um trabalho de gigantes” em relação às decisões que seriam tomadas (Folha
de S. Paulo, 1962, p. 2). E realmente seria necessário um trabalho de gigantes. Afinal, as demandas
que se impunham aos participantes eram tão ou mais grandiosas. A fragmentação entre os países
era tamanha que, já no segundo dia, um bloco com sete delegações – encabeçadas pelo Brasil,
Argentina e México103 – assumiu uma posição contrária a aprovação de sanções contra o governo
cubano, e passou a advogar por uma solução conciliatória, nos moldes da que seria apresentada
por San Tiago ao longo do dia 24 de janeiro. O Ministro brasileiro iniciou sua argumentação
apresentando os três objetivos que norteariam o comportamento de sua delegação durante o
encontro, sendo eles: o de preservar a unidade do sistema interamericano; defender os princípios
jurídicos em que este se baseava; e robustecer a democracia representativa em sua competição
contra o comunismo internacional.104 E foram estes princípios jurídicos que pautaram a fala de San
Tiago, ao defender que a obrigação dos Estados americanos residia mais na defesa do princípio de
não-intervenção do que numa alegada obrigatoriedade para com a democracia representativa – já
que esta estaria ligada ao campo das aspirações do sistema e não dos compromissos assumidos.

Trazendo a discussão para o campo da Guerra Fria, San Tiago afirmou, ainda, ser quase
que indispensável a compreensão de que a conjuntura da época não constituía apenas um “mero
ponto de passagem ou etapa preparatória de uma guerra real”, e sim uma forma de convivência
cuja extensão no tempo ainda era incerta. E alertou para a inutilidade do emprego de forças que
viessem a causar eventuais respostas violentas, sugerindo, ao contrário, a procura em todos os
cenários não pelo agravamento, mas pela “redução progressiva das tensões internacionais”.105 Em
relação a Cuba, as medidas deveriam prezar pelo mesmo fim. Todavia, San Tiago entendia e
legitimava a atual incompatibilidade política do regime revolucionário cubano com o sistema
interamericano e justamente por isso defendia sua neutralização, que se daria por intermédio da
assunção por parte de Cuba de compromissos como o não estabelecimento de alianças militares

102 Uma menção à situação da Finlândia, um verdadeiro enclave democrático – ou seja, uma região com distinções
políticas – no íntimo do mundo socialista. Ver: Bandeira, L. Alberto Moniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a
América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 384.
103 Completavam o bloco as delegações do Chile, do Equador, da Bolívia e do Haiti.
104 Discurso do Ministro San Tiago Dantas na VIII Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores da

OEA. Punta del Este, 24 de janeiro de 1962. In: Franco, Álvaro da Costa (org.). Documentos da Política Externa Independente
– Volume I. Brasília: FUNAG, 2007, p. 275.
105 Idem, p. 279.
275

com qualquer potência; a limitação de seus armamentos, vinculada às garantias de não agressão que
deveriam ser assumidas previamente pelo governo dos Estados Unidos; e o compromisso de não
realizar, no exterior, propagandas políticas ou ideológicas que pudessem ser entendidas como
subversivas pelos demais Estados americanos (Bandeira, 2009, p. 387).

Antes mesmo que o Ministro brasileiro encerasse sua fala, o Secretário de Estado norte-
americano, Dean Rusk, retirou-se de cena – supostamente para atender uma ligação telefônica
(Jornal do Brasil, 1962, p. 4). Sua atitude pode ser vista como um indício do descontentamento em
Washington com a posição adotada pelo Brasil, uma vez que os delegados estadunidenses eram
mais favoráveis a propostas que visassem a exclusão do governo revolucionário cubano da OEA,
o que não era dado como certo pela dificuldade em formar uma ampla maioria em torno desse
objetivo. A verdade é que a Conferência de Punta del Este ainda se via às voltas com o impasse
entre aqueles países que se opunham às sanções e aqueles que pediam por medidas mais enérgicas
contra Cuba. Tanto é que a discussão das propostas que seriam enviadas à Comissão Geral teve de
ser adiada em 24 horas para que as delegações ao menos chegassem perto de algum acordo. E esse
adiamento intensificou as negociações – e também – os aliciamentos entre os delegados, o que
possibilitou alguns entendimentos essenciais para o desfecho da reunião. E então, já no dia 31 de
janeiro de 1962, os participantes da VIII Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos
votaram, entre todas as propostas, um total de nove resoluções.

A primeira fazia menção à ofensiva soviética em relação aos países do continente. Já a


segunda propunha a criação de uma Comissão Especial contra as ações subversivas soviéticas,
enquanto a terceira reiterava os princípios de não-intervenção e de autodeterminação. A quarta
resolução previa a celebração de eleições livres em todo o continente e a quinta dissertava sobre
Aliança para o Progresso e seu objetivo de consolidar a solidariedade regional frente às ameaças
que se apresentavam ao sistema interamericano. A sexta – e mais polêmica – resolução afirmava
que: a associação de qualquer membro da Organização dos Estados Americanos ao marxismo-
leninismo é incompatível com o sistema interamericano, e seu alinhamento ameaçaria a unidade e
a solidariedade do Hemisfério; o atual governo cubano, que acabara de se declarar marxista-
leninista, tornara-se, então, antagônico aos princípios e propósitos do sistema interamericano; que
tal incompatibilidade deveria acarretar na sua exclusão de qualquer participação no sistema
interamericano; e, por fim, que o Conselho da Organização dos Estados Americanos e os demais
órgãos do sistema interamericano deveriam empregar rapidamente as providências necessárias para
o cumprimento desta resolução.106 Entre os quatro itens, apenas os dois primeiros contaram com

106 Octava Reunión de Consulta de Ministros de Relaciones Exteriores para servir de Órgano de Consulta em aplicación del Tratado
Interamericano de Asistencia Recíproca. Punta del Este, 31 de enero de 1962, pp. 14-5.
276

a aprovação da delegação brasileira, que se absteve de votar os dois seguintes, e a resolução foi
aprovada por uma maioria simples de 14 votos – sendo o último deles da delegação haitiana, que
mudou de posição durante o encontro – e contou, também, com a abstenção de outras cinco
delegações e um voto contrário, proveniente de Cuba.

A sétima resolução determinava a exclusão de Cuba da Junta Interamericana de Defesa. A


oitava resolvia suspender o tráfico de armas com o governo cubano, enquanto a nona e última
resolução sugeria a reforma do Estatuto da Comissão Interamericana. Todas estas, com exceção
da sexta, contaram com 20 votos favoráveis e apenas um contrário, obviamente o voto cubano.
Ou seja, obtiveram unanimidade entre as delegações presentes a VIII Reunião. Para os objetivos
deste trabalho cabe analisar aqui especificamente a posição brasileira no que diz respeito à sexta
resolução. Tendo o Brasil, desde os primeiros momentos, se mostrado contrário ao emprego de
sanções, o que justificaria sua abstenção, e não a condenação, à resolução que culminou com a
expulsão do governo cubano da OEA? A princípio, dois aspectos podem elucidar esta questão. O
primeiro deles estaria diretamente ligado às questões internas do cenário político nacional. À
medida que a Revolução Cubana adentrava o debate público, também representava um terreno
incerto para os formuladores da PEI e exemplos de agitações sociais oriundas da questão cubana
se apresentavam em áreas do continente.107 Assim, a comitiva brasileira enviada a Punta del Este
encontrou-se pressionada entre a defesa de seus princípios e os riscos de uma inflamação social
que pudesse radicalizar ainda mais um cenário que já vinha agitado pela crise sucessória.

Além disso, uma pesquisa realizada pelo IBOPE assinalava que, apesar de a maioria do
eleitorado ser favorável a postura neutra empregada pelo Brasil durante a Conferência, 27% dos
entrevistados defendiam que o país deveria combater o regime cubano, o que evidenciava a cisão
entre visões diametralmente opostas no seio da sociedade brasileira. Sendo assim, pode-se
compreender a decisão de San Tiago Dantas em relação à resolução que expulsou o governo
cubano da OEA primeiro como reflexo de uma necessidade de minimizar controvérsias internas
(Neto, 2005, p. 20), seguindo a máxima de procurar a todo o tempo alcançar os interesses do país,
afastando-se das disputas ideológicas e de radicalizações que os pudessem retardar ou até mesmo
colocar em risco a própria sobrevivência do governo. Por conta das condições políticas,
econômicas e mesmo geográficas do Brasil, tais interesses encontravam-se diretamente ligados ao

107Nos primeiros dias da Conferência as ruas de Guayaquil, no Equador, foram ocupadas por mulheres que exigiam
de seu governo o rompimento de relações diplomáticas com Cuba, enquanto a Venezuela computou 40 mortes durante
os três dias em que sua capital Caracas foi transformada em um campo de batalha por manifestações contrárias à
realização da Reunião de Consulta, bem como ao posicionamento adotado pela delegação venezuelana, que se mostrou
favorável à expulsão de Cuba. Ver: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 24 de jan. 1962, 1º caderno, p. 1.; Jornal do Brasil. Rio
de Janeiro, 26 de jan. 1962, 1º caderno, p. 4.
277

bloco ocidental, sobretudo aos Estados Unidos e a Aliança para o Progresso. Tanto é verdade que,
já durante o primeiro dia de reunião, a Folha de São Paulo alertara seus leitores sobre a possibilidade
de o Congresso norte-americano dificultar a liberação dos recursos destinados ao programa caso
os resultados da VIII Reunião não fossem em direção ao emprego de sanções mais severas contra
Cuba (Folha de S. Paulo, 1962, p. 2). E o Jornal do Brasil, ao repercutir o segundo dia do encontro,
trazia a notícia de que o Secretário norte-americano, Dean Rusk, haveria condicionado o sucesso
da Aliança para o Progresso a uma vitória – ou seja, a aprovação de sanções – em Punta del Este
(Jornal do Brasil, 1962, p. 6).

Apesar de os delegados norte-americanos descartarem a possibilidade de condicionar o


programa de auxílio econômico aos votos das demais delegações presentes ao encontro, San Tiago
Dantas e os demais membros da comitiva brasileira nunca descartaram a hipótese de que a Aliança
para o Progresso estaria caminhando sob o gelo fino durante toda a Conferência. Essa preocupação
foi manifestada por Dantas pela primeira vez ainda em dezembro de 1961, durante a Comissão de
Planejamento sobre Assuntos ligados à VIII Reunião de Consulta. Muito embora San Tiago
afirmasse não existir nenhum indício de que o governo dos Estados Unidos pudesse condicionar
o envio de verbas da Aliança ao Brasil às decisões tomadas em relação ao caso de Cuba, fez questão
de recomendar que tal hipóteses não fosse descartada de imediato. E que, de maneira oposta,
consistisse em um elemento de estudo para toda a delegação.108 Então, há de se entender que a
delegação brasileira não poderia ir até Punta del Este e arriscar algum passo em falso ou movimento
que pudesse prejudicar o Brasil em seus anseios em relação à Aliança para o Progresso. Tampouco
poderia firmar uma posição junto a Havana ou Washington e promover uma explosão social
decorrente da radicalização do cenário sociopolítico brasileiro. Tendo isso em mente, pode-se
entender não só o posicionamento brasileiro durante toda a Conferência de Punta del Este, mas
também sua decisão em se abster e não votar contra a resolução que resultou na exclusão do
governo cubano da OEA e da Junta Interamericana de Defesa.

Conclusão

O presente trabalho teve por objetivo analisar o posicionamento brasileiro durante a VIII
Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, que, entre outras coisas, decidiu a expulsão do
governo cubano dos organismos da OEA. Para isso, foram examinados o contexto no qual

108I Registro da reunião da comissão de planejamento sobre assuntos ligados à VIII Reunião de Consulta dos Ministros
das Relações Exteriores da OEA, em 26 de dezembro de 1961. In: Franco, Álvaro da Costa (org.). Documentos da Política
Externa Independente – Volume I. Brasília: FUNAG, 2007, p. 221.
278

emergira a revolução em Cuba, durante a Guerra Fria, e a resposta do governo norte-americano


aos desafios impostos pela ascensão de Fidel Castro ao poder, bem como suas implicações para o
cenário político-latino americano. Paralelamente, foi matéria de análise, também, a política externa
brasileira e as suas formulações durante os anos 1950 e 1960, passando pela instauração da PEI,
com Jânio Quadros, e seu aperfeiçoamento ao longo do governo João Goulart, detendo-se ao
período parlamentarista e à atuação de San Tiago Dantas a frente do Itamaraty. A partir daí, pôde-
se analisar a reunião, a participação brasileira e seus resultados, para assim perscrutar os motivos
que, a despeito de toda a defesa jurídica professada pelo Ministro brasileiro, fizeram com que sua
delegação optasse por se abster em relação à expulsão do governo cubano da OEA.

Portanto, há de se posicionar aqui, antes de mais nada, a situação na qual encontrava-se a


política externa brasileira à época da VIII Reunião. Premida entre o anseio desenvolvimentista
proveniente da conjuntura sociopolítica nacional dos anos 1950 que caracterizou e impulsionou a
criação da PEI e o ambiente interno radicalizado por sucessivas crises, junto ao cenário bipolar em
que a Guerra Fria lançara o sistema internacional e as relações entre as nações, a diplomacia
brasileira se viu numa encruzilhada. À medida que deveria se posicionar de forma independente
para atingir determinados objetivos, também precisaria reunir esforços para não inviabilizar sua
participação no sistema interamericano, bem como deteriorar suas relações com o governo dos
Estados Unidos, principal expoente do bloco ocidental e também patrocinador da Aliança para o
Progresso, da qual o governo brasileiro esperava receber recursos financeiros para executar seus
projetos de desenvolvimento nacional. Assim, entende-se a posição adotada por San Tiago Dantas
em Punta del Este como uma espécie de conciliação entre os princípios defendidos pela PEI e as
necessidades objetivas da realidade brasileira, sendo elas: o apaziguamento do cenário interno e a
obtenção de verbas para a realização de projetos desenvolvimentistas, integralmente alinhados aos
fundamentos que marcaram um ponto de ruptura na história diplomática do país. A abstenção
brasileira, longe de ser vista como uma contradição, pode ser entendida como uma solução
apropriada aos desafios que se impuseram ao Brasil durante a VIII Reunião.

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280

Na providência divina, a origem de nossa história; em nossa


história, a certeza de nossas vitórias: uma análise dos sermões do
Padre Antonio Vieira, no Portugal restauracionista

Andrea Gomes Bedin*

Resumo: Esta tese analisa dois sermões políticos do Padre Antônio Vieira, pregados no século
XVII, no Portugal moderno. Investiga a relação existente entre os sermões e a história de Portugal.
Para tanto, procurou-se averiguar a historicidade de cada sermão e sua relação com a Teologia
política do Estado português. Tendo como fundamento a ideia de história no século XVII, como
mãe de todas as virtudes do passado, e resultante das novas descobertas científicas, buscou-se
avaliar seu papel propulsor no desenvolvimento do reino português, e o modo como isso se
configurou na prédica vieiriana. Contatou-se a Providência divina e o tempo oportuno como
elementos-chave para a leitura do pensamento vieiriano. Com isso, buscou-se compreender a
construção do projeto de império para o reino português, tendo em vista seu passado de vitórias.
Como reino eleito pela providência divina, Portugal deveria empreender conquistas no ultramar, e
alçar o catolicismo ao patamar da verdadeira e única fé. Para Vieira, era imperativo combater
hereges, legitimar a história do reino e sua origem miraculosa.

Palavras-chave: Vieira, Portugal, Providência divina, História, sermões.

Introdução

Esta tese originou-se a partir de reflexões sobre o mundo do barroco, iniciadas durante o
curso de mestrado. O objetivo da dissertação centrou-se na relação entre a arte e a educação da
Companhia de Jesus, em território luso-brasileiro, nos séculos XVI e XVII. A investigação realizada
concentrou-se nos caminhos escolhidos pelos missionários jesuítas para empreender a catequese
em terras ameríndias. Num contexto de revoltas religiosas que marcaram o século XVI, os jesuítas
apresentaram-se como defensores da fé católica contra as heresias protestantes, cujos líderes
ganharam proeminência no século, provocando um verdadeiro açambarcamento de fiéis,
demovendo-os de suas crenças nos dogmas católicos. Nesse contexto turbulento, a educação
emergiu como um elemento catalisador das tensões sociorreligiosas, ao mesmo tempo em que
facilitou, por meio da catequese, a ‘conversão’ dos novos povos à fé católica. Empunhando a
bandeira da fé, missionários jesuítas empreenderam uma verdadeira batalha de conquista e

*Doutora em História social, pela PUC-SP. Tese defendida e aprovada em 16.10.2020. Orientador: Prof. Dr. Fernando
Torres Londoño / endereço eletrônico: andribedin@yahoo.com.br/ .
281

reconquista de povos ao catolicismo; para tanto, recorreu-se ao universo lúdico-religioso do


barroco, de forte apelo aos sentidos, em todas as suas formas de expressão. A expectativa da Igreja
era a de impactar, de modo eficaz, os espectadores da fé, comunicando-lhes a mensagem do
Evangelho. Fosse através de pinturas da Paixão de Cristo, de louvores entoados nas igrejas, ou da
ministração dos sacramentos, o mundo católico abriu um leque de opções variados para a realização
de tal empreendimento. Para isso, contou com o apoio do Estado absolutista, cuja estrutura, de
acordo com Paes (2006), encontrava-se profundamente ligada às transformações que marcaram a
constituição e consolidação das nações ibéricas ao final da Guerra de Reconquista e no princípio
das descobertas do Novo Mundo.

No conjunto dessas manifestações ofertadas pelo universo inquietante do Barroco, ganham


notoriedade as pregações. Por conseguinte, ao longo do século XVII, os sermões evidenciaram-se
como mais uma via de acesso ao fiel. Embora não tão lúdicos como as artes plásticas no uso de
cores, formas e sons que reverberavam sensações diversas em seus expectadores, os sermões
também se mostraram uma arma eficaz no combate às heresias e no convencimento de seu público
ouvinte, à verdadeira fé. Nesse momento, a figura dos pregadores assumiu importância
significativa, pois deles dependia o maior ou menor grau de adesão dos fiéis à fé e às questões de
ordem social e política, consideradas importantes para os reinos. Para tanto, valeram-se de recursos
variados de linguagem, na intenção de produzir uma retórica persuasiva junto ao seu público
ouvinte: expressões gestuais e recursos linguísticos variados foram empregados em larga escala, a
fim de atribuir confiabilidade à prédica.

Não foi à toa que o número de pregadores de várias ordens religiosas cresceu
consideravelmente nesse período. Contudo, alguns nomes destacaram-se por sua sagacidade e força
discursiva. Nesse momento, entra em cena o padre Antonio Vieira, um jesuíta a serviço de seu
reino e de seu tempo. A partir daí, desvelou-se o objeto de investigação dessa pesquisa, baseado no
conjunto memorável das obras de Vieira, fonte de inspiração para o trabalho.

Que supõe ler Vieira hoje? Baseada nesta indagação, escolhi analisar as obras do jesuíta, em
nada descoladas de nossa realidade atual. A leitura de Vieira não somente colaborou para a
compreensão do universo histórico-religioso dos séculos XVI e XVII (de modo especial), mas
também para a identificação de muitos fenômenos históricos contemporâneos.
282

Um pouco de história

Antônio Vieira (1608- 1697) consagrou-se como um grande pensador do século XVII;
atuou como pregador no reino de Portugal e como missionário em terras luso-brasileiras, num
momento particularmente especial da história europeia; assim, para compreender sua importância,
é preciso levar em conta sua formação religiosa e as relações que estabeleceu nos campos social,
político e econômico.

Pensar Vieira significa sobretudo pensar o momento histórico que conferiu “forma” e
“cor” às produções do jesuíta, servindo-lhe como arcabouço de ideias. Por conseguinte, torna-se
imperativo resgatar sua atuação na história de Portugal e no Brasil-colonial, cujo contexto foi
marcado por uma religiosidade latente que deixou impressas as marcas evangelísticas do barroco
no ambiente religioso (de modo especial), e no ambiente urbano, expressas no universo das artes
em geral, bem como nas produções literárias.

O mais adequado seria pensarmos em Vieira como um personagem “plural” ou


“multifacetado”, que marcou a história do Brasil colonial luso-brasileiro em função de todo
contexto de suas produções. Independente do período em que foram escritas, tais produções se
constituem como referência histórica e política até os dias de hoje, expressando valores, normas e
ideias que, não prescindindo da historicidade de seu tempo, se refletem muito na sociedade
contemporânea, conferindo respostas às diversas realidades sociais existentes. Então, ler Antonio
Vieira é um convite ao entendimento de problemas da vida que, muitas vezes considerados
complexos, se revestem de uma nova dimensão analítica

(...) que nos permite mergulhar a fundo na Existência e na Essência do Homem,


uma vez que a análise crítica de seus sermões nos põe em contato com
fenômenos sociais e existenciais de todos os tempos, pois são de ontem, de hoje,
e de sempre, tanto a justiça quanto a liberdade, a ética como a fraternidade, a paz
assim como a igualdade perante a lei, a alma e o espírito. (...) (Martins, 2008, pp.
52-53).

Desse modo, a produção vieiriana tornou-se de importância notória em várias áreas


acadêmicas, sendo suas obras estudadas e analisadas na atualidade. Para Gomes,

O Padre Antonio Vieira, que tem um lugar considerável na história da civilização


brasileira, para a qual cooperou com tamanha obstinação e desassombro, não
pode ser omitido de nenhum estudo da evolução do espírito literário no Brasil
que tenha os seus primórdios na fase colonial. (Gomes, 2004, p. 80).
283

Com efeito, essa pluralidade do “ser” em Vieira tem garantido a sobrevivência de suas obras
que, com o tempo, ganharam notoriedade e revitalizaram-se, obtendo considerável destaque no
cenário acadêmico. A perpetuação de seu nome até nossos dias se deve à grande capacidade de
articulação de Vieira em áreas múltiplas do conhecimento. Sem dúvida, Vieira prestou imensa
colaboração ao estudo da história luso-brasileira e suas obras constituem-se parte integrante de
nossa cultura. A este respeito, Abreu reforça que, “(...) Tal como tantos vultos maiores da cultura
luso-brasileira, a ele se aplica o que escreveu sobre Francisco Xavier: “excedeu-se” e “deixou-se”,
levantou-se “a si sobre si” e viveu a “loucura” que caracteriza os heróis e os santos. ” (Abreu, 2014,
p. 14).

Antônio Vieira foi, e ainda é, um dos maiores expoentes literários da história do Brasil-
colonial, destacando-se na produção de obras barrocas de refinado estilo. Filho de seu tempo, o
jesuíta destacou-se como grande pregador da “Palavra de Deus”; por conseguinte, suas obras de
maior proeminência foram os Sermões, embora outras produções como cartas e profecias também
agreguem significativo valor.

Para o jesuíta, ao transmitir a Palavra, o pregador deveria convencer seus ouvintes, e, se


possível, elevar os ânimos abatidos pelas adversidades da vida cotidiana. Independentemente do
teor discutido, os sermões eram ministrados com grande vigor e eloquência, o que evidenciava um
grande domínio do idioma português, sutileza, refinada agudeza e engenho do pregador. Além da
linguagem culta e pública, Vieira empregou, quando necessário, uma linguagem familiar e
doméstica, a fim de se fazer compreender.

Os sermões se converteram em ferramentas históricas importantes para a compreensão da


realidade colonial luso-brasileira, e dadas as especificidades do momento histórico, podem servir
como ferramenta de análise de nossa sociedade atual. Destarte, deve-se destacar na obra do padre
Vieira, a oportunidade dos temas abordados,

o sentido de justiça de suas intervenções e abordagens, e da atualidade de seu


conteúdo e de sua doutrina, pois, tanto hoje, como ontem, a violência é brutal e
generalizada, a miséria injustificada e injusta, e a injustiça social desumanizadora,
além da escandalosa e tolerada corrupção que, infelizmente ainda opera em nossa
sociedade (Idem).

Sendo a obra vieiriana de grande extensão, optamos por analisar alguns de seus sermões
políticos, tendo em vista a importância fulcral que esse tipo de literatura teve para o período,
marcado por mudanças políticas envolvendo o reino português. Do conjunto dos sermões
políticos, optei por analisar somente dois deles: o sermão dos bons anos (1642) e o sermão do bom
sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda (1640), em função do caráter ousado da fala
284

vieiriana, resultante do angustioso e irresoluto momento histórico vivenciado por Portugal. Neles,
o pregador demonstra a argúcia de seu engenho, num tempo alarmado pelos horrores da reforma
protestante, pela incerteza do mundo na angustiante atmosfera do Barroco, e, sobretudo, pelo
momento de extrema dificuldade para Portugal que, de um lado se encontrava envolvido no
complicado jogo de interesses da política expansionista europeia, e de outro, na luta pela
restauração de sua autonomia política. O fato de Vieira ter sido um agente histórico de seu tempo,
em muito contribuiu para a escolha dessas obras. Acrescenta-se também, o encontro textual e
temporal dos sermões como um fator substancial para a escolha do objeto.

Não resta dúvida quanto ao caráter intrépido do jesuíta, quando chamado a se pronunciar.
Conhecedor da trama política europeia, e, de modo singular, das particularidades e necessidades
lusitanas, Vieira não poupou críticas a situações que considerava inadequadas. Ciente da realidade
de seu tempo, utilizou as boas relações que tinha, propôs alternativas de negociação políticas e
econômicas, e, embora crítico mordaz das doutrinas consideradas heréticas, soube articular os
interesses do reino, vinculando-os a grupos nem sempre aceitos pelas Instituições religiosas oficiais.
Nos referimos à problemática presença dos cristãos-novos em território nacional, e de sua
colaboração nos negócios portugueses e de outros reinos europeus, em geral.

Os sermões foram literatura quase que obrigatória no século XVII; representando a força
da retórica religiosa da época, em Vieira manifestaram estreita concordância com a história de
Portugal, legitimando sua missão enquanto reino escolhido pela Providência divina, rumo ao
Quinto Império.

Para o jesuíta, pela história, o reino de Portugal validaria seu passado de sucessos; nela, se
encontravam definidos os mundos divino e material. No reino divino, a força providencial garantia
que a desordem jamais prevaleceria. No material, tendo em vista a premissa barroca de que este
mundo era um reflexo do divino, restava aos indivíduos organizarem sua vida de acordo com os
princípios morais necessários, se possível resistindo às dificuldades, com vistas à manutenção da
ordem.

Destarte, nesse modelo de sociedade cabia ao indivíduo nela intervir; em termos práticos,
significava viver as virtudes e seguir os modelos morais que se encontravam à disposição. Ainda
que houvesse um “espírito de obrigação” sobre o monarca, em função das atribuições que lhe eram
conferidas, e de sua eleição providencial, o sentido de dever deveria ser igualmente partilhado com
o povo.

Assim, a História cumpria o seu papel, enquanto mestra da vida, colocando, à disposição
dos homens as oportunidades de escolha, a partir de um panteão de exemplos de sucessos e
285

fracassos. Nos sermões, o chamamento do pregador à consciência portuguesa, frente aos


momentos de crise, demonstra qual papel a História cumpria através da prédica. Então, se a história
mapeada pela prédica vieiriana agia em concordância com os princípios cristãos, quais
características deveria assumir? Que tipo de Historiador e de História fez Vieira? Era possível no
século XVII, construir um olhar de Historiador num sermão? Em que medida é possível afirmar
que a história se sustenta em Vieira? São algumas questões que esse trabalho se propõe a responder.

Não resta dúvida quanto à relação existente entre as obras de Vieira e a história do Brasil-
colonial. Saber em que medida se deu esta relação, tendo como objeto de estudo os sermões para
o Bom sucesso das armas de Portugal e dos Bons anos, é o que pretendeu este trabalho. Outrossim,
avaliou-se em que medida os sermões se revelam portadores de uma historicidade própria e até que
ponto é possível utilizá-los como fontes de escrita historiográfica que nos permitam compreender
a realidade colonial luso-brasileira, no século XVII.

Em vista disso, a pesquisa teve como objetivo geral trazer luz à história do reino português
ao longo dos séculos XVI e XVII, através da presença do jesuíta em Portugal e no Brasil,
considerando sua influência social, política e econômica na história colonial luso-brasileira.
Ademais, se propõe a revelar o Vieira historiador, alçando-o à condição soberana de sua atuação
na América portuguesa, ora enquanto protagonista da história, ora atuando nos bastidores das
ideias que contribuíram para a “formação” do império português luso-colonial.

Como objetivos específicos, a pesquisa promove a análise da metodologia escrita dos


sermões, avaliando sua dimensão histórica, por meio do entrecruzamento das matrizes histórico-
linguísticas presentes em ambos.

Uma primeira hipótese demonstra que a ideia de História para o século XVII foi resultante
de um duplo estado de ânimo que assinalou o seiscentos: por um lado, inclinado às descobertas
científicas; por outro, fiel à ação da divina providência como o grande motor da História. Em qual
lado se encontrava Vieira?

Numa segunda conjectura, os sermões vieirianos, de fato, apontam para momentos


singulares da história do reino de Portugal. Em vista disso, a escolha dos sermões mencionados,
não foi aleatória, mas circunstancial.

Outrossim, a ordem em que os sermões aparecem na tese encontra-se relacionada à


natureza do objeto da pesquisa. Assim, o sermão dos bons anos, pregado no ano de 1642, inaugura
a análise da prédica. Logo após, segue a análise do sermão das armas de Portugal contra as de
Holanda, pregado em 1640. A inversão das datas, privilegiando a análise do sermão dos bons anos
286

num primeiro momento, ainda que tenha sido pregado posteriormente, está relacionada à temática
do objeto configurado pelos dois sermões, que, em linhas gerais, propõe um novo tempo para
Portugal, eleito pela providência divina para dirigir a cristandade. Como a providência emerge como
substrato nos dois sermões, e é marca registrada na parenética vieiriana, privilegiou-se a
investigação primeira do sermão dos bons anos, pois nele se estabelece longa discussão acerca do
conceito.

Os sermões registram momentos distintos da história de Portugal. Nos bons anos, assinala-
se um momento mais otimista da história do reino, ligado ao seu processo de emancipação política,
que viria com a restauração, após longos anos de União Ibérica com a Espanha. Contudo, o outro
sermão registra um clima bem negativo em relação ao momento português. Além de estar em
situação de total submissão à Holanda, o reino de Portugal ainda precisou enfrentar a resistência
espanhola quanto à aceitação da restauração, já em curso. Entretanto, os dois sermões dialogam
entre si.

Quanto à metodologia adotada, optei por organizar o conteúdo dos sermões em atos,
enumerados a partir das partes de cada sermão. A intenção foi atribuir ao conjunto uma visão
teatralizada, tendo em vista a força retórica do jesuíta, veiculada pelas palavras e pelo emprego de
recursos próprios à literatura barroca. É importante reiterar que, como sociedade do símbolo e da
representação, o barroco incorporou um sentido figurativo em suas manifestações, carregado de
forte apelo aos sentidos, fosse no campo das artes plásticas, no teatro e na literatura (na qual se
incluem os sermões).

Na arte da parenética, a teatralização do discurso se mostrou eficaz. É imperativo lembrar


que, na América barroca, o teatro teve sua máxima representação na Companhia de Jesus, que fez
uso dessa ferramenta para fins evangelísticos. Como representante da Companhia, Vieira deu
provas, por meio de seus sermões, do vasto manancial de recursos à disposição dos pregadores.
Para Ávila,

(…) o sermão constituía ainda um eficiente instrumento de comunicação[...] Em


plena luta da contrarreforma e na sua faina de expansão colonizadora no Oriente
e nas Américas, a igreja católica soube utilizar convenientemente esse
instrumento, explorando-lhe os efeitos de persuasão mágico-pragmática. Forma
literária revestida de magia verbal, o sermão barroco atingia simultaneamente a
sensibilidade e a inteligência, comunicando com maior eficácia a mensagem
religiosa. (2009, p. 9).

Traduzidos para diversos idiomas, os sermões totalizaram quinze volumes: destes, três
foram publicados postumamente. Outrossim, escreveu cartas, cerca de quinhentas, que versavam
287

sobre o relacionamento entre Portugal e Holanda, sobre a Inquisição e os cristãos-novos, e


Profecias, que se organizaram em três obras: História do futuro, Esperanças de Portugal e Clavis
prophetarum, em que se notam Sebastianismo e as esperanças de Portugal se tornar o Quinto Império
do Mundo.

A busca de Vieira pela compreensão do processo histórico e da importância da ciência


história se revela pelo considerável volume de referências autorais às quais recorreu, partindo dos
clássicos, como Aristóteles, Cícero, Tácito, dentre outros, chegando a contemporâneos de seu
tempo, como Luís Cabrera de Córdoba, por exemplo, para legitimar seus escritos.

O significado e a essência da mensagem pregada nos sermões apontam para uma nova visão
da história e, possivelmente, um novo gênero de escrita da História, pautada na mais completa
fruição literária. Segundo Lopes (2010), assim como alguns autores modernos, como Bossuet,
Maquiavel, Hobbes, entre outros, Vieira estava convencido de que poderia oferecer suas lições de
História ao príncipe D. João IV, a quem desde cedo acolheu e aconselhou.

De fato, muitas das obras produzidas por Vieira serviram como manuais de
aconselhamento político para as autoridades constituídas da época, reis e rainhas. Inaugurando uma
forma muito particular de escrita, Vieira terminou por conceber uma nova história que,
caminhando na contramão dos fatos, alicerçou-se no manejo de certezas inquestionáveis, que
“estavam por vir”, posto que fundamentadas numa concepção de história sagrada e providencial.

Antonio Vieira foi e ainda é considerado o Imperador da língua portuguesa e o maior


orador de nossa história cultural comum. Neste sentido, grandes produções do período, cartas e
sermões, e mesmo de nosso tempo presente, de cunho histórico, político e religioso, não podem
prescindir de tê-lo como referência da norma culta.

Além de um dos grandes representantes da Companhia de Jesus, uma ordem que superou
o tempo, nascendo das cinzas como uma fênix após sua expulsão (1759), Vieira encarnou o homem
político de seu tempo, crítico ferrenho da sociedade barroca colonial e, assim como seus “irmãos
de fé”, foi um brilhante empreendedor de seu tempo: ousando dizer o que não era permitido, o
jesuíta pôs em cheque estruturas de pensamento da Igreja e da própria Companhia, caminhando
muitas vezes no sentido contrário ao da lógica colonial. De presença reconhecidamente importante
no cenário europeu e colonial luso-brasileiro, ofereceu aos seus ouvintes elementos necessários
para repensar o cotidiano do período.
288

Em vista disso, esse trabalho buscou construir um novo objeto, moldando-o segundo sua
função histórica109. Para tanto, recorri, predominantemente, à historiografia do século XVII, não
somente nos estudos sobre o Brasil-colônia, mas também sobre Portugal, pátria de Vieira.

Estrutura da tese

Em vista do exposto, estruturei a tese em seis capítulos.

No capítulo I, apresentamos Antonio Vieira, sua trajetória de vida na metrópole portuguesa,


suas atividades diplomáticas e missionárias. Nesse capítulo, são apresentadas as principais balizas
norteadoras do pensamento vieiriano, como a Providência divina, o tempo, a razão de Estado. O
capítulo também promove a análise do contexto de nascimento dos sermões e sua relação com o
conturbado século do Barroco. Num segundo momento, percorremos o século XVI português, os
pilares que sustentaram a história do reino, e encerramos o capítulo promovendo um preâmbulo
sobre o papel dos sermões no contexto restauracionista.

Os capítulos II e III tratam do sermão dos bons anos, e inauguram a parenética,


propriamente dita. A título de análise prática, e dada à extensão da prédica, optamos por dividir o
sermão em duas partes. Na primeira parte (capítulo II), compreendida pelos atos 1º, 2º, 3º. e 4º., o
capítulo trata dos conceitos-chave que perpassam a prédica vieiriana, como o tempo, a providência,
e suas implicações no campo da política. Segue-se um Interlúdio, ligando os dois capítulos. Em
sequência, no capítulo três, que corresponde à segunda parte de análise do sermão, promovemos
um estudo sobre a razão de Estado católica, uma explanação geral sobre os movimentos
messiânicos e, particularmente, sobre o messianismo bragantismo e a importância de D. João IV
na restauração de Portugal. Encerramos o capítulo, promovendo um retorno às origens da
promessa dada a Portugal, em Ourique.

Os capítulos IV e V tratam do sermão do bom sucesso das armas de Portugal contra as de


Holanda. Assim como nos capítulos anteriores, se manteve a lógica de análise, com a divisão do
sermão em duas partes que, neste sermão, estão dispostas nos capítulos IV e V. Na primeira parte
(capítulo IV), compreendida pelos atos 1º e 2º, foi analisado o contexto histórico de nascimento da
Holanda, e os problemas relacionados à fé durante o período filipino. A partir desse preâmbulo, o
capítulo prossegue com a análise dos atos, tratando, num primeiro momento, do passado das

109
Com isso, não pretendemos desconsiderar o que de fértil e profícuo o campo literário possa ter fornecido ao estudo
dos sermões. Entretanto, optamos por parametrizar a função do objeto, dada a natureza do contexto histórico
analisado.
289

conquistas portuguesas; num segundo momento (2º ato), o capítulo avança para uma discussão
sobre o Brasil holandês, o período nassoviano e a questão das heresias. Segue-se um Interlúdio,
ligando os dois capítulos. Em sequência, no capítulo cinco, que corresponde à segunda parte de
análise do sermão, prosseguimos na discussão sobre as heresias, e, no contexto da dominação
holandesa é feita uma discussão sobre a cidade da Baía e sua importância para o Brasil.

Por fim, o capítulo VI é o que amarra todos as discussões promovidas nos capítulos
anteriores, na medida em que nele estão ancoradas as referências históricas esquadrinhadas por
Vieira, que lhe serviram como arcabouço de ideias e conceitos para o estudo e compreensão da
História no século XVII. Assim, iniciamos o capítulo tecendo considerações importantes sobre o
fazer historiográfico. Prosseguimos analisando o peso dos clássicos na obra vieiriana. Na sequência,
analisamos as principais escolas de pensamento do século XVII, cujas ideias reverberaram nas
obras de Vieira. No último item, discutimos sobre os principais gêneros historiográficos presentes
nos setecentos e encerramos com as últimas considerações acerca da história nos sermões de
Antonio Vieira.

Conclusões

Não resta dúvida quanto à importância da História para o século XVII. Nesse contexto dos
seiscentos, reafirmamos a indubitável importância da ciência histórica como referência social,
política e econômica para os reinos absolutistas. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a Europa
Ibérica legitimou um modelo de sociedade baseado na razão de Estado católica e ratificou uma
lógica alicerçada numa forte relação entre o trono e o altar. Com efeito, o século XVII concebeu e
conheceu um estado de espírito incomum para seus cidadãos, de modo que não é possível fazermos
sua leitura se não levarmos em conta uma mentalidade reinante no período, de duplo viés. Assim,
para compreendermos o modo de viver e pensar dos indivíduos deste século, foi necessário nos
atermos ao movimento de ideias do barroco, ao mesmo tempo que marcado por angústias e
incertezas, incendiado por novas descobertas no campo das ciências naturais.

Inserido nesse modelo de sociedade de corte, o reino português vivenciou uma realidade
política muito particular em fins do século XVI e ao longo do XVII, marcada pelo forte apelo
religioso do barroco e pelo expansionismo europeu. Por conseguinte, urgia arregimentar as
conquistas no ultramar; para tanto, era necessário legitimar a fé. Entretanto, o reino precisou lidar
com questões de caráter emergencial, que, pondo em xeque sua independência enquanto estado-
290

nação, demandaram a presença forte de um monarca que pudesse assumir tal empresa, garantindo
estabilidade e transmitindo segurança aos seus cidadãos. Este foi D. João IV, da dinastia bragantina.

Assumindo a posição de reino eleito pela Providência divina, Portugal prosseguiu na


conquista de sua soberania política, rumo à construção de um Império na Terra. Para o padre
Vieira, o reino de Portugal estava predestinado a ser o Quinto Império a dirigir todas as nações da
Terra, sob a égide da fé católica. Recorrendo à história de um longo passado de conquistas do reino,
alicerçado pela promessa dada a Afonso Henriques, em Ourique, o jesuíta assume a escrita de uma
história narrada de acordo com os princípios cristãos e, portanto, de caráter providencial, universal
e apocalíptico, na medida em que a lógica dos acontecimentos se dava em função da Providência
divina e não em função da sabedoria humana. Pela providência, são descritos a ascensão e queda
de grandes impérios e civilizações, provando que, na esteira da história, tudo se processava em
função da vontade divina.

Portanto, ao longo do tempo, a história foi o lugar onde se velaram e ao mesmo tempo se
desvelaram os desejos e os mistérios do Altíssimo aos homens. Cabia aos indivíduos desenvolver
um novo olhar que, indo além do engano das aparências, pudesse contemplar a realidade dos fatos,
reconhecendo neles a inefável presença do divino; em síntese, Deus se revelava na história. Nisso,
identificamos a ideia de continuidade da história, presente no pensamento vieiriano.

Historiador da providência, o jesuíta trata a história como uma peça escrita por Deus, cujo
atos vão sendo encenados no tempo oportuno dos acontecimentos. De acordo com Pécora (1994),
a presença divina encontra-se inscrita nos fatos históricos, concebidos como espaços da
manifestação de Deus ao seu povo.

Como herdeiro da tradição aristotélico-tomista, Vieira vê como necessário o ocultamento


dos mistérios, na medida em que os indivíduos, por sua natureza limitante, não seriam capazes de
lidar com determinadas situações que, de conhecimento divino prévio, revelar-se-iam
oportunamente. Assim, Deus os protegeria de sua própria natureza, preparando-os para as
adversidades futuras e, sobretudo, salvando-os. Constatamos que isso se apresenta nos sermões.

Por conseguinte, os grandes eventos que marcaram a história de Portugal no século XVII,
anunciados através dos sermões, foram tratados por alguém que, de formação tomista, ao mesmo
tempo que relacionado aos avanços das ciências e imbricado aos estudos da ciência histórica,
pretendeu dar conta de informar ao mundo o lugar da história de Portugal, mas, principalmente,
de conclamar seus cidadãos para intervirem nesse processo e ocuparem seu lugar de direito na
história. Com efeito, para Vieira, Deus presidia as ações do povo português, pois o tinha como
povo eleito.
291

Os sermões foram, por excelência, os espaços dessas revelações. De grande rotatividade


panfletária e plateia ouvinte, se converteram em verdadeiras “armas” do pregador no combate às
heresias e à afirmação da necessidade da autonomia portuguesa, em vista da promessa dada ao
reino.

De temáticas distintas, ao mesmo que tempo que complementares, afirmamos a


intertextualidade individual dos sermões analisados. Os sermões se entrecruzam, e dialogam
histórica, política e religiosamente. A parenética dos bons anos, diretamente relacionada à realidade
da restauração e às circunstâncias específicas desse tempo, abarca as ações políticas, sociais e
econômicas, próprias ao cotidiano dos leigos. Do mesmo modo, no sermão do bom sucesso das
armas de Portugal, as dificuldades vivenciadas pelo reino em defesa de seus territórios e de sua fé,
conduz a prédica para questões reais, ávidas por serem debatidas nos púlpitos.

Nos sermões, confirmamos o fundo religioso que confere base à argumentação do jesuíta,
além de uma verdadeira osmose de ideias contendo dados históricos do reino, e outros referenciais
de natureza vária.

A intertextualidade também se confirma entre os dois sermões, pois ambos veiculam


informações procedentes de um mesmo espaço temporal, e, portanto, são complementares. De
caráter imediato, os fatos históricos mencionados encontravam-se em curso, e demandando a
participação de toda sociedade.

Apreendemos que o pensamento de Vieira se divide entre duas realidades prementes: a


emergência da fé e a emergência da situação político-econômica do reino. Ardoroso pregador da
ação providencial, o jesuíta sempre se manteve ciente da realidade do reino e da necessidade
imediata de nela intervir, para mudar os rumos da história de Portugal. Movido pela máxima
inaciana da operacionalidade, nosso pregador agia em concordância com as urgências que se
apresentavam. Ficou evidente o quanto isso se manifestou tanto no campo da atividade missionária,
quanto no campo das atividades políticas e econômicas que demandavam extrema capacidade de
articulação e adaptação às circunstâncias.

Ficou-nos clara a relação entre história e política, na obra vieiriana. Tal relação é única e
integrada. Filho de seu tempo, o jesuíta articulou um discurso no qual o sentido da história repousa
na prática política. A arte de governar se revelou indispensável no discurso de Vieira, pois dela
dependia o futuro de Portugal. Há, portanto, uma unicidade entre a história, a política e o elemento
humano, considerado agente transformador do Estado cristão.
292

Por isso tudo, ficou-nos evidente que Vieira se revelou um historiador de sua época, muito
embora não tenha manifestado preocupação de sê-lo. Entretanto, seus textos revelam a
preocupação que teve em ancorar sua narrativa em referências que considerou sólidas e, portanto,
confiáveis em relação ao estudo da história e de suas leis. De Agostino Mascardi, por exemplo,
apreendeu a importância da memória como evidência, e, portanto, necessária ao conhecimento
histórico. Consequentemente, na retórica do pregador, o conteúdo da memória se converte em
testemunho vivo do passado, permitindo antever o futuro. Destarte, a memória dos fatos históricos
abordados por Vieira nos sermões, se constituiu, não resta dúvida, numa ferramenta por ele
utilizada para conferir legitimidade à sua narrativa. Em Córdoba, a história se revela vida da
memória e mestra da vida; ademais, ela prepara os indivíduos para os atos políticos. Isso se
confirma em Vieira.

Diante disso, averiguamos que os elementos históricos apresentados nos sermões,


conferem sustentação à prédica, o que nos levou a concluir que a história, ainda que no bojo de
uma narrativa de fundo religioso, se sustenta. A finalidade dessa história é a utilidade pública. Assim
sendo, tal afirmação nos permite afiançar o caráter prático e oportuno dos sermões estudados,
voltados para a realidade emergente do reino, o que demonstra a preocupação e o
comprometimento do jesuíta com o conteúdo das mensagens veiculadas nos sermões.

Evidenciamos que a marca da prédica vieiriana é o relato de fatos consubstanciados ao


cotidiano vivo dos portugueses; assim sendo, Vieira não primou por fazer um simples exercício de
retórica; antes, elaborou um discurso articulado à realidade dos acontecimentos, com vistas a uma
finalidade específica.

Embora a ideia de história para o século XVII fosse a de uma sequência narrativas,
remendadas a partir de exemplos passados considerados clássicos para a história, e portanto,
modelares e necessários enquanto referência, há que se levar em conta que, no mesmo século
assistiu-se, tanto a demandas religiosas diversas, de claro apelo ao emocional, de um retorno a
valores medievais, quanto ao nascimento de descobertas no campo das ciências, e das
comunicações, o que tornou o pensar histórico incomum para o período. Vieira foi fruto dessa
nova mentalidade, cujas características somaram-se a todo o conjunto de traços e referenciais de
sua obra. Portanto, sua parenética é resultado de uma forte religiosidade do período, não somente
por ele ter sido árduo defensor da fé católica, em vista da reforma protestante, mas sobretudo
porque essa religiosidade é manifesta no jesuíta, dado o caráter de sua formação. Em contrapartida,
o mesmo Vieira sempre se manteve aberto às descobertas e inovações que pudessem trazer
contribuição ao pensamento. Assim, quando discorreu sobre a importância dos planetas e sua
293

influência sobre os acontecimentos da história de Portugal, demonstrou estar ciente e aberto às


novas descobertas, por sua vez provenientes de pesquisadores religiosos, tais como Athanasius
Kirchner, por exemplo.

Por outro lado, o pregador defrontou-se com realidades nada promissoras, na metrópole e
nas colônias do ultramar português. Por essa razão, a parenética por ele pensada, articulada e
construída, primou por corresponder a todo esse amálgama de elementos. Acima de tudo, se
propôs a dar respostas à sociedade e propor soluções. Assim, as evidências históricas constantes
nos sermões são expressões de um sentido e visão da história muito particular para o período. À
guisa desses referenciais, Vieira construiu um olhar de historiador para os sermões em estudo.

Desta maneira, como visto no capítulo I, confirmamos que a prédica de Vieira resultou
diretamente do ambiente político vivido por Portugal, marcado pela restauração portuguesa. Ficou
claro que a necessidade imposta pelo momento, endossou o discurso do pregador no tocante à
eleição portuguesa e ao seu papel na história.

Nos capítulos II e III, que tratam do sermão dos bons anos, tornou-se nos notório o
providencialismo de Vieira, como fio condutor de toda sua prédica, e, portanto, como a grande
referência da história de Portugal. Assim, a partir da Providência tudo se conforma. Outrossim,
concluímos e ressaltamos a importância da razão de Estado católica evidenciada nos sermões, como
sendo a força motriz da lógica de funcionamento do Estado português, reforçando a relevância da
religião na legitimidade do Estado absolutista lusitano. Ficou claro que a restauração foi responsável
por confirmar algo que historicamente já estava predito na história de Portugal: seu mito de origem
em Ourique, confirmado pela história do reino. Não há dúvida de que a restauração é o ponto de
intersecção dos sermões, para o qual as angústias do presente, e as esperanças do porvir, se
direcionam.

Com efeito, o sermão se apresenta como mimesis verossímil da imagem do Bem, daí seu
caráter providencial e verdadeiro, mas não menos histórico, uma vez que para o pregador, a
realidade histórica de seu tempo nada mais era do que uma mostra da ação providencial no tempo.
Ficou nos explícita a intenção do jesuíta em incitar seus expectadores a um exame de consciência,
conduzindo-os à uma reflexão e ação concretas.

De igual modo, concluímos que a escolha de D. João IV para liderar o processo de


restauração e a promessa do V Império, não foi aleatória, mas ligada à sua descendência natural
direta, bem como à importância que a casa de Bragança teve para o reino naquele momento
específico.
294

Ao longo da análise dos capítulos IV e V, verificou-se com que intensidade os conflitos


envolvendo holandeses e espanhóis afetou os negócios portugueses. Pelos sermões, confirmamos
a preocupação de Vieira em relação aos negócios do reino, a conturbada situação diplomática com
a Espanha e a luta renhida contra Holanda, em defesa dos domínios portugueses no ultramar.
Igualmente, tornou-se nos notório que o agravo econômico de Portugal foi substancial para o
discurso vieiriano em defesa da fé católica. Diante da situação de desespero, o jesuíta apela para a
Divina Providência, utilizando-se do argumento histórico-providencial para sustentar suas petições,
e afiançar a justa punição aos verdadeiros inimigos da fé cristã.

Constatamos a integração necessária entre a providência divina, a história e o humano,


condição sine qua non para a compreensão do sentido da história em Antonio Vieira. Demonstramos
que, para o pregador, a história se cumpre e se faz no tempo providencial, e que os indivíduos são
partícipes necessários desse processo. Com isso, ficou nos evidente a importância do pensamento
escolástico, que, muito absorvido pelos jesuítas, assumiu fortes tonalidades no discurso vieiriano.
Assim, a insistência do pregador ao instar a participação da sociedade na luta pela causa portuguesa,
pela conquista de sua autonomia e lugar de direito na história, além da verdadeira fé, promove uma
clara conciliação entre a razão e a fé cristã (verdade revelada), de alcance universal.

Por fim, confirmou-se a relação necessária entre a restauração e a invasão holandesa. Logo,
o resgate da identidade portuguesa e a retomada do controle do reino se mostrou essencial para
libertar Portugal do jugo espanhol e do jugo holandês, tirando Portugal da condição de reino
subjugado, para a de reino escolhido.

Na análise conclusiva do capítulo VI, reiteramos a importância da história como mestra da


vida, como aquela que ensinava, que exortava, que direcionava os reinos na busca pelo bem
comum. Isso está claro na prédica de Vieira. Para ele, a história tinha muito a ensinar aos
portugueses, tanto em relação aos sucessos, quanto em relação aos fracassos do passado.

Para tanto, concluímos que o jesuíta ancorou sua narrativa num amplo conjunto de
referências pertencentes a vários períodos e correntes de pensamento na história, e absorveu os
elementos e conceitos que julgou necessário, para conferir fundamento e credibilidade à sua
prédica. Demonstramos que o pregador atrelou praticamente todas as descrições feitas ao longo da
prédica, a referências historicamente confiáveis; com isso, terminou por historicizar o discurso.
Essas referências, partiram do campo da história e das ciências em geral, perpassando o campo da
religião e da filosofia.

Evidenciou-se a preocupação do pregador com a prática política do reino, sinônimo de


intervenção humana na vida em sociedade. Para ele, tudo colaboraria para que a promessa dada a
295

Portugal se cumprisse e este viesse a se tornar o V Império na Terra. Ficou claro que Vieira assumiu
a posição de arauto dos sucessos portugueses que, uma vez registrados no passado,
inquestionavelmente consumar-se-iam no futuro.

Reafirmamos a importância da parenética vieiriana como um instrumento poderoso de


formação da mentalidade e cultura popular, no Portugal moderno.

Por fim, consideramos concernente acrescentar que não há como desvincularmos a religião
das sociedades, pelo menos até o primeiro quartel do século XVIII, com a entrada do Iluminismo
na cena europeia, inundando as mentes com um racionalismo até então desconhecido na história.
Para os filósofos iluministas, era perfeitamente possível, e sobretudo necessário, dissociar questões
ligadas ao universo da fé, das questões do Estado, sobretudo no campo político. Já afirmava o
célebre Rousseau sobre a existência de duas formas de religião: a do homem e a do cidadão.
Enquanto a primeira, despojada de templos e altares, se convertia num modo simples e puro de
culto a Deus, a segunda, “[...] inscrita num só país, dá-lhe seus deuses, seus padroeiros próprios e
tutelares, tem seus dogmas, seus ritos [...] Afora a única nação que a segue, todos os demais para
ela são infiéis estrangeiros e bárbaros; ela só leva os deveres e os direitos do homem até onde vão
seus altares110.”

Entretanto, não parece possível e, tão pouco prudente, eliminar a religião da cena pública
e das grandes decisões do corpo de Estado. A história nos fornece muitos testemunhos a respeito.
Há tempos a história humana vem sendo alinhavada à guisa de um estreito vínculo com as formas
de religião existentes. Considerados agentes vetores de muitas sociedades, as religiões se revelaram
determinantes na arregimentação de impérios, bem como nos modos de pensar e viver de muitos
povos: modelaram comportamentos, impuseram diretrizes, catalisaram conflitos. A separação entre
o sagrado e o profano, tão apregoada pelo Iluminismo, obnubilou falsamente as sociedades. O que
assistimos, até os dias de hoje, é uma imbricação cada vez maior entre o sagrado e o profano, de
formas múltiplas e nem sempre reconhecíveis. Parodiando as palavras do Cristo111, quanto a não
haver profeta reconhecido em sua própria pátria, é certo que Antonio Vieira, não se assumindo
como um profeta do passado, com efeito o foi no futuro.

110 Rousseau, Jean-Jacques. Do Contato Social: Ensaio sobre a origem das línguas. In: Os Pensadores. Trad. Lourdes S.
Machado, 1999, p. 237.
111 Livro de Marcos, capítulo 6, verso 4. In: Bíblia, 2011, p. 1369.
296

Referências

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Theresa A. (org.). Padre Antônio Vieira: 400 anos depois. Belo Horizonte: Editora PUC-Minas,
2009.

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Franco, José Eduardo; Calafate, Pedro (Dir.). Obra completa do Padre António Vieira. São Paulo:
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futuro. Lisboa: J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, 1855. t. II.

Vieira, Pe. António. Obra completa. São Paulo: Loyola, 2014. t. I, v. I (Cartas diplomáticas), II
(Cartas da missão), III (Cartas de Roma), IV (Cartas de Lisboa, cartas da Baía).
297

A fragmentação de propriedades e o processo de reterritorialização


em fazendas pecuaristas do sul do Brasil na Primeira República

Andréa Pagno Pegoraro*

Resumo: este artigo busca analisar de que modo ocorreram os processos de fragmentação das
terras do antigo território do Rio Grande do Sul, tendo como recorte regional o território
correspondente ao antigo território de Vacaria-RS nos Campos de Cima da Serra.

Palavras chaves: fazendas, reterritorialização, fragmentação, partilhas.

Introdução

O artigo apresentado tem como base os estudos realizados durante o curso de mestrado e
doutorado pela Universidade de Passo Fundo - UPF iniciados em 2014 sobre as transmissões de
heranças e vendas de grandes propriedades no final do século XIX e início do século XX e os
consequentes desmembramentos das fazendas.

Nosso recorte temporal abrange o período compreendido pela Primeira República


Brasileira, contexto de inúmeras transformações políticas e econômicas, que ocasionaram diversas
mudanças na estrutura fundiária do país. Diante desse contexto, buscamos refletir acerca dos
processos de reterritorialização dos espaços ocupados pelas fazendas pecuaristas e como estas
propriedades foram aos poucos modificando suas estruturas econômicas e cedendo lugar para a
agricultura.

Utilizamos como fonte de pesquisa inventários post-mortem de antigos proprietários, com


destaque para a fazenda Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, doada em sesmaria por volta de 1770
ao tropeiro José de Campos Bandemburgo, propriedade esta que dá origem a ocupação do espaço
regional dos Campos de Cima da Serra; fazenda do Pinhal e Ausentes.

* Mestre em História Universidade de Passo Fundo (2016), Doutoranda em História Universidade de Passo Fundo.
298

O antigo território de Vacaria

De acordo com o censo do IBGE112 de 1900 Vacaria possuía nessa época a área de 8.526
Km2 apresentando uma densidade demográfica de 2,02 hab. Km.2 De acordo com o censo realizado
pelo IBGE na década de 1900 o município de Vacaria abrangia os distritos de 1°Vacaria, 2° Vista
Alegre, 3° Capão Alto, 4° São Luís de França, 5° São João Batista, 6° São Pedro, 7° Santo Antônio
e 8° Capela da Luz. O distrito de Vacaria foi criado por Alvará em 20 de outubro de 1805,
subordinado ao município de Santo Antônio da Patrulha e elevado à categoria de vila no ano de
1878. Em 1900 temos a anexação do distrito de São Luís de França e de São João Batista, sendo o
distrito de São Pedro integrado em 1808. O mapa 1.1 ilustra o espaço ocupado pelo antigo território
de Vacaria.

Mapa 1.1 - Território de Vacaria em meados de 1890

A formação do município liga-se diretamente às atividades tropeiras, que ajudaram a


consolidar o alicerce econômico, político e cultural do município que perdura até os dias atuais. No
entanto, precisamos recordar que o atual espaço territorial compreendido pelo município é bem
menor do que as extensões abrangidas no século XIX e início do século XX, sendo que ocorreram

Biblioteca do IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/riograndedosul/vacaria.pdf.


112

Acesso em 09/08/2017.
299

vários desmembramentos de municípios que deixaram de pertencer a Vacaria, entre eles Bom Jesus,
Monte Alegre dos Campos, Muitos Capões, Ipê, Campestre da Serra, que nos inventários do século
XIX são identificados como pertencentes ao município de Vacaria.

Conforme mencionado, portanto, o recorte regional de nossos estudos está alicerçado no


antigo de território de Vacaria-RS entre os anos de 1890 a 1930, período compreendido pela
Primeira República brasileira. Esse recorte foi definido considerando não apenas o espaço físico de
abrangência territorial, mas as características de identidade e culturais pela qual essa região estava
ligada. A atividade pecuarista era predominante na região, assim como as heranças oriundas do
tropeirismo, podendo ser definida como um espaço voltado para a criação de gado bovino. No
entanto, não podemos deixar de mencionar que diversas localidades desenvolveram atividades
agrícolas a partir da chegada dos imigrantes, como é o caso de Ipê e Campestre da Serra onde os
imigrantes italianos iniciaram o plantio da uva.

Heredia (1996), define região como o espaço que podemos percorrer sem nos sentirmos
estranhos, o que define o sentimento de pertencimento. Uma região não é apenas um espaço físico,
mas um local definido por identidades, de modo que, diferentemente das linhas divisórias que
atendem às questões políticas, os conceitos regionais atendem às respostas humanas de
pertencimento. Uma região para o historiador, não é definida através de questões geográficos ou
políticas, mas pelo conjunto de experiências que permitem falar em características comuns a um
grupo humano. Nesse sentido, Carbonari (2009, p. 28) afirma que:

El espacio regional, no es un espacio fijo, sino un espacio social con conjuntos


heterogéneos en continua interacción. Es testimonio del pasado que actúa sobre
el presente y condiciona el futuro. Analizarlo implica verlo como un espacio
dinámico, en continuo movimiento. Por tanto, como producto de la historia y
que al mismo tiempo actúa sobre la historia.

Conforme mencionado pela autora, região é um espaço definido através de questões sociais,
onde é possível encontrarmos traços marcantes de heranças culturais e materiais, com uma
determinada estrutura social e suas contradições que definem um sentimento de pertencimento a
um determinado território e grupo social. Como destacado por Heredia, "la región es el resultado
de la relación íntima del hombre con su medio, la región es una criatura, o sea una creación singular,
la regionalización debe ser entendida como el proceso en el cual la región se desarrolla y toma
forma histórica concreta" (Heredia, 1996, p. 300). Região, portanto, não é um espaço fixo,
demarcado geograficamente, mas um espaço que apresenta mudanças. O espaço regional modifica-
300

se com o tempo, de modo a atender as transformações geradas pelos processos sociais, conforme
Bourdieu (1988, p. 113):

A etimologia da palavra região, tal como a descreve Emile Benveniste, conduz ao


princípio da divisão, uma descontinuidade decisória na continuidade natural, ato
que consiste em ‘traçar as fronteiras em linhas retas’, em separar o ‘interior do
exterior, o território nacional do território estrangeiro’.

Ou seja, uma região pode ser considerada um espaço construído através de critérios sociais
que envolvem não apenas as relações de pertencimento entre as comunidades que as constituem
como representações de comunidades que se identificam por possuírem heranças em comum, de
modo que “a questão regional ou nacional é objetivamente posta na realidade social, embora seja
por uma minoria atuante”. (Bordieu, 1988, p. 120).

As Grandes Fazendas pecuaristas dos Campos de Cima da Serra no final do século XIX

Em Vacaria a primeira doação de sesmaria foi entregue ao tropeiro José de Campos


Bandemburgo, que em 1770 tomou posse das terras que nomeou de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, dando origem ao futuro povoado. Sua única filha, Clara Jorge, e seu marido, Manoel
Rodrigues de Jesus, através de seus descendentes podem ser considerados alguns dos primeiros
povoadores do município. A fazenda abrangia imensos rebanhos de gado vacum sendo também
passo de tropeiro até 1930. A história da fazenda envolve disputas pela posse de suas terras que se
tornam mais expressivas durante o século XIX quando resulta no assassinato de seu proprietário.

Em 1872 a fazenda do Socorro pertencia à José Joaquim Ferreira, casado com Gertrudes
de Assumpção do Senhor, neta de Clara Jorge, que era também uma das filhas de Antônio Manoel
Velho, proprietário de grandes extensões de terras, entre as quais a fazenda dos Ausentes que dá
origem ao município de São José dos Ausentes. José Joaquim Ferreira, era casado com Gertrudes
de Assumpção do Senhor, o casal não tinha filhos. Na fazenda vivia um sobrinho de Ferreira,
Domingos Gomes da Cunha, a quem Ferreira havia nomeado como seu herdeiro universal, tendo
como clausula que o mesmo continuasse vivendo na fazenda e o auxiliando em sua administração.
Mas as discussões entre ambos eram frequentes até que certo dia as desavenças resultaram na
decisão de Ferreira em deserdar Domingos.

Para fazer a mudança de testamento o fazendeiro teria de ir a Vila de Vacaria e prevendo


uma possível ameaça do sobrinho decidiu sair mais cedo do que de costume, conseguindo realizar
a mudança de testamento. No entanto, na volta foi surpreendido por uma tocaia de seu escravo de
301

nome Anacleto que havia combinado com Domingos em assassinar o seu senhor em troca de sua
liberdade.

Após o assassinato os boatos se espalharam pela vila e todos os moradores sabiam quem
era o mandante do crime, porém só após um longo julgamento Domingos foi encaminhado ao
presidio de Porto Alegre. O escravo Anacleto confessou o crime em seu primeiro depoimento, mas
Domingos o advertiu para mentir e negar o assassinato alegando ter sido coagido à declaração de
culpa. Ao final o juiz desconsidera a falsa versão dos fatos inventadas pelos responsáveis.

O novo testamento de Ferreira desapareceu nas mãos de Anacleto e após a morte do


fazendeiro o sobrinho reivindica a posse dos bens através do documento antigo. O longo processo
de inventário dos bens de Ferreira segue-se entre 1872 até 1880, resultando na quase total
degradação da herança do falecido. Diversos rebanhos foram vendidos indevidamente por
Domingos, a fazenda passa a não ser administrada corretamente, já que não havia um proprietário.
As desavenças familiares tornam-se acirradas com relação ao sobrinho e ao final de 8 anos a herança
estava completamente prejudicada e a fazenda acabou sendo vendida.

Na herança deixada por José Joaquim Ferreira, o rebanho bovino somava em réis o valor
de 11.590.700 réis, um valor significativo, mas superado pelos animais deixados em 1861 por Ana
Gonçalves Vieira, esposa de Antônio Manoel Velho. Na fazenda Guarda Mor, o gado representava
cerca de 11.367.000 réis da fortuna deixada por Laureano José Ramos. Os equinos ficaram em
segundo lugar, representando a segunda maior porção de animais existentes nas fazendas. Na
herança deixada por Antônio Manoel Velho a soma do valor dos animais chegava a 11.801.700, já
no inventário de José Joaquim Ferreira o valor resultante das avaliações dos rebanhos atingia
1.890.000 e no inventário de Laureano José Ramos a avaliação resultou em 2.962.000 réis. Os
valores conferidos ficavam a cargo dos avaliadores que julgavam entre o estado físico do animal,
idade, se estes eram selvagens ou domesticados, entre outros fatores.

A carta de concessão da fazenda dos Ausentes, segundo registros historiográficos teria sido
concedida em 17 de junho de 1754, por Gomes Freire de Andrade a Francisco Carvalho da Cunha,
morador nos Campos da Vacaria, tendo sido tempos depois arrematada em regime de ausentes,
pela capitão Antônio da Costa Ribeiro e após seu falecimento novamente arrematada em regime
de ausentes, pelo padre Bernardo Lopes da Silva e o tenente José Pereira da Silva e Manoel José
Leão, que a venderam a Antônio Manoel Velho.

Antônio Manoel Velho foi proprietário de vastas extensões de campos e matos em diversas
localidades na região que correspondia ao antigo território de Vacaria. Além da fazenda dos
Ausentes, referida anteriormente, a família Velho possuía outras terras divididas entre os filhos do
302

fazendeiro. Em seu inventário encontramos a descrição de que seu filho Antônio José Ignácio era
proprietário da fazenda Invernada da Extrema, onde também existiam criações de animais.
Francisco Antônio de Cândia, marido de Maria Antônia da Anunciação, filha de Antônio Manoel
Velho era proprietário de uns campos denominados de Faxinal, adquiridos por compra a Salvador
Bonete.

Também pertenciam à família Velho a fazenda das Tijucas no município de Lages, os


campos de São Bento, adjuntos a mesma fazenda na quantia de 8 contos de réis, com casas e
benfeitorias, a fazenda das Capivaras, onde existiam 30 vacas de criar mansas na quantia de 32 mil
réis, 16 touros de 2 anos para cima na quantia de 102 mil réis, 56 novilhas de 2 anos para cima por
504 mil réis, 19 bois de 20 anos para cima na quantia de 714 mil réis, 14 bois carreiros a 16 mil réis
na quantia de 224 mil réis, 822 vacas xucras no valor de 4 contos 932 mil réis, entre outros animais
que juntos ultrapassaram os 140 contos de réis.

Família e propriedade no final do século XIX

Durante o século XIX, o conceito de família se referia a todos os membros que viviam em
uma mesma fazenda, não relacionando-se a laços consanguíneos, como acontece atualmente. Não
havia também a preocupação em manter o sobrenome dos pais, já que estes não eram definidores
de laços de parentesco. Essas questões começam a se alterar a partir do século XX quando os
sobrenomes passam a representar a continuidade familiar, sendo comum também que os netos
recebessem o nome do avô, o que representava não apenas uma homenagem, mas a perpetuação
de uma identidade já consolidada pelo antepassado. Era usual que os filhos dos fazendeiros
contraíssem matrimônio entre si, ajudando a fortalecer os laços entre as famílias e garantindo a
permanência do patrimônio dentro do mesmo círculo social. Os fazendeiros contavam com a ajuda
das redes familiares e clientelares para preservar suas posses, para os fazendeiros:

Ser senhores e possuidores de terras implicava a capacidade de exercer domínio sobre as


suas terras e sobre os homens que ali cultivavam (escravos, moradores, arrendatários). Implicava
ser reconhecido pelos seus vizinhos como um confrontante. E relacionava-se também a
possibilidade de expandir suas terras para além das fronteiras originais, ocupando terras devolutas
ou apossando-se de áreas antes ocupadas por outrem. O que importava pois, para os fazendeiros
não era a medição e demarcação tal como a desejavam os legisladores. Medir e demarcar, seguindo
as exigências da legislação sobre as sesmarias, significava, para os sesmeiros, submeter-se à
303

importação de um limite à sua expansão territorial, subjugar-se – nestes casos – aos interesses gerais
de uma Coroa tão distante (Motta, 1998, p. 38).

Como descrito por Motta, aos fazendeiros interessava ampliar cada vez mais os seus
domínios, o que implicava no aumento do seu poder e visibilidade social. Sendo que, por vezes os
conflitos envolvendo disputas de terras eram desencadeados por motivos insignificantes. Na
verdade, o que estava em jogo não era apenas um pequeno pedaço de terra, mas o domínio que
despendia-se da capacidade de subordinar o outro a sua vontade, exercendo poder tanto sobre a
propriedade quanto as pessoas que a elas estavam subordinadas. “A luta pela terra expressava, não
somente a possibilidade de obter domínio sobre a mesma, mas também sobre os homens que ali
habitavam ou desejavam habitar (Motta, 1998, p. 39).

Assim, o domínio sobre a terra estendia-se sobre seus moradores e vizinhos expressando-
se através de relações de poder que permitia subjugar não apenas territórios, mas pessoas. Motta
(1998), ressalta que, a morte de um fazendeiro gerava, muitas vezes, uma desavença e disputa por
heranças por parte dos envolvidos na partilha. Assim sendo, o ato de partilha poderia resultar no
início e até na consolidação provocando rancores e ódio entre familiares.

Quando não havia testamento a partilha era feita de acordo com a lei, sendo realizada a
soma de todas os bens avaliados e após divido em duas partes, a primeira era dada a meação da
viúva (o) a quem cabia a metade de toda herança inventariada e a segunda parte era dividida
igualmente entre os filhos do casal. Se algum dos herdeiros diretos já fosse falecido a parte
correspondente era entregue aos seus filhos.

As heranças representavam não apenas os esforços dos fazendeiros em preservar o seu


patrimônio e ampliá-lo, mas também demonstravam o cuidado e o zelo com que os mesmos
tratavam de administrá-los. Assim, as fortunas refletiam principalmente os bens que passavam de
geração para geração dentro dos grupos familiares, sendo usual que os filhos dos fazendeiros
promovessem as imbricações entre famílias através da consolidação de laços matrimonias.

Nos arrolamentos dos inventários eram descritos todas os bens deixados no momento do
falecimento, incluindo as terras, casas, móveis, utensílios de uso doméstico, rebanhos, instrumentos
de trabalho, objetos de ouro e prata, entre outros. Conforme Silva (2012) inventário significa a
declaração de bens do falecido, que será transmitido aos herdeiros, de modo que cada herdeiro
receba seu quinhão de direito. “O inventário promove, portanto, a apuração da herança líquida e
sua posterior partilha” (Silva, 2012, p. 1).
304

O processo de reterritorialização das terras Vacarienses

Podemos definir território, segundo Geiger (1996), como uma porção de terra não
pedregosa, asfaltada ou cimentada da superfície terrestre, que pode ser argilosa, arenosa ou saibrosa.
O geógrafo, considera também que o termo território liga-se a uma ideia abstrata de poder, por
corresponder a um nível de produção social do espaço. Nesse caso, o processo de
desterritorialização seria entendido como o esvaziamento do território. Já para Corrrêa (1996, p.
251):

Território não é sinônimo de espaço, ainda que para alguns ambas as palavras
apresentem o mesmo significado. Do mesmo modo territorialidade e
espacialidade não devem ser empregadas de modo indiferenciado.
Etimologicamente território deriva do latim terra e torium, significando terra
pertencente a alguém. Pertencente, entretanto, não se vincula necessariamente à
propriedade da terra, mas à sua apropriação, por sua vez, tem um duplo
significado. De um lado associa-se ao controle de fato, efetivo, por vezes
legitimado, por parte de instituições ou grupos sobre um dado segmento do
espaço. Neste sentido o conceito de território vincula-se à geografia política e
geopolítica.

Corrêa (1996), destaca que o conceito de território está diretamente vinculado a ideia de
espaço, que se refere também a organização espacial. Assim, o território seria o espaço emergente
da dimensão política, afetiva ou ambas. Porém, ele traça um diferencial entre o conceito de
território e territorialidade, mostrando que a territorialidade, está relacionada ao conjunto de
práticas e suas expressões materiais e simbólicas capazes de garantir a apropriação e permanência
de um dado território através do Estado como agente social, além dos diferentes grupos sociais e
as empresas. O geógrafo entende a desterritorialidade como a perda do território apropriado e
vivido em decorrência de diferentes processos, resultantes de contradições capazes de desfazerem
o território, de modo que:

Novas territorialidades ou re-territorialidades, por sua vez, dizem respeito à


criação de novos territórios, seja através da reconstrução parcial, in situ, de velhos
territórios, seja por meio da recriação parcial, em outros lugares, de um território
novo que contém, entretanto, parcela das características do velho território: neste
caso os deslocamentos espaciais como as migrações, constituem a trajetória que
possibilita o abandono dos velhos territórios para os novos (Corrêa, 1996, p.
252).

Para o autor desterritorialidade sem nova territorialidade representa exclusão do processo


social. As novas territorialidades então, surgiriam de uma recomposição do território perdido total
305

ou parcialmente, podendo as novas territorialidades serem também programada implicando em


antecipação espacial. Num sentido mais amplo:

A desterritorialização é vista praticamente como sinônimo de globalização


econômica, ou pelo menos, como um de seus vetores ou características
fundamentais, na medida em que ocorre a formação de um mercado mundial
com fluxos comerciais, financeiros e de informações cada vez mais
independentes de bases territoriais bem definidas, como as dos Estados Nações.
Numa interpretação um pouco mais restrita, a ênfase é dada a um dos momentos
do processo de globalização (Costa, 2014, p. 173).

Como explicado por Costa (2014), o processo de desterritorialização emerge de um


contexto maior em que não apenas a estrutura física do espaço está incluída, mas a utilização deste
território como espaço econômico, que o autor define integrar-se ao processo de globalização.
Vamos entender a ideia de globalização em nossos estudos através do contexto de mudanças que
se sucedem nos processos produtivos brasileiros, mas que também se desdobram em virtude de
pensamentos e modos de produção provenientes da Europa, como é o caso da chegada dos
imigrantes e o início do desenvolvimento da agricultura no estado do Rio Grande do Sul.

Até o início do século XIX era comum que os tropeiros buscassem se estabelecer em
fazendas criando rebanhos, o que podemos definir como o início do processo de territorialização
das terras sul-rio-grandenses. Territorializar-se “significa criar mediações espaciais que nos
proporcionem efetivo ‘poder’ sobre nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns
também enquanto indivíduos), poder este que é sempre multiescalar e multidimensional” (Costa,
2014, p. 97).

Ou seja, territorializar-se adquire sentidos diferentes para grupos sociais diferentes, desse
modo, os primeiros moradores do povoado de Vacaria encontravam em seu processo de
territorialização um sentido diferente quando comparado aos pequenos agricultores que buscaram
se estabelecer na mesma região em períodos posteriores. Ao territorializar-se cada grupo está em
busca de recursos, produtos e benefícios, ou modos de subsistência diversificados, o que interessa
para um grupo pode ser totalmente indiferente para outro.

A divisão das terras na fazenda do Socorro

Em 1872 a fazenda do Socorro pertencia à José Joaquim Ferreira, casado com Gertrudes
de Assumpção do Senhor, neta de Clara Jorge, era também uma das filhas de Antônio Manoel
Velho, proprietário de grandes extensões de terras, entre as quais a fazenda dos Ausentes que dá
306

origem ao município de São José dos Ausentes. José Joaquim Ferreira, era casado com Gertrudes
de Assumpção do Senhor, o casal não tinha filhos.

Preocupado com a futura administração da fazenda após sua morte, Ferreira decide
escrever seu testamento onde nomeia se sobrinho Domingos Gomes da Cunha como seu herdeiro
universal. Porém os constantes desentendimentos levam o fazendeiro a modificar seu testamento,
deserdando Domingos, o que resulta no assassinato do fazendeiro. Com a morte de Ferreira, a
fazenda passa por um longo período de disputas judiciais entre herdeiros que se estende entre 1872,
ano da morte do fazendeiro até 1880. Após vários desentendimentos Luiz Jacintho Ferreira torna-
se o único herdeiro da herança.

Todavia, grande parte dos animais já haviam sido vendidos, até mesmo roubados, a herança
familiar havia sido praticamente perdida o que motiva o herdeiro a arrendar e posteriormente
vender a fazenda.

De modo geral, as terras da fazenda continuam sendo utilizadas predominantemente para


a criação de animais até meados de 1930, porém aos poucos o espaço passa a ser ocupado também
por áreas de cultivo. Podemos evidenciar que a fazenda passou por um processo de
desterritorialização e consequentemente de reterritorialização, que caracteriza principalmente sua
venda para Marcos Flores de Noronha em 1903.

O processo de fragmentação da fazenda dos Ausentes

O processo de territorialização do antigo povoado de Vacaria se inicia através das


concessões de sesmarias voltadas para a criação de gado bovino. A origem da atividade pecuarista
na localidade remete ao contexto de inserção dos animais na região pelos padres jesuítas, que
posteriormente abandonaram esses rebanhos que foram procriando em grande quantidade na
região. Cabe ressaltar que o processo de territorialização relaciona-se diretamente com as condições
físicas e ambientais para desenvolvimento das atividades econômicas. Nesse caso, a criação de
animais pode ser justificada pela grande quantidade de campos e reservas de águas disponíveis na
região.

O documento de medição de terras da fazenda dos Ausentes113, nos mostra que a área da
propriedade era o equivalente a 1.296.336.900 m2. Sendo a mesma avaliada em 900 contos de réis.
O processo de medição foi aberto pelo herdeiro Jorge Guilherme Moojem, após a morte de Ignácio

113 APERS. Medição da fazenda dos Ausentes, 1887. Civil e Crime. Autos n° 359.
307

Manoel Velho, buscando a separação de seu quinhão dos demais herdeiros. No documento
encontramos a seguinte passagem:

A divisão de quinhões terá lugar pelos inventários de Ignácio Manoel Velho e sua
mulher D. Maria Ignácia de Souza Velho, pais e sogros do suplicante, visto como
trata-se de terras descritas naqueles inventários assinadas pelas mesmas partilhas
e pelas mesmas sentenças, de modo que nada mais se tenta fazer do que
completar pela divisão e demarcação aquelas primeiras partilhas;
Que a avaliação da dita fazenda é a definida no inventário de Ignácio Manoel
Velho, cabendo a viúva cabeça de casal a quantia de 526.257.931 réis inclusive a
de 37.086.248 réis que lhe foi adjudicada para pagamento de dívidas passivas da
herança.
Que por morte da mãe e sogra dos suplicantes foi inventariada e partilhada aquela
quantia sem aumento de valor, cabendo nela aos suplicantes a meação de
87.708.655 réis.

Com relação as terras deixadas por Antônio Manoel Velho, um de seus filhos Ignácio
Manoel Velho, acabou se apropriando de grande parte das propriedades deixadas pelo pai através
de compras feitas aos herdeiros e outros arranjos familiares, sendo, segundo inventário, “o que
mais comprou terras, quase todas as que eram do pai e várias outras avaliadas no inventário”114,
entre as quais a fazenda das Tijucas em Santa Catarina , avaliada por 60.000$00; metade da fazenda
do Pelotas/SC - 22.000.$00, a chácara denominada Ponte Grande e Glória/SC - 25.000$000, a
metade da fazenda Santa Bárbara/SC - 11.000$000, uma fazenda de cultura com lavouras em
Itapeva - 9.000$000, parte da fazenda Bom Sucesso/SC - 2.000$000, fazenda São Bento/SC -
25.000$000, campos e matos denominados Araújo/SC - 1.100$000, lavouras no lugar denominado
Pessegueiro/SC - 400$000, uma casa na cidade de Laguna - 1.500$000, uma casa na fazenda das
Tijucas - 500$000, uma outra na mesma - 200$000, benfeitorias, potreiros e currais na mesma -
400$000, uma casa na Vila de Lages/SC - 1.1000$000, fazenda das Taipas - São Francisco/RS -
10.000$000, fazenda Santo Antônio dos Ausentes/RS - 900.000$000, uma casa e mais benfeitorias
na mesma - 7.000$000, fazenda São José dos Silveira/RS - 260.000$000, uma casa e mais
benfeitorias na mesma - 400$000.

Importante evidenciar que durante o século XIX o valor da terra conferido em inventário
é pouco significativo e que a maior soma incide diretamente sobre os rebanhos, o que nos mostra
que o valor da terra estava diretamente relacionado com o que nelas havia, nesse caso, os rebanhos.
Por outro lado, durante o século XX, notamos uma grande transformação quanto a incidência de
rebanhos e o valor conferido às terras, que revela que o número de animais entrou em queda, já o

114O inventário post-mortem de Antônio Manoel Velho está disponível no APERS. N°540, Maço: 3, Estante: 10.
Santo Antônio da Patrulha.
308

preço das terras aumentou significativamente, como podemos evidenciar no gráfico Avaliação da
herança deixada por Ignácio Manoel Velho entre Semoventes e Bens de Raiz.

Fonte: Inventário Ignácio Manoel Velho (1861) – (Gráfico produzido pela autora)

O gráfico que os valores conferidos as terras acentuam-se sobremaneira fazendo com que
ultrapassem sobremaneira os semoventes entre as fortunas inventariadas. No entanto, a explicação
mais assertiva quanto a grande disparidade apresentada entre ambos incide no fato de que os
rebanhos foram tornando-se cada vez menores e menos abrangentes. As mudanças geradas pelo
processo de divisão de terras das grandes fazendas em propriedades menores podem ajudar a
explicar a diminuição de rebanhos nas propriedades.

Existe uma relação acentuada entre a diminuição dos rebanhos nas fazendas, suas
fragmentações através de partilhas e vendas com o processo de desterritorialização da localidade e
consequentemente processo de reterritorialização. Para entender melhor como o antigo território
de Vacaria passa por um processo de reestruturação que pode ser caracterizado como
desterritorialização e reterritorialização, vamos analisar o caso da fazenda do Pinhal.

Considerações Finais

O artigo apresentado tem finalidade abordar parte dos estudos que estamos desenvolvendo
em nossa pesquisa de doutorado pela Universidade Passo Fundo, em que buscamos analisar o
309

processo de reterritorialização do antigo território de Vacaria entre o final do século XIX e início
do século XX.

Nossa pesquisa se baseia em inventários post-mortem de proprietários de algumas das maiores


fazendas do antigo território de Vacaria no século XIX, a fazenda do Socorro e Ausentes, cujas
famílias mantinham relações de reciprocidade e parentescos. Buscamos compreender os
desmembramentos dessas propriedades, aliada a composição de um novo modelo econômico e
social, que proporcionou as bases para o crescimento comercial das terras.

Através de nossos estudos, evidenciamos que o espaço regional apresentado pelo antigo
território de Vacaria, passa por um processo de ressignificação que abrange não apenas as divisões
de terras, mas também o modo como as mesmas são utilizadas. Nesse sentido, observamos o
desencadeamento de novas abordagens sociais e culturais para a utilização das terras, produção
econômica e divisão das mesmas.

Até o final do século XIX, havia a predominância de grandes fazendas pecuaristas na área
estudada, porém com as mudanças administrativas no país e a valorização da comercialização das
terras, ocorre a emergência de novas propriedades menores, não mais ligadas diretamente a
produção de gado. Vale ressaltar que nesse mesmo contexto histórico temos a chegada dos
imigrantes ao Rio Grande do Sul e o início do desenvolvimento da agricultura, que também motiva
a emancipação de novos municípios antes pertencentes a Vacaria.

Consideramos, portanto, que a passagem do Império para a República favoreceu o


desmembramento das grandes fazendas pecuaristas na região e formação de novos espaços
territoriais, provocando um notável processo de reterritorialização. As mudanças envolvem não
apenas os desmembramentos de terras das fazendas, mas também a ocupação e utilização destes
espaços.

Até o final do século XIX as heranças inventariadas mostravam que a grande concentração
de fortunas incidia diretamente sobre os rebanhos, já no decorrer do século XX, através da análise
da partilha de heranças deixadas nos inventários post-mortem, observamos que as terras ocupam o
primeiro lugar entre os bens na acumulação de riquezas. Nesse sentido, podemos perceber que
apesar da atividade pecuarista manter-se como base econômica do município até 1940, a ocupação
das terras passa por inúmeras transformações que posteriormente favorecem o desenvolvimento
agrícola na região.
310

Referências
Bourdieu, Peirre. Razões práticas sobre teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

Carbonari, María Rosa. De cómo explicar la región sin perder-se en el intento: repasando e
repensando la historia regional. História Unisinos, Jan/abr, 2009.

Corrêa, Roberto Lobato. Territorialidade e corporação: um exemplo. In: Santos, Milton; Souza,
Maria Adélia A., Silveira, Maria Laura (org.). Território: Globalização e fragmentação. São Paulo:
Hucitec, 1996.

Costa, Rogério H. da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade.


Rio de Janeiro: Bertrand, 2014.

Geiger, Pedro P. Des-territorialização e espacialização. In: Santos, Milton. Souza; Maria Adélia A.;
Silveira, Maria Laura (org.). Território: Globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1996.

Heredia, Edmundo A. La región en la globalización e en la historia de las relaciones


internacionales latinoamericanas. Universidad Nacional de Córdoba. In: Castro, Carlos J.
Globalización e historia: III Jornada de historia de las relaciones internacionales. Provincia de
Buenos Aires, 1996.

Motta, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito a terra no Brasil do século
XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998.

Silva, Adriana Fraga da. Estratégias materiais e espacialidade: uma arqueologia da paisagem do
tropeirismo nos Campos de Cima da Serra no Rio Grande do Sul. 2006. Dissertação (Mestrado) -
Porto Alegre, 2006.

Santos, Milton. Espaço e sociedade: ensaios. Rio de Janeiro: Vozes, 1982.

Fontes

Inventário José Joaquim Ferreira/ 1872 (1° e 2° volumes)


Ano: 1872
Autos: 90
Estante: 119
Maço: 3
Vacaria/ Cartório de Órfãos e Ausentes.

Inventário José Joaquim Ferreira/ 1880;


Inventariante: Antonio Manoel Velho
Ano: 1880
Autos n°: 170
Maço n° 5
Estante: 119
Vacaria/ Cartório de Órfãos e Ausentes.

Inventário Antônio Manoel Velho/ 1848;


Inventariante: Ignácio Manoel Velho
311

N° 540
Maço: 3
Estante: 10
Santo Antônio da Patrulha/ Cartório de Órfãos e Ausentes

Inventário Ana Gonçalves Vieira/1861;


Inventariante: Ignácio Manoel Velho
N° 22
Maço: 1
Estante: 119
Ano: 1861

Testamento José Joaquim Ferreira/ 1869;


Testamenteiro: Domingos Gomes da Cunha
N° 32
Maço: 2
Estante: 119
Ano: 1869
Provedoria
312

Notas sobre mãos invisíveis: escravização indígena e


desigualdade em São Paulo de Piratininga (1562-1592)

Andrei Álvaro Santos Arruda*

Resumo: este trabalho trata sobre as visões que os colonizadores poderiam ter dos povos
indígenas na vila de São Paulo de Piratininga: muitas vezes como uma mão de obra
escanteada na documentação, invisibilizada, servindo como manobra discursiva.

Palavras-chave: colonização, São Paulo de Piratininga, indígenas, mão de obra,


desigualdade.

Fontes e dados

Nesta exposição, não desejo retomar as origens da vila de São Paulo de Piratininga.
Deixo aqui registrado apenas que ela foi fundada em 1560 (Silva, 2009, p. 35) e desde cedo
pautou-se na exploração da mão de obra indígena, assim como toda a capitania de São
Vicente, na qual a dita vila estava englobada. E sobre a mão de obra indígena explorada
antes mesmo da subida dos colonizadores a partir do litoral rumo ao planalto de
Piratininga – onde São Paulo foi fundada -, trabalhos clássicos como Aldeamentos
paulistas de Pasquale Petrone (Petrone, 1995) e Negros da Terra de John Manuel Monteiro
(Monteiro, 1994) ajudam a elucidar aspectos sociais e econômicos dos primórdios da
colonização na dita capitania.

Sobre as fontes que possuo, isto é, dos livros de atas de câmara, há 472 registros115,
entre 1562 e 1592. O que é um registro? Um registro é basicamente uma fonte que ficou
registrada no livro das atas de câmara. Eu os separei por sua datação: ou seja, para cada dia,
um registro novo. Nesse sentido, as atas de câmara são também registros, bem como
cartas patente, provisões de cargos, requerimentos, a exemplo de alguns documentos que
eram anexados aos livros de atas. Os livros de atas da câmara de São Paulo foram
redescobertos, provavelmente no final do século XIX – hipótese minha -, quando estavam
abandonados em uma sala no fundo do arquivo da câmara municipal de São Paulo. Uma
primeira edição transcrita e impressa saiu em 1914 (Atas da Câmara de São Paulo, 1967, p. 3-

* Mestrando em História pelo PPGHIS-UnB.


115
Banco de dados próprio.
313

5). A que trabalho é de 1967, publicada pelo Arquivo Histórico de São Paulo, e se encontra
online, no site do Centro de Memória da Câmara Municipal de São Paulo116.

Referi-me ao total de documentos. Passemos então às atas, que são 432 no total de
472 registros, entre 1562 e 1592. As atas eram documentos que serviam de memória
jurídico administrativa para a vila. Juntas, constituíam uma espécie de livro de consulta.
Chamo por atas, aquelas que foram produzidas nas reuniões do conselho da câmara, na
presença dos oficiais - juízes, vereadores, procuradores, almotacés, alcaides -, deliberando
e despachando sobre uma gama extensa e variada de assuntos, que diziam respeito à
administração e ao cotidiano da vila. E, no interior dessa administração e desse cotidiano,
desejo ressaltar o olhar sobre a mão de obra indígena. Vamos, antes de tudo, conferir os
registros que dizem respeito direta ou indiretamente aos indígenas:

Gráfico I - Registros e atas - referência a guerras


Contagem de registros e

40 35
atas por unidade

29
30
Total de registros
20 referenciando guerra
Atas referenciando guerra
10

Gráfico II - Registros e atas - referência a indígenas


60
Contagem de registros e atas

51
50
40
por unidade

40
Total de registros
30
referenciando indígenas
20 Atas referenciando
indígenas
10

116 Encontra-se
online no link: http://www.saopaulo.sp.leg.br/memoria/atas-e-anais-da- camara-municipal-
2/. Acesso em: 14 dez. 2020.
314

Contagem de registros e Gráfico III - Registros e atas - referência a escravos


atas por unidade 40 35
29
30
Total de registros
20 referenciando escravos
Atas referenciando
10
escravos

Gráfico IV - Registros e atas - posturas e obras


públicas
Contagem de registros e

150 139
atas por unidade

100 Total de posturas

50 40 Posturas sobre obras


públicas

Estas fontes dizem respeito aos povos autóctones referenciados direta ou


indiretamente na documentação, seja pelo total de registros ou somente pelas atas. No
primeiro gráfico trago o tema guerra. São majoritariamente conflitos contra povos
indígenas, nos quais soldados autóctones tomavam parte contra ou a favor dos moradores
de São Paulo; no gráfico II cito as referências em que indígenas são diretamente
identificados, à revelia da situação; no gráfico III são as referências diretas a escravos; no
gráfico IV mostro a comparação entre o total de posturas para o período, explicitando
quantas delas dizem respeito às obras públicas na vila.

Todos os temas representados no gráfico dizem respeito aos povos autóctones.


Isso suscita uma indagação: estavam lá os indígenas automaticamente tomados pelos
colonizadores como mão de obra pressuposta para o trabalho, soldados para a guerra,
instrumentos de/para colonização? Se sim, isso poderia significar desigualdade. A
desigualdade não é tema novo para a historiografia que versa sobre a Idade Moderna.
Apenas a título de pensamento, eu diria sem medo, que a sociedade colonial na São Paulo
de Piratininga do século XVI era necessariamente desigual: de certa forma, Hespanha e
Barreto colocariam essa afirmação como integrante dos modelos mentais com os quais
315

aquela sociedade compreendia a si mesma, com suas formas de ver, de nomear, de


classificar, de hierarquizar (Hespanha; Xavier, 1992, p. 121). E os povos indígenas, a
depender de sua relação com os colonizadores, tinham um lugar – ou deslugar? – naquela
sociedade.

“Outro” e “mesmo”: tensão teórica

De certa forma, se pensarmos em um autor de trabalhos clássicos na antropologia


histórica, como Talal Asad, teremos a proposição teórica de um encontro colonial, que se deu,
pelo menos no século XVI, em uma confrontação desigual da “civilização” em relação à
“selvageria”, quando se engendrou um esforço histórico para depreciar sociedades não
europeias (Asad, 1973, p. 104). João Pacheco de Oliveira se vale de Talal Asad com o
conceito de encontro colonial, entendendo-o como um lócus onde se atualizam práticas e
representações, onde se fazem relações sociais e se produz o colonizador e o colonizado
(Oliveira, 2014, 168). Essa percepção esquematiza de antemão à visão de europeus em
relação aos indígenas, relacionando-os como “outros” entre si. Entretanto, nem o
colonizador, nem o colonizado eram tipos ideais de um processo histórico tampouco
abstrato.

Havia vários graus de relacionamento entre colonizadores e colonizados. Muito


claramente, por exemplo, existiam indígenas amigos e inimigos. Beatriz Perrone-
Moisés apresenta essa questão histórica em um trabalho: a relação com o ameríndio
dependia bastante da sua disponibilidade de integração. E por integração podemos
entender a disposição de se cristianizar, de se fazer vassalo do rei de Portugal e de se
oferecer como mão de obra e braço de guerra quando necessário (Perrone-Moisés, 1992,
p. 118).

Obviamente esta integração não se dava como a imagem de um corpo que se fundia
a outro ou de um membro que fosse absorvido por força maior. Era a formação de uma
sociedade que honrasse a Deus e ao rei de Portugal, trazendo em seu bojo a necessidade
de sobrevivência. Esta necessidade está bem expressa em três ocasiões: 1564 (ATAS...,
1967, p. 42-45), 1585 (ATAS..., 1967, p. 275-278), 1590 (ATAS..., 1967, p. 403-405). Havia
grande dificuldade de os colonizadores se sustentarem na vila, pois ora os escravos
morriam demasiadamente e não se podia plantar, ou então, com sua baixa, não poderiam
ter braços para se defender dos inimigos, indígenas ou europeus. Estamos falando,
316

segundo uma ata de maio de 1584, de uma vila de 100 moradores (ATAS..., 1967, p. 236-
238), isto é, potencialmente 100 homens brancos, talvez todos ou quase todos reinóis,
com cabedal suficiente para ter influência econômica e política na vila.

Não eram estes 100 homens que tangiam o gado, que plantavam os roçados, que
subiam os muros, a igreja, as casas: eram as mãos invisíveis, ou seja, as peças. Elas
aparecem com frequência na documentação, nem sempre explicitamente. Entre 1562 e
1592 são 40 posturas – conforme gráfico IV - que se referem a obras públicas – limpeza de
caminhos, construção de pontes, fontes, muros – com apenas 13 destas se referindo a
escravos. Ademais, do total de 472 registros do período, apenas 35 se referem diretamente
a escravos, conforme o gráfico III. Por que tão pouco referenciados, se tão importantes
para a colonização, justamente em fontes administrativas?

É possível que uma concepção de “outro”, que privilegiasse o lugar do colonizador


enquanto superior, principalmente por motivos religiosos, predispusesse, a partir do
contato entre colonizadores e indígenas, a construção de uma certa hierarquia social e
econômica na formação da vila de São Paulo. Assim, o encontro colonial engendraria
desde seu tenro início um certo germe de dominação e consequente desigualdade.

Uma outra interpretação possível para tamanho descompasso nas fontes sobre essa
mão de obra mecânica, presente, mas escanteada, é justamente a raiz dos debates religiosos
e ontológicos do período. Eu, pessoalmente, sei quão arriscado e complexo seria analisar
fontes de origem administrativa a partir de um trabalho que investiga antropologia
histórica em relatos de viajantes e/ou religiosos, todavia a título de risco, desejo mais fazer
uma provocação, que tirar conclusões cabais.

Apesar de aparecerem as questões da mão de obra e das diferenças de tratamento


conferidas a diferentes povos na documentação, elas poderiam se basear em noções
jurídicas e teológicas do período, que circulavam até mesmo entre distantes elites coloniais,
como em São Paulo de Piratininga. Em que medida a apresentação desses debates sobre
“visões de mundo”– por exemplo, que lugar diante do direito natural deveria ocupar na
sociedade o “selvagem” ou o “índio cristão” - pode contribuir para uma compreensão
sobre a desigualdade das relações nessas sociedades coloniais ou do “lugar” que ocupavam
socialmente colonizados e colonizadores? O que fazia as autoridades coloniais e
eclesiásticas discriminarem entre os nativos: os amigos, os inimigos, os escravizados?

Andrea Daher tem proposições sobre possibilidades teóricas pautadas no pensamento


coetâneo. A contestação da autora se baseia na crítica de um “esquematismo histórico”,
317

no qual o colonizador português ou o viajante francês teriam determinadas “visões” acerca


dos índios. O discurso de tais europeus tinha muito a ver com as formas de representação
da época, que encenavam posições hierárquicas, do sujeito de enunciação, dos tipos
representados, dos destinatários do discurso. Era pressuposto que o atributo divino se
aplicasse à natureza e à história, sintetizando a diversidade do mundo em uma noção de
semelhança e conveniência – em analogia à ordem celestial da cosmologia católica. A visão
escolástica dos jesuítas organizava o mundo em graus de proximidade dos sujeitos em
relação a Deus, cujo ápice era a boa humanidade católica: não existiria exatamente um
outro. No caso do indígena, este seria o mesmo, humano, ainda que longe de ser um cristão
perfeito. A conversão se daria do mesmo ao mesmo, e não do outro ao mesmo (Daher, 2018, p.
6-8). Isto seria uma operação no interior de uma “mesmidade”.

Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Lembremos de Beatriz Perrone-Moisés. Esse
“mesmo”, se realmente o fosse, tinha de ser “mesmo” sob algumas condições: as
principais, de ser vassalo do rei de Portugal e fiel católico. E, apesar destas condições,
deveria ainda fornecer mão de obra. Do contrário, poderia ser “outro” e, assim,
escravizado. Na prática, os indígenas aldeados, teoricamente forros, se não eram tratados
como escravos no cotidiano, pertenciam a um nível talvez mais alto que o de índios
bravios, contudo mais baixo que dos colonizadores católicos.

Assim, existe uma certa tensão teórica que deva ser explicitada. Uma coisa é uma
alteridade completa, que serve bem ao discurso da escravidão; outra, uma desigualdade
matizada, que apoia a integração do autóctone à sociedade colonial. Se enxergado como
completo outro, talvez as capacidades de incorporação do indígena ao corpo imperial luso
– como sujeito livre – fossem bastante dificultadas. Por outro lado, a partir de uma
desigualdade em matizes, como um “mesmo” inacabado, o autóctone sempre estaria em
um processo de ascensão, indeterminado, o que justificaria sua tutela, principalmente por
parte das ordens religiosas, notadamente dos jesuítas. Acredito que as duas propostas
tenham lugar na documentação com que trabalho. Nesse sentido, “mesmidade” e
“alteridade” podiam ser recursos discursivos, de acordo com os objetivos do colonizador.

A expressão das desigualdades

As fontes mostram um movimento dúbio, algo como se às vezes os indígenas


fossem objeto manobrável, um outro expresso ou silenciado; e outras vezes, como se
318

fossem elemento sabidamente indispensável, componente reconhecido e necessário à


sociedade colonial: “outro” para escravo; “mesmo” para conversão. Sobre esse sujeito
manobrável nas fontes, temos os registros em que há posturas indicando obras públicas,
feitas por escravos, que não se encontram referenciados, mas subentendidos. Eis o
completo outro, aquele que trabalha, que pode ser escravizado, que nem precisa ser citado,
até porque nesse episódio, quem aparecem são os senhores. O primeiro caso em que isso
acontece é bem claro, em novembro de 1562:

“...e na dita câmara requereu o procurador que se acabassem os muros e


baluartes e logo pelos ditos oficiais foram repartidos os moradores para
as acabarem a saber Manoel Vaz/ Francisco Fernandes/ Baltasar
Rodrigues/ Gonçalo Fernandes/ Fernão de Álvares/ Francisco Pires/
Gonçalo Gonçalves/ Pero Álvares/ Baltasar Nunes/ João Luiz/
Salvador Pires/ Luís Martins/ Francisco da Costa...” (ATAS..., 1967,
p.16-17).

Escrever “os moradores” era um eufemismo para a escravaria que realmente


trabalhava, sendo assim, a referência aos escravos feita de forma indireta,
“amenizada”. Em outros momentos, quando trazidos à documentação, era patente
uma visão funcional destes escravos, chamados inclusive de “peças”, principalmente
quando se devesse explicitar as especificações de qual e quanta mão de obra seria
enviada para o trabalho, como mostra este caso de 1575:

“...e logo na dita câmara mandaram os ditos oficiais fosse apregoado que
toda a pessoa moradora desta vila mandasse à ponte de amanhã a oito
dias para se fazer por razão de estarem agora as águas muito vazias e que
toda pessoa que tiver de seis peças para cima mandarão dois escravos
machos daí para baixo mandará um...” (ATAS..., 1967, p.71-72).

Por outro lado, são absolutamente indispensáveis quando a terra estava passando
por necessidades. Interessante que na situação em que os moradores enfrentavam
dificuldades de produção e/ou de defesa, é que o binômio catolicismo e serviço ao rei
era evocado. É o caso de um requerimento de guerra feito em maio de 1564, no qual
dizem não poder se sustentar por falta de escravos, o que também inviabilizava a
existência da vila de São Paulo e os consequentes serviços ao rei de Portugal. Por outro
lado, evocam o esforço dos jesuítas em evangelizar os índios, trabalho que não poderia
ser perdido com o colapso da vila. Assim, o autóctone não era simples “outro”, mas um
sujeito em ascensão, que honrava os esforços da colonização:
319

“... e a perda que se pode recear assim da despovoação da dita vila como
pelo mosteiro de São Paulo dos padres da Companhia de Jesus que nela
está fazendo muito fruto às almas com sua doutrina e convertendo
muitos índios e fazendo-os cristãos como tem feito o que não poderá
deixar de ser...” (ATAS..., 1967, p.44).

Um fator importante para a percepção dos indígenas enquanto manobráveis são


os termos com que se pretendem declarar as guerras. O caso da guerra contra os carijós,
a partir de 1585, demonstra isso. Era necessário dar castigo aos carijós, ao mesmo tempo
que se necessitava de escravos, pois a terra outra vez estava em dificuldades:

“...agora não há morador que tão somente possa fazer roças para se
sustentar quanto mais fazer canaviais os quais deixam todos perder a
míngua de escravaria e a terra vai em tanta diminuição que já se não acha
mantimento a comprar o que nunca houve até agora e isto tudo causa de
os moradores não terem escravaria com que plantar e beneficiar suas
fazendas como soíam fazer pela qual razão requeremos ao senhor
capitão da parte de Deus e de sua majestade que sua mercê com a gente
desta capitania faça guerra campal aos índios nomeados
carijós...”(ATAS..., 1967, p. 275-276).

Fico com a impressão de que uma visão específica dos indígenas favorecesse uma
demanda deste tipo, pois se se tivesse carência de mão de obra, bastava adentrar o sertão
com alguma justificativa, a fim de se arrumar os braços necessários, mas de um jeito
particular: os braços dos rebeldes, daqueles que não desejavam subir na hierarquia
católica de mundo, os que desejavam permanecer enquanto selvagens e, negando sua
oportunidade de salvação e vida civilizada, poderiam ser reduzidos à escravidão pela sua
rebeldia. Do contrário, aos que desejassem deixar de ser “outros” para aquela sociedade
colonial, seriam muito bem vindos como católicos, trabalhadores e vassalos.

Elisa Frühauf Garcia se refere à doutrina de guerra justa como autorizadora da


escravização indígena, quando o assunto fosse a devida correção dos rebeldes e sua
submissão ao catolicismo e ao rei de Portugal (Garcia, 2014, p. 322-323). Nesse sentido, a
invocação da guerra justa poderia ser também uma artimanha quando se necessitasse de
mão de obra, o que é corroborado por Silva, para a vila de São Paulo, neste episódio contra
os carijós (Silva, 2009, p. 40-41). Assim, os indígenas iam sendo jogueteados na realidade
e no discurso, de acordo com interesses sociais, políticos e econômicos, a fim de serem
ocultados ou apreciados nas fontes, tratados como potenciais cristãos ou meros escravos,
peças.
320

Conclusão

Os indígenas poderiam ser vistos como “outro”, inimigo, rebelde quando se


recusavam a se cristianizar e fazer parte do corpo imperial luso. Justamente por isso, no
extremo da desigualdade, poderiam ser incorporados a este corpo como escravos, peças
para o trabalho. Também eram peças discursivas: explicitadas quando conveniente, mas
ocultadas no cotidiano. Contudo, se se comportassem de acordo com os desígnios dos
colonizadores, poderiam ter um tratamento diferenciado, de “mesmo” em ascensão,
sendo feitos vassalos do rei de Portugal, cristãos e fornecedores de mão de obra, o que,
localmente, servia muito bem a jesuítas e colonos. De uma forma ou de outra, era
impossível a colonização do planalto de Piratininga sem a exploração da mão de obra
indígena: os indígenas pagaram e pagam o altíssimo preço da colonização, na maioria das
vezes, com suas próprias vidas.

Referências

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Colonial Encounter. London: Ithaca Press, 1973, pp. 103-118.

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Silva, M.B.N., (org.) [et al.]. História de São Paulo Colonial. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
322

Repressão aos olhos da comunidade acadêmica: atuação da


Assessoria Especial de Informação na UFBA (1969 – 1974)

Anne Alves da Silveira4*

Resumo: Este paper tem como proposta discutir como a comunidade acadêmica da Universidade
Federal da Bahia - UFBA percebeu os atos repressivos ocorridos durante o período ditatorial logo
após ao Ato institucional nº 5 e a criação das Assessorias de Segurança e Informações - AESI/ASI
dando ênfase aos acontecimentos que impactaram diretamente o espaço universitário, entre os anos
de 1969 até 1974. Instaladas na década de 1970, essas Assessorias estavam vinculadas ao Serviço
Nacional de Informação - SNI, órgão criado em 1964, pouco tempo depois do golpe. A sua
implantação se deu em instituições públicas - como as Universidades Federais - e seu objetivo era
evitar a proliferação de ações vistas pelo Estado como “subversivas”. O controle desses espaços se
dava por meio da vigilância cotidiana e do diálogo com os demais órgãos de informações criados
pela ditadura, a exemplo dos serviços de informação das Forças Armadas e os próprios aparelhos
de informações do SNI. Essas agências partiam da premissa de que muitos que participavam de
atos “subversivos” estavam sendo induzidos por “infiltrados”. Dessa forma, era necessário evitar
que os “agitadores” promovessem “atos subversivos” e que eles conseguissem a adesão dos demais
setores. Caso o evento ocorresse, era imprescindível identificar quais eram os “subversivos
infiltrados” e puni-los. Desta forma, apesar da vigilância não ocorrer de forma explicita para a
sociedade, os atos repressivos foram sentidos pela comunidade acadêmica de inúmeras formas,
como as demissões, jubilamento, cancelamento de matrícula, perda de bolsas e estágio ou até
mesmo os desaparecimentos e prisão de colegas. A lógica dessa vigilância era rastrear os
“agitadores”, proibir atos políticos e, eventualmente, punir os responsáveis. Mas como a
comunidade acadêmica observou os atos repressivos? A exposição apresentará algumas respostas
provisórias para essa interrogação.

Palavras-Chave: Assessoria de Segurança e Informação, vigilância, comunidade acadêmica.

Introdução

A ascensão do regime militar no Brasil ocasionou diversas ações de caráter repressivo


contra todos “visto pelo Estado como subversivo”. Dentro dessa perspectiva, as universidades não
foram imunes, as ações arbitrárias do Estado atingiram a todos que integravam a comunidade
acadêmica, desde professores, funcionários até os estudantes, por meio da convocação para
inquérito, prisões, expurgos, recusa de matrículas, além das diversas intervenções, operações e leis
que tinha como objetivo conter os avanços “subversivos” dentro das instituições de ensino. Como
a implantação da Operação Limpeza (1964), Inquéritos Policiais Militares - IPM’s (1964 e 1969) ou

*
Mestre em história pela Universidade Federal da Bahia, orientada por Mauricio Brito. Contato:
anne_1526@hotmail.com. Esse artigo é parte da pesquisa realizada durante o mestrado.
323

até mesmo na Lei Federal nº 4.464/64 – mais conhecida como Lei Suplicy. Os atos repressivos nas
instituições universitárias estimularam os estudantes a promover vários atos de contestação.

Comungando das mesmas aflições, muitos setores sociais também começaram a demostrar
por meio de atos públicos. Dentre esses setores, se encontram, além dos estudantes, os artistas, os
operários e os políticos - organizado por uma Frente Ampla. Esses movimentos, em sua maioria,
possuíam o apoio de alguns deputados do MDB. Com intuito de conter as mobilizações vistos pelo
Estado como “subversivos”, o governo fez uso da força repressiva, que ao longo dos anos
passavam por um processo de (re)estruturação. É neste contexto de comoção social, que é
promulgado o Ato Institucional nº 5. Após o AI-5 diversas outras medidas foram tomadas com
intuito de conter a mobilização social, como a organização do aparelho repressivo.

A década de 1970 tornou-se o marco da sistematização da estrutura repressiva sob comando


do presidente Emilio Garrastazu Médici. Aproveitando os aparelhos já existentes, Médici cria o
Sistema de Segurança Interna - SISSEGIN, sem perder sua vinculação com as Forças Armadas.
Seguindo a mesma orientação foi criado o Sistema Nacional de Informação - SISNI, que se tornaria
responsável pelas operações do serviço de inteligência e estratégias psicossociais. A mudança mais
significativa ocorre na inclusão do poder de veto ao serviço de inteligência. Desta forma, a partir
desse poder era possível vetar “nomeações de qualquer escalão nos ministérios, como [estendia]
suas atribuições a toda a área de responsabilidade ministerial”. (Alves, 1989, p. 173).

Por meio desse sistema as informações produzidas pelos diversos órgãos passaram ter
maior circulação. Apesar da ampliação da comunicação dentre esses órgãos, não é possível afirmar
que a reciprocidade fosse de fato verdadeira. Em primeiro lugar, o órgão central – Serviço Nacional
de Informação - não era obrigado a repassar as informações obtidas, apesar de seus subordinados
serem obrigados a repassar todas as informações adquirida a agência central. A segunda questão,
se dá partir da relação, muitas vezes conflituosas, dos órgãos subordinados ao SNI, que poderiam
reter informações, mesmo que ela fosse importante para outros aparelhos. A ampliação desses
conflitos dar-se principalmente “quando os Centros de Informações passaram a construir núcleo
de poder político” (Alves, 1989, p. 173). Contudo, não iremos estender essa discussão, devido a
sua complexidade, e por não ser o objetivo deste trabalho. Apesar das diversas núncias, a
comunicação existente entre o sistema de segurança e informação favoreceu as articulações de
controle e repressão em diversos espaços social. É nesse contexto que são criadas as Assessorias
Especial de Segurança e Informação - AESI, sendo conhecida posteriormente apenas por
Assessoria de Segurança e Informação - ASI.
324

As assessorias eram subordinadas as Divisões de Segurança e Informação (DNI), e tinham


como objetivo coletar os dados da comunidade acadêmica, e assim auxiliar o reitor quanto as
tomadas de decisões. Para exercer essa função, a assessoria dialogava não apenas com a DSI, como
também a Polícia Federal, os órgãos de inteligência do Exército, Aeronáutica, Marinha e outros.
Para melhor compreender essa estrutura segue abaixo dois organogramas117.

1º Organograma do SISSEGIN - Sistema de Segurança Interna

117Realizado por meio de pesquisa bibliográfica e fontes: Alves, 1989; Fico, 2001; Motta, 2014; Brasil. Comissão
Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. –Brasília: CNV, 2014; Arquivo
da ditadura, Estudos Baiano/UFBA. Informação nº 0933/DSI/MEC/78. Cx. 2, RP. 398; ofício circular nº
266/21/conf./ASV/SNI/73. Cx. 11, RP. 3831; Ofício circular nº 02/SI/DSI/71. Cx. 1, RP. 569.
325

2º Organograma do SISNI – Sistema Nacional de Informação

A partir desse organograma é possível observar que o SISSEGIN, correspondiam aos


serviços operacionais, enquanto o SISNI, centrava-se aos serviços de informação. Compreendendo
que as atividades prestadas pelos “serviços de inteligências são mais amplas do que a espionagem,
e são mais restritas do que o provimento de informações em geral sobre qualquer tema relevante
para a decisão governamental” (Cepik, 2003, p. 28). É possível afirmar que ambos os sistemas
também assumiam atividade de inteligência. Contudo, para este trabalho, nem todas as formas de
obtenção de informação exercidas por esses órgãos será compreendida enquanto função do serviço
de inteligência. Isso porque, compreendemos como atividades de inteligência as operações
realizadas através da coleta, análise, organização da informação e tem como característica o sigilo.

Dentro dessa concepção, as atividades prestadas por infiltrados/espiões, coletas de dados


por meio de escutas, ou a partir de solicitação sigilosa ou confidencial de informação à
representante de alguma instituição se enquadram ao perfil das atividades de inteligência.
Importante sinalizar que não era comum o uso de espiões pelos órgão de inteligência vinculado ao
SISNI, normalmente os agentes que prestavam esses serviços pertenciam aos órgãos do
SISSEGIN, e poderiam repassar as informações coletadas as demais agências. As atividades
operacionais/repressão estavam restritas aos agentes pertencentes aos órgãos de segurança. Eram
326

eles que abriam os inquéritos, realizavam prisões, torturas e assassinatos. Assim, seus atos
compuseram o imaginário de muitos os perseguidos pela ditadura.

A institucionalização do medo nas universidades

A partir do Ato Institucional nº 5 o presidente passou a ter poderes ilimitados, podendo,


portanto, fechar o Congresso, cassar mandatos, decretar estado de sítio e suspender as garantias
dos habeas corpus aos crimes políticos. Incluindo aos atos mencionados, também foram promulgados
decretos que serviram como instrumentos de repressão como o Decreto 477/69 que criava normas
punitivas a atos “subversivos” ocorridos no âmbito universitários cometidos por professores,
funcionários e estudantes. Durante esse período foram organizadas diversas busca e apreensão,
principalmente aos líderes dos movimentos socais, além das ações de extermínio aos grupos
guerrilheiros (urbanos e rural). Esses atos duraram até 1974, ano em que ocorre o fim do mandato
do presidente Médici e o início da presidência de Ernesto Geisel.

Os primeiros anos da década de 1970 foi marcado pela disseminação da “cultura do medo”,
principalmente porque, com a suspensão dos direitos dos habeas corpus a tortura foi
institucionalizada como instrumento para obtenção de informações. Assim, muitos militantes de
esquerdas se sentiram obrigados a entrar na clandestinidade. Dentro dessa perspectiva, os atos
repressivos que mais amedrontavam os militantes opositores ao Estado eram orquestrados pelo
SISSEGIN, por executar as perseguições de forma mais direta. Eles que abriam os inquéritos,
sequestravam, prendiam, torturavam, e foram em suas celas ou em suas operações que muitos
militantes de oposição morreram. Para o ex-estudante do curso de física da Universidade Federal
da Bahia, atualmente professor Dr. Da mesma instituição, Olival Freire Jr, diz que “a prisão naquele
contexto significava necessariamente a tortura e o risco de morte”118. Sendo porquanto, a
clandestinidade uma opção aceitável para a sobrevivência.

Muitos membros da comunidade acadêmica que tivessem posicionamento claro em


oposição ao governo autoritário desapareceram repentinamente depois ampliação da repressão.
Em entrevista o professor aposentado Antônio Carlos Laranjeira da Escola Politécnica da
Universidade Federal da Bahia relembrou o desaparecimento de dois professores da Escola depois
do AI-5, Walmor Barreto, que ensinava Geologia, e o professor Aristides Barretto Neto que
ensinava Portos.

118
Freire Jr, Olival. [nov. 2017]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o desenvolvimento
da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 29 de novembro de 2017, às 16h00.
327

Além das perdas dos cérebros tais ações promoveram mudanças no comportamento dos
movimentos estudantis existente até 1968. Antônio Carlos Laranjeiras relatou que o AI-5
promoveu grande mudanças no comportamento estudantil. Isso porque, no imediato AI-5 “todo
movimento era de natureza marginal”119. Aos que deram continuidade aos movimentos tiveram
que lidar com as novas configurações e assim recriar novas estratégias de sobrevivência e/ou de
luta.

Importante pontuar que além dos atos explícitos, o SISSEGIN se valia também dos
serviços de inteligência por meio, muitas vezes, das atividades prestadas pelos infiltrados. Os
infiltrados, normalmente, recebiam treinamentos para se integrar aos espaços designados como se
fossem civis, fato que dificultava a sua identificação. Normalmente os infiltrados eram agentes da
Polícia Federal, ou do Dops ou vinculado a algum dos serviços de Inteligências das Forças
Armadas. Além dos agentes treinados, existiam os entusiastas do governo e os indivíduos que por
motivações diversas, poderiam realizar denúncias de seus colegas. Portanto, qualquer um na
universidade poderia ser um delator ou um agente. A impressão de estar sendo vigiado tornou-se
mais perceptível quando foram ampliados os atos de censuras, as punições e as prisões de alguns
membros da comunidade acadêmica. A sensação da vigilância promoveu o medo em expressar suas
opiniões de forma aberta principalmente nos primeiros anos da década de 1970.

De acordo com a professora Iracy Picanço, em entrevista realizada no ano de 2017, naquela
época havia o terro da informação, “Você tinha medo de tudo que pudesse fazer, dizer, falar. Você
estava num debate expressado uma opinião e depois [sua] [opinião] poderia ser passado por um
informante”.120 Fato que intensificava o medo, podendo ocasionar a autocensura. Recordando esse
período, a professora Alda Pepe, mesmo sem ter provas, afirma que “todo mundo soube ou
suspeitava”121 sobre a presença de informantes dentro da universidade. Isso porque, segundo a sua
percepção, ou você exercia a função de espiões ou era espionado.

O medo da vigilância gerou mudanças no comportamento de muitos, independente se


fossem professores, estudantes, funcionários, se possuíssem vínculos com partidos de esquerda ou
se apenas discordassem dos contornos autoritários desenvolvidos pelo regime. Contudo, a
sensação de medo não fez com que todos compreendessem, na época, a extensão do aparelho
repressivo. Essa compreensão foi obtida após à análise dos ofícios confidenciais, das publicações

119
Laranjeiras, Antônio Carlos Reis. [mai. 2018]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 03 de maio de 2018, às 17:h00.
120
Picanço, Iracy Silva. [nov. 2017]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 13 de novembro de 2017, às 14h00.
121
Pepe, Alda Muniz. [nov. 2017]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 20 de novembro de 2017, às 15h00
328

estudantis, disponíveis e das respostas fornecidas pelos entrevistados, em respeito à atuação da


Assessoria Especial de Segurança e Informação na UFBA e de outros aparelhos de repressão. O
que ficou claro é que o conhecimento sobre a AESI varia conforme o tempo e o cargo ocupado,
bem como, a atuação dos diversos órgãos que se relacionavam a assessoria.

O desconhecimento sobre a atuação dos serviços de informação fazia parte da estrutura do


SISNI, pois auxiliava no processo de coleta de dados para investigação. A partir das informações
era possível exercer pressão aos dirigentes universitários e punir os “subversivos/desviantes”, sem
que a comunidade acadêmica soubesse de onde surgiu a ordem. Por meio desse sistema muitos
estudantes, professores e funcionários sofreram vários atos punitivos dentro do espaço acadêmico.

À exemplo disso podemos lembrar as punições aplicadas aos estudantes que foram ao
congresso de Ibiúna/SP, em que, conforme o relato do professor Dr. Roberto Argollo do Instituto
de Física à Comissão Milton Santos de Memória e Verdade da UFBA,122 muitos estudantes tiveram
sua matrícula cancelada por recomendações externa à universidade. A suspensão do contrato de
Arno Brichta, professor Dr. do Instituto de Física, ocorrida logo depois a sua prisão em 1973.
Outros atos repressivos foram solicitados pelos órgãos de repressão aos dirigentes da Universidade.
Houve casos em que as orientações não foram cumpridas, ou foram parcialmente cumpridas ou
que as punições foram alteradas, muitas vezes por considerá-las agressivas demais com relação a
falta cometida.

Aos olhos da comunidade acadêmica nem sempre estava claro quem realmente solicitava
as punições, já que, quem exercia o papel de carrasco pelos atos “subversivos” eram os dirigentes
da Universidade (reitor, diretor etc.), ou os policiais caso o ato não fosse da tutela da instituição de
ensino superior ou com autorização do reitor. Desta forma, a atuação do serviço de informação
mantinha-se sob sigilo, pelo menos para uma parcela da comunidade acadêmica, por um longo
tempo. Como é possível perceber na declaração de Olival Freire Jr.

nós sabíamos que tinha um aparato repressivo dentro da Universidade, porque


nós recebíamos as notícias. Do tipo [...] apresentação de tal peça de teatro.
Censurado! Não pode! [...] Coisa desse tipo [...] invadia a sede do DA: aí era a
polícia, não era a AESI. Então como a AESI lidava com esse controle dentro da
universidade? Eu lhe dou um exemplo: eu perdi minha monitoria no final de
[19]75 por causa da greve que nós lideramos. [...] O reitor da época assinou a
minha suspensão, durou 30 dias. Hoje eu sei que a AESI estava por trás disso [...]
depois da Comissão da Verdade, que investigou esses documentos. Mas na
época, pra mim era o reitor [Augusto Mascarenhas] que a gente não gostava, um
reitor completamente apático [...]. Então a face visível que nos chegava da

122Argolo, Roberto Max. [fev. 2014]. Entrevistador: Olival Freire Junior. Comissão Milton Santos de Memória e
Verdade da UFBA. Salvador/BA, 18 de fevereiro de 2014. Disponível pelo site:
https://www.youtube.com/watch?v=AFznK6ThOH8&t=603s. Acesso em: 14 mar. 2018.
329

repressão era que Mascarenhas era adversário. O Diretor do Instituto de Física


Humberto Tanure era um aliado, porque ele estava sempre nos alertando […].
"calma, não se metam em confusão", "a temperatura tá quente", esses tipos de
coisas.123

O diretor Humberto Tanure não foi o único que a partir de suas possibilidades auxiliou não
apenas os estudantes, mas outros colegas. O clima de terror favoreceu a construção de estereótipos
que serviram para classificar os indivíduos em dois núcleos inimigo vs aliado. Os aliados eram
aqueles que faziam “vistas grossas” sobre as mobilizações estudantis, ou apoiavam as causas contra
o autoritarismo, ou que criavam estratégias para contratar pessoas que sofreram algum tipo de
punição do Estado, ou forneciam algumas informações que poderiam proteger certas pessoas, ou
até mesmo não realizavam as punições, ou as amenizavam. Os inimigos eram todos que tivessem
um comportamento “diferente” e fossem vistos de forma suspeita, ampliando ainda mais a tensão
no meio universitário. Segundo Valdélio Silva, ex aluno da UFBA e atual professor do
Departamento de Antropologia da UNEB, nem sempre era possível identificar os aliados, pois era
ariscado confiar nas pessoas, principalmente porque “havia agentes discretos e eficientes”, a gente
tinha essa desconfiança, mas a gente não sabia exatamente quem era, como atuavam, se eram de
órgão da própria universidade ou se eram de órgãos [...] do Governo Federal infiltrados dentro da
universidade, a gente imaginava que havia. [...] e a gente generalizava também, [...] os órgãos de
repressão. Então a gente se referia sempre a aqueles órgãos que tinham maior capacidade [...] de
ação de infiltração, [no caso] o SNI.124

Apesar do medo que pairava na universidade, promovido principalmente devido aos atos
repressivos aplicados pelos órgãos vinculados ao Sistema de Segurança Interna, como a introdução
de espiões, prisão, tortura e outros atos igualmente terríveis, não impediu que a comunidade
acadêmica da UFBA desenvolvesse estratégias de mobilização e laços de solidariedade.

A construção da noção do laço de solidariedade na UFBA

Entrando na ilegalidade ainda em 1964 a UNE manteve-se na medida do possível


articulando junto ao Movimento Estudantil - ME. Assim, no instante em que foi promulgado o
Ato Institucional nº 5, o ME pretendia resistir e tinha esperança de que o “movimento pudesse ser
retomado, nos moldes do que fora antes” (Müller, 2010, p. 34). Seguindo esse raciocínio foi eleito

123 Freire Jr, Olival. [nov. 2017]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o desenvolvimento
da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 29 de novembro de 2017, às 16h00.
124
Silva, Valdélio Santos. [nov. 2017]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Entrevista concedida para o
desenvolvimento da dissertação de mestrado. Salvador/Ba, 24 de novembro de 2017, às 10h00.
330

nos primeiros meses de 1969 o novo presidente da UNE, “estudante de química da UFRJ Jean
Marc Von der Weid, vinculado à Ação Popular (AP)” (Müller, 2010, p. 32). Contudo, o contexto
não era mais o mesmo e a repressão haviam ampliado sua extensão, sendo, portanto, necessário
atualizar as estratégias de atuação. É nesse momento que a arte se tornou expressão das “questões
que tangenciavam a realidade brasileira,” (Müller, 2010, p. 71.).

Além dos eventos culturais, as publicações oficiais das entidades estudantis e as anônimas
foram outro importante instrumento de articulação e denuncia utilizado pelo ME. Foi através desse
mecanismo que conseguimos dados sobre o medo que os estudantes possuíam do Decreto 477/69.
Por meio da análise quantitativa é possível mensura o número de vezes que o 477 foi mencionado
nas publicações dos estudantes da UFBA. Das 66 publicações analisadas, 22 “apresentaram o 477
enquanto problema institucional para a comunidade acadêmica” (Silveira, 2019, p. 71). Os
estudantes compreendiam que o decreto limitava a mobilização estudantil, principalmente porque
causava intimidação devido ao caráter punitivo. Assim o ME compreendia o 477 como “uma
ameaça constante - não somente aos estudantes, pois atinge também os professores e funcionários
- que provoca a insegurança na universidade”.125

As publicações foram utilizadas como instrumento de mobilização contra o prova do ciclo


básico em 1971, também conhecido como provão. O provão foi uma avaliação criada a partir da
adaptação da Reforma Universitária – lei 5.540/68 - ao Regimento da UFBA, em que alterava a
forma do vestibular e do Primeiro Ciclo. Depois da aprovação no vestibular o aluno era submetido
ao final do 1º ou 2º ano letivo a uma segunda avaliação. A escolha do curso e permanência do
estudante na universidade dependia da aprovação no provão. A crítica dos estudantes se valia da
falta de clareza nos critérios de seleção, além de denunciarem os problemas relacionados a falta de
vaga no curso desejado, gerando muitos excedentes. O estopim do movimento foi o boicote a
prova, onde nenhum estudante da universidade compareceu para realizar a prova.

No calor da mobilização do boicote ao provão os estudantes iniciaram o processo de


reorganização. Fato que coincide com o processo de instalação da Assessoria Especial de Segurança
e Informação e a ampliação da vigilância da comunidade acadêmica. O processo de instalação da
AESI/UFBA havia iniciado em 1971 quando o reitor Roberto Santos recebe o ofício circular da
Divisão de Segurança e Informação - DSI informando sobre a necessidade de se criar uma
assessoria de informação, com base na portaria ministerial nº 10 BSB. 13 de janeiro de 1971,
publicada no Diário Oficial da União, aprovadas pelo ministro da Educação e Cultura Jarbas

125 Carta Aos Colegas. Arquivo da ditadura, Estudos Baianos/UFBA, Cx. 02, RP. 429.
331

Passarinhos e só se conclui no reitorado de Lafayete Pondé com a formação do corpo de


funcionários da assessoria no início de 1973.

Contudo, antes da AESI iniciar suas atividades muitos ofícios foram encaminhados ao
reitor com intuito de obter dados sobre a comunidade acadêmica. Como podemos observar nos
pedidos de informação sobre as publicações estudantes ainda em 1972. Foram encontradas
solicitações da Delegacia Regional do Departamento da Polícia Federal da Bahia, realizado em 11
de fevereiro de 1972, reencaminhado em maio de 1972127 e da Divisão de Segurança e Informação
de 17 de maio de 1972,128 ambos solicitavam dados sobre os responsáveis pelas publicações
estudantis. Entre 1972 e 1973 haviam registrado onze jornais referentes a dez entidades estudantis,
dentre as quais nove pertenciam aos Diretório Acadêmico - DA e dois ao Diretório Central dos
Estudantes - DCE. Importante deixar claro que a assessoria exercia a função de elo entre as
instancias interna e os órgãos de informações - OI externo à universidade, e por meio das
informações adequadas auxiliava o reitor nas tomadas de decisões. As publicações estudantis eram
vistas como um vetor mobilizador. Por isso, que os serviços de informação buscam por meio dessa
vigilância, identificar os responsáveis, descobrir quais são as pautas discutidas pelos estudantes e
proibir as publicações que abordassem temas considerados subversivos.

Como o serviço de informação deveria atuar em sigilo, o controle dessas publicações estava
nas mãos dos dirigentes, com o auxílio dos funcionários, e poderiam ser executadas também com
apoio de alguns professores. Eram, portanto, os membros da comunidade acadêmica que
realizavam o papel de vigilante. Estavam também sob a responsabilidade dos dirigentes recolher as
publicações clandestinas ou oficiais com conteúdo “subversivo” e encaminhar aos órgãos
responsáveis. Conforme os registros da AESI no final de 1973 havia oito publicações estudantis
registradas, ou seja, oficiais; nove clandestinas; e duas sem classificação. Junto as informações dos
jornais poderiam ser anexadas dados dos responsáveis pela produção e/ou divulgação dessas
publicações. Sob posse dessas informações a AESI, normalmente, reencaminhava para o reitor e
para DSI, e que recomendaria a punição. Dentre as punições, mais comuns para os estudantes
infratores era: a perda da bolsa, estágio, corte na residência e/ou no restaurante, suspensão ou
advertência. Em entrevista Olival Freire Jr. relembra do caso em que ele sofreu 30 dias de suspensão
por ter panfletado dentro da Faculdade de Arquitetura, o caso chegou a AESI, por meio da
denúncia realizada pela vice-diretora da Faculdade de Arquitetura.

127 Ofício 150/72-D/SOPS. Arquivo da ditadura, Estudos Baianos/UFBA, Cx. 11, RP 4451.
128 Pedido de busca nº 4639/SSI/DSI/MEC/73. Arquivo da ditadura, Estudos Baianos/UFBA, Cx. 11, RP. 3862
332

Apesar da denúncia sofrida, Olival Freire Jr. diz que tais atitudes não foi a regra na UFBA.
Para ele o que predominou foi uma “espécie de acomodação” ou “resistência passiva”, já que foram
poucos os casos de ações ostensivas contra o ME por parte dos dirigentes. A professora Dr. Yeda
Ferreira, endossa ao apresentar suas lembranças enquanto diretora do Instituto de Geociência. Ela
relembra que era comum a Assessoria enviar solicitações de punições aos subversivos.129
Entretanto, nem sempre essas punições eram aplicadas, fazia-se “vistas grossas” a certas
solicitações do serviço de repressão, principalmente quando não eram claras as suas motivações ou
quando as punições eram compreendidas como excessivas. Essas atitudes tomadas sem o
conhecimento da AESI.

Além do caso apresentado por Yeda Ferreira é possível trazer o caso vivido por Iracy
Picanço. A professora havia sido punida pelo Ato Institucional nº 1, o que a impedia de exercer o
cargo de professora em qualquer instituição no prazo de 10 anos. Durante esse período Iracy
Picanço assumiu cargos administrativos relacionado a área de educação. No início da década de
1970, ela foi contratada via CLT pela UFBA, no cargo de coordenadora do Programa de Pesquisa
da Pós-graduação da UFBA, a mesma só foi percebida pelos órgãos de informações em 1977, após
ter sido aprovada no concurso interno em 1976. Com intuito de informar ao reitor sobre o caráter
subversivo da atual servidora, a ASI encaminhou um ofício. Contudo, Iracy Picanço continuou
exercendo sua função na instituição, até 1981, ano em que passou no concurso para professora da
Faculdade de Educação.

Em entrevista a mesma relata além da sensação da vigilância constante, ela também recorda
da amizade que possuía com o professor Roberto Santos (reitor entre 1967 e 1971) e com o Dr.
Armênio Guimarães, pró-reitor de pesquisa. Assim é possível acreditar que essas amizades podem
ter gerado laços de proteção no espaço institucional.

Outro caso também pertinente recordar foi o auxílio prestado pelo chefe da Assessoria
Emerson Spínola, após tomar conhecimento da prisão do professor Arno Brichta, entrou em
contato com o ministro da Educação, Jarbas Passarinho, intervindo para que não o levassem à
prisão de São Paulo. Outro fato também vivenciado por Brichta, foi a recontratação no cargo de
pesquisador, junto ao professor Dr. Carlos Alberto Dias, após a suspensão de seu contrato, devido
a sua prisão. Contudo, a AESI tomou conhecimento da recontratação, e ameaçou cancelar o
projeto caso Brichta permanecesse. No intuito de ludibriar a vigilância foi acordado que seu
contrato seria como terceirizado da instituição, de modo que seu nome não constasse na folha de

129Ferreira, Yeda de Andrade. [jan. 2019]. Entrevistadora: Anne Alves da Silveira. Salvador/Ba, 25 de janeiro de 2019,
às 09h00.
333

pagamento. Desta forma, o professor Arno Brichta permaneceu trabalhando na UFBA até mudar-
se para Minas Gerais.

É importante deixar claro que mesmo que tenha existido casos em que os dirigentes tenham
feito uso de certos mecanismos para subverter as determinações das OIs, não é possível esquecer
que muitas ordens arbitrarias foram cumpridas. Bem como, não podemos negligenciar ou
minimizar a extensão da atuação dos serviços de repressão. Principalmente porque o próprio
sistema de coleta de informação, com a presença de agentes infiltrados, instalação de escuta e até
mesmo a presença dos delatores, independentemente de suas motivações, contribuíram para
alimentar o sistema de informação, pressionar os dirigentes e assim expandir a atuação do serviço
de informação. Todavia, o foco desse tópico é justamente apresentar os curtos momentos em que
existiram os laços de solidariedade, que também pode ser compreendida enquanto resistência
silenciosa. Laço de solidariedade para este trabalho é compreendido enquanto ações que visam
proteger, em algum grau, certos indivíduos, motivada por aspectos subjetivos, como: amizade,
parentescos, valores morais, afinidade política, e que necessariamente não exclui a existência de
conflito entre esses indivíduos. Tais atitudes protetivas são realizadas por indivíduos que ocupam
cargos de destaque ou recebiam apoio deles dentro da estrutura institucional.

Yeda Ferreira recorda que no Instituto de Geologia a inobediência as solicitações de


punições, consideradas excessivas, se davam quando o estudante era “da casa”. Os motivos dados
para justificar a proteção aos estudantes da “casa” era para garantir o sigilo do ato, pois era
necessário criar mecanismo para que tais atitudes não chegassem ao conhecimento da AESI. Esse
fato também pode ser compreendido por meio da análise realizada por Roberto DaMatta, no que
diz respeito a categoria “casa e rua”. Segundo a concepção de DaMatta (1997) essa categoria, dentro
da sociedade brasileira, se constitui por meio de um espaço moral, caracterizado por uma unidade
que pode variar conforme a existência de contraste que se complementam e se opões. Desta forma,
a categoria “casa” é compreendida enquanto espaço familiar, onde as relações pessoais são
relevantes. Já a rua é o espaço onde prevalece as relações impessoais. Nesses espaços a lei, a ordem
é priorizada. Contudo, não é possível compreender esses dois espaços como uma estrutura rígida,
sem mobilidade.

Assim, o espaço definido como o Instituto de Geociência, ou até mesmo a reitoria, podem
ter negado em determinados momentos as ordens imposta pelo serviço de informação, bem como,
pode ter dado vazão aos ordenamentos. Sendo ambos os casos motivados não apenas pela razão,
mas por questões subjetivas, pois nem sempre a razão explica os comportamentos dos indivíduos,
mesmo que esteja representante de uma instituição. Isso porque, nós seres humano somos dotados
334

de valores culturais, morais, sentimentos afetivos construídos a partir das diversas relações
(familiares, trabalho, escola e outros) que em certa medida influenciam em nossos atos e ações.
Fazendo uso da noção de cultura política apresentada por Motta (2013), em que ele traz conceitos
proposto e analisado por Oliveira Vianna e Raimundo Faoro. Compreendo que nossas instituições,
em especial a UFBA no período estudado, tem como característica comportamental de seus
membros o patrimonialismo e personalismo. Fato que podem justificar alguns comportamentos
que encontrado na UFBA.

Conclusão

Devido ao seu caráter sigiloso, não foram as atividades realizadas pelo serviço de
informação que mais promoveu medo entre os membros da comunidade acadêmica. Havia um
intenso medo de estar sendo vigiado e de ter suas opiniões e vida privada expostas. O medo não
se dava, necessariamente, pelo fato de que tais informações pudessem ser usadas pelo serviço de
informações, mas pelo risco de ser perseguido, ter sua casa invadida e vasculhada. Além disso havia-
se o temor de que seus atos pudessem prejudicar seus parentes, amigos e companheiros e
principalmente, tinha-se medo ser sequestrado, preso, torturado, e por fim assassinado.

O clima de medo era eminente, independente se soubesse ou não da extensão do aparelho


repressivo. Apesar da sua atuação silenciosa do serviço de informação não devemos minimizar seu
alcance. É impossível mensurar o impacto que os atos arbitrários promovidos pelos diversos
aparelhos repressivos do Estado na vida cotidiana de todas as suas vítimas. Por meio desse sistema
pessoas não foram contratadas outras demitidas, alguns perderam matrícula, estágio, auxílio, e
oportunidade de bolsa no exterior ou até mesmo no Brasil.

Apesar do terror promovido pelo Estado autoritário, podemos apresentar alguns


momentos em que é possível identificar laços de solidariedade, por meio das vistas grossas aos
movimentos estudantis, das negativas aos pedidos de punições, do silenciamento em respeito aos
avisos negativos das contratações ou até mesmo por meio das negociações e atos de resistências.
Não quero, portanto, dizer que tais momento tornaram a repressão mais branda. Apenas busquei
apresentar por meio desses eventos alguns traços que constitui a nossa cultura política, por acreditar
que não são apenas as normas e leis que movem as instituições. Sendo necessário incluir nessa
contagem os aspectos subjetivos que influenciam ou podem influenciar as tomadas de decisões dos
indivíduos que comanda a instituição.
335

Referências

Alves, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes 1989.

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso


eletrônico. –Brasília: CNV, 2014.

Cepik, Marco. Espionagem e democracia: agilidade e transparência como dilemas na


institucionalização de serviços de inteligência. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

DaMatta, Roberto. A casa & a rua: espaço: cidadania, mulher e morte no Brasil. Ed. Rocco, Rio de
Janeiro – 1997.

Fico, Carlos. Como eles agiam os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de
Janeiro: Record, 2001.

Motta, Rodrigo Patto Sá. Ruptura e continuidade na ditadura brasileira: a influência da cultura
política. In: Abreu, Luciano Aronne e Motta, Rodrigo Patto Sá. (Orgs.). Autoritarismo e cultura
política. Porto Alegre: FGV: Edipucrs, 2013.

Motta, Rodrigo Patto Sá. As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e
modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014;

Müller, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da
UNE à cena pública (1969-1979). 2010. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e do Centre d’Histoire Sociale du
XXème Siècle de l’Université de Paris 1 – Panthéon Sorbonne.

Silveira, Anne Alves. Sorria, você está sendo espionado: a atuação do serviço de informação na
Universidade Federal da Bahia (1972-1979). 2019. Dissertação (Mestrado em história Social) -
Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2019.
336

Entre a Bíblia e Rousseau - as referências intelectuais dos


primeiros periódicos brasileiros

Arthur Ferreira Reis*

Resumo: diante da explosão de periódicos surgidos a partir de 1821 no Brasil, consequência direta
da Revolução do Porto, esse trabalho visa analisar as referências intelectuais de quatro periódicos
publicados em 1821.

Palavras-chave: imprensa, intelectuais, independência, Primeiro Reinado.

A intensa circulação de impressos ocorrida a partir de 1821 foi causa e consequência do


alargamento dos espaços públicos no Brasil (Morel, 2006). Diante das novidades advindas da
Revolução do Porto, das modificações decorrentes do juramento da constituição e da disputa que
se colocaria em face das mudanças políticas que estavam ocorrendo, diversos personagens e grupos
políticos escolheram os periódicos como forma de influenciar e legitimar seus projetos políticos e
sociais perante a opinião pública (Neves, 2003).

Consequência desse momento, apenas em 1821 surgiram na América portuguesa pelo


menos treze periódicos130, sendo que quatro iniciaram e finalizaram sua circulação no mesmo ano.
Nosso objetivo nessa pesquisa é analisar os autores citados como referência por esses quatro
periódicos: Aurora Pernambucana, Amigo do Rei e da Nação, Conciliador do Reino Unido e O Bem da Ordem.

Esse objetivo parte do pressuposto que é importante compreender as matrizes intelectuais


dos periódicos. Ora, suas ideias não se formaram num limbo intelectual, mas foram resultados de
leituras, reflexões e vivências diversas. Disso resultou o interesse de melhor entender e conhecer
os autores utilizados como referências nos debates encetados nos periódicos. Ademais, o artigo
História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura de José Murilo de Carvalho (2000) nos serviu
de inspiração para a pesquisa131.

* Doutorando em História pela UFES. Bolsista Capes.


130
Amigo do Rei e da Nação, Aurora Pernambucana, Conciliador do Maranhão, Conciliador do Reino Unido, El
Pacífico, Malagueta, O Bem da Ordem, O Espelho, Relator Verdadeiro, Revérbero Constitucional Fluminense,
Sabatina Familiar, Segarrega e Semanário Cívico.
131
Importante destacar também o trabalho de João Paulo Pimenta sobre a importância de alguns autores como Raynal
e De Pradt para os impressos do período. (Pimenta, 2010)
337

A reunião dos dados apresentados foi feita a partir da leitura dos periódicos. Toda vez que
um autor era citado como referência, ele foi referenciado. As perguntas que nos guiaram nesse
trabalho foram duas: 1) quais as principais referências intelectuais dos jornalistas; 2) como eram
utilizados retoricamente por esses periodistas.

As novidades da Revolução do Porto

No período em que os jornais circularam o Brasil passava por intensas modificações. Em


1820 eclodira a Revolução do Porto, movimento que, a grosso modo, buscava dar uma constituição
ao Império Luso-brasileiro e exigia o retorno do Rei para Portugal (Neves, 2003).

As notícias sobre tal movimento chegaram no Brasil em fevereiro de 1821. Rapidamente as


elites locais se mobilizaram para aderir ao movimento, começando pelo Pará, Bahia, Pernambuco,
Rio de Janeiro e depois por todo o Brasil. Em Pernambuco, onde foi escrito o Aurora Pernambucana,
o presidente da província Luís do Rego, famoso por ter reprimido a Revolução Pernambucana de
1817, por pressão das elites locais e para impedir um movimento que o tirasse do poder, aderiu à
Revolução do Porto antes mesmo das ordens do Rio de Janeiro (Bernardes, 2006). Por influência
sua, seu genro Rodrigo Magalhães da Fonseca deu início à publicação da Aurora.

No Rio de Janeiro em um primeiro momento houve incerteza por parte do governo de


como agir diante das novidades. Todavia, um movimento constitucionalista irrompeu na Corte e,
sob pressão da tropa e do povo, Pedro levou as demandas dos populares para o seu pai D. João
VI, que jurou as bases da constituição e permitiu a reunião das Cortes em Lisboa (Oliveira, 1999).
Ademais, junto com isso, em fins de fevereiro foi abolida a censura prévia em todo o Império,
abrindo a possibilidade para a impressão de periódicos e outros impressos sem a necessidade de
passarem antes pelo censor. Impulsionados por esse novo momento teriam surgido no início de
março o Amigo do Rei e da Nação, Conciliador do Reino Unido e O Bem da Ordem.

As referências intelectuais

Vamos iniciar pela Aurora Pernambucana, publicada no início de 1821 por Rodrigo da
Fonseca Magalhães. Seu redator, genro de Luís do Rego, deixou bem claro já no início do periódico
o caráter oficioso do mesmo. Nos chegou três números do periódico: o número 1, o número 7 e o
número 9, resultando em um total de 11 páginas. Nessas onze páginas conseguimos localizar apenas
três citações: Camões como prefácio, François de la Rochefoucauld e Giovani Battista Casti.
338

Autor Local de nascimento Referência

Camões Império Lusitano Prefácio

La Rochfoucauld Francês n.7

Giovani Battista Casti Italiano n.7

Rochefoucauld e Casti foram utilizados como argumentos de autoridade. O primeiro, um


nobre e moralista francês do século XVII foi utilizado em uma discussão sobre as revoluções
liberais que ocorriam na Europa no período em um trecho de um poema: “A fraqueza é mais
oposta a virtude, que o vício" ao comentar sobre a debilidade do Rei de Nápoles perante os liberais.
Já Casti, um poeta político italiano do século XVIII foi usado para criticar as atitudes da Santa
Aliança perante as revoluções liberais.

O primeiro periódico fluminense analisado foi o Amigo do Rei e da Nação o qual só temos
um número. Escrito pelo coimbrão e funcionário público Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, esse
como os outros analisados do Rio de Janeiro, tinham uma postura áulica. Começamos por esse por
ser o que menos informações e citações temos, apenas o prefácio do poeta humanista português
Antônio Ferreira Castro. Porém esse prefácio é interessante e nos revela a posição política do
periódico:

Quantas vezes o mal causa bens grandes!


Amor, e lealdade esta ousadia
Me dão: dá-me a Razão, que tem tal força,
Que ainda que se não siga, não se nega.

Destaque principalmente para a primeira frase, provavelmente uma referência à Revolução


do Porto, consequência de anos de Antigo Regime, porém anunciadora dos novos tempos
constitucionais.

Esses dois primeiros nos deram poucas referências, seja escassez de edições que nos
chegou, seja porque seus autores realmente não utilizavam com constância argumentos de
autoridade. Ao passar para os outros dois jornais escritos no Rio de Janeiro, todavia, isso muda.
339

Comecemos pelo Bem da Ordem, escrito pelo padre e também Coimbrão Francisco Vieira
Goulart. Desse periódico nos chegou 8 edições que resultaram um total de setenta e quatro páginas.
Nessas, conseguimos localizar treze citações além do prefácio.

A começar pelo prefácio, um trecho em latim de Virgílio. Isso nos informa um caráter mais
“elitista” do periódico, já que dificilmente uma pessoa sem ensino superior saberia ler em latim
nesse período. As outras citações ficaram assim divididas:

Autor Local de nascimento Referência


Sylvestre François Lacroix França n.1
Bernardin de Saint-Pierre França n.4
Charles Ganilh França n.8
Jacques Philippe Augustin Douchet França n.9

Beauzée França n.9


Aristoteles Grécia n.5
Camões Império Lusitano n.1
Antônio Moraes da Silva Império Lusitano n.9
John Penn Reino Unido n.3
William Blackstone Reino Unido n.5
Jeremy Bentham Reino Unido n.8
Virgilio Roma n.9
Quintiliano Roma n.9

Dos treze autores, cinco são franceses, três da antiguidade clássica, dois do Império
Lusitano e 3 da Inglaterra. Interessante notar que com exceção de John Penn, que foi referenciado
em um contrato celebrado entre governantes e governados para se defender a importância dos
costumes na constituição, todos os outros foram utilizados como argumento de autoridade.
Ademais, a grande maioria dos autores não fizeram parte do movimento iluminista político francês,
o que é esperado nos periódicos do processo de independência segundo uma parte historiografia
(Holanda, 1970). Existe também uma flagrante ausência de autores que seriam muito utilizados por
outros periódicos, como Rousseau, Montesquieu, Constant e Locke (Morel, 2006).

Mas por que essa ausência? Isso pode ter ocorrido pelo caráter mais áulico do redator como
também pelas discussões encetadas pelo mesmo. Como podemos ver no quadro, as citações eram
utilizadas em assuntos variados, como discussão sobre formas de escrita, mas quando utilizados
em debates políticos, eram feitos de forma muito moderada, o que não combinava com os autores
340

acima citados. Ademais, no momento em que foi redigido as discussões políticas nos periódicos
ainda não estavam tão quentes como em fins de 1821 para frente e a posição áulica do redator não
parece permitir a utilização de tais autores, até então vistos como “radicais”, principalmente no
caso de Rousseau e Locke. Por fim, de forma quantitativa temos uma média de uma citação a cada
5.7 páginas, uma média razoável para os periódicos do período.

O último jornal aqui analisado é o Conciliador do Reino Unido. Publicado pelo talvez maior
intelectual do Primeiro Reinado, o coimbrão e funcionário público José da Silva Lisboa. O
periódico nos trouxe informações muito interessantes sobre a matriz referencial desse personagem.
Sua importância se torna elementar principalmente pelo fato de ele ter sido o redator mais prolixo
do Primeiro Reinado, além de ter sido figura constante nos palácios e o principal bastião de defesa
de D. Pedro I no mundo impresso.

Conseguimos localizar sete edições do periódico, que contabilizam sessenta e seis páginas.
Nessas sessenta e seis páginas conseguimos localizar 34 citações além do prefácio, uma média uma
citação a cada duas páginas. Esse periódico só perde em média até agora para o Sabatina Familiar,
também redigita por Silva Lisboa. Sendo que ambos estão muito distantes dos outros periódicos.

As referências podem ser observadas no quadro a seguir:


Autor Local de nascimento Referência
Bernardin De Saint-Pierre França n.2
Bíblia n.2
Camões Império Lusitano n.2
História Genealógica da Casa Real n.2
João de Barros Reino Unido n.2

João de Barros Reino Unido n.2

John Adams Estados Unidos n.2

Robert Southey Reino Unido n.2


Tácito Roma n.2
Jean-Antoine Chaptal França n.3
Dirk van Hogendorp Holanda n.3
Dominique Dufour de Pradt França n.3
George Wilhelm Freyreiss Alemanha n.3
Friedrich Sellow Alemanha n.3
341

Georg Heinrich von Langsdorff Alemanha n.3


Maxilimilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied Alemanha n.3

Robert Southey Reino Unido n.3


Bíblia n.4
Frei Luiz de Sousa Império Lusitano n.4

Autor Local de nascimento Referência

Francis Bacon Reino Unido n.5

Edmund Burke Reino Unido n.5

Demostenes Grécia n.5

Jean Jacques Rousseau Genebra n.5

Tácito Roma n.5

Tito Livio Roma n.5

Friedrich von Gentz Alemanha n.5

Bíblia n.6

Camões Império Lusitano n.6

Friedrich von Gentz Alemanha n.6

Francis Bacon Reino Unido n.7

Fisher Ames Estados Unidos n.7

David Hume Reino Unido n.7

John Locke Reino Unido n.7

Isaac Newton Reino Unido n.7

Emmanuel Joseph Sieyés França n.7

Vendo as citações, elas se dividiram entre 27 autores: cinco da região da Alemanha; dois
dos Estados Unidos; quatro da França; um de Genebra, um da Holanda, três do Império Lusitano;
seis do Reino Unido e três do período clássico. Também identificamos a bíblia e a História
Genealógica da Casa Real, sem indicação do autor.

Sobre esses dados vemos que o país mais representado é a Inglaterra. Essa é uma
característica singular dos escritos de Silva Lisboa. Amante da organização política e dos filósofos
342

ingleses, ele foi o primeiro tradutor de Adam Smith, que não aparece nesse periódico, e admirador
declarado de autores como Burke, Hume e Southey. No seu periódico também aparece John Locke,
usado como exemplo de grande gênio do seu tempo. Burke, por sua vez, foi usado como principal
referência em uma discussão sobre os limites da liberdade.

Dentre os autores da região que hoje é a Alemanha, eles são utilizados principalmente como
argumento de autoridade para destacar a riqueza natural do Brasil. Em determinado momento o
autor iniciou uma discussão sobre as riquezas naturais e a imensidão do Brasil, e utilizou uma série
de viajantes alemães para reforçar suas afirmações.

Os autores franceses foram resgatados como referências históricas e para elogiar o Brasil e
D. João. A única exceção foi Sieyes, lembrado como um dos “arquitetos das ruinas da França”.

Fisher Ames, político norte-americano foi referenciado utilizado em uma discussão sobre
a necessidade de se limitar a liberdade de imprensa. Frisamos que Lisboa trabalhava como censor
e permaneceu defendendo a censura prévia mesmo após a Revolução do Porto. Já Rousseau, autor
malvisto pelos áulicos como Lisboa, foi citado em um momento em que o redator criticava a
Revolução Francesa e dizia que os revolucionários seguiam os pensamentos de Rousseau, ele
mesmo não tão radical quanto eles.

Para concluir o caso do Conciliador, destaco as três vezes que a bíblia foi citada. Em um
momento de intensa modificação política a bíblia apareceu de forma regular nos periódicos, não
constante, mas também não era uma ausência completa, o que nos leva a questionar até que ponto
o secularismo liberal e iluminista abrangeu esses periódicos e também a sociedade imperial. No
caso do Conciliador, ela foi utilizada como forma de engrandecimento da família real e pregação
para mudanças moderadas e não radicais.

Notas de conclusão

Com essas informações, o que podemos retirar delas? Quais as respostas provisórias e
frágeis às nossas perguntas iniciais? Bem, para a primeira pergunta, sobre as principais referências
intelectuais dos jornalistas, percebemos ser uma gama variedade de autores. Se no caso dos dois
primeiros jornais temos poucas informações, no caso do Bem da Ordem e Conciliador vemos que
autores de diferentes regiões eram resgatados pelos redatores. No caso de ambos, eram autores não
diretamente ligados ao iluminismo francês e de teor mais conservador. Para a segunda pergunta,
sobre a forma de utilização dessas referências, percebemos que grande parte é como argumento de
343

autoridade, existindo também aquelas de fonte de informação, principalmente no caso das


discussões históricas e gramaticais.

Por fim, destacamos a noção de circulação de ideias. Praticamente todos os autores citados
são da Europa, como esperado, reforçando a hipótese já muito discutida da leitura que os
periodistas do processo de independência fizeram desses homens (Granja; Luca, 2018). Seria
importante avançar no tema e buscar compreender a recepção desses autores nesses periódicos,
um espaço aberto para futuras pesquisas.

Referências

Bernardes, Denis Antônio de Mendonça. Patriotismo Constitucional: Pernambuco (1820-1822).


Recife: Editora Universitária UFPE, 2006.

Carvalho, José Murilo De. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi
(Rio de Janeiro), v. 1, n. 1, p. 123–152, 2000.

Granja, Lúcia; Luca, Tânia de. Suportes e Mediadores: a circulação transatlântica dos impressos
(1789-1914). Campinas: Editora da UNICAMP, 2018.

Holanda, Sérgio Buarque De. História Geral da Civilização Brasileira - O Brasil Monárquico. São
Paulo: DIFEL, 1970.

Morel, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na
cidade imperial, 1820-1840. São Paulo: HUCITEC, 2006.

Neves, Lúcia Bastos Pereira Das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência
(1820-1822). Rio de Janeiro: REVAN, 2003.

Oliveira, Cecília Helena Lorenzini de Salles. A astúcia liberal. Bragança Paulista: EDUSF; Ícone,
1999.

Pimenta, João Paulo Garrido. De Raynal a De Pradt: apontamentos para um estudo da idéia de
emancipação da América e sua leitura no Brasil. Almanack Braziliense, v. 0, n. 11, p. 88, 2010.
344

A produção do intelectual da educação e a publicação do livro


Escolas da Comunidade de Felipe Tiago Gomes

Arthur Rodrigues de Lima*

Resumo: o presente trabalho pretende discutir a partir do campo da História dos Intelectuais da
Educação, como a publicação do livro Escolas da Comunidade, de autoria de Felipe Tiago Gomes,
pela editora CNEC Edições, da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade - CNEC, no ano
de 1989, integrou um movimento de produção de discursos ligados a composição de uma memória
composta sobre a história da entidade e a vida de seu fundador enquanto homem instituição
(Portes, 2009). Criada no Recife em 1943, por Felipe Tiago Gomes e um grupo de estudantes da
Faculdade de Direito do Recife, enquanto uma iniciativa que visava a partir da criação de ginásios
mantidos pelas próprias comunidades com o auxílio do poder público favorecer o acesso à
educação principalmente nas regiões interioranas do país, foram produzidas narrativas laudatórias
e apologéticas ligadas a trajetória de vida de seu fundador e o processo de criação e expansão da
instituição. Esses postulados são colocados em circulação no livro escrito pelo fundador, onde em
uma estratégia de arquivamento do eu (Artières, 1998) busca atrelar sua trajetória de vida e escolhas
pessoais ao desenvolvimento da rede de escolas. Deste modo, este trabalho problematiza o livro
enquanto um egodocumento (Viñao, 2000), relacionado a produção de imagens e representações
de si, nas quais Felipe Tiago Gomes buscou formatar dadas imagens sobre si e as relações por ele
estabelecidas no cerne da Rede, visando alçar o lugar de exemplo e testemunho a ser seguido por
todas as comunidades escolares que integravam a Campanha. Não se objetiva identificar as
recepções dos discursos elaborados, mas problematizar as subjetividades desejadas a serem
instauradas na leitura e discussão de tal texto nas escolas pertencentes a Rede. Partindo da análise
documental, pretende-se analisar os discursos e narrativas presentes na obra enquanto um
movimento de monumentalização da figura de Felipe Tiago Gomes.

Palavras-Chaves: CNEC, Felipe Tiago Gomes, História dos intelectuais.

A História dos Intelectuais da Educação

A História da Educação permaneceu até o final da década de 1980 como um campo de


investigação secundário em relação aos modismos tão em voga com as novas correntes
historiográficas. Para Saviani (2001, p. 167), por muito tempo a História da Educação foi um “[...]
domínio à margem das investigações propriamente historiográficas”. Com a institucionalização dos
Programas de Pós-Graduação em Educação nos anos 1970 e a criação de grupos de estudos ligados
à pesquisa sobre História da Educação, como o grupo de pesquisa e História da Educação -

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:


limarthur5@gmail.com
345

HISTEDBR da Unicamp, passou-se a uma nova compreensão da História da Educação vista como
ciência a circular entre o campo da História e da Pedagogia.

Na Paraíba, por exemplo, foi criado o grupo de Estudos e Pesquisas “História,


Sociedade e Educação no Brasil” HISTEDBR/GT-PB, responsável pelo
impulso das pesquisas na área no Estado e pelo surgimento da Linha de Pesquisa
História da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal da Paraíba. Responsável por pesquisas que, em sua maioria,
vieram a refletir sobre as memórias e as histórias da educação brasileira, tomando
como principal “locus” de discussão as experiências educacionais nordestinas e,
mais particularmente, paraibanas, tais estudos e pesquisas fundamentaram-se na
pluralidade teórica e metodológica dos campos da História e da Educação (Lima,
2020, p.22)

A História da Educação a partir dessas transformações sofreu uma ampliação no que diz
respeito as fontes utilizadas para a pesquisa histórica, como também nos temas e abordagens
possíveis. A História da Educação não estaria mais ligada unicamente ao estudo da legislação
educacional ou das teorias pedagógicas, mas passando a refletir sobre a cultura escolar, políticas
públicas ligadas a educação, instituições escolares, práticas educativas e a um novo olhar em torno
da problematização dos chamados pensadores da educação e do processo de emergência de seus
discursos.

Paralelamente a esse movimento, assistiu-se, no que diz respeito ao campo de produção


historiográfica, ao boom no estudo dos intelectuais e dos pensadores da educação, que passaram a
ser problematizados enquanto mediadores de conflitos, dirigentes e organizadores da cultura e
produtores de capital simbólico (Vieira, 2008). A História intelectual e a dos intelectuais toma como
base a procura de pensar o movimento a época ou a sociedade, por meio da análise circunstanciada
de um ou vários indivíduos.

As ideias, como durante muito tempo pensou a história das ideias em uma perspectiva
tradicional, não se tratava de natureza desencarnada que poderia ser pensada de maneira
descontextualizada de seu contexto e da trajetória e redes de sociabilidades as quais os sujeitos que
as elaboraram encontravam-se inseridos. Logo tornou-se fundamental desvendar as temporalidades
e a historicidade dos conceitos e das ideias. As ideias não se configuravam assim em elementos de
natureza abstrata, mas intricadas no interior de sistemas, de correntes de pensamento e caráter
dialógico que se fundamentam em diferentes estruturas sociais e de atividade individual (Costa,
2017).

Na esteira dessa reformulação epistemológica a produção das ideias educativas foi tratada
de maneira a enfocar não somente as teorias, mas os agentes, os projetos e as instituições, as ações
346

sociais que tais personagens desenvolviam. Para Sirinelli (2003), os intelectuais passaram a ser
entendidos por meio de duas definições: uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e
mediadores culturais, e a outra ligada diretamente aos diferentes processos de engajamento vividos
pelos intelectuais, atuando por meio de suas redes de sociabilidade. De acordo com a professora
Fabiana Sena (2019) no processo de análise do movimento de fabricação de um intelectual é preciso
atentarmo-nos para as estratégias de promoção e autopromoção desses sujeitos, mapeando os
diferentes percursos e trajetórias trilhadas, seja por obras produzidas ou pelos laços de
sociabilidades efetivadas nos jogos de visibilidade.

Diante desse panorama, estas páginas problematizam a produção da imagem de Felipe


Tiago Gomes, natural da cidade de Picuí-PB e fundador da Campanha Nacional de Escolas da
Comunidade - CNEC no ano de 1943, na cidade de Recife-PE, enquanto um intelectual da
educação e homem instituição (Portes, 2009). A partir da análise do livro Escolas da Comunidade,
livro autobiográfico publicado pela Editora Cenecista em 1989 apresentando em sua narrativa
memórias formatadas e preparadas para virem a público a partir de uma história adotada do ponto
de vista de seu idealizador, como também dos demais administradores da mantenedora de escolas,
onde Felipe Tiago Gomes ao ocupar cargos estratégicos na instituição por ele criada, atuava
enquanto mediador cultural (Gomes, 2016) no processo de disseminar práticas e saberes visando a
conferir identidade aos membros da instituição a partir de seu pensamento educacional.

Felipe Tiago Gomes e a CNEC: o Homem Instituição

Felipe Tiago Gomes nasceu no dia 1º de maio de 1921 filho de um casal de agricultores,
Ana Maria e Elias Gomes, cresceu na zona rural do município de Picuí no Estado da Paraíba,
durante a infância após concluir o ensino primário mudou-se para Campina Grande onde concluiu
sua educação básica no Colégio Pio XI. Findada a formação secundária ingressou no curso pré-
jurídico da Faculdade de Direito do Recife onde graduou-se bacharel em direito.

Em 1943 ao lado de colegas da Casa do Estudante fundou a Campanha do Ginasiano Pobre


(CGP), hoje Campanha Nacional de Escolas da Comunidade uma das mantenedoras mais
influentes no cenário educacional brasileiro. Assim narra o processo de criação da instituição no
livro Escolas da Comunidade:

- Everardo, não seria uma coisa fabulosa se fundássemos um ginásio gratuito para
o moço pobre? Você não daria aula gratuitamente? A resposta do Everardo (hoje,
um dos mais competentes professores da Faculdade de Direito da Universidade
do Recife), foi animadora: -ótima idéia! Conte comigo. Mas como fazer? – Bem,
347

Everardo, se os peruanos fizeram escolas primárias gratuitas, é porque é possível


realizar o ensino gratuito no curso secundário. Veja a dureza que tivemos para
fazer o curso ginasial! Por que só os ricos podem estudar? Vamos falar com o
Carlos Luís, que é o bastante entusiasmado para as boas causas. No dia imediato,
procurávamos Carlos Luís, que aprovou imediatamente a idéia. E assim,
influenciados pelas lutas de Castro Alves, em defesa dos escravos, pelas batalhas
de libertação nacional, travadas no solo nordestino, lançamos as bases de um
movimento de profundo sentido social e humano. (Gomes, 1989, p.20)

Influenciados pela experiência de Haya de La Torre que desenvolveu escolas para


alfabetização dos povos nativos do Peru, apresentada no livro de Jhon Gunther O Drama da América
Latina a ideia cunhada pelos estudantes foi a criação de um ginásio destinado a educação dos jovens
carentes, que diante da escassez de unidades de educação pública viam seu estudo ser interrompido
no ensino primário. A partir de tal narrativa, no livro publicado em 1989 observa-se um movimento
onde a trajetória de vida de Felipe Tiago Gomes será aglutinada a história da instituição por ele
idealizada ao lado dos seus colegas de curso no Recife.

Na produção de uma história sobre a vida de seu fundador e da Campanha por ele
idealizada, identifica-se os arranjos narrativos de um texto preparado para vir a público, com vistas
a gerar efeitos desejados sobre as comunidades escolares que integravam a Campanha espalhadas
pelo país. De acordo com a professora Ariane dos Reis Duarte (2019) a narrativa do menino que
teve a infância marcada pela pobreza, “com os pés descalços e picados por espinhos impiedosos,
mãos calejadas da enxada, incômodos beliscões das juremas e do colher juá” (Gomes, 1989, p.11)
foi contada em diferentes momentos da história da instituição de modo a exemplificar o
testemunho de alguém que encontrou na educação fonte de redenção e superação, sendo a
educação apresentada em uma perspectiva salvacionista, fazendo referência ao papel de
protagonista desenvolvido por Felipe Tiago Gomes. A história ganhou contornos de uma narrativa
profética, onde tal personagem é apresentado como alguém que desde o nascimento foi destinado
a realizar a obra que lhe é atribuída.

O livro Escolas da Comunidade fez parte de um movimento da Campanha Nacional de


Escolas da Comunidade de produzir e organizar escritos que refletissem sobre sua história e a
história de vida dos personagens que estiveram ligados à sua trajetória. Felipe Tiago Gomes e o
secretário geral da instituição, Sebastião Garcia de Souza estiveram à frente deste processo que
culminou nas publicações alusivas aos 50 anos de atividade da mantenedora no ano de 1993, como
a publicação da Coletânea Cenecista, conjunto de quatro volumes sobre a história da entidade, onde
o livro autobiográfico de Felipe foi inserido enquanto título de abertura.
348

O ideal de escola comunitária defendido pelo idealizador da mantenedora estava


relacionado a existência de um setor local, grupo de 100 pessoas da comunidade que seriam
responsáveis por promover eventos, festas e quermesses que auxiliassem na aquisição de capital
para manutenção das atividades das unidades educacionais como também atuasse na mobilização
das comunidades pela aquisição de subvenções públicas para o financiamento de suas atividades
escolares. Era também recorrente a cobrança de mensalidades por parte de tais unidades, como
forma de custear estas atividades, sendo assim, de acordo com Ronalda Berreto da Silva (2001) tal
concepção de educação estava atrelada a uma educação semiprivada.

Tornava-se fundamental que os administradores da Rede trabalhassem no sentido de incutir


nas comunidades escolares os ideais de educação defendidos pelos fundadores de modo a
legitimarem suas ações. Estes impressos organizados e publicados pela editora cenecista se
configuravam em veículos para circulação dos postulados defendidos pelos administradores da
Rede, tendo o livro Escolas da Comunidade sido reflexo de tal processo, como mecanismo ligado a
produção de discursos a serem incorporados por estas comunidades escolares. Felipe Tiago
Gomes, se colocava assim, enquanto um mediador da filosofia educacional da CNEC, relacionado
ao ideal de escolas da comunidade e visando a formulação de padrões ou modos de ser alunos e
professores do chamado cenecismo, ou seja, movimento ao qual, todos aqueles que fizessem parte
das suas unidades educacionais deveriam integrar.

Neste movimento, não só a trajetória histórica da entidade passou por um processo de


mitificação, ou de produção de uma memória composta, como diria Magalhães (2016), mas como
também a vida de Felipe Tiago Gomes também passou por um processo de cristalização sendo
colocado como o único dos fundadores a permanecer ligado a instituição ao longo da vida e não
ter encontrado outras carreiras ou ofícios aos quais seguir.

No livro objeto desta pesquisa, mas como também em cerimonias, impressos notícias ou
jornais, as narrativas em torno da infância do fundador, por exemplo, passaram por uma produção
de arranjos de modo a enaltecer o contexto de dificuldades de sua infância, as dificuldades de acesso
à educação que o teriam levado a perceber a educação enquanto uma missão humanitária de
salvação dos jovens carentes de país, atrelada aos valores da família e do civismo e patriotismo.
Enfoques em destaque nos anos de 1940, período no qual a instituição foi sistematizada. A
trajetória de ambos, mantenedora e fundador é deste modo colocada no prefácio de abertura deste
escrito:

É necessário que os milhares de jovens alunos cenecistas conheçam como surgiu


a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade. As suas lutas, os sacrifícios dos seus
fundadores e a abnegação dos seus dirigentes, tudo isto deve constituir-se em
349

motivo e a abnegação dos seus dirigentes, tudo isto deve constituir-se em motivo
de orgulho para os moços que frequentam as nossas escolas. Esta é a razão
fundamental deste livro. [...] Espero que minha contribuição à HISTÓRIA DA
CNEC seja encarada pelos leitores como uma narração despretensiosa. Não tive
intuitos de escrever um grande livro, ou mesmo um pequeno livro. Quis apenas
narrar fatos, muitos dos quais inteiramente ligados à minha pessoa. Daí o
personalismo que aparece frequentemente nestas páginas. (Gomes, 1989, p. 19).

O livro se trata assim de um escrito autobiográfico que se enquadra na estratégia


denominada por (Artières, 1998) de arquivamento do eu, todos os sujeitos passam por este
exercício de produção de uma memória sobre si, ligada a seleção do que deve ser lembrado, como
também daqueles aspectos que convém no ponto de vista do formulador e a partir dos objetivos
de tais reminiscências serem esquecidos. Ao propor o livro Escolas da Comunidade, Felipe Tiago
Gomes busca-se colocar como o proeminente idealizador do movimento estando a trajetória da
mantenedora ligada as escolhas de vida feitas pelo fundador. Ao contrário dos outros jovens, que
mesmo tendo participado da criação do primeiro ginásio, se vincularam a outras causas e se
encaminharam por outras rotas, Felipe Tiago Gomes permaneceu e teria sido o responsável de
acordo com a narrativa pelo reconhecimento por parte do Ministério da Educação e Saúde Pública
a época e pela consequente expansão dos ginásios da entidade ao longo do país. houve um
movimento de idealização e mitificação de sua figura:

os lemas da mantenedora eram personificados na figura de Felipe Tiago Gomes


[...] em alguns casos, a atuação de Felipe Tiago frente a CNEC é abordada de
maneira ufanista, com ênfase a sua abnegação e obra de vida. [...] tais atributos,
disseminados por parte de publicações da própria mantenedora e das redes pelas
quais Felipe circulava colaboraram para um processo de mitificação do fundador.
(Duarte, 2018, p.15)

Tais postulados são postos em evidência no próprio prefácio ao observar que ao narrar de
forma “despretensiosa” os fatos de sua vida ao mesmo tempo narra a trajetória evolutiva da
instituição em um exercício de contar a HISTÓRIA DA CNEC gravada em caixa alta, como modo
de demonstrar que se trataria daquela história com H maiúsculo, uma história dita verdadeira sobre
sua trajetória de vida e a trajetória da instituição por ele criada. Destinada aos jovens estudantes,
tais narrativas tinham como objetivo colocar a vida de Felipe Tiago Gomes e de seus colaboradores
enquanto exemplos de abnegação a causa da educação e símbolos a serem seguidos e traduzidos
em práticas no cerne das unidades educacionais da Campanha.

Tais páginas se traduzem nestes egodocumentos (Viñao, 2000), relacionados às


representações produzidas por Felipe Tiago Gomes e seus seguidores sobre o passado da
instituição, permeadas de intencionalidades e possíveis silenciamentos atrelados ao esforço de
350

propagandear discursos e narrativas identitárias. Dado que segundo (Viñao Frago, 2000, p.11) “una
espécie de conjunto de egodocumentos, ou seja, [...] aquellos textos en los que el yo encuentra
refugio y se convierte en elemento de referencia”. Ao produzir textos e narrativas ligados a uma
espécie de compromisso de se colocar como modelo a ser seguido por aqueles que fizessem parte
da CNEC, Felipe Tiago Gomes também se dedica ao arquivamento do eu (Artières, 1998),
permeado por uma intenção autobiográfica na qual ao se fazer um acordo com a realidade se compõe
uma existência muitas vezes ligada a manipulação, rasuras, omissões e enfoques de dados quadros
desejados.

Écio Antônio Portes ao trabalhar a trajetória de Francisco Mendes Pimentel, primeiro reitor
da então criada Universidade Federal de Minas Gerais em 1949 a partir da federalização da
Universidade de Minas Gerais, problematizou tal trajetória a partir dos escritos do memorialista
Pedro Nava, observando que em sua narrativa a história da instituição e a história de vida do
próprio Mendes Pimentel são representadas de forma interligadas, como se ambos
compartilhassem das mesmas experiências e memórias. A partir de tal implicação o conceito que
Portes (2009) denominou de homem instituição, ou seja, uma instituição que foi forjada a partir da
figura de seu fundador, ligado à produção de efígies laudatórias e apologéticas e marcado por
referências elogiosas, é identificado nas tecituras de tal impresso por meio das relações entre a
imagem produzida do criador da Rede e a história institucional da entidade. Tais imagens estariam
ligadas ao que Bourdieu (1996) denominou de ilusão biográfica, no sentido de apontar que a
trajetória nunca é um caminho linear, reto ou isento de acidentes, fazendo tais narrativas parte de
um processo de constituição de uma imagem livre de críticas à figura do criador.

À construção da noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas


por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um
devir, estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender uma
vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem
outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente
não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar
explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede,
isto é, a matriz das relações objetivas entre diferentes estações. (Bourdieu, 2006,
p. 189).

Em escolas da comunidade Felipe Tiago Gomes narra sua vida, mas não enquanto um
escrito de cunho pessoal, uma carta trocada entre familiares, mas sim enquanto um texto preparado
para vir a público. Relato repleto de imagens que reforçam a sua posição enquanto fundador, como
um menino que tendo uma infância pobre na zona rural de um município na paraíba foi responsável
pela criação de uma mantenedora de escolas que ocupou importante papel no cenário educacional
351

brasileiro. No ano de publicação de tal obra existiam 1160 unidades educacionais espalhadas por
945 municípios do país.

Considerações finais

A partir da análise e problematização do escrito Escolas da Comunidade observa-se que a


obra se apresenta enquanto um importante objeto para o exercício de problematização da história
e da vida de Felipe Tiago Gomes no que diz respeito a história da educação e dos intelectuais da
educação da partir da CNEC, dada a ausência de trabalhos sobre a figura de fundador que busquem
lançar essas problematizações sem desmerecer o trabalho que desenvolveu ao longo de sua
trajetória, mas no intuito de demonstrar que nenhum narrativa é livro de interesses ou livre das
relações de poder na quais é produzida. Tendo sido reeditado sete vezes a obra se relaciona a este
movimento de legitimação de discursos proferidos e a afirmação de um lugar do idealizador dentro
da história da mantenedora a partir de uma perspectiva de mitificação de sua história.

Ao ser destinada as comunidades escolares, especialmente aos estudantes, identifica-se o


movimento de forjar subjetividades desejadas, para que as comunidades enxergando em Felipe
Tiago Gomes um exemplo a ser seguido possam reproduzir tais práticas em gestos concretos de
modo a defenderem o pensamento educacional do idealizador e os princípios da educação
comunitária a partir da chamada filosofia cenecista. O livro remonta de modo a expor enquanto
um testemunho a caminhada do patriarca da instituição deste a saída da zona rural de Picuí até o
momento no qual a mantenedora foi instalada e suas sucessivas viagens pelos estados da Federação
em busca de apoio econômico e político para a entidade, circulando assim, por uma rede muito
diversa de pessoas, lugares e instituições de modo a legitimar seu pensamento educacional.

Referências

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abusos da história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, (p. 183-
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Duarte, Ariane dos Reis. “O homem que fez 2000 escolas”: Representações sobre Felipe Tiago
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http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/7972/Ariane%20dos%20Reis%
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353

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Viñao Frago, Antonio. Culturas escolares, reformas e innovaciones: entre la tradición y el cambio.
(texto divulgado pelo autor e ainda não publicado), 2000.
354

Águas que movem e lavam: a luta por água e fixação na Vila


Paranoá132

Artur Araujo Santos133

Resumo: Os passos que abriram picadas sertão adentro são colocados em evidência na história
tradicional de Brasília, numa ligação quase que direta com a fantasia bandeirante. Porém, para uma
história de Brasília em contraponto, devemos evidenciar a mudança de paradigma da própria
História. E é na observação e estudo das muitas histórias de Brasília que nos chama atenção os
caminhos desprezados, as trilhas e veredas abertas que contam uma história de segregação,
ocupação, sede e trabalho. Essa é a história do Paranoá, uma região (Administrativa) de Brasília –
um bairro em linguagem comum –, advindo da ocupação das margens da barragem do que viria a
ser o Lago Paranoá. Assim, em 1957, uma comunidade se constituía. Os operários da barragem
buscavam a proximidade de suas moradias com seu trabalho, coabitando com o sonho da
construção da nova capital do Brasil. Uma proximidade estreita e desconfortável com a capital
planejada. Para sensibilizar os estudantes moradores da região, descendentes ou mesmo partícipes
dessa significativa história de luta é que foi proposto como trabalho final do curso de formação
para professores aqui do Distrito Federal, o “Outras Brasílias”, uma sequência de aulas apoiadas
numa didática histórico-crítica de percepção, reconhecimento e valorização dessa história.
Tomados por invasores pelo Estado e pelos meios de comunicação eles continuaram a lutar pelo
direito de ir, vir e, enfim, permanecer. É neste enredo que discutiremos em um “Plano de Aulas de
História” a relação com um precioso bem, a água. Água que estava relacionada à luta pela fixação
da ocupação; água que era motivo de disputas entre moradores, mas também motivo de união
quando a comunidade se manifestava pelo acesso ao recurso; água que se tornou objeto de poder
nas mãos de governantes deliberadamente negligentes. Em outras palavras, águas que nos
conduzirão numa importante reflexão sobre a história da Vila Paranoá.

Palavras-chave: Paranoá, água, fixação.

132
Adaptação do Trabalho Final produzido em equipe (Artur Araujo, Cristiana Santos, David Ribeiro e Nilza Cristina)
e apresentado ao curso “Outras Brasílias – UnB”, 2020.
133
Mestre em História Cultural pela UnB (2014), professor de História do CEF 02 (Noturno) do Paranoá – DF.
355

Figura 1 - Vila Paranoá: mulheres indo lavar roupas

Fonte: Acervo do Centro de Desenvolvimento Cultural do Paranoá (CEDEP). Foto de B. Prezia.

Introdução

“O Paranoá assemelha-se a uma ilha seca, cercado de água por todos os lados (...)”
Jornal do Paranoá, nº 3 out/nov – 1988 – uma realização do CEDEP

Em 1957, à beira do futuro Lago Paranoá, uma comunidade se estabelecia. Os


trabalhadores da barragem buscavam a proximidade de suas moradias com seu trabalho,
coabitando com o sonho da construção da nova capital do Brasil. A motivação por emprego
também carregava o desejo de se estabelecer com suas famílias em um lugar próximo ao
empreendimento.

No plano diretor de Brasília não se levou em consideração que os trabalhadores


continuariam vivendo na cidade após sua construção e nem que iriam constituir família durante
356

esse processo. Às margens da barragem, longe das vistas da nobreza política, funcionários públicos
e funcionários do exército, formou-se uma comunidade. Uma proximidade estreita e
desconfortável com a capital planejada.

Mas não seria fácil para a população manter a ocupação. Uma vez que essas terras eram
muito cobiçadas e que viriam a ser futuramente utilizadas para a construção de mansões e clubes.
A maior conquista durante essa trajetória foi a fixação da própria comunidade. Constituir e manter
suas famílias naquele espaço seria uma árdua batalha por moradia, políticas públicas e justiça social.

Tomados por invasores pelo Estado e pelos meios de comunicação eles continuaram a lutar
pelo direito de ir, vir e permanecer. Muitas eram as razões ditas para expulsar os chamados
invasores. Uma delas, é que estavam desprezando o cuidado urbanístico da cidade.

A comunidade sofreu por décadas com o processo de ocupação, resistência e luta por água,
que de certa forma era o que garantia as condições mínimas de subsistência. Muitas vezes era
necessário caminhar quilômetros até o lago, bicas, chafarizes, córregos e rios, para lavar roupas e
levar água para casa. Mas o que pudemos observar selecionando as fontes propostas para serem
trabalhadas em sala de aula é que a água não se resumia a um recurso hídrico necessário a
sobrevivência. Ela estava relacionada também à luta por fixação da ocupação; a água era motivo de
disputas entre moradores, mas também era razão de união quando a comunidade se reunia em
manifestações pelo acesso a esse recurso; a água era objeto de poder nas mãos dos governantes que
se mostravam negligentes.

A sequência didática a seguir busca desenvolver, a partir das fontes selecionadas, reflexões
sobre o tema água na Vila Paranoá e sua relação com a luta por fixação da cidade. Para tanto,
elaboramos atividades utilizando matérias dos Jornais do Paranoá e Correio do Brasil, um
fragmento introdutório do documento “Assentamentos Implantados no Distrito Federal – História
e Situação atual”, fotografias relacionadas ao tema, obras do artista plástico Gersion de Castro,
imagens do Google Maps/Google Earth e uma proposta de saída de campo ao Parque Vivencial –
onde estão localizados antigos chafarizes, minas e caixa d’água comunitária – e algumas trilhas que
eram utilizadas pela população nesse período para ter acesso ao Lago Paranoá. Como poderão
constatar o percurso didático apresentado está bem acessível e com elaborações sucintas, podendo
ser adaptado e/ou suplementado para turmas dos anos finais do Ensino Fundamental, Ensino
Médio e EJA.

Sequência Didática

Atividade 1: Análise de artigos de jornais escolhidos


357

Objetivos: Pensar a água enquanto fator de coletividade, disputas e poder. Compreender a relação
entre a luta por água e a busca pela fixação da ocupação. Refletir sobre a presença do Estado
enquanto agente de dissuasão da fixação da Vila Paranoá.

Figura 2 - Assentamentos Implantados no Distrito Federal - História e Situação Atual

Fontes: Jornal do Paranoá, Correio do Brasil e fragmento introdutório do documento


358

A seguir algumas manchetes do Jornal do Paranoá, produzido pelo CEDEP (Centro de


Cultura e Desenvolvimento do Paranoá). Importante ressaltar o tom engajado das críticas
produzidas por esse jornal,

Figuras 3, 4 e 5 – Manchetes do Jornal do Paranoá


359

Fonte: Jornal do Paranoá. Nº 03 out/nov – 1988 – Uma realização do CEDEP.

Já nesta sequência temos alguns recortes do jornal “Correio do Brasil”. Podemos perceber a
diferença aqui no tom polido, apenas relatando os eventos ocorridos em decorrência das
manifestações por água.

Figuras 6 e 7 – Recortes do Jornal Correio do Brasil


360

Fonte: Arquivo do Centro de Desenvolvimento Cultural do Paranoá (CEDEP)

O outro documento utilizado para essa primeira parte é uma pequena introdução retirada do
“Assentamentos Implantados no Distrito Federal - História e Situação Atual”. Neste documento
– que trata sobre a segurança habitacional do Distrito Federal em 1994 e assinado pelo Governador
à época, Joaquim Roriz – podemos constatar o uso corrente do termo “invasão”.
361

Figuras 8 e 9 - Assentamentos Implantados no Distrito Federal

Fonte: fragmento introdutório do documento “Assentamentos Implantados no Distrito Federal - História e Situação
Atual”

Procedimentos:
Ø 1º momento:

Chuva de ideias: pedir que os estudantes digam o que lhes vem em mente quando ouvem sobre
a construção da barragem do Lago Paranoá, Vila Paranoá, Lago Paranoá.
Preparo para roda de conversa: levantar no meio familiar ou de convivência informações sobre
o período de “invasão134” do Paranoá. Aqui levamos em consideração que muitos viveram
diretamente ou indiretamente esse processo.

Ø 2º momento

134É comum a população e os meios de comunicação utilizarem o termo “invasão” para se referir à Vila Paranoá. Nos
próximos procedimentos buscaremos desconstruir o termo “invasão” e inserir de forma significativa o termo
“ocupação”, atualmente utilizado por movimentos sociais de forma a legitimar a luta por terra.
362

Roda de conversa: socializar as informações trazidas pelos/as estudantes. Trabalhar os conceitos


de invasão, ocupação e fixação na constituição da Vila Paranoá. Visto que, “invasão” é um termo
bastante utilizado por fontes hegemônicas que induzem a não legitimidade da luta da população
por moradia e políticas públicas. Enquanto o termo ocupação pode ser entendido como contra
hegemônico, uma vez que busca desconstruir os estereótipos advindos do termo invasão. O termo
fixação aponta a luta dos moradores não só para regularizar a ocupação, mas também mantê-la no
local.

Ø 3º momento
Análise das fontes: Dividir os estudantes em quatro grupos. Dois farão a análise das reportagens
do CEDEP e os outros dois farão a análise dos jornais do Correio do Brasil.

Primeiro passo: leitura livre das fontes pelos grupos.


Segundo Passo: leitura guiada pelas questões norteadoras, listadas a seguir.
• É possível identificar e/ou associar nas fontes trechos que remetem aos conceitos de
invasão, ocupação e fixação?
• É possível identificar nas fontes momentos de coletividade e momentos de conflito entre
os moradores?
• Com base nas fontes analisadas, como podemos compreender o descaso dos governantes
diante as reivindicações da população?

Ø 4º momento
Socialização das análises: cada grupo fará uma breve apresentação dos resultados das análises
das fontes que recebeu.

Atividade 2 – análise das imagens

Objetivos: destacar o cotidiano das mulheres que buscavam o Lago Paranoá, as fontes, o Rio dos
Goianos e as nascentes de água para lavar roupas. Mostrar as dificuldades para conseguir água
disponibilizada pelo poder público. Entender a água enquanto fonte de renda e lazer. Mostrar a
insatisfação da população em receber a água do Lago Paranoá e fazer uma leitura e contraponto
com a atual política de abastecimento que também utiliza água do mesmo local. Localizar por meio
do programa Google Earth (integrado ao Google) os locais onde a população costumava lavar
roupa e desfrutar de momentos de lazer.
363

Figura 10 – Fotografia do Arquivo CEDEP

Fontes: Fotografias e charges do Arquivo do CEDEP, obras do artista plástico da cidade (Gersion de Castro) e Imagem
do Google Maps/Google Earth
364

Figura 11 - Vila Paranoá: mulheres indo lavar roupas

Vila Paranoá: tambores vazios à


espera do caminhão pipa

Fonte: Acervo do Centro de Desenvolvimento Cultural do Paranoá (CEDEP). Foto de B. Prezia.


365

Figura 12 - Charge: crítica ao uso da água do lago Paranoá para o consumo humano

Fonte: ALVES, Alberto. No dia em que a água chegou. Acervo do Centro de Desenvolvimento Cultural do Paranoá
(CEDEP)

Para compor a reflexão sobre o cotidiano da falta d’água apresentamos a seguir algumas
pinturas do artista plástico Gersion de Castro. Gersion é conhecido por pintar de forma sincera o
cotidiano da Vila Paranoá.
366

Figura 13 - Carregador de Água (2005). Óleo sobre tela 50 x 40cm

Fonte: Acervo: James Kuiper – Estados Unidos. Autor: Gersion de Castro


367

Figura 14 – Lata d’Água na Cabeça (2005). Óleo sobre tela 50 x 40cm

Fonte: Acervo Franklin Martins. Autor: Gersion de Castro


368

Figura 15 - Lavadeiras do Lago Paranoá (2001). Óleo sobre tela 50 x 70cm

Autor: Gersion de Castro

Diversamente das artes anteriores temos a seguir uma imagem de satélite do local
popularmente conhecido por “coração” e que a tradição atribui ao local onde lavadeiras
trabalhavam e crianças desfrutavam. Vide pintura anterior, “Lavadeiras do Lago Paranoá (2001)”,
de Gersion de Castro.
Figura 16 - Imagem do Google Maps/Google Earth
369

Ø 1º momento

Distribuir as imagens entre os grupos e deixar que façam uma descrição e análise livre.

Ø 2º momento

Socialização das análises das imagens.

Ø 3º momento

Cada estudante deverá produzir uma imagem sobre a cidade. Pode ser imagem que o
estudante já possua e que ache significativa ou produza uma nova. Esse material será utilizado não
somente para exposição e socialização, mas ainda como acervo de fontes visuais referentes à
Cidade.

Atividade 3: Visita ao Parque Vivencial

Visita guiada para conhecer o chafariz, a antiga caixa d’água, as minas de água e as trilhas percorridas
pelas lavadeiras e população em geral.

Avaliação:

Participação nas atividades em grupo, produção das fotografias da cidade e auto avaliação.

Considerações Finais

Elevar a estima de uma comunidade passa pela percepção histórica que fazem de si mesma.
Portanto, cabe a nós profissionais da educação alcançar os sujeitos estudantes fazendo com que se
percebam sujeitos históricos. Que possam se entusiasmar com as realizações de sua comunidade,
que possam ter orgulho do caminho percorrido neste processo de consolidação do Paranoá
enquanto Cidade. É também um estímulo para que outras histórias em interseção possam surgir.
Fica aqui a sugestão de atividades interdisciplinares que podem ser associadas ao tema.

Ø Construção de mapas, utilizando programas de computadores, que mostrem os caminhos


percorridos pelas lavadeiras e por aqueles/as que buscavam água;
370

Ø Trabalho biográfico sobre o artista plástico Gersion de Castro, análise de suas obras e
releituras;

Ø Tratamento do esgoto e a poluição dos rios e córregos da região. O mau cheiro nas quadras
2, 6 e 8 devido a estação de tratamento do esgoto;

Ø O acesso a água no Distrito Federal;

Ø Os conflitos hídricos no Distrito Federal;

Ø Análise social do racionamento hídrico ocorrido em 2017;

Ø Mapeamento das águas que cercam a região do Paranoá;

Ø O Lago Paranoá enquanto fonte de lazer, Prainha do Lago Norte;

Ø A ocupação das margens do Lago por mansões e clubes e a exclusão da população mais
pobre.

Referências

Documento governamental: Assentamentos Implantados no Distrito Federal - História e Situação


Atual (1994) – IPDF – Instituto de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal

Jesus, Leila Maria de. A Repercussão da Atuação de Educadores/as Populares do CEDEP/UnB na Escola
Pública do Paranoá-DF. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, UnB, 2007.

Paviani, Aldo (Org.). Brasília: Moradia e Exclusão. Brasília: Coleção Brasília, Editora Universidade
de Brasília, 1996.

Silva, Gersion de Castro. A História De Uma Cidade Invisível: Vila Paranoá e seus Quintais De
Memórias. Especialização em Educação e Patrimônio Cultural e Artístico, Instituto de Artes, UnB,
2019.

Silva, Gersion de Castro. Paranoá em Quadros e Versos: um olhar diferente sobre Brasília. Brasília,
DF: Edição do autor, 2009.

Teixeira, Cristina Santos. Conselhos Escolares do Paranoá/DF: a participação dos atores sociais negros.
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação, UnB, 2012.
371

Ensinar sobre o nazismo nas redes sociais: a experiência do


NEPAT-UFMG

Bárbara Deoti Silva Rodrigues*

Resumo: o presente texto pretende refletir sobre o papel do historiador no século XXI, tendo
como base questões levantadas pelo campo da história pública, especialmente no que diz respeito
à produção de narrativas sobre o passado na internet. A internet alterou a maneira como o público
se conecta com a história. Diante deste novo cenário, faz-se necessário que os historiadores se
questionem sobre nossas responsabilidades frente ao público e sobre as novas possibilidades de
trabalho que se apresentam a nós. Em seguida, pretendemos apresentar o projeto de divulgação
científica desenvolvido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Autoritarismo e Totalitarismo
(NEPAT) da Universidade Federal de Minas Gerais. O projeto é uma tentativa das coordenadoras
do núcleo de responder a essas novas demandas com as quais nos deparamos enquanto
historiadores profissionais no contexto atual.
Palavras-chave: História pública, divulgação científica, nazismo.

O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Autoritarismo e Totalitarismo - NEPAT é uma


iniciativa discente e totalmente feminina das alunas de graduação e pós-graduação em História da
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. O NEPAT foi fundado em 2019, inicialmente
como um grupo de leitura, mas expandiu suas atividades ao longo do ano até se consolidar como
um núcleo de pesquisa e estudo. Em outubro de 2019 ocorreu o evento inaugural do núcleo “80
Anos da Segunda Guerra Mundial: Ecos, Representações e Memórias”, organizado pelas
coordenadoras. As pesquisadoras que integram o núcleo desenvolvem pesquisas sobre regimes
autoritários e totalitários do Século XX, com destaque para o regime nazista, na chave da História
Filosófica do Político, como proposta por Pierre Rosanvallon, valorizando a interdisciplinaridade
e a longa duração dos acontecimentos (Rosanvallon, 2010). As pesquisas do núcleo também
abarcam a relação entre história e memória, bem como produções voltadas para representação,
literatura, discursos e atuação e resistência em regimes totalitários. O objetivo do NEPAT é mostrar
a competência das produções brasileiras - sobretudo femininas - sobre a história do século XX e
inserir a UFMG como referências nos estudos sobre totalitarismo e Segunda Guerra Mundial. Os
projetos desenvolvidos pelo NEPAT se dividem em duas frentes de atuação: uma voltada para o

*
Licenciada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2020). Coordenadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Autoritarismo e Totalitarismo (NEPAT-UFMG).
372

meio acadêmico e uma voltada para o público amplo. Dentro do meio acadêmico, o trabalho do
núcleo inclui as pesquisas das coordenadoras e a criação e organização do grupo “Pensar os
Extremos - Rede Interdisciplinar de Estudos sobre Nazismo, Memória e Guerra”, que reúne
pesquisadores de diversas áreas - como história, letras e filosofia - em encontros mensais para a
discussão das pesquisas e troca de referências e experiências. Já fora do meio acadêmico, o NEPAT
desenvolve um projeto de divulgação científica produzido pelas coordenadoras nas redes sociais
do núcleo, que será apresentado neste texto.

Para contextualizar o projeto de divulgação científica do NEPAT e refletir sobre as


particularidades e desafios que pautam o nosso trabalho enquanto historiadores no contexto atual,
vamos nos basear nos debates que ocorrem dentro do campo da História Pública. Daremos início
a essa discussão traçando um breve histórico da relação entre os historiadores e seus públicos. Até
a década de 1990, o público do historiador era majoritariamente composto pelos colegas de
profissão e por leigos eruditos. Além disso, a relação entre o historiador e sua audiência era mediada
pelo livro, ou seja, o público do historiador era composto por seus leitores (Malerba, 2017, p. 140).
Após a década de 1990, no entanto, se observou não somente um aumento quantitativo no público
consumidor de história, mas também um aumento significativo no número de narrativas sendo
produzidas sobre o passado. Muitas dessas narrativas, inclusive, são produzidas por pessoas que
não têm uma formação profissional enquanto historiadores e que poderíamos denominar de
“historiadores amadores”. Uma consequência relevante dessa transformação é que o público
consumidor de história não é mais a audiência do trabalho dos historiadores. Cada vez mais, essas
narrativas não acadêmicas sobre o passado circulam pelo espaço público e despertam o interesse
das pessoas pela história. “O passado, ou ao menos suas formas populares, está a nos rodear. E
passado significa negócio.” (Liddington, 2011, p. 32). Não podemos deixar de levar em conta que
produções comerciais sobre história, como filmes, livros, programas de TV, entre outras, podem
ser muito lucrativas.

Potencializando todas essas novas tendências, temos um potente veículo de circulação de


informações - a internet. Especialmente agora, durante a pandemia global do COVID-19, estamos
mais imersos e dependentes dessa tecnologia do que nunca. Portanto, acreditamos que uma
reflexão sobre como esses desdobramentos se dão online se faz necessária. A internet afetou a
maneira como as pessoas se conectam com a história e também subverteu as bases da produção e
circulação de narrativas sobre o passado (Malerba, 2017, p. 142). Plataformas digitais como blogs
e redes sociais permitem um engajamento maior do usuário (user engagement). Qualquer pessoa com
acesso a internet pode produzir e veicular seus próprios entendimentos sobre o passado, com o
373

potencial de atingir centenas ou milhares de usuários (Foster, 2014, p. 2). Para a história, o que isso
significa é que a distinção bem estabelecida entre historiadores como produtores de historiografia
e as pessoas comuns como consumidoras de história está se tornando cada vez mais tênue e flexível.
Assim, as regras sobre quem tem poder e legitimidade para falar sobre o passado se alteraram. O
espaço virtual pode sim ter um impacto muito positivo na interação do público com seu passado.
A internet é uma ferramenta valiosa para a realização de projetos de história pública mais amplos,
inclusivos, participativos e democráticos. Também pode auxiliar na inclusão de sujeitos e narrativas
antes ignoradas ou excluídas e ampliar o acesso à informação. Mas, por outro lado, a internet
também tem seus aspectos negativos, como a disseminação veloz de informações errôneas ou
visões acríticas sobre o passado, podendo se tornar um veículo para a divulgação de narrativas anti-
éticas que não deveriam ter espaço na esfera pública, como por exemplo o negacionismo do
Holocausto. Essas distorções do passado não surgiram com a internet, mas é inegável que o meio
digital as potencializou.

A Web 2.0 é um terreno dinâmico que oferece oportunidades e desafios para a


criação da história. [...] a internet simultaneamente apresenta questões e desafios
novos, por exemplo, sobre controle de acesso (salvaguarda: gatekeeping) e
autoridade (quem tem habilidades técnicas, formação necessária para fazer
sentido do passado como história). (Malerba, 2017, p. 143).

Ao refletir sobre esse contexto, o historiador Jurandir Malerba nos apresenta uma
provocação: devemos nos confrontar com essas questões ou vamos ter de aceitar a insignificância,
social e política, de nossa profissão. Acreditamos na necessidade e na importância de encarar esse
desafio, pois pensamos que, enquanto historiadores, podemos contribuir positivamente para a
sociedade. Portanto, como um contraponto a essa colocação de Malerba, trazemos aqui a seguinte
reflexão:

A história pública tem importância real e urgente, dada a crescente popularidade


das representações do passado nos dias de hoje. Em um contexto de
segmentação acadêmica e profissionalização restrita, os historiadores públicos
podem fornecer uma mediação necessária, inspiradora e revigorante entre o
passado e seus públicos. Os fornecedores do passado para as grandes audiências
ignoram os historiadores por sua conta e risco. (Liddington, 2011, p. 50).

A colocação de Liddington é muito importante, pois a autora destaca que o ônus nesse caso
é não só dos historiadores, mas do público também. Nós, historiadores, corremos o risco de perder
nosso lugar social e nossa relevância e o público fica privado de um entendimento mais rico sobre
o passado, que poderia vir de nossas contribuições. Portanto, devemos refletir sobre nossa
responsabilidade enquanto profissionais no cenário atual. “A questão que se coloca é: será que nós,
historiadores treinados para pesquisar, escrever e ensinar história perdemos controle, credibilidade
374

e autoridade sobre essas práticas? Quais são o papel e as responsabilidades dos historiadores
acadêmicos hoje?” (Malerba, 2017, p. 147).

Se as narrativas sobre o passado estão sendo produzidas sem nós, deveríamos nos indagar
então sobre quais direcionamentos devemos tomar para participar desse processo. Como podemos
protagonizar a escrita da história nos espaços públicos? E como devemos nos inserir online e
utilizar efetivamente as ferramentas proporcionadas pela internet para dialogar efetivamente com
o público?

Ao refletir sobre essas questões, devemos nos lembrar que não temos o monopólio sobre
o passado, e em momento algum esse deve ser o nosso objetivo. Em primeiro lugar, isso seria
impossível. Mas, além disso, devemos compreender que, nos espaços públicos, sendo a internet
um deles, a relação com o passado se constrói de maneira diferente. A voz do historiador é uma
dentre muitas. Isso não deve desmerecer a propriedade que temos para falar sobre o passado nem
o valor do conhecimento acadêmico. Contudo, nos espaços públicos, parece ser mais produtivo
buscar uma interpretação do passado que seja compartilhada e construída de forma colaborativa,
pelos historiadores e pelo público. Podemos agir de maneira a guiar, auxiliar, complementar e
informar as narrativas, contribuindo com o nosso conhecimento profissional para um
entendimento mais crítico do passado (Foster, 2014, p. 12). O fundamental é ocupar os espaços
públicos virtuais e não nos furtar a estabelecer um diálogo com o público.

Contudo, esta não é a única forma de proceder e também não exclui outras maneiras de se
pensar a história pública. Outra via que poderíamos seguir é a da divulgação científica. A divulgação
científica é um trabalho de adaptação e transmissão do conhecimento científico para pessoas que
não são da área. É uma produção que faz uma ponte entre a cultura comum e a especializada,
produzida dentro da academia (Albieri, 2011, p. 23). De acordo com Sara Albieri, existem algumas
dificuldades quando pensamos em divulgação científica dentro da área de ciências humanas. A
primeira delas diz respeito à transmissão do conhecimento. Como a linguagem utilizada pelos
especialistas das ciências humanas não parece ser diferente da linguagem coloquial, tem-se a
impressão de que o conhecimento dessa área não necessita de passar por uma adaptação para se
tornar acessível. Quando um leigo se depara com uma equação matemática, por exemplo, fica
imediatamente claro que há uma bagagem de conhecimento contida ali a qual ele não tem acesso.
Com as ciências humanas se dá o mesmo; os termos e conceitos que empregamos também contém
implicações que requerem um conhecimento prévio para serem compreendidas.
375

Na vivência cotidiana, os próprios acadêmicos com frequência não respeitam a


complexidade dos esforços de cada área para constituir seu cabedal teórico, a
massa interpretativa de seus temas e problemas - como se fosse possível embarcar
de última hora numa complexa atividade investigativa, sem maiores
apresentações. (Albieri, 2011. p. 24).

O conhecimento histórico acadêmico requer sim uma adaptação para que os problemas
interpretativos e a bagagem de conhecimento seja transmitida de maneira apropriada para o público
leigo.

A segunda dificuldade enfrentada pela divulgação científica é o descrédito que esse tipo de
produção encontra dentro da academia. A divulgação é considerada um trabalho de “copiar e
colar”, que estaria se aproveitando das “rebarbas da produção científica” para trazê-las para o
público de modo irresponsável (Albieri, 2011, p. 23). A única forma de divulgação de pesquisa
aceita pela academia é aquela voltada para a própria comunidade científica, o que é uma grave falha,
pois a divulgação científica pode ser um local de diálogo entre a academia e o público amplo,
possibilitando o reconhecimento social do trabalho dos pesquisadores. A relação entre a academia
e o público leigo não precisa ser antagônica, e podemos tomar como exemplo o trabalho de
divulgadores do campo das ciências exatas ou da natureza, em que vemos não só um respeito maior
pelos divulgadores, mas também a atuação de cientistas nessa área. A divulgação científica deve ser
reconhecida como uma produção intelectual, que requer decisões de seleção, escrita e interpretação
das informações; é um trabalho que também exige sua parcela de “engenho e arte”. Nem todos os
acadêmicos têm a vontade ou a inclinação para se envolverem com projetos de divulgação, o que
não se constitui como um problema. Mas o que devemos exigir da academia é a valorização e,
acima de tudo, o respeito pelo trabalho daqueles que estão dispostos a dialogar com o público leigo.
Além disso, a divulgação científica não é uma responsabilidade que os historiadores precisam
assumir sozinhos. Projetos em parcerias com jornalistas e profissionais da comunicação e de outras
áreas podem oferecer excelentes resultados.

No entanto, considero muito valioso que os historiadores, sempre que possível,


trabalhem em parceria com outros profissionais: bibliotecários ou arquivistas de
estudos locais, jornalistas ou web designers. Eles ganham acesso a uma experiência
acadêmica crucial: em um tema ou em um período. E o ganho dos historiadores
inclui técnicas de produção melhoradas e alcance público mais amplo.
(Liddington, 2011, p. 47).

A atuação do NEPAT nas redes sociais surgiu como uma necessidade sentida pelas
coordenadoras, como um resultado das pesquisas sobre o regime nazista e a Segunda Guerra
Mundial. Observamos que há muita coisa sendo produzida sobre esses dois temas, mas,
infelizmente, parte significativa desse volume de conteúdo traz visões acríticas ou bastante
376

problemáticas sobre o passado. Apesar disso, vemos também um grande interesse e curiosidade
por parte do público sobre nossas temáticas de estudo. Por conta disso, queremos alimentar o
interesse e a vontade de aprender mais sobre a história do Século XX fornecendo ao público um
conteúdo bem feito, de alta qualidade e embasado academicamente. Acreditamos na importância
de proporcionar o acesso a debates críticos sobre a Segunda Guerra Mundial e o nazismo, temas
tão complexos e que estão frequentemente envolvidos em polêmicas. É com esse objetivo que o
projeto foi lançado em janeiro de 2020.

O projeto de divulgação científica do NEPAT é produzido pelas três historiadoras que


coordenam o núcleo e são responsáveis por todo o conteúdo divulgado nas redes sociais, que
contam com o apoio de um profissional do design, criador da identidade visual do projeto. O
trabalho se pauta na prática da história pública como a “apresentação popular do passado para um
leque de audiências” (Liddington, 2011, p. 34). O objetivo do projeto é tornar o conhecimento
acadêmico acessível para pessoas que não são da área de história. Portanto, a produção do conteúdo
se baseia na ideia de tradução da linguagem científica para uma linguagem “comum”, de modo que
o conhecimento possa ser transmitido para e compreendido por pessoas leigas no assunto. Para
nos comunicarmos com o público, utilizamos dois suportes distintos: o Instagram e o podcast. O
Instagram foi escolhido por ser uma plataforma onde podemos combinar uma boa quantidade de
texto com imagens e, por ser uma rede social, é um local adequado para cultivarmos uma interação
direta com os seguidores do perfil do núcleo. Já o formato de podcast é o complemento perfeito
para a produção no Instagram, pois podemos dar mais profundidade às temáticas desenvolvidas.

O perfil do NEPAT no Instagram tem um cronograma organizado de postagens fixas, que


podem ser complementadas com posts ocasionais sobre temas relevantes ou notícias sobre as
atividades do núcleo, como palestras, seminários, participação em eventos, etc. Na modalidade de
posts fixos temos o Calendário Histórico, o Dicionário de Conceitos, as indicações de filmes e as
indicações de livros de literatura e livros teóricos ou de historiografia. Apresentaremos agora a
proposta do Calendário Histórico e do Dicionário de Conceitos.

O Calendário Histórico é um modelo de postagem composto por um texto de 2200


caracteres sobre um evento histórico que ocorreu no dia da publicação do post e uma imagem que
retrata o evento histórico em questão. O objetivo do Calendário é não só apresentar ao público as
datas importantes da história do Século XX, mas também situar esses acontecimentos em seu
contexto histórico. O maior desafio para a produção desse estilo de postagem é o número de
caracteres, que limita o tamanho dos textos. Temos de combinar uma síntese explicativa do
acontecimento com sua contextualização. Para que o post seja efetivo em comunicar todas as
377

informações necessárias, a escrita do texto deve se pautar por um eixo interpretativo previamente
determinado. Outra característica importante a ser mencionada é que todos os post começam com
uma citação de uma fonte primária ou de um texto historiográfico acadêmico sobre o assunto.
Como exemplo, podemos citar um trecho do Calendário Histórico de nove de novembro, a “Noite
dos Cristais”:

“Em Berlim, cinco, depois 15 sinagogas queimadas. Agora a ira do povo está
grassando (...) enquanto sigo de carro para o hotel, janelas espatifam-se. Bravo!
Bravo! As sinagogas ardem em todas as cidades grandes. As propriedades alemãs
não estão em perigo” (Diário de Joseph Goebbels). No dia 7 de novembro de
1938, o polonês Herschel Grynszpan descobriu que seus pais haviam sido
deportados da Alemanha, onde a família vivia. Como estava em Paris, ele se
dirigiu enfurecido à embaixada alemã e atirou no oficial subalterno Ernst vom
Rath, que faleceu no dia 9, devido aos ferimentos. Assim que recebeu a notícia,
Hitler ordenou a Goebbels que organizasse uma ação em larga escala contra os
judeus alemães. O objetivo era aterrorizar a população judaica com uma onda de
violência de modo a acelerar as emigrações para fora da Alemanha. [...] O pogrom
da “noite dos cristais” não foi obra da população alemã. Mas, seja por medo,
antissemitismo latente, ou mera indiferença, os alemães tampouco ofereceram
qualquer resistência. No fim, o resultado foi o mesmo: os nazistas entenderam
que poderiam tomar qualquer atitude contra os judeus e permanecer impunes.
(NEPAT, 2020a).

O segundo modelo de post fixo que será apresentado é o Dicionário de Conceitos. A


proposta do Dicionário se inspira nos verbetes de dicionários históricos; é um post onde será
apresentada a definição de um conceito histórico. Para esse modelo de publicação, utilizamos a
função de “carrossel” do Instagram, que permite a postagem de várias fotos em sequência. As fotos
podem ser usadas como cartazes, ampliando o espaço para o texto e assim o conceito pode ser
desenvolvido de maneira adequada. O Dicionário de Conceitos tem sempre uma capa, indicando
o conceito a ser abordado. A capa é seguida por um texto de contextualização histórica, explicando
quando e por que o conceito surgiu. No terceiro cartaz, selecionamos uma citação do autor com a
definição do conceito, e nos cartazes seguintes redigimos textos próprios, desenvolvendo e
explicando com mais detalhes a definição do conceito, alternando-os com algumas citações
oportunas. Por fim, no último cartaz, deixamos indicada a bibliografia consultada e indicações,
tanto de leituras, quanto de livros ou filmes, para os seguidores que tiverem interesse em saber mais
sobre o conceito. Além dos cartazes, o post também inclui o texto de 2200 caracteres permitido
pelo Instagram. Assim, mesmo dentro das limitações do formato, é possível explorar os diversos
recursos que a plataforma fornece para tratar de temas mais complexos de maneira adequada. Para
ilustrar o que descrevemos acima, é pertinente olharmos para parte do texto do Dicionário de
Conceitos sobre banalidade do mal:
378

Falar sobre a banalidade do mal não significa dizer que os crimes do regime
nazista são triviais, mas sim apontar para o abismo aparentemente insuperável
entre o mal extremo do totalitarismo e seus agentes. O fato de que pessoas
aparentemente normais podem se transformar em genocidas sem sentir remorsos
é uma questão com a qual ainda devemos nos confrontar. A questão do
pensamento é fundamental para entendermos a banalidade do mal. O que
caracterizava o comportamento de Eichmann era sua incapacidade de pensar.
Eichmann abandonou por completo sua faculdade de julgamento e deixou de
questionar o trabalho que fazia. Ao submeter sua vontade a do regime nazista,
ele abdicou de qualquer senso de responsabilidade por seus atos. Para Arendt,
estava claro que Eichmann foi capaz de fazer o que fez porque deixou de lado
esta atividade tão importante do espírito - o pensamento. (NEPAT, 2020b).

Por fim, apresentaremos agora o Desnazificando, o podcast do NEPAT e mais um dos


braços do projeto de divulgação científica. O Desnazificando aborda temas sobre as pesquisas
desenvolvidas no núcleo, sobre nazismo, autoritarismo e outros temas relacionados à história do
Século XX. Também são abordadas questões sobre a vida acadêmica, sobre educação e sobre a
relação entre história e cultura por meio da discussão de filmes, livros e séries, entre outros tópicos
de interesse. A proposta do podcast é debater conceitos, ideias e acontecimentos de maneira
descontraída, mas com profundidade e qualidade. O formato de podcast é um excelente recurso
para esse fim, pois permite que as discussões sejam mais longas, tendo os episódios do
Desnazificando em média uma hora de duração. Esse tempo mais prolongado permite a abordagem
de temas mais leves, como os dos episódios #05 - Entre a Hydra e a SS: os nazistas em Capitão América
e #10 - Por um universo equilibrado: Thanos e o Ultimato, em que foram analisados os filmes do Universo
Cinematográfico da Marvel. Mas também permite a abordagem de temas propriamente conceituais,
como nos episódios #02 - Desnazificação?, #13 - Hannah Arendt e a banalidade do mal [com Adriano
Correia] e #15 - Modernidade e Holocausto: conceitos da obra de Zygmunt Bauman135. Apesar da seriedade
dos temas, por não ser um formato acadêmico, o assunto pode ser tratado de maneira mais
descontraída, como uma conversa entre as apresentadoras, empregando uma linguagem menos
formal, sem se limitar ao modelo de aula expositiva ou palestra.

Apesar de o projeto de divulgação científica ainda não ter completado nem um ano desde
seu lançamento, os resultados obtidos foram bastante positivos e são um incentivo a manutenção
e continuidade do trabalho. O crescimento no número de seguidores dos perfis do NEPAT e a
interação e o feedback recebidos deixaram claro que o público se interessa e pode ser cativado por
um conteúdo sério e por uma produção de qualidade.

135Os episódios podem ser encontrados no site do núcleo. Disponível em: https://www.nepatufmg.com/podcast-
desnazificando. Acesso em: 16 dez. 2020.
379

Referências

Albieri, Sara. História pública e consciência histórica. In: Almeida, Juniele Rabelo de; Rovai,
Marta Gouveia de Oliveira. (orgs.) Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, pp.
19-29.

Foster, Meg. Online and Plugged In? Public History and Historians in the Digital Age. Public
History Review. Sydney, vol. 21, pp. 1-19, 2014.

Liddington, Jill. O que é história pública? In: Almeida, Juniele Rabelo de; Rovai, Marta Gouveia
de Oliveira. (orgs.) Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, pp. 31-52.

Malerba, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era


digital. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 37, nº 74, pp. 135-154, 2017.

NEPAT. 9 de Novembro de 1938 - Noite dos Cristais. Belo Horizonte, 9 nov. 2020a. Instagram:
@nepat.ufmg. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CHX8_8Bhqak/. Acesso em: 16
dez. 2020.

NEPAT. Banalidade do mal. Belo Horizonte, 13 out. 2020b. Instagram: @nepat.ufmg.


Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGSbjkFlUPs/. Acesso em: 16 dez. 2020.

Rosanvallon, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda, 2010.
380

Educação Patrimonial no Parque Três Meninas: o despertar de


uma relação de pertencimento dos moradores de Samambaia com
o Parque

Bibiana Soyaux de Almeida Rosa*


Lais Ayres da Fonseca**
Mayara Freire Costa***
Monica Patricia Daduch****

Resumo: apresenta-se neste artigo o processo de elaboração da Oficina Didática Parque Três
Meninas, desde seu espaço de produção dentro do curso “Outras Brasílias”, oferecido pela
Universidade de Brasília - UnB em parceria com a Subsecretaria de Formação Continuada dos
Profissionais da Educação - EAPE, até seus demais desdobramentos a partir da Educação
Patrimonial. Trata-se de uma Oficina Didática que instrumentaliza a História Local e a Educação
Patrimonial como formas de explorar narrativas não-hegemônicas sobre a história do DF ou das
formas de pertencimento histórico. Apresentamos o Parque Três Meninas como um local cuja
historicidade coincide com a cidade de Samambaia e, dessa forma, pode ser compreendido como
um patrimônio histórico capaz de produzir sentidos de pertencimento e historicidade ao estudante
e à comunidade a partir de ações pedagógicas.

Palavras-chave: Parque Três Meninas, educação patrimonial, história local.

Introdução

O presente trabalho foi desenvolvido a partir da atividade final do curso Outras Brasílias,
oferecido pela Universidade de Brasília - UnB em parceria com a Subsecretaria de Formação
Continuada dos Profissionais da Educação – EAPE. O curso Outras Brasílias se propôs, por meio
de diversas oficinas temáticas, a trazer para o centro do debate um olhar contra hegemônico da
história do Distrito Federal, para além do limite histórico geográfico de Brasília e sua construção.
Estruturado em equipes interdisciplinares e divididas por regiões de atuação profissional dos
cursistas, o curso proporcionou que toda a sua proposta de estudo e reflexões fosse aplicada para
as regiões de atuação das equipes. Desde o primeiro momento foi constatada a escassez de registros
não oficiais da história de Samambaia, que tem sua história narrada a partir da distribuição de lotes

* É professora de História do quadro da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. Estudante de Psicologia
no Centro Universitário de Brasília.
** É professora de História e Pedagogia do quadro da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.
*** É professora de História do quadro da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e mestranda em

História pela Universidade de Brasília – UnB.


**** É professora de Espanhol do quadro da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal e no UnB Idiomas.
381

e oficialização da cidade como Região Administrativa em 1989. Os que vieram antes desse registro
e o que se passou na cidade, não ganham destaque e atenção em sua história oficial. Deste fato
surgiu o interesse em estudar o local que tem sua construção histórica e cultural paralela à
construção da nova capital.

O Parque Três Meninas tem na consolidação de Brasília como a nova capital o início de
sua própria história. O território fora arrendado pelo pioneiro Inezil Penna Marinho que veio para
o DF com a incumbência de fazer a transição do Ministério da Educação e Cultural do Rio de
Janeiro para Brasília. No terreno de 72 hectares ele construiu uma casa para a moradia de sua família
e três casinhas de bonecas, em tamanho real, para suas três filhas, o que originou o nome do local.

O parque foi inicialmente, além de residência para a família Marinho, uma granja de criação
de aves para abastecimento do Hotel Nacional. Posteriormente, quando deixou de ser propriedade
do Sr. Inezil passando a ser propriedade do Distrito Federal, o terreno atendeu à população de
Samambaia de diversas formas: foi um dos pontos de distribuição de lotes para os futuros
moradores da cidade, foi um espaço cultural abrigando uma Escola Classe e uma Biblioteca,
posteriormente foi sede de um posto de saúde de tratamentos alternativos e fitoterápicos e recebeu
um assentamento provisório de sem terras. Somente em 1993 o local passa a ser oficialmente um
parque. Mesmo o parque estando presente na formação populacional e cultural da cidade de
Samambaia, a relação dos moradores com o parque é conturbada como veremos mais a frente.

A iniciativa de trabalhar a historicidade do parque em busca de uma relação de


pertencimento pelos moradores de Samambaia, surge da percepção de invisibilidade e
desvalorização que o parque sofre pela própria comunidade e pelo poder público. O parque é
reconhecido e regulamentado em seu âmbito ambiental, porém no que tange a parte histórica
cultural, há uma grande defasagem na preservação. Para tanto o trabalho traz como abordagem
conceitual a Educação Patrimonial como objeto de construção dessa relação de pertencimento e
apropriação desse espaço pelos moradores de Samambaia. Segundo Maria de Lourdes Horta:

O trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um


processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança
cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a
geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de
criação cultural. (Horta, 1999, p. 4.)

Seguindo a metodologia do curso Outras Brasílias, o trabalho foi elaborado em formato de


Oficina Didática, onde o livro Oficinas de História136 foi um valioso referencial de consulta a fim

136
Oficinas de História – Projeto Curricular de Ciências Sociais e de História.
382

de proporcionar aos professores um guia de como trabalhar em sala de aula a presente temática e,
para os estudantes, uma forma mais interativa de se aprender a história local. A seguir
apresentaremos as justificativas da pertinência da oficina bem como da metodologia proposta.

Justificativa

A estruturação desta oficina se deu no processo de finalização do curso “Outras Brasílias”


que, como explicitado acima, buscou explorar outras narrativas e trajetórias que compõem a
história do DF, em oposição à história hegemônica que centraliza seu fio condutor em grandes
feitos de grandes homens. A metodologia do curso consistiu em dividir as cursistas em pequenos
grupos, de acordo com a lotação das docentes – no nosso caso, ficamos com o grupo de
Samambaia, regional de ensino das professoras Laís e Mônica. Como trabalho final, a tarefa foi de
elaborar uma oficina didática, similar aos métodos do curso, sobre a nossa localidade a partir da
perspectiva da História Local. Assim, em primeiro lugar, esta oficina se justifica como um eco deste
curso, em busca de amplificar as histórias locais do DF e inserir essas narrativas nas nossas práticas
escolares.

Enquanto discutíamos o escopo da nossa Oficina Didática, de imediato o Parque Três


Meninas se apresentou como o ponto de partida. Durante todo o percurso do curso, o Parque
aparecia quando olhávamos para Samambaia, mesmo que de relance. Naquele momento, a escolha
parecia óbvia e a sua potência foi se construindo à medida que debatíamos e pesquisávamos sobre
o Parque e sua relação com a história de Samambaia.

A História Local é um olhar para o passado que contempla as especificidades e os processos


além das grandes narrativas, grandes feitos ou grandes unidades de análise (aqui, a Brasília de JK).
É uma abordagem que aprimora as noções de passado, história e pertencimento e, portanto, é uma
abordagem absolutamente necessária para ser apresentada em sala de aula. Em primeiro lugar, pois
permite a construção de noções das(os) estudantes enquanto sujeitos históricos, sociais e políticos,
à medida que os lugares que ocupam na sociedade também tomam corpo histórico. Em segundo
lugar, porque é uma abordagem que chama a necessidade de outros saberes e vivências para compô-
la.

Ao eleger o Parque Três Meninas como foco da História Local, pretendíamos construir um
percurso didático que a) trabalhasse a historicidade do Parque em relação à História de Samambaia
e b) explorasse sua importância histórica, cultural e patrimonial para a comunidade ao redor. Nesse
sentido, a Educação Patrimonial também se apresentou como mais uma escolha óbvia.
383

Compreendemos patrimônio como conjunto de realizações e expressões culturais de determinada


sociedade/comunidade. Portanto, o patrimônio é sempre vinculado a sua história e à comunidade
que lhe dá sentido. Assim, trabalhar as noções de patrimônio é um instrumento para estudar a
história local em uma perspectiva que vincula a prática escolar, a constituição do pertencimento
histórico da(o) estudante à comunidade e a comunidade em si.

A Educação Patrimonial tem como princípio envolver a comunidade na construção dos


saberes sobre aquela localidade e despertar a consciência social, histórica e política daqueles que a
constituem. Consideramos aplicar tal perspectiva em nossa Oficina por compreender que o Parque
Três Meninas possui uma historicidade que acompanha a cidade de Samambaia, podendo ser vetor
da construção da consciência histórica referente à cidade.

Nesse sentido, compreendemos patrimônio como resultado da produção cultural e de


sentidos da existência humana – podendo ser material ou imaterial. Outro aspecto importante é
que o patrimônio, entendido na perspectiva da Educação Patrimonial, possui caráter
impermanente, uma vez que seus sentidos e significados são sempre constituídos em relação à
história e à comunidade que o rodeia. Por isso que a Educação Patrimonial aparece como central
em nossa Oficina, é uma abordagem potente para explorar tais caráter do Parque e criar vínculos
significativo entre estudantes e o espaço que convivem.

Buscamos, portanto, expandir a noção de patrimônio. Assim como a História de Brasília


foi constituída em uma centralidade, a ideia do que é um patrimônio, do que é um ponto turístico
relevante ou do que tem significância histórica ecoa tal perspectiva hegemônica. Pontuar uma
localidade da periferia do Distrito Federal como um lugar de memória e de história é uma forma
de afrontar a narrativa hegemônica bem como as lógicas de circulação e de lazer que marcam as
cidades. O Parque Três Meninas é um local que acompanhou a construção de Brasília e teve
participação ativa na idealização e construção de Samambaia.

Assim, essa Oficina Didática se justifica por trabalhar o aspecto histórico do Parque com
estudantes e com a comunidade. Quando começamos a idealizar a oficina, prontamente fizemos
uma pesquisa via formulário Google com a comunidade. Formulamos algumas perguntas para
aferir qual a percepção que o parque tem na comunidade. Recebemos 160 respostas, que nos serviu
para balizar de forma qualitativa nossa abordagem ao tema. Segundo as respostas dos formulários,
90,6% já ouviram falar do Parque Três Meninas, sendo que 23,1% afirmaram ir com frequência. O
mais interessante para o escopo da Oficina foi o seguinte questionamento: “Pra você, qual a
importância do Parque Três Meninas?”. A essa pergunta, 43.8% responderam ser uma reserva
ecológica; 50% responderam ser um espaço de lazer e ponto de encontro; 91% responderam fazer
384

parte da história de Brasília e da construção de Samambaia enquanto apenas 10% responderam ser
um marco histórico para Brasília.

Cremos que essa disparidade entre reconhecer o local como parte da história de Brasília e
reconhecê-lo como um marco para a História de Brasília tem a ver com as narrativas sobre a história
da capital e a marginalização das demais cidades do DF quando pensamos em Brasília enquanto
Patrimônio. A Oficina, portanto, procura diminuir essa disparidade ao trabalhar os conceitos de
História Local sob a perspectiva da Educação Patrimonial, de forma a aproximar o Parque e sua
História das/os estudantes e da comunidade.

Por fim, elaboramos a Oficina com base nas prerrogativas da Base Nacional Curricular
Comum e elaboramos o percurso didático segundo os aportes pedagógicos propostos pelo Novo
Ensino Médio. A perspectiva da Educação Patrimonial dá espaço para se trabalhar a
interdisciplinaridade e promover ações educativas a partir do desenvolvimento de habilidades e
competências, conforme a BNCC preconiza. De forma complementar, o Roteiro Investigativo
elaborado insere tal modalidade de ensino no Novo Ensino Médio, trabalhando com os conceitos
de prática inicial, socialização e catarse.

Assim, essa Oficina se insere em um movimento de valorizar a educação pública e seus


instrumentos frente ao avanço neoliberal da educação. Todas as justificativas de “inovação do
ensino”, “pertinência para a vida do aluno” entre outras, são objetivos que devem ser galgados na
e pela escola pública. Perante o risco de esvaziamento da escola pública, o curso Outras Brasílias,
esta Oficina e as demais que também resultaram deste curso, demonstram que a solução para a
educação brasileira reside no Ensino Público.

Metodologia

Ao fazer uso da metodologia da Pedagogia Histórico-Crítica na abordagem dos conteúdos,


procura-se resgatar o que as alunas e alunos trazem como conhecimentos prévios, aqueles que
foram construindo ao longo da vida e pela experiência familiar ou da comunidade onde moram.
Junto com eles e somando os conhecimentos científicos vão aos poucos construindo uma nova
visão da realidade e se for necessário, a transformam, ou simplesmente a valorizam e internalizam
como algo precioso a ser custodiado e guardado.

Este método visa estimular a atividade e a iniciativa do professor; propiciar o


diálogo e a participação efetiva dos alunos e do professor, sem deixar de valorizar
o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levar em conta os interesses,
os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico dos alunos, sem
385

perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e


gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos
cognitivos (Gasparin e Petenucci, 2008)

O filósofo Dermeval Saviani caracterizou o método com cinco etapas que o professor deve
promover no processo pedagógico, para que o processo de ensino-aprendizagem tenha resultados
satisfatórios. São elas: prática social inicial, problematização, instrumentalização, catarse e prática
social final137.

Prática social inicial

Esta é a primeira etapa da prática pedagógica realizada com o método histórico-crítico.


Segundo Araújo (2009) “a prática social inicial implica em conhecer a experiência de cada aluno,
sua memória e seu saber prático”.

Em princípio, o professor situa-se em relação à realidade de maneira mais clara e


mais sintética que os alunos. Quanto a estes, pode-se afirmar que, de maneira
geral, possuem uma visão sincrética, caótica. Frequentemente é uma visão de
senso comum, empírica, um tanto confusa, em que tudo, de certa forma, aparece
como natural. Todavia, essa prática do educando é sempre uma totalidade que
representa sua visão de mundo, sua concepção da realidade, ainda que, muitas
vezes, naturalizada (Gasparin, 2007).

Steimbach (2008) explicita a prática social inicial como o ponto de partida do processo
pedagógico.

Problematização

De acordo com Gasparin (2007), a problematização representa o momento do processo


pedagógico em que a prática social é posta em questão, analisada, interrogada, levando em
consideração o conteúdo a ser trabalhado e as exigências sociais de aplicação desse conhecimento.

É aqui que ocorre o ato de vislumbrar o conteúdo em diferentes dimensões


sociais. Um conteúdo problematizado deverá mostrar-se através de várias
dimensões (conceitual, histórica, social, política, estética, religiosa, etc.)
(Steimbach, 2008)

137
Pereira da Silva, Leandro. Metodologia da Pedagogia Histórico- Crítica, da Prática social à Prática social
386

Estudantes e docentes, juntos, procuram “detectar que questões precisam ser resolvidas no
âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é necessário dominar” (Saviani,
2008). O docente deve saber provocar a curiosidade e fazer com que os estudantes se perguntem,
questionem o assunto a ser abordado e o critiquem, buscando possíveis soluções.
Instrumentalização

Chegamos à etapa em que o conteúdo será trabalhado em diferentes dimensões. Um


mesmo assunto pode ser abordado em diferentes Componentes Curriculares. Segundo Gasparin e
Petenucci (2008), este é o momento em que o professor “apresenta aos alunos através de ações
docentes adequadas o conhecimento científico, formal, abstrato, conforme as dimensões escolhidas
na fase anterior”. E os estudantes, ainda conforme os autores, “por meio de ações estabelecerão
uma comparação mental com a vivência cotidiana que possuem desse mesmo conhecimento, a fim
de se apropriar do novo conteúdo”. Dessa forma, Saviani explica a instrumentalização:

Trata-se de se apropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao


equacionamento dos problemas detectados na prática social. Como tais
instrumentos são produzidos socialmente e preservados historicamente, a sua
apropriação pelos alunos está na dependência de sua transmissão direta ou
indireta por parte do professor. [...] o professor tanto pode transmiti-los
diretamente como pode indicar os meios pelos quais a transmissão venha a se
efetivar. (Saviani, 2008)

Catarse

A palavra catarse (do grego “kátharsis”) significa purificação e possui uma dimensão coletiva
na tradição das tragédias gregas. Neste contexto, a catarse é o momento em que o aluno manifesta
um entendimento do conteúdo138. Para Saviani, catarse é:

A expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se


ascendeu. [...] Trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais,
transformados agora em elementos ativos de transformação social. [...] Daí
porque o momento catártico pode ser considerado como o ponto culminante do
processo educativo, já que é aí que se realiza pela mediação da análise levada a
cabo no processo de ensino, a passagem da síncrese à síntese; em consequência,
manifesta-se nos alunos a capacidade de expressarem uma compreensão da
prática em termos tão elaborados quanto era possível ao professor. (Saviani, 1999
apud Gasparin, 2007)

138
Pereira da Silva, Leandro. Metodologia da Pedagogia Histórico- Crítica, da Prática social à Prática social
387

Gasparin e Petenucci (2008, p. 10) afirmam que o estudante, neste momento, apresenta
uma “nova postura mental unindo o cotidiano ao científico em uma nova totalidade concreta no
pensamento. Neste momento o educando faz um resumo de tudo o que aprendeu, segundo as
dimensões do conteúdo estudadas. É a elaboração mental do novo conceito do conteúdo”.

A catarse é uma etapa muito importante, pois é nela que o docente saberá se alcançou os
objetivos da oficina, e se poderá avançar no processo pedagógico. Este seria o momento de
“avaliar” se os estudantes internalizaram o conteúdo.

Prática social final

Conforme Saviani

...a prática social inicial e a prática social final é e não é a mesma. É a mesma no
sentido de que não se consegue uma transformação das condições sociais
objetivas da escola e muito menos da sociedade como um todo. Mas não é a
mesma a partir do momento em que houve uma transformação do educador e
do educando nesse processo, refletindo em outras instâncias da sociedade.
(Saviani, 2001, apud Araujo, 2009)

Neste momento o estudante demonstra que realmente aprendeu, manifestando mudanças


em seu comportamento em relação ao conteúdo.139 Para Gasparin e Petenucci (2008, p.10), ela se
manifesta “pelo compromisso e pelas ações que o educando se dispõe a executar em seu cotidiano
pondo em efetivo exercício social o novo conteúdo científico adquirido”.

Roteiro investigativo

O roteiro investigativo é elaborado sob uma estrutura sequencial de “passos investigativos”,


em cada um destes há uma descrição do objetivo que se deseja alcançar. E assim, orientando o
alcance destes objetivos, questões são colocadas de forma prática, onde o docente propõe a
atividade pedagógica a ser desenvolvida.

O primeiro passo consiste em estabelecer um primeiro contato com os conhecimentos


prévios dos alunos com relação ao Parque Três Meninas bem como sua localidade, importância em
Samambaia, e caracterização de suas respectivas funções e significados. Neste caso, tem-se um

139
Ibidem.
388

alcance da percepção visual e simbólica do objeto a ser analisado pelos estudantes. A proposta de
atividade pedagógica deste passo, é a elaboração de um roteiro de entrevistas que deverá ser
realizada com um familiar do estudante ou alguém que more há décadas em Samambaia.

No roteiro investigativo, as ferramentas metodológicas da História Oral são utilizadas para


que deste modo o estudante tenha acesso a dimensões representativas daqueles que narram a sua
própria história em conexão a historicidade do Parque Três Meninas. Quando os entrevistados são
colocados no lugar de fala como sujeitos do processo, o maior número de lembranças possíveis
vem a tona, à medida em que são provocados a fazê-las por meio do roteiro elaborado pelo próprio
estudante. A memória evidencia como os acontecimentos foram processados por quem relembra,
criando edificações imagéticas em torno de si mesmo. Nas palavras de Eclea Bosi (1994):

Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias
de hoje, as experiências do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente
de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão,
agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa
consciência atual. (Bosi, 1994, p. 55).

De certa forma, os entrevistados filtram aquilo que desejam rememorar evidenciando


fragmentos representativos de seu passado, como sua chegada em Samambaia e o retrato do
imaginário que se tem sobre o Parque. Neste procedimento didático e metodológico, conduzido
pelos estudantes na função de investigadores do passado, as memórias são substanciais fontes orais,
no sentido de que se colocam como meio de compreensão e estudo do presente. Nas palavras de
Matos e Sena (2011, p. 101) “através dela podemos conhecer sonhos e anseios de pessoas anônimas
que viveram os acontecimentos de sua época”.

A essência pedagógica desta proposta é o reconhecimento do Parque como Patrimônio.


Sendo assim uma sequência da atividade anterior onde os relatos orais devem ser tratados como
uma das evidências investigativas que ajudam a compreender, conhecer e valorizar o Parque Três
Meninas enquanto lugar de memória e conservação ambiental. Deste modo, tem se a possibilidade
de entender o Parque como uma localidade parte da formação urbana, cultural e identitária de
Samambaia.

É neste sentido que a metodologia da Educação Patrimonial orienta e organiza as atividades


propostas pelo roteiro investigativo na função social, conforme Figueira e Miranda (2012) “estimula
os estudantes a fazerem uma leitura crítica da realidade, tornando-se capazes de propor soluções
para resolução de problemas relacionados ao patrimônio”. Nesta perspectiva da Educação
Patrimonial, o Parque Três Meninas é referenciado como um lugar de memória (Nora, 1993), onde
389

o aluno torna-se capaz de conhecer e vivenciar a cultura do local que habita, de criar seus próprios
vínculos com o Patrimônio e dessa forma construir sua identidade social e cultural.

As entrevistas produzidas pelos estudantes, quando apresentadas na sala de aula conferem


a possibilidade de compreender um recorte histórico em sua especificidade temporal e espacial de
pessoas que foram testemunhas de seu próprio tempo. Ocorre o despertar da curiosidade dos
alunos pelos processos históricos, principalmente pelo fato de que podem nomear personagens
dos quais possam se recordar (PINSKY, 2010). E assim, este trabalho investigativo sobre o Parque
Três Meninas ganha seu contorno de uma escrita da História que pode ser trabalhada no cotidiano
pedagógico de uma sala de aula.

Durante a elaboração do roteiro investigativo, juntamente com a análise das pistas “Figuras
do Agreste” e a entrevista com Cecilda Maria, surgiu a demanda de dialogar com uma História das
Mulheres, bem como problematizar a construção de uma narrativa masculina sobre a história do
Distrito Federal. O fato também de ter-se um objeto de estudo chamado “Parque Três Meninas”
evoca também a necessidade de termos uma narrativa feminina que se contrapõe a hegemonia de
uma história de homens centrada em documentos oficiais.

Acessar estas narrativas orais de mulheres não nos dão certeza da plenitude histórica, mas
percebe-se que elas estavam juntas na necessidade de “conseguir um lote” e firmarem-se em
Samambaia com suas famílias. Pois essas mulheres, mesmo em condições adversas, foram pioneiras
de suas histórias, e por este motivo, sua invisibilidade na narrativa hegemônica deve ser
problematizada. Segundo Muniz (2013):

Se a historiografia delas não fala, não é porque não tenham existido, mas porque
estavam fora dos locais e dos papeis a elas destinados, daí ignorá-las. Como a
história é um discurso soletrado no masculino, reconhece somente a presença
das mulheres nos lugares autorizados, isto é, no espaço privado da domesticidade
e não da política e da economia e da guerra. (Muniz, 2013, p. 224)

Entre as pistas “Figuras do agreste” e a entrevista com Cecilda Maria, é possível estabelecer
um diálogo de representações das mulheres que se estabeleceram em Samambaia no início da
ocupação. Segundo a entrevistada, um dos quesitos mais importantes para o recebimento dos lotes
seria de “famílias chefiadas por mulheres que tivessem muitos filhos.” Com base nesta narrativa
comum a muitas moradoras de Samambaia, Skartazini refletiu em sua obra a relação destas
mulheres com o uso do chafariz como recurso hídrico fundamental para esta cidade.

Considerações Finais
390

A oficina didática apresentada neste artigo foi comunicada aos pares no IX Encontro
ANPUH-DF, no Simpósio Temático V - Por um ensino de História Pluriepistêmico: diferentes
possibilidades de ensinar, aprender e fazer circular o conhecimento histórico, coordenado pela Dra.
Iara Toscano Correia (Universidade Federal de Uberlândia – UFU) e Dra. Cristiane de Assis Portela
(Universidade de Brasília – UnB), no dia 02 de dezembro de 2020.

Cabe ainda esclarecer que a oficina não foi aplicada a nenhum grupo de estudantes até o
momento, e que, portanto, está passível de ajustes no que concerne ao encontro da teoria com a
prática. As autoras entendem que este é um trabalho com potencial de adaptação a todas as etapas
da Educação Básica e que esse fator já configura a necessidade de revisitar o trabalho ao passo que
novos dados e contribuições da comunidade escolar forem surgindo.

Considerando a relevância da temática para a comunidade de Samambaia, as autoras


desenvolveram um site140 que hospeda a oficina didática contendo a proposta de roteiro
investigativo, todo o material levantado em pesquisa, bem como as fontes produzidas para a
elaboração da mesma (entrevista, registros imagéticos e textuais, dentre outros). O objetivo é fazer
uso de uma história pública e proporcionar um maior alcance da proposta didática ao corpo
docente da rede de ensino de Samambaia. O site é também uma vitrine para o Parque Três Meninas
e evidencia o caráter patrimonial e histórico desse bem público, portanto é uma fonte valiosa de
pesquisa sobre o Parque e sobre a cidade Samambaia.

Referências
Araujo, Doracina Aparecida de Castro. Pedagogia histórico-crítica: proposição teórico metodológica
para a formação continuada. 2009. Anais do Sciencult, 1(1). Disponível em:
http://periodicos.uems.br/novo/index.php/anaispba/article/viewFile/180/114. Acesso em: 17
dez. 2020.

Bosi, Eclea. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

Figueira, Cristina Reis; Miranda, Lílian Lisboa. Educação Patrimonial no ensino de História nos anos
finais do Ensino Fundamental: Conceitos e práticas. 1º Edição. São Paulo: Somos Mestres, 2012.

Gasparin, João Luiz; Petenucci, Maria Cristina. Pedagogia histórico-crítica: da teoria à prática no
contexto escolar. 2008. Disponível em:
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2289-8.pdf. Acesso em: 17 de dez.
de 2020.

Grinberg, Keila; Lagôa, Ana Mascia; Grinberg, Lúcia. Oficinas de História: projeto curricular de
ciências sociais e de história. Belo Horizonte: Dimensão, 2000. 344 p.

140
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391

Horta, Maria de Lourdes Parreira; Grunberg, Evelina; Monteiro, Adriane Queiroz. Guia Básico da
Educação Patrimonial. Brasília, IPHAN, Museu Imperial, 1999.

Matos, Julia Silveira; Senna, Adriana Kivanski. História Oral como fonte: problemas e métodos.
Disponível em: https://periodicos.furg.br/hist/article/view/2395. Acesso em: 15 Dez. 2020.

Muniz, Diva do Couto Gontijo. Mulheres, Cultura e Cidadania: Memória e História. In: Costa,
Cléria Botelho da; Ribeiro, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante. Fronteiras Móveis: Culturas,
Identidades. Goiânia: Editora da PUC Goiás, 2013.

Pereira da Silva, Leandro. Metodologia da Pedagogia Histórico-Crítica, da Prática social à Prática Social.
Disponível em: https://www.efdeportes.com/efd205/metodologia-da-pedagogia-historico-
critica.htm. Acesso em: 17 Dez. 2020.

Saviani, Demerval. Escola e democracia. Edição comemorativa. Campinas – SP: Autores Associados,
2008.
392

Comércio Britânico no Império brasileiro: a atuação da firma


Francis Le Breton, 1818-c.1831

Bruna Digiacomo Cerveira Coutinho*

Resumo: o presente trabalho tem como objetivo analisar a presença inglesa no Rio de Janeiro
durante a primeira metade do século XIX. O estudo de caso da firma Francis Le Breton – sua
atividade comercial, como importação e exportação - ilustra de forma contundente a importância
dos ingleses na economia do Império Brasileiro.

Palavras-chaves: comércio, capital mercantil, negócio de grosso.

A presença britânica no Brasil da primeira metade do século XIX, particularmente dos


comerciantes ingleses, tem sido tratada de uma forma generalizada. A historiografia brasileira sobre
a participação dos ingleses no Brasil, particularmente os trabalhos de Gilberto Freire, Ingleses no
Brasil (1948), Richard Graham, Grã Bretanha e a modernização no Brasil (1972), Olga Pantaleão,
A presença inglesa (1976) e Riva Gorestein, Comércio e Política: o enraizamento dos interesses
mercantis portugueses no Rio de Janeiro (1808-1831), corroboram com o clássico trabalho de Alan
K Manchester, Preeminência inglesa no Brasil (1933). Em outras palavras, enfatizam na
preeminência e na modernidade inglesa no século XIX em detrimento do comércio e comerciante
"arcaico" português.

A partir dos estudos mais específicos sobre a organização e a forma de atuação das firmas
britânicas, a visão mais geral passou a ser revista. Ana Célia Castro, As Empresas Estrangeiras no
Brasil 1860-1913 (1979), e Maria Barbara Levi e Flávio Saes, Dívida Externa brasileira, 1850-1913:
empréstimos públicos e privados (1990), chamaram atenção para o novo tipo de investimento
direto inglês após 1850: os bancos e as ferrovias.

Entretanto, os trabalhos acima citados priorizaram o período após 1850, marcado pela
criação do Código Comercial, o fim do Tráfico Negreiro e a Lei de Terras. Para o período anterior,
mais especificadamente, o da abertura dos portos de 1808 até 1850, existem poucos trabalhos sobre
a atuação das firmas comerciais britânicas no comércio importador e exportador brasileiro.

*
Mestranda na Universidade Federal Fluminense
393

O objetivo deste projeto consiste em analisar a organização e a atuação da firma britânica


Francis Le Breton & Co no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, mais especificamente
até 1831, momento em que ocorre a abdicação de D. Pedro I, quando também é promulgada a Lei
de 1831 do Comércio ilegal de escravos. Ao estudar esse período, será possível analisar os possíveis
impactos da lei no comércio de longo curso, nas importações inglesas que era reexportadas para a
África.

A firma era organizada pelo comerciante natural da Ilha de Jersey Francis Le Breton, que
chegou no Rio de Janeiro na década de 1810, esta firma atuou tanto no comércio de exportação,
quanto no comércio de importação. No primeiro, exportou produtos da pecuária (Rio da Prata),
açúcar (Rio de Janeiro e Bahia), e depois o café (Rio de Janeiro), sendo que na década de 1840, ela
se tornou numa das maiores exportadoras do “ouro negro”. No segundo, atuou na importação de
mercadorias de grande consumo no Rio de Janeiro, como o bacalhau (Terra Nova-Canadá), fios e
tecidos (Liverpool), madeira (Noruega) e até carvão (Gales).

Portanto, a partir da análise da organização, dos produtos transacionados e da forma de


organização e atuação da firma Francis Le Breton & Co., pretendo rediscutir o impacto da presença
britânica na conjuntura de consolidação do Estado Imperial brasileiro de meados do século XIX.

O tema e sua relevância

A abertura dos portos portugueses para as “nações amigas”, decretada pelo príncipe regente
D. João na Bahia, em 28/01/1808, e o Tratado de Comércio e Navegação de 19/02/1810 foram
importantes para a economia britânica141. A importância do mercado brasileiro para o comércio
britânico estava ligada não só ao seu papel de demanda por produtos ingleses, como também de
entreposto para o comércio com as colônias e ex-colônias espanholas na América. Para se ter uma
ideia da importância do mercado latino-americano, François Crouzet estimou que no período 1783-
1812, tal mercado mais a West Indies constituíram-se no segundo mercado das exportações inglesas
no período, perdendo somente para os Estados Unidos (Crouzet, 1990, p. 238). Segundo Olga
Napoleão, entre 15 de janeiro e 24 de maio de 1808, 44 navios ingleses obtiveram licença do Privy
Council para vir ao Brasil, e as exportações inglesas para o Brasil chegaram a 2.552.000 libras. Só
no período de 1 de agosto a 31 de dezembro do mesmo ano, as exportações foram no valor de

A respeito da pressão inglesa sobre Portugal, verificar o trabalho de Manchester, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil.
141

Tradução de Janaína Amado. São Paulo: Brasiliense, 1973. (caps. 3 e 4)


394

788.000 libras, sendo 114.000 libras correspondentes a mercadorias trazidas a fim de serem
reexportadas para Buenos Aires (Pantaleão, 1976, p. 88).

No tocante as exportações brasileiras para a Inglaterra, essas também aumentaram. Em


1808, o Brasil exportou 5.100.000 libras de algodão bruto, além das 1.662.000 libras que chegaram
ao mercado britânico via Portugal. Em 1809, foram exportadas 18.000.000 libras de algodão
brasileiro, e no ano seguinte, 20.000.000 libras (Pantaleão, 1976, p. 89).

A penetração britânica, especialmente a inglesa142, no comércio brasileiro foi de forma


intensa e especializada, o que fica bastante evidente nos produtos exportados para o Brasil e nas
firmas que aqui se fixaram. Somente no Rio de Janeiro, em 1820, havia mais de 60 firmas comerciais
inglesas, composta tanto por aventureiros, como também de filiais de firmas tradicionais inglesas,
tais como a Robert Kirwan & Cia, Valentin Chaplin & Cia e muitas outras (Platt, 1972, p. 42).

As “American Houses” (Chapman, 1993), como tais firmas ficaram conhecidas, além de
controlarem o comércio de exportação e importação de determinados produtos143, acabou
forçando os negociantes de grosso portugueses, até então monopolizadores dessas atividades, a
reforçarem suas posições em outras, como por exemplo, monopolizando o comércio da cabotagem
costeira, da corretagem e do tráfico negreiro144. Nesse último, as firmas britânicas também
desempenharam importante papel no seu financiamento, e que tratarei nesta pesquisa.145

142 Embora seja comum usar a palavra inglês para se referir do britânico, preferimos utilizar esta última, pois, durante
o reinado de Ana, a Rainha da Inglaterra, Escócia e Irlanda de 8 de março de 1702 até 1 de maio de 1707, foi
estabelecido o Tratado da União que uniu os reinos da Inglaterra e Escócia em um único estado soberano, o Reino
da Grã-Bretanha. Com o Ato da União de 1800, em 1º de janeiro de1801, foi criado o Reino da Grã-Bretanha e
Irlanda, e, somente com a independência da Irlanda em 1922, temos o atual Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda
do Norte. A respeito da questão “inglês ou britânico” conferir Burke, Peter e Burke, Maria Lúcia Garcia P. Os Ingleses.
São Paulo: Contexto, 2016
143
Assim como ocorreu no Brasil, no México, na Argentina e no Chile, as firmas britânicas concentraram-se no
comércio exportador e importador. Conferir: Heath, Hilarie J. British Merchant Houses in Mexico, 1821-1860:
conforming business Practices and ethics. Hispanic American Historical Review, vol. 73, n. 2, 1993, 261-290; Lewis, Colin
M. British Business in Argentina. London: LSE, 1995. (Working Paper in Economic History, n.º 26/1995); Figueroa,
Eduardo Cavieres. Comercio Chileno Y comerciantes Ingleses, 1820-1880: um ciclo de Historia Economica. Valparaiso:
Instituto de Historia/Universidad Catolica de Valparaiso, 1988
144
A respeito do poder econômico e político dos negociantes portugueses no Rio de Janeiro verificar os trabalhos de:
Lobo, Eulália M. L. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC,
1978; Gorestein, Riva e Martinho, Lenira Meneses. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro:
Secretaria. Mun. de Cultura do R.J, 1993. (Coleção Biblioteca Carioca vol. 24); Fragoso, João Luís Ribeiro. Homens de
grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1992; Florentino, Manolo. Em Costas Negras: uma História do Tráfico Atlântico de Escravos entre a África e o rio de
Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
145
Embora tal participação britânica e de outras nações no tráfico seja conhecida na historiografia através dos trabalhos
de Leslie Bethell e de Robert Conrad, ela foi aprofundada com a pesquisa do Prof. Luis Henrique Dias Tavares.
Conferir: Bethell, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de
escravos (1807-1869). Tradução de V. N. N. Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1976;
Conrad, Robert Edgar. Tumbeiros. O tráfico escravista para o Brasil. Tradução Elvira Serapicos. São Paulo: Brasiliense,
1985; Tavares, Luís Henrique Dias. O comércio Proibido de Escravos. São Paulo: Ática, 1988.
395

A forma de atuação das firmas britânicas numa sociedade predominantemente escravista,


principalmente na circulação de mercadorias, fez com que alguns autores vissem nelas, a atuação
do capitalismo moderno em detrimento da forma arcaica dos negociantes portugueses. Esta visão,
da modernidade britânica, que provocou impacto na organização mercantil portuguesa, estava
presente tanto nos trabalhos de Olga Pantaleão e Riva Gorestein, quanto nos trabalhos de Gilberto
Freire e de Richard Graham (Pantaleão, 1976; Gorestein, 1993; Freyre, 1973). É importante
destacar que, embora original para época, principalmente no tocante à documentação trabalhada,
o livro de Gilberto Freire corroborou com a visão do clássico trabalho de Alan K Manchester
(1973) da Preeminência Inglesa no Brasil.

A historiografia britânica, particularmente a Business History146, trabalhando com a forma


de organização da firma, a forma de atuação e que negócio desenvolvia, vem questionando uma
visão generalista sobre as firmas comerciais britânicas, e particularmente das inglesas.
Historiadores, como Charles Jones e J. P. Cain, analisando a organização e a forma de atuação da
das firmas inglesas até meados do século XIX, denominaram essas firmas de empresas comerciais,
ou seja, uma empresa comercial descentralizada e não subordinada administrativa e financeiramente
a City inglesa (Londres). Para Charles Jones, a empresa inglesa da época era uma típica empresa de
uma “burguesia comercial cosmopolita”. Já para J. P. Cain era uma empresa do “gentlemainly
capitalism”, e o ideal aristocrático estava presente nos negócios e práticas mercantis (Cain, 1986).

Stanley D Chapman foi outro historiador que discordou da visão generalista. Na visão do
autor, se no século XVIII, os negociantes britânicos possuíam uma diversidade de negócios, e no
século XIX, principalmente após as guerras napoleônicas e com a expansão da Revolução
Industrial, emergiu uma nova geração de especialistas e agentes de comissão, que residindo nos
principais centros de comércio no exterior, e com sócios na Inglaterra, implementaram um novo
tipo de comércio mais dinâmico e especializado (Chapman, 1992).

Outros autores, analisando a atuação das firmas num contexto da História Global147, como
Giovanni Arrigh, Keneth Barr e Shuji Hisaeda, trabalhando com a concepção do sistema mundo,

146 A respeito da Business History conferir Jones, Geoffrey and Amatori, Franco (ed). Business History around the world.
Cmbridge: Cambridge Un Press, 2003; Saes, Alexandre Macchione e Gonçalves, Caroline. Surgimento e
desenvolvimento da Business History: da História de Empresas à História de Negócios. Anais do XII Congresso Brasileiro
de História Econômica e 13ª Conferência Internacional de História de Empresas. Niteroi: ABPHE-UFF, 2017.
http://www.abphe.org.br/uploads/ABPHE%202017/14%20Surgimento%20e%20desenvolvimento%20da%20Busi
ness%20History.pdf
147 A respeito do retorno da História Global, e de seus vários significados, cf. Santos Junior, João Júlio Gomes dos e

Sochaczewski, Monique. História global: um empreendimento intelectual em curso. Tempo, Niterói, v. 23, n. 3, p. 483-
502, Dec. 2017 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
77042017000300483&lng=en&nrm=iso>. access on 24 Mar. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/tem-1980-
542x2017v230304.
396

atrelaram a atuação e a organização das firmas britânicas ao modelo organizacional do capitalismo


inglês, denominado de sistema de empresas comerciais familiares (Arrigh, Barr e Hisaeda, 2001).

Diante do que foi dito, algumas questões se apresentaram: A Francis Le Bretton & Co
constituiu-se num novo tipo de firma inglesa? A forma de atuação da firma dependeu do mercado
marcado por relações escravistas? Que tipo de negócios a firma desenvolveu no Brasil?

Objetivos:
Objetivo Geral

Analisar a atuação da Francis Le Breton & Co. no comércio Brasil-Grã-Bretanha no


período c.1810-c.1831.

Objetivos Específicos

Analisar a forma de atuação do capital mercantil britânico numa formação social e


econômica escravista como a brasileira;
Verificar as estratégias desenvolvidas pela Francis Le Breton & Co. no Brasil, numa
conjuntura econômica, política e social difícil como a da constituição e consolidação do Estado
Imperial brasileiro.
Analisar os principais produtos importados e exportados pela firma, bem como os
principais portos importadores e exportadores.

Hipóteses de Trabalho:

Nesta pesquisa trabalharei as seguintes hipóteses de trabalho:


1ª) A forma de atuação da casa comercial britânica Francis Le Bretton & Co. se constituiu
no exemplo de como o capital mercantil atuava numa sociedade escravista, como a brasileira época.
Atuando predominantemente na esfera da circulação, o lucro consistiu predominantemente na
diferença de compra e venda de mercadorias e dos altos juros do empréstimo do capital-dinheiro.
2ª) As ligações entre o capital mercantil britânico com uma fração da classe dominante, no
caso os negociantes de grosso trato nacionais e estrangeiros (portugueses), muitos deles traficantes
de escravos, permitiram explicar as dificuldades do governo britânico e, do próprio brasileiro, em
acabar com o tráfico negreiro no Brasil, já que este negócio era não só altamente lucrativo para ambos
negociantes, como também símbolo de poder.
397

Teoria, Metodologia e fontes:


A História de Empresas como uma área do conhecimento histórico é bastante recente.
Embora se considere o ano de 1925, ano em que se fundou a Sociedade Histórica de Empresas,
como o do nascimento desta especialização, até a década de 1940, a história de empresas consistia
na história das grandes firmas e nas biografias dos empresários (Jacob, 1994).

A década de 1950 constituiu-se no verdadeiro marco para a "virada" da História de


Empresas. Nos EUA, a partir dos estudos de Alfred Chandler Jr, na Grã Bretanha com D.C.
Coleman e Peter Mathias, e na França, com Pierre Vilar e Jean Bouvier (Levy, 1995), dos estudos
biográficos passou-se para o estudo de empresas e sua relação com a sociedade. Conforme colocou
muito bem um autor, da história de empresa passou-se para as empresas na história (Fraile, 1993).

No Brasil, os trabalhos na área de História de Empresas começaram a se desenvolver a


partir da década de 1960. Sob influência do pensamento da Comissão Econômica para América
Latina (CEPAL), e procurando compreender a questão do desenvolvimento econômico
(capitalismo) na periferia, surgiram trabalhos sobre a relação empresa/empresário, como os de
Fernando Henrique Cardoso (Cardoso, 1964). Entretanto, somente a partir da década de 1970,
baseados nos princípios teóricos dos trabalhos da Teoria da Dependência, nos dois principais
centros de produção de conhecimento histórico, São Paulo e Rio de Janeiro, representados
principalmente pelas Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal Fluminense (UFF),
começaram a produzir pesquisas acerca de empresas, justamente para compreender a relação do
micro, a empresa, com o macro, a totalidade da história. Tal foi o caso dos trabalhos do sociólogo
José de Souza Martins sobre o Conde Matarazzo, e da historiadora Maria Barbara Levy sobre a
Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (Martins, 1977).

Não é minha intenção discutir a polêmica entre a microanálise e a macro análise nas
pesquisas da História Econômica e Social, nem tão pouco desprestigiar a incorporação por parte
dos historiadores da teoria, dos métodos e das técnicas da ciência econômica, que sem dúvida
alguma possibilitou um avanço da pesquisa histórica. Entretanto, podemos constatar que ao
privilegiar o enfoque macroeconômico, com seus estudos sobre a renda, o nível dos empregos e
dos preços, o investimento e a poupança, e outros, as pesquisas na área da história econômica
tenderam muito mais para a macroanálise do que para a microanálise. Eric J. Hobsbawm, a respeito
do uso sistemático do quantitativo na história, colocou:

A história econômica tem um caráter essencialmente quantitativo, e por esse


motivo utiliza grande massa de estatística. No entanto, os dados numéricos
398

possuem limitações, muitas vezes não compreendidas pelo leigo ou desprezadas


pelo especialista, que, por necessitar deles, aceita-os com menos reservas do que
deveriam. (...). (Hobsbawm, 1983, p. 14).

Portanto, ao privilegiar o estudo de uma empresa, concordamos com Witold Kula quando
afirmou que

não se pode investigar a renda nacional e em especial interpretar seus resultados


se o investigador não possui um conhecimento prévio, ainda que aproximativo,
da atividade das unidades de produção (Kula, 1983, p. 14).

É importante ressaltar que, estudando os aspectos micro do fenômeno econômico, não


significa que aceitamos a ideia de que há uma incompatibilidade entre a macro e a microanálise na
história econômica, nem muito menos a primazia das unidades individuais sobre a coletiva. Neste
sentido, concordamos mais uma vez com Witold Kula, quando ressaltou que as duas análises se
complementam. Portanto, ao estudarmos uma empresa, temos que compreender que ela faz parte
de um todo, ou seja, de uma sociedade, e não se pode estudá-la sem

levar em conta as articulações recíprocas entre relações sociais e práticas


empresariais. A empresa é parte de um sistema de instituições interatuantes na
qual lhe cabe a produção de bens. Como parte interorgânica da sociedade, sua
atuação repercute sobre a estrutura social na qual se desenvolve e é, por sua vez,
influenciada por ela. (Levy, 1995, p. 27).

O estudo das histórias particulares da economia, tais como as instituições de crédito, a


indústria e as firmas comerciais são pontos de vista sobre a história econômica global e, “a este
título constituem um tipo particular do conjunto histórico” (Oliveira, 1992, p. 12). Marc Bloch, a
respeito disto, disse o seguinte:

Nada mais legítimo, nada mais salutar do que focalizar o estudo de uma sociedade
sobre um de seus aspectos particulares, ou ainda, sobre um dos problemas
precisos que compõem tal ou qual desses aspectos. (Bloch, s.d., p. 135).

No tocante à qualidade das informações sobre as firmas britânicas no Brasil, cabe ressaltar
que se constituiu numa lacuna. A história das firmas britânicas tem sido contada a partir da
documentação dos arquivos britânicos, principalmente os ingleses, muito mais organizados do que
os brasileiros. Face à dificuldade das fontes manuscritas, principalmente em virtude da ausência da
Conservatória Estrangeira no Arquivo Nacional148, privilegiarei as fontes impressas. Na Biblioteca

148 Embora alguns documentos da Conservatória Estrangeira foram encontrados no Arquivo do Tribunal da Justiça
em São Cristóvão, a documentação das firmas britânicas é escassa. Conferir: Guimarâes, Carlos Gabriel. A presença
inglesa nas Finanças e no Comércio no Brasil Imperial: os casos da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Co. (1854-1866)
e da firma inglesa Samuel Phillips & Co. (1808-1840). São Paulo: Editora Alameda, 2012.
399

Nacional trabalharei com os seguintes periódicos: Gazeta do Rio de Janeiro (1810-1821), Diário do
Governo (1824-1826) e o Diário do Rio de Janeiro (1821-1831) e o Jornal do Commercio (1828-
1831). Esses periódicos publicavam a chegada e saída de navios e mercadorias, leilões, consignações
e outras atividades, e cujos negociantes e firmas comerciais inglesas participavam. Como já ressaltou
o professor Carlos Gabriel Guimaraes nas suas pesquisas anteriores, estes periódicos, como
qualquer jornal, “contém uma tendência ideológica, e os fatos relatados em si não possuem uma
organização” (Gonçalves e Lobato, 1996). Portanto, cabe ao historiador, “aplicar este ajuntamento
de fatos numa perspectiva histórica, retirando desse caleidoscópio certa racionalidade,
identificando a história do jornal e outras histórias diferentes, na tentativa de construir uma história
inclusiva” (Idem).

Outros documentos da pesquisa serão os Almanaques, como o Almanack dos Negociantes


do Império de 1827, o Almanack Imperial do Commercio e das Corporações Civis e Militares do
Império do Brasil de 1829 e o Almanak Nacional do Commercio 1832149. Estas fontes terão que
ser lidas com cuidado, pois, se tratam de discursos produzidos num contexto histórico específico,
e todo discurso é uma prática social. Neste sentido, concordamos com Norman Fairclough quando
afirma que “o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação
do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (Flairclough, 2001, p. 91).

Resultados parciais

Os principais portos de origens foram Jersey, Montevidéu, Gibraltar e Guernsey.

As ilhas de Jersey e Guernsey (localizadas no Canal da Mancha, eram dependentes do Reino


Unido), e Gibraltar (território britânico ultramarino localizado no extremo sul da Península
Ibérica), eram importantes “entrepots” do comércio britânico face às suas localizações estratégicas.

Montevidéu, por sua vez, já era um importante porto comercial no Atlântico Sul, com
ligações comercias com o Rio de Janeiro desde o final do século XVIII, e foi capital da Província
Cisplatina, quando esta constituiu-se província do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de
1817 a 1822. Somente após a guerra da Cisplatina (1825-1828), a província se separou do Império
brasileiro, e foi criada a República Oriental do Uruguai.

Os principais portos receptores das exportações da firma foram em ordem decrescente:


Trieste, Cowes, Montevideo e Antuérpia. Trieste era o porto franco do Império Austro-Húngaro

149 Estes Almanaques foram editados por Pedro Plaucher-Seignor.


400

(saída para o Mar Adriático); Cowes era uma cidade portuária e paróquia civil da Ilha de Wight, e
pertencente à Inglaterra (Grã-Bretanha).

A razão da Antuérpia ser uma cidades que mais recebeu mercadorias através da Francis Le
Breton era o fato de ser a maior cidade da região da Flandres na Bélgica (outrora conhecida como
as províncias do Sul do Reino Unido dos Países Baixos, a Bélgica ficou independente em 1830 com
Revolução Belga).

Referências

Periódicos:

Gazeta do Rio de Janeiro, 1810-1821


Diário do Governo, 1824-1826
Diário do Rio de Janeiro, 1821-1831
Jornal do Commercio, 1828-1831

Almanaques e Anuários:

Almanack dos Negociantes do Império do Brasil publicado por publicado Plaucher-Seignor,


impressor livreiro de S. M. o Imperador. Primeiro Anno. Rio de Janeiro: Em Casa do Editor
Proprietário, 1827.

Almanack Imperial do Commercio e das Corporações Civis e Militares do Império do Brasil


publicado por Pedro Plaucher-Seignor, para 1829. Segundo Anno. Rio de Janeiro: Em Casa de
Pedro Plancher-Seignot, 1829.

Almanak Nacional do Commercio. Terceiro Anno. Rio de Janeiro: Plancher-Seignot, 1832.

Almanack Geral do Império do Brazil publicado por Sebastião Fábregas Surigué. Rio de Janeiro:
Typographia de S. F Surigué, 1838.

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404

As transformações no cotidiano fúnebre aracajuano durante as


epidemias de varíola e febre amarela (1873-1874)

Bruna Morrana dos Santos*

Resumo: sob a égide do discurso da modernidade e do progresso, após o ato administrativo de 17


de março de 1855, um pequeno reduto de pescadores tornou-se o novo centro administrativo da
província de Sergipe. A recém-criada cidade de Aracaju deveria tornar-se, ao mesmo tempo, o eixo
político e econômico que a província precisava. Além das transformações urbanas vivenciadas pela
nova capital durante os seus primeiros anos de existência, da tessitura de estratégias sociais,
econômicas e políticas, é importante desvendar também, como naquele momento os agentes
históricos que passaram a viver em Aracaju e administrá-la, lidaram com as constantes moléstias,
causadas segundo a opinião pública da época, pelos seus “ares” e pelo fato de ter sido a cidade,
construída às custas do aterramento de charcos e pântanos. Também é importante ressaltar que, a
efervescência das discussões sobre a ideologia higienista e a secularização dos cemitérios, também
influenciaram os discursos e as políticas públicas engendradas pelas autoridades provinciais e
provocaram mudanças na relação dos indivíduos com as doenças e com a hora derradeira. Sendo
assim, o presente trabalho visa identificar de que maneira a epidemia de varíola que grassou a cidade
entre os anos de 1873 e 1874, engendrou transformações nas práticas fúnebres na Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição do Aracaju. Além disso, objetiva-se analisar a participação dos
membros da “primeira elite” aracajuana no combate à doença. Para isso, foram tratados
quantitativamente os registros paroquiais de óbito da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
do Aracaju, e analisados alguns testamentos e inventários da Comarca de Aracaju, além de edições
do periódico “Jornal do Aracaju” que circulava na cidade.

Palavras-chave: epidemias, Aracaju, século XIX.

Depois da transferência da capital da província de Sergipe no ano de 1855, a cidade de


Aracaju, que anteriormente era chamada de “praia deserta”, passou a receber um afluxo
considerável de pessoas provenientes de várias partes da província, sobretudo da Zona da
Cotinguiba. Na verdade, antes da oficialização da transferência, a região que compreendia as praias
do Aracaju não era um local ermo e desértico, mas sim uma pequena comunidade formada por
pescadores, oleiros e sitiantes, que moravam em “casinholas” de palha.

Os presidentes que governaram a província sergipana depois de Inácio Joaquim Barbosa,


empreenderam várias melhorias na infraestrutura do espaço urbano de Aracaju, principalmente a
partir dos serviços de saneamento (aterramento de pântanos, construção de valas de esgoto e
roçagem das ruas), a fim de conter a aparição das frequentes endemias que atacavam a cidade e a

*
Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em História pela Universidade de Brasília, sob
a orientação do Prof. Dr. Tiago Luís Gil.
405

colocavam na contramão do progresso. A respeito da situação sanitária da cidade durante o período


estudado, a historiadora Maria Nely afirmou que:

Ao longo da segunda metade do século XIX, Aracaju vivia em incipiente


processo de urbanização. Era uma época de ruas descalças e atulhadas de sujeiras,
com buracos e valas dentro dos quais se lançavam todo tipo de dejetos. Uma
época de águas estagnadas por todos os cantos e espaços, de surtos e doenças
epidêmicas. De total ausência de medidas públicas e austeras com relação à
higiene e saúde da população. Tudo isso influía, diretamente na qualidade de vida
da população. (Santos, 2008, p. 48)

De fato, naquela época, a ideia corrente era a de que a natureza do terreno de Aracaju, a
precariedade das casas de “taipa e telha”, a má qualidade da água potável, a deficiente alimentação
da população e os miasmas emanados pelas substâncias animais e vegetais em putrefação, nos
alagadiços e charcos formados durante a estação chuvosa, eram os principais causadores das febres
intermitentes na capital recém-criada. Além desse cenário insalubre, as autoridades defendiam que
o constante contato entre as pessoas também provocava a disseminação de moléstias como a
varíola, por exemplo.

É bom ressaltar que desde os anos 1860, a varíola sempre esteve entre as maiores
incidências de causas-mortis em Aracaju, porém, a epidemia das bexigas começou a atingir a capital
com mais virulência em janeiro de 1873, manifestando-se também em outras partes da província.
O recenseamento feito naquele ano, indicou que a capital sergipana possuía 1.578 fogos com 6.192
almas, sendo que deste número total 5.869 pessoas eram livres e 503 viviam sob o regime da
escravidão. Embora fosse a capital da Província, Aracaju possuía menos habitantes do que outros
núcleos urbanos, como Laranjeiras, Lagarto e Estância. (Relatório provincial de 1873, p. 32).
Segundo o médico Antonio Samarone, “na segunda metade do século XIX, a varíola apareceu
como o principal problema de saúde pública na Província de Sergipe.” (Samarone, 2005, p. 90)
Essa doença começou a fazer as primeiras vítimas na capital ainda no ano de 1872, quando
apareceram alguns doentes na Rua do Topo, tida pelas autoridades como um dos locais irradiadores
da doença em Aracaju.

Já não bastasse a epidemia de varíola, a febre amarela também “atracou” em Aracaju no


início de 1873. Sabe-se que a doença chegou à capital sergipana através dos navios estrangeiros,
que frequentemente entravam no porto de Aracaju. Foi o caso da escuna alemã Schewann, que teve
a sua tripulação afetada pela febre amarela. O tratamento daqueles doentes foi feito na própria
embarcação e ficou a cargo do consulado do império alemão, representado pelo agente consular
Henrique Schramm, uma vez que ainda não havia um lugar específico isso. (Jornal do Aracaju.
Edição nº 360, p. 1).
406

No relatório provincial divulgado em março de 1873, o presidente de província, Cypriano


de Almeida Sebrão, apresentou qual era a situação da capital em relação às epidemias de varíola e
febre amarela até aquele momento:

O Aracajú tem sido ultimamente victima do cruel flagelo da variola, que não
poucas vidas tem ceifado; e quem sabe se tambem da febre amarella, até aqui não
desenvolvida na população, mas que tem acommetido á marinheiros estrangeiros,
produsindo a morte de alguns. Não esqueci providencias, não poupei despesas
para debellar estas epidemias. (Relatório provincial de 1873, p. 3)

Sendo assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar se houve mudanças significativas nos
costumes fúnebres dos agentes da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Aracaju, durante
as epidemias de varíola e febre amarela entre os anos de 1873 a 1874. A priori, decidiu-se trabalhar
com este curto período, para que posteriormente a análise possa se estender até o fim da segunda
metade século XIX, visto que novas ondas epidêmicas, em especial da varíola, continuaram fazendo
vítimas em Aracaju. Para empreender essa investigação, estão sendo consultados diversos tipos de
fontes como, inventários e testamentos (salvaguardados pelo Arquivo Geral do Judiciário),
registros paroquiais de óbito da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Aracaju, documentos
oficiais e jornais que circulavam na cidade.

Ações tomadas pelas autoridades provinciais no combate às epidemias

O segundo código de posturas de Aracaju foi um instrumento normativo aprovado pela


Câmara Municipal em 31 de janeiro de 1873 que, em suma, visava regular a vida cotidiana da
população através das regras de convivência em sociedade propostas pelos legisladores. Assim,
recomendações sobre edificações, uso de trajes de permanência em espaços públicos e até de
“desafricanização” dos costumes, foram divulgadas aos munícipes. De certa maneira, as posturas
municipais acabaram se tornando um meio pelo qual a elite aracajuana expressava os seus anseios
e também, a preocupação com a salubridade da cidade que estava se desenvolvendo. Já que um dos
objetivos era disciplinar o comportamento da população, o código previa punições aos infratores
que não seguissem, tendo como exemplo, o que ficou determinado no artigo 69 que versava sobre
a vacinação:

Todos os chefes de familias residentes no municipio são obrigados á trazer seus


filhos, famulos, tutelados ou escravos á casa da camara municipal nos dias
designados pelo vaccinador para serem vaccinados e dentro de oito dias a fazer
tornarem as pessoas que foram vaccinadas, a fim de ser observado o estado da
vaccina e dar o pús para outros, sob pena de 6$000 réis de multa ou trez dias de
407

prisão, e o duplo na reincidencia, que será renovada nos prazos marcados pelo
vaccinador. (Jornal do Aracaju. Edição nº 365, p. 4).

Então, por meio da variolização (transmissão do pus vacínico de braço a braço), entende-
se que o poder público encarava a vacina como uma medida profilática para evitar a doença, mesmo
sendo, um serviço de baixa cobertura em Sergipe até a década de 1850. Até aquele momento, “a
falta de cuidados com as lâminas e com o pus vacínico era, entre outros, motivo das dificuldades
de propagação da vacina em Sergipe.” (Samarone, 2005, p. 48) Na opinião do Dr. Manoel do
Nascimento da Fonseca Galvão, presidente que administrava a província no início de 1873, a raiz
do preconceito em relação à vacina “é o uso da inoculação da bexiga de caracter manso, ao qual
dão tambem os seus propagadores e adeptos o nome de variola.” (Relatório provincial de 1873, p.
2).

Seguindo essa ideia, o Jornal do Aracajú publicou em abril de 1873, uma notícia que
enaltecia a atuação do comissário vacinador, das leis municipais e dos médicos e também reiterava
o comportamento prejudicial da população em relação à vacina: “[...] o povo ignorante e cheio de
prejuizos não procura premunir-se contra as ciladas da epidemia insidiosa que aqui e ali vai
deixando o lucto e a lagrima.” (Jornal do Aracaju. Edição nº 369, p. 2). Para compensar a má
eficiência dos serviços de vacinação, quantias vultuosas eram despendidas pelos cofres públicos em
caráter de emergência para socorrer os doentes. O relatório provincial indicou que em 1874, a
vacinação realizou-se de forma regular na província sergipana e que a virulência da varíola em
Aracaju foi bem menor (duas vítimas) do que a do ano anterior, quando 4,52% (280) da população
morreu de varíola. Em 1874, 1.559 pessoas foram vacinadas na capital e em 11 municípios, sendo
1.119 livres e 440 escravas. (Relatório do Ministério do Império de 1874, p. 76). Embora os
escravos tivessem sido vacinados em menor número do que as pessoas livres, a mortalidade por
varíola pode ser considerada baixa para este grupo social, já que apenas 8 mortes de cativos foram
contabilizadas dentro do recorte estudado.

No ano de 1873, foi criada pelo governo provincial uma enfermaria150 na casa de prisão de
Aracaju sob a direção do médico Francisco Sabino Coelho Sampaio, que já havia ocupado o cargo
de comissário vacinador da província. Os objetos para a enfermaria foram comprados junto à
Leopoldina B. de Oliveira, Manoel Vicente de Souza e Antônio Joaquim de Magalhães. (Jornal do
Aracaju. Edição n° 351, p. 1) Já os medicamentos ficaram sob a responsabilidade do farmacêutico
Sisino Ribeiro Pontes, que também fornecia remédios ao Hospital de Caridade e de maneira gratuita

150
Como consequência da epidemia de cólera, em 1857, observou-se que as instalações do quartel da força de linha
eram muito precárias, principalmente para os soldados doentes, e por isso, foi construído um hospital (enfermaria
militar) ao lado do barracão de palha onde ficava o quartel.
408

aos pobres variolosos. Sisino pôde fazer esse ato de caridade porque era proprietário de uma
farmácia na capital. A respeito de tais atitudes, Jaqueline Brizola afirmou que “numa sociedade
escravocrata e profundamente desigual, as noções de caridade e ajuda para com aqueles
necessitados não eram pensadas como tarefa do poder público, mas em muitos casos continuavam
a ser pautadas pela atuação das elites.” (Brizola, 2014, p. 18).

No entanto, em relatório apresentado à Assembleia Legislativa no dia 02 de março de 1874,


o presidente de província Antônio dos Passos Miranda, alegou que a casa de prisão de Aracaju
possuía péssimas condições sanitárias, onde presos compartilhavam o mesmo ar pútrido. A respeito
desse estabelecimento o presidente fez o seguinte relato:

Visitei-o já duas vezes e verifiquei por mim mesmo a necessidade de fazer


desapparecer a podridão que domina todas as cellulas do edificio, onde ha latrinas
que por mais que procurem limpar, nunca deixam de produzir uma exalação
mephitica. (Relatório provincial de 1874, p. 07).

Foi nesta mesma cadeia que em julho de 1873 o escravo Cypriano, preso da justiça, morreu
por causa da varíola. (Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora
da Conceição. Aracaju, Sergipe, nº 2061, p. 76) Entre os anos de 1873 e 1874, faleceram ainda, 8
integrantes do Corpo de Polícia da capital e 6 da Companhia de Primeira Linha. Os registros de
óbito da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição indicaram que no segundo trimestre de 1873,
a varíola fez 139 vítimas na capital, sendo o mês de maio o mais mortífero, tendo contabilizado 54
mortes. (Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da Conceição.
Aracaju, Sergipe) Por causa da força da epidemia, a administração municipal espalhou pelas ruas
da cidade vasos cheios de alcatrão e outras resinas, pois acreditava-se que o fumo era um ótimo
depurador do ar atmosférico. (Jornal do Aracaju. Edição nº 377, p. 4)

Uma outra importante medida tomada pelo governo foi montar um lazareto em Aracaju,
localizado na “estrada de Santo Antônio”, que serviria para tratar gratuitamente os indivíduos
acometidos pela varíola. Nessas situações mais difíceis, o lazareto “era uma casa qualquer que,
alugada ou cedida por particulares, servia de abrigo para os menos afortunados enquanto durasse
a epidemia.” (Samarone, 2005, p. 44) Inicialmente, o tratamento aos doentes foi feito pelo Dr.
Francisco Sabino Coelho Sampaio, que em períodos de dispensa, foi substituído pelo Dr. Américo
Alvares Guimarães. (Jornal do Aracaju. Edição nº 352, p. 2) Posteriormente, na fase mais aguda da
epidemia no ano de 1873, os médicos Thomaz Diogo Leopoldo e Luiz Victor Homem de Carvalho
prestaram serviços ao lazareto dos desvalidos. (Jornal do Aracaju. Edição nº 367, p. 1) A
409

responsabilidade financeira pelo lazareto era do delegado da capital Alcebíades Augusto Villas
Boas.

O fato é que os registros paroquiais analisados até aqui, revelaram de maneira recorrente,
que a varíola atingiu com mais violência a população aracajuana livre, indigente e pobre. Em geral,
eram pessoas classificadas como pardas, crioulas e caboclas, oriundas de várias partes da província,
provavelmente moradoras de ruas afastadas do Quadrado de Pirro151, como a Rua do Topo, a Rua
Nova, a Rua do Ferreiro, entre outras. No entanto, não podemos esquecer de que a doença era
“democrática” e ceifava vidas de indivíduos de todos os grupos sociais.

A título de exemplo, em 22 de agosto de 1873, foi sepultado no cemitério de Nossa Senhora


da Conceição do Aracajú, Augusto (Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2.
Nossa Senhora da Conceição. Aracaju, Sergipe, nº 2133, p. 85), fruto do relacionamento do distinto
comerciante José Rodrigues Bastos Coelho com Maria dos Anjos do Espírito Santo, que
provavelmente era uma mulher livre e pobre. Com apenas 3 meses de vida, o menino foi mais uma
vítima da grave epidemia de varíola.

Muitas famílias aracajuanas foram desestruturadas em face da mortandade causada pela


doença, já que em alguns casos, integrantes da mesma família tiveram as suas vidas ceifadas, como
consta na figura abaixo:

151
Inspirado em um tabuleiro de xadrez e com traços extremamente simétricos, assim ficou conhecido o projeto
urbanístico de Aracaju desenvolvido pelo engenheiro Sebastião Basílio Pirro.
410

Figura 1 – Óbitos registrados na mesma família em virtude da epidemia de varíola (1873)

Fonte: Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da Conceição. Aracaju, Sergipe.
No que diz respeito à epidemia de febre amarela, algumas providências foram tomadas em
virtude do terror causado pelo medo do contágio. Assim, o governo provincial logo tratou de
montar um lazareto para os doentes nos subúrbios da cidade e para isso, efetuou a compra de um
sítio que pertencia aos filhos de José Albino de Moura pelo valor de 1:500$000 (um conto e
quinhentos mil réis). Além da casa onde instalou-se o lazareto, na propriedade comprada pelo poder
público também existiam coqueiros, salinas e curral de pescaria. (Jornal do Aracaju. Edição nº 355,
p. 1)

Assim, o “lazareto do pontal” ficou sob a direção do capitão do porto interino e 1º Tenente
da Armada Augusto Cesar da Silva e os doentes foram medicados pelo cirurgião do Exército Dr.
Manoel Inácio Vasconcellos. (Jornal do Aracaju. Edição nº 353, p. 2.) Fora do lazareto, quatro
marinheiros remadores foram contratados em caráter emergencial pelo chefe de polícia a fim de
auxiliar a capitania do porto nas vistorias sanitárias que eram feitas no porto de Aracaju através de
um escaler (pequena embarcação) durante a epidemia de febre amarela. (Jornal do Aracaju. Edição
nº 354, p. 2.) Essas medidas tomadas pelo governo sergipano, estavam alinhadas à teoria médica
conhecida como contagionista, que explicava a propagação da febre amarela por contágio. Segundo
Chalhoub:

O que importa registrar é que aqueles que acreditavam no contágio da febre


amarela recomendavam medidas como quarentenas para navios que chegavam
411

no porto e isolamento rigoroso dos doentes em hospitais estabelecidos em locais


distantes do centro da cidade.” (Chalhoub, 1996, p. 65).

Os médicos estavam interessados em desvendar a cadeia de transmissão da doença e até


então, já era sabido que os surtos epidêmicos na Corte, Salvador e em outras cidades portuárias
como Aracaju, estavam relacionados à chegada de navios estrangeiros. Foi justamente na década
de 1870, que a febre amarela adquiriu novos sentidos políticos e ideológicos, porque esta doença
“havia se transformado no problema de saúde pública do Império exatamente porque vitimava
prioritariamente os imigrantes.” (Chalhoub, 1996, p. 65) De acordo com as fontes oficiais, todos
os recolhidos ao lazareto da febre amarela eram estrangeiros e no início de 1874, o saldo era o
seguinte: dos 63 atendidos, faleceram 21 e 44 saíram curados. (Relatório provincial de 1874, p. 34).

Algum tempo depois, o lazareto do pontal da barra foi desativado, o que gerou uma série
de discussões no início de 1875, inclusive, entre os deputados da Assembleia Provincial, já que
continuavam a chegar ao porto de Aracaju marinheiros estrangeiros acometidos pela Febre
Amarela. Vale frisar que, um acontecimento que marcou a economia sergipana nessa década foi a
autorização dada a embarcações estrangeiras para fazerem o comércio costeiro na província. Nesses
debates, teve destaque a atuação do Dr. Manoel Pereira Guimarães, que sob os clamores de caridade
e filantropia, questionou o porquê do fechamento desse estabelecimento destinado a tratar os
doentes. Segundo o vereador:

Os marinheiros dos navios estrangeiros accomettidos da febre amarella ahi


morrem a mingoa de recursos, muitas vezes abafados nos porões, acrescendo
que um terror panico domina toda a tripolação, de sorte que aquelles que não
foram victimas desta cruel molestia não querem se quer approximar-se dos
doentes pelo horror que lhes inspira o seu contagio. (Jornal Aracaju. Edição nº
601, p. 02).

Ao contrário de outras localidades do Império, a análise preliminar das fontes indicou que
entre os anos de 1873 e 1874, a febre amarela se manifestou, principalmente, no porto de Aracaju
e não adentrou os limites da capital sergipana.

Os costumes fúnebres durante as epidemias de varíola e febre amarela

No século XIX, a morte esteve no esteio dos debates entre os grupos que compunham o
Império brasileiro, pois muitas práticas remanescentes do período colonial como o enterramento
no interior das Igrejas, começaram a ser questionadas pelo discurso científico em ascensão. Nesse
contexto, durante os primeiros anos de consolidação da nova capital da província de Sergipe, além
da construção de diversos prédios públicos, templos e obras de aterramento, sentiu-se a
412

necessidade também de se construir em Aracaju, a priori, cemitérios para o sepultamento dos


indivíduos vitimados principalmente pelas constantes epidemias.

Até agora, na historiografia sergipana há a indicação de que o primeiro cemitério de Aracaju,


conhecido como “Alto da Santa Cruz”, foi erigido em 1856 por causa da epidemia de Cholera-
Morbus que atingiu violentamente as vilas e cidades da província entre os anos de 1855 e 1856.
Contudo, é importante mencionar que a análise de alguns ofícios disponíveis no Arquivo Público
Estadual de Sergipe mostrou que mesmo sem condições, o cemitério já estaria recebendo os
primeiros cadáveres de coléricos em outubro de 1855. Tal informação se confirma através de um
ofício enviado pelo Barão de Maruim ao vigário geral da província:

Constando-nos haver VExa. mandado escolher hum lugar nas imediações d’esta
Capital, que fosse mais proprio, para se fazer hum Simiterio, e constando-nos
mais, que já para esse lugar indigitado fora mandado sepultar o Cadaver de hum
individuo, que sucumbia pela força do terrivel mal que ora nos opprime, não
estando ainda o dito lugar preparado como devera para n’elle se sepultarem os
corpos d’aquelles que tendo nascido, e creados com o leite da Nossa Santa
Religião o adquirirão por isto o direito de serem enterrados em lugar Sagrado (...).
(Ofício do Barão de Maroim, ao Vigário Geral. Aracaju, 30 de outubro de 1855].
Ms. – APES, fundo AG4, v. 10)

Eram publicadas na imprensa oficial informações de que o primeiro cemitério construído


em caráter provisório não tinha a capacidade necessária e nem estava localizado em uma região
apropriada. Por isso, tal preocupação urgente com a salubridade de Aracaju fez com que o poder
público tomasse a iniciativa de construir um novo cemitério que fosse afastado do centro da cidade,
ao contrário do primeiro que ficava localizado na região conhecida como Quadrado de Pirro.

Depois de transcorridos alguns anos, marcados pela instituição de comissões para a


construção do cemitério, doações e arrecadação de fundos, o novo cemitério público da capital
iniciou suas atividades em 27 de fevereiro de 1862 com a denominação de Nossa Senhora da
Conceição, porque em 1855, Inácio Barbosa consagrou a capital que fundara à Imaculada
Conceição. No Brasil Império, apesar de serem públicos, por causa do regime do padroado, “os
cemitérios eram destinados exclusivamente ao público católico.” (Rodrigues, 2005, p. 153)
Cadáveres de indivíduos que não professavam a fé católica poderiam ser sepultados no cemitério
de Nossa Senhora da Conceição, desde que ficassem no espaço restrito a eles.

Essa e outras determinações estão contidas no regulamento do cemitério de Aracaju, que


estabeleceu como os sepultamentos deveriam ser realizados em tempos de epidemia. Em primeiro
lugar, cada sepultura deveria abrigar apenas um cadáver, “salvo o cazo de grande fôrça de epidemia
em que deverão ter a maior profundidade possivel; de modo que possão levar sobre os cadáveres
413

nunca menos de 12 palmos de terra.” (Correio Sergipense, Edição nº 16, p. 1) Além disso, deveria
ser respeitado o prazo de 24 horas depois da morte para que o sepultamento pudesse ser realizado,
a não ser em caso de grave epidemia. Havia ainda, de acordo com o artigo 24, um espaço no terreno
do cemitério destinado à inumação dos cadáveres das vítimas de epidemias ou de doenças
contagiosas. E finalmente, determinou-se que as sepulturas em que tivessem sido depositados os
corpos de vítimas das epidemias, não deveriam ser abertas com menos de seis anos, exceto se não
houvesse mais espaço no cemitério.

O já referenciado Código de posturas de Aracaju publicado em janeiro de 1873, proibia


através do seu artigo 52 “sentinellas e rezas e a altas vozes a cadaveres” (Jornal do Aracaju, Edição
nº 349, p. 2), o que se configura como uma tentativa de disciplinarização dos costumes fúnebres
dos moradores de Aracaju, além de ser um indicativo de transformação da sensibilidade com
relação aos mortos. O alcance que o discurso da medicina social tomou na segunda metade do
século XIX, fez com que os funerais ruidosos fossem criticados pelos adeptos dos ideais
cientificistas, posto que “o repicar dos dobres fúnebres, por exemplo, era visto como grandemente
prejudicial à saúde, porque lembrava aos vivos, sobretudo aos enfermos, a possibilidade da morte.”
(Reis, 1997, p. 133). Desse modo, a “vigilância olfativa” e a “vigilância auditiva” foram
desenvolvidas pelo saber médico com o objetivo de abalar a familiaridade existente entre vivos e
mortos, bem como afastar os cemitérios para lugares distantes do centro da cidade.

Naquela época em que a febre amarela e a varíola amedrontavam a população aracajuana,


as autoridades tomaram algumas medidas que, aprovadas em caráter excepcional por causa das
epidemias, mudaram o cotidiano fúnebre da cidade. Em junho de 1873, houve a proposta por parte
do delegado de polícia e do Vigário da Freguesia da capital, José Luiz de Azevedo, de criação de
um novo cemitério no segundo distrito da capital, local onde seriam sepultados os corpos das
vítimas da varíola, já que o único cemitério da cidade, o de Nossa Senhora da Conceição, estava
recebendo todos os cadáveres. Sabe-se que o Vigário Geral da Província foi informado por ofício
e que o mesmo autorizou a escolha do terreno apropriado, bem como a benção deste para a
edificação novo cemitério. (Jornal do Aracaju. Edição nº 389, p. 1) Porém, as fontes consultadas
até o presente estágio da pesquisa não indicaram se esse campo santo foi realmente construído.

Dentre as vítimas da epidemia reinante, estava o normalista Constâncio da Silveira Motta.


Nascido em Lagarto, provavelmente se mudou para Aracaju para estudar no Ateneu Sergipense,
primeira instituição oficial de ensino secundário da Província desde 1870. Nesta cidade, o
normalista morava com a irmã e o distinto cunhado, João Belisário Junqueira, professor de música
414

e servidor público. No entanto, em maio de 1873, a vida do jovem estudante de 21 anos foi ceifada
pela varíola:

Aos trez de Maio de mil oitocentos setenta e trez sepultouse no Cemiterio de Nossa
Senhora da Conceição do Aracajú a Constancio da Silveira Motta, branco, solteiro,
natural do Lagarto, com vinte eum annos d’idade, filho legítimo de Bento Joaquim da
Motta e Antonia Florinda da Silveira. Foi absolvido e ungido; morreo de variola, foi
involto em habitos de seo uso e por mim encomendado. Para Constar faço este que
assigno. O Vigario José Luiz d’ Azevêdo (Banco de Dados Family Search. Óbitos (1872-
1874). Livro 02. Nossa Senhora da Conceição. Aracaju, Sergipe, nº 1884, p. 53).

Assim como consta no registro de óbito acima, os dados cotejados e dispostos na tabela
abaixo, revelam que mesmo em tempos epidêmicos, muitos dos indivíduos vitimados pela varíola,
excluídos os estrangeiros e inocentes (crianças menores de sete anos), estavam preocupados com
a salvação da alma, visto que muitos deles recorreram aos últimos sacramentos e à encomendação
do corpo pelo pároco, embora a quantidade de pessoas que não recebeu nenhum sacramento foi
considerável. Não podemos tomar essa informação como um indicativo do aumento da
incredulidade por parte da população, pois é óbvio que naquele cenário os sacerdotes tivessem
dificuldades em administrar os sacramentos a todos os vitimados pela varíola.

Tabela 1 – Sacramentos recebidos pelas vítimas de varíola durante o ano de 1873


Nome do Sacramento Quantidade Porcentagem
Confessado (a) e ungido (a) 42 20,1 %
Absolvido (a) e ungido (a) 102 48,8 %
Sem sacramentos 59 28,1 %
Confessado (a) 2 1%
Absolvido (a) 1 0,5 %
Absolvido (a), confessado (a) e 2 1%
ungido (a)
Confessado (a), sacramentado (a) e 1 0,5 %
ungido (a)
TOTAL 209
Fonte: Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da Conceição. Aracaju, Sergipe.

É notório que os sacramentos da extrema-unção e da penitência foram os mais procurados,


justamente porque estes eram administrados em casos de doenças graves ou incuráveis. Em geral,
fosse rico ou pobre, quando o doente sentia a proximidade da morte, “a presença do padre era
415

solicitada pelo moribundo, por seus parentes ou amigos, tendo em vista a necessidade de ele entrar
em contato “último” e íntimo com Deus, antes da “partida”.” (Rodrigues, 1997, pp. 176-177).

A morte prematura de Constâncio causou comoção, principalmente, entre os seus colegas


de Ateneu Sergipense. Como uma forma de homenageá-lo, na manhã de 08 de maio de 1873, foi
celebrada uma missa e um anúncio intitulado “Uma prova de sentimento” foi publicado no Jornal
do Aracaju a fim de convocar as pessoas a assistirem a cerimônia, que foi naquele caso, a única
maneira de pedir pelo sufrágio da alma do falecido.

Através deste anúncio, percebeu-se uma mudança no ritual fúnebre, já que por causa do
medo do contágio, os amigos não puderam acompanhar os últimos momentos de vida do
moribundo, nem prestar condolências à família enlutada durante o cortejo até o cemitério, como
era de costume. Na obra “Lugares dos mortos na cidade dos vivos” (1997), Cláudia Rodrigues
concluiu que no Rio de Janeiro, os surtos epidêmicos provocaram um esvaziamento e um
empobrecimento dos cortejos fúnebres a partir dos surtos epidêmicos. Naturalmente, o medo da
contaminação pelos mortos durante esses períodos de flagelo também deve ter engendrado
comportamentos parecidos em Aracaju.

No anúncio, os normalistas lamentavam: “Não podendo nós não só durante os dias de seus
soffrimentos no leito da morte, mas ainda por occasião de seu enterro, testemunhar a amizade que
lhe consagravamos, em consequencia da pestilenciosidade da molestia de que foi victima (...)”.
(Jornal do Aracaju. Edição nº 374, p. 4) No entender de Ariès, além do avanço em direção a uma
romantização da morte na segunda metade do século XIX, o luto também era outra manifestação
importante porque se, “a morte estava realmente domada, o luto dos sobreviventes era selvagem
ou deveria parecê-lo.” (Ariès, 2013, p. 188) E foi com esse sentimento que o anúncio findou: “A’
sua saudosa mái e mais familia enviamos os nossos pezares, e juntando os nossos aos seus
sentimentos, pungidos tambem da mais viva saudade, lastimamos a perda de um collega e amigo
tão dedicado.” (Jornal do Aracaju. Edição nº 374, p. 4).

As fórmulas testamentárias dão ao historiador indícios reveladores das mentalidades e das


suas mudanças. Nesse sentido, seria normal que no testamento fosse externalizada a preocupação
dos agentes com a boa morte, principalmente em função do estado doentio em que se
encontravam. Se a moléstia que o acometia permitisse que o indivíduo ainda gozasse de suas
faculdades mentais, as últimas vontades eram dispostas em testamento. A doença e a iminência da
morte apressavam o reconhecimento de filhos ilegítimos, de dívidas e de injustiças ao longo da
vida. Além disso, se concedia liberdade a escravos que haviam servido seus senhores na saúde e na
416

doença. Nesse sentido, podemos citar o caso de Felisberto José do Sacramento, que logo tratou de
garantir o seu “passaporte para o céu”.

Branco, 40 anos, natural de Aracaju, casado com D. Rita Bernardina de Sena, dono de um
sítio nos subúrbios da cidade e de salina no apicum da Jetimana e dois escravos. Ainda que não
fosse rico, Felisberto José, que já havia pedido exoneração do cargo de faroleiro da barra do
Cotinguiba que ocupava desde 1863, tentou se curar da varíola em casa, como muitas pessoas
faziam. Em virtude da enfermidade, Felisberto ditou o conteúdo do seu testamento para o escrivão
Luiz Gonçalves Pedreira França em 22 de maio de 1873. Dois dias depois, seu corpo seria sepultado
no Cemitério de Nossa Senhora da Conceição.

O inventário revelou um modesto monte-mor, de 2:000$000 (dois contos de réis), e dentre


as últimas vontades declaradas em testamento, nenhuma fazia referência à organização da morte
do testador, mas davam indícios de que como bom cristão, o ex-faroleiro preocupava-se com
sufrágios em prol da sua alma e com atos religiosos, como o cumprimento de promessas, por
exemplo. (Inventário de Felisberto José do Sacramento, AJGES, Fundo: Aracaju, Cartório do 1º
Ofício, cx. 2083, nº 314) Felisberto recebeu os sacramentos da penitência e extrema-unção, utilizou
hábito preto e foi encomendado pelo vigário da capital. (Banco de dados Family Search. Óbitos
(1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da Conceição. Aracaju, Sergipe, nº 1942, p. 61).

Como já foi dito anteriormente, a febre amarela fez várias vítimas que chegaram a Aracaju
através de navios que carregavam estrangeiros pouco aclimatados. Quando esses tripulantes
morriam a bordo, saveiristas152 que foram contratados pelo governo provincial, faziam o transporte
dos cadáveres até a cidade. Em 10 de fevereiro de 1873, o periódico Jornal do Aracaju, noticiou
que um estrangeiro, o qual estava em tratamento no Hospital de Caridade, morreu por causa da
“epidemia reinante” (Jornal do Aracaju. Edição nº 351, p. 2)

Esse marinheiro era Adolpho Woigam, um jovem de 16 anos, branco, solteiro e natural de
Frankfurt. Adolpho foi sepultado no cemitério público em 08 de fevereiro, não recebeu nenhum
sacramento, mas seu corpo foi envolto em hábito preto e encomendado pelo vigário José Luiz de
Azevedo. (Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da
Conceição. Aracaju, Sergipe, nº 1735, p. 34) A presença das mortalhas de cores e a encomendação,
elementos importantes do ritual fúnebre de passagem, se repetiu com outros marinheiros que
foram sepultados nesse mesmo cemitério.

152
Responsáveis por controlar um tipo de embarcação com mastro e vela, muito utilizado para transporte e pesca.
417

Já em fins de março de 1873, o marinheiro Joseph Colt, integrante da tripulação do Anna


Magdalena, foi mais uma vítima do vômito preto e depois da sua morte, os demais tripulantes deste
navio holandês e que se encontravam em estado grave por conta da doença, foram recolhidos para
o lazareto da capital (Jornal do Aracaju. Edição nº 362, p. 1). Joseph Colt foi sepultado em Aracaju
de maneira modesta, pois seu enterro custou 10$000 (dez mil réis) (Jornal do Aracaju. Edição nº
364, p. 1), porém o registro de óbito do alemão não foi localizado. Por causa da gravidade desses
casos e de outros que foram surgindo, o governo provincial reservou a quantia de 100$000 (cem
mil réis) que deveriam ser gastos com os sepultamentos daqueles que viessem a morrer no lazareto
do pontal.
Espanhóis, alemães, portugueses, italianos e holandeses. Essas eram algumas das principais
nacionalidades dos homens que foram vencidos pela febre amarela nos limites da capital entre 1873
e 1874. Por fim, o que mais chamou a atenção nesses registros de óbito de vítimas da febre amarela,
foi a existência de um “Cemitério dos Protestantes” ou “Cemitério dos acatólicos” em Aracaju.
Dentro desse grupo dos acatólicos estavam inseridos protestantes, maçons, suicidas, entre outros.
A única informação encontrada na literatura sergipana sobre sepultamentos realizados em outros
cemitérios, foi divulgada por Antonio Samarone na obra “Febres do Aracaju” (2005). O autor
alegou que no final dos anos 1850 também estava em funcionamento o “cemitério dos ingleses”,
“localizado na Praia Formosa (atual 13 de julho), destinado aos sepultamentos dos ricos e bem
nascidos”. (Samarone, 2005, p. 70)

Considerações Finais

A relação da humanidade com os mortos e o morrer foi amplamente modificada a partir


do surgimento das primeiras cidades. Com o passar do tempo, a vida urbana ressignificou valores,
comportamentos e atitudes, tornando essa experiência prolongada, individualista e especializada,
por causa da diversificação das profissões envolvidas diretamente com a morte.

Mesmo diante da constatação de que na segunda metade do século XIX aconteceu um


processo de transformação das atitudes diante da morte, em Aracaju, a epidemia de 1873-1874 não
trouxe mudanças significativas e imediatas nos ritos fúnebres, já que podemos considerá-las como
consequência das medidas em caráter de emergência tomadas pelo governo provincial para conter
o avanço das epidemias. Nesse cenário, é importante salientar que, sem dúvidas, o impacto que das
epidemias na capital e na província impulsionaram o movimento de secularização que culminou na
criação dos primeiros cemitérios extramuros.
418

Na verdade, na década de 1870, a “pedagogia do medo” utilizada pela Igreja ainda


convencia os fiéis católicos de que estes deveriam se preocupar em garantir uma morte decente e
digna, seja através de sufrágios, legados pios, etc. O curto testamento de Felisberto José do
Sacramento provou que o ato de testar ainda era importante para o público católico, mas a ausência
de descrição de como deveria ser a cerimônia de enterro, pode significar uma alteração na forma
da declaração de últimas vontades.

Aliás, o ato de ditá-las ao escrivão, nos fez presumir que a introdução da fórmula laica de
redação de testamentos através da atuação da prática notarial, também influiu nesse processo de
transformação dos costumes fúnebres, pois na primeira metade do século a morte era organizada
oralmente na presença de familiares e padres, os mediadores da salvação. Somente uma análise
serial dos testamentos poderia fornecer respostas conclusivas a respeito dessa diminuição das
preocupações soteriológicas e escatológicas, bem como do aparato festivo dos funerais entre os
aracajuanos. Ademais, os anúncios de realização de missas ou os necrológicos veiculados na
imprensa ligados aos membros da primeira elite aracajuana, revelaram que mesmo em situação de
terror, havia espaço para promover a distinção social na hora da morte.

Fontes documentais
Banco de dados
Banco de dados Family Search. Óbitos (1872-1874). Livro 2. Nossa Senhora da Conceição.
Aracaju, Sergipe.

Inventários e Testamentos
Inventário de Felisberto José do Sacramento, AJGES, Fundo: Aracaju, Cartório do 1º Ofício, cx.
2083, nº 314.

Jornais
Correio Sergipense, 10 de fevereiro de 1862. Edição nº 16.
Jornal do Aracaju, 15 de fevereiro de 1873. Edição nº 352.
Jornal do Aracaju, 19 de fevereiro de 1873. Edição nº 353.
Jornal do Aracaju, 22 de fevereiro de 1873. Edição nº 354.
Jornal do Aracaju, 26 de fevereiro de 1873. Edição nº 355.
Jornal do Aracaju, 15 de março de 1873. Edição nº 360.
Jornal do Aracaju, 22 de março de 1873. Edição nº 362.
Jornal do Aracaju, 30 de março de 1873. Edição nº 364.
Jornal do Aracaju. 02 de abril de 1873. Edição nº 365.
Jornal do Aracaju, 09 de abril de 1873. Edição nº 367.
Jornal do Aracaju. 19 de abril de 1873. Edição nº 369.
Jornal do Aracaju, 08 de maio de 1873, Edição nº 374.
Jornal do Aracaju, 21 de maio de 1873, Edição nº 378.
Jornal do Aracaju, 24 de maio de 1873, Edição nº 379.
Jornal do Aracaju, 21 de junho de 1873, Edição nº 387.
419

Ofícios
Ofício do Barão de Maroim, ao Vigário Geral. Aracaju, 30 de outubro de 1855. Ms. – APES,
fundo AG4, v. 10.

Relatórios

Miranda, Antonio dos Passos. Relatório com que foi aberta a Assembleia Legislativa Provincial
de Sergipe. Aracaju: Tipografia do Jornal do Aracajú. 02 mar. 1874. Disponível em:
http://ddsnext.crl.edu/titles/190/items. Acesso em 22 nov. 2020.

Oliveira, João Alfredo Corrêa. Relatório do ano de 1874 apresentado à Assembleia geral
legislativa na 4ª sessão da 15ª legislativa. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional. 1875. Disponível
em: http://ddsnext.crl.edu/titles/100?terms&item_id=1665. Acesso em 15 nov. 2020.

Sebrão, Cypriano de Almeida (1º Vice-presidente). Relatório com que foi aberta a
Assembleia Legislativa Provincial de Sergipe. Aracaju: Tipografia do Jornal do Aracajú. 01 mar.
1873. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/titles/190/items. Acesso em 03 dez. 2020.

Referências
Ariès, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012.

Brizola, Jaqueline Hasan. A terrível moléstia vacina, epidemia, instituições e sujeitos: a história da varíola
em Porto Alegre no século XIX (1846-1874). Dissertação de Mestrado, História, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2014.

Chalhoub, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia das Letras,
1996.

Reis, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de
(Org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 95-
141.

Rodrigues, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997.

___________________. Nas fronteiras do Além: a secularização da morte no Rio de Janeiro


(séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.

Santana, Antonio Samarone. As Febres do Aracaju: dos miasmas aos micróbios. Aracaju, 2005.

Santos, Maria Nely. Aracaju: um olhar sobre sua evolução. Aracaju: Triunfo, 2008.
420

Os Jesuítas e a Inquisição no século XVII: um ambiente de


batalha sobre as faces da misericórdia (1605 – 1643)

Bruno Fernando Silva Mato Ribeiro*

Resumo: o presente artigo constitui parte da dissertação de mestrado cujo o objetivo foi
compreender como o Santo Ofício português se representava diante da sociedade, na primeira
metade do século XVII – mais especificadamente entre o perdão-geral de 1605 e a batalha contra
os jesuítas da Universidade de Évora, em 1641-3. Isto é, qual o ponto de vista que a instituição
produziu sobre si mesma e como apresentava-se e se defendia diante daqueles que a criticavam.
Percebemos que em muitos momentos a Inquisição e os Jesuítas tiveram suas cumplicidades ou
enfrentamentos. Enfrentamentos no que toca a discordância em algumas questões pontuais. Sendo
assim, identificamos que embora ambos as “células” religiosas façam parte do “corpo” da Igreja
Católica, não podemos dizer que eles tinham um entendimento monolítico. Portanto, nesta
comunicação, temos como objetivo de compreender como as duas instituições entendiam o que
era a misericórdia. Posto isso, ilustraremos o assunto por meio de alguns documentos produzidos
pelo então Inquisidor Geral D. Francisco de Castro e o Jesuíta Gaspar de Miranda. A troca desses
memorias, nos levou a perceber que nem todos que faziam parte do clero concordavam como
procedia a Inquisição no que refere ao tratamento dos réus e presos. Alguns jesuítas viam o Santo
Ofício como um tribunal arbitrário e que o ato de misericórdia era a absolvição através do ofício
querigmático e espiritual. Já os inquisidores, que se viam como defensores da própria Igreja
aplicavam a misericórdia através da punição, sobretudo no corpo ou na vida do
acusado/condenado. Dessa forma buscamos interpretar que a Inquisição e os Jesuítas se
encontram em um ambiente de batalha.

Palavras- Chaves: Inquisição, Jesuíta, Misericórdia, Portugal

Introdução

As questões abordadas nesse artigo é parcialmente os resultados de uma pesquisa em


andamento. Isto é, serão apresentados aqui os discursos realizados por ambas as personagens que
se encontram em disputa no que refere-se a aplicação da misericórdia ao réu. De forma geral, a
pesquisa dedica-se compreender a representação do Santo Ofício diante da sociedade lusitana no
século XVII, isto é, como a Inquisição via a si mesma e como apresentava-se diante daqueles que
a criticavam durante o ano de 1605 e 1643. Nesse período destacamos algumas discussões: o
perdão-geral de 1605, o édito da graça de 1627 e a batalha contra os jesuítas em Évora.

*
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPHR-
UFRRJ), sob orientação do Prof. Dr. Yllan de Mattos.
421

Na conjuntura moderna a Inquisição surge com o intuito de extinguir a heresia, tanto


daqueles que se convertiam ao cristianismo (de modo particular, judeus e mulçumanos que
tornaram os objetivos de reconquista ibérica) quanto dos reformadores. O Santo Ofício pensou a
si mesmo não só como “juiz” do delito de heresia, mas como protetora da própria Igreja. Dessa
forma, quem os criticassem, estariam atacando a própria Igreja Católica.

Na historiografia encontram-se diversas imagens sobre a atuação do Tribunal do Santo


Ofício lusitano por causa de suas atuações e perseguição contra as práticas heréticas. Assim,
podemos encontrar alguns debates em torno dessas imagens: se, por um lado, a literatura anti-
inquisitorial não esgotou-se de representar a Inquisição como um tribunal de julgamento arbitrário,
com a confiscação dos bens dos acusados; por outro, a Inquisição tudo fez para valer o seu lema:
“misericórdia et justitia”.

Ao nos depararmos com esses discursos historiográficos podemos perceber duas visões: a
chamada Lenda Negra e a Lenda Rosa. A Lenda Negra parte da pressuposta imagem negativa da
Inquisição, devido aos diversos relatos arbitrários e dos teatrais autos-da-fé. Já a lenda Rosa –
promovida por muitos historiadores vinculadas à Igreja -constroem a defesa do Tribunal e a sua
atuação em seu tempo. A dissertação se afasta dessas duas perspectivas, tanto da crítica política da
Inquisição, quanto de sua defesa ideológica. Sendo assim, o objetivo é de estudar as vozes que
construíram a imagem que o Tribunal procurou a transmitir de si, principalmente em resposta às
críticas elaboradas na época, dando movimento e cores ao processo social.

Sendo assim, nesse artigo pontuaremos brevemente as vozes que ilustrarão esse cenário,
isto é, os jesuítas e os inquisidores. É importante salientar que houveram muitos momentos em
que a Inquisição e os Jesuítas tiveram seus enfrentamentos e cumplicidades. No entanto, os
enfrentamentos ocorridos tocavam-se em questões mínimas, como por exemplo, como os
inquisidores tratava o réu. Por meio desses tópicos verificamos, que mesmo essas “células”
religiosas constituíssem o “corpo” que é a Igreja Católica e pregassem uma única fé, não podemos
dizer que eles tinham um entendimento monolítico. Posto isso, colocaremos em “xeque” a
compreensão das duas instituições no que tange, como diz Bourdieu “os bens da Salvação”
(Bourdieu ,2013), isto é, a misericórdia.

Nesse sentido, propormos entender a questão do papel do campo religioso na teoria de


Bourdieu, pensando-o sempre como um “campo de batalha” atuando nas relações de forças
manifestadas nessa área pelos seus agentes que compunham e defendiam a Igreja Católica. Na obra
de José Pedro Paiva, “Baluartes da fé e da disciplina: o enlace sobre a Inquisição e os bispos em
422

Portugal”, é mencionado, que seu estudo será debruçado sobre as propostas de Pierre Bourdieu.
Sobre a noção de campo religioso, o autor explica que:

por campo religioso entende-se à um espaço de relação de forças e de disputa


entre agentes ( institucionais ou individuais), que têm em comum o “capital” –
isto é, a posse de saber, legitimação institucional e, na maioria dos casos
sacramental – necessário para ocuparem posições no território de concorrência
pelo “monopólio dos bens da salvação eterna” e que são os principais
responsáveis pela criação, difusão e vigilância das práticas e crenças religiosas
numa dada cidade [...]Trata-se, por conseguinte, de um conjunto heterogêneo e
alargado de agentes, desde o papa a um simples tonsurado, passando pelos
bispos, cônegos, párocos, inquisidores e membros das diferentes congregações
religiosas [...]. Em suma, lutam por posições de hegemonia e poder, entendido
este como capacidade de decidir e de influenciar decisões que tendem a criar
cadeia hierarquizadas de domínio. [...] Assim se for o princípio da dinâmica do
campo religioso e se originam, também por essa via, transformações da religião
e das instituições que a criam e por ela zelam [...]. (Paiva, 2011, p.7-8).

Assim sendo, reiteramos que embora a Igreja fosse baseada em uma hierarquia estruturada
com inúmeras pessoas com funções específicas dentro da instituição Católica, ainda sim, possuíam
uma compreensão distinta sobre diversos assuntos dentro da perspectiva da fé. Portanto, a Igreja
Católica, é formada por um “corpo pluricelular, formado por diversos grupos e uma multidão de
indivíduos”. (Paiva, 2011. p. 8)

É através dessa linha de raciocínio, que inserimos (nesse artigo) uma breve analise das
fontes que estão ligadas ao episódio ocorrido entre o Jesuíta Gaspar de Miranda e o inquisidor-
geral Francisco de Castro. Assim, pensaremos como esses topos (misericórdia e justiça, mesmo que
não necessariamente nomeados) aparecem nessas fontes à luz do Concílio de Trento.

Um ambiente de batalha sobre as faces da misericórdia

Na conjuntura da União Ibéria (1580–1640), no qual o domínio espanhol pairava sobre as


terras lusitanas, a Santa Inquisição manteve uma relação ambígua com a Coroa hispânica. A fase
mais tensa destes tempos tiveram como tema o consentimento de perdões-gerais aos cristãos-
novos, um deles concedido pelo papa em um breve de 23 de agosto de 1604 — publicado em
Portugal somente em 1605. Esse episódio promoveu uma grande batalha para a Inquisição e seus
adeptos. As denúncias das injustiças feitas pelos familiares de cristãos-novos à Santa Sé, em Roma,
alcançaram também à monarquia espanhola através de um valor significativo de dinheiro
disponibilizadas pelos ricos contratadores. Esses últimos não protelaram em serem apoiados em
423

muitos sentidos pelos jesuítas. Dentro da disputa político-teológica pelo controle do discurso
acerca da misericórdia – a batalha pela hegemonia do controle dos “bens da salvação” de Bourdieu
– no âmbito da Igreja portuguesa, inquisidores e jesuítas ocuparam espaços antagônicos.

Sendo assim, sublinhamos que o Tribunal do Santo Ofício e a Companhia de Jesus foram
“a ponta da lança” quando se trata da defesa da Igreja Católica, no entanto, haviam momentos que
discordavam entre si. Segundo Yllan de Matos, essas

manifestações de ambos os lados deram cores e formas ao conflito que


tinham por aparência pequena causa: Por um lado, os jesuítas lançaram
inúmeras críticas ao Tribunal, recorrendo, inclusive, ao rei e ao papa, além
dos vários protestos dos estudantes da Universidade de Évora; por outro
lado, a Inquisição lançou-se com um feroz intento de desqualifica a
Companhia de Jesus. (Mattos, 2014, p. 82).

Dentre as personagens dessa arena, encontramos dois protagonistas desse momento. Do


lado da Companhia de Jesus está o jesuíta Gaspar de Miranda. Do lado do Santo Oficio, encontra-
se o inquisidor- geral D. Francisco de Castro. O cenário começa com um Memorial de 1629153 escrito
pela “agente da nação” que é entregue ao rei que envia para o inquisidor como o próprio
documento solicita. D. Francisco de Castro ao recebê-lo nota que o seu conteúdo é de criticar o
procedimento inquisitorial. O Inquisidor pede ao jesuíta Gaspar de Miranda para verificar tal
situação, que logo escreve no seu parecer, sobre o assunto pontuando minuciosamente as sentenças
arbitrárias cometidas pelo Santo Ofício, além das práticas referidas aos bens dos réus. Todas as
críticas, reladas pelo agente da Companhia de Jesus, incorporavam-se nas condições referente aos
processos, para que fossem “abertos e publicados”, além do término da desigualdade perante os
cristãos-novos e cristãos-velhos. (Ribeiro, 2018.)

O jesuíta Gaspar de Miranda elaborou um parecer e comunicou ao inquisidor Francisco de


Castro, em prol do Santo Ofício, afirmando que os cinco pontos que o Tribunal do Santo Ofício
que ele propusera, são:

A 1ª das queixas, que alguns da nação têm, ou podem ter do Santo Ofício, ou de
alguns de seus ministros no distrito de Évora aonde vivo há muitos anos. A 2ª
dos meios com o Santo Ofício poderá atalhar muitas destas queixas, e renovar
seu estilo, e regimento, pois que o tempo muda tudo, e nesta vida tudo se pode
melhorar por mais perfeito, que seja.
A 3ª do edito da fé reformado; e acomodado a este tempo com seu comento, ou
declaração, do que tudo tem necessidade.

153
DGA/TT- Lisboa, Conselho Geral. Maço 7 (caixa 15), Doc. 2645. Memorial que a gente da nação deu a el-rei
Filipe, no ano 1629. Original em espanhol.
424

A 4ª das dúvidas que, há sobre as freiras, que saem no cadafalso, coisa nova, e
dificultosa, e não tratada.
A 5ª de várias instruções; a 1ª para quem acompanhar algum preso doente, ou
não no cárcere do Santo Ofício. A 2ª para quem acompanhar algum relaxado; A
3ª para quem consolar, ou aconselhar algum preso. A 4ª para quem doutrinar, ou
confessar o reconciliado. A 5ª para quem reger a casa aonde estiverem recolhidas
as mulheres reconciliadas; enquanto ouvirem as doutrinas; porque espero, que se
ordenará a tal casa; e o dito consolador, e conselheiro como proporei em seus
lugares; porque importam muito ao Santo Ofício. (BNP – Lisboa Reservados.
Códice 868. Queixa dos cristãos-novos apresentadas por Gaspar de Miranda, jesuíta.)154

O Bispo da Guarda, Reitor da Universidade de Coimbra e naquele tempo Inquisidor-Geral,


D. Francisco de Castro (1630-1653), afirmou com veemência em seus escritos enviados ao rei, com
o intuito de pedi-lo que o Santo Oficio devia ser defendido destas “calúnias”, ainda mais, vindo de
cristãos-novos, pois eles estavam em busca do perdão-geral e do apascentamento da prática
inquisitorial.

Através desses memoriais, o inquisidor argumentou em defesa da Inquisição e em torno da


sua validade. Em resposta ao memorial de 1629, D. Francisco de Castro, procura desqualificar e
desmontar os argumentos do jesuíta Gaspar de Miranda. No seu memorial155 aconselha
(imperativamente) que

sua majestade não tem obrigação de admitir este memorial [mas de] mandar por
perpétuo silêncio [...] E esta área tem o melhor ordinário, fazendo que os
culpados confessassem as suas culpas, e assim usará a misericórdia que se
costuma usar com bons confidentes [...]. (BNP- Lisboa, Reservados, Códice 868,
fls. 138 -138.v. Resposta ao memorial da gente da nação, atrás publicado, pelo
bispo inquisidor geral dom Francisco de Castro )156.

Esses documentos produzidos em defesa, muitas das vezes, respondiam às criticas com
aspereza e dessa forma aqueles que criticavam o Santo Ofício, não alcançavam seus objetivos.
(Ribeiro, 2018, p.19)

Ao analisar as fontes acima, nos ajudou a identificar que os jesuítas viam o Tribunal como
uma instituição arbitrária e que o ato de misericórdia era a absolvição através do ofício querigmático
e espiritual. A “correção fraterna”, aquela onde o perdão é uma forma de corrigir o fiel errante, era
o que defendiam muitos jesuítas. Já os inquisidores, que se viam como defensores da própria Igreja,

154
Tradução Nossa.
155
BNP- Lisboa, Reservados, Códice 868, Resposta ao memorial da gente da nação, atrás publicado, pelo bispo
inquisidor geral dom Francisco de Castro. Em original espanhol.
156
Tradução nossa
425

aplicavam a misericórdia através da punição, sobretudo no corpo ou na vida do


acusado/condenado. Assim, enxergavam esse meio como salvação do indivíduo e a extinção da
heresia, que não só colocava-o em danação mas também a harmonia de toda a sociedade.

A disputa pela hegemonia do campo religioso, por fim, está no centro desse conflito
político-teológico acerca do perdão e da misericórdia, opondo jesuítas e inquisidores. Mas é
importante frisar que a Companhia de Jesus sempre teve a precaução de questionar apenas a ação
dos inquisidores do Santo Ofício, pois enquanto instituição, ela nunca foi contestada. (Correia,
1999, p. 317). Sendo assim, o que é proposto pelo Gaspar de Miranda nos seus libelos é a crítica
feita pela forma de atuação dos inquisidores e não propriamente ao Santo Ofício.

Considerações Finais

Todas as questões até aqui expostas são pontos iniciais e que ainda estão em
desenvolvimento. Elas foram apresentadas de forma superficial pra mostrar um pouco do que
envolve a pesquisa de mestrado. A questão da heterogeneidade em torno dos agentes católicos, nos
chamou a atenção e por meio da investigação historiográfica procuramos apontar os discursos que
envolvem o conceito de misericórdia no âmbito da visão de cada uma delas.

Os discursos, tanto em defesa quanto a crítica nos apresenta ser de longe um material
descartável, desde que analisemos como novas perguntas, dotado de curiosidade para o atípico.
Não há fontes que demonstre da maneira que ela realmente foi. Cabe na mente do historiador
definir e compreender a partir das múltiplas leituras que surgirá de uma mesma manifestação
cultural, de acordo com quem se apropria, em que contexto se apropria e quais significados
recebem. De toda forma, a nossa intenção é perceber como essas instituições que serviam a única
só fé interagiam no âmbito do conflito. Por meio da análise das fontes, procuramos pensar que o
conceito de misericórdia era compreendida e conceituada de forma diferente por esses atores
sociais, disputando-a, discursivamente, pela hegemonia (ao menos temporária) no campo religioso.

O Inquisidor Francisco de Castro e o Jesuíta Gaspar de Miranda são apenas alguns sujeitos
do seu próprio tempo que buscaram exercer o seu oficio dentro da engrenagem da Igreja Católica.
De um lado procurou defender a Inquisição e a ação dos inquisidores, do outro, criticou os
procedimentos dos inquisidores contra aqueles que julgavam. Dessa forma, ao definir o objeto de
analise como um estudo das representações produzidas pela imagem construída pelos inquisidores
acerca de si, de sua ação e do próprio Tribunal Inquisitorial, procuramos compreender o processo
426

em seu contexto e as intenções que se davam numa dimensão social, pensando, sobretudo, que
estas representações foram encontradas num ambiente de batalha.

Referências

BNP- Lisboa, Reservados, Códice 868, fls. 138 -138.v. Resposta ao memorial da gente da nação,
atrás publicado, pelo bispo inquisidor geral dom Francisco de Castro. (Tradução nossa).

Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

Correia, Pedro Lage Reis. O caso do padre Francisco Pinheiro: estudo de um conflito entre a
Inquisição e a Companhia de Jesus no ano de 1643. Lusitania Sacra, t. XI, 1999.

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nação deu a el-rei Filipe, no ano 1629. Original em espanhol.

Marcocci, Giuseppe. Inquisição, jesuítas e cristãos-novos em Portugal no século XVI. Revista de


História das Ideias, n, 25, p. 247-326, 2004.

Mattos, Yllan de. A Inquisição Contestada: Críticos e críticas ao Santo Ofício português. Rio de
Janeiro: Mauad, 2014.

Paiva, José Pedro. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace sobre a Inquisição e os bispos em Portugal
(1536 – 1750). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011.

Ribeiro, B. F. S. M. Críticas e defesas em torno da Inquisição no século XVII. Revista tempo de


conquista, v. 1, p. 1-20, 2018. Disponível em:
http://revistatempodeconquista.com.br/documents/RTC23/BRUNORIBEIRO.pdf. Acesso
em: 10/12/2018.
427

Suor, memória e narrativa: Os memoriais da Justiça do Trabalho


do Brasil na pandemia do Novo Coronavírus (2020)157

Carla Bianca Carneiro Amarante Correia*

Resumo: este artigo tem como intuito pensar os espaços virtuais de memória da Justiça do
Trabalho e paralelamente outros espaços museais, que necessitaram adaptar-se ao contexto de
isolamento social nos primeiros meses da pandemia do Novo Coronavírus. Analisando também
quais movimentos foram dados por essas instituições e quais suas motivações. Trazendo, portanto,
questionamentos balisadores como, quais narrativas esses espaços museias mobilizam para o
âmbito virtual? Serão apontadas as contradições presentes no espaço físico destes memoriais, e
como estas problemáticas se relacionam fortemente com as ações ou a ausência de ações no espaço
virtual, compreendendo a potência mobilizadora da internet para a compreensão de mundo dos
sujeitos na contemporaneidade.

Palavras-chave: museus, trabalho, coronavírus.

Introdução
Em março de 2020 iniciou-se o isolamento social em Fortaleza/CE devido a pandemia do
novo coronavírus. Em detrimento desse contexto, os espaços museais, arquivos e afins precisaram
fechar suas portas por tempo indeterminado. Como consequência e medida de contenção da
propagação do vírus, foi decretado isolamento social a partir de 19 de março de 2020, e devido a
isto não pude ter contato presencial com muitas das fontes que vinha visualizando para a pesquisa
de mestrado. No entanto, ao longo do isolamento e em diálogos com Régis Lopes, orientador de
minha pesquisa de mestrado em História Social, surgiram novas perspectivas e outras possibilidades
de fontes que se integram e constroem relações contemporâneas com as fontes antes alcançadas.
Passei então a pensar os espaços virtuais de memória da Justiça do Trabalho e paralelamente outros
espaços museais, que necessitaram adaptar-se ao atual contexto de distanciamento social em
decorrência da crise global de saúde, analisando também quais movimentos foram dados por essas
instituições e quais suas motivações.

157Este artigo foi publicado nos Anais do VI Seminário Internacional História e Historiografia: os usos políticos do
passado no Brasil contemporâneo.
* Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará, com pesquisa desenvolvida através de bolsa de

fomento CAPES. É pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio e Memória (GEPPM - UFC) e no
Grupo de Pesquisa e Estudos em História e Gênero (GPEHG - UFC).
428

Tendo em perspectiva as questões apontadas anteriormente, irei mobilizar


problematizações acerca de como esses memoriais passaram a apresentar-se no espaço da internet.
Quais narrativas eles mobilizam para o âmbito virtual? É comum ao estarmos “passeando” pelas
redes sociais nos depararmos com conteúdos produzidos pelos memoriais da Justiça do Trabalho?
Os questionamentos que trago se delineiam a partir da percepção de um movimento de
virtualização dos espaços museais e em que a maioria das instituições de memória da Justiça do
Trabalho, ao que parece, não seguiram este movimento. Como é possível traçar paralelos com as
experiências de outros museus, como os museus históricos, ao redor do Brasil?

Partindo disso, irei trazer aqui minhas percepções e visões acerca dessa experiência de
virtualização no período da pandemia do novo coronavírus em 2020, traçando uma espécie de
depoimento, para pôr no papel se assim podemos dizer, o afeto e o desejo que existe por trás de
toda pesquisa para além da epistemologia. Tendo como intuito construir uma escrita autônoma e
libertária, a partir da perspectiva freiriana, distanciando-se de expectativas literárias elitistas, jargões
e vícios acadêmicos, entendendo que as sucessivas crises do capitalismo, e os recentes avanços de
políticas neoliberais, nos devem propulsionar a pensar as problemáticas através da óptica da luta
de classes.

Terei como intuito, consequentemente, apontar as contradições que nascem das relações
com os sujeitos presentes na pesquisa que venho desenvolvendo no mestrado, pesquisa esta que
visa problematizar as relações que se imbricam por trás e intrinsecamente as exposições presentes
nos Memoriais da Justiça do Trabalho do Ceará e no Sindicato dos Comerciários de Fortaleza,
através de uma fundamentação teórica e prática da interseccionalidade de Angela Davis. O percurso
para escrita deste texto se dá ao iniciar o contato com as fontes físicas, que nos dão cheiros e
sensações sobre o momento em que se constrói o MJT-CE. Tomei consciência, portanto, de outras
problemáticas que precediam e que contemporaneamente estruturam as contradições presentes
não somente no MJT-CE, mas visíveis em vários outros memoriais da Justiça do Trabalho pelo
Brasil a fora, acerca da relação entre virtual e presencial.

Os movimentos e os não-movimentos de virtualização dos espaços museais


na pandemia do novo coronavírus

Construção de uma espacialidade virtual pelos memoriais da Justiça do Trabalho


429

Pode-se dizer que o museu clássico está ele próprio em via de se tornar uma peça de
museu, mas uma peça tão digna de nosso interesse e atenção quanto os objetos que ela
contém. (Peter Burke)

Na última década deste século muitos espaços museais brasileiros passaram a utilizar de
forma ativa e integrante as suas dinâmicas os espaços virtuais, especialmente as redes sociais.
Dialogando com o trecho acima mencionado, os museus vêm passando por metamorfoses (Velho,
1994) latentes e até mesmo involuntárias em seus projetos (Velho, 1994) de construção especialmente
desde a metade do século XX158. O trecho acima foi retirado de um breve texto produzido pelo
historiador Peter Burke para o jornal Folha de São Paulo, o artigo mesmo tendo sido produzido
nos anos 90, dialoga de forma intensa com nossos processos e dinâmicas em diferentes
temporalidades.

Ao entendermos os espaços museais como lugares de comunicação, e deve-se dar o


destaque aqui ao uso historicamente feito pelas elites para comunicar signos e discursos ocultos do
poder, devo, entretanto, destacar também a potência mobilizadora desses espaços, os variados
campos de possibilidades que ali se projetam pois, “naquele espaço, naquele período de tempo,
cruzaram-se várias trajetórias e trilhas sociológicas e culturais” (Velho, 1994, p. 19). No contexto
da pandemia do novo coronavírus, assim como outros contextos, tal qual o de onde Burke se porta
a nós, os espaços museais passaram por adequações e construções de outros modos de comunicar,
mas estes espaços museais desviaram de forma estrutural de seus projetos? Como se diferem as
narrativas construídas nesses espaços virtuais?

Ao iniciar o movimento de perspectivar outras fontes e adentrar o espaço virtual com olhos
mais atentos, acreditei que seria possível encontrar variados perfis nas redes sociais, como no
Instagram e Facebook, dos memoriais da Justiça do Trabalho que se espalham pelos estados
brasileiros, no entanto isso não ocorreu. Esse meu pensamento acaba por derivar de referenciais
específicos, como meu próprio consumo individual de conteúdo virtual produzido por museus ao
longo deste período de isolamento social, museus estes que passaram a impulsionar suas redes
sociais alcançando outros públicos e propondo atividades que extrapolam as habitualmente
realizadas, mesmo pondo em perspectiva as limitações presentes no uso dos espaços virtuais, tanto

158Aqui refiro-me aos movimentos transcorridos no continente europeu em fins da década de 60, marcadamente
conhecido como “maio de 68”, movimentos estes que questionaram as ordens institucionais e promoveram
deslocamentos das dinâmicas vigentes. Mas me refiro especialmente as mudanças estruturais no âmbito, não somente,
da cultura ocorridas em detrimento das ditaduras instauradas em vários países da América Latina. Esses eventos
resultam em modificações e rompimentos que guardam permanências em nossa construção atual enquanto sociedade
brasileira (Arantes. “Os novos museus”. Novos Estudos CEBRAP, vol. 31, 161-169, 1991; Almeida. “Tempo dos
museus”. Ciências em Museus, 3: 57-71, 1991; Meneses. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da
memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n° 34, p. 9-23, 1992).
430

para quem organiza quanto para os públicos. Mas também derivou da experiência de contato com
os assim nomeados, “museus virtuais”, fenômeno recente de grande propulsão social.

Em se tratando dos “museus virtuais”, estes em muito se diferem do fenômeno que


estamos vivenciando no atual contexto. Apesar do conceito de “museu virtual” não ter muito mais
do que duas décadas, como aponta Diane Lima (2013), o campo da museologia que se volta para
o estudo desta tipologia museal o caracterizou até então como um espaço, ou não-espaço, como
aborda Lévy (1996), que possui suas metodologias e modos de fazer próprios, existindo, portanto,
uma razão para determinados museus serem virtuais e não físicos. Muitos museus virtuais estão
somente no ciberespaço, por terem sido pensados no intuito de construir novas formas de dialogar
com os públicos, rompendo com um tradicional espaço físico relacionado à ocupação de um
território material, tangível, passando a se deparar com o espaço virtual, material, intangível e
também identificado por muitos autores como desterritorializado (Lima, 2013).

Penso, em convergência com Lima, que o cenário de virtualização dos museus na pandemia
não se caracteriza enquanto construções de museus virtuais, pois a existência dessas ações virtuais
em sua maioria se configuram como ações emergenciais de continuidade das atividades que
necessitaram ser interrompidas, uma expressão do museu físico impossibilitado de ser acessado.
Mas não somente, se caracterizam também como práticas de manutenção de seus respectivos
equipamentos físicos que passam por tentativas continuadas de sucateamento por parte do Estado,
e que foram intensificadas no contexto de acirramento do capitalismo na pandemia (Antunes,
2020).

Espaços museais que não haviam aderido ao processo de virtualização de suas atividades
nas primeiras décadas deste século foram obrigados, como mencionado anteriormente, a se
inserirem nos espaços virtuais como as redes sociais, sendo estas os de atividade mais constante.
No entanto, mesmo colocando para análise o contexto de acirramento do capitalismo que se
intensificou nos últimos meses, os memoriais da Justiça do Trabalho massivamente não aderiram
a virtualização, tendo pouquíssima atividade virtual antes e durante a pandemia. O que significa no
atual contexto a ausência de ações virtuais?

Para contextualizar a relação entre as fontes físicas e digitais, irei trazer aqui um pouco
acerca do contato com o Projeto de Implantação do Memorial da Justiça do Trabalho do Ceará,
datado de 1998, no transcorrer da experiência do estágio, bem como com outros documentos
administrativos e dissídios coletivos que me geraram incômodos e questionamentos, especialmente
acerca das tensões internas por domínio da narrativa e construção de uma memória única do
431

trabalho. Essas disputas se tornam visíveis através dos documentos e ganham sentindo ao longo
do exercício de perceber quem são os e as protagonistas dessas tensões.

Sobrepõem-se como primeiras as contradições visíveis e incontornáveis acerca da


idealizadora do MJT-CE. Através das fontes muito se pode aferir sobre a curadora e organizadora
do Projeto de Implantação deste memorial, mulher branca, de classe média alta e que ocupa um
lugar demarcado de poder desde a década de 1970, Walda Motta mesmo sendo mulher não somente
dialoga como constrói instrumentos para domínios de narrativa para as elites cearenses, pois como
aponta Angela Davis em Mulheres, raça e classe, se faz impossível ignorar o caráter interseccional nas
problemáticas apontadas.

Os demais memoriais da Justiça do Trabalho no Brasil não se dissociam dessa lógica, e é


possível perceber isso em suas construções virtuais, o cenário da pandemia colocou-me no lugar
de encarar objetivamente essas problemáticas através de outros meios, dedicando mais atenção a
problematizar como o espaço virtual pode ser um instrumento de reiteração da lógica vigente a
partir dos seus silêncios. Comecei, então, pesquisando mais sobre como o Memorial da Justiça do
Trabalho do Ceará se apresentava na internet, partindo de questionamentos como, os memoriais
da Justiça do Trabalho estão na internet? Já possuía um conhecimento prévio sobre este memorial
pois fui estagiária durante dois anos159 nesta instituição e tive contato direto com a gestão da
instituição e observei que o destaque para o Memorial no âmbito virtual era consideravelmente
pequeno.

A experiência do estágio consistia em realizar gestão documental do variado acervo presente no arquivo do MJT-
159

CE, e realização de mediações as exposições do circuito do Memorial, indo de abril de 2017 a janeiro de 2019.
432

Figura 1 - Site do Memorial da Justiça do Trabalho do Ceará

Fonte: https://www.trt7.jus.br/memorial/index.php?option=com_content&view=category&id=8&Itemid=102

Para compreender as questões acerca da existência ou da ausência de virtualização das


narrativas dos memoriais da Justiça do Trabalho, é necessário expor algumas das reflexões acerca
das mobilizações que enveredaram na criação destes espaços museais. Ao longo das últimas décadas
do século XX os Tribunais Regionais do Trabalho no Brasil dedicaram esforços para construção e
institucionalização de uma memória do trabalho através dos memoriais, demarcando disputas pela
apropriação de narrativas hegemônicas acerca da memória do trabalho ao redor do país, no intuito
de produzir a prosa da constrainsurgência (Guha, 1999).

Essa narrativa contrainsurgente, institucionalizada em espaços museais teria sido mobilizada


em decorrência dos movimentos de trabalhadores em resposta ao acirramento das políticas
neoliberais em curso, pois ocorreu um “processo de maior heterogeneização, fragamentação e
complexificação da classe trabalhadora” (Antunes, 2015, p. 62) que enveredou em uma série de
conflitos trabalhistas que marcaram o final do século XX160.

Ranajit Guha traz na construção de seu conceito de prosa da contrainsurgência, as investidas


por parte do Estado na Índia em tentativas de supressão e controle dos movimentos campesinos
insurgentes através de discursos ocultos e se utilizando inclusive dos discursos mobilizados pelos
camponeses. Opero esse conceito no sentido de problematizar que, com a complexificação das

160 A década de 1980 é marcada por uma expansão nas demandas trabalhistas por meio de greves, e maior prioridade
a resolução dos problemas nos locais de trabalho por parte do “novo sindicalismo”. Enquanto a década de 90 é marcada
por um considerável aumento na procura pela Justiça do Trabalho, em reação à precarização das condições de trabalho
(Mattos, 2009, p. 120-127).
433

relações de trabalho e o aumento crescente de greves e ações operárias, o Estado passou a se utilizar
construções de narrativas envoltas de discursos ocultos para enquadrar as noções de trabalho em
lugares de manutenção do poder das elites.

Entendendo, portanto, que se engendram disputas, mas como se configuram essas disputas
e propriamente a narrativa incutida nesses espaços museais que ascendem no transcorrer do final
do século XX? Ao pensarmos que estes espaços operam como espaços de poder com a intenção
de narrar o que é trabalho e quem são os trabalhadores brasileiros, volto para o ponto inicial de
discussão deste artigo, a construção narrativa dos memoriais no âmbito virtual. Qual a relação
existente entre a forma como se constitui o memorial lá nos anos 1990, e a forma como esses
outros memoriais se mostram na internet?

O que significa, então, no atual contexto a ausência de ações virtuais?

O espaço virtual como instrumento de reiteração da lógica vigente a partir dos seus
silêncios

Como tracei no tópico anterior, a ausência de mobilizações por parte dos memoriais da
Justiça do Trabalho nos espaços virtuais, provêm de uma construção anterior interconectada ao
projeto de fundação, mas principalmente as metamorfoses pelas quais essas instituições passaram no
transcorrer do início deste século. As negociações em torno das narrativas internamente aos
memoriais, e externamente referentes ao horizonte de expectativa (Koselleck, 2006) para com Justiça
do Trabalho, configuraram o uso do espaço dos memoriais presencialmente como lugares de
comemorações e de visitas “ilustres”, voltados para receber e comunicar sobre os juízes e
desembargadores. A relação existente entre o espaço físico/território e a ausência de engajamento
virtual visível por parte desses espaços museais, entendendo que a memória possui dinâmicas de
ida e volta, nos levanta a questão, a que eles servem e a quem?

Os memoriais da Justiça do Trabalho ao redor do Brasil se apresentam na internet, mesmo


que minimamente, através de uma plataforma central em comum, os sites oficiais dos Tribunais
Regionais do Trabalho. No entanto, alguns outros memoriais possuem páginas em redes sociais, e
no transcorrer de minha pesquisa fiz um mapeamento destas instituições que não estavam somente
nos sites oficiais. Nesse percurso encontrei alguns perfis nas redes sociais que muito podem nos
dizer sobre as dinâmicas institucionais desses espaços de recordação (Assmann , 2011).
434

O primeiro deles, e que mais me chamou a atenção, foi o Memorial Pontes de Miranda da Justiça
do Trabalho em Alagoas (MPM-AL) no nordeste brasileiro. Esse memorial é um dos únicos a ter em seu nome a
figura de um magistrado do trabalho, mas para além disso, é também o único a possuir um perfil no site voltado
para turismo e viagens, TripAdvisor, em que neste perfil os públicos visitantes podem pôr suas avaliações acerca do
espaço e outras informações afins. O perfil, por sua vez, é pouquíssimo visitado, contendo somente trinta e cinco
avaliações, e nessas avaliações são constantes os comentários de que o museu é voltado para “um público específico e
pouco atraente a turistas”161.

O memorial da justiça do trabalho em questão, assim como a maiorias dos demais, pouco se movimenta no
espaço virtual, e esta prática pode ser relacionada com a dinâmica presencial deste espaço. No site, que está conectado
ao site oficial do TRT19, existem poucos registros das atividades promovidas pelo MPM-AL, como exposições e
mediações pelo acervo. Porém, analisando comparativamente ao MJT-CE, os diálogos através da virtualidade com
os públicos, e as próprias atividades presenciais são mais ativas e destoam mais do projeto pensado para os memoriais,
o de narrar e legitimar uma memória única do trabalho. Ao pôr no site as exposições realizadas acerca das memórias
do trabalho dos povos originários, as gestões do MPM-AL exploram os campos de possibilidades dos espaços museais,
e ao organizar exposições comemorativas ao Dia Internacional do Trabalho, pondo em destaque a memória da
Justiça do Trabalho, demonstram os traçados que construíram o projeto circunscrito nesta instituição.

Figura 2 - Perfil no TripAdvisor do Memorial Pontes de Miranda - AL

Fonte: https://www.tripadvisor.com.br/Attraction_Review-d4376697.html#REVIEWS

No transcorrer das pesquisas notei que o único memorial da Justiça do Trabalho que dispõe
de rede social, especificamente um perfil no Facebook, foi o Memorial da Justiça do Trabalho do

161 Trecho retirado dos comentários do perfil no TripAdvisor do Memorial Pontes de Miranda-AL.
435

Rio Grande do Sul. Apesar de também possuir um site oficial conectado ao site do TRT4, o perfil
presente da rede social é a primeira resposta de pesquisa ao Memorial na internet. As ações virtuais
por parte do MJT-RS eram muitas antes da pandemia, e diferentemente dos outros memoriais
mencionados anteriormente, suas atividades durante o período de isolamento social se
intensificaram, fazendo com que o museu abrangesse novos públicos para além dos envolvidos
com a Justiça do Trabalho.

Ao promover debates através de lives, oficinas por plataformas de reunião e outras


atividades afins, com temáticas voltadas para o cenário atual do trabalho no Brasil, o MJT-RS pôs
em destaque para outros sujeitos temáticas afloradas no atual cenário, trazendo debates como as
reformas trabalhistas e as novas formas de exploração do trabalho na pandemia, e nos colocando
a pensar os outros projetos que coexistiam dentro desse campo de possibilidade dos museus, e que vão
se modificando a partir das suas interações, pois só se projeta possibilidades a partir do que já se
experimenta (Velho, 1994).

Figura 3 - Perfil no Facebook do Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande no Sul

Fonte: https://www.facebook.com/MemorialTRT4/

Para não concluir

Por hora, as experiências de trânsito virtual pelas diversas visualidades dos memoriais da
Justiça do Trabalho ao redor do Brasil me fizeram perspectivar outros horizontes de expectativa,
sendo estes inclusive acerca das próprias construções expográficas desses espaços museais. Dedicar
436

tempo, energia e afeto a escrita em tempos tão insalubres e desesperançáveis, foi e tem sido um
grande desafio, porém um desafio ainda maior é o de estar disposta a encarar o passado, e não
somente referente aos museus, como dinâmico e interconectado ao presente e ao futuro.

O acirramento de um capitalismo dependente através da consolidação de políticas


neoliberais na América Latina já caminha desde a década de 1980, e neste contexto de pandemia,
as mobilizações construídas ao longo de quase trinta anos se mostraram ainda mais bem delineadas
(Antunes, 2020), tais quais as reformas trabalhistas, as privatizações, e os desmontes dos
equipamentos culturais, ambas as situações correlacionadas a problemática da permanência e
existência dos memoriais da Justiça do Trabalho, as quais delineie neste artigo.

Ao analisar esses espaços museais do trabalho, se assim pudermos chamar, e vários outros
de âmbitos distintos, se faz possível perceber materialmente como se engendram as construções
narrativas da memória e centralmente a necessidade do protagonismo da classe trabalhadora na
construção das narrativas sobre suas experiências enquanto classe.

Para além desses espaços institucionais, as mobilizações coletivas das trabalhadoras e dos
trabalhadores nos propulsionam a crer que é possível construir narrativas que coloquem os
trabalhadores como protagonistas de suas trajetórias, e que destoem nas tentativas
homogeneizantes acerca do trabalho e do trabalhador. Observando em retrospecto as proposições
apresentadas, o MJT-RS se afasta do projeto pensado para os memoriais em sua fundação, entretanto
os demais memoriais antes mencionados permanecem passíveis de explorar os campos de
possibilidades e a afastarem-se desses projetos, construindo ações e promovendo ações
colaborativas. Proponho isto não no sentido somente de resolução das problemáticas antes
apontadas, mas como horizonte de expectativa para um cenário de constantes privatizações em
que a Justiça do Trabalho corre constantes riscos. Ao compreendermos a importância dessas
construções narrativas em nossas subjetividades e cotidianos estaremos também dando passos para
reinvindicação de outras narrativas a partir de outras ópticas.

Referências

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Paulo: Boitempo, 2020.

________. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo:
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437

________. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do


trabalho. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

Arantes. Os novos museus. Novos Estudos CEBRAP, vol, 31, pp. 161-169, 1991.

Assmann, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas:


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Guha, Ranajit. La prosa de la contrainsurgencia. Pasados Poscoloniales; CEAA, Centro de Estudios


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Lima, Diana Farjalla Correia. O que se pode designar como museu virtual segundo os museus
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Mattos, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Editora Expressão Popular,
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Velho, G. Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas. - 2 ed.- Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999.
438

A imigração no cinema: possibilidades de ensino

Carla Cristine Spies Stallbaum*

Resumo: Ao falarmos de imigração, falamos de um tema de permanente atualidade, já que os


processos de locomoção são inerentes ao ser humano. Após a instalação dos Estados-nação, da
proteção de fronteiras e dos nacionalismos, as (i)migrações se tornaram um assunto sempre em
pauta nos Estados. Além dos movimentos humanos internacionais, os sujeitos também se
movimentam internamente, esses processos são normalmente atrelados ao trabalho. Dessa forma,
pensar os processos de (i)migração se faz necessário pelo grande impacto que estes têm, tanto para
os (i)migrantes em si, quanto para a sociedade receptora destes sujeitos. Através da análise das
obras audiovisuais é possível identificar as representações dos imigrantes na produção
cinematográfica, de forma direta e indireta, mas que à luz da historiografia podem ser úteis na
análise desses processos, apresentando assim, diversos olhares sobre o sujeito migrante e sua
inserção (ou não) na sociedade de destino. Com a nova onda de migrações, acentuada desde
2015/2016, torna-se cada vez mais importante a abordagem deste assunto em sala de aula. É cada
vez mais corriqueiro encontrarmos (i)migrantes em nosso dia-a-dia, pessoas que deixaram seu lar,
pelos mais variados motivos, e estão em busca de algo mais. Trabalhar este assunto em sala de aula
é uma das maneiras de prevenir e combater processos que, corriqueiramente, esses outsiders
enfrentam na sociedade de destino, como xenofobia e preconceitos dos mais variados. Sob este
aspecto, utilizar-se de recortes cinematográficos para exemplificar situações e realidades pode ser
uma ferramenta para a sensibilização do jovem hiperconectado do século XXI a fim de que este
comece a olhar o outro com empatia e respeito, não apenas pensando no (i)migrante como um
invasor, alguém que lá está para “roubar seus empregos”.

Palavras-chave: imigração, cinema, ensino-aprendizagem.

Introdução

As produções cinematográficas são uma das formas mais democráticas de acesso à cultura
em nosso país. Grande parte da população brasileira acompanha algum filme ao menos uma vez
na semana. Os jovens, cada vez mais conectados acompanham as plataformas de streaming com
muita avidez. A escola é parte obrigatória da vida dos jovens, então, quais as justificativas para não
unir o necessário ao agradável?

Com certeza é necessário averiguarmos o fator tempo/duração de uma obra


cinematográfica, pois, geralmente, as aulas nas escolas são bastante limitadas e ao passar um longa
metragem para os estudantes “perdem-se” muitas horas-aula. Por isso, uma das saídas é escolher

*Graduada em História pela URI – Câmpus de Santo Ângelo (2010), Pós Graduação Latu Sensu em Metodologia de
Ensino de História (2014) e Supervisão Educacional (2020). Mestranda do PPGH da UPF.
439

recortes temáticos das obras para tratar de determinado assunto, fazer dele uma análise mais
aprofundada da realidade.

Para este trabalho, foram analisadas três obras cinematográficas: O Visitante (Ano: 2007,
Gênero: Drama/Romace, Tempo: 1h 45min , Direção: Tom McCarthy, Nacionalidade: Estados
Unidos), Brooklyn (Ano: 2015, Gênero: Drama/Romace, Tempo: 1h 45min, Direção: John
Crowley, Nacionalidades: Irlanda, Reino Unido, Canadá) e Que Horas Ela Volta? (Ano: 2015,
Gênero: Drama, Tempo: 1h 52min, Direção: Anna Muylaert, Nacionalidade: Brasil). As obras
foram selecionadas por demonstrarem uma íntima ligação com o tema principal, que é a
(I)migração e suas diversas formas e contextos.

Ao utilizarmos essas obras podemos aprofundar a análise de temas como as Redes


Migratórias, a Xenofobia, Relações sociais, entre diversas outras possibilidades advindas da
ampliação dos horizontes dos estudantes.

O que é um imigrante?

A pergunta inicial de qualquer análise sobre o tema imigração deve ser esta: O que é um
imigrante? O que faz um imigrante? Sabemos que migrar, mudar de lugar, é algo intrínseco ao ser
humano, pois afinal, foi desta maneira que o homem povoou o globo. A partir da formação dos
Estados Nação ergueram-se fronteiras e barreiras (tanto físicas como ideológicas) que têm o intuito
de impedir a livre movimentação das pessoas. Segundo Sayad (1998a, p. 54): “Um imigrante é
essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito.”
(Sayad, 1998). Nos filmes fica sempre muito claro a necessidade do imigrante para preencher as
vagas de trabalho. O filme Que Horas Ela Volta? Mostra a vida da imigrante nordestina Val e suas
relações sociais e de trabalho na cidade de São Paulo.

Ainda segundo Sayad (1998b, p. 55): “Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o
fez existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o
empurra para o não-ser.” A partir dos momentos em que não há mais vagas de trabalho, o imigrante
passa a ser visto como o incômodo, o indesejado, aquele que atrapalha.

São essas relações de trabalho que muitas vezes fazem nascer um sentimento de xenofobia,
de ódio ao outro, sem sobrar espaço para perceber que muitas vezes a força de trabalho daquele
outro é que fez a sua realidade se desenvolver.
440

A partir disto, surgem outros questionamentos: O que leva o (i)migrante a se encorajar a


imigrar? Ele sai do seu lar e vai para um lugar diferente, com, muitas vezes, uma língua diferente.
Pode o Imigrante fazer isso sozinho? Sem apoio? É aí que entra a importância das redes de
imigração, que muitas vezes são o fator mais importante que leva a pessoa a trocar seu lar pelo
desconhecido.

Mas o que são redes migratórias? Segundo Massey (1998, p. 396):

redes migratórias podem ser definidas como "complexos de laços interpessoais


que ligam migrantes, migrantes anteriores e não-migrantes nas áreas de origem e
de destino, por meio de vínculos de parentesco, amizade e conterraneidade.

As redes migratórias são demonstradas claramente na obra Brooklyn, onde a irlandesa


Eilish vai para os Estados Unidos através de contatos com um padre, amigo de sua irmã mais velha.
O padre consegue um emprego para ela em uma loja e uma vaga em um curso noturno, além de
moradia em uma casa de pensão. Esta obra mostra com riqueza de detalhes uma rede migratória
organizada dentro de uma imigração legalizada, e bem quista pelos EUA.

O mesmo não pode ser dito de todas as situações. O filme O Visitante mostra a realidade
de um casal de imigrantes que vêm da África e do Oriente Médio, como imigrantes ilegais. Por
estes não terem uma rede de apoio nem documentação, estão sujeitos à ficar á margem do sistema.

Conforme Truzzi (2008, p. 210):

De fato, nesse último sentido, compreende-se que os vínculos sociais possam ser
valorizados não apenas na sociedade de origem, instruindo a decisão de emigrar,
mas também na sociedade de recepção, após a emigração. Daí o valor estratégico
dos vínculos comunitários também no período de integração à nova sociedade,
normalmente estudados segundo uma série de indicadores, entre os quais os
padrões residenciais, ocupacionais, matrimoniais e o vigor das associações étnicas
(especialmente associações de socorro mútuo organizadas por origem) são os
mais comuns.

O ser humano é um ser social e cria seus vínculos primeiramente com sua família. Faz
sentido que, em um processo de mudança de lar, busque-se o apoio da família na construção de
uma nova realidade. Ser imigrante é uma constante presença na ausência. O migrante nunca mais
voltará a “encaixar-se” na totalmente na sua antiga realidade por terá alterado a si mesmo na sua
mudança de vida e espaço. Da mesma maneira nunca conseguirá Ser exatamente como um nativo
em sua sociedade de destino pois terá sua base formada em um lugar diferente, de maneira
diferente.
441

Nas análises de obras cinematográficas também podemos perceber as diferentes


abordagens que se dá à estrutura oferecida pela sociedade de destino para os seus migrantes.
Conforme Sayad (1998a, p. 59-60)

Ainda podemos nos perguntar, sobre cada um dos pontos enunciados, se este
mínimo – na verdade indispensável para a sobrevivência do imigrante – é
concedido ao imigrante por ele mesmo ou então para manter limpa a consciência
da sociedade que dele se utiliza; se este mínimo lhe é concedido pelo homem que
ele continua sendo (embora diminuído, mutilado, alienado) ou, ao contrário, só
lhe é concedido para permitir à sociedade ser (ou parecer) coerente consigo
mesma.(1998a, p. 59-60).

Fica o questionamento, a partir desta fala de Sayad, será que os direitos dados aos imigrantes
e refugiados o são dados de bom coração? Ou por uma mera obrigação de a sociedade “parecer”
boa? Afinal, cabe reflexão: Se o imigrante vem para trabalhar, melhorar a sociedade, não deveria
ele poder colher os frutos deste avanço econômico? São reflexões que devem ser feitas com os
estudantes, pois estes, muitas vezes, cometem atos de discriminação e preconceito por estarem
reproduzindo discursos que não têm base científica.

Uma das características da imigração como força de trabalho é a sua provisoriedade e


precariedade, também analisada por Sayad (1998b, p. 46):

Da mesma forma como se impõe a todos – aos imigrantes, é claro, mas também
à sociedade que os recebe, bem como à sociedade da qual provém –, essa
contradição fundamental, que parece ser constitutiva da própria condição do
imigrante, impõem a todos a manutenção da ilusão coletiva de um estado que
não é nem provisório, nem permanente, ou, o que da na mesma, de um estado
que só é admitido ora como provisório (de direito), com a condição de que este
“provisório” possa durar indefinidamente, ora como definitivo (de fato), com a
condição de que esse “definitivo” jamais seja enunciado como tal.

Seria então a condição provisória do imigrante um dos requisitos para que ele seja assim
aceito na sociedade de destino. Será um bom imigrante, bem quisto, aquele que não exigir direitos,
aquele que “não der problemas” que se comportar da maneira esperada pela sociedade. Aquele que
tiver a cor certa, o que não destoar dos cidadãos de bem serão sempre os que terão uma melhor
aceitação. Os migrantes são necessários à construção da sociedade, mas muitas vezes são vistos
como apenas a força de trabalho.

Dentro dessa construção da sociedade e da luta pela aceitação na sociedade de destino, é


quase que inevitável que os migrantes acabem por criar espaços de sociabilidade e convivência.
Alguns exemplos são espaços como o largo da Batata, em São Paulo, tradicional ponto de encontro
da comunidade migrante Nordestina ou até mesmo os diversos Centros Culturais Germânicos que
442

se espalham pelo Rio Grande do Sul, nas cidades de colonização Alemã. Sobre este aspecto,
Waldely (2018, p. 74-75 ) diz:

três categorias se relacionam o tempo todo: o urbano, o trabalhador e o migrante.


Os sujeitos se movem na cidade e a cidade se move com os sujeitos. [...]Na
medida em que vão conseguindo melhores condições de trabalho, vão mudando
sua maneira de habitar a cidade – de um cômodo compartilhado com muitas
pessoas, para um cômodo compartilhado com poucas pessoas, para uma casa
compartilhada –. Toda uma vida compartilhada e em movimento. E a cidade se
constrói nessa subjetividade como metamorfose constante.

O Filme Que Horas Ela Volta? demonstra claramente este aspecto. A doméstica Val
começa a história vivendo em um quarto na casa dos patrões, criando o filho dos mesmos. Quando
da vinda de sua filha Jéssica para São Paulo, Val vai mudar sua relação com a cidade, procurando
um lugar para morar com a filha. A transição da percepção de Val é influenciada diretamente por
suas vivências e pela fricção inter geracional com sua filha, que tem uma visão diferenciada do papel
da mulher/empregada nas relações trabalhistas e sociais.

Ao levar estas discussões teóricas para a sala de aula podemos aproximar os estudantes de
realidades diferentes, ampliando os horizontes dos mesmos a fim de que sejam mais receptivos a
novas visões e culturas. São pequenos passos, pequenos trechos que atingirão os estudantes para
que estes tenham atitudes mais humanas e solidárias.

Filmografia em sala de aula

O uso dos filmes em sala de aula se dá sempre com um objetivo de reflexão e de significação
sobre determinado assunto. Sempre que o professor opta por utilizar um filme ele precisa ter claro
quais os aspectos que deseja enfatizar na sensibilização dos estudantes. No caso da disciplina de
História, orientar a significação é uma necessidade, pois por se tratar, geralmente, de filmes de
época, é necessário situar o estudante no espaço-tempo, com todas as suas peculiaridades, costumes
e visões. Conforme Chartier (2002, p. 17):

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social
e construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos.
O primeiro diz respeito as classificações, divisões e delimitações que organizam
a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de
apreciação do real.
443

A partir disso ressalta-se da importância essencial de trazer à discussão os usos e costumes


de cada época, para que os mesmos não acabem gerando estranhamentos que podem acabar
atrapalhando a compreensão da obra audiovisual apresentada. Ranzi esclarece da seguinte maneira:

o filme é um documento de História Contemporânea no campo das


mentalidades, pois reflete a mentalidade dos homens e das mulheres que fazem
filmes. Permite compreender o espirito do nosso tempo e aproximar o aluno do
passado de uma maneira diferente, abrindo espaços de reflexão sobre a
construção da História (Ranzi, 1998, p. 26).

É preciso sempre levar em consideração o pensamento e as visões da época que o filme foi
gravado, além, é claro, de se compreender o período que o filme representa. Não podemos, por
exemplo, julgar com olhos exclusivos do séc. XXI uma obra que fale sobre escravidão no Brasil
Império. No Brasil do séc. XIX a escravidão era algo absolutamente normal, aceito pela sociedade.
Não podemos usar os pesos e medidas de uma contemporaneidade que acaba ocorrendo quase
200 anos depois. Segundo Domanski:

A maneira como os indivíduos se portam em sociedade, suas funções e ações, a


estratificação social assim como tantas outras características podem ser
observadas e analisadas de maneira crítica a partir do uso da filmografia. Muitas
intepretações podemos ter a partir dessas reflexões. (Domanski, 2020).

Portanto, além de se trabalhar todo o aspecto histórico da obra, precisa-se trabalhar os


aspectos humanos e a sociedade que a obra cinematográfica representa. Podemos, através dos
filmes, conhecer as preocupações dos grupos sociais representados, seus preconceitos, suas
preocupações. Ao conhecer melhor o outro, podemos desenvolver em nossos estudantes uma
maior capacidade de empatia e humanidade.

No caso do filme Que Horas Ela Volta? além de toda a problemática do trabalho e da
imigração, pode-se perceber ainda outros preconceitos que, infelizmente, estão enraizados, mesmo
que sutilmente, na base da sociedade brasileira. Uma das cenas mais emblemáticas da obra é quando
Bárbara (patroa de Val) contrata um funcionário para trocar a água da piscina sob a justificativa de
que havia caído um rato na água. O “rato” citado por Bárbara era, na verdade, Jéssica, a filha de
Val, que havia mergulhado na água. Esta cena, juntamente com uma cena anterior em que, ao saber
que Jéssica vinha de Escola Pública, Bárbara demostra um sentimento de comiseração, já dando
como certa a não classificação da jovem no vestibular, demonstram um desprezo arraigado na
classe que Bárbara representa para com uma classe que não tem as mesmas condições de educação
e/ou moradia que ela.
444

A capacidade de observação e sensibilização dos estudantes diante de cenas como essas são
a gênese de uma mudança de comportamento da sociedade. É um processo que se inicia
lentamente, mas que urge ser levado a cabo, pois o Brasil é um país plural, advindo de diversas
colonizações, cujos imigrantes provém de todos os continentes e são de todas as cores. Em pleno
século XXI é inadmissível que nossos estudantes ainda repitam preconceitos tão torpes e arcaicos
quanto o racismo e a discriminação por local de nascimento.

Considerações finais

O texto deste artigo apresenta alguns aspectos observados em salas de aula no decorrer dos
últimos anos. É uma breve reflexão acerca das realidades observadas em algumas escolas públicas
do Rio Grande do Sul.

Um dos fatores essenciais destas análises são as discussões que são levantadas em salas de
aula acerca de temas como as migrações, a aceitação do migrante na sociedade de destino, racismo,
xenofobia. Possivelmente estas discussões poderão formar uma maior compreensão destes jovens
sobre o olhar sobre a realidade do outro, sobre ter respeito pela cultura do próximo.

Finalizando podemos compreender que o grande resultado dessa atividade é sempre


lembrar da importância de viabilizar essas práticas, que inevitavelmente acabam sendo atrativas aos
estudantes, com usos de ferramentas diversas, como filmes, músicas e tantas outras que
encontramos nas artes, capazes de promover a conscientização e a sensibilização para o
aprofundamento dos assuntos de sala de aula, tornando-o mais dinâmico, criativo e,
principalmente, trazendo a alteridade para as relações às quais nossos estudantes serão
protagonistas quando saírem da escola e passarem a atuar em sociedade.

Referências

Chartier, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora
Difel, 2002.

Domanski, A. Filmografia E Reescrita Criativa Como Possibilidades Para O Aprendizado De


História in: Anais [do] Encontro Estadual de História da ANPUH-RS: História & resistências,
Passo Fundo 21 a 24 de julho de 2020 [recurso eletrônico] / orgs. José Edimar de Souza, Gizele
Zanotto, Clarice G. Speranza, Marcelo Vianna, Marluza Marques Harres. – Porto Alegre, RS:
ANPUH-RS, 2020.
445

Massey, Douglas. “Economic development and international migration in comparative


perspective”. Population and Development Review, vol. 14, 1988, pp. 383-413.
Morettin, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. História:
Questões & Debates, Curitiba: Editora UFPR, n. 38, 2003, p. 11-42.

Pinsky, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2018.

Ranzi, Sirlei Maria Fischer. Cinema e aprendizagem em História. História & Ensino, v. 4, pp. 25-33,
out. 1998.

Sayad, Abdelmalek. A imigração ou os Paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.

Schiller, N., Basch, L., & Blanc, C. De imigrante a transmigrante: teorizando a migração
transnacional. Cadernos CERU, vol. 30, n. 1, 2019, 349-394.

Tedesco, João Carlos. Desejados e Expulsos: trabalhadores imigrantes na/como pandemia: notas de
uma leitura conjuntural Passo Fundo: Acervus, 2020.

Truzzi, Oswaldo. Redes em processos migratórios. Tempo Social, São Paulo. v. 20, n. 1, pp. 199-218,
junho de 2008.

Vasconcelos, A. M. Refugiados e Imigrantes em tempos de pandemia COVID – 19. YouTube.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=89&v=-
wuVuDLTFEc&feature=emb_logo. Acessado em: 17 de set. de 2020.

Waldely, Aryadne. Pensar a partir dos migrantes: a perspectiva de Thomas e Znaniecki: Thinking
from migrants: the perspective of Thomas and Znaniecki. Revista Argumentos, vol. 15, n. 1, 2018.
68-86
446

Televisão e culturas políticas no Brasil Republicano: a


Assembleia Nacional Constituinte, 1987-1988162

Carla Drielly dos Santos Teixeira*

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o papel desempenhado pelas mídias, em geral,
e pela televisão, em específico, na difusão e interiorização de culturas políticas democráticas e
republicanas durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), ocorrida entre 1987 e 1988. O
telejornal oficial da ANC, o “Diário da Constituinte” (DC), teve um papel fundamental não só na
difusão e divulgação daqueles que eram considerados os principais temas discutidos e debatidos
pela Assembleia, como também para legitimar os trabalhos ali realizados, reafirmando as culturas
políticas que deveriam suplantar o autoritarismo na nova República. O texto está dividido em três
partes. A primeira, em que trata das possibilidades e desafios para utilizar a mídia como objeto para
a pesquisa histórica; a segunda, expõe a mídia enquanto vetor de disseminação de culturas políticas
durante o processo de redemocratização; a terceira, procura demonstrar as intenções de
disseminação de culturas políticas republicana, democrática, mas também de conciliação e
acomodação diante dos arranjos feitos durante a redemocratização.

Palavras-chave: História da mídia, História da televisão no Brasil, Assembleia Nacional


Constituinte – 1987/1988.

As mídias como objeto para a pesquisa histórica

Ao tratar da história política renovada, o papel desempenhado pelos meios de comunicação


social não é o mais analisado. Os obstáculos para a pesquisa se devem a fatores como a diversidade
extrema dos objetos de estudo e sua dispersão. No caso da pesquisa centrada nos meios
audiovisuais, a ausência de acervos com os conteúdos transmitidos e a consequente dificuldade de
acesso aos materiais veiculados faz com o que o trabalho do pesquisador se torne dispendioso e
penoso (Jeanneney, 2003, p. 213-5). Atualmente, com a digitalização de determinados materiais
audiovisuais e impressos, há maior facilidade de acesso, via internet, aos conteúdos difundidos
através da imprensa e da radiodifusão em diversos períodos. Apesar de mais acessíveis após o

162
O presente texto é fruto das reflexões que integraram o trabalho final apresentado à disciplina “Ditaduras e luta por
democracia no cone sul (1960-2000): Argentina, Brasil Chile e Uruguai”, do Programa de Pós-Graduação em História,
ministrada pelo professor Dr. Rodrigo Patto Sá Motta, durante o 1º semestre de 2020, na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH/UFMG).
*
Doutoranda em História (UFMG). Bolsista CAPES. E-mail: carlaodaradara@gmail.com.
447

advento da internet em massa, convém ressaltar que as condições de armazenamento e consulta


aos conteúdos audiovisuais, em específico, estão longe de serem as ideais. Muitos programas não
contam com cópia armazenada, há o problema da desorganização dos arquivos, sem contar os
acervos privados, cujo acesso depende exclusivamente do interesse de quem os detém.

Noves fora a dificuldade para a pesquisa, é certo que os meios de comunicação oferecem a
representação que uma sociedade política faz de si mesma. Estes desempenham um papel na
evolução dos comportamentos políticos, podendo lançar mão do poder de fazer e derrubar
governantes (Jeanneney, 2003, p. 215-8). Assim, não se pode subestimar o papel dos media, em
especial audiovisuais, nessa difusão de representações que são culturas políticas. É importante
destacar que nenhum vetor da socialização política procede por doutrinação. A ação é variada, por
vezes contraditória, e é a composição de influências diversas que acaba por dar ao homem uma
cultura política, a qual é mais resultante do que uma mensagem unívoca. O cultural prepara o
terreno do político através de um modelo de normas, de modos de raciocínio e difusão de temas
que, com a repetição, acabam por ser interiorizados, tornando os sujeitos sensíveis à recepção de
ideias ou à adoção de comportamentos convenientes (Berstein, 1988, p. 357).

É preciso distinguir e evidenciar principalmente a ação a longo prazo da mídia sobre a


formação das atitudes estáveis do cidadão em relação às doutrinas políticas, aos “problemas da
sociedade” ou aos países estrangeiros. Em compensação, a televisão apenas exerce uma
importância secundárias sobre as escolhas eleitorais: em vez de serem modificadas, são
consolidadas. O lugar que a telinha tomou no cotidiano dos cidadãos e a influência que pode ter
nos seus hábitos, nas suas práticas culturais, nos seus comportamentos cívicos e na própria
evolução das mentalidades seguem um duplo movimento: por um lado, uma “universalização” da
curiosidade e, em sentido contrário, um reforço da identidade nacional (Jeanneney, 1996, p. 227-8,
241).

A compreensão dos novos padrões de comportamento e da evolução dos meios de


comunicação constitui terreno fértil ao historiador a partir de uma análise interdisciplinar que
considere os debates e descobertas em torno das mídias e as formas que assumem na vida social.
Esta é a fundamental tarefa de utilizar a história e a mídia, inserindo uma no interior da outra,
fundindo-as e conferindo historicidade aos fenômenos midiáticos. Em específico, o historiador da
televisão deve ser, também, um historiador social e da cultura, sem perder de vista a relação do
meio com outras formas de mídia (Busetto, 2010, p. 159). Escrever a história da TV exige uma
reflexão de como se engajar nas conjunturas e processos do passado que assentaram as condições
de possibilidade ao funcionamento das instituições, à construção dos discursos, dos imaginários,
448

das culturas políticas que circundaram, interpretaram e interpelaram a indústria televisiva e seus
produtos (Freire Filho, 2008, p. 129-30).

A participação da televisão nas alterações da vida social e cultural contemporânea constitui


fator elementar para que os historiadores integrem a produção televisiva ao rol de suas fontes de
pesquisa ou passem a tomar o meio como objeto de seus estudos. Isso demonstra que a história
está em sintonia com questões ligadas a um conjunto de amplas e constantes relações sociais,
culturais e políticas que as mídias, em geral, mas a televisão, em específico, tem integrado na
contemporaneidade. A TV não é apenas um veículo transmissor da cultura, mas constitui um meio
portador de uma cultura própria, trata-se de um fenômeno multifacetado, um objeto de estudo
fugidio a uma chave única de interpretação (Busetto, 2010, p. 154).

A TV é uma questão de cultura e seus programas são conteúdo simbólico e regime cultural
de milhões de pessoas no mundo todo. Trata de diversas dimensões: política, noticiários,
campanhas eleitorais etc (Bourdon, 2011, p. 18-20). Faz-se necessário apreciar a televisão como um
fenômeno ao mesmo tempo tecnológico, industrial, social, cultural, político e estético. Em
específico, o telejornalismo, uma vez que representou e representa - a despeito das diversas
possibilidades colocadas junto ao panorama midiático - elo fundamental da engrenagem produtiva
de socialização de notícias da escala regional à planetária. Este goza de uma intimidade junto ao
telespectador devido à lida diária, constituindo-se como um espaço em que os registros do passado
e do tempo presente ganham visibilidade e existência social em nosso cotidiano (Palha, 2017, p.
238-40).

A história da televisão no Brasil tem sido tratada, em geral, por alguns poucos pesquisadores
ligados à área da comunicação, da ciência política e da sociologia cujas pesquisas, em regra, se
centram na dimensão institucional e apresentam uma trajetória linear do meio. Estas são
meramente nomeadas como interdisciplinares. A despeito de serem elaborados sob pressupostos
teóricos da sociologia, acabam por privilegiar em suas perspectivas analíticas e periodização a
influência, direta ou indireta, do poder político (seja no período democrático, mas também durante
a Ditadura Militar) e do poder do capital (nacional ou estrangeiro, com destaque ao capital
estadunidense) na estruturação e no desenvolvimento do serviço de televisão e de suas
organizações. Nessa perspectiva, a historiografia brasileira encontra-se alheia às discussões e ações
envolvidas com a democratização da TV no Brasil, os debates e práticas avolumados a partir da
ANC, em 1987/1988, que trouxe em seus trabalhos a discussão sobre o direito à informação e à
pluralidade de ideias no meio televisivo se contrapondo ao monopólio reinante até a atualidade e
cujo texto final aprovado conta com o até então inédito capítulo específico dedicado à comunicação
449

social, assegurando, na carta magna, a importância das mídias e da comunicação social para o
período democrático que se gestava (Busetto, 2010, p. 162-5).

A mídia na redemocratização e culturas políticas no Brasil

A instalação da ANC, em 1987, foi um marco na luta pela democracia e os direitos, no


Brasil. Ao tratar da regulação social, houve a expressão de um projeto visando a construção de um
“estado de bem-estar social”, todavia, a regulação dos artigos acerca da comunicação social expressa
uma postura “não intervencionista”, fruto de pressões dos proprietários dos meios de comunicação
e de setores que se colocaram contra o período de censura dos órgãos de repressão da Ditadura. O
Capítulo V da Comunicação Social representou significativo avanço. Foi a primeira vez que se dedicou
um capítulo na Constituição do Brasil exclusivamente ao tema. Todavia, seus artigos
contemplaram, notadamente, os interesses dos empresários em detrimento aos dos grupos críticos
ao monopólio do setor midiático (Vogel, 2013, p. 3-11).

Os discursos disseminados pela grande mídia, em especial a eletrônica, sofrem limitada


contestação pública, o que lhes conferem significativa influência na construção da “definição da
realidade” que irá pautar o comportamento estratégico dos políticos, dos partidos e eleitores
(Vogel, 2013, p. 8). Desde o governo Figueiredo (1979-85) foi crescente o número de outorgas de
canais de rádio e televisão. No entanto, o governo que mais ofereceu concessões foi o de José
Sarney163. Muitas destas, efetivadas junto a concessionários que gozavam de cargo parlamentar e
compunham a chamada “Bancada da Mídia”. A partir da política do “é dando que se recebe”,
Sarney visava a fixação do seu mandato em cinco anos e a manutenção do sistema presidencialista
de governo (Palha, 2008, p. 48).

Para compreender o papel político e social das mídias, em geral, e da televisão, em


específico, convém considerar a existência de culturas políticas brasileiras que, ao mesmo tempo,
convivem com culturas e subculturas no interior do espaço nacional, enquanto estas, apesar de suas
divergências, podem carregar algumas características semelhantes.

A existência de uma cultura política implica um imaginário, neste caso, nacional, dotado de
um conjunto de representações que oferecem ao grupo uma identidade política. Representações,
estas, construídas por meio de imagens mentais ou visuais que são disseminadas, reproduzidas e

163
Do total das 1.028 concessões distribuídas, em torno de 90 delas referiam-se a televisão, onde 42 foram distribuídas
no ano da votação da emenda constitucional, das quais 30 foram divididas entre parlamentares aliados ao governo
(Palha, 2008, p. 48).
450

reapropriadas ao longo do tempo. É possível identificar um padrão de comportamentos enraizados


na tradição brasileira: patrimonialismo, cordialidade, paternalismo, autoritarismo, personalismo,
clientelismo, pragmatismo, além das tentativas de escamotear conflitos e buscar a integração social
num processo contínuo e histórico de conciliação/acomodação (Motta, 2018, p. 113-5).

De acordo com Debrun (1983, p. 15), a conciliação, no Brasil, sempre pressupôs o


desequilíbrio, a dissimetria dos parceiros, e não o seu equilíbrio, formalizando e regulando a relação
entre atores desiguais, uns já dominantes, e os outros já dominados. Ademais, há que se pensar em
uma cultura política autoritária que se disseminou por vários setores da sociedade brasileira. O
processo de transição, todavia, foi dotado de um sistema político caracterizado pela fragmentação.
A inflação foi fiadora da redemocratização morna e lenta, e significou o adiamento da solução de
problemas estruturais (Nobre, 2013, p. 30-8).

As medidas tomadas pelo governo ao nível institucional foram fundamentais para garantir
o controle do processo de transição, o que pode sugerir a permanência de uma cultura política
conservadora em ambiente de redemocratização que se pretendia mostrar como também de
renovação política através da cooptação de qualquer demanda que pudesse significar ruptura em
relação ao poder vigente e às elites dirigentes do processo de redemocratização. O PMDB se
consolidou como a maior força político-partidária e obteve maioria parlamentar na ANC/1987-88,
voltando, junto com os trabalhos constituintes, a ter destaque e gozar do novo processo de
legitimação capitaneado pelo Congresso Nacional que estava bastante desgastado devido aos
ataques sofridos durante a ditadura. Na correlação de forças em jogo é essencial a ocupação
eficiente dos meios de comunicação para colonizar o debate público e acumular recursos
disponíveis à chantagem da política pública do momento (Nobre, 2013, p. 48-50).

A fonte audiovisual, mais precisamente a televisiva, faz uso de uma linguagem que a
princípio se apresenta ao grande público de forma plenamente acessível, universalizada, todavia
trata-se de uma linguagem de alta complexidade e hibridização que comporta elementos como a
integração de sons e imagens em sintonia fina, o ritmo acelerado de seu fluxo com cortes rápidos,
o jogo de interesse dos enquadramentos, dos movimentos e ângulos de câmera, a construção de
cenários e a escolha de figurinos, a iluminação, a trilha sonora, as opções de montagem, a
fragmentação e a diversidade de outras textualidades e códigos midiáticos. A tessitura híbrida dos
conteúdos televisivos, que mistura realidade com ficção, permite que o público constitua uma
identificação mais imediata com seu próprio universo subjetivo que não faz separações estanques
destas dimensões (Palha, 2017, p. 244).
451

É a partir dessa lógica discursiva maior que os gêneros televisivos podem ser entendidos
não de forma rígida e padronizada, mas como estratégias de comunicabilidade que promete o
acesso a um mundo específico. No caso dos telejornais, o que se sobressai é uma informação que
carrega consigo a promessa de acesso ao “real”, a um testemunho inconteste do mundo,
especificamente nas coberturas ao vivo. Se por um lado essa seria uma promessa ontológica do
telejornalismo, por outro lado, seus subgêneros (telejornalismo policial, de esportes, variedades,
documentários, legislativos etc) abrigam uma grande variedade de produtos em formatos bem
distintos (Palha, 2017, p. 245).

Em abril de 1987, dois meses após o início dos trabalhos da ANC, foi lançado o telejornal
“Diário da Constituinte” (DC). Destinado à veiculação na TV, cada edição durava cinco minutos,
era transmitido duas vezes164 ao dia, de segunda a sexta-feira. Financiado pelo Congresso
Constituinte, realizado e transmitido pela Radiobrás, tratou-se da primeira experiência de telejornal
sobre o legislativo na TV aberta. Seu conteúdo mostrava os bastidores, notícias e entrevistas sobre
os temas discutidos no Congresso Constituinte (Barros et al., 2007, p. 6-7), sob a tutela e
responsabilidade de Marcelo Cordeiro, primeiro secretário da Mesa Diretora, que se reportava
diretamente a Ulysses Guimarães, então presidente da ANC.

Por se tratar de um telejornal oficial, o DC não privilegiou apenas líderes dos partidos,
como era comum nas grandes emissoras comerciais e seus noticiosos, mas oferecia lugar de fala
para diversos parlamentares que não gozavam de espaço nas mídias tradicionais. Os antagonismos
e conflitos, próprios da ANC, se refletiram no DC e na disputa entre os parlamentares para aparecer
em suas edições. O telejornal apresentou o contraditório e também abriu espaço para críticos aos
trabalhos da ANC. Parlamentares de todos os espectros políticos falavam aos microfones. O
noticioso também manteve em suas edições uma intensa campanha pela participação popular, na
primeira fase dos trabalhos constituinte, através das proposições das denominadas “emendas
populares”165.

Ainda em 1987, parlamentares do PFL acusavam o programa de ser tendencioso e exigiam


maior espaço à participação de sua bancada. Estes consideravam que o DC favorecia os
parlamentares de esquerda e se consideravam injustiçados por terem contado, até novembro de
1987, com apenas 6H de aparições no programa, apesar da preponderante bancada de 132
parlamentares, enquanto o PCdoB166, cuja bancada somava três deputados, gozou de 35 minutos

164 Entre 12H e 14H; entre 19H e 22H, na televisão. (Folha de S. Paulo, 09/04/1987).
165 Para propor uma emenda à ANC eram necessárias 30 mil assinaturas colhidas por pelo menos três instituições,
fundações ou organizações da sociedade civil.
166 Partido Comunista do Brasil.
452

no DC167. Onze meses após o início do telejornal, a média de aparições por constituinte era de
quatro vezes. Ulysses Guimarães gozou de 123 intervenções, o que tornou necessário refazer o
sistema que aferia o número de amostragem, posto não prever mais de cem aparições por
constituinte168.

À parte os conflitos para estar em frente às lentes – atrás das telas - e a intenção creditada
ao DC enquanto meio de transparência, ficam latentes as pressões e as manipulações que a sua
realização pode ter estado suscetível junto ao setor privado, em especial a Rede Globo, uma vez
que o Jornal Nacional era transmitido logo após a emissão do DC. Ademais, por transparência não
se deve entender “democracia”, mas sim o resultado do conteúdo filtrado pela Mesa Diretora da
Constituinte às voltas com as constantes influências dos agentes que compunham o campo político,
acrescida das pressões dos grupos empresariais que buscavam garantir seus interesses na “Nova
República”.

O telejornal gozou de grande prestígio junto ao público, movimentou os interesses de


figuras políticas em torno de sua realização e teve um importante papel na disseminação de
informações, mas também de valores relativos à participação popular em seus trabalhos, como
veremos a seguir.

O “Diário da Constituinte” enquanto vetor de culturas políticas na Nova República

Apesar dos trabalhos da ANC ocorrerem desde fevereiro de 1987, a veiculação do DC se


deu apenas em abril, quando começaram os trabalhos das subcomissões. Ao lado de vinte
funcionários da Radiobrás também trabalhavam outras setenta pessoas das assessorias de Relações
Públicas e Comunicação da Câmara e do Senado. A Empresa Brasileira de Notícias ficou
encarregada de transmitir o programa oficial “A voz da Constituinte” pelo rádio. A partir do dia 9
de Abril ficou definido que o primeiro informativo do dia cuidaria de apresentar ao público os
trabalhos das comissões e subcomissões durante a manhã, enquanto a segunda edição priorizaria
os debates em plenário.

Nas edições do noticioso é possível notar maior apelo auditivo, em prejuízo do recurso
visual. Vinhetas musicais marcam a mudança de um assunto para o outro. Na TV, é exibida uma
tela azul com a logo do programa (uma representação do prédio do Congresso Nacional sobre o
mapa do Brasil) e algum texto escrito remetendo à fala do narrador. O programa não possui um

167
Dados apresentados pelo deputado José Lourenço (PFL) e publicados no Jornal do Brasil, 18/12/1987.
168
Jornal do Brasil, 07/03/1988.
453

narrador fixo, variando entre vozes masculinas e femininas no decorrer das edições. O ritmo da
narração é acelerado, de modo a transmitir o máximo de informações no menor espaço de tempo.
Ademais, ainda nesta semana de estreia, a intervenção dos parlamentares no programa não era
acompanhada de legendas contendo seus nomes, partidos e regiões de origem, tornando difícil a
identificação dos interlocutores junto ao telespectador. Com o passar do tempo o telejornal contou
com aperfeiçoamentos técnicos e gráficos a partir da inserção de vinhetas e outros recursos visuais
que contribuíam para o melhor entendimento do conteúdo transmitido. De acordo com Marcelo
Cordeiro, a Rede Globo e a Rede Bandeirantes foram duas empresas de televisão que contribuíram
construindo vinhetas e oferecendo outras melhorias ao telejornal. Era do interesse das emissoras
que o DC tivesse uma qualidade técnica e estética superior àquela inicialmente apresentada, até
porque suas edições eram transmitidas no decorrer de suas grades de programação169.

Pode-se tomar emprestado o termo cunhado por Williams (2019, p. 60) que definiu o
modelo televisivo estadunidense como “radio-visual”, ou seja, é adicionada à técnica radiofônica o
recurso de imagem sem que se considere a especificidade da televisão enquanto possibilidade de
estética visual. No caso do DC, as entrevistas com populares são realizadas por uma repórter que
nunca aparece no enquadramento da imagem. Enquanto nos telejornais da grande mídia os
repórteres e entrevistadores têm função de estabelecer a credibilidade e familiaridade junto ao
público, o DC dedicava esta função aos parlamentares, especialmente ao presidente da ANC,
Ulysses Guimarães. As edições contavam com manifestações de congressistas que explicavam ao
público os trabalhos realizados pelas comissões e subcomissões, fazendo uso de um vocabulário
técnico e sofisticado, muitas vezes inacessível à maior parte das pessoas.

Cabe aqui destacar que durante as edições do DC os parlamentares do PMDB foram os


que mais apareceram atrás das telas, mas nenhum deles realizou tantas intervenções quanto Ulysses
Guimarães. Este afirmava, em diversos momentos do programa e durante entrevistas, que a
Constituição “era para os pobres, para os trabalhadores”. Buscava sempre reforçar a ideia de que
o texto constitucional apenas traria benefícios ao povo, com intuito de legitimar junto ao grande
público a nova Constituição, tendo o Congresso Nacional como fiador. Convém ressaltar, todavia,
que a Constituição era feita por empresários, políticos e intelectuais para o povo. Ainda que houvesse
representantes diretamente ligados às camadas populares compondo os trabalhos constituintes,
grande parte dos parlamentares era oriunda das classes médias e elites políticas regionais, de modo
que viviam uma realidade social, econômica e política muito distinta da maioria da população.

169
Entrevista concedida para a autora.
454

O personalismo, aspecto básico da cultura brasileira, caracterizado pela primazia dos laços
pessoas em detrimento de relações impessoais, demonstra que a identificação política se dá com
pessoas e não com projetos políticos (Motta, 2018, p. 115-6), de modo que os meios de
comunicação adquirem função de identificação e apresentação da figura política junto ao grande
público. Esquema alimentado por uma costumeira desconfiança em relação às instituições políticas
de uma sociedade tradicionalmente pouco politizada e organizada, aspectos que favoreceram
acomodações e arranjos políticos excludentes da maioria.

As edições do DC transparecem a preocupação de encetar valores relativos à cultura


democrática e republicana, em sua dimensão ideológica e doutrinária, tendo o noticioso como
porta-voz do processo de reorganização institucional e política do país. As edições do programa
encetavam o estabelecimento de laços de identidade política e ideológica entre o público e os
parlamentares constituintes, efetivada a partir da realização da nova constituição. O apelo pelo
engajamento popular era a busca pela legitimação da nova ordem política que se desenhava. O
personalismo foi cultivado na figura de Ulysses Guimarães que desde o primeiro programa
colocou-se como interlocutor junto ao grande público. Em aspectos relativos ao tema da
comunicação social, o noticioso ofereceu espaço às propostas que eram antagônicas aos grupos
midiáticos hegemônicos, mantendo a característica editorial de abrir espaço para o contraditório a
despeito das pressões exercidas por parlamentares conservadores com apoio dos grandes jornais.

O telejornal procurava difundir uma informação que carregava consigo a promessa de


acesso ao “real”, tendo como fio condutor a retransmissão direta dos fatos. São múltiplos os
desdobramentos percebidos a partir de suas representações: a necessidade de implantação de uma
cultura política democrática após traumático período autoritário, combate à desigualdade e à
injustiça social a partir das constantes afirmações da preocupação com o “povo” e os
“trabalhadores”, e estimulo à participação política da população junto aos trabalhos do Congresso
Nacional. Mas, também, a permanência e destaque concedidos a conhecidas figuras políticas ligadas
aos grupos hegemônicos que, outrora coniventes com os desvios autoritários, se apresentavam
como precursores e mandatários da nova ordem política que se anunciava democrática e
republicana.

Logo no sétimo programa o DC trouxe o debate sobre o tema da comunicação social, em


específico, veiculando a proposta da formação dos Conselhos de Comunicação Sociais, cuja
proposta inicial previa a ele, e não ao presidente da república, o poder de conceder e cassar outorgas
de canais de radiodifusão, mas sem mencionar o aprofundamento da proposta, que visava a
455

exploração do setor da comunicação sem fins lucrativos, o que confrontava frontalmente os


interesses dos empresários ligados ao setor.

É relevante que o DC tenha trazido em seu noticiário a questão do modelo de distribuição


dos canais de radiodifusão por apresentar à sociedade um outro modo de distribuir as outorgas,
baseado em um colegiado. O telejornal ventilou o tema da comunicação social e da democratização
das mídias, ainda que referente apenas ao seu modelo de concessão, sem levantar os problemas da
exploração privada do setor de telecomunicações.

É importante que o programa tenha dedicado espaço ao assunto da comunicação social


não por se tratar de um tema mais relevante que outros, mas porque suas edições eram transmitidas
pelas grandes emissoras de rádio e televisão, nos horários definidos – os de maior audiência -,
abrindo espaço para tal debate na sociedade. Ao apresentar, por exemplo, a fala do relator, Artur
da Távola (PMDB/RJ), que se colocou a favor da forma coletiva para a definição das outorgas, o
DC põe em cena um assunto que as grandes emissoras jamais mencionaram em suas programações:
seus proprietários são concessionários de um serviço público, operado pela iniciativa privada, mas
que deve atender ao interesse público, portanto, não ser objeto de jogos e barganhas entre grupos
ocupados apenas com seus próprios negócios particulares. Talvez por isso Sarney tenha se
apressado tanto em despachar todas as concessões que pôde. As outorgas dos canais de rádio e TV
foram amplamente utilizadas para garantir os interesses do governo. A manutenção dos grupos
hegemônicos nas grandes mídias - aqueles mesmos que apoiaram a ditadura recém superada –
representou o imobilismo da comunicação social na nova ordem política e democrática, todavia,
veio acompanhada de um amplo debate sobre o direito à informação e à comunicação, além de ter
rendido, pela primeira vez, um capítulo específico sobre a comunicação social numa constituição
brasileira.

Referências

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Beired, José Luís Bendicho; Barbosa, Carlos Alberto Sampaio. (orgs.). Política e identidade cultural na
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Nobre, Marcos. Imobilismo em movimento: da redemocratização ao governo Dilma. São paulo:


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acesso em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20544/10959. Acessado em:
20/10/2020.
457

ERER na escola: a importância da valorização de histórias,


memórias e narrativas da população negra no ensinar história

Carol Lima de Carvalho*

Resumo: O presente trabalho busca apresentar aspectos sobre o Ensino de História focado na
Educação das Relações Étnico Raciais (ERER), assim como numa perspectiva decolonial. O intuito
é viabilizar histórias, memórias e narrativas até então invisibilizadas no ambiente escolar, segundo
o autor Peter Lee (2011), entender História possibilita a compreensão dos indivíduos como sujeitos
históricos e agentes de suas próprias histórias. Nesse sentido, é fundamental uma sequência didática
que considere de maneira plural os modos de ser, pensar e estar no mundo. Ao pensar no exercício
de busca por epistemologias plurais na construção de reflexões sobre conhecimentos históricos,
este trabalho teve a intenção de reconhecer a importância em considerar que as memórias estão
ancoradas em corpos negros (Antonacci, 2013). As fontes que compõem este trabalho são
atividades realizadas nas aulas de História pelo nono ano da Rede Municipal de Ensino de
Florianópolis em 2019, as produções estavam direcionadas as histórias de populações negras de tal
modo que fosse possível romper com noções de hierarquia racial e que assim pudessem construir
relações mais saudáveis necessárias ao ambiente escolar. Após o acesso a estas atividades e
diferentes cosmovisões, emergiu o projeto “Afro-Power Ubuntu: eu sou porque nós somos”,
construído pelas estudantes e que busca valorização da estética africana e negra. As concepções
teóricas metodológicas deste trabalho perpassam as noções de interseccionalidade, tradição oral,
oralidade, ancestralidade e epistemologias plurais, questões basilares nos estudos pós-coloniais e
decoloniais. O trabalho pretende, portanto, apresentar reflexões sobre a ERER na rede, estudos
decoloniais, e por fim a efetivação das Leis Federais 10.639/03 e 11.645/08 no ensino fundamental
da rede pública de Florianópolis.

Palavras chaves: ERER, decolonialidade, Ensino de história.

Considerações iniciais

O presente trabalho tem como intuito apresentar reflexões sobre minhas experiências
enquanto professora de história da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis. Eu sou uma
mulher, negra, nascida em Florianópolis, bisneta, neta e filha de mulheres negras que possibilitaram
mudanças significativas na cidade, além de construir os universos culturais, sociais e políticos. No
entanto, elas, assim como tantas outras, estão invisibilizadas na historiografia catarinense.

A partir dessa conjuntura, algumas pesquisas emergiram, inclusive sobre os universos de


mulheres negras na cidade de Florianópolis atrelados as dinâmicas de oralidades e letramentos.
Busquei evidenciar também o histórico da Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros –
AMAB, organização sem fins lucrativos que por meio da educação, saúde e cultura lutaram, e ainda

*Doutoranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), vinculada ao Laboratório de


Estudos AYA/UDESC, Florianópolis- SC, Brasil. E-mail: carolimac18@gmail.com
458

lutam, pelo fim do racismo, discriminações e pela equidade de direito, além disso evidenciei a
importância de Antonieta de Barros para luta antirracista. Atualmente sou doutoranda no curso de
História da UDESC pesquisando também sobre narrativas de mulheres negras em Florianópolis.
Dito isso, para além do campo acadêmico, resolvi neste trabalho compartilhar reflexões que fiz ao
longo de dois anos na educação básica, nesta atuação busco evidenciar estudos que possibilitam
uma proposta de alteração de um cenário hegemônico na cidade.

É importante destacar que tais cenários estão ligados ao racismo estrutural, concepção
construída a partir da ideia de invenção do significado de raça, África e negro, segundo Achille
Mbembe (2014) a raça não existe num sentido biológico, antropológico ou genético, mas que no
histórico social, a partir do início da escravidão, africanos e africanas aparecem na condição de
objeto em que por uma questão de aparência, cor e pele, desempenha um papel de mercadoria,
desumanizando estes corpos, afirmando não terem histórias, memórias e narrativas. Desse modo,
na medida em que existe uma concepção pautada numa dicotomia entre superioridade e
inferioridade pela cor da pele, trata-se da raça sociohistórica, a qual me refiro neste trabalho, além
disso, estas ideias que compõem o racismo estrutural da sociedade brasileira.

Neste viés, é preciso frisar que o racismo não é apenas um acontecimento momentâneo ou
pontual, “é uma experiência contínua que atravessa a biografia do indivíduo, uma experiência que
envolve uma memória histórica de opressão racial, escravização e colonização” (Kilomba, 2019, p.
85). O autor Silvio Almeida, também destaca o fato do racismo ser uma estrutura da sociedade e
que ultrapassa ações humanas, para ele é uma forma “sistemática de discriminação que tem a raça
como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que
culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam” (Almeida, 2019, p. 32).

Ademais, o foco deste trabalho é pensar de que modo o racismo se manifesta na escola e
quais caminhos para combatê-los, principalmente a importância desse movimento. Assim, é
pertinente pensar a discussão sobre racismo institucional, reforçando que “o racismo não se resume
a comportamentos individuais, mas é tratado como resultado do funcionamento das instituições,
que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e
privilégios com base na raça” (Almeida, 2019, p. 37).

Nesse caminhar, os escritos de Grada Kilomba nos possibilitam ampliar algumas


concepções sobre este racismo, principalmente no que diz respeito a produção de conhecimentos,
ela expõe,
459

Qual conhecimento está sendo reconhecido como tal? E qual conhecimento não
o é? Qual conhecimento tem feito parte das agendas acadêmicas? E qual
conhecimento não? De quem é esse conhecimento? Quem é reconhecida/o
como alguém que possui conhecimento? E quem não o é? Quem pode ensinar
conhecimento? E quem não pode? Quem está no centro? E quem permanece
fora, nas margens? (Kilomba, 2019, p. 50).

Portanto, pode-se afirmar que a ausência de memórias, história e narrativas plurais nos
bancos escolares sobre pessoas negras na cidade é uma reverberação dessa estrutura racista. E isto
é chamado também, por Sueli Carneiro, de epistemicídio.

A negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da


desvalorização, negação ou ocultamento das participações do Continente
Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela
imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão
escolar são os processos denominamos epistemicídio (Carneiro, 2014, p. 1, grifos
meus).

Assim sendo, os questionamentos aos quais me fiz por muito tempo, possibilitaram que eu
percorresse um caminho para compreender toda essa dinâmica, em espacial, por afetar diretamente
minha autoestima, enquanto mulher e negra. Além das pesquisas em âmbito acadêmico, enquanto
professora de história da rede pública da cidade também busquei um exercício de buscar
epistemologias plurais na construção de reflexões sobre conhecimentos históricos.

Os escritos desse trabalho são reflexões das análises das atividades realizadas por estudantes
do nono ano de uma escola situada no bairro Ribeirão da Ilha, em Florianópolis. Foram sequências
de atividades ao longo do ano, vou destacar algumas, a primeira foi sobre a Deputada Professora
Antonieta de Barros, em seguida a exposição da organização de um novembro negro e por fim,
uma atividade para conhecer mulheres negras no Brasil e no mundo. Para análise dessas produções,
alguns conceitos são fundamentais para concretização desta pesquisa, o primeiro que através das
análises das atividades, pude observar a necessidade de pensar os/as estudantes de maneira
interseccional, isto é, segundo Kimberlé Crenshaw (2002) ao propor uma discussão sobre
interseccionalidade destaca que o “racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres,
raças, etnias, classes e outras” (Crenshaw, 2002, p. 177).

A autora Carla Akotirene (2019) também enfatiza que a interseccionalidade é uma


ferramenta teórica e metodológica usada para pensar a estrutura do racismo, capitalismo e
cisheteropatriarcado. Desse modo, ao refletir que estudantes estão envolvidos/as nessas estruturas
possibilitou compreender que cada um/a deles/as possuem suas singularidades, estas
reverberaram, inclusive, nos seus posicionamentos em relação as atividades.
460

Outras concepções estão relacionadas aos aspectos encontrados nas pesquisas sobre as
trajetórias de vida das populações africanas e afro-brasileiras, como por exemplo, a tradição oral,
oralidade e ancestralidade. A tradição oral, está vinculada às concepções de Hampaté Bâ sobre a
transmissão de culturas sob regimes de oralidade que o corpo está diretamente relacionado. Tais
culturas vinculam-se a aspectos da tradição oral, entendida como costumes, saberes e narrativas
que passam de geração em geração por séculos (Hampaté Bâ, 1982, p.167). Além disso,

Esta forma envolve uma visão particular do mundo, ou melhor, uma presença
particular no mundo. Desta forma, no seio das famílias, a tradição oral conta com
a participação dos mais velhos, que ministram ensinamentos ligados às
circunstancias da vida (experiências vividas), mas também por meio de histórias,
fábulas, lendas, em que evocam os grandes feitos dos seus ancestrais
(Damasceno, 2019, p. 2).

Algo fundamental para tradição oral é a oralidade, pois é a maneira em que as populações
africanas e afro diaspóricas produziram, ainda produzem, conhecimentos, “de geração em geração
a oralidade vem perpetuando as experiências e conhecimentos dos povos africanos que dessa forma
construiu e propagou sua cultura” (Filho; Alves, 2017, p.55). E a ancestralidade é compreendida a
partir de um tempo relacional, ou seja, um tempo da natureza, não é linear e nem circular, significa
que está diretamente relacionada ao fato de aprenderem com aquelas pessoas que as antecederam.
Desse modo, neste contexto, é importante evidenciar a ancestralidade como aspecto fundamental
no “processo de formação identitária e de libertação, especialmente das pessoas inseridas nos
contextos sociais desprivilegiados, pois implica em conhecer e reconhecer-se na construção de sua
história e missão de vida” (Machado; Abib, 2011, p. 6). Todas estas reflexões são questões basilares
dos estudos pós-coloniais e decoloniais.

Educação das Relações Étnicos Raciais na escola em Florianópolis

A Educação das Relações Étnico Raciais (ERER) na rede municipal de ensino de


Florianópolis tem algumas especificidades, a primeira é que as mudanças significativas foram
realizadas por mulheres negras, a segunda é que no ano de 1994 tinha uma Lei municipal: 4.446/04
que tinha como proposta a obrigatoriedade da inclusão nos currículos escolares os conteúdos sobre
culturas afro-brasileiras, vale destacar que ela é anterior a Lei em âmbito Federal, a 10.639 do ano
de 2003 que tornou obrigatório o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras, e
posteriormente no ano de 2008 a inclusão do ensino de histórias indígenas. E por fim outros
aspectos que o cenário se diferencia é na medida em que constrói uma “Matriz Curricular para a
educação das relações étnico raciais na educação básica” do ano de 2016, assim a rede atendeu as
461

determinações legais e desenvolveu conjunto de ações para efetivação das políticas. Ao


contextualizar as relações raciais a Matriz enfatiza a importância das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnicos Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
brasileira. Documentos que instituíram a Educação das Relações Étnicos Raciais.

Importante reforçar que, embora existam estas especificidades, em que se destacam


positivamente em muitos aspectos, ainda há lacunas e muita luta pela frente. Na intenção de
fortalecer e caminhar para implementação das leis, utilizei a Matriz de ERER como fundamentação
na elaboração das atividades. Entendendo que a ERER é “uma reeducação entre negros e brancos,
tendo como intuito a valorização das múltiplas identidades, culturas e histórias” (Florianópolis,
2016, p. 15), além disso, é uma articulação entre processos educativos, políticas públicas,
movimentos sociais e mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas que não se limitam a
escola. Desse modo, a intenção não é uma escola só para negros, mas viabilizar e visibilizar a sua
presença nas culturas e nas histórias. Pensando numa educação para todos\as.

Foi importante pensar também a respeito dos sujeitos de ERER, lançando


questionamentos, como por exemplo, “Quem são as/os estudantes? De onde vem? O que fazem?
O que querem da escola? Por que precisam dela? Qual impacto exerce em sua trajetória o fato de
seus conteúdos serem reconhecidos pela escola? ” (Florianópolis, 2016, p. 21). E diante das
respostas destes questionamentos, considerar alguns caminhos para pensar uma Educação das
Relações Étnicos Raciais na escola, sendo “1. Reconhecer que aquilo que é público é de todos\as
e para todos\as 2. Reconhecer a diversidade étnica como princípio da Educação Básica 3.
Reconhecer a necessidade de romper com a invisibilidade do tema e dos sujeitos do tema 4.
Reconhecer e garantir a ERER nas Ações Pedagógicas e nas Políticas da Educação” (Florianópolis,
2016, p. 16).

Neste viés, ao pensarmos nesses caminhos, segundo Carina Santiago (2020) as agendas que
possuem ERER é “comprometida com uma educação plural, de qualidade e engajada na construção
de um Brasil igualitário para grupos que compõem nosso mosaico cultural, mesmo diante de todas
as dificuldades enfrentadas” (Santiago, 2020, p. 22). Desse modo, as sequências didáticas que
reconhecem estes caminhos, possibilitam uma proposta de alteração de um cenário que inviabiliza
discussões sobre a pluralidades de formas conhecimentos, além dos modos de ser, estar e pensar o
mundo.

A importância da valorização de histórias, memórias e narrativas da população negra no


ensinar história
462

Diante das concepções apresentadas até aqui, vale destacar a importância em viabilizar e
valorizar as memórias, histórias e narrativas das populações negras pelo mundo na medida em que
ensinamos história. Ao passo que enfatizei a presença de uma perspectiva decolonial de estudos,
assim como o ensino de história e a ERER, as implementações das Leis Federais, o objetivo é
propor reflexões sobre a temática pensando e estudando sobre histórias de populações negras de
tal modo que eles/elas desconstruam noções de hierarquia racial e que possam constituir relações
mais saudáveis necessárias ao ambiente escolar. Além de propor que as disciplinas possam dialogar
com múltiplas formas de construção de conhecimento. O primeiro destaque é para atividade sobre
Antonieta de Barros, foi a apresentação do documentário Antonieta de Flávia Person, a dinâmica
aconteceu no dia 11 de julho de 2019, aniversário de nascimento de Antonieta. Estudantes puderam
conhecer a primeira Deputada negra de Santa Catarina e do Brasil, a jornalista, professora e
cronista. Abaixo imagens deste momento.

Figura 1: Dia da exibição do documentário Antonieta

Fonte: acervo da autora (2019)

O mês de novembro é marcado pela visibilidade das memórias e histórias negras no Brasil.
Durante este período, eu e minha supervisora organizamos uma programação com intuito de
viabilizar discussões referentes a consciência negra. A programação contou com uma conversa
sobre Angola a partir de seus próprios pressupostos, os palestrantes conversaram com as turmas
de sexto ano sobre apresentando os costumes, culturas, dialetos e a dança angolana. A ideia foi
visualizar as Áfricas a partir dela mesma, desvinculando estereótipos acerca do continente. Em
outro dia, uma professora parceira também propôs uma contação de história com os sextos anos
sobre a Princesa Aláfia, considerando a importância de estudar histórias e culturas do continente
africano antes da colonização, a história abordou os reinos africanos de Benin e a relação de
resistência africana no Brasil.

Na outra semana, as turmas de oitavo ano assistiram o filme Felicidade por um fio e a
debatedora, também parceira do projeto, comentou os aspectos do filme focando na estética negra,
463

processo de empoderamento e conjuntura da população negra que transcendem as transições


capilares. Neste mesmo dia, os nonos anos tiveram uma roda de conversa com outra professora
parceira, relatando a conjuntura do movimento social negro focado na juventude negra, o intuito
foi visualizar como as organizações negra se articulam para luta contra o racismo. E para finalizar,
alguns dias depois ocorreu uma atividade de pinturas africanas na perspectiva Nigeriana com os
sextos e anos iniciais, outra professora parceira do projeto buscou reconhecer a pluralidade do
continente africano e a importância da consciência negra através das pinturas corporais.

E as turmas do sétimo ano, estudaram sobre as personalidades negras através das literaturas,
como por exemplo, Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, na intenção de compreender
sobre escritas que partem das experiências negras no Brasil. Importante ressaltar que consideramos
estas atividades importantes para pensar relações raciais na escola e que através delas seja possível
romper com o racismo e todas discriminações.

Ainda destaco a pesquisa sobre personalidades negras no nono ano, a pesquisa se voltou
para as mulheres que fizeram mudança significativa na história, duas meninas negras se sentiram
confortáveis em apresentar no evento da Rede intitulado XIII Seminário da Diversidade Étnico
Racial- "Nossos Passos Vêm de Longe": Pelo Direito de (Re) Existir. Elas fizeram um relato de
experiência, falaram sobre a importância da representatividade e a história de Angela Davis,
Antonieta de Barros e também a minha, Carol Carvalho, a quem as inspirou e fortaleceu nesse
processo de empoderamento. Desta atividade e das discussões emergiram muitas descobertas, entre
elas, o nosso projeto intitulado Afro Power Ubuntu: eu sou porque nós somos.

O projeto Afro Power Ubuntu tem como objetivo focar em aspectos que envolvem o
empoderamento de meninas e meninos negros na cidade de Florianópolis. A ideia é que através de
fotos, vídeos seja possível enaltecer a estética negra, tendo como referência a pluralidade de culturas
africanas e afro-brasileiras. O projeto surgiu na intenção de utilizar as mídias e a importância de
valorizar a estética negra como caminhos para a luta contra o racismo. A intenção é que, depois da
quarentena, possamos atuar nas escolas e em diferentes espaços propondo rodas de conversas,
eventos e encontros. Além disso, consideramos que a estética também é música, corpo, entre outras
manifestações africanas e afro-brasileiras. Por fim, esse projeto surgiu com anseio valorizarem
nossas estéticas. Desse modo, a partir também de relatos destas estudantes, eu enfatizo a
importância em apresentar múltiplas cosmovisões no ensinar história.
464

Considerações finais

Este trabalho tem intuito de ser um indicativo para estudos referentes ao ensino de história,
a ERER e as possibilidades de articulações entre perspectivas decoloniais, pois, na medida em que
evidenciamos caminhos para combate ao racismo, devemos propor um deslocamento geopolítico
e epistêmico em nossas propostas pedagógicas. Isto é, perspectiva decolonial é um movimento que
não se atribui conceitos coloniais, propõe outra relação com sujeitas da pesquisa, pois é preciso
considerar o sentir/pensar no mundo a partir das populações africanas, afro-brasileiras e indígenas,
é preciso romper com as colonialidades do saber, ser e do poder.

A partir das atividades realizadas com estudantes, podemos exercício de um rompimento


com os modelos educacionais eurocêntricos, em que situa ‘os outros’ - os sujeitos da diversidade –
às margens das discussões. Por este motivo, o intuito foi viabilizar e visibilizar conjunturas que
envolvem protagonismo negro e lutas sociais possibilitam trazer múltiplas identidades dentro do
ambiente escolar. Por fim, esse trabalho foi uma proposição de alteração do cenário hegemônico a
respeito da história de Santa Catarina a partir do ensino de história, viabilizando a presença da
população negra e cooperando assim, aspectos da Lei Federal 10.639/03 em todos âmbitos
escolares. Além de apresentar os impactos desses processos para estudantes negras e não negras da
escola.

Referências

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uma única história>. Acesso em: 16 maio 2018.

Akotirene, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

Almeida, Silvio. Racismo Estrutural. Brasil: Pólen, 2019.

Antonacci, Antonieta Martines. Memórias Ancoradas em Corpos Negros. 2ª ed. ver. e ampl. São Paulo:
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Antonacci, M. A. M.. África/Brasil: Corpos, Tempos e Histórias Silenciadas. Tempo e Argumento, v.


1, p. 46-67, 2009.

Carneiro, Sueli. Epistemicídio. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/epistemicidio/.


Acesso em: 29 set. 2020.

Crenshaw, K. Desmarquinalizando a Interseção entre Raça e Sexo: uma Crítica Feminista Negra da
Doutrina Antidiscriminação, Teoria Feminista e Política Antirracista. Forum Juridical da
Universidade de Chicago, 2002.

Damasceno, Daniela dos Santos Tradição Oral, Memória e Narrativa: Considerações sobre o
Velho Kaitamba em os Estandartes, 2019, Salvador. Anais XV Enecult, Salvador: Anais, 2019.
465

Hampaté Bâ, Hamadou. A tradição viva. In: Ki-Zerbo, Joseph (Org.) História Geral da África I:
metodologia e pré-história da África. 2ª ed. rev. Brasília: UNESCO, 1982, p.167-212.

Kilomba, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Brasil: Cobogó, 2019.

Mbembe, Achile. Crítica da razão negra. São Paulo: Antígona, 2014.

Ribeiro, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Materiais de Apoio:

Matriz Curricular para a Educação das Relações Étnico-Raciais na Educação Básica. Disponível
em:
http://www.pmf.sc.gov.br/arquivos/arquivos/pdf/30_11_2016_16.54.20.0658b2ad6df77747ce9
3a98c47a0b345.pdf

Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm
466

Entre fontes hemerográficas e micro-história: trajetórias de


camponeses durante a Revolta de Porecatu (1944-1951)

Caroline Gonzaga*

Resumo: Esta comunicação tem como objetivo apresentar alguns resultados obtidos durante a
realização da minha dissertação em história intitulada “Somos muitos Franciscos iguais em tudo e na
sina: violência, resistência camponesa, Revolta de Porecatu e micro-história”. A referida pesquisa
teve como foco principal investigar a tortura e o assassinato do camponês Francisco Bernardo dos
Santos, fuzilado em 1950 após se envolver na Revolta de Porecatu. Por meio da reconstrução de
sua trajetória, utilizando a micro-história como ferramenta metodológica, buscou-se compreender
também a trajetória de outros camponeses que tiveram suas vidas atravessadas pela violência. A
Revolta de Porecatu ocorreu entre 1944 e 1951 no norte novo paranaense. Colocou em disputa os
posseiros/camponeses e os grileiros/latifundiários. Esses conflitos se iniciaram ainda no Estado
Novo quando Getúlio Vargas lançou a Marcha para o Oeste, convidando trabalhadores e
camponeses para ocuparem terras devolutas em troca de parcelas anuais de pagamento. Porém,
antes de terminados os pagamentos, muitos posseiros tiveram suas terras invadidas por
latifundiários que alegavam ter a posse legal das terras na região. Por esses motivos os camponeses,
apoiados pelo Partido Comunista, iniciaram uma disputa armada para tentar garantir a posse das
terras. Os conflitos na região foram acompanhados por muitos episódios de violência institucional,
torturas e assassinatos. Além de Francisco, já mencionado acima, buscarei apresentar também a
trajetória de Zé-Sem-Medo e da família Bilar com base em fontes hemerográficas, mais
especificamente os jornais Voz Operária e Imprensa Popular, ambos editados e produzidos pelo PCB.
Por fim, considera-se ainda que as “vidas minúsculas” também engendram a “grande” história e
dão a ela uma versão diferente, distinta e complexa, ou ainda, que o “micro” engendra o “macro”
(Revel, 1998, p. 12 e 14).

Palavras-chave: História rural, Revolta de Porecatu, micro-história, fontes hemerográficas

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo apresentar alguns resultados obtidos durante a
realização da minha dissertação em história, intitulada “Somos muitos Franciscos iguais em tudo e
na sina: violência, resistência camponesa, Revolta de Porecatu e micro-história”, defendida em 2020
no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. A referida pesquisa teve como foco
principal investigar a tortura e o assassinato do camponês Francisco Bernardo dos Santos, fuzilado
em 1950 após se envolver na Revolta de Porecatu. Por meio da reconstrução de sua trajetória,

*
Doutoranda na linha “Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na História” do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
467

utilizando a micro-história como ferramenta metodológica, buscou-se compreender também a


trajetória de outros camponeses que tiveram suas vidas atravessadas pela violência.

Além de Francisco, buscarei aqui apresentar também a trajetória de José Ribeiro (Zé-Sem-
Medo) e da família Bilar. Tomarei como base as fontes hemerográficas, principalmente os jornais
Voz Operária e Imprensa Popular, ambos editados e produzidos pelo PCB. Utilizarei também a revista
O Cruzeiro que publicou, em 1951, uma grande reportagem relatando a história da família Bilar.
Espera-se que com essa redução de escala a respeito da Revolta de Porecatu seja possível
exemplificar como as “vidas minúsculas” engendram a “grande” história, dando a ela uma versão
diferente, distinta e complexa (Revel, 1998, p. 12).

Sobre a Revolta de Porecatu

Antes de diminuir a escala de observação e passar para as trajetórias que serão destacadas
pretendo descrever de modo sucinto os conflitos rurais na região de Porecatu. Os embates agrários
no extremo norte do estado do Paraná, no vale do rio Paranapanema, iniciaram-se em 1944. Os
grupos em disputa foram os posseiros e grileiros, estes últimos apoiados pela polícia, instâncias
estatais e forças paraestatais170. Várias cidades e vilas abarcaram o conflito, são elas: Porecatu,
Jaguapitã, Centenário do Sul, Florestópolis, Guaraci, Miraselva, Lupianópolis, Cafeara, Alvorada
do Sul e Bela Vista do Paraíso171.

Apesar do marco temporal delimitar o início do conflito em 1944 as disputas pela terra na
região começaram ainda no Estado Novo quando Getúlio Vargas lançou, em 1938, a Marcha para
o Oeste. Este projeto do governo tinha como objetivo ocupar o território nacional e fazer com que
regiões inabitadas, como o sertão paranaense, fossem desenvolvidas. Houve então uma forte
campanha de apelo nos meios de comunicação onde se buscava a exaltação do sentimento de
brasilidade e o resgate do valor do sertão (Priori et al., 2012, p. 78). Segundo Angelo Priori (2018,
p. 124) a Marcha para o Oeste era uma política voltada para a construção de uma organização agrária
que priorizava a pequena e média propriedade, visando uma produção de alimentos que atendesse
as demandas do período.

170
Considero como instâncias estatais as companhias colonizadoras e figuras políticas que apoiaram os latifundiários.
Como forças paraestatais considero os jagunços e demais pessoas que trabalhavam para latifundiários no intuito de
expulsar camponeses de suas terras, preparar emboscas e, por vezes, assassiná-los.
171
Considero aqui o mapa elaborado por Angela Duarte Damasceno Ferreira. In: Ferreira, Angela Duarte Damasceno.
Agricultura capitalista e campesinato no norte do Paraná: Região de Porecatu 1940-1952. Dissertação de mestrado, História,
UFPR, 1984.
468

Manoel Ribas, então interventor do Paraná, convidou os trabalhadores rurais a se


deslocarem para a região de Porecatu no intuito de adquirirem até 200 hectares de terras devolutas
que seriam pagas em seis parcelas anuais: ao final das parcelas o trabalhador receberia o título
definitivo da posse da terra. Nesse contexto, vários posseiros, colonos e trabalhadores se radicaram
na região em busca de melhores condições de vida. Apesar das promessas feitas pelo governo é
possível observar que desde o começo a Marcha para o Oeste encontrou empecilhos no norte do
Paraná: a expansão cafeeira, as grilagens de terras e as concessões em situações irregulares (Ferreira,
1984, p. 66).

Devido à grande depressão de 1929 o estado de São Paulo havia limitado sua produção
cafeeira enquanto o Paraná a estimulava. A política econômica governamental paranaense, a
facilidade para aquisição de terras, o clima favorável e as ferrovias necessárias para o escoamento
do café foram importantes para incentivar a expansão cafeeira no estado (Priori et al, 2012, p. 95-
96 e 100-101). Por esse motivo, e somado ao fato de que a Marcha para o Oeste (por meio dos
pequenos produtores rurais) havia proporcionado a abertura de estradas e construção de cidades,
grandes cafeicultores paulistas foram atraídos para a região de Porecatu. Com a chegada dos
latifundiários as terras dos camponeses passaram a ser vendidas e revendidas (Oikawa, 2011, p. 16).

No ano de 1944 centenas de famílias, que não conseguiram o título definitivo de posse das
terras, fundaram duas Associações de Lavradores. Esse foi o primeiro passo de organização dos
camponeses que desembocaria, mais tarde, em um conflito armado. Manoel Marques da Cunha,
representante escolhido pelos posseiros para defender suas reivindicações, viajou até o Rio de
Janeiro a fim de solicitar que o presidente Getúlio Vargas intercedesse em favor dos camponeses
(Priori, 2018, p. 126). Ao findar a Segunda Guerra Mundial o mercado cafeeiro começou a se
estabilizar e sua produção foi impulsionada, fazendo com que novos latifundiários procurassem as
terras paranaenses (Priori et al., 2012, p. 102).

Durante o período da Guerra Fria as disputas entre esquerda e direita se acirraram ao redor
do globo. No Brasil, o general Eurico Gaspar Dutra venceu as eleições presidenciais e o país passou
a se alinhar ainda mais com os Estados Unidos. Desde o governo Vargas Dutra já demonstrava
descontentamento com os comunistas. Segundo Marcos Gonçalves:

Em junho de 1942, o alvo de seu desconforto era uma possível agitação e


renascimento da propaganda comunista (...). Dutra pensava que os comunistas,
se servindo do pretexto da guerra e reinfiltrados nos órgãos de imprensa, dado
certo relaxamento do regime, acionariam os mesmos instrumentos da “insídia”
levantada em 1935 (Gonçalves, 2018, p, 121).
469

Em 1946, Moisés Lupion assumiu o governo do estado do Paraná: sua gestão, aliada aos
interesses de expansão capitalista do presidente Dutra, abandonou a ideia de colonização da Marcha
para o Oeste. A grande procura dos grileiros por terras cultiváveis, somado ao abandono da Marcha
para o Oeste acabou por estimular, ainda mais, a vinda de latifundiários para o norte do Paraná.

No ano de 1947 o Partido Comunista é novamente cassado, completando menos de três


anos na legalidade. O PCB decide então adotar uma retórica revolucionária e abandonar a via
reformista e eleitoral. Em 1948, por meio de Miguel Gajardoni, morador de Jaguapitã, o PCB é
convidado a conhecer a luta dos camponeses de Porecatu e decide se envolver nos conflitos,
levando armas e militantes para a região. A situação dos posseiros não era favorável. Seus
armamentos se mostravam insuficientes – a maior parte dos que aderiram à revolta estava armada
com carabinas de 12 tiros, utilizadas para caça – com o passar do tempo foi possível acessar
armamentos mais sofisticados enviados pelo Partido Comunista ou recuperadas de jagunços e
policiais (Priori, 2018, p. 129-130).

Em junho de 1951 o Estado já havia enviado um grande contingente de homens para conter
os camponeses. A polícia e os agentes do DOPS localizaram uma reunião do PCB em Londrina e
conseguiram prender os dirigentes do partido e membros do conflito. Em julho de 1951 não havia
mais posseiros de armas na mão e o fim desses camponeses foi variado: muitos foram presos,
outros fizeram acordos com grileiros, outros passaram a se dedicar a militância clandestina no PCB,
alguns fugiram da região e muitos foram mortos.

Sobre a metodologia

Inicio este ponto do texto tratando do contexto de surgimento da micro-história que foi a
ferramenta metodológica utilizada neste trabalho. Vê-se que nos anos 1970 e 1980 havia uma crise
na crença otimista de que o mundo seria transformado por uma revolução. Por esse motivo os
novos acontecimentos políticos, que eram de certo modo imprevisíveis, passaram a pedir uma
revisão da historiografia marxista ou funcionalista, colocando em dúvida a ideia de uma progressão
regular. Uma das reações à essa crise, no campo da história, foi o surgimento da micro-história.
Segundo Levi (1992, p. 135), esta ferramenta metodológica buscava uma “redefinição de conceitos
e uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes”.

Considerando estas informações a micro-história é um projeto que nasceu recentemente


por meio de historiadores que possuíam empreendimentos comuns: como a revista Quaderni Storici
e a coleção Microstorie, dirigida por Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Edoardo Grendi na Editora
470

Einaudi. Segundo Jacques Revel (1998, p. 15-16) como a micro-história é recente e ainda está em
construção sua interpretação e problemática não foram concebidos em termos homólogos.

A principal premissa da micro-história é a distância crítica em relação à abordagem


macrossocial (Revel, 1998, p. 10). Para Giovanni Levi a essência da microhistória, juntamente com
um estudo intensivo do material documental, é a redução de escala (Levi, 1992, p. 136). Para
Jacques Revel a mudança da escala é essencial para a definição da micro-história. Segundo ele “a
escolha de uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento, e pode ser posta
a serviço de estratégias de conhecimentos” se considerarmos que a microanálise não significa
apenas diminuir o tamanho do objeto no visor, mas sim modificar sua forma e sua trama (Revel,
1998, p. 19-20).

Os historiadores que utilizam a micro-história têm buscado uma descrição mais realista do
comportamento humano, reconhecendo uma relativa-liberdade do homem no mundo, mesmo que
ainda limitados pelos sistemas normativos e opressivos. As ações sociais são vistas como resultado
de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do próprio indivíduo investigado.
Dessa forma é possível descobrir possibilidades de interpretações e liberdades pessoais (Levi, 1992,
p. 135).

Na micro-história pode-se obter acesso ao conhecimento do passado por meio de indícios,


sinais e sintomas, tomando o particular como ponto de partida e identificando seu significado à luz
de seu próprio contexto específico. Nessa metodologia é possível interpretar o contexto social de
duas formas: como um local que imputa significado a particulares ou como um ponto de descoberta
em que fatos anômalos ou insignificantes assumem significado quando as incoerências de um
sistema são reveladas (Levi, 1992, p. 154-155).

Porém, é necessário considerar que a micro-história não tenta sacrificar o conhecimento


dos elementos individuais apenas a uma generalização ampla, ao mesmo tempo que não rejeita
todas as formas de abstração visto que os casos individuais podem servir para revelar fenômenos
gerais (Levi, 1992, p. 158). Nesse sentido, é necessário destacar que um indivíduo pode ser
pesquisado como um microcosmo de um estrato social inteiro no seu devido período histórico
(Ginzburg, 2006, p. 20).

Sendo assim, a micro-história propõe-se a enriquecer a análise social tornando-a mais


complexa e com variáveis mais móveis e numerosas já que no nível local a defasagem entre
categorias exógenas e endógenas é mais marcada (Revel, 1998, p. 23- 24). Desse modo a micro-
história se apresenta de maneira bifronte, pois permite uma reconstituição do vivido impensável
471

em outros tipos de historiografia e se propõe indagar sobre estruturas invisíveis das quais aquele
vivido faz parte (Ginzburg, 1991, p. 177- 178).

Segundo Carlo Ginzburg (2006, p. 11) no passado podiam acusar os historiadores de querer
conhecer somente as “gestas dos reis”, mas, cada vez mais, os historiadores passaram a se interessar
pelo que estava oculto, deixado de lado ou ignorado. Refletindo sobre a Revolta de Porecatu, é
possível afirmar que este episódio histórico foi, em certa medida, colocado no esquecimento. Para
além disso, os camponeses que compuseram esta revolta foram trabalhados de maneira ínfima. Por
esse motivo o presente trabalho buscou construir narrativas para que esses agentes sociais não
permaneçam no anonimato.

O assassinato de Francisco Bernardo dos Santos

Ao analisarmos a Revolta de Porecatu (1944-1951) por meio de uma escala micro podemos
ter contato com vidas singulares, mas também com os acontecimentos macros que envolvem a
revolta. Uma das vidas singulares que apareceram durante a pesquisa sobre Porecatu numa escala
micro foi a de Francisco Bernardo dos Santos.

Francisco morava no estado da Paraíba antes de iniciar sua jornada no território paranaense
(Vilarinho, 2010). Era um posseiro, casado pela segunda vez e vivia com os filhos de ambos os
casamentos, o que pode indicar que era também viúvo171. Chegou no Paraná em 1942 e fixou
moradia entre as cidades de Florestópolis e Jaguapitã, na região de Porecatu. Acompanhado de sua
família e de outros camponeses, entrou nas matas paranaenses abrindo caminhos, derrubando
árvores e estabelecendo pequenas estradas172.

Nas terras devolutas do estado, prometidas para os camponeses dispostos a desbravar o


sertão paranaense, Francisco plantou suas primeiras roças, cercou o lote de terras da família e abriu
estradas para outras pequenas propriedades. Participavam do plantio até mesmo seus filhos com
menos de dez anos de idade. Sua família, juntamente com a de outros camponeses, criou ali um
pequeno núcleo habitacional onde se produzia arroz, milho e feijão, e onde se criavam aves e porcos
para suprir sua necessidade de alimentos e também a dos homens das cidades.

Com a grande depressão de 1929 o estado de São Paulo limitou sua produção cafeeira. Os
latifundiários paulistas passaram a procurar as terras paranaenses para livre cultivo do café. Vendo

171
Foi a polícia que matou meu pai!. Imprensa Popular, Rio de Janeiro, 31 mai. 1951.
172
O camponês Francisco Bernardo dos Santos. Voz Operária, Rio de Janeiro, 13 de mai. 1950.
472

que haviam trabalhadores, cidades, estradas e terrenos valorizados – devido aos esforços dos
camponeses que chegaram na região por meio da Marcha para o Oeste – atravessaram o rio
Paranapanema e começaram a comprar terras no norte do Paraná, muitas delas pertencentes a
camponeses que não haviam terminado de pagar suas parcelas anuais. Em 1941 o cafeicultor
Ricardo Lunardelli chegou nas terras de Porecatu. Mais tarde viria também seu irmão, Geremia
Lunardelli, que mudou a história de Francisco Bernardo dos Santos.

Em 1950, devido à valorização das terras, chegou na propriedade de Francisco Bernardo o


latifundiário paulista Geremia Lunardelli. Ele afirmava ser o verdadeiro proprietário das glebas de
alguns camponeses, incluindo as terras de Francisco. Juntamente com seus advogados, tentou fazer
com que os posseiros assinassem documentos de desistência da posse das terras em troca do
pagamento de benfeitorias realizadas: essa era uma prática comum de grilagem na região de
Porecatu.

Francisco Bernardo dos Santos, sabendo das condições impostas aos camponeses para a
renúncia das terras, decidiu manter sua posse. Às 01:00h do dia 31 de janeiro de 1950 o Tenente
João Paredes, delegado especial de terras, invadiu a propriedade do camponês com 50 praças e
jagunços a fim de assassiná-lo. Como já sabia notícias de invasões e assassinatos em outras famílias
de posseiros Francisco fugiu pelo sertão paranaense. Esteve em Curitiba, São Paulo e Rio de
Janeiro, buscando apoio das autoridades para os camponeses da região de Porecatu173.

Francisco escreveu também um memorial dirigido ao presidente Dutra que dizia: “Desejoso
de levar até o fim a defesa das nossas terras, vim a esta Capital e daqui recorro a V. Excia. solicitando
urgentes providências a respeito, garantia de vida e manutenção na posse das terras que
desbravamos em Florestópolis”174. Esse memorial, de poucas palavras, traz uma informação muito
importante sobre Francisco: sabia ler e escrever. Os camponeses, com pouco acesso à educação
normalmente eram iletrados. Por esse motivo é possível que a perseguição contra Francisco, de tão
grandes proporções, se deu porque ele tinha algum tipo de formação.

Após tentar falar com as autoridades, sem sucesso, Francisco decidiu regressar ao Paraná.
Na cidade de Regente Feijó foi capturado em uma emboscada pela polícia. A prática de emboscadas
era comum no contexto da Revolta de Porecatu: como os policiais não conheciam o terreno tanto
quanto os camponeses, armavam tocaias para pegá-los nas estradas. Mas como Francisco foi
capturado justamente em Regente Feijó? E como a polícia sabia o dia que ele iria regressar para

173
“Grilo” e banditismo no norte do Paraná. Voz Operária, Rio de Janeiro, 25 mar. 1950.
174
O Camponês Francisco Bernardo. Voz Operária, Rio de Janeiro, 13 mai. 1950.
473

suas terras? O jornal Voz Operária aponta que o deputado estadual do Paraná Anisio Luz, do PSD
(Partido Social Democrático), o delatou para a polícia175.

Depois da captura Francisco passou por uma série de violências que culminaram em sua
morte. A primeira delas foi o suplício de ter sido amarrado no fundo de um jipe por vinte dias176 .
Passados esses vinte dias, Francisco foi levado para Jaguapitã. Para que servisse de exemplo a outros
camponeses que tentassem denunciar a violência dos latifundiários para deputados e para o próprio
presidente, foi amarrado em uma árvore em praça pública por 18 horas, do mesmo modo que
amarravam os escravos ao pelourinho177.

Após os vintes dias no fundo de um jipe e as 18 horas amarrado em uma árvore, o


camponês teve suas duas pernas quebradas. A justificativa da polícia: impedir sua fuga178.
Humilhado, cansado, ferido e dilacerado Francisco foi morto por fuzilamento. Seu assassinato
ocorreu no dia 17 de abril de 1950, às 17:00h, na presença de policiais e jagunços de latifundiários179.

A fuga de José Ribeiro

Passo agora para o segundo caso, o do camponês José Ribeiro, conhecido como Zé-Sem-
Medo. Não encontrei muitas informações sobre este personagem, sobre sua vida pregressa à
Porecatu ou sobre detalhes de sua trajetória. Porém, considerando que as vidas “minúsculas” são
importantes para a “grande história”, irei narrar um episódio que aconteceu com esse posseiro e
foi documentado pelo jornal Imprensa Popular.

Em 1951, quando a Revolta de Porecatu estava quase chegando ao fim, José Ribeiro foi
baleado por um soldado em Centenário do Sul. Estava ocorrendo uma troca de tiros entre
camponeses e agentes do governo. Após o conflito os posseiros acharam que Zé-Sem-Medo estava
morto ou que havia sido sequestrado. E, de fato, ele havia sido sequestrado pelo Tenente Paredes,
que o prendeu no fundo de um caminhão.

Não se sabe exatamente como, mas, ainda com a bala no corpo, Zé-Sem-Medo conseguiu
fugir. Depois de escapar do Tenente Paredes decidiu ir a pé para o Rio de Janeiro, buscar ajuda
para os posseiros de Porecatu e para sua família. Ao chegar no Rio procurou o jornal Imprensa
Popular, ao qual concedeu uma entrevista e tirou uma fotografia. Mesmo diante de um jornal do

175
De armas na mão defendem suas terras e suas vidas. Voz Operária, Rio de Janeiro, 28 out. 1950.
176
“Grilo” e banditismo no norte do Paraná. Voz Operária, Rio de Janeiro, 25 de mar. 1950
177
Os camponeses viugarão o sangue de Francisco Bernardo dos Santos. Voz Operária, Rio de Janeiro, 06 mai, 1950.
178
Resistência armada ao banditismo dos latifundiários e da polícia. Voz Operária, Rio de Janeiro, 11 nov. 1950.
179
O camponês Francisco Bernardo dos Santos. Voz Operária, Rio de Janeiro, 13 de mai. 1950.
474

Partido Comunista, que estava apoiando os posseiros em Porecatu, Zé-Sem-Medo declarou:


“Nunca fui comunista, não estudei o comunismo, como é que eu posso ser? Sei tratar da terra, isto
sim”180.

Esta entrevista foi bastante valiosa para compreender que a Revolta de Porecatu não foi
um movimento que visava uma revolução: ideia que foi bastante difundida pelos jornais da
imprensa de referência na época dos conflitos. Além disso, demonstra também que os camponeses
tinham autonomia e decidiam suas ações, não sendo simples massa de manobra para o Partido
Comunista.

A história da família Bilar na região de Porecatu

Antônia Bilar, matriarca da família Bilar, concedeu uma entrevista para a revista O Cruzeiro,
em 1951, onde declarou: “Vou lhes contar a nossa história, que é mais ou menos a história de todos
os posseiros”181. Esta entrevista serviu como base para a reconstituição da história dessa família
durante a Revolta de Porecatu.

A família Bilar migrou para a região de Porecatu por volta de 1940, quando as matas ainda
eram virgens. Nos primeiros anos, para conseguir buscar mantimentos, eles montavam em lombo
de burros e cavalgavam mais de 100 quilômetros até Presidente Prudente, em São Paulo. No norte
novo paranaense a família derrubou o mato, ergueu suas primeiras casas e formou seus primeiros
roçados: “a civilização chegou depois”.

A situação da família na região de Porecatu era legalizada, pois, antes de entrarem nos seus
lotes foram buscar informações no Departamento de Terras de Londrina onde o Dr. Odilon
informou que as terras na região de Porecatu eram do governo que venderia lotes aos colonos que
se dispusessem a ocupar e plantar naquele território. A família Bilar recebeu um protocolo,
referente aos lotes onde iriam viver, e um recibo pelo pagamento de 25 contos que foram feitos ao
governo. Além disso, durante dois anos foram cobrados impostos da família, os quais foram
guardados recibos também.

Segundo Antônia, a família era muito feliz no norte do Paraná e viveram despreocupados
por quase oito anos. Eles formaram cafezais e milharais, plantaram feijão e arroz, criaram porcos,
galinhas e gado. No tempo em que estiveram na região de Porecatu sua família prosperou, assim

180
Baleado em Porecatu escapou a pé para o Rio. Imprensa Popular, 13 ago. 1951.
181
A guerra de Porecatu. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 15 jul. 1951.
475

como suas lavouras. No começo seus filhos eram 5, em 1948 a família já contava com 25 pessoas.
Quatro barracas abrigavam a todos, que aos domingos almoçavam na casa de Antônia. Ela e seu
marido, José Bilar, passavam os domingos contando histórias para seus netinhos.

Em 1947 a rotina familiar foi quebrada de maneira abrupta. Nesse ano a polícia invadiu as
terras da família Bilar enquanto eles estavam festejando o casamento de mais um filho. Eles estavam
dançando, brincando, bebendo e rindo: celebrando sua felicidade. Em meio a festa os soldados
apareceram, eram 12 ao todo, chefiados pelo Major Eusébio. Eles bateram nas filhas de Antônia,
surraram seus filhos e os levaram presos para a cidade de Porecatu. Após esse episódio José Bilar
foi chamado à cidade pelo juiz Carlos Valente. Quando chegou lá foi ameaçado com fuzis para que
assinasse a renúncia de suas terras mediante a quantia de 18.000 cruzeiros, sendo que apenas oito
mil seriam pagos.

José assinou a renúncia de suas terras com medo das ameaças. Ainda assim foi falar com o
Inspetor de Terras, Dr. Odilon, o mesmo que havia dito anos antes que aquela propriedade era do
governo. Porém, nesta segunda ocasião o inspetor alegou que as terras da família Bilar haviam sido
compradas em 1947 pelo fazendeiro Jerônimo Inácio de Sousa, conhecido na região como
Jerominho. José Bilar alegou que havia comprado antes, mas não obteve nenhuma ajuda.

Depois desse episódio, sendo perseguidos pela polícia e por jagunços, a família Bilar teve
que fugir pelo mato com a roupa do corpo. Inclusive sua nora, que havia dado à luz há dez dias,
precisou participar da fuga. José ia abrindo caminho com o facão para que a família pudesse
avançar. Logo depois começou a chover forte, “chuva como há muito não caía”. A família precisou
andar dois dias sem comer e sem beber. O neto de Antônia, recém-nascido, não suportou as
condições da fuga e morreu. A criança só não foi enterrada no mato porque a família encontrou
um amigo para sepultá-la.

Depois que a família fugiu e chegou a São Paulo receberam a notícia de que o novo
governador do Paraná, Bento Munhoz da Rocha, iria devolver as terras para os camponeses.
Porém, ao retornarem encontraram os posseiros entocados no mato, esperando para matar ou para
morrer. É possível que seja nesse retorno que a família Bilar decidiu se juntar à luta armada dos
camponeses na região de Porecatu.

Considerações finais

Ao analisar a Revolta de Porecatu em uma escala micro é possível estabelecer mais do que
uma cronologia dos fatos. Podemos saber como eram as famílias dos camponeses, o que
476

plantavam, como viviam. Podemos observar a longa saga para se construir um novo núcleo
populacional. E também é possível compreender quais violências permearam a vida dessas pessoas.

Comparando as trajetórias narradas acima pode-se perceber que suas histórias são
semelhantes. A prática de invadir propriedades, fazer emboscadas e assassinar posseiros não foi
uma exceção durante a Revolta de Porecatu. Ainda, é possível considerar que essas práticas
violentas permeiam o cotidiano rural do Brasil até os dias de hoje. Por esse motivo, é sempre
necessário relembrar e reafirmar esta parte de nossa história, pois, como disse Benjamin (1987, p.
224, 225): “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do
historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer,
e esse inimigo não tem cessado de vencer”.

Como já visto anteriormente, cada vez mais os historiadores têm se interessado pelo que
estava oculto, ignorado ou deixado de lado. É nesse sentido que este trabalho foi feito: para dar
protagonismo aos camponeses da Revolta de Porecatu que foram deixados de lado em tantas
pesquisas que dão ênfase para o Partido Comunista. Destaco ainda que Francisco, José Ribeiro,
Antônia Bilar, José Bilar e seus filhos não são apenas dados numa pesquisa histórica: são pessoas
com famílias, sonhos, anseios e subjetividades próprias.

Avaliando que a micro-história busca uma descrição mais realista do comportamento


humano e reconhece uma relativa liberdade do homem no mundo, mesmo que limitado a sistemas
normativos e opressivos, pude perceber que os camponeses citados acima foram agentes de sua
própria história e não apenas pessoas levadas pelas circunstâncias. Eles escolheram migrar para o
Paraná em busca de uma vida melhor, decidiram fugir da polícia que invadia suas casas e fizeram
todo o possível para obter ajuda de autoridades políticas na defesa de suas terras. É fato que
estavam dentro de um sistema opressivo, que é comum do latifúndio, mas também tiveram certa
mobilidade durante sua trajetória. O estudo dessa mobilidade é capaz de revelar muitos aspectos
ainda desconhecidos da história do Paraná e do Brasil. Sendo assim, a micro-história se apresenta
como uma ferramenta efetiva para enriquecer o debate a respeito da Revolta de Porecatu.

Referências

Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

Ferreira, Angela Duarte Damasceno. Agricultura capitalista e campesinato no norte do Paraná: Região de
Porecatu 1940-1952. Dissertação de mestrado, História, UFPR, 1984.

Ginzburg, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1991.
477

Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das letras, 2006.

Gonçalves, Marcos. Os arautos da dissolução: O imaginário anticomunista na imprensa regional. Paraná,


década de 1940. Curitiba: SAMP, 2018.

Levi, Giovanni. Sobre a micro-história. In: Burke, Peter. A escrita da história: Novas perspectivas. São
Paulo: Unesp, 1992, pp. 133-162.

Oikawa, Marcelo. Porecatu: A guerrilha que os comunistas esqueceram. São Paulo: Expressão Popular,
2011.

Priori, Angelo. Conflitos agrários e resistência: os camponeses de Porecatu. In: Mendonça, Joseli
Maria Nunes; Souza, Jhonatan Uewerton (orgs). Paraná Insurgente: história e lutas sociais – séculos
XVIII ao XXI. São Leopoldo: Casa Leiria, 2018, pp. 123-135.

Priori, Angelo et al. História do Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012.

Revel, Jacques. Jogos de escalas: A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998.
478

Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957):


uma análise fílmica com perspectiva interseccional

Carolinne Mendes da Silva*

Resumo: Esse texto objetiva trazer uma análise fílmica de Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos
Santos,1957) considerando a perspectiva interseccional. Buscamos compreender como a forma
fílmica conjuga em sua estrutura dramáticas as relações entre personagens considerando a classe
social a qual pertencem, raça e gênero.

Palavras-chave: Rio, Zona Norte; interseccionalidade, classe, raça, gênero.

Samba meu...
Que és do Brasil também... Laralá...
Estão querendo fazer de ti
Um desprezado, João Ninguém.
Só o morro não te esqueceu
Para nós o samba não morreu
Tens na Mangueira e na Portela,
No Salgueiro e na favela, tua representação
Enquanto houver...
Num terreiro, uma nova geração
Em cada voz, tu sairás do coração182

Rio, Zona Norte conta a história de um sambista negro (Grande Otelo) que não consegue
o reconhecimento pela produção de seus sambas. A narrativa traz a trajetória do protagonista
rememorada a partir de sua queda do trem e dividida em flashbacks, organizados em cinco blocos:

I) Na escola de samba Espírito conversa com Maurício (Jece Valadão), conhece Moacyr
(Paulo Goulart) e inicia uma paquera com Adelaide (Malu Maia); na volta para sua casa, passa pela
tendinha em construção (esperança de nova moradia e trabalho).

II) Espírito desperta no barraco e recebe Adelaide com o filho Cláudio; desce o morro
com a mulher, anunciando seu casamento; na marcenaria em que seu compadre Honório (Vargas
Júnior) trabalha, Espírito encontra o filho Norival (Haroldo de Oliveira); o sambista vai à rádio e
assiste a uma apresentação da cantora Ângela Maria; Moacyr, que faz parte da banda da rádio, não

* Doutora e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP). Professora da Prefeitura Municipal de São Paulo.
182 Letra de Samba Meu, composição de Espírito na diegese, letra composta por Zé Kéti para o filme.
479

o vê, mas depois conversa com ele brevemente; Maurício apresenta Espírito ao cantor Alaor da
Costa (Zé Kéti).

III) Batizado de Cláudio (filho de Adelaide) na casa de seu Figueiredo (patrão e também
compadre de Espírito), todos ouvem no rádio o samba Mexi com ela de autoria do protagonista,
porém seu nome não é pronunciado; o armazém de seu Figueiredo é assaltado, Espírito descobre
que seu filho Norival estava envolvido e o obriga a devolver o dinheiro; Adelaide se mostra
insatisfeita com a situação de Espírito e Norival foge da casa do pai.

IV) Espírito vai ao barraco dos moleques envolvidos no assalto à procura de Norival, ao
voltar descobre que a nova tendinha está sendo ocupada pelos parentes de Honório; o sambista
vai à rádio, encontra Moacyr que lhe passa seu endereço; Maurício faz Espírito renunciar à autoria
de Mexi com ela e lhe dá dinheiro; ao chegar em casa, Espírito não encontra Adelaide, é atacado
pelos moleques que levam o dinheiro e matam Norival.

V) Após a morte do filho, Espírito compõe um novo samba e não permite que Maurício
o veja; o protagonista vai à rádio e canta para Ângela Maria, que aceita gravar sua composição;
Espírito vai à casa de Moacyr pedir para ele escrever a melodia da música, não sendo atendido, se
dirige desconsolado à estação de trem; durante a viagem de trem, começa a compor um novo samba
e acaba caindo; Moacyr e Honório assistem à morte de Espírito no hospital.

Estes cinco blocos de flashbacks são intercalados por sequências que mostram o momento
presente da narrativa, respectivamente: Espírito caído nos trilhos é socorrido pelo ferroviário e
depois por policiais que chamam uma ambulância, um velho recolhe seus papéis; os médicos
socorrem o sambista e o levam na ambulância; Espírito chega ao hospital, o médico anuncia a
operação; o protagonista é operado, Moacyr recebe uma ligação do hospital avisando sobre o
acidente; morte de Espírito no hospital.

O personagem Espírito é central no filme. Considerando que a narrativa é estabelecida


através dos flashbacks do sambista após sua queda do trem, podemos dizer que ela se constitui como
produto da consciência do personagem principal. Os recursos cinematográficos, no geral, são
utilizados para proporcionar a identificação do espectador com ele: a trilha sonora; os primeiros-
planos e, principalmente, a câmera subjetiva.

Destacamos dois procedimentos que favorecem a apreciação do personagem principal: a


utilização da câmera subjetiva, já que em todos os momentos em que voltamos de um flashback para
o presente da narrativa há uma câmera subjetiva no protagonista e a focalização de Espírito de
costas, por vezes aliado a um movimento de câmera que acompanha o deslocamento do
480

protagonista. É como se a atitude do narrador do filme fosse de acompanhar a vida do sambista


“por trás”, com proximidade suficiente para descrevê-lo, mas sem interferir em sua vida, até o
momento de queda do trem, a partir do qual o narrador se debruça sobre Espírito, encarando-o de
frente, podendo analisar o ocorrido até ali.

Sendo assim, a narrativa de Rio, Zona Norte conjuga duas atitudes em relação ao
protagonista, que, chamaremos de adesão - quando o narrador acompanha as ações de Espírito
nos flashbacks, apresentados como ponto de vista do próprio sambista - e observação - quando o
narrador se debruça sobre o protagonista, externando o ponto de vista em relação ao mesmo. Um
outro recurso do filme que ajuda a priorizar o ator principal e seu personagem é a ausência do
contra plano em momentos de interação com outras pessoas. Em alguns diálogos de Espírito com
outros personagens, o diretor opta por manter a câmera no protagonista, sem o contra plano do
personagem com o qual ele contracena. São momentos de grande intensidade dramática, nos quais
o sambista esboça alguma reação diante de seus infortúnios.

São exemplos disso: a sequência em que Espírito diz a Adelaide que pode sustentá-la com
seus sambas e que, portanto, não precisa da tendinha que estava sendo construída por seu
compadre - sem o contra plano de Adelaide é como se o espectador ficasse com Espírito, confiante
em seu orgulho; a sequência em que Espírito reage à tentativa de Maurício de ver seu novo samba,
empurrando-o e dizendo que aquele samba ele gravaria sozinho - aqui há um close up de Espírito
em leve contra-plongée sem qualquer contra plano de Maurício caído no chão; e a sequência em que
Ângela Maria canta o samba de Espírito, na qual vemos o sambista enquanto entra a voz off da
cantora dando continuidade ao samba - o contra plano que a mostra cantando só vem alguns
segundos depois, permitindo que presenciemos a espontânea felicidade de Espírito diante daquele
momento.

Percebemos, portanto, a centralidade do papel do negro na estrutura de Rio, Zona Norte,


como resultado, não apenas da utilização de atores negros em grande parte do elenco do filme,
mas, principalmente, da universalização do ponto de vista do personagem principal Espírito
produzida pela diegese. Sendo assim, além do filme retratar uma comunidade da referida Zona
Norte do Rio de Janeiro como predominantemente negra, sua abordagem ambiciona colocar o
protagonista negro como portador do ponto de vista de sua própria história (narrativa de sua vida
e história do filme). O personagem negro, pobre, morador da favela, que sofre um acidente de trem
e nem pode ser identificado, já que não tem documento, é aqui o foco de nossa atenção.

Ao contrapor os personagens negros, moradores do morro, aos personagens brancos,


pertencentes à classe média, e propor um olhar a partir de um personagem que pertence ao primeiro
481

grupo, há uma aderência da própria narrativa aos negros e pobres representados por Espírito,
colocado em primeiro plano. Por outro lado, para apresentar tal contraposição como denúncia
social, o realizador compôs uma estrutura que prioriza as interações dramáticas entre o protagonista
e os personagens principais do outro grupo social.

A situação dramática do melodrama é simples (Espírito deseja que seus sambas sejam
gravados e sua autoria reconhecida). Entretanto, há uma série de “complicações” no desenrolar da
situação. Por fim, o “desenlace” do melodrama também é simples: a morte do protagonista.
Algumas das características desse gênero cinematográfico que poderíamos relacionar a Rio, Zona
Norte são: a passividade com que o herói aceita seu sofrimento; o triunfo do fracasso; o individual
como consequência da ordem (ou desordem) social; o destino como um critério determinista do
qual não se pode escapar; o desejo reprimido; a melancolia como resultado de uma renúncia
inconsciente à felicidade e a identificação do espectador através da empatia com o herói.

De fato, como a narrativa se desenvolve através dos flashbacks, a impossibilidade de o


personagem escapar do final fatídico é colocada a todo momento. Seguindo uma linha narrativa
bastante comum, poderíamos dizer que o filme parte de uma situação de equilíbrio, apresenta
conflitos que provocam o desequilíbrio dessa situação, e termina com o estabelecimento de um
novo equilíbrio.

O primeiro e o segundo flashbacks apresentam essa situação de equilíbrio inicial: temos a


apresentação dos personagens, o registro da vida cotidiana da comunidade e a exibição das
esperanças de uma vida melhor para o protagonista. Na escola de samba, Espírito conhece Moacyr
e estabelece contatos que significam uma nova possibilidade de sua realização enquanto sambista.
Também no terreiro, ele encontra Adelaide, que surge como esperança de realização amorosa e
mesmo de formação de uma família, que se comporia então com Espírito, Adelaide, Cláudio e
Norival. Ainda na noite do samba na escola e também no dia seguinte, Espírito observa a
construção da tendinha com expectativas de obter uma nova moradia e um novo trabalho, que,
por sua vez, lhe possibilitaria o convívio com seu filho, perdido desde a morte da primeira esposa
de Espírito.

No terceiro e quarto flashbacks todas essas esperanças são frustradas, é o momento do


desequilíbrio. O ponto de inflexão é o assalto, feito por Norival e seus comparsas, ao armazém de
seu Figueiredo. Como resultado, o filho de Espírito acaba morto pelos marginais. Na rádio, Espírito
não consegue conversar com Moacyr e acaba renunciando à autoria de seu samba para Maurício
em troca de algum dinheiro. A tendinha em construção é ocupada por parentes de Honório que
482

foram despejados. Adelaide insatisfeita, porque Espírito não obteve o que ela imaginava (nem a
tendinha, nem o reconhecimento pelos seus sambas), abandona o protagonista.

Por fim, na última parte de Rio, Zona Norte, podemos dizer que um novo equilíbrio se
configura, ainda que o filme não tenha um final feliz. A esperança derradeira de Espírito, de ter seu
samba gravado por Ângela Maria, é abortada quando o sambista não obtém a ajuda de Moacyr.
Desiludido, porém em um momento de epifania na criação de um novo samba, o protagonista cai
do trem e morre no hospital. Ainda que o final seja trágico, sua morte ocorre num momento de
êxtase (composição de Samba Meu) e culmina na rememoração de sua trajetória, que adquire então
um sentido.

No hospital, quando Espírito abre os olhos pela última vez e olha para a câmera (subjetiva
em Honório e Moacyr que o observam), é como se ele finalmente percebesse que seu destino até
então foi o de ter sido explorado por diferentes interesses que causaram seus infortúnios até a
morte. Porém, ainda na sequência da morte do protagonista no hospital, no contra plano ele vê
Moacyr e Honório lado a lado, o que pode representar a esperança de uma nova relação entre o
violinista e o personagem popular. E, sob o ponto de vista de Moacyr, há a tomada de consciência
da necessidade urgente de se aproximar, de uma outra maneira, daquele “outro”, como fica claro
no diálogo entre ele e Honório ao saírem do hospital. Sendo assim, é possível falamos em
estabelecimento de um novo equilíbrio.

Esse esquema equilíbrio-desequilíbrio-equilíbrio remete, portanto, a uma estrutura muito


utilizada no melodrama. O modo pelo qual as ações são desenvolvidas e encadeadas, sempre
pautado na expressão das emoções do personagem principal, faz com que ao final elas ganhem um
sentido. A própria passividade de Espírito contribui para sua vitimização e também sua
transformação em herói. Ingênuo e incapaz de intervir a favor de sua felicidade, Espírito depende
de Maurício e de Moacyr para a realização do seu desejo. Identificamo-nos com sua inocência pelo
próprio compartilhamento do seu ponto de vista. Além disso, nos emocionamos com suas
angústias, pois seus gestos e expressões são portadores de uma capacidade semântica que nos leva
à empatia.

Nesse quesito, a trilha sonora tem importância fundamental. As músicas diegéticas são
primordiais para o desenvolvimento do filme - considerando que o samba enquanto movimento
musical de origem popular é pano de fundo das discussões da obra como um todo, mas também
que as músicas são objeto dos conflitos que se desenvolvem na narrativa. A trilha extradiegética é,
de maneira geral, baseada em um modelo tradicional, um estilo predominante até os anos cinquenta
no cinema mundial, no qual o padrão musical é sinfônico e romântico. Embora fosse realizado
483

com baixíssimo orçamento e associado ao cinema moderno, Rio, Zona Norte contou com uma
orquestra para a gravação da trilha. Esta, foi dividida entre os irmãos Radamés e Alexandre
Gnattalli, que já tinham uma relação extensa com a música popular brasileira.

Assim, os números musicais de Rio, Zona Norte remeteriam à tradição da Atlântida, sem a
carnavalização exagerada ou o falso glamour do teatro de revista, mas ainda de acordo com alguns
princípios fílmicos do cinema comercial vigente à época, reapropriados e dotados de um sentido
crítico. É o que percebemos na utilização da trilha sonora que combina os sambas diegéticos ao
registro sinfônico extradiegética. No entanto, deve-se guardar também a distância dos filmes de
Pereira dos Santos em relação às chanchadas. Até aquele momento os músicos de morro nunca
tinham aparecido no cinema. De acordo com Stam, há em Rio, Zona Norte uma ênfase nas “formas
de exploração de classe racialmente informadas” na denúncia da exploração dos músicos negros
(Stam, 2008, p. 244; Napolitano, 2001, p. 10).

A intenção do filme é trazer o ponto de vista do polo produtor do “samba autêntico”, ou


seja, a comunidade negra moradora do morro. Para isso, a filmagem no local é privilegiada. Já nas
apresentações musicais das chanchadas o ponto de vista é outro, o samba é visto como elemento
da integração social nacional, não como produto das classes mais pobres, nem é possível uma crítica
social em relação a isso.

Rio, Zona Norte utiliza as características do melodrama, para produzir críticas políticas e
sociais. Alguns filmes do próprio neorrealismo italiano assim o fizeram, porém, a crítica da época
reconheceu o neorrealismo como influência do filme anterior de Nelson Pereira dos Santos e
depreciou o seguinte por seu excesso de melodrama.

De fato, assim como no melodrama clássico, Rio, Zona Norte se debruça sobre a história
de vida de um indivíduo. Todavia, a crítica feita pela narrativa pode ser estendida aos grupos sociais
envolvidos. O que está em jogo não é só a ingenuidade do personagem Espírito, mas a bondade
do povo, a solidariedade existente entre as classes populares, a exploração que a indústria cultural
exerce em relação aos sambistas, os preconceitos da classe média que se diz bem intencionada,
porém não consegue se aproximar de verdade do povo. Ou seja, há uma intenção de extrair dessa
história pessoal generalizações que permitam pensar as relações sociais no Brasil.

Há uma representação de “teatro da moralidade” no filme. A expressão é de Ismail Xavier


(2003). Segundo o autor, nessa representação a condição da vítima ganha corpo e visibilidade
através da performance do “teatro do bem”, assim como o “teatro do mal” permite a exibição dos
valores opostos. O essencial é a clareza das performances: o agente do mal deve ser deliberado,
conspirador e caprichoso e o agente do bem deve ser autêntico, prestativo, de bom senso.
484

Essa caracterização do gênero se relaciona com o que estamos analisando em Rio, Zona
Norte em muitos pontos, principalmente se pensarmos na oposição entre os personagens Espírito
e Maurício. Poderíamos dizer que os personagens compõem os polos opostos típicos do
melodrama. Há, de fato, um certo maniqueísmo entre a virtude, castidade, autenticidade e
transparência de Espírito, por um lado, e a desonestidade, malícia, esperteza e dissimulação de
Maurício, por outro. Mas aqui esses polos são associados a posições na estrutura da sociedade.
Espírito é o morador do morro negro. Maurício representa a indústria cultural, pertence a uma
classe média branca.

Assim como no melodrama clássico, a estrutura do filme é marcada por um equilíbrio


inicial, uma série de conflitos que geram um desequilíbrio e um equilíbrio final. Porém tanto as
situações que causam os conflitos quanto o sentido desse equilíbrio final produzem mensagens de
cunho político, como demonstraremos adiante. Ou seja: através do apelo aos sentimentos, da
exposição do sofrimento do protagonista e da proposição de identificação do espectador com ele,
o filme pretende explicar e protestar contra uma situação social de marginalização, exploração e
miséria.

Dito isso, aprofundaremos a caracterização dos personagens principais para entender


como as variáveis de gênero, classe e raça operam nesse melodrama com intenção realista. No
registro praticamente documental que o filme faz, as personagens populares, moradoras do morro
são predominantemente negras. Nesse sentido, assim como em Rio, 40 Graus há a denúncia de uma
marginalização dessa população, porém não há considerações específicas formuladas diretamente
sobre a questão racial.

Espírito é praticamente o primeiro papel de destaque do ator Grande Otelo que não recai
no estereótipo do malandro e na chave cômica dos personagens que ele interpretava nas
chanchadas. Nesse sentido, é significativo esse protagonismo, em um papel que além de ter
chamado a atenção da crítica pela atuação genial dele, também propõe fortemente uma
identificação e sensibilização do espectador.

Ao mesmo tempo, Espírito é tão inocente e subserviente que é compreensível que o filme
não traga nenhuma manifestação de racismo pessoal direto, já que ele interpreta o negro “que sabe
o seu lugar”. Dessa forma, Rio, Zona Norte apresenta um registro do “racismo à brasileira”. Há um
racismo estrutural, que impõe péssimas condições de vida às populações negras e um racismo
disfarçado, implícito nas relações dos personagens de classe média com Espírito, principalmente
nos momentos em ele está no espaço da rádio.
485

Algumas sequências permitem apontar como a intenção de registro documental também


possuem importância para o desenvolvimento dramático da narrativa. Na escola de samba, quando
Espírito canta Mexi com ela, a composição que por si só ganha destaque como registro de música
popular, serve também para o desenvolvimento da paquera entre o protagonista e Adelaide,
pontuada pela utilização do campo e contracampo. Na sequência em que o casal desce o morro, há
o registro da favela na profundidade de campo e o valor simbólico de anunciar o próprio
casamento. Espírito de fato faz o anúncio nas cenas seguintes, em diálogos com Figueiredo e
Honório, porém o que enfatizamos aqui é o valor semântico contido na própria mise-en-scène da
descida dos dois de braços dados, na passarela aberta entre os barracos e a vegetação do morro,
sendo observados pelas vizinhas, como um desfilar dos noivos em dia de casamento.

Detalhando mais Adelaide, conseguimos refletir sobre a representação da mulher negra.


Para refletir sobre as relações de gênero, lembramos que Espírito é um homem marcado pela
emoção e pela sensibilidade artística. O que ele vive serve de inspiração pros sambas que ele
compõe e que são muito valorizados no filme. Ele tem uma composição sobre a decepção que
sofreu com sua primeira mulher, ao ser abandonado com seu filho. Adelaide vai trazer uma segunda
decepção pra ele.

É importante marcar que as mulheres negras não são retratadas numa chave de
sexualização, mesmo no ambiente da escola de samba, como era comum inclusive no cinema da
Atlântida. Inclusive uma crítica da época que reclama do fato do cineasta não ter essa abordagem
voltada à dança e à sensualidade das mulheres negras e por se concentrar no drama que não
aproveitaria (na opinião do crítico) o valo de Grande Otelo:

Mas Pereira dos Santos está longe de saber aproveitá-lo, não só porque a trama,
com neo-realismo e tudo é dramalhão da pior espécie, mas também porque na
última terça parte do celulóide o simpático pretinho passa quase todo o tempo
numa mesa de operações.
Aliás, o melhor mesmo é a sequência de abertura, quando a película delineia a
legítima vocação sambística do herói, numa escola de samba em que,
inexplicavelmente, o narrador se mostra econômico demais ao explorar o ritmo
gostoso das mulatas (Imprensa Popular, 1957).

Ainda que escape da sexualização recorrente nas imagens das mulheres negras, a
personagem Adelaide recai no estereótipo de mulher interesseira. Todo o comportamento dela
evidencia que ela só está interessada na possibilidade do Espírito se tornar um sambista famoso e
lhe proporcionar uma vida com maior conforto. Quando ela percebe que isso não acontece,
também o abandona, colaborando para seu sofrimento.
486

A personagem feminina de classe média, Helena, também é um tanto estereotipada ao


demonstrar total desinteresse nos problemas do povo, só se interessando pelo samba enquanto
manifestação de uma cultura “exótica” (palavra usado por ela mesma). Essa caracterização da
mulher de classe média como alienada das questões sociais se repete no Cinema Novo que viu nos
primeiros filmes de Nelson Pereiros dos Santos uma inspiração.

Quando Espírito consegue que a Angela Maria grave um de seus sambas, ele procura
Moacyr para que o violinista escreva a letra em linguagem musical para ele. Moacyr e a Helena,
frequentam a escola de samba e demonstram uma admiração pelo samba enquanto manifestação
da cultura popular. Porém Helena é mais marcada por um preconceito de classe e raça. Quando vê
Espírito em sua porta, ela hesita em deixá-lo entrar, fica medindo-o de cima a baixo como se nem
o conhecesse. Quando ligam do hospital dizendo que Espírito sofreu um acidente, ela nem quer
que Moacyr atenda. Portanto, Helena contribui para afastar o intelectual do povo, recaindo, de
certa forma no estereótipo da mulher individualista, que não se importa minimamente com as
classes populares.

Já o Moacyr parece mais bem intencionado. Ele recebe Espírito na sua casa, entretanto
logo se distrai, conversando com seus amigos sobre uma vontade de fazer um balé com os sambas
do Espírito, como se ele nem estivesse ali. Nesse momento, o sambista vai embora e não consegue
o favor que ele esperava de Moacyr. Depois do acidente e morte de Espírito, Moacyr conversa com
seu compadre, Honório, para tentar resgatar suas composições.

O sentido final do filme é que o intelectual de classe média precisa perceber a necessidade
de se aproximar do povo e da cultura popular antes que essa “autenticidade” se perca. E ainda é da
união entre intelectual e povo, entre brancos e negros, que fica a esperança de formação de uma
cultura nacional miscigenada que resista à exploração da indústria cultural.

Rio, Zona Norte inova ao dar protagonismo aos personagens negros, porém recai em alguns
estereótipos ligados ao gênero feminino. Registra o racismo disfarçado brasileiro, mas ainda
deposita esperanças na formação de uma cultura nacional mestiça. No balanço, ficam algumas
tensões próprias do cineasta branco de classe média que procurava se aproximar das manifestações
culturais negras e populares.

Referências

Carvalho, Noel dos Santos. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. Tese de
doutorado, Sociologia, FFLCH-USP. São Paulo, 2005.
487

Collins, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do


empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

Dourado, Ana Karicia Machado. Fazer rir, fazer chorar: a arte de Grande Otelo. Dissertação de
mestrado em história. FFLCH-USP. São Paulo, 2005.

Fabris, Mariarosaria. Nelson Pereira dos Santos. Um olhar neo-realista? São Paulo: EDUSP, 1994.

Hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

Napolitano, Marcos. A arte engajada e seus públicos. Estudos Avançados, n. 28, FGV, Rio de Janeiro,
2001.

Rio, Zona Norte. Imprensa Popular, 23/11/1957 (autoria desconhecida).

Stam, Robert. Multiculturalismo Tropical: Uma história comparativa da raça na cultura e no cinema
brasileiros. São Paulo: EDUSP, 2008.

Xavier, Ismail. Melodrama ou a sedução da moral negociada. In ______. O Olhar e a Cena. São
Paulo: Cosac Naify, 2003.
488

Estado, poder e direito: a concepção jurídica (tridimensional),


autoritária de Miguel Reale dos anos 1940

Cícero João da Costa Filho*

Resumo: Miguel Reale é antes de mais nada um filósofo do Direito, um jusfilósofo, como vários
foram os jusfilósofos que o autor de Teoria do Direito e do Estado veio a tomar conhecimento quando
de suas teorias, e assim, criticá-los. Que não se tenha por filósofo o intelectual que se prendeu as
especulações típicas do escritor preso em sua torre de marfim, no dandismo arrebatador daqueles
que separavam teoria de práxis. Pode parecer contraditório frente a postura de um exímio
conhecedor de Teorias do conhecimento, dividindo de forma minuciosa o método a ser utilizado
nas ciências naturais e nas ciências sociais, chamando sempre atenção para a ciência do Direito,
uma ciência que exigia um método diferente, haja visto a participação do homem, dos valores, as
‘invariantes axiológicas’ persistiam frente as formulações abstratas e formais, com seus enunciados.
Direito para Miguel Reale é antes de tudo uma experiência histórica, marcada pela cultura, em que
este decorre de fatos que somente possuem sentido diante de valores construídos na complexidade
da cultura.

Palavras chaves: Miguel Reale, Teoria Tridimensional, Brasil século XX, Ciência Jurídica.

Introdução

Seguindo a ótica de Reale, Teoria Geral do Estado engloba Teoria do Estado, que tem como
objeto o fenômeno político, ou o estudo sobre o fenômeno do poder. Dessa forma a Teoria do
Estado, engloba a Teoria Geral do Direito, onde o Estado é visto do ponto de vista jurídico. Mas, o
fenômeno do Poder (político), inseparável que é do Estado, possui sua dimensão histórica e
sociológica, cada área investiga o Estado a partir de um ângulo. Partindo do conceito clássico de
Política que é o conjunto das ciências do Estado, Reale traça a Filosofia do Direito e a Teoria do Estado.
Não se trata de criações terminológicas, mas sim da busca pelo que o jurista considera essencial,
que é estudar o fenômeno do Poder, que recebe do Estado sua positividade, a partir das instituições
do Estado Moderno.

Com isso, Reale não identifica Poder com o surgimento do Estado, uma vez que o
momento (a dimensão) cabe ao especialista da técnica em Direito, assim como é de competência
ao interessado pelas coisas do Estado investigar os fins, uma vez que a Teoria Geral do Estado “estuda

* Pós doutorando no Programa de História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da
Universidade de São Paulo, desde 2018, sob a supervisão da Prof. Maria Aparecida de Aquino. Desenvolve pesquisa
com o título Integralismo e Teoria Política: Miguel Reale e sua análise sobre o Estado, Poder, Direito e Sociedade (1931-1960). E-
mail: cicerojoaofilho@gmail.com
489

o Estado na plenitude de suas expressões, examinando as suas formas e estudando as razões de seu
desenvolvimento; procura fixar as leis gerais do desenvolvimento da sociedade política; verifica as
condições que dão lugar a instituições diversas através da história; analisa o que há de relativamente
constante e uniforme na fenomenologia estatal”. (Reale, p. 131, 2000a).

A Teoria do Estado é assim parte da Teoria Geral do Estado, este pode ser visto do ponto de
vista estrutural ou sociológico ou genético e histórico. Reale resume bem nessa passagem, “a Teoria
do Estado não situa o poder como condição transcendental da convivência humana, como faz a
Filosofia, mas estuda as leis gerais que governam a formação e o desenvolvimento da autoridade
em razão das variações dos fatores espirituais e sociais operantes”. (Reale, 130a) Esses ângulos são
ramos do conhecimento maior de um complexo fenômeno, que é o fenômeno do Estado, e que
carrega pela força da tradição a preocupação de entender os fins, a justiça, o bem comum, etc. A
preocupação da Teoria do Estado são os aspectos generalizantes, por isso que “por mais geral que
seja, nunca vai além de uma generalização no plano fenomenal: é sempre uma ciência do empírico, do
fato político enquanto fato contingente da sociedade e da história, e não uma ciência filosófica”.
(Reale, 130, 1994b, grifo do autor).

Se preocupando com os fins políticos do Estado, a Teoria Social do Estado atenta para seus
aspectos sociais, econômicos e culturais, e em seguida, para as condições de viabilidade do Poder,
entrando aqui a área que se preocupa com o dever-se, que é o Direito. Diz Reale que a Teoria Social
do Estado investiga sob que condições históricas e sociais este de desenvolveu, estando latente sua
condição de potência. Conforme o intelectual não existe um Estado plenamente social, ou seja,
direito e sociedade formam relações ou partes dialéticas, se distinguem, mas não se separam. O
Direito surge das relações sociais, brota dos valores, das necessidades de uma determinada
sociedade, daí surgem as regras que se tornam jurídicas, mas não se pense que há uma simples
transmutação das regras sociais em regras de direito. Estado e Direito são inseparáveis, o fenômeno
do Poder não surge com o Estado, mas é somente na modernidade que se pode falar em uma Teoria
de Estado. Reale pensa o Direito racional e abstrato, ou seja, o Direito que se estabeleceu com o
poder do imperium, de coação incondicionada, com vigência e eficácia, contendo suas prerrogativas,
seu Direito objetivo, com sua independência e supremacia, com seu Direito interno, considerando
o Direito internacional, elemento indispensável dos Direitos internos.

É comum a confusão entre Teoria do Estado e Filosofia do Direito, em razão das especulações
sobre o Estado, das preocupações de suas respectivas áreas, com seus fins, estrutura e natureza. A
Filosofia do Direito oferece sim as condições primeiras para essa ou aquela forma de Poder, mas a
Teoria do Estado se preocupa com o fenômeno do Poder enquanto tal. Essa divisão muito bem
490

estabelecida por Reale advém de sua busca em delimitar o objeto da Política, diferente da tradição
aristotélica onde não havia delimitada especificamente cada campo de saber. Não sem razão,
afirmava que as Teorias do Estado conforme alguns teóricos consagrados caíam para uma análise
filosófica, confundindo-se com Filosofia do Direito

Íntimas são, sem dúvida, as relações entre a Filosofia do Direito e a Teoria do


Estado, havendo mesmo uma esfera de pesquisa de ordem mais geral na qual
difícil seria traçar uma rigorosa linha de limites entre uma e outra ciência. Explica-
se, dessarte, por que as mais importantes obras sobre a Teoria do Estado
comportam uma grande parte de Filosofia do Direito, e por que algumas das mais
notáveis manifestações do pensamento filosófico-jurídico contemporâneo
tiveram como ponto de partida ou como principal razão de ser os problemas
relativos ao Estado (Kelsen, Santi Romano, Heller, Smend, Hauriou, Duguit etc.);
e outros criaram toda uma filosofia jurídica própria sem transporem
intencionalmente as linhas da Teoria do Estado (Jellinek, Villeneuve, Carré de
Malberg etc.); ou revelaram a verdadeira originalidade de seus sistemas, tratando
do problema do Estado (Del Vecchio, Ravá). (Reale, p. 129, 1990).

De caráter tridimensional, que não se busque separar uma coisa da outra, pois mais uma
vez Reale chamava atenção, “não se queira, pois, ver nas distinções que vimos fazendo senão um
meio de análise, sem separações radicais entre este e aquele outro aspecto do Estado. Quem estuda
o fenômeno estatal para lhe penetrar nos caracteres essenciais, distingue, mas não separa, analisa
para possibilitar a clareza da síntese”. (Reale, p. 133, 2000a).

Como intelectual, Reale esmiuçou a Política, ciência do Estado, contemplando um largo


campo, onde Direito e Poder eram seus elementos constituintes, “embora o termo Política seja o
mais próprio aos povos latinos, mais fiéis às concepções clássicas, é inegável que, por influência
germânica, já está universalizado o uso das expressões Teoria Geral do Estado e Doutrina Geral
do Estado (Allgemeine Stuatslehre), para designar o conhecimento unitário e total do Estado. A
palavra Política é conservada em sua acepção restrita para indicar uma parte da Teoria Geral, ou
seja, a ciência prática dos fins do Estado e a arte de alcançar esses fins”. (Reale, p. 133, 2000a).

Miguel Reale é antes de mais nada um filósofo do Direito, um jusfilósofo, como vários foram
os jusfilósofos que o autor de Teoria do Direito e do Estado veio a tomar conhecimento quando de
suas teorias, e assim, criticá-los. Que não se tenha por filósofo o intelectual que se prendeu as
especulações típicas do escritor preso em sua torre de marfim, no dandismo arrebatador daqueles
que separavam teoria de práxis. Pode parecer contraditório frente a postura de um exímio
conhecedor de Teorias do conhecimento, dividindo de forma minuciosa o método a ser utilizado
nas ciências naturais e nas ciências sociais, chamando sempre atenção para a ciência do Direito,
uma ciência que exigia um método diferente, haja visto a participação do homem, dos valores, as
491

‘invariantes axiológicas’ persistiam frente as formulações abstratas e formais, com seus enunciados.
Direito para Miguel Reale é antes de tudo uma ‘experiência histórica’, marcada pela cultura, em que
este decorre de fatos que somente possuem sentido diante de valores construídos na complexidade
da cultura.

Geralmente, quando se faz a distinção entre ser e dever ser, esquece-se de que
esses termos, como verbos que são, exprimem tanto estado como atividade e
movimento, não se devendo confundir o verbo “ser” com o substantivo “Ser”
que é a estática indeterminação. No plano do ser situa-se tanto a realidade que
está aí, diante de nós, no instante em que é observada, como a que flui ou se
desenvolve. As leis da evolução da espécie, por exemplo, são leis do mundo do
ser, isto é, do ser em seu evolver, o que desfaz o equívoco de sua redução ao
estático.
O que caracteriza o mundo do ser, em confronto com o mundo do dever ser,
não é a ausência de movimento, mas sim a origem deste que, no primeiro caso,
resulta de causas; no segundo, ao contrário, é consequência de motivos, ou
consoante feliz expressão de Husserl, de causas motivacionais (Reale, p. 57,
2002b).

Essa é uma das grandes observações de Reale, como ciência social, experiência
marcadamente histórica e cultural, o Direito possuía um método próprio, que mesmo operado pelo
homem, o cientista, no caso, o legislador, o delegado, o sociólogo, o historiador, o antropólogo,
etc, tinha seu caráter de objetividade, possuía suas bases científicas assim como as ciências
analisadas sob o método de indução e dedução, “cada método deve adaptar-se a seu objeto, de
maneira que muitos equívocos resultaram do fato de se pretender transladar para o campo das
ciências culturais meios de pesquisa consagrados no setor das ciências físico-matemáticas” (Reale,
27, 1999c). Nessa perspectiva, só se entende a concepção de Direito, de Ciência Jurídica ou
Jurisprudência, de Miguel Reale, descortinando primeiramente o método, para depois detalhar o
que o jurista concebe como Direito, seu objeto e sua linguagem, etc.

A filosofia era essencial a ciência jurídica, por ser a área que oferecia as condições
transcendentais, as condições de possibilidade para fundamentar o Direito como ciência. Não se
trata aqui como bem anota Reale, de ‘transcendentalismo’, mas sim de ‘transcendental’, que é a
busca das ‘condições primeiras’ que fundamentam a busca e apreensão do conhecimento. É essa
visão epistemológica que irá marcar a concepção jurídica de Reale, levando-o a uma abordagem
cultural, adentrando-o a uma análise da ‘fenomenologia jurídica’.

É extremamente significativo que Reale insistentemente chame atenção para o plano


empírico, da concretude das coisas, fugindo as análises formais do Direito visto sob a ótica
naturalista, girando sobre seus pressupostos lógicos, ab extra, onde recorria-se a análise linguística
para averiguar a positividade deste. A contribuição de Reale se dá por rechaçar teorias jurídicas
492

ancoradas nos meros enunciados lógicos, esquecendo dos próprios elementos constituintes desses.
Em suas Lições Preliminares de Direito (2002), curso introdutório aos recém ingressos alunos do curso
de Direito, dizia Reale que “não há, em suma, Ciência do Direito em abstrato, isto é, sem referência
direta a um campo de experiência social”. (Reale, 27, 2002b) Combatendo o método naturalista
aplicado as ciências sociais, e o Direito compunha o quadro das áreas culturais, Reale preteriu o
positivismo jurídico, em seu grau de certeza já enunciado, impossibilitando a análise daquilo que
era de suma importância para o interprete do Direito, no caso, a complexa estrutura valorativa,
fática e normativa.

Aqui, cabe alguns pormenores sobre o tripé da Teoria de Direito de Reale, formada de
fatos, valores e normas. Fato para Reale é ‘evento’ numa dada sociedade, portadora de valores,
geradora de normas, de regras. Este fato pode surgir de questões econômicas, políticas, geográficas
ou mesmo religiosas, visto que este é sempre um fato que porta valores, emanado das relações sociais,
que buscam a liberdade de cada sujeito, em meio ao bem comum ou a justiça social, preocupação
do Direito. O Direito enquanto área compreensiva normativa, diferente da Sociologia Jurídica, do
historiador do Direito ou mesmo do politicólogo (termo utilizado por Reale), busca aplicar leis,
regras, não desconsiderando as diversas áreas auxiliares, compreendendo a complexidade fática
segundo os valores,

Pode-se dizer, pois, que pela sua própria natureza, o direito se destina à
experiência e só se aperfeiçoa no cotejo permanente da experiência
correspondente ao seu ser axiológico, experiência essa que não se reduz a uma
adequação extrínseca, a uma tábua de referências fáticas ou a paradigmas de
valores ideais, nem se resolve numa unidade indiferençada, mas conserva, como
condição de seu próprio “experiri”, a dialeticidade problemática e aberta dos
fatores que nela e por ela se correlacionam e se implicam, na unidade de um
processo ao mesmo tempo fático, axiológico e normativo. (Reale, p. 31, 1992d)

Fugindo a concepção do jusnaturalismo, do naturalismo, de alguns contratualistas, embora


pontue avanços para a constituição de um Estado que trouxesse a liberdade humana, possibilitando
o verdadeiro meio de se conquistar os anseios de si e do ‘outro’, do positivismo jurídico, a tônica
maior de Reale se volta contra as análises formais, que perdem de vista o pano de fundo social, o
terreno histórico onde o Direito é produto, experiência concreta, “se há algo, com efeito, que
caracteriza o pensamento jurídico é a luta contra todas as modalidades de “formalismo”, pelo
reconhecimento de que a plena compreensão do Direito só é possível de maneira concreta e
dinâmica, como dimensão que é da vida humana”. (Reale, p. p. 77, 1992d).

Mais do que um conjunto de regras impostas por um Estado coercitivo, Reale nos mostra
que o Direito passa pelo crivo das relações humanas em sua complexidade onde os ordenamentos
493

são indispensáveis, frente aos motivos que tornam o Direito inevitável, lembramos que para o
jurista existe o substratum, algo que persiste ao longo da história, no caso, os valores. Reale não se
preocupa com o Direito enquanto um conjunto de regras que devem ser seguidas, mas sim, do
Direito como produto maior de integração, assentado sob as relações humanas, dotadas se sentido,
desde os clãs as sociedades que tornaram o Estado a referência maior do Poder, “Já dissemos que
a integração social tem como resultado uma unidade de ordem ou uma unidade orgânica, que se
caracteriza pelo fato de não serem as partes absorvidas pelo todo, de maneira que não se verifica
um aniquilamento material dos indivíduos no corpo coletivo, mas sim uma integração de natureza
jurídica”. (Reale, 77, 2000ª).

É da natureza humana ter consciência da experiência histórica, finita, por isso que há o
enlace, as normas nunca são vazias de sentido, carregam conteúdos, surgem da onticidade do ser

O específico do homem é conduzir-se, é escolher fins e pôr em correspondência


meios a fins. A ação dirigida finalisticamente (o ato propriamente dito ou a ação
em seu sentido próprio e específico) é algo que só pertence ao homem. Não se
pode falar, a não ser por metáfora, de ação ou de ato de um cão ou de um cavalo.
O “ato” é algo pertinente, exclusivamente, ao ser humano. Os outros animais
movem-se; só o homem atua. A atuação pressupõe consciência de fins,
possibilidade de opção, projeção singular no seio da espécie, aprimoramento de
atitudes, aperfeiçoamento nos modos de ser e de agir. Seu problema liga-se ao da
cultura, e como esta, tem sua raiz na liberdade, no poder de síntese que permite
ao homem instaurar novos processos, tendo consciência de estar integrado na
natureza e no complexo vital condicionado por ela. (Reale, p. 378, 1992d).

O Direito chega a se tornar coercitivo quando a sociedade moderna plural, crescendo cada
vez mais, necessita de normas, essas surgem dos valores, do complexo fático, e acima de tudo, da
inevitabilidade e da própria natureza integradora que é o Direito, o Estado Moderno não forma o
Direito, apenas dá positividade ao direito objetivo. Coerção não significa privação de liberdade,
autoritarismo, mas sim, estabelecimento daquilo que está acima dos homens justamente para
resguardar o bem comum e a justiça social. As normas, momento maior da ‘experiência jurídica’
nada mais são que regras com fins estabelecidos porque se valorou, se deu ‘valor’ a esta e não aquela
numa determinada sociedade. Aqui reside a tônica sobre a defesa de um regime político autoritário,
por Reale achar necessário o ‘ordenamento social’, ao contrário daqueles que simplificavam o
Direito ao Estado, ou melhor, àqueles que analisam a sociedade simplesmente partindo do
positivismo jurídico ou das vontades individuais que podem redundar na anarquia social.

O intelectual filósofo tomou um dos conceitos mais caros sobre a representação política
que resguardasse a liberdade humana. Kant, na ótica de Reale foi o primeiro pensador a se
preocupar com algo que transcende o desejo do eu, da vontade de cada uma das pessoas,
494

acreditando na validade objetiva e transpessoal, na qual, alicerça o Direito. Como realizar a


harmonia dos seres diante das diferenças de anseios, crenças, etc? Para além de sabermos que
algumas regras se tornam obrigatórias, que o Direito para se positivar obrigue os homens a
cumprirem face o adimplemento, nossa preocupação é esmiuçar a concepção de Direito de Reale,
dentro da totalidade do Poder e do Estado.

Durante muito tempo, os juristas, sob a influência da Escola Positivista,


contentaram-se com a apresentação do problema em termos de coercitividade;
em seguida, renunciaram à “teoria da coação em ato”, para aceita-la “em
potência”, ou seja, depois de verem o Direito como coação efetiva, passaram a
apreciá-lo como possibilidade de coação, mas nunca abandonaram o elemento
coercitivo. Este permaneceu como critério último na determinação do Direito.
Podemos dizer que o pensamento jurídico contemporâneo, com mais
profundeza, não se contenta nem mesmo com o conceito de coação potencial,
procurando penetrar mas adentro na experiência jurídica, para descobrir a nota
distintiva essencial do Direito. Esta é a nosso ver a bilateralidade atributiva. (Reale,
p. 57, 2002b)

É esse caráter bilateral, o traço inovador de Reale. Sua teoria tridimensional, fincada na
cultura, iria enlaçar o Direito, e sua inevitabilidade, com as mais profundas necessidades humanas,
que era a teologia do pensamento, que tendia sempre a um resultado final. O Direito brota do
conjunto de significados valorizados por uma dada comunidade, que em meio as relações
intersubjetivas do homem criam de modo inevitável valores, esses somente são alcançados por
meio de fatos relacionados a valores e normas, daí é que é as sociedades são naturalmente
ordenadas.

A Ciência Jurídica, o que é?

Delimitando cada ramo da Jurisprudência, como ciência do espírito, Reale certificava-se do


objeto do Direito, no que acarretava naturalmente um problema da definição como uma ciência da
conduta, exigindo regras ou normas. Assim, primeiramente vinha à tona a preocupação do Direito,
seu método, cabendo, pois, uma definição, não desprezando ângulos ou momentos diferentes
sobre a áreas que se preocupavam com o Direito sob o prisma histórico, sociológico, filosófico,
econômico, etc. Uma vez ser o Direito uma ciência normativa, com seus elementos lógico-formais,
o apelo de Reale é sempre pelo caráter valorativo, imerso no vir a ser, sem o estatismo naturalista
que antecipa os resultados a partir do método naturalista, como sempre chamava a atenção.
Esmiuçando as particularidades da norma, era tangente a esta valores universais, comuns, que o
administrador, o jurista ou o intérprete mesmo com suas vontades (o aspecto volitivo), trazia esse
substratum.
495

Existe uma conduta ética formadora do Direito, essa ‘ciência maior de todos os valores’,
que contempla o bem, quatros são as possibilidades de conduta: religiosa, moral, costumeira e
jurídica. Não se pense que o Direito fornece normas ou regras a seguir, como algo a ser seguido de
cima para baixo, este traz a ‘harmonia específica das subjetividades’, a ‘ordenação objetiva das
relações’, a ‘disciplina da liberdade’. Relevando seus aspectos lógicos-formais, próprios da Lógica
jurídica, ressaltamos o agudo olhar de Reale para a infraestrutura da ‘experiência jurídica’, pois sem
ela, corre-se o risco de se perder no caráter coercitivo do Direito. Antes de tudo, Direito para Reale
é uma experiência social, histórica e cultural do homem, ou melhor, é por se relacionar num quadro
histórico sempre aberto a satisfação do eu perante a relação com o mundo, num processo dialético,
de implicação e polaridade, que surgem os valores. Tecendo de forma pormenorizada a norma
jurídica, vemos uma lógica valorativa, uma lógica do concreto, “uma regra jurídica elaborada tecnicamente
pelo órgão do Estado não é regra jurídica no sentido pleno da palavra, quando não encontra
correspondência no viver social, nem se transforma em momento da vida de um povo. É regra
formal, que ficou com uma vigência puramente “significativa”. O Direito autentico é aquele que se
converte em momento de coexistência social”. (Reale, p. 463, 1999c).

O ato interpretativo da norma não se reduz as vontades do intérprete, carrega do tempo as


variantes axiológicas. Embora complexo, é dessa estrutura dos valores que surgem as normas, não
que o Direito seja reflexo ou produto da estrutura social, este é apenas uma das manifestações do
espírito que se objetiva na história, carregando a força da tradição e a peculiaridade de cada grupo
humano.

O esforço de objetivação e de racionalização é uma das características da experiência


histórica do direito, não obstante os repetidos insucessos que facilmente se
poderiam invocar. Se Stammler nos diz que “todo direito é uma tentativa de ser
direito justo”, tal afirmação poderia se apresentada sob outro prisma, mas em
consonância com ela: “todo direito é uma tentativa de direito racional”, ou, para
evitar interpretações equívocas, “todo direito é uma tentativa de direito
racionalmente objetivado”. (Reale, p. 254, 1992d, grifo do autor)

Combatendo o vazio da ciência jurídica (leia-se aqui Direito, experiência jurídica), Reale
busca a elaboração de uma teoria que explique a fundamentação das normas, que grosso modo, era
o ponto essencial da ciência jurídica. Adentrava assim numa análise minuciosa que somente nos
interessa em seus pontos chaves quando traz a estrutura histórica, os homens e as necessidades
coletivas em primeiro plano. Remetemos sempre a termos da Dogmática Jurídica (a Jurisprudência
vista sob o ângulo da norma), apontando a força que ganha o caráter axiológico dos homens. Mais
importante é esquecer o Direito como coercitivo, no sentido de se pensar o Direito como arma ou
instrumento políticos nas mãos do Estado, o autor pensa que os costumes, as tradições, face ao
496

desenvolvimento do Estado moderno ganham qualificação jurídica, o que não significa que o
Direito tenha sua legitimidade no Estado.

Com efeito, nas demais formas de objetivação do espírito, cada objetivação


particular é suscetível de ser interpretada em si mesma, com abstração das demais.
Assim é que a interpretação de cada tocata de Bach não implica e exige a
concomitante exegese das demais produções do artista, cada uma delas
constituindo como que um todo em si pleno e significante. É claro que a melhor
interpretação de cada obra poderá ser o resultado do conhecimento da produção
global do compositor, mas não será jamais imprescindível essa correlação, nem
iniliminável a congruência estética concomitante com as demais criações
musicais. (Reale, 255-256, 1992d)

Esmiuçando as bases do pensamento, tratando de regiões ônticas conforme estava situado


cada tipo de olhar do conhecimento, ainda assim para Reale o Direito, como área pensável ou
inteligível tendia a objetividade, era natural ao pensamento as intencionalidades objetivadas. Assim
como era o Direito uma experiência histórica, uma realidade concreta, o esforço de realizar uma
verdadeira fenomenologia da experiência jurídica como afirmava Reale, só tinha razão de ser
quando desvelasse a tríade dessa experiência humana, sempre em conexão consigo mesmo e com
o mundo que os cerca, no caso, os fatos, normas e valores. Baila no pensamento de Reale uma
concretude objetivante, a solidariedade e a interconexão singular do mundo dos valores de Max Scheler
e Nicolai Hartmann. Por essa razão quando da interpretação do ato interpretativo, considerando o
desenvolvimento histórico de uma determinada ordem, cabe entender a temporalidade cultural.
Com suas formas e estruturas, interpretar uma norma jurídica é antes de mais nada investir no
mundo axiológico (dos valores) incrustados no estágio ‘evolutivo’ de cada civilização. A norma, um
dos elementos mais importantes do Direito como ciência de conduta, normativa e compreensiva,
problematizando toda uma questão do campo da ética, insere-se no plano da cultura, numa relação
com os fatos e valores, uma relação de implicação e polaridade, não abstrata e genérica como a
dialética que caracterizou as análises lógico formais da Jurisprudência antes do surgimento de sua
Teoria tridimensional, datada dos anos 1940. O campo dos valores era de fundamental importância
nas análises jurídicas, ou seja, na elaboração das regras, leis ou normas jurídicas

Para quem, como o autor deste trabalho, os valores não podem ser
compreendidos sem a sua permanente referibilidade histórica, visto como os
mesmos transcendem cada forma de objetivação normativa, no ato mesmo em
que eles a tornam possível, o pressuposto da dinamicidade do ordenamento
jurídico e do caráter dialético de sua interpretação não é, pois, senão a
consequência do reconhecimento de que o direito é essencialmente um processus
e, no meu particular modo de ver, um processo de compreensão normativa de
fatos segundo valores, desenvolvendo-se segundo valores, desenvolvendo-se
segundo valores, desenvolvendo-se segundo uma dialética de implicação e polaridade,
497

ou dialética de complementaridade, em virtude da qual o momento normativo se afirma


como momento por excelência da vida do direito, mas sem se destacar, como
mera fórmula abstrata, dos complexos fáticos e axiológicos a que se referem.
(Reale, p. 258, 1992d)

Considerando as diferenças humanas, a subjetividade de cada eu, a liberdade de cada sujeito,


Reale acredita no desenvolvimento da sociedade com o estabelecimento da ordem, donde a
existência do Direito que traz segurança e paz, em nome do bem maior que é o bem comum. Existe
Direito desde o momento que o homem avistou o mundo a sua volta, com um conjunto de signos
que os ordenava, dando sentindo a essa forma de agir e não aquela. Por isso, mais importa segundo
o jurista apontar as conexões de sentido entre a relação dos homens como o mundo que os cerca, um
mundo histórico, já carregado de um mundo jurídico, que ainda que diferente do direito abstrato
que ganhou forma somente com o Estado Moderno, já era um mundo passível de qualificação
jurídica, porque para Reale o homem é a fonte mais importante do Direito.

Não esqueçamos que segundo Reale o Direito é apenas uma forma de conduta, o intelectual
aponta a religião, a moral, os costumes, como formas de conduta. O Direito das gentes tão bem
estudado pela Escola Francesa de Sociologia, puxada por Geny, e mais tarde incorporada pelas
análises de Durkheim, tem uma lógica diferente à lógica do Direito das leis, racional e abstrato, pois
o desenvolvimento social exigiu regras sem as quais a liberdade era possível. É digno de nota a
assertiva de que para Reale toda e qualquer sociedade necessita de ordem, para garantia da paz, sem
as quais se torna impossível à realização da liberdade humana; isso não significa que as partes seja
absorvida pelo todo, ponto que ressaltava, em defesa de sua visão política, tributário é claro do
conhecimento clássico tradicional, mas em desacordo no que tange a uma simples reprodução ou
passividade do ser com relação a uma ordem instaurada.

É digno de nota salientar a visão de Reale sobre a participação do homem, a preservação


de sua liberdade nas relações valorativas entranhadas nessas ao mundo da criação das normas. Reale
é um estudioso das Teorias jurídicas, o escritor diferente dos intérpretes filiados ao positivismo
jurídico, que leem os códigos ou as leis acreditando nessas, desconsiderando a infraestrutura dos
elementos constituintes, adentra o mundo, o mundo das necessidades humanas, necessidades essas
do cotidiano, por acreditar que o Direito é uma experiência concreta e histórica. Salientemos que
essa amplitude é ressaltada em seus trabalhos jurídicos, históricos, filosóficos e epistemológicos, se
é que possamos insistir nessa ideia diante de um autor que afirmava sempre que era preciso
distinguir sem separar, chamando atenção para a implicação dos elementos, para uma visão sempre
guardada ao todo, um pensamento conjuntural.
498

Disciplinar para Reale não condiz com a imposição da força ou da violência, pois os
homens mantem uma relação consigo e com o mundo, daí a necessidade dos ordenamentos, dando
sentido a uma ciência normativa compreensiva. Bilateralidade especifica e bilateralidade atributiva por
exemplo são dois elementos da relação que o homem mantém com o mundo, afim de objetivar os
valores próprios do espírito. Essa concepção, marcadamente filosófica de Reale era tributária das
correntes kantianas, de modo específico, da fenomenologia de Husserl, que o jurista usou como
método para aplicar ao Direito no plano empírico.

Exímio pesquisador no que diz respeito a divisão dos campos de análise, chamando atenção
para os ângulos ou visões, os objetos desse ou daquele campo de conhecimento, atribuindo de
modo específico o método e os fins desses, antes de tudo cabe chamar atenção sobre o Direito
como área de conhecimento, ou como uma ciência que diferia da história, da sociologia, da
etnologia, da economia, que tinham por objetivo, compreender para explicar a sociedade.

Onde terminava as conclusões do sociólogo começava a do jurista, no caso, aplicar qual a


regra a ser seguida, qual a conduta a ser aplicada pelo legislador. Queremos mencionar a crença
num filósofo como Reale que embora aplicando o método fenomenológico a experiência jurídica
insistentemente mirava a concretude, o plano real dos homens, para que suas liberdades não fossem
tolhidas. Aludia a disciplina para que fosse possível a preservação da liberdade, mantendo de pé o
respeito mútuo. Quando Reale fala em ordem, de uma sociedade que precisa ser ordenada, não
estar a favor de um poder estatal que vá de encontro as liberdades humanas, é por acreditar na
coexistência harmônica específica das subjetividades que o autor deposita suas convicções na viabilidade da
liberdade humana. Diversos eram os métodos a serem utilizados nas investigações científicas, sem
que com isso a Jurisprudência, com o caráter volitivo, onde era inevitável o coeficiente pessoal, não
pudesse aspirar a condição de ciência, dada ser o Direito, uma experiência histórico cultural, “é a
experiência jurídica como ordenamento racional e objetivo, no qual e pelo qual se estadeiam, como
afirmações do ser do homem, as projeções históricas de suas intencionalidades”. (Reale, 121,
1992d).

Antes das complexas análises de Reale sobre a concretude da norma (leis ou regras) da
‘experiência jurídica’ (‘ordenamento jurídico’), era indispensável atentar para a preocupação do
Direito, seguido de seu método de investigação, e a linguagem utilizada pelas Teorias clássicas que
quando muitos consideraram fatos e valores na formação das leis. As concepções sobre a
Jurisprudência, no olhar de Reale não considerava o fundamento das normas, papel daquele que
aplica a lei, como o juiz ou o legislador. Era indispensável fugir a parcialidade dessas visões, fruto
ora de uma concepção jurídica que confundia Direito com Estado, inviabilizando qualquer análise
499

das condições sociais, ora de uma visão evolucionista que redundava sempre na formação de uma
ciência que se formava ‘cientificamente’ a partir dos fatos (positivismo), ora de um desprezo pelas
questões jurídicas, que o escritor associa ao liberalismo.

Sendo essenciais as correlações entre a Antropologia, a Filosofia e a História, não


devemos contentar-nos com o estudo descritivo ou funcional das relações
existentes entre os bens culturais, colocando-nos perante a cultura como o físico
se põe perante os “dados” da natureza. O culturalismo neutralista e positivista
fica escravizado aos instrumentos, aos veículos e suportes de significados, sem
compreendê-los autenticamente como “formas de vida”, pois não se deve
confundir a atitude “realista” ou “natural”, inerente a toda investigação científico-
positivista, necessariamente adstrita aos horizontes empíricos de dada
objetividade, com a tendência “naturalista” que consiste em tratar os atos
humanos como se fossem “coisas”, ou seja, como se fossem cegos aos valores e
pudessem ser “explicados” tão somente segundo nexos causais. Uma concepção
culturalista, fiel aos seus pressupostos, jamais perde de vista a fonte espiritual da
qual os bens históricos promanam, cuidando, ao contrário, prementemente,
graças à sua referência ao espírito demiurgo que as constitui, ao espírito, em
suma, entendido, como valor primordial que implica a liberdade instituidora dos
ciclos culturais. (Reale, p. 30, 1992d)

Afirma Reale que umas das contribuições da filosofia contemporânea foi trazer a utilização
de um método próprio, segundo categorias que lhe são peculiares. Solucionando o impasse que
Kant e Hegel não superaram, que foi enxergar o Direito no campo empírico, uma vez que para o
primeiro a questão da liberdade só era possível no plano da razão pura, esta se esvaecia na
valorização que o autor da Enciclopédia das Ciências Filosóficas atribuía ao espírito, Reale não perdia de
vista o plano concreto da cultura, no que residia sua noção sobre o termo experiência

Ora, o emprego do termo experiência no campo de uma ciência ética, como é o


direito, já revela, por si só, o abandono do dualismo kantiano, de conformidade
com o qual só se poderia falar, a rigor, de experiência em se tratando do mundo
da natureza e de sua explicação. Distinta, porém, da experiência natural
(condicionada por pressupostos lógico-transcendentais) há uma outra forma de
experiência, cujas condições de possibilidade são os valores, podendo-se
considerar experiência cultural toda experiência subordinada a pressupostos
axiológicos. Uma das contribuições positivas da Filosofia contemporânea
constituiu, exatamente em procurar esclarecer, especialmente desde Dilthey, o
tipo de uma nova ciência, já vislumbrada por Vico, e fundada no novo tipo de
experiência que acabamos de configurar, ou seja, caracterizada, por uma
metodologia própria e segundo categorias que lhe são peculiares. (Reale, 112,
1992d)

Acrescentava Reale que “esse tipo de ciência e, como toda ciência positiva, uma ciência de
realidades, só que de realidade histórico-cultural, na qual os elementos fáticos e as diretrizes ideais se
compõem normativamente na unidade de um processus. Realidade, por conseguinte, cuja essência é
500

o processo mesmo em que os três apontados fatores se co-implicam e se desenvolvem”. (Reale,


112-113, 1992d, grifo do autor).
Com espírito irrequieto, fadado a investidas profundas no campo epistemológico, como
afirma Reale em Verdade e Conjetura, o escritor adentrava a seara maior da metafísica, uma metafísica
não do conhecimento, mas sim do sujeito. O transcendentalismo inevitável proposto por Kant, em
busca do conhecimento, agora era substituído por uma ‘metafísica do ser’, elemento decisivo da
apreensão do objeto. Nessa perspectiva, Reale superava a dialética reducionista de Hegel e Kant,
por meio do ‘pensamento conjuntural’, onde as condições do conhecimento passavam pela análise
do ser. Embora essa metafísica se mostrasse sem solução (aporética), apontava o aspecto positivo
e negativo da metafísica kantiana, somado a releitura inovadora de Heidegger formada a partir do
daisen. Mas, é digno de nota que para Reale era plenamente possível uma metafísica alicerçada sob
a experiência

Mas, se a metafísica se mostra inevitável – a não ser que pretensiosamente se


queira reputar desprovido de sentido tudo o que sobre ela se pensou e se escreveu
-, é mais uma razão para indagar-lhe da natureza e das virtualidades. Sabe-se que
tal modo de pensar se mostra irrelevante para os partidários de um racionalismo
puro, de antemão modelado segundo os parâmetros das ciências positivas e,
como tal, insuscetível de ir além delas, ou do círculo das experiências possíveis.
Basta, porém, formular-se o problema do significado das ciências para o homem
para desde logo ter-se de reconhecer que essa pergunta se desdobra em duas
outras correlatas: uma sobre o ser da ciência; e outra sobre o ser do homem.
Ambas pressupõem uma série de questões que somente se reduz às próprias
ciências mediantes um círculo vicioso, que as vezes se ignora. Outras vezes, dá-
se uma fácil evasiva, que consiste em declarar-se aquelas duas perguntas sem
sentido, e, como tais, desprezíveis; ou então, recorre-se a uma atitude pragmática,
transferindo-se para o plano da ação ou da práxis o momento de sua
comprovação, em função de resultados considerados válidos. Mas é óbvio que a
asserida validade prática pressupõe critérios de valor, de tal modo que ressurge o
problema que se pretendia elidir a sua transferência do plano teorético para o
prático. Como se vê, ou nos circunscrevemos ao plano positivo do verificável,
fazendo a ciência volver-se sobre si mesma, ou preferimos não desprezar, de
antemão, certos problemas, só por não terem validade de tipo analítico ou
experiencial (Reale, 29-30, 2002e).

Não cabe em nossa proposta destrinchar a postura epistemológica de Reale, mas sem alguns
esclarecimentos sobre sua concepção jurídica (aqui entra sua tenacidade epistemológica), essa se
torna inviável. O jurista quer chamar atenção para um elemento indispensável que embora não
possa ser apreendido ‘científicamente’, seja por meio do pensamento puro abstrato ou
exteriorizado, só se pensa àquilo que existe. Se kant desconsiderou tal ponto apelando para a
inexistência deste, Reale de forma irrequieta atenta para a realidade, a cultura, como infraestrutura
de todo o pensar. Se o objeto do conhecimento não pode ser ‘enunciado’, afirma que podemos
pensar este tendo por base a experiência, é preciso considerar as minúcias ontológicas (do ser),
501

fundadas sempre na experiência. Portanto, a metafísica se mostra uma metafísica possível, uma
ontologia que tem seu ponto de partida na experiência, na práxis.
É o ‘pensamento conjuntural’ o pilar ideológico para Reale validar e assim adentrar aos
elementos formadores do conhecimento, abalados pela crítica de Kant. Influenciado pelo pensador
alemão, embora as vezes soe como contradição, Reale embasa seu criticismo voltando ao grande
filósofo

Após percorrer “o território do intelecto puro”, ou o mundo da experiência, kant


sente-lhe a insuficiência, recorrendo a uma metáfora desusual em seus escritos:
“Mas essa é uma ilha, fechada pela própria natureza entre fronteiras imutáveis. É
a terra da verdade (palavra sedutora!) circundada por um vasto oceano
tempestuoso, império da aparência, onde densas névoas e geleiras, na iminência
de liquefazer-se, dão, a cada instante, a ilusão de novas terras ao navegador que
erra de um lado para o outro, sempre enganado pela esperança de novas terras,
atraído por aventuras às quais não sabe jamais se subtrair, e que não pode levar a
cabo (Reale, 39-40, 2002e)

Sempre se amparando a partir da análise transcendental, no que surgia sua adesão aos neo-
criticistas da cultura, Reale problematizava as condições do conhecimento à luz do pensamento
conjuntural, que dizia já estar presente desde Sócrates. Com tal atitude, Reale respondia aos críticos
sobre a impossibilidade de uma metafísica no campo experimental. Remetendo a suas palavras nem
o próprio kant disse ser impossível abordar a ética no plano da razão prática, após seus estudos
sobre a analítica transcendental, trazia a questão do ‘pensamento problemático’, escoimado na
complexa tessitura social, “a conjetura legitima-se quando se sente a necessidade de compreender
algo que não podemos determinar, analiticamente, a partir de evidências, nem tampouco segundo
conceitos sintetizadores dos dados verificáveis da experiência”.183

Entre idas e vindas ao pensamento de Kant, mesmo alegando que o filósofo atenta para o
‘pensamento conjuntural’, resolvendo o impasse da dialética abstrata, uma vez achar impossível
analisar a ‘razão prática’ à luz do viés transcendental, Reale se apoia na ‘intencionalidade da
consciência’, nos levando a Husserl, a nosso ver um dos pilares do jurista, por acreditar na
‘objetividade intencional’, “além da impossibilidade desse corte radical entre pensamento e ação,
perde-se de vista a consciência intencional que, quer em si mesma, quer objetivada no processo

183Toda conjetura parte, de certa forma, da experiência, para transcende-la, visando a uma solução plausível, sem nunca
entrar em contradição lógica ou real com o que já foi cientificamente comprovado; a conjectura, como suposição
segundo razões de verossimilhança e plausibilidade, desenvolve-se no plano das ideias, como esquema regulativo,
destinado a validamente ordenar o que não se mostra ordenável segundo conceitos, nem demonstrável analiticamente;
na conjectura, a intentio racional se compõe com a imaginação, pois, como diz Kant, ela se desenvolve “sobre as asas da
fantasia, embora não sem um fio condutor ligado, mediante a razão, à experiência. (grifo nosso) Reale, Miguel. Verdade e Conjetura.
São Paulo: Saraiva, 2002. p. 43
502

histórico-cultural, é a fonte possibilitante de todas as formas de saber, teórico-prática em sua


essência”. (Reale, p. 59, 2002e).

Concebendo o Direito como uma experiência histórico cultural, Reale defendia uma visão
pluralista, encarando a experiência jurídica (leia-se aqui como o estudo da norma, a Dogmática
Jurídica), a partir do que tinha sido separado, no caso, o mundo de valores do Direito concebido
pelo método da lógica, anulando os fatores da cultura que formavam este. É preciso como chamava
atenção ‘separar sem distinguir’, os elementos não se anulavam, se implicavam, eram irredutíveis,
argumento que Reale chamava muita atenção. Insistentemente com o olhar voltado nas condições
da Dogmática jurídica, o que faz a norma, esta carrega algo substancial de uma dada sociedade num
dado momento histórico, etc. Era preciso adentrar o plano histórico, da sociedade e da cultura,
para só assim desvendar o que marca o Direito como ciência axiológica, e não meramente uma
ciência normativa. Por isso é que se deve “transcender a experiência, sem perder de vista a linha do
horizonte experienciável, e sem conflitar com ele, eis uma diretriz essencial à metafísica crítica, cujo
cultor, por assim dizer, afronta o transcendente como o astronauta que, no deslumbramento dos
espaços cósmicos, não se olvida do nosso “mísero planeta”, a que se refere Dante”. (Reale, p. 60,
2002e)

Dimensões ou ângulos diferentes: teoria tridimensional

A Teoria tridimensional de Miguel Reale é uma visão do Direito que pode parecer à primeira
vista uma visão que desautoriza os aspectos lógicos da norma (Dogmática Jurídica). O que fica em
evidência quando analisamos os trabalhos jurídicos é a visão filosófica, trazendo a história e a
estrutura social como fundamentais para feitura das normas, que se implicam com fatos e valores.
É bem verdade que críticas não faltaram as interpretações do Direito, este sendo visto por filósofos,
historiadores, economistas ou legisladores. Como nos lembra Reale, era o momento onde o Direito
como objeto de estudo foi concebido à luz do método naturalístico, prevalecendo o olhar sempre
particular do sociólogo, do historiador ou de algum filósofo, poucos eram os especialistas da área.

A Escola de Sociologia francesa encabeçada por Geny se perguntava por um Direito


público esquecendo-se que este era apenas uma ‘forma de Direito’, rente a essa discussão brotava
a questão da ‘monogenese jurídica’, ou seja, qual a origem do Direito? Questão ampla, mas que merece
nossa atenção para assim clarear as críticas de Reale, desenvolvia a noção de um Direito, de uma
área de Direito sendo nada mais que um capítulo de Sociologia. O sociólogo estudava o Direito
tendo em vista os fatos, mas nem todos os fatos sociais se transformavam em fatos jurídicos.
503

Grosso modo, essa era a visão de sociólogos marcados pela crença no conhecimento a partir dos
fatos.

A Escola Técnico Jurídica que tinha como preocupação a investigação das normas do
Direito (interpretação, construção e sistematização), se desenvolvia centrando suas atenções na
Dogmática jurídica, ou seja, não se preocupava como o meta-jurídico, os possíveis elementos
formadores das normas eram desprezados, os valores, a história e a cultura eram desconsiderados.
O pragmatismo, o instrumentalismo, em meio a visão positivista integrava a concepção sobre o
Direito. Embora Reale, o que parece contradição, reconheça que Exegetas e Pandegistas foram
fieis as leis, interpretando aquilo que ‘viam nos textos’, o jurista não desmerece a longa tradição
positivista que de alguma forma mirou aspectos fundantes da ciência jurídica.

A Escola Histórica, no olhar de Reale, como as demais interpretações elencadas


consideravam mais os aspectos lógicos, deixando na penumbra elementos constituintes da
‘experiência jurídica’, que tem nas normas seu ponto máximo. O Direito era visto segundo Reale,
ora a partir dos fatos, ou propriamente das normas, que se por um lado invadia a estrutura social
buscando a fundamentação do ordenamento jurídico, por outro, não podia esquecer seu aspecto
de técnica. Reale como jurista e renomado intelectual da área jurídica não despreza os aspectos
lógicos que marcam os ‘modelos jurídicos’, propõe que o Direito em sua dinamicidade traga os
elementos de sua dialética, uma dialética onde os valores são fundamentais. Reportando a Recaséns
Riches, cuja visão sobre as normas se estendia, fugindo à análise normativista, reduzindo sempre
Direito a normas, salientava

A experiência jurídica, porém, não corresponde apenas a uma fase ou momento


final e decisivo de verificação de normas e institutos jurídicos, - como se poderia
pensar em termos de abstração intelectualística -, porque ela, como processo
concreto e totalizante, ao mesmo tempo que comprova atos normativos, pondo-
os em prova, em função de objetivas conexões de sentido, vai também
desvendando e gerando novas soluções normativas. É por isso que, com razão,
Recaséns adverte que a experiência jurídica opera como fator ou como fonte na
geração e no desenvolvimento do direito em termos gerais, e na produção das
normas jurídicas de toda espécie, - genéricas, particulares e individualizas -; e
também como estímulo e diretriz orientadora na crítica estimativa e na filosofia
dos valores jurídicos. (Reale, p. 35, 1992d).

Uma vez concebendo a inevitabilidade do Direito, donde a exigência natural ordenativa,


daí o sentido dos pormenores da norma, do ordenamento jurídico, como sua estrutura e evento;
no que concerne aos aspectos lógicos era preciso vigência e eficácia, Reale escrevia que se perdeu o
Direito como experiência, querendo dizer que as interpretações deste se deram de forma ab extra,
como se as normas surgissem por elas mesmos. As normas recebem sim sua conotação jurídica, é
504

preciso atentar-se para os aspectos lógicos evidenciando a marca dos elementos indispensáveis à
norma, mas essa jamais perde de vista o conteúdo, que por sua vez está ligado as relações complexas
emaranhadas dos valores, pois “O Direito, sendo afirmação e exigência dos valores, não é mero
resultado da pressão dos acontecimentos sociais, mas resulta de múltiplos elementos, entre os quais
os fáticos são condição necessária, mas não suficiente à formação do enunciado normativo”. (Reale,
p. 325, 1999c).

Há algo que extrapola os enunciados, na linguagem técnica da Jurisprudência se chama


fatores metajurídicos, que interessa ao jurista, como interessado na aplicação da lei. Essa é a grande
crítica de Reale, a ‘experiência jurídica’ (os ‘modelos jurídicos’) reduzira-se a preceitos lógicos, a
meros enunciados que perdiam as bases de sua própria razão de ser. Reale não está preocupado em
análises dogmáticas, mas sim com o conteúdo que essas apresentam, sempre relacionadas a homens
que vivem em meios a seus semelhantes, e que por essa razão, ensejam uma sociedade coberta de
significados, que dá sentido às suas respectivas condutas.

Direito há desde que existe o homem, que vive envolto em seu meio social guiado por algo,
existe sempre interação do homem com algo exterior, daí Reale falar em experiência jurídica espontânea,
espécie de Direito pré-categorial. Não se trata de conceber por exemplo, um certo grupo como
primitivo tendo como parâmetro a ótica civilizada, uma vez que interpreta um determinado
fenômeno tendendo sempre a evolução. Juntamente com as análises consideradas abstratas, pairou
uma ‘Jurisprudência dos conceitos’, agora o critério evolucionista retardava um olhar sobre o
Direito como experiência histórica

A ideia de que todos os acontecimentos sociais obedecem a um processo


evolutivo crescente, a partir de dados originários de caráter provisório,
integrandos e superados no decorrer da história, graças ao constituir-se de formas
cada vez mais alta de organização social, não era de molde a suscitar interesse
pelos elementos espontâneos e imediatos da vida jurídica, para reconhecer a sua
validade própria e a sua função constante, não obstante as objetivações da ciência.
(Reale, p. 39, 1992d).

De postura contrária a lógica evolutiva convicta de que os fenômenos tendiam sempre às


formas ‘evoluídas’, cujos os resultados eram sempre os mesmos, a visão evolucionista levou os
interpretes do Direito a uma visão unilateral, a considerar este a partir de sua natureza dogmática,
ponto central das críticas de Reale. Quando não era a partir da norma, era a partir dos fatos que o
Direito era concebido, sendo necessária uma mudança no ângulo, era preciso visualizar o objeto
não superpondo fatos e valores, como numa espécie de superposição, mas sim entendendo que
505

estes se implicavam, eram produtos de uma ‘dialética aberta e concreta’ abrindo-se cada vez mais
ao mundo da vida (Lebenswelt).

As interpretações jurídicas, embora receba de Reale suas contribuições, e no que tange a


enxergar o Direito como experiência concreta, o intelectual embora critique as escolas histórica, de
exegese, pandectistas, presos ao positivismo jurídico, ressaltamos que as interpretações segundo o
jurista se limitam a entender o Direito como norma, sendo indispensável uma visão global, integral,
tornando-se cada vez mais elástico. Reale lutava para a concepção de uma Jurisprudência
desapegada das certezas formais e de critérios abstratos. Mirando a experiência cultural e histórica,
aplicava por assim dizer as especulações filosóficas (as condições transcendentais), no plano
empírico, em busca da infraestrutura do Direito. Daí suas indagações sobre o objeto do Direito e
seu método.

Reale chega a malha social, realizando uma espécie de antropologia filosófica. O Direito é
uma experiência espontânea, inerente a relação do homem com o mundo, uma correlação
transcendental

Não resta dúvida que as ações que compõem a experiência social imediata, como
o demonstra a análise fenomenológica, apresentam-se como algo de fluído ou de
difuso, mas é inerente uma tendência fundamental à ordem, no sentido de uma
composição de forças. No âmbito da consciência comum surgem a todo instante
e se renovam modalidades de ação e de conduta como “conduta jurídica”,
segundo, segundo plexos axiológicos e enlaces normativos, vividos em sua
espontânea imediatidade, sem subordinarem a critérios ou a categorias da ciência,
e sem, por outro lado, representarem, meros reflexos ou elaborações
inconscientes de prévias tipificações científicas, difusas imperceptivelmente nas
tramas dos hábitos e costumes sociais (Reale, p. 42, 1992d).

O método apontado pelo jurista para analisar a ‘experiência jurídica’ era a fenomenologia
jurídica, método que tomou de Husserl. Tratava-se se um novo transcendentalismo, que nada mais
era que a visão crítica herdada de Kant, mas aplicada agora no terreno da práxis, das relações
bilaterais entre o homem e o mundo, levando a um ponto de partida seguro, que considerasse o
conteúdo das normas, uma vez que estas carregavam a complexidade dos fatos, dos valores, que
só diante de uma visão tridimensional seria possível entender o Direito como experiência histórica,
relevando os valores e as necessidades dos homens no espaço e no tempo, somado as peculiaridade
históricas e as objetivações do espírito.

A inevitabilidade do Direito não tem nenhum apelo autoritário no sentido de pregar a


indispensabilidade dessa, suas reflexões vão de encontro à normas desvinculadas dos conteúdos,
esses se encontram no amplo quadro da cultura, da vida dos homens sempre são guiados por algo,
que possuem um norte, vivem um mundo onde seus atos são produtos de algo exterior, mas
506

surgido da correlação entre seus Eu e o mundo. O Direito assoma em Reale como lampejo cultural,
é sua experiência primeira, integra sua intuição, é um espelho onde este é apenas uma das
manifestações do espírito dentre tantas outras criações humanas

Se improcede afirmar-se que a experiência comum nos deixa no limbo das


intuições fragmentárias e contraditórias, pois já vimos que há sempre certa ordem
ínsita em todas as modalidades de ação, - toda valoração implicando a postulação
de fins, toda Axiologia pondo uma Teleologia -, não se deve esquecer que a
experiência jurídica, por ser fruto de uma exigência fundamental de ordem,
envolve sempre certa medida ou proporção, isto é, uma ratio, que outra coisa esta
palavra não significa, em suas raízes, senão cálculo, conta, método, regra,
desenho, causa.
Ora, se no plano da experiência natural a razão assume em si e ordena, segundos
leis e princípios seus, o material da intuição sensível, explicitando a ordem
pressuposta da natureza, do mesmo modo nos domínios das ciências da cultura,
a razão compreende e ordena o material da intuição axiológica, emergente da
práxis, dando-nos o sentido concreto do todo.
A essa luz podemos afirmar, com Ernst Cassirer, que “a crítica da razão torna-se
a crítica da cultura”. Ela “procura compreender e demonstrar como cada
conteúdo de cultura, tão logo seja mais que mero conteúdo isolado, tão logo seja
situado em um princípio universal de formas, pressupõe um ato original do
espírito humano”.183

Ligada a tradição do neokantismo, Cassirer elabora questionamentos oriundos da premissa


maior do transcendentalismo, que é associar a realidade, seja empírica ou apenas pensável, apenas
possível no plano abstrato. Remetendo sempre à tradição das escolas mais importantes orientadas
por uma nova espécie de crítica, como as de Marburg e de Baden, “Cassirer, sobretudo na sua
primeira fase, é considerado, por muitos, como “o mais puro e perfeito representante do
neokantismo de Marburg” (Erdmann/Clemens, em Esboço da História da Filosofia) ou como “o
terceiro mais importante expoente da Escola de Marburg...que nas suas obras históricas e
sisteméticas talvez tenha proporcionado à doutrina neokantiana a expressão mais aguda, precisa e
atualmente mais eficaz” (Rosenfeld, p. 14, 1992).

Reale inteiramente preocupado em apontar os elementos que constituem as normas, no


caso, os conteúdos, investe no mundo do ser, por demais complexo, interessado primeiramente na
linguagem, ou seja, num ponto de partida para que daí seja possível entender/compreender o eu
no mundo. Rosenfeld é enfático quando escreve

183 Em nota de rodapé pontuava Reale: Não me parece plausível dizer-se que a “experiência jurídica é um estádio
epistemológico anterior ao conhecimento totalmente compreensivo, porém conhecimento enquanto episteme, ou seja,
enquanto constância, distância do objeto jurídico em relação a nós” (Sanchez De La Torre –Em torno a la Ciencia Jurídica,
1962, pág.67) Quer no tocante à Sociologia Jurídica, quer quanto à Jurisprudencia, as respectivas elaborações constituem
elementos integrantes da experiência jurídica e nela e por ela se aferem, mesmo porque, como bem pondera o citado autor, a
“experiência jurídica depende da conexão entre relação intersubjetiva e função jurídica dentro da sociedade global”,
caracterizando-se a investigação atual por “considerar o vivo como um todo” (loc.cit.; cf, outrossim, Sociologia del Derecho,
cit., págs.23 e segs). Reale, Miguel. O Direito como experiência. Ibidem. p.48).
507

Sendo cada forma simbólica um modo específico de ver, uma direção ou enfocação
mental sui generis, Cassirer procura determinar neste ensaio os modos peculiares de
configuração e informação que se manifestam na linguagem e no mito. A hipótese de que
a análise se nutre é a de identidade parcial da estrutura da consciência linguística e da
consciência mítica e da sua radical diversidade em relação à consciência científica. O
ensaio é, portanto, em essência, uma indagação sobre a função e a lógica específicas dos
conceitos (primários) da língua e do mito, apresentados como profundamente distintos
dos conceitos cognoscitivos elaborados pelas ciências. (Rosenfeld, p. 14, 1992).

Frente o mundo difuso do homem a sua volta, onde arte, ciência e religião são expressões
ainda não logicamente orientadas, Reale segue os passos de Cassirer, entendendo a lógica natural
do homem em relação ao mundo que os cerca. É extremamente interessante o fato de ser um
homem de ciência, conhecedor das diversas Teorias do conhecimento, Reale considera o mundo
‘irracional’ não no sentido de poder ser enquadrado nos cânones epistemológicos, mas sim de ter
sua lógica própria, “poderia parecer que à medida que se processam e se apuram as objetivações,
dá-se o alheamento do espírito em relação ao mundo, assim como o divórcio da experiência
cotidiana. Esse é, sem dúvida, o pecado mortal da ciência, a qual corre sempre o risco de encantar-
se com as suas categorias lógico-formais, convertendo-as em realidades absolutas, seccionadas as
raízes que a prendem ao fecundante húmus da vida comum”. (Reale, p. 49, 1992d).

Nesse sentido, como o Direito é antes de tudo a correlação entre os homens e o mundo a
sua volta, com seus signos que dão ‘valor’ as coisas, a ‘experiência jurídica’ nada mais é que uma
exigência fundamental de ordem,

o essencial é reconhecer que todas as expressões da cultura, como sínteses


ontognoseológicas, isto é, subjetivo-objetivas e teórico-práticas -, se atualizam no
concreto da experiência histórica, segundo uma dialética de complementaridade;
e obedecem a um projeto comum da espécie humana, como projeção do valor
universal da pessoa, que é o valor –fonte de todos os valores, e tornada possível
pela subjetividade transcendental doadora de sentido, visando a subordinar a
natureza a seus fins, através de formas que constituem renovadas tentativas de
compor e harmonizar o espírito e o mundo. (Reale, 49, 1992d).

Com essa visão culturalista, Reale trazia a reflexão das particularidades sociais, e por que
não dizer, dos homens, interagindo entre si, as necessidades da vida cotidiana como qualquer
movimento de apreensão da realidade ou de conhecimento eram formas espontâneas de ordenação
da vida humana. A ideia de ‘objetivações científicas’ perpassa a concepção do Direito, como uma
experiência que antes de ser juridicamente qualificada encontra-se enraizado em qualquer grupo
social, até atingir seu ponto máximo, com a racionalização das qualificações jurídicas no Estado
Moderno. Reale concebe o Direito como coercitivo sim, pois este deve ser compreensivo-normativo,
para ser aplicado conforme os fins valorizados por determinada sociedade, mas trata-se de modelos
jurídicos que carreguem o ‘conteúdo’ axiológico peculiar de cada sociedade.
508

Não é sem razão que certas leis ainda que vigentes perdem força de lei, uma vez ficarem
vazias de sentido, pois as necessidades sociais (axiológicas) mudam, as leis algumas vezes perdem
sua eficácia porque não encontram terreno na estrutura social. Perscrutando o Direito do ponto de
vista concreto e não abstrato, Reale estendia sua dialética ao ponto de utilizar o método
fenomenológico, “essa descrição objetiva” do direito só pode ser rigorosamente realizada mediante
o emprego do método fenomenológico, que nos permite afirmar que todo fenômeno jurídico se reduz a
um fato (econômico, geográfico, demográfico, etc), ordenado, normativamente, segundo
determinado valores”. (Reale, p. 52-53, 1992d).

Face a espontaneidade da ordenação, o Direito era inerente ao espírito humano, “em


verdade, as doutrinas e os sistemas jurídicos assinalam, através de seu encadeamento histórico total,
a compreensão da subjetividade universal da espécie humana no concernente aos problemas do
direito do país tais como vem sendo vividos no decurso do tempo, como parte do projeto comum
a que aludi à página 49” (Reale, p. 53, 1992d). Reconhecendo alguns sociólogos, historiadores do
Direito, como também alguns jusfilósofos, Reale salientava que o que as teorias primavam era pela
dialética genérica e abstrata, sendo necessário uma ‘dialética da complementaridade’. O que
prevalecia era a dialética que olhava para a norma ou o fato, era preciso considerar o complexo
axiológico se implicando com as normas e os fatos, um processo denominado de dialética da
complementaridade. Os valores se mostram de fundamental importância para a compreensão de
Reale, pois os fins nada mais são que os meios, que possuem sua razão de ser por buscarem a
realização dos valores, sendo o bem comum e a justiça social, de fundamental importância, “faz-
me dizer que o direito, antes de ser “querer querido”, é “querer valorado”, de sorte que que a
imperatividade jurídica não é de caráter voluntarista, mas sim axiológico: resulta, isto é, do processo
de objetivação dos valores que se realiza através de manifestações concretas da vontade” (Reale,
246, 1992d) Mas, qual o método de Direito para Reale,

Como Husserl nos esclarece, a atitude natural da ciência é sempre realista, no


sentido de que não reduz, nem subordina a realidade a condições subjetivas, nem
faz da correlação sujeito-objeto um problema essencial e prévio. Ao contrário, a
Ciência Positiva, como ciência de realidades, parte do pressuposto metodológico
da autonomia do objeto, como dado empírico, cujas leis procura explicar. O
mesmo ocorre no domínio da Ciência Jurídica, o que torna compreensível a
natural tendência do jurista, enquanto tal, no sentido de acolher com mais
simpatia as interpretações filosófico-positivas do direito, aquelas, isto é, que não
põem qualquer distinção essencial entre Ciência e Filosofia. Sob esse prisma, já
foi dito com razão que o “positivismo jurídico” é o “lugar geométrico” da
mentalidade do técnico ou prático do direito (Reale, p. 54, 1992d)

Com tamanha estratégia epistemológica, Reale assume a posição de buscar conhecer o


objeto do Direito, talvez essa postura se dê devido a sua profunda análise, seu esforço, seus diversos
509

trabalhos afim de construir bases sólidas para a Jurisprudência. Essa postura se deve porque embora
reconheça a importância do pesquisador, do ‘coeficiente pessoal’, Reale é acorde quanto a um
método para o Direito, por se tratar de uma ciência do espírito, essa não pode estar sujeita aos
aspectos volitivos. O legislador, o técnico, historiador ou sociólogo do Direito estão imersos num
mundo de valores, tem sua participação na construção/interpretação do conhecimento, mas é
acima de tudo o sujeito que lê a partir do método correto a ‘experiência jurídica’.

Dividindo de forma esquemática as disciplinas auxiliares para averiguar a jurisprudência, o


Direito integrava na Teoria Geral do Estado, enquanto avistava o fenômeno do Poder do ponto de
vista jurídico em função das condições do espaço e do tempo. O Direito estava presente na história,
desde que o homem surgiu um conjunto de signos e sinais os ordenou, arregimentando estes
homens em suas relações intersubjetivas, onde a ‘bilateralidade’ marcou a relação entre essas tais
subjetividade e a relação com o mundo.

Referências

Reale, Miguel. Filosofia do Direito. 19º. São Paulo: Saraiva, 1999.

______. Lições Preliminares do Direito. 27º Ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Teoria Tridimensional do Direito. 5º. Ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

______. Teoria do Direito e do Estado. 5º. Ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Teoria Tridimensional do
Direito. 5º. Ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

______. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2º. Ed. São Paulo, 1992.

Rosenfeld, Anatol. Cassirer. In: Cassirer, Ernst. Mito e linguagem. 3º. Edição. São Paulo:
Perspectiva, 1992. (Digitado).
510

Narrativas orais do povo Xavante de Marãiwatsédé como prática


decolonial na luta por memória e reparação

Clarisse Drummond*

Resumo: Essa comunicação oral – apresentada no IX Encontro Regional da ANPUH – DF –


abordou as narrativas orais do povo Xavante de Marãiwatsédé como prática decolonial na luta por
memória, justiça e reparação. A violência de estado contra o povo Xavante de Marãiwatsédé
durante o regime militar deixou consequências estruturais para essa população que perduram até
hoje: pobreza, acesso precário à água potável e a serviços de saúde e uma luta interminável pelo
direito de viver em segurança na própria terra. Agentes ativos de sua própria reparação, o povo
Xavante de Marãiwatsédé realizou a estratégia de “colheita de testemunhos” dos sobreviventes à
remoção compulsória para dar início a um processo judicial de reparação.

Palavras-chave: povos indígenas, Brasil, Xavante de Marãiwatsédé, reparação.

A reparação pelas violências de estado cometidas contra os povos indígenas é o tema da


pesquisa comparada de doutorado que desenvolvo no Departamento de Estudos Latinoamericanos
(ELA/UnB), desde 2016. Uma das questões que orientam a investigação é entender como e até
que ponto, tais medidas são eficazes em equacionar a dívida histórica dos Estados nacionais em
relação aos povos indígenas184. No Brasil, o andamento deste processo vem apontando para uma
atualização do indigenismo como "ideologia de dominação" (Teófilo da Silva, 2012), ou seja, para
uma atualização da "filosofia social do colonialismo", apesar de sua importância no combate à
impunidade que impera sobre os agentes do Estado. Para o caso do Brasil, analiso o caso dos
Xavante de Marãiwatsédé, autodenominado povo A'uwẽ, da região Nordeste do Estado de Mato
Grosso.

No ano de 1966, um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) pousou na Terra Indígena
Marãiwatsédé – uma área de 165 mil hectares, muito cobiçada por setores do agronegócio brasileiro
e internacional, localizada entre as cidades de Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus
do Araguaia. 263 Xavante foram convencidos a entrar no avião e a sair de suas terras tradicionais.
Os Xavante não sabiam para onde estavam sendo levados. Acreditavam que dariam um passeio e

* Mestre em Política Social (PPGPS/SER/UnB) e candidata à doutora pelo Departamento de Estudos


Latinoamericanos (ELA/UnB).
184 A pesquisa é uma comparação entre o Brasil e o Canadá sobre o tema do (a)pagamento da dívida histórica em

relação aos povos indígenas de ambos os países. Para o contexto brasileiro, o caso dos Xavante de Marãiwatsédé foi
abordado e, para o contexto canadense, abordo a situação do povo Lac Seul First Nation, que teve suas terras tradicionais
inundadas para a construção de uma hidrelétrica, na década de 1930.
511

retornariam às suas casas. Foram removidos para a Missão Salesiana de São Marcos/MT, localizada
a 600 km de distância de sua terra tradicional. Dentre as estratégias de convencimento utilizadas
para facilitar a remoção, se destacou a tática de levar as crianças antes e separadamente de seus pais.
O Ministério Público Federal (MPF) classificou a prática como genocídio. Segundo consta da ação
reparatória proposta pelo MPF,

O grupo foi transferido para uma área de várzea, que permanecia inundada oito
meses por ano. Logo, impedidos de desenvolver as atividades produtivas
necessárias a subsistência, sofrendo com a grande quantidade de mosquitos na
região, muitos adoeceram e acabaram falecendo, ao longo dos três anos em que
permaneceram no local (MPF, 2016, p. 16).

Imediatamente após a remoção, 63 Xavante vieram a óbito em razão de uma epidemia de


sarampo que acometeu grande parte do grupo. A remoção total foi concluída em 1972 e alterou a
dinâmica de obrigações rituais, trocas matrimoniais, regras de reciprocidade, alimentação e saúde,
além de intensificar a rivalidade com outros grupos Xavante que já habitavam a região de São
Marcos. Os mortos foram sepultados em valas comuns e a violência sofrida nesse período ainda é
um trauma vívido na memória dos sobreviventes.

O retorno dos Xavante a Marãiwatsédé ocorreu apenas em 2012, mesmo sem a completa
desintrusão, judicialmente determinada, dos ocupantes de má-fé. A mobilização dos Xavante de
Marãiwatsédé para pedir reparação pela remoção forçada de suas terras começou a ser gestada em
2010.

Rafael Were, "porta-voz" do Xavante (que se opõe à idéia de líder ou liderança),


desenvolveu uma técnica que ele denominou de "colheita de testemunhos". Em oposição à ideia
de coleta de dados, comumente realizada cientistas sociais, a “colheita” se refere à possibilidade de
extrair as narrativas orais dos sobreviventes de forma interativa e delicada. A ideia para esse trabalho
começou quando Rafael e seu pai, antigo Chefe da Aldeia Huúhi, receberam a visita de um
advogado especializado em anistia e reparação. Na ocasião, Rafael e seu pai decidiram agir de forma
ativa para pedir reparação judicial ao povo Xavante pela violência praticada durante o regime
militar. Rafael planejou uma série de caravanas para visitar as aldeias, interagir com os sobreviventes
e "colher os testemunhos" dos anciãos. Para tanto, Rafael montou uma equipe composta de
Xavantes, três indígenas do povo Guarani-Kaiowá e um Terena, da Associação Cultural dos
Realizadores Indígenas (ASCURI). Em 2014, foram realizadas três expedições que resultaram em
mais de trinta horas de material audiovisual, cerca de cinquenta depoimentos e quase duzentas
páginas de material transcrito.
512

Em 2015, Rafael e sua esposa, Ana Paula Sabino, me convidaram a colaborar


voluntariamente com a tradução e transcrição para o português dos depoimentos colhidos.
Trabalhamos de agosto de 2015 a maio de 2016 em uma metodologia que envolveu um processo
de colaboração e diálogo em constante remodelação.

Para os Xavante, ao contrário da coleta de dados tradicional, a "colheita de depoimentos"


ocorre como resultado direto de uma interação equilibrada com os emissores das narrativas, os
sobreviventes Xavante. Combinando técnica e sensibilidade, aliada a uma relação de confiança
previamente existente entre os sujeitos, a qual é derivada da consanguinidade e do
compartilhamento de linguagem, cultura e história, a "metodologia de colheita" rompe as
assimetrias do trabalho antropológico estabelecendo uma interação verdadeiramente dialógica e
simétrica, que equilibra mundos e excede a autoridade imposta pelos pesquisadores convencionais
(Cardoso de Oliveira, 1998). Pesquisar os problemas sociais enfrentados pelos povos indígenas é,
muitas vezes visto, como uma tarefa para os antropólogos para realizar, mas os próprios indígenas
têm suas próprias prioridades de pesquisa. Linda Smith (1999) explica que a abordagem indígena
de pesquisa envolve protocolos, valores e comportamentos culturais e o compromisso de "relatar"
o conhecimento aprendido e seus resultados como etapas da metodologia. A abordagem indígena
de pesquisa também pressupõe que as informações acessadas serão dignas de validade e
confiabilidade em seus próprios termos, requerendo, portanto, que as questões de pesquisa estejam
bem definidas e ancoradas em ferramentas teóricas. Se por um lado, a metodologia indígena
promove a desconstrução das práticas acadêmicas ocidentais, isso não implica a total rejeição da
teoria, pesquisa ou conhecimento ocidental (Smith, 1999).

Resultados preliminares

Recentes e importantes conquistas no campo dos direitos dos povos indígenas foram
obtidas com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988 – o direito à autodeterminação e a
posse sobre as terras tradicionalmente ocupadas – contribuindo para a superação jurídica de
paradigmas assimilacionistas e integracionistas que prevaleceram como diretriz ideológica até o
século XX. Com base nesse reconhecimento constitucional, povos indígenas começaram a exigir
reparações por vários tipos de violência sofridas durante o processo de colonização e em regimes
não-democráticos. Um desses casos é a luta do povo Xavante de Marãiwatsédé, analisado pela
Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ao trazer este caso como um exemplo de prática
decolonial, destaca-se o papel dos próprios Xavante em assumir a responsabilidade de recontar
uma história invisibilizada pela "colonialidade do saber, do poder e do ser" (Quijano, 2000).
513

Mesmo que a pesquisa ainda esteja em fase final de escrita, já é possível concluir que
quaisquer reparações, para serem eficazes do ponto de vista dos indígenas, não podem prescindir
da apreensão dos processos específicos de violência aos quais cada povo foi submetido, nem do
reconhecimento das histórias de sofrimento de cada sobrevivente, contadas em seus próprios
termos e na língua materna.

Estamos falando de povos cujos territórios foram invadidos e que foram categorizados
como primitivos em contraste com o cidadão nacional, civilizado, moderno e desenvolvido; de
uma dominação secular que alude a processos de longa duração (Braudel, 2005) e a múltiplos níveis
de genocídio e exploração econômica. O "eclipse do outro" (Dussel, 1993) reduziu alteridades
socialmente diversas a categorias homogêneas e totalizantes – indígenas, negros, métis, orientais,
amarelos, brancos – desconsiderando-os como seres humanos ou tratando-os como seres humanos
de segunda classe (Quijano, 2005, Castro-Gomez e Grosfoguel, 2007).

Existe um consenso tácito, quase uma crença, de que o judiciário é uma arena sensível e
responsiva às formas de viver e pensar dos povos indígenas. No entanto, pesquisas mostraram que
os espaços judiciais não são tão acolhedores quando se trata de considerar as suas memórias e
narrativas orais. De acordo com Merlan (2009), embora o judiciário seja um repositório seguro dos
direitos coletivos dos povos indígenas, sempre que uma disputa desafia a perspectiva essencialista
e positivista do direito, prevalecem conceitos e valores que contribuem para demarcar a
continuidade dos marcos coloniais.

No Brasil, Teófilo da Silva mostra que a arena judicial reitera frequentemente a


"invisibilidade étnica", quando o Estado não reconhece certos povos como grupos coletivos
distintos, e a "invisibilidade legal", quando o Estado não reconhece os direitos coletivos de certos
grupos étnicos (Teófilo da Silva, 2007). Para trazer um breve contraponto comparativo, ao abordar
a questão do não reconhecimento de narrativas orais indígenas no Canadá, Miller (2003) enfatiza o
importante papel desempenhado pela antropologia ao revelar a lógica por trás das políticas e
estratégias governamentais, que acabam por eliminar a diversidade étnica através de um processo
de evitar reivindicações indígenas e povos indígenas, não recebendo-os e dialogando com seus
movimentos. Também Miller e Menezes (2015) mostram que as experiências indígenas são
transformadas em questões antropológicas e que os antropólogos devem tentar comunicar aos
tribunais algo da realidade da experiência indígena. Por isso, comparar experiências de violações de
direitos indígenas pode ajudar a identificar os obstáculos que as democracias liberais e o próprio
judiciário impõem aos povos indígenas, dado que precisam provar a violência sofrida de uma forma
que não corresponde às suas formas de registro.
514

O esforço antropológico de análise do tema da reparação por “dívida histórica” envolve


uma reflexão sobre a dimensão moral da violência interétnica (Oliveira, 1998). Na ideia de justiça
e reparação estão implícitas uma dimensão moral e simbólica referente ao modo como as
identidades ofendidas atribuem significado às experiências de violência. A dimensão simbólica "vai
muito além do que é expresso em qualquer código de direito, ou mesmo nos princípios formais
que norteiam os procedimentos legais e as leis positivas" (Cardoso de Oliveira & Oliveira, 2011, p.
457). Neste sentido, tal esforço demanda refletir sobre a atualização do colonialismo dentro das
democracias liberais que proclamam a igualdade não levam em conta os obstáculos que a justiça,
enraizada na tradição positivista do direito, ainda impõe aos povos indígenas na luta por reparação.
Para os Xavante, a colheita do testemunho dos sobreviventes, revivida na memória e contada na
língua A'uwẽ, representa a possibilidade de que as experiências de violência sejam consideradas em
status de igualdade às provas documentais do direito positivo e possam integrar a história na
qualidade de verdade.

Referências

Brasil. Ministério Público Federal. Ação Civil Pública n.º 2766-51.2016.4.01.3605. 2016. Disponível
em: http://www.mpf.mp.br/mt/sala-de-imprensa/Documentos%20para%20link/acp-
maraiwatsede-02-12.pdf

Braudel, Fernand. História e Ciências Sociais. A longa duração. Escritos sobre a história. 2ª edição. São
Paulo: Perspectiva, 2005.

Cardoso de Oliveira, Roberto. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora
UNESP. 1998.

Cardoso de Oliveira, Roberto & Oliveira, Luís Roberto Cardoso. O saber e a ética: a pesquisa
científica como instrumento de conhecimento e de transformação social. In: Ensaios antropológicos
sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

Dussel, Enrique. 1492: O encobrimento do Outro. Petrópolis: Vozes. 1993.

Maldonado-Torres, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un


concepto. In: Castro-Gómez, Santiago & Grosfoguel, Ramon (Coords.) El giro decolonial: reflexiones
para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad
Javeriana, Instituto Pensar. 2007.

Merlan, Francesca. Indigeneity – Global and Local. Current Anthropology. Volume 50, Number 3.
2009.

Mignolo, Walter. La Idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa
Trad.: Silvia Jawerbaum e Julieta Barba. 2007.
515

Miller, Bruce. Invisible Indigenes: The Politics of Nonrecognition. University of Nebraska Press. 2003.

Miller, Bruce Granville & Menezes, Gustavo. Anthropological Experts and the Legal System:
Brazil and Canada. American Indian Quarterly. Vol. 39, No. 4 (Fall 2015), pp. 391-430.

Oliveira, Luís Roberto Cardoso. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista
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Quijano, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of World-System Research. (2):
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___________. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, E. (ed.). A


colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Clacso, PP. 227-278, Buenos Aires. 2005.

Teófilo da Silva, Cristhian. The astonishing resilience: ethnic and legal invisibility from a Brazilian
perspective. Vibrant, v. 4. n. 2. 2007.

__________. Indigenismo como ideologia e prática de dominação. Apontamentos teóricos para


uma etnografia do indigenismo latino-americano em perspectiva comparada. Latin America
Research Review, Vol. 47, n.º 1. 2012.

Smith, Linda. Decolonizing Methodologies: Research and Indigenous Peoples. Revised Edition, 2nd edition.
516

Latifúndio e especulação imobiliária Moura Andrade: ocupação e


expansionismo territorial no processo de colonização de Nova
Andradina-MS

Claudinei Araújo dos Santos


nei-arasan@hotmail.com

Marcelino de Andrade Gonçalves


mandradepte@hotmail.com

Resumo: O presente projeto de pesquisa busca compreender os processos que sustentam a tese de que o
colonizador Antônio Joaquim de Moura Andrade foi um expansionista e teve a colaboração do Estado
Nacional para confirmar seu poder econômico e sociopolítico na formação de uma nova cidade no Centro-
Oeste brasileiro na metade do século XX com o objetivo de ampliar seu poder de colonização e expansão
por meio da apropriação de terras por meio da “Marcha Para Oeste”, “ocupando os vazios” podendo ser
compreendido como atributos a especulação fundiária. A pesquisa deverá se desenvolver por meio das
análises literárias, documentais pessoais e oficiais, jornais de época, imagens e fotografia, tomando a história
oral como ganho de materialidade metodológica entrelaçada com outros núcleos documentais que possam
capacitar a qualificação procedimental do conjunto da pesquisa. Nesse sentido, o rumo do trabalho
impulsiona a análise do processo de colonização e ocupação de território, para compreender as relações de
poder em determinada localidade.

Palavras-chave: colonização, território, poder, história oral.

Introdução

A opção por esta temática nasceu na graduação, no momento da escrita do TCC intitulado
“A Formação social e territorial de Nova Andradina: o papel da igreja e a política de colonização
(1958-1972)”, a qual se estendeu na pesquisa do mestrado, tendo como título “A Região em
Análise: A Política e a Igreja No Processo De Colonização de Nova Andradina-MS”. Tendo
realizado estas pesquisas, notou-se que há ainda várias lacunas identificáveis e pesquisas possíveis.
É nosso intuito portanto, dar continuidade nestes estudos sobre a colonização promovida por
Antônio Joaquim de Moura Andrade em terras do atual Mato Grosso do Sul, sob a perspectiva da
memória de expressão oral conforme propõe o Núcleo de Estudos em História Oral, Memória e
História Pública – HOMP/UFGD.

É de nosso intuito também mostrar que o filho Auro Soares, senador na década de 1960, é
contribuinte para acesso as terras que possivelmente Moura Andrade teria como especulação
imobiliária, o lucro, o homem fazedor de cidades; seria, pois, um mito, o “Rei do Gado” que será
problematizado – semelhante a um “agiota”, que compra determinados trechos de terras, faz
517

loteamento urbanos e rurais, ressaltando-se que parte das terras são demarcadas conforme os olhos
do dono da empresa colonizadora, causando, nesse sentido, a valorização do espaço que lhe causará
lucro grandioso.

Concomitantemente a esse processo nos aproximaremos da discussão relacionada à


propalada “Marcha Para Oeste185”, que foi um projeto arquitetado pelo então Presidente da
República Getúlio Vargas, do qual Moura Andrade, assim como outros interlocutores dos grandes
latifúndios, receberam apoio político do Estado Nacional para “ocupar os vazios”. Assim, os
“colonizadores” se valeram de intensificações de ações políticas que favoreciam a atribuição de
terras aos detentores do capital, em detrimento de trabalhadores que eram sistematicamente
excluídos dela.

Propõe-se então, o estudo sobre a ocupação territorial do atual município de Nova


Andradina, frente aos processos de Territorialidade186, desterritorialidade e reterritorialidade187,
tendo como suporte as levas migratórias promovidas e incentivadas pelo governo Getúlio Vargas
que alavancou durante as décadas de 1950 e 1960 (período de intensa aquisição e comercialização
de terras no chamado vale do Ivinhema, sobretudo, no atual município de Nova Andradina) –
chama-nos atenção o fato de Moura Andrade adquirir uma fazenda, Baile (1948), e em 1957
começar a lotear tal fazenda, iniciando um processo de especulação imobiliária na região. Cumpre
destacar que tais terras eram de propriedade do povo indígena Ofaié segundo decreto nº 683 de 20
de novembro de 1924. Curiosamente esse decreto teria sido revogado pelo novo decreto nº 1.302
de 8 de maio de 1952 pelo então governador do estado Fernando Correa da Costa, cumpre nesse
estudo procurar buscar as causas dessa revogação pelo poder público estadual, considerando-se
que um dos filhos de Moura Andrade, Auro Andrade era um político de muita influência no cenário
nacional, no ano de 1952 exercia o cargo de deputado federal pela UDN (Dutra, 2012).

E dois anos depois, em 1954, elege-se senador da república pelo partido trabalhista nacional
(PNT). Partimos da hipótese de que tais arranjos políticos e familiares teriam contributos para a

185 A Marcha Oeste foi lançada no ano de 1938 durante o governo do Presidente Getúlio Vargas juntamente com o
Projeto de Estado Novo, colocando em tela a Proposta de Colonizar as terras da Região Centro-Oeste até a Amazônia,
representava a segurança e sobrevivência da nacionalidade independente, representava, igualmente, uma forma de
garantir para o país a reserva de riqueza no interior, ainda não colonizado (Pereira, 1997, p. 118).
186 Pode se dizer que “a territorialidade pode ser compreendida como abstração teórica para território ou ter um sentido

efetivo, tanto material (controle físico), quanto imaterial (controle simbólico, imaginado) e, também, na concepção de
espaço vivido. Pode ser entendida como uma concepção mais ampla que território, sendo tanto propriedade dos
territórios quanto condição para efetivação; territorialidade como sinônimo de território (qualidade inerente) ou, por
fim, territorialidade com sentido distinto de território, sendo vista em duas perspectivas: no âmbito da imaterialidade
(quando se trata de território como algo concreto) e o domínio do vivido e não institucionalizado; e territorialidade
como uma das dimensões de território, a que remete à identidade territorial (Haesbaert, 2014).
187 Ver: Fuini, Lucas Labigalini. O território em Rogério Haesbaert: concepções e conotações. Geografia, Ensino & Pesquisa,

vol. 21, n.1, p. 19-29, 2017.


518

“aquisição” das terras em Nova Andradina a preços “de mercado”, segundo fontes da empresa até
hoje existente no município e que ainda exploram as terras. Nesse sentido, o presente projeto de
pesquisa se apresenta aderente à linha “Sociedade, Política e Representações”.

Não obstante, cumpre-nos analisar, sob o ponto de vista de pesquisa acadêmica, mais
acuradamente uma parte desse processo histórico e, nele, indagar a formação territorial e
econômica do Brasil, relacionada à questão agrária, à política, bem como à posse da terra e a
negação do projeto de reforma agrária que vinha ganhando força no Brasil naquele período.

Antecedentes e justificativa do problema a ser abordado

Esse vivo quadro histórico cabe-nos problematizar, então, o período em questão, bem
como as estratégias notadamente políticas dos governos federal e estadual para um sufocamento
da reforma agrária e distribuição de terras aos pequenos agricultores. Dessa feita, o estudo em
questão se justifica por dois motivos; o primeiro deles é o de desvendar os porquês Moura Andrade
teria vindo para as terras do então Estado de Mato Grosso, levando a segunda parte da hipótese
inicial de que Moura Andrade já teria deixado para trás a alcunha de rei do gado, ganha em São
Paulo. E estaria, na década de 1950, na fase de especulador latifundiário.

É importante compreender que a formação do município de Andradina, no Estado de São


Paulo, ainda na década de 1930, já demonstrava o poder econômico por parte do colonizador189.
O poder que o colonizador havia obtido desde a década de 1930, quando iniciou o seu
empreendimento e a presença de seu filho no Senado da República, foram elementos que
contribuíram para a prosperidade do projeto de transformar a vila em cidade. No ano de 1958,
como resultado das ações de Moura Andrade e dos interesses políticos e econômicos que a família
tinha na época, acontece a emancipação do município de Nova Andradina190.

A pesquisa funda-se, a princípio, na possível ação expansionista de Antônio Joaquim de


Moura Andrade, de forma peculiar, o papel do Estado que corrobora para tais circunstâncias. Nesse
sentido, o aporte teórico já encontrado em trabalhos anteriores coadunando textos relacionados a
compreensão de que para chegar a área onde seria instalado o município de Nova Andradina, o
criador de gado e proprietário da Empresa Moura Andrade, teve “apoio” do Estado Nacional. Há

189 Em nossa dissertação de Mestrado compomos a ideia de que, politicamente, Moura Andrade detinha grande poder
sobre a sociedade brasileira, especialmente simbólico, pois que a alcunha de Rei do Gado era um termo considerável
para um país em que o latifúndio sempre foi o meio mais próximo de determinar as relações tocante a classe dominante
(Santos, 2015).
190 Santos (2015). Dissertação de Mestrado defendida junto ao programa de pós-graduação em Geografia da UFMS,

campus de Três Lagoas.


519

referências bibliográficas que apontam para esse caminho, citamos: Benício Couto Oliveira: A
política de colonização em Mato Grosso, 1937-1945 (1999) ; Claudete Soares de Andrade: Aspectos
da colonização contemporânea no antigo Sul de Mato Grosso; Vila Brasil e o sonho do migrante
(2004), Virgílio Corrêa Filho: História de Mato Grosso (1969); Paulo Roberto Cimó Queiróz: Mato
Grosso/Mato Grosso do Sul: Divisionismo e Identidades (Um Breve Ensaio) (2015), Sedeval
Nardoque: Renda da Terra e Produção do Espaço Urbano em Jales – SP (2007); Pierre Monbeig:
Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo (1984); Alcir Lenharo: A Terra Para Quem Nela Não
Trabalha: A Especulação com a Terra no oeste brasileiro nos anos 50 (1986), obras que retratam
o processo de colonização do Estado de Mato Grosso de forma especial a entender a vinda de
empresas colonizadoras fomentadas pela Marcha Para Oeste.

Neste sentido, analisaremos como política e economia a expansão demográfica, ocupação


e distribuição do contingente populacional pelo território brasileiro, objetiva ocupação e produção
para o Estado Nacional. É possível afirmar também com Menezes (2011), que havia por meio dos
migrantes brasileiros “as necessidades de trabalho e as possibilidades de uma nova vida”,
afugentando-os dos grandes centros, em busca de novas formas de produção e condições de vida.

A pesquisa busca ainda, entender a presença dos povos migrantes dentro do processo de
ocupação territorial e social de Nova Andradina-MS, uma vez ser necessário entender o elo
migratório e a condição demográfica que condiciona a territorialidade a migrantes vindos
principalmente do Nordeste e Sudeste do Brasil. É necessário ainda, analisar os motivos do governo
e do Estado Nacional em aceitar e estimular o processo de colonização. Nesta perspectiva, ajuda-
nos a interpretar algumas questões: qual o interesse de haver uma propagação de políticas
expansionistas chamada “Marcha para o Oeste”? O mapeamento do espaço geográfico
estabelecido após o governo de Vargas nos faz pensar em valorização no espaço e valorização do
espaço (Moraes; Costa, 1987, p. 123). Nesse sentido, tentar-se-á indagar os motivos que o Estado
proporcionava a ocupação de espaços chamados de “vazios”, frente a formação de uma região e
de sua organização espacial compradas do Estado de Mato Grosso.

A organização espacial, segundo (Correa, 1986), é relevante quando se trata da conjuntura


do poder que se instala e pretende-se construir, os corpos do poder não estão aleatórios, de forma
peculiar quando pode ser pensada a especulação imobiliária que envolvia o país em meados do
século XX, havia interesses do Estado, medidos por interesses capitalistas que envolviam as
empresas colonizadoras.

Quando se analisa Marx (2013) e Marx e Engels (2007) percebe-se que o capitalismo é
fomentador econômico-político-cultural-social, elencando que os meios de produção, ocupação e
520

distribuição das posses fundiárias tem fins de lucros valorosos para o Estado Nacional e seus
aliados no processo de dominação e controle social. Ressalta-se oferta/demanda, preço,
classificação, circulação de mercadorias e investimentos não são feitos pelo governo, mas por uma
regulação de mercado, o que coloca em exaltação de análise justamente o poder das Empresas de
Colonização que tinham como preceito muito mais conseguir terras de que qualquer ato patriótico,
discurso a ser analisado diante da Empresa Moura Andrade e a ocupação do território. Declarações
sobre essa conjuntura foram dadas pelo então Governador do Estado de Mato Grosso na década
de 1950. Descrita por Lenharo (1986):

Por sua vez, as terras produtivas não foram transferidas do Estado a agricultores,
para a devida exploração através do trabalho criador. O seu domínio foi dado a
indivíduos que, hoje, delas apoderado, pretendem explorar não as atividades
rurais da lavoura ou da criação, mas explorar aos próprios agricultores que a
desejam para o seu trabalho, e isso mediante transações de enriquecimento
apressado, com o sacrifício do Estado, a presa indefesa em que saciam a
voracidade negocista (Lenharo, 1986, p. 6).

O que se entende frente ao projeto de ocupação de Mato Grosso em meados do Século


XX, pode-se dizer que foi positivo financeiramente para os beneficiários de concessões, uma vez
que é possível entender a ausência de condições contratuais elementares como a medição de área
concedida, deixando espaço para indagações, por exemplo, se as extensões territoriais concedidas
aos donatários das empresas colonizadoras, por vezes foram demarcadas conforme o poder de
mando e condicionados por forças materiais191.

Análise de referencial teórico e metodológico para a pesquisa

Destacamos Correia (1995) em “Coronéis e bandidos em Mato Grosso 1889-1943”, para a


progressão da formação do Estado de Mato Grosso em um período em que os Coronéis,
fazendeiros e bandidos fazem parte da realidade social e territorial e que nos leva a pensar de que
maneira a colonização recebeu influência para o trabalho forçado e a permanência na terra, mesmo
quando o indivíduo tinha por desejo ir embora. É possível utilizar Correia (1969) proporcionando
considerações factuais sobre a História de Mato Grosso, deixando a percepção de analisar o

191É costumeiro ouvir em entrevistas realizadas com antigos moradores de Nova Andradina, que Moura Andrade
realizou parte do processo de demarcação por avião, ainda sendo ouvido, que as terras passaram a pertencer até onde
os olhos enxergavam. Ressaltando que Moura Andrade teria comprado 04 pequenas fazendas ainda na década de 1950,
que tornaram-se na criação do município em 4.776 Km² no ano de 1958. Entrevistas e Arquivos Pessoal do
Pesquisador. Ver: Santos (2015).
521

processo migratório que compõe de forma especial, os povos que chegam nas terras do Estado de
Mato Grosso.

Nos textos de Andrade (2004) e Bianchini (1998), também é interessante procurar como
base de sustentação a compreensão da presença do migrante que compõe a colonização de Nova
Andradina, demonstrando a vinda de pessoas de diversas regiões do país e certamente colaboraram
com mão de obra, presença física e simbólica, pois também implementam suas diversidades
culturais, religiosas, alimentares e fios condutores para a presença do poder de conduzir a
sociedade, ora pela força física, ora pela força dos meios simbólicos.

É a articulação materialista da história e do espaço. Não basta erguer fatos históricos, mas
historicizar a geografia do tempo e do espaço frente a ocupação e colonização fomentada pelo
Estado nas décadas de 1940/1950. Isso nos remete a pensar sobre a valorização do espaço regional
e o acumulo do capital, possivelmente proporcionado aos interesses do estado, nos escritos de
Francisco de Oliveira (1993, p. 25), observamos a fala de Paul Baran, em conferência pronunciada
no nordeste que, “não é o planejamento que planeja o capitalismo, mas é o capitalismo quem
planeja o planejamento”.

Em outras palavras, é possível questionar a colonização, ocupação e urbanização das


cidades que acontecem por meio do interesse do capital. Sugere-se a indagar quais eram os intuitos
das classes dominantes no país, quanto ao uso das grandes empresas possivelmente colonizadoras
sobretudo, os laços e interesses dos donos das empresas colonizadoras. Também é o que sustenta
Lenharo (1986a), “que aos estímulos econômicos juntaram-se também os políticos, isto é, as ações
governamentais comumente englobadas sob o slogam da “Marcha para Oeste”.

Em Queiróz (2010) observamos uma análise do que foi esse processo

Tal processo relacionou-se, também, em grande medida, com as políticas da


referida “Marcha para Oeste”, lançada pelo Ditador Getúlio Vargas em 1938 e
que se desdobrou, entre outras coisas, num esforço de “nacionalização” das
extensas fronteiras sul-mato-grossenses com a Bolívia e sobretudo, com o
Paraguai (Queiróz, 2010, p. 122).

Nesse sentido, entende-se que coadunaram direcionamentos do Estado com perspectivas


das empresas colonizadoras, surgindo a experiência de colonizadora oficialmente ligadas a esfera
governamental, citando neste caso a CAND – Colônia Agrícola de Dourados, os grandes
loteamentos formados pela Companhia Viação São Paulo-Mato Grosso, Moura Andrade e pela
Sociedade de Melhoramentos e Colonização (SOMECO), fundando cidades e em períodos um
tanto quanto semelhantes e/ou próximos (Ziliani, 2010).
522

O trabalho do qual propomos pesquisar está ligado aos novos problemas, abordagens e
questões que surgiram no decorrer do século XX, de forma especial procurando analisar a História
que vem debaixo, uma ciência da História popular, enfatizando a importância daqueles que
contribuiram na formação socioeconômica de Nova Andradina. Neste sentido, vale considerar os
estudos desligado das concepções e condições não viciosas, colaborando com um modelo de
explicação coerente examinando maior variedade de possíveis evidências. Desta forma, ressalta
Honor (2005):

A noção de “roteiro” social vem sendo gradativamente substituída pelo conceito


de “performance”, que vem coroar a concepção construtivista de cultura, com a
consequente maleabilidade do termo, em oposição, ao estruturalismo cultural que
pregava a noção de regras rígidas. A performance, não é apenas uma expressão
ou mera interpretação do período o qual está inserido, mas também a recriação
dos seus significados. Estudos de boatos, contos populares, análises de épicos,
panfletos, festas populares e religiosas, procissões e cerimônias, ajudam a
perceber a imagem que deseja ser construída, suas representações e reafirmações
sociais (Honor, 2005, p. 153).

Honor (2005) explica a necessidade de uma história não paradigmática, metódica, mas que
possa sair do quadrado das bibliotecas, optando pela escrita da história social, sendo a luz da
memória social, da qual não façam parte apenas os senhores doutos e homens, mas, seja capaz de
entranhar na cultura popular, da qual, são todos: os “pobres”, as “classes subalternas”, como
costumava chamá-las o intelectual marxista Antônio Gramsci. São os “analfabetos ou incultos?”, é
a história da vida cotidiana. (Burke, 2011, p. 21), podendo interagir com mulheres e crianças, a
sociedade talvez mais esquecida, até mesmo em termos mais atuais, as minorias.

Assim, Burke (2011) salienta a necessidade de compreensão das fontes, buscar “novos tipos
de fontes para suplementar os documentos oficiais”, e/ou mesmo “reler alguns tipos de registros
oficiais de novas maneiras” utilizando-se de registros judiciais, interrogatório de suspeitos etc.
(Burke, 2011, p. 27), entre outros fatos e fatores que subsidiam a pesquisa do historiador conforme
a sua percepção metodológica.

Em Flamarion (1981), evidencia-se a possibilidade de a História ter seus distintos


significados, pois que a ciência é sócio-historicamente determinada a certo período histórico,
entretanto, tem tido aproximações sucessivamente mais abrangente devendo o historiador afinar,
pois como afirma Marc Bloch (2001), é dever do historiador ter um “olfato” apurado, a fim de
perceber tudo o que for possível sobre a ação humana, para além das obviedades de seus engenhos,
já que o objeto de seu interesse reside em “fatos humanos” de diversas e complexas temporalidades.
Sobretudo, ressalta Bloch (2001, p. 54), “por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, por
523

trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas
daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar”.

Não obstante, é essencial que o historiador procure vestígios não apenas visto a olhos nus,
representatividades e significações são fatores relevantes a pesquisa, pois como observa Bourdieu
(2011) simbolicamente é o poder e a dominação presentes com discursos neutros: são práticas
objetivas em mostrar a autoridade, e mesmo a obrigar escolhas. Em Chartier (1990) entende-se que
nas lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo
social: conflitos que são tão importantes quanto as lutas econômicas; são tão decisivos quanto
menos imediatamente materiais (Chartier, 1990, p. 17).

Relevantemente é necessário evidenciar que este projeto tem em seu bojo de integrações e
desenvolvimento de pesquisa, o trabalho com História Oral, permeado pelos anseios de descobrir
nas Memórias e narrativas as condições analíticas de um passado recente do qual trata a colonização
do município de Nova Andradina, a Empresa Moura Andrade e o proprietário da Empresa,
Antônio Joaquim de Moura Andrade. É o destaque realizado nesta pesquisa por meio de Peter
Lambert ao traçar estudos sobre o pensamento dos historiadores alemães que colocaram em tela a
“história da perspectiva do Volk” analisando também o folclore e a tradição, as rupturas e as
permanências, sobretudo para abranger as periferias das culturas sociais, contribuintes na formação
social das cidades e participando dos embates e os colonizadores dominantes e os colonizadores
dominadores.

Certamente, Bom Meihy e Seawright (2020), cristalizam o papel da memória e narrativas


no processo de historicização do município de Nova Andradina, compreendendo o retraço da
memória como processo dinâmico tanto devido às questões emocionais e também devido à relação
entre o tempo do fato acontecido e o tempo da narração. Após uma série de estudos, Bom Meihy
e Seawright (2020), ressaltam que:

Todos os projetos em história oral podem ser compreendidos como propostas


formais de pesquisas variadas, mas como objetivos, critérios e parâmetros
próprios que dependem dos fins propostos. Qualquer situação vivenciada é
passível de transformação de um estado abstrato – que não existiria sem a
intervenção do registro. [...] História oral é, pois, o movimento de transformação
da circunstância natural à sua desnaturalização: da fluidez verbal para a
formatação escrita, tudo graças à Transferência do oral para outro suporte,
material (Bom Meihy e Seawright, 2020, p. 31).

A base teórica de sustentação desse projeto é também a ideia de racionalidade – a “razão


técnica” – que está baseada nas questões e pontuações científicas, ligadas ao planejamento do
Estado , imbuídos pela planejamento governamental, problematizando o modo como o capital e
524

os interesses do capital monopolista se comportaram no território brasileiro, especialmente no


espaço mato-grossense que conduziu a colonização de Nova Andradina no período de 1950 a 1960.

Destaques metodológica da pesquisa

A pesquisa que se pretende desenvolver está relacionada à conjuntura inicial que trata da
mudança de nomenclatura e representações do criador de gados Antônio Joaquim de Moura
Andrade, então chamado de “Rei do Gado”, para outro momento em que ele se torna o
especulador fundiário capaz de atravessar as divisas do Estado de São Paulo, no intuito de construir
uma cidade derivante de outra primeira, no período de 1950 a 1960. Para Pierre Monbeig (1984), a
representatividade de uma empresa colonizadora que anseia por ter duas cidades com a
denominação de seu colonizador/especulador, certamente representará o poder econômico,
simbólico e representativo frente as relações políticas e de poder192.

É importante ressaltar que esta pesquisa, além das referências bibliográficas deverá
amparar-se de documentos pessoais, arquivos, entrevistas, com pessoas que fazem parte da história
de Nova Andradina, uma vez que, os pioneiros das Fazendas pertencentes a Empresa Moura
Andrade, material a serem pesquisados e analisados, podendo ser encontrados nos arquivos da
família do escritório empresarial e/ou nos guardados históricos e pessoais da fazenda Baile, local
que ainda reside Fernando Andrade, neto de Antonio Joaquim de Moura Andrade.

Nesse ínterim, coloca-se a necessidade da procura de dados nos órgãos oficiais do Estado,
documentos pessoais e outras formas de registros daqueles que viveram o processo de colonização:
fotografias, imagens, jornais, mapas do período em estudo. Não obstante, propõe-se a utilização
da análise por meio da história oral, sobretudo, pelo fato do muito que se guarda sobre a
colonização de Nova Andradina e do poder da Empresa Moura Andrade, podendo ser indagada e
problematizada na fala dos poucos pioneiros que ainda vivem, e de maneira um pouco mais viva
na fala dos descendentes dos mesmos. Para tanto, Bom Meihy; Seawright (2020, p. 27), destacam
que:

História oral é um conjunto de procedimentos que se inicia com a elaboração de


um projeto e que continua com a definição de um grupo de pessoas a serem
entrevistadas. O projeto prevê planejamento das gravações, com indicação de
locais, tempo de duração e demais fatores contextuais, bem como o tratamento
a ser dado: estabelecimento de textos; conferências do produto escrito;
autorização para o uso. O projeto estabelece parâmetros para eventuais análises

192Nova Andradina deriva da Cidade de Andradina, município fundado pela Empresa Moura Andrade e que simboliza
a Nova cidade como continuidade de seus empreendimentos econômicos e imobiliários.
525

das histórias ou disponibilização de entrevistas inteiras; arquivamento ou criação


de bancos de histórias e, sempre que possível, a publicação dos resultados que
devem, em primeiro lugar, ser devolvidos ao grupo que gerou entrevistas.

Vale ressaltar que documentos escritos são de grande valia ao pesquisador, mas a memória
coletiva tanto quanto a individual pode trazer o complemento e/ou abertura para compreensão
documental. Sendo assim, Matos; Senna (2011) lembram que:

A fonte oral pode acrescentar uma dimensão viva, trazendo novas perspectivas à
historiografia, pois o historiador, muitas vezes, necessita de documentos
variados, não apenas os escritos. Vale mostrar aqui a evolução de uma prática
importante que compõe parte da historiografia contemporânea (Matos; Senna,
2011, p. 96).

A memória coletiva se caracteriza por ser comum a várias pessoas, geralmente, partes de
um mesmo grupo. Ela se fundamenta nas recordações que várias pessoas têm de um mesmo
acontecimento. Sobre essa questão, Halbwacs afirma que:

[...] o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos
de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas é também, sempre,
um trabalho do sujeito.
O grupo de referência é um grupo do qual o indivíduo já fez parte e com o qual
estabeleceu uma comunidade de pensamentos, identificou-se e con-fundiu o seu
passado [...] A vitalidade das relações sociais do grupo dá vitalidade às imagens,
que constituem a lembranças. Portanto, a lembrança é sempre fruto de um
processo coletivo e está sempre inserida num contexto social preciso (Halbwachs
apud Schmidt; Mahfoud, 1993, p. 288).

Nesse contexto, não há como se falar de memória coletiva sem incluir o grupo. Uma
lembrança sem qualquer relação com outras pessoas não é memória coletiva. Trata-se de uma
memória pessoal, individual e particular. Para Le Goff (2003):

[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais
pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes
mecanismos de manipulação da memória coletiva (Le Goff, 2003, p. 422).

Ela se constitui numa memória social porque relata, descreve e perpetua histórias de
pessoas, grupos e sociedades. A lembrança é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento,
no sentido de trazer (à memória) o “já visto” (ou vivido). É reconstrução, primeiramente, porque
não se trata de uma repetição linear de acontecimentos e vivências do passado, mas sim um resgate
526

destes acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupações e interesses atuais;


segundo, é reconstrução porque se diferencia e se destaca da massa de acontecimentos e vivências
evocáveis e localizadas num tempo, num espaço e num conjunto de relações sociais (Halbwachs
apud Schmidt; Mahfoud, 1993, p. 289).

Tanto o reconhecimento quanto a reconstrução dependem da existência de um grupo de


referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais, e não
simplesmente ideias ou sentimentos isolados, e que são construídas a partir de um
fundamento comum de dados e noções compartilhadas (Halbwachs apud Schmidt;
Mahfoud, 1993, p. 289).

Nesse contexto, as lembranças dos sentimentos e acontecimentos vão passando de geração


em geração na família e em outros grupos estabelecidos (igreja, bairros, associações de bairro,
clubes, entre outros). Na obra de Ricouer (2007), sobre a memória, a história, o esquecimento, é
possivel compreender que a dialética está aberta as tensões e análises de quem rememora, de quem
conta a história e mesmo de quem esquece, indagando o que é possível deixar de lado, como aquilo
que é intencional de ser lembrado ou esquecido, o tempo será algo interessante, outra vez que, algo
que foi visto como proveitoso em determinado período da vida, pode, em tempos depois, passar a
ser visto como negativo, sem o devido valor correspondente, aquilo que almeja o próprio
historiador. Os mais velhos contam para os mais novos suas vivências e lembranças e os mais
jovens fazem a sua própria interpretação. Desta forma, de acordo com Bosi:

É a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da memória. Ao


lado da história escrita, das datas, da descrição de períodos, há correntes do
passado que só desapareceram na aparência. E que podem reviver numa rua,
numa sala, em certas pessoas, como ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira
de pensar, sentir, falar, que são resquícios de outras épocas. Há maneiras de tratar
um doente, de arrumar camas, de cultivar um jardim, de executar um trabalho de
agulha, de preparar um alimento que obedecem fielmente aos ditames de outrora
(Bosi, 1994, p. 75).

Nesse sentido, algumas práticas e alguns costumes se perpetuam fidedignamente, outros se


modificam, porém, a memória do “como era feito” não se apaga. Para Le Goff (2003, p. 422), “O
estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da
história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento”.
Segundo Astrid Erll (apud Erll; Nünning, 2010, p. 4 e 6):

memory studies is therefore characterized by the transcending of boundaries. Some scholars look
at the interplay of material and social phenomena (for example, memorials and the politics of
memory); others scrutinize the intersections of material and mental phenomena […] still others
study the relation of cognitive and social phenomena […] The concept of cultural memory has
527

opened the way to studying these processes at a collective level. More problematic is the migration
of concepts between the individual and social levels […]193.

Interagindo com a essência da memória social, fomentados por Astrid Erll (2010) é que
pretendemos elencar duas situações seguindo Bom Meihy e Seawright (2020), a “História Oral de
Vida e História Oral Temática”. Devendo-se a ao fato de tentar entender aqueles que vivenciaram
a conjuntura histórica da qual esta pesquisa propõe-se a estudar, a história oral de vida torna-se o
ponto de partida, elencando “a periodização de existência dos entrevistados” e/ou dos seus
antepassados com elo a colonização de Nova Andradina-MS e mesmo com o proprietário da
Empresa Moura Andrade. Para Bom Meihy e Seawright (2020, p. 66-67):

Ressalta-se que – nas entrevistas de história oral de vida – ainda que sendo o fator
cronológico ou sequencial mais usado, existem escolhas a serem realizadas. Há
casos em que os colaboradores preferem contar a própria história segundo
critérios como etapas que transcorreram a partir de uma sequência surpreendente
na valorização do inesperado [...] Nesse sentido, pretende-se afirmar que não
existe necessariamente um caminho obediente à continuidade material dos fatos
e é por isso que se reconhece na história oral de vida a promessa de uma história
do subjetivo. A história oral de vida é sempre um “retrato oficial”, uma versão
“fabricada”, intencional.

No que tange a “história oral temática”, digna-se a estudar a relação dos entrevistados com
o tema no campo da política, da colonização, da análise documentais, oficiais e jornalísticas,
procurando após levantamento e classificação dos documentos determinar a problemática e as
hipóteses de trabalho, claro “com critérios metodológicos permeados pelo exame historiográfico e
demais posturas consagradas. Ainda, seguindo Bom Meihy; Seawright (2020), propõe-se que:

A história oral temática é, dos gêneros narrativos em história oral, a forma que
mais se presta às análises que confrontam opiniões ou vistas diferentes de um
mesmo ponto ou ou assunto. [...] Por lógica a história oral temática é um dos
componentes dos gêneros narrativos que demandam mais informações sobre os
assuntos abordados, mas, ainda assim, não consegue anular de todo a
subjetividade inerente aos atos expressivos da memória (Bom Meihy; Seawright,
2020, p. 69-70).

A história oral tem um longo percurso investigativo no sentido de esclarecer a realidade


local, desenhando as representatividades sociais da comunidade, evidencia o aprofundamento dos

193Os estudos de memória cultural são, portanto, caracterizados pela transcendência de fronteiras. Alguns estudiosos
examinam a interação de fenômenos materiais e sociais (por exemplo, memoriais e a política da memória); outros
examinam as interseções dos fenômenos materiais e mentais [...] ainda outros estudam a relação dos fenômenos
cognitivos e sociais [...] O conceito de memória cultural abriu caminho para o estudo desses processos em um nível
coletivo. Mais problemática é a migração de conceitos entre os níveis individual e social [...]. (Tradução nossa).
528

fatos, em que a história torna-se mais opulenta, mais verdadeira por aproximar-se da realidade
desejada.

Considerações Finais

Em nosso trabalho, as fontes orais tornam-se documento imprescindível de análise, tendo


em conta os documentos escritos nos darem suporte, mas as entrevistas é que dão sustentação e
relevância a história no confronto de ideias. Nesse sentido, as entrevistas deverão confeccionar o
projeto de pesquisa de forma elaborada, “havendo uma postura levando em consideração o tempo
de entrevista, apresentação da Carta de Cessão, entre outras situações compreensivas de
planejamento das entrevistas podendo estabelecer práticas que caracterizam etapas distintas” e a
conjuntura ética do trabalho do historiador/pesquisador. As entrevistas devem valorizar o
planejamento, as etapas devem ser respeitadas, não se pode acorrer com uma fala de maneira a se
parecer com testemunho, pois que: “As entrevistas não podem ser confundidas com depoimentos,
que são atos de cunho jurídico e policialesco que demandam a existência de “verdades factuais”,
não adianta que se faça contatos anteriores a entrevista final, é essencial o esclarecimento do projeto
vislumbrado dar ao entrevistado total e devida concepção de ser um trabalho acadêmico, para que
“o interlocutor conheça as intenções, justificações, objetivos e procedimentos da pesquisa (Bom
Meihy; Seawright, 2020, p. 112-116).

Trata-se de uma fala mediada pelo gravador, pode não ter função esgotada no mero ato de
gravar. Garante a inexistência de História Oral sem qualquer destes três elementos: depoente,
pesquisador e máquina de gravar. Tudo reunido deve gerar textos escritos, elaborados a partir de
técnicas e métodos estudados. A História Oral é mais do que arquivo de gravações. Implica a
elaboração de um documento que pode ser a transcrição de testemunho e a sua análise. O primeiro
estágio implica em objetividade, e o segundo admite graduações de quem interpreta. (Bom Meihy,
1994, p. 53). Com base na psicologia social e na antropologia os autores dos primeiros manuais
sobre História Oral, mostraram como determinar as tendências e fantasias da memória, a
importância da retrospecção e a influência do entrevistador no processo do afloramento de
lembranças, baseados em métodos de amostragens, e documentos históricos. (Thomson, 1997, p.
52).

Historiadores orais de vários países vêm desenvolvendo métodos de entrevistas e


abordagens que envolvem a compreensão das reminiscências e da identidade, e que sugerem
maneiras de tirar o máximo proveito das memórias, em benefício da pesquisa histórica e
sociológica. (Thomson, 1997, p. 54). Ainda, segundo o mesmo autor, “Lembranças são
529

reformuladas de acordo com as situações do cotidiano e com as emoções. (p. 55). Sobre as
entrevistas em história oral, é essencial dizer que “centraliza o colaborador, dando-lhe possibilidade
de protagonismo e livre exercício de performance narrativa”. Ainda como sugerem Bom Meihy e
Seawright (2020).

Sem dúvida que o processo de entrevista ganha continuidade no momento de transcrição


e equivale à passagem dos enunciados orais para o código escrito o mais próximo possível de como
foram emitidos. “Dizendo de outra forma, transcrever é o exercício de correspondência da
estrutura dos enunciados verbais transpostos para a solução escrita em equivalência imediata e
imitativa” (2020, p. 131). A proposta ganhará continuidade no sentido de se chegar a textualização,
condicionamento ligado ao entendimento da fala, ou seja, textualizar “é uma operação que se refere
à reflexão sobre os pontos de partida e de chegada das entrevistas. Em outras palavras, recriam-se
os ambientes de quando foram concedidas as entrevistas” (2020, p. 135).

Neste sentido, pode-se ressaltar que, para o autor, a pesquisa em História Oral é uma
experiência que exige tanto tempo e é tão difícil e dolorosa, que você tem que ter razões muito
fortes para pesquisar, se precisa ter paixão e comprometimento para trabalhar em algo como
História Oral, pois é algo compensador e, portanto, algo mais difícil que outros tipos de pesquisas.
(Bom Meihy; Seawright, 1997, p. 78).

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Leão Teixeira Viriato de Medeiros. 2. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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532

A História que se conta sobre Pelotas:


uma revisão bibliográfica necessária

Daniel de Souza Lemos*

Resumo: a partir da coleta de artigos, monografias, TCCs, dissertações, teses – e livros de fora do
universo acadêmico – nas áreas de História, Memória e Patrimônio, Arquitetura, Educação,
Sociologia, Ciência Política, Geografia, Economia, Antropologia, Arqueologia, Artes Visuais, entre
outras, totalizando mais 250 trabalhos, que estão disponíveis na internet, nos diversos bancos de
dados consultados. Produções estas elaboradas em diversas instituições acadêmicas como: UFPel,
UFRGS, FURG, UNISINOS, PUC-RS, PUC-SP, UFPR, USP, UNICAMP e UFRJ. Além dessa
produção, foram reunidos 40 livros que tratam de Pelotas, em seus vários aspectos. Com o intuito
de definir o espaço que a História Política tem no universo de estudos sobre Pelotas. Concluindo-
se, provisoriamente, que a História Política está em desvantagem quanto a maioria dos campos de
estudo.

Palavras-chave: Pelotas, história política, educação, escravidão, patrimônio

Introdução

A cidade de Pelotas, completou 208 anos de fundação em 7 de julho de 2020, é objeto de


estudo no campo historiográfico tem um bom tempo. Muito, e em vários aspectos, já foi escrito
sobre a cidade, porém é possível verificar que ainda existem algumas lacunas na escrita dessa
bicentenária história, especialmente no que se refere ao campo da política.

Boa parte das pesquisas sobre Pelotas se refere ao seu reconhecido apogeu econômico
baseado do modo de produção escravista colonial e posteriormente no Império, com a exploração
do trabalhador escravizado nas charqueadas e olarias. Com consequências culturais e sociais, que
se deu no final do século XVIII e ao longo do século XIX.

Com o amplo processo de expansão dos cursos de pós-graduação nas universidades


brasileiras em geral, e na UFPel em particular, aumentou consideravelmente a quantidade de
trabalhos a respeito de Pelotas. De tal forma que foi realizado amplo levantamento com vistas a
localizar estudos que tenham como foco a questão política em suas varias dimensões.

* Doutorando em História pelo PPG História - UFPel, daniel-dlemos@educacao.rs.gov.br


533

Foram coletados artigos, monografias, TCCs, ensaios, dissertações, teses – e livros de fora
do universo acadêmico – nas áreas de História, Memória e Patrimônio, Arquitetura, Educação,
Sociologia, Ciência Política, Geografia, Economia, Antropologia, Arqueologia, Artes Visuais, entre
outras, totalizando mais 250 trabalhos, que estão disponíveis na internet, nos diversos bancos de
dados consultados. Produções estas elaboradas em diversas instituições acadêmicas como: UFPel,
UFRGS, FURG, UNISINOS, PUC-RS, PUC-SP, UFPR, USP, UNICAMP e UFRJ. Além dessa
produção, foram reunidos 40 livros que tratam de Pelotas, em seus vários aspectos.

Destacam-se os estudos de Arriada (1994), Magalhães (1979, 1993 E 2012), Gutierrez


(1999, 2001), Vargas (2016), Anjos (2000), Betemps (2003). Dois estudos que enfocam a segunda
metade do século XIX foram realizados por Al-Alan (2008 e 2016), neles o historiador analisa a
criminalidade, o sistema policial repressivo, os agentes públicos da segurança e a aplicação da pena
de morte contra os escravos em Pelotas.

Ainda estudando o século XIX, Mello (1994) e Silva (2001) abordam a cultura dos afro
descendentes, o primeiro escreve sobre “reviras, batuques e carnavais – a cultura de resistência dos
escravos em Pelotas”. E, o segundo, as suas práticas de consumo e manuseio de químicas por
escravos e libertos na cidade.

Em relação a estudos sobre a Pelotas do século XX Lageman (1985) trata do Banco


Pelotense a partir de uma perspectiva econômica da instituição que vai até os anos 1930. Por outro
lado, Loner (2001) estuda a formação classe operária em Pelotas e Rio Grande, também até a década
de 30 e Gill (1999 e 2004) pesquisa, primeiramente, sobre “os judeus da prestação em Pelotas
(1920-1945)” e, posteriormente, as políticas de saúde na cidade e o enfrentamento ao “mal do
século”, a tuberculose.

Enquanto Lopes (2007 e 2013), em seus trabalhos de dissertação e doutorado realizados na


PUC-RS analisa o processo de modernização de Pelotas e a atuação do engenheiro Saturnino de
Brito no Rio Grande do Sul. Somado a estes trabalhos, Amaral (1999) escreve sobre “uma face da
história da educação em Pelotas”, a relação entre o Ginásio Pelotense e a Maçonaria. Em pesquisa
realizada relativa ao período da Segunda Guerra Mundial Fachel (2002) levanta as violências contra
alemães e seus descendentes em Pelotas e São Lourenço.

Um esboço de um quadro de estudos sobre Pelotas

Por enquanto foram analisados 114 trabalhos mais os 40 livros. Estes estudos sobre Pelotas
foram divididos em 15 áreas – a critério do autor – que abrangem os diversos objetos que foram
534

abordados nos estudos. Foram assim denominados e numerados: 1 - Formação histórico-social do


território e de Pelotas com 8 estudos; 2 - Panorama histórico e antropológico da escravidão, do
racismo e pós-abolição, com 13 trabalhos; 3 - Urbanismo, urbanização, modernização, paisagismo
e arquitetura com 25 obras; 4 - Charqueadas e Saladeiros com 7 itens; 5 - Era Vargas em Pelotas
foram mapeados 6 trabalhos; 6 - História da Educação, profissão docente, instituição educacional
com 8 trabalhos; 7 - Patrimônio cultural, agroindustrial e rede ferroviária contém 6 trabalhos
analisados; 8 - História do Cotidiano; manifestações religiosas e culturais, saúde possui 20 obras; 9
- História intelectual, instituições intelectuais e acervos, arte com 20 trabalhos; 10 - História
POLÍTICA, INSTITUIÇÕES Políticas e ELITES com 14 obras; 11 - Arqueologia com 2
trabalhos; 12 - Museologia, conservação e restauro com 6 trabalhos; 13 - Colonização e imigração,
etnias com 14 obras; 14 - Instituições policiais, excluídos com 3 estudos; e 15 - Políticas públicas,
economia, excluídos, classe com 3 pesquisas.

Com base nessa divisão foi criado um quadro em formato de pizza para uma visualização
da divisão dos estudos que já que foram realizados sobre Pelotas nas diferentes áreas. Com as fatias
desproporcionais do gráfico em pizza, pode-se facilmente se identificar os temas mais ou menos
enfrentados pelos pesquisadores.

Algumas áreas poderão posteriormente ser agrupadas, pois boa parte dos estudos abrange
mais de uma área, possibilitando uma classificação bem ampla. Por exemplo, palavras-chave como
patrimônio cultural, patrimônio histórico, História cultural, História do cotidiano, sociedade, estão
presente em vários trabalhos que eventualmente não foram classificados no mesmo grupo. Assim
como: Excluídos, Escravidão, escravismo, classe trabalhadora, trabalhadores escravizados,
sociedades étnicas, clubes sociais afro, clube sociais étnicos.

Observe os gráficos a seguir.

Gráfico 1 em formato de pizza


1
trabalhos 2
3
14 15 4
12 5
1 2
13 6
11 7
10 3
8
9
9 4 10
8 5 11
6 12
7
Legenda:
1 - Formação histórico-social do território e de Pelotas = 8
2 - Panorama histórico e antropológico da escravidão, racismo, pós-abolição = 13
535

3 - Urbanismo, urbanização, modernização, paisagismo e arquitetura = 25


4 - Charqueadas e saladeiros = 7
5 - Era Vargas em pelotas= 6
6 - História da educação, profissão docente, instituição educacional = 8
7 - Patrimônio cultural, agroindustrial e rede ferroviária = 6
8 - História do cotidiano; manifestações religiosas e culturais, saúde = 20
9 - História intelectual, instituições intelectuais e acervos, arte = 20
10 - História política, instituições políticas e elites = 14
11 - Arqueologia = 2
12 - Museologia, conservação e restauro = 6
13 - Colonização e imigração, etnias = 14
14 - Instituições policiais, excluídos = 3
15 - Políticas públicas, economia, excluídos, classe = 3

Gráfico 2 em formato de colunas aproveita a mesma legenda anterior

Trabalhos
30

25

20

15
Trabalhos
10

0
Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área Área
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

Exemplos de estudos de cada área

O primeiro eixo de estudos sobre Pelotas: Formação histórico-social do território e de


Pelotas têm 8 trabalhos clássicos produzidos por pesquisadores experientes. Inicia com Fernando
Osório e sua “A Cidade de Pelotas”, em 2volumes. 3ª edição revista de 1997 (Organização e notas
Mário Osório Magalhães) trabalho germinal escrito nos anos 1940 e, atualizado pelo seu
descendente e também ilustre historiador, o saudoso Mário Osório Magalhães. Que, participa desse
eixo com sua obra mais importante, “Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1994)” e “Pelotas Princesa (livro comemorativo ao
bicentenário da cidade, 2012)”.

Nesse eixo também entra a historiadora Heloísa Assumpção Nascimento com “Nossa
Cidade Era Assim” em vários volumes e o historiador Eduardo Arriada com sua obra esgotada
536

“Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835)”, publicada em 1994. Por fim, as obras de
Adão F. Monquelat e V. Marcolla “O desbravamento do sul e a ocupação castelhana”, de 2009, e
“O Processo de Urbanização de Pelotas e a Fazenda do Arroio Moreira”, de 2010, encerram os
estudos sobre as origens de Pelotas.

O segundo eixo de estudos sobre Pelotas: Panorama histórico e antropológico da


escravidão, racismo, pós-abolição possui 13 trabalhos. Destacam-se as seguintes palavras-chave:
imprensa negra, escravidão, saúde, higiene, História cultural, Pós-abolição, Charqueadas, História
de Pelotas, Negros, associações negras, Clubes sociais negros, Mulheres, Negras e Criminalidade
feminina. Estas palavras estão inseridas em produções de historiadores como Adão F. Monquelat
(2009 e 2014), Geza Guedes (2014) com “Criminalidade feminina: mulheres negras e os homicídios
em Pelotas (1880-1890)”, trabalho assim resumido:

objetivo de analisar a criminalidade feminina a partir dos homicídios ocorridos


na cidade de Pelotas, entre os anos de 1880 a 1890. Utilizando a metodologia da
micro-história, foram pesquisados os processos criminais e as notícias
relacionadas aos crimes. A análise percorre os caminhos das mulheres negras que
figuraram como rés em ações judiciais, seus laços familiares e de parentesco, suas
ocupações e trabalhos. (Guedes, 2014, p. 6)

Fica evidente que cresceu muito o interesse sobre a questão do negro nos estudos de
História. Em seus vários matizes como ficou demonstrado nas palavras-chave apresentadas.

No terceiro eixo de estudos sobre Pelotas, Urbanismo, urbanização, modernização,


paisagismo e arquitetura foram classificados 25 trabalhos, que tratam das seguintes temáticas:
História da urbanização da cidade, História do Cotidiano, História cultural, Museu da Baronesa,
patrimônio histórico, prédios históricos, ecletismo, paisagem geográfica, zonas de preservação;
paisagem cultural; centro histórico, mercados públicos.

Destacam-se nesse amplo campo de estudos e, um dos mais ricos sobre Pelotas, os
trabalhos sobre, os casarões (León, 1994), as praças (Monquelat, 2015) e os Chafarizes (Monquelat,
2012) de Pelotas, a Companhia Telefônica Melhoramento e Resistência (Lopes, 2007), Mercado
Central de Pelotas (Bruno, 2010).

No quarto eixo de estudos sobre Pelotas, e talvez um dos mais emblemáticos, charqueadas
e saladeiros tem apenas 8 obras, inicialmente analisadas. Talvez esse item possa ser agregado a
outro, como o que trata da questão do escravismo, ou no tópico sobre a economia. Uma obra das
mais famosas e, entretanto obsoleta em suas conclusões no que tange a Pelotas, é “Capitalismo e
escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul”, de
Fernando Henrique Cardoso (1997). Contestada, inclusive, por Vargas (2010) em “Os Barões do
537

Charque e suas fortunas. Um estudo sobre as elites regionais brasileiras a partir de uma análise dos
charqueadores de Pelotas (Rio Grande do Sul, século XIX)” (ver resenha Lemos, 2019).

No eixo 5 sobre a Era Vargas em Pelotas dois trabalhos são muito importantes. O primeiro
deles é Fachel (2002), que trata da violência sofridas pelos alemães e seus descendentes na cidade,
em razão da guerra contra a Alemanha nazista. O segundo é de Braga (2016) que transita pela
História do Trabalho, da Justiça do Trabalho e do Partido Comunista do Brasil, através da atuação
de Antônio Ferreira Martins como advogado trabalhista em Pelotas.

O sexto – História da educação, profissão docente, instituição educacional com 8 trabalhos


– e o nono eixo – História intelectual, instituições intelectuais e acervos, arte com 20 trabalhos –
poderiam estar unificados. Porém, a grande quantidade de estudos sugere uma separação. As
palavras-chave mais recorrentes são: História da educação trabalhadoras/es em educação Gênero,
jornais estudantis, fontes históricas, ensino secundário, ensino laico e católico, História cultural,
imprensa ilustrada e Literatura Pelotense.

Aparecem nesse eixo trabalhos como o de Ücker (2019) sobre “A Participação Feminina
no Sindicato de Trabalhadoras/es em Educação: uma análise acerca do 24º Núcleo do
CPERS/SINDICATO”, Amaral (1999) sobre o Colégio Municipal Pelotense e a Maçonaria, o
importante e original trabalho conjunto organizado por Beatriz Ana Loner, Lorena Almeida Gill
& Mario Osorio Magalhães (2012), Dicionário de História de Pelotas.

A literatura pelotense, tanto a produzida quanto os escritores que a produziram, estão no


9º eixo. Rubira (2012, 2014a e b, 2017) aparece com Almanaque do Bicentenário de Pelotas em 3
volumes e com estudo sobre Ramil, “Vitor Ramil – nascer leva tempo (identidade, autossuperação
e criação de Estrela, estrela a Longes)”. Por sua vez, Ramil se destaca com Satolep, de 2008. João
Simões Lopes Neto e Lobo da Costa como não podiam deixar de ser também foram objeto do
interesse dos estudiosos sobre Pelotas. Diniz (2003), Reverbel (1981), Fagundes (1954) e Ângela
Treptow Sapper & Jandir João Zanotelli (2003), dedicaram-se ao estudo dos grandes escritores
pelotenses do século XIX e início do XX.

Os eixos 7 (Patrimônio cultural, agroindustrial e rede ferroviária com 6 trabalhos), 8


(História do cotidiano; manifestações religiosas e culturais, saúde com 20 trabalhos) e 12
(Museologia, conservação e restauro com 6 trabalhos) possuem muita proximidade em relação às
suas palavras-chave e conteúdo. Grande parte dos estudos foram realizados no Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, da UFPel, e no curso de Bacharelado em
Museologia, da mesma universidade. É o caso do trabalho sobre a rede férrea de Pelotas de Souza
(2019) “A estação férrea de Pelotas: Memória nas linhas dos trilhos.”
538

Os eixos 11 (Arqueologia 2 trabalhos), 14 (Instituições policiais, excluídos 3 estudos) e 15


(Políticas públicas, economia, excluídos, classe 3 trabalhos) ainda estão em expansão, no que se
referem aos interesses dos pesquisadores. A área de arqueologia está muito vinculada à
antropologia, cujos trabalhos foram inseridos nos eixos que tratam das questões culturais. Quanto
às instituições policiais e crime os trabalhos de Al-Alan (2008 e 2016) já mencionados na
introdução.

Na área de políticas públicas voltadas aos excluídos destaca-se o original estudo sobre o
Programa Bolsa Família em Pelotas de Corbo (2016) intitulado: “Bolsa Família: incorporação
econômica ou emancipação cidadã?” resultado de pesquisa de mestrado no Programa de Pós-
graduação em Ciência Política da UFPel.

O último eixo a ser abordado nesse item é o 13º - Colonização e imigração, etnias com 14
estudos. Trabalhos sobre várias etnias que enriqueceram a formação de Pelotas são estudadas
como, italianos (Anjos, 2000), alemães (Salamoni, 2001), judeus (Gill, 1999), franceses (Betemps,
2003).

O eixo 10 - História política, instituições políticas e elites – será apresentado na próxima


secção do artigo.

Estudos sobre Política e suas interfaces

O número de pesquisas em História Política tem sido muito reduzido em relação à história
social, econômica e cultural. Mesmo os estudos sobre elites não têm focado na política. Por
exemplo, Eicholz (2017) analisa a atuação da elite pelotense no campo da caridade nas benfeitorias
do Asilo de Mendigos e do Asilo de Órfãos São Benedito em Pelotas. Também, Paula (2008)
aborda, a partir de vários aspectos sociais, as correspondências trocadas entre a Baronesa de Três
Serros e sua filha que morava no Rio de Janeiro.

Porém, Vargas (2010), em seu trabalho sobre os mediadores – os quadros políticos que
faziam a relação entre a Corte (Rio de Janeiro) e a província (Porto Alegre) – trata da atuação das
elites no campo político. Este estudo abrange as elites, da então Província do Rio Grande, em suas
relações com as elites políticas do Brasil que atuavam na capital do Império, o Rio de Janeiro. Logo,
como Pelotas nessa época passava por seu auge econômico, social e político, muitos atores das
elites pelotenses aparecem no estudo. Entretanto, ainda é o Século XIX que está em foco.
539

Importante pesquisadora pelotense nos anos 1960, 1970 e 1980 Nascimento (1989 e 1994)
publicou inúmeros artigos sobre o passado da cidade. Foi professora da UFPel, inclusive sendo a
primeira mulher no Brasil a lecionar na mesma Universidade em que se formou, no caso, na
Faculdade de Direito, nos anos 1950. Seus trabalhos abordavam várias temáticas: a origem da
Freguesia de São Francisco de Paula, sua elevação a Vila e a cidade de Pelotas; A religiosidade, os
impactos da Revolução Farroupilha e da Abolição na cidade; A cultura, a música, o teatro, os
carnavais, as letras, o lazer e o folclore no município; Até a economia, o comércio, os transportes
e a gente. No entanto ela pouco escreveu sobre a política em Pelotas e, quando o fez foi sobre a
cidade durante o Segundo Império ou, sobre a Proclamação da República e sua repercussão em
Pelotas.

Sobre um egresso da Faculdade de Direito, Braga (2016) realizou uma interessante


investigação a respeito do advogado comunista Antônio Ferreira Martins, que contribuiu para a
luta da classe operária contra o patronato no processo de implantação da Justiça do Trabalho, no
município. Contudo, a abordagem se deteve à atuação jurídica de Martins, não a sua contribuição
na política partidária.

Um trabalho pioneiro sobre o campo político em Pelotas, após a redemocratização de 1945


foi resultado da pesquisa de doutoramento em Ciência Política de Fetter Júnior, defendido na
Universidade de PARIS V - René Descartes em 1985. Entre 1945 e 1983, foram realizadas 21
eleições em Pelotas, sendo que 8 delas foram para cargos municipais: prefeito e vereador.

A tese abordou a organização, o funcionamento e a composição da Câmara Municipal de


Pelotas, no período mencionado. Enfrentando o debate a respeito do municipalismo, da
competência e da autonomia municipal, bem como o conceito de representação, para enfim tratar
dos aspectos políticos e eleitorais de Pelotas.

Assim, o autor da pesquisa fez um uso amplo das informações a respeito da evolução
demográfica da população pelotense no período, do eleitorado, dos resultados eleitorais e dos
partidos políticos registrados e atuantes na cidade. Logo, essas informações serão muito relevantes
na pesquisa sobre o grupo político trabalhista em Pelotas, que compunha o PTB. Ele descreve e
analisa as características dos partidos políticos locais no período da redemocratização na vigência
do pluripartidarismo – que é a parte relevante para a pesquisa que o presente projeto pretende
realizar – de 1945 até 1965.

A análise feita consiste na verificação das características pessoais dos vereadores, os


aspectos políticos da atuação parlamentar e a composição da mesa diretora da Câmara Municipal.
De posse dessas informações foi feita a interpretação da atividade de representação e o retorno que
540

o vereador dava ao seu eleitorado, além das condicionantes da representatividade, baseada no perfil
do parlamentar e na sua interação com o partido a que pertencia. Isso é útil para um estudo da
composição e da atuação dos trabalhistas em Pelotas.

Um trabalho importante que foca no mesmo período aqui abordado é o de Everton Otazu
(2016) que investigou o processo de redemocratização de 1945, n a região sul do Rio Grande do
Sul. Este utilizou como fontes os periódicos da cidade de Rio Grande e da cidade de Pelotas. E se
propôs compreender como se organizaram os atores políticos regionais frente a redemocratização.
Além disso, acompanhou a trajetória dos grupos envolvidos e suas transformações ao longo do
processo, analisando as agendas de reorganização do campo político na região. Conclui-se que são
poucos os trabalhos que tratam o período 1945-1965 na política pelotense.

Por outro lado, uma abordagem mais consistente precisa ser realizada sobre cada partido
político, especialmente, sobre o Partido Trabalhista Brasileiro, que foi a principal força de
contestação aos partidos mais identificados com a fração mais tradicional da elite pelotense, quais
sejam, PSD e UDN. Por duas vezes no período de quase 20 anos o PTB conquistou o cargo de
prefeito de Pelotas, primeiramente com Mário Meneghetti (1951-1955) e, depois com João Carlos
Gastal (1959-1963).

Mário Meneghetti nasceu em Porto Alegre, no dia 17 de julho de 1905, formado em


Medicina, na Faculdade de Medicina de Porto Alegre em 1923. Começou a carreira de médico na
Viação Férrea Rio-Grandense, nomeado para o departamento estadual de saúde, em Pelotas. Ainda
atuou no Instituto de Higiene de Pelotas em 1929 sendo seu diretor em 1930, Catedrático da
Faculdade de Medicina de Pelotas em 1938; Foi vereador e prefeito de Pelotas pelo PTB e ministro
da Agricultura pelo Partido Social Democrático (PSD) no governo Juscelino Kubischek, de 1956 a
1960. Foi, também, co-fundador da Sociedade de Medicina de Pelotas, que presidiu. Recebeu o
título de Cidadão Pelotense em 11/12/1967. Faleceu no Rio de Janeiro em 1969, aos 64 anos de
idade.

João Carlos Gastal (trabalhos já publicados sobre JCG ver: Daniel Lemos 2020a e 2020b)
nasceu em Pelotas em 05 de fevereiro de 1915 e, faleceu em Porto Alegre em 01 de Maio de 1986.
Formado em Direito, foi Promotor Público e Juiz Municipal. Destacou-se no campo político desde
os anos 1950, quando foi eleito vereador, deputado estadual e prefeito da cidade de Pelotas, pelo
PTB. Ligado ao trabalhismo de Vargas, Goulart e Brizola, foi articulador da Campanha da
Legalidade em Pelotas, quando ocupava Paço Municipal, em 1961.

Durante os anos de 1950 e 1962 o PTB também elegeu os seguintes quadros com base
eleitoral em Pelotas e região sul: Miguel Olivé Leite Deputado Estadual no ano de 1950 com 5.066
541

votos; Osmar da Rocha Grafulha Deputado Estadual nos anos de1950 (6.969 votos) e 1954 (6.630
votos) e, Deputado Federal nos anos de 1958 (19.260 votos) e 1962 (18.271 votos ); Sylvio da
Cunha Echenique Deputado Federal em 1950 com 10.802 votos; e João Carlos Gastal (já
mencionado anteriormente) Deputado Estadual em 1958, com 11.008 votos.

O trabalhista Osmar da Rocha Grafulha nasceu na cidade do Rio Grande. Porém,


transferiu-se para Pelotas onde se formou pela Faculdade de Ciências Econômicas de Pelotas, em
1934. Assumiu as Secretarias de Economia, posteriormente, de Administração e de Energia e
Comunicação no governo de Leonel Brizola. Conforme consta em seu perfil biográfico do
CPDOC | FGV.

O Partido Trabalhista Brasileiro ainda formou bancadas numerosas no parlamento


pelotense (conforme é apresentado no quadro abaixo), demonstrando sua forte base social. Desde
a fundação de Pelotas, a cidade foi governada pela elite econômica, primeiramente a charqueadora,
posteriormente, com o advento da República, a elite que fez a transição da economia do charque
para a do arroz. Apenas com a redemocratização de 1945, a elite pelotense foi contestada, no campo
da política, pelos trabalhistas do PTB. Isto conduz à constatação de ser pertinente a realização de
estudo sobre esse agrupamento político.

O partido que governou Pelotas mais vezes no período foi o PSD, também criado por
Vargas, porém com uma constituição diferente. O PSD, que estava a esquerda direita e a direita da
esquerda, como dizia Ernani do Amaral Peixoto, genro de Getúlio, contava com políticos de grande
prestígio e capacidade de articulação e negociação, no país: Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek,
Ulysses Guimarães e Benedito Valadares. E, em Pelotas elegeu três prefeitos, hegemonizando a
máquina pública municipal, eram eles: Joaquim Duval, Adolfo Fetter e Edmar Fetter.

Um campo mais rico no que tange aos estudos sobre a política pelotense é o da competição
eleitoral, dos partidos políticos pós ditadura civil-militar. Especialmente os trabalhos realizados por
Barreto (2004, 2008, 2009a e 2009b). Porém, ainda há muito trabalho a ser feito nesse campo.

Considerações finais

Após a realização dessa coleta e breve revisão bibliográfica, a partir do que foi apresentado
até aqui, observou-se que a História Política está em desvantagem quanto aos demais campos de
estudo, no que foi produzido sobre Pelotas. Assim como o sujeito oculto da língua portuguesa, a
política está presente nas pesquisas, ela existe, mas está muitas vezes implícita. Aparece de modo
elíptico, quase sem querer aparecer. Evidenciando que há um espaço a ser explorado na área de
542

estudo das Elites no século XX (ver Lemos, 2018) especialmente depois da redemocratização
ocorrida com o fim da ditadura Vargas. Um maior aprofundamento do trabalho certamente
demonstrará que é preciso a produção de mais estudos com enfoque no aspecto político sobre
Pelotas, especialmente do século XX, justificando o tema da pesquisa de doutorado que está em
andamento.

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A Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal: Memórias,


Educação para o Patrimônio e Ensino de História

Daniela Karine dos Santos Acordi*

Resumo: Esse artigo faz parte da pesquisa de mestrado em andamento e tem como objetivo
estudar a Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal, identificando-a como patrimônio cultural
do distrito de Estação Cocal, em Morro da Fumaça- SC. Diante da proximidade entre a Casa do
Agente Ferroviário e a Escola de Educação Básica Vitório Búrigo onde leciono, percebi que mesmo
com a proximidade física entre essa escola e a Casa, há um desconhecimento da história local e,
portanto a invisibilidade da Casa do Agente Ferroviário como patrimônio “da” comunidade. A
proposta desse trabalho é apresentar a Casa, mostra a visão inicial da comunidade escolar e da
comunidade de modo geral diante dessa construção, discutir a cerca da educação patrimonial no
Brasil e apresentar uma proposta de educação para o patrimônio para ser trabalhado em uma turma
específica da E.E. B Vitório Búrigo e que envolverá narrativas orais de moradores da comunidade.
Metodologicamente, esse estudo se desenvolveu a partir fontes bibliográficas e documentais.

Palavras-chave: Casa do Agente Ferroviário, Educação para o Patrimônio, Ensino de História,


Memórias, Patrimônio Cultural Local.

Introdução

A Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal, distrito da cidade de Morro da Fumaça-


SC foi inaugurada em 1922, junto ao trecho da Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina, ligando
Urussanga à Tubarão, no sul de Santa Catarina. O motivo da construção da ferrovia foi a descoberta
do carvão mineral na região. A Casa era para moradia do agente ferroviário, funcionário que cuidava
da estação ferroviária.
Figura 1 - Mapa da localização de Morro da Fumaça

Fonte: Wikipédia. Disponível em: https: //cutt.ly/Ld3icPa

*Mestranda em Ensino de História no programa de Mestrado Profissional em Ensino de História- PROFHISTÓRIA


pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC.
547

No final da década de 1960, a Casa do Agente Ferroviário e a estação ferroviária foram


desativadas juntamente com o trem de passageiros. Entretanto, esse trecho da ferrovia nunca foi
totalmente desativado, pois continuou sendo a via de transporte do carvão mineral, principal
motivo de sua construção. Atualmente, várias vezes por dia o trem passa por Estação Cocal,
levando o carvão para o complexo termelétrico, Jorge Lacerda, na cidade de Capivari de Baixo- SC,
de onde se produz a energia para a região sul de Santa Catarina.

A Casa do Agente Ferroviário encontra-se fechada e sem manutenção há mais de 15 anos,


quando foi restaurada somente a parte externa, em comemoração aos 100 anos de Estação Cocal.
A estação ferroviária foi derrubada e não há nenhum registro da data que foi demolida e nem o
motivo; restou apenas a plataforma da construção. A Casa do Agente Ferroviário é administrada
pela concessionária Ferrovia Tereza Cristina SA, empresa privada que administra a Estrada de
Ferro Dona Tereza Cristina desde 1997, com a privatização do transporte ferroviário no Brasil a
partir da década de 1990.

Toda a estrutura ferroviária localiza-se bem próximo à unidade escolar estadual “Escola de
Educação Básica Vitório Búrigo”, onde atuo como professora de História desde 2016. O barulho
do trem se faz ouvir por todas as salas de aula da escola, mas é raro estudantes fazerem referência
à ferrovia, ao trem, à estação ferroviária que ali havia ou à Casa do Agente Ferroviário. Foi a partir
desse som diário vindo da ferrovia que comecei a me interessar por essa temática.

Figura 2 - A Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora, setembro de 2019.


548

Na procura por um mapa de Estação Cocal no Google Maps, que mostrasse a localização
da escola e da Casa do Agente Ferroviário para termos uma visão dessa proximidade, acabei não
tendo êxito, pois não tem a localização da Casa, somente da escola. Eu e meu companheiro
inserimos a Casa no Google Maps, foi aprovada depois de 15 dias. Então abaixo, trouxe a
localização da Casa dentro do mapa de Estação Cocal e que também mostra a localização da escola
Vitório Búrigo. Assim é possível visualizar essa proximidade a qual me refiro da escola com a Casa
do Agente Ferroviário e a ferrovia.

Figura 3 - Mapa de Estação Cocal com a inserção da localização da Casa do Agente


Ferroviário

Fonte: Google Maps: Disponível em: https://bit.ly/3kIFIcY

Como fiquei fascinada por um patrimônio cultural local, sempre me perguntei por que, na
comunidade escolar, nada era falado, trabalhado sobre o tema. Então, no final de 2018, descobri
que havia um livro do centenário da comunidade de Estação Cocal: “Estação Cocal: 100 anos de
Estação Cocal”.194 Segundo consta no livro, Estação Cocal era conhecida como Segunda Linha,

194Livro produzido por quatro moradores antigos da comunidade Estação Cocal: Agenir Donato Zaccaron; José Hugo
de Rochi; Rafael Sorato; Rangel de Rochi. O livro foi publicado em 2004, considerado o ano que completou cem anos
da chegada dos primeiros imigrantes em Estação Cocal (1904, então a localidade não tinha esse nome ainda). O livro
de 148 páginas tem cinco capítulos que tratam: desde os aspectos geográficos, origem de fundadores e colonizadores,
a imigração italiana e a parte do desenvolvimento como: economia, principais indústrias da atualidade, comércio,
costumes, religião (católica), política, lazer, educação e formação da comunidade de Estação Cocal até a fundação do
munícipio de Morro da Fumaça em 1962 e a elevação de Estação Cocal a distrito, em 1988. Nos capítulos III e IV,
parte em que os autores discorrem sobre o “progresso” de Estação Cocal, dedicam à maior parte à ferrovia: contexto
econômico, construção, nomes de trabalhadores e colaboradores, horários do trem, itinerário e, em poucas palavras,
549

depois Cocalzinho e então, Estação Cocal, nome que se originou após a construção da estação
ferroviária.

A escola possui dois exemplares do livro, e em 2019 comecei a abordá-lo em sala de aula
com o intuito de instigar nos estudantes o interesse pela história local e aquele patrimônio cultural
ali existente. Muitos quiseram folhear o livro, reconheciam nomes e sobrenomes como de Otávio
Sorato, um morador da comunidade que completou a idade de 100 anos em 2019 e, é considerado
o morador mais antigo da comunidade.

Para aumentar meu interesse, descobri a existência um Passeio de Trem (a “Maria Fumaça”)
que acontece uma vez por mês saindo de Tubarão até Laguna e retornando. Nos meses de julho e
agosto, o itinerário do passeio é especial, saindo de Tubarão à Urussanga, ou seja, passando por
Estação Cocal. Comentei com algumas turmas do passeio e a reação foi de grande entusiasmo.

O passeio é promovido pelo Museu Ferroviário de Tubarão-SC195, cujo acervo é muito


grande e eles fazem a restauração das locomotivas. Existem no acervo, locomotivas da década de
1910, 1920, de diversas origens: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Argentina. A maioria das
locomotivas funcionou na Ferrovia Tereza Cristina e foram restauradas, mas só uma está em
funcionamento, aquela que é a usada para realizar o passeio turístico promovido pelo museu.
Muitas peças da ferrovia e dos trens, chaves para manutenção formam o acervo do museu.

A instituição tem um programa educativo realizado com as escolas que visitam o museu e
também em algumas escolas do munícipio através da museóloga da instituição. O museu é mantido
por ex-funcionários da Ferrovia Dona Tereza Cristina, sendo necessário todo o conhecimento
técnico deles, pois, esse trem de passeio ainda funciona a vapor. Visitei o museu e o acervo é muito
vasto.

Quando dei início à construção do projeto, comecei a pesquisa a cerca da Casa dentro da
escola. Primeiramente com os estudantes. Em todas as turmas fiz questionamentos. Depois as
conversas com os professores e funcionários do quadro administrativo (nenhum deles reside em
Estação Cocal) e também com os três zeladores e a cozinheira da escola (dois senhores e duas
senhoras com a faixa etária entre 50 e 60 anos). Eles trabalham há mais tempo na escola e residem

enfatizam que a construção da estação de trem e uma casa para o agente da estação marcou o desenvolvimento de
Estação Cocal.
195 O Museu Ferroviário de Tubarão é uma entidade sem fins lucrativos, de natureza institucional privada, cuja

mantenedora é a SALV – Sociedade dos Amigos das Locomotivas à Vapor. Atua como instituição museológica desde
1997 e tem como propósito salvaguardar, preservar, comunicar e difundir o patrimônio cultural ferroviário do sul de
Santa Catarina. Desde então, trabalha para manter o acervo sob sua guarda. Não está oficialmente aberto ao público,
embora atenda a visitantes eventuais e agendamento de escolares. Dentro da cidade de Tubarão, o Museu Ferroviário
localiza-se no bairro de Oficinas, na Avenida Pedro Zapelini, 2200.
550

em Estação Cocal. Foram poucas as informações sobre a história da ferrovia, a Casa do Agente
Ferroviário e da estação que ali havia. Como faz muito tempo que está desativada a Casa do Agente
Ferroviário, não sabiam nada sobre os agentes ferroviários.

Com os estudantes, tive informações sobre moradores da comunidade, pertencentes às


famílias mais antigas. Estes geralmente são donos de comércio, políticos, pessoas pertencentes à
diretoria da associação de moradores, e líderes de eventos festivos de Estação Cocal. Porém,
quando comecei a questionar o que sabiam sobre “a casa” que se encontrava fechada a margem da
ferrovia, muitos devolviam a pergunta: “A casinha ali de baixo, sora?”. Eles não faziam a menor
ideia que a “casinha” era uma casa de moradia de agente ferroviário, a função desse cargo e que se,
existia aquela casa é porque existiu uma estação ferroviária. Então a ligação do nome “Estação
Cocal” com a estação ferroviária que ali foi construída, nem passava pelo pensamento deles.
Quando questionei sobre a ferrovia, sobre quando foi construída, se o trem parava em Estação
Cocal, nada souberam responder. Sobre o barulho do trem, todos os dias ser ouvido nas salas de
aula, a maioria disse não ter prestado muita atenção no barulho e praticamente todos desconheciam
que o trem transportava carvão para o complexo termelétrico para a produção de energia para a
região.

Nas conversas com professores, a equipe diretiva e os zeladores da escola, soube da


existência do livro: “Estação Cocal: 100 anos de História” e que a escola possuía dois exemplares
do livro. Um dos zeladores me falou que as pessoas mais antigas contaram para ele, que alguns
agricultores transportavam no trem, mandioca para vender em Tubarão – SC. Com a filha de um
dono de comércio local próximo à Casa do Agente Ferroviário, obtive a informação que a casa
estava em situação precária internamente e quando questionei sobre o órgão responsável pela Casa
do Agente, ela não soube responder.

Procurei um morador antigo, dono de um supermercado próximo da Casa do Agente


Ferroviário, por indicação dos estudantes. Comentou que andava de trem e que quando os militares
assumiram o governo federal na década de 1960, desativaram o trem de passageiros porque “não
dava lucro”. Não lembrou naquele momento, o nome de nenhum agente ferroviário. Perguntei se
futuramente ele poderia me conceder uma entrevista, mas ele indicou o irmão dele, que ele “sabia
muita coisa e que falaria melhor” e se retirou às pressas do supermercado. Também conversei com
o pai de uma aluna e que é vereador da cidade e sempre residiu em Estação Cocal. Ele disse que a
prefeitura não era responsável pela Casa do Agente Ferroviário e também não sabia dizer muita
coisa sobre a história da ferrovia.
551

Essa pesquisa inicial me deixou mais intrigada. A Casa do Agente Ferroviário é patrimônio
cultural de Estação Cocal, mas cabe questionar se os estudantes reconhecem esse patrimônio. E
ainda: qual a importância desse patrimônio para a formação e desenvolvimento de Estação Cocal?
Quais as relações construídas entre a escola Vitório Búrigo e a Casa do Agente Ferroviário e a
dinâmica da ferrovia? Qual o significado para os estudantes da Casa do Agente Ferroviário, da
ferrovia e de o trem passar todos os dias, tão próximo à escola? Não existe atualmente nenhuma
relação da escola com esse patrimônio cultural. No caso de Estação Cocal, por que houve um
apagamento da história da ferrovia? Restou apenas a Casa do Agente Ferroviário, mas por que ela
também não foi derrubada? O que se quis preservar com a sua manutenção?

Este artigo descreve alguns aspectos da pesquisa em andamento no âmbito do Mestrado


Profissional em Ensino de História/ ProfHistória da UFSC. Considerando a invisibilidade desse
patrimônio cultural, dos sujeitos e memórias inerentes a essa construção central da comunidade,
entre os estudantes da EEB Vitório Búrigo, elencou-se a Casa do Agente Ferroviário e a proposta
de um projeto de Educação para o Patrimônio como tema desse artigo.

Ensino de História, Patrimônio e a educação patrimonial no Brasil

Quando falamos de educação patrimonial e ensino de História, devemos lembrar que o


conceito de educação patrimonial esteve ligado ao pensamento moderno europeu e foi introduzido
no Brasil por meio do projeto de consolidação do Estado nação. Segundo Elison A. Paim (2017):

[...] esse entendimento de patrimônio subsidiou uma Educação Patrimonial


civilizatória ou colonizadora de memória, na medida em que negava no plano da
História experiências divergentes do projeto Nacional. (Paim, 2017, p. 263).

A visão colonialista do Iphan na sua fase inicial serviu em sua origem, não somente para
consolidar as bases do Brasil nação, mas “veio garantir o estatuto ideológico à constituição dos
patrimônios históricos e artísticos e coube ao Estado nacional assegurar a sua preservação”
(Tolentino, 2016, p. 43). A noção de monumento histórico e artístico no seu sentido moderno, que
fez a ideia de patrimônio, como categoria socialmente definida, delimitada e sobre uma
regulamentação. Embora os debates decoloniais tenham levado a fortes críticas a essa fase inicial
do Iphan, segundo Átila Bezerra Tolentino (2016), pertencente ao debate, também afirma que:

[...] não se pode desconsiderar as dinâmicas e transformações por que passou a


instituição ao longo dos seus 80 anos, bem como os novos instrumentos de
preservação, práticas e acepções na lida com o patrimônio cultural, pautados na
democratização e reconhecimento de diferentes saberes. Entretanto, formas
552

autoritárias se perpetuaram ao longo dos anos nas práticas preservacionistas (sob


a tutela do Estado), ao mesmo tempo em que conviveram com outras baseadas
na horizontalidade e no respeito à diversidade cultural e aos saberes das
comunidades e dos detentores dos bens culturais. Essa realidade se repercutiu
nas ações educativas voltadas para o patrimônio empreendidas pelo IPHAN ou
no “(não) lugar” da Educação Patrimonial dentro da instituição. (Siviero, p. 45,
2015).

Atualmente, acontece uma expansão dos estudos patrimoniais, aumentando as


possibilidades de abordagens, mas também aumentando a complexidade e consequentemente a
participação de novos sujeitos no campo patrimonial. Ao mesmo tempo em que vão acontecendo
essas mudanças, está sendo “estimulado o debate acerca dos problemas gerados pela museificação
e o olhar turístico/exótico sobre o patrimônio” (Paim, 2017, p. 264). Essas problemáticas
repercutem no campo da educação patrimonial e incidem nas aulas de História, que sabemos que
tem suas particularidades em sua dinâmica. Sabemos que o currículo escolar de História é marcado
por manifestações colonialistas e as aulas por um ensino tradicional da História. Uma abordagem
de história local, como o patrimônio cultural da comunidade de Estação Cocal, tem um potencial
de desestruturar a História tradicional. Paim (2017) nos adverte que:

No ensino da História tradicional brasileira, é nítido o primado de um recorte


que se limita aos grandes centros, urbanos ou econômicos, com a tendência de
posicionar a História local como adendo a uma pretensa História universal. Isso
não se deve apenas ao colonialismo institucionalizado pelo currículo escolar e
universitário, como guarda relação com a economia do tempo e sobrecarga do
trabalho docente. (Paim, 2017, p. 271).

Muitos de nós, professores de História agimos com descaso em relação à História Local, e
muitas vezes, só vamos nos lembrar dela quando nos deparamos à necessidade de produção de
uma monografia de graduação ou dissertação de mestrado. Na maioria das vezes, usamos como
desculpas para o nosso descaso, “[...] a dificuldade de se situar adequadamente na narrativa da
História; como se protagonismo não nos fosse concebível.” (Paim, 2017, p. 271). Nessa
problemática, considero a importância da aproximação da escola com a universidade (como por
exemplo, no Programa PROFHISTÓRIA), o que pode produzir benefícios recíprocos a partir da
relação entre a lógica de produção de conhecimento histórico escolar e de produção de
conhecimento acadêmico.
As leis ao mesmo tempo em que, têm levado a um aumento significativo no conceito de
patrimônio, sucessivamente a patrimonialização através de inventários, registros e tombamentos,
também aumentou. Em contrapartida, esses processos muitas vezes, não têm participação da
comunidade em que o patrimônio está inserido. Mas Janice Gonçalves (2014) mostra que várias
ações educativas têm conseguido avanços significativos nesse processo:
553

[...] em muitas ações educativas, sem que se abandonasse o patrimônio cultural


formalmente constituído, foram superados os seus limites quando houve o
reconhecimento de outros sujeitos produtores de bem culturais e oferecido, a
eles, apoio para que definissem seus próprios acervos patrimoniais. (p. 89).

No caso da Casa do Agente Ferroviário de Estação Cocal, não há registro de nenhuma ação
educativa em relação a esse patrimônio. Está lá, em pé, fechada e a comunidade não tem acesso ou
uso dela, pois a Ferrovia Tereza Cristina SA, a empresa concessionária que tem a “posse” da Casa,
mantém-na sem uso algum e trancada.

Outro problema está relacionado à máxima “é preciso conhecer para preservar”. Nem
sempre se preserva o que se conhece, pois muitas vezes, esse “conhecer” é de maneira
contemplativa, acrítica, sem diálogo, ou mesmo, o posicionamento do sujeito em relação a
determinado patrimônio nacional ou local, é de contestação, de negação. Átila B. Tolentino (2016)
traz exemplo de contestação e negação:

Reflexos que comprovam isso são algumas pichações que encontramos em meio
às cidades e centros históricos. Simoni Scifoni em palestra proferida no 5º
Seminário de Patrimônio Cultural de Fortaleza, em 2014, relembrou as pichações
feitas no Monumento às Bandeiras, no Parque Ibirapuera em São Paulo, durante
as chamadas jornadas de junho de 2013, marcada pelas manifestações populares
em todo país em protesto ao aumento das tarifas do transporte público. O
monumento foi alvo de uma grande pichação, onde foi escrito a palavra
‘assassinos’ nos bandeirantes ali representados. (p.45).

Então quando alguém tem conhecimento sobre determinado patrimônio, não significa que
ele vai preservá- lo. Entendo que mesmo um projeto de educação para o patrimônio, ou seja, uma
ação educativa que permite um contato direto com o patrimônio, pode produzir identidade, mas
muitas vezes, estranhamento, distanciamento, contestação. A educação patrimonial deve busca
entender porque determinados bens são escolhidos, patrimonializados e outros são esquecidos. No
caso de Estação Cocal, por que houve um apagamento da história da ferrovia? Restou apenas a
casa do agente ferroviário, mas por que ela também não foi derrubada? O que se quis preservar
com a sua manutenção? Percebo a importância de se iniciar um projeto com o questionamento aos
estudantes sobre o que eles sabem sobre a história da ferrovia, a relação que eles têm com a casa
do agente ferroviário a importância ou não que eles atribuem a essa construção.

Durante décadas, a educação patrimonial do Estado estava voltada somente ao material, à


construção em si. Após o Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000, da criação do Patrimônio Imaterial
pelo Iphan, os saberes das comunidades começam a ser preservados, portanto, inicia-se uma
554

democratização na “escolha” do que é patrimônio, do que deve ser preservado. Os saberes, as


memórias, ou seja, o imaterial começa ganhar espaço.

Desde a década de 1980, quando o termo surgiu, o conceito de educação patrimonial


ganhou reflexões, ressignificações e foi alvo de críticas do meio acadêmico, que acabavam
denunciando a inconsistência do significado de educação patrimonial, por dissociar patrimônio e
educação, portanto, o termo não fazia sentido. A experiência desenvolvida no Museu Imperial por
profissionais como Maria de Lourdes Parreiras Horta, Evelina Grunberg e Adriane Queiroz
Monteiro, que, aliás, foi legitimada pelo Iphan com o Guia de Educação Patrimonial (Horta,
Grunberg; Monteiro, 1999), em que, educação patrimonial é “um processo permanente e
sistemático de trabalho educacional centrado no patrimônio cultural como fonte primária de
conhecimento e enriquecimento individual e coletivo” (Horta, 1999, p.6) começa a ser contestada
por outros autores que contestam a dedicação quase exclusiva dada ao acervo patrimonial.

Das muitas críticas que o termo concebido pelo Iphan foi recebendo, uma de suas origens
é do Grupo de Trabalho “Educação Patrimonial: perspectivas e dilemas”, da 25º Reunião da
Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Com o relatório publicado em 2007 por Silveira e
Bezerra (2007), esse Grupo de Trabalho, segundo Tolentino (2018), acaba por indicar “para o
modismo a que chegou a educação patrimonial, com proliferação de projetos e ações baseados nos
bens patrimoniais, e que essa expressão caiu no gosto popular, mas muitas vezes de forma acrítica”.
Com ampla divulgação, a expressão “educação patrimonial” se tornou parte de políticas públicas,
e ganhou importância dentro do Iphan, nos últimos anos com a criação da Gerência de Educação
Patrimonial e Projetos (GEDUC), em 2004, transformado em Coordenação de Educação
Patrimonial (CEDUC), em 2009. O Iphan realizou muitos encontros para debate do tema e assim
construiu diretrizes dentro do campo da educação patrimonial, o que gerou nova concepção do
termo:

A Educação Patrimonial constitui-se de todos os processos formais e não formais


que tem como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso
para a compreensão sócio- histórica das referências culturais em todas suas
manifestações [...] Considera ainda, que os processos educativos devem primar
pela construção coletiva e democrática do conhecimento por meio do diálogo
permanente entre agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das
comunidades detentoras e produtoras de referências culturais, onde convivem
diversas noções de Patrimônio Cultural. (Florêncio et al., 2014, p.19).

O fato de o Iphan conceber o patrimônio cultural como uma construção social já é uma
mudança significativa, pois já não entende mais como um produto pronto, ou seja, não existe
patrimônio antes da existência dos sujeitos sociais.
555

Uma questão pertinente são os processos de seleção de patrimônios. O espaço desses


processos é “concebido como um espaço de disputa política, econômica e simbólica, tende a
reproduzir, como um discurso homogeneizante, a hegemonia de determinados grupos sociais
dominantes, detentores de maior capital simbólico” (Tolentino, 2016, p. 42). Isso é notório, se
percebemos que a maioria dos patrimônios culturais sob os cuidados do Iphan carregam a herança
europeia, portanto, não é possível pensar em patrimônio, sem pensar em alguma relação de poder,
pois é um campo de conflitos e de construção social.

No meio dos debates e críticas contra visão colonialista, cresce o número, atualmente, de
pesquisas dentro da corrente decolonial. As discussões dentro dessa corrente mostram- nos, dentro
de uma nova ótica, como se deram os processos de patrimonialização no Brasil e as ações
educativas a eles associadas. O sociólogo português, Boaventura de Souza dos Santos, é um dos
principais representantes dessa corrente e sua obra mostra o impacto que o colonialismo e o
capitalismo modernos tiveram na construção de epistemologias dominantes, que serviram de
instrumento para a anulação dos saberes de povos colonizados, silenciando seus conhecimentos.
Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Menezes (2009) na busca de combater essas
epistemologias defendem o que chamaram de “Epistemologias do Sul”, pois dentre as regiões do
mundo e a diversidade de epistemologias existente, segundo Santos, o Sul é:

Concebido metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que


procura reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo
na sua relação colonial com o mundo. Essa concepção com o Sul sobrepõe-se
em partes com o Sul geográfico, o conjunto de países e regiões que foram
submetidos ao colonialismo europeu e que, com exceção da Austrália e Nova
Zelândia, não atingiram níveis de desenvolvimento econômicos semelhantes ao
Norte Global (Europa e América do Norte). (p.12/13).

As “epistemologias do Sul” apresentam-se como uma alternativa que passa a “conceber a


produção do conhecimento, de forma diferente, valoriza os saberes subalternos que resistiram aos
processos dos colonizadores (...) trabalhando na perspectiva da horizontalidade dos diferentes
conhecimentos” (Tolentino, 2018, p. 48). Nesta perspectiva, é necessária uma educação patrimonial
que combata as práticas de patrimonialização e ações educativas colonialistas, que acabam
reproduzindo a colonialidade do saber e do ser. Portanto, usaremos o termo “Educação para o
Patrimônio”, para diferenciar da Educação Patrimonial desenvolvida no Museu Imperial por
profissionais como Maria de Lourdes Parreiras Horta, Evelina Grunberg e Adriane Queiroz
Monteiro e que também foi legitimada pelo Iphan com o Guia de Educação Patrimonial.
556

Preocupado com as “falácias” em torno do tema e discutir sobre aquilo que para ele não é
a educação patrimonial, Tolentino (2016), traz um conceito de educação patrimonial numa
perspectiva que identificamos como decolonial, pois ela é crítica, democrática e dialógica:

O patrimônio cultural, concebido como um elemento social inserido nos espaços de vida
dos sujeitos, que dele se apropriam, deve ser tratado, nas práticas educativas, levando em
conta a sua dimensão social, política e simbólica. Isso implica dizer, que, nas ações
educativas, o patrimônio cultural não pode ser tratado como pré-concebido, em que seu
valor é dado a priori, cabendo ao individuo aceitar essa valoração e reconhecê-lo como
parte de sua herança cultural. Nas práticas educativas que se pretendem dialógicas e
democráticas, o patrimônio cultural concebido como um elemento social implica
reconhecer o jogo de forças existentes no seu processo seletivo e até mesmo de sua
apropriação, em que estão imbricados os conflitos e as divergências na permanente luta
entre memória e o esquecimento” (Tolentino, 2016, p.47)

Segundo, Paim (2010), memória e patrimônio são conceitos que estão interligados, quando
se trata de experiências vividas em diferentes épocas e lugares. Para Tolentino (2013) a educação
patrimonial, realizada de maneira dinâmica, seria a metodologia apropriada de a escola se relacionar
com o patrimônio local. Portanto, a partir de uma perspectiva que considero decolonial, escolhi
uma proposta que entrelaçasse “patrimônio e memória” para realizar com estudantes da escola
E.E. B Vitório Búrigo.

Uma proposta de educação para o patrimônio na escola Vitório Búrigo

Pensamos numa proposta de um projeto de educação para o patrimônio com uma turma
específica da escola E.E. B Vitório Búrigo. Um projeto centrado na história local, através das
memórias de moradores antigos a cerca da Casa do Agente Ferroviário, sobre os moradores da
Casa, do trabalho do agente na estação ferroviária, do cotidiano do trem (embarques, destinos,
desembarques). Por que escolhemos a história local? Segundo Helenice A. Rocha (2016, p. 134):

O ensino de história local para crianças e jovens e adultos, possibilita sensibilizá-


los para reflexão de suas vivências e experiências cotidianas, buscando
historicizar e problematizar o sentido atribuído as suas identidades, valorizando
o pensar crítico sobre si e sobre o outro, mudando ou não, como sujeitos, a
própria história.

Na busca dessa sensibilização dos estudantes, pensando na proximidade que eles e a escola
têm com o patrimônio local e ao mesmo tempo sua invisibilidade e dos sujeitos relacionados,
pensamos na contribuição que caberia à memória, portanto, às lembranças de “velhos”, pois, como
nos afirma Ecléa Bosi (1987, p. 32):

Sem os velhos, a educação dos adultos não alcançaria plenamente: o reviver do


que se perdeu de história, tradições, o reviver dos que já partiram e participam
557

então de nossas conversas e esperanças; enfim, o poder que os velhos têm de


tornar presentes nas famílias os que se ausentaram[...]. Não se deixa essas coisas
para trás, como desnecessárias.

Essas pessoas concentram o passado no presente através de suas lembranças, fazendo com
que a criação humana esteja num processo continuo de reavivamento. Consideramos a história
oral, inovadora, pois ela analisa narrativas, aproxima-as de outras, relaciona-as, confronta-as,
compreendo que os sujeitos narram a partir de uma subjetividade que não é a verdade, mas
expressão do vivido, sentido e que parte da própria experiência . A história oral também evidência
grupos geralmente marginalizados na História, como os “velhos”.

Verena Alberti (2004) traz o “fascínio do vivido” como peculiaridade da história oral, pois
mesmo operando por descontinuidades, ou seja, selecionando acontecimentos para explicar o
passado, há na história oral:

Uma vivacidade, um tom especial, característico de documentos pessoais. É da


experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o passado
com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um indivíduo único e
singular em nossa história, um sujeito que efetivamente viveu_ e por isso dá vida
a _ as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes. (p.14).

Essa vivacidade que a história oral traz, é um dos motivos para o seu sucesso nos últimos
anos, percebível pelo crescente número de trabalhos de pesquisadores e professores com essa
metodologia. É fato a impossibilidade de se restabelecer o passado, mas as entrevistas de história
oral nos possibilitam reviver o passado através da experiência da pessoa entrevistada. Alberti (2004)
afirma que a utilização da história oral de maneira proveitosa tem “um elevado potencial de ensinar
o passado, porque fascina com a experiência do outro,” (p.22), por isso é preciso responsabilidade
na realização da entrevista, assim como na sua interpretação e divulgação.

Brevemente trouxe a preposição do roteiro do projeto que conta com as seguintes etapas:

1- Apresentar o projeto para a turma escolhida. Realizar um diagnóstico para ter um ponto de
partida sobre os conhecimentos prévios dos estudantes acerca da Casa do Agente Ferroviário, da
estação, da ferrovia e do trem, a partir de um questionário; com os alunos a história da ferrovia,
contexto, relevância, a desaparição do trem de passageiros, da estação e o recente processo de
patrimonialização, para além do que está no livro “Estação Cocal: 100 anos de História”;

2- Pesquisa dos estudantes com pais, tios, avós, que sempre moraram em Estação Cocal acerca da
Casa do Agente Ferroviário, dos agentes e suas famílias, qual sua importância ou não para o
558

desenvolvimento da comunidade e de sua preservação. Nesses contextos sempre emergem sujeitos,


instituições e processos que não podem ser deixados de lado nas aulas de História;

3- Trabalhar em sala de aula o livro: Estação Cocal: 100 anos de História, para uma análise em grupo
de sua produção: quem são seus autores, que fontes eles consultaram, quando ele foi produzido,
com qual finalidade; e de seu conteúdo: que pessoas são referenciadas, como aparece a história da
construção da ferrovia, da estação, da casa do agente, se os sujeitos que participaram das
construções e do cotidiano em torno delas.

4- Análise em grupo das narrativas resultantes das transcrições das entrevistas196 que realizei com
moradores antigos de Estação Cocal. Após a apresentação, os estudantes, ainda em grupo,
construirão um texto a partir de um roteiro de questões a cerca das narrativas, relacionando as
semelhanças e as diferenças entre as narrativas dos entrevistados;

5-Visita guiada ao Museu Ferroviário de Tubarão- SC (a instituição conta a história da Estrada de


Ferro Dona Tereza Cristina através de um acervo de locomotivas fotografias e peças);

6- Produção de pesquisa bibliográfica sobre o transporte ferroviário no Brasil;

7-Passeio de Trem com o itinerário que passa por Estação Cocal promovido pelo Museu
Ferroviário de Tubarão- SC;

8- Exposição a ser realizada na escola para a comunidade escolar (e aberta ao público) das narrativas
orais produzidas a partir das entrevistas com moradores antigos e possíveis fotos coletadas. A
exposição contará com participação dos entrevistados.

Considerações Finais

Trabalhar com patrimônio cultural na perspectiva decolonial é enriquecedor, porque os


sujeitos que antes estavam à sombra do patrimônio emergem para mostrar que o patrimônio não

196
Já realizei as entrevistas com nove moradores em outubro e novembro de 2020. Foram quatro mulheres e cinco
homens entrevistados. Fez parte das últimas etapas da pesquisa. Devido a pandemia da Covid-19, o projeto teve que
ser reelaborado. Os estudantes iriam acompanhar as entrevistas, mas não foi possível devido ao ensino remoto desde
19 de março de 2020 e que durou todo o ano letivo. As narrativas orais produzidas a partir das entrevistas fazem parte
do segundo capítulo da dissertação em andamento.
559

é pré-concebido, mas uma construção social. Portanto, um projeto de educação para o patrimônio
nessa perspectiva, é democrático e dialógico, levando em consideração as dimensões sociais,
políticas e simbólicas do patrimônio. Por isso, considero de grande valia, o uso das narrativas orais
num projeto com o patrimônio local, pois as memórias e esquecimentos que podem emergir de
desse patrimônio, são de pessoas que na maioria das vezes, não seriam lembradas numa num
projeto/ação educativa colonialista.

A aproximação dos estudantes da escola Vitório Búrigo com a história local, o contexto em
que foi construída a ferrovia e a casa do agente ferroviário e o significado desse patrimônio na
formação da comunidade de Estação Cocal pode contribuir para a construção da cidadania desses
estudantes.

A análise das narrativas orais poderá propiciar aos estudantes um momento de aprendizado,
pois além de os estudantes ouvirem as histórias dos entrevistados, permite uma aproximação entre
gerações e, mais ainda, uma aproximação da comunidade com a escola. É possível, que os
estudantes lerem as narrativas orais, passem a valorizar as histórias de vida de seus parentes e
vizinhos e mais que isso, compreenda por meio dessas narrativas como a ferrovia foi vista,
vivenciada, compreendida pela população, que sentidos eles atribuem a ela e se eles consideram
importante a manutenção da Casa do Agente Ferroviário.

A exposição das narrativas, fotos coletadas durante as entrevistas, as fotos das etapas do
projeto e a participação dos entrevistados, pode abrir caminho para uma história local viva e para
um ensino de História muito mais significativo para o professor e para os estudantes.

Referências

Alberti, Verena. O lugar da história oral: o fascínio do vivido e as possibilidades de pesquisa.


In:____. Ouvir Contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. - 2 ed. - São Paulo: T.A. Queiroz: Editora
da Universidade de São Paulo, 1987.

FTC: Ferrovia Tereza Cristina. Disponível em: http://ftc.com.br/. Acesso em: junho de 2019.

Florêncio, Sônia Rampim et al. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília, DF:
Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2014. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Educacao_Patrimonial.pdf

Gonçalves, Janice. Da Educação do Público à Participação Cidadã: Sobre Ações Educativas e


Patrimônio Cultural. Revista Mouseion, Canoas, Unilasalle, n. 18, dezembro 2014. Disponível em:
https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Mouseion/article/view/1860/0
560

Horta, Maria de Lourdes Parreiras; Grumberg, Evelina; Monteiro, Adriane Queiroz. Guia Básico de
educação patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ Museu
Imperial, 1999.

IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Patrimônio Ferroviário.


Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/276
Acesso em: outubro de 2019.

Paim, E. A. Lembrando, eu existo. In: oliveira, Margarida Maria Dias de (org.). História: ensino
fundamental - Coleção Explorando o Ensino. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Básica, 2010, v. 2. p. 83-104.

Paim, Elison Paim (org.). Patrimônio Cultural e Escola: entretecendo saberes. 1. Ed. Florianópolis:
NUP/CED/UFSC,2017.

Rocha, Helenice A. B. Uma Caixa de História Local nas mãos do professor. In: Gabriel, C. T. et.
al. Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de História. Rio de Janeiro, Mauad X, 2016, p. 129- 148.

Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (Orgs). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina; CES, 2009.

Tolentino, Átila. Educação, memórias e identidades. In: Tolentino, Átila Bezerra (org.). Educação
patrimonial: educação, memórias e identidades / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan). Superintendência do Iphan na Paraíba. João Pessoa: Iphan, 2013.

Tolentino, Átila Bezerra e Oliveira. Emanuel. Educação patrimonial: políticas, relações de poder e
ações afirmativas, João Pessoa: IPHAN-PB, Casa do Patrimônio da Paraíba, 2016. Disponível
em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/caderno_tematico_educacao_patrimonial_05.pdf

Tolentino, Átila Bezerra. Educação Patrimonial Decolonial: Perspectivas e Entraves nas Práticas
de Patrimonialização Federal. Sillogés, v. 1, n.1, jan./jul. 2018. Disponível em:
http://www.historiasocialecomparada.org/revistas/index.php/silloges/article/view/12
561

Imigração e vadiagem: os ciganos e os processos de exclusão no


Espírito Santo

Daniela Simiqueli Durante*

Resumo: este artigo tem como intuito analisar os processos de exclusão ocasionados pela
sociedade capixaba contra os grupos ciganos nos anos iniciais do século XX. Para tanto,
investigamos notícias impressas no jornal espírito-santense Diário da Manhã entre os anos de 1912
a 1926 o que nos possibilitou a compreensão do discurso utilizado contra as populações ciganas
do período elencado, assim como as representações existentes sobre esta minoria étnica no que se
refere a vadiagem e a imigração, fatores que determinaram de modo substancial a invisibilidade
deste grupo em solo capixaba. O periódico analisado noticiou com certa regularidade a presença
de comunidades ciganas no Espírito Santo no período elencado. Em sua maioria, estas reportagens
relatavam os esforços policiais do estado para conter o desembarque dos ciganos por meio de
embarcações vindas de outras regiões do país, como também a contenção destes grupamentos
vindos por terra de estados vizinhos. O temor pela entrada de cidadãos “indesejáveis”
fundamentava-se nas concepções de progresso e modernidade do período estudado e que foram
responsáveis pelo estabelecimento das diferenças sociais que determinaram a existência de uma
hierarquia social rígida capaz de estabelecer critérios distintos de cidadania.

Palavras-chave: ciganos, imprensa capixaba, processos de exclusão.

Ciganos: antecedentes históricos

Os primeiros registros dos ciganos no Ocidente ocorreram a partir do século XV na


denominada primeira onda migratória. Diversas pesquisas de cunho linguístico e antropológico
apontam uma origem proveniente do noroeste da Índia, atual Paquistão, contudo, por serem
tradicionalmente ágrafos, os relatos sobre as populações ciganas, em quase sua totalidade, a partir
deste período, foram narrados de forma folclorizada pelos não- ciganos que em sua perspectiva
representavam os roma197 por meio de “[...] imagens contraditórias que oscilam entre sentimentos
de liberdade e alegria como de repulsa, indolência e marginalidade” (Durante, 2014, p. 22).

Não se sabe os motivos que ocasionaram a disseminação dos ciganos por várias partes do
mundo. A hipótese mais provável é que “[...] ocorreram várias ondas migratórias, em épocas bem

*
Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES).
197
Roma em singular rom é um termo que se refere às populações ciganas e foi adotado pela União Romani
Internacional.
562

diferentes, talvez de áreas geográficas diversas, e por motivos dos mais variados” (Moonen, 2008,
p. 09). O que se sabe é que a chegada dos ciganos na Europa acarretou sobre eles perseguições e
preconceitos. Seus hábitos de vida eram muito diferentes dos povos europeus – língua, trajes,
moradia e formas de trabalho e de organização social trouxeram estranhamento por onde
passavam. A falta de documentos escritos, como também o desconhecimento do próprio passado
dificulta enormemente o estudo dos ciganos acrescido do pouco interesse destinado a eles pela
historiografia mundial e brasileira.

A princípio, em uma Europa constituída sob os pressupostos medievais, os ciganos


transitavam com maior liberdade no território europeu através dos benefícios papais ou salvo-
condutos. Esta era uma prática “[...] utilizada como instrumento de prestação de contas à Igreja,
num mundo de lógica medieval, pautada na ‘aguda consciência do pecado’ e na certeza do castigo”
(Borges, 2007, p. 17) muito comum na época, não sendo de uso exclusivo dos ciganos. Eles se
apresentavam também como peregrinos, outra prática muito comum na época, obtendo piedade
cristã dos povos por onde passavam que se traduzia em abrigo, alimentação e dinheiro.

Com o advento da Era Moderna, uma série de transformações estruturais no âmbito sócio-
político-econômico agitou a Europa. A partir do século XVI, o poderio católico e seus valores
seculares são questionados, e a presença de peregrinos começa a ser cerceada sob a forma de leis e
decretos severos. No caso dos ciganos, estas mudanças proporcionaram maiores restrições no
trânsito pelo continente, como também um recrudescimento das políticas anticiganas, pois a partir
deste período eles são classificados de modo explícito pelas autoridades como “indigentes e
vagabundos” por não terem residência fixa e nem profissão.

Em todos os países europeus a tolerância inicial transformou-se com o passar do tempo


em ódio. Dessa forma, a política de extermínio dos ciganos tornou-se frequente, uma vez que eles
representavam a oposição aos valores morais emergentes da modernidade. Os grandes grupos
dividiram-se em famílias, como também os auxílios sob a forma de alimentação, moradia e dinheiro
desapareceram. Em contrapartida, houve o aumento da mendicância e os pequenos furtos
aumentaram consideravelmente. A possibilidade de trabalho era, em sua grande maioria, impedida
em virtude do crescente preconceito em território europeu. Além disso, surgem editais que visam
à punição dos ciganos pegos em flagrante cometendo delitos. Invariavelmente, os castigos eram
duros e consistiam em açoites em praça pública, marcação em ferro quente, cortes de partes da
orelha e nariz sempre seguido pelo banimento da localidade onde ocorreu a detenção. Em casos
de reincidência, a pena de morte era imputada (Moonen, 2008).
563

Em Espanha e em Portugal, a situação dos ciganos passou pelo mesmo processo. A partir
do século XV, vindos da França, eles são relatados em diversos documentos como peregrinos que
percorriam a Península Ibérica livremente através dos salvo-condutos, sendo, consequentemente,
bem recebidos. A expulsão dos árabes, contudo, contribuiu para uma perseguição cruel contra os
rom que contava com o apoio irrestrito da Igreja Católica. A política de integração forçada dos
ciganos pelo Estado espanhol tornou-se infrutífera o que ocasionou a imigração de diversos grupos
para território lusitano.

Em função deste fato e por ter apenas limites terrestres com o território espanhol, Portugal
utilizou a deportação para as colônias ultramarinas por meio de condenações às galés em que os
ciganos antes de partirem

[...] eram submetidos ao corte de pedaço de uma das orelhas, denunciando assim
por onde passassem sua condição miserável de “degredados perigosos” e
“marginais”. Foi com esse estigma, que marcaria para sempre suas vidas, que esse
povo aportou nas Américas (Simões, 2007, p. 636).

O primeiro cigano deportado de Portugal para o Brasil foi João de Torres com sua mulher,
Angeliana e seus filhos em 1574. Inicialmente,

[...] João foi condenado às galés e Angeliana deveria deixar o país dentro de dez
dias. Alegando, no entanto, que “era fraco e quebrado, e não era para servir em
coisa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu! João pediu para poder
sair do Reino, ou então que pudesse ir para O Brasil para sempre. O pedido foi
deferido e a pena foi mudada para cinco anos para o Brasil, onde levará sua
mulher e filhos (Moonen, 2008, p. 125).

Por causa deste documento João de Torres foi considerado o primeiro cigano a entrar no
Brasil, contudo, não se sabe se ele embarcou ee sobreviveu à viagem, onde e quando desembarcou
e onde residiu em solo brasileiro ou, até mesmo, tenha retornado para Portugal passados os cinco
anos. Entre os anos de 1685 e 1686, a deportação dos ciganos apresentou-se de modo efetivo. As
regiões do Maranhão, Pernambuco e Bahia foram as que receberam inicialmente o maior fluxo de
ciganos. O governo local realizou sanções e normativas, entre as quais a proibição do uso da língua
e de gírias e que não fossem transmitidas para seus filhos com a intenção de que deixassem de ser
faladas.

No século XVII, têm-se registros de ciganos em Minas Gerais e em São Paulo. Muitos
documentos da época associam os ciganos com a bandidagem local sem que nada seja efetivamente
comprovado. Além disso, alojá-los era crime previsto sujeito à deportação para Angola e qualquer
564

pessoa poderia prender ciganos e entregá-los às autoridades podendo “[...] a pessoa tomar-lhes os
bens, ouro, roupas ou cavalos!” (Moonen, 2008, p. 126). Durante o período imperial, o Rio de
Janeiro foi considerado a “capital da ciganada”, o que conferiu certo status aos ciganos que lá
residiam. Era muito comum a presença de artistas ciganos realizando apresentações na Corte
Imperial, além de uma participação efetiva dos ciganos no comércio de escravos.

Nas províncias percorridas pelos ciganos, porém, a repressão, intolerância e perseguições


eram frequentes e as suas práticas de comércio, de quiromancia e “feitiçaria cigana” eram muito
mal vistas e afrontavam a ordem vigente. Outro fator que incomodava as autoridades locais era o
nomadismo dos grupos o que fomentava a desconfiança entre a polícia da época que via tal prática
como uma forma de fuga dos delitos cometidos pelos ciganos.

A partir do século XIX com o advento do nacionalismo e do projeto de modernização do


país elevados pela Proclamação da República, os ciganos foram transformados em uma espécie de
ameaça aos ideais progressistas do período. Apesar de não serem os únicos,

[...] eram considerados um obstáculo à implementação desse projeto


modernizante, gerando fortes reações tanto por parte das autoridades quanto à
população do período, fator que contribuiu muito no agravamento de um
processo de isolamento destes ao longo das décadas e, sobremaneira, para
concretização de uma situação contemporânea de perceptível invisibilidade
política, econômica, social e cultural dos ciganos no Brasil (Borges, 2007, p. 07).

É importante acrescentar que durante o período republicano, o Brasil recebeu uma nova
onda migratória de ciganos vindos dos países do Leste europeu. Até então, somente os ciganos
Calon198, de origem ibérica, viviam no país. A partir da segunda década do século XIX, diversas
famílias vindas dos Balcãs e da Hungria buscaram regiões da América, entre elas o Brasil.

O processo de exclusão torna-se evidente e eles são incluídos na categoria de imigrantes


indesejáveis que tinha em sua listagem a presença de deficientes físicos e mentais, indigentes,
portadores de doenças infecciosas, condenados e aqueles que apresentavam uma conduta
imprópria à vida pública. Estes conceitos foram utilizados por diversos intelectuais da época que
desenvolveram argumentações racistas e excludentes para validar qualquer tipo de violência e
isolamento dos grupos e indivíduos indesejáveis. No campo das artes muitos contribuíram para a

198Os ciganos dividem-se em três grandes grupos: O primeiro seriam os Rom ou Roma que falam o romani e são
divididos em diversos subgrupos (kalderash, matchuaia, lovara, curara, horahanei etc.) sendo predominantes no Leste
europeu e Balcãs; o segundo grupo compreende os Sinti, língua sinto, encontrados na Alemanha, Itália e França, onde
também são conhecidos como manouch; o terceiro grupo consistem nos Calon ou Kalé, falam caló, são os ciganos
ibéricos (Junior, 2013).
565

construção de representações que não evidenciavam a realidade destes grupos, entre os quais os
ciganos.

Imprensa, ciganos e ordem social

Por meio da análise de notas e notícias do jornal Diário da Manhã verificamos a presença
das populações ciganas em território capixaba nos anos iniciais do século XX, mais precisamente
entre 1912 a 1926, assim como as representações desta minoria étnica através da circulação dos
impressos do período histórico referenciado.

A imprensa possui uma grande relevância enquanto documento histórico, pois a mesma
“[...] influenciava e era influenciada por vozes, falas e gestos não-escritos, em via de mão dupla,
numa complexa teia de circulação, recepção e retransmissão de conteúdos que ultrapassavam o
espaço impresso” (Morel, 2003, p. 103). A multiplicidade do cotidiano sociocultural, portanto, é
vislumbrada nos periódicos que, devido a sua periodicidade e cuidado com a informação,
evidenciam a socialização do indivíduo bem como os princípios éticos e estéticos de uma
comunidade (Nóvoa, 2002).

A imprensa periódica relacionava-se diretamente com os espaços públicos em constante


transformação no fim do século XIX e início do século XX. Através de uma linguagem simples e
de um discurso constituído por diversos atores sociais, esta apresentou um inegável peso na
configuração da esfera pública através da expressão de valores no âmbito cultural que se tornaram
fundamentais para a construção de uma identidade nacional no período republicano.

O jornal constitui fonte à medida que analisamos as representações dos ciganos no Espírito
Santo no período elencado, tornando-se objeto cultural para a investigação dos conceitos de prática
e representação. Neste caso, as representações auxiliam na ordenação e classificação do mundo
social. Roger Chartier analisa que as representações operam de modo articulado através de três
modalidades por meio do trabalho de

[...] classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais


múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos
diferentes grupos, exibir uma maneira própria de estar no mundo, e, por fim,
significar simbolicamente um estatuto e posição e as formas institucionalizadas e
objetivadas graças às quais uns representantes marcam de forma visível e
perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade (Chartier, 1990, p.
24).
566

A princípio, os periódicos que circulavam no Brasil do início do século XIX não


apresentavam uma linguagem específica do jornalismo e eram constituídos por notícias impressas
de quarta ou quinta natureza, isto é, muitas gazetas e jornais do período utilizaram as notícias de
periódicos internacionais selecionados com o intuito de apregoar os assuntos da atualidade. Isto
significa que uma rede de textos era lida e relida e posteriormente resumidos em pequenas notas
ou ampliados em grandes textos de acordo com o interesse por aquela informação (BARBOSA,
2010). A fonte das notícias publicadas nos impressos do Oitocentos era diversificada. Além dos
jornais estrangeiros, notícias obtidas por meio de informação oral também eram bem quistas sendo
transformadas em letras manuscritas e, em seguida, impressas. Havia desta forma, um circuito de
comunicação que se findava com a publicação da informação pelo jornal e pela sua interpretação
realizada pelos leitores, mas que começava com uma informação oral transmitida.

Os jornais do Oitocentos assumiram um papel decisivo quanto à formação do público


leitor, tornando-se superior aos livros que eram muitos dispendiosos e de difícil manuseio neste
período. Assim, eles atendiam a necessidade do público leitor e eram lidos, por meio de uma leitura
individual ou compartilhados, em qualquer espaço, atendendo também os leitores analfabetos.
Tanto a escrita quanto a oralidade apresentavam papéis simultâneos nos espaços sociais do período
que se traduziam em lócus de contato e interseção e, dessa forma, atendiam tanto as elites
econômicas e culturais quanto às camadas menos favorecidas, entre os quais os escravos.

Nas últimas décadas do Oitocentos, as profundas transformações ocorridas na sociedade


brasileira foram refletidas nos periódicos inundados por uma áurea de modernidade. Baseadas nas
concepções europeias de progresso que almejavam a construção de uma nova sociedade, no qual
os impressos deveriam adotar uma postura de disseminação desta modernização. Houve assim um
considerável aumento das tipografias acrescido a melhorias nos jornais circulantes. O
desenvolvimento dos Correios, da malha ferroviária, e abertura da primeira agência de notícias
impulsionaram a ampliação das assinaturas dos periódicos.

A Abolição e a República foram fatores decisivos para a inserção do Brasil no sistema


capitalista mundial, e os jornais abarcaram as transformações necessárias a fim de atenderem a esta
demanda. Consequentemente, os padrões editoriais modificam-se e as noticiais buscavam
apresentar “imparcialidade” em seus conteúdos, principalmente nas matérias policiais. O
estabelecimento de uma nova ordem social era o principal intuito por meio da criação de “[...] um
novo sentido para as relações de trabalho, controlar o lazer, manipular as camadas letradas e unificar
os discursos da nova ordem” (Durante, 2014, p. 70).
567

O discurso da imprensa visava, portanto, a valorização de uma inserção compulsória em


um processo civilizatório calcado no progresso, assim como nos símbolos deste novo tempo.
Assim, coube às classes populares, um projeto político que determinava a expulsão destas dos
centros nobres dos espaços urbanos em direção aos subúrbios distantes. A intervenção dos
discursos higienistas nas políticas públicas parecia obedecer

[...] ao mal confessado objetivo de tornar o ambiente urbano salubre para um


determinado setor da população. Tratava-se de combater as doenças hostis à
população branca, e esperar que a miscigenação – promovida num quadro
demográfico modificado pela imigração europeia- e as moléstias
reconhecidamente graves entre os negros lograssem o embranquecimento da
população, eliminando gradualmente a herança africana da sociedade brasileira
(Challoub, 2007, p. 13).

As populações ciganas apesar de constituírem um grupo étnico bem menos expressivo que
os negros, foram incluídos nesta perspectiva onde a urbis representaria a concretização de um novo
mundo movido pela velocidade e progresso, um novo tempo onde as cidades deveriam ser
purificadas livrando-as daquele “mundo de imundice”. As novas concepções e valores anunciados
pela modernidade, portanto, excluíram a população de despossuídos nas cidades, os escravos
recém-libertos, os mestiços e os ciganos. A corporificação do liberalismo e do racismo nos
processos políticos do Estado Republicano tinha como intuito o estabelecimento das diferenças
sociais que determinaram a existência de uma hierarquia social rígida capaz de estabelecer critérios
distintos de cidadania.

A imprensa capixaba surgiu em 1840 no período de transição entre a Regência para o


Segundo Reinado. Em busca da construção de uma concepção de Nação, o teor das matérias não
diferenciou em relação aos demais periódicos do país ao longo do século XIX. O desenvolvimento
da imprensa era recebido com muito entusiasmo pelo capixaba que acreditava no caráter
progressista da instituição, como verdadeiros “difusores da luz, da cultura e da liberdade” (Rocha,
2012, p. 47). O caráter atuante dos jornais em solo capixaba apresentou um movimento ascendente
em função tanto do aumento das tiragens quanto ao crescente número de leitores durante o
Oitocentos o que conferiu à imprensa do estado o status de agente político e cultural da sociedade
espírito-santense.

O discurso e o modo como as informações eram transmitidas pelos impressos capixabas


neste período foram consoantes com as novas políticas públicas implantadas pelo regime
republicano e que iam de encontro às práticas de sobrevivência das comunidades ciganas no estado.
Com o processo de urbanização, as cidades passaram a ser administradas por meio de um caráter
568

disciplinador que almejava a homogeneização dos espaços urbanos a partir da segunda metade do
século XIX atendendo, assim, a uma perspectiva burguesa que buscava a desterritorialização dos
emblemas religiosos e étnicos. A territorialidade cigana representada pelo acampamento cidades e
trajetos sofre ameaça o que proporcionou a deterioração das complexas relações existentes destas
comunidades. A urbanização das cidades “[...] previa a fixação destes “indesejáveis” para fora do
perímetro urbano. Naquele momento foi travada uma disputa pela ocupação do espaço social entre
ciganos e gadjé” (Rezende, 2000, p. 173). Em território capixaba, este quadro também se refletiu,
uma vez que a constante mobilidade destes grupos trazia as incertezas a uma sociedade que
almejava a modernização.

A manutenção da ordem pública e da propriedade particular representou a maior incidência


de notícias e relatos nos jornais analisados do período na qual a violência policial era uma constante.
Além de reportarem sobre a presença de grupamentos ciganos em território espírito-santense, as
notas referiam-se também a diversos conflitos em municípios dos estados vizinhos. Isto se devia
em função das chamadas “Correrias de Ciganos” que consistiam em fugas dos grupos de ciganos
quando ocorria confronto policial e resultavam em mortes em ambos os lados (Teixeira, 2007). O
objetivo era manter estes grupos em movimento e, consequentemente, segregá-los dos espaços
urbanos.

É considerável o aumento de notas que tratam sobre a presença cigana nos jornais
capixabas no início do século XX. A entrada destas comunidades representavam uma grande
preocupação para as autoridades do período. De acordo com os periódicos, era frequente a entrada
de grupamentos pelos estados de Minas gerais, Rio de Janeiro e Nordeste, predominantemente
Bahia. Neste último caso, o uso de embarcações pelos ciganos ,denominadas paquetes, eram
frequentes e prontamente interceptadas pela polícia.

[...]Desembarcaram hontem do paquete “ Ceará”, vindos da Bahia, sessenta e três


ciganos, sendo quinze menores. Chegando ao conhecimento da polícia a
immigração dessa gente perigosa, o sr. Tenente Hollanda Cavalcante,
commissario da polícia do Porto, tomou as necessárias providencias, intimando-
os a continuar a viagem, voltando para bordo esses indesejáveis, que ficaram sob
a vigilância de um agente policial até a partida do vapor (Diário da Manhã, 15 de
Novembro de 1919).

Havia um papel de destaque exercido pela polícia marítima do período que consistia em
reprimir a entrada dos ciganos no estado, conforme noticiava o Diário da Manhã sobre a atuação
do ativo comissário da polícia marítima de Vitória, Senhor João Ribeiro Silvares que “[...] impediu
o desembarque de um grupo de sessenta ciganos, que de bordo do paquete “Brasil” aqui pretendeu
569

desembarcar hontem” (Diário da Manhã, 24 de Abril de 1912). A mesma situação em estados


vizinhos (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo) também era noticiada neste jornal como é o
caso desta nota que relata a ação policial na cidade de Santos no ano de 1912 onde “ [...] a polícia
impediu que desembracassem neste ponto diversos ciganos expulsos pela polícia platina” (Diário
da Manhã, 08 de Junho de 1912).
O desembarque de ciganos representava uma preocupação recorrente nos impressos do
período. Em outra matéria noticiada pelo mesmo jornal, vê-se a repressão policial sobre um
grupamento que acabara de aportar na cidade de Vitória:

[...] Ante hontem, chegou a esta capital, vindo de Pernambuco, pelo “Olinda”,
um numeroso grupo de ciganos, dos que constantemente assolam o Rio de
janeiro e S. Paulo, principalmente no interior. São malandros que põem em
polvorosa todos os lugares por onde andam, devido aos audaciosos roubos a que
se entregam, sacrificando a tranquilidade das famílias. A respeito do terror que
essa gente infunde no Brasil, parece ser exactamente o paiz mais procurado por
elles, pois constantemente, e por toda a parte, aparecem aos bandos, explorando
a simplicidade do publico, por meio de diabólicos sortilegios e roubando
escandalosamente nos bairros afastados da capital. As 100 autoridades policiaes,
cientes do ocorrido, tomaram prontas providencias para que fossem eles
reembarcados no mesmo vapor, não consentindo que aqui permanecessem. E
isso foi feito, apezar dos protestos dos meliantes. (Diário da Manhã, 20 de
Fevereiro de 1912).

A criminalidade e a vadiagem imputadas aos ciganos eram noticiadas nos impressos do


período referenciado. Em muitos deles, há relatos de crimes e detenções pelos ciganos. Nestes
casos, a repressão das forças policiais baseava-se, em grande parte, em pressupostos higienistas,
uma vez que a dinâmica do Estado via os grupos ciganos como perigosos e desnecessários, como
também responsáveis por diversos roubos e por corromperem os costumes calcados na moral
burguesa. Vistos como incivilizados, seus valores eram “[...] tidos como algo tão absurdo que nem
sequer eram percebidos como sendo traços de outra cultura” (Teixeira, 2007, p. 69).

A imigração consistia um tema recorrente nos periódicos capixabas do período elencado,


pois havia um temor sobre a possível entrada de cidadãos considerados indesejáveis. Em uma
extensa matéria publicada pelo Diário da Manhã de 26 de Novembro de 1924, o processo
imigratório é visto com reserva. Nela, se fala da necessidade de imigrantes para suprir locais em
que o elemento genuinamente brasileiro encontra-se escasso, contudo tal ação é encarada com
receio à medida que os imigrantes eram constituídos, segundo o periódico, por grupos sem
qualquer vínculo com o Estado Brasileiro o que poderia levar futuramente a uma possível
independência de regiões do país:
570

[...] japoneses, italianos, com ou sem trachoma, alemães, húngaros, turcos, russos.
Ciganos, que venham, se quiserem. Mas que o governo selecione os melhores
dentre eles, e os distribua razoavelente por todas as zonas do paiz. Localizando-
os, como se tem feito, numa só região – mais dia, menos dia, o que por enquanto
não vae alám dos lumes oratórios em asembléas estaduais, inflamadas do amor
das suas pequeninas pátrias, será visível realidade (Diário da Manhã, 26 de
Novembro de 1924).

Ainda em 1926, o impresso apresenta um artigo que alerta sobre a necessidade em se


controlar o fluxo imigratório que aportava no país.

Immigrantes
E’ raro o vapor , partido dos portos da Europa, que não traga centenas de
imigrantes, em sua mór parte, dos paizes até 1918 sujeitos ao império de Nicolau
II. São ukranianos, filandezes, livonios,polonos, gentes altas, de estranhas falas,
olhos azues, com uma ponta de mysterio no olhar. Vêm com eles romenos,
parecidos com ciganos, judeus da Bessarabia, de vendedores a prestações. Quasi
todos pertencem á agriculturae sahem da pátria, tangidos pela vaga de loucura e
miséria que, desde 1914, passeia a Europa estanguida. Os do sul, onde levas
idênticas se acolheram, há anos, aguardam essa gente.Os governos os semearão
em lotes de terras, dar-lhes-ão ferramentas, e eles trabalharão pela riqueza
nacional.
Seria despiciendo fazer aqui a apologia da immigração num paiz despovoado,
como o Brasil. No entanto, vale a pena insistir na obrigação nossa de captarmos
definitivamente a leva migratória. Fixa-los ao sólo, é bom, e não o suficiente.
Cumpre abrasileiral-os, e sobretudo fazel-os perder o ouvido a algumas cantilenas
de sereias enthusiasmadas que sonham,para as respectivas pátrias, o domínio
imperial. Para que o immigrante tenha realmente um valor efetivo, é necessário
que adquira, com o sólo, os sentimentos de brasileiro. Fale a nossa língua. Ame
os nossos costumes. Eduque brasilieamente os filhos. Que a patria do além-
Atlantico lhes venha á lembrança como uma saudade enão como um desejo, e
um termo de comparação. Sem esses elementos Moraes de adaptação, o
immigrante é um caso de super felação, que convem eliminar (Diário da Manhã,
12 de Março de 1926).

A história dos ciganos nos revela, por meio deste recorte histórico, que a imprensa e o
Estado Brasileiro contribuíram para os processos de exclusão e invisibilidade desta minoria étnica
no país, como também no estado do Espírito Santo por meio de representações que
desqualificaram e estigmatizaram este grupo étnico. A corporificação do liberalismo e do racismo
nos processos políticos do Estado Brasileiro e consequentemente da sociedade capixaba da
primeira República estabeleceram diferenças sociais que determinaram a existência de uma
hierarquia social rígida capaz de estabelecer critérios distintos de cidadania.
571

Referências

Barbosa, Marialva. História Cultural da imprensa: Brasil ,1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

Borges, Isabel Cristina M.M. Cidades de Portas fechadas: A intolerância contra os ciganos na
organização urbana na primeira República. Dissertação (Mestrado em História). Universidade
Federal de Juiz de Fora, 2007.

Challoub, Sidney. Trabalho, Lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de janeiro da
Belle Époque. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2001.

Chartier, Roger. A História Cultural em práticas e representações. Lisboa, Bertrand, 1990.

Durante, Daniela. Ciganos nas terras do Espírito Santo: representações sócio-políticas (1870-1936).
Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-graduação em
História, 2014.

Junior, Lourival Andrade. Os ciganos e os processos de exclusão. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 33, no. 66, p. 95-112, 2013.

Moonen, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. Juiz de Fora, Centro de Cultura
Cigana, 2008. Documento disponível em HTTP: www.dhnet.org/direitos/sos/ciganos. Acessado
em 10 de Julho de 2009.

Morel, Marco. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de
janeiro: DP&A, 2003.

Rezende, Dimitri. Transnacionalismo e etnicidade: a construção simbólica do Romanesthàn (Nação


Cigana). Dissertação de mestrado de Sociologia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2000.

Rocha, Luciane P. Imprensa e impresso para a civilidade da infância: representações e apropriações


(Vitória na segunda metade do século XIX). Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do espírito Santo, Centro de Educação, 2012.

Simões, Sílvia R.F. Ciganos: perspectivas e desafios emergidos na busca por direitos fundamentais.
Anais do II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e democracia, UFSC,
Florianópolis, 2007.

Teixeira, Rodrigo. História dos ciganos no Brasil. Recife, Núcleo de Estudos Ciganos – Coleção
estudos ciganos, 1999.

Fontes Primárias

Diário da Manhã – 20/02/1912

Diário da Manhã – 24/04/1912

Diário da Manhã – 08/06/1912

Diário da Manhã – 15/11/1919


572

Diário da Manhã – 26/11/1924

Diário da Manhã – 12/03/1926


573

Imprensa, Memória e a Ditadura Militar no Espírito Santo (1971-


1975)

Davi Elias Rangel Santos*

Resumo: Este trabalho faz parte das reflexões desenvolvidas na pesquisa de mestrado, tendo por
base a análise sobre a grande imprensa capixaba, no caso o jornal A Gazeta, e a contribuição desta
na elaboração e produção de uma memória favorável a Ditadura Militar durante o governo de
Arthur Carlos Gerhardt Santos, entre os anos de 1971 a 1975. Por meio dos documentos
examinados no Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, evidenciou-se o uso indiscriminado
da estrutura repressiva contra os opositores do regime ditatorial, o expediente da vigilância contra
movimentos civis e estudantis e, em contrapartida, o silenciamento em relação as práticas do
arbítrio praticado no estado, que ajudaram a forjar uma memória parcial daquele período marcado
pelos Grandes Projetos de Impacto durante a década de 1970.

Palavras-chave: Espírito Santo, memória, repressão, imprensa, ditadura militar.

Michel Pollack (1989) realizou estudos e pesquisas acerca da questão da memória. Por
conseguinte, identificou que a chamada memória oficial predomina porque representa o grupo
social hegemônico; em contrapartida, as outras memórias, por ele denominadas como
“subterrâneas”, permanecem vivas no seio da sociedade. Assim, elas coexistem através da
transmissão oral que passa de uma geração a outra, representando uma forma de resistência aos
discursos oficiais. A permanência dessas memórias entre os grupos minoritários representa um
passado esquecido, silencioso, porém, não morto; segundo o autor, como se estivessem à espera
de sair dos guetos e se tornarem conhecidas.

De acordo com essa perspectiva teórica, ao analisarmos os anos de 1970, o contexto


capixaba e brasileiro, fica em evidência as batalhas da memória, conceito defendido por Pollack. Na
época, o estado capixaba era governado por Arthur Carlos Gehardt Santos (1971-1975). No auge
do período ditatorial, as narrativas oficiais do Executivo Estadual em sintonia com as narrativas
oficiais do governo federal, transmitidas por meio da imprensa, dimensionavam a valorização dos
grandes projetos e das grandes realizações governamentais que buscavam alcançar o progresso e o
desenvolvimento industrial, em detrimento dos acontecimentos reais em curso naquele momento
da história local, e não diferentemente da história nacional.

*Mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do Laboratório de estudos
em História do Tempo Presente (LabTempo-UFES). davirangel28@gmail.com
574

Para corroborar a afirmação acima, cabe refletirmos sobre algumas fontes pesquisadas de
forma a dar a dimensão exata do grau de otimismo e entusiasmo vivido pelo governo capixaba. Tal
fato pode ser constatado na capa do jornal A Gazeta, do dia 07 de abril de 1972, que traz o seguinte
título: “Gerhardt anuncia desenvolvimento com entusiasmo”. Na matéria, o governador faz a
seguinte afirmação: “Ninguém mais segura o Estado”. Essa análise baseava-se nas perspectivas de
desenvolvimento econômico que se abria com os terminais oceânicos visando atender as demandas
do “[...] corredor de exportação que se ocupa da faixa marítima do estado e com a possibilidade de
produção de gás natural nas reservas de São Mateus” (A Gazeta, 07/04/1972, capa).

É interessante notar no discurso político do governador uma clara semelhança com o


discurso do governo federal, pois a expressão “ninguém segura esse país” fora cunhada no governo
Médici. Como dito, Arthur Gerhardt se apropria do slogan para também apresentar a mesma euforia
e ânimo quanto ao desenvolvimento do estado para os capixabas, numa operação semelhante com
a propaganda oficial liderada pela AERP199 utilizava a nível nacional.

No dia seguinte ao anúncio feito pelo governador, em entrevista exclusiva ao jornal A


Gazeta, o mesmo apresenta, na capa do dia 08 de abril de 1972, o seguinte título: “Mensagem de
Arthur traz otimismo para o Estado”. Nela é evidenciada que esse “otimismo” se dá com base na
realidade, fincada com os pés no chão em razão do desenvolvimento do porto de Vitória, dos
investimentos em energia, nas indústrias que estão sendo atraídas pelo potencial logístico e na
construção de infraestrutura do estado. Enfim, temas que foram também pauta de vários outros
editoriais do referido jornal exaltando, por exemplo, “Os portos abertos” (A Gazeta, 04/02/1972,
p. 04); “As projeções do crescimento” (A Gazeta, 20/02/1972, p. 04); “Ação desenvolvimentista”
(A Gazeta, 16/03/1972, p. 04); “Otimismo com base na realidade” (A Gazeta, 01, 02/04/1972, p.
04) entre outras.200

As memórias “subterrâneas” que tratavam das prisões ilegais em nome da Segurança


Nacional, do uso indiscriminado das mais variadas práticas de torturas, cassações de direitos
políticos de cidadãos contrários ao regime entre outros, foram esquecidas e silenciadas durante os
anos da Ditadura Militar. Posteriormente, esse esquecimento foi mantido pelo interesse de
segmentos sociais interessados em relegá-las a escanteio. Porém, é possível fazer um recorte
analítico sobre o papel da imprensa capixaba no escanteamento dessas memórias.

Ao lidar com as fontes, sobretudo neste caso específico os arquivos do Departamento de


Ordem Político e Social do Espírito Santo (DOPS/ES), encontramos informações e dados

199 Assessoria Especial de Relações Públicas.


200 O autor desses editoriais do jornal A Gazeta foi o jornalista Uchoa de Mendonça.
575

relevantes que nos mostram a atuação dos órgãos de informação e de segurança no estado,
alinhados com a Secretaria de Segurança Pública capixaba, em um regime colaborativo que
demonstra o grau de interação entre os governos, federal e estadual. Nos documentos referentes
aos anos de 1971 a 1975, encontramos no Arquivo Público Estadual do Espírito Santo (APEES),
informações importantes a respeito da atuação do sistema de informação e segurança no estado do
Espírito Santo.

O período que corresponde ao final do ano de 1972 e o primeiro trimestre de 1973, fora
decisivo para o sistema repressivo desbaratar a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
no estado, com base no documento produzido em caráter confidencial pelo Ministério do Exército,
cuja origem era o 38º Batalhão de Infantaria (BI) em Vila Velha, de Informação nº 089-S/2-73,
datado em 08 de fevereiro de 1973, difundido entre os órgãos de segurança do estado como
Secretaria de Segurança Pública (SSP/ES), a Polícia Militar (PM/ES), Departamento da Polícia
Federal (DPF/ES) e a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI/UFES). Tal informe
trata, segundo o Relatório Final da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES), dos episódios mais graves de violação dos direitos humanos durante a Ditadura no
Espírito Santo.

O informe (Figura 1) indica que desde o ano de 1969, “esta agência vem se empenhando
no levantamento das atividades do Secretariado do PCdoB na área”. Em 1972, por intermédio da
prisão de Arlindo Sperandio, obtiveram dados e conseguiram montar uma operação que culminou
na prisão de 28 suspeitos de integrarem o partido comunista, sendo indiciadas 33 pessoas no
Inquérito Policial Militar (IPM). Entre os presos encontravam-se: Foedes dos Santos, Jorge Luiz
de Souza, Marcelo Amorim Neto, Mirian Azevedo de Almeida Leitão, Vitor Buaiz, que era
professor universitário na época, entre outros.
576

Figura 1 - Informação nº 089-S/2-73, 08/02/1973

Fonte: APPES

Figura 2 - Informação nº 089-S/2-73, 08/02/1973.

Fonte: APPES

No relatório (Figura 2) é apresentada a função específica de cada membro dentro do


PCdoB, bem como suas atividades em prol do movimento, que ia de pequenas ações – como furtos
de mimeógrafos, panfletagem e pichações de muros com palavras de ordem contra a Ditadura –
577

até o exercício profissional de organização de comitê regional, de acordo com as orientações do


Comitê Central do partido. A maioria dos dirigentes presos em 1973 era formada por estudantes
da UFES. Esse grupo militou dentro do movimento estudantil, o qual por conta do Ato
Institucional Nº 5 (AI-5) foi desestabilizado em decorrência do fechamento dos Diretórios
Acadêmicos e da fiscalização intensa praticada dentro das universidades.

Além dos estudantes universitários, foram fichados e enquadrados no IPM, estudantes


secundaristas, trabalhadores de indústrias, jornalistas, um torneiro mecânico, um técnico de
contabilidade, membros de sindicato rural e dois supostos integrantes da chamada Guerrilha do
Araguaia.

O informe nº 095-S/2-73 (Figura 3), datado de 01 de março de 1973, revela um relatório


extenso sobre a atuação do Secretariado Regional do PCdoB no Espírito Santo. Segundo esse
documento, em outubro de 1971, os comunistas capixabas eram liderados por Foedes dos Santos.
A direção do PCdoB no Espírito Santo ainda contava com a colaboração de dois estudantes: Jorge
Luiz de Souza (Onofre) e Iran Caetano (Dinis), discentes dos cursos de economia e medicina,
respectivamente.

Nele, ainda consta a tentativa frustrada de criar a FRENPES (Frente Patriótica do Espírito
Santo) que tinha por objetivo reunir todas “os elementos descontentes, em todo estado,
independente de ideologia, filosofia ou religião [...]”, com o governo para apoiar os ideais
revolucionários do partido comunista do Brasil.

Porém, tal ação não passou da intenção, pois segundo o próprio documento, o Comitê
Central do PCdoB não autorizou seu funcionamento, “sob a alegação da pouca maturidade de seus
membros”. E, cita, ainda, que “não há indícios de funcionamento, bem como, não foram
levantados elementos vinculados à ‘FRENPES’”.
578

Figura 3 - Informe nº 095-S/2-73, 01/03/1973

Fonte: APPES
Figura 4 - Informe nº 021-S/2-73, 11/01/1973.

Fonte: APEES
579

Outro documento que analisamos (Figura 4), apresentou uma rede de comunicação entre
os órgãos de repressão que passava sempre pela Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo
(SSP/ES). A Informação nº 021-S 2/73, de 11 de janeiro de 1973, trata da documentação
encontrada no Aparelho de Lincon Cordeiro Oest (“Osvaldo” – “Lauro”), membro do Comitê
Central do PCdoB. Nele encontra-se um relatório das atividades previstas pelo PCdoB no que
tange ao recrutamento, divulgação da guerrilha, dos confrontos com a polícia, da prisão dos
companheiros e as mudanças de aparelhos entre outros casos, envolvendo vários estados
brasileiros, inclusive o Espírito Santo.

Sobre o estado capixaba, Lincon Cordeiro Oest relata as atividades desenvolvidas por
estudantes nos centros da universidade, bem como a organização do Diretório Acadêmico na
faculdade de Direito e a panfletagem de folhetos sobre a guerrilha em vários pontos da cidade,
além de alguns trabalhos desenvolvidos em cidades do interior, tais como Cachoeiro de Itapemirim
e Colatina. Essa informação resultou em ações repressivas da polícia e na captura de “subversivos”
nesses locais.

Interessante notar que estes relatos foram feitos entre os meses de junho a dezembro de
1972. Os serviços de inteligência já monitoravam os passos de integrantes do partido comunista.
Por aqueles documentos, revela-se que enquanto o país vivia as campanhas nacionalistas de
exaltação das conquistas e do progresso alcançado pelo Brasil, que culminaria naquele ano com o
ápice das comemorações do Sesquicentenário da Independência e com a volta de D. Pedro I para
casa201, as ações de militantes de esquerda movimentavam o governo militar e colocavam os
serviços de inteligência em estado de alerta máximo, com o intuito de desbaratar focos de
resistências espalhados pelo país, assim como no Espírito Santo.

Duas fontes (Figuras 5 e 6) encontradas nos arquivos do DOPS/ES, que estão preservadas
no Arquivo Público Estadual, merecem atenção, pois se tratam de dois mandados de prisão contra
o ex-estudante de medicina da UFES, Iran Caetano. O primeiro mandado de reclusão é do dia 05
de agosto de 1974, devido a sua condenação à pena de “DEZ MESES DE RECLUSÃO” como
infrator do artigo 14 do Decreto-Lei 898/69. O segundo foi expedido no dia 07 de agosto de 1974
contra os senhores Iran Caetano202, Carlos Alberto Ozorio de Aguiar, José Maurilio Patrício e João
Calatroni. Este último participou da Guerrilha do Araguaia e já se encontrava “desaparecido” desde
as ações militares contra o movimento guerrilheiro.

201 Para maiores informações, ver: Coredeiro, Janaína Martins. O enterro do imperador foi a festa, capítulo II. Livro:
A ditadura em tempos de milagre: Comemorações, orgulho e consentimento. 2015, p. 49-83.
202 Ver o depoimento à Comissão da Verdade da UFES, do ex-estudante Iran Caetano.
580

Figura 5 - Mandado de reclusão, 05/08/1974

Fonte: APEES
Figura 6 - Mandado de prisão, 07/08/1974

Fonte: APPES

Ambos mandados foram expedidos pela Justiça Militar do Rio de Janeiro, circunscrita à 1ª
Auditoria da Aeronáutica. Os documentos foram enviados em caráter de “URGENTE e
RESERVADO”, como todos os documentos produzidos pelos órgãos de informação e segurança
para o Secretário de Segurança Pública do Espírito Santo.
581

É fundamental notar como esses órgãos de segurança se comunicavam entre si e buscavam


a cooperação entre os estados de forma orgânica e estruturada. Era de conhecimento deles que o
réu Iran Caetano já havia sido preso em 1968 pelo DOPS/SP, por participar do XXX Congresso
de Ibiúna que culminou na prisão de centenas de estudantes na cidade do interior de São Paulo.
Portanto, suas atividades estavam sendo acompanhadas de perto há tempos. No Espírito Santo, o
IPM aberto contra o estudante em 1969 ficou a cargo do 38º B.I (Batalhão de Infantaria) que foi o
órgão responsável por investigar atividades “subversivas” em Vitória.

Vale destacar que, em quase todas as fontes do DOPS/ES analisadas neste trabalho, os
documentos possuem uma espécie de classificação hierárquica no sentido de designarem a função
de cada órgão de segurança no processo de investigação de atividades suspeitas de serem
subversivas. O que se pretende frisar com essa afirmação é o fato de que todos eles possuíam:
assunto, origem, classificação, difusão, anexo, referência, de modo a evidenciar o quanto o relatório,
ou o pedido de busca, por parte do órgão responsável para tal ação, contava com uma rede de
apoio que se apoiava em outros órgãos de segurança do estado.

Por exemplo, o pedido de busca nº 046-S2/74 (Figuras 7 e 8), expedido pelo 38º B.I contra
o “terrorista” Paulo Roberto Telles Franck, foi difundido para 3º CSM (3º Comando do Serviço
Militar), DPF (Departamento da Polícia Federal), SSP (Secretaria de Segurança Pública), DOPS
(Departamento de Operações da Polícia Social), PMES (Polícia Militar do Espírito Santo), CPES
(Capitanias dos Portos do Espírito Santo). A difusão das informações entre esses órgãos demonstra
o grau de integração entre eles no âmbito estadual (PMES, SSP, DOPS, 38º BI) e federal (DPF,
CIE, SNI, JUSTIÇA MILITAR DA AERONÁUTICA).
582

Figura 7 - Pedido de busca nº 046-S2/74

Fonte: APPES
Figura 8 - Pedido de busca nº 046-S2/74

Fonte: APPES

Percebemos que os documentos analisados dialogam de forma clara e objetiva entre si, o
que nos leva à seguinte reflexão: Era possível que setores da administração pública estadual, tais
583

como a Secretaria de Segurança do Estado e a Polícia Militar203, estivessem envolvidos em práticas


investigativas contra suspeitos de “subversão”, estivessem cientes de prisões, em alguns casos
participando delas e encaminhando os presos para tortura no 38º B.I (como no caso dos estudantes
do PCdoB) e o executivo capixaba, na figura do governador do estado, não tivesse ciência de fatos
dessa natureza?
No livro biográfico Arthur Gerhardt: o construtor de futuros, a jornalista Chris Martinez relata
uma fala do ex-governador muito reveladora a respeito da questão apresentada acima:

[...] Preocupado com a intervenção dos militares na caçada aos comunistas,


Arthur Gerhardt queria se assegurar de que estaria longe desse assunto e
apenas comprometido com a gestão do Estado. A solução encontrada foi
colocar na Secretaria de Segurança um general [...]. Isso o isentou de ter
que lidar com o general que comandava o 38º Batalhão de Infantaria do
Estado. ‘Fiquei longe dos milicos’ teria dito Arthur.” (Martinez; Paim,
2014, p. 21).

Embora procurasse abster-se, manter-se longe dos “milicos” (termo usado pelo ex-
governador) do 38º B.I e livrar-se dessa responsabilidade, o então governador do estado não se
furtou a cumprir com os protocolos oficiais de sua função e aos convites feitos pelos militares. Em
matéria do dia 26 de agosto de 1972, o jornal A Gazeta apresenta a seguinte reportagem: “Arthur
entrega a Medalha de Pacificador a oficiais” (A Gazeta, 26/08/1072, p. 08). A solenidade do Dia
do Soldado contou com a presença do governador, que foi o responsável por condecorar três
oficiais com a maior honraria do exército brasileiro. Neste dia, estiveram presentes, além do
governador várias autoridades militares e políticas, além de estudantes da educação básica que
foram levados em grande número para prestigiar o evento. Isso revela um menor distanciamento
do referido Batalhão do que aparentemente desejava Arthur Gerhardt.

Nota-se bem que enquanto era propagandeada os efeitos do “Milagre Econômico” pela
imprensa capixaba e as conquistas dos Grandes Projetos de Impacto colocados em prática pelo
executivo estadual, grupos contrários à Ditadura Militar agiam, movimentavam-se e tentavam
resistir dentro do estado. Esses fatos vão de encontro à memória forjada e declarada pelo ex-
governador em entrevista ao jornal A Gazeta em março de 2014, na efeméride dos 50 anos do golpe

203Nos arquivos do DOPS/ES foi encontrado o documento, INFORME nº 011-s2/73, que tratava do estudante da
Faculdade de Direito, Thiago almeida corrêa, investigado pela Polícia Militar de Cachoeiro de Itapemirim por suas
supostas atividades “subversivas” que basicamente se tratava de críticas ao governo do presidente Médici em sala de
aula e nos enfrentamentos com alunos e professores da instituição de ensino feitos por ele. Todas as denúncias foram
encaminhadas para SSP em Vitória, conforme a fonte citada.
584

civil-militar, quando disse que não houve de casos de tortura e prisões a presos políticos no Espírito
Santo.

Sim, lógico que houve, mas em nível nacional. No Estado, nem no


governo de Christiano (Dias Lopes) e nem no meu houve. Christiano
combateu o crime e não a ideologia política. No meu período não teve.
O Christiano teve até algum problema com os militares do 38º Batalhão
de Infantaria. Mas eu, graças a Deus, nunca tive (A Gazeta, 29/03/2014,
Caderno Especial, grifos nossos).

Um importante contraponto às informações do ex-governador sobre a situação política do


estado do Espírito Santo pode ser observado no Relatório Final da Comissão da Verdade da UFES,
especialmente, no capítulo onde é abordado a 3ª onda repressiva na universidade. Esse trecho trata
diretamente das violações dos direitos humanos cometidas em solo capixaba. Para tanto, consta no
relatório os depoimentos feitos à comissão em audiências públicas e privadas de aproximadamente
15 ex-militantes, que sofreram perseguições, torturas e traumas que perduram pela vida inteira,
dentro do 38º B. I. – atualmente o 3º Batalhão de Caçadores em Vila Velha.

A partir de tais depoimentos foi possível recuperar parte daquelas “memórias subterrâneas”
sobre a repressão no Espírito Santo. Por exemplo, segundo um dos depoimentos, entre 22 e 23 de
março de 1971, estudantes da UFES ligados à Ala Vermelha do PCdoB foram detidos e levados
para o 38º B.I. em Vila Velha. Consta, no Relatório da Comissão da Verdade, que “[...] Os presos
foram detidos e levados para o quartel do 3º Batalhão de Caçadores onde foram submetidos a
violentas torturas por agentes do DOI-CODI [...]” (Relatório Final da Comissão da Verdade da UFES,
2015, p. 77), e, que após três dias de prisão, foram transferidos para o famigerado DOI-CODI de
São Paulo.

Os depoimentos dos ex-estudantes prestados à Comissão da Verdade da UFES, como os


de João Amorim, Iran Caetano, Angela Milanez204, entre outros, relatam práticas comuns realizadas
nas dependências do Exército, tais como tortura física e psicológica.

A dramaticidade dos relatos apresentados durante a audiência pública


sobre as prisões a estudantes da UFES torturados no 38 B.I. confirma um
fato: as prisões e torturas são episódios que constituem as mais graves
violações contra os Direitos Humanos durante a Ditadura Militar no
Espírito Santo” (Relatório Final da Comissão da Verdade da UFES, 2015,
p. 100).

204 Para maiores informações, ver os depoimentos à Comissão da Verdade da UFES, disponível em:
http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6768/1/Livro%20Comissao%20da%20Verdade%20%20web.pdf.
585

Na transcrição feita pela equipe de Arquivologia sobre a audiência pública que envolveu a
participação de três ex-estudantes da UFES – Elizabete Madeira, Ângela Martinez e Magdalena
Frechiani – o professor Pedro Ernesto Fagundes, em suas considerações iniciais, faz a seguinte
afirmação, reveladora para aquele momento: “[...] uma das conclusões que podemos adiantar, no
nosso relatório que será entregue no ano de 2015, é que o 38º B.I. (Batalhão da Infantaria) ali em
Vila Velha funcionou como um centro de tortura durante a Ditadura Militar”. E, mais, ao finalizar
seu discurso de abertura ele afirma:

O mais importante de tudo é destacar isso: que o Espírito Santo não foi
uma ilha da fantasia, não ficou alheio à repressão política que ocorria a
nível nacional. No Espírito Santo também tivemos centros de tortura,
tivemos repressão política, tivemos estudantes que foram expulsos dessa
Universidade, tivemos professores que foram exonerados da Universidade
por conta de sua participação política [...] (Audiência pública, Relatório
Final da Comissão da Verdade da UFES, 2014).

Diante desse quadro repressivo marcado pelas prisões, relatos de torturas e aberturas de
processos contra vários capixabas indiciados – considerados “subversivos” perigosos e uma ameaça
à sociedade – buscamos tais informações nas matérias jornalísticas do jornal A Gazeta, durante o
mesmo recorte temporal – de dezembro de 1972 a março de 1973 – e para nossa surpresa
encontramos apenas uma matéria (Figura 9), publicada no dia 17 de março de 1973, sobre a prisão
dos estudantes da UFES. O fato gerou a seguinte nota: “31 envolvidos em subversão no Estado”.

Figura 9 - Jornal A Gazeta, de 17/03/1973

Fonte: APPES
586

Nela constam informações básicas sobre a prisão e o encaminhamento à justiça militar do


Rio de Janeiro, após a abertura de um IPM feito pelo 38º B.I. contra 31 pessoas acusadas de serem
integrantes do Comitê Regional do PCdoB no Espírito Santo e que estavam atuando em Vitória e
em algumas cidades do interior do estado. O detalhe que merece destaque é o final da informação:
“Na relação de materiais apreendidos para as atividades subversivas do PCdoB capixaba, foram
apreendidos mimeógrafos, máquinas de escrever e vários documentos” (A Gazeta, 17/03/1973).

Chama-nos a atenção os possíveis “riscos e as ameaças” à Segurança Nacional que


mimeógrafos e máquinas de escrever provocavam nos militares. Nota-se que a matéria constava
em plano secundário na capa do jornal, sem qualquer informação que pudesse aprofundar o
conhecimento sobre esse fato específico, apenas cita os nomes de todos os integrantes do IPM. A
definição de “subversivos” já era motivo para abarcá-los todos na ilegalidade, na clandestinidade,
na falta de identidade que não despertava o interesse, pois eles eram “subversivos”, “bandidos”,
“foras da lei”, “antibrasileiros” e “comunistas”.

Outro detalhe que quase passa despercebido é que a matéria, datada do dia 17 de março de
1973, não cita o fato de que muitos deles já estavam presos desde 03 de dezembro de 1972,
portanto, no mínimo há três meses, sendo que o Inquérito Policial Militar foi aberto semanas depois
da ocorrência da prisão. Dentro de um Estado Democrático de Direito, isso seria uma grave
arbitrariedade e violação dos direitos humanos cometidos contra o cidadão. Porém no contexto
ditatorial, onde houve a suspensão das leis, ou seja, num cenário de Estado de Exceção,205 era muito
comum os cidadãos serem presos, interrogados (entende-se por interrogatório, práticas de tortura)
e ficarem dias, semanas e até meses “desaparecidos”, sem que os familiares e parentes fossem
notificados de onde eles estavam.

Em evidente contraste, na mesma época, as matérias e editoriais publicados pelo jornal A


Gazeta sublinhavam o otimismo com o futuro. Entre essas manchetes podemos destacar:
“Confiança no futuro” (05/12/1972, p. 4); “O crescimento brasileiro” (14/12/1972, p. 4);
“Desenvolvimento capixaba e perspectivas” (27/12/1972, p. 04); “1973: Cada vez maior”
(01/01/1973, p. 3); “Porto apresenta resultados expressivos no ano de 1972” (01/03/1973, p. 8-
9); “Empresários capixabas consideram importante a viagem do Governador” (18/03/1973, p. 5);
“Hoje: 09 anos da Revolução” (31/03/1973, p. 13). Esses são apenas alguns exemplos que, entre
tantos outros, exaltavam as conquistas, os êxitos governamentais conquistados, o progresso do
Espírito Santo e as viagens do governador em busca de parcerias e de investimentos estrangeiros
para o estado. Por outro lado, a situação repressiva do Espírito Santo era ignorada.

205 Ver: Agamben (2004).


587

Por exemplo, foi apresentada apenas uma nota no jornal A Gazeta, entre dezembro de 1972
a março de 1973, sobre o caso dos estudantes da UFES integrantes do PCdoB. Houve apenas um
editorial sobre subversão206, e absolutamente nada mais sobre as prisões de presos políticos e nem
sobre as torturas em qualquer dependência oficial do estado.

É nesse contexto que se situa a imprensa. Fica claro que enquanto órgão de mediação entre
a sociedade civil e o governo instituído, ela, embora tenha sido cerceada e perseguida, em muitos
casos foi conivente e cúmplice das arbitrariedades praticadas tanto no Brasil quanto no estado do
Espírito Santo. A ausência de notícias e de reportagens ligadas às manifestações de grupos civis
contrários à Ditadura Militar em solo capixaba e o “desaparecimento” delas nos noticiários da
imprensa local não significa que elas não existiram e que não incomodaram. Tanto que os sistemas
de Informação e de Segurança monitoravam sistematicamente as ações e os passos de qualquer
grupo ou cidadão ligado aos movimentos de esquerda207.

A grande questão é que elas não apareciam nas páginas jornalísticas. O grande público, o
cidadão comum não recebia essas informações propositalmente. Os discursos políticos forjados de
maneira intencional para atender a uma demanda específica do poder vigente, mais o apoio da
imprensa local na maioria das vezes consensual ao regime, ajudaram na elaboração de
representações favoráveis sobre o governo estadual no início da década de 1970, produzindo um
tipo de memória positiva naquele contexto específico que contribuíram para estabelecer o
consentimento com amplos setores da sociedade capixaba.

Referências

Agambén, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora BoiTempo 2004.

Cordeiro, Janaína Martins. A Ditadura em Tempos de Milagres: Comemorações, orgulho e


consentimento. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2015.

Fagundes, Pedro Ernesto et al. O estado do espírito santo e a ditadura (1964-1985). Vitória: GM, 2014.

Fagundes, Pedro Ernesto. Foi Sempre Assim: Modus Operandi da Polícia Política do Estado do
Espírito Santo (1930 a 1985). In: Fagundes, Pedro Ernesto (Org.). Arquivos da Repressão Política

206 O único editorial de A Gazeta, entre dezembro de 1972 a março de 1973, que tratou do tema foi publicado no dia
15/12/1972, p. 04, intitulado “Os subversivos”.
207 Alguns cidadãos, entre eles políticos da oposição, foram investigados e perseguidos pelo sistema de segurança,

mesmo que alguns deles não desempenhassem mais atividades consideradas “subversivas”. Com base nos documentos
do DOPS, ver: Informação nº 126/74-SII-DOPS/ES; Informação nº 094/74-S.I.I-DOPS/ES; Informação nº 420-
S/2-74; Informação nº 62/75-SII-DOPS/ES, que trata dos seguintes investigados: Sérgio Pinheiro, Hélio Manhães
(ex-prefeito de Cachoeiro de Itapemirim pelo MDB, entre 1970 e1974), Galdino Teodoro da Silva e Guilherme Lara
Leite.
588

no Estado do Espírito Santo (1930-1985). Vitória, Espírito Santo: GM Editora, 2011, p. 11-34.
(Coleção Rumos da História).

Fico, Carlos. Reinventando o otimismo: Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997.

Martinez, Chris; Paim, Antônio (Orgs). Arthur Gerhardt: O construtor de futuros. Vitória-ES,
Editora Abook, 2014.

Pollak, Michel. Memória esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2,
N 3, 1989.

Arquivos Online:
http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6768/1/Livro%20Comissao%20da%20Verdade%20%2
0web.pdf.

Acervos Pesquisados:
- Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: Delegacia de Ordem Política e
Social do Espírito Santo. Dossiês diversos.
- Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Fundo/Coleção: Jornal A Gazeta.
- Entrevistas concedidas a Comissão da Verdade da UFES.
589

A disciplina Estudo(s) de Problemas Brasileiros e o projeto de


nação dos governos militares para a juventude universitária (1969-
1974)

Davison Hugo Rocha Alves*

Resumo: A presente comunicação é resultado das pesquisas em andamento feitas para a tese de
doutoramento no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA),
que tem como objetivo estudar a história de uma disciplina acadêmica em tempos de ditadura
militar chamada de Estudo(s) de Problemas Brasileiros. A comunicação pretende debater a
construção curricular da disciplina EPB para o ensino superior, a partir da promulgação do decreto-
lei nº 869 de 12 de setembro de 1969 também será desta comunicação. A disciplina EPB tinha dois
elementos centrais dentro de proposta de sua formulação, que são: a Doutrina de Segurança
Nacional (DSN) e a tradição católica. Os militares assumem o protagonismo do processo educativo
brasileiro para o ensino superior, por exemplo, temos o papel da Escola Superior de Guerra (ESG)
no espaço brasileira, como os valores espirituais e morais da nacionalidade para o fortalecimento
do homem brasileiro e da democracia brasileira a partir das conferências voltadas para o ensino
superior. O argumento central que se quer desenvolver com essa pesquisa é a seguinte: após o ano
de 1968 com greves, passeatas, manifestações dentro das universidades contra os acordos MEC-
USAID e ações arbitrárias dos reitores conversadores, os governos militares criaram mecanismos
de controle da juventude universitária, onde a disciplina acadêmica EPB tornou-se peça-chave nos
espaços acadêmicos, para a implementação do projeto de nação pretendido.

Palavra-chave: história das disciplinas acadêmicas, governos militares; juventude universitária;


movimento conservador

Um campo de pesquisa na fronteira da História e da Educação: A História das disciplinas


Acadêmicas

A presente comunicação é resultado das pesquisas em andamento feitas para a tese de


doutoramento no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA),
teremos como objetivo estudar a história de uma disciplina acadêmica em tempos de ditadura
militar chamada de Estudo(s) de Problemas Brasileiros. Usaremos como reflexões as pesquisas
desenvolvidas durante o ano de 2020, elas ocorreram mediante pesquisa física nos arquivos do
INEP e no Arquivo Nacional sediado em Brasília. O presente texto está divido em 3 partes: 1)
iremos realizar a contextualização do objeto de pesquisa e sua relação teórico-metodológica; 2) A
criação da disciplina EPB e o projeto de nação dos governos militares, por meio da legislação

*Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA). Mestre em História


Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: davison.rocha20@yahoo.com
590

educacional, dos documentos oficiais e dos intelectuais do MEC; 3) Considerações sobre a


disciplina EPB e sua intervenção social na sociedade brasileira.

O debate teórico-metodológico em que está inserido o presente objeto de pesquisa é a


denominada História das Disciplinas Escolares. Usamos as concepções de André Chervel (1990)
que tenta compreender como as disciplinas funcionam, bem como as indagações de Ivor Goodson
(2020), quando nos diz que as disciplinas acadêmicas podem ser consideradas um campo de
disputas, lutas e protestos contínuos. Pois bem, a disciplina EPB desde a sua criação, no final dos
anos 1960 ela foi sendo vista como um campo de disputas, por dentro do regime militar. Segundo
Maria Auxiliadora Schmidt (2012, p. 73) o conjunto de reflexões da História das disciplinas
Escolares precisam ser observados pelos pesquisadores a partir de sua especificidade, apontando
para a necessidade de entender as mudanças e continuidades, que são inscritas dentro de um
processo de longa duração. Portanto, a presente pesquisa está inserida dento de uma História Social
do Currículo.

Em 1969, assumiu uma junta governativa no Brasil, diante da impossibilidade de continuar


no cargo o ex-presidente Costa e Silva por questões de saúde. Na noite do dia 30 de agosto de 1969
na cidade do Rio de Janeiro as forças armadas reuniram-se com a intenção de discutir o problema
o impedimento do então chefe militar Costa e Silva. Os militares que participaram foram os
seguintes: o general Aurélio Lira Tavares, do Exército, o almirante Augusto Rademaker Grünewald,
da Marinha, e o brigadeiro Márcio de Sousa e Melo, da Aeronáutica.

O ato Institucional nº 12 (AI-12) informa que as funções da presidência foram assumidas


de maneira interina por uma junta militar que tinha com finalidade dar continuidade aos atos da
administração pública. Durante o ato que ocorreu no dia 31 de agosto de 1969 em cadeia nacional
ficou acordado que o vice-presidente Pedro Aleixo não iria assumir a presidência da República
como previa a constituição federal de 1967.

O debate local sobre a disciplina acadêmica EPB ainda está em construção dentro dos
estudos historiográficos, percebemos que existem diversas produções sobre a disciplina Educação
Moral e Civismo e os sentidos atribuídos a esta disciplina nas diversas regiões do país, no entanto,
carece de estudos aprofundados sobre a disciplina EPB no que se refere ao seu projeto de nação
pensados pelos governos militares para a juventude universitária. Por isso, recorremos aos
trabalhos em torno da EMC para compreender o projeto de educação. Os trabalhos de Lerner
(2013) para a compreender a experiência da disciplina EPB na UERJ na pós-graduação, e os
trabalhos de Bertotti (2015) e Koch (2019) para compreender a experiência da disciplina EPB na
591

graduação na UFPR e na UFRGS são os únicos trabalhos que foram feitos sobre o tema em
questão.

O debate sobre a disciplina acadêmica EPB ainda está em construção no Brasil. O


movimento regionalizado está posto. Os debates sobre algumas experiências locais estão postos
pela historiografia educacional universitária acima mencionado. Os historiadores e nem os
pedagogos ainda não realizaram uma pesquisa sobre o debate nacional relacionado a disciplina EPB
e sua construção educacional, bem como as resistências ao projeto de educação pensado pelos
governos militares, após o ano efervescente de 1968.

O ministério da Educação e Cultura era comandada pelo coronel Jarbas Passarinho (1969-
1974), ele havia assumido o comando da pasta ministerial após a decretação do AI-5 e no momento
de grande repressão política no Brasil. A ditadura militar havia perseguido os trabalhadores, os
camponeses em 1964 e agora preparava-se para a guerra revolucionária dentro das universidades e
escolas brasileiras. O decreto-lei nº 477 de 26 de fevereiro de 1969 define infrações disciplinares
praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino
público ou particulares. Era o início da repressão do novo ciclo repressivo e a construção de um
estado ditatorial comandado com mais vigilância e controle em torno das ações estudantis (Motta,
2014, p. 148).

Portanto, a disciplina Estudo de Problemas Brasileiros (EPB) surge em meio ao contexto


social e político turbulento. O ministério da Educação e cultura queria construir um projeto de
socialização político-ideológica que possuía as seguintes características: moderno, autoritário,
liberal e conservador. A disciplina acadêmica possuía uma peça-chave de construção do projeto de
nação dos governos militares no pós-1968.

O decreto-lei nº 869 de 1969 foi considerada a lei da Educação Moral e Cívica dos governos
militares. No ensino superior, segundo o decreto-lei em seu artigo 2º no seu parágrafo 2º destaca
que “o sistema de ensino superior, inclusive pós-graduado, a Educação Moral e Cívica será
realizada, como complemento, sob a forma de Estudos de Problemas Brasileiros, sem prejuízo de
outras atividades culturais visando ao mesmo objetivo”. Aliado a essas duas reformas educacionais
foi pensada formas de controlar a juventude brasileira por dentro das instituições públicas.
Podemos destacar como intervenções neste período a criação da Comissão Nacional de Moral e
Civismo (CNMC) em ato administrativo no dia 12 de setembro de 1969, ela foi estabelecida por
meio do decreto lei 869 de 1969, que tinha como objetivo de implantar a doutrina e de instituir a
disciplina Educação Moral e Cívica em todas as escolas do país. A Comissão Nacional de Moral e
592

Civismo (CNMC) tinha a função de fiscalizar, de difundir e de implantar a doutrina da Educação


Moral e Cívica (EMC).

A disciplina acadêmica surgiu em 1969 e o seu término no currículo escolar data do ano de
1993, no entanto, nesta apresentação abordaremos apenas o período de implementação pelo
governo militar durante a gestão do ex-ministro da educação e cultura Jarbas Passarinho. A ideia
central que trabalharemos nesta comunicação é que a disciplina Educação Moral e Cívica para todos
os níveis de ensino ainda não tinha sido implementada durante os anos 1970, ela ainda não havia
sido consolidada dentro da prática educativa208, após 3 anos de efetivo decreto-lei nº 869 de 12 de
setembro de 1969.

A disciplina era ministrada por professores aposentados sendo escolhidos pelos diretores
das escolas públicas. Não havia uma formação de professores para a disciplina Educação Moral e
Cívica, o que complicava ainda mais o processo pedagógica da disciplina recriada em 1969. A
professora Esther Ferreira durante conferência ministrada na Escola Superior de Guerra em agosto
de 1971 destaca a improvisação do ensino de moral e cívica, ela destaca que

O ensino de moral e cívica, quando mal orientado, pode ser contraproducente.


A aplicação da matéria está estruturada na mais absoluta improvisação e qualquer
erro ou imprudência que se cometa em assuntos como este pode levar a
resultados irreversíveis. Por isso, a maior preocupação dos sistemas da Educação
Moral e Cívica deve ser a formação de professores especializados. Este tipo de
ensino, quando mal orientado e conduzido, pode desprestigiar a matéria, ao invés
de lhe encarecer a importância209.

Devido à falta de orientação pedagógica, os professores de Educação Moral e Cívica


estavam desvirtuando o ensino desta disciplina, a incompetência dos professores limitavam a
ensinar o aluno somente a desenhar a bandeira, a cantar o Hino Nacional e a conhecer os vultos
históricos210. Não seriam estes os objetivos nacionais pretendidos pela disciplina recriada com o
decreto 869 de 12 de setembro de 1969.

A Operação limpeza organizada pelos novos donos do poder foi sendo arquitetada e
colocada em prática. Os chamados integrantes subversivos foram sendo perseguidos. Em 1964,
houve primeiro a operação limpeza dentro dos sindicatos e dos organizadores de trabalhadores
rurais. Em 1969, houve a perseguição dentro das escolas públicas e das universidades com o decreto
lei nº 477 e a AC-75, que foi publicado no dia 21 de outubro de 1969, ele proibiu a atuação de

208 Jornal do Brasil. Ensino de Moral e Cívica ainda não se definiu. Domingo, 30/03/1972, 1º caderno, ensino, p. 33.
209 Idem, p. 33.
210 Idem, p. 33.
593

todos os professores que foram demitidos por razões “ideológicas”. Apesar do CFE ser
subordinado aos olhares do presidente da república, podemos perceber que ele possuía entre os
seus conselheiros indicados pelo presidente da república que gozassem de uma autonomia dentro
das funções acima que foram elencadas pela lei 4.024 de 1961.

O decreto nº 68.065 foi baixado no dia 14 de janeiro de 1971 regulamentava a ação do


Conselho Nacional de Moral e Civismo (CNMC), ele tinha como característica central apresentar
a estrutura da comissão, bem como os funcionário do governo que estavam atrelados a este órgão
federal. Caberia a CNCM estimular a criação de centros cívicos nos estabelecimentos de ensino do
país em todos os níveis de ensino. No ensino fundamental havia os chamados Centro Cívico
Escolar e nas universidades eram chamados de Centro Superior de Civismo.

Os militares queriam atrair a juventude brasileira para o seu projeto de poder, para isso eles
utilizaram elementos importantes como o projeto extensionista chamado Centro Rural
Universitário de Ação Comunitária (CRUTAC) que foi desenvolvido no interior da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRJ) durante a gestão de Onofre Lopes. O projeto tinha como
modelo de referência a atuação de estudantes em comunidades rurais. Era considerado um projeto
assistencialista voltado para o interior do Brasil. Tendo como base a doutrina de Segurança
Nacional ela ganhou força dentro das ações do governo federal no combate à pobreza e a subversão
(Gonçalves; Vieira, 2015, p. 278).

Podemos destacar também o projeto Rondon foi elaborado em outubro de 1966 dentro do
I Seminário sobre Educação e Segurança Nacional que foi realizado na cidade do Rio de Janeiro.
O evento contou com a participação de professores, de militares e de docentes de diversas
instituições que junto com a Escola do Comando e Estado-Maior das forças Armadas apresentadas
as linhas gerais do projeto Rondon. O idealizador do projeto Rondon foi Wilson Choeri, ele tinha
como objetivo fazer a integração das regiões consideradas economicamente mais carentes do Brasil
e através do intercâmbio de estudantes universitários de todas as regiões do Brasil realizar a
integração ao projeto de desenvolvimento do país. O slogan do projeto Rondon era “Integrar para
não entregar”, ele estava em consonância com o projeto de poder difundido pela Doutrina
Nacional de Segurança e Desenvolvimento articulada pelos militares da Escola Superior de Guerra.

A disciplina Estudos de Problemas Brasileiros (EPB) fazia parte da estratégia dos governos
militares atuarem frente ao esfacelamento da moral cristã, do avanço das ideias comunistas e da
luta ideológica na sociedade brasileira após a revolução cubana. Os estudantes universitários
estavam encantados com a revolução que ocorrera em Cuba e queriam criar estratégias para
desestabilizar os governos nacionais. No Brasil não foi diferente.
594

O conceito de estratégia que utilizamos neste ensaio é de acordo com Michel Certeau (1994)
como o uso da disciplina Estudo de Problemas Brasileiros como elemento central de construção
social do regime militar no Brasil. A disciplina era durante o ciclo básico o primeiro contato com a
realidade brasileira criada pelos governos militares. Segundo Michel Certeau (1994, p. 99) a
estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se
podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças.

No contexto dos anos 1960 era necessário criar uma narrativa de combate ao comunismo,
de um perigo vermelho dentro da sociedade brasileira (MOTTA, 2002) que permitiria fazer uma
contracorrente por meio das ações governamentais. Para isso a disciplina Estudos de Problemas
Brasileiros precisava estar conectada com os anseios do jogo do poder, ela precisou ser pensada a
partir de dois instrumentos de controle criados pelos governos militares, a saber: a tríade Deus-
Pátria-Família e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN).

A ação do conservadorismo na sociedade brasileira englobou setores da igreja católica ao


novo projeto de nação arquitetado pelos donos do poder que assumiram o país no dia 31 de março
de 1964 para o dia 01 de abril de 1964. Deus-Pátria-Família era considerado a trilogia da educação
nacional. O papel desempenhado pela disciplina Estudo de Problemas Brasileiros deveria
promover hábitos democráticos e despertasse na juventude brasileira a sua consciência cívica de
amor pátria e a obediência aos costumes e tradições da moral cristã.

A necessidade de defender o Brasil do comunismo foi outro elemento presente na


construção do projeto de nação, podemos perceber claramente a ideologia presente na Doutrina
de Segurança Nacional quando adverte que “os princípios democráticos” tinham que ser
assegurados ao homem na sociedade brasileira. A disciplina Estudo de Problema Brasileiros tinha
em seu conteúdo esses dois elementos considerados essenciais no contexto de pós-1968.

A educação para a cidadania precisava estar alinhada aos interesses nacionais conforme
formulava as ações dos governos militares, desde a revolução democrática de 1964 podemos
perceber que há um esforço de construir este sentimento dentro da sociedade brasileira. Podemos
perceber isto por exemplo na fala do marechal Ignácio de Freitas Rolim quando ele publica o texto
“A cidadania para os objetivos nacionais” afirmando que as aspirações do povo brasileiro se
objetivam através das expressões seguintes: Conservar a Unidade nacional e a autonomia regional,
bem como a zelar pela incorruptibilidade da família, realçando a prática de virtudes morais e da fé
religiosa ecumênica encarada (Rolim, 1964, p. 35).

Estes elementos estarão presentes na disciplina Estudos de Problemas Brasileiros (EPB)


que possuem duas chaves importantes para a sua execução no ensino superior, que são: a Doutrina
595

de Segurança Nacional e a relação da tríade Deus-Pátria-Família como as bases elementos do novo


modelo de ensino nacionalista pensado pelos militares no pós-1964. A Escola Superior de Guerra
em parceria com a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) organiza um
ciclo de conferência sobre segurança e desenvolvimento na cidade de Belém ocorrido no mês de
setembro de 1969. No mesmo momento em que a sociedade brasileira estava institucionalizando a
discussão por meio do decreto-lei nº 869 de 12 de setembro de 1969, refiro-me a discussão da EMC
para todos os níveis de ensino. As conferências apresentadas 90% por militares versavam sobre os
seguintes temas: (1) Segurança interna; (2) Metodologia para o estabelecimento da política de
segurança nacional; (3) Política, poder e segurança nacional; (4) As Informações – conceitos
fundamentais; (5) Objetivos Nacionais permanentes; (6) Desenvolvimento – conceitos
fundamentais: (7) Elementos básico da nacionalidade – A terra, os homens e as instituições; e (8)
Estratégia Nacional – conceitos fundamentais.

A Escola Superior de Guerra (ESG) apresenta a sua leitura didático-pedagógica para o


espaço escolar. Os intelectuais desta instituição militar constroem a sua leitura educacional, eles
participam da construção social da disciplina EMC para todos os níveis de ensino, um saber que
não exerce o pensamento crítico, as ações sociais dos diversos grupos que compõem a sociedade
brasileira. Havia um inimigo interno a ser combatido, era as concepções marxistas dentro dos
diversos espaços públicos e privados. Os militares no poder a partir da disciplina EPB, acabam
invertendo a lógica educacional. Posteriormente, a lei 5.692 de 1971 apresenta uma mudança na
educação brasileira, levando a construção de concepção tecnicista, como objeto de discussão em
detrimento da formação humana do indivíduo. O modelo tecnicista da educação brasileira
transforma o professor em mero transmissor de conhecimento.

O discurso oficial de forma geral, e particularmente no que dizia respeito a


educação, apontava para a consecução dos propósitos da ditadura, cerceando os
direitos de expressão e informação. Aos professores e alunos, era atribuído
apenas o papel de transmissores, reprodutores, enfim receptores e propagadores
de um saber pronto apto a se consolidar (Trindade, 2014, p. 5).

Diante do balanço exposto sobre a disciplina história das disciplinas e a consolidação deste
campo de pesquisa, cabe ressaltar que a historiografia ainda não construiu um trabalho de fôlego
que apresente a nível nacional a experiência desta disciplina acadêmica, conhecida como Estudo(s)
de Problemas Brasileiros. É um campo de pesquisa em aberto dentro do debate mais amplo no que
se refere a historiografia da ditadura militar no Brasil. Portanto, consideramos importante fazer
essa reflexão a partir de diversas fontes históricas. Fazer um movimento de conexão das margens
para o centro do processo educacional, compreendendo como determinados saberes tornaram-se
596

legalmente importantes para ser ensinados aos jovens e universitários no Brasil durante os anos
1970.
Podemos compreender que a disciplina Estudo(s) de Problemas Brasileiros estava dentro
do jogo de poder, ela serviria para a construção de legitimidade do regime militar durante os anos
1970, pois, havia o empenho de determinado grupo social na construção social do regime militar.
Conforme destaca Maria José Rezende, quando nos afirma que

O regime político que irrompeu a partir de 1964 se debateu, desde seus primeiros
momentos, para atestar a legitimidade de seu poder de mando e decisão. Para
isso, ele lidou com dois desafios. O primeiro foi construir os elementos que
viessem a certificar, de imediato, que aquele movimento era legítimo. O segundo
se caracterizou pelo empenho do grupo de poder em dar continuidade ao
processo de construção da legitimidade no transcorrer dos governos ditatoriais
(Rezende, 2013, p. 32).

Para isso, eles deveriam criar o consenso na sociedade de democracia. A disciplina


Estudo(s) de Problemas Brasileiros serviria como baliza para este entendimento, ela nos apresenta
que as questões permanentes dos objetivos nacionais, precisam estar no centro da discussão
universitária, quem ditava as regras eram os donos do poder castrense.

O apelo do grupo de poder da ditadura à adesão dos demais grupos sociais


confundia-se, indubitavelmente, com a justificação do poder que a mesma
possuía de restaurar a ordem e a legalidade. Os valores de preservação da família,
da escola, da harmonia no trabalho, da propriedade, da obediência às normas
políticas e jurídicas que se estabeleciam, eram apontados pelo regime como
garantidores de uma suposta ordem democrática e da suposta forma de sociedade
que estaria sendo criada (Rezende, 2013, p. 38-39).

Por outro lado, cabe ressaltar que a disciplina Estudo(s) de Problemas Brasileiros constitui-
se como espaço privilegiado para a construção psicossocial, que foi pretendido pelos governos
militares, atraindo pelo método da persuasão a juventude universitária, espera-se que eles
construam um diálogo mais presente com os governos militares.

A insistência da ditadura em mostrar que a preservação de determinados valores


sociais expressava os anseios da população como um todo e não de qualquer um
de seus segmentos em separado remetia, seguramente, à sua pretensão de
legitimidade. A adesão aos seus atos, medidas e ações, bem como a seus desígnios
passava, indubitavelmente, pelo plano subjetivo. Nessas condições, a pretensa
democracia que o regime se dizia incumbido de criar seria ajustada e disciplinada
num campo mais abrangente que o político, ou seja, no campo psicossocial.
(Rezende, 2013, p. 48).

A Escola Superior de Guerra possui um papel estratégico, ela foi importante na legitimação
do projeto de nação, que fora pretendido pelos governos militares. Os estudantes universitários
estavam no centro da disputa ideológica, durante os anos 1970, percebemos que era um campo de
597

forças, de um lado a direita por dentro do regime, e de outro, as concepções socialistas, elas eram
advindas das diferentes experiências no campo da esquerda a nível internacional, elas haviam
chegado a América Latina com a Revolução Cubana, e estavam conquistando a juventude
universitária brasileira.

Referências

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Norberto. A questão nacional e as tradições nacional-estatistas no Brasil, América Latina e África. Rio de
Janeiro: editora FGV, 2015.

Cordeiro, Janaína. Direitas em Movimento: a campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no


Brasil. Rio de Janeiro, editora FGV, 2009.

Cordeiro, Janaína. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do Sesquicentenário da


Independência entre consenso e consentimento. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação
em História. Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2012.

Grinberg, Lúcia. Partidos políticos ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora
Nacional (Arena), 1965-1969. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História.
Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2004.

Kushnir, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à constituição de 1988. São Paulo:
editora Boitempo, 2004.

Quadrat, Samantha. “Para Tatá, com carinho!”: a boa memória do pinochetismo. In: Azevedo,
Cecília; Rollemberg, Denise. Cultura política, memória, historiografia. Rio de Janeiro, editora FGV,
2009.

Lombardi, José; Saviani, Demerval; Moura, Maria Isabel. Navegando pela história da educação
brasileira. Campinas, SP: FE: HISTEDBR, 2006. [verbete on-line].

Mota, Rodrigo. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: editora Jorge Zahar, 2014.

Silva, Francisco Carlos Teixeira da. Vox, voces (re)memorar. Rio de Janeiro: editora multifoco, 2012.

Rezende, Maria José de. A ditadura militar no Brasil: Repressão e pretensão de legitimidade (1964-
1984). Londrina, Eduel, 2013.

Rollemberg, Denise. Memória, opinião e cultura política: a Ordem dos Advogados do Brasil sob
a Ditadura, 1964-1974. In: Aarão Reis, Daniel; Roland, Denis (org.). Modernidades e Alternativas.
Rio de Janeiro, 2008.

Trindade, Judith. A História sumiu: o ensino de História durante a ditadura militar. In: Schimidt,
Maria; Abud; Kátia (org.). 50 anos da ditadura militar no Brasil: capítulo do Ensino de História no
Brasil. Curitiba: W&A Editores, 2014.
598

Em busca da legitimidade: a proposta da Constituinte de 1967 no


Jornal do Brasil

Dayane Cristina Guarnieri*

Resumo: Ao longo de 1964 e 1965 o Jornal do Brasil forneceu um apoio constante ao governo
militar justificando que seus atos ilegais e repressivos eram legítimos, pois estavam supostamente
fundamentados na busca pela democracia, pela legalidade e pela ordem. Assim, a recepção do
primeiro Ato Institucional foi comemorada como símbolo da legalidade e legitimidade do novo
governo. Mas em contrapartida, a imposição do Ato Institucional n.º 2 foi compreendida como um
momento de ruptura ao apoio irrestrito realizado pelo período. O objetivo do texto é fazer uma
análise dos posicionamentos do Jornal do Brasil a partir do AI-2 e compreender as principais
justificativas que respaldam sua mudança editorial que se torna mais crítica ao governo vigente. Se
nota a formação de textos que questionam o excesso de poder do Executivo, colocado acima das
leis e o desvio dos objetivos democráticos do movimento de 1964, ao qual o periódico se diz
devoto. A crítica consiste no encaminhamento do governo que ao invés de se deslocar rumo a
democracia indica que pretende institucionalizar um governo arbitrário. Os editoriais ressaltam a
necessidade da reformulação de um novo regime, e para isso atuam em uma campanha em favor
da Constituinte, que representaria a possibilidade de uma retomada democrática e a contenção da
arbitrariedade repressiva e ilegal do regime, conferindo legitimidade ao governo.

Palavras-chave: legitimidade, constituinte, constituição.

Desde 1965 o Jornal do Brasil esboça uma forte preocupação sobre a necessidade de
reestruturar a legislação, por meio da realização de uma Constituinte, que demarcasse a imagem
de um governo que pretendia resolver o problema imposto pela proliferação de leis circunstâncias.

De acordo com o JB a organização da ordem jurídica garantiria: a estabilidade política


para a reestruturação da democracia estável, o que iria repelir o mergulho do país na ditadura e
legitimar as ações do governo militar. Como se nota nessa perspectiva a Constituinte era
apresentada como a solução para se aproximar da democracia.

O foco sobre a temática de uma Constituinte e uma nova Constituição intensifica-se


durante o ano de 1966 nos editoriais do Jornal do Brasil se destaca a sua insatisfação quando
constata que processo de confecção da Constituição estava sendo exercido quase exclusivamente
pelo pequeno círculo do governo militar. Apesar da constatação, o periódico promove um debate
revelando sua crença de que a Carta de 1967 promoveria uma transição do regime de arbítrio para
uma estrutura organizada da ordem jurídico-constitucional, os editoriais frisam a preocupação

*
Mestra em história social pela Universidade Estadual de Londrina.
599

sobre o direcionamento político da nova ordem jurídica, dando notoriedade: a falta de informação
sobre as tendências do projeto constitucional, a relutância de se realizar uma Constituinte e as
manipulações em torno do Congresso.

A reformulação político-institucional, cujo fruto era uma nova Constituição, passou por
várias conjecturas do Jornal do Brasil que assinala a resistência em expor os princípios que iriam
nortear Carta de 1967. As dúvidas sobre os procedimentos se concentram em quem operaria a
consolidação constitucional uma Comissão de Juristas sem a participação do Congresso, um
Congresso com poder Constituinte, supostamente, cedidos pelo Executivo, ou uma simples
outorga presidencial do projeto constitucional.

A questão do retorno de um regime constitucional permeou as discussões no JB desde


o início do governo militar, mas intensifica-se em 1966 quando a opinião editorial considera que
o país se encontrava no auge da desorganização da estrutura jurídica imposta pelos Atos
Complementares e Institucionais.211 Assim o periódico enfatiza a necessidade da realização de
uma Constituinte que junto com a posse de Costa e Silva em 15 de março de 1967 marcariam o
momento de redemocratização do país.

O Jornal do Brasil anuncia que a legislação produzida pelo governo militar deslegitimou a
“Revolução” ao demonstrar o seu sentido discricionário. Por isso ele destaca o erro do governo
militar ao tentar obter a legitimidade da “Revolução”, por meio, de medidas arbitrárias ou da
incorporação destas na Carta de 1946. Para o periódico somente uma Constituinte teria a
capacidade de legitimar novamente o projeto político do governo militar, porque representa um
instrumento consagrado pela prática democrática brasileira.

A Constituinte seria um marco histórico de 31 de março e, no plano político, o


governo resguardaria a sua unidade até transmitir ao futuro Presidente da
República as responsabilidades de prosseguir a missão renovadora com base na
estabilidade que não pode prescindir do selo de legitimidade, de competência
exclusiva da Constituinte. (Jornal do Brasil, 9 e 10 de janeiro de 1966, p.6, tít.:
Coragem e realismo).

A ideia editorial ainda afirma que a reforma constitucional era a única possibilidade de
garantir “a obra legitimadora nas características de sacramentalidade democrática e de permanência
histórica: a convocação de uma Constituinte”. (Jornal do Brasil, 9 e 10 de janeiro de 1966, p.6, tít.:

211Dentre alguns exemplos de tentativas de desestruturação jurídicas pelos Atos complementares e Institucionais para
beneficiar o governo militar estão a tentativa de anular o Judiciário, impedir atividade de políticos cassados que
possuíam popularidade, dificultar qualquer tipo de oposição ao retirar o direito de defesa do cidadão, e atrapalhar a
organização política dos partidos quando os destruiu.
600

Coragem e realismo). “A legitimação perfeita e acabada dos atos da Revolução só poderá ser
alcançada por via Constituinte e pelo novo Congresso a ser eleito este ano”. (Jornal do Brasil, 25
de janeiro de 1966, p.6, tít.: Soluções circunstanciais)

Em fevereiro de 1966 o presidente da República institui uma Comissão de Juristas


composta por: “Levi Carneiro, Seabra Fagundes, Orozimbo Nonato e Temístocles Cavalcanti”.
(Grinberg, 2009, p.103) Estes deveriam garantir “uniformidade aos textos básicos constitucionais
e institucionais”. O governo anuncia que o objetivo dessa Comissão Especial era homogeneizar
os textos básicos da ordem jurídica em vigor, ou seja, incorporar a legislação produzida pelo
governo militar à Constituição. (Jornal do Brasil, 15 fevereiro de 1966, p.6, tít.: Reforma
Constitucional.

Depois de pronto o anteprojeto desenvolvido pela Comissão de Juristas, o presidente


exige a elaboração de um novo projeto ao novo Ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva,
conhecido pela sua tendência antiliberal. Para Martins Filho (1996, p. 84) a nomeação em julho do
jurista Carlos Medeiros Silva para substituir Mem de Sá no Ministério da Justiça, representa um
“divisor de águas na definição castelista por um projeto sem resquícios de liberalismo".

Essa trama evidencia que a rejeição do projeto produzido pela Comissão, caracterizado
pela sua essência liberal não satisfazia mais os anseios do governo militar. Compreendendo que
desde 1964 o governo militar agiu por meio de leis configuradas para legitimar suas ações arbitrárias
e ilegais, concorda-se com a afirmação de Lucia Grinberg (2009, p. 102) de que a elaboração de
uma nova Carta no início de 1966 torna ainda mais notória a “preocupação do governo com os
formalismos jurídicos”.

Para o JB a legitimidade de uma Constituinte estava intrínseca ao “consentimento


popular”, visto por ele como a solução para a crise oriunda da desordem jurídica. Sobre isso Silva
afirmou que existia o consenso de que “o titular do poder Constituinte é o povo. [...] significa dizer
que as leis precisam ser editadas em nome da maioria dos membros da nação e/ou por eles
aprovada”. (Silva, 2009, p. 33).

O sentido de democracia para o JB está extremamente ligado ao sentido de representação


congressual. Portanto, o aval popular se reflete nos representantes eleitos que serviriam para
legitimar a atuação do governo militar:

Não vemos que outra saída passa existir para a sobrevivência do estado de direito
no País, quando tudo é tumulto à nossa volta, senão aquela que implica a urgente
e autêntica legitimação dos atos praticados em nome do Poder constituinte da
Revolução. Legitimação, no caso, é palavra empregada no sentido estrito de
601

respaldo popular. Enquanto o Governo eximir a homologação do consentimento


popular, facilmente aferível através da convocação de um Congresso
Constituinte, ele será apenas uma construção artificial de poder e de autoridade.
Mas desde que o povo referende a sua missão, esta ficará sacramentada de
legitimidade democrática e ganhará dimensão histórica. (Jornal do Brasil, 10
fevereiro de 1966, p.6, tít.: Tumulto institucional).

Mais uma vez, o editorial, Reforma Constitucional, ressalta a importância da urgência na


a consolidação constitucional reconhecida como indispensável (Jornal do Brasil, 15 fevereiro de
1966, p. 6).

Como se nota nos editoriais anteriores, apesar do Jornal do Brasil afirmar a importância da
implantação de uma nova ordem jurídica erigida a partir de uma prática democrática, como a
Constituinte, ele atesta que esse processo está submetido à função de legitimar a “Revolução” e
garantir a continuidade das medidas concebidas pelo governo vigente.

Por mais que se falasse em “legitimidade popular” concedida por uma Constituinte o Jornal
do Brasil afirma no editorial Perspectivas da Oposição, que não se vivia em um “regime institucional
regular”. (Jornal do Brasil, 12 fevereiro de 1966, p.6) Apesar da satisfação do JB diante da
confirmação da reformulação constitucional, entende-se que o contexto político em que esse
processo ocorre está circunscrito a perda de direitos fundamentais dos cidadãos, à concentração de
poder e eliminação das formas de oposição, ações que não poderiam serem legitimadas.

Parece fora de dúvida, a essa altura do emaranhado político resultante de


situações transitórias, que a convocação da Assembleia Constituinte – por nós
defendida na oportunidade adequada – era o caminho mais seguro para a
integração das medidas renovadoras e purificadoras dos costumes políticos, e
para assegurar a continuidade do processo aberto a 31 de março. O selo da
legitimidade popular era e é indispensável para revestir de durabilidade a obra de
revisão constitucional. (Jornal do Brasil, 15 abril de 1966, p.6.: Constituinte)

Mesmo que o JB frise a necessidade da legitimidade que emana da vontade popular obtida,
por meio, da convocação de um Congresso Constituinte. Ele não nega, que além do impedimento
de acesso da oposição ao poder do estado, existe o obscurantismo em torno do conteúdo da
reforma constitucional: “A nação tem o direito, desde logo, de conhecer, com nitidez, o que vai ser
esse novo regime a que acaba de aderir o Presidente da República. Até agora, é tudo incógnita”.
(Jornal do Brasil, 17 agosto de 1966, p.6, tít.: Incógnita Constitucional).

Em 24 de agosto de 1966 o presidente convoca o Congresso e confere a ele poderes de


Assembleia Constituinte para votar a nova Carta Magna no dia 31 de dezembro. Perante essa
602

confirmação se torna evidente para o discurso editorial que o governo aderiu ao arbítrio precisou
ceder à necessidade da legitimação popular:

A ideia de transformar o atual Congresso em Constituinte é o reconhecimento


tardio de que só o selo da legitimação popular poderá credenciar a nova carta
política à sobrevivência no tempo. Com esta decisão desaparece de cena a
possibilidade da outorga e se alarga de maneira promissora a saída democrática.
[...] A solução para qual parece amadurecido o Governo, depois que sentiu a
impossibilidade de insistir nas fórmulas impositivas, é o reconhecimento de que
a solução institucional duradoura terá de ser fruto da colaboração parlamentar
através da qual se assegure a legitimação popular. Mesmo levando em conta que
será estranho delegar a tarefa Constituinte a um Congresso em acaso, quando já
estará definida a composição política da futura representação parlamentar, a ser
eleita em novembro, a nova via de acesso à legalidade é a única que oferece
segurança para o Brasil fazer a transição do arbítrio ao direito. (Jornal do Brasil,
26 agosto de 1966, p.6, tít.: Abertura à vista. Grifo Nosso)

O editorial intitulado Opção inicial de 1966 sublinha a obstinação do Presidente em


“constitucionalizar uma situação revolucionária”, dando forma legal e substância jurídica a ela, com
o objetivo de impor limites ao seu sucessor (Jornal do Brasil, 28, 29 agosto de 1966, p.6).

O fato, porém, é que, mesmo sem recorrer à solução de uma Constituinte, o


Governo, sob a liderança pessoal do Castello Branco, não se conforma em
transferir o poder ao seu sucessor [...] sem, antes, normalizar a vida institucional
do País. Trata-se, assim, de constitucionalizar uma situação revolucionária, dando
forma legal e substância jurídica ao que, até aqui, tem sido mero expediente
ditado pelas circunstâncias e autorizando pelo invocado poder de arbítrio que
têm as Revoluções. (Jornal do Brasil, 28, 29 agosto de 1966, p.6, tít.: Opção
inicial).

Desde julho de 1966 o JB constata que a Constituição serviria para legalizar o regime
vigente desde 1964 para perpetuá-lo. O editorial a seguir conclui que a pretensão da nova Carta era
criar um governo forte com a típica mistura da ordem legal e revolucionária:

A própria Comissão Especial de Juristas, nomeada em abril por ato do Chefe do


Executivo, optou por um novo projeto, que apresentou quatro meses depois.
Este projeto conservou, como bem disse o Presidente da Comissão, jurista Levi
Carneiro, o espírito liberal da Carta de 1946, o que não parece servir aos de signos
oficiais. São, com efeito, cada vez mais numerosos os indícios de que o Governo
optou por um regime forte, que se pretende conciliar os chamados postulados
revolucionários com a futura ordem legal. (Jornal do Brasil, 20 setembro, de 1966,
p.6, tít.: Redemocratização).

Tanto o editorial Redemocratização quanto a Coluna do Castello, Congresso cada vez mais
difícil, do dia 20 setembro, de 1966, enunciam que o intuito da nova Carta era fortalecer o governo
603

militar. Segundo o cronista político, Castello Branco, o objetivo dela era conceder estabilidade ao
sistema político em vigor, por meio da institucionalização de um estado forte, em detrimento da
produção de condições para a restauração de um regime democrático.

O que observamos no discurso periódico revelam as aflições sobre o futuro do país, as


expectativas de abertura e finalmente a constatação de uma estrutura autoritário que estava sendo
consolidada. É evidente que o periódico se apresenta como participante do movimento social que
originou o governo militar, dessa forma, sentem a necessidade de possuir um governo
minimamente legítimo para justificarem sua atuação.

Depois de repelir o projeto constitucional da Comissão Especial de Juristas, o presidente


Castelo Branco aceita o novo projeto sob o comando do Ministro da Justiça. E posteriormente,
transforma o Congresso em Assembleia Constituinte. Desta forma, para o Jornal do Brasil a nova
Constituição que poderia ser outorgada diretamente pelo Executivo, se torna “menos autoritária”
quando admite a participação do Congresso Nacional.

No entanto, o JB explicita que a reformulação Constituinte submetida a um Congresso


em final de mandato com membros cassados e acuados, que seriam substituídos em 1967 por novos
eleitos, era uma solução que não assegurava um futuro regime democrático, pois o mesmo apenas
ratificaria, enquanto o governo militar legislaria:

Para esse mesmo Congresso ainda sangrando das amputações a frio, o Governo
está remetendo uma coleção de projetos, através dos quais pretende atingir
objetivos transcendentais do seu programa dito revolucionário, a margem desse
Congresso o Governo, finalmente vai legislando discriminatoriamente, sob a
forma de Atos Complementares e decretos-leis. E lícito perguntar, portanto, que
tipo de democracia o Presidente Castello Branco e seus conselheiros mais
próximos estão arquitetando para o Brasil. (Jornal do Brasil, 5 agosto de 1966,
p.6, tít.: Aparências Enganosas. Grifo nosso).

Novamente, é reiterado a mesma intenção de revelar uma situação política incerta e


obscura, resultado da falta de transparência e diálogo do governo, o texto demonstra que o processo
de realização da Constituinte se revelaria um fracasso no sentido legitimador, cujo propósito era
evidenciar a existência de operações políticas que remetem à democracia.

A participação do Congresso na criação da nova Constituição representa a tentativa do


governo militar de obter legitimidade. Em paralelo com a colaboração do legislativo ocorre nos
noticiários e nas colunas políticas do JB o destaque sobre o receio dos parlamentares de exercerem
seus trabalhos, diante da possibilidade das cassações determinada pelo Ato Institucional n.º 2, com
o qual, o governo adquire uma soma enorme de poderes. (Jornal do Brasil, 14 de junho de 1966,
p.6, tít.: Missão Institucional). Se no princípio do governo de Castello Branco, o Jornal do Brasil
604

considerava as cassações, parte constitutiva do projeto “revolucionário”, em 1966 o retorno das


cassações de mandatos e a suspensão de direitos políticos são vistos como impasses para o
desenvolvimento da democracia representativa.

Os dispositivos do AI-2 que mais ameaçavam os políticos, que almejavam a sua supressão
eram os artigos: 14 e 15.

Art. 14 – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade,


inamovibilidade, bem como a de exercício em funções por tempo certo.
Parágrafo único - Ouvido o Conselho de Segurança Nacional, os titulares dessas
garantias poderão ser demitidos removidos ou dispensados, ou ainda, com os
vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço, posto em
disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, desde
que demonstrem incompatibilidade com os objetivos da Revolução.
Art. 15 – No interesse de preservar e consolidar a Revolução, o Presidente da
República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações
previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer
cidadãos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais e
municipais.
Parágrafo único – Aos membros do legislativo federal, estaduais e municipais,
que tiverem seus mandatos cassados não serão dados substitutos, determinando-
se o quórum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.
(Brasil, 1965)

O representante político, mais destacado pelo seu descontentamento, diante da viabilidade


das cassações pela via do Executivo era o presidente da Câmara, Adauto Cardoso. Ele tenta
convencer Castello Branco a revogar os dispositivos dos Atos Institucionais n.º 2 que permitiam
as cassações de mandatos parlamentares, no entanto, o presidente não cede aos seus apelos. Veja
o que noticia o periódico sobre a situação: “a crise entre o Executivo e o Congresso reside nas
mutilações que o AI-2 fez a este poder, e principalmente na possibilidade de suspender as cassações
de mandatos antes de iniciado o trabalho de elaboração constitucional. (Jornal do Brasil, 17
setembro, de 1966, p.1, tít.: Adauto e Auro: revisão do AI-2 ainda pode vir); “Adauto Cardoso e
Moura de Andrade têm convicção de que o presidente vai retirar os dispositivos punitivos do AI-
2. (Jornal do Brasil, 18 e 19 setembro, de 1966, p.1, tít.: Coisas da Política Congresso espera como
segura a revisão do AI-2.)

As duas Casas do Congresso não conseguem negociar o fim dos artigos punitivos do AI-2
e no final de setembro eclodem notícias sobre prováveis expurgos políticos destacando que: o
governo iria retomar a “fase punitiva da Revolução”; (Jornal do Brasil, 21 setembro, de 1966, p.1,
tít.: Castelo: “Frente ampla é esforço para perturbar”). Uma “limpeza geral”, com a inclusão de
mandatos federais, prevista para depois de 3 de outubro de 1966; diferentes fontes confirmam uma
iminente “varredura geral”. (Jornal do Brasil, 25 e 26 setembro, de 1966, p.1, tít.: Castelo encontrará
605

obstáculos para reiniciar cassações e Jornal do Brasil, 13 outubro, de 1966, p.4, tít.: Coluna do
Castello. Fixa-se o abismo entre Executivo e Legislativo).

Em 12 de outubro, com base no Ato Institucional n.º 2, o Presidente Castello Branco,


efetivou várias cassações de mandatos populares e suspensão de direitos políticos. Dentre os
principais nomes citados pelo JB estão Doutel de Andrade, ligado a Jango, com posição de destaque
no MDB, o Deputado Sebastião Pais Almeida ligado a JK, estes assim como os demais eram
candidatos à reeleição.

A negação do Presidente da Câmara em aceitar a validade das cassações decretadas com


base no AI-2, significava para a opinião editorial do Jornal do Brasil a ampliação do abismo entre o
Executivo e Legislativo e o impasse institucional, diante do ato presidencial, que retoma o clima de
repressão essa conclusão é destacada no editorial Retrocesso em 13 outubro, de 1966:

O ato cassatório de ontem [...], não deixa dúvida sobre o caminho escolhido, que
só pode ser o da imposição, da outorga pura e simples da nova Carta. Pode-se
agora concluir, sem medo de errar ou de especular em falso, que o Governo só
admite realizar eleições dentro de limitações bem definidas, que não se
conformam com a existência de um futuro Congresso hostil ao que se
convencionou chamar Revolução. Convencido de que o processo legal da
impugnação, com a angústia de prazo para a produção de provas, é insatisfatório,
o Governo se conferiu a responsabilidade de reabrir a via das impugnações, para
assim dar cumprimento ao seu objetivo de limpar a área, aniquilando desde logo
os possíveis inimigos com a ordem revolucionária.

O editorial acima aponta que os problemas oriundos do retorno das cassações estão na
certeza da guinada do governo para um regime repressivo. Essas ações significam para o periódico
a despreocupação governamental com o problema da legitimidade, expondo que a Constituição
seria mais uma arbitrariedade. O periódico aproveita esse momento de crise para reivindicar a
concretização da prometida normalização da ordem legal e democrática anunciada pelos meios
oficiais.

Em 13 de outubro de 1966 o presidente decreta novas cassações de parlamentares.212 Mas


o presidente da Câmara não reconhece a imposição do decreto Executivo ao afirmar que a cassação
de mandato parlamentar era competência da Câmara, sua decisão recebe o apoio de parte da Arena
e do presidente do Senado Auro Moura de Andrade. (Jornal do Brasil, 16 e 17 outubro, de 1966,

212
Suspendia os direitos políticos por dez anos e cassava os mandatos de: “Abraão Fidelis de Moura – Antonio Adib
Chammas – Arminsdo Marcílio Doutel de Andrade – Cesar Prieto – Humberto El-Jaick e Sebastião Paes de Almeida,
da Câmara dos Deputados; de Egildo Mendonça Thurier, da Assimbléia Legislativa do Estado Do Rio de Janeiro; de
Elias Libâno da Silva Ribeiro, da Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco.” Disponível
em:<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1960-1969/decreto-36388-13-outubro-1966-547235-
publicacaooriginal-61939-pe.html.> Acesso 15/2/2017. Ver também: (Viana Filho, 1975, p. 465).
606

p.4, tít.: Coluna do Castello. Instalado o conflito entre os Poderes. Ver também a manchete Jornal
do Brasil 13 outubro de 1966. tít.: Governo pune 10 admite cassar mais e Adauto reúne a Câmara
para reagir.).

Adauto Cardoso insiste em seu posicionamento de somente considerar os mandatos


extintos após “passassem por um quorum, pelo voto da maioria dos deputados para homologar os
atos de Castelo Branco”. (Jornal do Brasil, 16 e 17 outubro, de 1966, p.4, tít.: Coluna do Castello.
Instalado o conflito entre os Poderes). Enquanto isso, Castello Branco, defende seus atos e afirma
que eles são “instrumentos que ajudam a restabelecer a ordem democrática financeira e econômica
do país”. (Jornal do Brasil, 16 e 17 outubro, de 1966, p.1, tít.: O presidente Castelo defende Atos
contestados por Adauto)

A Câmara dos deputados está convocada para examinar um ato de força da


Revolução, mediante gesto do seu Presidente que implica na contestação dos
poderes discricionários de que se investiu o Marechal Castelo Branco em nome
do movimento de março de 1964. Instalou-se definitivamente o conflito entre
Executivo e o Legislativo com a declaração produzida ontem pelo Sr. Adauto
Cardoso, que afirmou ser a deliberação sobre cassações de mandatos de
deputados matéria “inalienável competência” da Câmara que considera na
plenitude do exercício de suas prerrogativas os seis deputados cujos mandatos e
direitos políticos foram suprimidos. (Jornal do Brasil, 18 outubro de 1966, p.6,
tít.: Insegurança Doutrinária).

Em outubro de 1966 a opinião editorial do JB destaca as palavras do presidente do MDB,


Senador Oscar Passos, que elencam a certeza de que o presidente Castello Branco não abriria mão
do poder ditatorial do AI-2 e outorgaria a Constituição de 1967 mesmo que isso seja camuflado
pela participação parlamentar. (Jornal do Brasil, 16 e 17 outubro, de 1966, p.6, tít.: Despedida).

O JB elabora uma visão otimista sobre a resistência da Câmara, ressaltando que essa
postura política poderia garantir o início da restauração da ordem legal e do fim do poder
revolucionário.

Os líderes das duas casas aprovaram a nova doutrina, que consiste em submeter
à Câmara interessada os atos que defluem do poder de arbítrio que o Ato
Institucional n.2 atribuído ao Chefe do Executivo. Se a tese der certo estaria
estancado o fluxo dito revolucionário e o país voltaria a orientar-se por um cânon
constitucional que significaria, em pouco tempo, a plenitude da ordem legal
restaurada em termos da Carta de 1946. (Jornal do Brasil, 16 e 17 outubro, de
1966, p.6, tít.: Despedida).

A relutância da Câmara diante da execução do decreto presidencial desencadeia a pressão


exercida pelas tropas do Exército que cercam o prédio do Congresso para forçar Adauto Lúcio
607

Cardoso a cumprir o decreto de cassação dos seis deputados. (Grinberg, 2009, p.100). A linha dura
insiste em expurgos e punição dos desobedientes, pela segunda vez o presidente é forçado a ceder
e baixa o Ato Complementar n.º 23. (Alves, 1984, 103)

Os agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) prendem o Sr. Doutel


de Andrade e no mesmo dia, 20 de outubro de 1966, o governo publica o Ato Complementar n.º
23 que impõe o recesso da Câmara e garante ao Executivo governar, por meio de decretos-lei, com
base no artigo 31 do Ato Institucional n.º 2:

Art. 31 – A decretação do recesso do Congresso Nacional, das Assembleias


Legislativas e das Câmaras de Vereadores pode ser objeto de ato Complementar
do Presidente da República, em estado de sítio ou fora dele.
Parágrafo único - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo
correspondente dica autorizado a legislar mediante decretos-leis em todas as
matérias previstas na Constituição e na Lei Orgânica (Vide Ato Complementar
n.º 5 de 1965). (Brasil, 1965)

Depois desse episódio o jurista Osny Pereira (1967, p 331) relata que a impressão geral no
país ao final de 1966 era de que a “ditadura se instalará, agora sem nenhum disfarce e de forma
permanente”. Assim em 10 de novembro o Presidente Castelo Branco assina os atos de suspensão
dos direitos de mais 18 cidadãos.213

O Jornal do Brasil anuncia que o governo decreta o recesso parlamentar com base em uma
“legalidade revolucionária, resolvida na intimidade do poder revolucionário”. Ou seja, a lógica de
ação das cassações, age como um poder absoluto. (Jornal do Brasil, 9 novembro, de 1966, p.6, tít.:
Análise da Crise). A opinião editorial enfatiza que as cassações se inserem em “um processo que
repugna à nossa índole democrática e contrária a ordem jurídica que está entre as melhores
tradições brasileiras”. (Jornal do Brasil, 6 e 7 novembro, de 1966, p.6, tít.: Punições de Inocentes).

Em seus textos editoriais é evidenciado a sua preocupação com a “imagem democrática”


do Brasil, prejudicada pela imposição do recesso, por isso, defende a necessidade da abertura do
Congresso Nacional.

O recesso foi, assim, um gesto extremo que repercutiu no exterior – e até


internamente – de maneira pouco favorável à imagem de um Governo que
confessa permanentemente os seus objetivos democráticos. A cassação de seis

213Entre eles estão o jornalista Helio Fernandes, além de, Aldo Schlichting, Eduardo Rolim e Válter Alexandre
Almeida, do Rio Grande do Sul; Fernando de Barros da Guanabara: Antônio Dias, Antonio Ramos, Jaime machado,
Manuel Meneses de Santa Catarina; Hermógenes Siqueira Franco, Óton Reis Fernandes, Togo Pávoa de Barros, Jonas
Baiense Lira e Irineu Ferreira Alves, do Rio de Janeiro; Itair Sá da Silva, do Paraná; Zacarias Roque, de Minas Gerais;
Nilson Ferreira da Costa, de São Paulo, e Vàlter Ferreira Moura, da Paraíba, além de Carlos Lacerda e Juscelino
Kubistchek. Ver mais em: Jornal do Brasil, 11 de novembro, de 1966, p.1, tít.: Castelo suspende direitos de mais 18.
608

deputados é um fato consumado insusceptível de anulação [...]. Agora nem


ao Legislativo, nem muito menos ao Executivo, interessa a prorrogação
de um recesso que empana a imagem de normalização de um recesso que
empana a imagem de normalização democrática em que se empenha o
país. (Jornal do Brasil, 23 novembro, de 1966, p.1, tít.: Expectativa de solução.
Grifo nosso).

O editorial Expectativa de solução explicita que era imprescindível manter a função do


Congresso para legitimar o governo militar por meio de um revestimento de inspiração
democrática, pois o periódico compreende que a participação parlamentar poderia significar a
expressão da “vontade povo”.

Mesmo sabendo das limitações do Congresso e da intenção do governo militar de legalizar


a situação jurídica vigente, o Jornal do Brasil continua a sustentar que a participação do poder
legislativo representaria a legitimidade do consentimento popular para a nova Constituição: “a via
parlamentar oferece vantagens inequívocas, a começar pela legitimação da nova Carta, que só estará
destinada a durar na medida em que contar com um mínimo do consentimento nacional popular,
expresso pela votação do Congresso”. (Jornal do Brasil, 13 e 14, de novembro, de 1966, p.6, tít.: O
Congresso e a Carta).

Conjectura-se que a duvidosa participação parlamentar seria o mais perto possível de uma
simulação democrática por isso o JB resolve recuar em sua insatisfação e admite que esse recurso
era melhor que a simples integração da legislação produzida desde 1964 à Carta de 1946.

Ainda durante o recesso o Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva no dia 6 de novembro
de 1966 entrega ao presidente Castello Branco a redação final, da nova Constituição que consagrava
a eleição presidencial indireta. Depois de trinta e dois dias de recesso forçado o Congresso volta a
funcionar, colaborando com as decisões do governo na tramitação do projeto constitucional
conduzido pelo Ato Institucional n.º 4.

A existência do Congresso durante o governo militar garante uma aparente imagem de


proximidade democrática. Mas quando o Congresso Nacional não aceita as cassações imposta pelo
poder soberano do presidente alegando a invasão de suas funções parlamentares, ele visava manter
o seu poder no estado e garantir a segurança dos seus membros.

Parece claro o retrato da dificuldade de legitimar o trabalho parlamentar com a ameaça


manente de cassações, e a não revogação dos artigos n.º 14 e 15 do AI-2. Em dezembro, no entanto,
a Câmara dos Deputados e o Senado cedem ao governo militar e colaboram com o Executivo na
aprovação de uma Constituição.
609

Mesmo o governo militar optando por legitimar-se por meio da Constituinte, o Jornal do
Brasil aponta que esse processo estava dominado pelo controle militar. Essa atitude de revelar a
arbitrariedade (cassações, fechamento do Congresso, exclusão do debate público, processo
conduzido pelo AI-4) emite para o periódico a total despreocupação com a legitimidade, pois
evidencia que a Constituinte e a Constituição são apenas farsas.

No entanto, era evidente o esforço do governo em legitimar seus atos com um superficial
verniz de legalidade democrática. A cassação parlamentar foi indispensável para as eleições de
novembro de 1966 e para firmar a submissão do Congresso, de quem o poder militar queria apenas
“um papel puramente legitimador na tramitação da nova Carta”. (Martins Filho, 1995, p. 82, 83).

Na concepção de Alves (1984, p.99-101) o recesso possibilitou o enfraquecimento da


oposição para propiciar a vitória da Arena nas eleições de 1966, por meio, da limitação da
participação do MDB ao cancelar vários registros de seus candidatos. Assim entre junho e julho de
1966, o Executivo baixou dezoito atos complementares para regulamentar as eleições. Além de
manipular as eleições, o recesso permitiu que o governo conduzisse totalmente a formulação da
nova Constituição.

Sobreo governo militar, Kinzo (1988, p.18, 19) compreende que ele jamais pensou em
fechar permanentemente o Congresso, pois a sua existência, assim como, a dos partidos e das
eleições contava com uma “opinião internacional favorável e com o respaldo de políticos civis, ou
seja, o Congresso fazia parte dos mecanismos utilizados para legitimar “facções e um soldado como
chefe de Estado”. Essa necessidade do aval congressual se perpetuará ao logo dos governos
militares seguintes.

Parece claro o retrato da dificuldade de legitimar o trabalho parlamentar com a ameaça


manente de cassações, e a não revogação dos artigos n.º 14 e 15 do AI-2. Em dezembro, no entanto,
a Câmara dos Deputados e o Senado cedem ao governo militar e colaboram com o Executivo na
aprovação de uma Constituição.

Mesmo o governo militar optando por legitimar-se por meio da Constituinte, o Jornal do
Brasil explicita que esse processo estava dominado pelo controle militar. Essa atitude de revelar a
arbitrariedade (cassações, fechamento do Congresso, exclusão do debate público, processo
conduzido pelo AI-4) emite a total despreocupação com a legitimidade, pois evidencia que a
Constituinte e a Constituição são apenas farsas.
610

Referências

Alves, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 5.ed. Petrópolis: Vozes,
1984.

Grinberg, Lucia. Partido Político ou bode expiatório, um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional
ARENA (1965-1979). Rio de Janeiro: Muad X, 2009.

Kinzo, Maria Dalva Gil. Oposição e autoritarismo. Gênese e trajetória do MDB (1966-1979). São
Paulo: Vértice, 1988.

Martins Filho, João Roberto. O Palácio e a Caserna. A dinâmica militar das crises políticas na
ditadura (1964-1969). São Carlos: EDUFSCar, 1995.

Pereira, Osny Duarte. A Constituição do Brasil 1967. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
611

Os de cima e os de baixo: Brasília, histórias sob distintas lentes

Diego Martins*

Resumo: este trabalho visa discutir as narrativas manifestas em documentários sobre a Capital do
Brasil, debatendo sua identidade, as condições de vida aqui registradas, e as premissas de uma
cidade que supostamente era para todos. Contrapondo os olhares dos de Cima, em documentários
feitos a partir do Estado e sua Elite social, que nos dizem que Brasília é um “sonho”, uma “utopia”,
transformada em realidade, nascida através do sacrifício de “todos” em espírito de camaradagem,
com as contranarrativas dos de Baixo, que mostram uma cidade criada pelos candangos, negada a estes
e seus filhos, sob a ótica dos excluídos. De sua inauguração até o tombamento, Brasília é tratada
como cidade ímpar que deveria ser preservada. Em 1987 uma parte de Brasília (o Plano Piloto) é
tombada como Patrimônio Histórico da Humanidade, e em nome da preservação deste patrimônio,
criou-se e fortaleceu-se uma série de narrativas que buscam conferir legitimidade ao modelo de
urbanização concretizado na cidade. Porém, para além dessa parte, há nas demais Regiões
Administrativas toda uma população que constantemente tem suas experiências silenciadas.
Buscaremos então, entender como as narrativas dos de Cima silenciam as realidades enfrentadas pela
classe trabalhadora, os filhos dos candangos, os de Baixo. Para tal, discutiremos tanto documentários
produzidos por agentes do Estado, quanto por cineastas que lançaram um olhar crítico sobre a
formação e configuração da cidade.

Palavras-chave: história de Brasília, cinema candango, urbanismo, cidades-satélites, exclusão


social

Introdução

É lugar comum nas narrativas estatais e midiáticas, Brasília aparecer como uma cidade sem
problemas sociais, ou quase sem problemas sociais, sendo enaltecida por ser distinta das demais
cidades brasileiras, por ser tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade. Neste mesmo
âmbito se mantém uma confusão, ou melhor, uma ilusão de ótica, tal qual o mágico com cartas,
que ludibria o espectador, as narrativas oficiais fortalecem a dubiedade do que é Brasília.
Convenientemente, mostram o Plano Piloto de Brasília como forma de não mostrar a complexidade
urbana do Distrito Federal. Das constantes abordagens vistas é que surgiu o interesse em analisar
as narrativas oficiais e as contranarrativas, buscando entender como essas narrativas
oficiais/estatais apagam, e quando não conseguem apagar, tentam invisibilizar as narrativas que
buscam manter viva a memória e a história de lutas que aqui se travaram.

* Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da UnB. E-mail:


diegomartins_1988@hotmail.com
612

Para tanto, analisamos os documentários feitos pela TV Justiça, TV Senado e TV Câmara


como recorte considerável do que aqui chamaremos de narrativa Estatal / Oficial, qual entendemos
que seja a fiel representante das narrativas das Elites, Os de Cima. O primeiro documentário que
analisaremos será o “Brasília: projeto capital” de 2010 produzido pela TV Câmara, seguido por
“Brasília além dos eixos” de 2017, produzido pela TV Justiça. Além destes, outros dois
documentários produzidos pela TV Senado são abordados neste trabalho, sendo eles o “Brasília –
A Esperança da Capital” de 2004 e “A Menina de Sessenta” exibidos em Abril do presente ano.

Entrecruzando as narrativas construídas nestes quatro documentários, pretendemos


demonstrar através das temáticas levantadas, quais fatos se buscam exaltar e quais são omitidos,
demonstrando assim, quais são as convergências entre os documentários e, sobretudo, qual
imaginário é reforçado por eles.

Após este primeiro momento, propomos aqui contrapor estes olhares com dois
importantes documentários críticos da história da cidade: “Brasília – Contradições de uma cidade
nova” de Joaquim Pedro de Andrade213, do ano de 1967 e “Conterrâneo Velho de Guerra” de
Vladmir Carvalho214, do ano de 1991. Ambos documentários trazem ao debate, um olhar do ponto
de vista dos candangos e seus filhos, demonstrando o que Os de Baixo pensam sobre a cidade que
outrora foi apelidada de “Capital da Esperança”.

Sabemos que, na esteira do discurso, aparecem e somem aspectos e elementos da vida


material de acordo com o interesse de quem o cria e/ou propaga, buscando legitimar ou
deslegitimar um fenômeno social, mas independente destes elementos utilizados em retórica, o
critério da verdade, continua sendo a prática, e continua sendo no campo das ações, que residem
às condições materiais que definem um determinado fenômeno social. Neste sentido, é preciso
debater os olhares sobre Brasília a partir da materialidade manifesta na dicotomia que balizou sua
formação, entre Centro e Periferia, entre o Plano Piloto (Cidade Central) e as Cidades Satélites, ou
noutras palavras: entre o espaço para Os de Cima e Os de Baixo.

Afinal, se Brasília, sempre narrada como a cidade que viria corrigir as práticas excludentes
das demais cidades brasileiras, não se tornou uma cidade menos excludente que as demais, ao
contrário, se tornou um modelo de exclusão, como a narrativa dos de cima opera para manter a

213 Joaquim Pedro de Andrade foi um importante cineasta carioca que em suas obras buscou dialogar com os elementos
culturais e políticos na vida popular. Entre as principais obras, Garrincha, alegria do povo de 1963 e Macunaíma, de 1969.
214 Vladmir Carvalho é um cineasta e documentarista, de origem paraibana, que tem longa lista de filmes que buscaram

jogar luz sobre as mazelas sociais, tais como O país de São Saruê de 1971 e Barra 68 de 2000.
613

imagem que lhe interessa, protegendo seu status quo frente às experiências concretas vividas pela
maioria de seus habitantes, os de baixo?

Das lentes dos de cima

Na ocasião dos 50 anos de Brasília uma série de debates são travados a respeito da cidade,
e no mundo acadêmico, uma série de livros e artigos são lançados, lançando olhares sobre a capital.
Nesse contexto, a TV Câmara exibia o documentário “Brasília: projeto capital” de produção da
própria emissora. O filme trata quase que exclusivamente do contexto de preparação e construção
da Nova Capital. Nele, como é corriqueiro nas narrativas comemorativas, há uma clara exaltação
das atuações de Juscelino Kubitscheck como estadista, como “o grande articulador”, reforçando o
mito que coloca JK como um herói que construiu uma cidade diferente de tudo e que simbolizaria
uma guinada do Brasil para um novo futuro.

O documentário começa por tratar do contexto político no qual foi possível a construção
da nova capital. Entre alguns relatos que traçam o caminho que fez a ideia de mudança da capital
para o Planalto Central, pouco se fala sobre as divergências entre setores dentro do Estado, sobre
onde deveria ser o novo Distrito Federal. Esse é um primeiro ponto fundamental a ser
desmistificado, já que JK sempre aparece como “A figura” que desencadeou a transferência,
passando ao imaginário popular, a ideia de que se não fosse por ele, Brasília não teria saído do
plano das ideias ao concreto, sendo JK o realizador de uma utopia. Porém, Vesentini (1986) nos
recorda que:

Como consequência das tendências já manifestadas durante os debates da


Constituinte de 1946, duas correntes de opiniões logo se formaram na Comissão de
Estudos (...). Uma liderada por Jerônimo Coimbra Bueno e apoiada pelo general
Djalma Polli Coelho, presidente da Comissão, que defende a solução histórica, ou
seja, (...) o chamado "Quadrilátero Cruls". A outra, defendida por Lucas Lopes e que
propõe uma região do Triângulo Mineiro. Esta segunda opção nasceu durante os
trabalhos da Constituinte (...) lançada pelo deputado mineiro Benedito Valadares e,
depois, defendida por Daniel de Carvalho, Juscelino Kubitschek de Oliveira e Israel
Pinheiro, todos de Minas Gerais. Tais correntes de opiniões provocaram uma série
de divergências no desenrolar dos trabalhos da Comissão( ...). Face a isto, só depois
de vinte e um meses, em agosto de 48, pode apresentar a sua Resolução final, quando
o desejo e a recomendação do presidente Eurico Gaspar Dutra era de que o
resultado final lhe fosse dado até agosto de 47, de vez que era seu propósito
promover, durante sua administração, a transferência da Capital(...). (Vesentini, p. 90
apud Vasconcelos, p. 301).

Isso quer dizer que não só não havia consenso sobre onde seria a Nova Capital, além disso,
significa que havia um processo em curso, e no meio desse processo, JK era uma das partes,
614

disputando seus rumos e apenas mais uma das figuras tentando o angariar politicamente. Tanto é
que, independente de JK, os trabalhos para a transferência da Capital ocorriam apesar das
mudanças de governo, havendo uma continuidade nestes trabalhos através da Comissão de
Localização da Nova Capital (CLNCF) criada ainda no governo de Getúlio Vargas e:

Antes mesmo da posse de Juscelino, em 31 de janeiro de 1956, Nereu Ramos - então


presidente do Senado que assumiu interinamente a presidência da República em
novembro de 1955 - transformou a Comissão de Localização da Nova Capital em
Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal. Quando
o novo presidente foi empossado, tarefas fundamentais para a consolidação da
mudança já estavam realizadas: desapropriações, trabalhos cartográficos,
topográficos, estudos de ligações ferroviárias, planos de infraestrutura e
comunicações. (Brito, 2009, p. 64).

Sendo assim, não podemos dizer que JK tenha sido a figura que é retratada, e sim que,
Brasília é fruto de um processo muito maior do que a “vontade de JK”. Com isso não queremos
dizer que a atuação do governo de JK não influenciou o processo, o que seria um disparate, o que
queremos demarcar é que: o preciosismo das narrativas sobre Brasília, ao reforçar o mito de JK
como “o realizador” heroico reforça a própria narrativa de JK: Brasília como utopia realizada,
construída em espírito de “camaradagem” entre trabalhadores e burocratas, um espaço que
supostamente presenciara uma inovação já na construção, feita sem conflitos de classes.

Ao fim de “Brasília: projeto capital” o que fica para quem assiste é um ar de “grandiosidade”
na construção de uma capital nova para o Estado brasileiro. As cenas finais, fechando com o
Congresso Nacional e imagens de diversos acontecimentos, dá um olhar “saudosista” e bucólico,
resumindo Brasília em uma grande obra, uma cidade completamente voltada para a política
nacional, e uma construção positiva que deve ser enaltecida como símbolo. Praticamente não se
fala noutros aspectos da cidade, mesmo sendo um documentário falando sobre o processo de
construção, nem se quer dá destaques aos candangos, o que nos causou estranhamento, uma vez
que era comum nestas narrativas certa exaltação dos candangos como parte também importante
(uma forma de não ter que dizer que são estes os verdadeiros personagens fundamentais) numa
inversão de protagonismo em situação coadjuvante.

A este assunto, tornaremos a falar mais a frente, cabendo aqui nos limitarmos a dizer que,
noutras palavras, o “saldo imaginário” desse documentário é de causar a sensação que a construção
de Brasília não causou impactos sociais, nem maiores problemas nacionais, o que sabemos que é
um discurso que não só não é verdadeiro, como prejudicial à história de conflitos e lutas já na
construção e primeiros anos de Brasília.
615

Ao analisarmos o documentário da TV Senado de 2004, intitulado “Brasília – A Esperança


da Capital” percebemos outro olhar sobre a cidade que ia caminhando para completar seus 44 anos.
Diferente do documentário da TV Câmara, este introduz olhares uma pouco mais críticos. Com
diversas entrevistas constrói-se uma narrativa que, por um lado reafirma alguns pontos comumente
defendidos pelo Estado, por outro coloca “o outro lado” tentando dar um ar de equilíbrio de
posições. Brasília que com esta idade, já tinha mais de 2 milhões de habitantes, entendendo aqui
Brasília como todo o conjunto urbano do DF, e não só o Plano Piloto, qual entendemos como a
região inicial e central.

A despeito de um longo histórico de políticas que reafirmaram ao longo do tempo, as


medidas excludentes desde o início da Capital, o documentário dá bastante enfoque ao que era
“última década”, dos anos 1990 a 2004. Governo Roriz, ocupações irregulares, crescimento
desenfreado, problemas de infraestrutura urbanística e ambientais são as principais causas
apontadas para o cenário não tão positivo da cidade. Nos chama atenção a entrevista a um morador
de Vicente Pires, funcionário público, que argumenta que o governo não atende legalmente a
demanda por moradia. Este mesmo entrevistado justifica sua situação de irregular, por passar anos
pagando um financiamento pela Caixa que não teria lhe rendido uma moradia. As tomadas feitas
em sua casa mostram uma casa com alto padrão. O documentário acaba por chamar a atenção para
um problema real e sério que é o de moradia. Mas não mostra suas causas, nem os reflexos cruéis
deste processo, que é sentido nas periferias. Sendo assim, buscando “incluir” nas narrativas, uma
crítica social, acaba por reduzir a importância do problema de moradia aos setores ditos “classe
média” (termo utilizado pelo entrevistado e pelo narrador).

Outro problema que encontramos neste documentário é o reforço da ideia de que a


migração seria o principal problema de urbanismo da cidade. Conveniente aos poderosos exime o
Estado da responsabilidade sobre o processo de exclusão das parcelas mais frágeis da classe
trabalhadora para as cidades satélites mais distantes. Correntemente se atribui aos mandatos de
Joaquim Roriz (à época, do PMDB) a responsabilidade pela criação de novas satélites que teriam
“inflado” a cidade. Porém, a tese do “inchaço populacional”, no fundo de seu argumento, quer
dizer que, Brasília não deveria ter tido uma política de urbanização que primasse pela moradia
popular, ao contrário, deveria ter expulsado estes trabalhadores. Como se Roriz tivesse criado uma
política habitacional digna para o povo, quando na verdade, continuou a marcha de expulsão dos
pobres do Plano Piloto, utilizando as áreas de expansão na periferia, previstas em planos
urbanísticos produzidos ainda na ditadura para manter a expansão segregadora.
616

No fim das contas, o documentário lança um olhar crítico, de maior riqueza de detalhes
que costumeiramente verificamos em abordagens estatais, mas ainda assim, termina por reforçar
que, apesar dos erros cometidos, Brasília ainda é uma cidade positiva e com melhor qualidade, que
ainda poderia ser “salva” com medidas urgentes visando sanar os problemas de moradia e
planejamento urbano. Porém, quase não se é mencionada a forma como ocorre a especulação
imobiliária, nem o papel da Terracap215, e consequentemente o papel do Estado como responsável
pela fomentação e manutenção do processo de exclusão e segregação sócio espacial. E ao não tratar
deste elemento, a narrativa que se propõe crítica, se esvai de sua proposta, pois não aborda o cerne
da questão, para além, acaba por oculta-lo ao não tratar das diferenças que são tratados os
“irregulares” e os “invasores”.

Já o documentário da TV Justiça, “Brasília além dos eixos” de 2017, que de início parece se
predispor a debater a cidade para além dos clichês, em verdade os reforça paradoxalmente através
da sua negação. O fio condutor do documentário é a tentativa de entender Brasília para além dos
elementos pré-estabelecidos pelo esquema urbanístico de Lúcio Costa e Arquitetônico de
Niemeyer. Para tanto, são os principais entrevistados um arquiteto e um historiador, que ressaltam
aspetos do Plano Piloto que geralmente não são observados pela mídia nacional, e são geralmente
omitidos pelas narrativas estatais: os costumes da população que cresceu em Brasília, os locais
frequentados, enfim, partes de seu cotidiano.

O que poderia ser visto por uma ótica da Historia social, porém, seria visto como a história
social no Plano Piloto. E aqui reside o principal problema: Nesta narrativa de “Brasília além dos
eixos”, tal como já de costume da narrativa estatal, falar de Brasília é falar do Plano Piloto. Em
outras palavras, para esta narrativa, Brasília é apenas o Plano Piloto, por conveniência das
propagandas, quando se pretende “passar recibo” ao país e ao mundo. Assim, o documentário
acaba por fortalecer a narrativa Estatal, ao tratar Brasília (recortando o Plano Piloto) como uma
cidade que destoa dos problemas sociais comuns às outras metrópoles, como se não houvesse aqui
sérios problemas de infraestrutura urbana, de moradia, transporte... Como se em Brasília não
houvesse desigualdade social. Contudo, sobre o que estamos debatendo aqui, não se trata de pedir
para que o Estado reconheça seus erros históricos, trata-se de constatar como ele age na construção
de narrativas que lhe sirvam como ferramenta ideológica para manutenção do status quo.

215
Terracap, a Companhia Imobiliária de Brasília, foi fundada em 1973 com o objetivo de ser o órgão responsável pela
venda de terras públicas no DF durante a ditadura Civil-Militar de 1964-1985, atuando até os dias atuais como uma
agência, que tem práticas especulativas.
617

Notadamente, o último documentário da TV Senado “Menina de Sessenta”, talvez por


conta do aumento de produção de estudos e pela maior abordagem nas redes sociais, retrata uma
Brasília atual, com mais de 3 milhões de habitantes, que destoa um pouco em sua narrativa das
demais narrativas estatais/oficiais e que leva em consideração outros olhares além da já tradicional
narrativa planopilotense. Com a participação do rapper GOG e do cineasta Adirley Queirós,
percebemos um “contraditório”, uma tentativa de contraposição de discursos, uma vez que esses
dois entrevistados nos falam sobre uma “outra Brasília”, diferente das imagens e narrativas que
aparecem na TV.

Apesar de o documentário expor essa “outra Brasília”, o argumento central do roteiro é o


de que Brasília precisa ser resgatada, sob o que se pressupõe ser a “intenção” do projeto: uma
cidade supostamente igualitária, que promovesse o encontro dos diferentes, sob a égide de uma
nova forma de interação citadina. Ou seja, noutras palavras, o documentário busca legitimar o
projeto original de Brasília, defendendo que apesar das “deformidades” das cidades satélites, a
cidade deveria criar condições de “aproximação” entre suas diferentes partes, considerando as
Satélites como parte de Brasília. Ao mesmo tempo que o documentário parece “romper” com as
narrativas Estatais, o que ele acaba por fazer é reforçar um dos eixos centrais das narrativas, que é
a ideia de que Brasília surgiu para ser igualitária, como se o Estado não fosse responsável e criador
de uma cidade excludente.

O Estado não só é responsável por ser Brasília uma cidade excludente, como esta foi de
fato organizada desde sua formação, justamente para separar a classe trabalhadora da elite
burocrática do Estado. Diversas vezes Lúcio Costa (que erroneamente sempre é visto como um
sujeito de esquerda, “comunista”) se pronunciou a respeito de Brasília, e embora ele tenha muitas
vezes se posicionado de forma contraditória, no mais das vezes, defendeu que houvesse políticas
claras de segregação de classes e atividades econômicas em Brasília e no Entorno.

Nas lentes, os de Baixo

Por outro lado, um documentário que literalmente coloque os dois lados da moeda é um
instrumento potente por evidenciar os constrangimentos e as contradições que a narrativa estatal
dos de Cima passa ao não conseguir escapar em ocasiões como esta. Neste sentido, a escolha por
trabalhar com os documentários de Joaquim Pedro de Andrade e Vladmir Carvalho se dá
justamente pela característica citada, por conseguir demonstrar as contradições evidentes e às vezes
escandalosas que cercam os discursos sobre Brasília, as condições de vida da maioria da população,
618

pertencente à classe trabalhadora, de uma maioria não-branca, segregada pelos quilômetros de


distância entre as Satélites e o Plano Piloto.

Ainda que não seja o olhar propriamente dos de Baixo, por se tratar de documentários que
dão destaque para o ponto de vista desses trabalhadores, acredito que sejam imprescindíveis no
debate. Primeiro, porque demonstram com maestria as respostas evasivas e os silêncios das elites
burocráticas vinculadas ao Estado quando colocadas frente a claras demonstrações de interesses
segregacionista e autoritários, como veremos, e segundo, por demonstrar o que é ignorado
praticamente por completo nos roteiros dos documentários Estatais, e consequentemente em suas
narrativas.

Em “Brasília – Contradições de uma cidade nova” notamos num primeiro momento uma
abordagem exemplar de como eram os filmes oficiais, descrevendo Brasília (mostrando apenas o
Plano Piloto) como um modelo exemplar de urbanismo, ressaltando todas suas qualidades.
Entretanto, num segundo momento, o documentário aborda as cidades satélites, e em entrevistas
a trabalhadores que estiveram na construção de Brasília, percebemos as condições sociais que então
estavam inseridos: bairros com pouca estrutura urbanística, condições econômicas opressivas, num
contexto de extrema repressão política aos sindicatos e as lutas dos trabalhadores.

Um dos entrevistados, candango, diz que não desejava mais estar em Brasília, que a vida
para o trabalhador em Brasília havia se tornado insustentável, justamente pelos motivos expostos
acima. Outra entrevistada relata que o despejo dos moradores expulsos das antigas
vilas/acampamentos ao redor do Plano Piloto para a nascente Ceilândia216 foi feito de forma
217
agressiva, que os “basculantes” jogavam as coisas das pessoas, que “se tivesse uma criança
dentro, jogava também”, e denuncia que ao contrário do que prometera o GDF, estas pessoas
foram jogadas numa área de cerrado, sem nada, ao relento, e que muitas crianças e adultos chegaram
a morrer de frio, por ser na época de frio. Este é um processo que se radicalizara, uma vez que os
que foram “transferidos” para Ceilândia, era uma população que ou não tinha aceitado ir para as
primeiras satélites, ou nem sequer teve essa “oportunidade”. Tal situação era um processo que
ocorrera desde os primeiros anos de Brasília, como nos relata Edson Beú:

Depois que a capital foi inaugurada, as autoridades passaram a usar de todos os


meios para convencer os candangos a abandonar os barracos dos antigos
acampamentos. Os peões de obra recusavam-se a sair, pois, apesar de inexistir
infraestrutura urbana nos locais onde se encontravam, a maioria deles não admitia a

216
A cidade satélite (chama-se atualmente de Região Administrativa) de Ceilândia surge como resultado da CEI, a
Campanha de Erradicações de Invasões.
217
Caminhões de entulho e lixo.
619

ideia de residir nas cidades-satélites já existentes (Taguatinga, Sobradinho e Gama),


construídas a dezenas de quilômetros das atuais moradias. (Beú, 2013, p. 87)

Ao fim, o narrador diz que os problemas nacionais, chegaram à Brasília, sufocando a


intenção de uma cidade igualitária. Curiosamente, a narrativa deste documentário instiga o
espectador a torcer para que Brasília “reencontre” sua essência “igualitária”, que todos tivessem
acesso à obra de arte, que seria Brasília.

Assim como neste documentário, em “Conterrâneo Velho de Guerra” também é abordado


o contexto social dos candangos que aqui ficaram, e que aqui tentavam viver dignamente. De
duração muito mais longa, este aborda uma extensão temporal maior, e trata do Massacre da GEB218,
da situação dos trabalhadores nas cidades satélites e da exclusão da população nordestina e negra
do mesmo Plano Piloto que construíram.

Trata também das mortes de operários nas construções, fruto da superexploração destes,
que geralmente aconteciam por conta das “viradas” trabalhando por vezes 16, 18 horas seguidas
que as autoridades tentaram esconder, a todos estes acontecimentos o filme chama atenção: Brasília
não foi construída “naquele espírito de camaradagem” que Niemeyer gostava de dizer, a construção
de Brasília também foi dolorosa e traumática para muitos dos candangos, quando não, fatal.

Ponto importante do filme de Vladmir Carvalho são as entrevistas a Lúcio Costa, Oscar
Niemeyer e Ernesto Silva, onde o cineasta lhes questiona sobre o massacre da GEB. As reações
distintas têm na negação dos fatos sua única semelhança. Lúcio Costa desdenha da conversa,
“conversa de candango”, diz o urbanista. Já o arquiteto, se irrita, diz que não iria mais gravar caso
o entrevistador insistisse no tema, como disse “eu não posso opinar sobre o que não sei, não sei
do que se trata e ponto”. Já Ernesto Silva, burocrata da NovaCap219, que escreveu “a história de
Brasília” diz que o que houve foi uma confusão, afinal “ os operários sabem como é né? Carnaval,
beberam, deu uma briga lá entre eles, daí dizem que parece que morreu um lá... mas nada desse
negócio de massacre, de GEB, isso não houve”.

Outro ponto importantíssimo é o que desmistifica o discurso do “inchaço” populacional,


quando um dos candangos entrevistados relata a grande campanha de arregimentação à época da
construção, que JK empreendera. Só houve a construção da capital por conta da migração intensa,

218
O Massacre da GEB, foi um triste episódio, quando a Guarda Especial de Brasília (que seria depois integrada à
PMDF) atacou o acampamento dos operários da construtora Pacheco Fernandes, no carnaval de 1959, em represália
a uma revolta, contra a péssima condição da alimentação dada aos operários que então construíam o “28”, como
chamavam o prédio do Congresso Nacional.
219
A Companhia Urbanizadora da Nova Capital, que foi o órgão responsável pela construção de Brasília e
corresponsável pela administração da mesma nos primeiros anos da cidade, cumprindo hoje o papel de reparos urbanos
do GDF.
620

pela “adesão” dos candangos à empreitada. Mas o mesmo entrevistado, fala também da decepção
com as condições de trabalho precárias durante a construção, e de moradia, após a construção.

Próximo ao final do filme, o resultado catastrófico das políticas habitacionais de Brasília ao


longo de suas primeiras décadas. Durante uma retirada de barracos de “invasores” da 310 Norte
no fim da década de 80, membros do governo vão “dialogar” com os moradores. Um desses
moradores relata que o governo havia lhe oferecido uma passagem de volta para sua terra. Uma
das entrevistadas que sofria o desalojo responde –“voltar pra onde? Se eu nasci aqui... Meu pai veio
para construir Brasília, ele morreu, não tínhamos casa, ficamos no barraco, para onde eu vou?”.

Por fim, como fechamento do documentário, cenas do Badernaço, manifestação contra o


Plano Cruzado II do então presidente, José Sarney, em novembro de 1986. O ato que desencadeou
intensos conflitos no centro do Plano Piloto na Rodoviária é tido como um marco de
enfrentamento às forças policiais que reprimiam os manifestantes. A mesma polícia que
constantemente fora a “arma do diálogo” do governo nas “retiradas” dos barracos que ainda
resistiam ao redor do Plano Piloto. O filme se encerra com imagens que parecem um troco dado
pelo povo, que o quanto pode, descontou as opressões do Estado.

O sentido aqui é distinto do documentário de Joaquim Pedro de Andrade. Há aqui, a ideia


de que Brasília deve tomar outro caminho para romper com a segregação, não “voltar aos seus
princípios”. Ambos documentários, porém, dialogam no essencial de suas tramas: há em Brasília,
uma condição de vida para os que vivem no Plano Piloto, há outra para os que habitam as cidades
satélites. Há em ambas narrativas, um grito sufocado pela propaganda estatal, que declara que a
Capital do Brasil reproduz em si as mazelas que supostamente não haveriam de aqui se criar.

Contrapondo as lentes, as imagens não batem

A forma como Brasília é narrada, notoriamente é distinta, por conta de interesses políticos
distintos. A narrativa oficial/estatal buscou desde os primeiros anos de Brasília imprimir a imagem
de uma cidade que “deu certo”, que consegue servir ao que se propunha: uma nova capital, para
um novo Brasil. Porém vimos que, noutras narrativas, nas contranarrativas, aparece uma “outra
Brasília”, que nas narrativas estatais não aparece, e quando raramente aparece, é tratada como
efeitos de um sem número de fatores, mas nunca das políticas de urbanização do próprio Estado.
Como nos recorda o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot em seu livro Silenciando o Passado:
poder e a produção da história diz que: “qualquer narrativa histórica é um conjunto específico de
621

silêncios, o resultado de um processo singular, e a operação necessária para desconstruir estes


silêncios variará de acordo com eles” (Trouillot, 2016, p. 58).

Mas afinal, o que buscavam esconder nestas narrativas estatais? Além das vergonhosas
consequências das políticas de planejamento urbano, os sujeitos que sofreram, e sofrem estas
consequências. Esses sujeitos são a massa de trabalhadores, candangos, seus filhos e netos, em sua
maioria negra. Candangos e candangas que buscaram aqui vivenciar a tão prometida ruptura com
a cultura desigual, elitista e racista vigente nos interiores e capitais do Brasil, e que agora vivenciam
com filhos e netos, na pele, a hierarquia social que segrega a periferia do centro.

Tão pouco Brasília foi erguida sob as mesmas condições para todos, como dizia Niemeyer.
O espírito de camaradagem não se verifica nas falas dos candangos entrevistados, seja pelas
condições de vida durante a construção, seja pelo acesso (ou não acesso) à moradia após a
construção.

Além do mais, simplesmente não se fala na narrativa estatal/oficial, das mudanças nas
políticas habitacionais, apenas se comenta em um dos documentários, que há problemas nesse
campo, mas não se aborda a dinâmica do uso do solo.

Assim, se tomarmos as Estradas-Parque emprestadas como analogia da hierarquia social e da


segregação que se pavimentou ao longo das seis décadas de Brasília, fazendo o caminho do Plano
Piloto para as cidades satélites, olhando pelas janelas (recorte) de classe e raça, por exemplo,
veremos a diferença de melhores para piores empregos, melhores para piores condições sociais,
melhores para piores condições urbanísticas. Esse exemplo se verifica também quanto à educação,
saúde, lazer... De um Plano Piloto, majoritariamente branco, para as satélites de maioria negra220,
podemos verificar a grandiosa obra do Estado: Brasília, a capital da esperança.

Conclusão

Contrapondo as lentes, percebemos que nem as imagens, nem as realidades batem. Não
batem porque há sempre um lado escondido, resultado de uma “limpeza de vitrine” que esteve
presente em diferentes governos ao longo da curta e intensa história de Brasília, reafirmado o
compromisso de classe desses governos: da elite e para a elite.

Neste sentido, pudemos verificar que, as narrativas operam com elementos da condição
material, e no caso das narrativas estatais, visando vender Brasília ao resto do país e ao mundo

220
Ver o mapa racial do Brasil, PATA. http://patadata.org/maparacial/
622

como prova de grandeza do Estado brasileiro, preservam sempre como principais elementos: A) a
façanha da construção de Brasília no tempo prometido; B) a riqueza arquitetônica e urbanística do
Plano Piloto; C) a qualidade ambiental da Bacia do Lago Paranoá e D) a funcionalidade moderna
da cidade.

Contrapondo estes pontos à contranarrativa, os aspectos que não são falados, são: A) o
massacre da GEB; B) a prática de arregimentação conveniente dos candangos; C) a expulsão dos
candangos para as cidades satélites; D) a implementação da especulação imobiliária; e por fim, E)
a segregação sócio-espacial, de classe e raça.

Esta diferença não é só uma prova de que o Estado atua ideologicamente para se
autolegitimar, mas que sua narrativa busca sedimentar um imaginário que possibilite perpetuar suas
práticas na sociedade, servindo sua narrativa como um impulsionador de ódio racial e elitista contra
o povo que vive nas satélites.

O apagamento histórico pelo qual passaram por anos as experiências dos de baixo pelos de
cima é símbolo de uma tentativa de calar politicamente a classe trabalhadora, e calar historicamente
suas experiências de luta pelo direito à moradia! E o papel das narrativas do Estado é crucial, uma
vez que criando “consensos” entorno dos pontos que ressalta, silencia na busca por apagar os
elementos que deixa de falar, e estes elementos em processo de apagamento pela narrativa
estatal/oficial, são a chave de uma consciência de si dos que nascem em Brasília, de sua capacidade
de identificação e consequentemente, de ação em seu contexto.

Fontes

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https://www.youtube.com/watch?v=6adcvvV3I9A. Acessado em 02/12/2020.

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https://www.youtube.com/watch?v=Wzj8Lex6CJ0. Acessado em 02/12/2020.

Brasília – A Esperança da Capital, TV Senado. Brasília, 2004. 1 vídeo ( 42 min.) Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=M1PPLZcPNo8&list=PLnNqr11pOzRbtze2NRjVCN0w
G-86sj9hc&index=41. Acessado em 02/12/2020.

A Menina de Sessenta, TV Senado. Brasília, 2020. 1 vídeo ( 26 min.) Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=K-awxHmzNaQ&feature=emb_logo. Acessado em
02/12/2020.

Brasília – Contradições de uma cidade nova, Direção de Joaquim Pedro de Andrade. Brasília, 1967.
1 vídeo ( 22 min.) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3Ony7axA-CE. Acessado
em 02/12/2020.
623

Conterrâneo Velho de Guerra. Direção de Vladmir Carvalho. Brasília, 1991. 1 vídeo ( 2 h e 34 min.)
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iDcz3Uw21wI. Acessado em 02/12/2020.

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625

O Conselho Continental da Nação Guarani frente ao Parlamento


do Mercosul

Edson Dos Santos Junior*

Resumo: Analisamos a formação e manutenção dos blocos regionais na América Latina e Caribe,
com vistas para a mobilização dos povos Guarani em defesa do território, pelo direito à terra e à
territorialidade. Neste sentido, trabalha-se com os documentos finais das primeiras Assembleias
Continentais da Nação Guarani, o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercado Comum do
Sul (Parlasul) e algumas notícias sobre o assunto, para o estudo e compreensão desse processo
político e econômico, utilizando uma metodologia qualitativa de análise do discurso. Passamos,
então, por um brevíssimo exame acerca do regionalismo latino-americano e caribenho para algumas
considerações acerca do Parlasul e sobre a formação do Conselho Continental da Nação Guarani
(CCNAGUA). À guisa de uma conclusão, realizamos um breve balanço em torno da formação
deste Conselho e do referido Parlamento.

Palavras-chave: Guarani, Mercosul, Parlasul, regionalismo, território.

Introdução

Lutando por garantir os direitos Guarani nos territórios compreendidos atualmente pelos
Estados de Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, a formação do CCNAGUA apresenta-
se de modo substancialmente distinto da formação de uma importante instituição regional
relacionada com estes países, o Parlamento do Mercado Comum do Sul (Parlasul). Colocando-se
acima dos intercâmbios comerciais, em defesa da vida, do território, da biodiversidade e
sociodiversidade, os povos Guarani questionam a colonialidade do poder (Quijano, 2020) no
Mercosul, em sintonia com muitos outros movimentos sociais anti-sistêmicos e contemporâneos,
alcançando críticas radicais ao capitalismo em nossa região.

Ciro Flamarion Cardoso (1977, p. 59) escreveu que “para o historiador, estrutura e
movimento são inseparáveis”, o que implica considerações acerca das mudanças sociais e algumas
permanências que se verificam na América do Sul. Em todo caso, o pesquisador precisa dar-se
conta de que sua maneira de pensar não pode tornar-se dependente de modelos construídos a partir
de uma realidade alheia àquela por ele estudada (Cardoso, 1977, p. 62). Em se tratando de

*Historiador, formado pela Universidade Federal de São Paulo, especialista em Ensino de História, América Latina e
Relações Internacionais Contemporâneas. É graduando em Relações Internacionais e Integração, além de Mestrando
em História, na Universidade Federal da Integração Latino-americana. E-mail: edson.santos.junior@hotmail.com
626

considerar os fluxos culturais entre o movimento Guarani e instituições como o parlamento do


Mercosul, com vistas à defesa dos direitos indígenas à terra e territorialidade, a formação do
Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA) precisa ser compreendida sob a distinção
entre nação e Estado. Isto porque reconhecemos que as maneiras de ser e pensar do povo Guarani
é diferente daquelas observadas em geral através dos Estados nacionais e registradas nos
documentos do Mercosul relativos à nacionalidade. Assim, de acordo com Alcoreza (2010, p. 51)
“es indispensable considerar los imaginarios colectivos de las resistencias a la colonialidad y a la modernidad,
entendidos como actos de descolonización”, o que se aplica ao assunto que temos em pauta.

O estudo aqui demonstrado do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul


considera as questões Guarani a partir dos documentos finais das primeiras Assembleias e
Encontros Continentais da Nação Guarani, atentando-se para o que Carlo Ginzburg (2007, p. 286)
chamou de “atitude antropológica”, ao referir-se à base linguística de tal perspectiva, para a qual “o
discurso interno é essencialmente um diálogo e (...) todo discurso citado é feito seu e remodelado
por quem cita”. Nesse sentido, sublinhamos o que escreveu Mikhail Bakhtin (1981, p. 28) para
quem “não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão, mas sua
ubiquidade social”. Deste modo, abordaremos as principais características do atual regionalismo
latino-americano e caribenho no contexto do movimento Guarani enquanto parte de um
regionalismo protagonizado por movimentos indígenas e populares, aqui chamado de regionalismo
dos povos.

Em linhas gerais, os processos de integração regional e seus respectivos projetos,


concebidos a partir dos Estados nacionais, pressupõem alguma convergência em meio à
diversidade de interesses e conjunturas dos países. Após a Segunda Grande Guerra (1939-1945),
os diferentes ciclos de regionalismo e integração estiveram associados a determinados modelos
econômicos e políticos de blocos regionais adotados pelos Estados participantes e, sem dúvida, os
modelos inicialmente mais importantes foram influenciados pelo regionalismo estruturalista,
relacionado com as elaborações da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada
em 1948, e que posteriormente abrangeu o Caribe (Klaveren, 2018, p. 63).

Escrevendo na última década do século passado, Andrew Hurrell (1993) já considerava a


relativa decadência da hegemonia estadunidense, demonstrada a partir de sua reduzida capacidade
em desempenhar um papel global no sistema interestatal e acompanhada do desenvolvimento de
sistemas regionais de poder em outros espaços. Atento às dinâmicas políticas e econômicas da
América Latina, Hurrell acreditava que o interesse latino-americano no regionalismo hemisférico
daquele período não se encontrava relacionado com quaisquer semelhanças em tipos de regime,
627

nem tampouco em solidariedades firmadas entre países democráticos ou “coalizões internacionais


entre grupos de elite” (Hurrell, 1993, p. 109).

Pensando nas relações entre a matriz regional produtiva e o integracionismo, José Antonio
Sanahuja (2009, p. 14) aponta para o propósito de incorporar os progressos técnicos em favor de
sua transformação, resultando na redução de custos e barreiras não comerciais a partir de políticas
setoriais em áreas como os transportes, a geração de energia e a inovação tecnológica, levadas
adiante por atores públicos e privados. Para Sanahuja, há na América Latina e o Caribe um potencial
não explorado para a integração, em termos de infraestrutura física, matriz produtiva e energética,
ciência e tecnologia. O autor considera estas e outras questões diante das assimetrias sociais que se
observam na região (Sanahuja, 2009, p. 15).

A integração latino-americana e caribenha em perspectiva histórica

Na primeira metade do século XIX, entre 1821 e 1838, países hoje conhecidos como
Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica conformaram a República Federal
Centroamericana, um antecedente histórico que pode ser visto de alguma maneira como uma
tendência razoavelmente estabelecida em favor de uma possível convergência daqueles países
frente aos propósitos políticos, econômicos e culturais do integracionismo regional. Pouco mais de
cem anos após a desagregação dessa república, os mesmos países que a conformaram deram origem
à Carta de San Salvador, em 1951: documento responsável pela Organização dos Estados
Centroamericanos, a ODECA (Blanco Fonseca, 2014).

A ODECA inspirou o Tratado General de Integración Económica, firmado a 13 de dezembro de


1960, em Manágua, na Nicarágua, visando à criação de um mercado comum nesse espaço; esta
iniciativa seria precursora da Secretaria de Integración Económica Centroamericana (SIECA) e do Banco
Centroamericano de Integración Económica (BCIE). Esses avanços nos processos de integração
mencionados seriam interrompidos ao final da década de 1970 e início da década de 1980 por
conflitos internos em países como El Salvador, Guatemala e a própria Nicarágua, que sofreram
sistematicamente com guerras civis, resultando em uma completa estagnação dos processos
integracionistas na região durante esse período (Blanco Fonseca, 2014, p. 74-75).

Durante a década de 1980, Colômbia, México, Panamá e Venezuela formaram um grupo


que ficou conhecido como “Grupo de Contadora”, responsável por encaminhar o chamado
“Proceso de Esquipulas” e carregando a ideia de os Estados centro-americanos dirigirem, por si
mesmos, o processo de pacificação dos conflitos que viviam. Em 1986, formou-se ainda um
628

conjunto de países que ficou conhecido como “Grupo de Apoio a Contadora”, liderado por
Argentina, Brasil, Peru e Uruguai; a união de ambos os grupos foi chamada de “Grupo dos Oito”,
inspirada pelo princípio de autonomia política, e em 1990 esse grupo adotou o nome de “Grupo
do Rio”, a partir de uma declaração elaborada em conjunto pelos oito países mencionados, na
cidade brasileira do Rio de Janeiro, resultando em um mecanismo internacional de consulta sem
um secretariado permanente.

Em 13 de dezembro de 1991, em Tegucigalpa, Honduras, o presidente hondurenho, os


presidentes de Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Nicarágua e Panamá firmaram o Protocolo de
Tegucigalpa à Carta da ODECA, instituindo o Sistema de Integração Centro-Americana (SICA),
que em 2003 incorporou também Belize e República Dominicana. Visto enquanto um novo marco
integracionista nessa região, o SICA propugnou a paz, a liberdade, a democracia e o
desenvolvimento (Blanco Fonseca, 2014, p. 75). Considerando a influência desse processo junto
ao “Grupo do Rio”, entende-se os principais precedentes para a realização posterior da I Cúpula
da América Latina e do Caribe, em dezembro de 2008 na Costa do Sauípe, Brasil, que reuniria as
atividades fundamentais para a fundação da importante Comunidade de Estados Latino-
Americanos e Caribenhos, a CELAC, na cidade de Playa del Carmen, no México, em fevereiro de
2010. Recentemente, em janeiro de 2020, o atual chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, declarou
suspensa a participação do Brasil na CELAC221.

Para Sanahuja (2009, p. 12), a partir da década de 1990 a América Latina teria definido um
panorama acerca da integração regional que permaneceu estável por cerca de quinze anos, em que
se notava diferentes estratégias integracionistas, entre as quais se viu a do México, por exemplo,
que se distanciou de outros países latinos, adotando uma opção “pragmática” de integração com a
América do Norte, como podemos perceber através do Tratado Norte-americano de Livre
Comércio que inicialmente fora estabelecido entre Estados Unidos e Canadá, recebendo a adesão
mexicana em 1994 (North American Free Trade Agreement ou NAFTA).

Segundo José Briceño Ruiz (2012), existem dois pontos básicos no pensamento latino-
americano integracionista: a autonomia política e o desenvolvimento econômico. Para ele, desde as
independências políticas coloniais do século XIX até a consequente busca por maior liberdade
frente às potências extra-regionais procurava-se culminar em autonomia; os esforços realizados no
sentido de diversificar as estruturas produtivas regionais, por sua vez, esperavam pelo

221
Conferir: “Sem resultados na defesa da democracia, Brasil deixa CELAC, diz Araújo”. Disponível em:
https://exame.com/brasil/sem-resultados-na-defesa-da-democracia-brasil-deixa-celac-diz-araujo/amp/ Acesso em
18 de outubro de 2020.
629

desenvolvimento econômico. Entre o estudo das elaborações dependentistas, autonomistas e


cepalinas, o autor considera questões políticas e econômicas no pensamento integracionista latino-
americano, com ênfase no século XX, mostrando-se preocupado com a consolidação do
desenvolvimento industrial e colocando o integracionismo como um tema cuja discussão
permanece em aberto na região (Briceño Ruiz, 2012, p. 54).

Visto enquanto um processo, o integracionismo foi construído entre aspectos estruturais e


conjunturais envolvendo, ocasionalmente, a influência das circunstâncias em que ele se deu. De
modo geral ele tem sido projetado pelos Estados, mesmo quando inclui outros atores, questão que
incide sobre a efetiva integração dos povos. Segundo Umberto Celli Junior (2012, p. 19), “o
conceito de integração sempre foi dinâmico e relacionado a um determinado contexto, político,
econômico e social. Sua complexidade também deriva do fato de que não pode ser visto
exclusivamente sob o prisma econômico ou jurídico”.

Então, o embaixador, ex-ministro de Relações Internacionais e ex-ministro da Defesa do


Brasil, Celso Amorim, proferiu um discurso em outubro de 2010 durante a XXVI Sessão Plenária
do Parlamento do Mercosul, em que afirmou “o Mercosul que queremos não é apenas o Mercosul
das economias ou o Mercosul dos Estados, mas também um Mercosul dos povos”222. É importante
observar que esta afirmação trouxe consigo a atribuição de um sentido específico de integração
regional, até então, pouco atrativo.

O “Mercosul dos povos” em relação aos Guarani

Nessa ocasião em que falou de um “Mercosul dos povos”, Celso Amorim discursou diante
do então presidente da República Oriental do Uruguai, José Mujica, do presidente em exercício do
Parlamento do Mercosul, Ignacio Mendoza Unzaín, entre outros ministros e parlamentares, sobre
o andamento de um “projeto comum de integração profunda e solidária”, destacando as mudanças
pelas quais o Mercosul passava. Amorim testemunhou em favor dessas mudanças, sublinhando223

Uma concepção que, sem descuidar dos aspectos econômicos e comerciais,


soube incorporar as dimensões políticas, sociais, culturais e, sobretudo, um agudo
sentido de solidariedade, movido pela consciência de que é fundamental dar
tratamento adequado às assimetrias. Iniciativas como a instituição do FOCEM,

222 Discurso do Ministro Celso Amorim por ocasião da XXVI Sessão Plenária do Parlamento do Mercosul -
Montevidéu, 18 de outubro de 2010. Antes de ser retirado da página do Itamaraty, este registro estava disponível em
http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas-categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-
discursos/8091-discurso-do-ministro-celso-amorim-na-xxvi-sessao-plenaria-do-parlamento-do-mercosul-
montevideu-18-de-outubro-de-2010 Acesso em 18 de outubro de 2020.
223 Idem, ibidem.
630

experiência pioneira entre países em desenvolvimento, e a criação deste


Parlamento, anseio de nossas sociedades democráticas, bem refletem a mudança
de paradigmas e a disposição para elevarmos o perfil do nosso projeto
integracionista, garantindo-lhe o justo título de motor da integração sul-
americana (Amorim, 2010).

Visto por Amorim enquanto “motor da integração sul-americana”, o Mercosul passaria à


segunda década deste século como um projeto distinto de integração regional, entre os demais
projetos existentes no Cone Sul. A criação do Fundo para a Convergência Estrutural e
Fortalecimento Institucional do Mercosul (FOCEM), criado a partir da Decisão nº 18/2005 do
Conselho do Mercado Comum (CMC), uma das instâncias decisórias deste bloco, procurou dar o
suporte necessário à manutenção institucional e às principais iniciativas tomadas a partir do bloco.

A avaliação de Desiderá Neto (2014) acerca desse processo é de que ele foi efetivamente
capaz de fazer frente às iniciativas e planos estadunidenses na região, restando-nos perguntar em
que medida o Mercosul alcançou o êxito no contexto neoliberal dos anos 1990, uma vez que a
abertura comercial por ele preconizada visou, sobretudo, integrar os países membros do bloco aos
fluxos econômicos globais. Segundo Carlos Eduardo Martins (2005, p. 148), é preciso observar
ainda que “o esforço exportador que se desenvolve na região não se traduz no aumento de sua
competitividade. A percentagem de manufaturados se eleva de 17,9% para 58,1% das mercadorias
exportadas, entre 1980-2001, mas isto se dá no âmbito de uma brutal deterioração dos termos de
troca”. Assim, em que sentido é possível tratar de um real aumento de poder dos países membros
do Mercosul? (Martins, 2005, p. 148-165; Desiderá Neto, 2014, p. 27).

Um viés institucionalista de análise das mudanças ocorridas no Mercosul, possivelmente


registraria o funcionamento do Tribunal Permanente de Revisão (TPR), a criação do Parlamento
regional (Parlasul) e do Fundo para a Convergência Estrutural (FOCEM), além das Cúpulas Sociais
e do Instituto Social do Mercosul (ISM), como um aprimoramento da integração regional em seu
conjunto, podendo considerá-la enquanto um processo favorável a maior representatividade social
no bloco e à arbitragem de possíveis conflitos, em especial aqueles de ordem comercial. No entanto,
este seria um viés limitado a apenas uma das dimensões desse processo.

A criação do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) e do cargo de


alto representante geral do Mercosul são, sem dúvida, ações importantes (Desiderá Neto, 2014, p.
53). Contudo, a resultante dessas medidas alcançou os setores sociais pretendidos de maneira
satisfatória? O conjunto dessas mudanças institucionais levaram à melhor governança regional e
articulação integrada dos interesses dos países membros e de suas populações? O Mercosul
conseguiu alcançar, ao menos em alguma medida, o caráter supranacional ensejado atualmente
pelos blocos regionais? Em quais pontos, efetivamente, os povos transterritoriais e
631

transfronteiriços224 como os Guarani foram beneficiados pelas políticas levadas a cabo pelo
Mercosul?

A inserção internacional e a competitividade econômica dos países membros do Mercosul


são consideradas por José Renato Martins (2014) frente à persistência de “velhos problemas
sociais”. O autor está voltado para o desafio em “superar o fracasso das políticas sociais das décadas
passadas”, entendendo que o Estado pode cumprir o papel de articulador da oferta de serviços
públicos e consciente de que as profundas desigualdades sociais existentes na região representam
uma ameaça ao crescimento econômico e ao exercício efetivo da democracia no Cone Sul (Martins,
2014, p. 101-102).

A persistência da pobreza, observada por Renato Martins (2014), recebeu como uma
resposta, entre outras, os programas de transferência condicionada de renda, estabelecendo-se
como uma medida referencial nesse sentido entre os países membros do Mercosul para o combate
às assimetrias sociais. Quando comparada com aquelas consagradas prioridades comerciais,
levantadas pelo bloco na última década do século passado, tal resposta indica uma possibilidade
importante de trabalho conjunto entre os países para a solução de problemas sociais comuns aos
Estados Partes do Mercosul.

Os Guarani frente ao Parlamento do Mercado Comum do Sul

É importante salientar que existe um permanente conflito de interesses entre determinados


setores dos Estados nacionais de países como Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, membros do
Mercosul, e os movimentos indígenas. De maneira geral, esses movimentos recebem duras
represálias dos Estados sempre que confrontam o seu nacionalismo homogeneizador ou até
mesmo quando atuam em defesa de alguns direitos sociais (Little, 2004, p. 279). Um caso
emblemático a esse respeito é a prisão política de uma liderança indígena e trabalhadora, deputada
do Parlamento do Mercado Comum do Sul a partir de 2015 pela Argentina, Milagro Sala225.

Em janeiro de 2016 ela e outros militantes haviam sido detidos em um protesto contra
cortes em programas sociais, durante o governo de Mauricio Macri. Mesmo depois de absolvida

224 A nação Guarani se define como transterritorial e transfronteiriça, conforme o registro da Declaração do III
Encontro Continental da Nação Guarani, ocorrido entre os dias 15 e 19 de novembro de 2010 em Assunção, Paraguai.
225 Milagro Sala foi condenada em 2019 a 13 anos de prisão, sem que houvesse a existência de provas contundentes

contra ela. A Procuradoria de Violência Institucional da Argentina, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
Anistia Internacional consideraram a sua detenção como de caráter político. Conferir
https://www.brasildefato.com.br/2019/01/15/justica-da-argentina-condena-lider-indigena-milagro-sala-a-13-anos-
de-prisao Acesso em 10 de dezembro de 2020.
632

em dezembro de 2018, por falta de provas acerca de uma das acusações que sofria em um processo
moroso sobre o caso do “Tiroteio de Azopardo”, Milagro Sala permaneceu em prisão preventiva
até ser condenada a 13 anos de prisão, em janeiro de 2019, pelo Tribunal Criminal da província de
Jujuy. Esta situação fere diretamente não apenas os direitos humanos, mas fere ainda a estabilidade
dos processos de integração regional que se dão a através do Mercosul, pois segundo o Protocolo
de Assunção226:

A plena vigência das instituições democráticas e o respeito dos direitos humanos


e das liberdades fundamentais são condições essenciais para a vigência e evolução
do processo de integração entre as Partes. […] O presente Protocolo se aplicará
em caso de que se registrem graves e sistemáticas violações dos direitos humanos
e liberdades fundamentais em uma das Partes em situações de crise institucional
ou durante a vigência de estados de exceção previstos nos ordenamentos
constitucionais respectivos. A tal efeito, as demais Partes promoverão as
consultas pertinentes entre si e com a Parte afetada (Protocolo de Assunção.
Artigo 1, 20 de junho de 2005, p. 2).

Conforme se pode observar a partir do documento supracitado, “o respeito dos direitos


humanos e das liberdades fundamentais” é uma conditio sine qua non para a integração regional: ou
seja, qualquer violação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em algum dos Estados
Partes deveria resultar no enquadramento institucional do Estado transgressor em matéria de tais
direitos. Porém, isto não ocorreu ao Estado Argentino durante o governo de Mauricio Macri,
apesar de o Protocolo de Assunção registrar a “promoção e garantia dos direitos humanos e
liberdades fundamentais de todas as pessoas que habitam o Mercosul”227. A prisão política de uma
liderança indígena, integrante da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA), deputada e
parlamentar do Mercosul, Milagro Sala, representa portanto um verdadeiro escândalo institucional
e a degradação da democracia como esta é conhecida na América do Sul.

Dez anos antes da condenação de Milagro Sala, O relato de Egon Heck sobre o Parlamento
do Mercado Comum do Sul, veiculado em 2 de outubro de 2009 através da página eletrônica do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), observava que a composição do Parlasul “seguia à risca
o ideário colonial: majoritariamente branco e masculino”228. Ao analisar as possibilidades, naquele
momento, de efetiva representação indígena, o texto registrava o seguinte:

(…) Não tem nenhum parlamentar indígena no Parlasul. Apesar de se ter feito a
proposta de representação por povos indígenas essa tese foi derrotada. Aliás, isso

226 Disponível em https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/textos-fundacionais/ Acesso em 1 de


dezembro de 2020.
227 Protocolo de Assunção. Artigo 1, 20 de junho de 2005, p. 2.
228 “Parlasul: que bicho é esse?”, 2 de outubro de 2009, disponível em https://cimi.org.br/2009/10/29340/ Acesso

em 1 de dezembro de 2020.
633

já aconteceu em vários parlamentos nacionais. Dessa forma, por exemplo os


Guarani, apesar de ser um povo símbolo de integração nessa região dificilmente
conseguirá eleger um representante seu para esse parlamento (Heck, 2009)229.

É importante destacar que em outubro de 2009, quando este texto foi divulgado através da
página do Cimi, o Parlasul já dava sinais bastante evidentes de sua rejeição aos povos indígenas,
questão que evidencia a colonialidade do poder, a que se referiu Quijano (2020), que ainda vigora
nos parlamentos de maneira geral, obliterando o reconhecimento dos povos indígenas enquanto
sujeitos de direito, mas também enquanto sujeitos históricos. Outra questão interessante nesse
registro, é apontar os Guarani como “um povo símbolo de integração nessa região”, indicando o
protagonismo coletivo dos povos indígenas organizados para as relações internacionais, desde sua
concepção enquanto “povo”. Neste sentido, reconhecer o Conselho Continental da Nação Guarani
como um ator não estatal nas relações internacionais pode resultar em outro significado para aquela
expressão “Mercosul dos Povos”, que mencionamos anteriormente.

Para Félix Pablo Friggeri (2012), os movimentos indígenas podem ser considerados sujeitos
políticos e epistêmicos, dadas as suas contribuições para as dinâmicas sociais latino-americanas,
além de núcleo do sujeito coletivo e popular revolucionário na América Latina, em se tratando de
seu potencial para contra-arrestar a dominação capitalista. Neste sentido, há razões suficientes para
reconhecer o protagonismo político, histórico e internacional dos povos Guarani: a partir da
primeira Assembleia Continental do Povo Guarani, realizada em São Gabriel, no estado brasileiro
do Rio Grande do Sul, em 7 de fevereiro de 2006230, dá-se a articulação e organização do
movimento Guarani entre os territórios dos Estados nacionais de Argentina, Bolívia, Brasil e
Paraguai.

Essa assembleia rememorou os 250 anos desde o assassinato de Sepé Tiaraju, liderança
Guarani que resistiu junto a outros milhares de indígenas à expropriação de suas terras, decorrente
do Tratado de Madrid (1750), que reunia Espanha e Portugal em mais uma de suas sanhas
colonialistas pelo território. A segunda Assembleia Continental do Povo Guarani ocorreu em Porto
Alegre, entre os dias 11 e 14 de abril de 2007, reunindo novamente os Guarani de Argentina,
Bolívia, Brasil e Paraguai. Nesta ocasião, a questão fundiária em torno da dificuldade ao acesso e
usufruto da terra foi colocada: “Nosso território, Ywy Rupá, foi cortado, várias vezes, por fronteiras
entre países e estados. Fizeram guerras para roubar nossas terras. Por isso, hoje, nosso povo ficou
dividido entre Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia”231.

229 Idem.
230 Documento Final da I Assembleia Continental do Povo Guarani: São Gabriel, 2006.
231 Documento Final da II Assembleia Continental do Povo Guarani: Porto Alegre, 2007.
634

Nota-se a partir deste assunto como a construção da territorialidade Guarani é resultado de


um processo histórico (Godoi, 2014) de longa duração (Braudel, 1978). Sendo a questão fundiária
situada no modo de produção capitalista como um dos principais problemas enfrentados pelos
povos indígenas, ao lado da colonialidade do poder (Quijano, 2020), do racismo e do patriarcado
(Quijano, 1999). Entretanto, o direito ao acesso e ao usufruto da terra pelos povos indígenas não
tem sido discutido no Parlamento do Mercado Comum do Sul ao longo dos últimos anos,
limitando-se o espaço para intervenção e audiência desses povos apenas ao âmbito da Comissão
de Direitos Humanos do Parlasul232.

Neste sentido, a decisão de compor o Conselho Continental da Nação Guarani, o


CCNAGUA, a partir da Declaração do terceiro Encontro Continental do Povo Guarani, realizado
entre 15 e 19 de novembro de 2010 em Assunção, no Paraguai, resulta de um processo histórico
muito importante para a auto-organização dos povos e conquista de direitos, além de sua
importância para a descolonização do poder e das relações internacionais na América do Sul.

Assim, há trechos do Protocolo Constitutivo do Parlasul que apresentam alguns desafios


para o movimento Guarani, como “elaborar estudos e anteprojetos de normas nacionais,
orientados à harmonização das legislações nacionais dos Estados Partes, os quais serão
comunicados aos Parlamentos nacionais com vistas a sua eventual consideração”234. Isto pressupõe
condições razoáveis para o exercício da democracia nos países membros do bloco, de maneira a
incluir o poder e a capacidade de decisão indígena, não apenas na estrutura dos parlamentos mas
na estrutura das sociedades nas quais eles se encontram, apontando para o caráter, ao mesmo
tempo, nacional e internacional da incidência das reivindicações Guarani.

Considerações

A constituição do Parlasul pode ser compreendida como parte de um processo regional em


disputa por diferentes forças políticas e sociais, observando aquilo que consta em seu Artigo 1,
“Constituir o Parlamento do MERCOSUL, doravante o Parlamento, como órgão de representação
de seus povos, independente e autônomo, que integrará a estrutura institucional do
MERCOSUL”235. No entanto, esse foro parlamentar encontra-se bastante limitado ao privilegiar a

232 Audiência Pública sobre os direitos indígenas realizada pela Comissão de Direitos Humanos do Parlasul em 2 de
dezembro de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=c8IQM98jlC0&list=PLrpQpEnYekDpc09LzqNFf6_JFg2xuCMzY&index=18
Acesso em 2 de dezembro de 2020.
234 Ibidem, Artigo 4, p. 5.
235 Ibidem, Artigo 1, p. 2.
635

representação das elites nacionais dos países membros do bloco, cujo poder econômico está
concentrado no modo de produção capitalista: isto é, falta muito para que o Parlamento do
Mercosul seja de fato um órgão independente e autônomo de representação dos povos.

Os povos indígenas possuem maneiras particulares de construção de um regionalismo que


difere substancialmente dos processos de integração regional protagonizados pelos Estados
nacionais. É importante observar que o protagonismo dos Estados em tais processos não é
exclusivo, o que implica em reconhecer o protagonismo dos povos a partir de seus movimentos
organizados como uma contribuição qualitativa para outro regionalismo possível, não concentrado
apenas em atividades de comércio, circulação de mercadorias, bens e serviços. Neste sentido, os
processos de integração regional que pretendem transformar as bases produtivas da América Latina
e Caribe, sem observar o atendimento das reivindicações desses movimentos, entre outros,
resultarão no aumento das assimetrias sociais entre os países, no agravamento das desigualdades
econômicas e no avanço da degradação socioambiental, entre outras tristes consequências.

A organização Guarani em forma de Conselho demonstra a utilização de um “órgão de


poder da classe operária”, como observou Rosa Luxemburg (1991, p. 15), para a sua expressão
política e cultural, mesmo quando parece estar declarando sua oposição ao capitalismo. Neste
sentido, é preciso contudo discernir com bastante lucidez e evitar essencialismos em acreditar,
precipitadamente, que os povos indígenas são revolucionários de per si. Se o Conselho carrega um
potencial revolucionário no bojo do sistema em que está inserido, seu termo nem sempre recebe
um uso anti-sistêmico.

As mudanças registradas no Mercosul, como o estabelecimento de sua dimensão social,


marco conceitual e plano estratégico, além da constituição do Parlasul, foram importantes para o
avanço dos processos de integração regional a partir dos Estados membros do bloco. Esse processo
tem as contribuições dos governos que se empenharam por ele, das entidades de classe, organismos
internacionais e movimentos sociais, entre outros, e representa um parte importante da construção
do atual regionalismo. No entanto, as contribuições do movimento Guarani para um regionalismo
dos povos não foram suficientemente reconhecidas, nem suas reivindicações suficientemente
atendidas pelos países membros do bloco. Neste sentido e ao continuar assim, o Parlasul poderá
significar apenas um plenário sem condições reais para apoio a um regionalismo dos povos,
limitando a sua importância nos processos contemporâneos de integração regional.
636

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638

Uma metodologia selvagem (a pesquisa como processo artístico)

Eliane Carvalho*

Resumo: A partir da obra de Claude Lévi-Strauss e das experiências dadaístas, Dorothea Voegeli
Passetti formulou a noção de “colagem como procedimento das artes e das ciências”. Lévi-Strauss,
em O Pensamento Selvagem, apresenta uma crítica ao chamado pensamento científico na medida em
que este se coloca como o único verdadeiro, relegando a um patamar inferior o chamado
pensamento selvagem. Lévi-Strauss mostra que esta ciência do concreto não parte de uma
verdade/razão a priori e que mesmo a utilidade, ainda que possa ser encontrada, não é o que
estabelece o seu fim. Passetti recupera a noção de colagem a partir da arte Dadá. Na colagem, o
repertório é finito e os recursos escassos, mas as relações não são arbitrárias e nem displicentes. A
relações produzidas por meio desta metodologia estão dadas no mundo concreto, mas não são
estabelecida de antemão. Esta metodologia possibilita a emergência do imprevisível, uma vez que
seu fim não está colocado a princípio e, portanto, não se vê limitado por este. O processo que me
levou a esta metodologia iniciou-se com o encontro com Dorothea Passetti na graduação e a sua
forma se tornou visível para mim com a tese de doutorado “Sexo no mercado: produção de
verdades, desejos e moral” (2017). Sem abrir mão do rigor analítico, esta metodologia possibilitou
contestar as minhas próprias certezas e deparar-me com encontros e resultados surpreendentes.

Palavras-chave: metodologia, Dadá, colagem, antropologia.

No ano de 2017, defendi a tese de doutorado “Sexo no Mercado: produção de verdades,


desejos e moral”, orientada por Dorothea Passetti. A partir da noção de Foucault, de um dispositivo
da sexualidade, a tese mostra como a chamada liberação sexual com seus desdobramentos em
direitos, tornou-se um prolífico negócio, ampliando o alcance dos investimentos nas condutas da
população normalizada; e como a produção de conceitos abrangentes em torno da saúde sexual,
possibilitou os investimentos na parceria entre Estado, religião e organizações internacionais no
cálculo da mortificação da vida.

Apesar de ter seguido a estrutura formal desde a elaboração de um projeto de pesquisa até
a apresentação da tese, não foi até o momento final da escrita que consegui distinguir mais
claramente a forma do processo de pesquisa, ou a metodologia, uma vez que sua origem não pode
ser determinada e cujo destino final não existe.

* Doutora em Ciências Sociais pela PUCSP e integrante do Núcleo de Sociabilidade Libertária do PEPGCS da PUCSP.
639

O trabalho de quase duas décadas no Nu-Sol e com Dorothea Passetti, me introduziram à


analise genealógico de Foucault e à perspectiva concreta de Lévi-Strauss. Ambos marcam esta
metodologia cuja forma inicial era, para mim, ainda muito intuitiva.

Quando não procuramos justificar o tempo presente enquanto o resultado de um processo


social na cadeia evolutiva, encontramos no espaço pistas para uma história não linear. A história
linear, limpa e racionalizada, tem por último destino uma verdade cuja função é justificar a si
mesma. Neste sentido, a proposta genealógica de Michel Foucault, a partir de sua leitura de
Nietzsche, coloca a própria verdade em questão, e desmantela ideias preconcebidas.

A tese, a partir da qual pude compreender mais nitidamente esta metodologia, parte da
premissa que o sexo esteve (e de certa forma ainda está) associado à liberação dos costumes. No
entanto, a proliferação de investimentos no prazer sexual dentro e fora do mercado colocou uma
questão em relação ao papel transgressivo do mesmo. Uma das primeiras hipóteses levantadas foi
de que o sexo no mercado não estaria de fato associado às experimentações de prazer. Mas tal
hipótese se desfez logo no início das pesquisas de campo: os relatos e a observações mostraram
que o prazer não era um elemento ignorado, e que técnicas para ampliar o prazer eram incorporadas
neste mercado. Além disso, a pesquisa também mostrou que os prazeres sexuais tidos como
transgressores tinham o seu lugar neste mercado, ainda que não fossem a “atração principal”.

Assim, em vez de buscar respostas para o porquê do sexo não ser mais subversivo, voltei-
me ao como – nas pistas de Foucault – as variadas formas de prazer sexual passaram a ser assimiladas
como algo positivo na atualidade. O caminho do como é um caminho incerto. Ele não anuncia um
destino final. Ele não tem um destino final. Não aponta o olhar para o futuro, mas ao redor.

Não existe uma receita de como percorrer este caminho, existem pistas colocadas pelo
próprio percurso e por aqueles com quem se anda. Não é ao acaso que esta maneira de caminhar
se aproxima de quem me acompanhou durante a minha existência na universidade.

Dorothea Voegeli Passetti inaugurou o Museu da Cultura na PUCSP em 1991, com a


exposição e objetos Cinta Larga doados por Carmen Junqueira, no saguão do TUCA – Teatro da
Universidade Católica de São Paulo. Em 1999, o Museu ganhou um espaço próprio, graças à
FAPESP, no subsolo do Prédio Sede. O diminuto espaço, escondido aos olhos dos desatentos, é
anexo a um pátio, que logo integrou a vida que transbordava no pequeno museu. Ali encontravam-
se anarquistas, rebeldes, questionadores, indígenas, alunos, professores, funcionários, gente de fora
da universidade, em saraus, exposições, conversas, defesas e outros tantos eventos. Passetti, que
além de fundadora foi também diretora do museu por muitos anos, propiciava ali encontros
inesperados, surpreendentes, e apresentava um olhar sobre os objetos e as artes distinto da relação
640

mumificada e asséptica comum aos tantos outros museus ao redor do planeta. Foi um grande lugar
de experiências e aprendizados em uma universidade que até certo momento compreendia que o
ensino, a pesquisa e a vida universitária iam além de uma sala de aula. Na década de 2010, o Museu
foi sendo abandonado aos poucos devido a imposição burocrática administrativa e hoje os objetos
que tinham uma vivacidade própria se deterioram confinados entre portas e janelas fechadas.

O trabalho que desenvolvi com Dorothea Passetti desde o tempo da graduação abriram
possibilidades e me levaram a transformações que não seriam possíveis em qualquer outro espaço.
Dorothea Passetti foi a primeira que me apresentou a antropologia fora dos padrões acadêmicos e
que me abriu mundos e portas a partir de sua delicada perspectiva por meio da relação com as artes
e com os objetos, apresentando autores e reflexões que me colocaram fora de uma prática
acadêmica burocrática, mostrando um caminho que começa pela beleza e não pelas certificações.

A metodologia que tomou forma neste processo, tem algo do que Dorothea Passetti
identificou como a bricolagem em Lévi-Strauss e como ela mesma formulou na ideia de “colagem
como procedimento das artes e das ciências”.

Não é a toa que Claude Lévi-Strauss utilizou o termo bricolagem para explicar o próprio
processo de análise dos mitos. No livro Lévi-Strauss, antropologia e arte: Minúsculo incomensurável (2008),
Passetti mostra o percurso do antropólogo, filho de pintor e cuja formação inicial foi em filosofia.
Lévi-Strauss “distanciava-se da filosofia, rebelando-se contra Durkheim, procurando formas que
lhe possibilitassem uma abordagem não metafísica da realidade” (Idem, p. 55). “Tomou um
caminho tortuoso: a própria etnologia ” (Idem, p. 47).

Apesar de um primeiro estranhamento com as ditas artes de vanguarda, como o cubismo


– que para Lévi-Strauss tornava a arte algo indecifrável para o público comum (Idem, p. 34) – ele
se aproxima em especial do surrealismo ao conectar o mesmo com a chamada arte primitiva. Em
seu percurso tortuoso, torna-se amigo de André Breton e Max Ernst e os trabalhos e inquietações
dos três influenciam diretamente em sua produção e reflexões (Idem).

Lévi-Strauss associa a bricolagem, como elemento constitutivo do pensamento concreto –


identificado com os povos então ditos selvagens –, em oposição ao que seria um pensamento
científico, ou domesticado. Ao contrário da crença de que o pensamento destes chamados povos
primitivos seriam baseados apenas nas necessidades de sobrevivência, Lévi-Strauss coloca a questão
do prazer do conhecimento a frente da sua utilidade. Mas, ainda que no plano intelectual, Lévi-
Strauss equipare o chamado pensamento científico e o pensamento concreto, ele identifica uma
limitação deste último em termos universalizantes, o que distingue da perspectiva de Passetti
quando ela recusa essas universalizações.
641

Inspirada nas experiências dadaístas, Passetti mostra que,

A colagem não agrupa qualquer resto de papel só porque ele está à disposição
para ser colado. (...) A colagem não está preocupada em dar visibilidade ao
diverso; ela busca descobrir as relações entre os elementos que ocupam um
mesmo espaço. A colagem é seletiva, como é o mito e a bricolagem. Se o
repertório é finito, os recursos escassos, isto não significa que todos serão
utilizados. (…)
Fracionar e rejuntar, como faz a colagem, não repõe a unidade quebrada. Ela não
pasteuriza nem pacifica. (…) A diversidade cultural não é abolida numa suposta
universalidade globalizada, nem o multiculturalismo deveria ser confundido com
a inegável tendência à diversificação, mesmo sob pressões homogeneizadoras e
pasteurizadoras. Diverso não é sinônimo de equivalente, assim como os
fragmentos da colagem não são substituíveis entre si (Passetti, 2007, p. 12).

Dorothea Passetti (2008) apresenta a crítica de Lévi-Strauss à ideia de que o pensamento


científico seria o único verdadeiro, e que o chamado pensamento selvagem seria uma categoria
inferior. Apesar de Lévi-Strauss atribuir ao pensamento selvagem uma ambição simbólica, como mostra
Passetti, ao delimitar as diferenças entre este pensamento e o pensamento científico, ou domesticado,
assinala que o segundo tem sempre como objetivo obter um rendimento (Idem, p. 264), enquanto
o pensamento selvagem – que está também presente entre nós ocidentais, em especial no campo das
artes – “não se cria em função de uma utilidade prática, apesar de também servir para essa
finalidade” (Idem, p. 272).

Desta maneira, adotando esta metodologia selvagem que se aproxima de uma lógica do
bricoleur – menos por meio dos contornos de Lévi-Strauss, mas pela análise da colagem de Dorothea
Passetti – procurei me afastar dos universalismos e da busca de uma verdade preestabelecida.

Esta metodologia permitiu o distanciamento do pensamento pela falta, uma vez que se
formula pelo que existe, pelo que está aqui, neste momento. Ela também pode ser considerada um
método anárquico.

Os anarquistas, desde muito tempo, destacaram a importância dos meios, afirmando que
meios autoritários levam a fins autoritários, como fez Emma Goldman (1923) ao se deparar com
as práticas vivenciadas na então recém criada União Soviética.

A defesa de que os fins justificam os meios está presente entre os mais democratas em
nossa sociedade. Afinal, o rebanho sempre precisa de um destino para ser conduzido, ainda que
este destino seja um retorno ao mesmo lugar.

A companhia dos anarquistas do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUCSP),


do qual faço parte, também reverberou significativamente neste trabalho. Como anarquistas e
642

abolicionistas penais libertários, não está em jogo a substituição de um modelo pelo outro, de uma
forma de governo por outra, ou uma alternativa para o castigo. Castigos e regras de condutas fazem
parte de um caminho que já está estabelecido e que eventualmente precisa que sua rota seja
corrigida para que ninguém se perca, para garantir a manutenção do Estado e a continuidade da
extração de lucros às expensas da produção de misérias.236

Este caminho sem rotas preestabelecidas, selvagem e anárquico, possibilitou outros encontros
e companhias que tiraram o projeto de seus planos iniciais. Foi o caminho que produziu a tese e
não o projeto que determinou o caminho.

Um momento importante durante a pesquisa, foi a realização de um intercâmbio


acadêmico, por meio do doutorado sanduíche realizado com a Universidade da Califórnia, em
Berkeley, sob coorientação do historiador Thomas Laqueur. Minha escolha pela Universidade de
Berkeley, se deu pela história da mesma, relacionada às experimentações no final dos anos de 1960,
e pela proximidade com a cidade de São Francisco, conhecida por suas experimentações no campo
do sexo e dos direitos.

A princípio, procurei por coorientadores dentro do Departamento de Antropologia, onde


não obtive sucesso. A maioria das pesquisas relacionadas à sexualidade no Departamento de
Antropologia da Universidade de Berkeley tem uma abordagem voltada para os direitos e diversas
segmentações no campo da sexualidade, na construção de um modelo alternativo da verdade. A
perspectiva de Thomas Laqueur possibilitou uma aproximação de uma história que se afastava de
qualquer verdade pré-concebida.

A coleta do material se deu ao acaso, a partir de encontros fortuitos, desvios não previstos,
mas não displicentemente. E os resultados apresentados na tese não tem uma pretensão universal.

A arte DADÁ se afasta das representações. Mas isso não é o mesmo que dizer que não
capturem algo da realidade. A representação sempre carrega consigo um universal, e neste sentido
esse processo de produção dadaísta também se aproxima da perspectiva anárquica, em sua recusa
à representatividade. Segundo Passetti, “Para os Dada, a colagem faz parte da negação radical da
razão associada à academia, à ciência, à religião e ao Estado” (Passetti, 2007, p. 13).

Mas se as técnicas de colagem entre os dadaístas são múltiplas, talvez a que mais se aproxime
desta metodologia proposta por Passetti, é aquela empregada por Kurt Schwitters e Max Ernst.

236Ver “Abolicionismo libertário – verbetes”. Disponível em: https://www.nu-sol.org/abolicionismo-libertario-


verbetes/
643

Kurt Schwitters não se definia como dadaísta, mas como artista “Merz”, termo que surgiu
a partir do seu processo de produção.

O Merz não conhece nenhuma fronteira entre os gêneros artísticos, entre o que
é significativo e o que é banal, entre a arte e a vida: ‘Merz significa criar relações,
de preferência entre todas as coisas do mundo’ (Orchard, 2007, p. 19).

Schwitters recolhia bilhetes de trem, envelopes, pedaços de panos, etc para, por meio da
colagem fazer emergir as relações entre os mesmos. Como observa Passetti:

Não é o acaso que organiza papéis, bilhetes, cédulas, embalagens, cartões e outras
tantas substâncias descartadas: o acaso fez com que eles fossem encontrados por
Schwitters e guardados em seu bolso do paletó. (...). Com paciência, o exame
minucioso dos papéis e outros materiais coletados possibilita descobrir
associações imprevistas, sugerindo novos significados ao que já havia sido
transformado em lixo. (Passetti, 2007, p. 15).

De acordo com Karin Orchard (2007), Schwitters se aproximava dos dadaísta em sua recusa
ao mundo burguês e capitalista, e ao absurdo da guerra, mas sua marca distinta era não só a
destruição deste mundo em ruínas, mas com isso a criação de algo novo. Com isso, Schwitters não
pretendia estabelecer um novo modelo a ser seguido. Em um dado momento, ele afirma que “A
criação artística não conhece nenhum objetivo” (Schwitters apud Orchard, 2007, p. 21). Neste
sentido, parece se aproximar da perspectiva do anarquista russo Mikhail Bakunin, quando o mesmo
não dissocia o ímpeto de destruir da paixão criativa (Bakunin, 1976).

Max Ernst, apesar de ser associado ao dadaísmo e, posteriormente, ao surrealismo, era


também um artista que transitava. Passetti observa que

não houve uma ruptura entre seu dadaísmo e o emergente surrealismo: Ernst foi
dando vazão ao curso de sua própria vida, incorporando os acontecimentos de
modo fecundo, sem obedecer a regras impostas por qualquer programa (2008, p.
176).

Além disso, ao discorrer sobre sua relação com André Breton, Lévi-Strauss, permite uma
aproximação com o último, na medida em que, diferente de Breton, Ernst também possuía um
interesse etnográfico. Ao citar o próprio Lévi-Strauss, Passetti ressalta que “Max Ernst colecionava
os objetos, mas também queria saber tudo sobre eles” (Lévi-Strauss apud Passetti, 2008, p. 169).

Quando teve que passar um período no hospital, Ernst recortava imagens de catálogos para
reorganizá-las posteriormente. “Não há nada de fortuito neste procedimento(...)[afirma passetti].
Depois disto, valem a experiência, a inspiração e a paciência” (Passetti, 2007, p. 16).

Imortalizado na expressão “penso, logo existo”, Descartes e os desdobramentos do


pensamento cartesiano, foram a base do que tomamos por pensamento científico. A razão,
644

dissociada do corpo e das ilusões sensoriais, revelariam, a verdade escondida nas sombras, tal como
idealizou Platão. Neste caso, a unidade esquadrinhada teria como função a reorganização do todo
universal, deixando de fora as rebarbas que pode causar ruído no ideal de harmonia e pacificação.

Esta tradição do pensamento ocidental empenha-se em congelar a vida no ideal metafísico


e abstrato. Ideal que jamais será alcançado, mas que serve de justificativa para as reformas e
mutações para a eterna manutenção de um mesmo. Este ideal serve como o objetivo. O destino
final a ser alcançado. Diferente deste ideal platônico e aristotélico, imóvel, esta metodologia poderia
ser aproximada, ainda, de uma perspectiva chamada pré-socrática, tomando Heráclito em suas
observações ao entorno, na simples e palpável constatação acerca da inconstância da existência.

A perspectiva apresentada por Passetti volta o olhar do pesquisador para esses restos. Nos
permite observar não o reagrupamento das partes em um todo homogêneo rumo a um ideal de
futuro asséptico, mas as suas incoerências, particularidades, diferenças e lutas. E frente ao caos
impacificável da existência pode nos colocar a pergunta: o que estamos fazendo de nós mesmos?237

Referências

Bakunin, M. A reação na Alemanha. In: Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 17. Tradução de
José Gabriel. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1976.

Foucault, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque
e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 2003a.

_______. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2003b.

Lévi-Strauss, C. O pensamento selvagem. Trad. de Tânia Pellegrini. São Paulo: Papirus, 1990.

Goldman, E. My Disillusionment in Russia. In: The Anarchist Library, 1923. Disponível em:
http://theanarchistlibrary.org/library/emma-goldman-my-disillusionment-in-russia

Souza, J. C. (org). Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia, e comentários. Trad. de J. C. Souza et al. São
Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores)

Orchard, K. Kurt Schwitters. Vida e Obra. In: Kurt Schwitters 1887/1948 - O artista Merz. São
Paulo: Pinacoteca do Estado/ Curitiba: Museu Oscar Niemeyer, 2007, pp. 19-29.

Passetti, D. V. O primitivo na antropologia e na arte: por um saber convergente. In: Margem. São
Paulo: PUCSP, v. 4, 1995.

_______. Levi-Strauss, antropologia e arte: minúsculo-incomensurável. São Paulo: EDUSP/EDUC, 2008.

237 Ver hypomnemata 57. Disponível em: https://www.nu-sol.org/blog/hypomnemata-57/


645

_______. Colagem: arte e antropologia. Revista ponto-e-vírgula. São Paulo: PEPGCS/PUCSP, n. 1,


2007.

_______. O Museu da Cultura e os indígenas de São Paulo. In: Anais da VII Semana de Museus.
São Paulo: USP, 2009.
646

“Fé em ação”: Neopentecostalismo e conservadorismo no Tempo


Presente paraense

Eliezer da Rocha Gonçalves*

Resumo: Partindo de estudos já socializados no meio acadêmico sobre o desenvolvimento do


fundamentalismo protestante norte americano e sua influência sobre os seguimentos protestantes
histórico, pentecostal, neopentecostal no Brasil e seus projetos teológico, moral e político a partir
da década de 1950, como pesquisa inicial que fundamenta nosso projeto de doutorado, propomos
apresentar a relação desses desdobramentos político-religiosos fundamentalistas e conservadores,
tendo como locus a capital paraense no Tempo Presente a partir da década de 1980, onde elementos
perceptíveis através da linguagem textual e da representação imagética do embate fundamentalista
e conservador contra certa retomada político-progressista que passou a se construir como
resistência à escalada – nacional e local – de políticos, partidos e projetos da extrema direita na
História Imediata paraense, tendo como momentum as eleições municipais de 2020.

Palavras-chaves: fundamentalismo, conservadorismo, política, Belém-PA, história imediata.

Introdução: “Nações de Deus” e a reticente onipresença religiosa.

Segundo analistas, biógrafos e observadores de Donald Trump, o “ainda”238 presidente


republicano se vê como um predestinado à grandeza. Isso porque é, e sempre foi presbiteriano –
tradição protestante de origem calvinista, tendo na teologia da predestinação um de seus dogmas
centrais. A crença não é apenas do mandatário. Seu “ainda” secretariado administrativo, formado
por auxiliares religiosos de falas e práxis protestante, estudam a Bíblia entre sessenta e noventa
minutos todas as quartas-feiras, estando entre eles, o vice-presidente Mike Pence e os secretários
Mike Pompeo (Estado), Betsy De Vos (Educação), Rick Perry (Energia) e Jeff Sessions (Justiça),
num total de dez membros do gabinete que se reúnem duas vezes por semana, sempre orientados
por um professor, o pastor evangélico e ex-atleta do basquete, Ralph Drollinger. Ao contrário do
que possa parecer, a religião não é uma intrusa no Salão Oval da Casa Branca: é a mais antiga
residente. De forma semelhante, vários estudos desenvolvidos pelas ciências humanas no Brasil
têm identificado a presença da religião na ritualidade, oralidade, textualidade e imagética de
projetos, discursos, práxis e embates políticos. O que também não se trata de algo novo, que se
origine ou se isole no Planalto Central, pois esteve sempre ali, ao lado do poder de imperadores,

*
Bacharel, Licenciado Pleno e Mestre em História Social pela Universidade Federal do Pará. Professor da rede
particular de ensino na região metropolitana de Belém. Contato: alsospricht5@hotmail.com.
238
Empregado para sinalizar o contexto momentâneo de escrita: dezembro de 2020.
647

presidentes, ditadores, legisladores e na mutual mistura entre fé e política, religião e Estado, cristão
e cidadão, relacionando Washington ao Rio de Janeiro/Brasília e o Distrito Federal aos estados e
municípios brasileiros. Iniciaremos com um resumo da construção do conservadorismo
protestante norte-americano que, em variados aspectos e momentos, influenciou os movimentos
religiosos pentecostais e neopentecostais brasileiros, ambos destacando-se pelos projetos político
e moral fundamentalista, conservador e antiprogressista, relacionando suas agendas como
desdobramentos no Tempo Presente paraense a partir da década de 1980, assumindo como locus a
região metropolitana da capital paraense não só por ser o maior centro urbano e área estratégica da
Amazônia, mas também pelas evidências na História Imediata de um momentum de construção de
certa resistência democrática à escalada do conservadorismo e autoritarismo político e religioso
local e nacional nas eleições municipais de 2020.

Dos The Fundamentals à moral majory

Ao discursar na Convenção dos Direitos da Mulher, em 1851, na cidade de Akron, Ohio,


nos EUA, a ativista feminista e sufragista de primeira onda Sojourner Truth, questionou a justificativa
de um homem branco para o fato de as mulheres não possuírem tantos direitos porque “Cristo
não era mulher!” (Ribeiro, 2019, p. 19). Em resposta, a ativista negra questionou: “Mas de onde é
que vem seu Cristo?” (idem). Essa é a pergunta básica. O conceito de fundamentalismo não surgiu
como termo, expressão, categoria ou conceito ao longo do Tempo Presente e nem entre povos ou
religiões orientais, mas em meio à transição de questões teológicas para as constantes cruzadas
religiosa-ortodoxas por salvar a “alma da nação norte americana branca, anglo-saxã e protestante”,
ou wasp239, ainda no século XIX (Rocha, 2017a, p. 119 e 168). Nesse sentido, a questão teológica
se desenvolveu nos EUA como uma reação à então nascente teologia liberal norte americana
influenciada pela teologia e hermenêutica alemã e que passou a apresentar uma leitura progressista
e modernizadora da Bíblia240 e de aspectos do cenário protestante, tais como a aceitação das leis
naturais, a busca por tornar o cristianismo relevante no mundo moderno e a adoção de métodos e
técnicas científicas – como o uso da história, arqueologia, antropologia, sociologia, linguística, etc.
– para interpretar o texto bíblico (Rocha, 2020b, p. 94), influenciando principalmente as
comunidades cristãs urbanas. Acresce que, os cristãos conservadores localizados – principalmente,
mas não só – nas comunidades presbiterianas e batistas nas zonas rurais dos EUA, combatiam a

239
Em língua inglesa, white, angle-saxan and protestant.
240
Tecnicamente chamada de “Alta Crítica”, passou a considerar o texto bíblico não de forma sagrada, mas ordinária,
como um texto literário comum.
648

leitura modernizadora “impura” dos liberais com a defesa da infalibilidade do texto bíblico:
nascimento virginal mariano, morte expiatória, ressurreição corporal, realidade dos milagres e a
segunda vinda241 de Cristo. Simultaneamente, a crença de que o “milênio” – os mil anos nos quais
os crentes viverão com Deus, Cristo e o Espírito Santo – poderia ser construído sem intervenção
sobrenatural cresceu e disseminou-se num cristianismo gradativamente pragmático, ortodoxo e
combativo, ou seja: Cristo não precisaria voltar para que existisse na Terra um Reino dos Céus
(Rocha, 2017a, p. 160), pois esse reino seria construído pelos crentes. Em suma: inverteu certo
pessimismo da história242 e escatologia243 judaico-cristã, estendendo uma historicidade futurista
sobre o presente (Hartog, 2019, p. 11). Assim, já no século XX, com a publicação dos The
Fundamentals. A Testimony to the Truth, entre 1910 e 1915, numa tiragem de mais de três milhões de
cópias financiadas por ricos, piedosos e conservadores cristãos, a defesa da verdade bíblica pura,
perfeita, imutável e perene como puro, perfeito, imutável e perene é o Deus bíblico-cristão, opôs
a civilização cristã (de alma wasp) ao modernismo científico e o evolucionismo darwinista que negavam
sacralidade à Bíblia. Outrossim, as ações dos conservadores cristãos do século XIX serão
interpretadas pelos cristãos conservadores do século XX, após a Primeira Guerra mundial e a partir
da década de 1920, como um tempo de glória e de heroísmo, exemplo que deveria ser retomado
como modelo e seguido como uma cruzada santa. Durante a Convenção Batista do Norte, em
1920, o pastor conservador Curtis Lee Laws cunhou o termo fundamentalist afirmando: “Eu sou
fundamentalista, creio que o cristianismo possui fundamentos inegociáveis e os defendo contra os
ataques das novas teologias” (Rocha, 2017a, 164-165). Apesar de não estabelecer nesse momento
um conceito, dividiu os batistas em dois grupos antagônicos: os fundamentalistas apegados aos
fundamentos do evangelho em oposição aos liberais modernistas associados à ciência, ao darwinismo e
atacados pelas acusações de negarem a infalibilidade da verdade bíblica. Tais discursos
influenciariam a práxis de William James Bryan, político norte-americano controverso, ligado ao
conservadorismo religioso, de grande popularidade nos estados do Sul, contrário ao ensino do
evolucionismo nas escolas, aos trustes econômicos e considerado um “populista” – cognominado de
hight commonners ou “grande homem comum” – candidatou-se à presidência dos EUA sem eleger-
se. Em suma, o fundamentalismo religioso inscreveu na ordem do dia vários conflitos: a religião vs.
a ciência, comunidades rurais vs. espaços urbanos, Sul vs. Norte, EUA atrasado e retrógrado vs.
EUA moderno e progressista, levando à criação da figura do yakels moron fanatics ou “fanáticos
caipiras do sul”. Não obstante, termos como “caipira”, “fanáticos” e “ultrapassados” seriam

241
Expressão que se originou do grego parousia (parousia), “estando ao lado”.
242
Enquanto processo linear, com início e fim.
243
Do grego eschatos (escatoς) as “últimas coisas”, termo diretamente ligado a apokalupsis (apokaluyiς), “revelação”
e ao latino milenium ou “mil anos”, semântica original dos conceitos teológicos de escatologia, apocalipse e milênio.
649

representados pelo conceito de fundamentalista ao longo das décadas de 1930, 1940 até 1950
(Rocha, 2020b, p. 97).
A rigor, o contexto pós-Segunda Guerra Mundial, conformado na Guerra Fria, foi
traduzido pelos países aliados ocidentais vencedores como a luta contra o avanço do comunismo
soviético e sintetizado – espiritualmente – pelo presidente norte americano Dwight Eisenhower
para quem o “[...] governo não [fazia] sentido, a menos que [fosse] fundado em uma fé religiosa
profundamente sentida – e não me importo com o que é [...]” (id., p. 195). De onde vem uma fé
tão fervorosa? Vem do avivamento religioso pós-1945 associado ao patriotismo anticomunista,
disseminado pelos neoevangelicals representados pelo principal porta-voz protestante: Billy Grahan,
pregador da oratória das multidões, não liberal, não sectário, não beligerante, herdeiro do
avivalismo do século XIX, figura com a qual os presidentes norte-americanos gostavam de ser
vistos (Eisenhower e Nixon), porque era muito apegado ao texto bíblico sem se caracterizar como
fundamentalista – configurado num certo “tipo ideal” de nuance weberiana de todos os pregadores
midiáticos, primeiro no rádio, passando pela televisão e que hoje utilizam as mídias sociais em
ambiente virtual. Logo, americanos mais devotos e descontentes – a silente majority, “maioria
silenciosa” – estavam mais receptivos à mensagem dos EUA como a “nação eleita” e
“predestinada” por Deus para vencer a cruzada contra o pecado e o comunismo. De modo que, a
década de 1970 foi marcada pela onda conservadora religiosa que desenvolveu o modus operantis
político do lobby ou pressão político-moralista. Grosso modo: se a minoria cristã fundamentalista
auto titulada “pura” entre a população norte-americana era a única capaz de restaurar os EUA
como a “nação eleita”, então eles seriam a moral majority, a “maioria moral” defensora da christian
rights, “direita cristã” wasp, expressos na agenda moral pro-life (contra o aborto), pro-family (contra
diversões adultas) e agenda política anticomunist (ou tudo que se referisse ao marxismo), patriot (ou
tudo que se referisse aos EUA), capitalist (capitalismo cultural e econômico), de retomada do
american way of life (modo de vida americano), anti-social welfare (contra a política de bem estar social)
e pro-Israel (Finguerut, 2014, p. 123)244, expressa na certeza de que “[...] o povo de Deus vai ser o
povo mais honrado [...] há um presidente cheio do Espírito Santo na Casa Branca [Ronald Reagan],
os homens do Senado e do Congresso são cheios do Espírito Santo e adoram a Jesus [...]”,
(Robertson, 1984 apud Rocha, 2017a, 166).

244
Jerry Falwell, pastor conservador, costumava dizer que “Deus abençoou os EUA porque os EUA abençoava os
judeus” (Soares, 2010, p. 82).
650

Fé e ação para ganhar o Brasil para Jesus

Enquanto o modelo da “maioria moral” se disseminava nos EUA, o modelo evangélico


pentecostal e neopentecostal desenvolvido no Brasil de forma pontual nas décadas de 1950 e,
principalmente 1960, assemelhou-se ao seu correlato norte americano pelo amplo leque de seu
projeto político e moral: “nacionalista” (termo usado como sinônimo de cristão), contrário ao
“comunismo” (termo que igualou as categorias de marxismo comunismo, socialismo, anarquismo,
entre outros), ao aborto, ao divórcio (casamento é sagrado), à educação sexual (só os pais tem
direito de ensinar seus filhos sobre sexo), ao homossexualismo (definido como pecado e doença)
e em defesa da família (contra o adultério ou a mera menção ao sexo, tida como pornografia),
importado do contexto bipolar da Guerra Fria, acrescida do antialcoolismo, antitabagismo e
conservadorismo de costumes que proibia mulheres do uso de calças compridas (“roupa de
homem”), do corte de cabelo (o cabelo é o “véu da mulher”) ou do uso de adornos e maquiagem
(“sinais da prostituição” carnal e espiritual). Ao passo que, a partir da década de 1970, o
protestantismo evangélico que se expandiu no Brasil através das concessões de rádio, da
modernização e profissionalização da música evangélica e das “cruzadas evangelísticas”245, na
década de 1980 alcançaria também a televisão brasileira com os primeiros programas televisivos246
produzidos inicial e principalmente em televisões locais, a exemplo de Belém, com a grade religiosa
da TV Marajoara, Canal 4 – então afiliada da paulistana Rede Bandeirantes – que iniciava com o
programa assembleiano Boas Novas no Lar (8h30 às 8h45), o quadrangular Cadeia da Prece Poderosa
(8h45 às 9h) e o ecumênico Legião da Boa Vontade (11h45 às 12h), encerrando com o programa Igreja
Eletrônica, transmitido todas as tardes entre 18 e 19 horas, além dos “enlatados evangélicos” norte
americanos dominicais, como os programas das Cruzadas Evangelísticas do pastor pentecostal Jimmy
Swaggart, que reproduzia o modelo standard estabelecido por Billy Grahan nos anos 1950,
popularizado de tal forma que também padronizou o modelo do evangelizador-evangelismo
televisivo no Brasil. Concomitantemente foi também o contexto da disseminação da figura do
evangélico com “a Bíblia embaixo do braço”, imagética caricatura que refletia a importância e apego
que os evangélicos davam ao texto, leitura e estudo bíblico. Tanto que, um dos aspectos que iria

245
Terminologia que uniu um termo histórico-militar, “cruzada”, a um conceito teológico, “evangelho”, derivado do
grego euangelion (euanggelion), “boa mensagem” , expressa ao crente a necessidade da luta da “verdade” vs. “engano”,
“bondade” vs. “maldade”, “fé verdadeira e pura” vs. “o mundo de engano e pecado”, padrão da “guerra espiritual”
popularizada no meio neopentecostal nas décadas de 1990 e 2000.
246
“As novas igrejas pentecostais, como a Universal do Reino de Deus, [...] utilizam o milagre da mídia eletrônica para
propagar o evangelho, fazer guerra santa a Orixás, Caboclos e Pretos-Velhos e ‘até para apressar a vinda de Cristo’ que
segundo as Escrituras, só ocorrerá com o mundo todo evangelizado [...]. Todas gastam milhões de cruzados em
programas diários de tevê”, Jornal Diário do Pará, quarta-feira, 4 nov. 1987, p. D-3.
651

caracterizar os chamados “crentes” no Brasil era a ideia “crente não se mete em política”. Isso
porque o grande objetivo era ganhar almas para Cristo, presente nas ações dos protestantes
históricos (batistas, presbiterianos, metodistas e luteranos), dos pentecostais (Assembleia de Deus,
Deus é Amor, Evangelho Quadrangular) e dos neopentecostais brasileiros (Igreja Universal do
Reino de Deus). De outra sorte, se o objetivo era ganhar almas para o Reino de Deus, afinal, o que
mudou? Na primeira metade da década de 1980, o Brasil passou pela abertura política que encerrou
a ditadura militar e, a partir de 1985, organizou-se novamente num governo democrático de Estado
de direito liderado pelo político maranhense José Sarney que convocou em 1986 eleições para uma
Assembleia Constituinte que elaboraria uma nova Constituição para o Brasil entre 1987 e 1988.
Segundo o historiador e cientista da religião Daniel Rocha, da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG), também em 1986, o assessor do Senado Federal em Brasília, Josué
Sylvestre, líder evangélico ligado à Assembleia de Deus, publicou o livro Irmão vota em irmão, um
chamado ideológico e reformador aos “crentes” para abandonar a isenção política e assumir a
defesa da liberdade religiosa e da agenda prioritária à sua fé,

[...] livrando-nos dessa acomodação [...] dessa falta de coordenação, dessa falta de
inteligência, dessa falta de amor, e elegemos parlamentares e administradores
evangélicos em todas as eleições que surgirem de agora em diante ou veremos o
nosso país cada vez mais sendo arrastado para o lodaçal da corrupção e da má
administração. [...] este é o binômio infalível: Oração e ação. Não adianta apenas
orar pelo Brasil. É preciso lutar por ele [...]. (Sylvestre, 1986, p. 29).

O resultado da transição do “crente não se mete em política” para o “irmão vota em irmão”,
conforme arrolou o doutor em ciência da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),
Rogério Ferreira do Nascimento, seria sentido nas urnas: de 12 deputados federais evangélicos
eleitos em 1982, esse número seria mais que dobrado para 32 em 1986, sendo 18 pentecostais, 14
destes oriundos da Assembleia de Deus: “formava-se pela primeira vez na História da República
uma bancada política com expressivo número de votos”(Nascimento, 2010, s/p). Nesse sentido, o
cristianismo evangélico estaria próximo também dos primeiros governadores e prefeitos da “Nova
República”. Em Belém, a Cerimônia Oficial de Posse do governador Hélio da Mota Gueiros,
iniciou com um “Culto Evangélico em Ação de Graças e Intercessão” na Primeira Igreja Batista de
Belém (Diário do Pará, 15 mar. 1987, p. 2)246; na noite anterior, houvera um Culto em Ação de
Graças na Igreja Presbiteriana da Perimetral, onde o presbiteriano governador frequentava os
serviços religiosos (Idem, 16 mar. p. 6). Contudo, foi durante a posse do evangélico assembleiano
Fernando Correa como prefeito do município de Ananindeua247, que emergiu certa imagética da

246
“[...] no qual os presentes pediram graças a Jesus no sentido de orientá-lo no decurso de sua administração”.
247
Área urbana conurbada com a região metropolitana de Belém.
652

marcha gradativa dos “crentes” conservadores em direção aos vários seguimentos do poder político
no Pará, a exemplo do que já ocorria no Brasil e EUA: filiado ao Partido Democrático Social
(PDS) e oriundo da antiga Ação Renovadora Nacional (ARENA), a campanha de Correa fora
realizada pelas ruas de Ananindeua num “corpo a corpo” em “cima de sua bicicleta” e o slogan “O
tostão contra o milhão” para demonstrar que não possuía recursos financeiros e prometendo que,
se fosse eleito, iria à posse de “bicicleta” (O Liberal, 2 jan. 1989, p. 2). Cumpriu a promessa: eleito
em 15 de novembro de 1988, foi à posse com a bicicleta e a Bíblia embaixo do braço (Figura 1).

Figura 1 – A resiliente marcha evangélica na política paraense

FONTE: O Liberal, 2 jan. 1989, p. 2.

Fixando como metas de seu mandato a “saúde, educação e saneamento básico” crendo que
“[...] o bom pastor conhece as suas ovelhas. Sendo de bons princípios, tendo religião, amor e
respeito à sua família e um bom caráter, tudo dará certo”, (idem), foi a contrapelo do esforço de
Thomas Hobbes por “destituir de valor” o conceito de “consciência”, identificado por Reinhart
Koselleck como o “despir” o conceito de “opinião” de significados religiosos (Koselleck, 1999, p,
29). Hoje, trinta e quatro anos e nove legislaturas depois, a bancada cristã conta com 91 deputados
e senadores. Nas eleições majoritárias e proporcionais de 2018 a Bancada Cristã248 elegeu
candidatos em vinte e cinco das vinte e seis unidade da federação. Comparada com as eleições de
2014, o Partido Republicano Progressista (PRP) – ligado à Igreja Universal do Reino de Deus

248
Uso o termo bancada cristã para denominar políticos ligados à igreja católica e aos protestantes históricas, pentecostais
e neopentecostais, cujas diferentes confissões os enquadram menos como evangélicas e mais como cristãos.
653

(IURD) – e que após as eleições de 2018 mudou sutilmente o nome para Republicanos249, obteve
o maior crescimento em número de representantes250, seguido pela diversidade das legendas
partidárias – dos Partidos Social Cristão (PSC), Social Democrático (PSD), Progressista (PP) e o
Democratas (DEM) – e da relativa homogeneidade de agendas, tendo crescido de 84 para 91
deputados e de 02 para 09 senadores: a Convenção das Assembleias de Deus (CAD) elegeu 32
deputados, seguidos da IURD com 22 deputados e da Convenção das Igrejas Batistas com 12
deputados, para citar as maiores representações cristãs. Acresce que, até as eleições de 2018 a
Bancada Cristã atuou como uma barreira ou muro de contenção política às agendas progressistas
apresentadas principalmente – mas não só – pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido
Socialismo e Solidariedade (PSOL) – tematizadas na educação, gênero, sexualidade e aborto – com
uma práxis que pressionou o Governo Dilma Rousseff e assegurou às pautas morais e de costumes
defendidas pelos cristãos certa sobrevida. Em contraste, após as eleições de 2018 a Bancada Cristã
não só conteve a agenda progressista na Câmara dos Deputados e no Senado, como passou a
propor suas próprias pautas, mudança de ação sintetizada pelo teólogo-deputado federal Sóstenes
Cavalcante (DEM-RJ): “Agora, ao invés de segurar a pauta da esquerda, nós vamos é pautar nossos
assuntos. A esquerda que trate de obstruir para segurar os nossos projetos. O jogo se inverteu”
(Pernambuco em Foco, 17 out. 2018, s/p)251. Antes de tudo, de que cristianismo se originou a Bancada
Cristã? Como podemos começar a perceber sua formação?

A sútil linguagem neopentecostal

Acreditamos que uma possibilidade de análise surge com nossa opção pela análise crítica do
discurso (ACD), partimos do conceito de aforização ou enunciação aforizante como instância da fala a
uma espécie de “auditório universal” em que não há interação entre dois protagonistas num mesmo
plano, mas um monólogo centrado na enunciação do locutor (Maingueneau, 2010, pp. 12-13);
também optamos pelo uso da história ou arqueologia dos conceitos, primeiro, como necessidade
de estabelecer vocabulários específicos da linguagem política, social e econômica de grupos que se
apoiam ou se embatem (Richter 1994 apud Jasmin e Feres Jr., 2006, p. 23); segundo, o conceito
ligado a uma palavra é sempre mais que esta por condensar contexto, significados e experiências
político-sociais conferindo necessária ambiguidade (Koselleck, 2006, p. 109). Afinal, a partir de

249
Convenção Nacional do PRB, Brasília, 7 mai. 2019, definiu-se como “[...] movimento político conservador,
fundamentado nos valores cristãos, tendo a família como alicerce da sociedade, preservando a soberania nacional, a
livre iniciativa e a liberdade econômica [...]”, Manifesto dos Republicanos, 2019.
250
Com 106 prefeitos, 780 vereadores e 31 deputados federais.
251
Disponível: <http://pernambucoemfoco.com.br/renovada-bancada-evangelica-chega-com-mais-forca-no-
proximo-congresso/>. Acesso: 30 nov. 2020.
654

publicações neopentecostais viáveis para análise em série, como o jornal Folha Universal e seu
suplemento Hora da Mudança, devido ao tempo e espaço ora oportunizados, concentramos a
tabulação de dados no suplemento que, assim como o jornal, é de circulação nacional e conhecido
não só na IURD como entre a comunidade pentecostal, neopentecostal e católica para análise de
discursos disponíveis nas mídias sociais que permitam perceber a formação não só de uma
linguagem vocabular, mas de um modelo de pensamento ou mentalidade religiosa fundamentalista,
proselitista e impositivo politicamente e que se relacionam na História Imediata às recentes eleições
de 2020 em Belém, ainda que “o declínio da expressão mentalidades convive paradoxalmente com
um campo de estudos cada vez mais prolífico a elas dedicado” (Vainfas, 1997, p. 128).

O encarte Hora de Mudança é relativamente recente, tendo iniciado em novembro de 2012.


O objetivo era mostrar aos leitores “histórias surpreendentes e dramáticas de quem enfrentou e
venceu desafios” (Hora de Mudança, nov. 2012, p. 2) em quatro páginas de frases sumárias, textos
curtos e aparentemente diretos. Ilustrado por fotos coloridas, suas primeiras edições apresentam a
narração do antes e depois das pessoas e seus problemas. Algumas imagens a princípio são
perturbadoras por mostrar imagens de doenças (tumores, lacerações, etc.), acidentes (objetos
perfurando partes do corpo), por sugerir forte moralidade conservadora (família monogâmica) e
elencar sua conceituação de imoralidade e pecado (funk, drogas, bebidas, fumo, etc.). A primeira
página introduz os assuntos com função de “capa” do encarte e apresenta “problemas-desafios”
num amplo menu de sofrimentos humanos em situações insolúveis: familiares, sentimentais, saúde,
pornografia, criminalidade, falência econômica e etc., abordando genericamente todos os
“problemas-desafios” com duas sugestões: uma “imagem” bela e colorida – casais belos, felizes e
sorridentes diante de uma belas casas, automóveis caros ou locais paradisíacos – e uma “sentença”
frasal de efeito que em geral parte de padrões imperativos como: “você pode”, “não aceite” ou
“deixe o fracasso”, aforizando tais enunciados entre as várias narrativas e seus temas gerais:
sentimentais (crise no casamento, noivado ou namoro); doenças incuráveis (principalmente câncer
e leucemia); situações insolúveis (acidentes de consequências graves); prejuízos econômicos (crises
ou falências); questões familiares (conflitos, dependência química ou criminalidade), considerados
sob as únicas possibilidade de solução com a aceitação da separação-divórcio, da morte, da pobreza
inevitável e do abandono familiar, a IURD estabelece o “ritual de fala” (Maingueneau, 2010, p. 17)
com “lugar” – na “terapia do amor”, no “jejum das causas impossíveis”, no “congresso para o
sucesso”, nas reuniões de “libertação” e na “fogueira santa” – e “fala” na sugestão definidora: “o
impossível pode acontecer”. Disso decorrem as narrativas nas quais as pessoas retratadas contam
suas histórias e dividem suas vidas no espaço-tempo em antes e depois de conhecer a IURD, usando
como limiar a sentença aceitativa que legitima a verossimilhança, o momentum “hoje”: “somos um
655

casal feliz”, “estou curado-saudável-sem sequelas”, “somos prósperos e abastados” e “minha


família vive em harmonia”. Contudo, a responsável por toda essa mudança através das terapias
sentimentais, econômicas e psicológicas é a Universal que assume o controle do “lugar de fala”
(Ribeiro, op. cit.) e da “produção de presença” (Grumbrecht, 2020, pp. 13-14) como Pítia, advinha
ou guru, imiscuindo e silenciando no discurso a persona de Deus ou de Cristo. Nesse sentido, ao
longo das narrativas, a tese apresentada pode trazer um médico que diz a um paciente que ele não
vai se curar de um câncer; esse paciente procura a Universal que logo apresenta a cura como contra
diagnóstico ou como antítese, desde que a pessoa cumpra com as exigências, p. ex., do “jejum das
causas impossíveis” ou da “fogueira santa” para humana e literalmente impor sua cura à persona da
divindade (Deus ou Cristo). E em recebendo essa cura, o raciocínio da pessoa curada é a síntese: a
medicina estava errada e a Universal estava com a razão. Dessa forma, sutilmente, a Universal se
torna um “habitus simbólico” no qual é a administradora do “capital cultural, político e religioso”,
(Bourdieu, 2012, p. 226). Rigorosamente, em meio a esse “habitus simbólico” e com valioso
“capital político” estão os termos “luta” e “oração”.

Comecemos pelo substantivo feminino em língua portuguesa “luta”. Originada no termo


latino lucta que derivou do primitivo luita como esforço e dedicação; já o verbo luctare ou “lutar”
representou em sentido literal a atividade desportiva do combate (físico) entre duas pessoas com
ou sem armas; ou em sentido figurado, de uma pessoa enfrentando desafios no cotidiano, ou ainda,
do esforço de duas ou mais pessoas para vencer outros, numa contraposição de forças a exemplo
da luta de várias espécies animais pela sobrevivência na natureza. Entre as muitas palavras gregas
usadas no Novo Testamento e traduzidas como luta ou lutar está o termo grego palê (Strong, 1997,
p. 3823, παλη) no sentido de “luta livre” empregado no texto da Carta aos Efésios 6.12: “pois não
é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra [...] os príncipes do mundo destas
trevas, contra as hostes espirituais da iniquidade nas regiões celestes”. Já a nossa palavra em língua
portuguesa “oração” derivou da estrutura latina que incluiu orare, originado de os- “boca” e do
indoeuropeu or- ou “pronunciar uma fórmula ritual”. Significou inicialmente “falar” e depois
adquiriu o sentido de “falar em público” ou “discursar”. Dessa estrutura derivam nossas palavras
portuguesas para “oratória”, “orador” e o ato de “orar” que o cristianismo ressignificou como a
“fala” ou o ato de “rogar” à divindade. O substantivo feminino oração também possui uma raiz na
língua grega do termo nominativo (caso do sujeito) proseuchê (idem, 4335, προσευχή), que apresenta
o sentido do ato de orar individualmente com sinceridade ou da oração coletiva realizada numa
capela. O ato de orar tornou aquilo que era individual e suplicante – o rogar, o rezar, o orar, o fazer
uma prece – em um discurso coletivo, impositivo e determinante de luta ao se contrapor a uma
situação inaceitável e por exigir não qualquer decisão, mas a decisão que é do desejo daquele que
656

ora: “não aceitei” e “não desisti” (Hora de Mudança, mai. 2016, pp. 2 e 3), “reescrevi minha história”
e “minha história mudou” (idem, p. 4).

Em meio à luta em oração está a família tradicional monogâmica: homem, mulher e filhos
que, após ser mergulhada no “habitus religioso” da IURD, emerge sempre perfeita, feliz e próspera
materialmente nas coloridas páginas do encarte de todas as edições consultadas – 39 de 69 totais
entre 2012 e 2016252. É pela família que cada pessoa narrada “luta em oração” – “meu marido lutou
por mim na Reunião de Cura” (op. cit., mai. 2016, p. 3). Por conseguinte, as páginas do encarte
Hora de Mudança nos transmitem narrativas de pessoas processualmente reorientadas em suas
decisões a não aceitar ou não crer nas opiniões – científicas, profissionais, filosóficas, políticas,
econômicas, religiosas – externas ao “habitus cultural” no qual foram treinadas e habilitadas para
“lutar em oração” sujeitando-se ao “lugar” e ao “sentido” de fala recebido/negado ou
transmitido/imposto, condicionamento partido do “lugar” e de “sentido” atribuído pela liderança
da Universal por inversão do fluxo da “revelação” divina: não é a revelação divina que vem até a
Universal, é a Universal que vai até a revelação que lhe convém – cura, prosperidade, milagre –,
atribuindo sentido (eixegese) e não interpretando sentido (exegese), contrapelo da hermenêutica
teológica, jurídica e do próprio fluxo do conhecimento desde o advento da modernidade a partir
do século XV (Gumbrecht, 2010, pp. 48-49). Nesse sentido, a forma concreta (religiosa ou não) de
interpretar a realidade e depois atuar politicamente conflui interpretação e ação política num
fundamentalismo (Galende, 2010, p. 94). A questão é que o vocabulário neopentecostal – como os
termos “luta” e “oração”, “não aceito” e “determino”, “mudei minha história” e “me libertei” – é
utilizado de forma ampla e geral por várias outras denominações, entre elas a Assembleia de Deus
(AD) e a Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), que também refletem o que Joanildo Burity
chamou no Brasil de a “religião desprivatizada e pública” (Burity, 2008, p. 96). Acresce que em
junho de 2019, em Belém, foi escolhido como tema para as comemorações do 108º Aniversário da
Assembleia de Deus o slogan “Um exército de irmãos abençoando a nação”, seguindo o fluxo do
então recém empossado capitão-presidente Jair Messias Bolsonaro (Pinto, jun. 2019)253. O
“exército de irmãos” “luta” em “oração” pela nação desde 1986: não a oração individual e privada,
mas a coletiva e pública, refletida na atuação da bancada legislativa federal paraense formada por
17 deputados, dentre os quais três, o pastor-deputado Olival Marques (DEM, Assembleia de Deus,
135.398 mil votos), pastor-deputado Paulo Bengston (PTB, Evangelho Quadrangular, 96 mil
votos), e o pastor-deputado Vavá Martins (Republicanos, IURD, 158.717 mil votos), compõem e
votam conforme a agenda moral e de costumes da Bancada Cristã: defesa da vida (contra o aborto),

252 Pesquisa inicial para nosso projeto de doutoramento.


253 Disponível: <https://lucioflaviopinto.wordpress.com/2019/06/15/o-exercito-evangelico/>. Acesso: 8 dez. 2020.
657

“anticomunismo” (aversão às esquerdas e suas agendas), nacionalismo (banalizado pelo termo


“patriota”) e apoio às bancadas da “Bala” (segurança) e do “Boi” (agronegócio). Destarte,
apresentado pelo Patriotas como candidato à prefeitura de Belém, o delegado da Polícia Federal
Everaldo Jorge Martins Eguchi, ligado aos setores conservadores da Igreja Católica, ao
empresariado, ao agronegócio e alinhado ao bolsonarismo, recebeu apoio do presidente Jair
Messias Bolsonaro para as eleições municipais de 2020. No lado oposto do espectro político, o
professor, arquiteto, ex-prefeito de Belém (1997 à 2004) e deputado federal Edmilson Rodrigues
foi apresentado como candidato do Partido Solidariedade e Liberdade (PSOL), tendo como vice
de chapa o também professor Edilson Moura, do Partido dos Trabalhadores (PT). Como
fundamentalismo e conservadorismo convergiram nas eleições municipais na capital paraense e
como se deu o início de construção de resistência?

Eleições de 2020 em Belém: fundamentalismos e resistência progressista.

Apesar da apresentação de doze candidatos à prefeitura de Belém, em primeiro turno foram


escolhidos os candidatos Edmilson Rodrigues (PSOL, 34,22%, 248.751) e Everaldo Jorge Martins
Eguchi (Patriotas, 23,06%, 167.599). Se durante a campanha do primeiro turno já havia uma clara
polarização entre Eguchi – identificado com o bolsonarismo – e Edmilson – identificado com o
“petismo” – esse contexto apenas se agudizou. Nesse sentido, como atores políticos diante de um
cenário radicalmente dividido em Belém, o candidato do Patriotas assumiu uma postura policial-
tutelar ao apresentar ao eleitorado de Belém um “par de algemas” como imagética do combate à
corrupção na Prefeitura de Belém, começando pelo candidato do PSOL, literalmente: “Vote na
polícia ou vote em ladrão”, uma aforização que evocou a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula
da Silva como espécie de paratexto254 associado à enunciação que, pela agressividade, foi rapidamente
proibida e condenada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Pará (TRE-PA), mas que essencialmente
retomava falas comuns de movimentos de direita como o Vem Pra Rua (liderado por Rogério
Chequer)255, o Movimento Brasil Livre (MBL, fundado e liderado por Kin Kintaguiri, Fernando
Holliday e Renan Santos)256 e pelo presidente Jair Messias Bolsonaro que em outubro declarou
“acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo” (G1, 17 out. 2020). Tanto o presidente quanto
o candidato Eguchi não apresentaram provas que justificassem seus respectivos enunciados.

254
Texto que acompanha o texto principal.
255
Foi candidato do Partido Novo ao governo de São Paulo, recebendo 673.102 (3,32% dos votos válidos).
256
Em 2018, Holiday foi reeleito vereador (DEM-SP, 65.715 mil votos) e Kintaguiri foi eleito deputado federal (DEM-
SP, 465.310 mil votos).
658

Concomitantemente, apesar de católico praticante, a proximidade do candidato do PSOL


com as religiões de matiz africana seria evocada através de um vídeo que passou a circular nas
mídias sociais. Tratava-se de uma gravação antiga – ainda em VHS – obtida a partir da rede do
Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) através do Programa do Ratinho de 1º de outubro de 2002257,
data de antevéspera à eleição municipal daquele ano, na qual Edmilson seria reeleito prefeito de
Belém. As imagens do vídeo mostram a recepção de vários líderes e praticantes da Umbanda e
Candomblé no Palácio Antônio Lemos – então sede do Poder Municipal – pelo prefeito e
candidato à reeleição Edmilson Rodrigues. Tanto em 2002 quanto em 2020, as imagens dispararam
a intolerância e fundamentalismo religioso de grupos de apoiadores do candidato Eguchi, formados
principalmente por evangélicos e neopentecostais oriundos principalmente – mas não só – da AD,
IEQ, IURD e católicos organizados em grupos conservadores que atuaram nas mídias sociais com
o jargão: “sou cristão, voto Eguchi” ou “sou evangélico, não voto em macumbeiro”. Outra mídia
muito comum foi a montagem da foto do rosto de Edmilson com roupas de um “pai de santo”,
associando a imagem do candidato a termos pejorativos como “macumba” (no sentido de feitiços,
malefício ou bruxaria), “despachos” (no sentido de oferenda ao diabo), “terreiro” (como altar de
demônios), todos de conotação racista, fundamentalista e intolerante que usam palavras de sentido
cristão (feitiço, diabo e demônios) associadas – mas sem relação – aos cultos de matiz africana.
Foram falas evocativas da campanha à reeleição de Edmilson em 2002 e à presidência de 2018,
quando circulou nas mídias sociais um vídeo do candidato petista à presidência, Fernando Haddad,
numa roda de canto umbandista258, cujos comentários vaticinavam “[...] bando de hipócritas, esses
eleitores do PT que gritam aos quatro cantos sou cristão não voto em bolsonaro mas vota em
macumbeiro? [...]”259. A mesma lógica de intolerância foi usada por eleitores do candidato Eguchi:
“Aos Crentes que Vão Votar no Edmilson! Assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a
mente de vocês está corrompida e desviada da sincera e pura devoção a Cristo e os valores
Cristãos”260. Em contrapartida, as falas do candidato delegado federal Everaldo Eguchi de que os
trabalhadores que recebiam auxilio emergencial eram “vagabundos” e que “não possuíam interesse
de trabalhar” ou que “seriam os empresários e não os trabalhadores que produziriam a riqueza em
Belém”, levaram a população mais pobre das periferias a rejeitar o candidato do Patriotas com dois
atos simbólicos: a expulsão de Eguchi (em campanha à pé, corpo a corpo) de dois dos mais
tradicionais mercados populares de Belém: o Mercado do Ver o Peso e o Mercado de São Braz

257
Disponivel: <https://www.youtube.com/watch?v=ugonl95c-7Q>. Acesso: 30 nov. 2020.
258
Disponível: <https://www.facebook.com/silvia.marcia.9/posts/2437606549589108>. Acesso: 2 dez. 2020.
259
Idem.
260
Disponível:
<https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=194989312256803&id=100052372060133>. Acesso: 2
dez. 2020.
659

(Hora do Povo, 26 nov. 2020, s/p)261, como prévia do segundo turno ocorrido no dia 29 de novembro
e no qual Edmilson Rodrigues foi eleito prefeito com 390.723 votos, 51,76% dos votos válidos.
Everaldo Eguchi alcançou 364.095 votos, 48,24% dos votos válidos. Em suma, considerada por
analistas e cientistas políticos uma derrota local e nacional para o bolsonarismo pelos fatos de
Belém ser o maior e mais populoso centro urbano da Região Amazônica e por ser juntamente com
o nordeste as regiões eleitorais nas quais Jair Messias Bolsonaro foi derrotado em número de votos
pelo candidato Fernando Haddad durante as eleições presidenciais de 2018. Assim, Belém passou
do foco predominantemente ambiental para um foco mais politizado, segundo o prefeito eleito
Edmilson Rodrigues, uma vitória contra um candidato da “[...] extrema-direita [...] contra o
fascismo e uma derrota para o presidente Bolsonaro que apoiou meu adversário." (Brasil de Fato, 29
nov. 2020)262.

A guisa de conclusão

Como pesquisa inicial que embasará nosso projeto de doutorado, este trabalho não
pretende esgotar, mas instigar questões. Sendo assim, parte do entendimento contrário do senso
comum, que afirma que o Estado brasileiro seja laico, no sentido de que desde o período imperial
até hoje, os governos imperiais e republicanos sempre estiveram sob certa influência da religião em
maior ou em menor grau: primeiro católica, depois pentecostal e neopentecostal e atualmente
mesclando várias matizes cristãs que se apresentam no cenário social e na arena política com falas
e práxis fundamentalistas e conservadoras. Diferente do protestantismo norte-americano da
“maioria moral”, no Brasil hoje existem 123,3 milhões (64.6%) de católicos e 43.3 milhões (22,2%)
de protestantes em meio à população brasileira: católicos e protestantes são a maioria da população
econômica e politicamente ativa. Tanto que, as agendas político-religiosas conservadoras usam esse
lobby para se colocar contra questões progressistas sociais de trabalhadores, negros, indígenas e de
LGBTQIAP+, principalmente após a escalada conservadora verificada no Brasil pós-2016. Os
lugares de fala religiosos cristãos (históricos, pentecostais, neopentecostais, e católicos) têm
atribuído um sentido autoritário, violento e preconceituoso aos rituais, às pregações, aos programas
veiculados na mídia, assumindo o neoliberalismo como “racionalidade natural” em sua agenda
econômica, em consonância ao bolsonarismo e atribuindo à fé ação política contrária ao bem da

261
Disponível: <https://horadopovo.com.br/candidato-bolsonarista-e-expulso-de-mercado-por-comerciantes-em-
belem/>. Acesso: 2 dez. 2020.

262
Disponível: <https://www.brasildefato.com.br/2020/11/29/edmilson-psol-vence-candidato-bolsonarista-e-e-
eleito-prefeito-de-belem-no-para>. Acesso: 2 dez. 2020.
660

maioria da população, não reconhecendo a diversidade religiosa e impondo certo cristianismo


como uma prática próxima a uma religião de Estado. Em suma, verificou-se na eleição de 2020 em
Belém que, a despeito da propaganda política conservadora e intolerante que desconsiderou a
diversidade religiosa e o bem estar social, que as respostas nas urnas em Belém, sinalizam na
História Imediata rejeição e inconformismo diante do autoritarismo e conservadorismo de projetos
nacionais e locais. Mas ainda há muito por estudar.

Referências

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662

“A Serviço de Deus e Meu”: o Padroado Régio e a hierarquização


eclesiástica centro-meridional brasileira no reinado de Dom João V
(1706-1750)

Eraldo de Souza Leão Filho*

Resumo: o processo de descoberta das minas de ouro e pedras preciosas na região centro-
meridional brasileira empreendido entre o fim do seiscentos e início do setecentos atingiu seu ápice
no reinado de Dom João V (1706-1750), ocasionando um intenso processo migratório, e
desencadeando uma explosão demográfica que ocasionaria a fundação de vários núcleos de
povoação, que se tornariam as vilas e capitanias por cuja administração a Coroa Portuguesa
empreenderia o domínio e controle da região. Como elemento amalgamador e promotor de coesão
social, a religiosidade oficial católica de que estava imbuída a estrutura social colonial era fortemente
regulada pela Coroa Portuguesa mediante o Padroado Régio ultramarino português, o que tornava
a hierarquia eclesiástica territorialmente consonante com a hierarquia civil e orientada pelos
interesses régios. O presente, portanto, destina-se à abordagem, à luz do Padroado régio, da
territorialização eclesiástica centro-meridional brasileira como cooperadora da territorialização civil
no quadro da política colonial de Dom João V, utilizando como recorte geográfico a região centro-
meridional brasileira – os atuais Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul – e como recorte temporal o reinado de Dom João V (1706-1750). A metodologia da presente
comunicação utilizar-se-á da bibliografia pertinente ao seu escopo como fontes bibliográficas, bem
como da documentação oficial coeva como fontes documentais.

Palavras-chave: Padroado régio, hierarquia eclesiástica, Brasil centro-meridional, Dom João V.

Introdução

O Reinado de Dom João V, empreendido entre 1706 e 1750, foi o recorte temporal em em
cuja cronologia desenvolveu-se uma política colonial que mudaria profundamente os rumos do
Brasil. Essa política, contudo, foi fruto da descoberta das minas de ouro e pedras preciosas
empreendida em final do seiscentos e intensificada nas primeiras décadas do setecentos,
despertando na Coroa Portuguesa a necessidade de presença efetiva na região.

Nesse sentido, a corrida do ouro no Brasil centro-meridional será o elemento troncal da


presente abordagem, sendo abordada na primeira parte do texto em relação à reorganização da
territorialização política da região mineradora, elucidando a explosão demográfica na região aurífera

*
Doutorando, mestre e bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio);
professor de História da Igreja do Instituto Superior de Ciências Religiosas da Arquidiocese do Rio de Janeiro. E-
mail: souza.leao.dg@gmail.com.
663

que ocasionou o surgimento de diversos núcleos de povoamento e a maior necessidade de controle


régio, fazendo com que a Coroa erigisse em vilas alguns desses núcleos e reorganizasse a divisão
territorial da região com a criação das Capitanias de São Paulo e Minas do Ouro em 1709,
reorganizando-a em 1720 em Capitania das Minas Gerais e Capitania de São Paulo, bem como
criando em 1748 as Capitanias de Goiás e do Mato Grosso.

Na segunda parte da presente abordagem, por sua vez, será abordado o Padroado Régio
ultramarino português como instrumento de autonomia que embasava por sua vez a reorganização
da territorialização eclesiástica do Brasil centro-meridional no contexto da corrida do ouro,
elucidando-se como o processo de fundação de núcleos de povoamento e da evolução destes em
vilas aglutinadas em capitanias foi consonante e, em muitos casos, simultâneo ao processo de
levantamento de ermidas e capelas, que depois passaram a sedes de freguesias aglutinadas, por sua
vez, pelas circunscrições eclesiásticas criadas em 1745.

A metodologia desta abordagem traça uma linha cronológica entre final dos seiscentos e o
reinado de Dom João V (1706-1750) como recorte cronológico, delimitada pelo território dos
atuais Estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul como recorte
geográfico, embasada, por sua vez, pela bibliográfica relativa à temática como fontes bibliográficas,
ilustradas pela documentação oficial coeva como fontes documentais.

A corrida do ouro no Brasil centro-meridional e a reorganização das jurisdições territoriais

O final do século XVII foi marcado pelo sucesso das incursões rumo aos “sertões”
realizadas pelas entradas e bandeiras263 em busca de metais preciosos. O descobrimento de minas
de ouro em regiões interioranas centro-meridionais brasileiras ocorrido aproximadamente entre
1693 e 1698, à medida que ia se tornando público, ia atraindo uma multidão de pessoas das mais
diversas origens e condições sociais para as regiões auríferas recém-descobertas (Figueiredo
Rodrigues, 2016, p. 48). Segundo um cronista coevo, a situação consistia no que segue:

A sede insaciável do ouro estimulou a tantos deixarem suas terras e a meterem-


se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se
poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão... Cada ano,
vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às
minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e
pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a
condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres
e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais

263
“Entradas” eram as expedições oficiais que adentravam aos sertões em busca de riquezas; “bandeiras” eram as
expedições não-oficiais.
664

não têm no Brasil convento nem casa. Sobre esta gente, quanto ao temporal, não
houve até o presente coação ou governo algum bem ordenado, e apenas se
guardam algumas leis, que pertencem às datas e repartições dos ribeiros. No mais,
não há ministros nem justiças que tratem ou possam tratar do castigo dos crimes,
que não são poucos, principalmente dos homicídios e furtos. Quanto ao
espiritual, havendo até agora dúvidas entre os prelados acerca da jurisdição, os
mandados de uma e outra parte, ou como curas, ou como visitadores, se acharam
bastantemente embaraçados, e não pouco embaraçaram a outros, que não
acabam de saber a que pastor pertencem aqueles novos rebanhos. E, quando se
averigúe o direito do provimento dos párocos, pouco hão de ser temidos e
respeitados naquelas freguesias móveis de um lugar para outro, como os filhos
de Israel no deserto (Antonil, 1982, 167).

Para se ter noção da evolução do contingente aurífero descoberto nos primórdios do


chamado “ciclo do ouro”, Sérgio Buarque de Hollanda a ilustra pontuando o desembarque em
Lisboa de 725 quilos em 1699, o que cresceu para 1.785 quilos em 1701 e chegou à marca dos 4.350
quilos em 1703 (Hollanda, 1997, p. 265).

No princípio do século XVIII essa situação se agravou, pois, em virtude do descobrimento


cada vez mais frequente de novas minas e a exacerbação da situação observada no relato de Antonil,
os conflitos entre paulistas e “emboabas” (termo pejorativo semelhante a “forasteiros”) se
intensificaram, ao passo que o contínuo aumento da população nas regiões mineradoras promovia
o crescimento dos arraiais, fazendo a Coroa Portuguesa se preocupar com a arrecadação do quinto
– imposto real de 20% sobre o ouro e as pedras preciosas – e enxergar a necessidade de separar da
Capitania do Rio de Janeiro a região mineradora, a fim de melhor administrá-la e fiscalizá-la.

Assim, por Carta Régia de 9 de novembro de 1709, o Rei Dom João V resolveu criar a
Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, fundindo o território da até então Capitania de São
Vicente com o território onde estavam as regiões das minas, desmembrando-as assim da Capitania
do Rio de Janeiro, à qual pertenciam até então. Nomeando Governador para a nova Capitania na
mesma data, este tomou posse junto à Câmara da Vila de São Paulo a 18 de junho de 1710, partindo
em seguida para a região das minas – conforme lhe ordenara a Coroa – e fixando residência em
Ribeirão do Carmo em 1711 (Barbosa, 1979, p. 98 et seq.).

O resultado da grande migração para as regiões auríferas e da explosão demográfica que se


lhe seguiu foi o aparecimento de núcleos de povoação estáveis no entorno das reservas de
mineração mais rentáveis, originando a partir de 1711 a criação de alguns desses núcleos como
vilas. Deste modo, surgiram assim as vilas de Nossa Senhora do Carmo (posteriormente renomeada
como Mariana em homenagem à rainha consorte de Dom João V), Vila Rica (posteriormente Ouro
Preto) e Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará em 1711; São João del-Rei em 1713;
Vila Nova da Rainha (posteriormente, Caeté) e Vila do Príncipe (posteriormente Serro do Frio) em
665

1714; Vila de Nossa Senhora da Piedade do Pitangui em 1715 e São José del-Rei (Posteriormente
Tiradentes) em 1718 (Figueiredo Rodrigues, 2016, p. 52).

O crescimento demográfico da região mineradora foi tão expressivo nos primórdios do


século XVIII, que para melhor administrá-la a Coroa Portuguesa procedeu à sua reorganização
político-administrativa, criando em 1720 a Capitania das Minas Gerais – separando-a da Capitania
de São Paulo.

O movimento de interiorização do povoamento que originara a criação da Capitania de São


Paulo e Minas do Ouro em 1709, contudo, não se restringiu aos núcleos de povoamento acima
elencados, mas seguiu adiante com a migração de parte de seus colonizadores para regiões mais
interioranas, atingindo territórios além da linha divisória do Tratado de Tordesilhas, isto é,
pertencentes por direito à Coroa Espanhola. Esse processo de interiorização provocou a formação
de diversos arraiais na região, promovendo assim a expansão da colonização portuguesa na
América. Dentre essas povoações, destacar-se-iam aquela fundada em 1719 por algumas levas
sertanistas paulistas e por seus escravos na busca de ouro às margens do Rio Cuiabá, alçada pelo
poder régio à categoria de “Vila do Bom Jesus do Cuiabá” em 1727, bem como aquela fundada em
1726 e semelhantemente alçada à categoria de “Vila Boa de Goiás” em 1739.

Além destas povoações, entretanto, convém destacar ainda que a mineração desencadeou
durante o reinado de Dom João V a fundação de outros núcleos de povoamento ou arraiais na
região mineradora localizada além do meridiano de Tordesilhas e que depois comporia a Capitania
de Goiás, tais como Barra, Anta, Santa Rita, Ferreiro, Ouro Fino e Santa Cruz em 1726; Maranhão
em 1730; Meia Ponte em 1731; Água Quente em 1732; Crixás, Natividade e Traíras em 1734; São
José do Tocantins em 1735; Cachoeira, São Félix e Pontal em 1736; Jaraguá em 1737; Cavalcante,
Arraias, Barra da Palma, Natividade, Chapada de São Félix, Flores, Santa Rosa em 1740; Pilar,
Conceição, Corumbá e Guarinhos em 1741; Mato Grosso de Goiás em 1743; Piedade, Pilões,
Carmo, Santa Luzia em 1746; Desemboque em 1748 e Cocal em 1749 (Lima, 2010, p. 14-15.30).

No caso dessas regiões mineradoras mais a Oeste, a partir de 1731 a Coroa Portuguesa
começou a tencionar o estabelecimento de uma autoridade militar em Goiás e Cuiabá, bem como
a cogitar por volta de 1735 a transladação da sede do Governo da Capitania de São Paulo para
Goiás, com abertura de um caminho de lá para Cuiabá, tendo por escopo o fomento do aumento
populacional e o asseguramento da posse daquelas regiões com base no princípio do uti possidetis264.
A partir de 1738, a Coroa mandou que se investigue mais a fundo a região com vistas a um

264
Princípio segundo o qual, em disputas envolvendo soberania territorial, deve-se reconhecer a legalidade e a
legitimidade do poder soberano que de fato exerce controle político e militar sobre uma região em litígio.
666

mapeamento mais preciso que embasasse a criação de um governo na região, o que culminou em
1748 na criação da Capitania do Mato Grosso e da Capitania de Goiás (Lima, 2010, p. 94-95).

De acordo com André Lima, à época do seu desmembramento da Capitania de São Paulo, a
Capitania das Minas Gerais contava entre 250 e 300 mil habitantes, ao passo que Vila Boa de Goiás
e Cuiabá, por sua vez, contavam com um média de 3 a 4 mil habitantes à época da criação da
Capitania do Mato Grosso, sendo “vilas medianas frente suas congêneres litorâneas, mas pequenas
metrópoles diante de sertões tão dilatados” (Lima, 2010, p. 15-17).

O Padroado Régio e a territorialização eclesiástica no Brasil centro-meridional aurífero

O Padroado Régio ultramarino português é um elemento determinante para a compreensão


da vida e da obra da Igreja nos domínios da Coroa Portuguesa no chamado ultramar265. Por isso,
importa abordá-lo brevemente antes de discorrer sobre a territorialização eclesiástica das regiões
auríferas setecentistas brasileiras.

Tratando-se de um “privilégio pontifício” concedido aos soberanos de Portugal, o Padroado


Régio ultramarino português teve sua origem no século XVI, quando por meio da Bula Pro excellenti
præeminentia (Bullarium, p. 100) o Papa Leão X criou o Bispado do Funchal (no Arquipélago da
Madeira) para exercer a jurisdição eclesiástica sobre todo o ultramar português. Datada de 12 de
junho de 1514, a Bula de Leão X promovia uma reformulação na espécie de Padroado
preambularmente exercido pelo Rei português à época, Dom Manuel I (1494-1521), em virtude de
sua condição de Mestre da Ordem Militar de Cristo. A partir de então, ele recebia perpetuamente
o privilégio eclesiástico265 do chamado “direito de apresentação dos bispos” que governariam o
Bispado do Funchal a partir de então, sendo este direito régio ampliado aos bispados ultramarinos
criados posteriormente.

De acordo com a Pro excellenti præeminentia, estabeleciam-se dois tipos de Padroado eclesiástico
ultramarino, a saber: a) o Padroado Régio, mediante o qual o rei enquanto soberano português
apresentaria ao Papa o nome do novo bispo a governar o Bispado todas as vezes em que este se
encontrasse vacante; b) o Padroado da Ordem de Cristo, mediante o qual o rei enquanto Mestre da
Ordem Militar de Cristo apresentaria ao Bispo local, dentre as suas atribuições, os nomes dos
titulares das freguesias, capelanias etc (Leão Filho, 2020, p. 53).

265
Termo sinônimo de “além-mar”.
265
“Privilégio eclesiástico” trata-se de uma concessão ou benesse dada por uma autoridade eclesiástica constituída a
quem não o possui por direito próprio.
667

Embora estabelecendo uma pura formalidade na distinção dos Padroados, visto


que em Dom Manuel residiam tanto a pessoa do Rei quanto a do Mestre da
Ordem de Cristo, a Bula sinalizava, entretanto, uma distinção entre a
personalidade institucional da Ordem de Cristo e a Coroa Portuguesa (Ibidem).

A partir desse marco histórico referente ao Padroado ultramarino português, a Coroa


Portuguesa passou ao papel preponderante de não somente apresentar os nomes dos titulares
eclesiásticos, mas também de apresentar revisões na organização territorial eclesiástica quando
sentisse necessidade de fazê-las. No quadro desta sua “autonomia” de reorganizar a territorialização
eclesiástica ultramarina, ela sempre usou dessa sua prerrogativa quando as necessidades da política
colonial o exigiam, não sendo diferente em se tratando das questões eclesiásticas como se pode
perceber no Brasil.

Até o início do reinado de Dom João V (1706-1750), por exemplo, a territorialização


eclesiástica empreendida pela Coroa Portuguesa no Brasil foi mais efetiva nas regiões setentrionais
devido à sua importância econômica no quadro geral da colônia nos séculos XVI e XVII, de forma
que, dos 5 bispados existentes no Brasil em princípios do setecentos, apenas o de São Sebastião do
Rio de Janeiro, criado em 1676, localizava-se na região meridional e respondia por sua solicitude
eclesiástica (Feitler, 2014, p. 160).

O reinado de Dom João V foi o período, como se viu há pouco, no qual a descoberta das
regiões auríferas fez com que o eixo econômico colonial se deslocasse das regiões setentrionais
para a região centro-meridional. Nessa perspectiva, à medida que a densidade demográfica dessa
região se intensificava, constatava-se a necessidade de se prover à sua cura espiritual, o que se
realizou de maneira gradativa, consonante à marcha do povoamento e da construção de ermidas
pelos colonos, gerando assim uma consequente criação e expansão progressiva da malha paroquial.
Tais ermidas faziam-se essenciais à conquista da região mineradora tanto pela grande e efetiva
piedade religiosa quanto pelos interesses da própria colonização.

A instituição das sedes paroquiais, contudo, comumente chamadas de “matriz”, exigia a


existência de um núcleo de povoamento estável e de uma certa prosperidade nas zonas que seriam
incluídas dentro de cada freguesia. Ao mesmo tempo, a consolidação e o crescimento da ocupação
de certas áreas distantes das sedes paroquiais existentes ocasionavam por consequência a criação
de novas freguesias. Assim, a história da organização eclesiástica da região das Minas Gerais
confunde-se, em muitos casos, com a história da fixação estável dos núcleos de povoação e do seu
desenvolvimento. De modo geral, o momento da consagração das ermidas erigidas pelos habitantes
ao lado de suas lavras ou de suas roças coincidia com o início da formação de um núcleo de
povoação mais estável, ocorrendo posteriormente a promoção de várias destas ermidas à condição
668

de capelas sufragâneas de freguesias e, mais tarde, a instituição de número significativo delas como
igrejas matrizes, isto é, como sedes de freguesias, denotando assim uma das consequências do
crescimento e da prosperidade dos arraiais em que se situavam, mas também dos espaços rurais
circundantes. Portanto, as datas de reconhecimento oficial dessas igrejas podem se identificar como
índices indiretos da formação e do desenvolvimento dos núcleos de povoamento mineiros
(Fonseca, 2011, p. 83-84).

Segundo Pizarro, a então Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, que pertencia ao território
eclesiástico do Bispado do Rio de Janeiro, teve por parte do Bispo Dom Frei Francisco de São
Jerônimo a criação de 40 freguesias durante o seu episcopado (1702-1720), suplicando o prelado
ao Rei Dom João V que as instituísse como freguesias do seu Padroado, tornando-as assim
subvencionadas pela Coroa. O Rei, entretanto, atendendo às súplicas episcopais, procedeu à
colação de metade desse número (Pizzarro e Araújo, 1820, p. 76).

As justificativas apresentadas pelo Soberano, contudo, permitem concluir que as freguesias


coladas como do Padroado Régio enumeravam, do ponto de vista demográfico e econômico, os
vinte mais importantes estabelecimentos da capitania à época:

Tratava-se das freguesias de Antônio Dias, Pilar do Ouro Preto, Nossa Senhora
do Carmo, Furquim, Ouro Branco, São Sebastião, São Bartolomeu,
Guarapiranga, Cachoeira do Campo, São José, Rio das Mortes (São João del-Rei),
Sabará, Raposos, Caeté, Santa Bárbara, Catas Altas, Pitangui, Roça Grande, Rio
das Pedras, Vila do Príncipe. Mas não se deve esquecer que muitas destas
localidades também tinham uma importância política: oito dos vinte arraiais que
então se tornaram sedes de freguesias coladas tinham sido elevados à categoria
de vila entre 1711 e 1718 (Fonseca, 2011, p. 102).

Em relação às fundações eclesiásticas realizadas nas Minas Gerais entre fins dos seiscentos
e 1750 aproximadamente, nas zonas mineradoras houve 67 ermidas criadas, sendo 47 delas
instituídas como freguesias encomendadas266, ou seja 70%, e as outras 34 restantes instituídas como
freguesias coladas. Em se tratando das zonas agrícolas, de 44 ermidas erigidas no mesmo período,
14 foram instituídas freguesias encomendadas, isto é, 32%, sendo as 10 restantes criadas freguesias
coladas (Barbosa e Trindade apud Fonseca, 2011, p. 108-109).

Em relação às regiões mais interioranas centro-meridionais brasileiras ou “Extremo-


Oeste”, o crescimento da demanda demográfica fez com que se criassem em 1720 a Freguesia de
Cuiabá e, em 1726, a de Sant’Ana de Vila Boa de Goiás. Na década de 1740, havia cerca de 9
freguesias na então Comarca de Goiás, dentre elas Meia Ponte, 1737. Capelas: Santa Cruz, em 1729;

266
“Freguesias encomendadas” eram aquelas criadas pela autoridade episcopal e sustentadas unicamente pelos
fregueses locais.
669

Nossa Senhora da Conceição, em 1737, paróquia em 1741; Jaraguá, 1740; Corumbá, em 1726
(Bihlmeyer e Tuechle, p. 396. 403. 496).

Tendo em vista o rápido desenvolvimento da região mineradora, a Coroa sentiu a


necessidade de se lhe instituírem novas circunscrições eclesiásticas, a fim de se prover mais
adequadamente à sua cura pastoral, bem como regular mais eficazmente a disciplina religiosa dessas
regiões. Por isso, impetrando junto à Santa Sé a criação de 2 bispados e 2 prelazias267, conseguiu do
Papa Bento XIV a confirmação de sua criação por meio da Bula Candor lucis æternæ (Instituto
Histórico, 1864, p. 101-113) de 6 de dezembro de 1745, mediante a qual se criavam um Bispado
em São Paulo e outro em Mariana, bem como uma Prelazia em Goiás e outra em Cuiabá.

[...] por Motu proprio, [...] dividimos a dita Diocese do Rio de Janeiro em 5 partes.
E deixamos uma para o antigo Bispado do Rio de Janeiro [...]. E outra para o
Bispado de São Paulo [...]. E outra para o Bispado de Mariana [...]. E outra para
a Prelazia de Goiás [...]. E divididas as partes deste modo, deixamos a restante
para a Prelazia de Cuiabá (Bullarium, 1873, p. 102-103).

Após a reorganização eclesiástica de 1745, o Bispado de Mariana abrangia boa parte da então
Capitania das Minas Gerais; os territórios mineiros mais ao norte, contudo, ficavam pertencendo
ao Arcebispado da Bahia e ao Bispado de Olinda. Já o Bispado de São Paulo abrangia a Capitania de
São Paulo (atuais Estados de São Paulo e Paraná).

A Prelazia de Goiás abrangia quase integralmente o território que em 1748 passou a constituir
a Capitania de Goiás; ocorrendo o mesmo com a Prelazia de Cuiabá em relação à Capitania do Mato
Grosso. De acordo com André Lima, a reorganização fronteiriça entre a América portuguesa frente
à América espanhola precisava ser representada como espaço de jurisdição tanto política quanto
eclesiástica da Coroa Portuguesa, de forma que nas negociações para a criação de uma Prelazia em
Goiás e em Cuiabá urgia representar o domínio efetivo da região, não apenas a realidade de posse
“por direito” concernente ao meridiano de Tordesilhas. Nesse sentido, tendo a Bula de Bento XIV
criado as referidas circunscrições eclesiásticas marcando seus limites apenas com referência à
dominação efetiva portuguesa na região, ela se tornaria pressuposto para as futuras negociações
diplomáticas entre Portugal e Espanha que redefiniriam o mapa do Brasil a partir de 1750 com base
no princípio do uti possidetis (Lima, 2010, p. 94).

267
Prelazia é uma circunscrição eclesiástica que, em virtude de circunstâncias especiais, ainda não pode ser erigida
como diocese (“bispado”), sendo seu cuidado pastoral, portanto, cometido a um prelado, que a governa à maneira de
um bispo diocesano.
670

Considerações finais

Como se pôde constatar na presente abordagem, a chamada “corrida do ouro” foi um


acontecimento que marcou significativamente a política colonial, ocasionado uma revisão da
territorialização tanto política quanto eclesiástica que determinaria a partir de então as regiões
aglutinadas pelas circunscrições criadas.

Viu-se nesse sentido como esse processo partiu das bases, denotando um movimento de
protagonismo popular e cultural, pois a migração que ocasionou a explosão demográfica nas regiões
de mineração nos primórdios do setecentos foi iniciada espontaneamente pelos colonos e até
mesmos reinóis, de forma que a intervenção da Coroa se deu posteriormente com o intuito de
regular o contexto de acordo com a política colonial vigente.

Nesse sentido, as vilas e capitanias surgidas para territorialização política da região foram
significativas no que tange à regulação legal e moral da sociedade, de forma que a soberania
portuguesa se fizesse sentir por meio dos agentes régios responsáveis pelo exercício do poder da
Coroa. Contudo, esse processo de territorialização não suplantou nem cessou aquele que o
precedera, protagonizado por um movimento popular de ocupação, povoamento e
desenvolvimento econômico das regiões auríferas.

De modo semelhante, a territorialização eclesiástica, uma vez consonante à territorialização


política, ainda que manifeste uma verdadeira “solicitude pastoral” por parte da Igreja como braço
do poder da Coroa, também revela um protagonismo dos fiéis em relação ao clero e ao episcopado
nos moldes daqueles observados em relação ao protagonismo popular diante do processo de
territorialização política. Nesse âmbito, o processo histórico é pertinente em elucidar que as
primeiras ermidas erigidas na região mineradora foram fruto da piedade popular e da generosidade
dos fiéis, precedendo e protagonizando a territorialização eclesiástica empreendida nos primórdios
do setecentos.

Tais observações em âmbito eclesiástico, contudo, não desmerecem o papel preponderante


da solicitude pastoral do Bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro, sob cuja jurisdição estava
oficialmente toda a região mineradora até 1745. Ressalte-se nesse sentido a atuação do Bispo Dom
Frei Francisco de São Jerônimo, que em seu episcopado (realizado entre 1702 e 1720) manifestou
sua solicitude pastoral para com as regiões auríferas criando 40 freguesias para a assistência religiosa
dos colonos da região.

Por fim, convém destacar o papel da Coroa Portuguesa nesse processo de territorialização
eclesiástica em virtude do seu direito de Padroado Régio. Conforme sinalizado no texto, a
671

autonomia da Coroa Portuguesa nas questões eclesiásticas em virtude do Padroado determinava os


rumos eclesiásticos atrelando-os à política colonial, de forma que na prática a jurisdição eclesiástica
se tornava um braço do poder régio. Infelizmente, como se viu, as “colações” das freguesias pela
Coroa foram realizadas em número aquém das existentes à época do reinado de Dom João V,
impedindo que houvesse maior número e melhor subvenção delas com vistas a uma melhor
assistência religiosa dos colonos sob sua jurisdição, algo que não se alteraria mesmo com a ereção
das circunscrições eclesiásticas realizada em 1745.

Referências

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Rei do Estado do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Na Impressão
Régia, 1820. v. 4.
672

Uma História Intelectual em perspectiva regional:


questões, problemas, possibilidades

Erivan Cassiano Karvat*

Resumo: A presente reflexão tem por interesse tematizar a ideia de uma História Intelectual a
partir de uma perspectiva regional, problematizando os chamados intelectuais regionais. Com isso se
quer pensar criticamente o lugar destes intelectuais e sua relação com a historiografia, com as ideias
em circulação em seu contexto e com o papel que desempenharam na elaboração de narrativas em
torno de identidades regionais. Assim, retomam-se as observações do antropólogo Luis Rodolfo
Vilhena, bem como se busca dialogar com aspectos de uma historiografia latino-americana e, em
especial, com a historiografia argentina – que, desde décadas, vem discutindo aspectos relacionados
com o tema. Observe-se, ainda, que de maneira alguma se quer partir de uma noção preconcebida
de região/regional, mas, antes, pensar sobre a própria construção destas categorias e o papel
desempenhado pelos próprios intelectuais regionais, pensando sua produção e as apropriações
realizadas. Para tanto, partimos empiricamente de um grupo específico, de intelectuais regionais, que
fundou e integrou um círculo cultural (Centro Cultural Euclides da Cunha), na cidade de Ponta Grossa,
no Paraná, em fins da década de 1940 e que teve sua maior atuação na sociedade local ao longo da
década de 1950, mantendo correspondência com várias instituições nacionais e algumas
estrangeiras, reivindicando uma interpretação assentada sobre a tradição historiográfica e
sociológica, pautando uma leitura para a história brasileira notadamente conservadora. Suas
opiniões, divulgadas através do Tapejara – periódico vinculado ao Centro e que circulou entre 1950
e 1976 – pareciam intencionar estabelecer discursos acerca de uma suposta identidade regional,
colocando-se, contrariamente às orientações historiográficas, sociológicas e antropológicas do seu
próprio período. De certa maneira, refletir sobre esta perspectiva é também tematizar acerca de
aspectos relevantes da própria escrita da História Intelectual, seus dilemas e redefinições.

Palavras-chave: História intelectual, intelectuais regionais, identidades.

O problema

A indagação acerca de possibilidades – ou problemas – em torno de uma História Intelectual


pensada a partir de um prisma regional surgiu, e nos tem acompanhado, em razão de um trabalho
“empírico”, voltado a um conjunto de fontes históricas, relacionado à leitura e pesquisa em torno
de um grupo de Intelectuais Regionais, organizados em um círculo cultural268, o Centro Cultural Euclides
da Cunha (CCEC), criado na cidade de Ponta Grossa (PR) entre fins de 1947 e inícios de 1948.

O CCEC – principalmente representado pela figura de seu fundador-presidente e,


possivelmente, maior incentivador da criação e existência da instituição, Faris Antônio Salomão

* Professor Associado do DEHIS/PPGH da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).


268 Sobre o CCEC como um círculo cultural, ver Karvat, 2019.
673

Michaele (1911-1977)269 – manteve correspondência com várias instituições nacionais e algumas


estrangeiras, criando uma biblioteca no Centro (com obras históricas, sociológicas e
antropológicas270), além de um Museu (1950). Ainda em 1950, partir do mês de setembro, passou
a publicar o periódico Tapejara, que teria seu último número em 1976. Embora a instituição só
viesse a fechar em 1985, podemos caracterizar a década de 1950 como a de maior destaque em
relação à atuação e produção do grupo (Karvat, 2015), composto, entre outros, por professores,
jornalistas e radialistas autointitulados euclidianos e/ou jagunços do Pitangui271, que atuavam no
magistério e na vida cultural da cidade, tendo participado da criação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (1949) e da Faculdade de Direito (1957). Ressalte-se, nesse sentido, que dos 24
números publicados de Tapejara, 21 foram editados entre 1950 e 1959.272

Ao longo da produção daquela década, num contexto de profundas transformações (tanto


próximas quanto gerais), os euclidianos – requerendo afiliação à leitura de Brasil desenvolvida em Os
Sertões, de Euclides da Cunha (1902) e, com isso, envolvidos em debater a identidade
nacional/regional num momento de tensão em função de mudanças estruturais que afetavam tanto
o país quanto o estado do Paraná – reivindicaram uma interpretação assentada sobre a tradição
historiográfica (e sociológica), pautando uma interpretação conservadora da história brasileira,
apontando para possibilidades futuras do país. Tais opiniões, divulgadas no Tapejara, pareciam
intencionar estabelecer um discurso acerca de uma suposta identidade regional, colocando-se
contrariamente, muitas vezes, às orientações historiográficas, sociológicas e antropológicas do
próprio período.

Assim, na mesma década em que se viu a produção de trabalhos fundamentais acerca da


escravidão no sul do Brasil (zona meridional) – e que surgiram na esteira do Projeto Unesco,
apontando para “a existência de preconceito e discriminação racial, engendrados no regime
escravocrata, visíveis principalmente na superposição da estratificação social e da estratificação
inter-étnica” no Brasil (Meucci, 2007, p. 2) – os euclidianos, inspirados por um panteão de heróis

269 Advogado de formação, Faris dedicou-se ao magistério, tendo sido Professor no Colégio Regente Feijó e Professor
das cadeiras de Etnografia e Etnografia do Brasil no curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras, em Ponta Grossa, além de ter sido um dos fundadores da Faculdade de Direito na mesma cidade. Foi também
Diretor e Redator do Tapejara, desde sua fundação até 1976, além de Diretor do Museu (Guebert, 2018, p. 75).
270 O acervo do CCEC foi doado para a UEPG em 1995. Segundo levantamento são 4.390 títulos entre livros, livretos

e dicionários, além de 354 títulos de revistas (nacionais e estrangeiras). Cf. Gomes, 2012.
271 A menção aos jagunços, evidentemente, faz alusão aos personagens monumentalmente narrados por Euclides da

Cunha, enquanto Pitangui se refere ao rio que banha Ponta Grossa e é responsável por grande parte do abastecimento
de água da cidade. O que parece ter escapado aos integrantes do CCEC é que a expressão pode ter derivado do ioruba
(jagun = guerreiro), portanto palavra portuguesa de origem africana. Ver Calasans (s/d).
272 Nos 1 e 2: 1950, 3-5: 1951, 6-8: 1952, 9-12: 1953, 13 e 14: 1954, 15 e 16: 1955, 17 e 18: 1956, 19: 1957, 20: 1958, 21:

1959. O número 22 se refere aos anos de 1960/61, o 23 foi publicado em 1970 e o 24 em 1976.
674

nacionais273, supunham a possibilidade de se projetar a afirmação de uma brasilidade identificada a


uma matriz indígena (“indianismo), cabocla ou sertaneja. Neste sentido, também, evocavam Euclides
da Cunha para combater Gilberto Freyre, que, segundo a compreensão dos integrantes do CCEC,
produzira com Casa–Grande e Senzala (1933) uma interpretação que não poderia ser generalizada,
pois não contemplava grande parte do Brasil. Mesmo, ainda, que tal texto represente aqui “o eixo
em torno do qual gira a evolução” dos estudos sociológicos brasileiros a partir da década de 1930,
revendo “as orientações do passado segundo critérios que se abrem para o futuro da disciplina”
(Candido, 2006, p. 283). Assim,

é interessante notar nesse processo que os articulistas do CCEC, que continha


diversos filhos de imigrantes, falavam em nome de um “luso-brasileirismo” e de
um "indianismo" a ele relacionado, em que pese nesse arcabouço a memória das
famílias colonizadoras e tropeiras que se estabeleceram a partir do século XVIII
na região dos Campos Gerais do Paraná (Guebert, 2018, p. 174).

A concordar, ainda, com o balanço de Antonio Candido, originalmente publicado em 1959,


se observa “o incremento nos estudos sobre o negro e o índio” a partir dos anos 1930, com ampla
produção na década de 1950 – nosso foco aqui. Contudo, a reivindicação apresentada pelo CCEC
gira em torno da atenção ao sertanejo e ao interiorano – que ora é apresentado a partir de uma
aproximação ao elemento indígena. Tal elaboração se encontra, entende-se, em uma chave
romantizada ou ideal, mais do que efetivamente objetiva. Desse modo, a insistência na afirmação do
elemento indígena e na presença do sertanejo na construção de uma dada brasilidade – e que permite
resumir o projeto do CCEC – parece se distanciar da perspectiva e produção sociológicas (bem
como historiográficas) de seu tempo, produção que, então, “muda de aspecto, constituindo-se cada
vez mais de estudos empíricos metodicamente conduzidos ou teorias empiricamente
fundamentadas” (Candido, 2006, p. 289). Neste sentido, por exemplo, poder-se-ia citar os trabalhos
de Emilio Willems e, em particular, de Cunha, tradição e transição numa cultura rural do Brasil, de 1947,
o qual “inicia o estudo dos agrupamentos caboclos, utilizando os métodos, inéditos entre nós, das
pesquisas de comunidade”. Ainda que seja observável a existência do Dicionário de Etnologia e
Sociologia, de 1939 – organizado com Herbert Baldus – no acervo particular de Michaele, a menção
ao sociólogo é quase nula, preferindo-se os determinismos oitocentistas do engenheiro às

273Tal panteão fica evidenciado nas Cadeiras e Patronos do CCEC, idealizado em 1949: 1 Couto de Magalhães; 2 Cândido
Rondon; 3 Monteiro Lobato; 4 Coelho Neto; 5 Miguel Couto; 6 Humberto de Campos; 7 Farias Brito ; 8 Aluízio de
Azevedo ; 9 Castro Alves; 10 Carlos de Laet; 11 Jackson de Figueiredo; 12 Oswaldo Cruz; 13 Clóvis Bevilaqua; 14
Francisco de Castro ;15 Gonçalves Dias; 16 Machado de Assis; 17 Rocha Pombo; 18 Alberto Torres; 19 Rui Barbosa;
20 Alexandre Rodrigues Ferreira; 21 Torquato Tapajós; 22 Visconde de Taunay; 23 Cardoso Fontes; 24 Casimiro de
Abreu; 25 Henrique Bernadelli; 26 Emiliano Perneta; 27 Augusto dos Anjos; 28 Emílio de Menezes; 29 José de Alencar;
30 Capistrano de Abreu (apud Gomes, 2012).
675

observações resultantes de trabalho sociológico de campo. Aos seguidores de tal abordagem os


euclidianos se refeririam, ferinamente, como sendo os “mestres de gabinete”.

Contudo, como já apontamos em outro momento (Karvat, 2019), faz-se necessário lembrar
que a existência do CCEC, em Ponta Grossa, longe de ser peculiar ou singular, enfatiza a presença,
naquele mesmo momento, de um sem-número de outras instituições Brasil afora – principalmente
localizadas no interior do país. Mesmo sem muito rigor, tal constatação pode ser percebida na rede
em torno do euclidianismo no Brasil, para ficarmos no caso do CCEC ou, ainda, pela presença de
diferentes associações culturais, casas de cultura, institutos históricos, academias literárias, círculos
de estudos, centros culturais ou de cultura, centros de letras, entre outros. Neste sentido, como
exemplo, pode-se tomar a própria cidade de Ponta Grossa que, segundo a Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, de 1959, possuía, à época, além do Centro Cultural Euclides da Cunha, o Centro Cultural
Brasil-Estados Unidos, o Centro Cultural da Mocidade Ponta-grossense, o Círculo de Estudos Rocha Pombo, e,
ainda, a Sociedade de Cultura Artística Brasílio Itiberê e uma Sociedade Ponta-grossense de Amadores de
Astronomia (IBGE, 1959, p. 406).

Ainda mesmo que haja um número crescente de pesquisas interessadas nestes espaços de
cultura, ou nestes grupos e em seus integrantes – bem como em suas sociabilidades, trajetórias,
experiências – de modo em geral, o que se vê corriqueiramente é a dificuldade em caracterizar tais
atores/personagens. Assim, é interessante perceber que se de um lado – de maneira ampliada – a
discussão acerca da categoria intelectual, ainda que se coloque como um campo de disputas é algo
consolidada, reclamando um tratamento sempre histórico e sociológico – de outro, de forma mais
específica, quando são focados grupos e associações localizados em regiões periféricas (nas cidades
do interior, por exemplo) e, principalmente, seus integrantes, geralmente alheios às instituições
reconhecidas e/ou localizadas em grandes centros ou nas capitais dos estados, as aproximações
acabam se intrincando pela dificuldade de designações mais adequadas.

Neste sentido tem sido frequente o uso das expressões intelectual provinciano/intelectuais
provincianos (ou de província), bem como intelectual interiorano/intelectuais interioranos ou, ainda, diletantes
para caracterizar tais experiências, sendo que há uma componente de extensão pejorativa em tais
usos ou que, pode-se dizer, supõe pouca problematização em relação aos seus usos. Em outros
termos, tendencialmente, são designações que prejudicam o entendimento da complexidade em
torno destes personagens, marcando-os como atrasados, sem sofisticação, de mau gosto,
superados, gerando “generalizações apressadas” e “aproximações duvidosas”, para usarmos
expressões de Sirinelli (1996, p. 247). Crê-se, aqui, que a caracterização a partir destes aspectos não
pode se dar aprioristicamente por uma questão quase que de relação espacial, marcada pela oposição
676

metrópole X interior, que suporia a contraposição entre intelectuais (com reconhecimento) e


intelectuais interioranos; de mesmo modo as indagação acerca destas denominações também não
podem ater-se exclusivamente às próprias autodefinições dos grupos, ainda que estas tenham sido
um expediente recorrente por parte daqueles intelectuais e, por isto, um elemento fundamental para
sua compreensão. Contudo, não podem ter a força de um a priori categorizador.

O intelectual regional

Jean-François Sirinelli referindo-se à importância dos estudos de trajetórias intelectuais


sugere três níveis de intelectuais: um, dos consagrados "grandes intelectuais”, um “estrato
intermediário dos intelectuais de menor notoriedade” e uma “camada, ainda mais escondida, dos
despertadores" – aqueles “que, sem serem obrigatoriamente conhecidos ou sem terem sempre
adquirido uma reputação relacionada com seu papel real, representaram um fermento para as
gerações intelectuais seguintes, exercendo uma influência cultural e mesmo às vezes política”
(Sirinelli, 1996, p. 246). Podemos pensar na relatividade desta influência, inclusive para uma
dimensão local/regional.

O autor, ainda, enfatiza que qualquer estudo de trajetória não pode se limitar apenas às
trajetórias dos “grandes”, sendo que a

descrição desses três níveis e dos mecanismos de capilaridade em seu interior


facilitaria sobretudo a localização de cruzamentos, onde se encontrariam maítres
à penser e "despertadores", e o esclarecimento de genealogias de influências – pois
um "despertador" pode ocultar dentro de si um outro, que o marcou uma geração
antes –, tornando mais inteligíveis os percursos dos intelectuais (Sirinelli, 1996,
p. 246).

Tendo em perspectiva a complexidade envolvida nos estudos acerca de um meio polifônico


como o é o meio intelectual (Sirinelli, 1996, p. 244) e receosos, assim, das já ditas “generalizações
apressadas” e “aproximações duvidosas”, vemos no termo intelectuais regionais uma sugestão
para uma possível (ou mais adequada) problematização daqueles agentes, notadamente pertencentes
aos acima referidos “estrato intermediário” e “camada escondida” dos intelectuais e que, também,
podem ser vinculados ao que chamamos espaços periféricos, i.e., fora de espaços considerados
como centros de produção intelectual – e que se pode aplicar a regiões, instituições, formas de
apropriação e modos circulação de ideias (Karvat, 2015).

Faz-se crucial observar, no entanto, que a noção de região/regional (bem como a de local)
não deve ser tomada num sentido meramente geográfico ou como um dado “em si” e independente
677

dos discursos que a definem. Ao contrário, cabe à História Intelectual justamente se voltar a este
processo – conceitual – de instauração de sentido em torno da noção, questionando as tradições que
a informam e fundamentam (Albuquerque Jr., 2008a), pois se pode haver alguma vitalidade em tal
noção, estas decorrem, justamente, dos seus processos de construção (de invenção) e de como
mobilizam diferentes ideias e significados e sugerem disputas. Portanto, o regional não pode ser
um mero atributo geográfico, um “referente identitário que existiria per si, ora como um recorte
dado pela natureza, ora como um recorte político-administrativo, ora como um recorte cultural,
mas que parece não ser fruto de um dado processo histórico” (Albuquerque Jr., 2008b, p. 55).

A designação intelectuais regionais, nesta perspectiva sugerida, aparece problematizada por


Luís Rodolfo Vilhena (1963-1997) em seu artigo homônimo, publicado na Revista Brasileira de
Ciências Sociais (RBCS), em 1996. Tal texto havia sido originalmente apresentado no 19º Encontro
Anual da ANPOCS, em outubro de 1995, e era “uma versão ligeiramente modificada da segunda
sessão do quinto e conclusivo capítulo” da tese de doutorado intitulada Projeto e Missão: o movimento
folclórico brasileiro – 1947/64) (Vilhena, 1996), defendida, em 1995, no PPGAS do Museu
Nacional/UFRJ e que seria publicada postumamente – com o mesmo título – pela Funarte e
Fundação Getúlio Vargas em 1997.

Saliente-se que a versão primeira, apresentada no Encontro da ANPOCS, se intitulava


“Entre o regional e o nacional: folcloristas na década de 1950”, sem menção direta (alguma) à
expressão intelectuais regionais, não havendo nenhuma ocorrência ao termo em seu conteúdo e nem
mesmo no conteúdo da tese, sendo o termo usado apenas no título do artigo publicado na RBCS.
Assim, ainda que haja menções a intelectuais polivalentes no conteúdo do artigo e referências, no texto
da tese, a intelectuais tradicionais, intelectuais acadêmicos, intelectuais científicos e, até “intelectuais de
província”, além dos mesmos polivalentes, ainda assim sua nomeação é exemplar.

Focado no “movimento folclórico”, capitaneado pela Comissão Nacional do Folclore,


Vilhena se voltou a um contexto específico, de 1947 a 1964, percebendo – no próprio momento
de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil – a instauração de uma rede intelectual (network)
que buscava atrelar as diferentes regiões brasileiras com vistas à “definição de um caráter nacional
ainda em constituição” (Vilhena, 1996), Assim, evitando as caracterizações ligeiras, o antropólogo
percebia a importância do dito elemento regional na constituição de um saber acerca da sociedade
brasileira, num “momento de transição”, pois “de surgimento dos primeiros esforços consistentes
de romper com a tradição de intelectuais polivalentes que dominava a nossa vida intelectual” e de
“consolidação de espaços institucionais a serem ocupados pela nossa intelligentsia”, para “produzir
uma especialização” (Vilhena, 1995b, p. 19). Atentamente Vilhena observava que “estudar o
678

movimento folclórico” não significaria, em sua abordagem, “descrever um grupo de intelectuais


exóticos de uma fase das Ciências Sociais” que já teria passado (Vilhena, 1995b, p. 14).

Com a noção de intelectual regional, Vilhena, através do foco no “movimento folclórico”,


consegue historicizar as tensões do período – marcadas por disputas entre um “culturalismo
dominado por um estilo de análise ensaístico e o de um esforço de interpretação sociológica da
realidade nacional, a partir de um discurso acadêmico” (Vilhena, 1996), bem como as vinculações
e veiculações entre os agentes – os intelectuais de diferentes matizes; “movimento folclórico” que,
ao convocar “os intelectuais dos institutos e academias locais para construírem uma imagem da
nação unificada”, investiram ao regional “um lugar de destaque” (Vilhena, 1995, p. 324), tornando
tais personagens agentes de produção de discursos identitários regionalizados.

Neste sentido, quer nos parecer, a categorização intelectuais regionais se transforma em


categoria de problematização e análise, permitindo entrever – para aquele momento – dilemas das
próprias disputas intelectuais do país e da própria caracterização (e autocaracterização) de seus
envolvidos.

A criação do Conselho Nacional do Folclore é coetânea à criação do CCEC de Ponta


Grossa. E isto não é fortuito, pois se a criação do Conselho é reveladora das disputas apontadas
acima, a do CCEC é também sintomática deste momento de tensões e redefinições daquilo que se
pode chamar de campo intelectual brasileiro e aponta para um contexto de reelaboração de uma
identidade regional, numa região assolada pelos processos de modernização estabelecidos pela
década de 1950.

À medida que o CCEC reivindica atenção ao “interior” do país, faz eco às tensões entre
posições marcadas por uma cultura ensaísta – mais ligada aos chamados “homens de letras” e
“intelectuais polivalentes” – e a cultura da ciência que se institucionalizava, via universidades.

Os integrantes do CCEC foram intelectuais regionais e como tal devem ser problematizados,
pois grande parte de sua sanha se voltou à elaboração de um discurso de identidade local/regional;
elaboração que deixa entrever suas dúvidas, dívidas, empréstimos e apropriações também
intelectuais. Tratá-los como tais – intelectuais regionais – não deve supor exaltação ou a constatação de
mero atraso, mas, ao contrário, deve possibilitar inseri-los numa complexidade que é histórica e
social e que, talvez, venha permitir pensá-los nos escorregadios “estratos” e “camadas” que
compuseram (e compõem) a História Intelectual.

Desse modo, uso do termo Intelectual Regional, conforme sugerido por Vilhena parece
bastante sugestivo ao período de maior atividade do CCEC. Vilhena (1996), ao trazer para o debate
679

o grupo que ele considera “um participante do complexo panorama intelectual dos anos 50”, o
chamado Movimento Folclórico, chama atenção para a constituição deste network entre diferentes
intelectuais, de diferentes locais – principalmente de fora do eixo Rio-São Paulo – e que a partir
de congressos trocavam experiências e chamavam atenção para sua própria existência. Em nosso
entendimento, Vilhena evidencia a importância dos anos 1950, década ainda pouco observada pelos
interesses de uma História Intelectual (e – conforme assinala o próprio Vilhena – “essencial para a
compreensão da história das Ciências Sociais no Brasil”) na qual conviveram diferentes projetos de
sociedade e que aponta, mais enfaticamente, para a convivência de diferentes clivagens intelectuais,
tensionando, por exemplo, aquilo – que na falta de uma melhor denominação – poderíamos chamar
de embate entre conservantistas e modernos/modernizadores e que se agonizaria ainda mais na
década seguinte. De mesma forma, a observação de uma rede (network), naquela década, nos faz
lembrar a articulação do CCEC ao chamado movimento euclidiano, responsável pela invenção de
uma tradição euclidiana no país e o que faz supor acerca do intercâmbio entre os seus
integrantes/freqüentadores, animados em torno de problemas comuns.

Ressalte-se, novamente, que a não problematização da noção e apenas o recurso ao seu uso
“geográfico”– como muitas vezes é feito em estudos sobre grupos e indivíduos localizados fora
dos centros urbanos e/ou de produção – inibe a possibilidade de pensar as tensões, bem como da
existência de solidariedades ou “redes”, contribuindo para reforçar o caráter de atraso ou exotismo
em relação às ideias e experiências desses indivíduos/grupos, perdendo-se, mesmo, o próprio papel
muitas vezes exercido por estes na formulação de discursos identitários.

História Intelectual em perspectiva regional274

Perceba-se que uma agenda de investigação voltada para o objeto (ou objetos) que nos
interessam, parece exigir um foco renovado sobre temas já bastante tocados, exigindo, mesmo,
uma nova perspectivação.

Assim, como dito, noção de região/regional/local deve ser redimensionada e não tomada
no sentido de uma tradição que suponha sua existência como algo dado (ou prévio) aos textos que
a conformam, perdendo justamente o caráter da sua construção, resultante de diferentes
possibilidades e sentidos. Ou em outros termos, não se pode coadunar com uma tradição
historiográfica posta e que parte da constatação que a região é um dado “em si”, com uma existência
independente dos discursos que a definem, constituída não conceitual, mas espacialmente

274
As observações aqui expostas foram retiradas de Karvat (2017).
680

(Albuquerque Jr., 2008a). Desse modo, um ponto de partida é buscar perceber a elaboração de
diferentes representações, usos e apropriações do termo a partir da própria articulação conferida
pelos agentes em seu círculo intelectual. Perspectiva, esta, que parece animar a própria existência
do CCEC e dos auto-aclamados tapejaras.

Como pensar a produção intelectual regional, periférica ou provinciana? Qual estatuto cabe
àquele que enuncia sua fala e dirige seu olhar a partir de uma mirada que se quer e se vê “do interior”
ou de província? Ou, ainda:

o que significa ser um "intelectual" na "província", ou na "periferia" dos centros


urbanos, ou nos mundos culturais "locais"? E a partir disso, que imagem da vida
cultural nacional pode resultar da redução da escala de observação? Finalmente,
que tipo de estatuto epistemológico tem então a própria noção mesma de região?
(Pasolini, 2013, p. 190).

Ricardo Pasolini, em La historia intelectual desde su dimensión regional: algunas reflexiones, texto
que serve de inspiração para este comunicação, alerta, recorrendo a Castenuovo e Ginzburg, para
o risco valorativo de se tomar o “centro” como único eixo de “legitimação intelectual” ou “modelo
de produção cultural”, em um movimento que tende a impossibilitar a reflexão em torno do
“problema de las relaciones”.

Acerca da relação centro X periferia de um ponto de vista histórico/historiográfico275,


lembramos com Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, que além de congregar diferentes sentidos,
tal relação não pode ser avaliada como passiva, numa dimensão de termos que são mais
complementares que antitéticos. Conforme diz o historiador italiano, referindo-se ao campo da
história da arte italiana:

Se o centro é por definição o lugar da criação artística e periferia significa


simplesmente afastamento do centro, não resta senão considerar a periferia como
sinônimo de atraso artístico, e o jogo está feito. Trata-se, bem vistas as coisas, de
esquema subtilmente tautológico que elimina as dificuldades em vez de tentar
resolvê-las. Experimente aceitar os termos “centro” e “periferia” (e as respectivas
relações) na sua complexidade: geográfica, política, econômica, religiosa – e
artística (Ginzburg ; Castelnuovo, 1991, p. 6).

Neste sentido, o olhar sobre o local, o regional ou o periférico pode ser bastante significativo no
plano de uma História Intelectual, pois pode projetar interesse em aspectos nem sempre percebidos quando
se parte de um olhar que tende a homogeneizar ou universalizar determinadas leituras ou interpretações,
não reconhecendo possibilidades postas pela circulação de ideias e textos, por suas apropriações e usos –
usos que emanam de interesses e possibilidades postas justamente por isto que podemos chamar de uma

275 A presente observação – com modificações – foi extraída de Karvat, 2015.


681

mudança de cenário. Neste sentido, determinadas ideias e autores tendem a serem lidos conforme
disposições de questões locais/regionais/periféricas ou, ainda, determinadas ideias e autores tendem a
permanecer no campo de interesse deste cenário mesmo quando já – do ponto de vista do centro –
terem sua “credibilidade” enfraquecida.

Ginzburg e Castelnuovo, mais do que apontar uma reificação ao uso da oposição centro
versus periferia, assinalam, através do estudo da história da produção da arte italiana, para a
constituição histórica desta oposição, observando que tomar toda forma de “atraso” como
periférico ou toda periferia com “retardatária” implicaria em adotar uma visão linear da história
dessa forma de produção:

Deste modo acaba-se por procurar na arte da periferia aqueles elementos, aqueles
cânones, aqueles valores que são estabelecidos tendo precisamente como base os
caracteres das obras produzidas no centro; e no caso de se reconhecer a existência
de cânones diferentes, esses são examinados só em relação ao paradigma
dominante, com um procedimento que leva facilmente a juízos de decadência, de
corrupção, de baixa de qualidade, de rudeza, etc. (Ginzburg, 1991, p. 53).

Ainda que os historiadores italianos falem em certa “autonomia da periferia”, para nós
interessa ainda mais o reconhecimento daquilo que podemos chamar de dinâmica da produção da
periferia, menos preocupados com o caráter de autonomia. Tal reconhecimento, ao se voltar sobre
intelectuais alocados fora dos centros de reconhecida de nobilidade intelectual, persegue a
complexidade no campo de produção das ideias e, desse modo, sobre intelectuais e textos,
reconhecendo a própria complexidade da relação entre ideias X intelectuais X textos alocados em
centros de produção e ideias X intelectuais X textos situados na periferia destes centros. Se
“identificar pura e simplesmente a periferia com o atraso significa, em última análise, resignar-se a
escrever eternamente a história do ponto de vista do vencedor de round”, conforme se referem
Ginzburg e Castelnuovo, mais necessário ainda é romper com a resignação de uma escrita de
história que vivifica as leituras feitas a partir de cânones estabelecidos historiograficamente,
resignação que é construída e, portanto, interessada. E mais que isto, portadora de sentidos que
justificam determinados modos de compreensão e de autoridade (intelectual) e, com isto,
promotoras de seleções e silenciamentos. Adotar a relação do periférico correspondendo ao
atrasado justifica, resignadamente, por exemplo, o desinteresse, até pouco recente, em torno de
ideias, intelectuais e textos compreendidos como periféricos, o que lhes conferia a pecha de pouco
pertinentes. Relação e entendimento que, no campo da História Intelectual, não se pode validar.
Poderíamos neste caso, em especial, também falar em complexidade intelectual ou da produção
intelectual, entendendo nesta a dimensão da circulação, apropriação e usos dessa produção pelos
atores acima referidos (mediadores/portadores, etc...)?
682

Pasolini reconhece os riscos de uma abordagem “localista”, que exaltaria os espaços


regionais, vangloriando-se da “autossuficiência temática” do recorte local, fazendo, assim, que os
“universos locales se convierten así en regiones que se explicana sí mismas fuera de toda influencia,
prestamos o resignificación”, produzindo enunciados cujo “particularismo” não apresenta “bases
empíricas”. Desse modo, “plantear la especificidad del mundo local supondría, en primer lugar,
una ampliación de la mirada hacia otras zonas espaciales, y a cuestionar la noción misma de región
implícita en esos trabajos (Pasolini, 2013, p. 191). Fundamental, portanto, reconhecer ao
“provinciano” – ou ao “regional, em nosso caso – seu status epistemológico, “lejos ya de las
representaciones localistas que incluso en sede académica aún no querían abdicar” (Pasolini, 2013,
p. 192), buscando tensionar as relações entre os centros/espaços de legitimação e os espaços
“regionalizados”/provincianos, problematizando-se a circulação, as apropriações, os processos de
rotinização de ideias, bem como a formação das redes e contatos. Ainda, conforme aponta
Pasolini, “no deja de ser relevante, en términos de una historia intelectual, el estudio de las formas
de “hacer historia” en las localidades, y el lugar de estos relatos en la construcción de las identidades
de las comunidades”. Neste mesmo sentido, é também fundamental, para além das
autocaracterizações que estes grupos inflijam à sua própria existência, cabe pensar no uso retórico
de determinadas expressões, (de modéstia, por exemplo), buscando delimitar seu lugar e sua relação
com outros intelectuais (Lopes; Denipoti, 2010), ao mesmo tempo em que é imprescindível o trato
histórico a estas designações, contextualizando suas recorrências.

Complexificar o entendimento de tais relações – a partir da tensão centro X periferia, por


exemplo – buscando, na expressão de María Del Mar Carnicer e Rebeca Camaño Semprini, características
particulares e lógicas diversas que “contradizem a tradicional imagem de homogeneidade (...) contribuindo
para a complexificação do conhecimento histórico” (Carnicer ; Semprini, 2014, p. 92). Cremos, neste sentido,
que tal complexificação passa pela chamada redução ou jogos de escalas, uma vez que tal abordagem revela uma
versão diferente acerca do social, evitando generalizações, sendo que a variação de escala “significa modificar
sua forma e sua trama” (Revel, 1998, p. 20), revelando aspectos sutis e talvez mais sugestivos quando se trata
de espaços periféricos e regionais e suas relações e identidades e intentando estabelecer articulações (e não
apenas generalizações) entre o local/periférico e o nacional/centro.

Se a caracterização de intelectuais regionais não deve supor um mero recorte geográfico, mas sim
problematização, pensar a existência de um círculo como o CCEC não deve supor a autossuficiência do
local/regional, como aludido acima. De mesmo modo, não deve sugerir uma espécie de cartografia do
exótico – ou do anacrônico ou extemporâneo – em relação à produção e às ideias de seus integrantes.
Fundamental, no caso, é restituir a própria historicidade da instituição e de sua produção, pensando como
as agendas daquele momento –- historiográfica e sociológica, mas também política e social – reverberava
683

“no interior” (ou poderíamos dizer interiores) e como este se posicionava e respondia aos problemas da época
e que narrativas e diálogos produzia e autorizava. A intenção disso não deve ser a exaltação de uma
perspectiva regionalizada e/ou local, mas, antes, a possibilidade de se pensar a complexidade da produção de
sentidos e que se deve a própria complexidade dos objetos em História Intelectual –- tematizando, entre
outras, a produção, circulação e difusão de ideias, as reciprocidades, as mediações e intermediações, as
disputas e conflitos –- recusando-se às visões laudatórias e simplificadoras.

Referências
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historiografia b,rasileira ou o regionalismo como modo de preparo historiográfico. XIII Encontro
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Vilhena, Luís Rodolfo da Paixão. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964).
Rio de Janeiro: Funarte: FGV, 1997.
685

A formação da Boca do Lixo e seu flâneur marginal: cotidiano e


escrita de si

Everton Behrmann*

Resumo: Esse artigo analisa o processo de formação da Boca Lixo a partir do relato autobiográfico
de um de seus malandros mais notórios, perspectivando-os a partir das noções de flâneur e
heterotopia.

Palavras chave: Boca do Lixo, marginais, heterotopia, escrita de si, flâneur.

Este artigo analisa o processo de formação da Boca do Lixo a partir da leitura da


autobiografia de um de seus personagens mais famosos, a saber Hiroito de Moraes Joanides,
malandro que ganhou notoriedade nas páginas da imprensa policial e que além de desenvolver uma
série de atividades ilícitas e criminosas, escreveu um relato autobiográfico sobre sua experiência,
onde descreve em detalhes a ambiência e a geografia do submundo paulistano entre as décadas de
1950 e 1960, bem como dialoga com as representações elaboradas pela reportagem policial sobre
o cotidiano da Boca. Escrita enquanto Hiroito cumpria pena a Casa de Detenção do Estado, em
1977, foi lançada no mesmo ano pela editora católica Edições Populares, em uma coleção rubricada
por “Problemas Brasileiros”, sob o título de “Boca do Lixo” (Joanides, 1977) e teve relativo sucesso
editorial. Após o sucesso de vendas, a qualidade de seu relato foi reconhecida por inúmeros veículos
de imprensa e por pesquisadores de criminologia, sendo o autor convidado a dar entrevistas em
programas como o Vox Populi, da TV Cultura (Vox Populi, TV Cultura, /19/09/1978) e a
participar de vários debates em universidades e jornais sobre o problema da criminalidade na cidade
de São Paulo, a exemplo de uma mesa organizada por Samuel Wainer e Ramão Gomes Portão,
cujo teor foi publicado no Caderno Folhetim do jornal Folha de São Paulo ainda no ano do
lançamento do livro de Hiroito, 1977. Essa mesa foi composta por sociólogos reconhecidos como
Sérgio Adorno (à época criminologista do Instituto Médico da USP), pelo reconhecido jurista
Miguel Reale Junior, além de membros do judiciário e Ministério Público (Discussão da Violência,
Folhetim, Folha de São Paulo, 11/12/1977).

Em um relato autobiográfico, o filósofo Walter Benjamin narra como se deu sua


aproximação com o outro e o despertar de seu interesse pelos espaços marginalizados da cidade, e

*
Doutorando em História (UFRRJ).
686

em especial, sua atração ou curiosidade pela prostituição. Ao narrar seus passeios com a mãe pela
Berlim de 1910, após uma breve digressão sobre sua condição de garoto de classe abastada que se
fechava dentro dos limites de seu bairro burguês, diz ele sobre as poucas vezes que saía desse limite
acompanhado do olhar disciplinar e normatizador da figura materna: “Nesse bairro de proprietários
permaneci encerrado sem saber da existência dos outros. Os pobres — para as crianças ricas da
minha idade — só existiam como mendigos.” (Benjamin,1987, p. 125.). Ainda no mesmo relato,
narra que devido ao cotidiano controle moral exercido pelos pais de forte formação religiosa, a
única forma de revolta — ou rebeldia — que podia exercer sem que fosse exposto ao castigo e ao
controle era a “sabotagem”. Ao contrastar a figura da prostituta com a da mãe, o jovem Benjamin
abre caminho para a possibilidade de um olhar ou saber sobre o outro (Chaves, 2006, p. 54.), ao
mesmo tempo em que constrói uma forma de resistência ao poder materno:

recorria a ela (a sabotagem) quando procurava escapar à minha mãe. mas, de


preferência, nos mandados, e com uma teimosia obstinada que frequentemente a
levava ao desespero. adotara mesmo o costume de ficar sempre meio passo atrás.
era como se, em nenhum caso, quisesse construir um front, mesmo que com minha
própria mãe. o quanto tive de agradecer a essa resistência sonhadora nos passeios
incomuns pela cidade, descobri mais tarde, ao se abrir seu labirinto ao impulso
sexual [...] mas já naquela época, quando minha mãe me reprendia a rabugice e o
andar sonolento, percebi vagamente a possibilidade de mais tarde subtrair-me de
seu domínio em conluio com essas ruas, nas quais, aparentemente, não sabia me
orientar. de todo modo, não havia dúvida de que o sentimento — infelizmente,
ilusório — de abjurar minha mãe, sua classe e a minha, era o responsável pela
atração de me dirigir a uma prostituta em plena rua (Benjamin, 1987, p.126.)

Hiroito, ao narrar como se deu sua aproximação enquanto frequentador daquela parte
“maldita” e mal vista da cidade de São Paulo, remete aos tempos de sua adolescência, em 1953,
quando era ainda um jovem estudante de 17 anos, pertencente à classe média da cidade, e que se
dirigia ao quadrilátero do pecado em busca de realizar-se sexualmente nos braços de uma mulher da
vida, liberando assim os desejos sexuais que desabrochava com toda potência no jovem estudante.
Segundo ele, naqueles tempos, devido aos rígidos costumes morais em voga na cidade, e o peso
com que essas regras incidiam sobre a sexualidade, principalmente a feminina, era praticamente
impossível para um adolescente conseguir obter prazeres sexuais fora do padrão aceito, ou seja,
sexo somente depois de estabelecido o matrimônio (Joanides, 1978, p. 46).

Para as mulheres, essa regra era quase impossível de ser quebrada, qualquer movimento
nesse sentido era punido de forma extremamente severa e poderia custar uma vida inteira de
constrangimentos. Já os rapazes tinham como alternativa a frequentação às casas de tolerância; por
isso, o constante movimento de estudantes do sexo masculino nas tardes da Zona de meretrício.
Lembra ainda que essa Zona tinha constante ação de fiscalização por parte da polícia e que as suas
687

características físicas, composta por altura e óculos de lentes grossas, passavam a impressão de que
tinha idade suficiente para frequentar o lugar, ajudando assim a burlar o sistema de fiscalização. E
à semelhança do relato benjaminiano — guardado os devidos detalhes e diferenças — conclui sua
narrativa sobre a aproximação do adolescente Hiroito desse universo paralelo à moral, aos
costumes e ambientação convencional das cidades grandes de seu tempo, bem como as táticas e
astúcias por ele utilizadas para usufruir e interagir com esse espaço:

Na época, cursava o quarto ano ginasial, no Ginásio Machado de Assis, no bairro


de Pinheiros, e um colega de estudos, mais velho e traquejado que eu, foi quem
me conduziu àquele primeiro encontro com uma profissional do amor. E gostei
da coisa. Quero dizer, gostei muito. Tanto assim que, de então em diante,
possuísse eu os necessários cinco cruzeiros e haveriam de ver-me, todo
afobadinho, a desfilar pelas ruas Itaboca e Aimorés, diante daquelas fileiras de
portas e janelas-vitrines onde um mar de mulheres, de todos os tipos, cores e
tamanhos, se oferecia à macharia passante (Joanides, 1978, p. 47).

Michel Foucault, em um belo e instigante texto sobre a constituição, separação e


ordenamento dos espaços, e aqui pensando sobre a distribuição dos tipos de sociabilidades que
compõe os processos de territorialização e desterritorialização do cotidiano urbano, alerta que não
se vive nunca em um espaço neutro; diz ele: “não se vive, não se morre, não se ama no retângulo
de uma folha de papel”. O cotidiano de qualquer citadino e o espaço onde ele se desenrola são
perpassados por diversos dispositivos de controle e poder; seu funcionamento normativo separa,
divide, produz fronteiras, criando assim espaços sociais “dignos” em oposição a espaços
“desprezíveis” (Rolnik, 2003, p.13.). Portanto, a metáfora mais adequada para pensar o espaço
urbano é imaginá-lo não como uma folha em branco, e sim como um espaço “quadriculado,
recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos,
relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas”. (Foucault, 2013, p. 19.)

Seu comentário vai se dirigindo para pensar um tipo de espaço que surge entre todos esses
lugares — o bairro, a estação, cafés, cinemas, condomínios, residenciais, parques — e que está
automaticamente do outro lado, se colocando em oposição ao modelo utópico do espaço público,
que são os territórios pensados para o bom funcionamento das normas, da legislação, da moral e
costumes aceitos. Esse tipo de lugar, Foucault chama de contraespaços ou heterotopias.

Trazendo também a figura da criança, que com sua curiosidade aguçada pelos instintos e
pelo imenso desejo da novidade, acaba por descobrir elementos de fuga do mundo normativo dos
adultos ao procurar o fundo do jardim, a tenda de índio erguida no quarto; ou ao aproveitarem a
ausência dos pais em uma tarde qualquer, para poder ir brincar na grande cama; são elas, as crianças,
grandes conhecedoras desses contraespaços:
688

É nessa grande cama que se descobre o oceano, pois nela se pode nadar entre as
cobertas; depois, essa grande cama é também o céu, pois se pode saltar sobre as
molas; é a floresta, pois pode-se esconder – se; é a noite, pois ali se pode virar
fantasma entre os lençóis; é enfim, o prazer, pois no retorno dos pais, se será
punido (Foucault, op. cit., p. 20)

Ao descrever os tipos humanos que habitavam a Paris no auge da modernidade, Walter


Benjamin — nas pegadas do poeta Baudelaire — coloca em cena o flaneur. Um tipo que viria a
compor a fauna urbana das metrópoles modernas, esse personagem que vivia a perambular pelas
ruas, principalmente nos locais mais frequentados — as passagens, galerias, estações, feiras livres,
cafés concertos etc. — faz da sua caminhada um exercício de hermenêutica do cotidiano e dos
tipos urbanos.

As condições de possibilidade para o aparecimento e desenvolvimento da flânerie na cidade


de Paris são identificadas com o alargamento das calçadas e o surgimento das grandes galerias, que
se ampliaram após as famosas reformas e intervenções urbanas feitas pelo barão de Hausmann. É
nas galerias e junto à multidão que o flâneur se sente em casa: “essa paragem predileta dos
passeadores e dos fumantes, esse picadeiro de todas as pequenas ocupações imagináveis encontra
seu cronista e seu filósofo.” (Benjamin, 1989, p. 33.).

Para ilustrar esse exercício interpretativo da cidade, Benjamin, com sua escrita alegórica,
recorre a um gênero literário que emergiu no século XIX, na França, os chamados “folhetins”.
Segundo ele, esses livros se ocupam da caracterização e descrição dos tipos encontrados no espaço
público, do vendedor ambulante ao cantor de ópera, todas as tribos e frequentadores das ruas de
Paris foram narrados e descritos por essa literatura panorâmica, a qual ele atribui o nome de
“fisiologia.” No começo, os fisiologistas se dedicavam a descrever tipos humanos, depois passaram
à descrição das cidades, onde segundo o filósofo alemão “Tudo passava em desfile... dias de festa
e dias de luto, trabalho e lazer, costumes matrimoniais e hábitos celibatários, família, casa, filhos,
escola, sociedade, teatro, tipos, profissões”. Para o filósofo, a densidade dessas descrições tem
relação direta com a atividade e o jeito do flâneur caminhar e interpretar o movimento das ruas, o
que ele chama de “fazer botânica no asfalto” (Benjamin, op. cit. p.34).

Retomando a questão sobre as heterotopias, Foucault diz que sonha em elaborar uma
ciência que tivesse por ocupação esses espaços heterogêneos que por si são contestações radicais
do espaço normativo das cidades, normatividade que se mostra enquanto uma utopia de cidade
desejável. Essa ciência se dedicaria aos “espaços absolutamente outros”, às “hetero-topias”. Para
689

nomear esse novo saber que emergirá desses estudos, o francês cunha o nome de “heteropologia”
(Foucault, op. cit. p. 22).

Ao tomar a autobiografia de Hiroito como fonte, e consequentemente, o tomá-lo como


nosso personagem principal para adentrar ao universo/cotidiano da Boca do Lixo, e assim, pensar
a Boca enquanto uma heterotopia estabelecida no coração da metrópole bandeirante, onde se
desenvolvia uma economia de costumes, afetos e sociabilidades, peculiar àquele espaço e que
ofendiam e desafiavam a moral de boa parte da sociedade paulistana. O nosso personagem — ou
melhor, seu relato, sua narrativa, sua versão sobre o que aconteceu naquele espaço — será pensado
como o flâneur de Benjamin/Baudelaire que faz botânica no asfalto. Ou então, num exercício mais de
imaginação e improvisação do que de precisão analítica, como o “cientista” que investiga os
“espaços outros” e faz da heterotopologia sua atividade cotidiana.

Em outro sentido, e utilizando de algumas formulações foucaultianas sobre a “escrita de


si”, entendemos a autobiografia como uma “preocupação com o eu” (Foucault, 2014). Dessa
forma, arquivar a própria vida é contrapor à imagem social a imagem de si próprio (Artières, 1998,
p. 28). Em vista disso, a autobiografia de Hiroito será pensada como uma forma de resistência.
Recorreremos a uma provocação feita por Phileppe Artières, de que o arquivamento da própria
vida é simbolicamente preparar a própria defesa, juntar as peças e organizá-las para desconstruir a
visão que os outros fazem de nós mesmos. Diz ele: “Arquivar a própria vida é desafiar a ordem
das coisas: a justiça dos homens assim como o trabalho do tempo” (Artières, op. cit. p. 29). Essa
prática autobiográfica será perspectivada como forma de embate contra as representações e
construções discursivas feitas pela imprensa e órgãos do governo a respeito das práticas e
sociabilidades da Boca do Lixo.

Em vários momentos de seu relato, Hiroito deixa muito claro sua insatisfação e seu embate
com a imprensa, para ser mais específico, com a reportagem policial, que no decorrer do texto
recebe diferentes nomes pejorativos: “imprensa amarela”, “grande máquina”, “máquina das
comunicações”, para ficar em alguns exemplos. Assim, fica claro que sua intenção, ao fazer esse
arquivamento de sua própria vida, era se defender dos diversos momentos em que foi desenhado
na imprensa como monstro, o bandido frio e violento. Desde a injusta acusação de ter sido
responsável pela morte do próprio pai, até os feitos de seu reinado na Boca do Lixo, a todo o
momento Hiroito deixa transparecer que sua autobiografia é um acerto de contas com a imprensa;
sobre isso iremos reproduzir os principais fragmentos onde esse embate pode ser percebido,
começando pelo episódio em que foi acusado de parricídio:
690

Depois de estigmatizar-me com a pecha de parricida, posta à venda dias seguidos,


matutina e vespertinamente em todos os jornaleiros do Estado, ao preço de
alguns centavos, a Imprensa Amarela iria valer-se de mim através dos anos,
sensacionalizando os meus feitos criminosos — frutos da revolta e do desespero
a que ela própria me levara com a popularização da calúnia infamante. Em
sucessivas manchetes escandalosas, tão ao gosto do grande público, o nome do
homem que fora “suspeito de haver matado o próprio pai”, e que descambara
para a delinquência, em breve alcançaria uma notoriedade espantosa. Estava
criado assim mais um rei do crime, mais um bandido para uso e gozo das
multidões sem nome — sempre ávidas de violência e exageros (Joanides, 1977,
p. 27).

Em outro fragmento, fica claro a sua insatisfação para a forma com que a imprensa policial
constrói as imagens das pessoas que se movem nesse plano mais baixo da estrutura social; Hiroito
parte para uma análise mais “sociológica”, deixando um pouco de lado o tom emotivo:

Já agora, posso compreender que sempre há de existir, em toda grande


metrópole, indivíduos que serão colhidos pela Grande Máquina para, ao longo
da complexidade das engrenagens sociais, irem sendo despersonalizados,
coisificados, em nome do deus-notícia, até se tornarem de sujeito a objeto, de ser
humano a simples legenda. Serão os úberes nos quais a Imprensa Amarela irá se
saciar de sua sede de sensacionalismo e de escândalos (Idem, p.28).

A autobiografia de Hiroito começou a ser escrita enquanto cumpria pena na famosa Casa
de Detenção do Carandiru; pena a qual Hiroito parecia aceitar sem maiores problemas; ele não quer
se justificar com a sociedade sobre os crimes que cometeu, e muito menos autoconstruir enquanto
um mártir. Como deixa transparecer nessa passagem de seu relato:

Não, nada mais resta em mim, ou de mim, a ser julgado. Doze arrastados anos
de cárcere tornaram-me já agora, perfeitamente à vontade para prescindir de
vosso julgamento, dado o despropósito de um veredito que, se absolutório,
estaria estabelecendo a minha falsa condição de mártir; enquanto que se
condenatório, estaria a cobrar-me por aquilo que já paguei. Muito bem pago, por
sinal.
A verdade é que eu e a sociedade estamos quites. O muito de mal que ela causou-
me, retribuí-lhe com muito de perturbação que lhe causei. E a recíproca é
verdadeira (Joanides, 1977, p. 30).

Após esses embates mais diretos com a crônica policial, e essa retificação sobre não querer
se justificar com a sociedade, no sentido de diminuir a gravidade de seus crimes, começa a ficar
mais claro que ao escrever sua autobiografia, Hiroito estava preocupado em contar outra versão
sobre os acontecimentos que marcaram a região da Boca do Lixo. E mais ainda, em mostrar esse
691

cotidiano sob outro olhar, fora do prisma normatizador, disciplinar e acusatório em que ele foi
narrado pela imprensa. Conforme relata:

Espero poder mostrar, talvez para espanto de alguns, que os delinquentes, apesar
de seus atos criminosos, da licenciosidade de suas condutas, dos seus
desregramentos e vícios, são também, todos seres humanos — sujeitos portanto
às mesmas dores e alegrias, tristezas e prazeres, entusiasmos e angústias que
sentem e sofrem os mais puros de espírito (Idem, p. 32).

Embora rica em detalhes e escrita com estilo de dar inveja a qualquer jornalista ou escritor,
com análises sobre o submundo paulistano de deixar qualquer sociólogo perplexo, e ainda usando
metáforas tiradas de poemas de Baudelaire, citações de Heidegger em analogia a fatos cotidianos
acontecido na Boca, Hiroito, oriundo de família de classe média, tinha uma cultura letrada de fazer
inveja a muitos acadêmicos, o que o diferenciava de seus pares na prática da malandragem.

Mas o fato de ser um fora da lei, um malandro, foi o suficiente para que no momento
mesmo do lançamento de sua autobiografia, ter sido questionada a autenticidade de sua autoria
pela imprensa da época, que não acreditava que um malandro fosse capaz de desenvolver um relato
tão complexo e perspicaz sobre um momento tão complicado da história paulistana. A mesma
imprensa que foi responsável por sua fama, ao noticiar através da reportagem policial os seus
feitos.276 Podemos dizer que ao tentar deslegitimar a autoria do texto de Hiroito a imprensa
reinvidica para si o direito exclusivo para tratar de determinados assuntos, no caso, de construir a
interpretação dos fatos acontecidos na Boca do Lixo, ou nas palavras de outro teórico francês:
“Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 1996, p. 9).

Vale ressaltar que ao propor pensar nosso personagem enquanto um observador


privilegiado do cotidiano marginal da cidade de São Paulo e ao se utilizar da imagem benjaminiana
de “botânico do asfalto”, não pretendemos de maneira alguma impor um olhar normativo de
Hiroito sobre as sociabilidades por ele descritas como a verdade dos fatos. O que, no nosso
entendimento, entraria em contradição com a proposta do trabalho. Entendemos, como já dito
antes, que uma autobiografia é uma construção memorialista, e a urdidura de seu enredo se
aproxima muito do relato literário; portanto, trata-se antes de mais nada de literatura, e por isso é
uma representação de seu autor sobre a sua própria vida e a sociedade em que se via inserido.

276
Conforme relato do jornalista Orlando Criscoulo no prefácio para o livro de Hiroito. In: Joanides, op. cit., p. 9.
692

De 1954 até final da década de 1960, a Boca do Lixo se configura como uma cidade
heterogênea dentro da capital bandeirante, com seus códigos morais e economia própria.
Personagem de extrema importância nesse cenário, Hiroito de Moraes Joanides escreve uma
memória quase etnográfica dada a riqueza de detalhes sobre o que se tornaria as imediações da
região onde antes ficava a então tolerada zona do meretrício do Bom Retiro. Ele afirma que as ruas
próximas à Estação da Luz se tornaram “senão uma cidade dentro da cidade, uma colônia
numerosa e próspera”; o local passou a ter uma organização social e econômica própria, dotado de
uma rede de serviços e estabelecimentos - de lojas a bares, além de restaurantes, cinemas, dentistas
farmácias, barbearias e salões de beleza – que nas palavras de Hiroito, “atendiam e serviam quase
que exclusivamente a classe dos desajustados sociais, existindo nada mais que em função destes;
com seus usos, costumes, modas e valores subjetivos peculiares, endêmicos” (Joanides, op. cit., p.
102).

Hiroito era um delinquente sui generis, oriundo de família de classe média, era dotado de
uma cultura literária e educação formal que dificilmente seria encontrado entre seus pares. Leitor
de Heiddeger e de Baudelaire, que ele cita em diversas passagens de seu livro, outro fator que chama
a atenção é a qualidade estética de sua escrita, bem como sua desenvoltura analítica de fazer corar
qualquer sociólogo.

No seu relato podemos perceber a diversidade de personagens que atuavam no local e que,
junto com Hiroito, ganhavam as páginas dos jornais por seus feitos delituosos: Quinzinho,
Carlinhos Bang-bang, Osny, Nelson da 45, os mais notáveis malandros da região que disputavam
entre si o título de “Rei da Boca do Lixo”. Do grupo das prostitutas e donas de rendez-vous destacam-
se Zenaide (esposa de Hiroito), Verinha, Elza Baixinha, Ada (companheira de Quinzinho), entre
outras. Os valentes e as prostitutas eram os grupos mais importantes na distribuição econômica da
Boca, todas as outras atividades, em certa medida, se davam em torno desses dois segmentos.
Hiroito destaca também os delegados que atuavam no local, alguns adquiriram fama nas páginas
da reportagem policial por conta de sua ação na repressão às práticas licenciosas e criminosas: Dr.
Deodato, conhecido como caça bandidos; Dr. José Carlos, vulgo Dr. Zebu, muito respeitado pelo
valentes da Boca do Lixo; Dr. Wilson José Minervino. O pessoal da reportagem policial, entre os
quais Ramão Gomes Portão (Notícias Populares), Percival de Souza (O Estado de São Paulo), Orlando
Criscoulo (Diário da Noite).

Embora fossem grupos com finalidades e funções antagônicas, o convívio entre eles não
era de enfretamento em tempo integral; numa passagem de seu texto, Hiroito relata que os
restaurantes noturnos e as boates serviam como ponto de integração entre os mais diversos
693

frequentadores e praticantes da Boca, com destaque para o restaurante Tabu, na Rua Vitória; seus
frequentadores eram prostitutas, marginais, homens da força pública e vários repórteres de polícia
(Joanides, op. cit. p. 104). Um trecho do livro de memórias Estórias da Boca do Lixo, do repórter
Ramão Gomes Portão, faz uma descrição sobre essa ambientação: “Os homens falavam de política,
do Estado Novo, de mulheres, nas confortáveis salas de estar, bebericando champanha, cerveja
Cascatinha ‘casco escuro, por favor...’ ou conhaque Napoleão. Num ambiente fraterno que não se
faltava com respeito” (Portâo, s.d., p. 37).

Esse recorte temporal — 1950-1960 — foi escolhido por conta de alguns fatores sobre a
história da cidade de São Paulo e sobre sua região central. Nesse momento a cidade passava por
uma explosão demográfica nunca antes observada, crescimento industrial, econômico, aumento do
perímetro urbano e necessidade de expansão de serviços públicos e privados. Ele marca também
o período em que a já grande metrópole, maior cidade do país, se preparava para comemorar o IV
Centenário de sua fundação. E, não só por conta do festejo, mas também por conta do mesmo, foi
colocada em prática uma série de medidas de intervenção urbanística visando à limpeza e o
embelezamento da capital paulista.

Em 1951 é criada uma comissão multidisciplinar com status de autarquia municipal—


envolvendo arquitetos, urbanistas, empresários, artistas plásticos, políticos, solicialites, entre
outros— com a função de planejar e elaborar os festejos; bem como, para difundir a imagem da
cidade enquanto terra do progresso e de povo bandeirante, a locomotiva do país; criando assim um
clima ufanista e um relato monumental sobre a história e os símbolos da cidade.277

Dois anos depois da formação da citada comissão e a menos de um mês da grande festa,
em 31 de Dezembro de 1953, o então governador Lucas Garcez expede decreto que proibia
definitivamente a Zona do Meretrício, que era legalizada e ficava confinada nas ruas Itaboca e
Aimóres no bairro do Bom Retiro. Esse momento entre os preparativos para os festejos e a
extinção da zona de meretrício marca um ponto de inflexão, pois a área do centro de São Paulo
onde se situava a Boca do Lixo, surge como refluxo dessa tentativa de limpar a prostituição da
região para a festa de 400 anos da cidade. Porém, o fechamento da zona tolerada, ao invés de ter
tido o resultado esperado: limpar do centro da cidade aquelas práticas consideradas sujas e que,
entre outros fatores, comprometiam a imagem ufanista que tentava se criar sobre a cidade, acabou
por espalhar a prostituição e todas as práticas e atividades que atuavam em seu entorno por toda

277
Lei 4.166, de 29 de Dezembro de 1951. Diário Oficial do Município de São Paulo, 30/12/1951, p. 39.
Sobre o IV Centenário e a simbologia mobilizada para tal comemoração c.f. Lofego, Silvio Luiz. IV centenário da cidade
de São Paulo: uma cidade entre o passado e o futuro. São Paulo: Annablume, 2004.
694

a região central, formando entre as avenidas São João e Rio Branco, e entre as ruas transversais a
essas avenidas, um território onde se exerciam o trottoir, o punguismo, lenocínio, a boêmia e o jogo.
Por isso, em pouco tempo, a imprensa policial começou a chamar o local de “Quadrilátero do
Pecado” e depois de “Boca do Lixo”.

Referências

Artières, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getúlio Vargas
(CPDOC\FGV) , v.11, n 21, 1998, p 9-34. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/240.pdf,.Acesso em jun 2020.

Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins
Barbosa, Hemerson Alves Baptista, São Paulo: Brasiliense,1989 (Obras escolhidas, v. 3).

Chaves, Ernani. Sexualidade, corpo e desejo em Walter Benjamin. Revista Cult, São Paulo, p.56 -
57, 01 set. 2006. p. 54.

Joanides, Hiroito de Morares. Boca do Lixo. São Paulo: Edições Populares, 1977

Foucault, Michel. A escrita de Si. In: Ditos e escritos, vol. V: ética, sexualidade e política. Org.
Manoel Barros da Mota. Tra. Elisa Monteiro, Inês Autram Dourado Barbosa. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2014.

Foucault, Michel. O Corpo utópico, As Heterotopias. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: N-1
Edições, 2013, p. 19.

Lofego. Silvio Luiz. IV centenário da cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado e o futuro. São
Paulo: Annablume, 2004.

Portâo, Ramão Gomes. Estórias da Boca do Lixo. São Paulo: Expressão do Livro, s.d.

Rolnik, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São
Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 2003.

Outras Fontes:

Vox Populi, TV Cultura, /19/09/1978.

Discussão da Violência, Folhetim, Folha de São Paulo, 11/12/1977.

Lei 4.166, de 29 de Dezembro de 1951. Diário Oficial do Município de São Paulo, 30/12/1951
695

O Combate do Fão no contexto da Guerra Civil de 1932

Fabian Filatow*

Resumo: o trabalho originou-se de uma pesquisa mais ampla, a qual teve como proposta analisar
a história política de Soledade, município do interior do Rio Grande do Sul nas décadas de 1930 e
1940. O estudo teve como orientação pela perspectiva da nova história política e permitiu a
discussão entre o local, o regional e o nacional. Também é esta a perspectiva do caso selecionado
para a presente apresentação, o Combate do Fão, acontecimento político-militar ocorrido no ano
de 1932 no município gaúcho de Soledade. Em 1930 a Frente Única Gaúcha (FUG) apoiou Getulio
Vargas, porém, em 1932, ocorreu uma cisão política, gerando uma crise política no Rio Grande do
Sul. Tal ruptura dividiu o estado gaúcho entre florista e getulista versus anti-floristas e anti-
varguistas. A Frente Única Soledadense se opôs ao interventor Flores da Cunha quando este
permaneceu apoiando Getúlio Vargas na ocorrência da Revolução Constitucionalista de 1932 sob
a liderança de São Paulo. O Combate do Fão, muito mais do que defender a constitucionalidade
do Brasil, demonstrou a divisão política tanto no âmbito local quanto regional. Questões políticas
que levariam ao distanciamento dos antigos aliados ao longo daquela década, na qual ocorreu tanto
a deposição de Flores da Cunha do poder do estado gaúcho quanto a instauração do Estado Novo.
Neste contexto, o objetivo do trabalho é apresentar o Combate do Fão, refletindo sobre sua
memória, sua história e as repercussões políticas do mesmo. Metodologicamente efetivou-se a
análise crítica de obras produzidas por historiadores locais e/ou participantes do conflito, obras
que assumem, neste texto, o caráter de obras-fontes, devido a seu valor histórico documental sobre
este acontecimento ainda pouco pesquisado da história gaúcha, bem como de documentos da
administração pública de Soledade. Por fim, apresentaremos alguns dos resultados para a história
de Soledade ocasionados pela ocorrência do Combate do Fão e para aqueles que dele participaram.

Palavras-chave: Combate do Fão, Soledade, Revolução Constitucionalista, Memória, História


Política.

Introdução

Próximo de completar 90 anos, o Combate do Fão ainda é pouco conhecido. Ocorrido no


interior do Rio Grande do Sul este acontecimento político e militar inseriu-se nos episódios da
Guerra Civil Paulista ocorrida no ano de 1932, ou como ficou consagrada na historiografia, a
Revolução Constitucionalista de 1932. Lampejos de sua ocorrência ficaram relatados em obras
memorialísticas daqueles que participaram do ocorrido ou dele foram contemporâneos. Por
décadas foi um assunto difícil, pois pairava sobre os seus participantes uma desconfiança, a suspeita
de traição, fato que pode ajudar a compreender o motivo para o silêncio prolongado. Recentemente

* Doutor em História.
696

esta perspectiva se alterou e uma busca por informações do que ocorreu vem contribuindo para o
surgimento de alguns novos estudos sobre o tema no âmbito local e regional.

Nosso objetivo almeja contribuir com um estudo sobre o Combate do Fão, destacando as
consequências que dele se desdobraram para a história política do município de Soledade (RS).
Neste sentido, faremos uso da imprensa, de documentos do poder executivo de Soledade e de
obras de memória que contenham como foco o Combate do Fão. Metodologicamente fazermos
um estudo de micro-análise, ou seja, procedemos a uma breve revisão historiográfica e realizando
uma análise das fontes referidas.

A Frente Única Gaúcha: da formação à ruptura (1928-1932)

A Frente Única Gaúcha (FUG) criada em 1928 em apoio ao governo de Getúlio Vargas,
então presidente do estado gaúcho. Após a derrota nas eleições eclodiu a Revolução de 1930,
seguindo-se o Governo Provisório, período no qual a situação política começou a dar sinais de
mudança e novos arranjos foram sendo tecidos. Após a euforia revolucionária, houve no Rio
Grande do Sul “um clima de frustração e de descontentamento em relação às políticas adotadas
inicialmente pelo governo getulista, as quais atingiram a Frente Política Gaúcha, que sustentava a
candidatura de Vargas e o posterior movimento revolucionário.” (Colussi, 1996, p. 55).

Com a continuidade do Governo Provisório aumentou a contestação ao governo federal,


sendo a constitucionalidade a bandeira defendida pela Revolução de 1932. Nessa ação
contestatória, o município de Soledade tomaria parte ativa, pelo menos uma parcela da política
municipal composta pelos partidos formadores da Frente Única soledadense através de um levante
político-militar orquestrado por parte da oposição política formada por membros do Partido
Republicano Rio-grandense (PRR) e Partido Libertador (PL). Estes formavam a Frente Única de
Soledade e rebelaram-se em prol da causa constitucionalista. Esse fato estabeleceu uma divergência
entre os revoltosos de Soledade e Flores da Cunha, que declarou apoio ao Governo Vargas,
contrariando os indicativos de que os rio-grandenses apoiariam os paulistas no levante pela
constitucionalização do Brasil.
697

O Combate do Fão na história política de Soledade

No Rio Grande do Sul ocorreram combates militares em oito municípios278, o que não foi
suficiente para fazer frente à decisão do interventor. Analisando Soledade, Caroline Webber
Guerreiro apresentou algumas relações existentes entre política e violência ao longo dos anos de
1930, “nesse contexto, os setores políticos importantes de Soledade posicionaram-se a favor da
causa constitucionalista através de diversos políticos locais, tendo como principal líder o coronel
Cândido Carneiro Júnior, mais conhecido como ‘Candoca’.” (Guerreiro, 2005, p. 72).

Em 1930 Cândido Carneiro Júnior279 apoiou a Aliança Liberal e em 1932 liderou a oposição
política contra a decisão de Flores da Cunha e contra a permanência do Governo Provisório, sendo
figura de destaque na liderança das tropas oposicionistas soledadenses que enfrentaram tropas
floristas às margens do rio Fão, em 13 de setembro de 1932. Cândido Carneiro Júnior era “homem
de posses, um terra-tenente, em suas terras desenvolvia a criação bovina, e em menor escala, a
plantação de víveres, além da atividade agro-pastoril.” Além dessa atividade econômica, praticada
em Soledade, “também era influente no campo político daquela região. Era líder do Partido
Libertador de Soledade.” (Comin, 2002, p. 24).

Em 1932 Cândido Carneiro Júnior recebeu ordens e dinheiro do interventor para organizar
o 33º Corpo Provisório com o propósito de combater os opositores paulistas280. Porém, fez o
oposto, organizou um grupo revolucionário em prol da causa da constitucionalização. Neste
momento Soledade contava com a existência de dois corpos provisórios281, além do 33º, havia o
44º comandado por Pedro Corrêa Garcez, de filiação republicana, manteve-se ao lado de Flores da
Cunha. A composição dos corpos provisórios de Soledade e os acontecimentos decorrentes dos
posicionamentos políticos assumidos contribuíram para uma significativa alteração na organização
administrativa municipal, deixando transparecer uma polaridade política. Foi assim que a Frente
Única de Soledade deu início à contestação pela via armada ao governo provisório e a interventoria

278 No dia 21/07/1932 ocorreram conflitos em Santana dos Tocos, Vacaria. Em 22/08/1932 ocorreu combate em São
João. No dia 04/09/1932 ocorreu confronto em Pelotas e em 10/09/1932 em dois outros locais São Gabriel e Santa
Maria. No dia 13/09/1932 ocorreu o Combate do Fão (Soledade) e no dia 20/09/1932 ocorreu combate em Cerro
Alegre. Foram combates entre tropas militares com mortos e feridos. (Paula, 1998, p. 249.)
279 Cândido Carneiro Júnior era filho de Florisbela Theodora de Almeida e do major Cândido Alves Carneiro.

Destacou-se como pecuarista e político no município de Soledade, sendo secretário do Partido Libertador naquele
município no ano de 1928. Em 1930 foi tenente-coronel da Brigada Militar e em 1932 ocupou o mesmo posto militar
no 33º Corpo Auxiliar da Brigada Militar (Corpo Provisório). Faleceu no ano de 1950. (Guerreiro, 2005, p. 72).
280 Para a constituição do 33º corpo provisório a interventoria estadual destinou 90 contos de réis ao coronel Candoca,

este se utilizou para arregimentar os revolucionários locais, aproximadamente quatrocentos homens. (Comin, 2002, p.
26).
281 A oficialização destas unidades provisórias deu-se pelos decretos nº 5067 de 23/8, que criou o 33º CP, e nº 5074,

de 30/8, que criou o 44º CP. (Guerreiro, 2005, p. 73, nota 41).
698

estadual, sendo Cândido Carneiro Júnior proclamado General Comandante em Chefe das Forças
Revolucionárias Constitucionalistas de Soledade, sendo composto um comando revolucionário
pelas lideranças oposicionistas do município.282

Em 1º de setembro de 1932, o comandante Carneiro Júnior publicou um manifesto


revolucionário endereçado ao povo do Rio Grande do Sul. Nesse documento, identificamos críticas
feitas ao governo federal, ao autoritarismo, a exaltação da causa constitucionalista e, por fim, a
convocação do povo gaúcho para a luta armada em defesa da honra do Rio Grande e salvação da
pátria. (cf. Paula, 1972, p. 26-29)

Podemos inserir o levante soledadense num contexto mais amplo, de contestação à


implantação de uma política centralista capitaneada por Vargas em detrimento do poder regional.
A centralização política do governo federal visava limitar o poder das oligarquias regionais, sendo
essas percebidas como entraves para sua efetivação. Entre os motivos que levaram a oposição
soledadense a romper com o interventor e com o Governo Provisório, relacionamos a fidelidade
partidária e a traição de Flores da Cunha. Segundo João dos Santos Almeida, membro do PL e
participante do Combate do Fão, “o interventor Flores da Cunha esteve conspirando com a Frente
Única, por mais de três meses e, ao estalar a Revolução, ele apunhalou pelas costas seus
companheiros de conspiração, deixando-os, no dizer gaúcho, com os arreios na macega.” (Almeida,
1999, p. 74-75).

Num telegrama enviado ao interventor pelo general Cândido Carneiro Júnior, temos a
informação da ocorrência do confronto entre os revoltosos soledadenses e as forças policiais
estaduais. O confronto ocorreu na localidade conhecida como Paço do Rocha, no qual foram
mortos oito homens. Ainda segundo o documento, Candoca declarou ter estabelecido governo e
que prendeu os que não estavam com o Rio Grande, e contra Flores.

Soledade, 3 de setembro de 1932. General interventor, Porto Alegre. Por


emissário aqui chegado fui informado de que meu partido está contra a ditadura.
Não acreditei por que o Dr. Adalberto e V. Exa. me disseram de viva voz que o
meu eminente chefe Assis Brasil, estava com a ditadura, mas, instalado pelo povo
e famílias, assumi o comando do movimento neste município. Fazendo minhas
as palavras de V. Exa., que neste Estado ou se é de um partido ou não se é coisa
nenhuma, fico com o meu partido e com o Rio Grande. Hoje me defrontei com

282 Composição do Comando Revolucionário de Soledade (1932). Cândido Carneiro Júnior, grande proprietário de
terras e político, membro do PL, era General Comandante. Sebastião Scheleiniger Júnior, oficial de registro de notas e
hipotecas. Líder do Partido Republicano de Soledade, o cargo desempenhado na revolta militar não foi identificado.
Kurt Afonso Frederico Spalding, farmacêutico, membro do PL, ocupou o posto de Tenente. Caio Graccho Serrano,
advogado, ocupou o posto de major e Chefe do Estado Maior. Coronel Urbano Benigno dos Santos ocupou o posto
de Coronel e foi prefeito municipal além de Chefe Civil da revolução. Coronel Hércules Boccardi ocupou o posto de
Coronel e Comandante da Praça. Pantaleão Ferreira Prestes era advogado e membro do PL, não foi possível identificar
seu posto no comando revolucionário. (Pesquisas do autor)
699

suas forças no “Paço do Rocha”, foram mortos oito homens. Estabeleci governo
e prendi os que não estavam com o governo neste município. Estou a frente de
1.500 homens em armas ou sem elas, lutarei até meu assassinato com aqueles que
vão acompanhar o Rio Grande no despenhadeiro em que se acha. Organizei o
corpo de 400 homens com recursos que V. Exa. me forneceu, mas não recebi
armas nem munições para traí-lo. O dinheiro é do povo, usemo-lo com igual
direito. Sou dos maiores contribuintes do fisco municipal e estadual. Vejo em V.
Exa. o Bento Gonçalves da atualidade, o general querido do Rio Grande. Nada
temo, pode mandar contra mim todo o exército, enfrentá-lo-ei de ânimo resoluto
nas matas deste município, quando não possa lutar em campo, e estarei no último
reduto a ser batido. Não me queira mal, serei um seu amigo e soldado. Isso passa
e nós ficamos. Cândido Carneiro Junior, ex-tenente-coronel, comandante do 33º
Corpo Auxiliar. (Telegrama apud Paula, 1972, p. 31-33).

Em resposta o interventor deslocou tropas da Brigada Militar com o propósito de combater


os revoltosos. José Miguel Dipp, participante do combate, assim relatou os acontecimentos
ocorridos na manhã de 13 de setembro de 1932:

Às seis horas, teve início o combate, até as nove horas não tínhamos sofrido
nenhuma baixa, pois, as forças do governo pensavam que estávamos além do rio
Duduia e para onde dirigiam a fuzilaria. O companheiro apelidado de gigante,
entusiasmado, subiu na taipa onde estávamos entrincheirados, sendo fuzilado. O
seu gesto atraiu a fuzilaria inimiga para o nosso entrincheiramento. O combate
terminou às onze horas, mais ou menos, as nossas forças ficaram dispersas.
(Salum, 1983, p. 36-37 apud Comin, 2002, p. 31).

Também na imprensa o conflito foi noticiado.

À última hora, pouco antes de encerrarmos esta página, colheu a nossa


reportagem que na Serra do Butiá, no município de Soledade, houve sangrento
combate entre a coluna do Cel. Victor Dumoncel Filho e os rebeldes daquele
município, sob o comando do Cel. Cândido Carneiro Júnior. O Cel. Dumoncel
Filho, depois de ter ocupado a vila de Soledade, onde repôs as autoridades
destituídas pelos revolucionários do vizinho município, sabendo que estes se
haviam retirado em direção a Serra do Butiá, para ali se dirigiu a fim de batê-los.
Na tarde de anteontem, a coluna Dumoncel, que se compõe de cavalaria,
infantaria e artilharia, defrontou-se com o reduto dos revolucionários, que
estavam bem entrincheirados, travando com eles violento combate, que durou
algumas horas, terminando com o cair da noite. Aproveitando-se desta, os
revolucionários retiraram-se em rumo ignorado, deixando no campo de luta,
segundo as informações que colhemos 52 mortos. A coluna Dumoncel teve 6
mortos, entre eles, um 1º tenente da Brigada Militar, pertencente ao regimento
presidencial e diversos feridos. (Jornal Da Serra, Carazinho, Combate em Soledade,
15 SET 1932, p. 4).

Podemos identificar a existência de grupos políticos distintos existentes na região do


Planalto gaúcho. Soledade representava um grupo oposicionista ao poder estadual, o outro grupo
era liderado por Victor Dumoncel Filho, liderança política de Cruz Alta. Victor Dumoncel exerceu
700

as funções de subchefe de polícia da 3ª Região, com sede em Passo Fundo, cargo designado
diretamente por Flores da Cunha, entre os meses de outubro de 1931 e novembro de 1932. Foi
exonerado do cargo em 26 de novembro de 1932283, assumindo, no mesmo dia, o cargo de Prefeito
Municipal de Cruz Alta. Permaneceu apenas noventa dias na função de prefeito. Em janeiro de
1933, voltou a assumir a subchefatura de polícia da 7ª Região, com sede em Cruz Alta, “em cujo
exercício administrou plenamente o domínio político até 27-10-37, quando lhe foi concedida a
exoneração requerida por ocasião da renúncia do governador Flores da Cunha.” (Félix, 1987, p.
161). Ainda sobre a composição dos grupos políticos, identificamos a atuação de Valzumiro Dutra,
que desempenhou o cargo de subchefe de polícia a partir de 1933, com sede em Passo Fundo.
Essas lideranças políticas locais estariam cada vez mais associadas a Flores da Cunha. Podemos
visualizar uma formação de forças do PRL na região, sendo Soledade um foco oposicionista.

Segundo Trombini (2010, p. 29), outros corpos provisórios estavam sendo arregimentados
em diversas localidades do estado com o propósito de combater as forças do governo, entre esses
estariam Barros Cassal, Espumoso e Lajeado, que se dirigiam para integrar o grupo originado em
Soledade. Informação mencionada também por Almeida, “[...] Eu regressei, à noite ao meu
acampamento no Rincão de Santo Antônio, com a incumbência de entrar em entendimento com
o coronel Antenor Lemos, que estava acampado em Campo Branco, município de Lajeado, com
300 homens armados, que segundo constava, desejava fazer incorporação com a coluna.” (Almeida,
1999, p. 65).

Em Encantado também ocorreu manifestações em apoio à causa constitucionalista. Gino


Ferri expôs as divergências que propiciaram o posicionamento político-militar assumido pelo
município em prol da causa da constitucionalização. O prefeito coronel José Rodrigues Sobral,
“reuniu os subprefeitos dos distritos, lideranças municipais e outras pessoas que, numa histórica
reunião, decidiram apoiar a causa paulista, mesmo contra o parecer do coronel Sobral.” (Ferri,
1985, p. 82). Encantado não ficou livre das consequências de seu ato. Assim,

[...] a tomada de decisão em apoio ao movimento paulista, contrariando a própria


decisão do Interventor Flores da Cunha, que já se manifestara em permanecer ao
lado de Getúlio Vargas, trouxe graves consequências para o município de
Encantado e para sua população. [...] para Encantado foi enviada uma força
policial, composta por um Corpo Auxiliar da Brigada Militar, oriundo de São
Francisco de Paula e de outras vilas de cima da serra, sob o comando do Coronel
Armando Ribeiro Severo. (Ferri, 1998, p. 65).

283 Ato nº 429 de 22-9-31. Juramento prestado em 02-10-31. Portaria de exoneração de 26-11-32. AVD/SB apud
Loiva, 1987, p. 161.
701

O município de Encantado foi ocupado pelas forças legalistas no dia 20 de setembro de


1932, não oferecendo resistência armada. José Alfredo Schierholt destacou os episódios ocorridos
em Estrela, mencionando a passagem das tropas leais ao interventor que foram combater os
rebelados: “a Revolução Constitucionalista não teve efeitos destruidores em Estrela. Diante de seu
porto, apenas forças da Brigada Militar passaram, para reprimir levantes na zona alta de Lajeado e
Soledade (...)” (Schierholt, 2002, p. 203).

Referindo-se sobre Soledade, Sergio da Costa Franco relatou que,

[...] às margens do Rio Fão, junto ao Passo da Barca, e próximo à embocadura


do Rio Duduia, o grosso da força insurreta foi atacada por um esquadrão do
Regime Presidencial (hoje 4º regime de polícia montada), desenvolvendo-se
renhido combate, que teve a duração de mais ou menos seis horas. Houve
numerosas perdas de parte a parte. Do lado da Brigada Militar, conforme relato
do Cel. Hélio Moro Mariante, pareceram os 2 tenentes João Candido Alves Filho
e Orestes Pereira Marçal, cabo Rivadávia Cardoso dos Santos e soldados
Frederico Brito da Silva e Nestor Osvaldo dos Santos. Foram feridos levemente
o 2º tenente Carlos Leite Candiota, 1 sargento, 1 cabo e 5 soldados. Do lado dos
insurgentes, conforme Jorge de Paula, houve 4 mortos e 8 feridos. (Franco, 1975,
p. 127).

Na obra intitulada Cartas amorosas e outros momentos, Garibaldi Almeida Wedy reproduziu
trechos da caderneta de bolso de Kurt Spalding, participante do Combate do Fão.

Revolução. Principiou em 1º de setembro de 1932, na qual tomei parte como


Tte-Cel. do Estado Maior das Forças do General Cândido Carneiro. Saímos da
Vila no dia 8 de setembro. Estive a 9 de setembro em Ilópolis conferenciando
com o Cel. Sobral. A 12 de setembro tomamos umas rajadas de metralhadoras e
no dia 13 do mesmo mês começou o combate nas margens do Rio Fão e Duduia,
no município de Lajeado. Iniciou-se o combate às 7 horas da manhã, terminando
às 11 e meia, após a nossa retirada lenta. Tivemos 4 homens fora de combate,
mortos, além de mais um morto na noite anterior – o soldado Antônio Pasqual
além de dois homens um preto João Maria e o Capitão Teodolino Ferreira que
ferido na noite de 12 foram a 13 de setembro barbaramente assassinados pelas
forças do Cel. Severo, equipada 130 homens. Depois de minha retirada, estive no
Hospital Estrelense, permanecendo aí 15 dias, ficando mais 14 dias em Estrela, e
20 dias em Porto Alegre, chegando em Passo Fundo a 10 de novembro e na
Soledade a 12 de novembro de 1932. (Spalding apud Wedy, 2003, p. 47-48).

Após derrota no combate do dia 13 de setembro, Cândido Carneiro Júnior, juntamente


com um pequeno grupo de homens que lhe permaneceu fiel, embrenharam-se na mata, e “por
algum tempo ainda conservou gente reunida e disposta à resistência, até que o Interventor Gen.
Flores da Cunha lhe mandou um emissário na pessoa do Dr. Félix Engel Filho, para acertar os
termos da pacificação.” (Franco, 1975, p. 127). O acordo que pôs fim aos combates militares
702

ocorreu no dia cinco de outubro de 1932, no povoado Vitória.284 Na ata dessa pacificação
preliminar lavrada no encontro ocorrido na casa de Giocondo Zanette285, ficou acertado que “o
governo garantia aos rebeldes à volta aos lares, mediante as seguintes condições: 1º - deposição das
armas; 2º - devolução, por parte do senhor General Cândido Carneiro Júnior, da quantia recebida
para organização de um Corpo Auxiliar da Brigada Militar do Estado.” (Franco, 1975, p. 127).
Registrou-se a justificativa de Carneiro Júnior,

[...] que no tocante à quantia que lhe fora abonada para organização de um Corpo
Auxiliar com o efetivo de quatrocentos homens, nessa finalidade havia
dispensado o numerário; que, entretanto, se prontificava a fazer a necessária
prestação de contas; que tinha a alegar o seguinte: achava-se ausente, reunindo
elementos para sua Força, quando se deu a revolta em Soledade; que às instâncias
unânimes das Forças rebeldes e do povo, assumiu o Comando da Revolução; que
a sua fazenda, bem como a de seu irmão, Pedro Carneiro, foram devastadas pelas
forças legais que operaram em Soledade; da sua fazenda, dele General Cândido
Carneiro Júnior, tudo levaram, gado, animais cavalares, porcos, produtos de
lavoura; que em vista disso; entendia e era justo que se fizesse as necessárias
avaliações, para o efeito de compensações. Informou que também seu automóvel
marca Chevrolet, de seis cilindros, fora requisitado pelas aludidas forças. (Franco,
1975, p. 127-128).

Nesse primeiro encontro foi decretada a prisão do general Candoca, por ordem expressa
da Interventoria, sendo o preso autorizado a sair da cadeia somente para assinar escritura de terras
para o Estado, como forma de ressarcimento aos prejuízos gerados pelo seu ato de insubordinação
à frente do comando do 33º corpo provisório.286

No dia 22 de outubro de 1932, em Guaporé, ocorreu um segundo encontro no qual ficaram


estabelecidas as cláusulas definitivas do acordo de paz. (cf. Franco, 1975, p. 128). Porém, mesmo
com a assinatura do acordo, a tranquilidade política não reinou em Soledade, “seguiu-se um longo
período de intranquilidade para os soledadenses que haviam participado do levante. (...) vários
incidentes e conflitos que ocorreram mais adiante, não passaram de reflexos da luta de 1932, dos
ressentimentos e vinganças que desencadeou.” (Franco, 1975, p. 128).

Garibaldi Almeida Wedy, referindo-se aos conflitos de 1932, declarou que “a luta armada
desencadeou, entre os soledadenses, desconfiança, ressentimento e ódio. Enfim, cicatrizes
aparentes, visíveis e permanentes, como consequência da guerra civil, permaneceram como
impressão de uma ofensa ou desgraça em muitos soledadenses.” (Wedy, 1999, p. 31).

284
Hoje município de Maurício Cardoso (RS). Segundo Verdi, o povoado de “Victoria” seria o segundo distrito do
município de Soledade. (Verdi, 1987, p. 83)
285 Verdi, 1987, p. 83.
286 Sobre o encontro do dia 5 de outubro de 1932, cf. Paula, 1972, p. 93; Guerreiro, 2005, p. 74.
703

O conflito trouxe à tona a ruptura política da elite oposicionista de Soledade frente à


interventoria estadual. A rebeldia possibilitou identificar que a localidade não estava totalmente sob
o controle de Flores da Cunha, ou que, pelo menos, existiria significativa parcela da sociedade que
não tinha aderido ao comando do interventor federal. Dessa maneira, a região tornou-se um
problema político para o governo estadual. A rebeldia soledadense teria seu preço. Nos anos de
1933, 1934 e 1935 o município tornou-se palco de inúmeras arbitrariedades e violências cometidas
em nome da política e do poder local, muitas dessas envolveram o grupo político oposicionista,
dentre as quais se destacaram as perseguições aos combatentes em 1932.

As consequências do Combate do Fão para a história política de Soledade

Identificamos uma relação entre o Combate do Fão e os atos de violência política praticados
nos meses subsequentes. A situação pode ser evidenciada através da análise do Livro de Registro
de Portarias de Soledade do período de 1930 a 1933. Nesse período ocorreram alterações no quadro
de funcionários do alto escalão do executivo municipal ou dos que prestavam serviços à prefeitura.

João Carmeliano de Miranda, prefeito municipal e membro do PRL, fora opositor ao


levante político-militar de 1932. No seu governo, oficializou inúmeras exonerações, as quais tinham
em comum a participação dos exonerados com o Combate do Fão. Esse ato deu-se exclusivamente
pelo poder exercido pelo prefeito, através da redação do documento lavrado no Livro de Registro
de Portarias municipal de Soledade. Entre as exonerações estava a de Ângelo Prates de Morais,
então subprefeito do terceiro distrito de Soledade. Sua exoneração ocorreu no dia seis de outubro
de 1932. Segundo registrado no Livro de Portarias, foi possível ler o motivo atribuído para legitimar
a exoneração: “terdes tomado atitude dúbia no movimento revolucionário irrompido neste
município, em 1º de setembro.”287

Outro exemplo da perseguição política imposta aos participantes do Combate do Fão,


colocada em prática pelo PRL em Soledade, pode ser averiguado no caso de Vergílio José Saudim
que, na época, era subprefeito do nono distrito daquele município. Foi sumariamente exonerado.
Consta no Livro de Portaria a causa de sua exoneração: “Comunico-vos que por ato nº 56 de hoje
datado [06/10/1932] do Cel. João Carmeliano de Miranda, fostes exonerado do cargo de
subprefeito desse distrito [9º] em virtude de terdes tomado parte saliente no movimento de rebeldia
deflagrado neste município, no dia 1º de setembro [...].”288 Nesses exemplos, destacamos a rapidez

287
Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 55.
288
Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 56.
704

com que foram executadas as ações, pouco mais de um mês após os conflitos, conduzidos de forma
autoritária pelo prefeito, contando, provavelmente, com o respaldo de Flores da Cunha. Esse foi o
caso da exoneração do subprefeito do 7º distrito. Segundo foi possível averiguar através da
documentação289, a motivação foi represália aos acontecimentos de 1932:

Portaria em 5 de outubro de 1932. Ilmo. Sr. José Antônio de Almeida. 7º distrito.


Comunico-vos que por ato nº 53, de hoje datado, do Cel. Prefeito deste
município, fostes exonerado do cargo de subprefeito desse distrito, em virtude
de estardes implicado no movimento revolucionário irrompido neste município
no dia 1º de setembro de 1932 p. findo. Saúde e fraternidade. (a) Luiz Pinto Vieira
de Matos. Secretário290

Como substituto para o cargo de subprefeito do 7º distrito, o prefeito João Carmeliano de


Miranda nomeou Antônio da Silva Oliveira.291

As exonerações e substituições dos subprefeitos distritais foram intensas. Segundo a


documentação consultada na prefeitura de Soledade, constatamos que ocorreram diversas
nomeações para o cargo de subprefeitos a partir do mês de setembro de 1932. Essas nomeações
efetivaram novos nomes nos cargos em substituição a subprefeitos que foram exonerados por
motivos políticos.

Nos demais distritos que formavam o município de Soledade, também ocorreram


exonerações e novas nomeações. Isto ocorreu com o subprefeito de Jacuizinho, na época 5º distrito
de Soledade.292 Também no 2º distrito ocorreu mudança no cargo de subprefeito, sendo exonerado
Hugo Barroso Itapuca. O motivo alegado para justificar sua exoneração foi o fato de ter “pegado
em armas contra o governo constituído.”293 Podemos perceber, nas entrelinhas desses documentos,
a presença da acusação de traição política direcionada àqueles que se rebelaram contra o Governo
Provisório e contra o interventor. As exonerações foram uma forma de punição por suas opções
políticas. A partir das substituições destes e de outros subprefeitos, pode-se afirmar que o PRL

289 Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 53.


290 Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 54.
291 Portaria em 5 de outubro de 1932. Ilmo. Sr. Antônio da Silva Oliveira. N. Villa. Comunico-vos que por ato nº 54,

de hoje datado, do Cel. Prefeito deste município, fostes admitido nas funções de subprefeito do 7º distrito deste
município, percebendo as vantagens marcadas em lei. Saúde e fraternidade. (a) Luiz Pinto Vieira de Matos. Secretário.
(Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 54).
292 Portaria em 22 de setembro de 1932. Ilmo. Sr. Godofredo Siqueira. Jacuhyzinho, 5º distrito. Comunico-vos que por

ato nº 46, de hoje datado, do Cel. Prefeito deste município, fostes nomeado para exercer efetivamente o cargo de
Subprefeito deste distrito percebendo as vantagens marcadas em lei. Saúde e fraternidade. (a) Luiz Pinto Vieira de
Matos, Secretário. (Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 46).
293 Portaria em 21 de setembro de 1932. Sr. Hugo Barroso Itapuca. Comunico-vos que em virtude de terdes pegado

em arma contra o governo constituído fostes por ato nº 45 de hoje datado, do Cel. prefeito deste município, exonerado
a bem do serviço público, dos cargos de subprefeito e arrecadador do 2º distrito deste município. Saúde e fraternidade.
(a) Luiz Pinto Vieira de Matos, Secretário. (Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 45).
705

ampliou seu domínio político no vasto território compreendido pelo município de Soledade na
década de 1930.

A repressão política aos opositores rebelados não se restringiu aos ocupantes dos cargos de
subprefeitos. Foram vítimas da autoridade e da repressão também aqueles que não tiveram
participação militar efetiva, incluindo os que não lutaram de armas em punho, mas que de uma
maneira ou de outra, direta ou indiretamente, teriam contribuído para a ocorrência do levante
soledadense. Assim, os resultados políticos do Combate do Fão puderam ser averiguados também
em outros setores da administração pública soledadense.

Conforme identificado na portaria número 52, datada de 04 de outubro de 1932, a qual


oficializou que Julio de Oliveria Cheise [?] estava “exonerado do cargo de comissário da 1ª secção
do 1º distrito deste município, em virtude de terdes tomado parte no movimento revolucionário
irrompido neste município no dia 1º de setembro [...].”294 Na portaria datada de 1º de outubro de
1932, consta a exoneração de Olmiro Porto que na época exercia a função de tesoureiro da
prefeitura. O motivo alegado: “por estar provado que estavas envolvido no movimento
revolucionário, no dia 1º de setembro [...].”295 Por fim, destacamos a portaria número 43, de
10/09/1932, através da qual foi exonerado Pedro Correia Garces que exercia a função de
secretário-geral do município. Nesse mesmo documento, consta a exoneração de Euclydes Mota,
então funcionário da prefeitura municipal. Conforme o documento, dentre os rebelados estavam
pessoas que ocupavam cargos da administração pública municipal, como teria sido o caso de
Euclydes Mota.296

Apontamentos finais

O estudo do Combate do Fão contribui para ampliarmos o estudo da história política do


Rio Grande do Sul, e também, para analisarmos as relações de poder no âmbito local. Com a
realização da microanálise podemos identificar questões de conflitos políticos do âmbito nacional
no cenário local, ou seja, identifica-se os conflitos entre Flores da Cunha e a oposição gaúcha,
estando uma parte dela presente em Soledade e liderando o conflito militar. Pode-se também

294 Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 52.


295 Livro de Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 47.
296 Ato nº 43 - 10 de setembro de 1932. O coronel João Carmeliano de Miranda, prefeito do município de Soledade,

usando das atribuições que lhe são conferidas em lei, e, em virtude do movimento de rebeldia deflagrado neste
município, no dia 1º de setembro corrente, resolve demitir dos cargos de secretário geral do município e datilógrafo
acumulando as funções “contriamo” (?), respectivamente os cidadãos Pedro Correia Garces e Euclydes Mota, o
primeiro por não lhe merecer confiança e o segundo por estar incorporado a grupos revolucionários que visa alterar a
ordem e o sossego de quantos vivam honestamente trabalhando neste município registre e publique-se. (Livro de
Portarias, Soledade – RS – 1930-1933 – ato nº 43).
706

identificar o jogo político entre Flores da Cunha e Getúlio Vargas, sendo que o ao se posicionar ao
lado de Vargas foi identificado como traidor pelos opositores da ditadura varguistas também
existentes no Rio Grande do Sul. Enfim, podemos com o estudo aqui realizado perceber que ainda
existe muitas questões para serem analisadas sobre os efeitos, digamos assim, da política da era
Vargas no âmbito local.

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Wedy, Garibaldi Almeida. Cartas amorosas e outros momentos. Porto Alegre: Renascença, 2003.
708

Os pergaminhos musicais da lírica profana galego-portuguesa:


materialidade, desafios e propostas

Felipe Ferreira de Paula Pessoa*

Resumo: A tradição manuscrita da lírica profana galego-portuguesa legou poucos testemunhos


referentes aos aspectos musicais das cantigas trovadorescas. Entre eles, destacam-se os
pergaminhos Vindel e Sharrer, únicos exemplos de cantigas de amigo e de amor que registram
notação musical. Esta comunicação aborda as principais questões acerca da materialidade desses
manuscritos e os desafios de analisar essas fontes. Propõe-se ainda uma abordagem que
compreende as cantigas como manifestação do político. As evidências que esses pergaminhos
apresentam no campo musical e também na performance são aspectos importantes que ajudam a
compreender melhor o cenário político do qual fazem parte.

Palavras-chave: Pergaminho Sharrer, Pergaminho Vindel, notação musical, música, política


medieval.

A poesia lírica trovadoresca marcou a cultura da nobreza ibérica entre o final do século XII
e a primeira metade do século XIV. Trovadores e jograis emularam o gaio saber provençal e, junto
às tradições regionais, criaram uma expressão artística de grande impacto nas cortes senhoriais e
régias em língua galego-portuguesa. Dessa produção, chegaram até nós cerca de 1680 cantigas de,
aproximadamente, 187 trovadores, em sua maioria dos reinos de Portugal, Leão e Castela. Elas são
convencionalmente distribuídas entre três gêneros principais: os cantares de amor, aqueles em que
o eu lírico masculino inicia a cantiga e, geralmente, expõe sua coita à senhor; os de amigo, em que o
eu lírico feminino expressa seus lamentos de saudade à natureza, à mãe ou a uma companheira; e
de escárnio e maldizer, nos quais os trovadores satirizam acontecimentos, grupos e personagens da
aristocracia, ora de forma mais sutil e encoberta, ora de forma mais direta e personalista. Entretanto,
as cantigas revelam um processo criativo bastante fluido por parte dos trovadores, não se limitando
às fronteiras que tais classificações tendem a encerrar.

A totalidade dessa produção poética nos foi legada por meio de três grandes compilações
manuscritas que, atualmente, recebem o nome da respectiva biblioteca na qual estão guardadas. O
mais antigo e o único coevo à produção trovadoresca é o Cancioneiro da Ajuda (A), confecionado,
provavelmente, entre o último quartel do século XIII e o primeiro do século XIV. Trata-se de uma

*Doutorando no PPGHIS-UnB, participante do PEM-UnB e professor do Centro de Educação Profissional Escola


de Música de Brasília (CEP-EMB).
709

compilação em pergaminho inacabada, contendo apenas 310 cantigas de amor de uma fase de
expansão e sedimentação da arte de trovar na Península Ibérica.297 O cancioneiro não apresenta
índice ou indicação de autoria, porém, cada seção de composições de um novo trovador é aberta
por uma iluminura, representando uma situação de performance.

Figura 1 - Cancioneiro da Ajuda

Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt, fl. 58. Acesso em: 15 out 2020

Em seu projeto original, o manuscrito foi pensado para conter, além da poesia, as
respectivas melodias em notação musical, o que não foi realizado em virtude de se tratar de um
projeto inacabado. Por consequência, é possível identificar o espaço reservado para a música, mas
sem as devidas notas e tampouco a pauta musical.

297 Sobre a tradição trovadoresca peninsular, ver a síntese de Santos, Carla Sofia dos. A difusão ibérica da linguagem dos
trovadores galego-portugueses. Tese de doutoramento em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos defendida na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2016, p. 27 – 70.
710

Figura 2 - Cancioneiro da Ajuda

Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt, fl. 44. Acesso em: 15 out 2020.

Além deste, outros dois cancioneiros compreendem o repertório da lírica galego-


portuguesa: o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Portugal (B) e o da Biblioteca Apostólica
Vaticana (V). Trata-se de códices cartáceos confeccionados no século XVI a mando do humanista
italiano Angelo Colocci, e são cópias de um códice modelo anterior, cujas relações com o
Cancioneiro da Ajuda ainda são incertas. (Tavani, 2002, p. 98-124). Ambos apresentam uma recolha
mais ampla da arte dos trovadores ibéricos, sendo que B é o mais abrangente e conta ainda com o
fragmentado e incompleto tratado “A Arte de Trovar” em sua introdução. Ademais, nele
encontramos a referência autoral das cantigas, rubricas explicativas e apontamentos nas margens,
muitos dos quais atribuídos ao próprio Colocci. Por sua vez, V é composto também por um índice
que ficou conhecido como Tavola Colacciana (C), que, em grande parte, corresponde às atribuições
em B.

Não obstante, nesses cancioneiros se encontram apenas os textos poéticos. Sabemos que
as cantigas ganhavam publicidade por meio do canto, podendo conter, ou não, a participação
711

instrumental, questão, esta, ainda bastante debatida nos meios acadêmicos. Em contraposição às
tradições trovadorescas transpirenaicas, constituídas por testemunhos melódicos em quantidade
significativamente superior (Zumthor, 1993, p. 36; Aubrey, 2000, p. 26), o corpus profano da lírica
galego-portuguesa conta apenas com treze cantigas com a respectiva notação musical, transmitidas
por dois pergaminhos que levam o nome de seus descobridores: Vindel e Sharrer. Para melhor
compreendermos os aspectos musicais das cantigas e de suas performances, abordarei agora
algumas questões acerca da materialidade dessas fontes.

Entre o som e a notação

O primeiro a ganhar publicidade na comunidade acadêmica foi o pergaminho descoberto


por Pedro Vindel, contendo sete cantigas de amigo, seis delas com notação musical. Sua descoberta
foi publicada em 1915, acompanhada por uma reprodução fotográfica de cada cantiga,
separadamente (Tavani, 2002, p. 85-86). A forma como foi reproduzido por Vindel fez com que
diversos pesquisadores reconhecessem esse pergaminho como um exemplar em galego-português
das classificações propostas por Gustav Gröber para explicar a primeira fase de registro e circulação
da poesia trovadoresca. Entretanto, o fato do pergaminho pertencer a uma coleção particular, de
acesso muito restrito, impediu que essa interpretação fosse discutida e acabou por perdurar durante
boa parte do século XX, levando à identificação do manuscrito, a partir de sua suposta natureza
física, com sigla R. Após sua inserção na coleção da Pierpont Morgan Library298, em 1977, o
pergaminho tornou-se novamente acessível aos pesquisadores, abrindo caminhos para novas
discussões.299

Tal possibilidade permitiu ao musicólogo Manuel Pedro Ferreira realizar uma minuciosa
pesquisa sobre o manuscrito, cuja publicação ofereceu também uma reprodução fotográfica em
cores e em tamanho original, além do fac-símile e da edição crítica (Ferreira, 1986). Por sua vez,
esse estudo revelou que não se tratava de um rolo, mas de um bifólio escrito apenas do lado da
carne, o que reforçou a proposta do pesquisador de que se trata de um fólio volante que, ao dobrar-
se sobre si mesmo, possibilita a circulação independente.

298A partir dessa inclusão, o pergaminho também passou a adotar a sigla N, referente à sua localização.
299A discussão sobre a interpretação deste pergaminho, sua materialidade e circulação foram abordadas por Ferreira,
M. P. Ler o Pergaminho Vindel: suporte; textos; autor. In: Lopes, G. V.; Ferreira, M. P. (eds). Do Canto à Escrita: Novas
questões em torno da lírica galego-portuguesa – nos cem anos do Pergaminho Vindel. Lisboa: IEM/CESEM, 2016, p.
19 – 28.
712

Assim, as cantigas encontram-se dispostas em duas colunas de cada lado, apresentando a


primeira estrofe de cada cantiga com a respectiva melodia escrita em pentagrama de linhas
vermelhas e em notação quadrada, à exceção da sexta cantiga, cujas notas estão ausentes. As demais
estrofes aparecem dispostas em versos pontuados ao final e precedidos de uma letra capitular.

Figura 3 – Pergaminho Vindel

Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt. Acesso em: 15 out 2020.

Em contrapartida, o pergaminho Sharrer (T) foi descoberto somente em 1991 pelo


pesquisador norte-americano Harvey Sharrer no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, quando,
então, servia de contracapa a um livro do Cartório Notarial de Lisboa (Sharrer, 1993, p. 13 – 29).
Nele, as sete cantigas de amor do rei D. Dinis, de Portugal, em estado bastante fragmentado, são,
igualmente, o único testemunho do gênero.

Foi também o professor Manuel Pedro Ferreira quem apresentou as primeiras conclusões
musicológicas desse material e, em 2005, publicou uma substancial edição crítica, contendo, da
mesma forma, fotografias coloridas, fac-símile e suas transcrições (Ferreira, 1991, p. 35 – 42).
Diferentemente do pergaminho Vindel, as cantigas do Rei Trovador estão em um fólio escrito a
ambos os lados, de superlativas dimensões e que, provavelmente, fez parte de um códice mais
amplo.
713

Figura 4 e 5 - Pergaminho Sharrer, reto e verso

Fonte: http://cantigas.fcsh.unl.pt. Acesso em: 15 out 2020.

Como observa a pesquisadora María Gimena del Río Riande, o manuscrito apresenta as
cantigas dispostas em três colunas, algo pouco comum se comparado a outros cancioneiros ou aos
códices marianos (Río Riande, 2011, p. 192). Suas especificidades, contudo, não acabam aí. De
modo semelhante aos demais cancioneiros, a primeira estrofe está associada com a pauta musical.
Todavia, as estrofes seguintes não estão dispostas em verso, mas em texto corrido escrito em gótica
textualis, letra não usual aos manuscritos literários, mas com presença marcante na chancelaria régia
dionisina (Río Riande, 2011, p. 216-217).

Tal característica, assim como a ausência de ornamentos nas capitulares e de iluminuras,


reforça a hipótese de Río de que o códice ao qual este fólio pertenceu não se assemelha
materialmente a um cancioneiro régio. Pelo contrário, apresenta características de um scriptorium
pouco acostumado com este labor e mais devotado à documentação administrativa. Em
convergência com essas conclusões, acreditamos que há uma proximidade entre o pergaminho
Sharrer e os cancioneiros B e V, uma vez que as cantigas estão na mesma ordem e apresentam
semelhanças quanto à sua grafia. Porém, não seria este um cancioneiro principal, da mesma
qualidade de A, em decorrência de sua simplicidade e composição, tratando-se, senão, de um
cancioneiro secundário. Como sintetiza Río,

De todos modos, a pesar de que el aspecto de T [Sharrer] condeciría con el de


borrador o prueba, con respecto a su relación con BV, no ha de olvidarse que
“aquele códice andava muito próximo de S, pelo menos para as sete cantigas e
714

possivelmente para o cancioneiro completo de D. Dinis”. Así, el hecho de que


TBV compartan el uso de la mayor parte de las mismas abreviaturas, errores de
copia, y, en algunos casos, determinados rastros de puntuación, se hace difícil
pensar en demasiadas etapas intermedias anteriores entre fines del siglo XIII y la
recolección llevada a cabo por el hijo bastardo de Don Denis, el Conde Pedro de
Barcelos, antes de mediados del siglo XIV. (Riande, 2011, p. 217)

Temos, portanto, um testemunho que nos ajuda a estreitar os laços entre a tradição
manuscrita coeva aos trovadores e os cancioneiros italianos seiscentistas.

Apesar das diferenças quanto à elaboração e forma de circulação, os pergaminhos


apresentam algumas relações importantes no que tange aos aspectos paleográficos e estilísticos.
Em ambos, o estilo de notação musical semi-mensural quadrada – que indica elementos relativos
do ritmo, mas não sua proporção exata – aproximam-no da notação utilizada nos cancioneiros
occitânicos, por um lado, mas possuem distinções significativas se comparadas às utilizadas nos
códices das Cantigas de Santa Maria, também devedoras da mesma tradição.300

Estilisticamente, contudo, apresentam diferenças marcantes entre si, como demonstram as


conclusões de Manuel Pedro Ferreira acerca da distinção musical equivalente aos respectivos
gêneros, suas estruturas e ornamentação. Dessa maneira, os padrões melódicos encontrados no
pergaminho Vindel contêm elementos que aproximam as cantigas de amigo de tradições regionais
populares e, consequentemente, também compartilhados em algumas melodias do cancioneiro
mariano. Em contraposição, as cantigas de amor de D. Dinis indicam uma maior influência do
canto de corte das tradições transpirenaicas. Segundo Ferreira,

a ornamentação melódica em Codax aparece-nos espontânea, em consonância


com processos tradicionais de composição e vocalização, enquanto as cantigas
de D. Dinis, ao submergirem o melisma ocasional num estilo claramente florido,
sugerem uma vontade de saturação ornamental que implica a solenização estética
da sua produção pessoal [...]. (Ferreira, 2009, p. 174)

É importante reforçar, contudo, que o processo de criação, memorização e circulação das


cantigas é, essencialmente, marcado pela oralidade. Alguns indicativos dessa forma de transmissão
estão inscritos nos pergaminhos. Como a cuidadosa análise paleográfica de Río revelou, tanto em
N como em T a melodia é marcada por barras que dividem a notação musical e os versos. A
estudiosa sugere que esta seria uma forma de auxiliar o intérprete na elaboração de sua

300Essa questão foi desenvolvida por Manuel Pedro Ferreira no artigo Understanding the Cantigas: Preliminary steps.
In: Plesch, Melanie (ed.). Analizar, interpretar, hacer música: de las Cantigas de Santa María a la organología. Buenos Aires:
Gourmet Musical Ediciones, 2013, p. 130 et seq.; e Ferreira, M. P. Cantus Coronatus: 7 Cantigas d’El-Rei Dom Dinis.
Kassel: Reichenberger, 2005, p. 49 – 53.
715

performance, relembrando-o sobre elementos da métrica e da articulação (Río Riande, 2011, p.


217).

Contudo, esses testemunhos materiais nos trazem alguns elementos melódicos e as


aproximações rítmicas de algumas cantigas de amigo e de amor. O som da performance dos
trovadores permanece, nestes documentos, ainda incompleto. Qual o timbre da voz adequado? O
tempo? Como se dá precisamente a articulação e o fraseado? Essas e outras questões ficarão,
possivelmente, no campo da especulação.

Conforme colocado anteriormente, o cancioneiro da Ajuda possui um conjunto de 16


iluminuras em que estão representados trovadores, jograis e jogralesas. Apesar da efervescente
polêmica quanto ao uso ou não de instrumentos musicais acompanhando as vozes, uma vez que
nenhum cancioneiro faz referência à harmonia, essas iluminuras ainda podem ser bastante
exploradas para se compreender melhor o contexto de performance. Reforçam ainda o estudo do
som dos trovadores, um conjunto de cantigas que apresenta, por meio da sátira aos jograis,
elementos que caracterizam uma boa performance, como a apresentação, o entendimento, a
memorização, a capacidade de ornamentar a melodia e uma voz jovem e aguda.301

Os pergaminhos, assim como os cancioneiros, estão disponíveis nos sítios dos respectivos
acervos e também na base de dados Cantigas Medievais Galego Portuguesas, criação do projeto
Littera, do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa (IEM/FCSH),
organizada sob a supervisão de Graça Videira Lopes e de Manuel Pedro Ferreira. Ainda assim,
acredito que, em se tratando da tipologia documental referida, o contato direto com as fontes pode
contribuir muito para a análise e compreensão de elementos extratextuais.302

A política medieval nas cantigas: uma performance jurídica

O foco que procuro dar à performance não consiste em propor uma reconstrução
historicamente informada, como demanda o campo artístico ao analisar essas fontes. Tampouco
almejo apresentar uma nova leitura filológica. Acredito que a performance pode esclarecer alguns
aspectos do papel que as cantigas tiveram na sociedade medieval, em especial, no campo da política.

301 Este tema foi aprofundado em outro artigo, ainda no prelo. Pessoa, Felipe. A performance nas cantigas galego-
portuguesas: desafios entre a oralidade e a tradição manuscrita trovadoresca.
302 Em estágio sanduíche realizado no final de 2019 (Bolsa CAPES – PDSE) – infelizmente interrompido devido à

situação da pandemia do Covid-19 – pude ter contato apenas com o Cancioneiro da Biblioteca Nacional. O acesso ao
Pergaminho Sharrer e ao Cancioneiro da Ajuda não foi autorizado em tempo hábil.
716

As cantigas eram apresentadas nas cortes senhoriais e régias, espaços que reúnem a nobreza
e onde o exercício do poder político ganha publicidade entre a aristocracia. Entre os trovadores
com maior número de composições registradas nos cancioneiros, D. Dinis foi o sexto monarca da
dinastia fundadora, reinando entre 1279 e 1325. Seu governo é visto pela historiografia tradicional
como expressão de um poder forte e centralizado, opondo-se aos poderes senhoriais centrífugos.
Tal interpretação, no entanto, fundamenta-se em um modelo de Estado-nação oitocentista que
serviu de baliza para a historiografia tradicional, representada, em Portugal, por autores como
Veríssimo Serrão, Oliveira Marques e José Mattoso.

De maneira diversa, procuro me aproximar da própria dinâmica política medieval para


tentar elucidar um cenário mais complexo e matizado do exercício do poder. Para tanto, a cultura
política corporativa se mostra como uma perspectiva mais operativa, uma vez que possibilita
compreendermos nuances do poder que outrora ficaram obliteradas pela interpretação centralista.
Bastante difundido na historiografia sobre a Idade Moderna (Hespanha, 1994, p. 300; Coelho,
2014), o modelo corporativo não deixa de reconhecer o destaque do monarca nas relações de
poder. Porém, diferentemente do modelo centralista e monopolista, o monarca não governa
sozinho, mas com os diferentes corpos políticos que compõem, juntamente com o rei, a política
medieval. Essa perspectiva que ressalta a pluralidade de corpos que configuram e disputam o espaço
político estende-se para além das fontes jurídicas ‘oficiais’, mostrando que o político está presente
nas mais diversas manifestações sociais.

À luz de tais argumentos, acredito que as cantigas também podem ser consideradas como
uma manifestação do político. Quando a dama assume o papel de senhor perante o trovador,
entendido, então, como seu vassalo, as cantigas compartilham o campo semântico jurídico e
político do feudalismo e encarnam um modelo moral e comportamental. Postas em performance
nas cortes, constituem “atos de fala303”, discursos em ação que constroem direitos.

Portanto, ao ler as cantigas como uma forma também de se dizer o direito é possível
problematizar o papel que elas tiveram na corte de D. Dinis. Compreender o som e a performance
das cantigas possibilitará elucidar as formas como elas constituíam uma expressão jurídica e política
e, em especial, como o rei utilizou suas trovas para governar. Para tanto, os caminhos indicados
pelos pergaminhos Vindel e Sharrer, assim como o Cancioneiro da Ajuda, são fundamentais para
se pensar o contexto de performance e compreendermos a forma de ação desse discurso.

303 Referimo-nos à proposta de Pocock, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EdUSP, 2003.
717

Referências

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Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: <http://purl.pt/15000>. Acesso em:


20 nov 2020.

Coelho, M. F. C. Revisitando o problema da centralização do poder na Idade Média. Reflexões


historiográficas. In: Nemi, Ana; Almeida, Néri de Barros; Pinheiro, Rossana (org.). A construção da
narrativa histórica. Séculos XIX e XX. 1ed.Campinas: Ed. UNICAMP, 2014, p. 39-62.

Ferreira, Manuel Pedro. O som de Martin Codax: Sobre a dimensão musical da lírica galego-
portuguesa (séculos XII – XIV). Lisboa: UNISYS/Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.

_______________________. Cantus Coronatus: 7 Cantigas d’El-Rei Dom Dinis. Kassel:


Reichenberger, 2005.

______________________. Estrutura e ornamentação melódica nas cantigas trovadorescas. In:


Ferreira, M. P. Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular, vol. 1: Música Palaciana. Lisboa:
Imprensa Nacional/ Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, p. 150 – 174.

______________________. Understanding the Cantigas: Preliminary steps. In: Plesch, Melanie


(ed.). Analizar, interpretar, hacer música: de las Cantigas de Santa María a la organología. Escritos in
memoriam Gerardo V. Huseby, Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2013, p. 127 – 152.

______________________. Ler o Pergaminho Vindel: suporte; textos; autor. In: Lopes, Graça
Videira; Ferreira, Manuel Pedro (eds). Do Canto à Escrita: Novas questões em torno da lírica
galego-portuguesa – nos cem anos do Pergaminho Vindel. Lisboa: IEM/CESEM, 2016, p. 19 –
28.

Hespanha, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Coimbra: Almedina, 1994.

Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-). Cantigas Medievais Galego Portuguesas
[base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Último acesso
em 15 de agosto de 2020. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>. Acesso em: 20 nov
2020.

Mongelli, Lênia Marcia. Fremosos Cantares: Antologia da lírica medieval galego-portuguesa. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.

Oliveira, António Resende. Depois do espetáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros


peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV. Lisboa: Colibri, 1994.

Pergaminho Sharrer (T). Disponível em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185713. Acesso


em: 20 nov 2020.

Pocock, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: EdUSP, 2003.

Río Riande, Mª Gimena del. La transmisión material de la lírica profana galego-portuguesa:


contribuición a la descripción codicológica y paleográfica del manuscrito o fragmento de Torre
718

do Tombo o Pergaminho Sharrer. In: Lopez, Manuel Salamanca (dir.). La materialidad escrita:
nuevos infoques para su interpretación. Oviedo: IEPC, 2011, p. 187 – 229.

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Lisboa: Cosmos, 1993, p. 13 – 29.

Tavani, G. Trovadores e Jograis: Introdução à poesia medieval galego-portuguesa. Lisboa: Caminho,


2002.

Zumthor, Paul. A letra e a voz. A literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
719

Metodologia e fontes: Relações sociais de uma família escrava em


São José dos Pinhais

Fernanda Nascimento de Brito*

Resumo: O presente trabalho é resultado de uma pesquisa realizada para a monografia de


graduação em História pela Universidade de Brasília (UnB). A pesquisa propôs reconstruir as
relações sociais que uma família escrava estabeleceu através do batismo. Para isso foi necessário
recorrer às fontes de batismo de São José dos Pinhais em Curitiba, final do século XVIII, registros
estes estão armazenados no Laboratório de História Social da UnB. A nossa proposta é apresentar
como a metodologia foi utilizada para reconstruir a trajetória dessa família, como as fontes foram
exploradas por meio do método onomástico e da micro-história.

Palavras chave: família escrava, escravizados, microhistória, batismo, apadriamento.

Introdução

Ao explorar as fontes de Curitiba do final do século XVIII foi encontrado um caso, em São
José dos Pinhais, de uma escravizada apadrinhada pelo próprio senhor. Tal evento despertou
interesse, pois a presença de senhores batizando seus próprios escravos era um evento incomum.
Bacellar descreve que era raro um senhor apadrinhar o seu próprio cativo, pois o padrinho possuía
a função de proteger o afilhado, enquanto o senhor tinha o papel de punir, sendo assim, dois papeis
não eram incompatíveis (Bacellar, 2011, p. 2). Hameister observou que, na Vila do Rio Grande, os
filhos dos senhores ou as suas esposas frequentemente apadrinhavam os escravos, mas o senhor
raramente batizava o seu próprio cativo. Por isso, ao encontrar um registro de batismo achou-se
interessante analisar as redes sociais construídas pelos pais da criança através do batizado. Para isso
foi necessário explorar as fontes de batismo e reconstruir essas redes sociais.

As contribuições desses autores sobre o tema fizeram com que despertasse o interesse para
conhecer vínculos sociais desses sujeitos históricos. As indagações levantadas ao longo da pesquisa
foram muitas, por exemplo, quais pessoas eram escolhidas para serem padrinhos/madrinhas dos
outros filhos do casal? Eram escravos, forros, senhores? Porém, o intuito desse artigo é apresentar

*Graduada em História pela Universidade de Brasília e atualmente é mestranda em História Social na Universidade de
Brasília.
720

ao leitor quais foram às ferramentas utilizadas para alcanças os resultados, mas antes disso é
necessário descrever rapidamente sobre batismo e apadrinhamento.

Segundo Luna e Klein a família escrava e as suas relações sociais foram importantes para
os escravizados sobreviverem ao sistema escravista (Luna; Klein, 2010, p. 30). Diante dos escritos
desses atores, acreditou-se ser necessário conhecer mais a fundo os relacionamentos construídos
pelo casal de escravos, Tomazia e Ventura, que teve sua filha apadrinhada pelo próprio senhor,
Antonio de Souza Pereira.

O banco de dados

As fontes de batismo estão armazenadas no banco de dados do Laboratório de História


Social (UnB). Nesse sistema podemos encontrar registros de dotes, venda e compra de escravos,
doação de terras, petições. Tais documentações foram transcritas e revisadas por professores e
estudantes.

O banco de dados foi essencial para a realização dessa pesquisa, pois além possuirmos as
transcrições das fontes, é possível o acesso a imagem da fonte. O banco tem duas tabelas, na
primeira temos as informações inseridas em categorias, como o nome do pai, nome da mãe, nome
do padrinho, senhor do pai, senhor do padrinho. Na segunda tabela são inseridas informações
variadas que casualmente aparecem em alguns registros de batismos, por exemplo: qual família
pertencia o padrinho ou com quem ele era casado (Guedes; Fragoso, 2016, p 300-301).

De acordo com Gil, é necessário ter duas tabelas, pois algumas fontes de batismo possuem
muitas informações ricas que vão além de detalhes como os nomes dos envolvidos, em algumas
ocasiões temos informações sobre a condição social dos pais, como é o caso da forra Clara.
(Guedes; Fragoso, 2016, p.301).

Figura – Registro do banco de dados “paty”

Fonte: Banco de dados “paty”


721

A figura 1 é uma imagem retirada do banco de dados usado pela autora para realizar a
pesquisa de conclusão de curso. É possível observar que nas categorias senhor pai e senhor mãe
não existem nenhuma informação se o casal é escravo da criança nomeado como Antonio. Já na
segunda tabela temos informações complementares que nos ajudam a determinar se essas pessoas
eram forras, escravos, administrados, livres. É necessário ressaltar que o banco de dados também
apresenta a transcrição das fontes, porém a intenção é apresentar ao leitor a importância dessas
tabelas para a construção da pesquisa.

Figura 2 - Registro do banco de dados “paty”

Fonte: Banco de dados “paty”

Na segunda tabela, elencada logo acima, Clara é registrada como forra administrada de
Antonio de Souza, mas não sabemos se qual a condição social de Cirilo. Apesar de ter essas
informações nas transcrições, o uso das tabelas para a realização da pesquisa deu agilidade ao
processo e auxiliou o cruzamento de dados. Nessa ata de batismo de 1798, Clara foi classificada
como forra da administração de Antonio de Souza Pereira, mas nos registros batismais anteriores,
ela é descrita como escrava de Antonio de Souza Pereira.

Clara e Cirilo tiveram nove filhos que foram registrados em atas de batismos. Nos anos de
1775, 1777, 1780, 1782, 1784, 1788, 1791 e em 1794, Clara foi identificada como escrava Antonio
de Souza Pereira. Entretanto, no registro de 1798, ela é classificada como forra do seu antigo
senhor. Nos primeiros oitos anos, Clara é apresentada como escrava de Antonio de Souza Pereira,
mas apenas em apenas em 1798 ela é definida como forra. Nesses registros oito primeiros registros,
ela é classificada como escrava, mas ela tem a condição de forra e administrada apresentada apenas
na última fonte.

Na tese desenvolvida por Machado, é apresentado que no Paraná a mão de obra servil era
formada por indígenas (administrados), africanos, criolos, que conviviam, compartilhavam o
mesmo plantel e realizavam as mesmas tarefas. Machado apresenta uma fonte na qual o termo
“administrado” foi registrado, mas é ressaltado que o termo estava desatualizado. Em depois de
722

1755, os indígenas que eram libertos ou administrados foram considerados forros, pois a
administração particular havia sido extinta (Machado, 2006, p. 284 - 285).

Machado elucida que “administrado” é uma nomenclatura que foi mantida por muito
tempo no Paraná, pois o ato de capturar e escravizar indígenas se manteve e foi garantido até o
início do século XIX (Machado, 2006, p 285). Tais informações auxiliaram a compreender o motivo
de ambos terem sidos classificados como escravos, forros e administrados. Em 1775, no registro
de batismo Joaquim, filho do casal, Cirilo foi descrito como administrado e durante a pesquisa essa
foi à única fonte encontrada na qual ele é administrado.

A proposta não é levantar questionamentos ou responde-los, mas apresentar ao leitor como


o banco de dados foi usado para explorar as fontes de batismo. Além disso, numa dissertação de
mestrado a autora propõe tratar esse tema mais afundo. Por outro lado, é importante destacar que
o modo como a plataforma “paty” é organizada e as ferramentas de busca de dados auxiliaram na
revelação dessas informações. É importante ressaltar que o cruzamento de fontes foi uns dos
principais recursos para a busca de informações sobre esses agentes históricos.

A forma como o banco de dados é organizado, as tabelas e as ferramentas de busca


possibilitaram o encontro de informações sobre Clara e Cirilo que talvez pudessem passar
despercebidas. Num primeiro momento, Clara e Cirilo poderiam ter sidos categorizados como
escravos de descendência africana, mas ao explorar as fontes e cruzá-las esse erro não ocorreu.

A metodologia

Para a realização da pesquisa os principais métodos utilizados foram o onomástico e a


micro-história. Ginzburg descreve o método onomástico como o fio condutor da pesquisa, pois
por meio dele é possível reconstruir famílias, estratégias matrimoniais e outras relações sociais.

[...] Isso permite selecionar nomes de camponeses e nomes de lugares que


podemos procurar com maior esperança de sucesso nos outros arquivos
(registros paroquiais e cadastros) onde deveriam estar contidos, em princípio, os
nomes de todas as famílias e de todas as propriedades. Por um processo análogo
é possível reconstituir, com base em autos notariais, as estratégias matrimoniais
de famílias aliada e afins. O percurso da investigação pode ulteriormente alongar-
se procurando nos arquivos eclesiásticos (episcopais) as autorizações de
casamento entre consanguíneos. O fio condutor é, mais uma vez, o nome.
(Ginzburg, 1989, p. 174- 175).
723

Durante a pesquisa foi realizado a reconstrução de relações sociais e o principal recurso


para reconstruir a trajetória de pessoas escravizadas foi o nome. Primeiramente, foi encontrada a
ficha de batismo da criança Lucaria, a qual teve a devida atenção por ser a uma escrava apadrinhada
pelo próprio senhor. Logo após, o interesse em descobrir quais pessoas eram pais espirituais dos
seus irmãos, pois Lucaria foi filha do casal, Tomazia e Ventura, e ambos tiveram quatro filhos. A
descoberta desse caso em São José dos Pinhais, no final do século XVIII, levantou questões sobre
quais pessoas eram padrinhos/madrinhas dos filhos do casal.

O banco de dados foi usado para descobrir se Tomazia e Ventura foram padrinho ou
madrinha. Em apenas um registro batismal Tomazia foi apresentada como madrinha de José, filho
de Clara e Cirilo, e Ventura não foi registrado em nenhuma fonte como padrinho. Com a
descoberta que Tomazia foi madrinha de José, foi preciso descobrir se o casal, Clara e Cirilo, eram
escravos, forros, administrados. Pois um dos objetivos era saber quais pessoas o casal construiu
relações por meio do batismo.

O nome de Tomazia e do senhor Antonio de Souza Pereira foram o fio condutor da


pesquisa. Com esses nomes os registros dos filhos do casal de escravos foram localizados e
possibilitou descobrir quais pessoas foram os padrinhos das crianças cativas.

Figura 3 – Registro do banco de dados “paty”

Fonte: Banco de dados “paty”

A Figura 3 é o registro de batismo da criança Lucaria, batizada por Antônio de Souza


Pereira. É possível visualizar diversas categorias, entre elas “senhor mãe” e “mãe”. Essas duas
informações foram importantes para reconstruir a vivência desse casal. O banco de dados
possibilita a realização de busca pelo nome da mãe ou do senhor. Tal ferramenta foi utilizada para
encontrar registros de batismo nos quais Tomazia aparecia como escrava de Antonio de Souza foi
registrada. Essa explicação é para apresentar como o método onomástico foi usado para relatar a
trajetória dessa família.
724

Por meio do nome, descobriu-se que Ventura não era um escravizado nascido no Brasil,
mas ele era um africano trazido para o país. Nas atas de batismo ele era nomeado como Ventura
Gentio de Guiné, Ventura de nação Angola ou Ventura Benguela. Mattos descreve que havia a
utilização desses termos genéricos para designar que aquele escravizado era de origem africana.
(Mattos, 2006, p.91). Para Luna e Klein, muitos africanos foram definidos pelos portos onde foram
vendidos. Tais designações genéricas dificultam ou impossibilitam saber se indivíduos ou grupos
tinham uma linguagem, cultura, religião em comum. (Luna; Klein, 2010 p.29)

A imagem abaixo é da segunda tabela do registro de batismo de Lucaria, pode-se notar que
Ventura possui a informação de “gentio de Guiné”, é certo que se trata da mesma pessoa, pois em
todas as atas de batismo ele é casado com Tomazia e é escravo de Antônio de Souza.

Figura 4 – Registro do banco de dados “paty”

Fonte: Banco de dados “paty”

Descobrir que Ventura era um africano foi importante para a analise dessa família. Pois
os relacionamentos constituídos por escravizados africanos e pelos demais escravos possuíam as
suas particularidades. Para Hameister, os laços espirituais construídas por meio do batismo geravam
um parentesco das relações interrompidas em África pela captura. (Hameister, 2006, p.316).
Hipóteses foram levantadas ao saber a origem de Ventura, talvez o casamento com uma escravizada
nascida no Brasil e o batismo fosse uma forma de se integrar ao meio em que vivia. Duvidas e
questionamentos também foram levantados, será que africanos era preteridos para serem
padrinhos? O casamento poderia ser um meio usado para se inserir na comunidade? Questões as
quais iremos explorar numa dissertação de mestrado.

Até aqui foi apresentando ao leitor o uso do método onomástico junto ao banco de dados,
mas também é preciso descrever sobre à micro-história. Para o leitor que não tem familiaridade
com o uso da metodologia na área de história, acredita-se ser necessário enfatizar que essas
ferramentas são utilizadas mutuamente, não há divergência entre si. É conveniente que o leitor
compreenda que as ferramentas e os métodos são utilizados de modo simultâneo pelo pesquisador,
o entendimento disso faz com que o leitor compreenda a complexidade dessa pesquisa.
725

Para Levi, “a micro-historia como uma prática é essencialmente baseada na redução da


escala da observação, em uma análise microscópica e um estudo intensivo do material documental.”
(Burke, 1992, p.136). Assim, pode-se observar que Levi descreveu exatamente o que foi feito nessa
pesquisa. Para reconstruir as relações construídas pelo casal, Tomazia e Ventura, foi preciso reduzir
a escala de observação e debruça-se nas fontes de batismo, as quais tinham registros sobre o casal,
a fim de compreender os seus relacionamentos com outras pessoas.

Ao analisar as fontes de batismo intensamente conseguiu-se reconstruir as relações criadas


pelo batismo. Tomazia e Ventura tivera como compadres e comadres um casal de escravos, seu
próprio senhor, filha de um senhor de escravos. Com isso, é possível notar que o casal realizou
relações fictícias com escravizados e pessoas com o status social superior ao deles. Uma dessas
pessoas foi Maria, descrita como solteira e filha de Manuel Vaz Torres, na ata de batismo de Rafael,
Maria é madrinha da criança.

Figura 5 – Registro do banco de dados “paty”

Fonte: Banco de dados “paty”

Na Figura 5, Maria tem como informação ser filha de Manuel Vaz Torres, essa descrição
foi explorada para descobrimos ser Maria fazia parte de uma família que possuía escravos ou não.
O pai de Maria, Manuel Vaz Torres, era um senhor de escravos que possuía uma escravaria grande.
Portanto, Maria fazia parte de um estrato social superior ao de Tomazia e Ventura.

Segundo Luna e Klein, as pessoas livres teriam mais estrutura e recursos para proteger os
seus afilhados e as madrinhas escravas poderiam dar assistência as suas companheiras de cativeiro.

[...] ao considerarmos o contexto das relações próprias à escravidão colonial, no


qual o topo da estrutura social era ocupado pelo “homem livre”, que se
sobrepunha ao “homem escravo”. Portanto, os homens, principalmente os livres,
teriam maiores recursos para proteger e atender seus afilhados. Poderiam, em
alguns casos, conceder-lhes a alforria. De qualquer modo, o fato de as madrinhas
escravas serem quase tão comuns quanto às livres deve ser entendido como um
indicativo da provável importância da assistência das companheiras de cativeiro
às mães e suas frágeis crianças (Luna; Klein, 2010, p. 234)
726

Os autores prosseguem relatando que os padrinhos e madrinha podiam inserir os afilhados


à sua estrutura familiar e ajudá-los. Por isso, conhecer os agentes históricos que foram comadres e
compadres de Tomazia e Ventura. E assim, com a redução de escala foi possível reconstruir as
redes sociais e saber quais pessoas foram madrinhas e padrinhos dos filhos desse casal, com isso
foi possível levantar hipóteses e entender quais estratégias poderiam ter sido criadas pelos
escravizados para amenizar as mazelas da escravidão.

Conclusão

Durante a pesquisa reconstruiu-se as relações familiares e as redes sociais desses


indivíduos para compreender qual o status social deles naquela sociedade. Com a análise dos
padrinhos e madrinhas que participaram dos batismos dos filhos de Ventura e Tomazia, foi possível
entender como o casal estabeleceu seus relacionamentos com escravos, senhores, administrados.

Existe a pretensão de analisar mais profundamente a região curitibana para procurar


entender como os escravizados formavam as suas redes sociais através do batismo, investigar quais
pessoas eram frequentemente escolhidas para serem padrinhos ou madrinhas e buscar
compreender quais supostos benefícios essa relação proporcionaria aos envolvidos.

Fontes
Livros de batismo 1 de São José dos Pinhais

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728

À terceira margem: políticas públicas de memória no Brasil pós-


ditadura (1985-2015)

Fernanda R. Abreu Silva*

Resumo: Este artigo trata-se de uma breve síntese da pesquisa de doutorado ainda em andamento
sobre as políticas públicas de memória executadas no Brasil entre as décadas 1990 e 2010.
Considerando a Lei de Anistia como uma importante chave analítica para o processo de
redemocratização do país, tendo orientado as ações de memória, verdade e justiça ao longo desse
período, desenvolvemos termo política pública de silenciamento visando compreender as negociações
em torno da elaboração dessas medidas. Para tal, utilizamos entrevistas de História Oral com atores
presentes em diversos cargos e momentos relevantes da política institucional, a fim de entender
como ocorreram os seus processos de tomada de decisão.

Palavras-chave: Justiça de Transição, Cultura Política, Políticas Públicas de Memória, Ditadura


civil-militar brasileira, Redemocratização.

Introdução

O objetivo desta pesquisa é examinar as políticas públicas de memória elaboradas pelo


Estado brasileiro entre as décadas de 1990 a 2010, especialmente no que tange ao Executivo federal,
bem como compreender os processos de tomada de decisão dos atores envolvidos com a
formulação e execução dessas políticas. Para tal, como fontes primárias, foram utilizadas até o
momento 25 entrevistas elaboradas na metodologia da História Oral, concedidas por ativistas
políticos, ministros, deputados e secretários de direitos humanos envolvidos com a criação e
implementação dessas políticas públicas de memória.

Compreendemos que a Lei de Anistia orientou todo o processo político brasileiro, logo
gerando uma noção de impunidade na qual prevaleceu a insuficiência de políticas públicas voltadas
ao esclarecimento da verdade e da justiça. O historiador Carlos Fico (2012, p. 29) comenta sobre o
sentimento de frustração resultante do longo processo de abertura política que, sendo "lento,
gradual e seguro", seguiu sob o controle do governo e não proveio das manifestações sociais que
ansiava por democracia. A frustração seria, então, uma chave analítica possível para entender a
"transição inconclusa" do Brasil em que, inclusive, os governos da Nova República tiveram

*Graduada em História pela UFRJ, mestre em História pela UNIRIO e doutoranda em Direito pela PUC-Rio, com
período de estágio na Georgetown University (EUA). O presente trabalho é realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). E-mail: fernandaabreu2@gmail.com.
729

dificuldades para “impor a necessária proeminência civil do governo democrático”(2012, p. 32–


33).

Buscamos assim construir a noção de política pública de silenciamento para caracterizar o


processo de divulgação e acesso à memória da ditadura brasileira durante o período de
redemocratização, tendo em mente que, embora tenha havido uma movimentação do Estado em
prol de políticas e medidas de memória, estas permaneceram circunscritas aos grupos diretamente
afetados, como familiares e ex-perseguidos políticos, e movimentos de defesa de direitos humanos.
Assim, afastando-se da sociedade como um todo, de modo que esta não se percebe lesionada pelas
arbitrariedades do autoritarismo, tampouco os seus efeitos.

Considerando que a ausência ou ineficácia de políticas públicas pode ser entendida como
uma política pública em si, a hipótese aqui defendida é que essa ineficácia de políticas públicas de
memória sobre a ditadura brasileira no período da redemocratização seria uma política pública de
silenciamento, que reforçaria a narrativa da “página virada”. Isto é, o silenciamento seria parte da
agenda governamental pós-ditadura.

O termo política pública de silenciamento se dá, pois, uma vez que não se trata de um
apagamento completo em que as vozes dissonantes não tenham espaço algum, mas sim de uma
ação deliberada do Estado de permitir que essas vozes ecoem controladamente. Ou seja, a
“memória dos vencidos” permanece ativa, porém circunscrita aos espaços em que não possam
causar maiores efeitos e não agrega a sociedade em sua completude. Discretos avanços são
permitidos conforme a força da pressão exercida pelos grupos diretamente interessados e,
sobretudo, conforme a condição política pela qual o país esteja enfrentando. No entanto, em nome
de uma suposta governabilidade – fruto do medo do confronto com os setores conservadores –, o
Estado direciona qualquer avanço ao silêncio ao não envolver a sociedade.

Transição controlada e cultura política brasileira

Para analisar a memória coletiva brasileira concernente ao período ditatorial, é necessário


indagar como ocorreu a transição para a democracia; qual era o cenário político e quais atores o
protagonizaram; qual foi o mote condutor do processo e, por fim, quais marcas foram impressas
na sociedade. Nos trinta anos que se passaram desde a promulgação da Constituição Federal de
1988, as narrativas em torno do período ditatorial estiveram em constante conflito: memórias
oficiais e subterrâneas, públicas e privadas. Entre as narrativas mais presentes no imaginário
brasileiro, destacam-se a memória dos militares e seus apoiadores; a memória dos atingidos
730

políticos pela repressão e a memória que se apropria de parte de ambas anteriores em busca de um
possível consenso.

A noção de memória do consenso, desenvolvido pelo filósofo Edson Teles (Teles, 2015),
caracteriza a narrativa que iguala os movimentos de resistência à força do Estado, enquanto
minimiza as graves violações cometidas pelos agentes civis e militares a serviço do governo
autoritário – algo próximo à chamada teoria dos dois demônios. Dessa maneira, a memória
consensual normaliza a violência cometida pelos representantes do Estado ao apontar uma suposta
“minoria que teria cometido excessos”.

Dentro dessa perspectiva, a sociedade como um todo se aparta da discussão e é colocada


numa posição passiva de modo que não se percebe parte tanto dos que oprimiram quanto dos
oprimidos. O distanciamento da sociedade em relação à memória dos atingidos pela repressão
provoca uma apatia ou indiferença de maneira que a discussão permanece apenas entre os grupos
de militantes, os familiares de mortos e desaparecidos e os movimentos de defesa dos direitos
humanos.

Porém, não é possível ignorar os avanços obtidos durante os anos da administração do


Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo entre 2007 e 2014, após o início da chamada virada
hermenêutica303 da Comissão de Anistia. Durante esse período de aproximadamente sete anos, houve
uma inflexão nas políticas e medidas públicas de memória, capitaneado especialmente pela criação
e condução da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

No entanto, apesar do esforço dos atores sociais envolvidos, essas ações ainda não
conseguiram trazer a totalidade da sociedade para o centro do debate, seja por dificuldade de
alcançar os diversos grupos sociais, por inadequação de linguagem ou acesso, seja pela crise política
e econômica iniciada às vésperas da entrega do relatório final da CNV em dezembro de 2014.
Diversos são os possíveis motivos que provocaram o alijamento da população geral do importante
trabalho de memória do passado autoritário que se iniciava. Talvez o mais importante seja a
permanência de forças políticas conservadoras partidárias da aqui denominada ‘memória dos
militares’ mesmo em governos progressistas com avanços na defesa dos direitos humanos –

303O grande turning point das discussões sobre memória e verdade iniciou em 2007, no segundo governo Lula, com a
entrada de Tarso Genro no Ministério da Justiça e a posse de Paulo Abrão na Comissão de Anistia – juntamente com
Paulo Vannuchi, que ocupou a Secretaria de Estado de Direitos Humanos de 2005 a 2010. De acordo com a
historiadora Glenda Gathe, houve um redirecionamento das orientações da Comissão de Anistia, a partir desse
momento, voltado a políticas de memória, com destaque para alguns projetos: Anistia Política: educação para a
democracia, cidadania e direitos humanos; o Memorial da Anistia Política e o Marcas da Memória. Ver mais em (Alves,
2015).
731

presididos por atingidos políticos, como o caso de Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula
da Silva e Dilma Rousseff.

O que explicaria a continuidade desses grupos nas esferas de poder? Se os conservadores


permanecem no campo político como atores ativos em prol da memória dos militares, o que
explicaria o aumento mesmo que modesto das políticas públicas de memória elaboradas
especialmente entre os anos da administração do PT? De que maneira, no meio dessa disputa de
narrativas, foi possível abrir espaço para uma Comissão da Verdade ou para projetos como o
Marcas da Memória? Se houve esse avanço, ainda é possível falar em política pública de silenciamento?

Para tentar responder essas e outras perguntas que surgiram ao longo da pesquisa, lançamos
mão do conceito de cultura política amplamente divulgado no Brasil pelo professor dr. Rodrigo
Patto Sá Motta (Motta, 2013), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – tendo sido
criado por cientistas sociais estadunidenses em meados do século XX e redescoberto por
historiadores recentemente. Motta iniciou a aplicação dessa categoria de análise em busca de
compreender as peculiaridades do autoritarismo no/do Brasil, principalmente na última ditadura
civil-militar. Em seu livro As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização
autoritária (Motta, 2014), o autor se dedicou a examinar como e por que a repressão contra
acadêmicos contou com estratégias de acomodação de modo que durante a expansão das
universidades no (paradoxal) projeto modernizador do governo ditatorial, muitos professores
considerados “esquerdistas” permaneceram nos seus cargos ou foram contratados naquele período.
Nesse estudo, Motta condensou a sua compreensão do conceito de cultura política que vem
trabalhando desde a década de 1990, em que mostra abordagens conciliatórias, negociações e
valores políticos como patrimonialismo e personalismo – pontos que serão melhor desenvolvidos
mais adiante.

Ele sintetiza o conceito de cultura política como:

Conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por


determinado grupo humano, expressando identidade coletiva e fornecendo
leituras comuns do passado, assim como inspiração para projetos políticos
direcionados ao futuro (Motta, 2013, p. 11).

Através desse conceito, o autor argumenta alguns pontos que podem auxiliar na discussão
aqui proposta, como por exemplo, que a cultura influencia as ações e decisões políticas. Sob essa
perspectiva, os atores políticos não agem somente a partir de escolhas e decisões puramente
racionais, mas também atuam com base em sentimentos como medos e paixões; guiam-se por
mitos construídos; mobilizam-se por noções de família e religião. A cultura política, portanto, é
732

algo que exerce alguma influência nas decisões dos atores, mas não é puramente determinista. O
poder de decisão permanece intacto, não está acima das escolhas individuais que um sujeito tem
frente às opções que lhe são apresentadas; pelo contrário, os aspectos culturais podem exercer
grande ou pouca influência de acordo com o background de cada indivíduo.

No Brasil, houve uma "transição controlada" conduzida pela ditadura brasileira para evitar
o tensionamento da sociedade a partir de uma lei de autoanistia para dar continuidade ao regime.
E, conforme Abrão e Torelly (2012), "ampla destruição de arquivos públicos dos centros e órgãos
de repressão para tentar apagar vestígios e responsabilidades individuais pelas graves violações aos
direitos humanos". Ao guiar a transição controlada, o Estado se apoiou no preceito de reconciliação
como justificativa para não conduzir políticas e medidas reparadoras, considerando o período
ditatorial como uma "página virada" na história do país.

Nesse ponto, utilizamos o conceito de ideologia da reconciliação, do historiador catalão Ricard


Vinyes (2015), na qual o diálogo não surge e, a memória por ela criada, seria a memória única, a
história única, que retira a voz do atingido:

É um instrumento de assimilação, sua vocação é devorar qualquer elemento


antagônico e expandir as certezas absolutas em que se sustenta por meio de ritos
e símbolos que, mais que uma história (uma verdade provisória), comemoram
uma memória tranquilizadora, em geral a memória de um êxito conseguido após
sofrimento e vontade (Vinyes, 2015, p. 226).

Inserida nesse contexto, a lei de anistia foi sancionada pelo Estado que, por sua vez, era
também o perpetrador; convencionou-se assim iniciar a transição de forma controlada justamente
para evitar maiores tensões entre a sociedade e o regime. O projeto aprovado pelo Poder Legislativo
não era o proposto pela sociedade civil que tanto se articulou no período, sobretudo através dos
Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs). Os movimentos sociais pleiteavam, juntamente a um
grupo de parlamentares, uma anistia que fosse "ampla, geral e irrestrita" aos que foram perseguidos
políticos e, concomitantemente, que houvesse apuração e responsabilização pelas violações aos
direitos humanos. Enquanto a anistia, para o Estado, representou o esquecimento do passado.

Dessa maneira, inicialmente, a lei de anistia tinha como finalidade promover o


esquecimento das violações aos direitos humanos cometidas pelos agentes estatais durante as
ditaduras (Bauer, 2011). Propiciar o esquecimento, portanto, implica em garantir a impunidade aos
atos passados e a imunidade às futuras investigações.

A historiadora Caroline Bauer (2014) comenta ainda que o alcance da Lei de Anistia de
1979 é maior que o impedimento do processo penal contra os perpetradores, pois ao conceder
anistia recíproca, determina o controle sobre a memória do passado vetando a possibilidade de
733

conhecer os "não-fatos" (Mate, 2011, p. 56). Consequentemente, a anistia recíproca valida a


"ideologia da reconciliação". Como sugerido por Vinyes (2015), desconsiderar o conflito é tê-lo
como superado. Não significa necessariamente que o esteja, basta agir como se estivesse. Trata-se
de se apropriar da passagem do tempo para que os problemas do passado se esgotem.

Isso, decerto, tem consequências na continuidade da violência das forças de segurança


pública como prática cotidiana, além do caráter conservador do Poder Judiciário. Para José Carlos
Moreira da Silva Filho (2011), nesse contexto de transição inacabada, é comum que se recorra à
noção de reconciliação nacional para impossibilitar o avanço das políticas de memória e reforçar a
política do esquecimento. Portanto, o papel da memória é considerável e evidente nessa conjuntura
de esquecimento.

Assim, para este estudo, considera-se que as leis de anistia e reparação se inserem no debate
da memória a partir do momento em que, através delas, o Estado compõe sua agenda de políticas
públicas voltadas para o esquecimento ou não das arbitrariedades cometidas. Desta forma, apesar
de indicar a década de 1990 como marco inicial para a pesquisa, não nos furtamos de incorporar
eventos anteriores - como a Lei de Anistia de 1979 e a promulgação da Constituição de 1988. À
vista disso, é elementar que se discuta como as políticas públicas no país foram pensadas,
propositadas e executadas.

A relevância das políticas de memória no contexto da justiça transicional se dá conforme o


Estado assume, ao lembrar e reparar, sua responsabilidade quanto aos crimes cometidos contra os
opositores, que ali exerciam direitos de resistência. E, também, assume um esforço no sentido de
consolidar uma narrativa de não-repetição.

As sociedades autoritárias se caracterizam por negar a memória; não se trata apenas de


lembrar ou ignorar o passado, as políticas de memória são responsáveis por manter ativa a
democracia restabelecida. A memória é, portanto, um meio efetivo de contribuição para uma
transformação dentro do processo transicional. Ao interferir e influenciar na memória social do
país, poderá afinal promover uma verdadeira mudança na conjuntura política brasileira. As políticas
de memória representam a aceitação da permanente luta por consolidar e aperfeiçoar a democracia
brasileira, tendo em mente os percalços deste caminho. É importante que toda sociedade esteja
envolvida nesse processo de rememoração do passado e planejamento e execução de ações
afirmativas para o presente e futuro.
734

Privatização da memória

A lei nº 9.140/1995 que instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos


Políticos (CEMDP) durante o governo Fernando Henrique ditou a forma como seria conduzida a
questão da memória da ditadura – e as suas implicações – seria tratada dali em diante. Apesar do
reconhecimento como mortas pessoas desaparecidas por conta de suas atividades políticas ter sido
uma demanda e importante vitória dos familiares para seguirem suas vidas em aspectos
burocráticos, e apesar de ter criado a CEMDP como um órgão de reconhecimento e localização
de pessoas mortas e desaparecida, a lei nº 9.140 também determinou que os esforços voltados para
comprovação da perseguição sofrida fossem dos próprios familiares – sem sequer sugerir a abertura
de arquivos oficiais aos mesmos.304

Ao determinar que o ônus da prova fosse dos familiares sem indicar a abertura dos arquivos
para livre investigação, sem indicar qualquer prevenção à repetição do crime de desaparecimento
forçado, o Estado sinalizou que esse assunto deveria continuar na esfera privada, familiar, de modo
a não alcançar a sociedade como um todo. O Estado optou em manter a discussão circunscrita aos
grupos diretamente afetados fazendo com que a identificação da “vítima” recaísse apenas neles,
afastando a sociedade do entendimento de ser ela própria uma vítima da ação do Estado, não
apenas aqueles que foram atingidos diretamente. Portanto, a sociedade deixa de se perceber como
vítima da ditadura e se aparta do debate, enquanto o Estado garante políticas públicas somente aos
atingidos diretos e, dessa forma, mantém a matéria num espaço de controle.

O historiador catalão Ricard Vinyes (2015) nomeou esse fenômeno como privatização da
memória, em que a “reclusão da memória na esfera privada acarreta a negativa de criar um espaço
público de diálogo e ressignificação de memórias”. Quando se torna uma questão estritamente
individual, a sociedade não tem participação e se mantém alijada; assim, o Estado nada precisa fazer
enquanto atuação pública e o exime de agir em função do conjunto:

Privatizar não é outra coisa que extrair a memória da história e despojá-la de


sentido, metê-la na cozinha e anular sua presença do empenho coletivo, evitar o
reconhecimento da marca humana nas instituições. (...) O silêncio não era
esquecimento, mas sim o resultado de uma privatização da memória, um cenário
que não só rompe todos os laços entre indivíduo e história, como também entre
reponsabilidade e política, o que no meu modo de ver é mais sério, se possível

304Sobre isso, José Carlos Moreira da Silva Filho comenta: “É, portanto, um contrassenso o Estado brasileiro, agora,
exigir provas documentais quanto a uma perseguição política que ele mesmo promoveu e da qual jamais permitiu que
fosse produzido ou viesse à luz algum documento ou registro oficial” (Silva Filho, 2009, p. 137)
735

pois reduz os cidadãos a clientes (eleitores?) (Vinyes, 2016, p. 374–375). (tradução


livre).305

Ora, se a função primordial de uma política pública de memória por sua definição é que o
Estado assuma a responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos (Bauer, 2011, p. 214)
ocorridas durante a ditadura por meio de seus agentes e, assim, atuar nos processos de construção
de identidades coletivas sociais e políticas (Brito, 2009, p. 72), a lei nº 9.140 não cumpriu esses
objetivos adequadamente. A principal lei voltada à temática à reparação pelos crimes cometidos
pelo Estado ditatorial, que reconheceu os mortos e desaparecidos políticos, que balizou a condução
das reparações nas décadas seguintes, é a mesma lei que direcionou e manteve toda discussão no
seio privado.

Edson Teles, ele próprio atingido pela repressão quando criança e familiar de mortos e
desaparecidos políticos, comenta que a lei nº 9.140 estimula o discurso da reconciliação e reforça a
interpretação de que houve um conflito não acabado entre dois lados radicalizados (Teles, 2018, p.
40). Para ele, essa estratégia de ação dos governos democráticos ocorre pela suposta
desestabilização que uma “revanche” poderia causar, desta forma submete-se a uma política do
possível alicerçada na retórica da reconciliação (Teles, 2018, p. 41). O medo de uma nova ruptura
política seria a justificativa necessária pelo Estado de “fazer apenas o que fosse possível” no que
tange às demandas de memória e verdade, afastando a possibilidade de justiça.

Em consequência da ausência da obrigação do Estado em expandir a discussão dos mortos


e desaparecidos para além da esfera privada e alcançar os mais diversos grupos da sociedade com
a garantia do direito à justiça e à verdade, Caroline Bauer afirma que a lei nº 9.140 não pode ser
considerada uma política pública de memória (Bauer, 2014, p. 163). Seria então uma medida de
reparação, visto que demarcou que a busca pelas circunstâncias das mortes e desaparecimentos era
de responsabilidade dos familiares requerentes da reparação e não do Estado propriamente. Indica
ainda que pode ser considerada uma segunda anistia, já que apesar de reconhecer a responsabilidade
das mortes e desaparecimentos, o Estado não engendrou mecanismos para investigar e punir os
perpetradores.

Já a historiadora Carla Luciana Silva discorda desse posicionamento pois compreende que
“o descompromisso com a justiça é também uma ‘política de memória’, política pública de estado,
deliberada e com um sentido claro, o esquecimento” (SILVA, 2015, p. 365). Edson Teles, por sua

305“Privatizar no es otra cosa que extraer la memoria de la historia y despojarla de sentido, meterla en la cocina y anular
su presencia del empeño colectivo, evitar el reconocimiento de la huella humana en las instituciones. (…) El silencio
no era olvido sino más bien el resultado de una privatización de la memoria, un escenario que no solo rompe todos los
lazos entre individuo e historia, sino también entre responsabilidad y política, lo que a mi modo de ver resulta más
grave si cabe, puesto que reduce los ciudadanos a clientes (¿electores?)”.
736

vez, manifesta que tanto a “Lei de mortos e desaparecidos” (nº 9.140/1995), quanto a lei de criação
da Comissão de Anistia (nº 10.559/2002), apesar de representar avanços no reconhecimento do
Estado, seriam concomitantemente políticas de memória e políticas de silêncio:

Em ambas, na Comissão de Mortos e Desaparecidos e na Comissão de Anistia,


foram raros os momentos em que as vítimas puderam construir narrativas sobre
a violência sofrida e o modo como compreendiam a história do país. (...) Foram
sempre ações limitadas pelos interesses da lógica de governo e com pouco
protagonismos dos sujeitos destes direitos ou dos movimentos sociais envolvidos
(Teles, 2018, p. 46).

Consideramos então que o termo mais adequado seja política pública de silenciamento, pois,
como já comentado, não se trata de um apagamento completo do dissenso, mas sim um controle
deliberado exercido sobre as narrativas existentes. Desse modo, haveria uma permissividade para
que a “memória dos vencidos” continue presente no cenário político desde que tenha seu alcance
limitado, diminuído, de maneira que não provoque maiores efeitos.

Fontes primárias

Foram analisados os depoimentos recolhidos pelos projetos "Marcas da Memória: história


oral da anistia no Brasil" (2010-2013), realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
"Arqueologia da Reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticas públicas relativas à
violação de direitos humanos durante a ditadura militar” (2014-2016), elaborado pelo Centro de
Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas
(CPDOC/FGV) e, por fim, o projeto “Ciclo Memória, Movimentos Sociais e Direitos Humanos”
(2019), realizado pelo Núcleo de Memória e Direitos Humanos do (CMV-UFRJ).

As entrevistas realizadas pelo projeto "Marcas da Memória" abrangem diversos grupos


sociais de atingidos pela repressão política; passando por estudantes, sindicalistas, guerrilheiros a
familiares e religiosos. Sendo assim possível perceber as nuances da memória, como ressalta o
italiano Alessandro Portelli, através da análise do massacre de Civitella, a memória dividida: seja em
mais de uma narrativa "oficial", seja em narrativas comunitárias e de resistência. Alcançando a
reflexão de que a memória não é um bloco maciço, mas se materializa como um conjunto de
manifestações complementares. Retira a definição dicotômica e apresenta uma "pluralidade
fragmentada de diferentes memórias" (Portelli, 1996, p. 128).

Por sua vez, o projeto "Arqueologia da Reconciliação" aponta a um panorama institucional,


uma vez que conta com testemunhos de ministros da Justiça, secretários nacionais de Direitos
737

Humanos, de representantes de Comissões da Verdade e membros de grupos sociais como o


Grupo Tortura Nunca Mais. A partir dessas entrevistas, buscamos compreender os processos
decisórios institucionais que resultaram em políticas públicas de memória e na legislação referente
às medidas transicionais do país; além de refletir sobre sua dimensão reparadora.

Já as entrevistas realizadas pelo Núcleo de Memória e Direitos Humanos, vinculado à


Comissão de Memória e Verdade da UFRJ (CMV-UFRJ), mesclam ambos os perfis de
entrevistados dos acervos anteriores. Inclusive, alguns dos depoentes dos outros projetos
participaram novamente deste último, realizado no primeiro semestre de 2019, possibilitando assim
uma atualização dos posicionamentos desses atores políticos.

Conclusões parciais

Dentre as conclusões parciais alcançadas até o presente momento, notamos que a


participação de setores da sociedade civil, especialmente de atingidos políticos, como os familiares
de mortos e desaparecidos políticos, foi essencial para impulsionar o avanço ainda que tímido das
políticas de memória no país. Além disso, percebemos também que dentro de um contexto de
disputas de memórias houve a adoção de uma lógica de acomodação/negociação por parte do
Estado e seus representantes, mesmo estes advindo da militância política. Inclusive, algo muito
presente é multiplicidade de papéis exercidos pelos atores políticos, transitando entre militância e
atuação dentro das instituições governamentais.

Outro ponto relevante é que, embora tenha havido um ponto de inflexão na implementação
das políticas entre os anos 2007 e 2014 e de um esforço por memória e verdade nesse período,
estas não foram suficientes para abarcar a totalidade da sociedade brasileira de maneira a mobilizar
amplamente as disputas para além da memória consensual. E, por fim, foi possível identificar a
presença constante de atores herdeiros do período ditatorial no cenário político democrático,
defendendo seus interesses e, sobretudo, influenciando nas dinâmicas do processo de tomada de
decisão dos formuladores de políticas públicas.

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739

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740

O histórico de lutas pelos direitos trabalhistas do positivismo

Francisco Quartim de Moraes*

Resumo: Neste texto trabalhamos com uma das fontes filosóficas da CLT normalmente não
atribuída. Investigamos a defesa dos direitos trabalhistas feita pelo positivismo no Brasil desde os
primeiros livros positivistas publicados até o governo Vargas. Também fazemos um breve resumo
da influência do positivismo na família de Vargas e no ambiente no qual ele foi criado.

Palavras-chave: positivismo, CLT, Vargas, direitos trabalhistas, fascismo.

Introdução

De longe, o mais constante lugar comum das críticas dirigidas contra a Consolidação das
Leis do Trabalho por intelectuais e políticos de amplo leque ideológico (dos liberais de direita na
tradição da UDN a liberais de centro-esquerda, ligados ao PSDB e ao PT) é a de que ela teria se
baseado na Carta del Lavoro de Mussolini. A acusação constante de inspiração fascista tem nos
dias de hoje a função de categorizar a CLT como antiquada e nefasta, afim de ocultar a redução
máxima dos direitos trabalhistas. Historicamente, a Consolidação foi associada ao “atrelamento”
dos sindicatos ao Estado, à estrutura vertical unitária, ao imposto sindical e à ideia de
corporativismo.

Curiosamente os defensores da CLT hoje em dia são em sua maioria identificados com a
esquerda e com o movimento comunista. Mas foram justamente os comunistas quem primeiro
fizeram esta acusação.

A primeira referência que encontramos que comparava a legislação de Vargas ao fascismo


partiu da Federação Operária de São Paulo306 em 1931, mais de uma década antes da promulgação
da CLT:

*Doutorando no Programa de Pós Graduação em História Econômica da FFLCH-USP.


306
Os comunistas no ano de 1931 padeciam de uma visão extremamente obreirista e insurrecional, faziam franca
oposição ao governo de Getúlio Vargas e só reveriam esta posição em 1946, mas foi realmente no último governo
Vargas (1951-1954) que eles passaram a apoiá-lo. Para mais informações sobre os comunistas nos anos 30 ver Moraes,
1932 A história Invertida, 2018. Em especial o subcapítulo: Pela ordem e contra o comunismo: A esquerda no levante
de 1932.
741

Considerando que a lei de sindicalização (....) visa a fascistização das organizações


operárias (....); considerando que o Estado carece de autoridade para interpretar
fielmente as necessidades dos trabalhadores e, por consequência, o espírito de
luta existente, entre os produtores e os detentores dos meios de produção, e que
a sua ingerência neste caso, por parte do Estado, terá sempre um caráter
partidário de classe (A Burguesia); (....) A Federação Operária resolve: a) não
tomar conhecimento da lei que regulamenta a vida das associações operárias; b)
promover uma intensa campanha nos sindicatos por meio de manifestos,
conferências, etc., de crítica à lei; c) fazer, mediante essa campanha de reação
proletária, com que a lei de sindicalização seja derrogada. (Munakata, 1984, p. 26).

Lembra Arnaldo Süssekind, um dos autores da CLT, que depois do levante de 1935 e da
repressão feita pelo Estado aos comunistas, passou-se a atacar com ainda mais veemência a
legislação promulgada por Vargas. Mas Süssekind deixa a ressalva que já faz muito tempo que o
ataque à CLT é feito pelos liberais e que os comunistas passaram a defendê-la. (Biavaschi, 2005, p.
131).

Foi o deputado e professor de direito paulista Waldemar Ferreira quem deu o primeiro
impulso teórico à comparação com o fascismo, abrindo larga polêmica com Oliveira Vianna que
escreveria o livro Problemas do Direito Corporativo em resposta a estas acusações. Retornaremos a esta
polêmica mais à frente cabendo a nós agora apenas apresentar esta questão cronologicamente.

O debate segue pertinente pois ganhou hoje ares de verdade do senso comum307, crescendo
em proporção nos últimos anos com o ataque sistemático à legislação trabalhista, culminando na
recente extinção do Ministério do Trabalho. Mudou-se também o caráter da acusação. Antes, os
adversários da CLT acusavam-na de se inspirar na Carta del Lavoro; passaram agora a dizer que
aquela deriva desta outra. É o caso de Marcos Lisboa, presidente do INSPER e ex diretor do
Unibanco, que assim pretendeu explicar a origem da CLT: “Para amenizar as relações de trabalho,
Vargas introduziu uma legislação trabalhista derivada da legislação fascista italiana(...)”308. Outros
foram ainda mais longe acusando-a de ser uma “cópia ipsis litteris” da Carta de Mussolini309. O
cúmulo da falsificação histórica ficou por conta do Ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo
Guedes, anunciando que o governo dele vai abandonar a “legislação fascista da CLT”310. A
afirmação está no nível do baixo padrão intelectual, da penúria cultural e do extremismo de direita

307 A recorrência desta acusação é tão grande e generalizada que se digitarmos “CLT insp” nos mecanismos de busca
da internet imediatamente os logaritmos completam com “inspirada na Carta del Lavoro”.
308 Entrevista ao Valor Econômico publicada no dia 10 de agosto de 2007.
309 Frase do Deputado Estadual e produtor rural filiado ao PSL Frederico D´Avila no programa Roda Viva (T.V.

Cultura) do dia 25/06/2018


310 https://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/7850674/guedes-diz-que-governo-democratico-vai-

abandonar-legislacao-fascista-da-clt 02/01/2019
e https://odia.ig.com.br/economia/2019/02/5618321-guedes-volta-a-chamar-clt-de--fascista--e-defende-nova-
modalidade-de-contratacao.html 07/02/2019
742

do governo de que Guedes faz parte (consideram por exemplo que o nazismo era de esquerda). O
único sentido objetivo dessa afirmação é que o ministro e seus parceiros continuarão a fazer
fascismo sem legislação trabalhista.

Impressiona que esta acusação passe praticamente inconteste311 na intelectualidade e tenha


ares de verdade absoluta no senso comum tradicional. Acusar a CLT de fascista é transformar uma
conquista dos trabalhadores em um ônus aos próprios beneficiados. Afinal o que seria mais
ofensivo aos trabalhadores do que uma legislação fascista?

Boa parte dos que se propuseram a estudar a CLT, ou mesmo a relação entre CLT e o
fascismo, o fizeram sob um ângulo intelectual único. Juristas comparam o programa anunciado na
Carta del Lavoro com as leis da CLT; historiadores analisam o contexto político do Estado Novo
e as relações entre Itália e Brasil no período e filósofos estudam o positivismo e o fascismo sem
necessariamente relacionar com o contexto histórico ou com a jurisprudência. Buscaremos neste
trabalho, através de um olhar amplo que englobe o histórico filosófico e jurídico da CLT,
compreender qual foi o ambiente intelectual da criação desta Consolidação, com foco na acusação
de inspiração fascista.

Existem trabalhos que analisam tanto a jurisprudência trabalhista anterior a CLT como
algumas origens da CLT. Notadamente a tese de doutorado de Magda Biavaschi intitulada O Direito
do Trabalho no Brasil. Este trabalho, baseado em entrevistas feitas com Arnaldo Süssekind, não
atribui ao positivismo nenhum peso histórico na construção do direito trabalhista brasileiro. Dado
o tamanho limitado do documento não será possível travar o debate de maneira completa. Nos
limitaremos aqui a estudar o histórico de defesa dos trabalhadores do positivismo aludindo a uma
possível influência do positivismo sobre a CLT.

O positivismo e a defesa dos trabalhadores

A palavra positivismo remonta a 1830, mas só se tornou um conceito em 1835. Positivismo


é daqueles termos bastante usados, mas pouco compreendidos. As conotações do termo são as
mais variadas e por vezes pejorativas, mas todas elas são derivadas do pensamento de Augusto
Comte.312 Para ele a ciência positivista era o desenvolvimento do iluminismo no século XIX.

311Com valorosas exceções que serão referidas neste trabalho.


312Segundo a Encyclopédie Universalis, « le mot positivisme (1830) – dont le Vocabulaire de Lalande donne une histoire
détaillée – fut rapidement complété par le terme positiviste (1835) dont les connotations sont variables (l'utilisation
négative a pris son essor dans les milieux catholiques au moment de l'opposition à Littré). Mais tous deux dérivent de
la notion de « philosophie positive » dont Auguste Comte (1798-1857) est l'acteur déterminant. Jean Leclercq,
743

Entretanto, no ambiente acadêmico no qual esta pesquisa se desenvolveu (FFLCH-USP313) o termo


virou um pejorativo cujo significado varia entre mecanicista, economicista e exageradamente
cientificista.

Os positivistas propunham transformações nas ciências, na sociedade, na religião, nas


classes sociais, no direito etc.314 Criadores das “ciências sociais”, eles influenciaram diferentes áreas
do conhecimento: Augusto Comte, que cunhou o termo sociologia, exerceu forte influência nas
teorias de Durkheim. Os teóricos da jurisprudência que se identificavam com o positivismo
ajudaram a definir o que seria o positivismo jurídico. Intelectuais de amplo leque do espectro
ideológico retiraram desta teoria os elementos para forjarem sua interpretação do mundo,
notadamente as doutrinas do corporativismo, do trabalhismo e as correntes centralizadoras e
antiliberais nele se inspiraram.

Como costuma ocorrer na periferia da cultura europeia, o positivismo foi introduzido no


Brasil por aqueles que tinham estudado no estrangeiro, principalmente na França. João Cruz Costa,
um dos principais estudiosos do tema no Brasil, chama a atenção, a respeito dos primeiros livros e
panfletos doutrinários favoráveis ao novo pensamento, para a importância que atribuíam à política
nacional e à prática: a filosofia positivista buscava transformar o Estado e as relações de classe. Em
sua análise de As Três Filosofias de Pereira Barreto, o primeiro livro positivista escrito no país, em
1874, ele assinala que:

Verifica-se, ainda uma vez aqui, o sentido que tem para nós o filosofar, - nada
contemplativo, mas útil, a serviço de alguma causa, relembrando a tese XI sobre
Feurbach de Karl Marx (...) A primeira obra de divulgação da doutrina positivista
vem, assim, marcada por um anseio de reforma prática, e a Filosofia Positivista
era um guia para a renovação dos padrões da cultura nacional. (Costa, 1967, p.
153).

O primeiro esforço de organização do movimento positivista se deu com a criação no Rio


de Janeiro da Igreja Positivista do Brasil em 1881, comandada pelo Apostolado Positivista do
Brasil314. Os dois principais fundadores do que ficou conhecido no Brasil como positivismo

POSITIVISME,notion de, consulte le 3 juin 2019. URL: http://www.universalis.fr/encyclopedie/positivisme-notion-


de/ .
313 Tanto em relação a desinformação sobre o positivismo em específico quanto ao antigetulismo em geral, existem

valorosas exceções na USP como Alfredo Bosi, Edgard Carone, Maria Helena Capelato etc. Exemplos de intelectuais
que não deixaram sua objetividade ser afetada pelas paixões políticas.
314 Muito versáteis quanto aos temas, eles podiam discutir, num mesmo documento, o “vegetarismo”, a astronomia,

o abandono de animais, a mendicância e a economia. Como mostra a documentação do Apostolado Positivista no


Brasil.
314 Ao longo dos anos o Apostolado mudou de nome várias vezes, sendo hoje conhecido como Igreja Positivista do

Brasil, cuja sede é o Templo da Humanidade que começou a ser construída em 1891, ano da promulgação da
744

ortodoxo foram os amigos Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, cabendo ao primeiro a
liderança inicial da igreja.

Vale lembrar que o positivismo brasileiro se distanciou do positivismo europeu logo em


seu surgimento. Principal corrente de pensamento a defender organizadamente a abolição da
escravidão no Brasil, sugerindo inclusive direitos trabalhistas e métodos para a incorporação dos
escravos libertos a sociedade, ele entrou por isso em conflito com a matriz na França. Em 1883,
Miguel Lemos expulsou do Apostolado Positivista Brasileiro o fazendeiro Ribeiro da Mendonça
que mantinha escravos. Pierre Lafitte, epígono de Comte e dirigente do movimento positivista
francês tentou conciliar a situação, sem que se expulsasse Ribeiro da Mendonça. O Apostolado
Brasileiro rompeu relações com a direção francesa, expulsou Ribeiro da Mendonça e fez publicar
imediatamente um livro com todos os escritos antiescravistas de Augusto Comte e uma dedicatória
a Toussaint Louverture, herói da luta de libertação negra nas Antilhas. (Bosi, 1992, p 276. ver
também Costa, 1956 e Lins, 1964).

Segundo Bosi esse embate entre o fazendeiro Ribeiro da Mendonça e o núcleo dirigente
positivista carioca é emblemático por representar as divergências entre os republicanos positivistas
gaúchos e cariocas e aqueles de São Paulo316. Em sua maioria cafeicultores, os republicanos de São
Paulo queriam assegurar a mão de obra escrava enquanto esta não fosse substituída pela imigração
europeia. Talvez por isso o positivismo não tenha se desenvolvido no Estado de São Paulo como
alhures. Já os membros do Apostolado no RJ eram em sua maioria profissionais liberais, jornalistas,
militares e professores e repudiavam veementemente a escravidão e a conciliação paulista em
relação ao tema. Os gaúchos, ainda que fazendeiros, tiveram a mesma postura radicalmente
antiescravista. Como vimos foi neste meio abolicionista que cresceram Luís Carlos Prestes e
Getúlio Vargas. Ainda segundo Bosi:

Coerentemente, o núcleo positivista do Rio de Janeiro rejeitou, desde o primeiro


momento, as propostas de ressarcir os senhores cujos escravos fossem
alforriados por efeito de lei. Indenizar significava admitir publicamente os

Constituição Federal. São eles ainda os grandes detentores da documentação positivista no Brasil. Ainda que a Igreja
tenha doado vasto material para universidades, possibilitando assim a pesquisa neste tema central para a compreensão
do Brasil.
316 Segundo Bosi: No caso dos gaúchos, o problema da abolição estava intimamente ligado ao da república. Não

haveria república sem abolição. República e abolição formavam uma só bandeira. No caso de São Paulo, os fundadores
do Partido Republicano Paulista queriam mudar a estrutura política, a estrutura do poder, substituindo dom Pedro II,
mas declaravam literalmente que o problema da escravidão deveria ser resolvido com o tempo. O que lhes interessava
era o subsídio à imigração europeia. Eles já estavam conscientes de que a escravidão cedo ou tarde chegaria ao seu
termo e que era preciso substituí-la por um trabalho remunerado, e não haveria outro jeito senão chamar imigrantes
italianos, alemães etc., como de fato aconteceu. Consultar a entrevista de Alfredo Bosi à Rede Brasil Atual disponível
em: https://operamundi.uol.com.br/samuel/46711/inspiracao-fascista-da-clt-e-mito-diz-professor-da-usp-alfredo-
bosi
745

direitos de propriedade de um homem sobre o outro. Os africanos, estes sim, é


que mereceriam plena compensação pelos séculos de trabalho forçado a que os
submetera a colonização europeia na América. (Bosi, 1992, p. 279).

Já no Governo Provisório oriundo da proclamação da república em 1889 dois positivistas,


Benjamin Constant e Demétrio Ribeiro tentaram instituir direitos trabalhistas através de seus
ministérios. Benjamin Constant foi Ministro da Guerra e posteriormente Ministro da Instrução
Pública. Enquanto Demétrio Ribeiro foi Ministro da Agricultura.317

Segundo Magda Biavaschi, autora de um dos trabalhos de maior fôlego sobre a comparação
entre CLT e Carta del Lavoro, Demétrio Ribeiro criou

regras destinadas à assistência à infância na Capital Federal e à criação de Bancos


Operários para a construção de moradias, bem como normas direta ou
indiretamente destinadas aos trabalhadores. Logo a seguir, seriam revogados os
artigos 205 e 206 do Código Penal, passando a ser permitida a greve pacífica.(...)
Em sua curta passagem pelo governo, foi responsável por assegurar os seguintes
direitos: 15 dias de férias aos funcionários e diaristas que trabalhavam no
Ministério; aposentadoria aos empregados da Central do Brasil; extensão da
aposentadoria aos empregados em outras ferrovias; e, em janeiro de 1891,
regulamentação do trabalho do menor.(...) criou fiscalização permanente nos
estabelecimentos fabris em que trabalhavam menores. Apesar de ter
representado um avanço para um país que acabara de abolir a escravidão, a
iniciativa resultou ineficaz. É que, ressalvada a experiência castilhista/borgista
(...), os ideais de justiça social de Demétrio Ribeiro pareciam sufocados.
(Biavaschi, 2005, p. 201).

Mas a principal defesa do direito dos trabalhadores realizada pelo positivismo no período
foi um revolucionário projeto de leis elaborado pelo Apostolado em 1889, cuja defesa inicial
sintetiza bem a visão da necessidade de incorporação do proletariado na sociedade. Elaborado por
Raimundo Teixeira Mendes e enviado a Deodoro da Fonseca, esse projeto é pouco conhecido
mesmo por aqueles que estudam a legislação trabalhista brasileira. Segundo Ivan Lins:

O projeto de Teixeira Mendes que o torna um precursor da nossa legislação


trabalhista é o projeto de melhoria das condições do proletariado por ele
submetido em 25 de dezembro de 1889(...) O projeto de Teixeira Mendes, que
foi elaborado depois de consulta e troca de vistas com cerca de quatrocentos
operários de oficinas do Estado, foi precedido de uma explanação sobre o papel
do proletariado e a urgência de incorporá-lo à sociedade onde, na frase de Comte,
apenas se acha acampado. Expunha a teoria positivista do salário e regulava não
só este último, mas ainda as horas de trabalho, os dias de descanso, os acidentes

317 Neste processo os ministros Benjamin Constant e o gaúcho Demétrio Ribeiro, ambos adeptos das ideias de Augusto
Comte, instituem diversas normas de proteção aos operários da União no âmbito dos seus ministérios. (Da Costa, p.
2.)
746

de trabalho e as pensões a conceder aos operários chegados à velhice, ou às


famílias. (Lins, 1964, p 364)

A defesa positivista do proletariado começou, pois, com Comte. Apesar do positivismo


brasileiro romper com o positivismo europeu e de ter sido em sua maioria mais dedicado as causas
sociais no Brasil do que na Europa, a defesa dos trabalhadores faz parte essencial da teoria
positivista mesmo em sua versão ortodoxa e europeia. Sempre vale lembrar que ele foi inspirado
pelo socialismo utópico de Saint Simon318, de quem Comte havia sido aluno, secretário e amigo
pessoal.

O relativo desconhecimento do programa trabalhista revolucionário de Teixeira Mendes


prejudicou a compreensão do papel dos positivistas na evolução da legislação em nosso país. O
projeto começa com a defesa da importância de leis trabalhistas das quais separamos alguns trechos
que achamos mais pertinentes. Os trechos copiados a seguir foram retirados da proposta de
Teixeira Mendes ao Governo Provisório da primeira República em 1889, logo após a proclamação:

(...) a elevação do caráter brasileiro consiste essencialmente na elevação do


proletariado, porque ele constitui a quase totalidade da nação: é ele que forma
propriamente o povo; é dele que saem e é para ele que revertem todas as outras
classes sociais. Como, pois, conceber a regeneração de nossa Pátria mantendo a
família proletária no grau de abatimento em que até hoje ela se acha em todo
mundo? (...)
É no seio das famílias proletárias que se forma e se há de formar sempre a massa
dos cidadãos: urge, portanto, que a família proletária se ache em circunstâncias
de produzir verdadeiros homens. Ora, para isso, são imprescindíveis requisitos
cuja necessidade a chamada classe média da sociedade unânimemente319
reconhece. O primeiro deles é que a mulher não precise entregar-se a trabalhos
pesado que se lhe alquebram o corpo, agrosseiram-lhe a alma e a deixam sem
tempo para educar os filhos, amparar os anciãos e confortar os esposos.

Vale lembrar que esse texto foi elaborado e submetido em 1889, apenas um ano após a
promulgação da Lei Áurea e, portanto, concebido em uma sociedade cuja concepção mesmo do
trabalho era pejorativa. Trabalhar era coisa de escravo para a imensa maioria da classe dominante.
As valorosas exceções como a dos positivistas cumprem no contexto importante papel de pouco a
pouco revalorizar a noção social de trabalho.

É traço comum dos governos positivistas e consequentemente do trabalhismo derivado de


Getúlio a partir dos anos 1950, a defesa incondicional da educação e a criação de escolas. Uma
trajetória que vai do governo Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros no Rio Grande do Sul,

318 Como vimos o autor predileto de Vargas.


319 Quando não afetar a compreensão optamos por manter a grafia original.
747

passando pela chamada Era Vargas e pelos governos Brizola (chamado por vezes “O Último
Getulista”). Mas mesmo quando não chegou a ser governo, a intelectualidade ligada ao positivismo
sempre fez questão de fincar o pé na defesa da educação nacional como forma de incorporação
das camadas mais baixas na sociedade. É essa importância da educação, sem a qual “ninguém se
torna um cidadão moralizado, instruído e ativo”, que o documento ressalta:

O aperfeiçoamento do homem, mesmo no ponto de vista exclusivamente


material, é mais importante do que o melhoramento dos aparelhos industriais,
porque, conforme o ditado popular, não houve instrumento bom para o operário
ruim. (...) E como conseguir tudo isso enquanto o filho do proletário, isto é, a
massa da nação futura, viver na miséria e ao abandono de todos os recursos?
Como conseguir tudo isso enquanto o filho do pobre tiver de procurar, ainda na
infância, os meios de aliviar as provações da família materna? (...)
Amparar, portanto, os avós, a mulher e os filhos tal é o tríplice dever doméstico
que a Pátria impõe a cada cidadão. Mas como cumprir semelhante dever sem que
aos chefes de família sejam dadas as condições materiais de desempenhá-lo?
Como satisfazer a tais requisitos sem poder sequer assegurar-lhes o domicílio, o
alimento e o vestuário? Como realizar tão grata, mas tão difícil missão, sem ter
sequer o tempo necessário para conviver com eles, sem ter lazeres para elevar o
coração e o espírito a uma altura suficiente?
A burguesia, aqueles que já podem gozar dos benefícios da evolução humana
respondem a todos estes justos reclamos com uma frase cuja imoralidade só se
equipara à inépcia que a caracteriza: ´Enriquecei- dizem- trabalhai; todo o bem-
estar que desfrutamos é o resultado do poder de nossa vontade e dos esforços
de nosso pais’. Lastimável irrisão!

Certeira ironia de Mendes disparada contra aqueles que já usufruem dos privilégios do
capitalismo, em relação ao qual ele mantém posição crítica constante. Ainda que sua postura seja
mais reformista do que revolucionária, são notáveis as influências socialistas que recebeu. Sustenta,
por exemplo, que “o salário não é a paga do trabalho efetuado, porque o trabalho humano não
comporta equivalente em dinheiro(...)”. Não é uma definição científica da mais-valia, mas clara
defesa do trabalhador:

Instituir o salário não mais no ponto de vista servil e industrial que até hoje
domina, mas no ponto de vista civil e social, que é o único compatível com a
dignidade humana- tal deve ser o objetivo de todos os patriotas. (...) O salário
não é a paga do trabalho efetuado, porque o trabalho humano não comporta
equivalente em dinheiro(...) A civilização moderna não pode manter em relação
à propriedade os princípios que dominavam na sociedade antiga. O bem geral é
a lei suprema das nações, e todas as instituições humanas devem basear-se na
moral e na razão. (...)

Pedimos desculpas pelas citações um pouco longas e pelo texto da proposta de leis
trabalhistas exibido a seguir. Mas é parte central deste texto atribuir ao positivismo papel
importante no histórico de defesa dos trabalhadores e no conjunto destas leis podemos entender
748

melhor a origem da CLT, inclusive através da comparação. Acreditamos também que por não ser
um texto conhecido, vale a pena a longa citação. Selecionamos algumas destas leis:

2º- Fica suprimido o regime das empreitadas. Todo salário se constará de duas
partes: uma fixa, que será propriamente o ordenado, e outra variável, que será a
gratificação pro-labore.
3º- Estas duas partes serão determinadas segundo as condições de existência em
cada cidade.
7º- Nenhum operário será obrigado a trabalhar mais de sete horas efetivas por dia, e
terá, para descanso, o domingo e os dias de festa nacional, além de 15 dias em cada
ano. Esses lazeres só poderão ser excepcionalmente suspensos, quando o bem
público o exigir, e, em tais casos, o operário nenhuma gratificação nova receberá.
8º- Em caso de moléstia o operário será licenciado e receberá, pelo menos, a
parte fixa do salário, enquanto durar a enfermidade.
10º- Serão faltas justificadas as que forem julgadas tais pelos diretores dos
estabelecimentos a que pertencerem os operários, e especialmente as que forem
motivadas por moléstia do operário ou de pessoa de sua família, a quem tenha
sido preciso socorrer; por luto; um dia santificado, segundo a religião do operário
em cada mês; e gala de casamento.
13º- Nenhum operário poderá ser demitido depois de sete anos de serviço, sem processo que
demonstre infração prevista no regulamento, e para qual se comine tal pena.
14º - Em caso de reforma, que importe redução do número de operários, serão
conservados os operários mais antigos nas oficinas; e, quanto aos dispensados,
observar-se-ão as seguintes regras:
I - Aos maiores de 42 anos será mantido pelo menos o ordenado, isto é, a parte
fixa do salário, por toda a vida, podendo o Estado utilizar-se de seus serviços no
mesmo município.
II- Aos que não tiverem 42 anos será mantido o referido ordenado durante sete
anos, enquanto buscarem nova colocação nas mesmas condições.
15º - Todo operário que ficar inválido por qualquer motivo será aposentado, pelo
menos, com a parte fixa do salário.
16º- Todo operário maior de 63 anos que não tiver filhos ou netos maiores, ou
que, tendo-os, não forem eles empregados nas oficinas públicas, será aposentado
com uma pensão, pelo menos igual à parte fixa do salário.
17º - Por morte do operário, a sua mulher enquanto conservar-se viúva, e, na
falta desta, os seus avós, as suas filhas solteiras e os seus filhos menores de 21
anos, receberão coletivamente uma pensão igual a dois terços da parte fixa do
salário. Esta pensão cessará desde que algum dos filhos for maior e tiver um
salário igual, pelo menos, à parte fixa do salário do Estado, ou desde que alguma
das filhas se casar com operário nas mesmas condições.
18º- Desde que a receita do Estado o comportar, o Governo assegurará aos
anciãos, às viúvas e aos órfãos quaisquer, que estiverem desamparados pelos
patrões de seus filhos, maridos e pais, uma pensão nas condições de que trata o
artigo precedente.
(Texto da proposta enviada por Teixeira Mendes ao Governo Provisório em
1889 apud Lins, 1964, p 360 a 367 todos os grifos presentes nos originais.)

O projeto é tão avançado que podemos pôr em questão sua viabilidade: teria o Estado, por
exemplo, capacidade de manter um seguro desemprego por 7 anos para todos os desempregados?
Mas o que mais interessa aqui é o caráter pioneiro da iniciativa de Teixeira Mendes em defesa dos
trabalhadores, num momento em que as ideias socialistas e os escritos de Karl Marx mal
749

começavam a chegar ao Brasil. Mesmo a Encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII, uma das
fontes inspiradoras da CLT, segundo Arnaldo Süssekind, foi promulgada em 1891, após o projeto
de Teixeira Mendes.

Parece-nos, pois razoável buscar nas ideias dos positivistas brasileiros, abolicionistas e
republicanos, a iniciativa da elaboração das leis trabalhistas. Em perspectiva histórica mais ampla,
pode se colocar a questão do peso do fascismo na codificação dessas leis, mas não em sua inspiração
original, aquela que marcou a formação intelectual e política de Getúlio Vargas. Muitos anos antes
do surgimento do fascismo, ele já preconizava a defesa dos direitos dos trabalhadores, como
confirmam as provas redigidas por ele em 1906 na Faculdade de Direito, às quais já nos referimos.

Segundo Ana Maria Machado da Costa, especialista em Direito do Trabalho, a legislação


proposta por Teixeira Mendes mantém até hoje grande importância:

Esta plataforma apresentada um ano após a abolição da escravidão, guarda


atualidade até os dias de hoje, pois contempla os preceitos nucleares do moderno
direito laboral. Se o direito é uma produção social, a sua história não pode estar
restrita à análise de normas. É preciso que se resgate além das lutas sociais e
parlamentares, as disputas ideológicas que conformaram o momento histórico de
gestação do direito do trabalho. (...) Nesse sentido, quando se trata desta história
não se pode silenciar sobre a contribuição de Teixeira Mendes. Além de
normatizar o trabalho dos operários a serviço da União, o Governo Provisório
editou o Decreto 1.313, que regulou o trabalho de menores nas fábricas da
Capital Federal. Para muitos estudiosos, como Evaristo de Moraes Filho, esta é
a primeira lei brasileira de conteúdo tutelar e trabalhista. (Da Costa, p. 2 e 3).

A posição positivista de defesa dos trabalhadores foi posta em prática com a Constituição
gaúcha de 14 de julho de 1891 elaborada quase inteiramente por Júlio de Castilhos e aprovada por
unanimidade. Considerada uma das primeiras legislações com direitos trabalhistas das Américas.
Em especial o artigo 74 da referida Constituição, que diz: “Artigo 74º - Ficam suprimidas quaisquer
distinções entre os funcionários públicos de quadros e os simples jornaleiros, estendendo-se a estes
as vantagens de que gozarem aqueles.”

Essa lei garantia que todos os direitos dos funcionários públicos seriam estendidos aos
jornaleiros, isto é, os trabalhadores pagos diariamente. Além de retroativa, ela garantia que
quaisquer novos direitos adquiridos pelos funcionários públicos serviriam também para os
jornaleiros320. Mais significativo é que houve proposta, feita pelos constituintes gaúchos, de que se

320Assim quando em 14 de julho de 1919 Borges de Medeiros promulgou o decreto 2.432 consolidando uma série de
direitos aos funcionários públicos gaúchos eles foram imediatamente estendidos aos operários. Licença remunerada
durante a doença, férias de 30 dias e auxílio para funerais foram alguns dos direitos conquistados por ambas as
categorias.
750

implementasse esta lei na Constituição Federal promulgada em 1891, no entanto os constituintes


se negaram a implementar esses direitos na carta. Ainda por cima a constituição federal limitava as
cartas estaduais ao impedir que questões definidas na Constituição Federal fossem revistas em cada
Estado.

Ana Maria Machado observou a esse respeito:

Incontestavelmente, a Carta Castilhista supera a Federal, que se limita a declarar


genericamente a garantia da igualdade de todos perante a lei. Garantindo
tratamento isonômico entre os jornaleiros e os funcionários do quadro, o
constituinte passa a dar conteúdo social ao preceito da equidade. Desta maneira,
avança em relação à concepção liberal de igualdade inscrita na Constituição
Federal, visto que esse princípio passa a ter uma dimensão social que o aproxima,
embora de modo acanhado, do conceito de justiça. É importante lembrar que a
Constituição Federal, promulgada em 24 de fevereiro de 1891 praticamente
silenciou sobre os direitos dos trabalhadores (Ibidem, p. 5.)

Os gaúchos do P.R.R. tinham tanta convicção na importância dos direitos trabalhistas que
se utilizaram de vários métodos para escapar das limitações da Constituição Federal. Não contentes
com a equiparação entre jornaleiros e funcionários públicos garantida na Constituição Castilhista,
os políticos do P.R.R partiram para uma defesa dos trabalhadores feita por fora da constituição, ao
regularizar direitos em obras públicas específicas:

Do ponto de vista da legislação infraconstitucional produzida em seu governo,


merece destaque o Ato nº 31, de 22 de setembro de 1897, que disciplina o
trabalho nos serviços de dragagem das lagoas dos Patos e Mirim. (...)é elaborado
um quadro fixando os horários de trabalho. (...) É estabelecido, ainda, um
período de intervalo para repouso e refeição que variava de uma a duas horas.
Estas regras sobre a jornada têm importância capital, já que a limitação do tempo
de trabalho constitui-se em aspecto essencial de proteção do mesmo. O direito
do trabalho vê nelas uma forma de impedir abusos de parte dos empregadores.
(...)A regra deste artigo decorre de duas importantes concepções do direito do
trabalho moderno e que foram consagradas pela CLT aproximadamente cinco
décadas depois: a primeira entende que o risco do empreendimento deve ser
atribuído ao empregador; a segunda compreende o tempo de trabalho como
sendo o tempo à disposição do empregador e não o critério restritivo, que se
baseia no tempo efetivamente trabalhado. (Ibidem, p. 6 e 7).

Ressaltamos ainda que a legislação castilhista feita por fora das constituições, (tanto da
federal quanto da estadual), mas aplicada no Rio Grande do Sul durante os governos do P.R.R.,
garantia que somente em situações de urgência poderia o operário realizar hora extra e que essa
deveria ser paga com um adicional de 10 a 50% do salário. Estas regulamentações eram sempre
orientadas a defender a remuneração do trabalhador mesmo nos períodos em que não esteja sendo
realizado concretamente o trabalho. Elas defendiam, por exemplo, o salário quando o operário não
751

pode trabalhar devido ao mau tempo ou quando estivessem doentes (na norma castilhista os
doentes deveriam receber 2/3 do salário de quem efetivamente trabalhasse). A doutrina do trabalho
dos positivistas no Rio Grande do Sul visava em última instância proteger sempre o salário.

Além desta legislação estadual que escapava dos limites da Constituição Federal, o P.R.R.
usou seu programa partidário para avançar na proteção ao trabalhador e no desenvolvimento do
país. Lançado no dia 14 de julho de 1891 em homenagem a queda da bastilha, o programa continha
propostas que não podiam estar nem na carta federal e nem nas leis do Estado. Assim resumiu José
Augusto Ribeiro:

O novo programa do Partido Republicano Rio Grandense incluía entre suas teses
econômico-financeiras as seguintes tarefas: animar o desenvolvimento da
agricultura, a criação de industrias rurais; promover os meios de transporte;
organizar o plano geral de viação (...) protecionismo, proteção às industrias;
socialização dos serviços industriais(...); educação e instrução popular; ensino
técnico-profissional(...); concurso oficial do Estado às leis de assistência aos
operários urbanos e rurais e que proporcionem, aos proletários, as condições
materiais suficientemente estáveis a sua existência(...); regime de oito horas de
trabalho (...)regime de férias aos trabalhadores; propagar junto aos chefes
agrícolas, comerciais e industriais, a necessidade de harmonizar os interesse do
capital com o trabalho(...); proteção aos menores, mulheres e velhos; direito de
greve, tribunal de arbitragem para resolver os conflitos entre patrões e operários.
(Ribeiro, 2001, p. 37)

Boa parte destes direitos defendidos pelos positivistas eram mais radicais e avançados que
os de fato promulgados ao longo do Século XX, após a vitória em armas na Revolução de 1930.
Vale lembrar que a proposta de legislação enviada pelo Apostolado em 1890 foi vencida no voto
dos constituintes em 1891 e os direitos dos trabalhadores rurais tardariam muito a ser implantados
no Brasil.

Ao lado dos gaúchos castilhistas321, os positivistas do Apostolado prosseguiam na Capital


Federal a defesa dos direitos trabalhistas elaborada pelo brasileiro. Teixeira Mendes, em texto de
1906, assim se manifestou sobre a motivação discute e a validade das inúmeras greves que ocorriam
no período:

Assim, ninguém pode contestar hoje a justiça das reclamações proletárias quanto
a instituição das oito horas de trabalho industrial diário e a restauração do
descanso semanal, Augusto Comte demonstrou mesmo que devia haver em cada
semana dois dias consecutivos de folga (...) A greve é, pois, o recurso normal que

321É curioso notar que no Rio Grande do Sul teve certa importância as teorias de Benoit Malon (1841-1893) que
mesclava positivismo e marxismo em uma teoria política que abarcava o reformismo positivista com o espírito
revolucionário marxista. Cada qual a seu momento. A respeito ver Schmidt, Benito B. Em busca da terra da promissão.
Porto Alegre: Palmarinca, 2004, p. 285-296. Apud Biavaschi, 2005, p.99.
752

tem o proletariado contra os abusos quaisquer da autoridade (...) Não só é


perfeitamente legitimo que um número qualquer de proletários se recuse a
trabalhar para chamar os seus chefes ao cumprimento dos seus deveres, mas
ainda e perfeitamente legitimo que qualquer cidadão, proletário ou não, aconselhe
essa recusa, invocando o interesse público (...) O não é licito a ninguém,
proletário ou não, é pretender obrigar pela violência, conforme os processos da
civilização teológico-militar o operário a trabalhar ou deixar de trabalhar como
se fosse escravo. (As Greves, a Ordem Republicana e A reorganização social. p.
6. apud Costa, 1956 p. 62)

O debate sobre as greves seguiu em abril de 1907, no folheto de número 242 que também
fora publicado anteriormente no Jornal do Comércio em dezembro de 1906:

Ao invocar somente o interesse de uma só classe (burguesia ou proletariado), está


se prejudicando a posteridade, a ordem e a conservação do desenvolvimento.
Uma greve não prejudica simplesmente alguns patrões ou o Presente; uma greve
prejudica a Posteridade. A greve só deve ser realizada para evitar desgraças
maiores, pois é um recurso extremo, culpa dos patrões que não atendem às
solicitações proletárias e também do governo, que ajuda os patrões a silenciar as
mais justas representações proletárias (Mendes, 1907).

Em fevereiro de 1908, Teixeira Mendes começou a escrever uma série de artigos publicados
no Jornal do Comércio, divididos em duas partes: “Ainda o Militarismo perante a Política
Moderna” e “Ainda o Militarismo e o Materialismo Acadêmico perante a Política Moderna”.
Nesses artigos, cujo objeto não era exatamente a condição dos trabalhadores modernos, aparecem
diversas vezes trechos que demonstram a vocação positivista de defesa do proletariado. Separamos
alguns deles que consideramos mais pertinentes. Pensando na guerra do Paraguai e no uso de um
pretenso patriotismo para promover as guerras em geral, Mendes comenta:

Tal é ainda o pretexto com que se viola a liberdade da imprensa, dissolvem-se as


reuniões de cidadãos inermes, intervém-se nas greves pacificas, decretam-se
medidas as mais taxativas, em suma, quer contra as consciências quer contra os
corpos dos cidadãos(...) Aspirando hoje à liberdade do trabalho pacifico,
encarando todos os homens como verdadeiramente irmãos; sentindo
energicamente a perfeita solidariedade internacional da vida industrial ;
experimentando, mais do que ninguém , as reações dos abusos e erros e da
cegueira das classes dominantes; vítimas como todos os ocidentais da anarquia
que se seguiu ao esgotamento do regime católico-feudal, a partir do XIV século
– os proletários estão expostos a ficar seduzidos por todas as utopias
revolucionárias.”322

Ao mesmo tempo em que Mendes se distancia daquilo que chama “utopias


revolucionárias”, impressiona a defesa do direito de greve e de organização trabalhadora que ele

Artigos do Jornal do Comércio de 4 de fevereiro de 1908 até 29 de fevereiro do mesmo ano. Páginas 31 e 32.
322

Apud Costa, 1956, p. 86 e 87.


753

faz em nome do Apostolado Positivista. Esta tentativa de ser equidistante do liberalismo e do


socialismo é a síntese do positivismo, mas também da igreja católica em fins do século XIX e início
do XX, dos fascistas na gênese do regime, da social democracia e de todos que se identificaram
com a ideia de uma terceira via323. Os positivistas são antiliberais, percebem a crueldade da
exploração dos trabalhadores na pós revolução industrial, mas também se opõem às aspirações
permanentemente revolucionárias de socialistas e comunistas.

Nos primeiros anos do século XX a primeira república promulgou algumas leis em defesa
do trabalhador324. Mas em 1917, as greves gerais se alastraram pelo país, talvez inspiradas pelo
sucesso da Revolução na Rússia, a atuação do governo positivista do RS, cuja figura máxima era
Borges de Medeiros, então Presidente do Estado foi completamente diferente da atuação dos
governantes do resto do Brasil. Não só não reprimiram as greves como atenderam a uma série de
pedidos dos grevistas e instruíram os comerciantes e industriais a ceder e resolver de forma pacifica
os conflitos trabalhistas.

Segundo César Queirós, o P.R.R., nomeadamente Borges de Medeiros:

mostrou-se aberto ao diálogo, aumentando o salário dos funcionários a serviço


do estado, dando “o exemplo” e aconselhando os patrões para que fizessem o
mesmo e baixando decretos que regulamentavam as exportações dos gêneros de
primeira necessidade com o objetivo de conter a alta dos preços e a escassez de
gêneros alimentícios.
No decorrer deste movimento paredista, a postura do governo do Estado se deu
no sentido de conferir legitimidade às reclamações dos operários e atendê-las em
parte. Assim, no dia 2 de agosto o Presidente do Estado, Borges de Medeiros,
publicou a resolução de baixar dois decretos (2.287 e 2.288), elevando o salário
dos funcionários a serviço do estado e determinando uma regulamentação oficial
sobre as exportações de banha, arroz, açúcar, batatas, feijão e farinha (A
Federação, 02/08/1917). Seguindo as orientações do governo estadual, o
intendente municipal, José Montaury, assinou um ato que estabelecia o preço de
venda dos gêneros de primeira necessidade (ato 137 de 4 de agosto de 1917) e
um que criava feiras e mercados livres em Porto Alegre (Ato 138 de 25 de agosto
de 1917). (Queirós, 2007, p. 82).

323 Debateremos mais à frente em capítulo sobre a origem do corporativismo esta relação de semelhança entre
positivismo, igreja católica, social democracia e o fascismo.
324 Segundo Biavaschi: Em janeiro de 1903, um decreto disporia sobre a sindicalização aos profissionais da agricultura

e indústrias rurais, cooperativas de produção, consumo e crédito. Em janeiro de 1905, lei que instituiu a caderneta
agrícola definiria como crédito privilegiado os salários dos trabalhadores agrícolas, tratando-se, de fato, da primeira lei
brasileira de proteção ao salário, embora de alcance restrito. Em janeiro de 1907, decreto legislativo de iniciativa do
deputado católico Inácio Tosta, regulamentando a sindicalização de todas as profissões, cuidou da formação de
cooperativas, assegurou a autonomia e a pluralidade sindical, sem limitação do número de associados em cada categoria,
e o direito de associação em sindicato aos profissionais liberais. Em janeiro de 1916, o Código Civil Brasileiro incluiu
algumas notas sobre trabalho: consagrou o contrato de trabalho como de locação e, no artigo 1.221, instituiu o aviso-
prévio. Biavaschi, 2005, p. 201 e 202
754

Se compararmos a atuação de Borges de Medeiros (P.R.R.) com a do P.R.P. em São Paulo,


fica gritante a diferença de tratamento dado aos trabalhadores e de concepção de sociedade destes
dois Partidos Republicanos. A única coisa que os unia, além do nome, era a oposição ao antigo
regime monárquico. Vale a pena fazer a ressalva de que alguns estudos indicam que na greve
operária no Rio Grande do Sul de 1919 o P.R.R. foi menos leniente com os grevistas. Talvez por
causa da maior radicalidade do movimento de 1919 em relação ao de 1917 e pela organização e
intransigência dos patrões em relação as demandas dos grevistas. Os patrões, que em 1917
atenderam ao pedido do governo estadual de aumentar os salários, em 1919325 se organizam
acertando que nenhuma demanda seria atendida e tudo fizeram para impor aos trabalhadores e ao
governo essa resolução de não ceder. O que só aumentou a radicalidade dos grevistas e
consequentemente a repressão estadual.

Há que se levar em consideração o contexto no início do Século XX no Brasil, onde a


repressão às greves e às organizações operarias era praticamente generalizada. Existem ainda
diversos textos do Apostolado que tratam a greve como instrumento legitimo quando bem
empregado. Ainda que realcem sempre o caráter de último recurso dela. Mesma perspectiva quanto
às revoluções, que seriam justas quando feitas como última tentativa de barrar um mal maior. A
atuação de Vargas foi sempre pertinente com estes preceitos. Tanto assim que ele só aceitou a
solução de força em outubro de 1930, quando João Pessoa havia sido assassinado e somente depois
de forte pressão de seus aliados. Havia inclusive aceitado as eleições fraudadas que elegeram Júlio
Prestes como substituto de Washington Luiz.

Uma comparação exige dois elementos diferentes a serem comparados. Parece-nos que na
ótica dos intelectuais brasileiros que trabalham com a relação entre CLT e Carta del Lavoro pouco
se examina o lado italiano desta comparação. Não se discute a origem e nem os autores da Carta
del Lavoro nem os diferentes significados de corporativismo existentes no fascismo, e é exatamente
isso que nos propomos a fazer agora.

O Positivismo na formação intelectual de Vargas

"Despeço-me esta noite com grande tristeza. Há algo, no entanto, que devo
sempre lembrar. Duas pessoas inventaram o New Deal: o Presidente do Brasil e
o Presidente dos Estados Unidos." - Franklin Delano Roosevelt - Rio de Janeiro-
27/11/ 1936.

325No plano nacional o ano de 1919 se destaca pela conferência organizada por Rui Barbosa para discutir os rumos da
questão social no Brasil.
755

Filho do General Manuel Vargas, republicano convicto e fiel discípulo de Júlio de Castilhos,
era natural que Getúlio Vargas crescesse admirando o positivismo. Segundo a documentação e
relatos testemunhais, desde pequeno ele mostrava interesse pela literatura. Admitiria mais tarde em
uma entrevista realizada por Décio Freitas em São Borja (Ribeiro, 2001, p. 49) uma predileção por
Saint Simon que fora professor de Augusto Comte.

Vale assinalar que juntamente com a capital federal (RJ), onde especialmente se desenvolveu
o Apostolado positivista (considerado o positivismo ortodoxo ou religioso326 no Brasil), o RS (e
toda a bacia cisplatina) foi o principal centro do positivismo brasileiro. Lá se desenvolveram muitas
organizações positivistas, que influenciaram decisivamente o Partido Republicano Riograndense
(PRR), e a elaboração da Constituição dita castilhista de 1891. Para Getúlio, gaúcho de São Borja
que cresceu na passagem do século XIX para o XX, o ambiente intelectual era marcado pela obra
de Augusto Comte. Sua formação política se fez sob a ótica do positivismo brasileiro.

Consta que ao menos quatro anos antes da Lei Aurea (1888), os 20.000 escravos do Rio
Grande do Sul teriam sido libertados a partir da campanha abolicionista promovida pelos
positivistas do P.R.R. Esta afirmação parece exagerada. Certamente no interior do Estado, e em
localidades controladas pelos Federalistas (antigos opositores do P.R.R. e do positivismo) a
abolição deve ter tardado mais a ocorrer. Mas o General Manuel Vargas, mesmo residindo em uma
estância no interior de São Borja, ao receber o informe de que o P.R.R. orientava no congresso
realizado em 1884 que se abolisse a escravidão, mandou alforriar todos os escravos de suas
propriedades. Se a abolição no Estado do R.S. foi ou não total importa menos que essa
demonstração das posições progressistas do positivismo e da família Vargas.

Como é sabido, o pai de Luís Carlos Prestes, o capitão Antônio Prestes, foi um dos
fundadores, junto com Protásio Vargas, irmão mais velho de Getúlio, do Centro Positivista de
Porto Alegre em 1899327. Ainda que Vargas não se caracterize por ser ortodoxamente positivista,
nem em sua filiação nem em sua atuação prática328 seria impossível entendê-lo sem o positivismo.
Nas palavras do economista Pedro Cesar Dutra Fonseca:

Ao contrário de certos personagens históricos dos quais é difícil encontrar fontes


que expressem o pensamento, Vargas deixou-nos farto material escrito. O fato

326 Existem disputas sobre as classificações dos tipos de positivismo no Brasil. Enquanto alguns autores trabalham com
a chave positivismo ortodoxo/difuso outros preferem a dualidade entre positivismo religioso/político.
327 Por exemplo, Bosi, 1992, p. 280, 4ª ed.
328 Notadamente o abandono da prioridade conferida à balança comercial favorável, presente na ortodoxia econômica

liberal da época e nos escritos de Augusto Comte. O que aliás condiz com a filosofia positivista alcunhada por vezes
de filosofia dos fatos. Para o positivismo a teoria não poderia se sobrepor a realidade.
756

de estar quase sempre à frente dos acontecimentos, desde líder estudantil, na


primeira década do século 20, até seu segundo governo, na década de 1950,
possibilita que jornais e revistas constituam preciosa fonte de pesquisa, com
entrevistas, artigos, opiniões, críticas, discursos reproduzidos na íntegra ou em
excertos. Por outro lado, seus discursos mais importantes, desde a campanha
presidencial de 1929, estão praticamente publicados, Objeto de crítica pela
oposição, hoje o vasto material enriquece o conhecimento histórico da chamada
“Era Vargas” (...). (Ribeiro, 2001, p. 103).

Documento importante que foi trazido ao debate também por Pedro Fonseca é uma prova
de direito feita na Faculdade de Direito de Porto Alegre por Getúlio Vargas, onde diversas ideias
postas em prática pelo futuro presidente do Brasil, incluindo a necessidade de uma legislação
trabalhista, já aparecem. Quem sintetiza esta ideia é o próprio Fonseca:

Assim, a proteção ao trabalhador como dever do Estado, tantas vezes atribuída


à Carta del Lavoro de Mussolini, já consta dessa prova de aula de 1906, bem
como raízes do intervencionismo pragmático do Estado Novo e do
entendimento de que os operários deveriam associar-se para contraporem-se ao
capital, inclusive por meio de sociedades (sindicatos, cooperativas) – todos
elementos que mais tarde marcariam sua vida pública. (Fonseca in Bastos &
Fonseca, 2011, p. 56).

Apesar de identificar mudanças ideológicas nos discursos de Vargas, marcada segundo eles
pelas fases positivista, autoritária e trabalhista, Fonseca afirma que:

O relativo abandono dos termos e expressões positivistas não significa, todavia,


que suas ações e seus atos não continuavam marcados por esta ideologia, da qual,
de fato, nunca ele se desvinculou por completo, mas foi atualizando-a, negando-
a em alguns pontos, redirecionando outros, dando novas ênfases, encampando
novas ideias (Ribeiro, 2001, p. 103).

Mesmo com uma vasta quantidade de documentação, as distorções sobre o pensamento e


conduta de Vargas são constantes. Em boa parte, elas foram geradas pelo desconhecimento da
filosofia positivista e de sua história no Brasil.

Referências

Biavaschi, Magda. O direito do trabalho no Brasil (1930-1942): a construção do sujeito de direitos


trabalhistas. Ed. LTR, São Paulo, 2007.

Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Bastos, Pedro Paulo Zahluth e Fonseca, Pedro Cezar Dutra (Orgs.). A Era Vargas:
Desenvolvimentismo, economia e sociedade. Ed Unesp, São Paulo, 2011.
757

Costa, Cruz. Contribuição à História das Idéias no Brasil. Ed. Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro,1967.

Costa, Cruz. O Positivismo na República. Notas sôbre a História do Positivismo no Brasil.


Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1956.

Da Costa, Ana Maria Machado. A Construção do Direito do Trabalho no Brasil - O Legado Castilhista.
Memorial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul)

Lins, Ivan. História do Positivismo no Brasil. Companhia Editora Nacional, São Paulo,1964.

Queirós, César Augusto B. Hoje Tolerância, Amanhã Intransigência: Um estudo comparativo


entre as posturas do Governo do Estado do Rio Grande do Sul nas greves gerais de 1917 e 1919.
Revista de História Social da Unicamp, 2007. Disponível em:
https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/rhs/article/view/211/203

Ribeiro, Maria Thereza Rosa (org.). Intérpretes do Brasil: leituras críticas do pensamento social
brasileiro. Porto Alegre, Mercado Aberto, 2001.
758

A implementação da BNCC e os sentido de ensinar história na


rede ensino público de Ananindeua-Pará

Francivaldo Alves Nunes*

Resumo: Nos últimos dois anos, a Secretaria de Educação de Ananindeua, município da área
metropolitana de Belém-Pará, iniciou o processo de implementação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), nos currículos escolares. Consideramos que a Base, como um documento
governamental, apresenta implicações não apenas quanto aos conteúdos, assim como pressupõe
mudanças nas atividades desenvolvidas pelos professores, incluindo novos lugares e os sentidos as
disciplinas, assim como expressa a necessidade de se pensar as estratégias metodológicas e as
formas como constroem as sequências didáticas, de forma a facilitar a aprendizagem. São mudanças
na atuação docente e promoção de novos significados as atividades curriculares. O momento é de
estudos, mudanças curriculares, mas também de debates sobre os sentidos de ensinar. É nesta
perspectiva que esta comunicação se apresenta. No caso, procuramos demonstrar, a partir de
leituras construída pelos professores de história das escolas públicas municipais de Ananindeua, o
sentido de ensinar história. As novas exigências e como são percebidas, as novas formas de atuar,
os conteúdos a trabalhar, as estratégias de atuação docente consolidadas e em ruptura, são questões
que buscamos perceber. De forma mais específica, nos propomos compreender os novos sentidos
que são implicados a disciplina de história, sob a percepção dos professores, considerando o
advento da BNCC. Para isso, adotamos como metodologia a leitura de referências bibliográficas,
de forma a realizar um diálogo com autores relacionados com as temáticas: ensino de história,
currículo, BNCC, atuação docente. Com a finalidade de responder as questões anteriormente
levantadas, procuraremos entrevistar os professores que atua nas escolas da rede pública municipal
de Ananindeua. A perspectiva é de que os conteúdos sejam contextualizados por meio de
estratégias pedagógicas que conectem com a realidade dos alunos e o ambiente social da escola,
tornando-o significativo para a aprendizagem do educando. Para tanto, sugere como estratégias,
projetos pedagógicos ou ações interdisciplinares que fortaleçam a competência pedagógica das
equipes escolares com dinamismo e interatividade para o ensino e a aprendizagem.

Palavras-chave: Ensino, História, BNCC.

Introdução

A proposta da pesquisa que tem nos motivado a pensar o ensino e a educação nos últimos
anos, dialoga na perspectiva de compreender os sentidos de ensinar a história em tempos de
modificações curriculares e de se repensar os lugares das disciplinas escolares, principalmente no
processo de implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Inclui-se ainda,

*Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor na Universidade Federal do Pará,
atuando no curso de História do Campus Universitário de Ananindeua e nos programas de pós-graduação em Ensino
de História (Campus Ananindeua), História Social (Campus Belém) e Educação e Cultura (Campus Cametá).
759

elementos circunscritos a um ambiente de revisionismo e negacionismo históricos, assim como de


defesa de uma escola que nega a importância dos debates e posicionamentos políticos como
necessários na formação dos estudantes. Estas preocupações nos levaram ao encontro de uma
leitura muito interessante produzida por Flávia Eloisa Caimi (2006) em que buscava responder à
questão “Por que os alunos (não) aprendem História?”, em que descreve sobre a importância da
formação do professor reflexivo e investigador, da sua prática e dos contextos escolares. Isto nos
permite refletir sobre os sentidos do ensino de história produzidos por alunos e professores, por
outro, nos aponta para compreender esses sentidos em diálogo com dada temporalidade e ambiente
social.

Ao pensarmos os sentidos de ensinar história como um fenômeno historicamente


construído, significa compreender o ensino da história como disciplina escolar que tem uma
função, um sentido ou objetivo ligados às políticas de estado e educacionais, assim como as
perspectivas ideológicas presentes em determinados contextos sociais. Nesse aspecto, superamos
uma proposta de educação presente nas décadas de 1980 e 1990, em que a construção do
conhecimento estava pautada em uma história como lição ou legado, como importante para que
pudéssemos aprender com os erros do passado e não os repetir. E atualmente, qual o sentido do
ensino da História para os professores, levando em consideração esses condicionantes das políticas
educacionais e as perspectivas ideológicas? Esta é a questão fundamental que procuraremos
responder ao longo deste texto.

Buscar respostas para a questão anterior exige dar-se conta de uma pluralidade e
complexidade de compreensões presentes nas falas dos professores, mas também exige
compreender as experiências de forma regionalizadas, a partir das redes de ensino nos municípios,
assim como verificar em documentos e propostas curriculares como esta questão aparece ou é
tratada. Seguindo esta orientação que procuramos demonstrar, a partir de leituras construídas pelos
professores de história das escolas públicas municipais de Ananindeua no Pará, o sentido de ensinar
história, buscando de alguma forma compreender aspectos regionalizados do debate, sem perder a
dimensão geral desta reflexão. As novas exigências e como são percebidas, as novas formas de
atuar, os conteúdos a trabalhar, as estratégias de atuação docente consolidadas e em ruptura, são
questões que buscamos perceber. De forma mais específica, a proposta é compreender os novos
sentidos que são implicados a disciplina de história, sob a percepção dos professores, considerando
o advento da implantação da BNCC e o contexto social em que se observa os debates sobre a
história e a disciplina de história.
760

Importante registrar, que nos últimos dois anos, a Secretaria de Educação de Ananindeua
(SEMED), município da área metropolitana de Belém-Pará, iniciou o processo de implementação
da BNCC, nos currículos escolares, o que envolveu os professores e técnicos da secretaria.
Consideramos que a Base, como um documento governamental, apresenta implicações não apenas
quanto aos conteúdos, assim como pressupõe mudanças nas atividades desenvolvidas pelos
professores, incluindo novos lugares e os sentidos as disciplinas, assim como expressa a necessidade
de se pensar as estratégias metodológicas e as formas como constroem as sequências didáticas, de
forma a facilitar a aprendizagem (Macedo, 2015).

O processo de implantação da BNCC exigiu em um primeiro momento, através da


promoção de cursos formativos, conhecer a proposta e os possíveis impactos que poderia provocar
na organização curricular até então desenvolvida. Seguiu-se de reuniões e formações de grupos de
trabalho, que em um segundo momento, passaram a estabelecer as relações mais diretamente e
propor as modificações necessárias. Em 2020, a SEMED entrega aos professores, gestores,
coordenadores pedagógicos e técnicos, assim como a sociedade em geral o Documento Curricular
do Município de Ananindeua (DCMA) com o tema “Por uma educação humanizadora”, que
apresenta a proposta curricular para a educação infantil e ensino fundamental como grande síntese
desse trabalho.

Compreender os sentidos de ensinar história em diálogo com a experiência docente e novas


diretrizes curriculares condicionadas as escola e redes de ensino, nos exigiu adotar uma metodologia
que passou pela leitura de referências bibliográficas, de forma a realizar um diálogo com autores
relacionados com as temáticas: ensino de história, currículo, BNCC, atuação docente. Com a
finalidade de responder às questões anteriormente levantadas, procuraremos, para este texto, ouvir
os professores que atua nas escolas da rede pública municipal de Ananindeua, em que selecionamos
quatro docentes da disciplina de história e que atuam no ensino fundamental maior, anos finais (6.º
ao 9.º ano), na rede pública municipal, licenciados em história, tendo uma experiência formativa
em universidades públicas e privadas. Estes professores nos ajudaram a compreender no debate de
reorganização curricular o lugar do ensino de história e os sentidos que podem tomar, a partir
destas mudanças associadas ao currículo.

Por uma outra perspectiva de história

No exercício das mudanças curriculares, a partir das novas exigências da BNCC, se observa
na fala dos docentes como elemento de motivação, a possibilidade de construção de um currículo
761

que oferecesse “uma outra perspectiva da história”, que embora já viesse sendo desenvolvida em
algumas escolas, por alguns professores, ainda assim necessitava de legitimação ou oficialização por
parte da SEMED. “Uma outra perspectiva de história”, destacou os professores, resumia bem
aqueles momentos que envolviam os docentes nos cursos de formação e na participação em grupo
de trabalho, quando do debate pela implementação da BNCC.

A percepção otimista desses novos tempos residia na ideia de aproximar os alunos do


conteúdo trabalho pelos docentes em sala de aula, de forma a enfatizar que os discentes também
são sujeitos da história, podem se enxergar nas histórias que leem e que o professor as conta,
desmistificando a ideia de que a história é constituída por grandes feitos e heróis. Não que isso, em
determinados momentos não fossem mais utilizados, como expressou alguns professores. Aliás,
ainda se constitui em um recurso muito acionado pelos docentes para chamar atenção dos alunos
sobre algum tema, principalmente porque a ideia de herói ainda é muito presente em nossa
sociedade. Está cotidianamente presente em filmes e séries televisas ou jogos eletrônicos, algo
muito comum do universo de vivência dos alunos. No entanto, a história, na leitura dos docentes
não se deve prestar a isso, mas a apresentar a importância de cada um no processo de construção
social, inclusive fazendo com que os alunos se enxerguem neste processo.

Outra questão a superar, a partir desta nova perspectiva de história, seria a ideia de apenas
conhecer o passado, sem fazer conexões com o tempo presente, como se o passado permanecesse
estático a uma data temporalidade. Aproximando-se dessa forma, de uma concepção de disciplina
que sirva de ferramenta a compreensão dos fenômenos sociais. Aliás, ao apresentar a disciplina de
História, a BNCC enfatiza a ideia que “todo conhecimento sobre o passado é também um
conhecimento do presente elaborado por distintos sujeitos”, nesse sentido o historiador indaga
com vistas a identificar, analisar e compreender os significados de diferentes objetos, lugares,
circunstâncias, temporalidades, movimentos de pessoas, coisas e saberes em diálogo com a
demanda social em que está envolvido, por isso que não se pode entender o passado como estático.
Deve sim, ser observado em constante movimento, sendo acionado, sempre que o presente
procura recuperar em dado momento histórico, de forma a melhor compreender uma dada
realidade (Brasil, 2017, p. 397).

A relação entre passado e presente, necessariamente, pressupõe pensar a dimensão do


futuro, a medida em que o passado é acionado para compreender e melhor analisar o presente de
forma a buscar saídas mais seguras, projetando e planejando um melhor futuro. Nesse ponto,
gostaríamos de destacar como a fala dos professores abre espaço para refletirmos sobre as
categorias de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” como propostas por Koselleck
762

(2006), no sentido de demarcar diferentes formas pelas quais os sujeitos históricos articulam as
dimensões temporais entre passado e futuro. Nessa perspectiva, a experiência é o passado atual,
aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados, considerando as
demandas do presente. No entanto, esclarece o autor, também está, ao mesmo tempo, ligado à
pessoa e ao interesse individual.

No entrelaçamento entre passado e presente e horizontes de expectativas, observado na


fala dos professores, tal posição justifica e orienta a sua prática pedagógica. Neste aspecto, a história
deve se constituir muito mais do que um curso para aprimoramento ou colaborativo na
profissionalização, mas uma ferramenta para a autonomia do pensamento. Neste aspecto, os
professores recuperam a ideia de uma história como formação para cidadania, como adverte a Base,
para quem “a relação passado/presente não se processa de forma automática”, nem tão pouco a
história “emerge como um dado ou um acidente que tudo explica”, mas permite ao sujeito enfrentar
os problemas e propor soluções com vistas à “superação das contradições políticas, econômicas e
sociais do mundo em que vivemos”, ou seja, é sustentada a partir desta reflexão de uma história
critica e reflexiva com o objetivo de transformação social (Brasil, 2017, p. 397).

Como se observa, a preocupação com a desnaturalização dos eventos aparece também


como recorrente na fala dos professores quando questionados sobre a importância da disciplina,
reveladora também da importância da dimensão sociológica concedida pelos docentes ao ensino
de história. Nessa perspectiva, o ensino da disciplina serviria como base para uma leitura da
contemporaneidade diante das inquietações e incertezas, não sendo apenas coleção de fatos e
conteúdos. O enfoque de conteúdo aparece, portanto, para que os alunos percebam que eles
ocupam uma determinada posição na sociedade, sendo isto ocupado não de forma naturalizada,
mais resultante de lutas e embates, resultado de correlações de forças em determinados momentos
históricos.

A percepção anterior é reforçada na BNCC, quando se observa que esta parte de uma leitura
de mundo, sempre em movimento e transformação. Nesse caso, ao se deparar com experiências
históricas diferentes, construídas em temporalidades e espaços diversos, os indivíduos produziriam
saberes que os tornam mais aptos para enfrentar situações marcadas pelo conflito ou pela
conciliação. Entre os saberes produzidos, destaca-se a capacidade de comunicação e diálogo,
instrumento necessário para o respeito à pluralidade cultural, social e política, bem como para o
enfrentamento de circunstâncias marcadas pela tensão e pelo conflito (Brasil, 2017, p. 398).

Para os professores, os estudos das revoluções, a exemplo da Francesa e suas implicações,


abordados no 8.º ano (EF08HI04), principalmente como movimento de rebeldia social e
763

destituição de um governo absolutista (Brasil, 2017, p. 425), pode despertar no aluno a percepção
de que a força popular e sua organização pode resultar em processo radical de mudança.
Movimentos de luta, resistências, greves, manifestações, presentes nos conteúdos do 9º ano
(EF09HI04, EF09HI07 e EF09HI09), e que revelam aspectos das lutas operárias, feministas,
atuação dos negros e a cultura afro-brasileira como elemento de resistência e superação das
discriminações (BRASIL, 2017, p. 425), pode dimensionar bem este debate que envolve uma
história militante. Neste aspecto, a única coisa que a história nos garante é a mudança, nada é perene
todo o tempo. Na percepção destes docentes, o potencial da história na educação básica é esse, de
colaborar na desnaturalização da realidade, perceber que é fruto de escolhas, dos embates, das
tensões, ou seja, é um ambiente que está sempre sendo disputado, inclusive o próprio passado.

A leitura que se faz, considerando as demandas da escola em diálogo com a BNCC e suas
orientações, é da necessidade de um ensino que abra espaço à desnaturalização das desigualdades
e preconceitos sociais, situando o aluno, ele próprio, como sujeito da história. Desnaturalizar, no
sentido colocado pelos professores significa, não tomar a sociedade como algo imutável, mas como
resultado da ação dos indivíduos, condicionada por sua singularidade histórico-temporal.
Reconhecendo ainda que a importância concedida aos fatos históricos não é algo natural, mas uma
disputa que envolve múltiplos interesses.

A questão anterior ficou evidente, quando se observa o DCMA, em que expressa a


importância do fortalecimento da autonomia dos adolescentes do Ensino Fundamental, anos finais,
“oferecendo-lhes condições e ferramentas para acessar e interagir criticamente com diferentes
conhecimentos e fontes de informação”. Como destaca o documento, trata-se de um período de
vida em que se ampliam os vínculos sociais e os laços afetivos, as possibilidades intelectuais e a
capacidade de raciocínios mais abstratos, o que implica em uma melhor percepção quanto a
necessidade de desnaturalização dos acontecimentos históricos (Pará, 2020, p. 102). Neste aspecto,
os estudantes tornam-se mais capazes de ver e avaliar os fatos pelo ponto de vista do outro,
exercendo a capacidade de descentração, “importante na construção da autonomia e na aquisição
de valores morais e éticos” (Brasil, 2017, p. 426).

O extrato anterior sugere uma conexão entre a análise social e a problematização do lugar
do indivíduo na trama da história. O que os professores estão apontando é que a BNCC ao incluir
temáticas vinculadas a cultura popular, saberes indígenas, a emergência da vida urbana no Brasil e
segregação espacial, protagonismo feminismo e anarquismo, violência contra populações
marginalizadas, pluralidade e diversidades identitárias, entre outros (EF09HI04, EF09HI05,
EF09HI08, EF09HI23, EF09HI25 e EF09HI26), serviria assim à inserção de outras lógicas
764

narrativas que possibilitassem o surgimento de novos sujeitos históricos, para além de uma
perspectiva eurocêntrica centrada nos “grandes homens” e nos “grandes feitos” (Brasil, 2017, p.
429).

As observações registradas pelos docentes permitem traçar um paralelo com a proposta de


Vera Maria Candau (2016, p. 14) no sentido de “reinventar a educação e a escola, superando o
caráter monocultural, euro-usa-cêntrico e homogeneizador das práticas educativas”. Para esta
autora, nossa herança colonial, por sua vez encrustada no sistema educacional, a perpetuação de
um ensino e lógica escolar, fundamentadas na segregação de determinadas culturas e etnias, é
incompatível a uma educação que se pretenda mais democrática. Nesse aspecto, a preocupação dos
professores com sua prática é de possibilitar um ensino de história desassociado de narrativas que
promovam um exercício de exclusão.

Nos anos finais do ensino fundamental, como se observa na BNCC, a dimensão espacial e
temporal vincula-se à “mobilidade das populações e suas diferentes formas de inserção ou
marginalização nas sociedades estudadas”. Nesse caso, o desenvolvimento de habilidades com um
maior número de variáveis deve ser exercitadas pelos alunos, tais como contextualização,
comparação, interpretação e proposição de soluções (Brasil, 2017, p. 417). Como destaca Ana Maria
Monteiro (2002, p. 52) os usos dessas variáveis permitem estabelecer uma “desconstrução do
estabelecido” e/ou “desnaturalização do social”, se articulando como uma característica da
identidade profissional dos professores de História, que tem compromisso com a dimensão
formadora do ensino, formadora do cidadão na medida em que nessa disciplina são trabalhados
referenciais que auxiliam os alunos a superar a visão do senso comum e a realizar uma leitura do
mundo com maior potencial crítico. No aspecto citado pela autora, desnaturalizar e historicizar o
social são ações que fundamentam a ruptura do senso comum e a compreensão do cotidiano com
olhar impregnado de História e uma perspectiva do ensino. O saber ensinado na história, neste
caso, cumpre seu objetivo de permitir a volta ao senso comum com um novo olhar, crítico e
conceitualmente mais instrumentalizado pelos alunos.

Contudo, em tempos de Escola sem Partido e negação da produção das subjetividades no


campo das humanidades, como bem advertem Isabel Barbara, Fabiana da Cunha e Pedro Bicalho
(2017, p. 110), essa particularidade apontada como sendo norteadora dos conteúdos do ensino da
história escolar acaba gerando desconfiança. Neste aspecto, os professores apontam para uma
perspectiva em que, pensar a disciplina no cenário atual é estar constantemente atento em torno de
sua importância no fomento de justificativas para ações, digressões, modos de agir e de pensar, o
que significa legitimar a história como constituinte dos pilares de formação para a cidadania.
765

A dimensão de uma história para formação para cidadania expressa, para os professores, a
capacidade e o poder que a disciplina de história tem de defender e proporcionar a liberdade,
iniciando no próprio ambiente da sala de aula. Isto se justificaria, pois, o conhecimento histórico
se apresenta como libertador, sobretudo agora diante dessas amarras conservadoras, dessas que
desencadeiam uma série de acontecimentos perigosos como a intolerância, a negação de direitos e
a própria liberdade, que desestruturam a sociedade.

As amarras conservadoras que restringem a noção de criticidade e problematização do


conhecimento histórico, apontadas pelos professores, ao que se observa, apenas poderiam ser
contrapostas, a partir de uma concepção de ensino vinculado a novos olhares sobre os fenômenos
sociais, caracterizados pelo combate a intolerância e ao preconceito. Essa noção de liberdade,
proposta pelos professores, serviria a permitir seu alunado tecer suas próprias conclusões sobre a
historicidade desses fenômenos, a partir de uma visão um tanto mais isenta de preconceitos
sedimentados no corpo social. Aproxima-se de uma linha de pensamento sugerida pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), na importância atribuída ao conceito de cidadania e
sua relação com a história, como analisado por Marcelo Magalhães (2003).

Ao observarmos a questão, os PCNs colocam que os estudos históricos desempenham um


papel importante, na medida em que contemplam pesquisas e reflexões das representações
construídas socialmente e das relações estabelecidas entre os indivíduos, os grupos, os povos e o
mundo social, em uma época. Nesse sentido, o ensino de História pode fazer escolhas pedagógicas
capazes de possibilitar ao aluno refletir sobre seus valores e suas práticas cotidianas e relacioná-los
com problemáticas históricas inerentes ao seu grupo de convívio, à sua localidade, à sua região e à
sociedade nacional e mundial, sendo nestas habilidades que se forjam os valores vinculados ao
exercício da cidadania (Brasil, 1996. p. 34).

Outra questão apontada pelos docentes, diz respeito a admissão da ideia de sermos
herdeiros de uma “bagagem histórica” em que trazemos de nossas experiências familiares e
comunitárias. Neste caso, os esforços dos docentes concorrem para identificar seu alunado como
ator e agente da produção de conhecimento histórico, rechaçando a interpretação de uma disciplina
estática, distante da realidade experiencial e, por isso mesmo, inacessível a título de análise. Isto
será possível, a medida em que percebam esse conhecimento histórico como significativo para suas
existências, por outro, trata-se de estabelecer uma mediação entre o que é apreendido e aquilo que
corresponde a experiência, ao que é vivido pelo aluno.

A questão anterior, fica evidente na percepção de Durval Muniz Albuquerque Junior (2012,
p. 36), quando revela que “sabemos hoje que a história terá os sentidos que nela colocarmos”. No
766

caso destes sentidos, para o autor, embora a vivência, a experiência da historicidade, da


temporalidade, possa ser estabelecida de forma individual, e os sentidos que atuam na história
também partem dos indivíduos, no entanto, estes tornam-se coletivos, transcendem a esfera da
individualidade ao se encontrar, se conflitar, se articular, se associar, ou coexistir na vida em
sociedade. Isto quer dizer que a experiência com a história e os sentidos atribuídos, são resultantes
de uma experiência individual, mediada por uma “bagagem histórica”, mas que na relação do
processo de aprendizagem e a necessidade de compreensão e intervenção social, se constituem de
forma coletiva, uma vez que devem conviver com outras percepções sobre os eventos históricos.

Um pensamento semelhante e que dialoga com a ideia de “bagagem histórica”, apontado


pelos professores, é sobre a relação entre memória e ensino de história num cenário de
recrudescimento da intolerância, como o que vivemos atualmente. Nesse aspecto, as deturpações
sobrevêm a necessidade de reafirmar o compromisso docente em se posicionar frente a essas
disputas pela “memória coletiva” (Pollak, 1992, p. 203) por setores ligados a demandas autoritárias
e preconceituosas. Portanto, a memória como importante nos estudos da história teria um
significado na luta por uma sociedade mais justa, pois recuperaria eventos históricos que evocariam
a atuações de indivíduos contra a desigualdade.

Ao que se observa, à intensificação das disputas pelas memórias somam-se aos


questionamentos sobre o papel da docência e o caráter político e ideológico implicado nos
processos de ensino e aprendizagem. Para os professores, necessário se faz uma reafirmação dos
objetivos que norteiam a existência da disciplina em seu compromisso com a construção de um
futuro de menos intolerância, violência e preconceitos. Aliás, esta foi uma questão importante, em
que os professores entenderam que a BNCC poderia destacar ou verbalizar de forma mais intensa.
No caso, a crítica que se estabelece é que a Base pautou suas observações apenas em conteúdos
que articulam estas temáticas, sem dar muitas opções aos professores de como estabelecer maiores
considerações, produzir maiores habilidades, quanto a estes objetos de conhecimento. A Base
também não aponta como trabalhar estas unidades temáticas de forma a revelar seu caráter
transformador da sociedade.

Relacionando os desafios da disciplina numa era de proliferação de outras narrativas sobre


o passado, construídas fora dos espaços escolares, os professore tem plena consciência de que as
interpretações do passado são produzidas hoje fora da academia e alcançam o espaço midiático e a
esfera pública de uma maneira avassaladora, o que coloca o ensino escolar em xeque. Esta é, na
verdade, a maior ameaça percebida pelos docentes. Para os professores, o fato da história escolar
não ocupar grandes espaços no currículo, observa-se uma carga horária diminuta, assim como
767

conteúdos, são questões a se preocupar. No entanto, o que deve tirar o sono dos professores, está
associado com a questão em que os docentes poderiam chamar de problema epistemológico, ou seja, do
regime de verdade em torno da disciplina escolar de história, que tem de competir com essas outras
produções de versões históricas construídas fora do ambiente escolar e que acabam interferindo
na forma como o professor atua.

Os professores, ao apresentar a experiência de ter que corrigir determinados eventos


apontados por alunos, a partir de contatos com outras versões do passado, revela que a BNCC
pode colaborar no combate ao que se poderia chamar de fake história, principalmente nos estudos
dos 6.º ano, no momento em que o ofício do historiador é abordado. Ao destacar a unidade
temática “História: tempo, espaço e formas de registros”, no objeto de conhecimento “Formas de
registro da história e da produção do conhecimento histórico” a habilidade “Identificar a gênese
da produção do saber histórico e analisar o significado das fontes que originaram determinadas
formas de registro em sociedades e épocas distintas” (EF06HI02), devia se constituir como algo
observável em outros momentos da formação nos anos seguintes, permitindo que o trabalho com
documentos e a forma como trabalha o historiador pudesse ser um instrumento permanente na
reflexão do alunado.

Compreensões com a anterior, evidencia-nos a importância de pensarmos a história como


uma construção que se faz “viva” em espaços e ambientes diversos, muitas vezes desaprovados ou
mesmo nem discutidos nos espaços acadêmicos, mas que precisam, para se constituir enquanto
conhecimento histórico, guardar os pressupostos da disciplina. Para os professores, essa questão
se torna crucial, pois frequentemente precisam defender ou justificar seus métodos de trabalho
como estratégia de enfrentamento dessas narrativas não científicas sobre o passado. Desta forma,
observa-se os vários desafios ao professor de história, especialmente em um momento em que sua
atuação profissional e produção intelectual é questionada por quem defende uma “neutralidade”
no ensino de história (Penna, 2017), como os apoiadores do movimento Escola sem Partido, por
exemplo.

A habilidade de atribuir significado aos temas estudados na disciplina aparece como a


característica mais importante ao professor de história, inclusive para combater as fake histórias. Mas
como isso se efetiva na prática docente? No relato dos professores, essa premissa associa-se a
necessidade de historicizar os fatos sociais, a partir de uma perspectiva mais plural e inclusiva, o
que reflete também os segmentos com os quais esse professor trabalha na rede municipal. Portanto,
“conhecer seu lugar nessa história” estaria associado ao primeiro passo de um entendimento mais
amplo da sociedade como um todo. Vemos, portanto, a necessidade de se aproximar dos alunos,
768

incentivar a desnaturalização dessas opções arbitrárias do próprio currículo escolar, a partir de um


exemplo comum que podem ser vinculados a própria experiência dos discentes. E
consequentemente a refletir sobre o lugar deles próprios nesse saber histórico privilegiado em que
ele se depara como conteúdo escolar.

Aos professores, a questão do sentido a ser conferido pela disciplina tem de


necessariamente perpassar por uma reflexão constante do docente. Neste aspecto, o professor de
história deve perguntar-se durante o exercício da docência por que está falando sobre determinado
assunto? Porque escolheu determinadas temáticas? Quais reflexões quer suscitar a partir de tal
tema? Claro que estas questões são mediadas em função do tempo, dos recursos, do ambiente de
trabalho, no entanto, são importantes para dar maior sentido a disciplina e tornar o ensino mais
significativo para o aluno. Ao que se observa, as narrativas didáticas conduzidas pelos docentes
devem sempre buscar refletir e questionar, vinculando o tema estudado a vida e realidade do aluno.
Necessário se faz, portanto, pensar em links, estratégias para se aproximar de seu público, despertar
uma curiosidade.

Associar a habilidade docente de atribuir sentido aos conteúdos da disciplina a um perfil de


professor investigativo é o que se conclui. Como foi dito, um bom professor de história é
necessariamente um bom pesquisador. Nesse aspecto, o professor deve ser uma pessoa que tem
um mínimo de curiosidade que a motive a fazer pesquisas e que motive necessariamente a sair da
sua zona de conforto, buscando também despertar interesse nos alunos.

A reflexão anterior abre-nos espaço para pensarmos melhor essa relação entre o ensino
básico e a academia. No caso, pensar em estratégias que permitam levar os conteúdos produzidos
na universidade para a sala de aula, de forma a construir uma didática própria para cada realidade
escolar é tarefa do professor. No entanto, deve-se rejeitar uma posição de ensino bancária (Freire,
2001, p. 52), de apenas transmitir conteúdos aos alunos. Há necessidade de uma preocupação
dialógica, construtivista que gere compreensão e significado. Nessa perspectiva, o texto da aula,
que pode ser elaborado pelo professor precisa indispensavelmente dialogar com diferentes
perspectivas da produção de conhecimento não descuidando dos objetivos que norteiam a
finalidade da história escolar.

Ao afirmarmos a importância concedida ao processo de criação didática, retomamos o


debate de que é necessária uma sensibilidade do professor em localizar, na medida do possível, os
pontos de intercessão entre os conteúdos vistos em sala e o interesse dos alunos. Neste aspecto,
pensar um ensino mais receptivo aos interesses dos discentes é propiciar uma perspectiva histórica
das questões do momento presente. O professor deve entrar nos debates contemporâneos com os
769

recursos da disciplina. Acreditamos que os alunos têm essa expectativa também. Quando
perguntam “por que devemos estudar história?” Ou quando diz “isso é muito velho, muito antigo,
não vi acontecer”, na verdade, ele está sendo extremamente crítico ao trabalho do professor, pois,
não consegue ver um horizonte de expectativas naquilo que está sendo ensinado e, de certa forma,
está cobrando o docente.

Uma saída para a questão anterior é que o ensino de história esteja mais próximo e inclusivo
às demandas dos discentes, como apontamos em outros momentos neste texto. Neste aspecto, a
proposta da BNCC pode ser bem significativa. No caso, permite aos professores que construam
habilidades de forma que os alunos possam conduzir esse conteúdo para suas experiências de vida
prática. Não há dúvidas que estamos diante de percepções sobre a disciplina de história e o trabalho
do professor que mergulha em uma história mais real, que envolve o aluno e desperta o pensamento
independente, para lembrarmos aqui os estudos de Maria Louro Felgueiras (1994), para quem a
história deve repensar seu ensino de forma a torná-lo mais significante. Nos parece que aqui reside
o elemento central, quando se observa as reações dos professores neste contexto de implantação
da BNCC e dos desafios e ataques sofridos pela história, ou seja, tornar os estudos de história como
algo que expresse sentido e importância aos alunos e a sociedade.

Elementos conclusivos

A compreensão que os professores estabelecem da disciplina de história em um momento


de implantação da BNCC é da necessidade de reflexão sobre a importância dos estudos históricos
neste contexto de mudança curricular, mas também da necessidade de reafirmação da importância
da história. Neste aspecto, se aponta uma perspectiva de uma outra história que precisa ser
trabalhada.

A outra história apontada está associada a ideia de aproximar os alunos do conteúdo


trabalho pelos professores em sala de aula, construir o que poderíamos chamar de uma história
significante. Isto pressupõe trazer os discentes para a arena dos debates históricos, não como
espectadores, mas como agentes ou sujeitos da história. Isto significa fazer com que os alunos se
vejam nestas histórias, que se percebam no que leem e que, na construção da vida, estes se vejam
nas lutas e disputas sociais.

O recurso ao passado, quando consideramos que a história se constrói na luta social, não é
como algo apenas para ser conhecido ou entendido, mas que esta experiência em tempo de outrora
possa estabelecer conexões com o tempo presente. Nesse sentido, o passado para além de explicar
770

o presente deve colaborar na construção de uma leitura que permita construir estratégias de
transformação da sociedade. Aliás, é nesta perspectiva que, em parte, se sustenta o ensino de
história, ou seja, colaborar na construção de valores, sentimentos de pertencimento e compreensão
de direitos e deveres que nos auxiliam na vida em sociedade ou na luta pela sua transformação.

A perspectiva de vida em sociedade pressupõe as relações presentes, mas também


estabelecer vínculos, pelo menos no campo da expectativa, com o futuro. No caso, ao acionarmos
o passado também pressupomos uma dimensão do futuro, uma vez que estamos a procura de
saídas mais seguras para os problemas e situações vividas em sociedade.

Uma última questão que se observou está associada a dimensão de um ensino que
compreenda a realidade social. Em outras palavras, pressupõe uma história para formação para
cidadania, ou seja, um ensino que promova a liberdade de aprender e ensinar, o que significa
associar o aprendido a realidade de vida e buscar ensinar, partindo de uma experiência social do
docente.

Por fim, diríamos que esta historia que expressa a realidade do aluno e estabelece conexões
com a atuação do professor no âmbito da sociedade é a que melhor responde aos questionamentos
sobre o que ensinar, os sentidos que a história deve tomar e a importância do ensino de história.

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772

A Legião Brasileira de Assistência (LBA) e a assistência à saúde


materno-infantil em Teresina (1942-1945)

Francilene Teles da Silva Sousa*


Joseanne Zingleara Soares Marinho**

Resumo: este artigo analisa as ações assistenciais de saúde infantil, promovidas pela filantropia
feminina, por meio da Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência (LBA) em Teresina,
no período de 1942 a 1945. As políticas públicas direcionadas para mães e crianças somente
obtiveram relevância em âmbito nacional após a divulgação da Mensagem de Natal do Presidente
Getúlio Vargas em 1932, pois esta afirmava que a mortalidade infantil era um problema e que a
infância representava o futuro do país, portanto, deveria ser amparada. Para o enfrentamento dessa
situação, foram criadas parcerias entre o Estado e a filantropia, através da criação de instituições de
assistência de saúde materno-infantil, sendo que os poderes públicos federais centralizaram a
organização, as normas e a fiscalização dos serviços públicos e filantrópicos desenvolvidos nos
estados e municípios. No Piauí funcionava a Comissão Estadual da LBA sob a direção de Maria
do Carmo Mello, esposa do interventor, Leônidas de Castro Mello. O estudo pautou-se na
utilização de fontes primárias do Jornal Diário Oficial do Piauí. Para embasar o trabalho de análise,
foi realizada uma pesquisa bibliográfica de autoras como Joseanne Marinho (2018), Ana Paula
Martins (2015) e Ivana Simili (2008). Pode-se concluir que durante o governo de Getúlio Varga as
ações assistenciais voltadas para a saúde materno-infantil representavam um interesse nacional e,
em Teresina, o sistema de saúde pública foi padronizado objetivando a prevenção das doenças
como meio de promoção da qualidade de vida das crianças.

Palavras-chave: História, assistência, saúde pública, infância, Legião Brasileira de Assistência.

Introdução

O amparo social no Brasil foi instaurado a partir de parcerias entre Estado e instituições
filantrópicas, sendo a maior delas a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Com Comissões
distribuídas por todo o território nacional a instituição desenvolveu ações em larga escola
direcionadas para o atendimento aos mais pobres e, especialmente, para a proteção materno-
infantil.

* Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI, VIII bloco.
E-mail: francileneetelless@hotmail.com.
** Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professora Adjunta II do Mestrado Profissional

em Ensino de História PROFHISTÓRIA e da Graduação em História da UESPI.


E-mail: joseannezsm@gmail.com.
773

O período estadonovista foi marcado pela política social no Brasil e, por isso, a infância
antes vista como uma fase frágil, contudo, sem maiores preocupações ou interesse público, passou
a ser assistida com maior atenção. O governo de Vargas (1930-1945) possuía forte interesse pelo
desenvolvimento de políticas sociais, mais especificamente, direcionadas a assistência à saúde da
criança.

A ideia de construir uma proximidade com o povo a partir da figura da criança bem cuidada
e representando o futuro de uma nação saudável oportunizou o crescimento de ações filantrópicas
e assistenciais em torno da saúde da criança. Assim, era um interesse nacional que a criança fosse
assistida desde a gestação das mães. O principal objetivo de políticos, médicos e das instituições
filantrópicas era a diminuição da mortalidade infantil e, nesse sentido, a substituição de práticas
curativas pela medicina cientifica representava o caminho mais certo a ser seguido.

Desse modo, a LBA em parceira com outras instituições filantrópicas como a Casa da
Criança sediada na capital do Piauí desenvolveu ações voltadas para a saúde materno-infantil
(Moraes, 2014). Essas ações eram realizadas através de campanhas pedagógicas, cursos para as
mães, atendimento médico, acompanhamento constante da criança, distribuição de alimentos
seguindo as recomendações dos pediatras, vacinação (Barbosa, 2017). Além disso, eram ofertados
serviços no Lactário da instituição.

O Centro Médico de Teresina, por sua vez, oferecia a população atendimento especializado
nas áreas de saúde pública (Moraes, 2014). A prestação desses serviços em âmbito público tinha
um viés político, visto que, com isso objetivava-se estreitar a relação entre povo e Governo. A
medicina preventiva foi percursora dos crescentes índices de comparecimento da população aos
centros de saúde.

Para tanto, esse trabalho objetiva analisar as ações assistenciais de saúde infantil, promovidas
pela filantropia feminina por meio da Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência (LBA)
em Teresina (1942 a 1945). Desse modo, são abordadas as características e as questões que
influenciaram diretamente o Estado autoritário e as instituições filantrópicas no assistencialismo a
mães e crianças.

O estudo pautou-se em uma pesquisa bibliográfica utilizando uma abordagem descritiva.


Assim, foram utilizados livros, teses, revistas, bem como publicações do Diário Oficial de Teresina
do ano de 1942 ao ano de 1945, representando o recorte temporal utilizado para o trabalho e
representando a conjuntura política na qual os serviços de saúde materno-infantil foram
implantados no Estado, especialmente, no âmbito da capital.
774

Portanto, o interesse nacional pela diminuição da mortalidade infantil, bem como pela
melhoria da qualidade de vida das crianças era um interesse nacional e caracterizava um viés político
típico do Estado Novo para promover o desenvolvimento do país e estreitar laços com a sociedade
civil. Em Teresina, a emergente ideia fez surgir à necessidade da construção de espaços para o
atendimento materno-infantil, a regularização desses atendimentos consolidou práticas de
uniformização do sistema de saúde por todo o Estado.

Fundação e atuação da LBA no Piauí

A Legião Brasileira de Assistência – LBA, fundada em 28 de agosto de 1942, foi criada


dentro de um contexto de racionalização e controle governamental, no qual as práticas assistenciais
e as estratégias deveriam está em consonâncias com os ideais defendidos pelo governo ditatorial de
Vargas (Silva, 2018). A figura da mulher representada majoritariamente pela esposa do presidente,
Darcy Vargas, e pelas demais primeiras damas e voluntárias por todo o território nacional era vista
como maternal, cuidadosa, protetora dos mais desfavorecidos e das crianças, bem como uma
pessoa caridosa.

A feminilidade presente dentro da instituição representou, para a época, marcada pela


existência do Estado Novo, o poder exercido pelas mulheres para além de seus lares e da
maternidade. O papel da mulher dentro da assistência social conferiu as mulheres, especialmente
as da elite brasileira, um novo papel social.

Foi nesse contexto que o governo central incentivou a participação da sociedade,


principalmente das mulheres de elite, por meio da criação de associações de caráter filantrópico,
em que se insere a fundação da LBA. Ademais, as primeiras-damas do país, eram as principais
representantes dessa nova cidadania, uma vez que ocupavam as presidencias da Comissão Central
e Estaduais. Esse cargo era conseguido por causa dos cargos ocupados por seus maridos e da
proximidade com outros representantes políticos (Martins, 2011).

Desse modo, o anúncio da fundação da LBA junto ao anúncio de Getúlio Vargas sobre a
entrada do Brasil na II Guerra Mundial provocou inúmeras mudanças no cenário político, social e
econômico do país (Associação..., 1942). A instituição não possuía fins lucrativos e sua duração era
ilimitada. O ideário inicial era amparar os soldados mobilizados para combater na Guerra e suas
famílias em parceria com o Estado e a iniciativa privada.
775

Sendo, portanto, uma instituição com práticas voluntárias formada em sua maioria por
mulheres (Simili, 2008). Desse modo, o governo esperava alcançar um apoio maior da população,
especialmente, dos menos favorecidos que representavam a maior parcela da população nacional.

A atuação da LBA perdurou por 53 anos, nos quais a instituição se consolidou como o
único modelo de assistência para o combate e enfretamento da pobreza no país. Em 1995, a LBA
foi instinta, pelo então presidente, Fernando Henrique Cardoso dando ligar ao Programa Federal
Comunidade Solidária (Barbosa, 2017).

A atuação da LBA dava-se por meio de financiamentos e convênios ligados estreitamente


a inciativa privada e pública para desenvolver serviços de infraestrutura social, bem como
programas assistenciais voltados para o enfretamento da pobreza e combate a mortalidade
materno-infantil. As ações de assistencialismo da instituição eram oferecidas em creches, asilos e
centros de reabilitação mantidos através das doações recebidas (Sposati, 1988).

A história da fundação da LBA está intimamente ligada à política brasileira, pois enquanto
os interventores atuavam na direção do país, dos estados e dos municípios, desenvolvendo as
funções públicas oficiais em seus gabinetes, as esposas desses mesmos políticos tornavam-se
protagonistas atuando na diretoria das Comissões Estaduais e Municipais da LBA. Apesar disso, a
partir da Interventoria Federal, havia a regulamentação, o controle e a fiscalização dos órgãos
filantrópicos que atuavam no país (Gonçalves, 2009).

Os trabalhos relacionados à assistência da saúde materno infantil, bem como aquelas


ligadas ao cuidar e ao assistir, historicamente estiveram orientados para as figuras femininas.
Portanto, o lugar da mulher conforme a tradição patriarcal era definido como o de recatada e do
lar, a mãe dedicada, a esposa amorosa. Logo, a mulher na perspectiva patriarcal tinha uma inclinação
natural a cuidar daqueles que mais necessitavam por sua característica supostamente inata da
maternidade (Martins, 2011).

Além disso, o papel exercido pela mulher, especialmente de elite, era essencial para
incentivar as demais mães na promoção da saúde e da educação para com seus filhos, bem como
participar das ações realizadas pelas instituições. Assim, as mulheres agiam em conjunto com os
médicos difundindo a função materna no cuidado dos filhos, no incentivo a educação, a saúde
física e no carinho (Kuhlmann Jr, 2010).

O funcionamento da LBA engloba três questões fundamentais: a primeira diz respeito ao


seu funcionamento, visto que foi fundada em agosto de 1942, contudo, só inciou suas atividades
efetivamente em 15 de outubro do mesmo ano. Essa questão se deu em decorrência do tempo
776

necessário para que as organizações quanto à sistematização de suas ações e suas parcerias fossem
instauradas.

A segunda questão diz respeito aos interesses da LBA em criar inquéritos, pesquisas e
estudos sobre o serviço social, além de promover cursos e campanhas divulgadas através de
propagandas que favorecessem o crescimento do serviço social em território brasileiro. Isto serviria
tanto para ampliar suas ações, quanto para avaliar como a nação estava percebendo e recebendo as
ações.

A terceira questão é referente ao proposito da LBA em promover parcerias com outras


instituições filantrópicas já existentes, bem como com outras que fossem criadas, para que as
campanhas obtivessem maior número de voluntários e, consequentemente, maior alcance entre as
camadas mais pobres. Por isso a busca por voluntários de boa vontade foi uma constante dentro
da instituição.

A LBA era regida por um Estatuto, registrado em 5 de outubro de 1942, no qual o objetivo
primordial era criar uma rede de voluntárias de modo a valorizar a participação feminina sem
esquecer, entretanto, a hierarquia entre a Comissão Central e as demais Comissões (Estatuto da
LBA, 1942). Assim, a CC ficava a frente de todas as ações e a colaboração da população brasileira
era exaltada, pois disso dependiam diretamente as ações.

Conforme Art. 6º, a Comissão Central seria composta por um diretor, um secretário, um
tesoureiro e quatro vogais. Além disso, de acordo com Art. 6º parágrafo 1º, “[...] Presidência será
exercida pela esposa do Presidente da República, e na sua falta, por pessoa de relevo social”
(Estatuto..., 1942, p. 12). Portanto, os cargos de chefia eram destinados aos homens, com exceção
da presidência, e, enquanto o referido Estatuto esteve vigente isso se perpetuou. As Comissões
Estaduais seguiam o modelo da CC sediada no Rio de Janeiro.

As Comissões Estaduais da LBA contribuíram significativamente para que as ações da


instituição fossem realizadas em larga escala por todo o país, visto que com apenas uma matriz isto
seria inviável. Desse modo, deveriam ser organizadas e realizar as atividades de modo que ficassem
subordinadas a Comissão Central, conforme se estabeleceu do Art. 12º ao 16º do Estatuto:

Art. 12 – As Comissões Estaduais – CE – serão organizadas nos mesmos moldes


da Comissão Central com atividades dentro de cada Estado ou Território;
Art. 13 – As CE compor-se-ão de sete membros: um presidente, um secretario,
um tesoureiro e quatro vogais.
Paragrafo 1° - O presidente será designado pelo presidente da C.C, dentre os
elementos femininos da Capital do Estado, ouvindo o chefe do governo estadual;
777

Paragrafo 2° - O secretário e o tesoureiro serão indicados pelas Federações das


Associações Comerciais e Federações das Indústrias dos Estados. Os vogais
serão indicados, dois pela Associação Comercial da Capital do Estado, os outros
pela Federação da Indústria do estado, na falta desta, substitui-la-á entidade
indicada pela Confederação Nacional das Indústrias.
Art. 14 – As C.E exercerão sua atividade diretamente na Capital do respectivo
Estado ou Território, onde terão a sua sede, e nos demais municípios, por
intermédio dos Centros Municipais por elas organizados.
Art. 15 – Como delegações, as C.E ficam sujeitas as normas e instruções
emanadas da C.C.
Parágrafo único – as C.E poderão propor à C.C, as medidas que julgaram
necessárias, inclusive, para assisti-las, a criação de Comissões ou outros órgãos
técnicos auxiliares. (Estatuto... 1942, p. 12).
Art. 16 – O orçamento das despesas não será cumprido sem a prévia aprovação
da C.C, a quem as C.E nas épocas determinadas deverão prestar contas e em
qualquer momento, os esclarecimentos que forem pedidos. (Estatuto da LBA,
1942, p. 12).

Dessa maneira, promovia-se uma visão hierárquica a respeito da Comissão Central em


relação às outras Comissões. A padronização seguia aspectos ligados à organização, aos cargos
designados, as atividades realizadas, os gastos e as arrecadações. Não o bastante, era imperativo
que todas as Comissões buscassem apoio junto aos setores econômicos e privados do país. O
apoio financeiro era cada vez mais visto como indispensável considerando que o Brasil passava
por uma crise econômica em decorrência da II Guerra Mundial.

Além disso, a CC era composta pela presidente geral da Instituição, Darcy Vargas, pelo
Secretário Geral indicado pela Confederação Nacional da Indústria, Rodrigo Octavio Filho e pelo
Tesoureiro Geral indicado pela Federação das Associações Comerciais do Brasil, João Daudt de
Oliveira. Conforme Art. 8º do Estatuto, a CC competia:

- Estabelecer o plano de organização geral e elaborar os programas de trabalho;


-Organizar o regimento interno, baixar instruções e tomar as resoluções
necessárias para regular o funcionamento de todos os setores da instituição;
- Promover os trabalhos da L.B.A no Distrito Federal;
-Submeter anualmente á apreciação do Conselho Deliberativo a proposta de
orçamento e quando seja necessário, as alterações e os acréscimos das dotações
previstas;
-Dispor dos recursos da L.B.A, autorizando despesas dentro das verbas
orçamentarias;
- Submeter às contas à apreciação do Conselho Deliberativo no fim de cada
exercício;
-Examinar e decidir sobre os orçamentos, as contas e os relatórios apresentados
pelas Comissões Estaduais;
-Aprovar o quadro de empregados para os serviços de esfera da Comissão
Central, fixando respectivos vencimentos;
- Praticar quaisquer atos que não sejam reservados à competência de outros
órgãos da administração;
- Resolver os casos omissos
778

- As deliberações da competência da Comissão Central serão tomadas pelo


presidente, secretário geral, tesoureiro geral e diretor técnico. (Estatuto da LBA,
1942, p. 12).

Nesse sentido, a partir de um Estatuto, a LBA criou um aparato administrativo para


sistematizar sua estrutura intuindo aperfeiçoar e expandir suas ações em âmbito nacional. A
diferença entre os gêneros estava enraizada desde a sua criação, pois cargos direcionados a questões
burocráticas e financeiras eram ocupados somente por homens.

Assim, com exceção da presidência da instituição e de suas Comissões, que era ocupada
pelas primeiras-damas os demais cargos atribuídos a mulheres eram de auxiliares, ocupando cargos
com funções relacionadas às famílias dos soldados ou aos cuidados materno-infantis. As mulheres
atuavam nas diversas frentes de trabalho, desde a organização de campanhas para arrecadar fundos
para a LBA até o atendimento direto aos pobres, por meio de visitas as famílias, oferta de cursos
ou acompanhando os médicos nos serviços voluntários as mulheres.

O efeito do gênero nas relações institucionais constituídas nos anos de 1942 a 1945 ocorreu
através da assistência social promovida pela LBA que, desde sua criação, caracterizou-se pelo
voluntariado amplamente destacado pelo exercício das mulheres (Barbosa, 2017). Esse fator
repercutiu positivamente para que a visibilidade do protagonismo feminino ganhasse força na
época.

Outrossim, as questões que instigaram as mulheres de classes privilegiadas a participarem


das atividades assistencialistas, a partir do século XIX, beneficiaram as camadas pobres da
população brasileira e promoveram a participação da mulher na vida pública. Desse modo, essas
questões “[...] advêm da urgência da questão social, quando as mulheres das classes privilegiadas
foram incentivadas a se envolver com as obras de assistência, levando alguma espécie de consolo
aos menos favorecidos” (Barbosa, 2017, p. 34).

Portanto, dedicar-se a causas sociais, criar uma rede de apoio feminina e colaborar para o
bem estar social foram maneiras de construir espaços de sociabilidade e com a continuidade
interagirem junto ao poder público masculino. Para tanto, a inclusão da mulher na vida pública
abriu caminhos para a construção de uma nova identidade feminina pautada no maior poder de
fala, de decisão e participação (Bertolini, 2002).
779

Saúde materno-infantil: assistencialismo e os serviços de saúde da capital do Estado

A partir do período estadonovista a saúde materno-infantil passou a ter centralidade no


projeto de governo. Iniciativas de conservação da saúde, fornecimento da educação formal,
combate ao abandono, preparação para o trabalho, além do enfrentamento da delinquência, foram
considerados setores essenciais de investimento público e filantrópico (Marinho, 2018). A criança
tornou-se interesse nacional e passou a fazer parte das propagandas do governo, que defendiam,
por meio da imprenssa, a necessidade da proteção, do cuidado e da vida digna a criança para que o
desenvolvimento do país.

Evidentemente, deve-se observar o viés político diante das iniciativas de proteção materno-
infantis, a saber, a vontade de continuar no poder e controlar as massas humildes que ainda
compunham a grande maioria do Brasil e, especificamente, no Piauí. No entanto, as atitudes
governamentais e filantrópicas se tornaram referências importantes no estimulo à saúde, à educação
formal e à luta contra o abandono de mães e crianças mais necessitadas.

Entretanto, o Governo Vargas (1930-1945) caracterizou-se pela política social no Brasil e a


atenção à infância deu-se direcionada para a assistência a saúde. Logo, a partir de 1930 as políticas
sociais se fortalecem no país e passa a ser concebida como uma função do Estado (Fonseca, 1993).
Assim, a assistência social às crianças ganhou destaque e era uma das grandes questões sociais
levantadas pela sociedade da época.

A preocupação em torno da criança, especialmente da primeira infância, se sobressaiu por


causa das questões relativas às altas taxas de mortalidade infantil da época, tendo como causas
principais a fome, as doenças e o trabalho infantil. Para tanto, sabia-se que os problemas
relacionados à infância respingavam nos demais problemas sociais e, portanto, tornou-se um
interesse do governo (Saul, 1942).

Os anos de 1942 a 1945, marcados pela II Guerra Mundial, o retorno ao lar dos brasileiros
que foram servir na Guerra oportunizou uma nova visão da infância, conferindo a vida das crianças
uma importância antes não vista (Ariés, 1981). Assim, o idealizava-se a construção de um novo
Brasil, no qual a solução dos problemas sociais era o foco principal.

Nesse sentido, as políticas públicas voltadas para a infância assumiram um caráter


emergente e intervencionista para que seu desenvolvimento fosse assegurado. Somado a isso, a
população apresentava um interesse cada vez maior por questões assistencialistas ligadas a criança
780

e, por isso, um conjunto de medidas eram criadas para que as atividades ligadas à saúde e a educação
da criança fossem instauradas no Brasil (Fonscenca, 1993).

As aspirações do governo Vargas giravam ao redor da crescente preocupação com a


assistência no âmbito da infância dos brasileirinhos, compreendida dentro das esferas da educação,
da saúde e do desenvolvimento social. Essa preocupação foi significativamente expandida após a
Mensagem de Natal proferida pelo então presidente, em 1932, na qual os interventores eram
convidados a desenvolver ações em seus Estados em prol da proteção materno-infantil (Semana
da criança, 1943).

Para tanto, essa politica direcionava “[...] o olhar sobre as crianças significava a possibilidade
de concretização de um desenvolvimento nacional crescente, estabelecendo dentro de certa ordem
que pudesse garantir a manutenção do status quo.” (Silva, 2003, p. 62). A assistência à criança seria
um dever de toda a sociedade brasileira, sendo considerada uma riqueza potencial do país e,
portanto, devendo ser robustos e animosos.

Durante as primeiras décadas do século XX a filantropia desenvolvida em associações


espalhadas por todo o território nacional passou a voltar-se para a infância, assim, estabelecia-se
“[...]. um proposito comum: ‘salvar a criança’ para transformar o Brasil.” (Rizzini, 2008, p. 27).
Nessa conjuntura, os governos estadual e municipal do Piauí criaram estabelecimentos públicos
com essa finalidade, bem como “[...] forneciam auxílios financeiros para os estabelecimentos
filantrópicos especializados no atendimento materno-infantil” (Marinho, 2017, p. 309).

Para tanto, as ações desenvolvidas pela LBA em conjunto a outras instituições filantrópicas
buscavam cumprir as concepções políticas propagadas pelo Estado Novo, no qual a proteção à
maternidade e a infância tinham merecido destaque (Barbosa, 2017). A criança representava, assim,
uma nova bandeira levantada pelas autoridades políticas.

No Piauí, objetivando construir uma relação estreita com a população o Estado autoritário
adotou um sistema de saúde centralizado que foi moldado pelo Ministério de Educação e Saúde
via Departamento Nacional de Saúde. Assim, começou um período intenso de trabalho para que
profissionais fossem formados e especializados em saúde pública, elaboração de leis, regulamentos,
bem como códigos sanitários para que o serviço de saúde fosse uniformizado em todo o Estado
(Moraes, 2014).

De acordo com o relatório apresentado pelo interventor Leônidas Mello, referente à


produção dos Centros de Saúde do estado do Piauí do ano de 1943, é possível identificar atividades
no serviço infantil do Estado, entretanto, neste trabalho serão apresentados a seguir apenas os
781

dados relativos à capital Teresina. O relatório demonstrava que a difusão de noções de higiene e de
puericultura, além da assistencia e intervenção médica sobre as práticas de saúde materno-infantil
estavam sendo difundidas por todo Estado (Relatório..., 1944).

Tabela - Atividades do Serviço Infantil em Teresina

PRODUÇÃO DOS CENTROS DE SAÚDE DE TERESINA

Novos infantes inscritos 834


Comparecimentos de infantes 4498
Infantes que receberam prescrição 1083
Infantes que receberam medicação 1965
Infantes que receberam a vacina BCG 514
Inantes imunizados contra difteria 105
Infantes imunizados contra varíola 23
Visitas a infantes na 1ª semana de vida 1661
Nas 3 seguintes semanas de vida 659
Com mais de um mês e menos de 3 762
Com mais de 3 e menos de 6 834
Com mais de 6 e menos de 1 ano 1206
Tuberculina – reações em infantes 131
Positivas, 95
Infantes que receberam leite 601
Fonte: Diário Oficial (1944).

O controle dos dados permitia o acompanhamento do número de crianças atendidas. Para


que as atividades desenvolvidas pelo Centro de Saúde obtivessem êxito a parceria com as mães era
fundamental. Assim, a conscientização quanto à importância da imunização e do acompanhamento
dos filhos nos meses solicitados pelos médicos deveria ocorrer.

No que se refere especificamente a Teresina, a Casa da Criança desenvolvia atividades


semelhantes as dos Centros de Saúde. Inaugurada em 1943 a Casa da Criança objetivava
primordialmente o combate à mortalidade infantil e, por esse motivo sua instalação contava com
782

“[...] um serviço de triagem, um ambulatório de pediatra e puericultura, creche, um lactário, jardim


da infância e serviços auxiliares” (Instalação..., 1943, p. 1).

Em 1944, a LBA divulgou um relatório sobre o primeiro ano de funcionamentos da


instituição. Assim, 5.975 crianças foram atendidas no ambulatório, 70.234 crianças foram atendidas
no Lactário, a creche atendeu a 5.896 crianças, além disso, 57.668 receberam leite. Ao longo desse
primeiro ano houve 26 óbitos. Somado a esses serviços ainda eram oferecidas aplicação das vacinas
antidiftéricas, antivariólicas e BCG (Batista, 2011).

O lactário da Casa da Criança, o primeiro de Teresina, atuava diretamente no combate a


desnutrição, pois era uma das principais causas da mortalidade infantil no Estado. Era mantido pela
LBA e pelos governos estadual e municipal, bem como pela inciativa privada através de doações.
Sob a direção da voluntária Zoraima Rodrigues, o lactário atendia diariamente mais de 250 crianças.
Desse modo, era prescrito o regime alimentar para as crianças, bem como era realizada diariamente
as refeições (Marinho, 2018).

A filantropia não cabia mais somente salvar almas dos bebês através do batismo e
praticando a virtude do amor ao próximo, como nas primeiras décadas do século XX, mas passava
a existir a iniciativa dos poderes públicos, dos médicos e da iniciativa privada para o enfrentamento
da pobreza e da mortalidade infantil em torno da criança necessitada (MARINHO, 2018). A
assistência a saúde passava a ser uma garantia para que mães pudessem gestar, dar à luz e cuidar
dos seus filhos mantendo-os saudáveis e robustos.

As elevadas taxas de mortalidade infantil a criança passou a condição da criança passou a


ser um problema nacional e, a partir disso os discursos médicos giravam em torno da preocupação
com fragilidade da infância e a necessidade de um atendimento específico para essa faixa etária.
Desse modo, essas “[...] características trouxeram à medicina o desafio de pensar em uma
abordagem específica, que visasse ao atendimento das crianças, sujeitos cada vez mais diferenciados
dos adultos.” (Moraes, 2014, p. 148).

A maneira encontrada pelos médicos para iniciarem o esclarecimento sobre os cuidados


com a criança era a alimentação. A partir desse tema construía-se uma proximidade com as mães,
pois a preocupação com a qualidade da alimentação era uma constante para médicos pediatras,
visto que as doenças gastrointestinais eram uma das principais causas para as elevadas taxas de
mortalidade infantil. Para os médicos as mudanças relativas a alimentação da criança deveria ser
orientada pelo médico e as mães caberia acatar e seguir as recomendações (Moraes, 2014).
783

A fragilidade da infância provocou na medicina o desafio de criar uma abordagem específica


para os cuidados com a saúde das crianças. Via-se, a partir daí a criança como ser cada vez mais
diferente dos adultos e, nesse sentido:

Com efeito, médicos pediatras atuaram, no Brasil, em diversas iniciativas que


visavam à proteção à infância. Trabalharam com medicina curativa e preventiva
em seus consultórios [...] como legisladores que aprovavam leis e projetos, para a
proteção materno-infantil; e, por fim, na educação das mães através da busca de
redefinição da maternidade, mediante difusão de noções de higiene e de
puericultura. Coube ao pediatra, à difusão de novas formas de cuidar, alimentar,
vestir e higienizar. Esses médicos elaboraram discursos voltados para a mulher,
representada, com frequência, como parteiras, amas de leite e mães. (Moraes,
2014, p. 148).

Nessa concepção, criou-se um elo entre mães e médicos para o desenvolvimento dos
cuidados para com as crianças. A mãe cabia o papel de confiar inteiramente nos profissionais da
saúde e colocar em prática todos os direcionamentos dados. Assim, as práticas sociais de cuidado
infantil foram desacreditadas e deixadas de lado por grande parte das mães. Para os médicos as
mães deveriam ser guiadas pela racionalidade cientifica para que não cometessem erros, mesmo
que de maneira não intencional.

Ademais, o Dispersário de Tuberculose do Centro de Saúde da capital atuava em


colaboração com o Serviço Higiênico Escolar que funcionava na mesma unidade objetivando
realizar o cadastro tuberculino das pessoas em situação escolar, além de outras medidas cabíveis,
como a “[...] calmetização dos recém-nascidos, a ser estendida, aliás, aos analérgicos descobertos
pelo cadastro [...]” (Relatório..., 1944, p. 7). Esse cadastro levava em conta todos os aspectos
técnicos em torno da doença para que o tratamento fosse realizado.

As constantes melhorias em torno da quantidade e da qualidade dos serviços de saúde eram


evidenciados nas publicações do Diário Oficial. Para tanto, em 1944, a divulgação do relatório
apresentado pelo interventor evidenciava os números de comparacimento dos serviços do Centro
de Saúde de Teresina, conforme tabela 2 abaixo:

Tabela 2 - Comparecimento ao Centro de Saúde de Teresina de 1938 a 1943

NUMEROS DE COMPARAECIMENTO AOS DIVERÇOS SERVIÇOS DO


CENTRO DE SAÚDE DE TERESINA

MESES 1938 1939 1940 1941 1942 1943


784

Janeiro 3.713 3.798 4.100 4.225 4.722


Fevereiro 3.156 3.074 4.510 3.482 6.462
Março 4.005 3.618 6.446 4.180 5.751
Abril 4.578 5.209 4.620 5.210 3.510
Maio 4.442 4.403 3.752 6.493 4.703
Junho 3.623 4.887 3.922 5.827 4.567
julho 3.821 6.952 6.927 7.603 7.434
Agosto 4.281 6.123 7.561 6.708 6.664
Setembro 4.012 4.878 5.569 5.543 6.816
Outubro 3.984 2.389 4.559 7.562 9.484
Novembro 1.812 4.005 3.550 4.708 5.378 5.997
Dezembro 1.960 4.153 3.650 4.371 4.558 4.870

Totais 3.772 47.773 52.531 61.045 66.569 70.980


Fonte: Diário Oficial (1944)

O crescimento do número de pessoas que recebiam atendimento médico eram


animadores e representavam uma mudança na perspectiva da população em torno da medicina
como especialidade apta a curar as mazelas que acometiam a população. A prevenção de doenças
e o combate a mortalidade infantil eram as impulsionadoras das ações desenvolvidas pelo Centro
de Saúde. Outro aspecto a se considerar são as vacinas para a prevenção de doenças que acometiam
principalmente as crianças ainda na primeira infância.

Considerações finais

As ações públicas que compreendem o período do Estado Novo no Brasil (1942-1945)


estavam direcionadas para a saúde da população e, portanto, seguiam uma orientação nacional. No
Piauí, especificamente, as ações voltadas para os serviços de saúde seguiam os mesmos moldes do
próprio Estado: centralização administrativa, burocratização e racionalização normativa.

A partir da elaboração de um sistema de saúde centralizado o Estado autoritário passou a


intensificar os trabalhos em torno da uniformização do sistema de saúde objetivando construir
uma relação estreita com a população piauiense. A necessidade de um atendimento mais eficaz fez
surgir a necessidade urgente de profissionais especializados em áreas da saúde pública que pudesse
contribuir para a diminuição da ploriferação de doenças e dos elevados índices de mortalidade,
especialmente ligados aos cuidados materno-infantis.

A partir dessa iniciativa o Estado passou a viabilizar práticas de medicina preventiva,


ofertadas em âmbito público. Logo, o Departamento de Saúde Pública do Piauí passou a oferecer
785

ações médicas assistenciais, realizar trabalhos voltados para a educação sanitária e prevenção em
diversos municípios.

Na capital, Teresina, o Centro de Saúde, registrava anos após ano números satisfatórios em
relação aos números de pessoas atendidas, vacinadas. Além disso, os médicos, especialmente
pediatras, passaram a ter uma relação mais próxima com as mães das crianças para que pudessem
ser realizados trabalhos de acompanhamento e tratamentos em torno da alimentação e do cuidado
para que os índices de mortalidade caíssem.

Junto a LBA, a Casa da Criança atuava na capital do Estado também desenvolveu ações
voltadas para a saúde materno-infantil. É nesse contexto que surgem as parcerias entre Estado e
instituições filantrópicas para que se pudesse alcançar um maior êxito nos planos do governo de
construir uma nação saudável, na qual a criança representava um elo entre presente e futuro do
país.

Ademais, a formação e a especialização de profissionais vinculados à área de saúde pública


viabilizaram práticas da medicina preventiva, prestadas em âmbito público. O Departamento de
Saúde Pública do Piauí ofereceu ações médicas assistenciais, bem como realizou trabalhos de
educação sanitária e prevenção junto à população dos vários municípios.

Os serviços de saúde, durante esse período, foram desenvolvidos, em sua maioria, por
instituições filantrópicas, através de parcerias entre o poder público, a iniciativa privada e o
voluntariado. Eram realizados programas de aperfeiçoamento, cursos, divulgação de informações
ligadas ao tema por meio da imprensa local e nacional. A propagação dessas políticas ocorreu em
parceira direta com a LBA, que, por sua vez, articulou ações assistenciais e campanhas de caráter
filantrópico tendo com alvo a maternidade e a infância.

As campanhas realizadas com forte incentivo do Estado e de médicos puericultores


exerceram influência direta no modo de maternar e no cuidar da criança. A busca pela diminuição
da mortalidade infantil e pela melhoria da qualidade de vida fez surgir a emergência da criação de
instituições voltadas para a saúde materno-infantil. Essa política que tinha caráter nacional buscava
a articulação entre Estado e sociedade civil em prol do desenvolvimento da nação. Assim, o
atendimento a mulheres e crianças era prestado em lactários, postos de puericultura, centros de
saúde, ambulatórios nas cidades do Piauí.

Referencias
Associação Brasileira de Assistência, Diário Oficial, ano XII, nº 241, p. 11, 16 de nov. de 1942.
786

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788

Limitações da noção de “violência de estado” na análise de três


casos ocorridos no Vale do Ribeira, São Paulo

Gabriel da Silva Teixeira*

Resumo: Este artigo discute, a partir da análise de três casos envolvendo violência e violação de
direitos de comunidades rurais do interior do Estado de São Paulo durante a ditadura, algumas
controvérsias relacionadas ao debate sobre dos impactos do regime ditatorial de 1964, bem como
dos conceitos comumente utilizados nesta discussão. Os casos analisados neste trabalho permitem
questionar conceitos como o de “violência de Estado”, da compreensão implícita em torno dos
mecanismos de funcionamento da repressão civil e militar e das lógicas reparativas individualizadas
e centradas em aspectos documentais. Argumento que nas áreas rurais, em razão das dinâmicas
sociais e da natureza das relações laborais, da posse territorial e dos modos de vida, as dinâmicas
de violação e violência decorrentes da ditadura assumem sentidos e formatos diversos daqueles
privilegiados pelo debate corrente em torno da reparação dos crimes ditatoriais.

Palavras-chave: ditadura militar, golpe de 1964, São Paulo, Vale do Ribeira, repressão no campo.

Introdução

Ao longo deste texto exploro três casos e, a partir deles, tensiono alguns limites e
controvérsias conceituais – mas também políticas – que emergiram dos trabalhos na Comissão
Estadual da Verdade Rubens Paiva (CEV)329. Selecionei três casos, de uma mesma região do Estado
de São Paulo, unicamente pelo fato de que permitem uma compreensão cronológica de dinâmicas,
atores e processos que nos parecem pertinentes para o debate proposto.

De modo geral, os trabalhados permitem questionar algumas limitações do processo de


reparação conforme feito no país, com fortes feições individualizantes, com expressivo apelo
documental e focado em conceitos como os de “violência de Estado”, insuficientes para dar conta
de consequências coletivas e dinâmicas causadas não diretamente pelas instituições oficiais da
ditadura militar, mas por seus prepostos e apoiadores regionais. As dinâmicas exploradas – e as

*
Doutor em Ciências Sociais (Universidade Estadual de Campinas), Diretor da Associação Brasileira de Reforma
Agrária (ABRA) e professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro.
329
É importante registrar a presença e atuação dos demais membros do GT Rural da CEV Rubens Paiva, sem os quais
este artigo sequer teria condições de existir: Ivan Seixas, Yamila Goldfarb, Rafael Aroni, Osvaldo Aly Jr. e Danilo
Valentin Pereira. É devido à natureza coletiva dos resultados do trabalho aqui parcialmente apresentados que, ao longo
deste texto, utilizo uma narrativa de escrita que varia da 1ª pessoa do singular para a 1ª pessoa do plural.
789

controvérsias que ajudavam a iluminar - foram ficando evidentes ao longo da construção do Grupo
de Trabalho (GT) Rural, no âmbito da CEV Rubens, formado pela Associação Brasileira de
Reforma Agrária e algumas organizações e movimentos sociais rurais do Estado de São Paulo e,
sobretudo, da própria Comissão Camponesa da Verdade (CCV). Os três casos da região Sul do
Estado de São Paulo, conhecida como Vale do Ribeira, permitem traçar relações com discussões
mais gerais e polêmicas em torno dos trabalhos das Comissões Estaduais da Verdade e da própria
Comissão Nacional da Verdade (CNV), especialmente a limitação da noção de “violência de
Estado” que, como viu-se a partir dos próprios casos, mostrou-se mais complexa e diversificada
que os esquemas clássicos defendidos e registrados no relatório da CNV.

A primeira parte deste texto trata da operação que as Forças Armadas realizaram entre 1969
e 1970, no Vale do Ribeira, denominada Operação Registro, cujo objetivo era capturar militantes da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), comandada pelo capitão Carlos Lamarca. Ao cerco,
seguiu-se toda uma estratégia de ocupação militar dos “espaços vazios” do Vale do Ribeira, para
que novos focos guerrilheiros não se viabilizassem.

A segunda parte mostra as entranhas do processo de grilagem de terras, a participação


indireta de agentes públicos e algumas limitações do conceito de violência de Estado. Nesta sessão
apresento um dos casos mais emblemáticos investigados pela CEV Rubens Paiva, envolvendo a
grilagem de um território tradicional por parte do filho do então Ministro da Justiça do governo
militar, Alfredo Buzaid, no cargo entre 1969 e 1974. O caso é ilustrativo das dinâmicas sociais
acionadas pela ditadura e seus prepostos, interessados nas ricas terras da região, além de desvelar a
tênue fronteira entre interesses privados e os governos militares.

A terceira sessão mostra como empresas e outros interesses encontraram vazão no novo
ambiente criado pela ditadura para fazer valer seus interesses às custas do patrimônio público. Ao
final, uma breve conclusão sumarizando os principais argumentos do texto.

Napalm no Vale do Ribeira

A Operação Registro, realizada em 1970, foi uma das maiores mobilizações da história do II
Exército. Nela, foi empregado um contingente de quase três mil homens, entre membros do Centro
de Informações do Exército, de regimentos de infantaria e paraquedistas, além de policiais militares,
rodoviários, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e da Marinha. É o que mostra
790

o relatório militar, acessado pela Comissão da Verdade Rubens Paiva (PEREIRA,1970, p. 1-4)330,
assinado pelo então Comandante do II Exército, Gal. José Canavarro Pereira. O objetivo da
Operação consistir em capturar nove integrantes da organização Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), comandados pelo Capitão Carlos Lamarca que instalou centros de
treinamento de guerrilha na região do Vale do Ribeira.

Segundo o Relatório (PEREIRA, 1970), a Força Aérea Brasileira também teria participado
ativamente da Operação Registro, por meio da 1ª Força Aerotática, comandada pelo Brigadeiro
Hipólito. No dia 20 de abril de 1970, foram enviados quatro helicópteros – dois deles com poder
de fogo – e quatro aviões T-6 armados para a captura dos militantes. Aviões do tipo B-26 realizaram
os bombardeios na região, sem dar qualquer informação ou esclarecimentos às comunidades da
região, maioritariamente camponesas. De acordo com o material, a única medida de segurança que
teria sido adotada pelos militares foi a proibição de que camponeses e posseiros entrassem na
floresta. Nelson Vieira, um dos posseiros ouvido em uma das pesquisas de campo feita pela nossa
equipe em parceria com a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, conta que era na floresta
que estavam os roçados, a caça e o palmito que costumavam abastecer sua família:

O Exército, eles vieram de carro primeiro. Então pra nós aqui eles falaram:
“Ninguém vai pro sítio. Não vão pra lá que o negócio nós vamos queimar esse
mundo aí, porque nos vamos pegar esse povo. Se vocês tiverem lá também vocês
vão morrer” (Agência Pública, 2014a).

Adilson Vieira Alves, um pequeno proprietário do município de Cajati, era criança quando
aconteceu a Operação Registro. Afirmou que “ficou com mais medo do Exército do que deles [os
membros da VPR]” (Agência Pública, 2014a, grifos meus). Durante as pesquisas de campo, era
recorrente entre os entrevistados, ouvir relatos de que o Exército prendia, de modo indiscriminado,
qualquer pessoa que achassem que pudesse portar informações e/ou envolvimento com os
guerrilheiros. Foram inúmeros os relatos de torturas, perseguições e ameaças destinadas a membros
das comunidades rurais da região. Valia tudo para achar os guerrilheiros:

Fizeram desfeita com a gente. Humilhavam. Chamavam de vagabundo, ladrão,


bandido, “onde que estão os outros?”, “você é da raça”. Nós fomos maltratados
pela Polícia. Depois eles trataram bem, depois que decifraram a coisa (Agência
Pública, 2014a).

330
Disponível em https://www.dropbox.com/s/3z5lj0gbry7y1zv/docregistro. compressed.pdf?dl=0 . Acesso: em
março de 2020.
791

Os entrevistados, inclusive, comentaram sobre intervenções militares em festas,


confraternizações ou mesmo em casas de bairros rurais. Para alguns, a chegada do Exército na
região fora anunciada pelas bombas:

O avião tava aí mesmo. A bombaiada que jogaram nesse mato. Uuh! Tinha dias
que esses jatões eram um atrás do outro (Agência Pública, 2014a).

Aí os aviões já fizeram esse rasante né, e já começaram a jogar bomba, nesse


mesmo dia.
- E você viu?
- Vi, vi.
- E como é que era?
- Então, eles vinham em formação né, quatro, seis aviões (...), aí eles passavam
por cima do morro, da montanha e do seu Manoel pra lá, eles faziam assim
[desciam] e começava a descer, parecia ovo [bombas] né (..) e a gente escutava os
estrondo (Agência Pública, 2014a).

Um destaque interessante deve ser feito em relação às dinâmicas dos bairros rurais da
região. Era comum – e ainda é – que muitos lavradores e posseiros da região morassem em
pequenos vilarejos nas franjas das cidades da região e manejassem sítios próprios, ou arrendados,
em regiões mais distantes, na “roça”. As Forças Armadas, ao bombardearem as regiões
montanhosas do Vale do Ribeira, bombardeavam também os sítios e chácaras de posseiros e
pequenos arrendatários. E como visto nos relatos anteriores, o bombardeio era indiscriminado,
precedido apenas – quando feito – por um aviso do Exército para que ninguém mais fosse para as
regiões a serem bombardeadas.

Em parceria com a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, a Comissão da Verdade


Rubens Paiva encontrou dois estilhaços de bomba, devidamente coletados e encaminhados ao
Ministério Público Estadual de São Paulo. A Força Aérea Brasileira jamais reconheceu que
bombardeou áreas rurais povoadas durante a ditadura.

À época, enquanto o II Exército tentava distanciar os jornalistas brasileiros do calor dos


acontecimentos, o adido militar francês Yves Boulnoir tinha acesso livre e acompanhou o
desenvolvimento da Operação Registro durante, aproximadamente, um mês. No informe ao
Ministério de Defesa francês, escrito em maio de 1970 (Agência Pública, 2014b), Boulnoir descreveu
o que observou em terreno brasileiro, desde as táticas militares até os materiais utilizados, dentre
eles o bombardeio feito em solo paulista. Um dos seus objetivos como adido, além de treinar
militares brasileiros em técnicas de tortura, era vender material bélico francês ao governo militar.
792

Do lado dos moradores e comunidades rurais da região, até hoje não se sabe a que perigos
foram expostos. Nas visitas de campo feitas pela equipe da CEV nos municípios da região, foram
diversos os relatos de moradores que acharam bombas (muitas não detonadas), ou relataram
exposição aos componentes químicos oriundos do interior das mesmas. Segundo os relatos, o
conteúdo “parecia enxofre”, ou “um pó branco”, ou mesmo um material que “ardia nos olhos”.
Foi notável constatar como todo o episódio ficou presente e preservado no imaginário dos
moradores da região, sobretudo de forma jocosa.

Os informantes na região basicamente se dividiam entre aqueles que tinham pavor em falar
da história – alguns, chegavam a concordar em comentar, desde que desligássemos os gravadores
ou que não contássemos a ninguém aquilo que estavam prestes a confidenciar – e aqueles que
falavam longamente, sem qualquer pudor. A maior surpresa foi constatar como a Operação Registro
tinha virado um folclore para alguns. Pessoas relataram terem guardado bombas não detonadas em
casa como enfeite, ou como “recordação da história”, como relatou um dos interlocutores.

Um dos entrevistados relatou em detalhes como foi trabalhar como mateiro para o Exército
na busca dos militantes. Chegou a rememorar um caso em que dois militantes da VPR teriam sido
presos pelas forças militares.

Eles chegavam aqui no pátio, tudo rasgado, aí ponhavam eles no chão assim
algemado, com a cara no cascaio ali, “ó peguemos mais um aqui”. E iam lá as
polícias, pegavam sanduíche e vinham do lado do cara e falavam pra ele, “quer
um lanche?”, ele virava a cara, chacoalhava a cabeça assim, e falavam “táqui o
lanche docê”, e péeim com aquela botinona na cara dele. Aí eles comiam o lanche.
Dava dó. Era demais a judiação. Batiam demais. Não sei se deram um fim nesse
povo (Agência Pública, 2014a).

Tal relato é interessante por alguns motivos. O primeiro, e talvez o mais óbvio, diz respeito
ao conjunto das agressões e violências cometidas pelos militares contra os membros da VPR e,
também, contra as próprias comunidades da região. O livro “Lamarca: o capitão da guerrilha”,
escrito a partir de relatos e cartas escritas pelo próprio militante comunista, aponta que os presos,
por exemplo, eram deixados nús, amarrados à estacas em pleno sol, permanecendo nessas
condições por vários dias (Emiliano; Miranda, 1984, p. 40). Outros dois pontos que chamaram
atenção nas visitas às comunidades estavam relacionados ao tratamento costumeiramente dado aos
militantes comunistas por parte de um grande número de entrevistados. Esses foram descritos
sempre como “coitados”, “meninos”, sem falar da própria ocupação de Nelson Vieira na época da
Operação Registro: mateiro a serviço das Forças Armadas.
793

Em relação ao tratamento, foi comum encontrar relatos de trabalhadores rurais, posseiros


e moradores dos bairros rurais que soassem favoráveis aos militantes e contrários aos militares.
Talvez pelo modo truculento como que trataram as comunidades e pelos relatos de agressões e
intimidações. Em relação à ocupação de Nelson e a atuação do Exército, fica claro que, de fato,
valia tudo para capturar os militantes. Inclusive a contratação de moradores locais para trabalhos
de guia e mateiros por parte das Forças Armadas. Nelson foi um destes trabalhadores que, embora
estivesse a serviço do Exército e convencido da má reputação dos militantes da VPR, se
compadeceu e reconheceu a truculência dos grupos militares nos episódios de tortura e agressão
contra seus opositores.

Ainda assim, o próprio General Ernani Ayrosa da Silva, avaliando e comentando a execução
da Operação Registro, mencionou que o Exército não teria lançado mão do expediente da
contratação de “informantes locais” de forma adequada. Como afirmou o Gal.:

É necessário ainda, que a Central de Informações disponha também de recursos


financeiros para poder recompensar informantes da região e pagar agentes
recrutados na área, que deixam de trabalhar para nos servir. Em alguns casos a
informação tem que ser considerada como um produto que se compra com
dinheiro (Pereira, 1970, p.20).

Além da contratação de “informantes locais”, as Forças Armadas também dispunham de


outras formas de ação e intervenção locais. Uma delas eram as Ações Cívico Sociais (ACISOs).
Nas ACISOs, o Exército prestava assistência odontológica, serviços de barbearia, além de manter
contato íntimo e fomentar relações de confiança e colaboração junto à população local. Eram um
meio de legitimar a presença das Forças Armadas entre as comunidades do Vale do Ribeira e de
remediar eventuais visões negativas a respeito das incursões militares. Mesmo assim, como parte
significativa dos relatos sugere, parcerias e aproximações visando fomentar a confiança, andavam
em paralelo com a intimidação, com a imposição do medo e outros episódios envolvendo práticas
violentas por parte dos militares.

A própria combinação entre ACISOs, relatórios de operação, contra-relatórios de avaliação,


balanço dos gastos financeiros com informantes da ação coordenada entre forças policias e
militares (Pereira, 1970), é indicativa do tamanho e importância dada à Operação Registro. O a
documentação oficial, combinada a relatos e depoimentos, permite atentar para uma realidade mais
complexa, cheia de embates, de discordância, de múltiplas visões e discursos sobre o acontecido.
Muitos camponeses pareciam estar convencidos de que havia uma luta entre o bem e o mal na
região. Outros se mostraram mais insatisfeitos com o tratamento truculento empregado pelas
794

Forças Armadas, inclusive em relação aos próprios guerrilheiros. A busca pelos militantes
contrários ao regime militar foi tão sistemática que, no caso da Operação Registro, o próprio
General Ayrosa discorre, por aproximadamente 20 páginas, sobre os diversos equívocos
observados na execução da campanha promovida no Vale do Ribeira (Pereira, 1970). Assim, a
Operação Registro parece ter sido uma espécie de balão de ensaio para que as ações posteriores
pudessem ocorrer de modo mais acertado. Dentro da CEV Rubens Paiva, houve quem
argumentasse que os equívocos da Operação Registro teriam subsidiado os devidos ajustes
responsáveis pelo “sucesso” de operações posteriores, como a que fora feita no Araguaia.

Se Lamarca e outros militantes escaparam do cerco militar feito no Vale do Ribeira, muitos
dos equívocos ali cometidos não seriam repetidos na operação feita no Bico do Papaguaio331. E
toda a truculência do episódio – ainda que não tenha surtido os efeitos desejados pelos altos
escalões militares – pode ser depreendida a partir dos relatos das comunidades, sob a forma de
medo em falar do passado.

A presença militar no Vale do Ribeira, durante a caçada aos militantes comunistas deixou
marcas ainda mais profundas, mesmo após o término da operação. Em 1971, o Governo do Estado
de São Paulo criou a Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista (SUDELPA). Isto
materializou toda uma lógica de ocupação e desenvolvimento do litoral paulista alinhada à presença
propriamente militar, visando a prevenção de novos casos de guerrilha. Na visão dos militares,
lideranças comunistas se aproveitariam das carências materiais da população de regiões menos
desenvolvidas para “espalhar” suas doutrinas e implantar focos de guerrilha.

Como discutido a seguir, se essa lógica de desenvolvimento territorial cumpriu um papel


estratégico de impedir avanços da luta revolucionária, serviu também de pretexto para a criação de
novas fronteiras de negócios para apoiadores do golpe e dos governos militares.

Família Buzaid grila terras no Vale do Ribeira: qual o significado de ‘violência de


Estado’?

Um relatório antropológico (Turatti, 2002), feito a pedido do Instituto de Terras do Estado


de São Paulo (ITESP), fez a seguinte afirmação sobre os ‘mandiranos’ (moradores tradicionais do
território nomeado de Mandira, localizado no extremo sul do estado):

Os membros da comunidade de Mandira orgulham-se ao dizer: sempre que vocês


encontrarem alguém de sobrenome Mandira, saberão que é daqui, que é parente

331
Região localizada no Norte do país, mais especificamente no extremo norte do estado do Tocantins, na divisa com
o Maranhão e com o Estado do Pará. Foi palco de uma das guerrilhas mais conhecidas na história do país e também
palco de uma das repressões mais cruéis e violentas levadas à cabo pelas Forças Armadas Brasileiras.
795

nosso. Os moradores geralmente se atrapalham ao responder se a localidade se


chama Mandira por causa deles ou se eles se chamam Mandira devido à
localidade, o que prenuncia a intrínseca e sólida relação entre espaço físico e a
identidade observada na comunidade Mandira. A dimensão ontológica desta
comunidade é definida quase como um prolongamento da terra, que seus
membros ocupam e de onde vieram, compartilhando com ela a própria
nominalidade. (Turatti, 2002, p. 37).

É assim que Turatti descreveu a relação quase simbiótica entre os quilombolas de Mandira
e seu território. É do território que os mandiranos tiram seu sustento: desde a palha para os telhados
das casas, as plantas medicinais para a cura física e espiritual, a água para as necessidades cotidianas,
a madeira para a construção, para fogueira e até mesmo o nome que denomina a estirpe negra da
qual fazem parte. O território de Mandira, hoje reconhecidamente um quilombo, fica no município
de Cananéia, porção sul do litoral de São Paulo, também no Vale do Ribeira.

Desde o século XVII a região recebeu africanos submetidos à escravidão, explorados


primeiramente na atividade de mineração e, mais tarde, em pequenas glebas e fazendas, nos mais
variados cultivos. Há relatos de que, desde então, o local já servia como lócus de resistência,
abrigando negros refugiados. A origem territorial deste quilombo é remetida à figura de Francisco
Mandira, patriarca da comunidade, oriundo de uma relação “amorosa” entre um senhor branco e
sua escrava, cujo nome não se sabe ao certo (Almeida, 2012).

Este primeiro mandirano recebeu o território em 1868 de sua meia irmã, Celestina Benícia
de Andrade, tida como “filha legítima” de Antônio Florêncio de Andrade, a qual doou um antigo
sítio, denominado Sítio Mandira, a seu meio irmão, com uma área total de cerca de 2.900 hectares.
A decadência da mineração na região, somada ao pouco interesse dos herdeiros em continuar com
o negócio agrícola fez com que a terra fosse doada ao escravo bastardo. Com a morte de Francisco
Mandira, décadas depois, seus dois filhos, João Mandira e Antonio Mandira herdaram, cada um,
metade do território. Ao primeiro coube as terras altas, no topo da serra, enquanto que, ao segundo,
coube as terras baixas, situadas entre os rios Aracaú e Cambupuçava (Almeida, 2012).

Antonio Mandira e seus decendentes, com o tempo, desfizeram-se de sua porção do


território, enquanto João Mandira se estabeleceu e criou raízes na porção serrana. Décadas mais
tarde, Mandira se tornaria palco de uma escalada crescente de ameaças e violências em função da
disputa territorial.

Em 1974, logo após a passagem da Operação Registro, num contexto de proliferação dos
projetos de desenvolvimento na região, um dos mandiranos foi interpelado por dois empresários
paulistanos. Eram Affonso Splendore e Aluísio de Assis Buzaid, que passaram a persuadir os
796

mandiranos a desfazerem-se do território. O Relatório Técnico Científico (RTC) produzido por


Maria Cecilia Turatti para o ITESP chega a nominar a presença de prepostos subordinados aos
empresários, um dele “corretor de imóveis de Registro” e o outro “um policial florestal chamado
Magalhães” (Turatti, 2002, p. 27). Consta também que ao tentar desistir do negócio, motivado pela
forte pressão dos demais moradores, o mandirano em questão chegou a sofrer inúmeras ameaças
dos prepostos, que chegaram a afirmar que, caso o fizesse, “Splendore e Buzaid iriam atrás dele até
no inferno” (idem, p. 27).

Affonso Splendore, oriundo de uma abastada família de médicos paulistanos, e Aluísio de


Assis Buzaid, filho do então Ministro da Justiça, Alfredo Buzzaid, através de duas empresas, a
Splendore e Associados Desenvolvimento Econômico S. C. Ltda. e a Trepco Desenvolvimento Agrário Ltda.,
adquiriram terras na região do Vale do Ribeira. A euforia imobiliária da região, estimulada pelos
militares como forma de ocupar territorialmente o “vazio” das florestas do Vale do Ribeira, oferecia
enormes possibilidades de lucro a “investidores” como Buzaid e Splendore, que logo desenharam
uma grande expectativa em relação aos possíveis negócios feitos com o território mandirano.

Diante da compra de parte das terras e da resistência de alguns mandiranos em abandonar


seus territórios, Splendore e Buzaid procederam com uma política forçada de reassentamento dos
moradores locais, retirando-os de seus territórios originais e alocando-os em outras porções da
região. Inúmeras irregularidades foram notadas nesta e nas demais etapas do procedimento cartorial
que garantiu a grilagem do território madirano:

(...) os Mandira que resistiram à venda das terras e permaneceram em seu


território foram iludidos pelo processo de regularização de suas propriedades e
transformados pelo documento “Compromisso de Compra e Venda” em
compradores de suas próprias terras. Os resistentes Mandiras, totalmente
vulneráveis e submetidos às determinações dos especuladores só poderiam
receber os alqueires referentes às suas partes se estes fossem localizados em uma
das extremidades do território geral. Os novos proprietários não queriam os
quilombolas habitando o meio de suas terras, por isso forçaram os que
permaneceram a abandonarem suas casas, habituais áreas de plantio, os locais
entre mangues e perto do rio utilizados como porto para as canoas e todos os
espaços habitados (...) (Almeida, 2012, p. 63-64).

Durante os debates promovidos pela CEV Rubens Paiva, em especial durante algumas
audiências públicas, houve quem argumentasse haver, neste episódio em particular, traços de
racismo somados às violências violações. Afinal, ter camponeses negros circulando pelo território
soaria absurdo para os novos “investidores”. De todo modo, arbitrariamente, Splendore e Buzaid
impuseram aos mandiranos o abandono de suas glebas. Providenciaram, com auxílio dos
prepostos, a divisão das terras em lotes individualizados, numa conformação totalmente avessa à
797

utilização comunitária do território já praticada pelos mandiranos. Aqueles(as) comunitários(as) que


não se adaptaram às localidades nas quais foram assentados – seja pelo difícil acesso ou pelas
precárias condições oferecidas à caça, à pesca e ao roçado – acabaram, gradualmente, abandonando
o território. Muitos foram viver no bairro de Porto Cubatão, também na região, onde hoje
encontram-se inúmeras famílias de sobrenome Mandira.

Benedito Mandira, em depoimento prestado à Delegacia de Polícia de Cananéia, no bojo


do processo de emancipação, reconhecimento e regularização da Comunidade de Mandira em
território quilombola, comunicou que a procuração outorgada a Amancio Mandira, e que resultou
na venda do território aos empresários paulistanos, continha ao menos duas assinaturas falsas: a
sua e a de sua esposa, que sempre fora analfabeta. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo,
que tomou parte dos quilombolas e pediu a nulidade do título de propriedade de Buzaid e
Splendore, alegou em processo que “outros mandiranos prestaram depoimento, muitos
negando(...) que haviam consentido a venda de suas terras aos réus paulistanos” (DPE, 2013, p.31).
Exames grafotécnicos posteriores confirmaram a falsidade das assinaturas atribuídas à Benedito
Mandira e sua esposa, sem que, no entanto, se chegasse aos responsáveis pela falsificação das
assinaturas.

Ao ver o título de propriedade questionado judicialmente, um dos empresários, Affonso


Splendore, numa petição de 18 de março de 2005, em resposta as denúncias atribuídas à sua pessoa
e à de seu sócio Buzaid, acusou os denunciantes de “criminosos”, chamando atenção para as suas
credenciais e “antecedentes”, bem como advertindo sobre a influência e os relacionamentos que
possuíam: “os quais não teremos dúvidas em usar para fazer valer nossa honra, nossos direitos”
(DPE, 2013, p. 31-32).

A reação do empresário paulistano é ilustrativa do modo como a ditadura implicou


dinâmicas sociais cotidianas nas áreas rurais como um todo, fossem próximas ou não dos grandes
centros urbanos. Tendo como parceiro de negócios o próprio filho do Ministro Justiça, um dos
homens fortes da ditadura brasileira, Splendore sentiu-se não só no direito de atuar impunemente,
como também se mostrou disposto a mobilizar seus contatos como um meio de intimidar eventuais
opositores, desvencilhando-se das supostas ilicitudes a ele atribuídas. Acuado, sentiu-se em
condições de devolver ameaças e acionar toda a hierarquia de apoios e contatos políticos que, em
sua visão, lhe credenciavam para tanto, no que o senso comum chama de “carteirada”.
Provavelmente, os contatos a que Splendore se referia tinham a ver com as inúmeras relações e
contatos com influentes nomes da política, sobretudo com grupos com quem tinha, não só,
afinidade ideológica, mas empreendimentos, projetos econômicos e negócios.
798

O assédio levado à cabo pelos empresários, bem como a postura ilegal e fraudulenta do
negócio tocado pelo filho do então Ministro da Justiça e seu sócio, ilustram bem alguns mecanismos
potencializados pela ditadura e seus apoiadores. Os “conhecidos” e os “amigos do regime” -
quando não nomes diretamente ligados aos centros de poder e instituições políticas – recorrendo
indiscriminadamente ao uso da violência e da intimidação, se apropriavam dos recursos e bens
públicos, apoiando-se no novo regime político implantado como via para fazer valer seus interesses,
sem subordinarem-se à leis e regramentos sociais. É a versão tupiniquim do “L'État c'est moi”332, em
que pessoas que sequer estavam diretamente ligados à institucionalidade, mas nela apoiados ou dela
apoiadores, se arvoraram ao direito de incorrer impunemente em ilegalidades.

Foi constante, ao longo dos trabalhos da Comissão da Verdade Rubens Paiva, observar que
grilagem de terras públicas, ou daquelas já habitadas por comunidades rurais, feitas por agentes do
Estado ou seus apoiadores após a deflagração do Golpe de 1964, era uma espécie de pagamento
pelos serviços e apoios prestados. Nesse sentido, casos como este mostram toda a face negocial
dos regimes militares, dispostos a lançar mão da institucionalidade –conquistada na marra – para
fazer negócios, beneficiar seus sócios, ou enriquecer às custas do erário e patrimônios públicos.
Ainda que a violação de direitos e o recurso à violência como vias para efetivar o favorecimento
pessoal, dirigido à parceiros políticos ou econômicos do regime, destituído de qualquer formalidade
e contrapartidas sociais, não sejam necessariamente inovações da Ditadura – sendo antes um
repertório recorrente na cultura política brasileira – foram por ela amplamente potencializadas.333

O caso das grilagens feitas pelo filho do Ministro e seu sócio, remete-nos também às
discussões sobre reparação e, sobretudo, sobre os critérios utilizados na definição dos casos aptos
a serem reparados. Se considerarmos a própria noção de “violência de Estado”, conforme utilizada
pela CNV, explicitado em seu décimo terceiro capítulo como “atos de vigilância, perseguição e
violência contra civis e militantes políticos” que tenham sido praticados por “agentes de segurança”
e demais “órgãos e instituições estatais” (CNV, 2014, p. 653-671), tal ferramental mostra-se
insuficiente diante das próprias dinâmicas que a ditadura deu vida. O próprio relatório da CNV
chega a caracterizar violência estatal como “contexto de um ataque estatal sistemático e
generalizado dos agentes do Estado contra a população brasileira”. (CNV, 2014, p. 671).

Se, por um lado, a atuação direta de agentes estatais em episódios que envolveram ações de
vigilância, perseguição, intimidação e violência, são mais fáceis de serem compreendidos como
casos de violência de Estado, porque ações como a que está em tela, que envolvem, por exemplo,

332“O Estado sou eu”, teria afirmado o monarca francês Luis XVI, também conhecido como o Rei-Sol.
333Em um artigo produzido pelos membros do GT Rural da CEV Rubens Paiva (Teixeira, et. al, 2015), outros casos
envolvendo favorecimento de pessoas próximas aos militares são explorados.
799

o filho do Ministro da Justiça, não as seriam? Dito de outro modo, o estreitamento das relações
entre as oligarquias regionais e/ou grupos econômicos com os centros de poder e as instituições
estatais, a um ponto que os primeiros sentiam-se protegidos contra qualquer sanção dos últimos
apenas porque eram amigos, familiares, apoiadores políticos ou conhecidos, não parece ter sido a
tônica e o substrato de inúmeras violações de direitos e crimes cometidos durante a ditadura militar?
Já que se tratavam de amigos, familiares dos governantes ou de membros dos aparelhos do Estado,
a impunidade não estava garantida?

Como este caso ilustra, se houve, contra o campesinato brasileiro, ações diretas de violência
e repressão cometidas por alguma instituição ou agente estatal, talvez até maior tenham sido o
número de situações em que o algoz seja uma liderança ou quadro político regional desprovido de
qualquer vínculo formal com instituições estatais, mas por elas largamente apoiado ou delas um
grande apoiador. Como vimos, nesses casos, tais agentes tinham certeza da impunidade, quando
não agiam à mando - contando com a omissão ou anuência – de agentes estatais.

Outro ponto que o caso ajuda a iluminar guarda relação com a demasiada individualização
da própria noção de reparação, além do modo como as especificidades das áreas rurais, na maioria
dos casos, deixam de ser atendidas pelo processo do modo como é hoje conduzido. A reparação é
fortemente marcada por um viés documental-comprobatório cujo ônus recai, quase todo, sobre a
própria vítima: é ela quem deve comprovar ter sofrido alguma violência, se possível a partir de
algum registro formal-oficial que ateste a veracidade do fato alegado. Novamente a centralidade do
Estado aparece, ainda que de modo sutil: cabe ao vitimado atestar que foi violentado, e possível
por meio de algum boletim de ocorrência, ou inquérito policial como aqueles instaurados por
delegacias de vigilância ou tribunais militares.

Acontece que, nas áreas rurais, além das dificuldades inerentes à própria dinâmica laboral –
marcada pela excessiva informalidade, pelo elevado grau de analfabetismo e pela prática recorrente
de acordos verbais não formais – parte importante dos conflitos e violências tem natureza
propriamente coletiva, como casos de grilagens como estes demonstram. E como vê-se acima,
parte expressiva destes conflitos passava ao largo de qualquer registro oficial/estatal, salvo a própria
documentação arranjada pelo grileiro.

Este, inclusive, era um ponto polêmico ao longo dos trabalhos da CEV Rubens Paiva.
Inúmeras propostas de reparação foram no sentido de que constasse, dentre as recomendações,
por exemplo, a exigência da revisão da titularidade de diversas terras públicas estaduais e/ou
federais, sabidamente griladas por parceiros e apoiadores do golpe. Sem contar o elevado número
de registros e relatos em favor da apropriação de terras coletivas, como no caso de quilombos e
800

caiçaras expulsos de enormes parcelas territoriais ao longo das décadas de 1970 e 1980, sobretudo
na esteira de grandes empreendimentos. Afinal, como traduzir a usurpação coletiva de um território
em indenizações individuais? Ou como comprovar, para fins reparatórios, dinâmicas marcadas pela
informalidade ou pelo esforço de que assumam uma fachada legal? Como atribuir ao Estado
irregularidades feitas à sua sombra?

Casos de grilagem como o ocorrido no território mandirano deram-se aos montes, tanto
no Vale do Ribeira como fora dele. Contaram, quase sempre, com a mediação de pessoas
“próximas” aos governos municipais, estadual e/ou federal. É o caso do exemplo trazido na
próxima sessão.

Mineradora expulsa comunidade em Registro

Outro episódio semelhante ocorreu com membros da comunidade de Peropava –


atualmente reconhecida como remanescente de Quilombo –situado no Município de Registro,
também na mesma região do Valle do Ribeira. Entre o final da década de 1960 e início da década
de 1970, toda a região foi palco de inúmeras grilagens de terra, intimidações e violência contra as
populações rurais locais.

Clóvis e Maria, residente na região desde a infância, relataram em audiência pública


(Comissão da Verdade Rubens Paiva, 2014) que a mineradora SOCAL foi uma das principais
responsáveis pelos inúmeros confrontos travados e casos de grilagens de terra na região. A revista
Consultor Jurídico (2012), citando uma ação recisória efetuada pela Defensoria Pública de São
Paulo, afirma que por diversas vezes, funcionários da empresa teriam ido até Peropava para propor
a compra de terras aos moradores locais. Quiseram até colocar um portão na estrada e foram
impedidos por um advogado amigo da família (Idem).

Quando as negociações não davam certo, os funcionários da empresa faziam uso da


intimidação e violência. Maria, em depoimento prestado à Comissão da Verdade, relatou um dos
episódios:

Eu tinha uns 10 anos (...) eu nasci em 59. Fomos expulsos, toda a minha família.
Só ficaram duas famílias.
- Qual o nome da mineradora?
- SOCAL, né... A SOCAL. Pegou a maior parte dos terrenos, está tudo na mão
dessa mineradora. Eu era criança, mas eu lembro que meu pai saia pra trabalhar,
minha mãe. Eu ficava em casa com meus irmãos, e daí vinha aqueles caminhões
e paravam bem em frente a casa. Falavam que iam queimar a casa, e eu pegava
os meus irmãos e corria pro mato e ficava lá até o pai e a mãe chegar, porque nós
801

tinha medo. E eles pegaram a maior parte do terreno. Nós ficamos com um
pedacinho que não dá pra fazer nada (Comissão da Verdade Rubens Paiva, 2014).

Grande parte dos camponeses e posseiros da região, por conta das agressões e ameaças,
resolveram sair das terras que habitavam, ocupando outra parte do território, situada mais ao fundo
do atual quilombo. Segundo o relato de Maria, aproximadamente 15 das 40 famílias deixaram a
comunidade entre as décadas de 1960 e 1970.

Em 1972, os membros da comunidade conquistaram o título de domínio da terra pelo


governo do Estado de São Paulo. Contudo, como à época não possuíam recursos para se
deslocarem até a cidade e pagar as taxas cartoriais, os camponeses cederam cerca de 39 hectares a
João Augusto Aby-Azar, como forma de pagamento pela regularização das terras e pela execução
dos trâmites cartoriais. João Augusto Aby-Azar é citado em toda a documentação analisada como
advogado no caso de regularização da posse territorial da comunidade. Posteriormente, descobriu-
se que também atuou como vereador de Registro entre 1948-1951, segundo a Câmara Municipal
de Registro (2011). O vínculo promíscuo entre o público e o privado é constante ao longo dessa e
das demais histórias de grilagem de terras.

Maria, relembra que após esse acordo e quitação das dívidas iniciais, João Augusto Aby-
Azar começou a vender outras parcelas da propriedade:

E também tem uns “terceiros” que estão [hoje] no que é nosso. Meu avô tinha
uns impostos pra pagar e como ele não tinha dinheiro (...) falou para ele [João
Azar]: “você me dá uma parte eu pago o imposto.” Aí ele vendeu o pedaço. Esse
homem que pagou o imposto foi vendendo. E quando vendia pra outros eles iam
aumentando [o tamanho da propriedade vendida]. E foi assim que eles pegaram
quase tudo (Comissão da Verdade Rubens Paiva, 2014).

Os inúmeros casos de revenda das terras, irregularmente apropriadas por João e outros
compradores, também gerou diversos confrontos. Antônio, conta um episódio envolvendo um
familiar:

Um tio meu foi assassinado lá por causa desse terreno. Esse terceiro, que vendeu
a terra para o último que está lá [na propriedade], foi quem matou o meu tio. E
depois que este último entrou lá também, ele trouxe o mesmo cara que matou
meu tio para tomar conta do terreno dele. (...) Aí um dia ele foi lá em casa, com
uma espingarda cartucho 28 e ameaçou meu pai: “olha, se vocês entrarem alí eu
mato vocês” (Comissão da Verdade Rubens Paiva, 2014).
802

Atualmente, alguns desses “terceiros” correm com ações judiciais pedindo o usucapião de
algumas propriedades irregularmente vendidas por João Azar e seus revendedores.

Algumas conclusões

Como afirmado no começo do texto, os casos elencados, todos ocorridos na mesma região
do Estado de São Paulo, são exemplares de dinâmicas já há muito conhecidas das áreas rurais do
Brasil. As especificidades do campo, sobretudo ao longo das décadas de ditadura civil-militar, nos
fazem questionar alguns limites dos conceitos de violência de Estado e da lógica reparativa
individualizante e com excessivo apreço documental, conforme utilizados ao longo dos trabalhos
da CNV. Trabalhos como aqueles feitos em São Paulo, mas também em outros estados, relatados
pela Comissão Camponesa da Verdade, apontam que as violações e violências cometidas no campo
durante a ditadura nem sempre obedeciam à formula “agentes do Estado”, muito menos seguiam
ritos já amplamente documentados no caso de agências como o Departamento de Ordem Política
e Social (DOPS), por exemplo, que documentavam horários de entrada e permanência de militantes
presos, início e término das sessões de tortura e interrogatórios, dentre outros. Para o campo, a
ditadura também significou um cheque em branco que para que suas bases sociais de apoio nos
rincões nacionais desrespeitassem leis trabalhistas, saqueassem o erário público ou se apropriassem
de terras coletivas já habitadas. Episódios como estes apontam para a necessidade de se alargar
conceitos e categorias até então utilizados na reparação e justiça dos ilícitos cometidos pela ditadura,
bem como na compreensão dos seus efeitos nas áreas rurais e junto às populações rurais de vários
tipos.

O mesmo se dá com o conceito de violência de Estado. Foram muitos os membros da


Comissão Camponesa da Verdade que tiveram seus casos e relatos negados pela Comissão
Nacional da Verdade porque não se encaixavam dentro da tipologia formal que buscava expressar
em seus trabalhos, em que o Estado aparece como ente deflagrador direto do conflito. Os casos
apresentados neste texto exemplificam como dinâmicas sociais diretamente vinculadas aos centros
militares e empresariais de poder que não pedem licença às categorias e tipologias para existirem.
Essa, talvez, seja uma das principais contribuições dos trabalhos de Comissões Estaduais país afora,
reunidas na Comissão Camponesa da Verdade: mostrar que a realidade não pede licença às
categorias previamente fixadas e que as dinâmicas de apropriação do público pelo privado, ao longo
da ditadura, não respeita formalidades e sequer as teorias que balizaram os trabalhos da CNV.
803

O Estado, nas violências e violações cometidas no campo durante a ditadura, está presente
direta ou indiretamente, seja por omissão ou por anuência. Nem por isso, os grupos nele
organizados deixam de se impor e de estabelecer seus interesses. No caso do Vale do Ribeira, pode-
se perceber uma crescente presença crescente do Estado na região, que combina atuação direta e a
estruturação de políticas públicas favoráveis a interesses específicos. Desde a guerrilha, inicialmente
atuando para “ocupar” militarmente a região, seguido pelas propostas de desenvolvimento que se
sucederam à Operação Registro, até os empreendimentos e negócios efetuados por amigos e
parceiros do regime, vê-se uma dinâmica em que o Estado atua ora pela sua presença, ora pela sua
ausência, sem necessariamente ser o autor direto das infrações, mas criando o contexto para que se
tornem possíveis, até o ponto do próprio filho do Ministro da Justiça e seu sócio se sentirem
avalizados a fraudar atas e contratos de compra e venda de territórios quilombolas.

Provavelmente os “contatos”, “amigos” e “conhecidos” dentro da institucionalidade


atuaram para que tudo se revestisse da formalidade necessária, resguardando ao Estado a aura de
ente neutro, eximindo-o – ainda que formalmente – da culpa nas violações e fraudes na efetuação
da grilagem do território. Fatos como os brevemente explorados neste texto, apontam para a
necessidade e importância de um debate sobre reparações que extrapole a órbita individual e que
persiga, compreenda e contemple outras dinâmicas de violência e violação de direitos humanos.
Mais do que isso, o debate também destaca a importância de compreender impactos e violações
menos espetaculares que a ditadura brasileira ajudou a criar.

Afinal, aprisionar a diversidade de modos com que os donos do poder violaram e ainda
violam diferentes segmentos da população brasileira em ritos inflexíveis e definidos de antemão,
tem se mostrado pouco fértil para reparar, de fato, os diversos tipos de violência cometidos e para
iluminar a diversidade de impactos do regime ditatorial. Parece-nos mais interessante aderir ao
caminho inverso: compreender e examinar à fundo a diversidade de situações em que agentes da
ditadura, seus apoiadores e seus interesses se fizeram sentir sobre a sociedade, estivessem eles
vinculados ao Estado ou não, fossem em lesões individuais ou propriamente coletivas. E, depois
disso, propor conceitos, teorias e agendas de reparação que dialoguem com a diversidade de
situações concretas.

Referências

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no-vale-do-ribeira/. Acesso em 10/10/2014.
804

_______.Um torturador francês na Ditadura brasileira. Disponível


em:http://apublica.org/2014/04/um-torturador-frances-na-ditadura-brasileira/. Acesso em
outubro de 2014.

Câmara Municipal de Registro. 1ª Legislatura: 1948-1951, 2011. Disponível em:


http://www.camararegistro.sp.gov.br/historia/legislaturas. Acesso em outubro de 2014.

Consultor Jurídico. Ação recisória quer reaver terras de quilombolas. 3 de maio de 2012. Disponível
em:http://www.conjur.com.br/2012-mai-03/acao-rescisoria-reaver-terras-quilombolas-interior-
paulista. Acesso em outubro2014.

Pereira, José Canavarro. Ministério do Exército (II Exército). Relatório da Operação Registro. São
Paulo, 20 de junho de 1970. Disponível em:
https://www.dropbox.com/s/3z5lj0gbry7y1zv/docregistro.compressed.pdf?dl=0. Acesso em
março de 2020.

Defensoria Pública de Registro (DPE). Ação ordinária de tutela territorial quilombola por meio da declaração
de inexistência de negócios Jurídicos, com pedido liminar de bloqueio de matrícula de imóvel. São Paulo, 2013
(mimeo).

Emiliano, José; Miranda, Oldack de. Lamarca: o capitão da guerrilha. Global Editora, 1984. 320 páginas

Teixeira, Gabriel da Silva; Goldfarb, Yamila; Pereira, Danilo Valentim; Souza, Luciana Carvalho;
Aroni, Rafael. Guerrilha rural e cultura política no interior de São Paulo. Retratos de Assentamentos, v.
18, p. 39-67, 2015.

TURATTI, Maria Cecilia Manzoli. Relatório Técnico Científico sobre os remanescentes da comunidade de
quilombo de Mandira/Canananeia-SP. São Paulo: Fundação do Instituto de Terras de Estado de São
Paulo “José Gomes da Silva” (ITESP), 2002. 50 páginas

ALMEIDA, Fábio Guaraldo. Arqueologia da Resistência e Etnoarqueologia no Território Mandira. Município


de Cananéia/SP. Dissertação de Mestrado em Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo. São Paulo: 2012, pp. 47-48.

CEV – Comissão da Verdade Rubens Paiva. Audiência Pública sobre Repressão no Vale do Ribeira.
Eldorado, junho, 2014.
805

Apontamentos sobre a Crise da década de 1920 e a Revolução de


1930

George Zeidan Araújo*

Resumo: A década de 1920 foi, possivelmente, um dos períodos de maior ebulição que o Brasil
atravessou. Imerso em uma crise que se expressava nos mais diversos âmbitos, os anos 1920 foram
uma espécie de passagem para as rupturas mais drásticas que se efetivariam a partir da Revolução
de 1930. Concomitantemente às modificações vividas nos campos econômico e cultural, ocorria
um aumento considerável das camadas urbanas com o crescimento das classes médias e das classes
trabalhadoras, assim como uma diversificação no interior das próprias elites econômicas. Essas
transformações também instigavam mudanças no sistema político que regia o país à época, pondo
em discussão as bases do sistema oligárquico da Primeira República. Nosso objetivo neste trabalho
é discutir o caráter das forças que conformavam a Crise da Década de 1920 e apresentar algumas
interpretações da historiografia sobre a natureza da Revolução de 1930.

Palavras-chave: Primeira República, crise da década de 1920, Revolução de 1930.

Introdução

A década de 1920 foi, possivelmente, um dos períodos de maior ebulição que o Brasil
atravessou. Imerso em uma crise que se expressava nos mais diversos âmbitos, os anos 1920 foram
uma espécie de passagem para as rupturas mais drásticas que se efetivariam a partir da Revolução
de 1930.

Nos âmbitos político e cultural, pode-se destacar o ano de 1922 como emblemático para a
década 1920 por ter reunido uma série de acontecimentos que repercutiram na vida política e
cultural da nação. Naquele ano teve lugar a Semana de Arte Moderna, foi criado o Partido
Comunista do Brasil, ocorreu a Revolta dos Dezoito do Forte, foi criado o Centro Dom Vital,
comemorou-se o centenário da Independência e ocorreu uma nova sucessão presidencial.

Sob o prisma econômico, os anos 1920 foram caracterizados por altos e baixos. No começo
da década, o declínio dos preços internacionais do café (o principal produto de exportação) teve
consequências nefastas sobre o conjunto da economia, como a alta inflacionária e uma enorme
crise fiscal, ao mesmo tempo em que se processava grande expansão do setor cafeeiro e das

* Doutor em História pela UFSC. Professor colaborador do Departamento de História da UDESC. E-mail para
contato: geozaraujo@gmail.com.
806

atividades relacionadas a ele. Posteriormente, houve um processo de crescimento que se sustentou


até a crise mundial de 1929, conhecida como Grande Depressão. A economia brasileira vivia um
momento de diversificação e adquiria uma maior complexidade, expresso na diversificação da
agricultura e no desenvolvimento de atividades relacionadas ao setor industrial, com a expansão de
empresas já existentes e com a aparição de novos estabelecimentos ligados à indústria de base.

Acompanhando as mudanças vividas no campo econômico, o plano social também passava


por alterações. As camadas urbanas aumentavam em número e importância, com o crescimento
das classes médias, dos trabalhadores em geral e uma diversificação no seio das próprias elites
econômicas.

Todas essas transformações também estimulavam ainda mais mudanças na estrutura


política então vigente, pondo em discussão as bases do sistema oligárquico da Primeira República.
O objetivo deste trabalho é duplo: discutir o caráter das forças que conformavam a Crise da Década
de 1920 e apresentar algumas interpretações da historiografia sobre a natureza da Revolução de
1930.

As bases do sistema político na Primeira República

Para avaliarmos adequadamente o caráter das forças que conformavam a Crise da Década
de 1920, é necessário que sejam feitas algumas considerações a respeito das bases do sistema
político na Primeira República. A República foi proclamada no Brasil em 15 de novembro de 1889.
Uma das características do novo regime em seus primeiros anos era sua grande instabilidade
política. Se bem o federalismo era uma bandeira capaz de agrupar muitos setores de várias das
antigas províncias, a forma do novo sistema era objeto de intensos debates, dado que o movimento
republicano não era homogêneo. Na verdade, havia três concepções ou modelos de república em
disputa que representavam aproximadamente a visão que cada grupo republicano possuía da
solução aspirada. Esses modelos eram: o modelo norte-americano, o modelo jacobino e a versão
positivista (com todas as suas variantes).

A primeira Constituição do Brasil republicano era claramente inspirada no modelo norte-


americano, consagrando a forma de república liberal federativa, com ampla autonomia aos Estados,
e um regime formalmente representativo e democrático (Mendonça, 2016). Como se sabe, fraudes
eleitorais abundavam e, embora o voto não fosse mais censitário, a exclusão de menores de 21
anos, mulheres e analfabetos fazia com que a porcentagem de eleitores à época oscilasse entre
apenas 1,4 e 3,4% da população (Carvalho, 1987). Contudo, os problemas referentes às relações
entre Executivo e Legislativo, assim como entre aquelas entre o poder central e os poderes regionais
807

não foram resolvidos pela Constituição de 1891. Apenas em 1898, com a criação do acordo político
conhecido como “política dos governadores” – ou “política dos Estados”, como gostava de chamá-
lo seu idealizador, Manuel Ferraz de Campos Sales (presidente da República entre 1898-1902) –, é
que a República conseguiria contornar esses problemas, alcançando certa estabilidade.

A “política dos governadores” teve por escopo restringir as disputas políticas ao interior de
cada Estado da Federação, evitando que os conflitos intraoligárquicos ultrapassassem as fronteiras
regionais e ocasionassem instabilidade política no âmbito nacional. Também se buscava chegar a
um acordo entre a União e os Estados, além de se tentar acabar com a hostilidade entre Executivo
e Legislativo ao controlar a escolha dos deputados mediante reformas no Regimento Interno da
Câmara. Contudo, esses mecanismos tiveram vida curta, contribuindo para a instabilidade política
do país.

O destaque dado por muitos historiadores que tratam do sistema de alianças políticas a
nível nacional da Primeira República contribuiu para generalizasse a identificar o período como
tendo sido caracterizado pela chamada “política do café com leite”. Ou seja, a aliança entre os Estados
de Minas Gerais e São Paulo para o controle político-administrativo do país, com o apoio de suas
respectivas bancadas (as maiores à época) no Congresso. Se bem existiu esse pacto, a historiografia
mais recente tem chamado a atenção para o fato de que tal aliança era instável, permeada por
conflitos; e que a eficácia da política dos governadores em neutralizar os conflitos era de eficácia
bastante relativa. Além disso, tem sido sublinhada ainda a importância do Rio Grande do Sul,
muitas vezes o aliado preferencial dos mineiros. Dessa maneira, a cada quatro anos a política
nacional tinha que se preparar para uma nova onda de volatilidade e imprevisibilidade. Não
obstante, com essa política dos governadores, o governo federal sustentava os setores dominantes
nos Estados, ao passo que estes, a câmbio, apoiavam a política do presidente com seus votos no
Congresso.

Esse pacto se estendia entre os governadores e as autoridades locais, os coronéis, que


efetivamente controlavam a massa dos eleitores daquele Brasil ainda fundamentalmente rural. Na
verdade, a configuração do que foi chamado de “coronelismo” deveu-se à junção de fatores
políticos e econômicos.

O fato político apontado como desencadeador do coronelismo foi o federalismo


implantado no país pela Carta de 1891, que concedeu ampla margem de
autonomia aos estados, em detrimento dos municípios, e criou um novo ator
político – os governadores, que passaram a ser eleitos a partir das máquinas
estaduais. Já o fato econômico responsável pela manifestação do fenômeno foi a
crise dos fazendeiros, que acarretou o enfraquecimento político do poder dos
coronéis ante os seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava a
808

exigir então a presença do Estado que expandia sua influência na medida em que
diminuía a dos donos de terras. Numa espécie de barganha, cuja moeda era o
voto, o poder público alimentava o poder local com uma autonomia extralegal
em troca do voto do eleitorado rural, que, embora incorporado ao processo
político com a supressão do critério censitário, permanecia dependente social e
economicamente dos proprietários rurais. Desse compromisso fundamental, que
ligava chefes locais a governadores de estado e estes ao presidente da República,
resultariam características secundárias do fenômeno coronelista como o
mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto e a desorganização dos
serviços locais (Ferreira, 2006, p. 393).

Isso acabou por gerar uma certa divisão entre oligarquias de primeira e segunda “grandeza”,
ao mesmo tempo em que fazia diminuir os conflitos no interior das próprias oligarquias. Dessa
maneira, com os conflitos intraoligárquicos minimizados e as sucessões presidenciais controladas,
o candidato situacionista tinha sua eleição garantida, exceto em casos excepcionais, como na
disputa de 1909-1910, que deu origem à chamada “Campanha Civilista”, o nome dado à fracassada
campanha do intelectual polímata Rui Barbosa à presidência da República contra o Marechal
Hermes da Fonseca.

A cisão intraoligárquica, a Reação Republicana e o tenentismo

Todo esse modelo já dava sinais de esgotamento quando da sucessão presidencial de 1922.
Os setores dominantes em Minas Gerais e São Paulo lançaram a chapa Artur Bernardes – Urbano
Santos para suceder ao presidente Epitácio Pessoa. Porém, esses nomes não eram consensuais,
gerando insatisfação entre as oligarquias dos “Estados de segunda grandeza” (Rio de Janeiro,
Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul) que lançaram um movimento que seria conhecido por
“Reação Republicana”, propondo a candidatura de Nilo Peçanha – José Joaquim Seabra em uma
convenção ocorrida em 24 de junho de 1921. Se bem o movimento indicava cisões no interior das
elites econômicas não diretamente ligadas à exportação do café e insatisfação com a desvalorização
cambial, o movimento expressava menos a ruptura com o modelo oligárquico do que uma tentativa
de se articular um eixo alternativo de poder que pudesse ampliar a participação das oligarquias
regionais menos influentes no que era o federalismo brasileiro daquela época.

De todos os modos, a plataforma política de Nilo Peçanha era bastante limitada, não
apresentando nenhuma proposta concreta que proporcionasse maior democratização da vida
política. Sem muitas opções de apoio, tentou, com algum sucesso, aproximar-se dos militares,
grupo capaz de opor-se às oligarquias dominantes.

Mas apesar do clima de agitação política, as eleições de 1922 ocorreram na data prevista e
o candidato apoiado pela máquina oficial, Arthur Bernardes, venceu com folga. Porém,
809

diferentemente de outras ocasiões, a oposição não aceitou os resultados, reivindicando a criação de


um “Tribunal de Honra” para arbitrar o processo eleitoral, com o intuito de manter a mobilização
popular e exacerbar os ânimos militares. Na verdade, a “Reação Republicana” foi sendo
marginalizada do cenário político e aprofundou suas relações com os militares, incitando a
intervenção armada destes, dado que era a opção que parecia lhe restar.

De fato, as possibilidades de intervenção militar com o escopo de subverter a ordem


tornavam-se cada vez mais reais. Uma rebelião aconteceu em 5 de julho de 1922, no episódio que
ficou conhecido como “Os Dezoito do Forte (de Copacabana)”. Tendo fracassado desde o começo
devido à ação das forças federais, não obteve apoio de parte relevante da oficialidade. Com o recuo
das oligarquias dissidentes que haviam instigado os militares, Epitácio Pessoa pediu a decretação
do estado de sítio no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, efetuando várias prisões e abrindo muitos
processos.

Nesse contexto, um movimento importante que ganhou força no meio militar foi o
denominado “tenentista”. Conforme o nome indica, teve como protagonistas os oficiais de nível
intermediário na hierarquia do Exército (especialmente tenentes e capitães). Mas o movimento foi
bastante popular também fora das fileiras militares, sobretudo entre as camadas médias urbanas e
os trabalhadores das cidades. Os líderes tenentistas consideravam as oligarquias um grande mal a
ser combatido. Seu programa, de um nacionalismo vago e um tanto quanto confuso, identificava-
se com a reforma da Constituição, a limitação da autonomia local, a moralização dos costumes
políticos e a unificação da justiça e ensino, bem como do regime eleitoral e fiscal.

Em novembro de 1922, tomou posse Artur Bernardes, que também decretou o estado de
sítio no Rio de Janeiro, aprofundando a repressão. A Reação Republicana já estava desarticulada e
as oligarquias dissidentes tentavam rearranjos com os poderes dominantes, tentando evitar as
intervenções federais. No dia 5 de julho de 1924, eclodiu uma ação em homenagem ao levante de
1922. Visando derrubar o governo de Bernardes, os rebeldes tomaram alguns quartéis, mas não
conseguiram se instalar na capital paulista, deslocando-se para o interior do Estado e,
posteriormente para o oeste do Paraná. Enfrentaram os legalistas à espera dos tenentes que vinham
do Rio Grande do Sul, onde as revoltas foram encabeçadas por João Alberto e Luís Carlos Prestes,
contando com a oposição gaúcha do Partido Republicano Riograndense (PRR).

No mês de abril de 1925, as duas forças se juntaram, dando origem à Coluna Miguel Costa
– Luís Carlos Prestes. Esse foi o momento culminante dessas revoltas e do próprio movimento
tenentista. Sem que tivesse havido um plano previamente traçado, a coluna chegou a ter 1.500
homens, percorreu mais de 25 mil km, atravessou 13 estados brasileiros e propagou a “revolução”
810

e o “levante popular” contra as oligarquias, até que o que dela restava se dirigiu para a Bolívia e
para o Paraguai. Com seu fim, desfazia-se o último foco de contestação ao regime naqueles anos.

Em que pesem as diferenças entre as várias interpretações do tenentismo, há certo consenso


com relação ao importante papel que o movimento teve no processo de erosão do sistema político
então vigente. Contudo, os momentos de maior gravidade da crise pareciam ter sido superados; e
a tranquila eleição de Washington Luís, “presidente” de São Paulo, em março de 1926, sugeria que
o pacto entre as oligarquias estava temporariamente restabelecido.

A Aliança Liberal e a Revolução de 1930

O governo de Washington Luís transcorreu em clima de relativa estabilidade, uma vez que
as disputas que deram a tônica dos primeiros anos da década de 1920 pareciam ter sido superadas.
Em 1929, em novo processo de sucessão presidencial, tudo estava acertado para que as forças da
situação indicassem um candidato a ser apoiado pelos grupos dominantes em cada Estado. Porém,
dessa vez houve divergências no interior do próprio grupo dominante. Washington Luís indicou
outro paulista, Júlio Prestes, como seu sucessor, rompendo o acordo com Minas Gerais, que
esperava ocupar a próxima presidência. Esse fato fez também com que reaparecessem pretensões
e disputas que tinham sido mantidas em suspenso.

Nesse contexto, em julho de 1929, contando com o apoio mineiro, foi lançada a
candidatura de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís e
então governador do Rio Grande do Sul, tendo como vice na chapa dissidente o
governador da Paraíba, João Pessoa. Estava formada a Aliança Liberal, uma
coligação de forças políticas e partidárias pró-Vargas. Sua base de sustentação era
o situacionismo de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, e mais alguns
grupos de oposição ao governo federal de vários estados, tais como o Partido
Democrático (PD), criado em 1926 em São Paulo, e facções civis e militares
descontentes. Com uma composição cuja característica mais pronunciada era a
heterogeneidade, a Aliança Liberal explicitava as dissidências existentes no
interior das próprias oligarquias estaduais (Ferreira, 2006, pp. 403-404).

A plataforma política desse grupo opositor baseava-se na reforma eleitoral (com a criação
de uma justiça eleitoral, a defesa do voto secreto, a “moralização das práticas políticas”) e nas
liberdades individuais. Além disso, o programa propunha anistia para os revoltosos dos anos 1920
e medidas de proteção ao trabalho (como a aplicação da lei de férias e a regulamentação do trabalho
de menores e da mulher). Tudo isso visava integrar frações da elite não representadas na estrutura
de poder, além de setores médios urbanos que haviam ganhado alguma projeção política e social
graças à expansão econômica.
811

A disputa eleitoral foi influenciada pela quebra da Bolsa de Nova York em outubro de 1929.
Além do grande número de desempregados e falências registradas no Brasil no fim daquele ano, a
crise também incidiu sobre as atividades agrícolas, sobretudo a economia cafeeira paulista,
ocasionando grande queda nos preços e acabando com o programa de estabilização que o governo
vinha tentando implementar.

As eleições de março de 1930 deram a vitória a Júlio Prestes, mas setores da Aliança Liberal
não aceitaram a derrota e tentaram se aproximar de lideranças do movimento tenentista, que,
mesmo tendo sido derrotadas, seguiam sendo importantes pelo prestígio e experiência militar.
Entretanto, essa articulação entre setores oligárquicos dissidentes e os tenentes caminhava a passos
lentos, principalmente devido ao fato de Luís Carlos Prestes – a mais importante liderança
tenentista – ter lançado no exílio um manifesto em maio de 1930 no qual condenava o apoio às
oligarquias. Prestes, que naquela época já era influenciado pelo movimento comunista
internacional, encontrou forte resistência de outros líderes tenentistas por suas posições. Na
verdade, o movimento tenentista, heterogêneo, não estava de acordo nem mesmo com a ideia de
uma “revolução”. Porém, o inesperado assassinato em Recife do candidato a vice-presidente pela
Aliança Liberal, João Pessoa, deu novo impulso à conspiração (Schwarcz; Starling, 2018, 357).
Mesmo tendo sido morto por motivos passionais e não políticos, foi logo transformado em mártir
do movimento por seus consortes.

Destarte, a conspiração ganhou o apoio de importantes quadros do Exército. Não obstante,


o próprio Getúlio Vargas ainda estava temeroso quanto ao desenrolar dos acontecimentos.
Contudo, nos meses que se seguiram, as jovens lideranças de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul
tiveram importante papel no sentido de aprofundar certo “consenso” em prol da opção pela luta
armada.

Era clara no interior da Aliança Liberal uma diferenciação mais explicável em


termos de geração do que de ideologia. Lado a lado no movimento estavam
quadros tradicionais e jovens que haviam iniciado a carreira política à sombra de
velhos oligarcas da Primeira República. No Rio Grande do Sul esta força jovem,
conhecida como ‘geração de ‘907’ (ano relativo ao término de sua formação
universitária), era representada por Vargas, Flores da Cunha, Osvaldo Aranha,
Lindolfo Collor, João Neves, Maurício Cardoso e Paim Filho; já em Minas,
Virgílio de Mello Franco e Francisco Campos, ambos descendentes de famílias
tradicionais da região, eram seus principais representantes. Esses políticos mais
jovens, alguns dos quais se haviam destacado na luta contra o tenentismo,
estavam dispostos a seguir o caminho dos tenentes (Ferreira, 2006, p. 407).

Em 3 de outubro de 1930 eclodiu a conspiração em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul,


depois se espalhando por vários estados do Nordeste. Não sem certa resistência, os revolucionários
812

conseguiram dominar a situação nesses locais, depondo o presidente Washington Luís, no Rio de
Janeiro, no dia 24 do mesmo mês e instituindo uma Junta Provisória de Governo. Tal junta tentou
permanecer no poder, mas manifestações populares e pressões de forças revolucionárias vindas do
sul do país terminaram por fazer com que entregasse o poder a Getúlio Vargas, empossado em
novembro.

Algumas interpretações da historiografia sobre a Revolução de 1930

O movimento de 1930 foi bastante estudado pela historiografia brasileira, havendo


diferentes correntes que tentam explicá-lo. Apresentaremos algumas das mais importantes dessas
distintas interpretações em ordem cronológica, uma vez que isso pode elucidar as argumentações
e fazer com que obtenhamos uma compreensão mais apurada do processo.

Décadas de 1930-1950

A partir de fins da década de 1920 intensificou-se o debate entre parcela da intelectualidade


brasileira sobre uma possível ruptura, uma “necessária” grande transformação a operar-se no país.
Havia, da mesma maneira, uma pluralidade de concepções e propostas do que caracterizaria essa
transformação e de como ocorreria. Esse é um dos motivos que ajudam a explicar as razões pelas
quais o termo “revolução” tenha sido tão empregado à época, influenciando interpretações
posteriores sobre o evento de outubro de 1930 (Borges, 1998, p. 161).

Destacaram-se três linhas interpretativas principais que, em grande medida, influenciaram


todas as outras que se seguiram.

A primeira delas, representada pelo intelectual e político Virgínio Santa Rosa, encara o
movimento de 1930 como uma “revolução de classes médias”. Segundo autores identificados com
essa vertente, na Primeira República teria existido um antagonismo entre uma pequena burguesia,
composta pelos setores médios urbanos, e uma burguesia nacional, representadas por industriais,
grandes comerciantes e os grandes cafeicultores. Por causa da cisão das oligarquias dominantes na
eleição de 1929 e da ascensão política das classes médias graças ao tenentismo, o conflito teria
evoluído até a revolução (Rosa, 1976). A segunda linha interpretativa remete ao Partido Comunista
do Brasil. Nas sucessivas interpretações feitas nos anos imediatamente posteriores ao ocorrido, os
quadros do partido argumentaram que o movimento de 1930 não foi uma “revolução”, pois não
houve nenhuma modificação relevante no sistema socioeconômico vigente no país. Ao contrário,
o movimento de 1930 teria sido simplesmente uma disputa entre distintos setores da oligarquia
813

nacional, cada um deles associados ou ao imperialismo britânico ou ao imperialismo estadunidense


(Konrad, 2001). A terceira linha interpretativa é a do advogado e escritor Alexandre José Barbosa
Lima Sobrinho. O autor desqualificou as interpretações dos quadros do Partido Comunista do
Brasil para defender que a Revolução de 1930 foi um enfrentamento entre vários dos Estados
brasileiros. Nessa luta regional, os Estados mais fracos se juntaram para enfrentar os poderosos e
impedir que fossem simplesmente absorvidos politicamente (Sobrinho, 1975).

Década de 1960-1970

Durante a década de 1960 se popularizou, especialmente entre alguns segmentos da


esquerda brasileira, a interpretação do historiador Nelson Werneck Sodré. A Revolução de 1930
teria ocorrido devido à contradição entre o setor agrário-exportador (latifundiários associados ao
imperialismo) e a burguesia nacional (com interesse no mercado interno). Dessa forma, o
movimento teria sido o resultado de uma certa cisão na classe dominante que, ao dividir-se, acabou
por permitir que a burguesia industrial (uma de suas frações) em conjunto com os setores médios
urbanos alcançassem o poder com a tomada do poder estatal (Sodré, 1982). Nos anos 1970
difundiu-se a interpretação de Boris Fausto. Em seu livro A Revolução de 1930: história e historiografia,
Fausto argumentou que a Revolução de 1930 deve ser compreendida como resultado de conflitos
intraoligárquicos (fortalecidos por movimentos militares dissidentes) que tinham por escopo acabar
com a hegemonia da burguesia cafeeira. Porém, devido à incapacidade das demais frações de classe
em assumirem o poder de forma exclusiva, e em função do colapso política da burguesia cafeeira,
surgiu um vazio de poder. A solução adotada para esta situação foi o “Estado de compromisso”.
Sem se submeter totalmente a nenhuma das pressões, as principais características desse “Estado de
compromisso” são: uma centralização maior (subordinando as oligarquias regionais ao poder
central), o aumento do intervencionismo econômico (não mais restrito à área do café), e a
instauração de certa racionalização no uso de algumas fontes de riqueza importantes pelo
capitalismo internacional. Ademais, por parte das lideranças políticas teria havido um paulatino
abandono das premissas liberais, e a aproximação de tendências autoritárias, como o fascismo
(Fausto, 1970).

Década de 1980

No começo dos anos 1980, novas interpretações historiográficas, identificadas com as


obras de Edgard S. de Decca (1981) e Ítalo Tronca (1982), questionaram 1930 enquanto marco
814

revolucionário. Essas novas interpretações afirmavam que a revolução daquele ano foi um “golpe
preventivo” da burguesia contra o movimento operário. O verdadeiro momento revolucionário
teria sido 1928, quando foi criado o Bloco Operário Camponês pelo Partido Comunista, expressão
da luta de classes no Brasil no plano institucional. Também em 1928 foi fundado o Centro das
Indústrias do Estado de São Paulo, tida como resposta das classes dominantes à mobilização do
operariado, caracterizando uma postura repressiva das patronais. Assim, o golpe de 1930 se
destinaria, a “apagar” da memória o verdadeiro enfrentamento do período, isto é, a luta de classes.

A partir da década de 1990

Na década de 1990, destacou-se a pesquisa de Vavy Pacheco Borges (1992), quem tratou
de resgatar a pluralidade de conceitos, imagens, representações e possibilidades que o conceito de
“revolução” possuía à época. A autora pôde sustentar que, sem dúvida, houve uma inequívoca
cisão jurídica e política em outubro de 1930. Porém, a ideia de uma “revolução” definitivamente
delimitadora entre um período histórico e outro teria se mostrado equívoca. O debate entre
reforma-revolução – central na historiografia sobre o tema até a década de 1980 – teria sido
superado por discussões referentes à “questão democrática”, aos caminhos do autoritarismo
político brasileiro e, principalmente, às representações políticas e sociais do movimento de 1930
que foram sendo feitas ao longo dos anos (Borges, 1998). Não obstante, a discussão em torno da
ideia de “revolução” não desapareceu dos textos que abordam o movimento de 1930. Em texto
inicialmente publicado em 2008, Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez voltaram ao tema para
afirmar que o ocorrido em 1930 não foi uma revolução, pois não teria acarretado (ou sido
expressão) nenhuma modificação radical nas estruturas produtivas ou mesmo na distribuição da
propriedade, tanto rural quanto urbana (Mota; Lopez, 2016, pp. 615).

Não obstante todo o debate desde a década de 1930, o qual tentamos apresentar de modo
bastante sucinto neste curto texto, as polêmicas historiográficas sobre o movimento de 1930
continuam.

Considerações finais

Como vimos, cabem muitas interpretações a respeito da Revolução de 1930. Atualmente,


parece ser mais ou menos consensual na historiografia a noção de que o movimento significou um
necessário novo arranjo das oligarquias dominantes em função de uma maior inserção do Brasil no
sistema capitalista mundial. A dependência excessiva de um único gênero de exportação era
815

certamente problemática, mas não foi o protagonista do movimento de 1930 não estava com um
“setor industrial” tido como interessado na expansão do mercado interno. O que houve em 1930
foi o resultado de uma mistura entre as tensões que se acumularam ao longo da década de 1920, os
efeitos da crise econômica internacional de 1929 e os próprios eventos que ocorreram no ano de
1930. Essa mistura proporcionou a conformação de uma frente eclética, composta por elementos
da burguesia, setores militares e representantes das oligarquias regionais; a qual foi capaz de desafiar
decisivamente o poder instituído.

De qualquer forma, cabe reconhecer que o debate em torno da Revolução de 1930 segue
em aberto, uma vez que o tema continua a desafiar historiadores, sociólogos e cientistas políticos.

Referências

Borges, Vavy Pacheco. Anos Trinta e política: história e historiografia. In: Freitas, Marcos Cezar
de (org.). Historiografia brasileira contemporânea. São Paulo: Contexto, 1998.

____________________. Tenentismo e revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1992.

Carvalho, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.

De Decca, Edgard S. 1981: O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

Fausto, Boris. A Revolução de 1930. São Paulo: Brasiliense, 1970.

Ferreira, Marieta de Moraes; Pinto, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de
1930. In: Ferreira, Jorge; Delgado, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. v.1. 2. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Konrad, Diorge Alceno. Partido Comunista do Brasil: do isolamento inicial à grande ação de
massas com a Aliança Nacional Libertadora. Revista Princípios, n. 62, 2001. Disponível em
<http://revistaprincipios.com.br/62/edicao.html>. Acesso em 30/09/2020.

Mendonça, Sônia Regina de. Da República Velha ao Estado Novo. In: Linhares, Maria Yedda (org.)
História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: LTC, 2016.

Mota, Carlos Guilherme; Lopez, Adriana [2008]. Revolução de 1930 e República Nova (1930-
1937): Vargas e sua “herança”. In: _________. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo:
Editora 34, 2016.

Rosa, Virgínio Santa [1933]. O Sentido do Tenentismo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.

Schwarcz, Lilia M.; Starling, Heloisa M. [2015]. Samba, malandragem e muito autoritarismo na
gênese do Brasil moderno. In: ________. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,
2018.
816

Sobrinho, Alexandre José Barbosa Lima [1933]. A verdade sobre a revolução de outubro. São Paulo: Alfa-
Ômega, 1975.

Sodré, Nelson Werneck [1962]. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Difel, 1982.

Tronca, Ítalo. A Revolução de trinta: a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1982.
817

“Encontro com o Brasil profundo”: culturas políticas e injustiças


sociais durante a transição brasileira (1974-1985)

Geovanni Rocha Junior*

Resumo: Este trabalho busca investigar a composição de um repertório discursivo cuja densidade
temporal remete aos processos históricos que adquiriram contornos nítidos durante a transição
política brasileira (1974-1985). No Brasil, a passagem da ditadura militar para um regime
pretensamente democrático foi decisiva para o ajuste de novas relações políticas. No referido
contexto, ritmos temporais difusos estiveram em disputa e acabaram fornecendo subsídios que
contribuíram para a reconfiguração das esquerdas e de suas plataformas reivindicativas. Essa
reconfiguração, no entanto, contou com elementos oriundos do chamado cristianismo da
libertação. Na segunda metade da 1970, temas como a fome, a miséria e a concentração de renda
foram constantemente mobilizados por sujeitos identificados com tal corrente a fim de denunciar
o regime militar e projetar um sentido de democracia que almejava viabilizar a superação das
injustiças sociais no país. Por meio de uma análise introdutória realizada em documentos coletados
no acervo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e no jornal Folha de São Paulo, verificou-se
a presença de materiais que indicam a formação de um novo sentido de democracia a partir da
interpretação da realidade social brasileira efetuada por pessoas ligadas ao cristianismo da
libertação. No estágio atual da pesquisa, está sendo avaliado em que medida o conceito de cultura
política pode oferecer uma chave interpretativa consistente para melhor retratar as tramas e as
práticas sociais em curso a partir da segunda metade da década de 1970. Por fim, cabe ressaltar que
a pesquisa em andamento tem como ponto de partida os referenciais teóricos e metodológicos da
História do Tempo Presente.

Palavras-chave: Democracia; Culturas políticas; História do Tempo Presente.

Em meados do ano de 1994, as chamadas Caravanas da Cidadania chegavam ao fim. O


esforço de compreender in loco as experiências de vida do mosaico que forma o Brasil
contemporâneo foi o marco inicial de uma nova candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à
presidência da república após a derrota nas eleições de 1989. As caravanas do Partido dos
Trabalhadores percorreram mais de quarenta mil quilômetros e atravessaram quase todos os
estados da federação. Os membros da comitiva se depararam com realidades sociais distintas,
sedimentadas por costumes locais próprios de cada comunidade visitada. Havia, no entanto,
aspectos similares que aproximavam vivências completamente afastadas em termos geográficos,
como o descaso do poder público, a fome, a miséria e a falta de perspectivas depositadas no futuro
próximo.

* Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina


(PPGH/UDESC). Bolsista Promop. E-mail: geovanni.rochajr@gmail.com
818

Este evento serve como ponto de partida para delinearmos algumas observações de caráter
introdutório do projeto de doutorado “Eu ouvi os clamores do meu povo”: Humanismo cristão e
desigualdades sociais na transição política brasileira (1974-1985), que está sendo desenvolvido no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina
(PPGH/UDESC). Busca-se, de maneira específica, identificar prováveis elementos de uma cultura
política a partir de dois relatos da Caravana da Cidadania.334 Após a identificação destes elementos,
será formulado o problema de pesquisa que exige a composição de uma interpretação histórica
consistente. Para desvendar as tramas que envolvem tal cultura política, é necessário encontrar a
densidade temporal do processo histórico em questão. A primeira hipótese lançada recai sobre o
fato de que uma cultura política ganhou contornos nítidos por meio da complexa relação
estabelecida entre o cristianismo da libertação (LOWY, 2007, p. 306.) e uma leitura das
desigualdades sociais vigentes no Brasil durante a transição da ditadura militar para um regime
pretensamente democrático (1974-1985). Essa relação, possivelmente, fez emergir um sentido
alternativo de democracia que esteve em constante conflito com as projeções liberais firmadas para
a “Nova República”. Considerar as variações de uma cultura política em movimento, que perpassa
segmentos importantes das esquerdas no Brasil, pode contribuir para o questionamento dos
padrões restritivos de democracia e abrir caminhos que buscam valorizar práticas democráticas
participativas, a fim de planejar saídas diante dos desafios que estão colocados no século XXI. É
preciso acrescentar que este breve exercício de reflexão tem como base as implicações teórico-
metodológicas da História do Tempo Presente.

Os registros das Caravanas da Cidadania estão disponíveis em diferentes meios, como por
exemplo nas páginas dos jornais impressos, ou então em vídeos gravados para a campanha eleitoral
do Partido dos Trabalhadores de 1994. Optou-se, porém, por investigar o relato de pessoas que
acompanharam de perto as incursões aos longínquos municípios do interior brasileiro. Em agosto
de 1994, a editora Scritta reuniu no livro Viagem ao coração do Brasil alguns textos que foram
produzidos no calor da hora por Ricardo Kotscho, Zuenir Ventura, Frei Betto, Kennedy Alencar,

334Levando em conta o estágio inicial da pesquisa, não é viável nomear de maneira definitiva a referida cultura política,
por isso o uso do conceito de maneira abrangente neste texto. Sugere-se apenas, correndo o risco de simplificar um
processo histórico carregado de contradições e alternâncias, a ideia de uma “cultura política da fome”. O combate à
fome é central no Brasil contemporâneo (Freire, 2013, p. 111-133). A fome pode ser categoricamente considerada o
sintoma impiedoso dos desajustes provocados pelas desigualdades sociais no país. Pretensamente, a “cultura política
da fome” auxiliou na definição de práticas, de narrativas e de ações promovidas pelas esquerdas brasileiras durante a
redemocratização. No entanto, a sugestão carece de reflexões mais aprofundadas e de um exame exaustivo das fontes
coletadas. Por sua vez, o potencial do conceito encontra-se justamente na compreensão de processos e interações
sociais em curso e não apenas na nomeação figurativa de fenômenos circunscritos somente ao campo da política. Neste
texto, portanto, será esboçado algo próximo de um fazer-se da “cultura política da fome”, na tentativa de verificar
como as experiências e os dilemas de diversos sujeitos transcenderam o cotidiano e foram determinantes para
impulsionar as disputas e os conflitos que alteraram as configurações do campo do político.
819

Leonardo Boff, entre outros. De modo geral, as apreciações de cada narrativa revelam um
verdadeiro choque com o Brasil que poucos conheciam. Materializava-se, por intermédio das
palavras redigidas pelos observadores, as dificuldades enfrentadas arduamente por parte substancial
da população brasileira no final do século XX. Frei Betto talvez tenha resumido com primazia o
que foi ter participado daquele itinerário: “desconfio de que a caravana não é só da cidadania. É
também da democracia, que exige de todos nós muito aprendizado” (1994, p. 131). Embora o
conteúdo de cada relato estimule possibilidades de pesquisa no âmbito da investigação histórica,
para os propósitos deste texto os apontamentos de Ricardo Kotscho e Leonardo Boff já são
suficientes.

O livro Viagem ao coração do Brasil é apresentado ao leitor diretamente pelo jornalista Ricardo
Kotscho. O então assessor de imprensa da campanha petista ressalta que a ideia de realizar uma
incursão pelo interior do território brasileiro com Luiz Inácio Lula da Silva havia sido cogitada em
1989, porém devido ao calendário eleitoral não seria possível cumprir o objetivo principal das
caravanas, que era justamente “conversar sem pressa com as pessoas, em vez de fazer discursos;
conhecer de perto seus problemas e anseios para mostrar que as soluções não” chegariam “por
milagre, mas a partir da própria realidade, multiplicando-se a organização popular e criando-se uma
consciência política secularmente castrada pela miséria” (Kotscho, 1994, p. XI). Uma característica
recorrente do texto escrito por Ricardo Kotscho é a crítica dirigida a cobertura dos veículos de
imprensa em relação às Caravanas da Cidadania, sobretudo porque muitos jornais preferiam omitir
informações, classificando o evento como uma atitude “eleitoreira” promovida pelo candidato do
Partido dos Trabalhadores para obter votos. De igual modo, os telejornais, na maioria das vezes,
quando não silenciavam tal iniciativa, tratavam de ressaltar apenas os contratempos das jornadas.
Ainda assim, Kotscho argumenta que todo empenho em torno das caravanas havia sido
fundamental para levar adiante o papel histórico de “aproximar o Brasil real daqueles grotões
esquecidos” pelo “Brasil oficial dos jornais enfurnados nas futricas dos gabinetes” (1994, p. XV).

Ao menos duas proposições que conferiam certa legitimidade para a construção de um


projeto alternativo de país permeiam a leitura feita por Ricardo Kotscho. Ou seja, o enfrentamento
das injustiças sociais a partir de um sentido particular de democracia e a afirmação de novas relações
políticas tendo como base as demandas populares. Segundo Kotscho, no início da década de 1990,
“tempo em que todo mundo só falava em abertura de mercado, privatização total”, Estado mínimo,
“novas tecnologias, carros importados e todas as belezas do Primeiro Mundo, num modesto
sobrado da Vila Mariana, em São Paulo, um grupo reunido por Lula debruçava-se sobre um
820

prosaico, quase ingênuo desafio: como acabar com a fome no Brasil?” (1994, p. XIII).335 O
jornalista completa seu relato afirmando que “entre as teorias da esquerda ortodoxa e o
pragmatismo da direita selvagem”, havia a “realidade de um povo passando fome”, que exigia
“ações imediatas” (1994, p. XIII). No entanto, para solucionar os problemas imediatos da fome e
da miséria, tornava-se indispensável promover “uma revolução nos usos e costumes da cultura
política brasileira” e, assim, formar um “país de cidadãos plenos e não de eventuais eleitores”
(Kotscho, 1994, p. XVII). As representações políticas debatidas por Ricardo Kotscho no breve
texto de apresentação do livro Viagem ao coração do Brasil detêm um lastro temporal. É possível
sugerir que essas ideias se movimentaram em diferentes círculos sociais, ultrapassando a avaliação
pessoal do autor. A avaliação pessoal das Caravanas da Cidadania, na verdade, serve para dar
sentido a um conjunto de valores e experiências que eram compartilhados socialmente. Outro
exemplo torna tangível a sugestão traçada até aqui.

O teólogo da libertação Leonardo Boff (Libânio, 1993, p. 9-95), integrante da sétima etapa
das Caravanas da Cidadania, que durou nove dias e passou por vinte e duas cidades entre os estados
de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, classificou o trajeto como um momento oportuno para
“captar o Brasil nas suas diferenças e contradições, nos corpos das pessoas, nos seus rostos
vincados de marcas por causa da luta da vida, na sua pobreza e nas suas potencialidades” (BOFF,
1994, p. 160). O relato de Boff no livro Viagem ao coração do Brasil, intitulado Encontro com o Brasil
profundo, carrega alguns traços dos princípios da Teologia da Libertação que o ajudou a interpretar
a realidade observada (BOFF, 2001, p. 79-105). Além de sublinhar os momentos que marcaram o
seu percurso ao lado da comitiva do Partido dos Trabalhadores, Boff visualiza o surgimento de
uma nova forma de “fazer política” inaugurada pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva por meio
do contato direto com os “portadores do poder social e político”, isto é, os cidadãos. Na
perspectiva do teólogo, devido ao fato de ser oriundo da “anti-realidade”, que definia boa parte
dos lugares visitados pelas Caravanas, Lula amparava os sujeitos que eram “negados em sua
cidadania e condenados a serem não-pessoas, jecas-tatus, anônimos e destituídos de tudo”. Isso
porque, de acordo com Boff, “a população brasileira” era formada por “sobreviventes da grande
tribulação histórica a que as elites submeteram as grandes maiorias” (1994, p. 180). Caberia,
portanto, equacionar essa contradição adotando políticas públicas que solucionassem o sofrimento
dos mais pobres.

335O debate sobre a fome no Brasil não era inédito. Basta recordar a militância de Betinho durante a Ação da Cidadania
contra a Fome, a Miséria e pela Vida em 1993. Na década de 1940, Josué de Castro lançou Geografia da fome, obra que
ganhou repercussão internacional.
821

Em “Encontro com o Brasil profundo”, uma frase sintetiza o pensamento de Leonardo Boff
naquele instante e abre diálogo com as duas proposições citadas anteriormente na apresentação
escrita pelo jornalista Ricardo Kotscho. Segundo Boff, o desafio urgente colocado no contexto
brasileiro, após a transição política que encerrou o regime militar, voltava-se à “democratização da
democracia” e a “tornar público o Estado” (1994, p. 183). Desse modo, as práticas políticas
almejadas pelo adepto da Teologia da Libertação deveriam partir da base da sociedade e transpor
os mecanismos institucionais de uma democracia limitada apenas ao calendário eleitoral.

Não é exagero lembrar que os textos que integram o livro Viagem ao coração do Brasil
possuíam, naquele cenário, a finalidade de promover a candidatura de Lula à presidência da
República. A realização das Caravanas da Cidadania pode ser compreendida como o momento em
que o representante do Partido dos Trabalhadores se coloca ao lado dos excluídos. Há toda uma
marca simbólica que envolve o percurso efetuado no interior do território brasileiro para “ouvir os
clamores do povo”. Contudo, as observações feitas por intelectuais e escritores que acompanharam
as caravanas tendem a reafirmar a capacidade do candidato de governar um país de proporções
continentais. Deixando um pouco de lado as vicissitudes do jogo político, é possível extrair valiosos
elementos dos relatos de Ricardo Kotscho e Leonardo Boff.336 Eles permitem visualizar ideias em
movimento que atravessam a formação de relações políticas cujas marcas constituem diferentes
ritmos temporais. Superar a fome e a miséria, denunciar as injustiças sociais gestadas pelo
desenvolvimento do capitalismo brasileiro, tornar o povo protagonista a partir de suas próprias
ações e democratizar a democracia, são vetores que possivelmente compõem o repertório
discursivo de uma cultura política ainda pouco interpelada pela historiografia brasileira (Motta,
2018, p. 114). Esse repertório foi amplamente utilizado nas décadas de 1970 e 1980 para tencionar
os arranjos firmados “pelo alto” no processo de transição política iniciado em 1974 (Abreu;
Weltman, 2006, p. 68-69). Identificar os elementos que sistematizam uma cultura política
fundamentada, ao que parece, nos preceitos do humanismo cristão (Souza, 2019, p. 188), na crítica
moral dirigida às contradições do capitalismo periférico e na politização das questões relacionadas
às desigualdades sociais, pode revelar um sentido prático de democracia, assim como outras faces
da transição política brasileira.

A problemática desta pesquisa, portanto, é atribuída ao seguinte questionamento: houve, de


fato, um sentido dissonante de democracia que circulou durante a transição política brasileira? Qual a sua
abrangência? A indagação proposta vem acompanhada de outras interrogações. Em que medida essa
noção de democracia, aparentemente engajada no combate às injustiças sociais, influenciou a

336 Vale destacar que os dois personagens detinham trajetórias completamente diferentes até aquele momento.
822

composição de novas relações políticas após o regime militar? A Teologia da Libertação foi o
principal condutor desse processo histórico? Quais os ritmos temporais que possibilitaram a
consolidação de um sentido prático de democracia? É viável construir valores democráticos em um
país marcado por desigualdades que estruturam seu tecido social? Poderíamos seguir diferentes
caminhos para tentar responder aos questionamentos levantados. No entanto, iniciaremos a
empreitada seguindo os rastros deixados por alguns adeptos do chamado cristianismo da
libertação337 na imprensa e nos dossiês produzidos pelo Serviço Nacional de Informações (SNI),
pois existem indícios verificáveis que apontam nessa direção.

Entre as décadas de 1970 e 1980, vários atores projetaram significados sobre as práticas
sociais e culturais de uma sociedade democrática. Um pouco antes, em 1968, D. Hélder Câmara
alertava: “a democracia precisa ajudar a fragilidade humana”, “aflige-me ver como estão perdendo
terreno democracias, em que os ricos se tornam sempre mais ricos e os pobres se tornam sempre
mais pobres” (Câmara, 1968, p. 80-83). Em outubro de 1978, Plínio Sampaio338 escreveu o seguinte
na Folha: “a nova democracia terá de assegurar às classes populares condições concretas de avanço
político, econômico e social, ou seja, condições efetivas de participação política” (FSP,
08/10/1978, p. 3). Os sentidos de democracia atribuídos tanto por D. Hélder Câmara quanto por
Plínio Sampaio tinham como premissa a construção de relações políticas que fornecessem respostas
aos desajustes sociais brasileiros. São pequenas evidências que merecem ser aprofundadas.

Segundo Américo Freire (2019, p. 212-239), nas décadas de 1970 e 1980, correntes cristãs
que compactuavam com os princípios do cristianismo da libertação tiveram um papel decisivo no
“aggiornamento das esquerdas brasileiras” e “na elaboração e divulgação de um novo discurso
político, que teve como pedra de toque o mergulho direto nas bases, no mundo popular”.
Simultaneamente, nas periferias dos grandes centros urbanos configurou-se “novas formas de
sociabilidade, baseadas na solidariedade e na construção de laços políticos inovadores”. De acordo
com Marcos Napolitano (2018, p. 169), “isso fez surgir movimentos sociais e comunidades
religiosas que não fugiam à reflexão progressista e à ação transformadora no mundo, e que fizeram
germinar uma nova cultura política democrática no Brasil”.339 Para atender às demandas desta
pesquisa ainda em fase inicial, é fundamental desatar os pontos que aproximam o cristianismo da

337 Michael Löwy (2007, p. 306) define o cristianismo da libertação como “conjunto de reflexões e práticas que
questionam a injustiça social, e se traduzem no compromisso de cristãos – membros do clero, mas sobretudo leigos,
organizados em comunidades eclesiais de base (CEBs), pastorais populares, Juventude Universitária Católica e
Juventude Operária Católica, movimentos de educação de base - com a luta pela emancipação dos pobres”.
338 Plínio de Arruda Sampaio foi militante da Juventude Universitária Católica (JUC).
339 É fundamental ressaltar que entre 1970 e 1985, o Brasil passou por profundas transformações demográficas.

Segundo Klein (2014, p. 43-44), “até 1960 a maioria da população” brasileira “ainda morava no campo”. Na década
seguinte, “mais da metade da população foi recenseada como urbana, e esse índice cresceu de forma constante até
atingir 80% da população nacional no censo de 2000”.
823

libertação da composição de valores democráticos que circularam em distintas realidades sociais


durante o processo de redemocratização brasileiro. Certamente a compreensão de tal dinâmica está
associada a um repertório discursivo que foi capaz de interpretar e politizar problemas como a
fome, a miséria e a violência urbana na segunda metade da década de 1970.

A partir de 1974, o ritmo de crescimento econômico do “milagre brasileiro” sofreu os


impactos do contexto internacional puxado pela crise do petróleo. A vitória da oposição nas
eleições daquele ano e a abertura “lenta, gradual e segura” do governo Geisel alteraram as peças no
tabuleiro. Na segunda metade da década de 1970, o governo ditatorial não conseguiu mais omitir
do debate público os dilemas de um país sustentado pelo descaso com a pobreza.340 Em discurso
proferido no ano de 1975, Geisel incorporou ao princípio de abertura política a chamada “distensão
social”, pois “os objetivos do governo, de institucionalizar o poder em bases democráticas, seriam
impossíveis de alcançar caso se agravassem as tensões sociais”. A “linguagem utilizada no governo
Médici para demonstrar o desenvolvimento do país (PIB, PNB, indicadores econômicos, renda per
capita etc.) não surtia mais efeito”, já que “as filas do INPS, a deterioração salarial, os problemas
urbanos” falavam “mais alto” (FSP, 08/01/1976, p. 4).

As tensões sociais decorrentes da pobreza, da miséria e da fome abriram espaços que foram
habilmente ocupados por setores de oposição ao regime militar, sobretudo pelo chamado clero
progressista, que se posicionava de maneira contundente contra as violações dos direitos humanos
no Brasil. É bem verdade que um frutífero debate sobre os aspectos intrínsecos às desigualdades
sociais brasileiras já se fazia presente nos círculos intelectuais durante as décadas de 1950 e 1960,
principalmente nas abordagens que adquiriram forma por meio da chave analítica do
subdesenvolvimento e de seus desdobramentos nos países do “Terceiro mundo”. Porém, na
conjuntura da segunda metade da década de 1970, todo um repertório discursivo proveniente de
ritmos temporais anteriores foi readequado e atualizado ao tempo da transição política,
obedecendo, de igual modo, aos novos desafios de uma sociedade que se tornava cada vez mais
complexa à medida que passava por profundas mudanças demográficas. Os elementos
identificados por Ricardo Kotscho e Leonardo Boff nos relatos das Caravanas da Cidadania
começaram a ser moldados diante desse panorama incerto e repleto de variáveis. Por isso, o
mapeamento do conjunto de práticas, discursos e representações sociais que indicam a existência
de uma cultura política é revelador quanto aos anseios democráticos que, embora não tenham

340Entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, conforme apontam alguns dossiês do SNI, a denúncia
da miséria, da pobreza e da fome no Brasil foi realizada no exterior por personagens que transitavam por meio de
importantes redes internacionais como D. Hélder Câmara. Para uma melhor leitura das articulações transnacionais de
setores do catolicismo da América Latina ver Dominella, 2017, p. 14-31.
824

vingado inicialmente em detrimento dos arranjos oficiais da longa transição política brasileira
(Kinzo, 2001, p. 5), detinham adesão social suficiente capaz de delimitar as disputas e os conflitos
na “Nova República”.

Referências
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FGV, 2006.

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Boff, Leonardo. Encontro com o Brasil profundo. In.: Kotscho, Ricardo (et alii). Viagem ao coração
do Brasil. São Paulo: Scritta, 1994.

Boff, Leonardo; Boff, Clodovis. Como fazer Teologia da Libertação. Rio de Janeiro: Editora Vozes,
2001.

Câmara, D. Hélder. Revolução dentro da paz. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1968.

Dominella, Virginia. El movimiento de estudiantes católicos en Bahía Blanca y sus articulaciones


nacionales y transnacionales (1968-1975). Clepsidra, vol. 4, n. 7, marzo 2017, pp 14-31.

Freire, Américo. Grupo Emaús: esteio da Teologia da Libertação no Brasil (1970-1980). Tempo e
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________________. Intelectuais, democratização e combate à pobreza no Brasil


contemporâneo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, nº 65, p. 111-133. 2013.

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Kinzo, Maria D’alva G. A Democratização Brasileira: Um Balanço do Processo Político desde a


Transição. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n.4, p. 3-12, 2001.

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Kotscho, Ricardo. Apresentação. In.: Kotscho, Ricardo (et alii). Viagem ao coração do Brasil. São
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Motta, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: um debate teórico e historiográfico. Tempo e
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825

Napolitano, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2018.

Souza, Rogério Luiz de. O pensamento de Jacques Maritain e de Emmanuel Mounier no campo
católico brasileiro e a educação libertadora de Paulo Freire. Revista Brasileira de História, vol. 39, no
82, pp. 177-198.
826

Doenças e rituais de curas indígenas


século XVIII no Grão-Pará

Gilmara Cruz de Araújo*

Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as doenças e os rituais de curas indígenas no Grão-
Pará no período colonial, utilizando-se de documentos inquisitoriais produzidos durante a
Visitação do Santo Ofício ao local entre os anos 1763-1769. Visa problematizar a relação entre as
doenças e práticas de curas indígenas que foram demonizadas pela Inquisição e intituladas como
práticas de feitiçaria. Nesse contexto - segunda metade do século XVIII - é perceptível que as
doenças e o desespero para o alcance da cura causaram alterações nas relações humanas e religiosas,
e alteraram o espaço, também se servindo dele para o processo curativo. Além disso, muitos
curandeiros passaram a ser perseguidos por suas práticas, alterando a estrutura social e causando
uma política repressora de combate às práticas alheias à fé cristã. A Visitação objetivou fiscalizar a
região, tendo como representante o inquisidor Giraldo José de Abranches. Sua imposição
influenciou muitas pessoas a irem até a mesa inquisitorial se confessar e/ou denunciar. Desta
Visitação geraram documentos relativos aos “crimes” de feitiçaria - incluindo diversas práticas de
magia - e esses “delitos” eram predominantes nas denúncias feitas nessa região e nesse período.
Esses documentos estão sob a guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em
Lisboa (Portugal), mas foram digitalizados e estão disponíveis no site da Instituição. Analisaremos
alguns documentos através de estudos de casos - de denúncias feitas ao índio Antônio, ao índio
Gregório, à Ludovina Ferreira, à índia Sabina, ao índio domingos e à índia domingas -, partindo,
principalmente, dos estudos que giram em torno da Micro História e do Paradigma Indiciário,
como o historiador italiano Carlo Ginzburg sugeriu. A metodologia utilizada nos proporcionará
uma nova visão, diferente da inquisitorial, e trará tanto aquele contexto histórico como a história
dos praticantes de magia e seu universo à tona.

Palavras-chave: doenças, curandeirismo, perseguição, inquisição, rituais.

Introdução

No século XVIII, muitos índios ainda se mantinham distantes dos “moldes”


colonizadores implantados pela Igreja, pela Inquisição e pelos colonizadores europeus,
principalmente no espaço conhecido como Grão-Pará, que foi a última região que o Santo Ofício
visitou já no final do século citado. A região era povoada em sua maioria por nativos, e seus
costumes e resistências ficaram evidentes, sendo os casos de rituais de cura um deles.

*Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (USP). Grupo de História e Antropologia Indígena (CEMA-
USP). Endereço para lattes: http://lattes.cnpq.br/5622876158540795. E-mail: gilmaracruz@usp.br.
827

Mas é possível inferir, também, que alguns nativos passaram pelo hibridismo cultural,
num processo de miscigenação, no qual costumes se mesclavam e se transformavam. Os grupos
indígenas encontravam-se, nesse período setecentista, em trânsito cultural, alguns vivendo ainda
bem afastados das conjunturas coloniais, outros comungando da vida social, religiosa e cultural. A
estes últimos, a autora Maria Leônia denominou de índios coloniais (Resende, 2003)341. Entretanto,
essas peculiaridades de hibridismo não impediram que muitos fossem levados à malha inquisitorial,
tendo, muitas vezes, suas práticas enquadradas na demonologia342, a qual a Igreja resumia tudo o
que se afastasse de seus ideais.

Nesse período iniciou-se o processo de miscigenação entre brancos, índios e negros, pois
nos documentos inquisitoriais desse momento encontramos denúncias feitas a mulatos e negros
escravos343. A presença de negros apareceu fortemente no final do século XVIII, com a política
pombalina, que visava o desenvolvimento econômico da região. Esse contato entre diversos povos,
as trocas e as fusões transformavam costumes, práticas e crenças em algo plural, trazendo consigo
rupturas e permanências, que iam de acordo com o contexto.

O estado do Grão-Pará recebeu a Visitação do Santo Ofício344 entre os anos de 1763-1769,


sendo representado pelo inquisidor Giraldo José de Abranches. Desta visitação gerou alguns
processos relativos aos “crimes” de feitiçaria e práticas mágicas de cura executadas por índios. Estes
“delitos”, juntamente com adivinhações e pactos com o Diabo, eram predominantes nas denúncias
feitas durante o período da Visitação. Mas a fiscalização não esteve restrita somente à Visitação,
pois se percebe a efetiva participação do clero, as ações dos comissários, juntamente às visitas
inquisitoriais. Dessa forma, antes, durante e depois da visitação havia a vigilância deste território.
Essas investigações deram margem para virem à tona os casos de práticas mágicas de cura, e essas
visitações deixaram importantes documentos que nos possibilitam debruçar sobre eles para
entender e analisar essas práticas.

O século XVIII, no estado do Grão-Pará, foi marcado pela atenção que recebeu da Coroa
Portuguesa. Foi nesse período que os colonizadores estabeleceram limites de seus domínios,

341 Índios coloniais seriam, na denominação da autora, os nativos em processo de interação colonial.
342 Demonologia: estudo sistemático dos demônios.
343 Será necessária uma análise minuciosa dos processos referentes a negros, pois, segundo o autor John Monteiro, os

termos Negro da Terra ou Negro Brasis eram expressões utilizadas pelos colonos desde o século XVI para se referir a
índios escravos.
344 Apesar das três Visitações do Santo Ofício ao Brasil, o Tribunal da Inquisição nunca foi instituído. A fiscalização

acontecia através da atuação de comissários, bispos, familiares, a igreja e as visitas esporádicas. Essas visitações
representavam a Inquisição e eram autorizadas pelo Conselho Geral do Santo Ofício, tendo o Tribunal de Lisboa como
responsável pelos casos ocorridos nas colônias. O Brasil recebeu três visitações: a primeira na Bahia, Pernambuco,
Itamaracá e Paraíba, em 1591-1595; a segunda na Bahia e recôncavo, em 1618-1621; e, por fim, na região do Grão-
Pará, em 1763-1769.
828

tomando medidas como: a adoção da capital de São José do Rio Negro, em Barcelos, estímulos
para casamentos entre indígenas e colonos, aumento das missões carmelitas e fiscalização por meio
da Visitação Inquisitorial. Nesse momento, houve uma influência europeia mais presente.

A fiscalização do Santo Ofício se transformou numa cultura local de perseguição, na qual


o próprio povo vigiava seus conterrâneos. Estavam todos prontos para detectarem quaisquer sinais
de heresia realizada contra a fé católica. Porém, nos casos de enfermidades, ainda que não fossem
índios, muitos (inclusive portugueses) recorriam às práticas mágicas de cura em total desespero
diante da ideia de morte e atingia a todos os estratos da sociedade.

Através da Visitação do Santo Ofício e dos processos inquisitoriais, encontramos diversas


denúncias feitas a índios por práticas de cura. Principalmente os casos de descimento, que era um
ritual em que os índios evocavam e faziam descer do teto entidades que davam orientações de
como cuidar e curar o enfermo. A doença mais presente nos documentos analisados foi a Erisipela.

Analisaremos esses documentos através de estudos de caso345, buscando analisar as


“entrelinhas”, os indícios e os detalhes muitas vezes negligenciados. Utilizando-se de uma
metodologia mais minuciosa descrita pelo historiador italiano Carlo Ginzburg como Paradigma
Indiciário346, com o intuito em desvendar aquilo que nos deixa entender sem ter pretendido dizê-
lo347.

Enfermidades e Rituais Mágicos de Cura

Estar doente no período colonial era estar diante da incerteza de cura, do desconhecimento
da doença e da aproximação da morte. O que veremos a seguir será o trabalho ritual de magia de
cura executado pelos curandeiros e curandeiras para curar as enfermidades que assolavam a
população do Grão-Pará.

345 O estudo de caso tem o intuito em realizar uma microanálise, incentivado pelos estudos da Micro-História, do
Ginzburg, que visa destacar particularidades e detalhes da vida e de acontecimentos individuais.
346 Segundo o autor Carlo Ginzburg: “para demonstrar a relevância de fenômenos aparentemente negligenciáveis, era

indispensável recorrer a instrumentos de observação e escalas de investigação diferentes das usuais”. O que o autor
propõe é uma nova possibilidade cognitiva de narração e investigação, colaborando para uma análise que aumenta as
possibilidades de interpretações, de informações e aproveitamento das fontes. O historiador Ginzburg contribuiu para
uma metodologia mais apurada dos fatos estudados. Tirado dos métodos da medicina, o Paradigma Indiciário é uma
categoria coerente para investigação mais minuciosa, baseada em detalhes e em indícios. O autor estabeleceu uma
forma de investigar apoiado em pistas e coloca a raiz disso como método científico, citando Freud e a psicanálise;
Morelli, crítico de arte; e o personagem Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle.
347 Segundo Marc Bloch, “Que a palavra dos testemunhos não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais

ingênuos policiais sabem bem” (Bloch, 2001, p. 88).


829

Antonia Jeronima apresentou-se diante da mesa inquisitorial para denunciar o índio


Antonio348. Afirmou que há sete meses estava em sua roça e se sentia muito doente, com dores de
cabeça, febre e dores por todo o corpo. Para se curar mandou chamar o índio Antonio que afirmava
curar qualquer moléstia.

O índio, atendendo ao seu chamado e pedido, solicitou que apagassem a luz, fez cânticos
em sua língua349 e deu-lhe para beber raspas de umas cascas e raízes de aruores, as quais não
ajudaram na melhora. Mas o índio garantiu que ela precisava tomar mais, e ela se recusou. Ao parar
de cantar, ouviu-se uma ventania no teto da casa com bastante violência ao ponto de o telhado se
mover. Em seguida, um estrondo como um salto do teto ao chão e logo se ouviu uma voz que deu
boa noite e perguntou à enferma os sintomas. Após ela relatar o que sentia, a voz disse que Deus
lhe daria saúde por meio de umas mesinhas que o índio Antonio haveria de fazer. E que ele veio
pelo chamado do índio e que as moléstias eram malefícios.

A sua filha, Jeronima Caetana, queria consultar os pajés para que eles identificassem o mal
que sua mãe padecia e como curá-la. Em muitos relatos, os pajés eram mencionados como os
espíritos que eram evocados nos rituais. Mas Jeronima disse à mesa inquisitorial que depois
entendeu que esses procedimentos poderiam ofender a Deus, mas que ela apenas levou no sentido
de melhorar de suas moléstias. E que por desencargo de sua consciência e por ter sido mandada
pelo marido ela estava fazendo a denúncia.

Dona Mariana Barreto também padecia de enfermidade desconhecida. Segundo a


denunciante Inez Maria, ela estava em fluxo de sangue contínuo. Naquela época era difícil ter acesso
a médicos e diagnósticos das doenças, então mandou chamar a curandeira Ludovina Ferreira para
curá-la. A curandeira fazia práticas mágicas junto com os índios Gregório e Antônio em um ritual
estranho aos olhos europeus.

Ludovina tangia seu maracá (chocalho de cabacinho atravessado por uma fecha, que
flutuava durante o ritual), dançava e cantava em língua “estranha”, tocava na doente e pedia que
apagassem a luz. Em seguida, ficavam em silêncio e ouvia-se um assobio que vinha do teto, um
estrondo e uma voz perguntava à mulher doente o que ela sentia e dava as orientações. Ludovina
afirmou que a enfermidade era resultado de feitiços contra a doente. Na denúncia de Constança
Maciel (ANTT, IL, processo 13325, fl. 5-8), encontra-se a descrição de que o índio preparou

348 A denunciação de Jeronima está no livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará, de
Jr. Amaral Lapa, p. 211-213.
349 Provavelmente o Nheengatu, língua geral referenciada no idioma Tupi. (Domingues, 2000). Geralmente essas

invocações realizadas em línguas nativas não eram traduzidas durante as evocações, nem mesmo quando falada por
pessoas de outras origens, o que nos leva a crer que consideravam a eficácia mágica ligada à língua de origem. Sendo
que, nesse momento, já vigorava o Diretório dos índios (1758) proibindo o uso da língua nativa.
830

também um cigarro de casca de pau e fumando, tocando e cantando evocava estrondos, vozes
roucas que lhes davam orientações. Segundo Constança, a curandeira Ludovina afirmou que os
motivos de sua doença eram feitiços e escavando o chão encontrou uma cabeça de cobra com uma
pimenta na boca.

Alguns curandeiros mesclaram suas práticas rituais de cura à prática cristã, usando símbolos
e palavras que aprendiam durante a missa. É o caso da índia Domingas, que era escrava e havia
aprendido com sua antiga senhora umas práticas de cura para Erisipela, na qual invocava a
Santíssima Trindade. Essa índia realizava curas utilizando nomes de santos e orações católicas.
(ANTT, IL, Processo 2705, fl. 19). Enquanto recitava as palavras, fazia com a mão alguns gestos
sobre a pessoa doente: “dois olhos mais te deram, com três te hei de curar que são três pessoas da
Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo” (Lapa, 1978, p. 180).

Alguns procedimentos híbridos também eram usados na cura da Erisipela, que é uma
infecção causada pelas bactérias Streptococcus Pyogenes e Haemophilus Influenzae, que entram
em feridas e pequenos ferimentos, como picadas de insetos. E para a sua cura teria de ser feito um
corte com faca, em forma de cruz, no local doente enquanto entoa as palavras: “Rosa branca
contente, rosa negra corto-te, requeiro-te da parte de Deus e da Virgem Maria, se tu és fogo
selvagem, ou Erisipela não maltrates a criatura de Deus”, e rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria.
Quando a índia Domingas, diante da mesa Inquisitorial, afirmou ter dito essas frases cristãs, foi
ridicularizada pelo Inquisidor Abranches, que afirmava ser pecado misturar palavras boas com
palavras vãs (Souza, 1986, p. 408). A índia declarou não saber que era algo mau, que ela ainda não
tinha esse discernimento, mas que confessava arrependida de tê-las praticado e implorava o perdão
(ANTT, IL, Processo 2705, fl. 19).

Manoel Portal compareceu à mesa inquisitorial para denunciar o índio Domingos de Souza,
afirmando que o acusado e sua esposa costumavam fazer curas por meios ilícitos e operações contra
a religião católica. Ele descreveu um ritual em que o índio se cobria de penas de aves, cantava em
sua língua e tangia o maracá que tinha umas pedrinhas dentro e fazia um som estranho ao pé da
doente (Lapa, 1978, p. 222, 223). O ritual descrito é bem similar ao realizado pela Ludovina Ferreira,
citado anteriormente.

Pessoas de várias origens recorriam às práticas mágicas de cura para solucionar suas
enfermidades. O governador do estado do Grão-Pará, João de Abreu Castelo Branco, que também
estava doente, participou dos rituais da índia Sabina para descobrir a doença que o havia deixado
de cama. A índia encontrou dentro da parede da casa um embrulho com ossinhos e várias coisas e
constatou ser feitiçaria lançada para o antigo governador que ali residiu. Após identificar isso, a
831

índia Sabina realizou um ritual com um cachimbo do qual soltava a fumaça no governador e
esfregando as mãos fez sair três bichos vivos do tamanho de um grão de bico, eram moles e logo
se desfizeram. Em seguida, a índia Sabina foi embora e o governador ficou suspeitando do mal que
ela fazia adivinhando coisas que estavam ocultas (Lapa, 1978, p. 172, 173).

É difícil mapear quais eram as enfermidades que acometiam a população no Grão-Pará no


século XVIII. Segundo o historiador Diego Pereira350, houve uma crise entre os anos de 1721 e
1733 devido à Varíola trazida pela população negra escrava, que sofria com péssimas condições
durante as viagens. Segundo ele, os casos foram registrados a partir do bispado de Dom Frei
Bartholomeu do Pilar. Mas não encontramos relatos sobre a Varíola nos documentos inquisitoriais
analisados.

Nos documentos analisados encontramos sintomas de febre, dor de cabeça, dor pelo corpo
e fluxo de sangue, que acreditamos ser hemorragia. Também encontramos relatos sobre a Erisipela.
Mas não era fácil obter um diagnóstico naquela época, o que permitia a possibilidade de crenças
sobrenaturais, atingindo também o campo da religiosidade. Assim, muitas doenças foram atribuídas
a malefícios.

Os relatos demonstraram que havia um desespero pela busca de cura das enfermidades. O
medo da morte e do desconforto da doença levavam inúmeras pessoas a procurarem curandeiros
que manipulavam forças sobrenaturais para auxiliar na cura das moléstias. Essa busca superava
qualquer crença oficial, mesmo que as práticas fossem demonizadas e perseguidas pela Inquisição.
Quando a doença chegava, acometia qualquer pessoa sem distinção de origem ou estrato social,
como vimos, o governador do Estado também participou de curas mágicas.

Percebemos que, enquanto Ludovina e os três índios Antônio, Gregório e Domingos


realizavam práticas quase exclusivamente indígenas, as índias Sabina e Domingas realizavam
práticas sincréticas. Esse sincretismo pode ser fruto da perseguição – para que as práticas não
fossem tão demonizadas – como ato de resistência e autonomia, mas também pode ser fruto do
processo de hibridismo que o Carlo Ginzburg chamou de Circularidade Popular. O Autor atribuiu
ao termo o “influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (Ginzburg, 1987, p.
13) para se referir a diferenças culturais e tramitação de elementos culturais comuns e distintos em
diferentes classes sociais que convivem. O conceito de Ginzburg desconstrói a velha dicotomia
existente entre cultura elitista e cultura popular. Essa questão é difícil de ter uma conclusão, sendo

350Informação dada em uma matéria no site “oliberal.com”, em que o historiador mapeia as epidemias que assolaram
a região do Pará ao longo dos séculos.
832

que ambas as hipóteses podem atuar juntas. Esse enigma, talvez, jamais será desvendado com total
certeza.

Analisando esses casos, percebemos o quanto a doença e a busca pela cura modificaram as
relações sociais, o campo religioso e espacial. O curandeiro, famoso pelo seu poder de cura, passa
a ser marginalizado e perseguido pela Inquisição, de salvador a demonizado. Além disso, muitos
curandeiros passaram a ser perseguidos por suas práticas, alterando a estrutura social e causando
uma política repressora de combate às práticas alheias à fé cristã.

Percebemos, também, alterações no espaço no que diz respeito a seu uso para o processo
curativo, visto que nos rituais se usavam materiais extraídos da natureza – seu espaço de
sobrevivência em uma relação dialética – como ervas, raspas de cascas e afins. Observamos que as
perseguições desestabilizavam essa relação dialética entre índios e natureza, uma vez que visavam
cessar essas práticas. Outro fato é que os acusados ficavam restritos àquela região durante a
resolução de seu processo, pois ficavam proibidos de deixar o local sem autorização do Santo
Ofício.

A relação dos acusados com o espaço passa a ser limitado, tendo em vista que suas práticas,
que necessitam dessa relação, passam a ser proibidas e perseguidas. O acusado passa a ter limite de
deslocamento dentro de seu próprio espaço. E tudo isso serve como exemplo para os demais
daquela região, que diante da opressão, limita sua relação, muitas vezes por vontade própria. O
lugar acaba sendo resultado da nova forma de pensar o mundo, da demonização dessas práticas de
cura e dos novos valores cristãos impostos.

O autor Yi-Fu Tuan conceitua o Espaço Mítico em dois tipos: um seria “uma área imprecisa
de conhecimento deficiente envolvendo o empiricamente conhecido”, e o outro, “componente
espacial de uma visão de mundo, a conceituação de valores locais por meio da qual as pessoas
realizam suas atividades práticas” (Tuan, 1983, p. 97). O segundo tipo, em nossa opinião, aproxima-
se da realidade aqui estudada, pois existem visões de mundo, no determinado espaço em questão,
que, no primeiro momento, incentiva a prática mágica de cura a acontecer, e no segundo momento,
limita.

Para refletir sobre a visão de mundo dos nativos, buscamos evocar as sugestões do Federico
Navarrete quando aborda o conceito de Cosmohistória, que contrapõe a verdade absoluta da
monohistória, incentivando-nos a entrar no universo reflexivo que atesta as multiplicidades
históricas e interconectadas da humanidade. A Cosmohistória não objetiva produzir verdades
históricas definitivas, mas problematizar as negociações, as fronteiras que evocam o novo,
abordando as contradições, os limites desse contato e as árduas negociações necessárias para inserir
833

o seu mundo ao novo mundo colonial. A partir disso, é possível entender que os índios curandeiros
tinham uma visão de mundo específica, particular de sua realidade local, mas que, com a chegada
dos portugueses, novas formas de pensar o mundo foram surgindo, muitas vezes de forma híbrida,
outras não.

Considerações finais

Os casos de enfermidades e rituais de cura, aqui expostos, trouxeram uma visão mais
apurada da sociedade do Grão-Pará no século XVIII. As tentativas da igreja de sufocar as práticas
indígenas ficaram bem evidentes. Também foi perceptível o processo de demonização
cultural/religiosa dos índios, ao mesmo tempo em que vimos como algumas pessoas, de origem
europeia, adaptaram-se às crenças nativas, numa miscigenação. O hibridismo aqui foi relativizado,
visto que, que alguns rituais executados, no século XVIII, eram quase exclusivamente indígenas.

As doenças e os rituais de cura indígenas no Grão-Pará causaram alterações em diversos


âmbitos social, cultural, religioso e político, configurando um hibridismo (relativizado) de forma
pluralizada, móvel e heterogênea que caracterizaram parte da sociedade colonial, em diferentes
medidas.

Os indígenas foram grandes curandeiros durante o período colonial, utilizando-se de seus


conhecimentos naturais e extranaturais de ervas, árvores e palavras que eram procedimentos de seu
universo cultural e conquistaram muito prestígio e respeito por um determinado tempo. As práticas
de rituais indígenas foram realizadas por curandeiros índios, mestiços e procurados por qualquer
pessoa de qualquer estrato social, passando por adaptações e formando uma nova prática, agora
colonial, de lidar com os problemas do cotidiano. Entre rupturas e permanências, tudo isso
contribuía para a construção de um universo multifacetado da religiosidade local.

Referências

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836

Recordações conflitantes: A disputa sobre a memória das


ditaduras de Segurança Nacional em Brasil, Argentina, Chile e
Uruguai

Guilherme da Conceição de Lima*

Resumo: O objetivo do presente trabalho é tratar através de uma perspectiva comparada, os


modos e embates acerca da memória dos regimes militares seguidores da Doutrina de Segurança
Nacional (DSN) na segunda metade do século XX na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. A
discussão que será abordada parte dos reflexos da memória nos processos que envolveram as
ditaduras e sua configuração após seus términos. Neste contexto, portanto, primeiramente será
retratado em um panorama geral como cada país lidou com a memória dos acontecimentos durante
os anos ditatoriais na perspectiva de apoiadores e críticos dos regimes, e em sua utilização em
diversas áreas da sociedade. Em seguida parte-se para um debate acerca da disputa sobre a memória
e do uso desta na atualidade, sendo parte dos debates e disputas sociopolíticas destes países.

Palavras-chave: Memória, ditadura, disputa, passado, presente.

O campo de batalha da memória: a disputa pela narrativa construída sobre as ditaduras.

O campo da história que lida com a memória é um espaço de intenso debate e confronto
acerca de narrativas construídas através dos tempos. A memória dos fatos, acontecimentos e
eventos são elaboradas por vezes, para legitimar ideias e ações do presente, dando outorga e
justificativa à uma situação estabelecida atualmente. Retomando a ideia do mito de Ariadne351, os
fios da história podem ser desfeitos pelo fiador e serem reelaborados de acordo com seu interesse,
assumindo nova forma e seguindo outros caminhos. Por isso ao nos debruçarmos no uso da
memória na ciência histórica, devemos ter um zelo e cuidado enorme, afinal, estamos tratando com
uma percepção humana sensível tanto para o indivíduo quanto para o coletivo. A lembrança de
fatos através do exercício de memória abre espaço para dar autoridade e força a ações do presente
amparados numa narrativa discursiva memorial, embasadas em determinadas recordações e
trechos. Trechos que podem ser induzidos e manipulados para enaltecer e fazer prevalecer
determinado ponto de vista, impondo uma narrativa considerada a verdadeira (Sá, 2012).

* Mestrando pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Brasil, com a pesquisa “El Vecino”:
O Retrato do de uruguaios na Argentina e de argentinos no Uruguai nos informes Nunca Más de suas ditaduras. E-
mail: Guilherme.2lima@gmail.com
351 A história de Ariadne faz parte do mito da fera Minotauro, onde a princesa cretense auxilia Teseu a guiar-se pelo

labirinto do monstro utilizando um novelo de lã com fios mágicos, dados a Teseu por Ariadne. Fonte: Macgillivray,
Joseph Alexander. Minotauro: Sir Arthur Evans e a arqueologia de um mito. Tradução: Luiz Antônio Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
837

Partindo disto, está se presenciando uma quantidade expressiva de memórias e recordações


de testemunhos por parte de militares, políticos e membros de grupos oposicionistas as ditaduras
que personificam vivamente as problemáticas e complexidades relacionadas as ditaduras baseadas
na Doutrina de Segurança Nacional (DSN)352 de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Exemplos disso
são as polêmicas envolvendo a figura do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante a
ditadura militar brasileira, famoso por ter submetido a Ex-presidenta Dilma Rousseff a sessões de
tortura no período. Ustra foi homenageado pelo na época deputado federal Jair Messias Bolsonaro
(atual presidente do Brasil), na votação do processo de Impeachment de Dilma em 2016. Temos
também o caso da série televisiva chilena “los archivos del Cardenal”. Exibida em 2017, a série baseada
em fatos reais sobre os desaparecimentos de opositores da ditadura de Pinochet recebeu fortes
críticas por parte de militares e da ala conservadora da política chilena.

Esse raciocínio vai de encontro a questão de tentar-se prevalecer certa memória dos grupos
envolvidos nas disputas políticas acerca do período ditatorial. Este conflito de narrativas faz parte
de como estas vão influenciar a memória coletiva da população sobre o recorte histórico elencado
aos governos militares de Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Esse passado é idealizado através de
selecionamentos, interpretações e divulgação de representações de um certo passado a partir da
visão de determinados grupos, sobretudo a área militar e os setores civis apoiadores dos regimes.
Neste ínterim, se entrelaçam memórias individuais e coletivas, imersas nas relações de poder
envolvidas no processo de construção de uma memória social. Maurice Halbwachs (2013) pontua
estas questões em meio a noção da memória coletiva e o quanto ela delineia a visão do passado de
uma população, a partir do prevalecimento das lembranças de grupos ou agentes sociais perante o
público. Isto influi diretamente na formulação e percepção da sociedade sobre um tema do passado,
já que desta maneira o social não se associa somente a consciência, mas também se atrela as
recordações e memórias sob todos os aspectos. Sociedade, consciência e personalidade estão
mergulhada umas nas outras, bem como sociedade e memória acabam se imbricando neste
processo (Halbwachs, 2013, p. 22). Estas observações pontuam sucintamente, de acordo com
Halbwachs, que não é somente o indivíduo per si ou uma representação social que acabam por tecer
uma recordação, mas o fazem a partir da sociedade presenciando ou evocando as lembranças que
a ela lhe convém ou ao grupo hegemônico do meio social.

352 As principais diretrizes que serviram como amparo ideológico e de sustentação da DSN estão um anticomunismo
latente e combate aos movimentos de resistência, numa suposta guerra feita contra um inimigo presente no interior da
nação. A DSN foi materializada como princípio teórico de conservação da ordem social nacional através de um Estado
que tinha a necessidade de mascarar seu viés autoritário e repressivo, elaborando um estado de vigilância constante e
de combate sem interrupções a um aparente e obscuro “inimigo interno” (Padrós, 2012, p. 3).
838

Estas percepções levam para um conflito discursivo de narrativas criadas sobre estes
regimes no consciente coletivo social destes países. Isto parte graças a noção de que a memória é
edificada através de seleções, silenciando momentos, valorizando determinado fato/contexto,
solidificando uma certa interpretação do passado. Em suma, entra aí a questão do que relembrar e
do que esquecer. A memória do passado vai refletir diretamente, portanto, as disputas políticas e
sociais do presente, representando modelos de projetos políticos relacionados aos conflitos da
tessitura social do tempo presente. Com isso, pode-se dizer que o controle das recordações e dos
esquecimentos da memória influenciam e podem ser um fator decisivo nos rumos da sociedade
(Mello, 2018, p.15).

A memória dos apoiadores versus críticos das ditaduras

Esta conjectura vai ser importante para elencar a memória como um elemento constitutivo
para legitimar ou deslegitimar o tempo ditatorial. O passado recordado se transforma num palco
importante onde se revelam importantes fraturas políticas do presente. Seja na Argentina, Brasil,
Chile ou Uruguai, se percebe o uso e abuso do passado evocando ideias e pontos de vista que
outorgam dentro do cenário político, jurídico e social, as ações de políticos, bem como de
instituições e agentes públicos, que visam estabelecer a partir de uma reconstrução do passado,
caminhos para o entendimento político e social destes países.

No Brasil, as Forças Armadas, pautada por ideais configurados em várias fases do passado
brasileiro (sobretudo no período republicano), carregam para si a missão de protetores da nação,
defensores régios do país frente a terrível “ameaça comunista”. Eduardo dos Santos Chaves (2013)
aborda que os militares brasileiros quando retratam o golpe de 1964, o consideram uma
contrarrevolução que salvaguardou a nação de uma tomada de poder pelos comunistas (Chaves,
2013, p.134). Pelo prisma das Forças Armadas, há uma defesa tácita não só de que acabaram por
evitar a ameaça do comunismo, mas também de que enquanto estiveram no poder, acabaram por
tirar o país do abismo que se encontrava. Dentro do âmbito militar, existe uma negação da
organização de torturas e crimes cometidos durante o regime, consideradas situações isoladas e
pontuais, glorificando 1964 como “revolução” e exaltando os 21 anos que perdurou o regime como
os anos dourados da história do Brasil. A narrativa sedimentada no bojo das Forças Armadas
brasileiras acaba desnudando em certa medida, um viés autoritário bem vivo até os dias de hoje.
Essa herança dos idos de 64 se tornou cultura arraigada, à sua maneira, entre os militares brasileiros
(Chaves, 2013).
839

Na Argentina, a percepção dos militares e demais setores apoiadores do projeto autoritário


do período de 1976-1983, foi, como mesmo eles o definiram, um processo de “Reorganização
Nacional”. Autores como Novaro e Palermo (2007) explanam que os militares argentinos veem
suas ações no período como uma maneira de pôr fim ao terrorismo político na Argentina, de
organizações de esquerda como os Montoneros e do grupo de extrema-direita Triple A (Aliança
Anticomunista Argentina). As Forças Armadas apregoam que buscavam produzir mudanças
efetivas na sociedade argentina, atribuindo para si a tarefa com ares messiânicos de alavancar o
progresso e levar a Argentina a uma nova era (Novaro, Palermo, 2007, p. 26). Na visão de militares
e apoiadores do golpe, a derrubada do governo de Isabella Perón teve como propósito acabar com
o descontrole governamental, a corrupção e as ações dos agentes subversivos, que castigavam o
país. Esta ideia a princípio foi bem recebida, com apoio por boa parte da população de classe média
e de consideráveis setores políticos. O governo iniciado em março de 1976 teria então uma “função
salvadora”, encerrando a profunda crise que assolava a Argentina. Se instaura assim uma dinâmica
de cultura política intolerante, calcada na dicotomia amigo-inimigo. Os militares, portanto, tem
como memória de suas ações repressivas, a justificativa de estarem castigando, merecidamente,
grupos e indivíduos subversivos (sobretudo de esquerda) influenciados por ideias perigosas,
verdadeiros responsáveis pelo caos que o país estava imerso. As Forças Armadas argentinas, calcada
nestes argumentos, apresentam uma narrativa de estarem agindo contra a “doença cancerígena da
subversão”, numa cruzada restauradora do país.

No Chile, a visão dos defensores do regime trata o fim do governo do presidente Salvador
Allende e o início da ditadura do General Augusto Pinochet em 1973, como o começo da
reestruturação chilena, um projeto que reconstruiu o país com sucesso pondo o Chile novamente
nos trilhos do progresso, numa ação transformadora. O governo de Pinochet (amplamente
respaldado pelas forças armadas e setores da classe média e alta chilena) tentou impedir, e em certa
medida conseguiu, o desenvolvimento de um discurso prejudicial aos eventos alavancados e
ocorridos a partir do 11 de setembro de 1973 até o fim da ditadura pinochetista em 1989 (Mendes,
2013). O argumento dos defensores da era Pinochet retoma a retórica da DSN, de que o golpe
militar pôs fim ao avanço comunista na nação, perigo tácito aos valores apregoados pela “sociedade
cristã” chilena. Os pinochetistas usam como argumento a ideia de que a ditadura acabou trazendo
paz e estabilidade ao Chile, livrando o país do caos econômico e de uma possível guerra civil que a
continuidade do governo socialista de Salvador Allende poderia acabar trazendo. A própria questão
da violenta repressão e das sistemáticas torturas por órgãos governamentais como a temível
Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), e de inúmeros casos de violentas execuções sumárias, são
ignoradas. Para as Forças Armadas chilenas, não existe motivo para que os militares sejam
840

responsabilizados nestes casos, nem sequer devam pedir desculpas por isso, pois nada de “ilegal”
fora feito (Lopes, Chehab, 2015).

A perspectiva do golpe militar no Uruguai por parte de seus apoiadores é similar a aquela
apregoada pelos militares argentinos: pôr fim ao caos na sociedade causados pela penúria
econômica e por ações de grupos paramilitares e terroristas de esquerda. Visando principalmente
combater o grupo armado Movimiento de Liberacion Nacional (MLN-T), ou Tupamaros, os militares
tomaram controle do país através de um golpe cívico-militar, iniciado pelo então presidente Juan
María Bordaberry em junho de 1973. Para os grupos fomentadores do golpe e em especial as Forças
Armadas, o regime militar foi um governo que buscou trazer prosperidade política e econômica.
Pelo prisma dos militares e dos defensores da ditadura, a estrutura do governo militar obteve
sucesso em derrotar os grupos guerrilheiros de esquerda, bem como dissolver a capacidade de
organização de movimentos populares uruguaios. Enrique Serra Padrós (2005) pontua que isto fora
obtido seguindo a lógica militar, através de uma pretensa legalidade destes atos. Esta configuração
de governabilidade é conseguida pelos militares através de uma imposição de terror, em que graças
a ações repressivas coordenadas pelo aparato estatal, levou a população a uma espécie de
“esquecimento social”, forçando determinadas memórias sobre o período e apagamento de outras
(Padrós, 2005, p. 441-442). O silêncio imposto nos mais amplos setores da sociedade, foi um desejo
provocado e apoiado pelo governo. Este silêncio, fruto nascido através dos mecanismos de censura
e terror, foi encarado como uma espécie de autorização por parte da população para que a ditadura
pudesse agir indiscriminadamente através da máquina estatal repressiva para atingir seus objetivos
governamentais (Padrós, 2005, p. 443).

Oposta a versão da memória dos militares e demais defensores das ditaduras, temos as
recordações e percepções daqueles que foram alijados pelo golpe de Estado e que sofreram durante
o período em que os militares estiveram no poder. Estes estão pautados principalmente nos relatos
e percepções dos movimentos de resistência à ditadura. Artistas, intelectuais, políticos, movimentos
sociais e estudantes, construíram suas memórias deste tempo por meio de testemunhos, fontes e
documentos oficiais retratando o ambiente repressivo montado pelos regimes militares, através de
mecanismos de censura, cerceamento de liberdades individuais, cassação de direitos políticos,
perseguição, prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos e assassinatos (Padrós, 2009, p. 36). O
tipo de memória elencada pelos críticos das ditaduras vai de encontro a perspectiva da dor, de uma
lembrança de eventos traumáticos do passado que deixaram profundas marcas para estes grupos e
indivíduos.
841

Os chilenos críticos do golpe têm uma mirada de que a era pinochetista foi a destruição de
um projeto de uma sociedade chilena mais igualitária com o golpe contra o presidente Salvador
Allende. O fim do seu governo para o setor da esquerda chilena significou a derrocada do sonho
de um socialismo através da via democrática, além de uma demonstração da fragilidade política e
cultural da esquerda no Chile (Lima, 2019, p. 233-234.). Com isso, o movimento operário, os
sindicatos, intelectuais e demais setores de oposição à ditadura de Augusto Pinochet buscaram
ressignificar a memória popular sobre o período. Elas estarão ligadas na função de recuperar as
recordações e lembranças que a história dita oficial pelo governo pinochetista tentou apagar e
distorcer. A recordação dos críticos do golpe de 1973 trata de explorar os motivos e desenrolares
da ditadura de acordo com as contradições, quebras, perdas, e do que fora silenciado no processo
de ocultamento realizada pela repressão. As lembranças das ações de grupos armados como o MIR
(Movimiento de Izquierda Revolucionaria), das greves e lutas dos mineiros de cobre e salitre do norte do
Chile, perpassam a memória da resistência (Lima, 2019). Será também reconstituída a memória dos
sobreviventes dos processos de tortura, exílio e perseguição política criada pela ditadura chilena.
(Coradini, 2017).

No que se refere aos argentinos, a sua memória é marcada pela dimensão avassaladora do
sistema de repressão criada pelo Estado ditatorial. A sociedade argentina acabou por entrar em um
ambiente de total terror, gerado a partir de ações realizadas pela junta militar contra sua população.
Os militares argentinos conseguiram estabelecer uma máquina repressiva eficiente, onde
desaparecimentos, sequestros e torturas se tornaram modus operandi na caça aos oposicionistas do
regime. Como bem frisado Por Maria Helena Rolim Capelato (2006), na trilha da derrota da guerra
das Malvinas em 1982 e da redemocratização em 1983, ocorre uma desconstrução da imagem da
ditadura onde ela passa a ser retratada como um momento nefasto na história argentina.
Organizações e grupos que lutavam por respostas aos desaparecidos do período como as Madres y
Abuelas de la plaza de mayo, determinaram um imaginário de resistência frente aos militares (Capelato,
2006, p. 69). As denúncias destas organizações repercutiram mundialmente, ao se constatar a
magnitude do número de mortos e desaparecidos devido a perseguição. Os sobreviventes acabam
explanando tanto o que observaram quanto o que vivenciaram nos centros clandestinos de tortura,
tendo um duplo testemunho sobre o que ocorrera. Aos olhos dos críticos e da maior parte da
população argentina, os anos da ditadura foram marcados pela grandiosidade da violência criada
pelos mecanismos de repressão (Capelato, 2006, p. 73).

Já os setores da sociedade uruguaia crítica do processo ditatorial iniciado em 1973 tem


como recordação a involução política sofrida pelo país, acompanhando o panorama regional de
ascensão de governos autoritários. O regime iniciado foi um fato excepcional para o Uruguai, país
842

que até então era modelo de estabilidade democrática e constitucional na América do Sul. Essa
estabilidade do jogo político democrático já vinha se radicalizando desde o final da década de 1960,
em que se intensificou as ações de grupos armados como os Tupamaros e a resposta violenta e
repressiva por parte do governo uruguaio. Com a derrota dos grupos oposicionistas, a memória
daqueles que resistiram e sofreram com o processo ditatorial parte para o detalhamento de como
ocorreu uma ocupação autoritária de todos os espaços da sociedade pelos militares (Padrós, 2005).
Tem-se, portanto, como componente da memória deste período para a oposição do regime, que a
ditadura reprimiu e impôs seus ditames e vontade nos mais variados setores da sociedade, como
políticos, sindicatos, meios de comunicação, etc.

No Brasil, a posição da memória dos críticos à ditadura brasileira acompanha o movimento


de uma reflexão recente no Brasil, graças ao aumento do interesse sobre a história da ditadura
militar de 1964. A situação vai de encontro aos estudos referentes aos aspectos institucionais e
políticos do regime, bem como em sua relação com a Doutrina de Segurança Nacional, na
abordagem sobre o “milagre econômico”, pela movimentação dos grupos de esquerda, como foi a
atuação da Igreja Católica perante o Estado e os conflitos sociais. Os campos de estudos ligados à
cultura foram importantes também na esfera artística, no surgimento de movimentos de vanguarda
como a MPB, o cinema novo e a popularização da televisão pelo Brasil no período (Cardoso, 2012,
p. 16). Assim, partindo desta demanda rememorativa, determina-se uma representação diferente
do passado oposta a visão saudosa por parte dos militares e de sua posição hegemônica, dando voz
para a preservação histórica de uma memória de diversos grupos de resistência, que buscaram
sobreviver e fugir da dominação dos mecanismos utilizados pela ditadura brasileira. A compreensão
da memória do período vai partir, assim, para uma condenação do regime autoritário. Aqueles que
de alguma forma sofreram com as práticas persecutórias (tortura, exílio, censura, prisões) vão ser
descritos como elementos protagonistas no movimento pelo retorno à normalidade democrática
no Brasil. Lucileide Cardoso deixa claro esta situação, quando retrata que “a matéria do discurso
narrativo dessas memórias se expressa na luta de resistência contra o esquecimento; na
autodenúncia dos crimes hediondos da ditadura; na autocrítica da luta armada e da “esquerda
tradicional” (Cardoso, 2012, p. 138).

Estas ponderações acerca da construção de uma narrativa sobre o tempo ditatorial parte
para a maneira de como pode-se compreender as representações sobre os regimes militares. Estas
representações são alvo de disputa entre os agentes ali envolvidos, como militares e movimentos
de esquerda. Elas estão amparadas numa construção narrativa que segue a percepção de acordo
com a visão de cada grupo, de suas lembranças e rememorações. As recordações, portanto, partem
para caminhos que são traçados não só em como se deu os fatos em si, mas podem ser interpretadas
843

de acordo com os interesses coletivos ou individuais envolvidos. Paul Ricouer (2007) trata de que
a narrativa do acontecimento é um plano de avanço, um ardil variável. Deve-se neste processo dar
devida atenção a dimensão específica da retórica no discurso histórico, mesmo com a gama enorme
de imagens atreladas ao âmbito das narrativas estruturais (Ricouer, 2007). É preciso também
observar os meios de resistência a partir da configuração retórico-narrativa oposta ao movimento
norteador de condução do passado. Ricouer disserta sobre a força do discurso da narrativa sobre a
memória, fruto do imaginário. Este é um efeito de sentido, com a finalidade de uma semântica de
força. O discurso é a maneira de fazer com que se exista um imaginário de força geradora de poder,
emanado ao transformar este imaginário em uma retórica discursiva considerada justa (Ricouer,
2007, p. 282).

Desta maneira, os embates teóricos e retóricos entre apoiadores e críticos das ditaduras
perpassam por uma configuração que está diretamente envolvida na relação presente/passado, e
nos moldes de como um estará construindo-se a partir das noções e particularidades do outro. Os
choques de memória levantados por Paul Ricouer, explicitam bem a disputa em torno da narrativa
que apoiadores ou críticos defendem acerca dos acontecimentos que envolvem o passado das
ditaduras. Dependendo da percepção, cada lado elaborou suas próprias memórias ligadas à época,
almejando a elencar como a memória “verdadeira” destes tempos (Ricouer, 2007).

Legados e heranças: O passado da ditadura que ainda vive no presente

Todas estas condições levantadas anteriormente, se refletem de maneira efetiva quando


olhamos a esfera pública dos 4 países, onde as memórias acerca dos regimes militares se tornaram
tema pesado nos mais diversos âmbitos sociais, especialmente em debates acalorados no ensino
escolar da disciplina história, e acima de tudo, na esfera político-jurídico. Estas medidas perpassam
principalmente pelas reivindicações dos sobreviventes das torturas, sequestros, bem como dos
parentes de desaparecidos e assassinados pela atuação do aparato repressivo instituído pelas
ditaduras. Nesta seara encontramos as medidas tomadas pela justiça transicional, bem como em
políticas de anistia absolvendo os envolvidos em delitos ligados a perseguição política do período.
Outro ponto a se ressaltar são os “legados” constitucionais, os herdeiros políticos deste passado e
própria percepção que a sociedades destes países tem sobre aspectos relacionados a violência,
direitos humanos e opiniões acerca da política e dos discursos presentes neste campo.

Os legados e heranças deixados pela ditadura no Brasil são evidentes, ou mais do que isso,
latentes. Poderia se vislumbrar permanências e idiossincrasias do pós-ditadura já no período final
844

do regime militar brasileiro, como a lei de anistia de 1979, que isentava militares e civis que por
ventura houvessem cometido crimes de cunho político. A lei de anistia promulgada em 1979 foi
determinada de forma arbitrária pelos militares, estabelecendo uma grande contradição para a
sociedade brasileira. O Estado brasileiro anistiara tanto os setores políticos de oposição quanto os
militares que tivessem cometido crimes de teor político no período. Porém, muitos militantes
contrários ao regime haviam sido mortos, torturados, exilados e perseguidos, enquanto os agentes
da repressão que haviam cometido toda uma série de ilegalidades e violações dos direitos humanos,
como assassinatos, estupros, torturas etc. continuaram vivos e impunes (Tosi, Ferreira, Abrão;
Torelly, 2014, p. 42). A lei de anistia se mostrou, após sua promulgação, um grande entrave para o
reconhecimento das violações dos direitos humanos. Sobretudo porque os crimes cometidos pela
Estado brasileiro são ignorados por grande parte da população, principalmente para a geração pós-
ditadura.

Isto ficou escancarado principalmente em relação a tudo que envolveu a criação da


Comissão da Verdade brasileira e sua publicação em 2012 durante o governo de Dilma Rousseff,
ex-militante política que fora perseguida e torturada durante a ditadura. A alta cúpula das Forças
Armadas reagiu demonstrando repudio, tecendo fortes críticas as investigações conduzidas pela
Comissão da Verdade brasileira e suas conclusões. Esta reação dos militares repudiando a Comissão
da Verdade influenciou até mesmo os desenrolares políticos posteriores, especialmente no
impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2016, em que fora perceptível conivência e apoio por
parte dos militares na deposição da chefe do executivo brasileiro. Michel Temer, vice-presidente
de Dilma, confessou num livro publicado recentemente, ter contatado os militares antes da
deposição da presidenta, determinando um entendimento sobre a deposição de Dilma Rousseff
(Exame, 2020).

Na Argentina, a memória sobre a ditadura acabou tendo um tratamento mais crítico e


levando em conta a dimensão catastrófica gerada pela repressão e terrorismo de Estado
orquestrado pela junta militar argentina. Desde o fim da ditadura, as políticas de memória realizadas
pelos argentinos buscam conscientizar e trazer à tona para sociedade a magnitude dos crimes e
violações dos direitos humanos ocorridos no governo militar de 1976-1983. A postura e
condenação da população argentina em relação a história de seu passado recente se deve ao impacto
que o informe Nunca Más teve no país. Publicado em 1984 pela Comisión Nacional sobre la Desaparición
de Personas (CONADEP), o relatório Nunca Más foi um dos pilares que cimentaram a
redemocratização argentina, tornando-se uma memória fundamental e fundadora, a versão
845

“oficial”. (Bauer, 2009, p. 4). O Nunca Más353 argentino, consagrado como memória oficial dos
crimes do regime militar, se tornou ferramenta de uso político, com consequências para a
construção memorial deste tempo e do julgamento dos militares que cometeram as mais diversas
violações dos direitos humanos relatados na comissão. Um exemplo concreto da relevância da
CONADEP, foi a utilização daquilo presente no Nunca Más como evidência jurídica para o
julgamento e a prisão do ditador argentino Jorge Rafael Videla em 1998 (Steinke, 2010).

Não somente o Nunca Más, mas toda a mobilização de grupos e movimentos de direitos
humanos na Argentina, especialmente as Madres y abuelas de la plaza de mayo, tiveram um papel
essencial em cimentar a narrativa memorial de que a ditadura fora um dos momentos mais sombrios
da história da Argentina. A busca pelo destino dos desaparecidos, das crianças sequestradas, bem
como a luta constante na esfera judicial com o intuito de condenar os militares responsáveis,
sensibilizaram os argentinos a ponto de delinear um pensamento de condenação ao regime militar.
Embora ainda existam pessoas que possam ter uma opinião favorável aos tempos da ditadura, este
pensamento não encontra ressonância no âmbito público, e quando expressado gera sempre
condenações contundentes, como no caso do Ex-presidente Argentino Eduardo Duhalde, que fora
extremamente criticado por ter declarado em uma entrevista que existiria a possibilidade de um
novo golpe militar na Argentina, em meio a pandemia de Covid-19. (Página 12, 2020).

No Chile, existe uma complicada relação entre a sociedade e seu passado, quando esta fica
diante dos meandros das extensas violações coordenadas pelos agentes responsáveis pela repressão
durante a ditadura de Augusto Pinochet. O fim do regime pinochetista se deu através de um
plebiscito em 1988, realizado para consultar a população sobre a manutenção do general Pinochet
por mais 8 anos no comando do país. O movimento conhecido como “NO”, que era contra a
permanência do ditador no poder, teve forte repercussão perante o público, conseguindo com que
Pinochet fosse derrotado no plebiscito. Em1989, contudo, os militares se tornaram responsáveis
pela elaboração da reforma constitucional, garantida através também de um plebiscito. Mesmo com
a eleição direta de Patrício Aylwin como Presidente da República, no ano de 1989, os militares
ainda possuíam forte influência nos ditames da vida política chilena (Neto, 2017).

O legado ditatorial no Chile deixou como herança uma série de entraves e polemicas que
trespassam todos os espaços da sociedade chilena. O estado chileno se tornou refém dos modelos
políticos, sociais, e econômicos delineados pelos militares. Os problemas referentes a
aposentadoria, a dificuldade de acesso a saúde e educação, bem como o autoritarismo das forças

Tanto Brasil quanto Uruguai também tiveram seus Nunca Más produzidos. Porém, o Brasil Nunca Mais e o Uruguay
353

Nunca Más não foram uma ação oficial por parte dos governos brasileiro e uruguaio, como no caso argentino.
846

de segurança, foram marcas preservadas no pós-ditadura, que culminaram em tensões sociais


explosivas, eclodindo em uma série de manifestações e revolta da população chilena em 2019.
Mesmo com a forte repressão das forças de segurança do governo de Sebastian Piñera, a grande
onda de protestos que varreu o Chile saiu vitoriosa ao conseguir, através também de um plebiscito,
que o governo chileno faça uma assembleia constituinte para formular uma nova constituição mais
ampla e democrática. Esta medida rompe definitivamente com a antiga constituição, que ainda
contem ecos dos tempos da ditadura de Augusto Pinochet (Revista Fórum, 2020).

Em Relação ao Uruguai, as reminiscências do passado ditatorial no presente é tema que


suscita fortes comoções e discussões sobre muitas feridas ainda abertas no contexto social
uruguaio. Isto se deve pela forma que fora tratado os crimes e violações de direitos humanos
durante o período ditatorial de 1973-1985, e a conjuntura da repressão política do passado recente
do país. A lei de anistia promulgada no mesmo ano do fim da ditadura, e a de Caducidade de 1986,
demonstram como é difícil o embate por memória e justiça perante as instituições oficiais do
Estado uruguaio. A lei de anistia isentava de responsabilidade todos aqueles envolvidos em crimes
políticos no país desde 1962, sendo que a maioria destes crimes cometidos fora feito por militares.
Já a lei de caducidade beneficiava os setores de base do golpe, especialmente os promotores das
ações repressivas. A lei de caducidade afirmou, que em nome de uma transição pacífica e ordenada
para a democracia, se invalidaria o direito de punir estas pessoas (Gallo, 2010, p. 25).

Embora se tenha dificuldade de levar a juízo os militares e demais responsáveis pelo


Terrorismo de Estado e por crimes de lesa-humanidade durante a ditadura uruguaia, importantes
medidas, além de manifestações e atos de memória, tem o intuito de não deixar que a experiência
dolorosa do passado ditatorial caia no esquecimento da população uruguaia. Publicações como o
Uruguay Nunca Más da SERPAJ (1989), e mais recentemente, a Investigación Histórica sobre Detenidos
Desaparecidos em 2007 e a Investigación Histórica sobre la dictadura y el Terrorismo de Estado en el Uruguay
(1973-1985) de 2008, realizadas por pesquisadores da Universidade de La Republica (UDELAR), com
apoio do governo do presidente Tabaré Vazquez (Rico, 2008), foram medidas que visam referendar
a memória sobre a ditadura como processos e acontecimentos que não podem voltar a se repetir.
Outro importante evento que ocorre todos os anos a fim de recordar as vítimas da repressão da
ditadura é a Marcha del Silencio, sempre feita no dia 20 de maio. A marcha visa recordar e não permitir
o esquecimento das violentas violações contra os direitos humanos da ditadura e o negacionismo
destes fatos. Isto se refere sobretudo a grupos e políticos de extrema direita que ascenderam nos
últimos anos no Uruguai, como o ex-comandante das forças armadas Guido Manini Rios, líder do
partido de extrema-direita Cabildo Abierto (Le Monde Diplomatique, 2020).
847

Como se pode ver, cada pais lidou de maneira diversa com seu passado e o modo de encara-
lo. A efervescência nos últimos anos dos debates acerca das narrativas construídas sobre a época
ditatorial nestes países faz parte dos próprios conflitos e dinâmicas que fracionam a sociedade na
atualidade. Escolher o que rememorar e o que esquecer faz parte do jogo político do presente, onde
os grupos e classes hegemônicas colidem entre si buscando um ganho para suas intenções na
disputa pelo poder. A memória coletiva sobre estes tempos vai depender da capacidade de que cada
grupo tem na luta pelo controle da sociedade para disseminar as suas lembranças e recordações,
denotando uma legitimidade, a suprema “verdade”. Retomando Paul Ricouer, São as justificativas
presentes no discurso acerca da memória do período autoritário que são usados para legitimar os
fatos do passado. Só podemos compreender a relação passado/presente a partir da leitura do meio
social e político de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai na configuração de uma retórica discursiva
concreta, possibilitando a narrativa de outrora (Ricouer, 2007).

Considerações Finais

Apoiadores e críticos vão apontar suas próprias versões ao narrarem suas memórias, onde
ambas entram em choque no tempo presente, se contradizendo mutuamente. Entender as raízes
ideológicas de cada lado é importantíssimo para perceber como se construiu as posições
encontradas nas memórias que se opõem. As ditaduras foram instauradas seguindo os ditames da
Doutrina de Segurança Nacional (DSN), e com isso, a narrativa que militares e apoiadores dos
regimes fazem se elaboram baseadas na luta contra a “ameaça comunista”, da guerrilha de esquerda,
do caos social e do descalabro econômico. Suas recordações partem para uma visão heroica da ação
dos militares, que teriam “expurgado” os países do caos em que estavam inseridos, considerando
os anos ditatoriais como uma “era dourada”. Os problemas relacionados a repressão e violações
de direitos humanos, seriam um “mal menor”, dores de parto no nascimento da nova ordem
estabelecida, necessário para levar os países a um desenvolvimento pleno (Padrós, 2005).

Na perspectiva dos críticos, suas memórias partem pela tentativa de entendimento de uma
espécie de derrota da sociedade, das agruras sofridas no período e em como se articulou a
resistência frente a repressão e autoritarismo ditatorial. Aquelas vítimas de todo um panorama
construído pelos mecanismos utilizados pela repressão, estão atrelados principalmente nas marcas
deixadas pela dor e sofrimento dos eventos traumáticos, nos desaparecidos políticos, no exílio, na
tortura dos militantes e do martírio presente nos meios de resistência ao Terrorismo de Estado.
Essa narrativa desmonta e contrapõem tacitamente a história contada pelos militares e sua
elaboração do passado. A memória destes tempos soturnos é transformada em ferramenta utilizada
848

pelos grupos de resistência com a finalidade de estabelecer métodos de ações e enfrentamentos


políticos no presente (Lowy, 2005).

Esta constatação desvela, em maior ou menor grau de acordo com a realidade de cada país,
um conflito pela elaboração de um viés sobre o passado recente. Elizabeth Jelin (2017) enfatiza que
quando o Estado não dispõe de vias institucionais para reconhecer os fatos ocorridos no passado
que foram de sua responsabilidade, o combate pela memória se dá no âmbito social. Múltiplos
atores sociais e políticos vão reestruturando o processo de contar o passado, o que explicita as
intenções políticas do presente e do futuro. Essa controvérsia também se dá no interior do próprio
Estado, onde múltiplas leituras se articulam e se confrontam com os sentidos dados ao passado no
tecido social, buscando uma nova identidade fundacional. Com isso, cada agente envolvido nesse
processo de lembrar aquilo que ocorrera, disputa dentro dos espaços da sociedade a “captura” do
passado.

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851

O Serviço de Registro de Estrangeiros do Distrito Federal: um


“modelo” da reestruturação dos serviços de imigração

Guilherme dos S. C. Marques*

Resumo: O presente trabalho pretende analisar o processo de reestruturação dos serviços de


imigração no Brasil, com ênfase no período do Estado Novo, tendo como escopo de análise a
criação do Serviço de Registro de Estrangeiros (SRE). Inserido em um contexto de maior
centralização política em torno do Executivo federal, o SRE tinha como uma de suas atribuições,
o controle e a fiscalização dos imigrantes que pretendessem ingressar no país quer fosse a partir de
fluxos espontâneos quer fosse de fluxos dirigidos, como também tinha ascendência sobre os
estrangeiros já residentes no Brasil. O Serviço estava previsto no artigo 130 do Decreto-lei 3.010
de agosto de 1938, tendo efetivamente iniciado seus trabalhos em abril de 1939. O SRE foi criado
com a premissa de encontrar-se espalhado por todo território nacional, e para tal fim, as polícias
civis estavam ligadas ao funcionamento deste. Por um lado, a polícia civil estava suficientemente
disseminada em todo território, permitindo assim maior inserção do SRE, e por outro conjugava a
fiscalização com a identificação do estrangeiro. É nesse contexto que o SRE-DF surge como espaço
interessante de análise, tendo em vista que era o único diretamente ligado ao Conselho de Imigração
e Colonização (CIC), órgão responsável pela promoção das políticas de imigração e colonização
do país nesse contexto, e que serviria como norteador para os serviços congêneres nos demais
estados. Para vislumbrarmos tais questões nos debruçaremos sobre o relatório do primeiro ano do
SRE-DF, publicado em 1940 na Revista de Imigração e Colonização e no artigo de Artur Hehl
Neiva sobre o Serviço publicado na mesma revista. Por fim, temos de ter em mente que o SRE se
inseria no tensionamento entre “regionalismo” e “centralização”. Dessa maneira, estando
espalhado por todo território nacional tinha suficiente flexibilidade para adaptar-se as necessidades
para as ações locais, ainda assim não poderiam perder de vista a padronização das medidas, sob o
prisma dos princípios da “administração científica”, como argumentavam os agentes do Estado
naquele momento.

Palavras-chave: imigração, Serviço de Registro de Estrangeiro, controle, fiscalização.

A partir de 1930 o aparato burocrático-legal do estado brasileiro sofreu importantes


transformações, que respondiam as demandas daquele contexto. O campo imigratório não ficou
de fora dessas transformações, notadamente durante o período do Estado Novo, tendo como um
elemento importante a criação do Serviço de Registro de Estrangeiros (SRE), o centro de nossas
atenções. Suas atribuições estavam direcionadas ao controle e a fiscalização do imigrante que
pretendesse ingressar no país, quer fosse a partir de fluxos espontâneos quer fosse de fluxos

*
Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, campus Faculdade de
Formação de Professores (PPGHS/UERJ-FFP). Bolsista CAPES
852

dirigidos, como também se voltava ao controle daqueles estrangeiros que fossem residentes no
Brasil.

Para que possamos vislumbrar os argumentos elencados por parte dos agentes pertencentes
a burocracia do Estado brasileiro, espelhando em suas colocações os anseios do próprio presidente
Vargas, elegemos como fonte privilegiada a Revista de Imigração e Colonização (RIC), revista
vinculada ao Conselho de Imigração e Colonização (CIC) criado em 1938 e que se tornou o
organismo responsável pela promoção das políticas de imigração no Brasil.

Para tanto, selecionamos dois trabalhos publicados na RIC em 1940, que nos oferecem
indícios das perspectivas que a reorganização do aparato burocrático-legal do Estado objetivava no
concernente a questão imigratória. É nesse sentido que selecionamos o artigo escrito por Artur
Hehl Neiva, que trata especificamente sobre o SRE e o relatório dos serviços desenvolvidos pelo
SRE do Distrito Federal no ano de 1939 e escrito pelo seu primeiro presidente Ociola Martinelli.

Porém, antes de entrar propriamente nas reflexões que tais escritos nos sugerem,
entendemos ser importante refletir sobre esse contexto de intensas transformações na estrutura do
Estado brasileiro que teve também como resultado o surgimento do CIC e do próprio SER,
instituições estas que encontraram base legal através dos Decretos-Leis 406 e 3.010, ambos de 1938.

Os caminhos da reorganização do Estado

A análise que aqui se desenvolverá sobre a criação dessas estruturas terá como ponto de
partida as transformações que se desenrolaram durante a década de 1930 na conformação de um
novo aparato burocrático que diferenciasse do modelo de Estado verificado durante a Primeira
República.

Assim, o período compreendido entre os anos de 1930 e 1945 se observa alguns


deslocamentos importantes em diversos campos da sociedade brasileira. No âmbito econômico,
por exemplo, há a inserção de novos agentes no interior dos processos decisórios, qual seja, àqueles
ligados ao setor urbano-industrial, enquanto que politicamente buscou-se esvaziar os centros de
poder daqueles que se preocupavam notadamente com o setor externo, concomitantemente ao
ingresso de interesses ligados ao mercado interno. (Diniz, 1999, p. 25).

Decerto que tais condições não se desenvolveram sem rupturas, proposições ou disputas,
trata-se de um momento de transição onde estão presentes forças muito díspares, abrindo a
momentos de incertezas dessa nova composição. Não sem razão, é nesse período histórico que
853

vemos uma série de transformações de ordem político-institucional a fim de comportar tais


transformações, permitindo a incorporação ao Estado das disputas políticas, bem como o aumento
do poder de intervenção deste. (Diniz, 1999, p. 24).

Nesse sentido, para refletirmos sobre esse período, recuperamos as proposições feitas por
Eli Diniz sobre a “estrutura de poder” alicerçada nesse momento com uma nova “engenharia
institucional”. Ambas as ideias ligam-se umbilicalmente, tendo na premissa de que a estrutura de
poder criada no projeto varguista, de controle e gestão de diferentes áreas da vida política,
econômica e social necessitava de uma engenharia institucional não mais calcada nas bases
consagradas do setor agroexportador e suscetíveis aos interesses das elites locais (Diniz, 1991).

Porém, as transformações institucionais marcaram uma etapa decisiva na conformação do


Estado brasileiro onde, neste processo, os conselhos técnicos ocuparam papel central na
construção dessa nova engenharia institucional, sobretudo durante o Estado Novo. Em tais
espaços, buscavam-se a formulação e implementação de políticas públicas que, isolados dentro do
aparelho estatal, estivesse alheia aos interesses dos grupos de poder locais e colocando o Estado
enquanto esse agente mediador de conflitos e interesses, muitas vezes divergentes, o qual dentre
outros, destacamos a da definição das identidades coletivas (Diniz, 1999, p. 27). Essa configuração
permite vislumbrar a conformação de elementos, político-sociais, bastante heterogêneos, trazendo
uma complexidade a esses locais, mas acentuando por outro lado, a centralidade do Estado como
promotor das políticas de modernização.

Importa destacar que os conselhos técnicos estavam legalmente baseados na Constituição


de 1934, onde através de seu artigo 103 destacava que tais conselhos tinham por função o
assessoramento do Estado na formulação de políticas e na tomada de decisões em diferentes áreas
e setores sociais. Todavia, devemos ter em mente que não havia um modelo único de conselho,
variando em seu caráter e composição, pois que, enquanto uns, por exemplo, eram dotados de
caráter deliberativo e normativo, outros cumpriam apenas uma função consultiva (Diniz, 1999. P.
28). É interessante observar como o surgimento e a efetivação de tais conselhos possibilitou ao
governo varguista a sua utilização para a viabilização de um discurso, e consequentemente a criação
de uma imagem, de governo alinhado às tendências técnicas e modernas para o desenvolvimento
do país, em oposição ao campo político, ilustrado pelos defensores de um estado forte e
interventor, como campo de irracionalidade e distorção na condução da coisa pública. Obviamente
que tal imagem tinha uma função política muito claro, a de fortalecimento do governo de Getúlio
Vargas em detrimento a outros grupos de poder local, mais intimamente ligados à estrutura de
poder da Primeira República.
854

Notável deste último aspecto foi o posicionamento de Getúlio Vargas ao escrever de


maneira categórica na obra “A Nova Política do Brasil”, os seguintes apontamentos:

Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de


que o regime constitucional perdeu o seu valor prático. [...] A tanto havia chegado
o país. A complicada máquina de que dispunha para governar-se não mais
funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir
os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos de sua vontade. (Vargas,
1938, p. 32)

A consciência das nossas responsabilidades indicava o dever de restaurar a


autoridade nacional, pondo a termo a essa condição anômala da nossa existência
política, que poderá conduzir-nos à desintegração, como resultado final dos
choques de tendências inconciliáveis e do predomínio dos particularismos de
ordem local. (Vargas, 1938, p. 23)

Tais afirmações feitas pelo próprio presidente dão a exata dimensão das pretensões que o
governo buscou realizar na reorganização político-institucional do Estado brasileiro. À “máquina
que não mais funcionava”, ou à “ausência de órgãos que viabilizassem os novos anseios”,
construiu-se um complexo quadro jurídico-institucional que propiciou e viabilizou a interferência
do Estado nas diferentes esferas sociais (Diniz, 1991, p. 79). Em contraste aos “particularismos
desagregadores” projetava-se um Estado forte, cada vez mais centralizado354 e, supostamente,
distante de tais interesses conflitantes, quando em realidade tais negociações e disputas foram
incorporadas à nova estrutura do Estado. Tais construções narrativas buscavam afiançar a figura
de Getúlio Vargas como líder da nação e legitimar os movimentos de reorganização do Estado
brasileiro e sua interferência nas diferentes instâncias da vida social. Não devemos perder de vista
que, como sustentação às suas ações, construiu-se uma associação, quase sinonímica, entre Estado
e Pátria, como instância unificadora dos interesses coletivos.

Cabe ressaltar, que tal movimento estava associado a ideia de hipertrofia do Estado
enquanto promotor da modernização e centro das discussões essenciais para se atingir tal objetivo.
Tal campo de atuação, bastante alargado quando comparado à estrutura de Estado anterior,
alcançaria igualmente as questões relativas ao tema da imigração, com o ensejo pela criação do
Conselho de Imigração e Colonização (CIC) em 1938. Ressaltamos que o CIC não seria uma
experiência sui generis no interior do Estado Novo, mas se insere no movimento de criação de
diferentes conselhos técnicos criados nesse período, sobre diferentes temas, mas que possibilitavam
e legitimavam as ações do governo (D’Araújo, 2000).

354
A centralização política não poderia ser concebida sem a correlação de diferentes forças, indos desde os conselhos,
as autarquias, institutos, chegando ao sistema de interventorias. (Diniz, 1991, p. 109).
855

O CIC foi uma importante instituição onde se debatiam propostas e apontamentos


legislativos sobre o campo imigratório brasileiro. A legislação que embasava sua criação bem como
os critérios norteadores de sua ação podem ser verificados a partir da promulgação do Decreto-Lei
406 de 4 de maio de 1938. Entendemos que o surgimento deste Conselho estava ancorado nos
intensos debates sobre o imigrante desejável sobre diversos primas, dentre eles o da saúde, o caráter
laboral, o poder de assimilação, dentre outros. Efetivamente, o CIC começaria suas atividades em
setembro daquele ano, tendo o seu regimento sido aprovado pelo Decreto 3.691 de 6 de fevereiro
de 1939.

Ao observarmos o capítulo XV do Decreto-lei 406, que se refere especificamente sobre a


criação do Conselho, verificaremos no artigo 76 as atribuições a ele atinentes, sendo estas, as cotas
de admissão de estrangeiros, deliberar sobre pedidos dos estados relativos à introdução de
estrangeiros e decidir a respeito das solicitações de empresas, associações ou particulares que
desejassem introduzir estrangeiros no país. Era composto por sete membros nomeados pelo
presidente da República355. Para além das nomeações, a estreita ligação com o chefe do executivo
pode ser percebida a partir de sua inserção na estrutura do Estado, de modo que o CIC estava
diretamente subordinado ao gabinete presidencial. Em seu regimento indicava-se que a
periodicidade de reunião do conselho se daria uma vez na semana, de maneira ordinária, e
extraordinariamente quando fosse necessário, por convocação do presidente do CIC ou
deliberação da maioria dos conselheiros. Com amplo escopo de questões a atentar e atuar, os temas
abordados no interior do conselho versavam sobre questões mais sensíveis a organização
imigratória e de controle do estrangeiro, com destaque: a assimilação dos estrangeiros, sobretudo
dos já residentes no país, do imigrante ideal, da gestão do sistema de cotas356, da colonização da
“nova fronteira agrícola”357, dentre outros.

355 Os primeiros indicados a conselheiros do CIC foram: Cônsul João Carlos Muniz, na qualidade de presidente,
Capitão de Fragata Attila Monteiro Aché, Major Aristóteles de Lima Câmara, Artur Hehl Neiva, Diretor Geral do
Expediente e Contabilidade da Polícia Civil do Distrito Federal, Dulphe Pinheiro Machado, Diretor do Departamento
Nacional de Imigração, José de Oliveira Marques, Diretor da Divisão de Terras e Colonização do Ministério da
Agricultura, e o engenheiro Luiz Betim Paes Leme. (RIC, 1940, p. 9). Com exceção da figura do presidente, não houve
muitas mudanças de conselheiros durante o período do Estado Novo (Debastini, 2018).
356 Vale destacar que o sistema de cotas foi ponto de debate na Assembleia Nacional Constituinte e entrou em vigor

no ano de 1934, com a Constituição. Mesmo com o advento do Estado Novo em 1937, a chamada “Lei de cotas”
continuava vigorando estabelecendo que o limite de ingresso anual por cada nacionalidade seria de 2% do número
total de pessoas já fixados no Brasil nos cinquenta anos anteriores à lei. Ver: Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, promulgada a 16 de julho de 1934. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm Constituição dos Estados Unidos do Brasil,
decretada a 10 de novembro de 1937. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm. Uma boa referência sobre essa questão
pode ser encontrada em: Geraldo, 2009.
357 A “nova fronteira agrícola” caracterizaria a região central do Brasil, notadamente a região Centro-Oeste (nos dias

atuais), se estendendo até partes da região norte do país. Cabe destacarmos que esse movimento se ligava a política
856

Sua criação esteve inserida em um contexto de, cada vez maior centralização do poder e de
maior intervenção em diferentes setores sociais, tendo por meta, como constante do artigo 225 do
Decreto-lei 3.010, orientar e superintender os serviços de colonização e de entrada, fixação e
distribuição de estrangeiros no país. Se de um lado, o argumento oficial para sua criação ligava-se
ao caráter eminentemente técnico deste conselho, a fim de trazer a administração parâmetros
“racionais e científicos”, por outro, o conselho deveria coordenar as atividades dos diversos órgãos
dos diferentes ministérios que se debruçavam sobre o tema. Não sem razão, os membros que
compunham o Conselho tinham ligações com a burocracia estatal, estando alguns ligados ao
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, ao Ministério da Agricultura, ao Ministério de
Relações Exteriores e a polícia do Distrito Federal. Ocupavam assim, uma, duas, ou mesmo três
funções distintas na engenharia institucional do Estado brasileiro.

Assim, centralizavam-se em um órgão as questões ligadas à imigração e colonização, e que


diretamente ligado ao presidente possuía ainda o poder de reformar as resoluções enviadas pelo
CIC (Brasil, 1938b, p. 13). Tal importante ligação a figura de Vargas pode ser percebida no artigo
2º do Decreto-lei 406 de 4 de maio de 1938, quando as ações do poder executivo se ligava às do
conselho, de modo que “O Governo Federal reserva-se o direito de limitar ou suspender, por
motivos econômicos ou sociais, a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens, ouvido
o Conselho de Imigração e Colonização” (Brasil, 1938a, p. 1).

A esse respeito, o cônsul João Carlos Muniz indicava na apresentação da primeira edição
da Revista de Imigração e Colonização (RIC), em janeiro de 1940, que a intervenção do Estado é
decisiva nos movimentos imigratórios, de modo que planificando, selecionando e dirigindo as
correntes migratórias, poder-se-ia conciliar os interesses dos países de emigração e o de imigração.
Tal afirmativa traz a primeiro plano o caráter de que os interesses nacionais, notadamente do estado
varguista, deveriam nortear as ações de atração e controle dos imigrantes para o Brasil. A ação do
Estado possibilitaria o desenvolvimento também de iniciativas que visassem à colonização de
“vazios demográficos”, fortemente apontado pelo cônsul como uma realidade no Brasil e a
imigração aparece como solucionador deste problema. Vale destacar que a argumentação de João
Muniz buscava legitimar por um lado essa reorganização do estado brasileiro, e por outro a
centralidade do próprio conselho na definição das políticas de imigração no país, ao lançar mão do
argumento de que “controle, fiscalização e seleção não significaria proibição ou restrição somente”,
pois que se este fosse o objetivo de tais iniciativas perder-se-ia de vista a realidade social brasileira

verificada nas décadas de 1930 e subsequentes de “Marcha para o Oeste”. Para mais informações sobre estas ações,
ver: Maia, 2012.
857

e, consequentemente, privar-se-ia do “único remédio contra as crises de população”. (RIC, 1940,


p. 4).

Essa visão do presidente do conselho se exprimia em plena conformidade com a posição


institucional do CIC. Um tema bastante corriqueiro nos debates em torno da imigração entre as
décadas de 1930 e 1950, sendo inclusive tema de diversos artigos na RIC, é a densidade demográfica
brasileira. A secretaria do conselho ao elaborar o relatório de atividades do primeiro ano de trabalho
destacava que uma população de certa densidade é condição fundamental para que o país extenso
possa alcançar um rendimento que possibilite a sua população um alto nível de vida. Quer dizer, a
imigração possibilitaria ao Brasil, pelo discurso oficial, progredir e aumentar o nível de vida de toda
a população ao passo que conseguisse “retirar de seus recursos naturais o máximo de vantagens”
(RIC, 1940, p. 5).

Nesse sentido, a imigração se reveste como um tema fundamental para o desenvolvimento


da nação, sobretudo em seu aspecto econômico. Tal afirmativa da secretaria do conselho evidencia
o caráter laboral deste imigrante a ser selecionado, quer dizer, devem fundamentalmente estar aptos
para o trabalho e em setores que fossem ainda carentes no país, fosse pela ausência de técnicos,
fosse pelos “vazios demográficos” ainda verificados. Não sem razão, comumente os argumentos
que buscam legitimar a intervenção do governo na questão da imigração e colonização se direciona
à gestão e controle dos fluxos, colocando sempre em contraposição ao modelo de imigração do
século XIX e de princípio do século XX, “pintando uma imagem” de fluxos imigratórios
“excessivamente liberais”. É exatamente na criação desta dicotomia que o CIC está inserido, e parte
considerável das produções sobre o tema estão permeados. Ainda que entendidos como exitosos
em contextos específicos, vaticinava-se que “o período da livre imigração” estava encerrado. (RIC,
1940, p. 6-7).

Cabe-nos ressaltar, no âmbito de divulgação e circulação dos debates em torno da


imigração, que com a criação do CIC surgira também a Revista de Imigração e Colonização (RIC),
que foi publicada entre os anos de 1940 e 1955. No Regimento do CIC, a que se refere o Decreto
3.691 de 6 de fevereiro de 1939, já constava no artigo 28 ser de responsabilidade do conselho a
publicação de sua revista na qual estariam presentes as “resoluções do Conselho, exceto as de
natureza confidencial, a legislação social de seu imediato interesse, o relatório do Presidente e
quaisquer trabalhos elaborados pelos membros do conselho ou que sejam por estes julgados de
interesse.” (Brasil, 1939, p. 5). Os conteúdos das publicações lá presentes centravam-se em assuntos
diretamente ligados a questão imigratória, reproduzindo artigos publicados na grande imprensa,
legislação em vigor, relatórios, estudos, pareceres e artigos. É interessante observar que muitos dos
858

intelectuais que escreviam na revista tinham ligações estreitas com o estado durante o governo
Vargas, onde muitos assumiram cargos políticos, circulando nas estruturas de poder ou realizando
apontamentos acerca do tema (Peres, 1997, p. 86).

Importa destacar que os temas elencados como importantes para comporem as páginas da
RIC nos possibilitam bons elementos para refletirmos sobre os debates desenvolvidos no CIC
assim como vislumbrar os posicionamentos dos agentes burocráticos, ou elite técnica do governo,
nas palavras de Eli Diniz, personagens fundamentais para compreendermos o jogo político, e as
negociações a ele subjacentes no tocante a imigração.

O Serviço de Registro de Estrangeiros: fiscalização e controle

Como se pode perceber, havia o desejo de publicizar através da Revista de Imigração e


Colonização (RIC) temas e questões que envolvessem a imigração e colonização, temas
compreendidos como importantes para se discutir o tema no país. Não sem razão percebemos no
ano de 1940, que marca o início da publicação, o relatório das atividades realizadas pelo SRE do
Distrito Federal e escrito por seu presidente Ociola Martinelli.

A publicação deste relatório não acontece por acaso, pois este era o único SRE em todo o
Brasil a estar subordinado diretamente às orientações do CIC, então lotado no Palácio do Itamaraty.
Assim, a publicação de suas diretrizes e modus operandi ofertaria aos serviços congêneres em outros
estados subsídios importantes para seu pleno funcionamento. Esse diálogo se fazia extremamente
necessário para se alcançar uma uniformidade nas ações deste órgão que, espalhado por todo o
Brasil, era organizado pelas polícias estaduais o que em certa medida fornecia a flexibilização
necessária para ações concretas, mas igualmente estava subordinado a dispositivos constitucionais
de competência federal.

Assim, que a centralização promovida no específico do SRE lidava também com o


tensionamento entre o regionalismo e a nacionalização dos serviços. A busca pelo maior controle
possível sobre os estrangeiros no Brasil abria a possibilidade de se verificar as adaptações
entendidas como necessárias à localidade onde este organismo se encontrava, ainda que orientado
a partir dos ditames constitucionais e das deliberações vindas do CIC. A eficiência dos serviços
realizados por esse órgão, que se argumentava pelos princípios da “administração científica”, se
filiava as vantagens da padronização das medidas, pois que se respeitando um único princípio, nas
859

palavras de Hehl Neiva358, estabeleceriam “um controle cada vez mais perfeito, e extensivo a todos
os recantos do nosso território, [...] cuja intensificação só pode trazer resultados altamente
proveitosos ao Brasil.”359 (Martinelli, 1940, p. 476).

O SRE estava previsto no Decreto-lei 3.010, de agosto de 1938, onde no artigo 130 já
indicava algumas de suas atribuições dentre as quais o serviço se destinaria a fiscalizar a
permanência dos estrangeiros em território nacional e sua instalação ocorreria nos portos de
desembarque de estrangeiros e nas cidades que fosse julgado conveniente o serviço. (Brasil, 1938b,
p. 8). Dentre suas competências:

I) receber as fichas consulares de qualificação e as listas de desembarque, enviadas pela Polícia


Marítima, quando localizados nos portos de entrada de estrangeiros;
II) fiscalizar o cumprimento dos dispositivos do presente regulamento, no que é de competência
da Polícia Marítima, comunicando às autoridades superiores as irregularidades verificadas;
III) comunicar ao Ministério das Relações Exteriores as irregularidades notadas quanto ao
desembarque de estrangeiros e das quais sejam tidas como responsáveis as autoridades
consulares;
IV) corresponder-se com o C. I. C. sobre todos os assuntos referentes ao desembarque de
estrangeiros e à organização dos seus serviços;
V) expedir documentos comprobatórios das condições de permanência de estrangeiros no país;
VI) fazer as anotações constantes do verso da ficha consular de qualificação;
VII) receber e anotar as comunicações de mudança de residência ou emprego;
VIII) fazer o controle dos estrangeiros que entrarem no país em caráter temporário, evitando que
se demorem mais de seis meses;
IX) encaminhar às autoridades competentes, quando for caso de processo, os infratores das
disposições do presente regulamento;
X) processar os pedidos de estrangeiros que pretendam transformar o caráter de sua entrada no
país, desde que não se trate de agricultores ou técnicos de indústrias rurais;
XI) visar passaportes de estrangeiros para saída do país;
XII) expedir licença de retorno;
XIII) anotar, nas observações da carteira de identidade (modelo n. 19), a autorização concedida
pelo C. I. C. para que agricultores ou técnicos de indústrias rurais passem a exercer outra
atividade;
XIV) fazer na carteira de identidade as anotações relativas ao desembarque, transformação do
caráter da sua estrada no país, mudança de residência ou emprego, e as demais que se fizerem
necessárias. (Brasil, 1938b, p. 8).

O SRE deveria estar organizado no prazo de até 120 contados da publicação do


regulamento que constava no Decreto-lei 3.010, de maio de 1938. Contados, o limite seria o mês
de setembro do mesmo ano, mas sua criação esteve igualmente submetida à apresentação do
projeto de organização deste serviço ao Conselho de Imigração e Colonização (CIC), fato que

358
Neste caso nos referimos a introdução feita por Artur Hehl Neiva ao respectivo relatório dos serviços do SRE do
Distrito Federal, e não ao seu artigo também publicado em 1940.
359
Um outro dado importante de nota. O Brasil em muitas de suas políticas de imigração tinha “olhos voltados” aos
Estados Unidos e a circulação do conhecimento entre os agentes de Estado e a observação dos serviços desenvolvidos
davam subsídios para políticas públicas no Brasil. No tocante ao SRE um dos argumentos legitimadores de sua
implementação foi a instituição de serviços similares nos EUA, posteriores ao Decreto que o instituiu no Brasil. Esse
fato levava Hehl Neiva a vaticinar que a ideia de criação deste era vitoriosa em toda linha. (Martinelli, 1940, p. 475).
860

aconteceu em outubro de 1938 pela chefatura de polícia do Distrito Federal, por intermédio de seu
representante Artur Hehl Neiva, tendo sido o mesmo aprovado no mesmo mês e o pleno
funcionamento do SRE ter iniciado em abril de 1939. (Martinelli, 1940, p. 482).

Interessante observar que Ociola Martinelli dá especial ênfase à assimilação, ou a suposta


capacidade do estrangeiro em assimilar-se, em seu relatório. De modo que a reorganização dos
serviços de imigração, e notadamente estando incluso o SRE, tinha por premissa essa preocupação,
ressaltando que a máquina até então presente no Brasil não daria condições para a execução dos
serviços de atração e seleção do imigrante necessitando dos reajustes a fim de possibilitar condições
a esse controle. Vale destacar, como ressalta Koifman (2012. P. 157), que o sistema de controle se
aprimorou nos detalhamentos e na especialização da máquina estatal. Ademais, o controle de
entrada e permanência de estrangeiros no Brasil possuía um caráter limitado e precário, sendo as
listas nominais de passageiros, que eram registradas nos vapores, um dos poucos recursos
disponíveis para essa verificação. (Koifman, 2012. P. 167). Ademais, Ociola Martinelli chamava a
atenção de que o Decreto 24.258, de 16 de maio de 1934 não mais atendia as necessidades e os
anseios “traçados pelo Estado Novo”, é exatamente nesse sentido que a anterior barreira levantada
à entrada de estrangeiros no país cedia lugar a medidas “relativas de restrição”, cujo centro estava
ligado à ideia de assimilação ao meio nacional. Para o chefe do SRE/DF os impedimentos postos
para ingresso do estrangeiro no país haviam sido além da expectativa, e para reorientar as ações, a
máquina administrativa precisava de revisão para que as partes responsáveis pela imigração fossem
conjugadas (Martinelli, 1940. P. 477).

A efetividade das ações, bem como a eficácia destas, para o chefe do SRE/DF Martinelli
(1940. P. 478), estava ligada ao ajustamento dos órgãos que se debruçavam sobre o tema da
imigração. Assim, destacava que havia uma “hipertrofia” da polícia no processo de fiscalização dos
estrangeiros, de modo que outros setores atuavam apenas de modo secundário nesse processo,
trazendo desarmonia a todo conjunto. Interessante observar que a proeminência da polícia nessa
frente de atuação, na visão deste personagem, se afigurava também, pela imigração de “caráter
espontâneo”, onde o conjunto de formalidades e exigência de documentação se voltava mais àquele
residente no país do que ao estrangeiro que estava sendo chamado.

Não sem razão, Koifman (2012. P. 159) indica que o constante desembarcar de estrangeiros
nos portos brasileiros trazia grandes preocupações aos grupos que se debruçavam sobre a questão
imigratória, tendo suas atenções voltadas para a “boa formação étnica da população brasileira”.
Esse posicionamento reflete dois movimentos complementares. Primeiramente visa destacar a
inclinação do governo brasileiro ao chamado “fluxo dirigido”, gestado, controlado e fiscalizado
861

pela máquina burocrática estatal. Por outro lado, visava atingir e preservar interesses próprios, a
partir de parâmetros étnicos, laborais, religiosos, políticos, dentre outros, aqueles que fossem
considerados mais aptos a virem para o país, no movimento de modernização projetado pelo
Estado. É nesse sentido que, com a reestruturação novos procedimentos são adotados, nos quais
os cônsules ganham novamente destaque na fiscalização, sendo a primeira etapa de seleção a análise
dos solicitantes. Assim, proceder-se-ia um controle do exterior para o interior360, e quando
ingressado no país, o imigrante teria contato com os organismos de permanência, dando maior
clareza e definição sobre o entendimento em torno da ideia de imigrantes “temporários e
permanentes” (Martinelli, 1940, p. 480).

Martinelli (1940. P. 481) destaca que esse ordenamento estava dotado de grande liberdade
e necessitava de um contrabalanceamento a partir da observação das normas já reguladas na
legislação. Daí que se escolheu a Polícia Civil, em virtude de estar disseminada por todo território
nacional, fazendo, igualmente, com que a fiscalização se conjugasse a identificação, com a
instituição da carteira de identidade modelo 19. Dentre as competências do SRE, as quais citamos
anteriormente, ao menos três ligavam-se diretamente a questão da identificação a partir da
instituição da “carteira modelo 19”. A identificação a partir desta ocupava uma centralidade
considerável dentro dessa reorganização do campo imigratório, tendo o mesmo valor legal da
“carteira de identidade ordinária” e sendo expedida pelo Instituto de Identificação no Distrito
Federal e congêneres nos demais estados (Brasil, 1938b. p. 8). Igualmente, seria através do “modelo
19” que seriam expedidas as carteiras profissionais aos estrangeiros pelo Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio361, sendo as identificações válidas em todo território.

Artur Hehl Neiva ao escrever sobre o SRE o colocava enquanto elemento fundamental
para propiciar ao Estado “elementos indispensáveis” que pudessem bem orientar sua função de
organização da sociedade. A primazia do Estado sobre o indivíduo na organização social não era
uma novidade atinente apenas a Hehl Neiva, mas legitimava o movimento de hipertrofia do Estado
brasileiro e a ampliação das zonas de sua influência. É neste sentido, que os órgãos especializados,
e aí se inseria o SRE, deveria propiciar ao Estado informações que o permitissem, dentro de
determinadas circunstâncias, prever o que aconteceria, subsidiando suas ações (NEIVA, 1940. P.
48/49).

360
Este ordenamento estava presente no Decreto-lei 3.010, onde em seu artigo 27 versando sobre a seleção destacava
o “controle relativo” exercido pelas autoridades consulares no país emigrantista, isso em conjunto com a imigração ou
o Departamento de Terras e Colonização (DTC), do Ministério da Agricultura (artigo 64). Ver: Brasil, 1938b, p. 2
361
O artigo 136 do decreto-lei 3.010 indicava que a expedição da carteira profissional estaria vinculada à carteira de
identidade “modelo 19” após um ano da entrada de vigor do regulamento (Brasil, 1938b. p. 8).
862

Para alcançar tais finalidades, a reorganização e a preponderância do campo político era


importante, pois que algumas áreas, dentre as quais o campo imigratório, não havia sido pensado
com a “mesma acuidade nos tempos passados” como ocorria naquele contexto (NEIVA, 1940. P.
49). Decerto que tal afirmação de Hehl Neiva fortalecia a imagem do governo do Estado Novo
como o agente transformador do país, conjugando não apenas a questão política, mas também o
aspecto técnico desses órgãos que deveriam subsidiar o governo em sua tarefa. Certamente, neste
específico reafirmava a imagem de que durante o Império e a Primeira República havia se
desenvolvido uma “imigração livre” e que na visão de muitos intelectuais e burocratas do Estado
Novo, tal atitude havia trazido alguns inconvenientes ao Brasil, como a questão da “assimilação” e
dos chamados “quistos étnicos”.

Para Hehl Neiva tal mudança de postura em relação à questão imigratória derivava da
evolução das condições sociais, que estava ligada ao progresso, fazendo com que os países
imigrantistas passassem a exigir por parte dos países de imigração o cumprimento de uma série de
exigências que, de um lado, visavam “proteger” os nacionais dos “sofrimentos inevitáveis de uma
imigração de massa”, e por outro lado possibilitasse atender aos parâmetros elencados pelos países
imigrantistas quanto à seleção, levando em conta prismas laborais e sanitários visando dentre os
imigrantes àqueles que supostamente teriam maior poder de assimilação. Este último para o autor
estava filiado aos caracteres “antropológicos e sociais” e, assim, o imigrante se configuraria
enquanto um dos mais poderosos fatores de desenvolvimento do país. (Neiva, 1940, p. 51).

Esses princípios dos países imigrantistas poderiam ser mais bem preservados e atendidos,
para o autor, a partir do maior e melhor conhecimento do estrangeiro, exatamente neste aspecto
que se insere o SRE, pois segundo Hehl Neiva “é indispensável que o Estado esteja apto a conhecer
os estrangeiros. O único meio viável é obrigar o estrangeiro a registrar-se” (Neiva, 1940, p. 51). O
registro e a identificação, porém, deveria seguir princípios científicos, ou seja, se daria através das
impressões papilares digitais. Esse princípio para Hehl Neiva tinha vantagens consideráveis, pois
que, seguia o princípio da individualidade, quer dizer, não há indivíduos com as mesmas digitais,
além desta permanecer constante durante a vida do indivíduo. Em resumo, para o autor esse
modelo de identificação era “mais perfeito e o único seguro”, em clara oposição, e Hehl Neiva o
faz, à bertillonagem, que identificava o indivíduo por meios antropométricos. (Neiva, 1940, p. 53).

Cabe-nos ressaltar também uma importante disputa intestina à burocracia do Estado Novo.
Estando este serviço tensionado entre a centralização e o regionalismo, era uma questão que trazia
grandes preocupações a Francisco Campos, que, apesar do movimento de se buscar uma
uniformidade de ações, tendo como parâmetro prático os trabalhos da SRE/DF, poder-se-ia cair
863

em uma desorientação dos trabalhos segundo o ministro. Para Koifman (2012. P. 166) ainda que
subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o ministro não confiava plenamente
no discernimento das autoridades incumbidas à frente do SRE. É bem verdade que Martinelli faz
a ressalva em seu relatório da modificação relativa a portaria 2.676, onde o julgamento dos
processos foi passado a competência do ministro da Justiça, sendo que essa modificação

teve o alto objetivo de restringir a concessão dessa transformação de


permanência, condicionando o seu deferimento a fatores humanitários ou a
razões de interesse nacional. [...] Só por iniciativa do Ministério da Justiça pode
ser exercida fiscalização rigorosa contra tais elementos [...]. (Martinelli, 1940, p.
505)

O SRE/DF estava localizado em um dos antigos pavilhões onde ocorrera a Feira de


Amostras da cidade do Rio de Janeiro, ocupando o pavilhão relativo ao Estado de Minas Gerais.
O serviço fora dividido em 9 seções, das quais 3 se destinavam a identificação e 6 ao registro, além
de um local específico ao chefe do serviço, mas vale destacar, que não havia um isolamento entre
as seções, pensadas para trabalharem conjugadas. Para o trabalho, Martinelli destacava de maneira
efusiva as atuações de Filinto Muller, chefe de polícia e de Artur Hehl Neiva para que se conseguisse
uma equipe qualificada para o trabalho no SRE/DF e, graças aos seus “alto espírito de
compreensão das questões administrativas”, foi conseguido. (Martinelli, 1940, p. 484/485). Ainda
assim, na conclusão do relatório, o chefe do SRE/DF lamenta o limitado número de funcionários
técnicos e datiloscopistas pesquisadores, de modo que o trabalho não se desenvolve de maneira
ainda mais eficiente, ou seja, o de identificar no menor tempo possível “toda a população alienígena
da capital da República”, devido ao limitado número (Martinelli, 1940, p. 521).

Relativamente os números que o relatório dos trabalhos 1939 traz, temos que fora recebido
neste ano o total de 56.776 processos dos quais 1.266 não tiveram solução e ficaram retidos,
aproximadamente 2,23%. Vale destacarmos que tais números indicavam, dentre os estrangeiros
que se registraram no SRE/DF em 1939 a predominância de homens da nacionalidade portuguesa.
(Martinelli, 1940, p. 488). É forçoso notar que tais cifras foram mobilizadas por Martinelli no
sentido de configurar uma eficiência ao novo órgão de fiscalização e controle, denotando ao menos
dois elementos importantes a se ater. Primeiramente, buscava legitimar a instituição desse órgão
dentro da reorganização do aparato burocrático do Estado brasileiro levado a cabo, sobretudo, no
Estado Novo; a este entendemos que tal assertiva buscava também fundamentar positivamente o
trabalho desenvolvido por ele e sua equipe.

O serviço desenvolvido pelo SRE se ligava, de certa maneira, a seleção dos imigrantes, pois
que, na concepção dos agentes da burocracia, a primeira etapa seria identificar àqueles que já
864

estavam no país. Aos recém-chegados, tinham por norma 30 dias contados de seu desembarque
para a “regularização de sua situação”, que se ia dando baixa a partir das listas de desembarque
enviadas pela polícia marítima. E mesmo após os primeiros momentos de chegada ao Brasil,
incumbia também ao imigrante informar às autoridades qualquer mudança de residência bem como
de emprego durante os primeiros quatro anos de entrada no país, não havendo mudanças a
revalidação seria realizada anualmente, buscando assim a manutenção do contato entre o imigrante
e a polícia. (BRASIL, 1938b, p. 10).

Considerações Finais

O Serviço de Registro de Estrangeiro (SRE) estava inserido dentro do contexto de


importantes transformações no aparato burocrático-legal do Estado brasileiro na década de 1930.
No bojo dessas transformações, o SRE acompanhava a tendência de hipertrofia do Estado
brasileiro em diferentes áreas, e o campo imigratório não ficou alheio a esse processo. Como
procuramos destacar, o serviço se filiava ao processo de registro e identificação dos estrangeiros,
residentes no país, ou mesmo àqueles que decidissem imigrar para o Brasil, enveredando-se pela
senda do controle da demografia social em relação aos imigrantes o que visava também legitimar
as ações engendradas pelo Estado Novo.

Ademais, o processo de registro e identificação ligava-se diretamente ao processo de seleção


do imigrante. Nesse sentido, conhecer a realidade social brasileira seria como o primeiro passo para
identificar quais imigrantes que seriam compreendidos como os “mais aptos” a virem para o Brasil
e, assimilando-se, de acordo com os agentes que analisamos, poderiam se tornar elementos
importantes no desenvolvimento do país.

Referências

Apresentação. Revista de Imigração e Colonização. Ano I, nº 1. Imprensa Oficial. Janeiro de 1940.

Brasil. Decreto-lei nº406, de 4 de maio de 1938a. Dispõe sobre a entrada de estrangeiros no


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865

pe.html#:~:text=Regulamenta%20o%20dercreto%2Dlei%20n,que%20lhe%20conferem%20o%
20art.

Brasil. Decreto nº3.691, de 6 de fevereiro de 1939. Aprova o regimento do Conselho de


Imigração e Colonização. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-
1939/decreto-3691-6-fevereiro-1939-345819-publicacaooriginal-1-pe.html

D‘araúlo. Maria Celina. O Estado Novo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. Ed. 2000 .

Debastiani, Jesiane. A Política imigratória do governo Vargas (1940-1945): teses, práticas e debates na
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Vargas, Getulio. A Nova Ordem Política do Brasil. Volume V. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio
Editora, 1938.
866

Editora Alfa-Omega: a história intelectual através dos editores

Gustavo Orsolon de Souza*

Resumo: a proposta é destacar parte da minha pesquisa de doutorado que vem sendo desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em História Social da UERJ/FFP. O objeto de pesquisa é a editora
paulista Alfa-Omega, criada no ano de 1973, pelo jovem casal Fernando Mangarielo e Claudete
Machado Mangarielo. Funcionando inicialmente no pequeno apartamento do casal, no centro de
São Paulo, a editora se destacou por publicar obras de oposição em um momento marcado pela
censura do regime militar. Como exemplos, destacam-se: Coronelismo, Enxada e Voto, de Victor
Nunes Leal; e A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro, de Fernando Morais. Além de livros
de oposição, os editores também apostaram na literatura nacional, dando voz aos autores
brasileiros, alguns até mesmo, desconhecidos do grande público. Um exemplo foi a coleção de
antologias, em que autores regionais puderam mostrar o seu trabalho. Intitulada Assim Escrevem os...,
a coleção reuniu contos de gaúchos, de paranaenses, de paulistas e de catarinenses. Em um cenário
marcado pelas já famosas editoras, como, a Brasiliense, a José Olympio e a Ciências Humanas, a
jovem Alfa-Omega começava a trilhar o seu caminho de forma diferente, privilegiando não
somente os grandes clássicos de autores já renomados, como também de autores que ainda não
tinham alcançado espaço para publicar seus trabalhos. Nesse sentindo, tendo como inspiração a
obra das historiadoras Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen – Intelectuais Mediadores: práticas
culturais e ação política – verifico que os editores da Alfa-Omega foram sujeitos conectados e
preocupados com as questões políticas e sociais de seu tempo, ou seja, foram “intelectuais
mediadores”. Com um catálogo bastante rico, a editora ainda hoje está em pleno funcionamento,
mantendo o mesmo perfil editorial, e sendo comandada a quarenta e sete anos por Fernando e
Claudete.

Palavras-chave: editores, Alfa-Omega, história intelectual.

Abstract: the proposal is to highlight part of my PhD research that has been developed at the
Graduate Program in Social History at UERJ/FFP. The object of the research is the publishing
house Alfa-Omega, created in 1973 by the young couple Fernando Mangarielo and Claudete
Machado Mangarielo. Initially working in the couple's small apartment in downtown São Paulo,
the publishing house stood out for publishing works of opposition at a time marked by censorship
of the military regime. As examples, they stand out: Coronelismo, Enxada e Voto, by Victor Nunes
Leal; and A Ilha: um repórter brasileiro no país de Fidel Castro, by Fernando Morais. In addition to
opposition books, the publishers also bet on national literature, giving voice to Brazilian authors,
some even unknown to the general public. One example was the collection of anthologies, in which
regional authors were able to show their work. Entitled Assim Escrevem os..., the collection brought
together tales from Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo and Santa Catarina. In a scenario marked
by already famous publishers such as Brasiliense, José Olympio and the Ciências Humanas, the
young Alfa-Omega was beginning to walk her path in a different way, privileging not only the great
classics of already renowned authors, but also of authors who had not yet reached space to publish
their work. In this sense, having as inspiration the work of historians Angela de Castro Gomes and
Patrícia Hansen - Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política - I see that the editors of Alfa-
Omega were connected and concerned with the political and social issues of their time, that is, they

* Doutorando em História Social – UERJ/FFP – Bolsista FAPERJ.


867

were "mediating intellectuals". With a very rich catalog, the publishing house is still in full operation
today, maintaining the same editorial profile, and being run forty-seven years by Fernando and
Claudete.

Keywords: editors, Alfa-Omega, intellectual history.

Introdução

O texto que será apresentado nas próximas linhas visa destacar parte da minha pesquisa de
doutorado, que tem como objeto de pesquisa a editora paulista Alfa-Omega. A intenção é localizar
essa casa no mercado editorial na década de 1970; conhecer o seu perfil editorial; e verificar a
trajetória e atuação dos seus editores. A editora foi fundada em 1973, pelo casal Fernando
Mangarielo e Claudete Machado Mangarielo.

A pesquisa se justifica não apenas em contribuir com o debate historiográfico, que relaciona
casas editoriais e política, mas realizar uma investigação minuciosa do papel desempenhado pela
Alfa-Omega durante o período de abertura política, observando sua posição crítica em relação ao
pensamento político, cultural e social.

Ainda bem jovens, Fernando Mangarielo e Claudete Machado Mangarielo decidiram abrir
o próprio negócio. Fernando tinha experiência com o mundo dos livros, resultado do tempo em
que trabalhou em editoras renomadas do mercado, como, por exemplo, a Atlas e a Brasiliense. Já
Claudete, na época em que conheceu o futuro marido, exercia a função de bancária. A proposta da
criação da Alfa-Omega veio de Fernando. Claudete acreditou na ideia, deixou o emprego no banco
e passou a exercer a função de editora junto a ele.

A editora teve suas atividades iniciadas no pequeno apartamento, no centro de São Paulo,
onde morava o jovem casal. O livro de estreia foi A Ideia Republicana, Através dos Documentos, do
professor e historiador Reynaldo Xavier Carneiro Pessoa, do Departamento de História da
Universidade de São Paulo (USP).

Objetivos

Durante muito tempo foi comum definir o “intelectual” apenas como aquele que tinha
frequentado o ensino superior. Neste caso, apenas um pequeno grupo social poderia receber tal
definição. O tempo passou, e essa ideia vem sendo desconstruída nas últimas décadas. Uma
referência importante nesse processo de desconstrução é o livro Intelectuais Mediadores: práticas
868

culturais e ação política, das historiadoras Angela de Castro Gomes e Patrícia Santos Hansen (2016).
Nessa obra, as organizadoras reuniram reflexões de vários pesquisadores que vêm dedicando-se a
temática. Nos artigos, é possível conferir um destaque para profissionais que tiveram uma atuação
importante na sociedade, na medida que buscaram travar “diálogos com as questões políticas e
sociais de seu tempo”. Além disso, destacaram como “sujeitos conectados” que atuaram como
“mediadores culturais” (Gomes; Hansen, 2016, pp. 07-37).

Partindo da ideia de Gomes e Hansen, um dos objetivos da tese é destacar os editores da


Alfa-Omega como intelectuais, ou seja, como “sujeitos conectados” que buscaram, através de seu
catálogo, dialogar com a sociedade. Valorizando o autor nacional, a editora privilegiou em suas
publicações temas políticos, econômicos, culturais e sociais que estavam na pauta das principais
discussões do país.

Três anos após a inauguração, em 1976, seu catálogo possuía mais de 40 títulos, com a
predominância de autores nacionais. Essa característica de valorizar o autor nacional é uma marca
dos editores. Quando criaram a Alfa-Omega, Fernando e Claudete deixaram claro que uma das
funções da casa seria dar voz aos autores brasileiros, pois viam que as traduções de literatura
estrangeira, muito bem acolhidas pelas grandes editoras, não atendiam as questões da realidade do
país.

Portanto, o outro objetivo a ser analisado na tese é observar essa preocupação dos editores
em dar voz aos autores nacionais, alguns deles desconhecidos. A defesa do autor nacional pode ser
conferida, em parte, pela imprensa da época. Os periódicos, ao noticiarem a inauguração da nova
editora, destacaram também essa particularidade da Alfa-Omega.

O jornal Estadão trouxe um posicionamento do Fernando, que defendia não só o autor


nacional como também o pagamento referente aos honorários deste:

(...) A “Alfa-Omega”, diz ainda que Fernando Mangarielo, procurará defender o


autor nacional, particularmente no que diz respeito ao sistema de pagamento.
Para ele, a porcentagem de 10% que o escritor recebe por livro vendido, sobre o
preço de capa condiciona os honorários do autor ao malogro ou ao êxito da obra.
Na “Alfa-Omega” será diferente: na assinatura de contrato de edição de uma
obra, seu autor já recebe um terço dos direitos autorais. “É a maneira mais prática
que existe para que o escritor seja remunerado, seja qual for o destino do seu
livro no mercado” (Estadão, 14/03/1973).

Não tenho conhecimento, ate o momento, se Fernando conseguiu manter essa forma de
pagamento aos seus autores, o que estou sinalizando apenas é a sua preocupação com esse autor
869

nacional. E, é possível perceber que a nota deixa claro que a Alfa-Omega seria um lugar de defesa
e de acolhimento para com aqueles que não tinham espaço nas grandes e renomadas editoras.
O outro periódico, O Diário da Noite, o destaque para o autor nacional também ficou
evidenciado. De acordo com o veículo, Fernando “quer apenas que sua editora se constitua na
pedra angular que trará o autor nacional para o boom do livro que se inicia no Brasil”. Ainda de
acordo com o editor, a “Alfa-Omega se propõe defender o autor e o livro nacionais, através de
uma programação editorial intensiva e voltada quase que exclusivamente para as necessidades do
ensino superior, em nosso país” (Diário da Noite, 14/03/1973). Assim como foi destacado na nota
publicada pelo Estadão, aqui percebe-se também que a recém criada editora seria um espaço
destinado ao reconhecimento da produção nacional.

O interessante é que essa proposta de valorização do autor nacional manteve-se ao longo


dos anos de funcionamento. Os editores não perderam a essência inicial, pelo contrário,
continuaram oferecendo espaço para autores compromissados com as questões políticas, sociais e
culturais do Brasil. Em 1976, o Estadão destacou que Fernando, “ao contrário de seus colegas, que
consideram a publicação do autor nacional quase um dever cívico ou favor”, visou mostrar o
contrário, “provar que o escritor brasileiro vende”, e que teve orgulho de

(...) jamais ter recorrido a co-edições, com o Instituto Nacional do Livro ou outro
órgão. Os editores que se valem disso, são os que não sabem preparar um
lançamento, pesquisando as condições de marketing. Os que não entendem que
uma boa apresentação gráfica, uma capa bem cuidada, valem mais do que
vistosos (ilegível) ou campanhas culturais de tipo “beneficente”, com slogans
como “ler é cultura”.
O Brasil, diz Mangarielo, “é um país onde há mais escritores premiados do que
publicados”. E ele acha que o editor brasileiro, de um modo geral, por não querer
investir em edições que possam ser aprendidas por um motivo qualquer, está-se
tornando cúmplice da censura (Estadão, 24/04/1976).

É possível verificar nesta nota uma crítica de Fernando para com seus colegas editores, que
por temerem o período marcado pela censura militar, optaram por publicações que não causariam
nenhum tipo de problema, ou mesmo preferindo editar títulos que tivessem uma saída certa.

O periódico carioca Jornal de Brasil, de 25 de maio de 1976, também abriu espaço para o
posicionamento de Fernando. O destaque da matéria foi para o grande equívoco que as grandes
editoras cometem em não escutar o livreiro para saber como é o comportamento de um livro no
mercado. Segundo Fernando:

Um mergulho em profundidade no mercado editorial mostra que o leitor está


começando a se cansar de literatura de lixo, das pornografias, das traduções sem
critério e de um certo tipo de autor nacional – em geral premiado – que prefere
870

situar suas angústias, suas vivências, seus dramas, em um clima mais parisiense
do que brasileiro. Nós, os editores, temos que valorizar o autor que fala da nossa
temática urbana e social, escreve sobre motivos regionais nosso, sintetiza o Brasil
em literatura (Jornal do Brasil, 25/05/1976).

Fernando ainda afirmou que não era somente a Alfa-Omega que tinha essa visão mais
acolhedora, outras pequenas editoras estavam, na época, engrossando seu catálogo com títulos de
autores nacionais como, por exemplo, a Vertente, a Hucitec, a Pallas e a Garantuja. Fernando utiliza
até mesmo uma metáfora para explicar o papel desempenhado pela Alfa-Omega e por essas outras
editoras. Ele as compara como “minhocas” que prepara o “terreno para fertilizá-los”. As pequenas
editoras, portanto, ao trazer os novos autores, estavam fazendo um trabalho que acabaria “por
levar as grandes editoras a tomar conhecimento do escritor da casa, até agora marginalizado”
(Jornal do Brasil, 25/05/1976).

Novamente no Estadão, só que agora do dia 15 de agosto de 1976, Fernando defendeu mais
uma vez a produção nacional:

A insuficiência dos incentivos governamentais, o preconceito do editor


brasileiro contra os autores nacionais, a invasão das traduções e dos “best-
sellers” de comercialização garantidas estão descaracterizando a nossa
cultura. Essa é a opinião de Fernando Mangarielo, diretor da editora Alfa-
Omega e participante da IV Bienal Internacional do livro, que acredita ser
necessária a adoção de medidas urgentes para “salvar a literatura e a
indústria editorial nacionais” (Estadão, 15/08/1976).

Dentre as medidas sugeridas por Fernando, destaca-se a criação de um “órgão pelo


Ministério da Educação e Cultura”, como o objetivo de centralizar a “compra de livros de editores
e escritores nacionais, dotando todos os municípios de verba própria para criarem a sua biblioteca”.
Dessa forma, na opinião de Fernando, “os editores já teriam a garantia de uma tiragem de quatro
mil exemplares – considerando um para cada município – e, paralelamente a isso, a possibilidade
de baratear o preço do livro” (Estadão, 15/08/1976).

Ainda na mesma fonte é possível perceber certo pessimismo de Fernando, caso nada fosse
feito para valorizar o autor nacional:

Caso contrário – diz Mangarielo – continuaremos a assistir a invasão das


traduções, que constituem um investimento comercialmente seguro, pois o
editor, normalmente, só acredita no autor brasileiro quando este chega em seu
escritório com a prova de que, numa edição auto financiada, conseguiu vender
dois mil exemplares. O do nacional pode ser pela simples observação das capas
– afirma. Enquanto as capas dos livros de escritores estrangeiros são rebuscadas,
coloridas, o autor nacional, normalmente, consegue apenas uma capa pobre com
duas ou três cores (Estadão, 15/08/1976).
871

Essa preocupação com o autor nacional mostra o engajamento de Fernando com a


produção brasileira. Claudete, por ficar mais voltada ao trabalho burocrático da empresa, acabou
na aparecendo nesses periódicos. Mas os dois são exemplos de “intelectuais mediadores”. Diante
de um cenário marcado por grandes editoras, que favoreciam publicações de autores já renomados
ou traduções de grandes clássicos, a Alfa-Omega vinha na contramão, trabalhando em defesa do
reconhecimento dos autores nacionais que, por diversos fatores, estavam fora do circuito
comercial.

Tal característica pode ser percebida no catálogo construído pelos pesquisadores Flamarion
Maués, João Nery e Sandra Reimão (2015, pp.169-190). Como a editora não tem um registro de
todos os títulos publicados ao longo da sua história, os pesquisadores realizaram uma pesquisa
minuciosa para construir um catálogo dos três primeiros anos. O catálogo é composto por quarenta
e quatro títulos. Nele, apenas dois autores estrangeiros podem ser vistos: o peruano e ativista
político José Carlos Mariátegui; e o armênio e filósofo Jacob Bazarian. Mariátegui é o autor de Sete
Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana (1975); e Bazarian, que veio ainda bem jovem para Brasil,
é o autor de Intuição Heurística: uma análise científica da intuição criadora (1973).

Ainda compõe o catálogo títulos como: Quatro Cantos de Pavor e Alguns Poemas Desesperados
(1973), de Álvaro Alves de Faria; Café e Ferrovias (2ª. ed.) (1974), de Odilon Nogueira de Matos;
Sociologia e Sociedade no Brasil (1975), de Otavio Ianni; História Sincera da República, volumes 1, 2, 3 e 4
(1976), de Leôncio Basbaum; Assim Escrevem os Catarinenses (1976), organização de Emanuel
Medeiros Vieira (Maués, Nery e Reimão, 2015, pp.169-190).

Não cabe uma análise exaustiva e minuciosa do catálogo. Entretanto, para exemplificar e
destacar esse acolhimento da Alfa-Omega para com os autores nacionais, o título Assim Escrevem os
Catarinenses, é uma boa referência. A obra faz parte de uma coleção intitulada Antologias, composta
por outros volumes, como, Assim Escrevem os Gaúchos (1976), organizada por Janer Cristaldo; Assim
Escrevem os Paulistas (1977), organizada por Hamilton Trevisan; Assim Escrevem os Paranaenses (1978),
organizada por Domingos Pellegrini Jr. A ideia central do projeto foi reunir contos brasileiros. Para
isso, os organizadores de cada título realizaram um mapeamento da produção literária regional. A
partir deste levantamento, cada região descrita no título foi contemplada com um trabalho rico,
com a participação de diversos autores, muitos desconhecidos do grande público.
872

Resultados Parciais

Foi possível perceber nessa parte da pesquisa que os editores da Alfa-Omega escolheram
um caminho diferente das editoras já consolidadas no mercado. Enquanto as casas tradicionais
privilegiaram em seu catálogo as traduções de obras estrangeiras e os clássicos da literatura; a Alfa-
Omega apostou no autor nacional, alguns, até mesmo, desconhecidos do grande público. Decidiu
trazer temas políticos que estavam na pauta das principais discussões da época, assim como,
valorizar a história e a cultura regional do país.

Mas vale lembrar que a editora publicou também nomes bastante conhecidos no cenário
intelectual, como pode ser observado nos catálogos iniciais de sua atividade, oferecendo ao leitor
um catálogo rico dentro da área das Ciências Humanas.

Considerações Finais

A intenção aqui foi apresentar apenas uma pequena parte do que venho estudando nos
últimos meses. Vale destacar que a pesquisa ainda está em andamento, com previsão para ser
concluída somente no início de 2022. Portanto, a reflexão feita aqui não é um retrato exaustivo ou
mesmo conclusivo, trata-se de uma consideração preliminar.

Por fim, gostaria de destacar que a editora Alfa Omega ainda hoje está em plena atividade.
Com um catálogo amplo, as publicações estão inseridas em seções como: Antologias; Biografias;
Crônicas; Direito; Filosofia; História; Jornalismo; Literatura Brasileira; e Memórias. O trabalho
realizado pelos editores ao longo dos seus 47 anos, fez com que a Alfa-Omega se tornasse uma
referência, contribuindo com o pensamento crítico brasileiro.

Referências

Fontes

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de 1973. Disponível na internet, no Acervo Digital do Estadão, via:
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Acesso em: 10/08/2018. Essa fonte encontra-se no acervo digital do jornal Estadão. Para ter acesso
é preciso se cadastrar no site do jornal ou ser assinante.
873

Editor Prova que Autor Nacional é Bom Negócio. In: O Estado de São Paulo – Estadão, São Paulo,
24 de abril de 1976. Disponível na internet, no Acervo Digital do Estadão, via:
https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760424-31007-nac-0010-999-10-
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Estadão. Para ter acesso é preciso se cadastrar no site do jornal ou ser assinante.

Faria, Álvaro de. Leitura. In: Diário da Noite, São Paulo, 14 de março de 1973. Disponível na
internet, no Acervo Digital da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, via:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=221961_05&pagfis=22489. Acesso em:
04/08/2018.

Luppi, Carlos Alberto. O Autor Nacional Bem Administrado Vende. In: Jornal do Brasil, 25 de maio
de 1976. Disponível na internet, no Acervo Digital da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil, via:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_09&pagfis=141141. Acesso em:
05/08/2018.

Na Bienal do Livro, a Indústria da Cultura – Editores Nacionais Lutam pelo Mercado. São Paulo,
15 de agosto de 1976. In: O Estado de São Paulo – Estadão. Disponível na internet, no Acervo Digital
do Estadão, via: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19760815-31104-nac-0028-999-28-
not/busca/Fernando+Mangarielo. Acesso em: 10/08/2018. Essa fonte encontra-se no acervo
digital do jornal Estadão. Para ter acesso é preciso se cadastrar no site do jornal ou ser assinante.

Bibliografia

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Políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In:______ (orgs.). Intelectuais
Mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

Maués, Flamarion; Nery, João Elias; Reimão, Sandra. Alfa-Omega: o pensamento crítico em livro.
In: Intercom, São Paulo, vol. 38, n. 01, pp. 169-190, jan./jun. 2015. Disponível na Internet via:
http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/2210.
Acesso em: 19/01/2019.
874

Anarquia e cinema na Revolução Espanhola

Gustavo Pierzchalski Vieira*

Resumo: Os vínculos entre o cinema e anarquia iniciaram-se na Europa no início do século XX;
essa aproximação estabeleceu-se por meio de filmes documentais com temáticas revolucionárias e
educativas. Durante a Revolução na Espanha, entre julho de 1936 e maio de 1937, grande parte da
indústria cinematográfica espanhola passou para as mãos dos trabalhadores graças ao trabalho
revolucionário dos anarcossindicalistas espanhóis, que aboliram a propriedade privada dos meios
de produção e fizeram da arte cinematográfica uma forma de resistência e de propagação do ideário
anarquista. Com a predominância da prática anarcossindicalista na Espanha, consolidada com a
Confederación Nacional del Trabajo (CNT), os anarquistas produziram filmes, reportagens e
documentários através da coletivização dos meios que envolviam a indústria cinematográfica. Os
sindicatos anarquistas assumiram a propriedade das salas de cinema e espetáculos, além da direção
dos estúdios cinematográficos. Proporcionaram a realização de um novo tipo de cinema na
Espanha, um cinema que foi capaz de substituir uma produção nacional que funcionava tendo
como base um sistema capitalista de mercado. Transformaram a indústria do cinema em algo novo
e inventivo, manifestando com êxito as mais diversas experimentações libertárias que marcaram o
curto período da Revolução libertária na Espanha.

Palavras-chave: Anarquismo, Cinema Anarquista, Revolução Espanhola, Cinema Espanhol,


Confederação Nacional do Trabalho (CNT).

Este trabalho procura situar as práticas anarquistas no cinema durante um acontecimento


insólito tanto na história do cinema quanto da anarquia. Refiro-me às produções realizadas pelo
movimento libertário dos trabalhadores sindicais durante a Revolução de 1936 na Espanha.
Momento em que os anarcossindicalistas, através da coletivização e autogestão da indústria
cinematográfica espanhola, inventaram uma nova maneira de fazer e pensar o cinema.

A Revolução Espanhola constitui um dos acontecimentos mais potentes do século XX.


Para os anarquistas, um dos mais decisivos. Pois segundo o anarquista Jaime Cubero, foi “a primeira
vez na história que uma revolução foi realizada pelos anarquistas” (Cubero, 2016, p. 73),
produzindo rupturas profundas na ordem social burguesa e possibilitando diversas invenções de
liberdade. Marcada principalmente pelo seu caráter de experimentação singular, que abriu caminhos
para uma multiplicidade de práticas descontínuas e dispersas do enfrentamento da ordem,
inventando novas formas de viver apartadas da organização capitalista e do Estado. Afinal, como
afirma a historiadora Margareth Rago:

*Mestre em Ciências Sociais no Programa de Estudos de Pós-graduados em Ciências Sociais (PEPG-CS) da PUC-SP.
É pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária), do Programa de Estudos de Pós-graduados em Ciências
Sociais (PEPG-CS) da PUC-SP. Contato: gustavieira09@gmail.com.
875

os anarquistas tinham construído toda uma história de resistências e lutas, formado


gerações no mundo do trabalho com seus ateneus, bibliotecas, escolas modernas,
centros culturais e grupos artísticos, e já tinham 70 anos, quando surge o Partido
Comunista Espanhol (Rago, 2005, p. 133).

Devido a vitória da esquerda com a Frente Popular nas eleições de 16 de fevereiro de 1936,
as facções reacionárias espanholas, lideradas pelo General Francisco Franco e apoiadas pelo
fascismo internacional, reagiram com um golpe militar em 19 de julho do mesmo ano. A ofensiva
fascista fez com que os trabalhadores anarquistas, em sua maioria membros da organização sindical
Confederación Nacional del Trabajo (CNT), e da Federación Anarquista Ibérica (FAI), juntos com a grande
parte da população espanhola, resistissem ao golpe fascista tomando quarteis e armamentos. Esse
acontecimento marcou o início de um conflito armado que se estenderia até 1939, e que ficou
conhecido pela historiografia oficial como Guerra Civil Espanhola.

Entretanto, tal noção de guerra civil ignora o fato de que, diante das circunstâncias, os
anarquistas tomaram a decisão de, em vez de lutar pela defesa da democracia, do governo
republicano, e do Estado, partir para a Revolução Libertária dissolvendo propriedades e
centralidades de poder, e ao mesmo tempo, combatendo as tropas do nazi-fascismo. Em
praticamente todos os povoados das regiões sublevadas com os anarquistas, ocorreu uma
efervescência revolucionária de transformação social e dos costumes, tanto no meio camponês
como nas zonas industriais (Cubero, 2016, p. 74).

Poucos dias após o estopim revolucionário, os trabalhadores das organizações anarquistas


começaram a organizar a produção e a economia em diversas partes do país, onde sustentaram a
atividade produtiva e até mesmo trouxeram, obviamente um crescimento considerável em alguns
setores como saúde, cultura e arte. Entretanto, esta tarefa não foi isenta de enfrentamentos com
outras forças políticas e sindicais, sem contar o contexto econômico marcado por um conflito
armado. Em poucos dias, 70% das empresas industriais e comerciais haviam sido tomadas pelos
trabalhadores da Catalunha, que naquele momento, correspondia a dois terços da indústria do país.
Os sindicatos de trabalhadores da CNT assumiram as fábricas têxteis, organizaram os transportes
públicos de bondes e ônibus em Barcelona, criaram cooperativas na indústria pesqueira e de
calçados, além de várias outras transformações que se estenderam a outros ramos da indústria,
entre elas a de espetáculos públicos (Calvo & Nacarino, 2011, p. 7-11).

Em Barcelona, o movimento libertário, com sua capacidade de organizar as colunas


anarquistas de apoio aos fronts de batalha e com sua apropriação da indústria, do abastecimento e
da organização urbana geral por meio da CNT-FAI, levou o seu Sindicato Único de Espetáculos
876

Públicos (SUEP) ao controle de praticamente todas as salas de espetáculos e cinema — que em


conjunto somavam mais de 150 espaços —, além da direção dos estúdios e laboratórios
cinematográficos. O SUEP, desde 1930, funcionava com uma sólida atuação no setor de
espetáculos. Contava com um elevado número de afiliados entre os trabalhadores de todos os
ramos da indústria de espetáculos públicos (cinema, teatro, estúdios e laboratórios
cinematográficos etc.). Segundo o historiador Ramón Sala Noguer (1993), Não foi de se
surpreender que, nos dias seguintes à investida fascista, a CNT tivesse o controle total do aparato
cinematográfico. Com ela surgiram as primeiras medidas para encerrar a paralisação da indústria
cinematográfica, até então sustentada pela iniciativa privada. Foi a CNT que nos primeiros
momentos ocupou os locais de exibição barceloneses, medida que colocou todo o setor na
organização sindical, feito decisivo para manter e sustentar as suas atividades cinematográficas
(ALVAREZ e SALA, 1980, p. 11).

Uma das primeiras ações da CNT foi criar a Oficina de Informação e Propaganda, cuja
direção ficou a cargo de Jacinto Toryho, jornalista e um dos diretores do jornal anarquista
Solidariedad Obrera, além de ser o compositor do hino confederal Las Barricadas (Gubern, 2007, p.
29-34). Entre 19 e 24 de julho de 1936, grupos de cineastas anarquistas levaram suas câmeras às
ruas de Barcelona para filmar a luta e as resistências dos trabalhadores contra o golpe fascista. As
imagens registradas serviram de base para elaboração, por parte do cineasta Mateo Santos, da
primeira obra cinematográfica anarquista da revolução. O filme Reportaje del movimiento revolucionário
en Barcelona (1936), foi um testemunho das ações libertárias nos primeiros momentos após o
estopim revolucionário. A repercussão favorável desta produção encorajou os membros da CNT
a implementar novos projetos, e a partir de então, o SUEP começou a produzir pequenos filmes
documentais e reportagens sob o título SIE Films. A maior parte dessas reportagens centrava-se
nas colunas anarquistas que combatiam no front aragonês. As primeiras produções buscaram
mostrar o percurso da Coluna Durruti pelos povoados de Aragão, que resultou na série de
reportagens Aguiluchos de la FAI por tierras de Aragón (1936).

Muitas reportagens centraram-se no papel iconográfico do anarquista Buenaventura


Durruti, que para o crítico de cinema Richard Porton (1999), refletiam com maior exatidão as forças
e as contradições internas do movimento anarquista. Durante os 40 anos que Durruti viveu, pode-
se dizer que grande parte desta existência libertária foi dedicada à Revolução. Devido à sua intensa
atuação no movimento anarquista, suas ações e aventuras foram amplamente contadas na literatura
ao longo dos anos, com a contribuição de seus companheiros de lutas. No cinema, isso não foi
diferente. Foram realizados tributos cinematográficos que vão desde as suas ações como
877

guerrilheiro no front de batalha até a homenagem em seu funeral realizada pela CNT-FAI, sob o
título Entierro de Durruti, (1936).

Os dois focos mais abordados pelos documentários produzidos pela CNT, foram as lutas
no front aragonês e a defesa da capital Madri. No front de batalha, as câmeras não se direcionaram
especialmente aos combates armados, mas também buscaram ilustrar as transformações
revolucionárias que ocorriam no campo. Desse modo, foi realizada a primeira produção anarquista
a narrar as conquistas revolucionárias no contexto rural, o documentário Bajo el signo libertário (1936),
dirigido pelo anarquista Angél Lescarboura. Quanto aos acontecimentos que ocorreram na
retaguarda, no caso em Barcelona e Madri, foram produzidos documentários como Barcelona trabaja
para el frente (1936), ¡¡Ayuda a Madrid!! (1936) e a série de reportagens Madrid tumba del facismo (1936).

Estas obras constituem os primeiros testemunhos cinematográficos da breve, porém


intensa, experiência anarquista revolucionária que começou na Espanha no verão de 1936,
principalmente nas regiões da Catalunha e de Aragão. A narrativa construída durante os primeiros
meses da Revolução defende a organização coletivista como consequência da espontaneidade dos
trabalhadores tanto na indústria quanto no campo. Os documentários e reportagens mostram a
união das colunas anarquistas com os camponeses dos povoados aragoneses, que juntos
impulsionaram experimentações libertárias no trabalho, como a coletivização e a autogestão.
Também mostraram com suas imagens, as transformações dos costumes e das relações entre as
pessoas.

Além de reportagens e documentários, A SIE Films procurava manter ativas as instalações


cinematográficas mediante a realização de uma série de filmes de tipo industrial. “Em linhas gerais,
procurou-se criar uma dinâmica de trabalho comparável em técnica e organização ao sistema de
estúdios estadunidenses e, ao mesmo tempo, superior ao soviético no que se refere ao conteúdo
revolucionário dos filmes” (Peyrou, 2004, p. 34). Dessa maneira, foram realizadas longas-metragens
de ficção como uma forma alternativa de entretenimento ao cinema burguês. Para a realização de
tais filmes, os anarquistas se embasaram em filmes estadunidenses e franceses que tratavam de
questões sociais como o desemprego, desigualdade, exploração, alcoolismo, prostituição etc. Assim
surgiu o Cine Social espanhol, uma forma de realizar o cinema que não apenas refletisse as
mudanças e efeitos da revolução social, mas que também apontasse para os problemas que afligem
a sociedade.

Uma das primeiras obras realizadas pelo Cine Social foi Aurora de Esperanza (1936), escrita
e dirigida pelo aragonês Antonio Sau e produzida pela SIE Films. Segundo Antonio Artero (2011),
Aurora de Esperanza é considerado por muitos historiadores e críticos de cinema como um dos
878

filmes mais importantes da história do cinema espanhol, além de ser considerado precursor da
corrente cinematográfica do neorrealismo europeu. Este filme, segundo Lera, consiste no:

primeiro retrato autêntico do mundo proletário catalão – centrado em um


operário anônimo de uma grande cidade –, tendo como pano de fundo o
desemprego e a vida familiar cotidiana como linha argumental. É esplêndido
o testemunho – que parece documental – do comício e da Marcha da Fome
que promove o protagonista (Félix de Pomés), assim como a crónica – um
tanto ambígua – em torno do estalo da revolução. Também destaca a crítica
social ao status do momento – concretamente, o clima pré-guerra –, os
disparos a burguesia da época da Depressão e, sobretudo, o discurso de leve
conteúdo ácrata que possui o filme (Lera, 2015, p. 5).

Outra obra que expressa o Cine Social é o filme Barrios Bajos. Baseada em uma peça teatral
de Luís Elías, o filme retrata as questões que afligem a classe trabalhadora (representada pelos
operários portuários que residem no bairro chinês de Barcelona). Discute-se temas como a
prostituição e o tráfico de drogas, tendo um correlato direto com o pensamento libertário, expresso
pelo personagem El Valencia (José Telmo), um operário portuário que luta por uma vida mais justa
e que é capaz de sacrificar-se pelo amor de seus companheiros (Idem).

Além dos filmes de drama social, a CNT também realizou longas-metragens de outros
gêneros cinematográficos como comédias e musicais, sendo este último um dos mais populares
devido às produções musicais estadunidenses que atraiam o grande público para as salas de
exibição. Assim, a SIE Films produziu ¡Nosotros Somos Así! (1936), dirigida por Valentín R.
González, um musical protagonizado quase que inteiramente por crianças da Escola de Balé de
Barcelona, com o objetivo não apenas de entreter, mas também alertar os espectadores a respeito
dos problemas sociais, principalmente os ligados as crianças. Outro filme dentro do gênero musical,
é a comédia Nuestro Culpable (1937), protagonizada por atores conhecidos da época e filmada em
Madri; foi uma das últimas obras realizadas pelo cinema libertário espanhol, produzida pela Centro
Films/FRIEP e dirigida por Fernando Mignoni. O enredo parte de um elemento anedótico,
apresentando uma crítica geral à sociedade, à burguesia, à polícia e ao sistema penal.

Em um curto período de dois anos e meio, os anarquistas realizaram um feito inédito ao


produzirem um volume de mais de 360 filmes, que deixa evidente a intenção deles em construir
uma crônica audiovisual, um cinema como testemunho da história e de suas práticas de liberdade.
Ao mesmo tempo em que contribuíram para captar a efervescência revolucionária, buscaram
realizar um novo tipo de cinema, um cinema sem medo de experimentar as mais diversas formas
de linguagem cinematográfica e sem se preocupar com padrões estéticos definidos, cuja a realização
não se encontra apartada da luta e das práticas anarquistas.
879

Estas obras cinematográficas formam um arquivo fílmico significante sobre os


acontecimentos e embates que vivenciaram os anarquistas espanhóis durante a Revolução. As
imagens e narrações dos filmes libertários que compõem o arquivo da CNT são efeitos de
intermináveis lutas que acompanharam os anarquistas. Pode-se pensar esse arquivo fílmico
enquanto um arquivo monumento, arquivo que apresenta diferentes começos e que produz diferentes
análises pelas quais se supera a noção arbitrária de um ponto de origem. Como coloca Michel
Foucault, no texto “Sobre a Arqueologia das Ciências”, os arquivos apresentam-se enquanto
documentos e monumentos, sendo os primeiros parte de um passado institucionalizado e os
segundos sempre em construção e movimento, marcados pela historicidade e suscetíveis a variadas
incursões. Seguindo o percurso de Foucault, Edson Passetti, em “Da vida dos arquivos anarquistas
contemporâneos no Brasil”, afirma que é possível entender um arquivo anarquista como um
arquivo monumento, ou seja, que é sempre revisitado e acionado a partir da luta social na produção
e transformação dos enunciados (Passetti, 2012, p. 54-81).

A experiência cinematográfica vivida pelos libertários espanhóis durante a Revolução,


mostra que o cinema anarquista visa percorrer a arte, a vida e o imaginário, com intuito de encontrar
o inquietante, o estopim da revolta que incendeia os sentimentos da vida. Um cinema que perpassa
o artista e cujas obras expressam os embates que se encontram presentes nas práticas e no
imaginário libertário. Um cinema liberador, cuja estética anarquista vê na criação artística e na
criação social as realizações gerais da rebeldia, que rompe com tradições estéticas definidas e realiza
uma ação libertadora criativa. Encoraja o artista a buscar novos caminhos de invenção e
experimentação.

Cabe ainda somar à essa relação entre cinema e anarquia, uma atitude cínica, atitude esta
que, segundo Michel Foucault, se relaciona às formas de existência como escândalo vivo da verdade
e manifestação da verdade. A arte deve estabelecer com o real uma relação que não mais se
evidencia pela ordem da ornamentação, da imitação ou da representação, mas sim pelo que é da
ordem do desnudamento, da remoção, da escavação, da redução ao elementar da existência. Em
outras palavras, buscar estabelecer uma relação de redução, agressão e recusa, seja com a cultura,
com as normas sociais, com os valores e as normas estéticas estabelecidas, “formas mais intensas
de um dizer-a-verdade que tem a coragem de assumir o risco de ferir” (Foucault, 2011, p. 165). É
esse ataque à cultura, ao Estado, à propriedade e aos padrões estéticos estabelecidos que o cinema
anarquista se propõe (Vieira, 2019, p. 162-176).

A importância de conhecer as obras anarquistas na Revolução Espanhola não se concentra


apenas no desdobramento histórico e na produção artística, mas também naquilo que mostra uma
880

maneira outra de se fazer cinema. Esta produção escancara o esmagamento da revolução libertária
pelas tropas nazifascistas, a omissão covarde das democracias ocidentais sob o pretexto de
neutralidade e a traição do Partido Comunista Espanhol, que resultaram em mortes de anarquistas
e destruição de coletividades agrárias pelas tropas do governo. Isso fez com que os trabalhadores
do cinema, que colaboraram com as produções libertárias, fossem duramente acossados pela
ditadura do regime franquista que se instaurou. Segundo Pau Mártinez Muñoz (2008), muitos foram
fuzilados, encarcerados e exilados. Porém, alguns dos filmes realizados conseguiram ser levados
para fora da Espanha, conservados e distribuídos em outros países. Os anarquistas continuaram
promovendo atividades no exílio com essas obras, enquanto as demais obras que ficaram na
Espanha foram interceptadas pela censura do regime franquista. Não é equivocado afirmar que
somente um número relativamente pequeno de historiadores, arquivistas cinematográficos e
anarquistas estão familiarizados com os filmes produzidos pela CNT-FAI.

Diferente de uma guerra civil, uma revolução transforma os costumes e as práticas e isso
não se perde com o fim de uma guerra. A Revolução Espanhola não acaba, ela perdura inventiva
até os dias de hoje entre os anarquistas; entre os que temem a anarquia, constantemente como a
iminência do susto.

Referências

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colectivizacíon de la indústria cinematográfica, 2011. Disponível em
<https://praxislibertária.files.wordpress.com/2015/04/vvaa-cine-
y_anarquismo_1936_colectivizacion_industria_cinematografica.pdf>. Acesso em 20/11/2020.

Calvo, Elena; Nacarino, Pablo. “La produccíon cinematográfica anarquista en la revolución


española”. Cine y Anarquismo 1936: colectivizacíon de la indústria cinematográfica, 2011.
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Cubero, Jaime. “A epopeia anarquista”. revista verve, São Paulo: nu-sol v. 29, 2016, p. 73-76.
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Foucault, Michel. “Sobre a arqueologia das Ciências. Resposta ao Círculo Epistemológico”. In:
Manoel Barros da Mota (org). Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de
Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 85-123 (Coleção Ditos escritos II).

____________. A Coragem da Verdade: curso no Collège de France (1980-1981). Tradução de


Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

Gubern, Román. “la producción anarquista”. In: Vicente Sánchez Biosca (ed.), España en armas. El
cine de la guerra civil española. Valencia: Diputación de Valencia, 2007.
881

Lera, J.M. Caparrós. “La produccíon cinematográfica española durante la guerra civil”. Congreso
La Guerra Civil Española 1936 – 1939, Madri, 2006

Muñoz, Pau Mártinez. La cinematografía anarquista em Barcelona durante la guerra civil (1936-1939).
2008b. Tese (Doutorado em Comunicação Visual) – Departament de Periodisme i de
Comunicació Audiovisual, Universitat Pompeu Fabra, Barcelona.

Noguer, Ramón Sala. El cine de la España Repulicana durante la Guerra Civil. Bilbao: Editorial
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Passetti, Edson. “Da vida dos arquivos anarquistas no Brasil”. Revista Ecopolítica. São Paulo: nu-sol, n. 6,
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<https://revistas.pucsp.br/ecopolitica/article/view/16776/12538>.

Porton, Richard. Cine y Anarquia. Tradução Mireya Fayard. Barcelona: Gedisa, 1999.

Rago, Margareth. “Mujeres Libres: anarco-feminismo e subjetividade na Revolução Espanhola”.


revista verve, São Paulo: nu-sol v. 7, 2005, pp. 132-152. Disponível em <http://www.nu-sol.org/>.

Vieira, Gustavo P. “política e estética anarquista: o cinema libertário” revista verve, São Paulo: nu-
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content/uploads/2019/10/verve36.pdf>.

Filmes citados:

Aguiluchos de la FAI por tierras de Aragón, Nº1. Produção: SUEP, Espanha, 1936. Duração: 19’02’’.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=BEJ6lZi5dz8>. Acesso em 20/11/2020.

Aguiluchos de la FAI por tierras de Aragón, Nº2. Produção: SUEP, Espanha, 1936. Duração: 7’16’’.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=bVBPhnU-E6s>. Acesso em 20/11/2020.

Aguiluchos de la FAI por tierras de Aragón, Nº3. Produção: SUEP, Espanha, 1936. Duração: 25’02’’.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=zVTXJGpd6WM&t=828s>. Acesso em
20/11/2020.

Alas Negras. Produção: SIE Films, Barcelona, 1937. Duração: 12’55’’. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=bolyP1mWvi0>. Acesso em 20/11/20.

Aurora de Esperanza. Direção: Antonio Sau. Produção: SIE Films. Barcelona, 1937. Duração:
54’45’’. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=EyTv6pY_6zk>. Acesso em
18/03/2020.

Ayuda a Madrid; Produção: SIE Films. Barcelona, 1936. Duração: 7’30’’. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=Ztm6OsoA1NM>. Acesso em 20/08/2020.

Bajo El Signo Libertario. Produção: SUEP, Barcelona, 1936. Duração: 15’35’’. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=XCw-leLD6BY>. Acesso em 20/20/2020.

Barcelona trabaja para el frente. Direção: Mateo Santos. Produção: Comitê Central de Abastecimento
de Barcelona, 1936. Duração: 21’56’’. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=eBFhLKnaZzc>. Acesso em 18/03/2020.
882

Barrios Bajos. Direção: Pedro Puche. Produção: SIE Films. Barcelona, 1937. Duração: 94 min.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Z2YucWiRJi0>. Acesso em 18/03/2020.

El Entierro de Durruti (versão em inglês traduzida para o castelhano). Produção: SUEP, Barcelona,
1936. Duração: 10'16'' Disponível e Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=9V3VF_5pnl4>. Acesso em 20/07/2020.

Madrid tumba del fascismo (Primeira jornada), Documental Nº5. Produção: CNT-FAI, Espanha, 1936.
Duração: 10'42'' (incompleta). Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=M2VBlh71O3E&t=317s>. Acesso em 20/11/20.

Madrid tumba del fascismo (Quarta jornada), Documental Nº8. Produção: CNT-FAI, Espanha, 1937.
Duração: 9'37'' (incompleta). Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=XkPlVmruGjI&t=24s>. Acesso em 20/11/20.

Madrid tumba del fascismo (Quinta jornada). Documental Nº9. Produção: SIE Films, Barcelona, 1937.
Duração: 10’42’’ (incompleta). Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=htYgsRNDpzY>. Acesso em 20/11/20.

!Nosotros Somos Así! Direção: Valentín R. González. Produção: SIE Films. Barcelona, 1936.
Duração: 29’21’’. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=ncs0hPvw4pU&t=934s>. Acesso em 20/11/20.

Nuestro Culpable. Direção: Fernando Mignoni. Produção: Centro Films/FRIEP. Madri, 1937.
Duração: 87 min. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=de_lNuk8YpY&t=2308s>. Acesso em 20/11/20.

Reportaje del 882ovimento revolucionário em Barcelona. Direção: Mateo Santos. Produção: Oficina de
Informação e Propaganda da CNT-FAI. Barcelona, 1936. Duração: 22 min. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=UDUZ30XndYg>. Acesso em 20/11/20.
883

Esporte jogado pelo Estado: a construção da legislação esportiva


na Era Vargas

Harian Pires Braga*

Resumo: O esporte é um dos fenômenos sociais de maior amplitude no mundo contemporâneo,


criando significados que são, por vezes, apropriados em discursos de outros campos sociais. O
potencial de arregimentar diversos grupos e a consequente criação de aparatos simbólicos faz com
que o uso social do esporte transcenda as lógicas do campo esportivo, sendo presente em embates
em diversas arenas da vida em coletivo. No Brasil, especialmente pelo futebol masculino, o esporte,
ao longo do século XX, contribuiu na construção de uma identidade nacional brasileira. Esse
processo identitário, marcado por tensões, teve na Era Vargas um de seus momentos decisivo,
sobretudo, pela vinculação personalista ao futebol, especialmente com a seleção nacional; e pela
criação das bases organizacionais do esporte, com o Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941.
No esporte, o governo Vargas criou uma legislação que organizou a prática de maneira centralizada
e verticalizada, com grande protagonismo do sistema federativo de representação. Neste trabalho,
parte de meu doutorado, por meio da legislação esportiva, analiso como criação de uma legislação
esportiva a partir dos anos de 1930 e de 1940 marcou o cenário esportivo brasileiro e contribuiu
no fortalecimento de um discurso identitário, não apenas no esporte de alto rendimento, mas
também em manifestações como o esporte universitário.

Palavras-chave: esporte universitário, legislação, Era Vargas, identidade nacional

Pensar o esporte como um fenômeno social de grande relevância na modernidade não é


mais uma novidade dentro das Humanidades, especialmente pelo poder de representação simbólica
que a manifestação possui e que ajuda a compreender outras tensões sociais, ao longo do último
século e meio. No Brasil, o futebol tem ocupado o protagonismo dessa análise, pela sua amplitude
discursiva, com pesquisas que vão desde a questão de gênero até a identidade nacional, passando
por condições de trabalho e mesmo o racismo. Devemos considerar que esta potencialidade não
significa unicidade, ou seja, há outras manifestações esportivas, que não o futebol – especialmente
espetacularizado e praticado por homens – que nos permite compreender relações sociais brasileira
e tensões como as de criação identitária. Neste texto, parte da minha pesquisa de doutorado sobre
o esporte universitário, desenvolvida na Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual
de Campinas, trato como o campo esportivo pode ser compreendido no Brasil a partir do Decreto-
Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941, que institui o Conselho Nacional do Desporto (CND) e forjou
a estrutura legal ainda hoje existente no país.

* Mestre em Educação Física e Sociedade pela Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas.
884

O objetivo deste trabalho é analisar como esse dispositivo legal dialoga com o momento
histórico em que foi produzido e como seu conteúdo permite compreender a construção do campo
esportivo no Brasil. Como os próprios termos deste trabalho indicam, uma das bases teóricas
principais é o sociólogo francês Pierre Bourdieu, para quem o esporte constitui um campo social
com autonomias relativas, trocas de capitais e disputas de posicionamento (Bourdieu, 1983). Dessa
forma, o Estado é um dos agentes do campo esportivo, com grande poder de distinção, sobretudo
ao dominar o aparato burocrático. Evidente, ele não é o único e sua hegemonia está acompanhada
de tensões de outros agentes, também em busca de um posicionamento de destaque. Ao
analisarmos uma lei temos que ter em mente que ela não existe como um construto perdido num
mundo abstrato, pelo contrário, seguindo a tradição iluminista, qualquer lei é fruto de demandas
de uma realidade material, assim percebemos tanto o que chama atenção numa sociedade, como
os instrumentos de regramento e de punição, fundamentais para compreender as zonas cinzentas
de resistência.

Importante retomar como a Era Vargas marcou um processo de institucionalização intenso,


em muitos aspectos inédito e com rede mais complexas que os períodos anteriores. Durante os
quinze anos de sua primeira passagem no poder, Getúlio Vargas sintetizou uma série de demandas
regulatórias, muitas delas dialogando com um modelo nacionalista e centralizador de administração,
muito comum aos regimes em curso no mundo nos anos de 1930. Legislação eleitoral, trabalhista
e penal são alguns desses exemplos, na qual se insere o Decreto-Lei nº 3.199 . A atenção pelo
esporte vinha em crescente nos grandes centros urbanos brasileiros, especialmente Rio de Janeiro
– então capital – e São Paulo (Priore & Melo, 2009; Lucena, 2000; Pereira, 2000). Boa parte dessas
práticas estava relacionado a grupos identificados com as elites socioeconômicas do Brasil, mas a
presença de associações classicistas e de um esporte operário também podiam ser notados
(Mascarenhas, 2014).

Mais ainda, começam a crescer os eventos esportivos voltado às juventudes urbanas


escolarizadas, fossem competições estudantis entre colégios ou eventos universitários. Para que
essa miríade de expressões fosse sistematizada, não é de surpresa alguma que o governo editasse
uma lei para regulamentar o setor. Processo regulatório que precisava acompanhar mudanças
significativas que estavam acontecendo, como o processo de profissionalização do futebol, em
curso desde os anos de 1920, com grandes tensões e que levou a uma cisão da prática a partir de
1933 em que houve a oficialização da participação de profissionais: homens que receberiam para
jogar futebol (Pereira, 2000).
885

É possível que legislações locais pudessem ter abordado o tema do esporte, mas a primazia
do Decreto-Lei nº 3.199 foi sua amplitude nacional. Não havia até então um sistema nacional de
organização esportiva, fato recorrente em outras áreas, como a Educação, a que o Conselho
Nacional de Desporto foi vinculado. Cabe também a ressalva do que estamos tratando como
esporte: práticas corporais sistematizadas, desprovidas de sentido religiosa, racionalizadas, com
sistema próprio de ranqueamento, com ordenação política (Federações) e burocrática própria
(regras unificadas) e datadas a partir da segunda metade do século XIX (Guttmann, 1978). Há uma
significativa discussão na historiografia sobre, por exemplo, os usos da ginástica no XIX e também
no início do século passado (Soares, 1994), mas com a qual não trabalho aqui, justamente por não
estar ali presente a ideia de um esporte, nos termos expostos.

Ainda neste momento introdutório é importante marcar que o Olimpismo (Tubino, 2007)
ganhava força, especialmente com a realização dos Jogos Olímpicos de Verão e a expansão do
Comitê Olímpico Internacional nas primeiras décadas do século XX. Esse processo de
institucionalização internacional forçou que as nações também organizassem suas práticas
esportivas, sob pena de ficarem à margem dos sistemas internacionais de competições. A
reprodução, nas competições esportivas, da lógica do Estado-nação conferiu protagonismo ao
Estado como impulsionador da prática nas localidades, com as organizações nacionais refletindo
muito das forças, das tensões e das acomodações de cada lugar. Num país de tradição autoritária
(Schwarcz, 2019) esse regramento vem diretamente da presidência, em meio a uma ditadura, em
forma de Decreto-Lei, ou seja, sem o debate num órgão colegiado.

O Conselho Nacional do Desporto, “destinado a orientar, fiscalizar e incentivar a prática,


dos desportos em todo o país (Brasil, 1941) ” ficou sob responsabilidade do Ministério da Educação
e Saúde. Com a separação da pasta em dois ministérios distintos em 1953, o esporte continuou
como temática da Educação, com subpastas que variaram de nome, até que em 1995 foi criado um
Ministério próprio para o esporte e que durou até 2019362, quando foi integrado ao Ministério da
Cidadania. Se a pasta de Educação e Saúde foi no Governo Vargas foi um dos órgãos de política
social, não é de causar estranhamento que ele comporte o esporte, mas o que chama atenção é que
a vinculação com a educação, criada ali, manteve-se por mais de meio século, demonstrando um
entendimento do esporte como caminho formativo, não apenas de indivíduos, como também de
nação.

362
Durante o Governo Collor (1990-1992) houve a Secretaria de Desportos da Presidência da República,
hiato nessa ligação do esporte à pasta da Educação.
886

No segundo artigo do Decreto-Lei é possível perceber o caráter centralizador da legislação.


Os sete conselheiros que deveriam compor o órgão seriam nomeados pelo Presidente da República
“dentre pessoas de elevada expressão cívica e que representem, em seus vários aspectos o
movimento desportivo nacional” (Brasil, 1941). O Decreto-Lei nº 7.864 de 14 de agosto de 1945
mudaria a composição do CND, para seis membros, sendo cinco nomeados pela Presidência, além
do Diretor da Divisão de Educação Física (DEF) do Departamento Nacional de Educação, cargo
comissionado do Ministério da Educação e Saúde. Nas duas redações, a centralização fica evidente,
pois mesmo com a formatação de 1945, a prerrogativa de indicação estava totalmente com o
Presidente, já que ele indicava o ministro, que por sua vez nomearia o diretor do DEF.

Outro ponto que chama atenção é que a subjetividade do perfil de quem ocuparia os
assentos no CND. O perfil não deveria ter legitimidade direta de alguma instituição esportiva, mas
não poderia ser alguém alheio ao campo, pois não apenas dificultaria o trânsito entre seus agentes,
como desproveria a estrutura burocrática de legitimidade. É preciso aqui afirmar como é profícuo
no esporte um caminho de legitimidade e de legalidade, ou seja, uma zona em que mais do que o
referido na lei, uma espécie de costumes e valores cria um regramento próprio. Um agente
desprovido desse valor, comutado em capital esportivo, não exerce dominância dentro do campo,
por isso não poderia acompanhar a funcionalidade burocrática do CND. Não seria possível,
portanto, apenas com a imposição burocrática fazer valer a legitimidade. Por outro lado, a pessoa
indicada deveria estar enquadrada numa dimensão de “expressão cívica”, uma forma tênue de
afastar oposição e subversão, medos constantes de uma ditadura.

Ainda sobre a estrutura burocrática, nos artigos 6 e 7 ficou caracterizado a reprodução nos
estados e territórios de um órgão similar, com a função consultiva ao governo local. Mais uma vez
mostra-se o centralismo da legislação, pois se havia uma pretensa autonomia desses conselhos
regionais, ela era limitada, já que o CND indicaria um dos cinco membros, sendo os outros quatro,
com mandato, indicados pelo governo local. Dessa forma, o CND garantia uma capilaridade, sem,
no entanto, perder protagonismo, uma vez que todos os conselhos regionais teriam,
necessariamente, um membro com mandato vinculado ao órgão federal e que representaria seus
interesses, da mesma forma que poderia monitorar as ações feitas em cada estado ou território.

Compreendido o sistema de centralização do CND, cabe debater o que de fato esse órgão
deveria cuidar e que possibilidades a legislação lhe apresentava. Essa sistematização estava presente
em quatro itens do artigo 3, as quais transcrevo a seguir:

Art. 3 Compete precipuamente ao Conselho Nacional de Desportos:


887

a) estudar e promover medidas que tenham por objetivo assegurar uma


conveniente e constante disciplina à organização e à administração das
associações e demais entidades desportivas do país, bem como tornar os
desportos, cada vez mais, um eficiente processo de educação física e espiritual da
juventude e uma alta expressão da cultura e da energia nacionais;
b) incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo, como
prática de desportos educativa por excelência, e ao mesmo tempo exercer
rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro
de princípios de estrita moralidade;
c) decidir quanto à participação de delegações dos desportos nacionais em jogos
internacionais, ouvidas as competentes entidades de alta direção, e bem assim
fiscalizar a constituição das mesmas;
d) estudar a situação das entidades desportivas existentes no país para o fim de
opinar quanto às subvenções que lhes devam ser concedidas pelo Governo
Federal, e ainda fiscalizar a aplicação dessas subvenções. (Brasil, 1941).

No item a, pode-se ver a marca do componente técnico-científico com o verbo estudar.


Retomando uma das definições expostas sobre o esporte, temos que pensar que poucas são as áreas
da vida coletiva em que o discurso da eficiência é tão presente, fruto do sistema meritocrática do
rendimento e da alta racionalização. Mas o que chama atenção é que esse discurso técnico é indireto,
pois os estudos e promoções expostos não são para o esporte em si, mas para o sistema burocrático.
O teor do discurso técnico é justamente assegurar a disciplinarização das associações e das
entidades esportivas e a partir delas a eficiência. Mais uma vez o sistema de ordenamento é
centralizador e com possibilidade de autoritarismo, já que ao se regular a administração dessas
associações e entidades, regula-se as liberdades de associativismo.

A segunda parte deste item é também chama atenção, pois traz o elemento higienista, com
o esporte tendo uma função de “educação física e espiritual da juventude”. Caberia ao esporte
exercer um papel força educacional, com margem para uma disciplinarização dos corpos. Ainda há
uma ligação do esporte com a juventude, imagem que ainda está presente no imaginário de políticas
públicas, com secretarias estaduais e municipais tendo a palavra juventude ligada ao esporte. Para
o esporte universitário essa marca é ainda mais forte, com as competições limitando a idade de
participação, o que gera uma segregação dentro da prática, pois, estariam plenamente elegíveis ao
esporte apenas aquelas e aqueles identificados com a ideia de juventude. Por fim, a marca do
nacionalismo, fator recorrente ao esporte, independente da matriz ideológica do governo em
questão, uma vez que o sistema esportivo reproduz o sistema Estado-nação e cria um discurso de
metonímia: a/o esportista ou equipe é a própria nação competindo.

O debate da profissionalização está presente no item b com a ideia de que seria promovido
um esporte amador, em diálogo com os preceitos do olimpismo. A questão do amadorismo no
esporte esteve presente até finais dos anos 1980, com a proibição de atletas profissionais em
888

esportes como o tênis – que ficou por conta disso fora do Programa Olímpico de 1928 até 1988 –
o basquete – jogadores da National Basketball Association (NBA) puderem participar apenas a
partir de 1992 – e o próprio futebol – com critério que passaram por não ter jogado a Copa do
Mundo masculina ou limitações etárias. O amadorismo é uma forma de segregação das práticas
esportivas, pois seu discurso está baseado na ideia da prática pelo amor, portanto, a remuneração
seria uma mácula dentro de uma pretensa pureza. Sem a remuneração, quanto mais se adentra ao
alto rendimento, mas é necessário ter outras fontes de sustento, pois a atividade laboral em outros
setores torna-se inviável.

No Brasil a disputa entre amadorismo X profissionalismo deu-se com maior força no


futebol e com o processo de profissionalização saindo vencedor, frente a uma demanda por atletas
cada vez mais especializados, em campeonatos cada vez mais espetacularizado. Não havia mais
possibilidade de manter o caráter amador, por isso a abertura, que, no entanto, não deveria ser
ampla, sob pena de arranha os capitais simbólicos que algumas práticas possuíam, por muito ligadas
às elites do país, mas também para manter o vínculo como o movimento olímpico internacional.
Na prática, no entanto, essa separação a que o item b se propõe é meramente teórica, pois se o
futebol já tinha assumido o profissionalismo, não se pode desconsiderar que formas indiretas de
remuneração, como presentes, bolsas e incentivos existiam e vaziam parte do cotidiano esportivo.

No item c a face do Estado-nação ficou evidenciada, pois é atribuição do CND decidir


sobre a participação do país em competições internacionais. O monopólio da representação fica
atrelado a um órgão estatal, que ouviria autoridades competentes no esporte, mas seria ele a
legitimar a participação. Este item e o próprio desenho do sistema esportivo, a ser descrito, mais a
frente, mostra como o Estado foi – e em algum grau ainda é – íntimo fiador simbólico do esporte,
legitimando as representações externas, o que numa ditadura significa também definir quem pode
e quem não pode sair do país ou que eventos devem ou não ser prestigiados.

Por fim, no item da questão financeira. Se o Estado tem a nuança de fiador simbólico, a
questão material não ficou esquecida. O CND deveria estudar – mais uma vez o vocabulário técnico
científico – que entidades estariam aptas a receber subvenção do Governo Federal. Noutras
palavras, o CND é que definiria a política pública do esporte no Brasil, pois a gerência do aporte
financeiro federal seria de sua responsabilidade. Mais uma vez fica evidenciado a potencialidade de
controle que esse artigo traz, pois, uma entidade que de alguma forma estivesse em desacordo com
a ditadura poderia ser desidratada financeiramente e deixar de existir.

Todo esse aparato de funções do CND está no Capítulo I do Decreto-Lei, justamente nos
sete primeiros artigos. Nos Capítulos II a V ficou descrita a organização do sistema esportivo
889

nacional, num formato que é mantido, com algumas adaptações, até os dias atuais. O modelo
adotado é piramidal e exclusivista, indo da representação local até a nacional. Esse padrão de
correspondência da unidade administrativa com a entidade esportiva mostra como o modelo de
Estado-nação é tão forte e como no Brasil ele se vincula a uma burocracia estatal. Pensando o
momento da Era Vargas, o exclusivismo de legalidade de uma associação é por si só uma forma de
regramento, como era visto, por exemplo, no sistema sindical, em que apenas uma representação
poderia existir por categoria. No sistema piramidal esportivo o nível maior é o das “Confederações
Desportivas” (nacional), seguida pelas “Federações Desportivas” (estadual) e por fim pelas “Ligas
e Associações Desportivas” (locais).

No Capítulo III são assim descritas as “Confederações Desportivas”

Art. 12. As confederações, imediatamente colocadas sob a alta superintendência


do Conselho Nacional de Desportos, são as entidades máximas de direção dos
desportos nacionais.
Art. 13. As confederações serão especializadas ou ecléticas, conforme tenham a
seu cargo um só ramo desportivo ou um grupo de ramos desportivos reunidos
por conveniência de ordem técnica ou financeira.
Art. 14. Não poderá organizar-se uma confederação especializada ou eclética,
sem que concorram pelo menos três federações que tratem do desporto ou de
cada um dos desportos, que ela pretenda dirigir; nem entrará a funcionar sem que
haja obtido a correspondente filiação internacional.363
Art. 15. Consideram-se, desde logo, constituídas, para todos os efeitos, as
seguintes confederações:
I – Confederação Brasileira de Desportos.
Il – Confederação Brasileira de Basket-ball.
III – Confederação Brasileira de Pugilismo.
IV – Confederação Brasileira de Vela e Motor.
V – Confederação Brasileira de Esgrima.
VI – Confederação Brasileira de Xadrez.
Parágrafo único. A Confederação Brasileira de Desportos, compreenderá o foot-
ball, o tenis, o atletismo, o remo, a natação, os saltos, o water-polo, o volley-ball
o hand-ball, e bem assim quaisquer outros desportos que não entrem a ser
dirigidos por outra confederação especializada ou eclética ou não estejam
vinculados a qualquer entidade de natureza especial nos termos do art. 10 deste
decreto-lei; as demais confederações mencionadas no presente artigo teem a sua
competência desportiva determinada na própria denominação.
Art. 16. Periodicamente, de três em três anos, contados da data da sua instalação,
o Conselho Nacional de Desportos, por iniciativa própria ou mediante proposta
da confederação ou da maioria das federações interessadas, examinará o quadro
das confederações existentes e julgará da conveniência de propor ao Ministro da
Educação e Saúde quer a criação de uma ou mais confederações novas, quer a
supressão de qualquer das confederações existentes.

363 A redação do Artigo 14º foi alterada Lei nº 4.638, de 1965, com a inclusão de três parágrafos, sem o último deles
revogado Lei nº 4.638, de 1965. Como este trabalho analisa o processo legal restrito à Era Vargas, foi mantido o texto
original de 1941. A redação de 1965 é ainda mais controladora, pois para a existência da Confederação não bastaria a
filiação internacional, mas a anuência do CND, o que de certa forma já estava presente em 1941, mas de forma menos
explícita.
890

§ 1º A criação de uma nova confederação justificar-se-á sempre que o ramo


desportivo ou o grupo de ramos desportivos, que entre a constituí-la, tenha
alcançado no país grande desenvolvimento e não ocorra em contrário nenhum
motivo relevante; a supressão de uma confederação existente só se fará quando
ficar demonstrado que lhe faltam os elementos essenciais de proveitosa
existência.
§ 2º No exercício da atribuição que lhe confere o presente artigo, o Conselho
Nacional de Desportos terá em mira que o foot-ball constitui o desporto básico
e essencial da Confederação Brasileira de Desportos.
§ 3º A criação de confederação nova ou a supressão de confederação existente
far-se-á, por decreto do Presidente da República.
Art. 17. As atribuições de cada confederação, assim como sistema de sua
organização e funcionamento, deverão ser definidos nos respectivos estatutos.
Parágrafo único. Os estatutos iniciais de cada confederação, e as suas sucessivas
reformas, só entrarão a vigorar depois de aprovados pelo Conselho Nacional de
Desportos, em parecer homologado pelo Ministro da Educação e Saúde. (Brasil,
1941).

Alguns pontos que merecem destaque nesse conjunto de artigos. O primeiro deles é que
somente poderia existir uma Confederação por modalidade ou conjunto de modalidades. Esse
processo, já citado, vai se repetir nas organizações inferiores. O segundo ponto é que uma
Confederação poderia representar mais uma modalidade esportiva por “conveniência de ordem
técnica ou financeira”, algo compreensível num momento de institucionalização de algumas
práticas, que sozinhas poderiam não se manter ou não atender a determinação de pelo menos três
federações estaduais. O terceiro ponto é a necessidade de legitimidade internacional também estava
exposta, o que demonstra como a legislação brasileira dialoga com um movimento internacional
de sistematização do esporte. Os dois destaques finais são os que mais demonstram a centralização
e o controle por parte do Estado.

O artigo 15 apresenta quais as Confederações existentes e suas atribuições naquele


momento. Periodicamente, de três em três anos, segundo o artigo 16, o CND avaliaria a situação
das Confederações e poderia, com a escuta das Federações, “propor ao Ministro da Educação e
Saúde quer a criação de uma ou mais confederações novas, quer a supressão de qualquer das
confederações existentes”. Um Decreto Presidencial seria o instrumento regulatório; isso significa
que na prática, qualquer nova organização nacional estava necessariamente submetida à análise do
CND, devendo comprovar sua necessidade e apenas o Presidente da República poderia criar ou
encerrar uma Confederação. Ao determinar as Confederações possíveis, o Estado brasileiro,
determinava toda a estrutura, pois isso iria se refletir nas Federações e a partir delas nas Associações
ou Ligas. Como um efeito dominó, a mudança na Confederação mudaria todo o sistema.

Já no artigo 17 há um instrumento de controle do Estado na organização interna das


entidades, pois, o estatuto das Confederações deveria ser aprovado pelo CND e homologados pelo
891

Ministério da Educação e Saúde. No artigo 23 ficou definido o mesmo processo para o estatuto
das Federações. A partir desses dois artigos ficou evidente que o Estado poderia exercer também
uma tutela legal, já que o estatuto e a consequente existência das Confederações e Federações
ficariam submetido ao parecer do CND e aos próprios preceitos do governo ditatorial. O estatuto
das Ligas e das Associações estaria a cargo das Federações para ser homologado, o que não deixa
de ser uma dependência indireta do CND.

No Capítulo VI temos os ordenamentos sobre a organização das competições, nesse


sentido, os quatro primeiros artigos do Capítulo merecem destaque.

Art. 27. Nenhuma entidade desportiva nacional poderá, sem prévia autorização
do Conselho Nacional de Desportos, participar de qualquer competição
internacional.
Art. 28. Resolvida, pelo Conselho Nacional de Desportos, a participação do país
em competição internacional, não poderão as confederações nem as entidades
que lhes sejam direta ou indiretamente filiadas, se convocadas, dela abster-se.
Art. 29. Para participar de competição desportiva internacional de amadores,
dentro ou fora do país, poderá o Conselho Nacional de Desportos, mediante
prévia autorização do Presidente da República, requisitar à autoridade
competente qualquer funcionário ou extranumerário, contratado ou mensalista,
sem prejuízo das vantagens de seu cargo ou função.
Parágrafo único. Se se tratar do empregado em serviço particular poderá
igualmente fazer-se a requisição, sem prejuízo do jogador, cumprindo, todavia, à
confederação interessada indenizar o empregador do prejuízo correspondente ao
salário por ele vencido.
Art. 30. Nenhuma associação desportiva poderá exigir qualquer indenização ou
vantagem especial, em seu proveito, ou no de seus jogadores, quando estes
estejam a serviço de uma confederação, federação ou liga, para competição
internacional, nacional ou regional, que não se revista de caráter amistoso.
(...)
Art. 32. Nas exibições desportivas públicas de profissionais, nenhum quadro
nacional poderá figurar com mais de um jogador estrangeiro.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Desportos poderá, em circunstâncias
especiais, elevar até o máximo de três o número de estrangeiros de cada quadro
nas exibições públicas. (Brasil, 1941).

Nos artigos 27 e 28 a presença do CND para definir a participação em competições


internacionais. Não poderia haver uma representação do Brasil em campeonato internacional sem
a anuência do CND, tão pouco, poderia haver a recusa em participar caso houvesse a autorização.
Mais uma vez destaco centralismo expresso pelos dois artigos, pois toda a estrutura esportiva se
pretendesse participar de qualquer evento internacional, deveria buscar autorização do Estado. Isso
é tanto um controle, como citado anteriormente, de quem pode ou não sair país, mas um controle
de quem usa o nome Brasil no exterior, pois cada representação esportiva seria a própria
representação da nação brasileira e aí um Estado autoritário e ditatorial irá demandar esse poder
simbólico para si.
892

Já nos artigos 29, 30 e 32 novamente retoma-se a questão do amadorismo, especificando


que atletas requisitados para eventos internacionais deveriam ser dispensados de seus trabalhos sem
perda da remuneração, ou seja, seu salário habitual é que iria custear o tempo de competição. A
entidade esportiva, por sua vez, não poderia receber remuneração pela competição, demonstrando
um outro caráter amador demandado, o da gestão esportiva. No caso do esporte profissional,
basicamente o futebol masculino, a limitação seria a participação de estrangeiros, podendo, pela
análise do CND chegar até três atletas estrangeiros por equipe.

No Capítulo VII são traçadas as “Medidas de Proteção ao Desporto”, uma série de seis
artigos debatendo sobre condições matérias de fomento ao esporte seja com a fiscalização das
entidades que poderiam receber verba pública, seja com isenções sobre produtos e serviços
necessário para as práticas esportivas. Aqui estamos diante de capítulo de aporte financeiro e que
é fundamental para demonstrar como o Estado tem protagonismo no financiamento, direto ou
indireto do esporte: f.

Por fim, destaco dois artigos do Capítulo IX, em que estão as Disposição Gerais e
Transitórias. O primeiro deles, o artigo 48, reforça a ideia do amadorismo na gestão esportiva, o
que significa, na prática, uma segregação ainda mais latente em que pode ocupar os cargos
esportivos. Essa medida ainda está em vigor, sedo vedado a remuneração direta para dirigentes
esportivos, contudo, há uma série de remunerações indiretas e até mesmo ilegais existentes. O
artigo também reforça a ideia do amor patriótico, construção emotiva própria do nacionalismo: “A
entidade desportiva exerce uma função de caráter patriótico. É proibido a organização e
funcionamento de entidade desportiva, de que resulte lucro para os que nela empreguem capitais
sob qualquer forma” (Brasil, 1941).

Já no artigo 54 temo: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis


com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos
baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.”. Esse caráter masculino é uma
tônica na legislação esportiva brasileira, proibindo a prática de esportes de luta ou de impacto,
incluindo até o futebol. Ou seja, aqui, fica evidente que o esporte é mais um campo social que
demonstra o sexismo existente, restringindo a vida pública das mulheres e criando um ideal de
feminilidade.

O uso de dispositivos legais como fontes histórias é um caminho importante na compressão


de fenômenos sociais. Contudo, essa fonte deve ser pensada com suas limitações, pois há tensões
que estão postas e que a letra da lei não consegue dar conta. Da mesma forma, como no caso da
proibição de esporte para mulheres, há uma zona cinzenta, pois mesmo proibido há fontes que
893

demonstram jogos entre mulheres e uma impossibilidade prática de fiscalização. O que temos com
esta fonte é a possibilidade de compreender o sistema centralizado, altamente regrado e de presença
determinante do Estado. Essas heranças, com as mudanças sociais e políticas das últimas oito
décadas, ainda podem ser vistas, sobretudo com a permanência do sistema federativo e do
amadorismo na gestão esportiva.

Referências

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Schwarcz, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

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Starepravo, F. A. O esporte universitário paranaense e suas relações com o poder público. Curitiba.
Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Departamento de Educação Física, Universidade
Federal do Paraná., 2005.
894

Tubino, Manoel. O que é Olimpismo? São Paulo: Brasiliense, 2007.


895

A Primeira Comissão Especial Revisora de Títulos de Terras como


brecha: considerações sobre a propriedade e os projetos do
governo Vargas para o campo no Estado Novo (1938-1945)

Henrique Dias Sobral Silva*

Resumo: a presente comunicação tem por objetivo mobilizar a historicidade da Primeira Comissão
Especial Revisora de Títulos de Terras (PCERTT) (1938-1946) como oportunidade de se tratar da
questão agrária no estado novo brasileiro. Diante de uma escassez de interpretações sobre o campo
no referido período, nossa intenção é trazer a experiência de uma divisão especial criada para
regularização fundiária como possibilidade de ilustrar e fomentar os estudos sobre esse tópico da
política varguista. A PCERTT foi um conselho de verificação de títulos de terras em próprios
nacionais, tendo por objetivo não só a comprovação de legitimidade da ocupação, mas também, a
intenção de preservar os interesses da União no que competia às rendas dos foros e aluguéis,
logicamente, incitando conflitos com os ocupantes. Pretendia-se, com isso, colaborar com a
regularização, para a efetivação do minifúndio, da colonização agrícola oficial em áreas da União.
Avaliamos que os elementos: propriedades da União, pequena propriedade e colonização agrícola
são elementos importantes e indispensáveis para se discutir a relação do Estado Novo com o
campo, como a que faremos nesse momento. Em termos teórico-metodológicos, realizaremos uma
revisão bibliográfica crítica com os autores que se dedicaram ao tema da propriedade no Estado
Novo, cotejando esse material com fontes produzidas pela PCERTT. Ao final, pretendemos
reforçar a necessidade de um aumento das pesquisas no Estado Novo que considerem terras, leis,
gentes e suas disputas.

Palavras-chave: propriedade, colonização, Estado Novo, historiografia.

Introdução

O presente artigo é um esforço reflexivo para se pensar em alguns aspectos da propriedade


e os projetos do governo Vargas para o campo no Estado Novo (1930-1945). Minha intenção é
partir da experiência da Primeira Comissão Especial Revisora de Títulos de Terras (PCERTT) para
realizar uma interpretação da propriedade da terra no Governo Vargas364.

De antemão, há que se dizer que a historiografia sobre o governo Vargas encara o tema de
distintas maneiras e, por isso, algumas considerações precisam ser destacadas. A primeira delas é
que a historiografia que se dedicou a interpretar o referido período na segunda metade do século
XX deu pouco espaço às questões ligadas à relação do Governo Vargas com a questão agrária.

*Doutorando em História pelo PPGH-UFMG, bolsista CAPES.


364Advertimos os leitores que essas são notas de uma pesquisa que encontra-se em desenvolvimento, por isso, a
profundidade das análises, somada ao espaço exíguo de escrita, demandam que outros trabalhos de nossa autoria sejam
acompanhados em publicações mais alargadas.
896

Temas como o trabalhismo, a ascensão da classe trabalhadora urbana, a sindicalização e


temas ligados à CLT foram reiteradas vezes debatidos e problematizados por uma série de autores
do período. Enquanto isso, a discussão sobre o campo realizou-se muito pontualmente (Camargo,
1981). Em meio a esse silêncio consolidou-se uma discussão acerca da "intocabilidade sagrada das
relações sociais no campo" no pós-1930 (Fausto, 199, p. 150).

Com esse debate, me aproximo de uma discussão em que avaliava-se que o presidente
Vargas não avançou sob as porteiras das fazendas, uma vez que seu Estado de Compromisso
repousava também nos acordos com as elites latifundiárias por todo o país, sendo a conservação e
não a mudança os motores para se lidar com questões agrárias. Essa consideração trata-se, em
nossa análise, de uma meia-verdade, pois, é certo que esse compromisso esteve presente, mas, ele
por si só não explica os modos como o governo Vargas lidou com as questões do campo.

Essa ideia só foi revisitada na obra Terra Prometida (1999) em que Maria Yedda Linhares
e Francisco Carlos Teixeira da Silva rediscutem o tema considerando aspectos simbólicos e práticos
dessa temática. Para os autores, houve sim uma incorporação simbólica do homem do campo ao
projeto varguista, por meio de projetos de governo que, em maior ou menor medida, acionaram o
imaginário e construíram uma aproximação com esse sujeito. Note-se que os autores citam a criação
de núcleos coloniais por todo o país, a marcha para Oeste e outras iniciativas estaduais que
consolidaram esse relacionamento entre o Estado e o campo no Brasil daquele período.

Com a chegada dos anos 2000, a discussão sobre o campo e o agro no governo Vargas vem
crescendo de forma pontual. Desde então diversos trabalhos aplicam-se aos estudos sobre a
situação do homem do campo e de seus direitos (Welch, 2010), suas formas de resistência (Ribeiro,
2001 e 2006; Silva, 2017; Carvalho, 2018) e sua incorporação prática e simbólica nos projetos do
governo Vargas, em especial no Estado Novo (Beskow, 2010).

Diante do exposto, há que se destacar que tais pesquisadores transitaram por teorias e
metodologias distintas e específicas que não nos cabe investigar mais detidamente neste espaço,
mas, apesar disso, nos impõe o registro de nossas concepções no que se refere à estruturação desta
pesquisa. Em linhas gerais, se constrói nessa oportunidade um exercício de história social e política
em que a instituição - a Comissão - é apresentada como uma forma de se pensar o social, sendo
assim, avaliamos que essa é uma história social do político (Rosanvallon, 2010).

Assim, este trabalho apresenta-se como uma contribuição à essa renovação dos estudos
sobre o campo no Estado Novo apresentando uma questão ainda pouco estudada. Com isso, é
minha intenção trazer a experiência de uma divisão especial criada para regularização fundiária
como possibilidade de ilustrar e fomentar os estudos sobre esse tópico da política varguista.
897

A Primeira Comissão Especial Revisora de Títulos de Terras como brecha

Avalio como conveniente citar que não há, até o fechamento deste texto, iniciativas de
sistematização de instituições e órgãos da administração pública do Estado Novo, como a
PCERTT. Uma tentativa de organização e catalogação dessas instituições vem sendo produzida
pelo Arquivo Nacional, que vem produzindo a publicação do dicionário online da Administração
Pública Brasileira da Primeira República (1889-1930) que reunirá uma série de verbetes referentes
a órgãos vigentes no Brasil entre 1889 e 1930365.

Conforme consta no site do Arquivo Nacional, tal projeto, iniciado em 2016, trata-se de
uma forma de prosseguir com as ações que culminaram com a publicação do Dicionário online da
Administração Pública Brasileira do Período Colonial (1500-1822), concluído em 2014, e
posteriormente com o Dicionário online da Administração Pública Brasileira do Período Imperial
(1822-1889), finalizado em 2016. Tendo em vista essa lacuna, esta pesquisa trata-se também de uma
pequena contribuição no sentido de fomentar esse futuro glossário e incentivar pesquisas sobre as
comissões criadas no Estado Novo.

Interpreto que a possibilidade de vasculhar o funcionamento da Comissão permite a


abordagem de um mundo “fechado” da burocracia técnica, desmantelando a fachada de
neutralidade e de racionalidade que busca isolá-la do público externo. Nesse exercício, uma primeira
preocupação é alertar aos leitores que não consideramos aqui a PCERTT ou qualquer outra
instância estatal como uma “máquina do poder” de funcionamento perfeito e puramente técnica.
Antes disso, essa comissão – assim como todas as outras deveriam ser tratadas – se apresenta como
um conjunto de relações, sem eficácia global e que devem ser analisadas nos meandros da sua
construção e do seu funcionamento em suas limitações e possibilidades, em nada demiúrgicas e
“solucionadoras” (Revel, 1998, p. 29).

Não se pode pensar em instituições e repartições de um dado governo sem se pensar que
essas instituições dialogam, em maior ou menor medida, com questões colocadas para
determinados grupos sociais e, portanto, devem ser analisadas de forma relacional. Com isso, penso
ser necessário que se pense que as instituições e repartições devem ser pensadas também em seus
efeitos na vida de homens e mulheres, em suas distintas circunstâncias.

Partindo desse entendimento, há que se considerar que o governo Vargas, e o Estado Novo
em específico, são momentos de grande profusão de criação de comissões revisoras, afinal, foram

365 Disponível em: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario/administracao-primeira-republica


898

mapeadas cerca de 28 comissões, somente no período de 1937-1945366. Avaliamos que pode-se ler
esse mosaico de comissões a partir da própria justificativa ideológica do regime que ligada a noção
de construção do novo estado, de um novo homem que, portanto, demandaria também uma nova
forma de encarar antigas questões políticas, como o caso dos títulos de terra. Há que se considerar
que, não se trata aqui de uma crença na possibilidade de mudanças, ao contrário, entendo que trata-
se de fazer parecer aos olhos da população esse estado de mudanças e de implantação de um
“novo”.

Se o projeto de uma comissão de revisão de títulos de terra não encontrava um lugar de


destaque nas políticas públicas de então, ele era um projeto transversal às políticas de incentivo à
pequena propriedade e a produção agrícola que, aos olhos dos trabalhadores do campo, ressoavam
como uma incorporação destes ao projeto estado novista.

Com isso, quero dizer que as fontes e a bibliografia sobre o período me levam a observar
que as políticas de difusão da pequena propriedade policultora se deram em terras da União, nos
chamados próprios nacionais. Esses próprios, grosso modo, eram bens imóveis da União que
poderiam ser ocupados conforme interesse de pastas e ministérios. Desse modo, Vargas
contornava o poder dos latifundiários e construía sua política para o campo e para o camponês,
sob a propaganda de desenvolvimento da pequena propriedade e do homem do campo associado
a ela (Velho, 1976).

De modo mais explícito, com relação a PCERTT, ela foi criada a partir do decreto-lei 893,
de 26 de novembro de 1938, tratando-se de um conselho de verificação de títulos de propriedade
de terras no perímetro da Fazenda Nacional de Santa Cruz, tendo por objetivo não só a
comprovação de legitimidade da ocupação, mas também, a intenção de preservar os interesses da
União no que competia às rendas dos foros e aluguéis de terras. Pretendia-se, com isso, colaborar
com a regularização da propriedade da terra, para a efetivação da colonização agrícola oficial em
áreas da União na referida fazenda.

Tal comissão iniciou suas atividades em janeiro de 1939 e funcionava no prédio do antigo
Ministério da Agricultura no Rio de Janeiro, no gabinete do consultor jurídico do Ministério,
Luciano Pereira da Silva. Ao longo de sua atuação, a PCERTT recebeu diversos documentos que
tinham por finalidade comprovar a posse da terra, por moradores do perímetro da Fazenda

No âmbito do Estado Novo temos: Comissão Nacional do Livro didático (1937-1945), Comissão especial da justiça
366

do Trabalho, a Comissão Central de Compras, Comissão Especial Revisora de Documentos de Receita e Despesa,
Comissão Especial para Revisão do Trabalho de Menores e das Mulheres, dentre outras.
899

Nacional de Santa Cruz. Os chamados de apresentação de documentos eram feitos na forma de


editais publicados no Diário Oficial da União e replicados nos grandes jornais da antiga Capital
Federal. Além disso, a divulgação era feita junto aos prefeitos e autoridades locais com a finalidade
de publicizar essa iniciativa governamental.

Quando do encerramento das atividades da comissão em 30 de dezembro de 1946 foram


realizadas 687 sessões, sempre duas vezes por semana, comumente fora do horário de expediente
dos designados (Silva; Dietrich; Travassos, 1947, p.331). Tendo em vista o envio de documentação
para averiguação, o acervo desta comissão é bastante expressivo em quantidade e qualidade
documental, haja vista, os mais de 500 processos abertos e a pluralidade de documentos (livros de
minutas, plantas, recibos de pagamento de foro, certidões de compra e venda, transmissão de foros
e laudêmios dentre outros). Tal acervo encontra-se atualmente sob a guarda da Superintendência
do Patrimônio da União, divisão do Ministério da Economia, na cidade do Rio de Janeiro.

A abertura e o encaminhamento desses processos ficavam a cargo de três profissionais


convidados para exercerem suas funções junto à PCERTT. Eram eles um engenheiro civil,
Henrique Dietrich; um procurador da república, Plínio de Freitas Travassos e o consultor jurídico
do Ministério da Agricultura, Luciano Pereira da Silva, responsáveis pelas decisões a serem tomadas
quanto aos ocupantes e suas terras. Com o avanço dos trabalhos, a territorialidade da atuação da
PCERTT foi alargada com o decreto-lei n°5.110, de 12 de janeiro de 1940, aumentando
significativamente sua área de atuação no Estado do Rio de Janeiro.

Nessa ocasião, foram incluídas terras na Estação de Santíssimo (antigo Distrito Federal); a
Fazenda dos “Munizes", situada no Município de Rio Bonito, Estado do Rio de Janeiro; Imóveis
da União situados nas bacias hidrográficas do Guandú, no Estado do Rio de Janeiro e Distrito
Federal e do Itaguaí, no referido Estado; Imóveis da União situados fora da bacia hidrográfica do
Iguassú, mas dentro dos municípios de Iguassú e Magé, no estado do Rio de Janeiro e por último,
a Fazendas Lageado, Garrafas, Posse, Pedra Azul e Entrada, situadas na Serra da Bocaina,
Município de São José do Barreiro, Estado de São Paulo, de conformidade com a planta levantada
em 1909 pela extinta Comissão Fundadora do Núcleo Colonial "Bandeirantes”.

Tendo em vista que as terras mencionadas eram do governo federal, é possível afirmar que,
com esses contornos, não havia interesse na elaboração de um plano amplo de revisão títulos
de terras nem uma política agrária, mas sim uma política de organização de terras em certos
próprios nacionais, com vistas ao aperfeiçoamento da gestão. Nesse contexto, esta característica
não permite confundir a PCERTT com um projeto de desenvolvimento nacional, voltado para a
900

valorização global da política de revisão de títulos no país, integrando a questão social e a


política de terras (Draibe, 1985; Oliveira, 1989).

Desse modo, cumpria-se uma visão de planejamento seccional, com o beneplácito dos
Ministério da Fazenda e da Agricultura, que consistia em estabelecer políticas para setores
específicos, supostamente, de mais fácil execução, considerados pontos de atenção no contexto
da economia brasileira (Bielschowsky, 1996). Contudo, se não foi pelo tamanho, a PCERTT serviu
como brecha em nossas lentes para se observar os modos como distintas concepções de
propriedade conflitaram no Brasil de então.

Em seu relatório final, os responsáveis pela Comissão informaram que dos “[...] 4.596
processos que nela tiveram origem, apenas 842 ainda não haviam sido julgados, por dependerem
de ultimação de diligências que a Comissão houvera solicitado [...]” (Silva; Dietrich; Travassos,
1947, p. 333). Diante dos números é possível dizer, mais uma vez, que a PCERTT carrega consigo
a possibilidade de se pensar um recorte da questão da propriedade da terra no governo Vargas,
considerando em especial as divergências de questões de terras entre ocupantes e a União.

Com o fim do Estado Novo, a PCERTT foi substituída pelo Conselho de Terras da União,
criado pelo art. 186 e seguintes do decreto-lei n. 9.760, de 5/9/1946. Esse novo órgão preservou a
prerrogativa de avaliação de títulos de propriedade nas regiões acima citadas. Cabia também a ele
julgar e deliberar, na esfera administrativa, questões ligadas a direitos de propriedade ou posse de
imóveis entre a União e terceiros, e de consulta do Ministro da Fazenda. Tal órgão foi extinto em
1973, durante a ditadura civil-militar.

O que observamos ao longo de nossa avaliação é que a PCERTT é também um laboratório


para novas iniciativas ligadas ao gerenciamento das terras sob a responsabilidade da União. Basta
que pensemos que em 1939, foi criada a Comissão Especial de Revisão das Concessões de Terras
na Faixa de Fronteira (CEFF) que, se em teoria deveria regular a vida econômica da fronteira, na
prática federalizava as zonas de fronteira de todo o país e punha sob uma comissão a
responsabilidade de gerir essas terras e seus ocupantes (Ribeiro, 2001, p.49). No limite esperava-se
que a CEFF, tal como a PCERTT, servissem como políticas públicas capazes de organizar a
ocupação física de tais territórios, em ambos os casos integrando essas regiões às dinâmicas do
capitalismo de então em suas respectivas áreas de atuação.
901

Considerações finais

Ao final, avalio que essa recomposição do que foi a PCERTT é fundamental para a
superação de uma metodologia que constrói o Estado e suas instâncias como seres demiúrgicos e
distantes (Mendonça, 2014). A comissão, em linhas gerais, era prenhe de interesses de classes que
encontravam-se em disputa na consolidação de uma política de revisão de terras.

Em trabalhos futuros será necessário avaliar não só os modos como a União tratou a
PCERTT, mas também sua concepção de propriedade em contato e contraste com outras
concepções dos ocupantes de terras. Avaliamos que essas concepções, nascidas de experiências
distintas, podem ser uma oportunidade potente de se pensar as expressões do ser e do ter a
propriedade no Estado Novo.

Por fim, acredito que entender a PCERTT é uma oportunidade de conhecer com detalhes
os meios de inter-relação entre Estado e ocupantes de terras, como também uma forma de
perscrutar interesses agrários específicos contidos em políticas de terras. Ademais, um estudo mais
detido da comissão, encaminha o historiador à reflexão de que o governo Vargas não deixou de
lado as questões de terra e de propriedade, ao contrário, enfrentou a questão e, por isso, essa
história precisa ser contada.

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903

O papel das relações de sucesso na queda e reconquista da Bahia


pela coroa hispânica

Isis Macedo Tejo*

Resumo: Durante a Idade Moderna, as Relações de Sucesso tiveram um papel na divulgação de


notícias e disseminação de opinião pública, especialmente nos reinos ibéricos, que a usavam em
larga escala. Esse artigo pretende entender a queda e a retomada da cidade Salvador, ocorridas
respectivamente em 1624 e 1625, por meio de diferentes Relações de Sucesso escritas nesse
período, analisando o papel que ela possa ter desempenhado na divulgação de notícias e na
formação da opinião pública a respeito da monarquia hispânica observando também o papel de
Salvador como parte crucial do império português sob comando da monarquia Habsburgo.

Palavras chave: Relações de Sucessos, Invasão Holandesa, Salvador, Manuscritos, União Ibérica

Em 1580, a crise dinástica em Portugal, provocada pela morte precoce do rei Dom
Sebastião numa batalha para defender interesses da monarquia católica em Alcácer-Quibir
(Hermann, 1998, passim), levou Filipe II da Espanha a governar Portugal, e apesar de ter
continuado um reino separado, tornou o país subordinado a Espanha até o ano de 1640, período
que ficou conhecido como União Ibérica367. Não só Portugal se tornou subordinado à Espanha,
como também suas colônias ultramarinas da América, África e Ásia. O Brasil passa então a
representar o fortalecimento da posição da Espanha na América do Sul, sendo o complemento
perfeito para os territórios já existentes; devido a sua localização estratégica, passa a ser considerado
uma espécie de escudo que defenderia a riqueza da Espanha (Pérez, 2016, p. 108), ou seja, a prata
retirada do Peru, e a ocupação dos demais territórios. Para que o Brasil funcionasse como o escudo
pretendido por Filipe II, diversos fortes foram construídos no fim do século XVI nas capitais das
capitanias; na Bahia por exemplo, foram erguidos nesse período os fortes de Montserrat, Santo
António da Barra, Santa Maria, São Diogo e outros três fortes (Pérez, 2016, p. 110), prevendo a
necessidade de proteger o território de possíveis ataques inimigos.

Os prováveis inimigos, eram potências europeias que aspiravam os territórios e riquezas


conquistados pelos países ibéricos, cujo domínio passara para Espanha, a grande potência do

*Graduanda em História pela Universidade Federal da Bahia


367A União Ibérica ocorre após a morte de Dom. Henrique I, que governou por dois anos, após o desaparecimento
de D. Sebastião. Com a inexistência de um herdeiro, a crise de sucessão portuguesa é estabelecida, e por fim, Filipe II
da Espanha, que era neto de D. Manuel I, acaba por ser coroado rei. Valladares, Rafael. Portugal y la Monarquía
Hispánica, 1580-1668. Madrid, Arco Libros 2000; Schaub, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia Hispânica (1580-
1640). Lisboa: Livros Horizontes, 2001.
904

momento. No processo de se tornar uma potência, a Espanha acaba por acumular inimigos, e as
causas dessas inimizades eram diversas. Tais conflitos eram endossados por disputas territoriais,
fossem elas no ultramar ou no continente europeu – além disso, o motivo religioso (Muñoz, 2011,
p. 127) também era usado como justificativa para a guerra, considerando que os reinos ibéricos,
sobretudo a Espanha, eram conhecidos como Reinos Católicos, e seus principais adversários eram
reinos protestantes; Inglaterra e Holanda.

A Holanda vinha de um histórico recente de conflitos com a Espanha: As províncias do


norte dos países baixos haviam se declarado independentes ainda no século XVI, enquanto as
províncias do sul permaneceram sob domínio Habsburgo. Após a Trégua de 12 Anos com a
monarquia Hispânica, os países baixos então independentes criaram a Companhia Holandesa das
Índias Ocidentais, ou em holandês: West-Indische Compagnie, WIC. A WIC, criada em 1621 para
promover a colonização e comercio das Américas mediante a conquista (Boxer, 1957, p 28) , tinha
em vista também conseguir negócios com o tráfico transatlântico de escravos da África para o
Brasil, além de tentar conquistar alguma das capitanias do Brasil para servir como base tanto para
o tráfico de escravos e transporte de açúcar, como para interceptação de galeões espanhóis
carregados de prata, e, em algum momento, fundar colônias para plantio de açúcar em solo
brasileiro. Pouco após a criação da WIC, a Holanda começa a preparar, em segredo, uma grande
armada para tomar Salvador da Bahia, capital do Brasil Português. Foi a primeira vez que a
supremacia marítima da monarquia hispânica foi seriamente ameaçada (Bousard, 2018, passim). A
WIC organiza, em segredo, uma grande armada durante o ano de 1623, composta por 26 navios
com cerca de 3000 homens e mais de 400 canhões em sua posse (Boxer, 1973, p.). Levando em
conta que a Holanda se encontrava na Guerra dos 30 anos contra a Espanha, e ainda nas Índias
Orientais em busca de um controle marítimo que permitisse o monopólio deles em cima dos
produtos exportados, pode se imaginar o imenso esforço financeiro que foi montar essa armada e
equipar esses homens a fim de mandá-los a Salvador da Bahia.

A WIC não mediu esforços para manter esse ataque rodeado de mistérios. Boxer acrescenta
que além de tentar esconder ao máximo seus planos, também tentaram despistar os adversários
com a difusão de diversas notícias falsas, que rapidamente eram propagadas. Contudo, tanto
Espanha quanto Portugal, por intermédio de informantes, ficaram a par dos planos Holandeses e
conseguiram avisar o então governador de Salvador da Bahia e do território do Brasil, Diogo de
Mendonça Furtado, que um ataque Holandês era iminente, e que o mesmo deveria organizar as
forças da cidade o quanto antes. Furtado se viu com uma grande questão para resolver: Como
defender de maneira efetiva quase 4.000 quilômetros de costa em tão pouco tempo? A organização
da defesa da cidade foi extremamente difícil, e assim, a armada holandesa organizada pela WIC
905

obteve sucesso em seu intento com muita facilidade. A facilidade foi tamanha, que algumas teorias
foram criadas (Schwartz, 2000, p. 252); segundo elas, os cristãos-novos, judeus há muito
convertidos para a fé católica, e residentes de Salvador, teriam ajudado os holandeses, ou até mesmo
patrocinado a armada que conquistou a cidade. O domínio holandês durou cerca de um ano, até a
monarquia hispânica organizar a maior armada a cruzar o Atlântico até então, contando com
cinquenta e seis navios, cerca de mil canhões, e mais de doze mil castelhanos, portugueses e
napolitanos (Schwartz, 2009, p. 07). A viagem dessa armada até a Bahia ficou popularmente
conhecida como Jornada dos Vassalos, organizada sob a lógica da suserania e vassalagem
(Magalhães, 2016, p. 107), uma vez que diversos fidalgos se alistaram para embarcar e ganhar as
boas graças de Dom Filipe IV.

As batalhas que ocorreram tanto na queda quanto na reconquista de Salvador se tornaram


alvo da curiosidade da população europeia (Bouza Álvarez, 2018, passim), principalmente dos
países envolvidos, mas não apenas deles. Para que as notícias do ocorrido na Bahia fossem
devidamente propagadas na Europa, foram escritas Relações de Sucesso, que eram uma espécie de
notícias que podiam ser tanto breves quanto extensas, manuscritas ou impressas (Megiani, 2018, p.
548), que além de serem usadas como informação para o público em geral, ou como modo de
relatar a alguém específico, eram também utilizadas como meio de propaganda política pelos
monarcas, que encomendavam Relações, ou davam concessões para publicação apenas àquelas que
serviam a seus intentos.

Discussão bibliográfica

A bibliografia à cerca da invasão holandesa é majoritariamente voltada a efetiva ocupação


da capitania de Pernambuco, que durou mais de duas décadas; sendo assim, a invasão e ocupação
de Salvador, é deixada de lado pela produção historiográfica, apesar de ter havido uma nova
tentativa, desta vez infrutífera de conquista da cidade em 1638, ainda assim podemos afirmar que
a bibliografia é decididamente mais modesta, tendo em vista que a grande parte dos autores escreve
sobre a Guerra Holandesa de maneira mais abrangente, perpassando todo o período em que houve
ocupação no nordeste. Charles Boxer no seu livro Os Holandeses no Brasil 1624-1655 (Boxer, 1957),
publicado em 1957, dedica um capítulo para tratar dos anos iniciais dessa ocupação, entre 1621 e
1629, onde ele descreve de maneira excepcionalmente suscinta a ocupação holandesa em Salvador,
dedicando a maior parte do capítulo ao processo de criação da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais, ou em holandês: West-Indische Compagnie (WIC), e aos anos posteriores à reconquista da
906

monarquia hispânica. Já em Salvador Correa de Sá e a luta pelo Brasil e Angola 1602-1686 (Boxer, 1973),
do mesmo autor, lançado em 1952, o capítulo dedicado à Bahia é um pouco mais generoso, mas
ainda assim, é apenas um capítulo; o livro segue os passos de Correa de Sá para outras localidades.
Em Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625 (Behrens, 2013), Ricardo Behrens traz uma análise
mais completa dos fatos ocorridos, desde o ataque e a rápida queda da cidade que é o foco de seu
trabalho, onde se propõe a desconstruir o mito de Salvador como uma cidade fortaleza, até a
retomada no ano seguinte, e ainda os desdobramentos do pós-retomada. Wolfgang Lenk em Guerra
e Pacto Colonial: a Bahia Contra o Brasil Holandês (1624-1654) (Lenk, 2013), também traz estudo em
que a invasão a Bahia é o foco, apesar de ser sob um viés militar e econômico, trazendo informações
minunciosamente detalhadas acerca da organização do poderio militar. Já em Equus Rusus A Igreja
Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624 – 1654) (Magalhães, 2010), Pablo Magalhães traz a
Guerra Holandesa na Bahia do ponto de vista da atuação da Igreja Católica, analisando o papel dela
na organização da resistência tanto na capital quanto no recôncavo baiano, e as transformações que
as estruturas eclesiásticas baianas sofreram ao longo da guerra. Ainda dentro da produção referente
à invasão da capitania da Bahia, existem algumas publicações sobre as teorias do suposto auxílio
vindo dos cristãos-novos, existe o artigo Um Problema: A traição dos cristãos-novos em 1624 (França,
1970) escrito por Eduardo D’Oliveira França, que trabalha durante toda a escrita a desconfiança
pré-existente sob esses indivíduos e como ela foi reforçada pelo episódio da queda de Salvador.
Stuart Schwartz em When Brazil Was Jewish. New Sources of The fall of Bahia (Schwartz, 2000) faz uma
análise sucinta sobre a suposta participação dos cristãos-novos, se utilizando principalmente de
cartas trocadas por fidalgos tanto portugueses como espanhóis, afim de obter informações sobre
as ações dos cristãos-novos.

Existe também, uma produção historiográfica voltada para as relações de sucesso


produzidas na ocupação holandesa na Bahia, onde temos como exemplo o artigo A Jornada dos
Vassalos por D. Jerônimo de Ataíde em 1625 (Magalhães, 2016), que trata dessa relação específica, que
apesar dos planos do autor, o fidalgo D. Jeronimo de Ataíde, não chegou a ser publicada. É um
manuscrito que se encontra incompleto, e está na biblioteca da Ajuda em Lisboa. D. Jerônimo não
pôde embarcar para Salvador junto à Jornada dos Vassalos; sendo assim, sua relação é escrita com
base nos relatos de terceiros. A Guerra Holandesa nas relações de sucessos seiscentistas (Clementino, 2019),
faz uma análise da produção de relações na Guerra Holandesa como um todo, abarcando todo o
período de duração, de 1624 a 1654. Dealing with Defeat: Dutch Brazil (1624) and English Jamaica (1655)
in Newspapers from the Habsburg Netherlands introduz uma discussão sobre notícias publicadas nos
Países Baixos que pertenciam ao domínio Habsburgo. 1625, o Fogo e a Tinta: a batalha de Salvador
nos relatos de guerra (Camenietzki e Pastores, 2005) trata apenas da retomada de Salvador pela armada
907

organizada pela coroa hispânica, porém, se concentra nos episódios finais da mesma, a partir de 30
abril de abril de 1625, a última semana do confronto da reconquista pela monarquia hispânica.

A luz de toda essa produção acadêmica, que como dito, é bem diminuta se comparada a
produções sobre a ocupação pernambucana, esse artigo visa evidenciar o protagonismo da cidade
de Salvador nas Guerras Holandesas e das Relações como fonte e como suporte de notícias.

Salvador, cabeça do império

A cidade de Salvador desempenhava um papel de destaque para os dois reinos conflitantes.


A relevância de Salvador para Portugal, e posteriormente Espanha, era enorme, tendo em vista que
a cidade era o centro jurídico e administrativo de toda a colônia, e após a criação de um Bispado
em 1551, a cidade se tornou também, centro da administração religiosa (Marques, 2016, p. 20). A
anexação de Portugal em 1580 foi peça chave para a Espanha, que através da expansão de seu
império desejava fazer-se Monarquia Universal (Gil, 1996, passim), mantendo sob seu controle
uma vasta parte do mundo conhecido até aquele momento. Salvador detinha um papel de extremo
destaque, ocasionado pelas suas rotas privilegiadas de navegação, que tornava possível o contato
com a África portuguesa, a América Espanhola e também com a Europa (Elliot, 1965, passim).
Essa importância dupla de Salvador, tanto para a colônia, quanto como uma cidade com
proeminência para todo o império Habsburgo, é o que de fato chama a atenção da Holanda, uma
vez que o país tentava também forjar o seu próprio império.

A escolha da invasão a Salvador não deve ser lida como um mero “prelúdio” para a Guerra
Holandesa, pois pelo que contam as relações, a cidade não foi escolhida por acaso, como um mero
teste da real força do Império Habsburgo, mas sim para compor o seu projeto de império holandês,
devido aos pontos aqui apresentados. Tratava-se, por um lado, não apenas de tomar a cidade,
apropriando-se das riquezas locais, e dos engenhos de açúcar próximas a salvador, mas também de
anunciar a proeza da conquista da cidade e a e quebra do domínio que monarquia hispânica
mantinha no Atlântico Sul.

Relações de Sucesso e a circulação de notícias

O período moderno é marcado pela novidade da imprensa, que facilitou o acesso de pessoas
comuns à informação, e a impulsionou a produção de veículos de notícias. No século XVII, a
curiosidade de saber o que acontecia nos palácios, nos países vizinhos e nas colônias ultramarinas
movia uma parcela da sociedade na busca, consumo e produção dessas notícias e seus veículos. De
908

acordo com Megiani, a população comum se informava principalmente por meio de notícias
avulsas, que circulavam de maneira mais rápida e mais barata, principalmente pelas capitais
europeias, e por não serem textos produzidos por teóricos sobre um tema especifico, marcados
por uma estrutura mais rígida, as notícias circulavam de modo mais acessível para quem quisesse
ler ou escutar (Megiani, 2018).

As Relações foram um modo muito popular de difundir notícias, principalmente na


Península Ibérica, França, Inglaterra e Itália. Elas costumavam ser compostas geralmente por dois
fólios, mas algumas poderiam ser volumosas, geralmente quando o assunto retratado se dívida em
vários episódios. Segundo Megiani, as relações eram dividias em três categorias: Relações de
Sucessos, Avisos ou Arbítrios. As Relações de Sucesso e Avisos são similares: As de Aviso eram
resumidas, organizadas por local, e traziam informação sobre diversos lugares diferentes em um só
texto, e as notícias que poderiam ser encontradas nela iam desde batalhas, catástrofes naturais até
profecias. As relações de Sucesso variavam de tamanho, e poderiam falar também de batalhas e
conquistas. Já as relações de Arbítrio, descreviam tudo de maneira minuciosa, porém sem se
prolongar no texto, e possuíam quase sempre um vislumbre da opinião do autor sobre os assuntos
tratados no texto.

As relações e também as cartas no período moderno são dotadas de uma importância


singular para a divulgação de notícias e a formação da opinião pública. Com a criação da imprensa,
é bem verdade que a circulação de notícias impressas se popularizou bastante, porém o manuscrito
tinha um papel tão grande quanto na propagação de informes, principalmente nos países ibéricos.

De acordo com Bouza Álvarez no livro Corre Manuscrito: Uma Historia Cultural del Siglo de
Oro (Bouza Álvares, 2001), os manuscritos eram feitos para circular entre as pessoas, serem
vendidos, e as vezes revendidos, assim como os impressos. O autor ressalta que apesar da sociedade
naquela época ser em sua maioria analfabeta, muitos desses escritos eram lidos em voz alta em
praças ou tabernas, fazendo assim com que a notícia chegasse a todos. Mais do que analisar as
fontes que tem em mãos, muitas vezes em seu livro Bouza as utiliza para obter informações acerca
de quem as escreveu ou de quem as copiou, se fosse o caso, as diferenças das cópias para as
originais, como eles circulavam. Porém, uma das ideias que mais chamam atenção durante o livro
e que mais servem a nosso propósito como referencial teórico é a de que a escrita andava de braços
dados com a ideia de consolidação do Estado, uma vez o propósito de escrever para que se
preservasse ações e conquistas de um determinado reino, nesse caso específico a Espanha moderna,
começa com a fundação do Arquivo de Simancas por Filipe II da Espanha.
909

Em Contar coisas de todas as partes do mundo: As relaciones de sucesso e a circulação de notícias escritas
no período filipino (Megiani, 2012), Megiani reafirma a importância dada por Bouza aos manuscritos,
desmentindo a ideia de que o manuscrito cai em desuso quando os impressos surgem, ressaltando
a sua importância na circulação de notícias, promovida por copistas profissionais e amadores, que
ajudavam nessa difusão, imprescindível nos governos à distância para notícias e correspondências
oficias do clero e para aquelas que eram apenas notícias de lugares distantes. Em outra publicação,
a mesma autora elenca como um dos principais motivos para o grande consumo de notícias a
curiosidade das pessoas comuns. Uma vez que se tinha oportunidade de saber o que ocorria em
reinos distantes, nos palácios, e nas colônias ultramarinas, as pessoas as buscavam. Nem sempre
essa notícia precisava ter um grande impacto político, ela precisava apenas ser peculiar para que
atraísse de vez a atenção das pessoas: Os relatos das batalhas, os feitos dos fidalgos, os acordos
diplomáticos feitos com reinos inimigos, desastres naturais, casamentos em reinos longínquos; se
uma relação desse conta de um, ou vários desses assuntos, era certeza de grande procura pelas
pessoas comuns.

Devido a já sabida curiosidade do povo comum e a rápida circulação, os monarcas já tinham


em mente como as notícias poderiam influenciar a opinião pública a respeito deles. Assim, esse
aspecto se torna extremamente importante ao se analisar qualquer tipo de relação, notícia ou aviso
principalmente aquelas endereçadas ao monarca em questão, ou as impressas que obtiveram as
licenças necessárias para tal. Carolina Mendes nos aponta que ainda que as notícias, principalmente
as relativas a campanhas do monarca, fossem impressas, ainda eram lidas em espaços públicos onde
pessoas de camadas sociais distintas se encontravam para ouvi-las, debatê-las e, por que não, criticar
ou caçoar delas (Mendes, 2019, passim.). Esses espaços públicos eram ecléticos, podendo ir desde
catedrais, casas de jogos, ou o porto; dependia de como funcionava a cidade em questão. Muitas
vezes era possível circular rapidamente entre esses locais de debate da mesma cidade, ficando bem
informado em questão de horas. O que a autora ressalta a todo momento é que as pessoas comuns
realmente se ocupavam da política: a discutiam, consumiam de fato as notícias com o intuito de ter
embasamento para discutir. É por esse motivo que a opinião pública se torna tão importante para
os reinos ibéricos na idade moderna. Se toda a população se preocupa em consumir notícias a fim
de discuti-las depois, e essa não é mais uma preocupação apenas de pessoas letradas e provenientes
da nobreza, os monarcas tinham aí uma chance de ouro para se fazerem chegar a essa realidade:
encomendado relações de sucesso e notícias que não só descrevessem seus feitos, mas deixasse
clara a sua superioridade bélica, por exemplo, assim como o traquejo na diplomacia, e impedindo
de circular as relações menos favoráveis, algumas vezes fechando impressas ou revogando licenças
se fosse necessário.
910

Pensando na questão da opinião pública, e como as relações estavam intimamente ligadas


a essa questão no período filipino, Diogo Curto se propõe a fazer um debate sobre cultura política
não só nas diferentes camadas sociais, como também diferentes temas que permeiam a política, e
como formam a opinião pública. Passando por diferentes episódios ligados ao Sebastianismo,
relíquias de santos apresentadas a população, demonstração do poderio militar de Filipe II, e a
política nas cortes, O autor utiliza das mais diversas fontes manuscritas e impressas para embasar
a sua extensa pesquisa. Ao indicar que um acontecimento político não esgotas seus significados e
interpretações assim que se finda, o autor sinaliza o modo como esses acontecimentos poderiam
ser levados à esfera pública, e que diversas vezes, poderiam ser descritos do ponto de vista de
interesses privados, e assim, influenciar as mais diversas camadas da sociedade, com determinado
ponto de vista. Assim, ao analisar diversas fontes manuscritas e impressas afim de entender a
cultura política e como se construía a opinião pública das diversas esferas sociais no período
Filipino, é possível estabelecer relações com o sentimento de pertencimento a uma nação (Curto,
2011, passim).

As Relações sobre a queda e retomada de Salvador

As relações de sucesso escritas sobre os acontecimentos de 1624 e 1625 na Bahia se


encontram nessa ótica da opinião pública, e nas três relações que vou citar aqui, essa é uma
característica latente. A primeira delas, a Relasao da perda da Bahia, por Fr. Francisco de Sao Joao descalço
de S. Francisco368, que se encontra na Biblioteca Digital Hispánica, o autor Frei Francisco, relata sobre
a queda de Salvador, começando com mensagens que o então governador Diogo de Mendonça
Furtado teria recebido, alertando-o sobre o iminente perigo que a armada holandesa que se
aproximava representava. Esta relação, em especial, dá destaque ao bispo Dom Marcos Teixeira e
as ações que ele teve após a queda de Salvador, organizando um arraial com os fugitivos e ainda
sua tentativa de tomar a cidade com essas pessoas que aderiram a sua causa. A relação segue até a
morte do bispo, e acaba pouco depois da mesma, fazendo um pequeno levantamento de seu enterro
e como se comportaram os religiosos que ali se encontravam. Nos seus 18 fólios manuscritos, o
autor, assinala que apesar de todos os esforços empregados pelo governador, ele não obteve
sucesso ao tentar defender a cidade, e a valentia do Bispo em organizar uma resistência posterior a
queda da cidade, e ainda tentar toma-la, onde não obteve sucesso. Esses detalhes são peculiares, e
a impressão que passa é a de que ele tenta assim “salvar” a reputação do Bispo Dom Marcos, já

368 Biblioteca Digital Hispánica (BDH), Manuscritos, bdh0000242865.


911

que ele foi um dos primeiros a sugerir que se abandonasse a cidade ao primeiro sinal de ataque dos
inimigos.

A relação encontrada na Bilioteca Nacional de Portugal, Jornada Dos vassalos da Coroa de


Portugal, pera se recuperar a cidade do Salvador, na Bahya de todos os Santos, tomada pollos holandezes, a 8 de
Mayo de 1624 & recuperada ao primeiro de Mayo de 1625369, foi uma relação impressa e publicada em
Lisboa, com o aval do rei Filipe IV, e é possível notar em diversas passagens de seus quarenta e
oito capítulos, o intento para construir uma imagem positiva perante a opinião pública. Essa
Relação, escrita sob encomenda pelo padre Bartolomé Guerreiro, que viajou junto com a armada
para a Bahia, descreve de maneira detalhada não só a Jornada dos Vassalos, como também os
motivos que teriam os holandeses para atacar a cidade, a organização da armada holandesa feita
pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, como ocorreu a queda da cidade e os
acontecimentos que imediatamente sucederam. Em seguida, ele narra como foi recebida a notícia
por Filipe IV, e aqui o autor deixa claro a preocupação do rei, e a decisão quase imediata de se
montar uma armada para recuperar a cidade, como se deu a organização da Jornada dos Vassalos,
incluindo as doações feitas pelos fidalgos portugueses e ainda listas contendo o todos os fidalgos
casados e solteiros que se propuseram a ir recuperar o território da coroa. Guerreiro continua
narrando sobre os homens reunidos, os navios e artefatos bélicos, a viagem e a chegada ao Brasil,
quando descreve as batalhas, mas principalmente as suas localidades, e toda a negociação
diplomática. A relação não termina com a conquista de Salvador pela coroa hispânica, relatando
ainda a chegada atrasada do socorro holandês e seguindo armada da Coroa de volta para a Europa.
O objetivo de mostrar a superioridade da monarquia hispânica e seus fidalgos nessa relação,
evidencia a intenção de influenciar da opinião pública. O volumoso tamanho dessa relação indica
que ela provavelmente não tenha sido lida na íntegra em espaços públicos, mas por ter sido
publicada em formato de livro, é certo que foi comercializada pelo menos no país em que foi
publicada, Portugal.

Como dito anteriormente, as cartas oficiais também poderiam circular posteriormente,


sendo fonte de informações para o público geral, depois de passarem por copistas, que poderiam
ser profissionais ou amadores. Assim, as Cartas trocadas com os holandeses durante a ocupação da cidade de
Salvador370, que se encontram no acervo da Biblioteca nacional Digital, são um compilado das cartas
usadas nas negociações, pode também ter circulado posteriormente as capitulações as quais foram
escritas, após terem passado pela mão de copistas, com notas a margem indicando quem era o

369 Biblioteca Nacional De Portugal (BNP), Impressos, RES. 1304 P.


370 Biblioteca Nacional Digital (BND), Manuscritos, I-33,33,028.
912

remetente ou a quem estava destinada a carta. Nesse compilado que traz as cartas na íntegra, fica
evidente as habilidades diplomáticas de Dom Fadrique de Toledo Osório, que foi o comandante
da armada enviada à Bahia, e a derrota aparente, já admitida pelos holandeses que se encontravam
sitiados dento da cidade de Salvador.

Considerações finais

A discussão bibliográfica feita no início desse trabalho, teve como intuito ilustrar que de
fato, pouco se é trabalhado os assuntos referentes da ocupação holandesa em Salvador, tendo esta
como protagonista, e não mero ensaio para uma verdadeira ocupação posterior em Pernambuco.
Não é incomum que o episódio da Bahia seja relegado a um capítulo ou dois de um livro ou apenas
uma passagem em um artigo. Se fosse possível nesse trabalho colocar em comparação a quantidade
de publicações sobre tudo que envolve a ocupação holandesa em Pernambuco, com os trabalhos
que tem a Bahia como tema, a diferença seria exorbitante. Evidente que por ter sido uma ocupação
efetiva, e ter durado mais que duas décadas, há muito que ser escrito, de fato, mas é errôneo pensar
que isso é motivo suficiente para que essa parte da história de Salvador permaneça esquecida pela
maioria. Não somente por Salvador ter sido uma cidade de importância singular em ambos os
momentos nos quais foi atacada, na primeira vez em 1624, mas também na segunda, em que uma
nova invasão foi frustrada em 1638, pelas defesas mais alertas da cidade do que anteriormente.

O uso das relações de sucesso como fonte para a análise dos ataques holandeses ao Brasil, ainda
não são tão populares, e como ocorre com qualquer outro estudo que envolva as Guerras Holandesas, pode
usar o caso de Salvador apenas como pano de fundo. O fato é que em sua maioria as relações costumam
ser usadas como fontes para análise de discurso, e circulação de notícias, e Salvador, por não ter uma
imprensa a época dos acontecidos, não tinha essas relações publicadas aqui. As que eram de fato escritas
aqui, ou por indivíduos que vivenciaram aqueles momentos, eram publicadas impressas apenas nos países
ibéricos, podendo ou não ser enviada para a colônia depois. No caso da relação que vimos aqui, sabemos
que o Frei Francisco viveu os acontecimentos, mas em dado momento ele relata que viajou a Espanha, o
que pode significar que ele a tenha escrito quando já estava em terras espanholas. Entretanto, pelo caráter
manuscrito da fonte, e certamente sendo fruto de uma cópia feita para compor um códice repleto de diversas
outras relações dos mais diversos temas, autores e tipos, não podemos afirmar que foi escrita lá. Bouza
Álvarez é sempre firme em nos alertar do caráter mutável das fontes manuscritas, especialmente após passar
pelas mãos de copistas.

A riqueza desses relatos é abundante, pois além de muitas vezes descreverem em detalhes os
acontecimentos e seus principais atores, temos também informações geográficas de onde alguns dos
confrontos ocorreram, além de uma noção do viés de pensamento do autor em questão. Essas
913

características, tão ricas numa fonte histórica, não são exclusivas das Relações de Sucesso, mas se apresentam
de maneira muito marcante nelas, que assim, se provam uma riquíssima fonte de informações sobre a
invasão holandesa em Salvador, com possibilidades plurais de análise.

Referências

Fonte

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Valdueza, Fradique Alvarez de Toledo e Osório 28/04/1623 –
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Jornada Dos vassalos da Coroa de Portugal, pera se recuperar a cidade do Salvador, na Bahya de todos os Santos,
tomada pollos holandezes, a 8 de Mayo de 1624 & recuperada ao primeiro de Mayo de 1625, Lisboa,
Portugal: Guerreiro, Padre Bartolomeu. 1625. 148 f: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP),
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916

Antonio Africano: Liberdade, Liberdade

Ivan da Silva Oliveira*

Resumo: neste trabalho propõe-se a problematização da luta pela liberdade dos escravizados a
partir de análise de uma Portaria de 1865 do provedor de Capellas e resíduos da Comarca do Recife,
que versa sobre a libertação de Antônio Africano que em 1861, ao perambular pelas ruas da
cidade, ele, escravizado foro preso e remetido para a Casa de Detenção do Recife, onde permaneceu
por 10 anos. A partir de ação judicial, proposta pela administração do mesmo estabelecimento
prisional, cinco anos após sua prisão, discutiu-se sobre a possibilidade da concessão da liberdade,
ou sua venda para pagar as despesas pelo tempo que o mesmo permaneceu na casa de detenção. A
luta pela concessão judicial da liberdade é tema recorrente na historiografia atual, é de extrema
importância debatermos as estratégias dos operadores de direito, das partes envolvidas para a
compreensão desse processo na cidade do Recife, o estudo do caso de Antônio possibilitará
reflexões sobre nuanças específicas sobre as condições de sua prisão, o longo tempo na casa de
detenção, o controle social, as atitudes dos agentes policiais, o uso da legislação da época, bem
como evidenciar as relações existentes entre Antônio e outros escravizados que que chegaram em
situações análogas .

Palavras-chave: Escravos, Africano, Liberdade, escravizados, controle, social

No Recife oitocentista era muito tênue a linha que dividia a liberdade e o cativeiro. Na
segunda metade do século XIX a cidade crescia e com ela o número de escravizados também, afinal
eram esse contingente que faziam as coisas acontecerem, desde as tarefas domesticas até a produção
dos engenhos, essa mão de obra era usada, exaustivamente pelos senhores de escravos em todo
tipo de atividade, Quem andasse pelas ruas da capital da província de Pernambuco iria certamente
se deparar com negras vendedoras de tapiocas ,quitutes, mungunzá; negros barbeiros sapateiros,
sem falar no transporte de carregadamente de mercadorias e pessoas que era feita pelos rios que
cortava a cidade, agua que se bebia nos casarões do Recife, daqueles tempos também era
transportada por negros canoeiros que trazia o precioso líquido do interior da cidade para os
sobrados do centro, para o consumo dos habitantes dos sobrados, CARVALHO,.

Era preciso uma grande atenção com essa massa de escravizados, pois aglomerações e
ajuntamento possibilitavam organização, trocas de informações para possíveis fugas e outras
formas de resistências, sendo assim o controle social era rígido, e para isso estava a da disposição
desse controle legislações e aparatos jurídicos-policias para reprimir e controlar a mobilidade de

* Mestrando em História - Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP


917

pessoas negras nas ruas. Chefes de polícia, Delegados, subdelegados, inspetores de quarteirão
estavam sempre atentos a movimentos que ameaçassem afrontar a ordem estabelecida, as posturas
municipais colocava limites de horários para a circulação desses escravizados que eram castrados
até dos momentos de sociabilidades nas tabernas do bairro de são José. Nesse contexto e que em
março de 1861, Antônio, africano andava, possivelmente, perto do engenho onde era cativo (Eng.
dois irmãos) pelas ruas da Poço da Panella, em quando fora preso e enviado para casa de Detenção
do Recife. E ali permanece preso até 1865, quando um novo administrador daquele
estabelecimento prisional requer, através de oficio, ao Provedor do juízo de Capelas e Resíduos da
Comarca do Recife, Francisco de Araújo Barros que, conforme a lei, publique-se edital na imprensa
para saber que seria o senhor de Antônio e caso não apareça, que o mesmo seja vendido par pagar
as despesas que o mesmo causara ao estado com sua estadia na Casa de Detenção e assim foi
deferido pelo juiz de mandou publicar. o edital e caso não a parecesse o senhor de Antônio que
procedesse a avaliação do mesmo.

“Tendo sido preso pelo meu antecessor em 18 de março de 1861,o escravo


Antônio, o qual acha-se na casa de Detenção, e tendo esta subdelegacia mandado
anunciar no Diário de Pernambuco afim de aparecer quem reclamasse o domínio
referido escravo, e não tendo athé o presente aparecido pessoa alguma que que
reclamasse que por isso ponho a disposição de V.S. para dar-lhe o competente
destino na forma da lei.” D

Publicado o edital não apareceu ninguém para reivindicar a propriedade de Antônio. Nos
parece que a legislação que trava esses casos tinha rito semelhante e todo Brasil, pois encontramos
registro de legislação da vila de Rezende, Rio de Janeiro que adequava, também ao Caso de Antônio,
vejamos.

Registro do juiz ordinário da vila de Rezende informando que os escravos que


fossem presos por motivo de fuga deveriam, a todo custo, ser reencaminhados
aos seus senhores originais. Determina o processo adequado para que tal
aconteça, evitando-se assim que os escravos permaneçam nas cadeias
indevidamente, e que, não reclamados, acabem sendo vendidos. Conjunto
documental: Registro de ordens e ofícios expedidos da Polícia aos ministros
criminais dos bairros e comarcas da corte e ministros eclesiásticos.

Notação: códice 329, vol. 05


Título do fundo: Polícia da Corte
Código do fundo: ØE
Argumento da pesquisa: escravos, penalidades
Data do documento: 10 de julho de 182l
Local: Rio de Janeiro
Folha: -

Os escravos novos ou ladinos que forem presos por fugidos, serão interrogados
de quem são, e juntas suas declarações se farão avisos a seus senhores, para os
918

mandarem receber, e pagarem as competentes despesas: passados quinze dias


depois dos avisos não aparecendo eles, serão imediatamente remetidos a
esta intendência para serem entregues, evitando-se deste modo escravos presos
nas cadeias] dessa vila, cujos senhores residem em diferentes termos, e por isso
ficam privados dos serviços dos seus escravos, até de seus valores pela
arrecadação, que se faz pelo juízo dos cativos, sendo impraticável, que um senhor
residente na corte, e em outros lugares possa saber, que nessa vila se trata de
arrematar um seu escravo, por não aparecer o senhor a requerer a entrega dele, e
com o processo, que muitas vezes se formaliza sem precederem os processos
necessários, resultam demandas propostas pelos antigos senhores arrematantes de
tais escravos havendo boa-fé da parte de um e outro litigante, porque o antigo
senhor não teve a ciência da apreensão do seu escravo, para impugnar; e o
arrematante justamente defende pelo direito, que adquiriu com
a arrematação em praça pública.

Observa-se que da data da prisão até a expedição do oficio ao juízo da 2ª Vara já


transcorreram quase cinco anos de cárcere do africano sem que nenhuma providência, no sentido
de se identificar seu possível senhor. Autuado o processo, pelo escrivão, Domingos Nunes Ferreira,
o juiz de resíduos e capelas manda, através de despacho que se avalie o escravo. “Passe-se o
mandado de avaliação; e designo para avaliadores os (...........) Barata, e Hermenegildo. A avaliação
terá lugar no dia 15 de fevereiro de 1865”.

Na avaliação pelos peritos indicados pelo juízo Hermenildo e Barata, interrogam o africano.

.......avaliação do preto que presente estava de nome Antônio, e que lhe praticara
na forma seguinte.
......Coando apresentado o dito escravo para avaliação, declarou que era africano
livre e (........) muito tempo em poder de Colló em Apipucos, em vista de tal
declaração mandou o doutor Provedor suspender a avaliação até ulterior decisão
de que para constar mandou lavrar o seguinte termo. Eu Domingos Nunes
Ferreira. Escrivão.

A identificação de de Colló, dito em depoimento como sendo seu Possível Senhor, nos foi
trazida por artigo de revista virtual denominada “Brasil de Fato” transcrevemos a seguir o trecho
recolhido daquela publicação.

“Como grande parte dos bairros do Recife, Dois irmão tem sua história ligada
aos engenhos. Na primeira metade do século XlX, as terras desses bairros
pertencia ao engenho Apipucos, cujo os proprietários eram os irmãos Antônio
Lins Caldas e Tomás Lins Caldas, apelidados de, respectivamente de Capitão
Coló e seu Toné. É dai que que vem o nome do bairro, como referência aos
irmãos. Naquela época já havia casas e uma pequena Vila próxima ao Riacho do
Prata. O engenho. que era um dois mais modernos da região, existiu até a
revolução praieira, em 1948. Logo depois, as duas casas grandes do engenho se
tornaram a Companhia do Beberibe, que é extinta, mas na época fornecia agua
para toda cidade”. Brasil de Fato, maio, 2019, pg 12.
919

A profissão de Antônio e desconhecida, mas pela atividade econômica do seu antigo


Senhor, sugere-se que o mesmo trabalhasse no negócio de águas, pois o engenho onde ele era
cativo, e que conforme a publicação consultada passou por transformações deixando o a produção
de cana mi paragrando os negócios com o fornecimento de água. Em “Liberdade e Rupturas do
Escravismo “Marcus J.M de Carvalho sobre o tema escreve:

O comercio de água devia render um bom dinheiro para os aguadeiros do recife.


Um historiador oitocentista documentou que que os negociantes que
controlavam o fluxo do Riacho do Prata, no Monteiro aumentaram
estorsivamente o preço do balde da água. Carvalho, pg, 29

Em outro trecho, na mesma obra o historiador Pernambucano nos mostra a relação de


escravizados com o negócio de águas do Recife oitocentista.

É curioso notar, portanto que, o fornecimento da água consumida pelos donos


dos altos sobrados do Recife dependesse de escravos e negros canoeiros. Quanta
água sujada, cuspida e até urinada por negro mais afoito não deve ter sido bebida
pelos donos de gente que habitavam na cidade. Carvalho. pg, 31

No interrogatório de Antônio, quando da avaliação, estavam presentes além dos peritos


Hermenegildo e Barata, encontra-se também o Provedor de Capelas e Resíduos Doutor Francisco
D’araujo Barros e o escrivão Domingos Nunes Ferreira. Perguntado como se chamava, que idade
tinha e que nação era. Respondeu chamar-se Antônio, e não saber sua idade, nação Cambinda.

Perguntado quem era seu senhor. Respondeu que pertencia ao finado Colló, senhor do
engenho dois irmãos, que esteve em poder do Cóllo a quarenta anos pouco mais ou menos, indo
para o poder dele com idade de doze anos, pouco mais ou menos; dessas respostas podemos
concluir que 52, no mínimo teria o escravizado.

Perguntado desde quando tinha fugido do poder do filho e Colló, respondeu que não fugiu
e sim andava trabalhando: quando Antônio afirma que “estava trabalhando” nos sugere pensar que
o exercício de sua profissão fosse desempenhada nas ruas quando chegou foi preso pelo Senhor
Pêpê, morador em uma casa próxima ao engenho é que está preso a cinco anos, pouco mais ou
menos.

Perguntado se nunca foi procurado na prisão, e se não mandou dizer aos filhos do senhor
Colló que estava preso. Respondeu nenhuma, nem outra cousa; parece que essa omissão em
procurar seu senhor era uma forma proposital de permanecer na cadeia, talvez uma forma de
resistência.
920

Perguntado, quem o mandou o mandou para a casa do do finado Colló, respondeu que
ninguém, que foi tirado da embarcação com outros companheiros, metido no mato e depois de
meses levado para o engenho daquelle Colló.

Perguntado ,como sabia ser africano livre, respondeu por lhe dizer alguns companheiros
que que vieram com ele respondente no mesmo barco, e que estes companheiros são Manoel
africano, cuja morada ignora, Joaquim que morreu na casa de Detenção, outro Joaquim Calabar,
que também não sabe onde mora, e Francisco africano e que a exceção do morto trabalhava no
Arsenal da marinha .Essa era uma das formas do escravizado saber se era livre, pois outros
companheiros de Viajem sabiam ser livre de alguma forma e transmitia para os Malungos
(companheiros de barco),Antônio em seu depoimento afirmou que saiu direto do barco para as
matas e de lá para o engenho onde permaneceu por quarenta anos, certamente não sabia ser livre
talvez tenha descoberto essa condição no próprio estabelecimento prisional . Africano condição de
livre era conferida àqueles que entraram no país, oriundo da Àfrica, depois da edição da lei de 1831,
que proibia o trafico de escravos no Brasil, a chamada lei para inglês ver.

Embora, afirme que não fugiu, certamente isso ocorreu, pois, quando indagado, o mesmo
relatou que não fugiu, vivia trabalhando. Também destacamos a resposta de que não avisou ao seu
Senhor que o mesmo estaria preso, pois conforme legislação poderia ser libertado do cárcere pelo
seu Senhor, concluímos então que o africano escolheu ficar cancerado ao ser cativo no engenho
Dois Irmãos.

As flas 06 dos autos do processo, encontra-se o oficio de apresentação do africano ao Juiz


provedor pelo Administrador da casa de detenção. Vejamos na integra o que diz o documento.

Faço apresentar á V.Sa o preto antonio,foi recolhido a esta casa ,a ordem do


subdelegado do poço da Panell conforme requisita V.Sa.,por oficio desta data
,cumprindo-me declarar á V.sa. que o valor do deste escravo talvez não chegue
para paga as despesas com ele feita durante o tempo que está recolhido a esta
casa.
Deus o Guarde a V.Sa.
O Administrador.
Rufino Augusto D’almeida.

Despachando mais adiante o Provedor manda oficiar a qualquer dos herdeiros do finado
Colló, afim de prestarem informações feita pelo africano em seu interrogatório. Estes não são
localizados, conforme certidão do escrivão do juízo. Que segundo certidão nos autos do processo,
não são encontrados. Todos atos processuais se dão em 1865, passam-se mais cinco anos quando
em 1870, sendo já um outro Juiz da 2ª Vara, despacha censura do escrivão...por ter segurado não
ter feito conclusos os autos a juiz, ou seja, “segurou o processo por cinco anos. Também mandou
921

fazer vistas ao procurador fiscal, o qual recomenda a venda de Antônio para pagar as despesas
feitas por sua permanecia na casa de Detenção.

“estado o escravo Antônio no caso previsto no art. 2º do regul. de 07 de julho de


1842, requeiro que proceda a avaliação e mais algumas, na forma dos artigos 46
e 47 do Regul.de 1842.”
G.Alfredo.

Em contraposição do opinativo do Procurador fiscal, o juiz Armindo Tavares, sentencia


no sentido de libertar o africano da prisão e da condição de cativo, a qual transcrevemo-la.

Vistos os presentes autos ,que o indivíduo de que data o oficio 112, declarou no
interrogatório, ser africano livre e não obstante as diligencias precedidas por esse
juiz ,não se verificou ser ele escravo para ter logar uma arrematação, em praça
pública como bem de evento, e não sendo presumível o estado de escravidão, e
não sendo ainda de justiça a conservação d’aquelle individuo Antônio na prisão
na casa de Detenção ,dede o ano de 1961,mando que passe o mandado de
manutenção de liberdade, informando o mesmo Antônio, ficando salvo da
fazenda provincial, o direito de provar pelos meios regulares que Antônio é
escravo. afim de que possa ter logar a arrematação referida pelo Doutor
Procurador Fiscal a quem será intimado este . Recife 28 de abril de 187
Armindo Tavares.

Por fim, depois de quase de dez anos de cárcere o escravizado africano, tem sua liberdade.

Liberdade, Liberdade

Referências

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Editora Universitária da UFPE, 1998.

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http://historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&i
d=4990:prisao-de-escravos&catid=179&Itemid=215

Revista Brasil de fato. Acessar em: http//issuu.com/brasildefatopernambuco/docs/bdf93


922

O ensino de História e a educação das relações étnico-raciais na


educação básica: um olhar para além do livro didático

Jaqueline Souza Drumond Pagés*

Resumo: este artigo problematiza a implementação da lei 10.639 nas práticas de ensino de História
na educação básica, através da perspectiva de decolonialidade. Ao explicitar alguns conceitos
utilizados pelos pensadores decoloniais o texto se volta para a reflexão sobre o eurocentrismo e o
processo de colonialidade e seus efeitos para o campo educacional. A partir dessa perspectiva,
consideramos a sala de aula de História da educação básica como lugar de onde podem surgir novas
práticas pedagógicas antirracistas que ultrapassem os limites do livro didático.

Palavras-chave: Ensino de História. Lei 10.639. Relações étnico-raciais. Decolonialidade.

Abstract: This paper problematizes the implementation of Law 10,639 in basic education History
teaching, through the Decoloniality perspective. Expliciting some concepts used by the decolonial
thinkers, the paper turns itself in questioning the eurocentrism and the colonization process and
its effects in the educational field. From this perspective we consider the History classroom learning
environment as a place from where new anti-racist pedagogical practice can emerge and overtake
the textbook limitations.

Keywords: History teaching, Law 10,639, Ethnic-race relations, Decoloniality.

Introdução

Desde o processo de redemocratização, o Estado brasileiro vem, aos poucos, incorporando


uma ressignificação de raça em suas ações e políticas, especialmente no campo da educação. A
criação da lei 10.639 surge, nesse contexto, como fruto de uma antiga demanda do Movimento
Negro e representa importante marco na luta antirracista ao trazer o debate racial para dentro da
sala de aula, indagando o conhecimento científico produzido até então, fazendo emergir novas
temáticas e questionando conceitos estabelecidos. Essa mudança nas práticas escolares reflete uma
luta social pela igualdade racial e a ascensão de questões relacionadas à construção da identidade
negra no Brasil ao cerne das discussões epistemológicas das Ciências Humanas.

Dentro dessa perspectiva de construção identitária, a disciplina História se consolida como


um espaço privilegiado, por ser um locus de disputas de memória e formação de subjetivação e

* Mestranda em Ensino de História pela UERJ. E-mail: jaquelinesouzadrumond@gmail.com


923

alteridade. A narrativa histórica se constrói de forma a legitimar alguns passados em detrimento de


outros, contribuindo para o processo de definição do brasileiro de forma parcial, refletindo relações
de poder assimétricas presentes em nossa sociedade.

No cenário político contemporâneo, a função discursiva atribuída à memória nos processos


de identificação é uma das principais estratégias mobilizadas nas lutas por hegemonia. Portanto, o
combate ao racismo no Brasil inclui disputas nas fronteiras do que temos construído como história
nacional e reflexões sobre de que forma as narrativas de brasilidade são construídas dentro da
historiografia escolar.

Compreendemos o espaço escolar como um lugar de poder e tensões, onde os materiais e


informações referenciados pelos docentes e, consequentemente, pelo currículo, exprimem escolhas
epistemológicas e um modo de valorizar e posicionar os sujeitos. A sala de aula de História, em
particular, se apresenta como um lugar privilegiado de disputa entre diferentes memórias coletivas
que são apropriadas, legitimadas e hierarquizadas pelos textos curriculares. Nessa perspectiva, nos
interessa refletir sobre como a Lei 10.639 impactou o ensino de História na educação básica,
especialmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental. A promulgação da lei implicou em uma
real mudança na forma como a narrativa histórica escolar é construída? Como os negros são
apresentados enquanto sujeitos históricos nessas narrativas após 18 anos da obrigatoriedade do
ensino de História e cultura afro-brasileira?

Tendo como base a percepção de que os livros didáticos se constituem muitas vezes como
único referencial de leitura dos alunos da educação básica e como ferramenta principal com a qual
os professores podem contar em suas salas de aula, buscamos refletir sobre como a falta de
representatividade das populações negras enquanto protagonistas nessas obras interfere
negativamente na construção de memórias para o empoderamento e a construção identitária dos
alunos em geral e, em especial, dos alunos afrodescendentes. Este estudo procura, desta forma,
contribuir para a construção de um espaço propositivo de novas possibilidades narrativas mais
abrangentes, capazes de desnaturalizar os sentidos estabilizados e combater o racismo.

Legislação antirracista, academia e colonialidade do saber

Apesar do progresso feito em termos de legislação no Brasil, em grande parte por mérito
da luta incansável dos movimentos sociais, ainda notamos uma tímida inserção das temáticas
raciais, decoloniais e antirracistas nas salas de aula da educação básica. A ausência de narrativas
escolares sobre a África e a participação dos afrodescendentes em nossa construção social se
924

configuram como uma enorme lacuna em nosso sistema educacional. É um silêncio historiográfico
que reforça as relações assimétricas de poder e configura a academia e a escola como espaços de
violência.

Por que, após dezoito anos da promulgação da Lei 10.639 ainda se fazem necessárias
estratégias para que de fato se efetive a implementação desta lei na sala de aula? O que torna tão
difícil na prática o ensino da história e cultura afro-brasileira? Essas são perguntas que todos nós
educadores devemos nos fazer.

Talvez a resposta para esses questionamentos esteja de alguma forma relacionada ao fato
de o ensino de História, assim como a historiografia acadêmica, estar ainda hoje extremamente
marcado pela colonialidade. Compreendemos a colonialidade como a culminância de um processo
de exploração e dominação de terras e corpos que teve início em 1492 com a constituição da
América e com o decorrente estabelecimento do capitalismo colonial como novo padrão de poder
mundial. Nesse sentido, a colonialidade foi muito além da colonização de territórios no chamado
Novo Mundo, mas estendeu-se também como dominação social, política, cultural e epistemológica.
O eurocentrismo, por sua vez, se apresenta como a racionalidade específica desse padrão
hegemônico de poder que estende seu domínio em diversos campos, colonizando e sobrepondo-
se a todas as demais formas de conhecimento.

A colonialidade utilizou a ideia de raça como forma de dominação, criando identidades que
foram hierarquizadas, tendo os dominantes chamado a si mesmos de brancos. Esta elaboração
teórica da ideia de raça naturaliza e justifica as relações de poder entre europeus e não-europeus e,
desde então, consolidou-se como o mais eficaz e durável instrumento de dominação social
universal (Quijano, 2005). Desta forma, a colonização impõe uma única forma de conhecimento-
a europeia- e silencia ou desqualifica saberes outros.

Quijano (2005, p. 212) afirma que:

Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das
perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos
resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo
de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura.

O fim do sistema colonial não pôs fim à colonialidade, que permaneceu constituída através
do modelo hegemônico de cultura, ensino, fenotípica dos corpos, religiosidade e poder que se
impõe de forma violenta aos sujeitos subalternizados. Gosfroguel usa o termo colonialidade para
se referir às situações coloniais da atualidade nos mais diversos âmbitos (Gosfroguel, 2009). O
925

iluminismo, por sua vez, consolida esta suposta superioridade do homem branco europeu e de sua
episteme, considerada símbolo do que é moderno e racional.
O colonialismo na academia estabelece regimes brutais de silenciamento de quem é
considerado “o outro” e, dentro desta perspectiva, o negro é sempre colocado como “o outro” e
nunca como o “eu”. Os brancos declaram suas perspectivas como condições universais e impõem
a autoridade ocidental sobre todos os aspectos dos saberes. (Kilomba, 2019) Como educadores é
essencial trazermos para a nossa sala de aula a desnaturalização do universal, despertando a
criticidade em relação à produção científica que nunca é neutra, mas um reflexo das relações de
poder estabelecidas na sociedade como um todo.

Grada Kilomba nos alerta para a necessidade de criarmos novas configurações de poder e
de conhecimento, pois uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da
história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas. (Kilomba, 2019) Admitir a escola
enquanto branca e eurocêntrica, onde o racismo é estabelecido como norma, nos ajuda a sermos
capazes de propor alternativas a esse sistema colonialista. Ao contrário, o discurso pautado na ideia
de fundação do povo brasileiro a partir de uma mistura de raças fundadoras na qual há uma
democracia racial, inviabiliza as reflexões interculturais críticas tão importantes para a
desconstrução de conceitos hegemônicos.

Kilomba também se refere à violência exercida pela epistemologia hegemônica sobre a


subjetividade negra ao apresentar imagens da negritude nada realistas ou positivas. Ela descreve a
alienação de

ser-se forçada/o a identificar-se com os heróis, que aparecem como brancos, e


rejeitar os inimigos, que aparecem como negros. Que decepção ser-se forçada/o
a olhar para nós mesmas/os como se estivéssemos no lugar delas/es. Que dor,
estar presa/o nessa ordem colonial (Kilomba, 2019, p. 39).

A forma como o professor aborda a temática racial é muito importante para promover uma
educação que auxilie os alunos a questionar os papeis preestabelecidos e hegemônicos,
empoderando-os para que sejam agentes de transformação social. A educação atua, desta forma,
como caminho para a desnaturalização de papéis sociais e reforça a ideia de que a educação das
relações étnico-raciais é compromisso de todos.
Nesse sentido, bell Hooks (2017, p. 50) afirma que:

todos nós na academia e na cultura como um todo, somos chamados a renovar


nossa mente para transformar as instituições educacionais- e a sociedade- de tal
modo que nossa maneira de viver, ensinar e trabalhar possa refletir nossa alegria
926

diante da diversidade cultural, nossa paixão pela justiça e nosso amor pela
liberdade.

No chão da escola: descolonizando as narrativas históricas escolares

O Brasil é um país no qual, atualmente, 56,10% da população se declara negra, segundo os


dados da Pesquisa Nacional por amostra de domicílios (Pnad) realizada pelo IBGE371, que
conceitua negros como a soma de pretos e pardos. A superioridade numérica dos negros, no
entanto, ainda não se reflete em termos de representatividade na sociedade brasileira como um
todo e nas narrativas escolares em particular.

A escola é um ambiente extremamente diverso, onde diferentes sujeitos convivem e


compartilham suas experiências de vida diariamente. É um local de cruzamento de culturas.
Portanto, a educação deve ser construída a partir dessa diversidade, valorizando-a, auxiliando os
alunos a construírem sua subjetividade, enxergando a si mesmo e ao outro de forma plena. As
práticas educativas devem abordar os temas sensíveis pertinentes a realidade dos alunos,
problematizando as práticas sociais e as ressignificando através do debate.

Minha vivência como educadora há 16 anos e como líder de matéria de História do


Fundamental I nos últimos dois anos, me possibilitou testemunhar na prática, a grande dificuldade
de escolas e professores em tratar do que alguns pensadores decoloniais chamam de “história
outra”, ou seja, a história que é silenciada pelo viés hegemônico branco, ocidental, masculino,
cristão e eurocentrado.

Para Moreira e Candau (2003, p. 161):

A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende


a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e
a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade e para o cruzamento
de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.

O ponto inicial de mudança da realidade escolar excludente está no questionamento de


nossa própria formação histórica na educação básica, média e superior. Quem foi silenciado nas
narrativas que permearam nossa formação? Que conhecimentos nos foram negados? Como
educadores devemos nos perguntar como nos construímos socioculturalmente, o que negamos e
silenciamos, o que afirmamos e valorizamos em nossa prática docente. (Candau, 2013). Esse não é

371 Fonte: IBGE (https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6403). Acesso em 24 de novembro de 2020.


927

um processo fácil, pois negar o que sempre naturalizamos causa dor. Sobre a mudança de
paradigmas bell Hooks relata que, em certo momento, percebeu:

que pode haver, e geralmente há, uma certa dor envolvida no abandono das
velhas formas de pensar e saber e no aprendizado de outras formas. Respeito
essa dor. E agora, quando ensino, trato de reconhecê-la, ou seja, ensino a
mudança de paradigmas e falo sobre o desconforto que ela pode causar (Hooks,
2017, p. 61).

Candau (2013) nos aponta três passos importantes para a transformação de nossas práticas
pedagógicas. O primeiro é reconhecer nossa própria identidade cultural, o segundo é identificar
nossas representações de “outros” e o terceiro é conceber a prática pedagógica como um processo
de negociação cultural, o que implica em evidenciar a ancoragem histórico-social dos conteúdos e
em conceber a escola como ambiente de crítica e produção cultural. Nesse sentido, a autora afirma
ser imprescindível desvelar o daltonismo cultural, expressão utilizada por Stephen Stoer e Luiza
Cortesão para designar a não conscientização da diversidade cultural que nos rodeia em múltiplas
situações. (Candau, 2013 Apud Stoer & Cortesão, 1999, p. 56).

A forma como nos situarmos em relação aos outros geralmente está construída sob uma
perspectiva eurocêntrica, fruto de nossa educação escolar e vivências sociais colonizadas. Desta
forma, é importante que, em nossas práticas docentes, identifiquemos e descontruamos nossas
próprias suposições para que possamos efetivamente nos aproximarmos de forma empática à
realidade dos alunos.

Hooks (2017) afirma que a adoção de uma perspectiva multiculturalista obriga os


educadores a centrar a sua atenção na questão da fala, ou seja, em quem fala, quem ouve e por quê.
Vivemos uma longa história de silêncio imposto, de uma perda contínua causada pelo colonialismo.
É a percepção de nossa própria marginalidade que nos permite a possibilidade de devir como um
novo sujeito.

Adotar o ponto de vista multicultural- aquele que, segundo Candau (2013) pressupõe um
posicionamento claro a favor da luta contra a opressão e a discriminação a que certos grupos
minoritários tem historicamente sofrido por parte de grupos privilegiados na sala de aula implica
em questionar os Cânones tradicionais e apresentar aos alunos novas possibilidades de construção
de conhecimento. Entretanto, na prática escolar o que se nota é uma dificuldade por parte dos
docentes em se desvencilhar de práticas excludentes e de utilizar ferramentas outras, além do livro
didático, com o objetivo de dar voz à novos sujeitos e epistemologias.

Para descolonizar as narrativas históricas escolares faz-se necessário também realizar um


trabalho de desconstrução linguística, desnaturalizando antigos termos utilizados como, por
928

exemplo, o termo amplamente difundido de “descobrimentos”. Como se pode “descobrir” um


continente habitado previamente por milhares de sujeitos? Outro exemplo é o termo “escravo”
que define o sujeito africano pela violência que lhe foi imposta pelos colonizadores. Precisamos
dar voz aos marginalizados para que eles se autodefinam. Grada Kilomba (2019, p. 21) afirma que:

não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um
vocabulário no qual nos possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana.

Neste aspecto, ao abordar os temas de história e cultura africana previstos por lei, os
professores devem ser capazes de repensar sua prática e criar novas abordagens que consigam ir
além da escravização, amplamente representada nos livros didáticos e do estudo da cultura afro-
brasileira de forma estereotipada e circunscrita às celebrações do dia da consciência negra. Claudia
Mortari (2015, p. 7) defende que:

A história dos africanos e afrodescendentes no Brasil não se resume à escravidão


e essa afirmação implica em pensar esses sujeitos em sua humanidade e alteridade.
É preciso aprender a estudar, reconhecer e visibilizar essas outras histórias para
além da figura de objetos e ver essas populações como sujeitos históricos
diaspóricos, como pessoas. Pensar a cultura em termos de processo, ou seja, que
está sempre em transformação, torna possível encontrar nas experiências dos
africanos da diáspora evidências de uma gama de vivências complexas nas quais
estão expressos valores culturais ressignificados e reinventados.

O ensino de história e cultura afro-brasileiras precisa, portanto, ultrapassar os limites dos


livros didáticos, que via de regra apresentam os mesmos conteúdos orientados pela epistemologia
ocidental, que se mostram depreciativos em relação aos povos e cultura não hegemônicas. As
práticas escolares devem permitir que os alunos conheçam as resistências, pois os subalternos não
são silenciosos, e que a partir deste conhecimento elaborem novas visões de mundo mais
respeitosas e inclusivas.

Considerações finais

Sendo a escola um local repleto de diversidade, o ensino deve respeitar a variedade de


conhecimentos produzidos por discentes e docentes em seus lugares de sujeitos históricos que são.
É imprescindível preparar os alunos para enfrentarem os desafios da convivência com a diversidade
e as práticas de discriminação dela derivadas. Nesse contexto, a educação para as relações étnico-
raciais é indispensável e deve envolve todos e todas. Torna-se necessário, portanto, desenvolver
socialmente um olhar mais amplo e crítico que se reflita na escola através da elaboração de
currículos escolares multiculturalmente orientados, que possibilitem práticas pedagógicas
929

renovadas e mais democráticas e que se posicionem claramente contra a opressão de grupos


minoritários, que têm sido historicamente subalternizados e/ou invizibilizados.

A perspectiva decolonial expressa, de acordo com os autores citados, a necessidade da


produção de narrativas sob o ponto de vista dos subalternizados, assim como a busca pela
construção de epistemologias outras em contraposição à perspectiva hegemônica eurocêntrica que
exerce sobre o mundo a colonialidade do poder, do saber e do ser.

O espaço escolar multicultural requer pensarmos os saberes de forma não hierarquizada,


mas como possibilidades diferentes de ver o mundo, enxergando a diversidade como riqueza e
estimulando reflexões capazes de ultrapassar os muros da escola e alcançar a sociedade com
impacto suficiente para transformá-la em um lugar com oportunidades mais igualitárias para todos.

Referências

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931

Ditadura Militar e Abertura Política em uma cidade de interior


(Arapongas-PR): Ensino História a partir da proposição de Aulas-
Oficina

Jeferson José Gevigier*

Resumo: A reflexão acerca da prática do ensino de história é sempre necessária e, num contexto
de incertezas e de generalização do ensino remoto, se torna essencial. Pressupondo que a base do
ensino de história é a análise de fontes e que a produção do conhecimento é feita por estudantes e
professores, apresentamos este recorte de nossa pesquisa, no âmbito do mestrado profissional,
ProfHistória (UEM). Nosso objetivo é propor sequências didáticas que possibilitem aos estudantes
a utilização dos conhecimentos produzidos em sala, atribuindo sentidos historicizados à sua
realidade. Estas sequências serão publicadas por meio de um site que é o produto de nossa pesquisa.
O presente recorte se justifica pela evidente necessidade de trabalharmos os temas ligados ao
período ditatorial para que os estudantes possam refletir sobre as permanências deste regime que
continuam fragilizando nossa democracia, mesmo 32 anos após a promulgação da Constituição de
1988. Para a proposta do presente trabalho, selecionamos dois IPM’s referentes e casos de
indivíduos que foram presos durante o regime militar em Arapongas-PR, um deles impedido de
exercer a medicina e o outro morto. Além destes casos, também selecionamos uma série recortes
de um jornal local nos quais há a cobertura dos debates sobre a constituinte, editoriais e notícias
de Brasília, nos quais é possível perceber a participação da população local nos debates
constituintes. Nossa proposta, portanto, é possibilitar aos estudantes a reflexão, pesquisa e estudos
acerca das violações dos direitos humanos, além do cenário nacional, na pequena cidade da qual
são habitantes e também a importância da participação desta mesma população no processo de
abertura política e no processo constituinte. Dessa forma, acreditamos que seja possível a eles
aprenderem ferramentas históricas que amplifiquem sua participação efetiva na sociedade,
defendendo, inclusive, a democracia e a garantia dos direitos humanos.

Palavras Chave: Ditadura Militar, Repressão, Abertura Política, Participação popular, Ensino de
História.

Muito além de uma contextualização histórica e um levantamento historiográfico sobre o


período ditatorial, (desde o golpe civil-militar de 1964 até a institucionalização da ditadura militar,
embora o façamos de forma breve), compreendemos que há duas abordagens a serem consideradas
sobre este período, necessárias a uma melhor compreensão de nosso tema específico. A primeira
diz respeito a todo o aparato jurídico, político, social e administrativo que os “atores” da abertura
política e da constituinte precisaram lidar. A segunda, diz respeito a toda a estrutura construída ou
fortalecida durante o período ditatorial que se fez presente e demonstrou imenso poder ao
permanecer no ordenamento jurídico, social e cultural da “Nova República”, regida pela
“Constituição Cidadã”, influenciando nosso cotidiano trinta e dois anos após a promulgação e

*Mestrando em Ensino de História pelo programa ProfHistória – Universidade Estadual de Maringá, com orientação
da Prof.ª Dr.ª Márcia Elisa Teté Ramos.
932

trinta e cinco após a saída do último general-presidente (ditador). Paulo Arantes nos questiona e
responde a sua própria indagação de maneira provocativa:

Tudo somado, o que resta afinal da ditadura? Na resposta francamente


atravessada do psicanalista Tales Ab’Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a
ditadura, é claro. Demasia retórica? Erro crasso de visão histórica? Poderia até
ser, tudo isto e muito mais. Porém, nem tanto. Pelo menos a julgar pelo último
lapso, ou melhor, tropeço deliberado, mal disfarçado recado a quem interessar
possa: refiro-me ao editorial da Folha de S.Paulo, de 17 de fevereiro de 2009, o tal
da “ditabranda” (Safatle, 2010, p. 205).

Em um dos artigos publicados na mesma obra, O que resta da ditadura, Zaverucha desenvolve
um pouco mais a temática ao afirmar que, apesar das conquistas progressistas da Constituição
Federal de 1988, como a descentralização do poder e os importantes benefícios sociais, quando
analisamos as cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares estaduais, sistema
judiciário militar e de segurança pública em geral, percebemos que a “[...] Constituição permaneceu
praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967 e à sua emenda de 1969” (Safatle, 2010, p.
45), ou seja, a Nova República herdou as estruturas de segurança moldadas e/ou fortalecidas na
ditadura.

Dessa forma, iremos analisar brevemente o golpe civil-militar e a ditadura militar de tendo
como referência principal a obra de Marcos Napolitano, 1964: História do regime militar brasileiro
(2014), além de referência a obras de autores como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Jorge Ferreira,
entre outros, para apontarmos diferentes abordagens historiográficas e diferentes interpretações
acerca de fatos, contextos e mesmo conflitos de memória.372 Estas diferentes abordagens abrem
margem para diferentes discussões e, a título de exemplo, a própria periodização da ditadura é
controversa e apresenta diferentes marcos com diferentes justificativas. Marco Antônio Villa afirma
que a ditadura se inicia em 1968 com o AI-5 e se encerra com a aprovação da lei da anistia em 1982
(Villa, 2014, p. 9). Daniel Aarão Reis concorda com Villa ao definir o fim da ditadura em 1979
quando foram revogados os Atos Institucionais (Reis, 2014, p. 10) e teria surgido um “Estado de
direito autoritário”. “Em outras palavras: no período de transição já não havia uma ditadura, mas
ainda não existia uma democracia” (Reis, 2014, p.110, grifo do autor). Porém, ele considera o regime
como ditatorial a partir do Ato Institucional em 1964 (Reis, 2014, p. 3 e p. 149). Carlos Fico, por

372Não temos a pretensão de apresentar tais discussões e análises de forma exaustiva ou completa, visto que a produção
historiográfica sobre a ditadura militar é colossal. Brayan Lee Thompson Ávila (2015, p. 53), apresenta um
levantamento bibliográfico em sua dissertação de mestrado em história social pela UEL no qual 520 dissertações ou
teses tem como objeto de pesquisa os conceitos Ditadura Militar, Regime Militar ou Ditadura Civil-Militar. Somente
em nosso programa de pós-graduação, o ProfHistória, oito dissertações propõe temáticas ligadas ao ensino do período
da ditadura militar. Para análises mais profundas sobre levantamentos bibliográficos e análises interpretativas sobre a
ditadura, ver Fico, 2017 e Napolitano, 2016.
933

sua vez, com quem temos a ousadia de concordar, defende a ideia de que desde o golpe houve
ditadura (Fico, 2017, p. 53-58).373 Há ainda linhas historiográficas que defendem permanências
ditatoriais durante o processo de transição pois ocorreu sob a tutela militar. Segundo Adriano
Codato, “a consolidação do regime liberal-democrático dar-se-ia apenas nos governos Collor,
Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso” (Codato, 2005 apud Liebel, 2015, p. 70).

Com uma abordagem diferente, Denise Rollemberg desenvolve a ideia de que,


independentemente das explicações historiográficas (que ela explica como controle total dos
militares sobre o processo de abertura, com avanços e retrocessos de acordo om os conflitos
internos dos militares e com a garantia, por parte dos civis, apenas do não revanchismo), foi a
memória coletiva374 que, construída, determinou que a sociedade como um todo fora (e é)
essencialmente democrática e se tornou vítima da imposição de um golpe e de uma ditadura
militares impostos, contra os quais havia lutado intransigentemente (Rollemberg, 2010 apud Liebel,
2015, p. 71).

Segundo Napolitano, no começo de 1964, dois projetos históricos se contrapunham e


clamavam pelo “reposicionamento claro dos atores políticos e sociais”, contudo, naquele momento,
os projetos da esquerda e da direita para a sociedade eram irreconciliáveis. Para o autor, existe a
perspectiva de que “o governo Jango foi inapto para lidar com os conflitos e que os radicais de
esquerda prepararam o cenário para o golpe”, o que pode conter uma meia verdade, na medida em
que “o golpe foi muito mais do que mero produto de uma conjuntura de crise política. O golpismo
de direita, liberal ou autoritária, nunca aceitou o voto popular, o nacionalismo econômico, a agenda
distributivista, a presença dos movimentos sociais de trabalhadores”. A direita rotulava as políticas
de Jango como populistas e subversivas. Ainda argumenta o autor, que “o golpismo da direita nunca
aceitou a presença das massas seja como eleitoras ou como ativistas de movimentos sociais, na
Quarta República brasileira, a “República de 46”. O golpe de 1964 não foi apenas contra um
governo, mas foi contra um regime, contra uma elite em formação, contra um projeto de sociedade,
ainda que este fosse politicamente vago” (Napolitano, 2019, p. 66).

Falhando na política conciliatória, sem possibilidade de aprovar medidas no Congresso


(nem mesmo o pedido de estado de sítio que precisou retirar), pressionado pela esquerda e com o

373 Carlos Fico aborda a periodização da ditadura em seu artigo Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e
historiográficas (Fico, 2017, p. 53-58)
374 Importante também apontar outros temas ligados à produção de deslocamentos da memória sobre a ditadura: 01-

guerrilheiros eram a resistência democrática 02-a anistia era recíproca 03-a sociedade era contra a ditadura (mencionado
acima) (Ávila, 2015, p. 80).
934

conselho de Brizola de que o golpe viria da esquerda ou da direita375, Jango decidiu-se por uma
estratégia, segundo Carlos Fico, desastrada (Fico, 2014, p. 38): governar por meio de decretos com
apoio popular capitalizado por grandes comícios, o primeiro deles em 13 de março na Central do
Brasil, sendo seguido por vários outros até as comemorações do dia do trabalho com planos para
realizar o maior dos comícios em São Paulo (Reis, 2014, p. 32). A resposta foi rápida. Amplos
setores conservadores da sociedade, por exemplo, a Igreja Católica e a grande imprensa, alegando
a ameaça de ser implantado um sistema trabalhista-sindicalista no Brasil, passaram a apoiar
abertamente o golpe, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, já em 19 de março, expressou
este apoio (Napolitano, 2019, p. 55-56). Podemos perceber, portanto, que a desestabilização que
tinha como objetivo destituir o presidente João Goulart, só se consumou como golpe, em 31 de
março de 1964, a partir da iniciativa militar. A conspiração golpista civil-militar, que deixou de ser
apenas retórica radical para se consolidar apenas às vésperas de 31 de março, concluiu um longo
processo de articulação da desestabilização civil com uma ação militar pouco planejada e repleta de
iniciativas imprevistas376 (Fico, 2014, p. 55).

Vencida a mobilização militar, em reunião conjunta da Câmara dos Deputados e do Senado


Federal, que se iniciou na noite de 02 de abril, o presidente do Congresso, Moura Andrade declarou
vacância da presidência da república e, aos gritos de “Canalha!”, empossou o presidente da Câmara,
Ranieri Mazzili. Este fato ocorreu a despeito da declaração de Darcy Ribeiro, chefe da casa civil,
informando que o presidente João Goulart ainda estava em território nacional em pleno exercício
de seus poderes constitucionais.377

Entretanto, Mazzili ocupou o cargo de presidente da república por menos de duas semanas
e sob os auspícios do general Costa e Silva, (tendo sido, inclusive, enquadrado por ele: ao chama-
lo de ministro, Costa e Silva exortou Mazzilli a chama-lo de “general”). O general criou o Comando
Supremo da Revolução que era integrado, além de Costa e Silva, pelo vice-almirante Augusto
Hamann Rademaker Grünewald e pelo brigadeiro Francisco de Assis Correira de Melo (FICO,
2014, p. 88). Foi o comando supremo quem editou o Ato Institucional (AI) em 09 de abril, sem

375 Segundo Denise Rollemberg, “às vésperas de 1964, o golpe estava no ar e podia vir – e vinha – de diferentes partes:
a renúncia de Jânio Quadros, a recusa dos ministros militares à posse de João Goulart, a solução parlamentarista, a
tentativa de o presidente já empossado governar sob estado de sítio, as articulações entre militares e civis, as tentativas
de organização da luta armada, a formação de organizações que a defendiam” (Ferreira, 2007, p. 47). O clima golpista,
segundo a autora, estava no ar e acirrava os ânimos tanto de apoiadores como de opositores.
376 Para o processo de consumação do golpe, com diverso conflitos (beirando confrontos armados, hesitações e

negociações das mais diversas naturezas, descrevendo com linguagem quase novelesca os meandros do golpe, ver a
obra A ditadura envergonhada de Elio Gaspari (2002).
377 Brasil. Congresso Nacional. Sessão conjunta. Diário do Congresso Nacional, Brasília, Ano XIX, n. 2. 85, 03 abr.

1964, p. 90-91. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?selCod


ColecaoCsv=J&Datain=3/4/1964>. Acesso em 30 abr. 2020.
935

designação de número, pois se pressupunha único. O ato Institucional foi o resultado de uma
preocupação, já do início do novo regime, em legitima-lo. Portanto, partindo da tese do jurista
Francisco Campos, autor da constituição de 1937 (Estado Novo), que afirmava ser a “revolução”
a fonte legítima do poder, não sendo necessária, portanto, a aprovação do AI pelo Congresso
Nacional (Fico, 2014, p. 92). O AI mantinha o congresso aberto e o sistema judiciário em
funcionamento, instaurando inclusive “eleições” para o executivo federal. Porém, ao mesmo tempo,
cassava os direitos políticos de lideranças parlamentares, sindicais e militares, bem como intelectuais
e técnicos ligados ao regime deposto (Napolitano, 2019, p. 69-70).

Os quatro anos iniciais da ditadura foram marcados pelo cerceamento das liberdades, por
uma intensificação nos movimentos contestatórios e pelo recrudescimento do aparato legal do
regime. Os atos institucionais número dois, três e quatro evidenciam a preocupação, já abordada,
em legitimar o regime. Grosso modo, as edições dos atos institucionais ocorreram após o regime
ser ameaçado por reveses da política formal ou da sociedade civil. O AI-2 foi uma resposta à derrota
do governo nas eleições para os governos estaduais em 1965. Este ato se destaca pelo
intervencionismo federal, por outra rodada de cassações de mandatos e direitos políticos e pela
criação do bipartidarismo, com a instituição do partido governista Aliança Renovadora Nacional
(ARENA) e do partido de oposição consentida Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Note-
se a preocupação com a permanência de uma oposição parlamentar, que seja para mero teatro
político. O AI-3, por sua vez, foi editado de maneira preventiva, visto que se antecipou às eleições
estaduais que ocorreriam em 1966 e determinou que estas fosse indiretas, pelas respectivas
assembleias legislativas estaduais e de forma nominal (Napolitano, 2019, p. 78).

A maior medida, no sentido de institucionalizar e legitimar o regime, contudo, foi


determinada pelo AI-4, no qual Castelo Branco convocou o congresso para, segundo o parágrafo
primeiro do primeiro artigo do ato, discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição
apresentado pelo presidente da república (Neves, 2017, p. 30-31). Interessante notar que o regime
criou um aparato legal altamente burocratizado e sistematizado no sentido de criar uma “roupagem
democratilesca”. Na prática o AI-4 revogou da Constituição de 1946, e explicitou as intenções do
regime: para além de um resgate da normalidade e da ordem, seu objetivo era a institucionalização
do regime militar, construindo uma ordem jurídico-legal autoritária. Esta ordem testemunhou,
paulatinamente, um esgarçamento da coalizão golpista de 1964 que se fragmentou e, já no primeiro
ano, começou a se transformar em movimentos oposicionistas. Segundo o regime, esta era a
justificativa para as medidas cada vez mais autoritárias (Napolitano, 2019, p. 80-81). Para evidenciar
este ponto, cabe a longa citação de Cícero Araújo:
936

[...] o regime autoritário brasileiro preocupou-se, muito mais do que o argentino,


com sua própria institucionalização, através de normas e procedimentos que,
para além da mera aparência de legalidade, servia a propósitos derivados da
necessidade mesma de regular seus conflitos internos, como se verá adiante. É
claro que nada disso retira o caráter essencialmente repressivo da ditadura que,
através de instrumentos como o AI-5 e de uma máquina semiclandestina de
perseguição aos opositores, podia suspender, da noite para o dia, todas as normas
ou procedimentos e deixar qualquer cidadão à mercê de uma violência extrema,
cuja simples ameaça já poderia dissuadi-lo de pendores oposicionistas. Porém, e
a despeito disso, tais propósitos institucionalizantes, quando fazia sentido buscá-
los com algum rigor, emprestavam à ditadura brasileira peculiaridades que a
contrastavam com suas “primas” do Cone Sul. E se essa busca fez, de fato, algum
sentido na fase inicial do regime (antes da promulgação do AI-5), fez mais sentido
ainda na longa fase derradeira, quando seus líderes passaram a se comprometer
com um projeto de “distensão” ou “abertura” que, intencionalmente ou não,
marca o início da transição para a democracia. [...] ao manter o Congresso e seu
calendário eleitoral e, ao mesmo tempo, criar um novo sistema partidário [...] o
regime permitiu o desenvolvimento de novas referências político-eleitorais. [...]
os países em que ditaduras simplesmente aboliram o regime eleitoral e
parlamentar, sem colocar nada no lugar, assistiram ao retorno das velhas
agremiações partidárias, com seus símbolos e seus líderes ou herdeiros diretos.
(Araújo, 2013, p. 337).

A abertura política, marcada pela forte presença institucional do regime ditatorial, carregou
consigo vários pontos de permanência que perduraram por anos após o fim da ditadura. Portanto,
a institucionalização do regime e sua legitimação por meio de aparatos legais era uma preocupação
constante e mesmo nas fases mais autoritárias do regime foram utilizadas. O arbítrio, linha de regra,
era escamoteado por uma rede burocrática e legal desenvolvida para sua legitimação, o que resultava
em um ciclo perverso e autoritário. Uma consequência, segundo a referência logo acima, pode ser
percebida na reforma partidária do período de abertura. Os tradicionais partidos, com fortes
lideranças do período anterior ao golpe, ou deixaram de existir ou perderam espaço para os novos
partidos e suas lideranças que surgiram no cenário político da abertura. Mais uma vez temos
presente as permanências da ditadura que delinearam a abertura política e a formação da “Nova
República”, pois o “aparato repressivo com alta capacidade técnica no combate ao inimigo interno,
[...] e um aparato cultural que contribui para a dominação, a ordem e a disciplina” (Venturini, 2014,
p. 61) garantiram que a ditadura perdurasse mesmo que não houvesse ditadura.378

Com isso, é possível desmistificar o mito, produzido pela imprensa conservadora, da


ditabranda379 segundo a qual, em 1968 “a boa intenção dos militares ‘castelistas’ fora traída e

378 Expressão parafraseada do seguinte trecho escrito por Paulo Eduardo Arantes: “Tudo somado, o que resta afinal
da ditadura? Na resposta francamente atravessada do psicanalista Tales Ab’Sáber, simplesmente tudo. Tudo menos a
ditadura, é claro” (Safatle, 2010, p. 205).
379 Os liberais civis, que reviram seu apoio ao golpe, e os generais, alinhados à ala militar menos autoritária que a

chamada linha dura, argumentam que o período entre 1964 e 1968 não é uma ditadura mas um regime de exceção,
937

emparedada pela linha dura”. (Napolitano, 2019, p. 318). A despeito das divergências internas das
forças armadas, em especial do exército, as medidas autoritárias puderam ser sentidas desde os
primeiros dias da implantação do regime.

Portanto, utilizando mais um argumento, agora empírico, como dizer que não há ditadura
(ou que “não é tão ditadura assim”) quando, no período de governo de Castelo Branco, ocorreram
65% das punições, previstas nos Atos Institucionais380 de todo o período ditatorial? Se
mencionarmos apenas o saneamento militar, neste período ocorreram 90% das punições
(Napolitano, 2019, p. 73). Mesmo a tortura já havia começado a ser usada nas semanas subsequentes
ao golpe num contexto no qual numerosos chefes militares que assumiram o controle dos
Inquéritos Policiais Militares defendiam a permanência no poder, indefinidamente, até que fossem
erradicados o comunismo e o varguismo (Reis, 2014, p. 41).

O rápido recrudescimento do regime pode ser percebido já nas primeiras semanas após o
golpe quando algumas das instituições e personalidades públicas que haviam apoiado o golpe,
passaram a apresentar discordâncias com o movimento golpista e com aquilo que eles
consideravam distinto de suas intenções no momento do apoio. Este se baseava na necessidade,
segundo estes grupos, de uma intervenção cirúrgica que salvaria o país de uma suposta ameaça
comunista. Com o início da institucionalização do regime, e as primeiras arbitrariedades, os
dissidentes começaram a pulular nos meios antes simpáticos ao golpe. O tabuleiro estava
configurado da seguinte maneira: grupos liberais deixaram o apoio ao regime, a institucionalização
dava claros sinais de autoritarismo, a fachada de ordem constitucional já não justificava o regime
de exceção e os movimentos ligados à luta armada começavam a ganhar destaque. Assim, somos
levados a enfatizar o ano de 1968 quando, após meses de atos e manifestações sendo duramente
reprimidas, com consequências graves, protagonizados pelos movimentos estudantis e pelos
operários, também pela intensificação das ações das guerrilhas armadas contra o governo,381 foi
editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5). Este ato fechava o congresso, atribuía poderes praticamente
ilimitados ao presidente que poderia intervir em estados e municípios e suspender sumariamente

constitucional. Segundo eles o período considerado ditatorial teve início em 1968, após o Ato Institucional nº 5 (AI-
5). O termo “ditabranda” se tornou notório com o editorial da Folha de São Paulo, de 17 de fevereiro de 2009. Ver
mais em Napolitano, 2019, p. 69-95.
380
Dentre uma série de punições previstas, mencionamos banimento, cassações de aposentadoria, de disponibilidade
e de mandato, demissão, suspensão dos direitos políticos, entre outros.
381
Ver livro do jornalista Zuenir Ventura. Ventura, Zuenir. 1968: o Ano Que não Terminou. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
938

os direitos políticos de qualquer cidadão brasileiro, institucionalizava a censura prévia e o fim do


habeas corpus e, tacitamente, legitimava a prática da tortura382 (Napolitano, 2019, p. 94).

Os anos seguintes, os chamados anos de chumbo, foram marcados pela dura repressão,
estruturada por meio de um tripé: produção de informações, vigilância-repressão policial e censura.
(Napolitano, 2019, p. 99). Os órgãos, agências e institutos do regime, vários deles pré-existentes,
eram o eixo do tripé repressivo. O Serviço Nacional de Informações (SNI), subordinado
diretamente à presidência da República, criado em 1964 pelo general Golbery de Couto e Silva.
Dentre suas funções, uma das principais era “a responsabilidade de superintender e coordenar as
atividades de informações e contra-informações no país, em particular as que interessassem à
‘segurança nacional’” (Fico, 2008, p. 218).

As unidades estaduais de polícia política (Departamentos de Ordem Política e Social –


DOPS) e, a partir de 1969 o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-CODI), o qual foi criado a partir da Operação Bandeirante (OBAN), uma
organização que apesar de apoio do governo, não era oficial. A OBAN exercia um trabalho
coordenado de diversas instâncias do Exército, da Marinha, da Polícia Militar do Estado de São
Paulo, da Polícia Federal e do DOPS. A partir desta estrutura, e com base em diretrizes sigilosas
preparadas pelo Conselho de Segurança Nacional, foi implantado o Sistema de Segurança Interna
no País (SISSEGIN), consolidado pelo sistema CODI-DOI, no qual o CODI (Centro de
Operações de Defesa Interna) era responsável pelo planejamento e coordenação das medidas de
defesa articulando o trabalho de diversas instituições e o DOI (Destacamento de Operações e
Informações) fazia o “trabalho sujo”, comandados por oficiais de baixa patente, tradicionalmente
truculentos (Fico, 2001, p. 115-123).

Esta estrutura, montada ao longo do regime pode ser expressa como a base da Doutrina
de Segurança Nacional, que se caracteriza por diretrizes gerais das ditaduras da região do cone-sul.
Segundo Enrique Serra Padrós, uma de suas premissas:

[...] é a rejeição da ideia da divisão da sociedade em classes, pois as tensões entre


elas entram em conflito com a noção de unidade política, elemento basilar
daquela. Segundo os princípios da DSN, o cidadão não se realiza enquanto
indivíduo ou em função de uma identidade de classe. É a consciência de

382Ver edição especial da Folha de São Paulo, de 08 de dezembro de 2018, em memória aos 50 anos do AI-5. “O Ato
Institucional nº 5, marco do período mais duro da ditadura militar, entrou em vigor há meio século. Editado em 13 de
dezembro de 1968, no governo do marechal Costa e Silva, o AI-5 deixou um saldo de cassações, direitos políticos
suspensos, demissões e aposentadorias compulsórias. O mais radical decreto do regime também abriu caminho para o
recrudescimento da repressão, com mortes e desaparecimentos de militantes da esquerda armada. Passados 50 anos,
Folha lança edição especial com levantamento, entrevistas e histórias de vítimas do AI-5. Disponível em
<http://temas.folha.uol.com.br/50-anos-ai5/>. Acesso em 04 dez. 2020.
939

pertencimento a uma comunidade nacional coesa que potencializa o ser humano


e viabiliza a satisfação das suas demandas. Nesse sentido, qualquer entendimento
que aponte a existência de antagonismos sociais ou questionamentos que
explicitem a dissimulação de interesses de classe por detrás dos setores políticos
dirigentes é identificado como nocivo aos interesses da “nação” e, portanto, deve
ser combatido como tal. Mais do que isso, tal coesão política pressupõe o fim do
pluralismo político, condição essencial para a resolução dos conflitos e de seus
elementos centrífugos (Fico, 2008, p. 144).

Portanto, a lógica da repressão tinha como base a coesão social e a exclusão dos conflitos e
contradições internas. “A principal recomendação da doutrina era o combate interno ao
comunismo” (Fico, 2004, p. 38). Todo o aparato repressivo foi fundamentado nesta base,
considerando que o subversivo seria aquele elemento desestabilizador, o inimigo e estranho, aquele
que não tem direito de pertencer à nação (Fico, 2008, p. 144).

Presente em vários países da América Latina, a Doutrina de Segurança Nacional promoveu


verdadeiras atrocidades, com níveis e características distintas em cada país, porém em comum a
brutalidade com que as forças estatais foram usadas para atingir o objetivo e purgar a sociedade.
Esta brutalidade escalou e foi classificada como Terror de Estado (TDE). Segundo Paulo Eduardo
Arantes:

Seja como for, algo se rompeu para sempre quando a brutalidade rotineira da
dominação, pontuada pela compulsão da caserna, foi repentinamente substituída
pelo terror de um Estado delinquente de proporções inauditas. A tal ponto que
até Hobsbawm parece não saber direito em qual dos extremos do seu breve
século XX incluir este último círculo latino-americano de carnificinas políticas,
no qual não hesitou em reconhecer a “era mais sombria de tortura e contraterror
da história do Ocidente” (Safatle, 2010, p. 208, grifo no original).

Esta lógica de TDE é um terrorismo de grande escala, estatal que se autoriza transgredir os
marcos jurídicos e ideológicos tradicionais, se valendo de métodos não convencionais para eliminar
a oposição política e o protesto social (Fico, 2008, p.153). Entre as décadas de 1960 e 1980, com
períodos específicos diversos, diversos países da América Latina, o Brasil aí incluso, se valeram do
TDE de maneiras distintas, porém com presença marcante da violência de eliminação sistemática
dos opositores.

Desafiando a lógica causa e efeito, a DSN empreendia a política de expurgo da sociedade e


de negação do contraditório, porém dependia da presença do inimigo para se justificar. A título de
exemplo, podemos citar o caso brasileiro, no qual é possível identificar a difusão de informações
pela comunidade de informações que interpretava ou traduzia as suas versões, informando às
diferentes instâncias governamentais, o que segundo eles, apenas a partir do trabalho do SISSEGIN
fora possível combater os “vilões” (Marighella) e os “traidores” (Lamarca) (Ferreira, 2007, p. 186).
940

Após o fim da guerrilha do Araguaia, em 1974383, portanto, compreendendo que o objetivo da DSN
havia sido alcançado, podemos imaginar q houvesse um retrocesso no aparato repressivo. Porém,
com base na necessidade de se criar inimigos com o objetivo de justificar sua existência, houve
expansão substancial na estrutura do SNI (Fico, 2008, p. 219), afirmando a presença de grande
perigo e necessidade de combate ao PCB e sua “ameaça comunista”, inclusive com infiltração de
espiões no MDB (Ferreira, 2007, p. 186). O desdobramento paranaense desta onda repressiva ao
PCB e, consequentemente, ao MDB, conhecida como Operação Marumbi, pode ser verificado no
trabalho de Leandro Brunello, que analisa o Inquérito Policial Militar 745 (IPM 745), no qual
podemos encontrar o caso de Abelardo de Araújo Moreira, médico em Arapongas, exilado e
posteriormente preso, a quem indicaremos, mais a frente, como personagem histórica a ser
trabalhada em sala de aula (Brunello, 2006).

Após a construção de todo esse aparato repressivo, fundamentado em uma ideologia de


dominação e obliteração dos inimigos, quando a ditadura eventualmente se encerrou após a eleição
indireta de Tancredo Neves, governo de Sarney e promulgação da Constituição de 1988, as
permanências deste aparato são evidentes em diversos aspectos de nosso cotidiano. A questão
desenvolvida na obra de Vladimir Safatle e Edson Teles (o que resta da ditadura?), é extremamente
pertinente e a seu respeito, Carlos Fico faz uma importante reflexão:

A anistia de 1979 foi recíproca, isto é, também os torturadores foram anistiados.


A eleição do primeiro civil a suceder os militares foi indireta. Essa saída negociada
da ditadura geraria, evidentemente, consequências que, até hoje, ainda estamos a
enfrentar. Não obstante a passagem do poder aos civis, em 1985, boa parte do
sistema repressivo continuou agindo, como o SNI, que somente seria extinto no
governo de Fernando Collor de Melo. A agência que o sucedeu, a ABIN, é ainda
mal estruturada, não havendo mecanismos sociais de controle efetivo, através do
Congresso Nacional, de suas atividades, e, de tempos em tempos, temos notícias
de atividades escusas de espionagem no país. O SISSEGIN foi formalmente
extinto no final do governo Figueiredo, mas a imagem dos militares ficou
definitivamente marcada pelo envolvimento com as atividades brutais praticadas
nos DOI e DOPS. O Ministério da Defesa, depois de muitos percalços, ainda
não contou com um ministro verdadeiramente proeminente. Essa, portanto, é
uma história que, de algum modo, ainda não acabou (Ferreira, 2007, p. 200).

São muitos os elementos do período ditatorial presentes em nossa sociedade


contemporânea, sobre os quais discutimos brevemente nas páginas precedentes e os teremos como
base para pensar no ensino de história que possibilite aos estudantes o desenvolvimento de uma
consciência histórica voltada para a compreensão da democracia com o fundamento de nossa

383Para os movimentos revolucionários e a luta armada, ver texto de Denise Rollemberg (Ferreira, 2007, p. 43-92).
Para um balanço historiográfico do tema, ver Fico, 2017, p. 42-51.
941

sociedade e da defesa dos direitos básicos, previstos nos texto constitucional, como elemento
fundante da coesão social em busca de igualdade e respeito aos direitos humanos, para todos os
brasileiros.

Desde os primeiros esboços desta pesquisa uma preocupação se fez presente


diuturnamente: como elaborar uma proposta de sequência didática que, embasada em preceitos
teórico-metodológicos e na pesquisa histórica, tendo como objeto um conteúdo substantivo
determinado, indicando o trabalho com conceitos de segunda ordem necessários para o
desenvolvimento de uma literacia histórica, não recaísse em um formato simplista ao estilo “passo
a passo”. Esta preocupação é assim expressa pela professora Marcia Elisa Teté Ramos ao recorrer
à Isabel Barca:

Enquanto que a pergunta-base nas pesquisas mais tradicionais sobre ensino de


história centravam em como motivar alunos para a aprendizagem de história, ou
como utilizar estratégias/recursos didáticos para atingir bons resultados, ou
ainda, quais as atividades didático-pedagógicas de um ensino de história exitoso,
a problemática de algumas vertentes, por exemplo, da Educação Histórica, corre
no sentido de responder sobre como os alunos compreendem a história, seja
quanto aos conceitos substantivos (como entendem alguns acontecimentos
históricos), seja quanto aos conceitos estruturais (como compreendem a
elaboração do conhecimento histórico) [...] não se centrando nos “formalismos
e recursos da aula”, embora estes sejam também importantes, mas nas “ideias
históricas de quem aprende e ensina” (Ramos, 2018, p. 38, grifo do autor).

Outro aspecto dessa preocupação diz respeito às diversas realidades presentes nas escolas
públicas com as quais convivemos cotidianamente. Situações de fragilidade social, políticas públicas
contraditórias que não contribuem para o trabalho docente, más condições de infraestrutura dos
prédios escolares ou obras em períodos de aulas, dificuldade em desenvolver atividades
remotas/online visto que o acesso aos equipamentos e à internet não é universalizado. Não temos
a pretensão de apresentar soluções para todos os desafios, mas temos como objetivo refletir sobre
a prática do ensino de história, em meio às diversas situações adversas e buscando subsídios
conceituais nas formas como o ensino de história tem sido desenvolvido nos últimos anos.

Nossa preocupação diz respeito ao que, segundo Isabel Barca (2012, p. 37) é um
pressuposto da Educação Histórica: a inter-relação entre teoria e prática, desenvolvendo o ensino
de história com base em investigações e propostas testadas empiricamente. Assim, os conteúdos
substantivos que selecionamos como temas de pesquisa, expostos nos primeiros capítulos deste
trabalho, serão objetos de reflexões sobre formas de ensinar história, a partir da pesquisa histórica
em sala de aula pelos estudantes e pelo professor, criando condições para que o conhecimento
histórico, produzido por eles, possa contribuir para que os sentidos atribuídos pelos alunos à
942

realidade sejam instrumentalizados e desenvolvidos. O conhecimento histórico, portanto, é uma


construção concomitantemente acadêmica e escolar, pois:

[...] quando se diz conhecimento histórico científico, se fala em pesquisa, e esta é


o fundamento da historiografia consistente, mas possível de ser transposta para
a sala de aula, como forma de “enriquecimento” das concepções históricas que
formam o senso comum (Ramos, 2018, p. 36).

A ideia de que o conhecimento histórico produzido academicamente e o produzido no


processo de ensino possuem estatutos equivalente, dadas as diferenças procedimentais, tem base
nos estudos de Jörn Rüsen quando elaborou sua matriz disciplinar. Segundo Ramos (2018), a matriz
apresenta princípios “que fundamentam a construção do conhecimento histórico, sob a concepção
de que História escrita e ensinada são campos diferentes, mas não excludentes e ao mesmo tempo
correlativos” (Ramos, 2018, p. 35). Os processos aprendizagem histórica ocorrem em diversos
contextos da vida concreta, sendo a escola apenas um deles e não o mais popular. Isto significa que
os estudantes “já trazem para a escola um conjunto de saberes apreendidos na sociedade, uma série
de associações obtidas por intermédio da memória coletiva/cultura histórica” (Ramos, 2018, p. 35).
O ensino de história, portanto, está conectado à teoria da história no sentido em que ambos operam
processos da consciência histórica.

Não são recentes as discussões acerca de modelos de aulas sistematizados de acordo com
sua lógica, métodos, avaliação e efeitos sociais de cada paradigma. Modelos tradicionais, não
diretivos e democráticos são sistematizados e experimentados há décadas. Dentre estes modelos,
Isabel Barca (2004, p. 121) desenvolveu o conceito de Aula-Oficina em contraposição aos modelos
que ela chama de aula-conferência e aula-colóquio. Segundo ela, no modelo de aula-conferência,
marcado pelo paradigma tradicional, o professor detém o conhecimento verdadeiro a ser
transmitido ao aluno que, por sua vez, não sabe, não pensa e deve reproduzir a mensagem como
um receptáculo, por meio de testes escritos. Ainda segundo Barca, por mais que já se tenha
consolidado um consenso de que este modelo não seja pedagogicamente correto, ele ainda é
amplamente praticado (Barca, 2004, p. 132).

O modelo de aula-colóquio, dentro de um paradigma de tendência democrática, se


preocupa com o planejamento e a organização das ações pedagógicas para além dos conteúdos. As
aulas são centradas na criatividade de recursos e estratégias, nas quais “o saber pode ser
problematizado e partilhado, mas a atenção continua a centrar-se na atividade do professor [...]. O
pressuposto de que o conhecimento deve ser construído na aula pelos alunos é firmado como mera
retórica [...]” (Barca, 2004, p. 133). Em essência, por mais que a preocupação com a inovação do
943

ensino esteja presente, o protagonismo não está na produção do conhecimento, mas na reprodução
das informações que, quando muito, adquirem uma linguagem mais palatável e agradável.

Quando o professor assume o papel de investigador social e pesquisador histórico, o


estudante se torna o agente do conhecimento. O professor passa a investigar a realidade dos
estudantes. Os conhecimentos tácitos trazidos por estes são a matéria prima para o trabalho
daquele, que não mais exerce o papel de arauto do conhecimento, mas de organizador das atividades
problematizadoras que serão trabalhadas pelos estudantes num processo de reconhecimento e
análise das ideias prévias e experiências.

A aula-oficina tendo como base o princípio investigativo – sob a matriz


disciplinar de Rüsen – implica no professor como investigador social, que
apreende e interpreta o mundo conceitual de seus alunos no sentido de modifica-
lo positivamente e esta progressão pode ser manifesta nas narrativas dos alunos,
pois também integra a construção do conhecimento histórico escolar, a
capacidade de apresentar, divulgar, comunicar os “resultados” do conhecimento
histórico produzido (Ramos, 2018, p. 49).

A partir da relação entre história ciência e vida prática, o processo de ensinar história
construindo o conhecimento histórico pode ser organizado em cinco etapas constitutivas:
Interesses, Ideias, Métodos, Apresentação e Funções (RAMOS, 2018, p. 36). Esta é a síntese da
matriz disciplinas de Rüsen, a partir da qual são constituídos os princípios do modelo de Aula-
Oficina que, segundo Isabel Barca, possibilita a progressão gradual do conhecimento histórico,
desenvolvendo as competências históricas essenciais a qualquer pessoa (BARCA, 2004, p. 134). A
“recolha de dados sobre as ideias dos alunos” no início e no final do processo demonstra a
preocupação fundamental deste modelo e evidencia o objetivo de superar os paradigmas que
tinham no professor o detentor do conhecimento e no estudante uma tábula rasa receptora de
informações. Todo o processo de ensino e de aprendizagem é reconfigurado. A função do
professor é orientar o processo de pesquisa, análise de fontes e desenvolvimento da narrativa
histórica, etapas protagonizadas pelo estudante. Este pode, portanto, demonstrar traços
progressivos em sua narrativa na medida em que o professor apresenta e trabalha com diferentes
conteúdos substantivos e de segunda ordem. O trabalho docente passa a ser mais qualificado na
medida em que se torna necessário o domínio de metodologias e pressupostos teóricos para que o
exercício do ensino de história supere a narração linear, e passe a conduzir uma construção de
conhecimentos históricos no cotidiano da sala de aula.

Portanto, ao trabalhar os conteúdos substantivos: Ditadura Militar e Abertura Política em um


contexto local, a partir de pesquisa em fontes históricas, nossa proposta tem como objetivo o
desenvolvimento e enriquecimento das concepções históricas dos estudantes, o que em nosso
944

entender, é uma das funções do ensino de história. Para isso, utilizaremos recortes dos processos
de duas pessoas de Arapongas no norte do Paraná, município no qual residimos e trabalhamos.
Eles foram vítimas de violência policial em duas situações distintas. O primeiro deles é Henrique
Cintra Ferreira de Ornellas, advogado criminal que atuava nesta cidade e foi morto em 21 de agosto
de 1973 no 8º Agrupamento de Artilharia Antiaérea, em Brasília, onde estava sendo mantido preso.
O Inquérito Policial Militar (IPM), presidido pelo major Wilson Pinto de Oliveira, concluiu que
Ornellas teria cometido suicídio na cela, porém não conseguiu provar sua participação nas
acusações criminais que motivaram sua prisão. Essas informações estão disponíveis no dossiê
organizado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, no qual constam o IPM, certidão
de óbito e recortes de jornais sobre o caso384.

O segundo deles, Abelardo de Araújo Moreira, médico em Arapongas e posteriormente, de


1986 a 1988, prefeito da cidade, encontrou dificuldades para exercer a medicina por perseguição
política e, entre 1974 e 1975, morou em Londres com a família. Quando voltou ao país, foi um dos
alvos da Operação Marumbi, organizada e executada pelo DOPS e pelo DOI-Codi, com o objetivo
de “perseguir e prender os militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que eram acusados
de rearticularem as bases do partido no Paraná” (Brunello, 2006, p. 13). O Inquérito Policial Militar
745 (IPM 745) referente à Operação Marumbi faz parte do Projeto Brasil Nunca Mais, catalogado
como BNM 551385.

Os aspectos ligados à prisão e morte de pessoas de nosso município durante a ditadura são
importantes para que os estudantes possam perceber as mudanças paradigmáticas da consolidação
de direitos fundamentais durante o processo constituinte. Com casos documentados de
perseguição política, prisão, tortura e morte envolvendo pessoas geograficamente próximas,
acreditamos que os estudantes poderão construir elementos de identificação com as situações de
violência estatal/policial e com o processo de formação da cidadania, que também será trabalhado
a partir de documentação de nossa região.386

384 Disponível em <http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/henrique-cintra-ferreira-de-


ornellas>. Acesso em 08 jul. 2020.
385 Disponível em <http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_06&PagFis= 34991>.

Acesso em 08 jul. 2020. A qualificação de Abelardo de Araújo Moreira pode ser consultada a partir da página 389 do
IPM 745.
386 Fontes, contextos e textos teórico metodológicos que fundamentam nossa pesquisa estão disponíveis no site que

estamos produzindo como produto educacional, requisito parcial de nosso curso de mestrado em ensino de história
pelo ProfHistória – UEM. Disponível em: < https://jefersongevigier.wixsite.com/constituinte-ensino>. Acesso em:
22 dez. 2020.
945

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946

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São Paulo: LeYa, 2014.
947

O pensamento do Elemento Servil na política brasileira no ano de


1871 e os seus reflexos com a Lei Nº 2.040

Jefferson Alexandre Prado e Souza*

Resumo: As leis abolicionistas, escritas em maioria pela população branca, mudaria a vida dos
escravos? Como a Lei do Ventre Livre impactou os nascidos após a sua assinatura? Estas perguntas
foram balizadoras deste estudo, que representa uma viagem aos documentos produzidos no
período da assinatura da referida lei. Um ensaio introdutório sobre a escravidão, perpassando o
processo do legislativo nos debates que antecederam a lei na compreensão e na sua execução. No
intuito de compreender como o Império brasileiro no ano de 1871, reconhecia o ‘Elemento Servil’
e os bastidores da assinatura de Lei Nº 2.040.

Palavras chave: Brasil Imperial, Emancipação, Escravidão, Lei do Ventre Livre.

Abertura dos Trabalhos

Faremos uma análise sobre o Pensamento do Elemento Servil em 1871, um conturbado período
da História do Brasil, ano de assinatura da Lei nº 2.040, que ficou conhecida como Lei do Ventre
Livre ou Lei Rio Branco, um estudo bibliográfico qualitativo exploratório, tomando como eixo
norteador a própria lei, ela será nosso guião e os documentos que perpassaram o referido ano de
1871, serão nosso suporte; cartas, discursos, decretos e livros produzidos no período; na tentativa
de refletir o processo político abolicionista e suas implicações sociais.

Para efeito do presente estudo, não serão consideradas de forma exaustiva as peças
documentais anteriores e posteriores a essa data, apenas pontualmente, uma vez que não é nosso
propósito reconstituir a trama do debate. A escolha da Lei nº 2.040, não foi casual, elencamos ela
como marco pois, os debates e estudos que a precederam fazem uma análise do processo da
escravidão no Brasil, até o ano de 1871, fornecendo um panorama do ‘Elemento servil’ e sua
aprovação reforçou a abolição da escravidão em 1888.

Como suporte de analise ao guião, utilizaremos a seguintes fonte: A Viagem Imperial e o


Ventre Livre, de Alfredo Moreira Pinto, onde o autor apresenta D. Pedro II como um imperador
autoritário que forçou a assinatura da Lei do Ventre Livre, sem maiores estudos, e que não teve a
hombridade de ficar no país para acompanhar os debates, deixando a Princesa Isabel como
Regente; em contraposição temos um texto de autoria anônima, onde o autor assina como 'Um

* Mestrando em História na Universidade do Minho, Braga – Portugal.


948

Magistrado', a obra de título: Analyse e commentario critico da proposta do governo imperial as camaras
legislativas sobre o elemento servil, onde o autor elogia parágrafo por parágrafo do projeto da lei.

No campo dos discursos, separamos dois parlamentares, Agostinho Marques Perdigão


Malheiro e Paulino José Soares de Souza Uruguai, respectivamente denominados, DP1e DP2, o
primeiro um parlamentar conservador, que se elegeu sob a égide de coibir essas reformas e se
declara abolicionista, é um discurso de defesa. Já no DP2, o autor acusa o projeto de lei de ser
inconstitucional, com quase 4 (quatro) horas de fala, justifica que essas mudanças deveriam ser
regidas pelos grandes proprietários, visto que são eles, os mais afetados com essa lei.

Neste estudo inicial, são privilegiadas as fontes produzidas no período da referida lei, para
melhor entendimento do processo político, ideológico, histórico e social do período, dos discursos
dos legisladores, que em tese representam a voz do povo, do processo legislativo e da aplicabilidade
da lei, aos olhos das personagens do séc. XIX no império brasileiro.

Roda de negociação
Antecedentes brasileiros

A Consolidação do Império brasileiro não seguiu os moldes das colônias americanas. As


treze colônias da América do Norte guerrearam entre si pela independência; os independentes
sonhando com os ideais ilustracionistas, ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade’; foram apoiados pela
França (Gebara, 2010). e os contrários à independência apoiados pelo Império Britânico. As
Independências de algumas colônias espanholas, em parte, se devem ao enfraquecimento do
Império espanhol frente a guerras napoleônicas; os quatro vice-reinos da Espanha, inspirados nos
exemplos dos Estados Unidos da América (Nogueira, 2015).

No Brasil, diferentemente das futuras nações americanas, a metrópole e a colônia eram


regidas pela mesma família, pai e filho, D João VI, chefiando o Império português e seu filho Pedro
de Alcântara, regendo a colônia americana. O ato da independência brasileira, em 1822, foi
contestado pela metrópole, e por algumas províncias: Minas Gerais, Cisplatina e sobretudo a Bahia
(Menck, 2019). Aclamado e depois coroado Imperador, D. Pedro I conseguiu com o apoio da
Inglaterra, contornar a revolta na província da Bahia e o reconhecimento da Independência do
Brasil por parte do governo português, mediante pagamento de multa. Esse processo ímpar de
independência não causou rupturas nos sistemas políticos e financeiros, configurou-se quase como
um processo de continuidade. o país permaneceu agrário, patriarcal e escravocrata, com os mesmos
grupos políticos partidários. Para a sociedade, não apresentou grandes mudanças, a vida nas
fazendas, nos canaviais, nas minas e nas senzalas era a mesma.
949

Muitos estadistas levantaram essas questões em sua retórica. José Bonifácio de Andrada,
conhecido como o ‘Patriarca da Independência’387, relatou a impossibilidade em instaurar um regime
genuinamente liberal, em uma nação onde parte de sua população viva de forma cativa. O processo
legislativo do império nasceu com problemas de reconhecimento; D. Pedro I solicitou uma
constituição liberal, porém, a Constituinte de 1823 foi dissolvida por não agradar ao imperador,
pois, em parte limitava sua ação. Em 1824, a primeira Constituição foi outorgada, ainda com bases
liberais, mas sem tolher o poder do Imperador, inspiradas na separação dos poderes de
Montesquieu (Silva & Silva, 2010), porém, com quatro poderes: Legislativo, Executivo, Judiciário
e Moderador (Menck, 2019). O quarto poder, o moderador, permitia amplos poderes ao imperador,
formando um país com ideal liberal e prática absolutista.

Para inglês ver388

O processo abolicionista legislativo no Brasil tem uma forte influência da Inglaterra, essa
intervenção não foi bem quista pela maioria dos legisladores, muitos deles questionavam a
legitimidade: podemos observar esse posicionamento no discurso do excelentíssimo senhor
Deputado João Manoel Pereira da Silva, em seu texto, Inglaterra e Brasil. Trafego de Escravo, publicado
em 1845, ele narra de sua perspectiva, a ideologia política da Inglaterra nesse processo, sobre tudo
no tangente do parlamentar inglês lord Aberdeen.

Silva inicia seus apontamentos reforçando a importância da Inglaterra para o processo


abolicionista no mundo, porém demonstra que o processo de escravidão se alargou no mundo
também por força inglesa. O autor questiona o posicionamento do império britânico, agindo
conforme seus interesses e colocando a legitimidade e autonomia dos outros países em cheque,
“julguem e condemnem nossos barcos, seus aprestos e carga, conforme as leis britânicas, não
podemos deixar de ainda uma vez clamar contra esse procedimento por ser attentatorio da
soberania e independência deste império” (Silva, 1845, p. 186).

Para o autor a lei Inglesa não se trata de uma lei humanitária ou em favor da escravidão, ao
contrário, ele afirma ser uma nação que lucrou com os cativos, que exerceu o monopólio por
muitos anos nas colônias espanholas, “ [...] no seu frenezi de humanidade e justiça, estimulada

387
O francês general Labatut, em ofício de 26 de dezembro de 1822, já o chamava “Pai da Pátria e Patriarca da
Independência Nacional”, e a Marinha brasileira, com carinho, venera sua memória (Menck, 2019, p. 22).
388
Embora não seja um consenso entre os historiadores o termo "para inglês ver", é como ficou conhecida a Lei Feijó
de 1831, que proibia o tráfico negreiro no Brasil e as demais leis abolicionistas, historiadores como Beatriz G.
Mamigonian são contrários a essa visão "Em outras palavras, a Regência punha em discussão projeto que instituía
procedimentos novos, definia claramente os sujeitos culpabilizados e as penalidades para o crime de importação de
africanos boçais, para demonstrar que a proibição não era “para inglês ver”. (Mamigonian, 2017, p. 66,67)
950

contra essa avareza brutal que procura grangear lucros nas fontes as mais barbaras, tomou a si a
honrosa missão de exclusivamente fornecer escravos a Hespanha,” (Silva, 1845, p. 8,9),
corroborando com o ideal de que ela não agiria por humanitarismo e sim e interesse político e
econômico.

Silva, aponta que o processo mundial pelo abolicionismo não começou na Inglaterra e sim
nos Estados Unidos da América com os Quakers, logos depois, as nações europeias começaram
‘libertar’ os cativos em seus países, não em suas colônias. Segundo o autor, a França é a
desbravadora em colocar essa prática sob força de lei, seguidas por Portugal, em 1761, “A humana
Inglaterra não se movia, não dava um só passo !!” (1945, p.13), o ilustre deputado utiliza essa linha
de raciocínio para questionar a legitimidade da Inglaterra em pressionar o Brasil a adotar um
processo abolicionista.

O partido conservador do Brasil, formado em maioria por latifundiários, aristocratas,


traficantes e proprietários de escravos, (Alonso, 2015), resistiu à pressão inglesa, quando o
parlamento inglês percebeu que por diplomacia o processo não iria avançar, optou pelo uso da
força, com a aprovação do bill, elaborado pelo lord Aberdeen, em 8 de agosto 1845, que autorizava
a apreensão de embarcações que traficassem escravos, a prisão da tripulação e julgamento por leis
Inglesas (Silva, 1845).

Em tentativa de reabertura do diálogo com o parlamento inglês, o Império Brasileiro


aprovou a Lei nº 581, conhecida por Lei Eusébio de Queiróz, proibindo o tráfico transatlântico de
escravos no Brasil, porém entre os anos 1851 e 1856 estima-se a entrada em solo brasileiro, de mais
de 9000 seres humanos africanos escravizados (Alonso, 2015).

O Brasil foi o país que mais importou mão de obra escrava africana no mundo e o que mais
resistiu ao processo de libertação do ‘trabalhador cativo’ (Alonso, 2015); legisladores brasileiros
abolicionistas aproveitaram e efervescência mundial pelo processo de emancipação dos
escravizados, se apoiaram em personalidades e instituições internacionais, o Ilustríssimo Sr.
Senador visconde de Jequitinhonha389, 1865, publicou a obra “Carta do Exmo. e Revmo. Bispo de
Orleans ao Clero de sua Diocese sobre a escravidão”, que ele havia traduzido para o português.

A referida carta, escrita pelo Bispo de Orleans, Félix Dupanioup, em 1862, é um documento
antiescravista, onde o religioso fala do impacto negativo nos Estados Unidos da América, de um
plano de emancipação indenizada, não somente um recado para a sua diocese, mas também, um

389Nome civil: Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, (23/03/1794 - 15/02/1870), nascido na Bahia, formado pela
Universidade de Coimbra (1821), ajudou na fundação da OAB (Ordem dos Advogado do Brasil) e defensor da abolição
da escravatura no Brasil. www25.senado.leg.br, acesso em 05-06-2020.
951

aviso aos sacerdotes e populações de países ainda escravagistas, como o império espanhol e
brasileiro; no final o texto é acrescido de três notas sobre a escravidão nos Estados Unidos da
América, nas Antilhas holandesas e a recomendação de uma emancipação não indenizada no Brasil.
Em um trecho da carta “Meu Deos morreu na cruz por todos os homens, e todavia ainda ha
homens que estão na cruz! Elle morreu para libertar a todos e de toda a escravidão, e ha homens
[...] ha milhões de homens que estão ainda na escravidão.” (p. 5), o bispo apresenta homens negros
e brancos no mesmo patamar de igualdade para a igreja e para Deus, rogando aos religiosos, pelo
processo abolicionista. No mesmo ano da publicação da carta, o ‘Andratista’, visconde de
Jequitinhonha, apresentou 3 projetos antiescravistas no senado, acalorando as discussões
escravistas no ano de 1871.

Outra forma muito usual do Século XIX na participação política, eram as cartas abertas
usualmente destinadas a alguma autoridade política ou instituição, normalmente eram anônimas ou
assinadas com pseudônimos; de acesso livre, comprando nas livrarias ou por meio de assinatura
para recebê-las em suas residências. Diferem dos textos jornalísticos que eram técnicos e dos
panfletos que eram mais ferrenhos, as cartas permitiam uma linguagem mais usual, maior acesso
ao público e por se tratar de assuntos comprometedores, permitiam o incógnito (Alencar &
Carvalho, 2009).

Sob o pseudônimo de Erasmo, o renomado escritor José de Alencar, escreveu e publicou


várias cartas, muitas destinadas ao Imperador D. Pedro II. Em suas cartas constatamos que o autor
era um defensor do sistema escravista brasileiro, em seu escrínio, “Ao Imperador: novas cartas politicas
de Erasmo”, composto por sete cartas, publicado em 1868. Na segunda carta, ‘Erasmo’ corrobora
com o pensamento de Silva (1845), “Proteger, ainda com sacrifício da pátria, os interesses de outros
povos e favonear, mesmo contra o Brasil, as paixões estrangeiras tornou-se desde então a mira
única de vossa incansável atividade” (p. 9), o autor questiona o Imperador sobre sua política interna
e externa, afirmando favorecimento a outros países em detrimento do Brasil, se referindo a
Inglaterra e as suas pressões abolicionistas.

Ainda na mesma carta, observarmos apontamentos contrários ao Dupanioup (1865), ele


afirma que os princípios cristãos ratificam com a escravidão, que alterar esse sistema é alterar o
‘status’ que molda e edifica o país; reforça que para o bem do escravo ele deve permanecer cativo,
intensifica a necessidade da escravatura no Brasil, “A escravidão caduca, mas ainda não morreu;
ainda se prendem á ella graves interesses de um povo. E' quanto basta para merecer o respeito.”
(p. 13), evoca que ainda é usual, necessária e representa os interesses do povo. Apresenta a abolição
como uma afronta ao sistema político, ideológico capitalista, “A liberdade e a propriedade, essas
952

duas fibras sociaes, cahirião desde já em despreso ante os sonhos do communismo.” (p. 13), adotar
esse propósito abolicionista seria contrariar o ideal liberal, um retrocesso cultural, visto que a
salvaguarda da propriedade é um dos alicerces do liberalismo, e os escravos representam essa posse.

Na quarta carta da mesma publicação ele analisa a possibilidade de uma lei que permitisse
que os nascidos de escravizadas fossem livres, onde justifica as implicações que deveriam barrar
esse tipo de lei, “A geração nova, libertada no ventre, era a primeira a revoltar-se para arrancar ao
captiveiro seus progenitores. É quem teria o direito de estranhar nelles o estimulo nobre do amor
filial?” (carta 04, Alencar, 1868, p. 42), neste trecho o autor afirma que libertar os filhos e manter
cativo os pais, iria aumentar o número de revoltas e organizações de fuga, por parte os libertos em
resgate aos seus pais, causando danos aos senhores de escravos e colocando a vida dos senhores
em risco.

No seguimento do texto, ele afirma que a melhor forma de soltura é quando ela acontece
de forma natural e gradual, com o desenvolvimento da civilização, sem desmoralizar o proprietário
e o país, acontecendo de forma natural, ele, o escravo, se sente grato e mesmo livre fica na casa sob
companhia do senhor, sendo um criado. Alencar (1868), afirma que quando acontece por poder da
lei o escravo se revolta e torna-se inimigo do senhor. O futuro Ministro da Justiça390, reforça em
muitos trechos de suas cartas que não cabe ao legislativo o processo de abolição, ele deve ocorrer
de forma gradual e natural, utilizar-se de leis é uma forma de acatar a pressão europeia, sobretudo
inglesa, gerando custos, revoltas e pouco eficaz, estas cartas fomentaram os debates e o ânimos que
antecederam a formulação, votação e sansão da Lei do Ventre Livre.

Votação

O Ano de 1871 foi de grande agitação social e política, o ano começa com dificuldades para
D. Pedro II, no dia 07 de fevereiro, o falecimento de sua filha, Leopoldina de Bragança e Bourbon.
No dia 06 de julho uma inestimada perda para o país, o falecimento do grande poeta abolicionista
Castro Alves; um ano também marcado com a Comuna de Paris e a Unificação da Alemanha, além
das discussões efusivas sobre o Elemento Servil.

Em 1883, o Ilustre Joaquin Nabuco, um dos lutadores ferrenhos pela abolição da


escravatura no Brasil escreveu sua obra O Abolicionismo, uma análise sobre o Elemento servil e a Lei
do Ventre livre. O autor viveu o período e acompanhou os debates, sua obra nos auxilia como fonte

390
As cartas políticas foram publicadas entre 17 de novembro de 1865 e 15 de março de 1868, quatro meses antes de
o autor se tornar ministro da Justiça. (Alencar & Carvalho, 2009, p. 19)
953

de análise para a compreensão dos fatos que antecedem e os posteriores e dos discursos DP1 e
DP2, ambos anteriores a assinatura da Lei nº 2040 de 1871. Nabuco afirma que a escravidão ainda
é uma nodoa na sociedade brasileira e que a libertação dos ‘ingênuos’ seria um processo para
extirpar essa mancha, “que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação,
e para a qual a escravidão, apezar de hereditária, é unia verdadeira mancha de Caim que o Brazil
traz na fronte.” (p. 8), reconhecendo que o cativeiro é desumano e coloca as pessoas em situação
de mercadoria.

O Deputado Malheiro, inicia o DP1, se justificando, explicando que é um assunto


importante; e por muitas vezes foi chamado a plenária para dar o seu parecer sobre o Elemento Servil,
ainda na abertura do discurso ele fala da importância da explanação das ideias e da plenária como
local de debate, “Eu confio bastante na discussão para que, á luz deste debate, melhor possamos
resolver a magna questão” (p. 3), uma colocação que expõe e reforça o seu pensamento e a classe
que representa, “. O dever de homem, de Brazileiro, de representante da nação, o dever de christão,
o dever de soldado da idéa. (p. 3).

O Deputado Uruguai, começa sua pauta, o DP2, reforçando a importância do tema,


queixando-se do procedimento do governo, acusando-o de inconstitucionalidade no tramite da
Lei nº 2040, “No meio das anomalias constitucionaes que temos visto, qualquer facto normal é
uma esperança e uma animação” (p. 6), denuncia uma postura absolutista por parte do governo; e
uma preocupação com o fechamento da Casa do Povo, “Hoje que o uso da palavra é favor
especialissimo do governo, faltaria eu talvez ás conveniências se, ao entrar no debate, deixasse de
manifestar-me em acção de graças por não se ter ainda mandado de vez fechar esta tribuna.” (p.
5); questionando as posições partidária, insinuando que colegas de tribunas estão legislando em
causa própria “Sei, Sr. presidente, que motivos particulares trouxerão á tribuna os dous honrados
membros” (p 6).

A Obra anônima, Analyse e commentario critico da proposta do governo imperial as camaras legislativas
sobre o elemento servil / por um magistrado, do mesmo ano, chama a atenção para a necessidade do
parlamento em rever o Elemento servil e a necessidade história/social para aprovar leis abolicionistas,
o texto aponta o ano de 1871 como o fundamental para as mudanças na legislação do ‘Elemento
Servil’, aponta a maturação nos corações com as leis que antecederam, as provinciais e as imperiais,
“E' tempo de resolver esta questão, e vossa esclarecida prudência saberá conciliar o respeito á
propriedade existente com esse melhoramento social, que requerem nossa civilização, e até os
interesses dos proprietários” (p.10), neste trecho ele se dirige ao Imperador D. Pedro II.
954

Os partidos políticos, não eram coesos na questão do elemento servil, Conservadores,


Liberais, situação e oposição, tinham fortes disputas internas, como Dupanioup (1865), o autor
anônimo, evoca os preceitos cristãos para justificar a abolição, “[...] para esclarecimento e guia da
humanidade as sublimes doutrinas de Christo, do Martyr do Calvário, do Deus humanado,
proclamando que todos Os homens descendiam do mesmo pai, ou eram filhos do mesmo Deus;
[...] (p. 4), evocando a igualdade entre os homens, ele tira a insígnia de peças ou coisa, e ser refere
ao elemento servil, como ser humano, ambos clamam aos homens que se dizem religiosos pela defesa
da abolição.

No DP1, o Deputado apresenta motivos para que o projeto de lei não seja aprovado,
informa que a proposta não deveria sequer ser apresentadas " Eu começarei, senhores, por não
approvar que o governo tivesse apresentado a proposta, ora em discussão” (p. 4), cita dois
principais motivos para não aprovação da lei: 1º “pelo estado político em que o paiz em breve teria
de achar-se (p. 4); 2°, “econômico e de segurança” (p. 4). Justifica o motivo número um, a ausência
física do Imperador, que viajara para a Europa alegando questões de saúde da imperatriz, deixando
a cargo da Senadora e Regente Princesa Isabel; afirma que a importância do assunto demanda
politicamente da presença do imperador que na sua ausência o tema não deveria entrar em pauta.
No contexto econômico e de segurança, afirma que por motivo do recente término da Guerra do
Paraguai, o país de encontra com um déficit econômico muito elevado391 e com o exército
desguarnecido, destaca ainda as questões agrárias, comerciais e industriais, que em grande parte
funcionam com mão de obra escrava, e sobre a segurança ele força o temor pela segurança
individual dos proprietários de escravos e dos próprios escravos.

Em sua obra Pinto (1871), dedica-se exclusivamente em uma questão que também foi
levantada por Malheiro no DP1, a viagem de D. Pedro II à Europa em meio ao processo de
apreciação e voto para aprovação da lei, porém Pinto (1871), demonstra maior desagrado e por
vezes deboche em suas colocações, “Era justo que o heroe de Uruguayana, quizesse mostrar-se á
velha Europa, elle que acabava de terminar uma luta caprichosa e desgraçada, elle que dera
inequivocas provas de um dennodo e bizarria inexcediveis, [...]” (p.4), acusa que o interesse escuso
da viagem do imperador está em se vangloriar da vitória da Guerra do Paraguai, ainda segundo ele,
uma vitória que causa mais vergonha do que orgulho, visto os gastos, números de mortos e o
capricho do Imperador em só findar o confronto após a morte de Solano Lopez, prorrogando a
guerra e os gastos em demasia.

391A despeza extraordinária da guerra do Paraguay, liquidada até ha pouco, orça por 386,000:000$. A nossa divida
publica eleva-se a 640,000:0008, cujo serviço, isto é, juros e amortização, absorve um terço da renda do Estado,
calculada em 90,000:0008; os juros andão por 25,000:0008 e a amortização por 5,000:0008 ou mais. (DP1, p6)
955

No DP2, o Presidente da câmara é interpelado pelo orador, questionou-o o motivo de se


utilizar de grandes nomes da literatura para justificar a lei abolicionista392 do Ventre Livre, o autor
aconselha que o presidente teria melhor proveito para o país, se, estudasse sobre doutrina
constitucional, que o Sr. presidente deveria retomar a boa prática do serviço representativo, pois, a
casa carece de uma liderança “A esterilidade da sessão é devida á falta de direção em que tem estado
a câmara.” (p. 9). Recomenda ainda, que as discussões sobre o Elemento Servil não ocupem o tempo
da Câmara, visto que ela apresenta outras urgências, “tendo recusado o alvitre prudente que lhe
propuzemos no voto de graças de afastar do terreno político a reforma servil.” (p. 10).

O autor Anônimo (1871) em sua obra, indica um panorama diferente, afirma os benefícios
do apoio do parlamento inglês, pela libertação dos escravizados, e o reforço que foi a lei Eusébio de
Queiroz, reconhece porém, dois entraves para sua maior efetivação, primeiro a contenção do tráfico
ilegal e depois, a procriação interna de cativos. Ele apresenta quarto possibilidades para a solução
dessa problemática: 1.° a emancipação total e imediata, como fizeram os ingleses, 2.° a emancipação
gradual ou sucessiva pelo resgate de certas classes mais ou menos preferidas; 3.° a emancipação
pelos nascimentos; 4.° A adoção do sistema, emancipação total e imediata indenizatória.

Das quatro possibilidades a primeira que ele descarta é a número 4, visto que o erário
nacional não seria capaz de sanar tais débitos393, questiona ainda sobre a ordem e segurança social,
“conservarem-se quedos, respeitarem a ordem publica, e mostrarem por sua conducta pacifica
reconhecidos á mão, que os arrancava dé um estado excepcional, e os igualava a todos os cidadãos,
e a seus próprios ex-senhores?” (p. 10), afirma que o Estado não possui uma estrutura necessária
para inserir socialmente todos os escravizados se fossem libertos de uma só vez, excluindo assim a
1ª hipótese. Para a 2ª, o autor afirma não surtiria tanto efeito, ou seria inteiramente nula, visto o
prazo que levaria para ocorrer, mesmo que os proprietários fossem libertando gradualmente, e os
que continuassem cativos? E os filhos dos cativos seriam cativos? Seria um processo interminável,
assim a segunda hipótese também não seria viável.

Restando somente a terceira hipótese, a emancipação pelo nascimento, se o tráfico é


barrado com a Lei Eusébio de Queiroz e o nascimento de novos cativos é o que mantem o sistema,

392 Não me consta, Sr. presidente, que Lamartine, Ventura de Raulica e os mais escriptores citados pugnassem pela
liberdade dos ventres, e por medidas análogas ás da proposta. Que vêm elles, pois, faze nesta discussão"? (DP2, p. 9).
393
Montando a população escrava existente em 2.000.000 de indivíduos de todos os sexos, e idades, conforme os
cálculos de pessoas praticas, devendo avaliar-se cada um em 600$ mais ou menos, e devendo ser indemnizados todos
os senhores desses escravos previamente, como prescreve a constituição do Império para a desappropriação de toda a
propriedade, aonde iria o Estado buscar um bilião e duzentos mil contos, para que satisfeitofosse o preceito
constitucional? (Analyse e comentário crítico, p. 10)
956

a melhor forma proceder, seria a libertação dos nascidos a partir de uma determinada data394,
reforçando assim a importância de uma Lei que assegure que os nascidos sejam livres, assim, uma
lei auxiliaria na aplicabilidade da outra. Nabuco (1883), afirma que uma das dificuldades
encontradas no período da elaboração e votação da referida lei, é o hediondo e lucrativo comércio
com os nascimentos, “Cada ventre escravo dava ao senhor três e quatro crias que elle reduzia a
dinheiro; essas por sua vez multiplicavam-se, [...] (p. 137), justificando que a emancipação dos
ingênuos, só seria possível por força de lei e que esta seria uma forma de ir extinguindo a escravidão.

Em relação à postura do Imperador nas discussões da emancipação do Elemento Servil,


Pinto (1871), narra um homem escravagista, cruel, que intenciona se passar por abolicionista, um
covarde que deixou a própria filha a mercê de resolver tamanho problema, contrariando o autor
incógnito de Analyse e comentário crítico, que afirma que o ano (1871) e o governo atual são a junção
efetiva para sansão da lei, Alencar, sob a alcunha de Erasmo, mesmo criticando as leis e a abolição,
reconhece que cabe ao imperdador promulgar as devidas leis e deve se posicionar sobre elas, “A
elle pois, á elle somente e a ninguém mais compete resolver em ultima instância esta questão da
própria dignidade.” (Alencar, 1867, carta , p. 4), Malheiro (1871), menos voraz que Pinto (1871),
também se posiciona contrário ao imperador pela sua ausência no país.

Sob o projeto de lei, Uruguai, no DP2, acusa que os articuladores em favor da emancipação,
usam de maneiras escusas e inconstitucionais para conseguir a adesão do Imperador e forçar a
aprovação da lei, “Em Janeiro de 1866 o Sr. Visconde de S. Vicente, conselheiro de estado,
apresentou ao Imperador vários projectos no intuito de realizar a abolição da escravidão,
aconselhando a Sua Majestade a iniciativa pessoal em semelhante assumpto de competência
legislativa.”; ele segue reforçando que o processo não seguiu os tramites legais, “Em primeiro lugar
não é nas mãos do Imperador e sim na mesa do senado que um senador do Império deve apresentar
projectos de lei. (Muitos apoiados, muito bem.).” (p. 30).

Uruguai, questiona ainda o uso do Poder Moderador, afirma que os Consultores do Estado,
possuem poderes, consultivos e que não cabe intervir diretamente no Legislativo, em meio a sua
fala é interpelado pelo Deputado Araújo Lima, “O que não se pôde negar é o direito que tem o
conselheiro de estado de intervir.” (p. 30), seguro de sua fala ele, Uruguai, continua “É uma
corporação consultiva, sem acção espontânea e propria, chamada a aconselhar o Imperador no
exercício do poder moderador” (p. 30), ele segue com sua linha de raciocínio, “O Imperador que

394
As gerações futuras nasceriam sob o sol da liberdade, e animadas por elle fortificariam a nacionalidade do
império, fazendo, um só todo com as, outras raças, porque todos teriam por lei ôs mesmos direitos e os mesmos
deveres. (Analyse e comentário crítico, p. 13).
957

no exercício do poder moderador intervém nos actos legislativo por meio da sancção ou do veto.
está pela constituição excluído da iniciativa.” (p. 31), uma tentativa de vetar a votação da lei. Já o
professor baiano Furtado (1882), em seu estudo Estudos sobre a libertação dos escravos no Brazil, afirma
que o Imperador nunca ultrapassou os limites da constituição nacional395.
O DP1 de Malheiro consistia em vetar o projeto, em sua oratória ele alegava motivos,
econômicos, sociais e constitucionais, sob tutela e apoio dos Conservadores que o elegeu. Na
finalização da sua fala reforça, sobretudo que a lei era um de um só partido396, não respeitando os
procedimentos políticos, afirma que aprova-la é criar um sistema de semiescravidão, visto que o
projeto determina que os nascidos a partir da assinatura, são livres, mas, devem permanecer em
regime de servidão ao senhor de sua mãe; declara-se um abolicionista, “O que eu desejo é que
passemos da escravidão para a liberdade.” (p. 49), a firma que só concordaria com a emancipação
total e extinção do sistema escravista, porém assegura que o país não tem as condições necessárias
para o fazer397. No acréscimo do tempo, em seu último adentro, ele conclui clamando, que aprovar
o projeto tal como está escrito ou no prazo determinado é extremamente prejudicial ao país, aos
legisladores e aos escravos.

Pinto (1871), não se atêm as especificidades do projeto, sua oratória, é utilizada para
desacreditar o monarca, finaliza pedindo que o Imperador, permaneça na Europa398, o signatário
do Manifesto Republicano (1870), utilizando dos percalços causados pela Lei Rio Branco, para aquecer
o ideal republicano e repudiar a monarquia; logo depois ele se dirige aos Fazendeiros, ainda com
seu tom peculiar, afirma entender a ira dos lavradores, pois, a Lei do Ventre Livre é descabida, porém,
diz não atestar a forma que alguns fazendeiros tratam seus escravos ou os meios que utilizam para
a continuidade da escravidão, acusa o Imperador de não preparar os seus compatriotas para a
emancipação sem grandes perdas financeiras, ele espera que os lavradores entendam que a
escravidão deve findar e acredita esse feito dever competir aos lavradores, que gradativamente eles
libertem seus escravos.

395
Este facto que por si so, quando nào fosse conhecido o amor à patria pelo nosso Monarcha, que jàmais ultrapassou
as raias que lhe sào prescriptas pela Constituigào, (...). (Furtado, 1882, p. 30).
396
Em pareceres do conselho de estado se diz qne esta questão não pôde ser resolvida por um só partido, nem por
um só ministério. Porventura a abolição do trafico foi obra de um só ministério, de um só partido? Nem mesmo na
ultima phase. O partido conservador promulgou a lei de 1850; mas, depois, outras leis forão expedidas. Já anteriormente
tinha-se promulgado a lei de 1831, além de outros actos, mesmo internacionaes. Em nenhum paiz do mundo isto se
fez. (Malheiro, DP2, p.51)
397
“Esta, sim, será a ultima palavra ; mas quando as circumstancias do paiz a comportem” (Malheiro, DP2, p. 51)
398
“Mandar buscar para juncto de vós a regência que aqui deixastes, mandar buscar vossa imensa bibliotheca, vossos
fardões, vossas commendas, vossos lacaios e deixai-nos aqui tranqüilos, porque dizemo-lo francamente, não recisamos
de vós.” (p. 14).
958

Aprovado e Sancionado

Aos 28 de setembro de 1871, foi decretada e sancionada a Lei nº 2.040, publicada pela Typ.
Americana, largo do Palácio n. 2, em 1872, assinada pela Princesa Imperial Regente, em nome de
Sua Majestade o Sr. D. Pedro II. “Declara de condição livre os filhos de mulher escrava, que
nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da nação e outros, e providencia sobre a criação
e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação annual de escravos.” (Brasil, 1872, p. 3).

Formulada em 50 páginas mais anexos, bem estruturada judicialmente, fruto dos discursos
e elucubrações legislativas, a referida lei versava não somente na libertação dos nascidos de ventre
escravo, mas de seu acompanhamento nos primeiros anos de vida, do ressarcimento aos senhores
que custariam seus sustentos nos anos iniciais, no direcionamento dos libertos e as tabelas (anexas
a lei) ajudaram no cadastro e recenciamento da população escrava/liberta.

Observa-se no documento o reconhecimento da família escrava, onde o conceito de família


era somente mãe e filhos, visto que a figura paterna era pouso reconhecida, pois, os pais
normalmente eram vendidos separados, trabalhavam em outras localidades e quando filhos
ilegítimos dos senhores por meio de estupros ou concubinatos, quase nunca eram reconhecidos,
restando assim a mulher o papel da linhagem familiar (Reis, 2001). As crianças ficariam com suas
mães até os 8 anos completos, sob autoridade do senhor da mãe, antes de findar os oito anos o
senhor teria a poção de receber uma indenização399 ou se utilizar dos serviços do menor até ele
completar 21 anos, caso o senhor opte pela primeira hipótese o menor será encaminhado para o
governo lhe dar destino, o pagamento da pecúnia, também pode ser feito antes do previsto, por
outro em seu favor ou de valores reunido por ele em prestações de serviços.

A Lei também ‘ampara’ os filhos dos filhos que estiverem ainda sob a tutela do senhor,
ficando este a cargo de seu sustento e poderá utilizar de sua mão-de-obra, se extinguindo o vínculo
quando a mãe for liberta, caso de venda da mãe o novo senhor arca com as mesmas
responsabilidades do antigo senhor não havendo mudanças para os prazos, Na segunda hipótese
da criança ser destinada ao governo este, poderá encaminha-las a entidades autorizadas, estas
poderão se utilizar de seus serviços gratuitos até o menor completar 21 anos de idade. Sobre a
libertações anuais, serão libertados, em cada província, o percentual relativo ao fundo400 destinado
para a emancipação.

399 Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da idade terá a opção, ou de receber do Estado a indemnisação
de 600$, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. (Brasil, 1872, p.4)
400 § 1 ° O fundo da emancipação compõe-se: 1. ° Da taxa de escravos. 2. ° Dos impostos geráés sobre transmissão de

propriedade dos escravos. 3. ° Do producto de seis loterias annuaes isentas de impostos, 6 da décima parte, das que
959

A lei proibia a dissolução da família e uma possível ‘amplitude do conceito família’ para os
negros dentro da legalidade, “Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos é
prohibido, sob pena de nullidade, separar os cônjuges, e os filhos, menores de 12 annos, do pai ou
mãi.” (Brasil, 1872, p. 9), protegendo-os inclusive em casos de partilhas de bens, resguardando a
unidade familiar e alargando o conceito de ‘família escrava’. A Lei versa sobre os escravos
pertencentes a nação, eles seriam considerados livres, o estado daria a ocupação que julgar
conveniente, também seriam considerados livres escravos das heranças vagas ou abandonados
pelos seus senhores, se fossem abandonados por invalidez caberia ao estado subsidiar a
alimentação. Por determinação do Artigo 8, a cora brasileira procederá com um recenciamento dos
escravos do império, matriculando401 todos os escravos, com o detalhamento de suas condições,
filiação, aptidão para o trabalho, sexo. O escravo não matriculado em um período de um ano seria
considerado livre, também serão matriculados os nascidos livres. Ficando a cargo do secretário de
estado dos negócios da agricultura, comércio e obras públicas a divulgação e execução da lei.

Na análise de Furtado (1882), a lei deveria ser mais elaborada, sobretudo no cuidado com
os nascidos, ele acredita que deixa-lo sob tutela do senhor ou em uma instituição que não esteja
prepara para recebê-lo é perpetuar o estado de sub cidadão, “O liberto, em consequencia de sua
educação primitiva, nunca poderá passar de um mào operario ou de um pessimo criado, (...)” (p.
34), sugere a criação de centros ou asilos, sob a guarda da Santa Casa de Misericórdia, e a aceitação
dos novos libertos no exército ou na armada. Uma preocupação está na substituição da mão-de-
obra escrava na agricultura por mão de obra chinesa, o que o autor afirma ser um retrocesso.

Nabuco (1883), afirma que a lei de 1871, abriu, porém não facilitou a vida dos novos
libertos, primeiro que o resgate força pelo pecúlio, só incluiria os oriundos das cidades, pois na
zona rural dificilmente encontraria serviços para oferecer seus trabalhos, se não com o próprio
senhor e segundo que seria a loteria também não se efetiva, pois, o número de sorteio seria ínfimo
em relação aos libertos ainda cativos. Tal como o termo ‘pra inglês ver’ ele afirma que em nada
mudou a vida dos escravos com a referida lei “fiquem elles entregues ao destino que a lei lhes
traçou, e ao poder do senhor tal qual, é, e a morte continuará a ser, como é hoje, a maior das
probabilidades e a única certeza que elles têem de sahir um dia do captiveiro.” (p. 37), o forte relato
de Nabuco aponta a ineficiência da lei e a manutenção do sistema escravagista, o cativo ainda seria

forem concedidas d'ora em diante para correrem na capital do Império. 4. ° Das multas impostas em virtude desta lei.
5. ° Das quotas que sèjão marcadas no orçamento geral e nos provinciaes e municípaes. 6. ° De subscripções, doações
e legados com esse destino. (Brasil, 1872, p. 7)
401
§ 3. ° Pela matricula de cada escravo pagará o senhor, por uma vez somente, o emolumento de 500 réis, se o fizer
dentro do prazo marcado, e de 1$ se exceder o dita prazo. O producto deste emolumento será destinado ás despesas
da matricula, e, o excedente, ao fundo de emancipação. (Brasil, 1872, p. 11).
960

visto como um animal de carga e sob posse do seu senhor, chama a atenção para o cotidiano dos
seres que viviam sob essa égide:

Ninguém compete em sofírimento com esse orphão do Destino, esse engeitado


da humanidade, que antes de nascer estremece sob o chicote vibrado nas costas
da mãe, que não tem senão os restos do leite que esta occupada em amamentar
outras creanças pôde salvar para o seo próprio filho, que cresce no meio da
abjecção da sua classe, corrompido, desmoralizado, embrutecido pela vida da
senzala, que apprende a não levantar os olhos para o senhor, a não reclamar a
minima parte do seu próprio trabalho, impedido de ter uma afleição, uma
preferencia, um sentimento que possa manifestar sem receio, condemnado a não
se possuir a si mesmo inteiramente uma hora só na vida e que por fim morre sem
um agradecimento d'aquelles para quem trabalhou tanto, deixando no mesmo
captiveiro, na mesma condição cuja eterna agonia elle conhece, a mulher, os
filhos, os amigos se os teve! (p. 40-41)

O Manifesto da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro, organizado por Patrocínio (1883),


nomeia os políticos envolvidos da elaboração/aprovação da lei402, destacando a figura do Barão
Rio Branco, “A lei de 28 de Setembro não existiria, se, do alto do throno, não viesse sustentar o
braço do estadista a confiança patriótica de Sua Magestade o Imperador.” (p. 15), denunciando a
forte oposição dos fazendeiros e dos deputados que os apoiavam.

O texto do Manifesto deflaga uma sociedade escravagista que não se conformou com a lei
e que por muitas vezes atentam contrário a ela, os rebentos são retirados dos seios de suas mães e
entregues instituições que recebem as crianças e não as alimentam de maneira condizente,
subnutridos e muitos sendo levados a óbito, as que resistem são criadas como escravas para ser
escravas, não sendo preparadas para a vida em sociedade, denuncia ainda a exploração dos escravos
de ganho e o aumento da prostituição da mulher negra, conclamando a abolição total para todos
os escravos.

Prática dos dias

Não nomearemos de conclusão, pois, primeiro o estudo ainda permite e necessita de


maiores aprofundamentos, rever mais fontes, encontrar mais documentos, ouvir outros atores;
segundo porque esse é um princípio de uma pesquisa que será mais alargada e principalmente
porque, mesmo, hoje a população negra ainda é ‘cativa´ no Brasil. Hoje as correntes não são mais
de aço, são moldadas no preconceito e na ignorância, os senhores não são mais os proprietários da
vida, são proprietários do capital, chefes políticos e donos de empresas; muitos negros e negras

402
Entretanto no numero desses evangelizadores estavão José Bonifácio, o maior collaborador na obra da nossa
nacionalidade; Tavares Bastos uma das mais poderosas organizações intellectuaes da nossa pátria. (Patrocínio et al.,
1883, p.15)
961

ascenderam socialmente, mas o processo truncado de emancipação do Elemento Servil, deixou suas
marcas na sociedade brasileira, que apresenta características patriarcais, colônias e separatista.

O estudo apresentou a importância das fontes primárias, de adentrar aos


arquivos/documentos, na sua maneira mais pura, conforme eles foram produzidos, entender a
quem eles eram destinados e quem os produziu, para ressignificar a História é fundamental voltar
ao ponto de partida da linha temporal determinada pelo estudo, compreender a importância do
legislativo na formação social e como ele reverbera no cotidiano.

A Lei do Ventre livre, ainda que efetivamente, não, apresentou grandes melhorias na vida dos
cativos, foi fundamental para reforçar o discurso abolicionista e para força a assinatura da Lei
Áurea, compreender essas particularidades e as relações dessas leis, desse movimento e como ele
repercutiu na sociedade moderna brasileira e seus reflexos na sociedade contemporânea é um
esforço para estudos próximos.

Fontes

Anônimo. Analyse e commentario critico da proposta do governo imperial as camaras legislativas sobre o
elemento servil / por um magistrado. Rio de Janeiro, Brasil: Typographia Nacional, 1871.

Brasil. Lei no 2.040 de 28 de setembro de 1871 sobre o estado servil e decretos regulando a sua execução.
http://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4223 (25 de maio de 2020), 1872.

Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. Discurso proferido na Sessão da Camara Temporaria de 12 de


Julho de 1871 sobre a proposta do governo para reforma do estado servil. Rio de Janeiro, Brasil: Typ. Imp. e
Const. de J. Villeneuve & C, 1871.

Pinto, Alfredo Moreira. A viagem imperial e o Ventre Livre. Rio de Janeiro, Brasil: Typ. de J. Lobo
Vianna, 1871.

Uruguai, Paulino José Soares de Souza. Discurso proferido na sessão de 23 de agosto de 1871 sobre a
proposta do governo relativa ao elemento servil pelo conselheiro ... Deputado pelo 3o districto da provincia do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, Brasil: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C, 1871.

Referências
Alencar, José de. Ao Imperador: novas cartas politicas de Erasmo. Rio de Janeiro: Pinheiro, 1867.
________. Voto de graças: Discurso que devia proferir na sessão de 20 de maio o deputado J. de Alencar. Rio
de Janeiro, Brasil: Pinheiro, 1873.

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Academia Brasileira de Letras, 2009.

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963

O debate historiográfico acerca do Contrailuminismo

José Lourenço de Sant’Anna Filho*

Resumo: este trabalho é resultado de estudos iniciais acerca do conceito e da História da


Historiografia do “Contrailuminismo”. Este movimento de crítica à filosofia Iluminista surgiu na
França ao longo do século XVIII e foi muito popular nos meios acadêmicos e religiosos da época,
no entanto, permaneceu esquecido pela historiografia. Na década de 1970, o prestigiado historiador
das ideias Isaiah Berlin publicou um ensaio no qual utilizou a expressão “Counter-Enlightenment",
e ao ser perguntado sobre a origem do termo, Berlin disse: “Could it be myself?”. É consenso que
Berlin foi um dos primeiros a cunhar este termo e inserir o debate nos meios acadêmicos da
História das Ideias, no entanto, será que a conceituação de Berlin permanece atual? Historiadores
como Didier Masseau, Graeme Garrard e Darrin McMahon discordam dessa definição e têm
realizado estudos com o propósito de ressignificar esse conceito. O objetivo deste trabalho é
entender o “Contrailuminismo” e expor o debate historiográfico acerca do tema.

Palavras-Chave: Contrailuminismo, Anti-Iluminismo, Isaiah Berlin, Historiografia, Counter-


Enlightenment.

O que é o Contrailuminismo? Responder a essa pergunta não é uma tarefa fácil, haja vista
que podemos estabelecer, no mínimo, três interpretações acerca deste assunto.

Em primeiro lugar, há a clássica interpretação do historiador das ideias Isaiah Berlin que
difundiu o Contrailuminismo do século XVIII como a gênese de movimentos totalitários na
Europa do século XIX, fazendo um uso mais genérico do termo e associando-o às múltiplas críticas
da modernidade como a luta entre o monismo e o pluralismo. (McMahon, 2017). Contudo,
segundo McMahon, “a interpretação de Berlin como um relato histórico de oposição ao
Iluminismo não foi satisfatória” (McMahon, 2017, p. 35).

Em um segundo momento, há a interpretação sobre o Contrailuminismo como um


“movimento” do próprio século XVIII, contemporâneo aos filósofos ilustrados e que tinha como
principal característica a crítica aos escritos filosóficos, sobretudo às ideias, que segundo os críticos,
eram abstratas. Eles criticavam a exegese da razão, a ideia de natureza e o conceito de liberdade,
além de serem opositores às críticas dos filósofos à Igreja. As pesquisas das últimas décadas
desenvolvidas nesse viés têm impulsionado diversos debates acerca do assunto que, malgrado tenha
sido renegado pela historiografia, é profícuo ao revelar detalhes sobre o pensamento contrário e

* Bacharel e licenciado em História pela Universidade de Brasília (UnB).


964

sobre o próprio Iluminismo. Nesse sentido, estão os textos dos historiadores Darrin McMahon,
Didier Masseau e Graeme Garrard, para citar apenas alguns.

E por fim, o recente debate que postula que sequer houve um movimento Contrailuminista
no século XVIII. Essa visão é representada pelos pesquisadores Jeremy Caradonna, Zeev Sthernell
e Robert Norton. Para esses historiadores, essa é uma “ideia contemporânea que tentou utilizar o
Contrailuminismo como uma explicação histórica para a Contrarrevolução e como a gênese dos
movimentos totalitários do século XX” (Caradonna, 2015, p. 56).

Essas interpretações, por conseguinte, têm sido bastante atacadas por McMahon e por
Graeme Garrard. O foco, nesse sentido, estará voltado ao debate entre os “revisionistas” que
defendem a não existência do Contrailuminismo, e os historiadores McMahon e Garrard, principais
pesquisadores sobre as manifestações do Contrailuminismo na Europa do século XVIII. Berlin é
visto pelas duas “correntes” como o precursor deste debate.

Posto isso, o objetivo desse trabalho será o de apresentar essas três visões a respeito do
Contrailuminismo por meio de uma análise historiográfica acerca do assunto e, por último, analisar-
se-ão dois pontos: a) Se a visão de Berlin sobre o assunto permanece atual e b) Se os recentes
debates a respeito da não existência do Contrailuminismo têm algum sentido sob uma perspectiva
histórica do conceito e do movimento. A fim de embasar essa análise, recorreremos aos artigos
publicados nesse sentido.

Berlin e o Contrailuminismo

A visão de Berlin a respeito do assunto foi publicada pela primeira vez em 1973 por meio
do seu ensaio “The Counter-Enlightenment” no Dictionary of the History of Ideias. Berlin identificou
o movimento contrário ao Iluminismo ainda no século XVIII, centrado, sobretudo, em “pessoas
ligadas à Igreja e contrário às ideias de razão e aos métodos de ciências naturais” (Berlin, 2001, p.
45), contudo, “Isaiah Berlin não inventou o termo, tampouco o conceito do Contrailuminismo, no
entanto, ele se apropriou dele e o imbuiu com a sua interpretação” (Lilla, 2003, p. 7). Esta
interpretação estava diretamente interligada ao contexto político da Guerra Fria em que havia a
tendência de entender a história sob a perscpectiva do mundo bipolar, da luta entre a direita e a
esquerda. Berlin, ao representar as origens do Contrailuminismo, tentou ligar esse movimento de
ideias às origens do fascismo. Nesse sentido, de ligação entre autores do século XVIII às origens
do totalitarismo, Berlin tem um importante ensaio intitulado: “Joseph de Maistre and the Origins
965

of Fascism”. Para I. Berlin, o conde saboiano, em algum grau, apresenta-se como a gênese do
movimento fascista italiano.

Em sua interpretação sobre filósofos do século XVIII, Berlin identificou o


Contrailuminismo em suas manifestações pós-revolucionárias. Na França, com os textos de Louis
de Bonald e Joseph de Maistre e na Alemanha, onde segundo Berlin a corrente Contrailuminista
foi mais expressiva, por meio dos escritos dos alemães J.G.A Hamann, J.G Herder e Friedrich
Jacobi. Na Itália, Berlin recorreu aos escritos de Giambatisti Vico. Segundo Berlin, nesses autores,
sobretudo nos alemães, encontram-se as bases teóricas do Romantismo.

A interpretação de Berlin não faz uma análise do Contrailuminismo de forma precisamente


demarcada no tempo “Era, no entanto, em sua maior parte, cuidadosamente delimitado no espaço.
Enquanto o Iluminismo para Berlim foi um assunto predominantemente francês, o Contra-
Iluminismo foi excessivamente alemão.” (McMahon, 2001, p. 8). O historiador reuniu autores
distantes temporal e geograficamente para representar os inimigos do Iluminismo, no entanto,
como teoriza McMahon, “esses pensadores seriam melhor caracterizados como membros do
Iluminismo do que do Contrailuminismo.”(McMahon, 2017, p. 35).

As grandes críticas de Berlin ao Iluminismo estão relacionadas à defesa de verdades


absolutas e de uma razão universal que não aceita o contraditório. “O projeto essencial do
Iluminismo é buscar a 'solução final' para conhecimentos e valores válidos em todos os momentos
e em todos os lugares”. (Garrard, 2007, p. 288). “As catástrofes políticas dos últimos dois séculos
começaram, na visão de Berlin, com a fase do Terror”. (Berlin apud Garrard, 2007, p. 288). “A
conexão entre o Iluminismo e o Totalitarismo recai no fato de que ambos, ao defenderem o
monismo, acabaram com quaisquer ideias contrárias que não se encaixassem em seus projetos.”
(Garrard, 2007, p. 290) A exegese da razão instrumental, portanto, acabaria por considerar
inferiores e ineficazes os pensamentos contrários a elas. Como ressalta Cassimiro “Berlin apresenta
uma visão do Iluminismo e de sua reação, que ele nomeia de Contrailuminismo, a partir do
argumento sobre o universalismo da razão contra o particularismo da história.” E conclui que:

se o mundo é governado por princípios universais e inalteráveis que regem não


só a natureza como os eventos da vida humana, e a descoberta desses princípios
pode garantir a compreensão dos fins de épocas e civilizações, o ataque à crença
na capacidade humana de descobrir esses princípios constitui a mais fértil e
intelectualmente influente reação à modernidade. (Cassimiro, 2015, p. 68).

Berlin conclui que o “Iluminismo falhou por conta das contradições entre o monismo e a
sua crença na defesa da liberdade individual.” (Berlin apud Garrard, 2007, p. 282). O
Contrailuminismo é a mais importante influência do pensamento europeu, pois é a crença de que
966

a ciência e a razão não têm todas as respostas. “O que une Vico, Herder, Burke e Maistre, nessa
visão, é o seu discernimento sobre a falha reducionista no cerne do Iluminismo.” (Berlin apud
Garrard, 2007, p. 288). Enquanto o Iluminismo defende o monismo, os seus críticos, em contraste,
defendem o pluralismo das ideias.

O Contrailuminismo no século XVIII.

Para os historiadores Darrin McMahon, Graeme Garrard e Didier Masseau, conquanto


existam manifestações contrailuministas em diversas áreas da Europa ao longo dos séculos XVIII
e XIX, foi na França onde esse movimento tornou-se um fenômeno grandioso. Além do mais, é
possível inscrevê-lo, tal qual o Iluminismo, em dois momentos: o anterior e o posterior à Revolução
Francesa. No período anterior, jornais e livros surgiram com o intuito de atacar a filosofia das
Luzes, “calcula-se que mais de duzentos mil livros foram impressos com esse objetivo.”
(McMahon, 2001, p. 24). Havia, inclusive, prêmios patrocinados pela Societé des amis de la religion et
des lettres destinados aos melhores trabalhos que defendessem a religião. Jornais como Année littéraire,
Journal historique et littéraire e o Journal Ecclésiastique eram os principais responsáveis pela disseminação,
na França, das ideias contrailuministas, dos defensores da religião.

“O jornalista Élie Catherine Fréron teceu severos comentários ao pensamento de Voltaire,


acusando-o de covarde, malfeitor e miserável.” (McMahon, 2001. p. 24). Os professores
universitários da Sorbonne temiam que os textos dos philosophes destruíssem a religião, a autoridade
e o poder dos reis. “O ‘status’ social que os philosophes alcançaram na França, recebendo cargos
públicos, frequentando os grandes salões, as academias literárias e científicas provocaram a fúria
de pessoas ligadas às altas classes da sociedade.” (McMahon, 2001, p. 24). Os philosophes estavam
frequentando círculos sociais que não os pertenciam. Boa parte desses críticos pertenciam à Igreja
Católica. Religiosos como os abades Gaultier, Chaudon e Yvon, publicavam textos criticando os
livros e as ideias defendidas pelos filósofos. O abade Gaultier, por exemplo, criticou severamente
os textos de Montesquieu, alegando que seu livro era um perigo para o Estado e para a Igreja e
precisava ser censurado. “O abade Chaudon, por sua vez, criticou o dicionário filosófico publicado
por Voltaire em 1764, publicando em resposta, o Dictionnaire anti-philosophique em 1767. Já o abade
Yvon, que mesmo tendo colaborado com a Encyclopédie de 1751 escrevendo os verbetes athée e âme,
não hesitou em publicar críticas à Rousseau.” (Masseau, 2000, p. 25).

No período posterior à Revolução Francesa, os contrailuministas associaram-se ao


movimento contrarrevolucionário. Na fase do Terror, o movimento antifilosófico tomou novas
formas. Muitos intelectuais que no momento das reuniões dos Estados-Gerais haviam apoiado a
967

Revolução que pretendia, em princípio, levar a França às reformas na monarquia, desaprovaram


enfaticamente a fase do Terror. Os intelectuais buscaram entender os motivos pelos quais as
pacíficas reuniões dos Estados-Gerais haviam se transformado em uma total desordem social e
política. Entretanto, para os anti-iluministas, que desaprovaram a Revolução desde o princípio, os
motivos estavam bem claros: “havia sido a pretensão dos filósofos iluministas em destruir a Igreja
e acabar com a monarquia. Segundo os anti-iluministas, Deus estava punindo todos aqueles que
haviam blasfemado contra Ele; a vingança divina estava destruindo toda a incredulidade do Século
Filosófico.”(McMahon, 2001, p. 57).

O francês Joseph de Maistre foi um dos primeiros a interpretar as causas da Revolução pelo
viés da punição. Augustin Barruel, por sua vez, viu que a Revolução foi muito mais do que apenas
uma intervenção divina para punir aqueles que haviam atacado à Igreja, ela havia sido premeditada
pelos filósofos. “Essa interpretação de complô foi defendida pelo religioso Jean-Baptiste Gaultier”
(Masseau, 2000, p. 21). Ele também acreditava que a Revolução Francesa havia sido criada pelos
filósofos iluministas. Ademais, essa interpretação foi tão forte no período pós-revolucionário que
houve “censores do Vaticano que usaram essa ideia, concluindo que o objetivo dos philosophes era
destruir o Antigo Regime.” (McMahon, 2001, p. 63).

Não se pode afirmar, todavia, que as críticas compunham um projeto unificado de


destruição dialética e material dos filósofos europeus, tampouco pode-se dizer que havia uma
dicotomia entre o Iluminismo e o Contrailuminismo, como Darrin McMahon salienta: não há um
binarismo entre Contrailuminismo e Iluminismo, esses dois movimentos são múltiplos e cheios de
questões importantes (McMahon, 2017).

Esses estudos mostram que o movimento anti-philosophe – para usar um termo do próprio
século XVIII – foi um movimento que recebeu uma considerável atenção à época, o que resultou
na publicação de muitos textos que criticavam os grandes filósofos das Luzes. É importante
ressaltar que a mesma imprecisão que existe na concepção de Iluminismo também está presente
no Contrailuminismo. Nenhum dos dois construiu-se como movimentos uníssonos, essas duas
correntes eram compostas por diferentes pensadores que, embora estivessem ligados pelas
insatisfações em relação às ideias abstratas do Século das Luzes, não estavam de acordo em todos
os aspectos.

Sabe-se que essa é uma visão estereotipada e reducionista do movimento filosófico, não
obstante, para atacá-los, os seus críticos construíram essa imagem do movimento iluminista como
o defensor da exegese da razão. “A homogeneização desses dois grupos foi construída por meio
dos seus respectivos adversários” (Kirschner, 2009, p. 290). “O Iluminismo foi construído e
968

atacado por seus inimigos tanto à direita quanto à esquerda” (Garrard apud McMahon, 2017, p.
37).

Não houve Contrailuminismo.

Estudos recentes, por sua vez, afastam-se um pouco das visões de Berlin e das
interpretações que tentam entender o movimento contrário ao Iluminismo no século XVIII.
Segundo autores como Jeremy Caradonna, Zeev Sthernell e Robert Norton, que embora tenham
singularidades em suas exposições, acreditam que o conceito e o próprio Contrailuminismo não
passou de uma invenção contemporânea de algo que não existiu no século XVIII. Para Caradonna,
não há sentido em se estudar o Contrailuminismo, Zeev Sthernell, por sua vez, interpreta o
Contrailuminismo como uma teleologia que liga o movimento do século XVIII ao fascimo e ao
stalinismo e Robert Norton refere-se a esse movimento contrário às ideias dos filósofos
oitocentistas como “um mito” (Norton, 2007).

Caradonna ressalta, inclusive, que esse movimento sequer era nomeado no Século das
Luzes. Para ele, os problemas desse termo não são nominalistas e sim estruturais pois reduzem e
distorcem o Iluminismo a uma briga “binária e arbitrária” (Caradona, 2015, p. 54). Ademais, esses
historiadores acreditam que as divisões políticas entre direita e esquerda presentes nos debates
políticos do século XX e XXI foram projetadas no passado. Esse problema conceitual, no
entatanto, de fato mostra-se presente nos textos do Berlin que, na década de 1970, escreveu
imbuido pelo contexto da Guerra Fria, contudo, os estudos de McMahon e de Garrard, por
exemplo, respaldam-se em fontes e na análise da circulação das ideias contrárias ao iluminismo nos
próprios espaços dos séculos XVIII. Caradonna, portanto, atenta-se mais ao conceito do que às
ideias e, como ressalta a professora Kirschner, o historiador deve se atentar às múltiplas
temporalidades conceituais:

Não percebendo as distintas temporalidades presentes nos conceitos, tratando-


os como se fossem construções linguísticas incapazes de inovações de sentido, o
historiador limitar-se-ia a reproduzir palavras empregadas na época pelos
contemporâneos, tais como aparecem em diferentes documentos informativos,
sem apreender as possíveis ressignificações a que poderiam estar sujeitas naquele
momento, prejudicando, assim, o alcance da interpretação histórica. O risco de
acabar projetando no passado, de maneira mecânica, os significados que os
conceitos possuem no presente é considerável. (Kirschner, 2007, p. 58).

Em seu texto “There was no Counter-Enlightenment”, publicado em 2015, Caradonna defende


que há uma interpretação binária que resulta na luta entre o Iluminismo e o Contrailuminismo.
969

Essa interpretação repousa, principalmente, no fato de que essa visão “binária” foi amplamente
divulgada por Isaiah Berlin, o qual descreveu que havia uma batalha intelectual entre o Iluminismo
e o Contrailuminismo, o primeiro, representando o monismo e o segundo, por sua vez,
representando o pluralismo.

O historiador norte-americano Darrin McMahon, em resposta ao texto de Caradonna e aos


de outros críticos do movimento Contrailuminista, publicou, em 2017, o artigo intitulado “What is
Counter-Enlightenment?”, no qual ele responde às provocações desse grupo revisionista. McMahoon
discorda das classificações de Caradonna e afirma que abandonar um termo histórico por não ter
sido usado à época à qual o termo se refere é uma grande armadilha:

Observação semelhante poderia ser feita sobre inúmeros outros rótulos


empregados pelos historiadores para descrever períodos ou processos que os
próprios contemporâneos não teriam reconhecido, da Idade Média ao
Renascimento e à Revolução Científica. (McMahon, 2017, p. 34).

O historiador britânico Graeme Garrard publicou um artigo em 2015 respondendo


diretamente ao historiador Caradonna. Em “Tilting at Counter-Enlightenment windmills”, Garrard refuta
várias ideias de Caradonna e, inclusive, enxerga algumas contradições em seu texto. A respeito da
crítica sobre a fragilidade do uso do Contrailuminismo devido a sua inexistência no século XVIII,
Garrard afirma: “isso não é porque [Caradonna] rejeita o uso retrospectivo de termos e conceitos
no geral: ele aceita a legitimidade do Iluminismo” (Garrard, 2015, p. 79). A razão pela qual
Caradonna rejeita o “Contrailuminismo”, na visão do professor britânico, “é porque esse conceito
falhou no seu teste de utilidade de acordo com o qual, um conceito precisa ser últil para ser
empregado de maneira legítima pelos historiadores da intelectualidade.” (Garrard, 2015, p. 79).
Garrard continua as suas críticas e questiona retoricamente se a Contrarreforma e a
Contrarrevolução passaram no teste de utilidade proposto pelo historiador Jeremy Caradonna. “E
quem decide por essa utilidade? E como o Iluminismo, que também não era um conceito utilizado
na Europa do século XVIII, passou nesse teste?” (Garrard, 2015, p.79)

A críticas de Caradonna seguem e voltam-se à categoria binária de uma luta entre o


Iluminismo e o Contrailuminismo, ele afirma que esse é um exemplo de anacronismo pois cria uma
visão na qual entende-se o Iluminismo como a “esquerda” política e o Contrailuminismo como a
“direita”. Essa ideia, no entanto, foi respondida tanto no texto do historiador britânico Garrard
quanto no texto do historiador norte-americano McMahon. O primeiro responde a essa
interpretação comparando-a a Dom Quixote quando imaginou que o moinho era um monstro
gigante. E conclui: “ele está atacando um binário imaginário como ele ataca a unidade imaginária
do Contrailuminismo” (Garrard, 2015, p. 78).
970

O segundo, por sua vez, ressalta que o Contrailuminismo, sobretudo nos textos de Berlin,
foi usado de maneira descuidada e vaga desde que foi cunhado por William Barret e popularizado
por Isaiah Berlin, no entanto, não concorda com as conclusões de Caradonna a respeito da não
existência do movimento no sentido histórico. (McMahon, 2001).

Caradonna, por sua vez, critica o uso do Contrailuminismo feito por Isaiah Berlin
caracterizando-o como “um ensaio propagandista da Guerra Fria, tendo sido feito no pós-guerra
por liberais anglo-americanos com o objetivo de localizar e desenraizar as origens do fascismo e do
totalitarismo” (Caradonna, 2017, p.52). Segundo ele, “não há comprovações de que os nazistas ou
o regime de Vichy ou Stalin tenham feito uso do Contrailuminismo”. O uso do conceito, para
Jeremy, faz parte de um jogo político. Ao que McMahon responde.

Descartar o 'Contrailuminismo', como ele o faz, como uma invenção e um


'truque político' seria, portanto, tornar-se voluntariamente cego aos muitos
truques políticos jogados no século XVIII e desde então por aqueles que
procuram usar suas simplificações e reificações do 'Iluminismo' para fins
políticos. (McMahon, 2017, p. 40).

McMahon conclui que a assertiva de Caradonna é errada pois houve o Contrailuminismo


enquanto um movimento consciente de crítica ao Iluminismo. Talvez, como assegura McMahon,
seria melhor definí-lo mais precisamente ditinguindo o alto Contrailuminismo do baixo, o radical
do moderado, o judeu do católico. Graeme Garrard conclui que:

É claro que contrariar o Iluminismo (a concepção particular do século XVIII de


iluminação) não implica rejeitar o conceito de iluminação em geral. O que
Caradonna deveria ter dito é que tanto o Iluminismo quanto o Contrailuminismo
são formas de iluminação. Não há nada contraditório ou paradoxal sobre isso.
Faz todo o sentido dizer que o pensamento Contrailuminista deseja nos
esclarecer sobre as falhas de uma concepção particular de iluminação. (Garrard,
2015, p. 80).

O historiador israelita Zeev Sthernell publicou o livro The Anti-Enlightenment Tradition, em


2006, no qual tenta encontrar as origens do fascismo europeu. Em seus estudos, que foram
altamente criticados por Darrin McMahon em uma resenha da versão inglesa da publicação,
Sthernell entende que o “anti-iluminismo” do século XVIII minou os fundamentos do liberalismo
moderno e contribuiu para o desenvolvimento do fascimo europeu que, por conseguinte, culminou
nos desastres bélicos do século XX. Segundo o historiador israelita, as práticas anti-racionais
resultaram nos regimes totalitários europeus. McMahon posiciona-se:

Sternhell joga a cautela - e, deve-se dizer, todo senso de equilíbrio acadêmico -


ao vento. Ele não apenas traça a linhagem intelectual do fascismo, com efeito,
até o século XVIII, mas ele segue adiante até os dias de hoje. A "tradição anti-
971

iluminista" de Sternhell culmina não apenas nos regimes de Mussolini, Hitler ou


Vichy, mas no neoconservadorismo contemporâneo. Gertrude Himmelfarb e
Irving Kristol, ao que parece, estão na cama com os nazistas. (McMahon, 2014,
p. 145).

As críticas ao livro de Sthernell assentam-se em sua ligação entre ideias tão espaçadas
temporal e geograficamente e em sua imagem “monolítica” do Iluminismo que representa tudo o
que é bom e verdadeiro e o Contrailuminismo, por sua vez, representa o contrário. Para
McMahoon, este trabalho dá crédito às argumentações e reclamações de Caradonna a respeito do
binarismo entre o Iluminismo e o Contrailuminismo e conclui que “Zeev Sthernell conduz uma
uma aula magistral inconsciente sobre como fazer uma história intelectual ruim” (McMahon, 2017,
p. 37).

Robert E. Norton, por sua vez, publicou, em 2007, um artigo no Journal of History of
Ideias intitulado The Myth of the Counter-Enlightenment. O autor buscou entender de que forma o
conceito de Contrailuminismo, que durante muito tempo ficou negligenciado pela historiografia,
tornou-se tão usual ao ponto de ser utilizado em diversos livros e textos. “Vários autores referem-
se ao ContraIluminismo como se pudessem assumir que todos sabem o seu significado e que não
há necessidade de uma explicação mais detalhada” (Norton, 2007, p. 635). Não obstante, é
necessário entender os principais conceitos que o termo recebeu ao longo dos anos.

O autor reconhece que, nas últimas décadas, autores dedicaram-se a entender esse
movimento ainda no século XVIII, citando os principais estudos na área feitos por McMahon e
por Garrard.

Tendo permanecido escondido por algum tempo em relativa obscuridade


histórica, o noção do "Contra-Iluminismo" que recentemente começou a atingir
notável proeminência. A palavra agora parece até mesmo à beira de ganhar o tipo
de aceitação geral desfrutada por rótulos históricos mais antigos e estabelecidos,
como a Contra-Reforma ou a Contra-Revolução, na qual parece ter sido
modelado. A palavra agora parece até mesmo à beira de ganhar o tipo de
aceitação geral desfrutada por rótulos históricos mais antigos e estabelecidos,
como a Contra-Reforma ou a Contra-Revolução, na qual parece ter sido
modelado. Encontram-se evidências da crescente institucionalização do termo
nos títulos, por exemplo, de Darrin McMahon Enemies of the Enlightenment: The
French Counter-Enlightenment and the Making od Modernity e Graeme Garrard
Rousseau’s Counter-Enlightenment: A Republican Critique of the Enlightenment.
(NORTON, 2007, p .636).

Para Norton, no entanto, o grande problema encontra-se na categorização que Isaiah Berlin
deu ao termo. A sua interpretação a respeito dos autores alemães J.G Hamman e, sobretudo de
Herder foi, segundo Norton, tendenciosa e mal informada. Para ele, é inconcebível que haja a
ligação entre autores alemães do século XVIII aos movimentos radicais do século XX e XXI. “Esta
972

ligação tornou-se tão flexível que foi utilizada para descrever, inclusive, o radicalismo islâmico de
Osama Bin Laden” (Norton, 2007, 636).

Os estudos de Berlin legaram uma enorme influência ao pensamento político e aos meios
acadêmicos e as suas interpretações a respeito de Herder e Hammann como inimigos do
Iluminismo permaneceram inabaláveis durante décadas, no entanto, para Norton, esses autores,
sobretudo Herder, não deveriam ter sido classificados como Contrailuministas. “É [...]
desanimador que [Herder] este mais europeu e ecumênico dos iluministas alemães seja
erroneamente identificado com os aspectos mais paroquiais e iliberais do pensamento alemão”
(Norton, 2007, p. 658). Em relação a Hamman, Norton pontua que Berlin não fez uma análise
acurada dos escritos do autor alemão, fazendo poucas análises de seus escritos e citando-as de
maneira esparsa. “Berlin ilustra seu ponto com uma citação geralmente muito breve, muitas vezes
consistindo em apenas algumas palavras e quase nunca acompanhadas por uma indicação do
contexto em que ocorrem originalmente” (Norton, 2007, p. 640).

Essas definições de ambos como Contrailuministas estariam mais relacionadas a um projeto


político que buscou em Herder “um percurso de autenticação e aliado ideológico” (Norton, 2007)
do que uma constatação empírica feita por meio dos seus escritos. “Este ‘conto’ foi inteiramente
invenção de historiadores nacionalistas alemães que queriam identificar as raízes de uma cultura
moderna especificamente alemã; sentimento alemão versus racionalidade francesa” (NORTON,
2007, p. 651), que seria diametralmente contrária, portanto, à França. O autor conclui que a noção
de Isaiah Berlin sobre esse Contrailuminismo é um mito, no entanto, diferentemente de Caradonna
e de Sthernell, não condena o movimento em suas manifestações oitocentistas. Para ele, “o
Contrailuminismo pode estar vivo e bem hoje, mas Herder não teve nada a ver com isso” (Norton,
2007, p. 658).

Conclusão

Essas três visões sobre o Contrailuminismo mostram que, um assunto que permaneceu
negligenciado pela historiografia, tem cada vez mais alcançado espaço nas pesquisas sobre a
História das Ideias. Embora a visão de Berlin sobre o Contrailuminismo enquanto a gênese do
fascimo já esteja superada, ela foi importante por inserir, ainda na década de 1970 o debate nos
meios acadêmicos da História Intelectual.

Em um compêndio das produções historiográficas recentes (McMahon, Garrard, Lilla e


Israel), os principais historiadores que se debruçaram sobre o movimento contrailuminista/anti-
973

iluminista ou antifilosófico, convergem em um ponto crucial para o debate: que esse movimento
de fato ocorreu ainda no século XVIII e discordam, portanto, do grupo revisionista que postulou
que esse movimento não existiu. Ao estudar os textos críticos aos iluministas, reconhecemos
diferentes aspectos sobre o “Mundo das Luzes” pois como já foi ressaltado, muitas das definições
do próprio Iluminismo foram construídas pelos seus respectivos inimigos. Além do mais, eles
também concordam que há uma imprecisão no pensamento de Berlin a respeito dos “Inimigos das
Luzes”, contudo, há uma ideia de Berlin que resiste às críticas: a de que o Contrailuminismo, como
salientou o próprio autor, foi um movimento múltiplo. (Garrard, 2015, p. 78).

No entanto, é importante que se tenha uma atenção especial ao uso do termo


“Contrailuminismo” que, embora nos ajude a entender que houve um movimento ainda no século
XVIII que criticava diversos aspectos dos livros e das ideias filosóficas, não podemos entendê-lo
como um movimento necessariamente antagonista ao Iluminismo (Masseau, 2001, p. 26). Além do
mais, o uso inadvertido deste termo recai em uma visão já superada do Iluminismo enquanto um
movimento único, ou seja, ao falar em Contrailuminismo, no singular, assumimos que um
movimento unificado e homogêneo atacava um outro grupo homogêno reincidi-se, portanto, na
ideia tão corretamente criticada a respeito do binarismo.

Posto isso, é inegável dizer que houve sim um movimento “Contrailuminista” – na ausência
de um termo mais elucidativo – ainda no século XVIII, o que talvez seja importante ressaltar é que,
tal qual o Iluminismo teve inúmeras facetas, o Contrailuminismo também apresentou diferentes
propostas, interpretações e críticas. Logo, seguindo o pensamento de Graeme Garrard, seria
melhor falarmos de Contrailuminismos, no plural.

Referências

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Sthernell, Zeev. Les anti-Lumières: Une tradition du XVIIIᵉ siècle à la guerre froide. 2010

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Resenha por: McMAHON, Darrin. The Journal of Modern History, Vol. 83, n. 1, 2011, pp. 145-147.
975

Estudo de sentimentos amorosos em processos criminais da


cidade de Vigia-PA (1909-1938)

José Renato Carneiro do Nascimento*

Resumo: Nos processos de lesões corporais e defloramentos envolvendo homens e mulheres,


sentimentos em torno das relações amorosas não são apenas enquadramentos de discursos oficiais
sobre as formas de sentir de domésticas, pescadores, lavradores e lavradoras. O presente trabalho
argumenta que, embora os processos criminais sejam produzidos por homens diplomados para
operar o Direito e produzir narrativas para incriminar, inocentar e julgar, é possível perceber os
usos de representações amorosas nos relatos de testemunhas e envolvidos nas tramas cotidianas
trazidas ao judiciário. O historiador, sobre os “ombros” dos operadores do direito, pode perceber
relatos e sentimentos não oficiais que configuram anseios e códigos de condutas de homens e
mulheres não diplomados ou nomeados para cargos no judiciário. As tramas trazidas ao judiciário
por vigienses “comuns” revelam usos e percursos de sentimentos entre o que era considerado lícito
e ilícito no relacionamento amoroso, ou seja, a resolução de problemas envolvendo casais poderia
ser conduzida por meio da violência, do casamento, do ato sexual, prisão etc. As memórias no
ambiente judicial traziam à tona o pensar, o decidir e o agir e revelam o trânsito de sentimentos de
vergonha, honra, afeto, ciúme, feminilidade e masculinidade para homens e mulheres. São
apropriações e usos de códigos culturais não delimitados aos julgamentos e valores dos operadores
do direito, mas extrapolam ou conformam-se ao que o Estado e a Igreja consideravam um
relacionamento conjugal ideal. Os usos e percursos desses códigos são acionados no calor da hora
não só do ambiente judicial, mas nas lembranças que narram as tramas em ambiente doméstico e
cotidiana na cidade de Vigia-PA da virada do século XX para o XX.

Palavras Chave: Afeto, Emoções, Relação Conjugal, Civilização.

Introdução

O presente trabalho explora a História dos sentimentos investigando códigos de condutas


de homens e mulheres em torno de relacionamentos amorosos percebidos em três processos
criminais dos anos 1909, 1933, e 1938403 na cidade de Vigia, nordeste do estado do Pará, a 77
quilômetros da capital Belém.

É um processo criminal de defloramento de 1933 e dois casos de ferimentos, um de 1909


e outro de 1938, produzidos por homens nomeados oficialmente para o operar os dispositivos do

* Doutor em História Social da Amazônia (UFPA). Professor efetivo de História da Secretaria de Estado de Educação
do Pará.
403 Utilizo esses processos como fonte de pesquisa em minha tese de doutorado (Nascimento, 2016). Pesquisei estes e

outros processos nos arquivos da Sociedade Beneficente Cinco de Agosto na cidade de Vigia.
976

código penal de 1890 e seus valores civilizatórios para inocentar ou julgar homens e mulheres
envolvidos em contendas amorosas.

Apesar desse ambiente civilizador masculino, destaca-se a possibilidade de enxergar, nesses


manuscritos, subjetividades de homens e mulheres chamadas a responder as intimações oficiais.
Entre outros aspectos jurídicos, os processos buscam apontar a criminalização e vitimização, mas
em nas entrelinhas é possível perceber o que pessoas comuns pensavam a respeito do
relacionamento conjugal.

Os depoimentos indicam narrativas de pessoas que operavam seus sentimentos amorosos


no cotidiano mobilizando códigos de vergonha, honra, afeto, ciúme, feminilidade e masculinidade
que podiam estar em consonância ou não com os julgamentos oficiais e civilizatórios.

Agindo por amor: entre o agrado e o desconforto emocional.

Na Vila de Colares da cidade de Vigia o lavrador Antônio não aceitava que sua amásia
tivesse ido morar com outro homem. O processo de lesões corporais de 1909 registra que ele em
estado alcoolizado e “enfurecido'' agrediu sua ex-amásia “com um cinto de fivela no meio da rua”.
Uma das testemunhas indicou que Antônio adquiria estado de “valentia” quando estava
alcoolizado. Ele encontrava-se neste estado na ocasião da agressão de sua ex-amásia.

A agressão teria sido um efeito do afeto que ele sentia por sua amásia. Um afeto demarcado
pelo sentimento de exclusividade no relacionamento em não desejar dividir a companheira com
outro homem. Um afeto que exprime o desejo de querer continuar morando com ela após ter
chegado de uma viagem do Paraná. O ato violento comunicou sua insatisfação em relação ao que
ele e os operadores do direito chamaram de “traição” por parte da mulher.

A situação de gravidez dela, apresentada pelas testemunhas não aparece como uma
condição tão importante quanto a decisão dela em morar com outro homem. É possível que a
gravidez tenha interferido nessa decisão. Ainda que a escolha de “abandonar” o amásio e “se juntar
ao outro” apareça no processo como uma alegação para o espancamento masculino, os relatos
indicam uma decisão feminina não bem recebida pelos costumes civilizatórios404 masculinos do
agressor, testemunhas e juristas.

404O sociólogo Nobet Elias explica a formação de padrões de Civilização na modernidade buscando o controle das
emoções. São hábitos que modelam o comportamento de homens e mulheres para que tenham boas maneiras e vivam
sob a égide da moralidade do que se tornou bons costumes (Elias, 1994).
977

As expectativas civilizatórias acabavam sendo frustradas e davam margem para as violências


e julgamentos que não levavam em conta escolhas pessoais ou mesmo necessidades de
sobrevivência. Esta se impõe e obriga aos “usos e representações” de códigos culturais não
implementados ou planejados oficialmente (Certeau, 2013, p. 233 e 244). Não que exista uma
hierarquia entre o que seja a ignição do uso de códigos e necessidades materiais, ambas interagem
e são acionadas no cotidiano, nas ocasiões.

Na apresentação da defesa ao juiz, o procurador do acusado salientou que na verdade o


“ofendido”, a vítima, foi o lavrador, pois teria “sido offendido em seu amor próprio, embriagou-
se ficando com a intelligência e a razão aniquilladas”. O defensor anunciou a angústia sentida pelo
lavrador. A dor emocional causada pela decepção em receber a notícia da própria ex-amásia teria
atingido e embaçado o próprio discernimento mental na opção pelo ato violento contra ela.

Ocorre que esta não é uma operação individual e isolada de manifestação de trajetórias
entre os sentidos do feliz e do desgosto geradas pelas emoções e atitudes amorosas. As pessoas
exibem seus sentimentos a si e aos outros “por conta dos outros” (Mauss, 1981, p. 332). Os
processos criminais permitem perceber a rede de sociabilidades e emoções nas quais seus
protagonistas estavam envolvidos.

Em diálogo com as a Psicanálise no livro “Sexo e repressão na sociedade selvagem” o


antropólogo Malinowski cita os estudos do Sr. Shand para explicar que as emoções não são
fenômenos isolados, pois as pessoas sentem umas pelas outras amor, ódio ou devoção. Essa deve
ser, segundo ele, a abordagem dos sentimentos humanos pela Sociologia (Malinowski, 2013, p.
114).

A percepção de Marcel Mauss e de Bronislaw Malinowski nos ajudam a compreender que


o usufruto dos sentimentos nas ocasiões em que a trama ocorreu ou nas lembranças acionadas no
ambiente judicial estão sujeitas a sociabilidade da linguagem das emoções reconhecidas pelos
agentes como sinais de felicidade ou de decepção405.

Não é uma simples dicotomia sentimental, pois está em jogo todo um conjunto de códigos
culturais sentidos internamente e revelados externamente por palavras, gestos e atos. No processo
envolvendo o lavrador Antônio de 1909 vemos a ênfase em sentimentos acionados como ciúme,

405 A Igreja católica e o Código Filipino cooperaram para semear no Brasil colonial diversos padrões normativos de
comportamento moral, que hoje podemos encarar como de longa duração. Por exemplo, a Igreja delimitando a
atribuição da mulher à vida familiar devendo ser obediente e submissa ao marido (Del Priore, 2009, p. 25 e 26) e a
Código Filipnino valorizando “fundamentos lógicos” do patriarcalismo (Caulfield, 2000, p. 59).
978

mágoa e o amor próprio associado ao sentimento do homem ter sido “ferido” em sua
masculinidade em função do rompimento de um contrato conjugal e amoroso.
A linguagem dos sentimentos constitui “comunidades emocionais” e podem ser
comparadas às “comunidades sociais” na visão da historiadora Barbara Rosenwein. Nessa
comparação, os sistemas de sentimentos podem ser percebidos pelo que as sociedades e os
indivíduos “definem e julgam como valoroso ou prejudicial para si” (Rosenwein, 2011, p. 23 e 24).
Os processos criminais indicam pessoas julgando e definindo suas teias sentimentais no percurso
entre emoções dotadas de bem-estar ou as que julgavam dolorosas.

Em um processo de defloramento de 1933, o pai da moça traz à justiça uma carta que teria
sido escrita pelo namorado dela, o acusado no processo. Na referida carta o rapaz intimida o pai a
denunciar o caso à polícia, pois estaria pronto a “soffrer todas as afrontas”, que seriam, segundo
ele, bem menores se tivesse casado com a moça. Na carta o namorado acusa a moça de andar pelas
ruas da Vigia às quatro horas da manhã em companhia de duas senhoras e um rapaz. Ainda alegou
ser notório na localidade de Porto Salvo a relação amorosa que ela teria tido com um homem
casado.

Em outro processo de 1938 de lesões corporais, o depoimento da doméstica Maria revelou


o desejo do marítimo Oscar em “tê-la como companheira” e “fazê-la feliz”. No entanto, ela soube
dos “mau procedentes” dele e o dispensou da manutenção do enlace amoroso e dizendo-lhe para
ir “procurar sua vida pois precisava ficar desembaraçada”. Segundo Maria, Oscar teria dito para
não dispensá-lo, pois “era homem para sustenta-la”. O escrivão registrou o relato de uma das
testemunhas, hospedada na mesma residência onde ocorreu o espancamento, que descreveu o
estado do marítimo como “encolarisado’.

Temos aí fragmentos dos processos que indicam relações amorosas movendo-se em torno
ou utilizando a noção oficial de casamento406. Não são modos alternativos, separados das normas
oficiais no que tange o sentir ódio, desejo ou vergonha. São manobras de códigos culturais no
tempo e no espaço. Os casos não revelam apenas informações e relatos, mas tratamentos dados à
cultura (Certeau, 2009, p. 339). São maneiras como se pensa e age nas ocasiões em que as
normatizações civilizatórias são relidas, usadas, acionadas.

No aflito relato do namorado buscando deixar ainda mais nervoso o pai da moça, no relato
de 1933, vemos o sentir vergonha ligado aos que os outros e o judiciário podem julgar. Utilizando

Considerado ato formador da constituição da família legítima definida, entre outras coisas, da obrigação do marido
406

em sustentar e defender a mulher e os filhos e indissolubilidade do enlace respaldados nos Artigos 56 e 93 do Decreto
181 de 24 de janeiro de 1890.
979

fontes na base do “ouvir dizer”, o namorado dá a sentença, julgando e criminalizando as condutas


da namorada e definindo, ao mesmo tempo, o que seja um relacionamento amoroso adequado
quanto às obrigações dela em não andar à noite em companhia de duas senhoras e um rapaz nem
ter caso amoroso com um homem casado na localidade de Porto Salvo.

No caso de 1938 a doméstica apontou o alcoolismo do marítimo Oscar como impedimento


para viver com ele e preferiu continuar “desembaraçada”. As promessas de felicidade feitas por ele
eram aderentes à decisão de querer “morar junto”, uma forma de consolidar o relacionamento
amoroso. A decisão dela atingiu a honra masculina dele em desejar ser o protagonista da conquista
amorosa e receber unilateralmente um sim como resposta. O relato sobre o início da discussão de
ambos no quarto terminando com o espancamento dela por ele, “atirando-a de encontro às raízes
de árvores” no quintal, representa o oposto das estratégias de conquista para o “morar junto”,
“fazê-la feliz e sustentá-la”.

Os discursos moralistas não são méritos apenas dos agentes do judiciário. Eles estão
presentes nas lembranças dos envolvidos e testemunhas trazidas ao ambiente policial e jurídico e
no desenrolar dos conflitos emocionais. A opacidade nos dados reside em restringir uma ou outra
operação dos códigos morais a um determinado grupo como aos operadores do direito ou aos
homens e mulheres sem competência formal para julgamentos legítimos407. No entanto, é revelador
a circulação desses códigos como expressões e ações individuais inerentes a situações peculiares e
compartilhadas.

Neste sentido, o caráter civilizador e pedagógico não é apenas um atributo do judiciário.


Na vizinhança aprende-se com o que se considera bons ou maus costumes, com as ameaças, com
a violência física ou verbal. As boas referências são perturbadas pela publicidade das inflexões no
processo civilizador da cidade presente nas narrativas de envolvidos e testemunhas408. Os códigos
civilizacionais são aprendidos, proliferam, são acionados, mas não plenamente cumpridos. Os
códigos penais ou religiosos não conseguem controlar409 os interstícios de significados no cotidiano
e impor na íntegra o que se considerava relação conjugal ideal.

407 Tecendo sobre o amor na Idade Média, o historiador Georges Duby salienta a importância dos estudos sobre o
amor em “atravessar” a opacidade dos moralismos presentes nos dados (Duby, 2001, p. 13).
408 A família sadia recomendada por médicos, Igrejas e pedagogos do século XIX “difundiu-se no corpo social como

um todo. Em primeiro lugar tratou-se de investir na “longevidade, progenitura” e "decência” dos grupos burgueses
nos quais se instalou os discursos das verdades e saberes da sexualidade dita higiênica (Foucault, 2019, p. 133-134).
409 Para Freud a civilização não exclui a agressividade como atividade humana. Ela intenciona a prevenção de excessos

da violência atribuindo a si mesma o “direito de praticar a violência” para coibir as outras agressividades humanas
(Freud, 2011, p. 58).
980

Como tais códigos pressupõem o vigor masculino, os homens acabam sendo cúmplices ou
vítimas410 das próprias referências que os exaltam em força. Eles sentem-se afetados em seu
“poder” quando alegam serem “ameaçados” por condutas inadequadas das mulheres. Elas
deveriam seguir o papel de recatadas, fiéis e obedientes. Para eles, as pancadas e a difusão do
escândalo do dito “comportamento vergonhoso” serviriam como atos de vingança ao “mal-estar”
causado pela traição ou rejeição.

Nos séculos XVIII e XIX os discursos científicos estabeleceram diferenças físicas e mentais
entre os sexos feminino e masculino, que passam a ser encaradas como dadas pela natureza.
Acreditou-se nos avanços da civilização acentuando essas diferenças e ordenando todas as relações
sociais, principalmente “o discurso e o jogo amoroso”. Tais discursos sedimentaram convicções,
atitudes e comportamentos nas sociedades ditas civilizadas a partir de então. O historiador Alain
Corbin investiga o Grand dictionnaire universel du XIX (Grande dicionário universal do século XIX)
aborda algumas diferenças entre homens e mulheres estabelecidas pela ciência na Terceira
República Francesa. Por exemplo, os machos possuem um sistema nervoso mais ativo e vigoroso
enquanto o “sistema simpático” prevalece na mulher. A fisiologia deles favorece a virilidade, vigor
e a delas favorece a sensibilidade à amizade e às “alegrias da família” (Corbin, 2009, p. 186, 187 e
191).

O antropólogo David Breton discorreu sobre como os indivíduos podem ter os


sentimentos perturbados ao perceberem o colapso de suas expectativas emocionais socialmente
compartilhadas (Breton, 2009, p. 141 e 142). Esse colapso pode ser entendido como um trauma
causado pela decepção após a verificação de “evidências” dadas por outros ou pela própria
companheira quanto ao compromisso amoroso rompido ou pela desconfiança dos homens em
relação ao comportamento delas.

Neste sentido, as emoções fazem parte das interações sociais (Rosenwein, 2011, p. 37). Os
processos criminais representam um pequeno recorte de sociabilidades trazidas à tona neste
trabalho por meio das sensibilidades dessas pessoas que viveram na cidade de Vigia na primeira
metade do século XX.

Em ambiente judicial emergem lembranças emaranhadas aos tons de moralismos, normas


e, ao mesmo tempo, arranjos formulados no decorrer das sociabilidades, que escapavam ao modelo
de ordem social prometido pela norma do casamento civil ou religioso. As narrativas incorporam

410 Não estamos julgando essa “vitimização” dos homens para justificar seu fracasso emocional em não conseguir ter
virilidade capaz de evitar a agressão física ou verbal sobre as mulheres. Mas entender esses sistemas de representações
masculinas e femininas como o sistema de referência disponível a eles na ocasião das tramas. Os códigos afetivos
seriam como sugestões emocionais para eles agirem frente a circunstância enfrentada (Breton, 2009, p. 141).
981

o casamento normativo aos relacionamentos conjugais no tocante às promessas de casamento ou


ao desejo de viver “amasiado” sem que haja infidelidade.

Abordar as fontes criminais pela História das Emoções conjugais pode ser denunciado
como um percurso arriscado em detrimento desse tipo de fonte ser produzido por um corpo de
funcionários dotados de valores ditos civilizatórios persuadindo a coleta de narrativas que possam
criminalizar ou inocentar os envolvidos e envolvidas. Além disso, os sentimentos aparecem
fragmentados e não podem isoladamente representar as instâncias determinantes das decisões de
homens e mulheres.

Para Marc Bloch um auto de “interrogatório judicial” raramente reproduz literalmente


declarações que foram pronunciadas, pois o escrivão “poda as palavras julgadas demasiado
vulgares” (Bloch, 2001, p. 141). Dessa forma, os textos processuais são “aproximações” das
narrativas pronunciadas pelos interrogados. As narrativas, por sua vez, representam os
acontecimentos trazidos à tona pela lembrança. A escrita do processo e as diversas vozes aí
registradas são como fontes históricas depositárias de visões de mundo, fragmentadas e
moralizadoras e, portanto, sujeitas à crítica no que concerne, por exemplo, ao quesito do confronto
narrativo possível de perceber nos processos criminais.

A escrita do processo não só julga, incrimina, inocenta ou moraliza. Ela mobiliza e


representa as falas de pessoas que se envolveram em tramas e conflitos amorosos. O registro de
diversas “vozes” deixou rastros de sociabilidades, decisões e operações de emoções nas
representações do cotidiano. Revelar um ato sexual sem ter passado pelos rituais dos casamentos
oficiais, mencionar o estado de embriaguez para justificar um espancamento ou indicar a troca do
par amoroso não parecem discursos que buscam aprovação dos agentes do judiciário.

Considerações finais

Os aparatos emocionais constituem o fio condutor das tramas registradas nos processos
criminais. As emoções são inerentes e interligadas à atuação cognitiva e prática das pessoas na vida
cotidiana. Ao conhecermos e refletirmos sobre esses processos talvez nos ajude a entender e, quem
sabe, frear ódios e preconceitos humanos que geram violências e intolerâncias, sobretudo contra
as mulheres, tão recorrentes no Brasil do século XXI.

A comunidade de sentimentos alcança diferentes temporalidades e em muitos aspectos


possuem um caráter de longa duração. Os processos criminais são ricas fontes para pesquisas, mas
nos remete a leituras cuidadosas em função da grande carga moralista disfarçada de discurso
982

jurídico e “neutro”. Neles encontramos múltiplos significados do casamento, da violência e da


honra não restritos aos valores dos operadores do direito e de outros grupos que ocupam as
instâncias dos poderes republicanos e/ ou religiosos.

Referências

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Breton, David Le. As paixões ordinárias. Antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 16ª edição. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Georges. História do corpo: da Revolução à Grande Guerra. 3ª edição. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Rosenwein, Barbara H. História das emoções: problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
983

Histórias, cultura e identidades negras em Parintins – AM

Jessica Dayse Matos Gomes*


Renilda Aparecida Costa**

Resumo: A presença de africanos e seus descendentes no Amazonas tratada em segundo plano


durante longos períodos da história local têm sido constantemente referenciada nas pesquisas sobre
a formação cultural amazonense nos últimos anos sendo que as manifestações que possuem
influência da cultura negra em Parintins também têm sido evidenciadas sobretudo nas
apresentações dos bois-bumbás no reconhecido Festival Folclórico do município. A presença negra
que até pouco tempo era silenciada na história local tem suscitado reflexões e ressignificações entre
os/as parintinenses. Com base no exposto, este estudo apresenta registros da cultura negra e discute
as suas novas abordagens em alguns âmbitos da sociedade parintinense, em particular no campo
do folclore. Utilizamos notas de delegacia, descrições, anúncios de jornais, literaturas memorialistas
e obras que tratam sobre a presença negra no Amazonas (Sampaio, 2011; Silva Júnior, 2006). As
fontes possibilitam a abordagem sobre o Folclore de Parintins e negros/negras no boi-bumbá. A
discussão sobre história, vivências de africanos e identidades afrodescendentes no território
amazonense é de suma importância para o conhecimento de um Amazonas Plural, contribuindo
para diferentes interpretações e análises que saiam das limitações ou equívocos sobre a formação
histórico-social e identidade étnico-racial na região.

Palavras-chave: afro, resistência, manifestações, folclore, boi-bumbá.

Presença negra em Tupinambarana: notas sobre escravidão e resistência

O estranhamento causado pela presença negra no Estado do Amazonas tem sido


amenizado com divulgação das pesquisas nos diversos campos do conhecimento sobre as vivências
e permanências de africanos e afrodescendentes na região durante o período escravista e nos pós-
abolição.

Nos últimos anos, análises realizadas em documentos oficiais (relatórios, livros de ofícios,
livros de batismo, obituários, anúncios de jornais, entre outras fontes de séculos passados) tem sido
ressignificados enfatizando as vivências de negros/negras no território amazônico. Estudos sobre
a história da escravidão (Salles, 1971; Figueiredo, 1976; Sampaio, 2011), fugas e formação de
mocambos/comunidades quilombolas (Gomes, 1996; Funes, 1995; Acevedo e Castro, 1998;

* Universidade Federal do Amazonas - UFAM, mestra em Sociedade e Cultura na Amazônia, - PPGSCA e professora
da rede estadual do Amazonas. E-mail: dayse_hinata@hotmail.com.
** Universidade Federal do Amazonas, Professora Doutora do Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na

Amazônia – PPGSCA, da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, e-mail: renildaaparecidacosta@gmail.com


984

Pinheiro, 1999) dentre outros (Menezes, 1931; Jurandir, 1941) possibilitaram revisitações da
temática e base para novas leituras sobre a presença negra na região amazônica.

No Amazonas, municípios como Itacoatiara, Parintins e Maués localizados no Baixo


Amazonas, territórios do Rio Negro como Moura e Barcelos; assim como Borba, Manicoré e
Humaitá no Madeira foram “centros de produção e mercantilização e, por isso, agasalharam
quantidade ponderável de escravos” (Ituassú, 2007, p. 49). Assim como a capital Manaus, tais
localidades do interior do Estado do Amazonas também foram campos de resistência negra
(Cavalcante, 2013).

Com relação ao município de Parintins411 conhecida como Ilha Tupinambarana


pesquisadores de diferentes campos do conhecimento tem se preocupado em buscar mais
informações sobre a história e cultura afroamazônida, ressaltando dados que não se limitam ao
quantitativo de negros cativos na região. As vivências de negros/negras ficaram silenciadas durante
muito tempo no Baixo Amazonas, mais precisamente na região de Parintins, uma vez que nestes
domínios, poucos registros e relatos sobre africanos e descendentes eram evidenciados mesmo
existindo comunidades cujo nome refletem termos e referências à cultura afro tal como Mocambo
do Arari, Mocambo do Mamurú, Terra Preta, Comunidade dos Cativos entre outros (Gomes,
2017).

Ao se realizar estudos sobre tais localidades do município, não se encontravam diversidade


de documentos ou mesmo grandes afirmações sobre a presença negra no território parintinense
e/ou em seu entorno. Nas comunidades rurais, a história que moradores conheciam muitas vezes
demonstravam lacunas com relação aos indícios de presença negra em seu território, com negações
e dúvidas sobre suas identidades étnico-raciais. As comunidades com denominações que expressam
ligação com a cultura negra ressentem de pesquisas mais aprofundadas sobre a história e
constituição étnico-racial de seus comunitários. Ao realizarmos pesquisas para reconhecimento do
território encontramos a reprodução de uma história oficial semelhante, em muitos aspectos, entre
as comunidades (Gomes, 2017).

Sobre os usos de mão de obra africana de forma compulsória em Tupinambarana, Antônio


Bittencourt (2001, p. 77) enfatiza que Parintins fez parte dos territórios onde a escravização de
africanos e indígenas ocorreu, sendo que o autor considera a escravatura o legado que a metrópole
portuguesa constituíra no território brasileiro. Tonzinho Saunier (2003) com base na pesquisa de
Bittencourt e outros autores como Reis (1967) e Souza (1988) destaca em seu livro informações

411
Localizado cerca de 369 km via fluvial da capital do Amazonas, Manaus.
985

sobre quantitativos de negros escravizados no território de Tupinambarana (como é conhecida


Parintins desde o século XIX).

Os primeiros negros introduzidos em Parintins chegaram em 1796 com o capitão de


milícias José Pedro Cordovil (Bittencourt, 2001; Saunier, 2003) sendo que eram 77 escravos em
1848, 180 em 1856, 192 em 1859 e 263 escravizados em 1861 (Saunier, 2003). O quantitativo de
negros escravos em Parintins teria tido queda em 1869, somando 149 cativos. Em 1873, 80 foram
contabilizados e ouve um aumento no quantitativo em 1877, com 117 negros registrados. Já em
1881, o número era de 134 negros, sendo que “em 1884, a Província do Amazonas aboliu a
escravatura. Nesse ano, Parintins possuía 132 escravos. Desse total, o Cel. José Furtado Belém
libertou 30, e o Cel. Antônio Guerreiro Antony, viajou de Manaus a Parintins, libertando o restante,
102 escravos” (Saunier, 2003, p. 55).

Sobre o início do trabalho compulsório na localidade, Andreas Valentin (2005, p. 84)


considera que José Pedro Cordovil introduziu os primeiros africanos e servidores portugueses na
colonização oficial da Ilha Tupinambarana, sendo o capitão de milícias o primeiro colonizador da
localidade segundo Valentin (2005). Sobre o exposto, Sérgio Ivan Gil Braga (2007) afirma que o
povoado Tupinambarana foi fundado em 1796 por José Pedro Cordovil, capitão de milícias que
desenvolveu a agricultura com negros, agregados e índios.

Outros documentos, notícias de jornais e narrativas de antigos moradores de comunidades


e zona urbana trazem evidências sobre as vivências de negras/negros no território parintinense.
Arthur Cézar Ferreira Reis (1967) apresenta o registro do ano de 1805 quando existiam mocambos
compostos por negros e índios que resistiam ao trabalho escravo na região parintinense. Os
mocambos referenciados eram intitulados de bandos da Missão de Vila Nova (Reis, 1967; Braga, 2011)
que Saunier (2003) também cita registrando que, no mesmo ano de 1805, “bandos da missão de
Vila Nova abandonaram-na, formando mocambos” (Saunier, 2003, p. 24).

Vila Nova da Rainha (Parintins) é elevada à categoria de vila e município em 15 de outubro


de 1852, com o nome de Vila Bela da Imperatriz, Cumprindo a lei paraense de 14 de março de 1848
que precisou de ajustes durante 4 (quatro) anos. O município então acaba sendo dividido em dois
distritos: Parintins e Ilha das Cotias. Dentro do distrito Parintins existia os subdistritos: Parintins,
Macurani, Paraná do Ramos, Uaicurapá, Serra de Parintins, Paraná do Limão, Paraná do Xibuí e
Parananema. E, ao distrito de Ilha das Cotias pertenciam: Ilha das Cotias, Aduacá, Xixiá, Sapucaia,
Cranari, Costa do Jacaré, Caldeirão, Bom Jardim, Nhamundá, Paquiri, Paratucá, Barão, Jatuarana,
Mutungu, Espírito Santo e Cabori (Saunier, 2003).
986

Em um dos distritos de Parintins, Francisco Bernardino de Souza (1988, p.123) relata o


acontecimento de execução por enforcamento de 6 (seis) negros que haviam fugido do trabalho
compulsório na região do rio Mamurú. Segundo o autor os negros em fuga consideraram a região
própria para a formação de um mocambo, mas os moradores do Mamurú reuniram-se com
indígenas, capturaram os negros e os enforcaram numa travessa entre duas árvores. Até a atualidade
o local do ocorrido é conhecido como Forca (Souza, 1988).

Sobre as insubordinações e resistência à escravidão através das fugas, Souza (1988) também
considera que os mocambos eram grandes atrativos para os escravizados e que existiam mais de
2.000 escravos fugidos vivendo nos mocambos do Trombetas em Óbidos e de Curuá, em Alenquer.
Nesses redutos eles cultivavam a mandioca e o tabaco de alta qualidade; colhiam castanha,
salsaparrilha, entre outros produtos que esporadicamente comercializavam com os regatões às
escondidas no porto de Óbidos, aonde chegavam de canoas à noite. Muitos consideravam os
mocambos como algo maléfico para o bem comum, conforme pondera Souza “E, pois além da
grande falta de braços com que lutam os agricultores do Amazonas, em consequência da avulta da
emigração que afluem para os seringais, tem ainda de lutar com a praga dos mocambos, que são
com uma viva e permanente ameaça!” (Souza,1988, p. 96).

Os mocambos era um incômodo para as autoridades da região, em virtude da organização


que os negros desenvolveram e a permanência de seus mocambos, que foram resistindo muito
além da abolição da escravatura. Os mocambos eram vistos pelas autoridades provinciais como
exemplo da rebeldia e criminalidade dos negros e isso os configurava como “praga” na concepção
de muitos habitantes do território amazônico.

Ygor Olinto Cavalcante (2013, p.25) apresenta registros de fugitivos que transitaram pelo
Amazonas como, por exemplo, um anúncio de fuga publicado no jornal O Grão-Pará, n.30, p. 04,
de 03/01/1852. A nota trata sobre o negro Felipe, de 22 anos, dá detalhes como os dentes partidos
e marcas de surra do então fugitivo. Explica também que o mesmo possuía conhecimento sobre
os rios, igarapés e furos por onde passava, pois, “em 1847, já havia fugido em direção a Comarca
do Amazonas. Guardava na memória os tempos de resistência e liberdade vividos “ainda rapaz,
sem barba, em Vila Nova da Rainha”, tocando sua guitarra” (Cavalcante, 2013).

A descrição do negro Felipe demonstra a presença negra em Parintins anteriormente


denominada Vila Nova da Rainha. Este nome é devido a ilha de Tupinambarana ter sido aceita e
elevada em 1803 à categoria de Missão Religiosa, pelo Capitão Mor do Pará, Conde dos Arcos, que
encarregou frei José das Chagas como administrador do lugar, o qual recebeu o nome de Vila Nova
987

da Rainha; em 1848 tornou-se Vila Bela da Imperatriz e posteriormente se tornaria o município de


Parintins.

Com relação à área distrital citada pelo jornal, há indícios de que em sua região houve
espaços de fuga, e as pesquisas evidenciam ainda mais isto. Cavalcante (2013) considera que cidades
do interior do Amazonas, como Parintins tiveram seus campos de resistência negra. O autor afirma
a existência no território parintinense do “quarteirão do mocambo”, pois, sua própria urbanidade
estava atravessada pela resistência dos escravos, pela cultura dos fugitivos. (Cavalcante, 2013, 140).

Os mocambos se formaram como lugares símbolos da emancipação e da resistência, mas


foram um incômodo aos administradores provinciais. Pinheiro (1999) considera que, na metade do
século XIX, apesar de toda a repressão ao movimento cabano que envolveu negros, ainda assim os
mocambos disseminados pelo Baixo Amazonas “tornaram-se alvos prioritários nas preocupações
das autoridades provinciais” (Pinheiro, 1999, p. 158).

Em Parintins, estudos apontam um dos “mocambos” como território de conflitos. Segundo


o Ofício da Delegacia de Polícia de Vila Bela da Imperatriz de 3 de novembro de 1862 para o Chefe
de Polícia da Província Dr. Caetano Estelita Cavalcante Pessoa, um escravo chamado Maximiano
José, de aparência mulata, apresentava ter trinta anos, sem barba, boa altura, sendo oficial de
alfaiate, fugia há vários meses e encontrava-se no “Quarteirão do Mocambo”, distrito de Vila Bela
da Imperatriz (Parintins), para onde várias diligências foram enviadas com o objetivo de capturá-
lo. Segundo Cavalcante (2013) e Gomes (2006) o “Quarteirão do Mocambo” constituía o típico
“campo negro”, onde havia conflitos, solidariedades e proteção.

Os indícios de presença negra na região de Parintins no que diz respeito a territórios de


amocambados ainda ressentem de mais pesquisas, mas há a presença negra nas manifestações
culturais parintinenses e alguns registros nas literaturas memorialistas locais.

Culturas e Identidades Negras no território de Tupinambarana

As manifestações folclóricas do território Tupinambarana, especialmente, o boi-bumbá tem


sua origem e desenvolvimento ligados à cultura africana, sua difusão e miscigenação no Brasil.
Umas das primeiras afirmações que pode-se notar é ênfase que cada apresentador – primeiro item
avaliado nas apresentações do Festival Folclórico de Parintins) faz sobre a descendência negra dos
fundadores dos bois.

Tanto os representantes do Boi Caprichoso como do Garantido exaltam a herança negra e


nordestina na sua manifestação, além de elementos que fazem ligação com a cultura afro tal como
988

a marujada, a batucada, as homenagens a São Benedito, entre outros indícios e afirmações. Sobre a
herança afro no boi-bumbá, Valentin (2005) considera que “a presença de negros no médio
Amazonas, mesmo pequena, influencia o surgimento e a própria evolução do boi-bumbá na região”
(Valentin, 2005, p. 86).

O autor também enfatiza a influência do bumba - meu- boi maranhense e seu encontro
com o já existente boi-bumbá no período da chegada dos migrantes nordestinos na região de
Parintins. A manifestação nordestina teria então encontrando um folguedo semelhante “como
também através do convívio com os negros, a identificação com o seu ritmo e sua música” (2005,
p. 86).

Os históricos apresentados por cada bumbá no Festival Folclórico de Parintins trazem sua
herança negra que há muito tempo foi ignorada ou colocada em segundo plano. O Boi Caprichoso
tem como uma de suas versões históricas de sua origem a relação com o bairro Praça 14 de Janeiro
em Manaus, onde se localiza o Quilombo urbano do Barranco. Sobre tal origem, Saunier (2003)
afirma que o Coronel José Furtado Belém teria trazido o Boi Caprichoso da Praça 14 para brincar
em Parintins em 1913, sendo que esse bumbá teria “nascido em Manaus” em 1912 (SAUNIER,
2003, p. 206).

O Caprichoso é o boi-bumbá do Festival de Parintins que possui couro negro e uma estrela
na testa, sendo que seu curral está localizado no bairro da Francesa, próximo ao bairro do Palmares.
A área que compreende ao território do boi negro tem como uma de suas ruas tradicionais a Rua
Sá Peixoto, conhecida pela população parintinense como “Esconde” que traz questionamentos
sobre o que ou quem se escondia. Para Jorcemara Matos Cardoso (2016) a Rua Sá Peixoto é
considerada o berço e principal curral do Boi-bumbá Caprichoso.

Cardoso e Neves (2013) ao considerarem as influencias afro no boi-bumbá, referenciam o


histórico do boi-bumbá Caprichoso apresentado em 2011, onde se afirma que Roque Cid,
considerado um dos fundadores do boi negro,

além de organizar o boi-bumbá organizava o Cordão dos Marujos, manifestação


de cunho religioso, trazido do Nordeste, que deu origem ao nome da percussão
do boi Caprichoso. O nordestino também era conhecido como Mestre Roque,
por ter como oficio a profissão de pedreiro. Relatos descrevem que muitas
construções do bairro São Benedito foram por ele executadas. Alto e magro, era
um homem singular, com sotaque característico do sertão nordestino. (Cardoso
e Neves, 2013, p. 16)

Situado na zona oeste do município de Parintins, o bairro de São Benedito, possui uma
igreja dedicada ao santo negro desde 1945, resultado de reivindicação popular que possibilitou que
989

o padre Victor Heinz conseguisse um terreno cedido pelo prefeito Pedro Ferreira de Souza na área
onde se localiza atualmente, próximo à baixa de São José, berço da família do fundador do Boi
Garantido. Mas deve-se considerar que a devoção a São Benedito é antiga em Parintins, pois, já no
século 19 existia uma capela em honra ao negro santificado, que foi demolida e resultou em castigo
mortal para seus demolidores (Cerqua, 2009).

A proximidade com o Estado do Pará, onde se encontram manifestações negras como a


Marujada de São Benedito de Bragança e a existência da mesma manifestação em Freguesia do
Andirá, território de Barreirinha, que também pertence à Diocese de Parintins não são meras
coincidências. Os indícios da presença negra silenciada em documentos e História oficial são
ressignificados nas pesquisas acadêmicas dos últimos anos e trazem novas abordagens sobre a
própria cultura local.

Outro elemento presente nos bois-bumbás que exprime a cultura negra é a toada que é
entendida como “o canto de boi-bumbá [...] um ritmo afro-brasileiro, mistura contagiante do
samba, marcha e cateretê” (Saunier, 1989, p. 33). Sendo a toada à canção de boi-bumbá do Festival
Folclórico de Parintins, não se nega a contribuição negra em sua constituição, ainda assim, a festa
dos bois ainda apresentava a cultura afro de forma acanhada, denotando a necessidade de
aprofundar a exploração da contribuição afro-brasileira na festa local.

Sobre a função da toada deve-se considerar que suas letras divulgam “um saber cultural do
povo que criou este tipo de texto. Assim, entender suas letras é uma tarefa que ajuda a compreender
a identidade povo amazônida” (Azevedo e Simas, 2015, p. 51). Entende-se que a identidade
amazônica está emaranhada com a cultura negra, ainda que esta seja invisibilizada em muitos
âmbitos do meio social amazônico.

Tendo a iniciativa de trazer novas leituras sobre a cultura popular e sua constituição na festa
do boi-bumbá amazônico, o boi Caprichoso explorou o seu tema em 2019 trazendo muitas
manifestações afro-indígenas para o palco principal do Festival Folclórico de Parintins, o
Bumbódromo. Mas, se observou a discussão polemizada da apresentação do boi que foi atingido
por diferentes críticas, tanto dos que elogiaram a iniciativa assim como dos que julgaram todas as
manifestações afro evidenciadas como fora do contexto da região, sobretudo as religiões de matriz
africana que foram as mais criticadas como não constituintes da identidade parintinense.

O desafio de apresentar abordagens sobre a cultura do boi-bumbá com a evidencia da


cultura negra não foi recebido com reconhecimento e respeito por grande parte dos expectadores
e torcedores dos bumbás do Festival Folclórico mostrando o quanto o pensamento social está
impregnado de estereótipos, racismo e intolerâncias.
990

Sobre o Boi Garantido, bumbá de couro branco e coração na testa, Dé Monteverde e João
Batista Monteverde, afirmam suas origens afro relatando que a trajetória de Lindolfo Monteverde,
fundador do bumbá começou no século XIX com chegada em Parintins de Germana da Silva,
descendente de negros da costa da África. Esta chega à Ilha Tupinambarana por volta do ano de
1820 com as marcas da escravidão que lhe afligira e após alguns anos casa-se com Alexandre Monte
Verde da Silva, com quem tem uma filha: “Alexandrina Monte Verde da Silva, nascida em 20 de
dezembro de 1864” (Monteverde, 2003, p. 11).

Alexandrina foi mãe de Lindolfo Marinho da Silva, conhecido posteriormente como


“Lindolfo Monteverde, o criador do Boi Garantido”, nascido em 02 de janeiro de 1902, fruto de
seu relacionamento com um homem chamado Marcelo (Monteverde e Monteverde, 2003). O
Marcelo, pai do criador do Boi Garantido era um maranhense ex-escravizado que tinha o
sobrenome Rolim e prestava serviço na Marinha (Valentin, 2005).

O boi Garantido também tem como uma de suas tradições a homenagem a São Benedito,
assim como a São José Operário, o santo dos trabalhadores. A devoção ao santo negro é
considerada uma das mais antigas na Ilha Tupinambarana e há autores que afirmam que a primeira
igreja edificada em Parintins foi em homenagem a São Benedito.

Nos últimos anos, os bois-bumbás parintinenses têm evidenciado manifestações afro e suas
heranças a nível local e regional. A religião de matriz africana tem sido mostrada nas apresentações
de figura típica regional (15º item avaliado pelos jurados) e de celebração/exaltação folclórica.

Mas ainda há negação e desconhecimento dentro e fora das associações folclóricas de boi-
bumbá em Parintins, perceptível pela reação das pessoas nos diferentes lugares da ilha e nas redes
sociais. Personagens essenciais como a Mãe Catirina, o Pai Francisco e o Gazumbá voltaram a ser
apresentados com maior destaque no Auto do Boi-bumbá obtendo falas como, por exemplo, na
toada de celebração da morte e ressureição do bumbá:

Amo do boi: Ê vaqueiro, fama real


Chamo, ninguém me responde
Olho, não vejo ninguém
Quero saber quem tirou a língua do meu boi
Não sei ao certo, mas desconfio quem foi.
Vaqueiro: Pronto, senhor meu amo
Desculpa a demora, mas aqui estou
Estava no campo de Mazagão
À procura do seu boi
Pelejei, mas não encontrei nenhum rastro pelo chão
Perdoe, senhor meu amo
Já parti meu coração
Amo: Reúna os caboclos e a vaqueirada
Pra capturar tinhoso matador
991

E traga amarrado o Pai Francisco


Que ele vai pagar com sua dor.
Vaqueiro: Pronto, senhor meu amo
Eis o fugitivo e sua mulher
Que está prenha e comeu a língua do boi
Seu desejo não ficou pra depois, depois.
Amo: Diga, Pai Francisco
Por que matou meu boi?
Pai Francisco: Não quis matar
Eu só queria a língua tirar
Pra desejo saciar
E Catirina não me apurrinhar
Dizendo que o nosso filho com cara de boi ia chegar.
Amo: Olha, seu cabra, paciência acaba
Tiro vida, sangue e ponta de barba
Caso não dê jeito no mais afamado touro do lugar.
Pai Francisco: Não se apoquente, meu patrão
Vou resolver essa questão
Vou chamar o curador poderoso pajé.
Rufa tamurá!
Balança maracá!
Rufa tamurá!
Balança maracá!
Amo: Urrou o meu novilho
Meu amado garantido
O meu povo está em festa
Viu meu boi ressuscitar
Boi, boi, boi, boi
Boi, boi, boi, boi
Tradição da festa de boi-bumbá
Boi, boi, boi, boi
Boi, boi, boi, boi
Essa tradição vamos celebrar.
(Dias; Moura; Andrade; Kennedy, 2016).

O destaque dado aos personagens negros em 2016 com a performance mais explorada do
Pai Francisco no Auto do Boi-bumbá com direito a falas ao mesmo foi um passo importante para
a ressignificação da presença negra no folguedo. uma vez que tal destaque até então não havia
ocorrido na arena do Bumbódromo de Parintins.

O boi-bumbá Caprichoso também apresenta novas abordagens e significados sobre a


presença afro na festa folclórica parintinense, conforme pode ser observado em uma de suas toadas
no ano de 2018:

Ôlelelelelê
Vou contar uma história do que aconteceu
Na fazenda dos Cid o mistério nasceu
Ôlelelelelê
O sumiço do meu touro negro amado
992

Deixei o descanso, fiquei foi zangado


Lelelelelê
Catirina invocada com desejo de embuchada
Pai Francisco dominado, apaixonado prometeu
Pai Francisco foi pro pasto
Procurar meu boi amado
E eu fiquei agoniado e perguntei
Cadê meu boi? (cadê meu boi?)
Perguntei a Gazumbá (não sei, meu senhor)
Com um tiro bem certeiro
Matou meu touro negro
Sua língua foi tirada
Morreu meu boi
O que foi que se assucedeu?
A tristeza tomou conta de mim
Meu boi no chão
Minha sinhá sofrendo aqui
Chamem o pajé, o curandeiro da floresta
Faça a pajelança pra trazer de volta o meu boi
E bate forte esse tambor
Alegria voltou
Boi Caprichoso brilhou
Ôlelelelelê ô
Meu povo brincou
Na festa do boi de Parintins
Meu boi voltou
Aqui se consagrou
Meu boi voltou
Touro negro voltou
(Roberto Júnior; Aguiar; Dabela Júnior, 2018)

A toada Auto do Boi Brasileiro cuja autoria é de Roberto Júnior, Adriano Aguiar e Júnior
Dabela é cantada pelo amo do boi, o dono da fazenda onde Pai Francisco e Mãe Catirina
trabalhavam, mas que na narração musical ambos não têm voz, ao contrário de Gazumbá, um
personagem negro que tem uma pequena fala, mas que até então também não havia tido tal
experiência.

Ainda que com avanços e ressignificações em relação a cultura negra no boi-bumbá deve-
se considerar que os personagens negros Pai Francisco, Mãe Catirina e Gazumbá ainda são
apresentados como personagens caricatos na celebração folclórica dos bois, tendo a função de
recolher adereços dentro da arena, divertindo o público e também causando discussão entre alguns
expectadores, mas sem muitas luzes sobre eles, sem o protagonismo que lhes é devido. Para
Cardoso (2016, p. 80) “[...] o negro, na brincadeira de boi-bumbá em Parintins, continua relegado
à marginalização, continua representando o lado da carnavalização, o lado grotesco da festa”.

Ainda há injúria, racismo e preconceitos em relação a cultura africana e afro-brasileira


apresentadas pelos bois-bumbás sobretudo quando são apresentadas as religiões de matriz africana,
993

pois, segundo Cardoso (2016, p. 177) “a posição do negro ainda é sub-hierarquizada, posta mais
como figuração do que como uma voz autorizada no boi”.

Com crescente evidência a partir do ano de 2016, a apresentação da cultura negra no


Festival Folclórico de Parintins, em particular, na evolução dos bois-bumbás Caprichoso e
Garantido tem tido seus pontos positivos que possuem novos significados como o destaque
crescente aos negros no Auto do Boi, demonstração das danças, batuques, lutas de quilombolas e
religiosidade afro (ainda que esta seja negada por um número considerável de torcedores). Houve
também a identificação com os personagens negros, uma vez que, até então muitas crianças
parintinenses desejavam se tornar itens como a cunhã-poranga, sinhazinha ou pajé, mas com as
novas abordagens e olhares sobre os negros nos dois bois pode-se ver crianças vestidas de Mãe
Catirina e Pai Francisco nos eventos de rua tradicionais dos bumbás.

Em 2019, os personagens negros Mãe Catirina, Pai Francisco, Gazumbá e a Mãe da Catirina
foram oficialmente apresentados aos jurados do Festival Folclórico de Parintins. Os avaliadores
criticaram através de uma carta oficial o uso de Black Face por parte dos personagens das duas
associações folclóricas Boi Caprichoso e Boi Garantido. As considerações dos jurados aqueceram
as discussões na sociedade parintinense sobre o uso de Black Face e o respeito a identidade negra.
Mas deve-se considera que existem divisão entre torcedores que defendem o uso de pintura negra
em pessoas brancas como algo tradicional e outros que repudiam tal atitude estereotipada e racista.
Tais discussões e atitudes vem surgindo com efervescência, mas ainda com muito a se desenvolver
com relação ao respeito e reconhecimento da cultura afro.

Conclusão

Não diferente do âmbito regional, em Parintins também há o estranhamento e negação em


relação a cultura negra na formação da identidade cultural da Amazônia, assim como no Estado do
Amazonas. As identidades afro aparentam ainda estar sendo reveladas aos que a desconhecem, a
ignoraram ou mesmo silenciam. As pesquisas realizadas nos últimos anos vêm expandindo as
análises que ainda estavam limitados em algumas áreas do conhecimento. As lutas de quilombolas,
as histórias do silenciados, a reflexão mais ampla sobre a diversidade cultural amazônica, a
religiosidade afro-brasileira, a miscigenação dos povos e fronteiras étnico-raciais tem contribuído
para novas contribuições científicas sobre a presença negra no Estado do Amazonas.

O sentimento de pertencimento à cultura negra no território de Tupinambarana, sobretudo


no boi-bumbá ainda está em processo, necessitando de mais análises sobre a matriz afro, suas
994

influências e impactos na cultura local. Deve-se considerar, a relevância da identidade negra na


Amazônia e desconstruir equívocos provenientes da falta de conhecimento sobre as vivências afro
na região.

Referências

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996

A relação da Igreja Católica no Brasil e o governo de Getúlio


Vargas: a Arquidiocese de São Paulo – o uso de jornais católicos

Jéssica Thaís de Oliveira*

Resumo: O presente trabalho discute a relação do governo de Getúlio Vargas com a Igreja
Católica, mostrando seu desenvolvimento acerca do corporativismo – com foco em sua recepção
na Arquidiocese de São Paulo. Utilizando-se das encíclicas papais Rerum Novarum (1891) – que
surgiu com prerrogativas de uma terceira via ao capitalismo e ao socialismo, tecendo críticas ao
liberalismo econômico e ao socialismo da época – e a Quadragesimo Anno (1931) – como uma
resposta às novas inquietações da questão social, provenientes da crise do capitalismo e do avanço
do socialismo – para ligar o corporativismo e a questão social discutida pela Igreja Católica com o
lançamento da primeira encíclica. A influência que a Igreja Católica desenvolve durante o governo
de Getúlio Vargas – principalmente nos anos de 1930-1934 – é fruto da relação estabelecida entre
Estado e Igreja através do mesmo público: o operariado urbano. A Igreja Católica visava alcançar
não só os católicos, como também os leigos, com o intuito de trazer os atuais fiéis para mais perto
da fé cristã e de angariar novos fiéis. Já o Estado regulariza e controla o operariado urbano com a
criação do Ministério do Trabalho (1930), com o manejo dos sindicatos através da Lei da
Sindicalização – decreto 19. 770 (1931) e estabelecendo os direitos trabalhistas na Constituição de
1934. O uso dos livros tombos de algumas dioceses de São Paulo e de revistas católicas, “O
Legionário” e “A Ordem”, são utilizados como meios de compreender as relações da Igreja
Católica com os trabalhadores. Enquanto no Rio de Janeiro a revista “A Ordem” se desenvolvia
cumprindo seu papel de difundir a doutrina cristã e combater as oposições à Igreja de forma a se
desenvolver na população, em São Paulo “O Legionário” sob a direção de Plínio Côrrea seguia
tratando de diversos assuntos importantes e de forma mais direta com os fiéis. Esse processo de
estudo tem como intuito uma maior compreensão da relação criada entre o Governo Vargas e a
Igreja Católica, para elucidar a recepção e utilização não só dessa relação mas do corporativismo
na Arquidiocese de São Paulo.

Palavras chave: Igreja Católica, Getúlio Vargas, Corporativismo, Jornal.

O presente trabalho faz parte de uma pesquisa em andamento, cujo objetivo consiste em
elaborar uma avaliação da relação do governo de Getúlio Vargas com a Igreja Católica, mostrando
seu desenvolvimento principalmente acerca do corporativismo – com foco em sua recepção na
Arquidiocese de São Paulo. A utilização e os possíveis resultados da investigação de duas fontes
primárias: o jornal oficioso da Igreja Católica “O Legionário” e a revista oficial da Igreja Católica
“A Ordem” são o foco da discussão no trabalho.

* Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: jeah.thais@usp.br
997

A Igreja Católica no Brasil como instituição durante o período colonial e imperial manteve-
se ligada ao governo, seja ele português ou o Brasil recém-criado e independente. Durante o
período colonial, Dermi Azevedo pontua que um novo modelo de catolicismo é implantado,
conhecido como cristandade: “Nele, a Igreja era uma instituição subordinada ao Estado e a religião
oficial funcionava como instrumento de dominação social, política e cultural.” (Azevedo, 2004).

Durante o período do império, a manutenção das tradições familiares em torno de manter


o catolicismo forte foi preservada, assim como pontua Hans Herbet M. Henze:

Nesta nova fase da história nacional, o episcopado - assim como o clero -,


mantinha-se pouco numeroso, não acompanhando o crescimento da população,
e sua influência não era significativa. Mantiveram-se neste primeiro momento de
emancipação política as linhas de manifestação religiosa, que se tornaram
fundamentais anteriormente, baseadas no trabalho das confrarias e nas tradições
familiares. (Henze, 1995, p. 19).

Porém, a intromissão ativa do governo, principalmente durante o Segundo Reinado


brasileiro intensificou-se, com as atividades da Igreja sujeitas às censuras das autoridades públicas
imperiais. (Henze, 1995). Durante o Segundo Reinado observa-se a romanização do catolicismo,
que segundo Azevedo a Igreja é colocada sob as vontades do Papa, não sendo vista mais como
uma instituição vinculada à coroa luso-brasileira. (Azevedo, 2004).

O intuito da Igreja Católica de buscar autonomia em suas atividades clericais e de atuação


perante a população brasileira, alcançou realização na Primeira República brasileira instaurada em
1889. Dentro deste contexto, a Igreja Católica – que desde os primórdios do Brasil mantém uma
força social e política – ganha certa liberdade de ação em seus interesses sem estar ligada ao
governo, mas mantém-se atenta em assuntos ideológicos e políticos e procura assegurar seu poder,
com ênfase em uma reestruturação perante os fiéis.

Após a Revolução de 30 e a entrada de Vargas no poder, a estrutura política republicana


criada na década final do século XIX dissipa e, nesse novo cenário político, a Igreja Católica busca
mecanismos para intensificar a presença do catolicismo no Brasil, através da relação entre Igreja e
a sociedade dentro de um aparelho que envolvia o crescimento da organização trabalhista no Brasil.
Com os direitos trabalhistas e a manutenção do controle acerca dos sindicatos, o trabalhismo
durante o governo Vargas toma forma e é através dele que a Igreja Católica procura se fortalecer
quanto aos fiéis e leigos. (Oliveira, 2020).

A ideia de trabalho é o vértice entre o governo de Vargas e da Igreja Católica


como instituição no Brasil. Em 1930, após a revolução de 30, inicia-se o governo
provisório de Getúlio Vargas e com ele a criação de dois novos ministérios: o da
Educação, saúde pública e trabalho e o da Indústria e comércio. Em 1931 a Lei
998

da Sindicalização é estabelecida pelo governo, com as associações operárias


operando na órbita do Estado, como Maria Celina D'Araujo complementa: “Os
sindicatos passavam a ser órgãos de colaboração com o Estado e qualquer
manifestação política ou ideológica proibida.” (D'Araujo, 2003, p. 223).

A ideia de trabalho na Igreja Católica, segundo Jessie Jane Vieira de Souza, surge como
combate do pecado original, levando ao aperfeiçoamento do homem, sendo lugar de vivência de
fé. Dessa forma, participar das organizações de trabalho era essencial, afinal: “(...) para Pio X e Pio
XI e os papas posteriores, o trabalho constitui cada vez mais uma preocupação fundamental, pois
nele reside o perigo da desordem social.” (Souza, 2002, p. 71). Assim como Angela de Castro
Gomes aponta: “Só o trabalho podia constituir-se em medida de avaliação do valor social dos
indivíduos e, por conseguinte, em critério de justiça social.” (Gomes, 2005, p. 238). Estando a
população católica orientada ao ato de trabalhar, tanto por vias do governo quanto por vias da sua
fé.

Para intensificar o estudo da relação entre Estado e Igreja, a leitura e a reflexão de duas
encíclicas papais412 são pontos chaves do trabalho. A encíclica do Papa Leão XIII, a Rerum Novarum
e a do Papa Pio XI, Quadragésimo Anno se colocaram em momentos diferentes da história, quanto a
ideia de trabalho principalmente. A primeira foi elaborada em 1891, surgindo com prerrogativas de
uma terceira via ao capitalismo e ao socialismo, com críticas ao liberalismo econômico e ao
socialismo da época. Já a segunda em 1931, sendo vista como uma resposta às novas inquietações
da questão social, provenientes da crise do capitalismo e do avanço do socialismo “(...) que visava
estabelecer uma ordem jurídica e social que se contrapusesse ao projeto social do liberalismo e que
garantisse uma equitativa distribuição de renda produzida.” (Souza, 2002, p. 89).

A Rerum Novarum consiste em uma encíclica que trata da questão social pela primeira vez e,
como pontua Deivison Gonçalves Amaral: “A encíclica oferece argumentos que visam a oferecer
respostas à questão social e a criar um modelo normativo para a sociedade cristã idealizada.”
(Amaral, 2015, p. 25). Desenvolvendo explicações acerca das causas do conflito do mundo
trabalhista:

Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que


entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a
influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da
multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários foram de si mesmos
e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes,
deu um resultado final um temível conflito. (Leão XIII, 2009, p. 9)

412 Encíclica consiste em uma carta circular abordando algum tema da doutrina católica.
999

A encíclica discute as causas do conflito e uma possível solução para a condição dos
operários que seja justa e com equidade:

(…) vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão,
pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século
passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que
eram para eles uma proteção; os princípios e o sentimento religioso
desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim pouco a pouco, os
trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo,
entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência
desenfreada. (Leão XIII, 2009, p.10)

A encíclica tece críticas a solução socialista principalmente ao que tange a propriedade


privada. A propriedade particular, segundo a encíclica, é um direito, já que é o salário do operário
transformado, além de ser um direito natural do homem. Outros assuntos são tratados - dentro da
órbita da crítica ao sistema socialismo - como a relação da família com o Estado, pontuando a
problemática do poder civil entrar no santuário da família. As críticas são lançadas para o
comunismo, discorrendo sobre a possível solução que a encíclica trabalha para a questão social,
eficaz na religião e na Igreja.

Uma análise da encíclica quanto a condição dos homens perante a ideia de classe413 é
importante para o maior entendimento do pensamento da instituição Igreja Católica frente ao
termo e a realidade dos operários. É discutido uma concórdia entre as classes e não uma luta: “O
primeiro princípio a pôr em evidência, é que o homem deve aceitar com paciência a sua condição:
é impossível que na sociedade civil todos sejam elevados ao mesmo nível.” (Leão XIII, 2009).

Dentro dessa discussão, a importância do trabalho é intensificada no discurso da encíclica,


com as obrigações dos operários e dos patrões, a dignidade que o trabalho dá, o papel da Igreja e
do Estado perante os assuntos trabalhistas, os salários dos operários e acerca da existência e
benefício das corporações operárias – inclusive as associações operárias, explanados no restante
dela.

Já a Quadragesimo Anno data de 1931, inserida em outro contexto mundial, consiste na


encíclica de comemoração ao aniversário de XL anos da encíclica Rerum Novarum. O Papa Pio XI
pontua sobre a relação das classes que a encíclica Rerum Novarum discorre e sobre a solução de
papel da Igreja perante a questão social sendo a prática da caridade, exposta por Leão XIII.

413Uso da palavra “classe” devido a tradução da própria encíclica. Segundo Jessie Jane Vieira de Souza em seu livro
“Círculos operários – A Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil”: “O catolicismo social, porém, tentou dar
um novo significado ao conceito de classe, conferindo-lhe o sentido de classe trabalhadora que se constitui a partir do
ato de produzir, de trabalhar.” (Souza, 2002, p. 37)
1000

Na Quadragesimo Anno destaca-se:

julgamos dever Nosso aproveitar esta ocasião para recordar os grandes


(...)
benefícios que dela advieram à Igreja católica e a toda a humanidade defender a
doutrina social e económica de tão grande Mestre satisfazendo a algumas dúvidas,
desenvolvendo mais e precisando alguns pontos; finalmente, chamando a juízo
o regime económico moderno e instaurando processo ao socialismo, apontar a
raiz do mal estar da sociedade contemporânea e mostrar-lhe ao mesmo tempo a
única via de uma restauração salutar, que é a reforma cristã dos costumes. (Pio
XI, 1931, p.4)

Perpassando a encíclica, mantém-se a ideia de defesa dos operários que viviam em miséria
discutida na Rerum Novarum, relata os deveres e direitos quanto as relações de operário e patrão e
das atitudes que a Igreja Católica, a autoridade civil e de interessadores quanto a questão social.

Segundo Angela de Castro Gomes “É fundamental observar que a questão social surgiu
então como a grande marca distintiva e legitimadora dos acontecimentos políticos do pós-30.”
(Gomes, 2005, p.197) A partir disso, temos a necessidade da pobreza e do trabalho entrarem na
cena política brasileira, para transformar a situação do povo brasileiro e alcançar a finalidade da
obra revolucionária do governo. (Gomes, 2005).

A questão social se torna uma questão política e ao se tornar foco do Estado tinha que partir dele
mesmo:

Se a legislação social não era um meio de acabar com a pobreza, era um


expediente necessário que, associado a outras medidas, poderia dar ao
trabalhador uma situação mais humana e cristã, conforme aconselhava a doutrina
social da Igreja desde a Rerum Novarum. (Gomes, 2005, p. 198).

Dentro do contexto estabelecido acima – de inserção do trabalhador na cena política


brasileira – a discussão sobre o corporativismo insere-se junto. Segundo Gomes, em 1942 e 43 têm-
se a implementação do projeto de organização sindical corporativista do Estado brasileiro: “(...) a
dimensão política do projeto corporativista foi acionada para respaldar um regime que buscava
saída do autoritarismo.” (Gomes, 2005, p. 255)

Gomes discorre sobre as menções que Marcondes Filho414 faz à encíclica Rerum Novarum,
destacando a originalidade do corporativismo brasileiro, que enxergava o trabalhador brasileiro
como uma pessoa que possuía relacionamento com o seu trabalho e que através dele se relacionava
com os outros homens e com o Estado. (Gomes, 2005).

Alexandre Marcondes Filho foi nomeado por Vargas ministro do trabalho em 1941, intensificando e promovendo
414

o controle estatal sobre as organizações sindicais. Consultar:


<https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/marcondes_filho>
1001

Vale destacar a definição cunhada por Maria Celina D'Araujo sobre o corporativismo. Para
a autora, o corporativismo é o modelo doutrinário que inspirou o sindicalismo brasileiro,
considerado uma saída intermediária entre o capitalismo e o socialismo, com a manutenção das
hierarquias na sociedade mas em busca de diminuir a desigualdades sociais, para evitar e banir a
luta de classes e de gerar harmonia social, progresso, desenvolvimento e paz. Um investimento em
um Estado forte seria necessário, levando a uma organização das sociedades através dos ramos de
produção econômica ignorando ideologias, com a colaboração da população. Dentro disso, os
sindicatos funcionariam como modernas corporações que cumpririam o papel organizador da
sociedade para facilitar os interesses do capital e do trabalho.

Estabelecida a relação entre o governo de Vargas e a Igreja Católica, a análise em andamento


na atual pesquisa da Arquidiocese de São Paulo dá-se, entre outros documentos, de seus Livros de
tombo415.. Esta passou por cinco fases416, correspondendo ao tempo desse projeto a terceira fase
(1929 a 1964), baseada na teologia da restauração católica, com expoente no Cardeal D. Sebastião
Leme417. (Oliveira, 2020).

A análise de alguns tombos específicos418 pontuam uma conjectura acerca da preocupação


por parte da Igreja Católica acerca da situação do Estado pós revolução de 30, promovendo rezas
diárias na matriz a favor da paz, ou seja, atuações dentro da Arquidiocese de São Paulo.

De forma geral, a grande maioria dos tombos analisados discorrem sobre a ação da Igreja
na vida dos trabalhadores urbanos, principalmente os operários católicos e sobre a importância do
ensino religioso nas escolas, como um acompanhamento da situação do decreto. Como os livros
tombos são escritos geralmente pelos padres responsáveis pela Diocese e de acesso restrito, neles
são obtidos informações das possíveis opiniões da Diocese e de ações diretas realizadas entre a
Igreja – de forma local – e os fiéis.

Em vias de análise da instituição Igreja Católica e a população, a leitura de artigos do jornal


oficioso da Arquidiocese de São Paulo, “O Legionário” e da revista oficial, “A Ordem” adicionam
à pesquisa. Enquanto no Rio de Janeiro a revista “A Ordem”419 se desenvolvia cumprindo seu papel

415 Do direito português, a palavra “tombar” significa registrar. O livro tombo mantem o registro das Dioceses.
416 A Arquidiocese passou por cinco fases: 1) 1745 – 1824, 2) 1824 – 1938, 3)1920 – 1964, 4) 1964 – 199 e 5) 1998 até
os dias atuais.
417 Nascido em 1882 e formado em filosofia, antes de se tornar Bispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro, assume a

arquidiocese de Olinda e Recife (1916), vira em 1921 arcebispo ajunto no Rio de Janeiro e apoia Jackson de Figueiredo
na criação do Centro Dom Vital. Além de defensor assíduo do ensino religioso no Brasil.
418
Cabe destacar a análise do Tombo 3 (referente aos anos de 1929 até 1941) da Paróquia de São João Batista do Brás,
documento eclesiástico com grandes informações acerca do Governo de Getúlio Vargas. A escolha de uma análise
inicial dos tombos se deu pelas suas localizações, sendo eles os do Brás (leitura de dois tombos), o de Cotia, da Sé e da
Mooca (leitura de dois tombos).
419 Fundada em 1921, por Jackson de Figueiredo, que também fundou o Centro Dom Vital em 1922.
1002

de difundir a doutrina cristã e combater as oposições à Igreja de forma a se desenvolver na


população, em São Paulo “O Legionário”420 sob a direção de Plínio Côrrea421 seguia tratando de
diversos assuntos importantes e de forma mais direta com os fiéis.

O jornal “O Legionário” em seu artigo de número 68 do ano de 1930, levou até o público
católico a importância da ação católica no Brasil, com destaque na necessidade do estudo da sua
tradução prática, o intuito do reconhecimento universal e o triunfo do reino social pela ação
católica, ou seja, a cristianização social como reconstrução da sociedade.

Antes da revolução de 1930, no artigo de número 46 do ano de 1929, o artigo “O Vaticano


e o Kremlin” contextualiza o meio mundial quanto ao “vírus soviético”, como eles chamaram o
comunismo. Destacando pontos importantes no que tange a importância das palavras do vaticano
expressas pela encíclica Rerum Novarum:

1) A Egreja Catholica, mantendo intactos os principios firmados por Leão XIII


na sua luminosa Encyclica “De Rerum Novarum, colloca-se em relação á questão
social, em um ponto de vista diametralmente opposto ao do communismo; 2)
esta posição da Egreja em face da questão social não pode, em caso algum, ser
alterada porquanto qualquer concessão feita aos ideaes socialistas ou
communistas, fóra dos limites traçados por Leão XIII, é, indubitavelmente,
contraria aos princípios cristãos. (O Vaticano e o Kremlin, 1929, p. 3)

Em 1931, o jornal promoveu um estudo com os leitores do “Legionário” sobre a encíclica


Rerum Novarum de 1891, nos artigos de números 72, 73 e 74, sobre a condição do operariado. O
artigo de número 72 contextualiza a encíclica, fornecendo informações acerca das condições da
Europa e do mundo quanto as doutrinas socialistas como males que atingem indivíduos, famílias
e sociedades. Após a contextualização, o artigo pontua que o assunto principal seria o mal estar
operário e os erros do socialismo para com o povo, marcando conselhos da Igreja perante as ações
do Estado e a necessidade de cooperação entre patrões e operários.

A primeira parte do estudo acerca da encíclica consiste em uma discussão sobre a motivação
da separação de patrões e operários e o que influência os operários às suas ações errôneas – perante
obviamente ao que a Igreja julgava correto. Dentro disto, a discussão acerca da propriedade
privada é reforçada como um direito natural e caso tenha o controle do Estado é visto como uma
violação deste direito além da perturbação da sociedade que colocaria a todos à miséria, privações

420 Artigos do jornal O Legionário (1930 – 1932), disponível para download em


<https://www.pliniocorreadeoliveira.info/legionario_colecao_192747.htm#.X5l6nm5KjIU> acesso: 28/10/2020.
421 Nascido em 1908, já em 1928 era líder da Juventude Católica. Fundando a Ação Católica Universitária e deputado

do Rio de Janeiro em 1932.


1003

e infortúnios do mundo. Destaque para a importância de se viver conforme a ordem divina, a


obediência não pode ser dificultada.

A segunda parte do estudo realizado sobre a encíclica está no artigo de número de 73 e


inicia-se com explicações acerca dos deveres e direitos de cada classe422 de acordo com a encíclica:
“As duas classes, operaria e capitalista, não foram creadas como inimigas, mas pará se entenderem,
pois ambas são mutuamente necessárias. Se, como mandam as doutrinas christãs, cada qual
satisfizesse seus deveres seriam satisfeitos os direitos co'ntrarios.” (A Encyclica Rerum Novarum
Sobre a Condição do Operariado, 1931, p. 2). Concluindo que a Igreja seria o meio de unir em um
laço de amizade ambas as classes.

A terceira parte do estudo sobre a encíclica está no artigo de número de 74 e delimita o


campo de ação do Estado, como protetor dos operários, não interferindo na liberdade do indivíduo
e da família, somente em questões de remediação de injustiças ou exigências desumanas contra os
operários ou quando estes provocam greves e distúrbios. Permeando as soluções em torno da
moral católica e de alguns estabelecimentos quanto ao dia a dia do trabalho, como a fixação do
salário: “Neste caso, para evitar alguma intervenção descabida do Estado, seria melhor a existência
de corporações que defendessem e protegessem o operariado.” (A Encyclica Rerum Novarum
Sobre a Condição do Operariado, 1931, p. 9) Com delimitações dos intuitos destas possíveis
corporações.

O peso que o estudo da encíclica Rerum Novarum em um jornal que atinge fiéis católicos
reside no alcance maior das palavras proferidas pelo Papa Leão XIII e da própria instituição Igreja
Católica no Brasil. Encaixando em um dos intuitos do próprio jornal “O Legionário” ao
demonstrar de forma prática a ação católica, de traduzir para os fiéis o pensamento católico para
ser seguido e até mesmo alcançar novos fiéis.

Como tratado acima, o desenvolvimento mais concreto e visível do corporativismo ocorre


no final de 1942, junto com o encaminhamento do fim de um governo autoritário para fins de uma
possível continuação mais democrática.

O artigo de 1937 do jornal “O Legionário, intitulado “Corporativismo” demonstra o apoio


católico ao corporativismo, como uma reforma econômica e social para benefício das sociedades
humanas; tornando-se possível em vários tipos de regimes políticos. Ressalta-se a posição dos
católicos perante a organização corporativa do Brasil, em frente de apoio simpatizante com a
instauração do corporativismo e quanto às iniciativas de caráter oficial que coincidem com o

422Vale pontuar que a palavra “classe” está sendo utilizada porque o próprio jornal “O Legionário” a utilizou. Olhar
nota de rodapé de número 4.
1004

pensamento social da Igreja, especificando que mesmo se a posição do governo desagradar têm-se
uma posição estagnada quanto ao corporativismo.

Além do estudo sobre a encíclica Rerum Novarum, o jornal intensificou a importância do


ensino religioso além de acompanhar o andamento da inserção deste nas escolas perante as ações
do governo, discutiu sobre a constituição – durante a promoção de que aconteceria uma elaboração
de uma constituição em 1931 – e fomentou discussões sobre o trabalho, inclusive sobre os
sindicatos católicos.

As leituras da revista “A Ordem” estão em andamento, verificado que a trajetória da revista,


que está interligada com o Centro Dom Vital423, compõe artigos que são de teor mais instrutivos e
informativos sobre a religião cristã, discorrendo sobre uma mudança de ritmo acerca do foco da
religião católica no Brasil: “Todos nós estamos muito longe de ter a cultura religiosa que devíamos
ter.” (A Ordem, 1929, p. 99).

Após a morte de Jackson de Figueiredo424 em 1928, o jornal promove as discussões em


torno do seu fundador, da sua forma de pensar, de seu legado. Seus artigos começam a discorrer
sobre a ação da Igreja Católica no Brasil – incisiva quanto à necessidade da população de se fazer
parte da doutrina católica, ponto de convergência com o jornal “O Legionário.” (Oliveira, 2020).

O estudo da relação estabelecida entre Estado e Igreja e os alcances da própria relação dá-
se pelo alto, ou seja, pelas instituições. Através da análise dos pontos de convergência que a Igreja
e o Estado e como ambos desembocavam seu poder e influência no operariado urbano do Brasil
– ponto e público de desenvolvimento da relação entre ambos – nos anos do governo de Getúlio
Vargas, utilizando de meios institucionais, como os livros tombos e os jornais, para uma avaliação
da recepção do corporativismo na Arquidiocese de São Paulo.

O governo de Vargas se estabelece como ponto de organização e controle do operariado


urbano. A Igreja Católica visava alcançar os fiéis católicos e se possível os leigos, com o intuito de
trazer os atuais fiéis para mais perto da fé cristã e de angariar novos fiéis, ambos com entornos do
corporativismo.

423 O Centro Dom Vital é uma associação civil com sede no Rio de Janeiro, com a finalidade de cooperar com o
movimento social católico no Brasil. Fundado por Jackson de Figueiredo. Informações retiradas da tese de mestrado
“O Centro D. Vital: Igreja sociedade civil e sociedade política no Brasil (1930 – 1945). de Hans Herbert M. Henze.
424 Jackson Figueiredo nasceu em Aracaju – Sergipe em 1891. “Em 1922 fundou o Centro Dom Vital (CDV), sob linha

ultramontana, e a revista A Ordem, para divulgar a doutrina católica na esfera cultural. Através do Centro e da revista
combateu o liberalismo, o comunismo e a revolução de modo geral.” Texto retirado de:
<https://www.institutojacksondefigueiredo.org/nosso-patrono> acesso em 15/12/2020.
1005

Como exposto acima, o jornal “O Legionário coopera na aproximação da Igreja Católica


perante os fiéis, demostrado em artigos que visavam atingir o operariado urbano, destrinchando a
encíclica Rerum Novarum por exemplo. Além de tratar dos assuntos em pauta referentes ao
governo: constituição, corporativismo, educação religiosa, dentre outros. Juntamente com o jornal
“O Legionário”, a revista “A Ordem” é importante devido a organização das organizações católicas
ligadas ao Centro Dom Vital e ao alcance de mais fiéis e leigos. Estando ambos como fontes úteis
para o estudo da relação entre a Igreja Católica no Brasil e o governo de Getúlio Vargas,
demonstrando como a Igreja Católica procurava expor os dogmas estabelecidos pela autoridade
papal.

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<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=367729&pasta=ano%20192&pesq=>
acesso: 02/11/2020.

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1007

Um Estudo Comparativo: A Negociação da Imigração Chinesa ao


Brasil (1879-1889)

Jinxu Wang *

Resumo: Já em 1809 foram registrados casos de chineses enviados ao Brasil. À medida que o
tráfico de escravos passou a ser alvo internacional de crítica, os proprietários agrícolas tentavam
procurar alternativas de mão-de-obra. E o desenvolvimento rápido de cafeicultura promoveu estes
esforços. Começou então a negociação de imigrantes chineses ao Brasil. Do ano de 1879 até 1893,
foram lançadas quatro missões pelos dois países, nos quais foram produzidas memórias históricas
variadas, redigidas por testemunhas diplomáticas, tais como cartas, reportagens e recordações de
viagens, etc. Ao contrário de esgotar todos os detalhes dos acontecimentos relativos nesse período,
a análise restringe-se às primeiras três missões (1879, 1883, 1887) ocorridas durante o Império do
Brasil, e às reações e explicações variadas, dadas por diplomatas, dos contextos culturais
diferenciados enfrentando os mesmos acontecimentos. Nesse caso, o recorte teórico insere-se na
história da relação sino-brasileira, e situa-se nos estudos de emigração chinesa no século XIX, mais
especificamente, no quadro teórico de Trabalhadores sob Contrato, isto é, Indentured Labor
(Galenson, 1984, p. 23; Northrup e Richardson, 1995; Varma, 2017).

Palavras-chave: Imigração chinesa, Relações internacionais, História Política.

O século XIX se destacou pelo desenvolvimento da economia-mundo, quando produtos


manufaturados se movimentavam pela rede comercial global, com a industrialização e a expansão
da Grã-Bretanha. A partir de Galenson (1984), “a procura de mão-de-obra livre de baixo custo
desovou a migração de trabalhadores sob contrato”. Por isso, estudos de migração chinesa do
século XIX possuem um ramo de marca de época, estudos de coolies, ou seja, estudos de
Trabalhadores sob Contrato (Indentured Labor). Além das indústrias, os coolies preencheram a lacuna
de mão-de-obra de grandes plantações estimuladas e desenvolvidas pela “Chá Mania425” nas
colônias britânicas da Ásia, o que inspirou o recrutamento de coolies para o setor de agricultura nas
colônias espanholas e holandesas. Os vizinhos do Brasil, como o Caribe Francês, Guiana
Holandesa, Peru, Cuba e Taiti, tornaram-se rapidamente o destino principal do tráfico de coolies.
Entre as décadas de 1840 e 1910, partiram da China 386.901 coolies, emigrando para o Caribe

* Aluna pós-graduando em Letras Estrangeiras e Tradução, FFLCH, Universidade de São Paulo.


https://orcid.org/0000-0001-8477-1301. Email: wang_jinxu@outlook.com.
O artigo é parte integrante da dissertação de mestrado, ainda em andamento, orientada pelo professor SHU
Changsheng.
425 A Chá Mania, em inglês tea mania, o crescimento espetacular e especulativo da indústria do chá de Assam durante a

década de 1860 e o consequente custo humano foram sujeitos a uma série de perguntas oficiais, comentários
contemporâneos e estudos históricos.
1008

Britânico (18.587), Caribe Francês (2.250), Guiana Holandesa (2.979), Cuba (138.156), Peru
(117.432) etc. (Northrup e Richardson, 1995, p. 783). A corrente de origem-mercado, por meio de
portos costais da Euro-América - Ceilão (atual Sri Lanka), Shantou, Macau, Hong Kong, Singapura,
Jesselton (atual Kota Kinabalu, na Malásia), Williamsburg, Montreal, Havana, Lima, Callao, etc. -
possibilitou e facilitou o fluxo tanto de produtos de trabalho intensivo como chá, pimenta, açúcar,
guano e, mais tarde, borracha e café, quanto de milhares de asiáticos que trabalharam
compulsoriamente ou não-compulsoriamente nas grandes plantações, formando uma grande rede
migratória na época.

O lucro impressionante de Cuba, Peru e Estados Unidos atraiu os olhares de brasileiros


quem possuíam grandes fazendas. No fim da década de 1860, com a expansão de cafeicultura em
São Paulo e o destaque do movimento antiescravidão, destacou-se a escassez de mão-de-obra na
lavoura, o que promoveu a publicação de A crise da lavoura (escrito por Quintino Bocaiúva) e A
importação de trabalhadores chins (escrito por João Pedro Xavier Pinheiro). As duas obras acenderam
um fogo na discussão ao redor da imigração chinesa ao Brasil. “Tratavam então, essas opiniões, de
envolver, na resolução do problema da oferta de força de trabalho no campo pós-escravista, o
recurso à contratação de coolies (Barreiros, 2016, p. 98)”.

Neste contexto, a primeira Missão Especial à China foi aprovada para “a resolução do árduo
problema que, há alguns anos, conserva em crise permanente a sociedade brasileira: ‘A
transformação do trabalho.’” (Lisboa, 2012).

Primeira missão especial à China (1879)

Em 1879, foram nomeados ministros plenipotenciários da missão o diplomata Eduardo


Callado e o contra-almirante Arthur Silveira de Motta, futuro Barão de Jaceguay. Henrique Carlos
Ribeiro Lisboa foi nomeado secretário da missão especial. Luís Felipe Saldanha da Gama e
Alexandrino Faria de Alencar foram nomeados como adidos militares (Franco e Scomazzon, 2020,
p. 242).

A missão foi organizada num ambiente polêmico, discutindo a chamada “Questão Chinesa”
enquanto muitos argumentos opostos pareciam ter, na visão de hoje, preconceito racista e
eurocentrismo, com palavras como “chins426”, “degradação”, “raça parada há mais de mil anos”
etc. (Dezem, 2015, p. 104). Vale notar que, focalizaram na “efetividade” todas as discussões, tanto

426
O nome “chins” possui um sentido pejorativo, mas para manter a originalidade das fontes, a palavra não foi
mudada nas citações. Isso não representa posição e opiniões da pesquisadora.
1009

a favor quanto contra a imigração chinesa ao Brasil, e, ao mesmo tempo, as discussões de


“viabilidade” foram invisíveis. De verdade, a missão enfrentava também uma grande pressão
internacional, tanto aos países ocidentais quanto ao seu destino, a China.

Quando a missão estava a caminho de Paris, a Anti-Slavery Society dirigiu um protesto ao


ministro TSENG Chi-tse427, embaixador da China em Londres, Rússia e Paris, contra a introdução
de trabalhadores chineses no Brasil, mostrando uma posição clara da sociedade inglesa nesse
assunto (Franco e Scomazzon, 2020, p. 243). Devido à falta de contatos, o diplomata chinês
consultou registros e obras em língua francesa e inglesa sobre Brasil. Além disso, o protesto foi
encaminhado a Tsung-Li Yamên428, que respondeu com o seguinte telegrama:

Ainda não recebemos mensagens sobre a chegada da missão à China. Podem


discutir com os diplomatas para entender os motivos deles. Mas, em princípio,
não há nenhuma possibilidade para o recrutamento de trabalhadores chineses.
(Li, 1997, p. 2749, vol. 2).

Sendo assim, o TSENG informou ao Barão de Penedo, ministro brasileiro na Grã-


Bretanha, que:

Em consequência do tratamento excessivamente injusto e cruel que emigrantes


chineses têm recebido em outros países[...] é resolução inalterável (do governo
chinês), de declinar, qualquer espécie de proposta de emigração. (Franco e
Scomazzon, 2020, p. 242).

Ao mesmo tempo, TSENG estava negociando com os Estados Unidos para impedir a
entrada de trabalhadores chineses na California para proteger os imigrantes chineses. No entanto,
depois, isto resultou num documento com influência inesperada, ou seja, o Chinese Exclusion Act
(1882).

Nesse contexto, diplomatas brasileiros declaravam oficialmente que procuravam assinar um


tratado de amizade, comércio e navegação. No dia 8 de junho de 1880, a missão chegou a Tien-
Tsin429.

427 Tseng Chi-tse (Chinese: ; pinyin: Zēng Jìzé; Wade Giles: Tseng Chi-tse) (1839 – 1890), filho de TSENG
Kuo-fan, marquês na dinastia Qing, e diplomata chinês. Ele presidiu na negociação do Tratado de São Petersburgo (1881).
Foi embaixador da China em Londres, Rússia e Paris (1878-1885). Seu artigo China, the Sleep and the Awakening, publicado
em Asiatic Quarterly Review em Londres (1887), explicou a política externa do governo chinês da época.
428 Tsung-Li Yamên (Chinese: ; pinyin: zǒ ng lı̌ yá men; Wade Giles: Tsung-Li Yamen), órgão governamental
encarregado da política externa da China Imperial durante o final da dinastia Qing. Foi criado pelo príncipe Gong em
1861, após a Convenção de Pequim. Pode ser visto como o ministério de Relações Exteriores da China da época (mas a
sua responsabilidade e localização na estrutura administrativa chinesa é bem diferente de um ministério moderno).
429 Tien-Tsin (Chinese: ; pinyin: Tiānjīn; Wade Giles: Tien-Tsin), cidade litoral no Norte da China. Uma das
maiores cidades chinesas na época e fica perto do capital, Pequim.
1010

Em comparação com os preconceitos sobre chineses no Brasil, a missão encontrava, na


China, um outro estereótipo em relação ao Brasil. De acordo com as investigações de Paris, vice-
rei LI Hung-Chang430 imaginava o Brasil como se fosse um país recém-nascido de colônias, situado
em ilhas ou no litoral de continente, tal como Cuba e Peru. Quando ele perguntou as informações
do país, os diplomatas brasileiros “notaram a total ignorância do vice-rei” por ele “perguntar se
este era banhado por algum mar.” (Franco e Scomazzon, 2020, p. 269).

A conversa sobre imigração chinesa ao Brasil entre LI e Callado foi registrada pelos dois
países, em chinês:

LI perguntou: “O Brasil tratou chineses como escravos? Ouvimos isso.” Callado


respondeu: “Não. Chegaram ao Brasil cerca de dois mil chineses, todos vieram
por vontade própria. Foram bem tratados no Brasil, até se casaram com
brasileiros. No navio da nossa missão têm três soldados chineses que queriam ir
ao Brasil. Tudo por causa do tratamento de igualdade entre chineses, ingleses e
franceses no nosso país. Podemos instalar consulados aqui para garantir os
benefícios de chineses no Brasil.” (Li, 2007, p. 1177-1180, vol.3).

E em português:

O vice-rei manifestou receios de que os chins no Brasil fossem submetidos ao


regime da escravidão [...]. Respondemos que já estava feita a experiência que o
devia convencer do contrário, pois, em 1856, [...] se haviam introduzido no Brasil
muitos centos de chins. E que esses chins [...] gozaram no Brasil de todos os
direitos e franquezas garantidos pela nossa constituição política aos estrangeiros,
sem distinção de nacionalidades. (Franco e Scomazzon, 2020, p. 270).

Li parou a discussão, dizendo que estava sobrecarregado431 e encaminhou o assunto para


secretários dele. No entanto, segundo o relatório enviado pelo LI ao Tsung-Li Yamên:

Acredita-se que a concessão na autorização de cooperação laboral é impossível.


Se o tema for envolvido na discussão, precisamos procurar uma forma de recusar.
[...] No aspecto comercial, a instalação do novo consulado na China será aceitável.
(Li, 2007, p. 3171-3173, vol.6).

Enfim, a primeira versão do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação foi assinado em 1881,
não mencionando nada sobre a imigração dos chineses ao Brasil.

A investigação de TONG King-sing no Brasil (1883)

430 LI Hung-chang (Chinese: ; pinyin: LI Hongzhang; Wade Giles: LI Hung-chang) (1823 - 1901), Marquês
Suyi. Foi político e diplomata chinês do final da dinastia Qing. Ele serviu em posições importantes na corte imperial
Qing, incluindo serviços ao vice-rei de Zhili, Huguang e Liangguang.
431 Geralmente no ritual chinês, é visto como educado recusar pedidos de forma indireta, por exemplo, informando

“Estou com pressa.”


1011

A maioria dos membros da Missão voltaram à terra natal e Callado ficou na China
continuando promover a cooperação. Ele procurou dois diretores da Companhia Chinesa de
Navegação e de Comércio432, para negociar a abertura de “uma linha regular de vapores, ligando
portos da China com os do Brasil.” (Franco e Scomazzon, 2020, p. 311). No plano de Callado,
além de trabalhadores, o Brasil podia importar chá, sedas, louças etc. e exportar café, madeira,
açúcar etc. Foi mencionado também um subsídio de 100 mil dólares pago por agentes privados
brasileiros para a empresa chinesa. A partir deste plano, em 1883, Tong King-sing, diretor geral da
Companhia Chinesa de Navegação e de Comércio, durante sua viagem de investigação na Europa
e da negociação com a Grã-Bretanha sobre a compra de navios militares, decidiu ir ao Brasil (Wang,
1983, p. 197).

Nos registros brasileiros, TONG chegou sem ser avisado e “partiu repentinamente”
(Franco e Scomazzon, 2020, p. 311). Segundo o relatório anual da empresa, ele escreveu:

Desde a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, o sr. Callado


solicitou várias vezes o transporte da nossa empresa, com objetivo de encorajar
chineses a imigrar ao Brasil. Callado também mencionou um subsídio grande
para isso. Considerando os negócios de insucessos no sul da Ásia, planejamos
alterar as rotas de Zhiyuan, Tunan, e Meifu433, criando umas linhas para o oriente.
Assim viajei à Europa e ao Brasil, conforme o convite do sr. Callado. (Wang,
1983, p. 197).

Em dois meses no Brasil, ele visitou São Paulo e Rio de Janeiro, investigando a
possibilidade de criar novas rotas comerciais entre os dois países. Mas o resultado
da investigação foi negativo. “Pesquisamos o ambiente comercial no Brasil, por
meio formal e informal. Com a escravatura ainda existente e um sentimento
comum antichinês, duvidamos que possa ser cumprido o compromisso do Brasil
de tratar bem o povo chinês.” (Wang, 1983, p. 197).

O argumento de CHENG Tsao-Ju434, ex-embaixador da China nos Estados Unidos,


mostrou a outra razão da volta de TONG, isto é, a complexa e remota de hidrovia.

A trajetória parte de Hong Kong, passa pelo canal de Suez, depois vira para sul
e ultrapassa o Atlântico, assim chegando ao Brasil. [...]Na volta, não há produtos
especiais para importação. Assim não vale a pena. Por causa das polêmicas
ocorridas em Xangai, ele voltou ao país e a negociação parou. (Chen, 1985, p.
1203-1204).

432 Companhia Chinesa de Navegação e de Comércio (Chinese: ; pinyin: Lúnchuán zhāoshāng jú; Inglês:
China Merchant’s Steam Navigation), uma empresa de transporte fundada em 16 de dezembro de 1872 pelo então
ministro de Beiyang, LI Hung-Chang, no final da dinastia Qing. Seu objetivo era promover a participação chinesa no
comércio internacional, que havia sido praticamente monopolizado por empresas estrangeiras depois da Primeira
Guerra do Ópio.
433 Nome de navios.
434 Cheng Tsao-ju (Chinese: ; pinyin: zhèng zǎ o rú; Wade Giles: Cheng Tsao-ju) (1827 1894), político e
diplomata. Foi embaixador da China nos Estados Unidos, Espanha, e Peru (1881-1885).
1012

O registro de Lisboa (2015, p.12) complementou alguns detalhes importantes para a


mudança de ideia de Tong. Segundo ele, Tong teve um encontro com Dom Pedro II e durante a
conversa, o imperador informou que o subsídio que tinha sido mencionado não seria pago pelo
governo e mostrou uma atitude negativa pela entrada dos chineses. Devido à estrutura centralizada
do governo chinês na época, a afirmação do Pedro II pode ter sido compreendida por Tong como
se o plano de cooperação fosse difícil de implementar. Tong achava que o subsídio de 100 mil
dólares seria pago pelo governo pois foi Callado, quem teve uma identidade oficial, negociou com
ele o assunto. Mas quando os pagadores dessa grande quantia se tornaram empresas privadas, o
crédito do pagamento diminuiu. Nesse caso, esta conversa poderia ter sido o fator principal na
mudança de atitude de Tong.

Em suma, o subsídio com incerteza, a escravatura nas plantações, um ambiente não-


amigável, comum em classe alta, à nação chinesa e a distância afastada seriam as razões pelas quais
TONG anunciou a suspensão do negócio em Londres. Sendo o primeiro chinês com um contexto
oficial, que investigou praticamente no Brasil, a imagem brasileira que ele mostrou, dominava por
muito tempo, entre os intelectuais chineses.

Fu Yun-long, enviado oficial ao Brasil (1887)

Enquanto Tong foi surpreendido pela existência de escravatura e preocupava-se com a


possibilidade do sistema resultar em prejuízos aos possíveis imigrantes chineses no Brasil, FU Yun-
long, que pesquisava o Brasil em 1889, acreditava que os chineses pudessem ser bem tratados nesta
terra tropical.

Em 1887, a Corte Qing lançou um projeto que se chama “Conhecer o Mundo”, iniciativa que
tinha por objetivo oferecer referências oficiais da situação de países estrangeiros à Tsung-Li Yamên.
Foram selecionados, então, 12 funcionários públicos para viagens oficiais, divididos em 5 grupos,
com destinos a 20 países na Ásia, Europa, América do Norte e América do Sul, nas quais FU Yun-
long seguia uma rota entre Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil.

Fu Yun-long (Deqing, 1840-1901), acadêmico especializado em produção militar, foi


diplomata chinês na dinastia Qing. Ele foi aprovado em primeiro lugar para participar no plano
“Conhecer o Mundo”. Em dois anos de viagem, ele pesquisou os países destinados, resultando num
total mais de 85 volumes de materiais, no que introduziu os intelectuais chineses a um panorama
geral dos países estrangeiros, incluindo 30 volumes de Japão, 32 volumes do Norte da América, 2
volumes de Cuba, 4 volumes de Peru, 10 volumes de Brasil etc. Após a viagem, ele se voluntariou
1013

para o Movimento de Auto Fornecimento435, trabalhando no Instituto de Máquinas de Tien-Tsin436.


Vale notar que os materiais escritos por ele, pela primeira vez, apresentaram sistematicamente, as
condições da terra brasileira às elites chinesas. Por isso, ele foi conhecido como o chinês que melhor
conhecia o Brasil daquela época.

O grupo enviado ao Sul da América conteve dois funcionários e alguns colaboradores.


Além de FU, um outro funcionário, GU Hou-kun437, desistiu de ir ao Brasil quando chegou aos
Estados Unidos, em 1889. Ele estava doente e, naquele verão, o Brasil estava amplamente infectado
pela febre amarela (Fu, 2005, p. 56). Enquanto isso, FU, finalmente, chegou em Salvador (Brasil),
em dezembro de 1889. Depois, ele foi ao Rio de Janeiro e visitou Dom Pedro II. Este encontro foi
registrado no seu diário:

Dia 8 de março:
O encontro foi marcado no meio dia, no Palácio. [...] Quando entrei, Dom Pedro
II levantou-se e deu um cumprimento. O tradutor tentava falar português e o
imperador disse que podia conversar em inglês. Consultou meu caminho de ida
e volta e introduziu os minérios e indústrias do Brasil. Na hora da saída,
apertamos mãos e o imperador disse Good-bye. D. Pedro II tinha cabelos brancos,
mas uma cara bem jovem, iluminado por medalhas. Ele tinha 64 anos, com 50
anos de dominação. (Fu, 2005, p. 211).

Segundo ele, alguns brasileiros de identidade oficial438, consultaram a possibilidade de


imigração chinesa ao Brasil. Pesquisando a política imigratória da época descobriu que o país tinha
uma grande área territorial com baixa densidade populacional. Assim foi realizado uma política
branda, tratando os moradores e descendentes estrangeiros com igualdade. Ele pesquisou
especialmente na área educacional e comercial, registrando que crianças estrangeiras
compartilharam o mesmo direito de receber educação em escola e mercantes e agricultores do
exterior competiam no mercado sob a mesma regra de cidadania439. Ele conversou com os chineses
moradores da área fluminense, sendo que a maioria deles eram trabalhadores do Peru. “Segundo

435 O Movimento de Auto Fornecimento (1861-1895), em inglês Self-Strengthening Movement, também conhecido como
Movimento de Ocidentalização (Westernization Movement), foi um período de reformas institucionais iniciadas na China
durante o final da dinastia Qing, após os desastres militares das Guerras do Ópio. O movimento foi visto como um
processo inicial de industrialização e de modernização da China.
436 o Bureau de Fabricação de Máquinas de Tien-Tsin (Chinese: ; pinyin: Tiānjīn jīqì zhìzào jú),
instalado em 1867, foi uma das primeiras plantas de fabricação de armas modernizadas na China. O cargo do escritório
geral foi assumido por LI Hung-chang em 1870. Logo se tornou uma parte importante no plano do Movimento de
Auto Fornecimento. A produção principal eram pólvora, canhões, navios e barcos.
437 GU Hou-kun (Chinese: ; pinyin: Gùhòukūn) (1844 ?), político. Nascido em Jiangsu, a 13a geração de GU
Sheng. Foi o enviado oficial ao Japão, Estados Unidos, Cuba, Peru e Brasil (1887-1889). Possui obras como Estudos
sobre a renovação política após Meiji, Estudos de Política Brasileira etc.
438 Os nomes e cargos registrados em chinês são traduções dos ideogramas, que podem ser romanizados, mas muito

diferentes do original. Para evitar confusão, coloco aqui pronomes indefinitos.


439 Na época, muitos países europeus implementaram políticas discriminatórias a imigrantes da Ásia ou da América.
1014

os chineses locais, os proprietários rurais tratam os trabalhadores chineses com menos rigor,
melhor do que na plantações de Cuba e Peru.” (Fu, 2019, p. 97). No registro dele, o número total
de moradores chineses no Rio de Janeiro era cerca de 500 pessoas.

Assim, ele escreveu a Tsung-Li Yamên, que o “Brasil está com muitas terras e minerais,
aguardando o desenvolvimento, mostrando uma atitude hospitaleira à chegada de trabalhadores e
os chineses locais são tratados melhor do que em países como Cuba e Peru.” (Fu, 2005, p. 221).

FU também visitou Callado. Quando foi mencionado a missão em 1879, Callado admitiu
francamente que a missão tinha como objetivo verdadeiro procurar trabalhadores chineses para o
Brasil. É por isso que o consulado brasileiro, instalado em Xangai no ano de 1883, conforme o
Tratado, não continuou as negociações de importação e exportação de produtos. Somente então, a
parte chinesa conseguiu confirmar que o real motivo dos brasileiros em estabelecer uma relação
oficial com a China foi para importar mão-de-obra asiática.

O relato de FU mudou a imagem de “perigo brasileiro” e as suas investigações contribuíram


para a mudança da atitude chinesa à emigração ao Brasil. Quando os intelectuais chineses
aprofundaram seu conhecimento sobre o Império, começou a reforma republicana brasileira de
1889, quebrando, assim, a negociação.

Conclusão e discussões

Revendo todo o processo, acredita-se que há três pontos que vale debater:
Primeiro, o bem-estar de possíveis imigrantes no Brasil é o fator-chave que decide a atitude
chinesa na cooperação. Se confirmarmos dados estadísticos, a preocupação foi razoável. Segundo
Herbert S. Klein (1969, p. 533-549), entre 1795 e 1811, a taxa de mortalidade de escravos, da África
ao Rio de Janeiro, era 95‰, sendo de 30.44% a taxa de mortalidade de coolies, da China a Peru,
entre 1860 e 1863, data estimado por Watt Stewart (1951, p.21-22, p. 62).

Segundo, a primeira barreira que os diplomáticos enfrentaram foi a diferença entre dois
países na compreensão do mundo e da sua localização no mundo, ou seja, bias e estereótipos.
Tanto na conversa entre Callado e LI, quanto na conversa entre Tong e D. Pedro II, os diplomatas
estavam saindo de um ambiente de abordagem (Aproach field) que conheciam e entrando num que
não se familiarizavam. Assim houveram compreensões variadas na comunicação intercultural, o
que causaram sentimentos desconfortáveis e até de serem ofendidos.

Terceiro, um outro fator, que não era tão óbvio quanto o anterior, mas influenciou ainda
mais profundamente na cooperação foi a diferença na estrutura política interna de cada país. Por
1015

exemplo, o comportamento mostrado por D. Pedro II foi quase determinante nas duas visitas
chinesas, mudando a confiança e enfrentando à cooperação.

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Wang, Jing-Yu. Estudo de Tong King-sing. Pequim-Pequim: China Social Science Press, 1983. 232 p.
Título em chinês: (pinyin: Tángtíngshū yánjiū).
1017

“Putanheiro, e desonrava mulheres”: aventuras e desventuras de um


frei agostiniano no Pernambuco holandês

João Guilherme Veloso Andrade dos Santos*

Resumo: Este trabalho é fruto da pesquisa de iniciação científica, ainda em fase inicial, intitulada
“Edição dos processos inquisitoriais relativos ao Brasil colônia disponibilizado no acervo digital
da Torre do Tombo.” Sob orientação da Prof.ª Dr.ª Alícia Duhá Lose e financiada por uma bolsa
do CNPq / PIBIC-UFBA, a pesquisa tem como objetivo analisar as denúncias feitas à Inquisição
contra um membro do clero regular no Brasil Neerlandês. A Historiografia sobre Inquisição
mostrou as diversas possibilidades de pesquisa que a documentação produzida pelo Tribunal do
Santo Ofício oferece a historiadores de diferentes temáticas. Essas possibilidades não se esgotam
apenas com estudos sobre a própria Inquisição, mas também estudos, por exemplo, sobre a vida
cotidiana. Recentemente, essa documentação serviu de base para investigações sobre as complexas
relações entre grupos sociais distintos no período do Brasil holandês. Nesse sentido, no contexto
da dominação neerlandesa na América portuguesa, Antônio Caldeira, um Frei agostiniano, é
denunciado por diversos crimes, entre eles manter amizade com os holandeses, sendo, então, preso
por ordem do Bispo da Bahia e alvo de devassa empreendida pelo mesmo – contudo, não chegou
a ser processado pela Inquisição. As denúncias contra o religioso estão contidas no 19º Caderno
do Promotor, livro 220, custeado no Arquivo Nacional Torre do Tombo. Utilizando-se das
ferramentas e metodologias de paleografia digital, esse material foi acessado remotamente a partir
da digitalização disponível no site do arquivo lusitano. É interessante notar a diversidade de
relações na dinâmica colonial, a qual é adicionada mais uma camada no período estudado de
invasão holandesa no Brasil, e nesse caso, um religioso português atuando em favor dos holandeses
desviados. Ao estudar a complexidade dessas relações e ações de autoridades históricas no período
aqui em destaque, esse estudo contribui para a historiografia de um dos períodos mais complexos
da História do Brasil colônia.

Palavras-chave: Paleografia digital, Inquisição, Brasil holandês.

Projeto De Pesquisa

Para situar como foi possível chegar a questão deste trabalho, é preciso falar sobre o projeto
de pesquisa que o possibilitou. O projeto de pesquisa Paleografia digital e a Santa Inquisição no Brasil:
novas possibilidades é coordenado pela Prof.ª Dr.ª Alícia Duhá Lose, e abrange diversas áreas do
conhecimento, como filologia, paleografia e diplomática, linguística, processamento de linguagem
natural e história. O objetivo da pesquisa é a criação do primeiro modelo em língua portuguesa do

*Graduando em História pela UFBA.


Esse trabalho conta com orientação da Prof.ª Dr.ª Alícia Duhá Lose. Além dela, a Prof.ª Dr.ª Lívia Borges Souza
Magalhães, Prof.ª Dr.ª Lúcia Furquim Werneck Xavier e o bolsista Leonardo Coelho, também integram o projeto de
pesquisa e foram essências para a confecção desse artigo.
1018

programa Transkribus, que é um programa feito para a leitura de documentos manuscritos, que já
funciona bem em diversos idiomas, como o inglês e o holandês, mas ainda não em português. Para
que o Transkribus possa aprender a ler documentos manuscritos, é preciso alimentá-lo com
transcrições, e é nisso que consiste o plano de trabalho da pesquisa: realizar transcrições
conservadoras para alimentar o programa dentro dos parâmetros da paleografia de leitura. Quanto
mais páginas e maior a variedade de scriptores forem usadas, melhor será o modelo que, quando
pronto e em boas condições, poderá transcrever um documento de 200 fólios em menos de uma
hora, com uma taxa de erro entre 3% a 5%.

A documentação usada para alimentar o modelo é, justamente, a abundante e diversa


documentação inquisitorial do Santo Ofício português, produzida ao longo dos quase 300 anos de
funcionamento do tribunal. E, de modo mais circunscrito, a documentação inquisitorial relativa ao
período de dominação holandesa no Nordeste brasileiro. É importante notar que toda a
metodologia de trabalho está inserida no contexto das Humanidades digitais, desde o acesso aos
documentos – através das versões digitalizadas disponíveis no site do Arquivo Nacional Torre do
Tombo, onde está concentrada a documentação da Inquisição portuguesa – e também a edição dos
documentos, feitas no próprio Trankribus. Desta forma, estamos cientes de que esse projeto tem
muito a contribuir para pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, incluindo os
historiadores das inquisições.

Entre os diversos documentos utilizados está o 19º Caderno do Promotor440, produzido


entre os anos de 1634 e 1642 na América portuguesa, ou seja, no período das invasões neerlandesas.
Essa documentação já foi usada pela historiografia, que será citada ao longo deste texto, mas isso
claramente não invalida a revisita ao documento, especialmente quando o personagem de destaque
desta comunicação, o frei agostiniano Antonio Caldeira, não é posto como protagonista em
nenhuma das pesquisas que serão citadas. As razões para essa ausência de centralidade para figura
do referido frei na historiografia também serão discutidas no presente trabalho.

A guerra

Para entender os caminhos trilhados por Antonio Caldeira é preciso entender o momento
da Guerra entre os neerlandeses e as forças luso-hispânicas. Os eventos narrados na documentação
ocorrem nos primeiros anos de invasão holandesa, embora seja difícil precisar exatamente quando,

440Cota atual do documento: Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, liv. 220. Disponível em:
<https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2318045.> Acesso em: 18 de dez. de 2020.
1019

pois as denúncias contém apenas as datas em que foram realizadas e são imprecisas sobre quando
teriam ocorrido os delitos. No entanto, é possível notar um ponto comum entre elas, que é a
volatilidade dos domínios já invadidos, e é possível perceber que Frei Caldeira estava justamente
nos territórios de fronteira, visto que ele transitava entre os domínios católicos e protestantes e
compartilhou espaço com figuras importantes da guerra, como Mathias de Albuquerque. Das onze
testemunhas identificadas, três ocupam algum ofício relacionado à guerra.441

Para usar uma obra basilar na historiografia sobre a presença dos países baixos no nordeste
açucareiro, é possível dizer que os eventos que ocasionaram as denúncias contra Caldeira estão
localizados entre a “[...] Ruptura do impasse [...]” e a “ [...] Ofensiva final [...] ”(Mello, 2010, p. 107-
152). Ou seja, no momento que a fronteira protestante está se alargando, mas antes do período de
ouro Nassoviano. Isso é importante para entender os caminhos do agostiniano, pois é justamente
essa porosidade/instabilidade das fronteiras que vai possibilitar o fluxo de pessoas entre esses
espaços e, por conseguinte, os eventos que culminaram nas denúncias. Como afirma Xavier:

“Antes de 1630, neerlandeses faziam parte e estavam integrados à sociedade


colonial, mas o início das hostilidades prejudicou as interações entre eles e os
lusos. Porém, à medida que o conflito se desenvolveu, alguns membros do
eclesiástico passaram a se corresponder e comunicar com os holandeses, a saber,
frei Antonio Caldeira, padre João Gomes de Aguiar e frei Manuel dos Óculos,
ou frei Manuel Calado.” (Xavier, 2018, p.115, grifo nosso).

O documento:

Para além do contexto histórico em que o Caldeira está situado, é necessário entender
também o contexto documental no qual foi acessado o conteúdo que dá corpo a esse texto. Como
já foi dito, as denúncias contra o frei estão contidas em um Caderno do Promotor. Citamos Feitler
(2019, p. 134) para esclarecer o que era esse tipo de documento: “Nestes códices, encontram-se
misturados denúncias feitas por particulares ou por agentes inquisitoriais, fragmentos de
correspondência com outros tribunais, ordens de prisão não cumpridas etc.”

Ou seja, genericamente, um Caderno do Promotor tem informações de diversos tipos e


origens como, também, as denúncias. O documento analisado é fruto das ações de D. Pedro da
Silva e Sampaio, então Bispo da Bahia. D. Pedro foi responsável pela Sé de Salvador entre os anos

441A partir de agora, todas as citações do documento serão referenciadas pelo fólio. Para o texto, preferiu-se uma
transcrição modernizadora e com fronteiras de palavras para o melhor entendimento do leitor. Para separar as linhas
será usado o sistema de barras /. Sobre a testemunhas que ocupavam algum ofício na guerra, a saber: Antonio Caldeira
da Mata, alferes de guerra (400v); Manoel Dias de Andrada, Tenente general na guerra (404r); Martim Soares, Capitão
(404v). Grifo nosso.
1020

de 1634 a 1649, justamente no período em que Caldeira cometia seus crimes contra a fé católica.
Outros dois pontos levam o prelado da Bahia à posição relevante para nosso trabalho: o primeiro
é o papel da Justiça eclesiástica e dos bispos no Império Português. Mesmo com o surgimento da
Inquisição, a justiça eclesiástica continua a existir no mundo lusitano, e muitos dos delitos do foro
inquisitorial também poderiam ser julgados, condenados ou absolvidos pelos bispos, o que sugere
um pretexto de conflito entre a Diocese e o Santo Ofício. Mas o que acontecia, na prática, era que
a justiça eclesiástica e os bispos atuavam junto à Inquisição em muitos momentos, com
cumprimentos de ordens de prisão e encaminhamento de culpas, por exemplo. É claro que há
exceções, o exemplo mais notável no Reino talvez seja o caso do Arcebispo de Braga – e
recentemente canonizado - São Bartolomeu dos Mártires, estudado detalhadamente por Juliana
Pereira (2018).

Isso se confirma na América portuguesa, na qual muitos bispos foram inquisidores antes
de embarcar para o atlântico sul, a exemplo do próprio D. Pedro da Silva e Sampaio (Feitler,2019,
sendo esse, inclusive, o segundo ponto que privilegia o papel do bispo da Bahia. D. Pedro fez parte
da máquina inquisitorial e sabia como era o modus operandi do tribunal, quais delitos eram de foro
do Tribunal de Lisboa e qual era seu papel enquanto bispo. Esse último fica evidenciado, pois no
período aqui estudado, e de atividade do prelado, o Brasil não conta com uma malha inquisitorial
sólida e também não é tempo de visitações, o que coloca a Igreja diocesana em posição importante
(Feitler, 2019).

Então, cumprindo seu dever enquanto Bispo, D. Pedro vai ser bastante atuante na
perseguição aos hereges no lado de cá do atlântico, como ele mesmo escreveu à Lisboa: “Hei de
mostrar que não perdi o ânimo de Inquisidor Apostólico.”6. Feitler, que estuda o período, explica
que:

[...] com a retomada das hostilidades contra os holandeses, quando as


comunicações com Lisboa se tornaram difíceis e havia a necessidade de mais
agilidade, dom Pedro da Silva e Sampaio, bispo da Bahia e antigo inquisidor do
tribunal de Lisboa, tomou a si de mandar fazer inquirições minuciosas sobre os
casos de que tomava conhecimento antes do envio dos dossiês constituídos para
Lisboa. (Feitler, 2019, p. 135)

Assim, todo o contexto permitiu uma participação ativa por parte do Bispo. E foi isso que
aconteceu em relação a Caldeira. Depois de algumas denúncias, D. Pedro mandou prender o frei
desviante, o que ocorreu em 1637, e instaurou uma devassa contra ele, que permitiu que várias
pessoas dessem seus pareceres sobre as atitudes do agostiniano junto aos holandeses.
1021

Antonio Caldeira:

Antonio Caldeira é um personagem que carece de bibliografia e documentação, pois as


denúncias contidas no 19º Caderno do Promotor são, até então, a única documentação sobre a
vida do frade. Ele também é citado, como testemunha, no processo de Manoel de Moraes, jesuíta
que também passou para o lado dos holandeses, e foi longamente estudado por Ronaldo Vainfas
(2008) no livro “Traição”, mas claramente não é protagonista na documentação e tampouco da
pesquisa do autor.

Costa, faz quase uma aproximação e afirma que Caldeira residia em Serinhaém quando
teve contato com os holandeses. Ele escreve em nota de rodapé:

“Por ausência de material biográfico para o caso deste personagem, não é


possível identificar a localização exata do sacerdote em cada fase da dominação
holandesa no nordeste colonial. Portanto, os dados aparecem de forma esparsa
na bibliografia.” (Costa, 2018, p. 279).

Assim, são poucas as informações que temos sobre Caldeira, principalmente aos eventos
anteriores e posteriores à sua prisão, em 1637, por ordem do bispo da Bahia. No entanto, isso não
impede de buscarmos as origens e entender os caminhos trilhados pelo agostiniano pecador. D.
Pedro da Silva e Sampaio nos dá algumas informações ao encaminhar as culpas de Antonio
Caldeira para os inquisidores de Lisboa:

Enviei a vossas mercês umas culpas de frei Antonio Caldeira frade Agus-/tinho
natural de Estremoz [...] Por algum modo parece poderia pertencer ao Santo
Ofício- tem/ Este frade um milhão de culpas. 388r

Ou seja, o membro da ordem de Santo Agostinho era natural do Reino, de Estremoz. Esse
trecho do documento mostra a competência de D. Pedro da Silva e Sampaio no que toca o seu
entendimento sobre os delitos de foro inquisitorial, é claro que ter ocupado o posto de inquisidor
o ajudou no ofício de bispo, pelo menos sobre os deveres que tinha para com a Inquisição
enquanto prelado. Outro ponto importante é o escândalo que os delitos de Caldeira causavam, o
“público e notório” tem grande relevância para o processo inquisitorial, e com o frade de “um
milhão de culpas” não foi diferente.
Magalhães, que trabalhou com essa documentação em pesquisa de doutoramento, propõe
uma diferença entre os religiosos denunciados e processados pela Inquisição no período do Brasil
holandês:
1022

Os sacerdotes implicados nessa denúncia podem ser divididos em duas


categorias. Na primeira podem ser incluídos Frei Manuel Calado, o Padre João
Gomes de Aguiar e o pregador carmelita Frei João Coelho que apenas ‘ficaram
com os holandeses’, ou seja, desobedeceram as ordens de D. Pedro da Silva de
Sampaio para retirar-se das Capitanias do Norte, quebrando a hierarquia
eclesiástica. Na segunda categoria foram incluídos os que se ‘foram para os
holandeses’, ou seja, cometeram o crime de lesa-majestade. (Magalhães, 2010, p.
198)

Caldeira se encaixaria justamente na segunda categoria proposta por Magalhães, então,


além de herege, ele também é um desertor. Traiu não só a Deus e a Santa Madre Igreja de Roma,
mas também ao rei, à coroa dos Habsburgos.

As Denúncias:
Até o momento de escrita deste trabalho foram identificadas onze testemunhas que
depuseram contra Antonio Caldeira. As denúncias são espaçadas entre 30/08/1635 até
04/09/1637. Em ordem cronológica: Domingos Cabral Baçalar, em 1635; Antonio Caldeira da
Mata, João de Siqueira e Padre Manoel Dias, em 1636; Manoel Dias de Andrada, Martim Soares,
Frei João Cardozo, Garçia Lopes Calheiros, Belchior Correa, João Correa Dalmeida e Manuel
Roiz, em 1637.442 Onze testemunhas, todos homens, três oficias de guerra, dois sacerdotes, um
escrivão da alfandega e cinco sem informações sobre seus ofícios. Com exceção de Frei João
Cardozo – que narra eventos em temporalidades distintas da maioria dos denunciantes - todos
estiveram, em algum momento, em região de fronteira ou em contato direto com os holandeses
hereges.

Caldeira é acusado de diversos crimes e o principal deles é o de “tratar com os holandeses”.


“Tratar” aqui é empregado da mesma forma genérica que os denunciantes usavam que, na verdade,
consiste em uma série de condutas adotadas no sentido de conviver com os holandeses, indo desde
compartilhar o mesmo espaço até comer e beber, negociar etc. Vale ressaltar que Caldeira foi preso
no primeiro momento por negociar com os holandeses. Quem trás o relato do momento da prisão
é Manoel Dias de Andrada, uma verdadeira confusão:

[...] que logo subiu e lhe falou, e depois ouviu a seu secretário que o dito dom
Luiz tra=/zia ordem para o prender , e com sua chegada ali causou o dito frei
Antonio grande/ alvoroço por mal [...] Dizendo uns que era traidor o dito Frei
Antonio , e o maior inimigo que/ tínhamos como inimigo [...] que prendesse ao
dito Frei Antonio por não tornar ao inimigo se não que haviam de ali o matar
[...] então se levantou aquele reboliço, e Martim/ Ferreira levou da espada

442Para os nomes das testemunhas e do próprio Antonio Caldeira, preferiu-se manter a grafia conforme está no
documento original.
1023

dizendo que o ia matar ao que acudiu ele/ testemunha e recolheu o frade a si e


os apaziguou, e o mandou honestamente ao/ Conde Bagnoli. (404r)

Das onze testemunhas localizadas, dez acusam Caldeira de manter alguma relação com os
holandeses. Garçia Lopes Calheiros disse que o frei bebia e comia com os hereges, era muito
querido por eles e teria dado o santíssimo a um filho de Calabar; já Belchior Correia afirma que
Caldeira esteve com o próprio Calabar. Padre Manoel Dias, que também acusa Caldeira de tratar
com os holandeses, afirma que viu o agostiniano ir vender caixas de açúcar aos hereges. Outro
ponto interessante da denúncia do Padre Manoel Dias é que ele afirma que Antonio Caldeira pediu
aos holandeses que o prendessem para que não caísse sobre si a culpa de desertor. Então, mesmo
cometendo crimes contra a coroa e contra a Igreja, Caldeira tinha certo cuidado para não ser
julgado como desertor e preso tanto pela justiça real, quanto pela Santa Inquisição.

Outro crime do qual o religioso é acusado é o de defender a ida ao lado holandês.


Domingos Cabral relata que assim como Manuel Calado, autor do Valeroso Lucideno, Caldeira
afirmava que o Rei Felipe não conseguiria restaurar os domínios lusohispânicos no nordeste, e que
os holandeses não eram hereges e sim boas pessoas. Outra questão sobre esse delito é que não só
Caldeira defendia publicamente a ida ao lado protestante, mas ele próprio intermediava essa
passagem a partir da venda dos chamados “passaportes”. Das onze testemunhas, seis acusam
Antonio de defender e/ou intermediar a ida ao lado holandês.

Da prisão em Pernambuco, Caldeira é enviado ao Conde Bagnoli em Alagoas, que o


encaminha ao vigário geral do local. Ao fim, ele é enviado para a cidade da Bahia e fica sob
jurisdição do Bispo. O responsável pelo translado até Salvador é Francisco de Azevedo, a quem
Caldeira manda matar por “dinheiro e traição”, a ocorrência desse crime também é de seis em
onze. O próprio Bispo trás o relato:

Uma/ morte sentida muito, que da cadeia onde está mandou fazer/ por dor e
traição aleivosamente a um Francisco de Azevedo tido por/ boa pessoa, e o
havia trazido preso, natural lá da Beira/ a quem levei o viático passado com duas
balas, e quando assim/ o vi me atravessou o coração. (388r)

Outro tipo de crime cometido por Caldeira são delitos sexuais. Algumas denúncias são
mais imprecisas, como a do padre Manoel Dias, que diz que Caldeira bebeu com uns holandeses
e eles “[...] o meteram em uma casa com uma mulher para zombarem de nós” (402v). Já outras são
mais incisivas, como a de Garçia Lopes Calheiros, que dá título a este trabalho ao afirmar que “E
diziam geralmente nas partes de Pernambuco/ que este frei Antonio era putanheiro, e desonrava
1024

mulheres, e também era/ somítigo e cometia os homens” (406r)443. Ou seja, além de quebrar o
celibato com mulheres, Caldeira teria cometido o pecado da sodomia. No entanto, das onze
testemunhas, cinco abordam delitos sexuais, e apenas Garçia fala de uma possível sodomia.

O último delito que recai sobre esse frade é o de defender o calvinismo. Talvez seja esse o
delito mais difícil de se identificar na documentação, pois nenhum denunciante coloca
explicitamente que ele defendia o calvinismo, porém alguns relatos esbarram nesse ponto. Belchior
Correa afirma ter “[...] ouvido dizer geralmente que o dito frade ficara com os holandeses/ no
distrito de Porto Calvo, e que lhes pregava lá a sua seita [...]” (406v). Já Garçia Lopes diz que
Caldeira “[...] pregava/ lá aos hereges querendo dizer não que pregava bem senão que pragava/
mal” (406r). Esses são os dois únicos que acusam, mesmo que de forma não direta, Caldeira de ter
passado para a fé reformada.

D. Pedro da Silva e Sampaio parece estar certo ao afirmar que tinha este frade um milhão
de culpas. Ao todo, Caldeira é acuso de cincos delitos principais que se expressam de diversas
formas, e são vistos com maior ou menor ocorrência ao longo dos testemunhos.

(In) conclusões:
A primeira conclusão, da pesquisa como um todo e não apenas desse trabalho, é a de que
o Transkribus revela-se como uma ferramenta inovadora de edição de documentos manuscritos. O
encaminhamento da pesquisa e a criação do primeiro modelo em língua portuguesa tem muito a
agregar para diversos pesquisados das mais distintas áreas, incluindo os historiadores das
inquisições.

Agora, fechando o círculo para este trabalho, há uma questão que a documentação não nos
responde: O que aconteceu com Antonio Caldeira? Depois da prisão na Bahia não se sabe quais
caminhos trilhou o agostiniano, e por qual razão não há, atualmente, registro de processo contra
ele na Inquisição de Lisboa. O único indício é que ele estava vivo em 1640 e depunha contra
Manoel de Moraes pelos mesmos crimes de que fora acusado, salvo grande coincidência, é a mesma
pessoa. (VAINFAS, 2008, p. 76). Silva e Costa defendem a tese da fuga de Caldeira da cadeia para
explicar a ausência de processo inquisitorial contra o frade de culpas tão escandalosas. (SILVA,
2003, p. 184; COSTA, 2018., p. 289). Há duas questões sobre essa tese da fuga, a primeira é que
a atual ausência de processo não necessariamente significa que ele nunca tenha existido, visto que
a documentação pode ter se perdido nesses quase 400 anos desde a prisão.

443 Grifos nossos.


1025

Outro ponto é que a ausência do réu não impediria os inquisidores de continuarem o


processo, já que a Inquisição é um tribunal santo, pune o corpo, mas também julga a alma, como
se pode ver pelas diversas sentenças de pessoas queimadas em estátua.

Outra questão que fica é entender se Caldeira seria um herege como Manoel de Moraes ou
um desertor como Manuel Calado. É complicado sentenciar uma figura histórica com uma
documentação tão rica, mas ao mesmo tempo tão limitada. Diferente de um processo, no qual as
falas do réu são transcritas, as denúncia são sempre de terceiros. No entanto, é possível ver nessas
denúncias indícios que Caldeira não atentava propositalmente contra a fé católica, mas seguia seus
interesses. Podemos ver que ele circulava, ia e vinha entre o lado português e holandês, que fora
preso por negociar com os neerlandeses, e também que dos onze denunciantes apenas dois acusam
o religioso de defender a seita dos hereges, e ainda assim de forma indireta.

Por fim, esse trabalho prova a riqueza da documentação inquisitorial e os múltiplos


caminhos que ela possibilita. Como nesse caso, que a historiografia provou à exaustão, de que
mesmo não tendo jurisdição sobre o território dominado pelos protestantes, a Inquisição se fez
presente na vida dessas pessoas, isso se dá justamente porque esses personagens estão circulando
entre esses mundos, assim como Caldeira. E é possível estudar o Brasil Holandês a partir das fontes
inquisitoriais.

Referências:

Costa, Regina Carvalho Ribeiro da. Ambivalências brasílicas em face do domínio holandês nas capitanias
do Norte (1630-1654). Tese de doutorado, História, Universidade Federal Fluminense, 2018.

Feitler, Bruno. Nas malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil (Nordeste 16401750). 2. ed.
São Paulo: Editora Unifesp, 2019.

Magalhães, Pablo Antonio Iglesias. Equus Rusus: A Igreja católica e as guerras neerlandesas na
Bahia (1624-1654). Tese de doutorado, História, Universidade Federal da Bahia, 2010.

Mello, Evaldo de Mello. O Brasil holandês. São Paulo: Penguin Classics, 2010.

Pereira, Juliana Torres Rodrigues. Batalha Fraterna: D. Frei Bartolomeu dos Mártires e a defesa da
autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582). Jundiaí: Paco, 2018.

Silva, Marco Antônio Nunes da Silva. O Brasil Holandês nos cadernos do Promotor: Inquisição de Lisboa,
século XVII. Tese de doutorado, História, Universidade de São Paulo, 2003.

Vainfas, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São
Paulo: Companhias das Letras, 2008.
1026

Xavier, Lucia Furquim Werneck. Sociabilidade no Brasil neerlandês (1630-1654). Tese de doutorado
não publicada, História, Universidade de Leiden, 2018.
1027

Professores sob pressão: desafios e possibilidades de educar nas


unidades prisionais de Teresina

Josi de Sousa Oliveira*

Resumo: Este artigo investiga as problemáticas e as possibilidades referentes à oferta da educação


nas unidades prisionais da capital do Piauí. Analisamos, primeiramente, como as propostas de
educação chegaram aos presídios de Teresina, posteriomente, verificamos como a educação foi se
solidificando através de ações governamentais e projetos múltiplos de ensino e, por fim, refletimos
sobre os desafios de ensinar no sistema prisional direcionando os nossos olhares para as múltiplas
possibilidades do ensino de história no ambiente carcerário. Desse modo, ao levarmos em
consideração as diversas especificidades dos sistemas prisionais como elemento que interferem
diretamente na aprendizagem dos discentes, pretendemos demonstrar que, apesar dos desafios, a
educação nas prisões promove motivação e momentos de aprendizagem significativas para os
alunos e todos os envolvidos. Metodologicamente, a pesquisa adota como campo de análise a
Penitenciária Regional Irmão Guido e o Centro de Ressocialização Feminino, espaços onde foram
feitas às pesquisas de campo que nos possibilitou o contato com professores e com os educandos.
Para compreendermos ainda mais o objeto de estudo, alguns teorias foram vitais entre as quais
mencionamos as reflexões de Michel de Foucault (2014) e Jilia Martins (2017). Nesse sentido, a
partir das referências bibliográficas, das falas dos docentes e dos alunos ficou explícito que, a
educação no sistema prisional ajuda o detento a repensar suas práticas e sua futura reintegração
com a sociedade, contudo, ainda falta muitas melhorias estruturais para que os professores não se
sintam demasiadamente sob pressão devido a insalubridade existente nesse ambiente, a falta de
materiais, de recursos diversos e, principalmente, de segurança.

Palavras-chave: sistema prisonal, educação e ressocialização.

Segundo Pierre Bourdieu o hábitus, ou seja, o lugar social que pertencemos é o princípio
da estruturação social, pois é através de sua influência que adquirimos maneiras específicas de
pensar, se relacionar e de construímos sentidos para tudo que realizamos. Desse modo, as
diferentes formas de representação traduzem posições, interesses, confrontos e formas de um
grupo se portar e sempre estão relacionadas com os aparatos simbólicos da práxis social a qual
pertencemos (Bordieu, 2006). Levando em consideração esses aspectos tão bem elucidados por
Bourdieu, é possível entender melhor a trajetórias das presas e presos, pois em grande parte dos
casos suas vidas são marcadas desde a infância até a fase adulta pela violência, desestruturação
familiar, preconceitos de classe, cor, envolvimento com o tráfico e armas, sendo múltiplos os
fatores que os fazem aderir a criminalidade. Nesse sentido, ao ministrarmos aulas nesse ambiente

* Professora Mestra em Letras/Estudos literários. Vinculada a SEMED/Timon-MA.


1028

deve ficar claro que o habitus social desses homens e mulheres foram marcados por uma série de
fatores que, de uma maneira ou de outra, estarão presentes durante às aulas ainda que
inconscientemente. Assim, não tem como dizer que ensinar nas prisões é uma tarefa fácil, pois
além da própria atmosfera ser emersa de tensões, se faz necessário que o sistema educacional nesses
espaços se modifique tendo em vista que, são escassos os materiais, recursos midiáticos e salas
específicas para que o docente se sinta seguro para executar seu trabalho.

Apesar dos desafios nas unidades prisionais, sabemos que a educação é um dos caminhos
para que os detentos possam desenvolver novas perspectivas. Nesse contexto, nas linhas que se
seguem, iremos entender melhor como a educação carcerária chegou nas terras piauienses, de que
forma o governo juntamente como os professores se articulou visando oferecer um ensino de
qualidade e que leve em consideração trajetórias dos aprisionados. Destarte, iremos refletir também
sobre a forma como o ensino de história é repassado no sistema prisional feminino e no sistema
prisional masculino Irmão Guido, levando em consideração as palavras de Flávio Berutti e
Adhemar Marques ao refletirem sobre a importância de não ignorarmos as vivências e experiências,
pois

[...], os alunos, ao viverem e experienciarem a História no tempo presente, vivem


e participam da construção de um tempo da História carregado de questões,
problemas que precisam ser compreendidos, explicados, para que os estudantes
se tornem conscientes de sua ação sobre o mundo e possam se engajar na sua
transformação (Berutti; Marques, 2009, p. 31).

Valorizar os conhecimentos dos quais os discentes são portadores, é um elemento chave,


extremamente essencial para que o trabalho do docente possa fazer sentido na vida dos presos e
presas, por isso o diálogo foi essencial e funcionava como um suporte gerador de discussões
profícuas.

Projetando novas realidades: a inserção da educação no sistema prisional teresinense

Sabemos que a educação é um direito inalienável de todos os indivíduos


independentemente da situação em que se encontrem, por esse ângulo, pensando na perspectiva
de propiciar ensino em diferentes lugares sobreveio, gradativamente no Brasil, políticas públicas de
educação no ambiente carcerário. Nas terras piauienses, especificamente em Teresina, tais
iniciativas surgiram através de ações do governo e parcerias com outros Estados. Desse modo, os
projetos de ensino desenvolvidos buscam implementar uma educação para os detentos que
estimule a conclusão do ensino fundamental, do ensino médio e propicie qualificação profissional,
1029

e entusiasmo para a preparação do Exame Nacional do Ensino Médio – Enem específico para
pessoas privadas de liberdade.

Desse modo, foi no ano de 2003 que de fato se deslindou a primeira grande proposta de
educação nas prisões em Teresina, através de um projeto chamado Educar para a liberdade.
Efetuado a princípio nos Estados de Paraíba, Ceará, Goiás e Rio Grande do Sul, posteriomente foi
instituindo-se parcerias com outros Estados através das Secretarias de Justiças que já tinham
algumas ações voltadas para a Educação nas prisões, assim esse projeto tão grandioso chegou no
Piauí (Ministério da Justiça, 2006).

O programa Educar para Liberdade visa levar o conhecimento aos detentos por vários
motivos, entre os quais podemos destacar: a necessidade de tirá-los do ócio tendo em vista que os
presos podem ocupar sua mente com a aprendizagem de diferentes disciplinas e interação com os
professores; facilitar a ressocialização, já que a possibilidade de terminar o período de
encarceramento com o diploma de conclusão do ensino fundamental ou do ensino médio, ajuda
na integração com a sociedade; atenuação da pena, pois a participação nos programas referentes a
educação enseja a remissão da pena, além disso, promove debates que ajudam a desenvolver o
posicionamento crítico e reflexivo, o repensar de suas práticas e ações auxiliando-os na busca de
alternativas pós sistema prisional. Os fatores pontuados são apenas alguns que impulsionaram tanto
os governantes quanto aos educadores a implantarem propostas que pudesse resguardar os direitos
humanos essenciais do preso, promovendo momentos prazerosos de ensino e aprendizagem.

Além do programa Educar para a Liberdade, na Penitenciária Regional Irmão Guido e no


Centro de Ressocialização Feminino de Teresina também são desenvolvidos outros programas, tais
como: o Ensino para Jovens e Adultos (EJA), Projovem Urbano (iniciado em Julho de 2018 e
finalizado em Fevereiro de 2020) O Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens
e Adultos (Enseja) para pessoas privadas de liberdade, o Canal de Educação, Leitura Livre e
Mulheres Mil. Todos esses projetos pontuados nos faz lembrar daquilo que Michel de Foucault
reflete acerca do surgimento dos mecanismos de vigiar e punir, pois, se antes a punição era corporal,
o indivíduo na exovia sofria através de castigos físicos que visavam a humilhação na frente do
público, paulatinamente essa perspectiva se alterou, principalmente porque os detentores do poder
percerberam que os castigos físicos transformavam o preso em mártire, sofredor com as punições
severas fato que por incontáveis vezes deixavam população com o sentimento de indignação frente
as crueldades impostas. (Foucault, 2014).

Destarde, surge a necessidade de inverter essa lógica, isto é, não apenas punir através da
violência física mais sim vigiar, impor políticas de ressocialização e educação, já que a coerção só
1030

gerava discussões a favor dos direitos humanos. Por consequência, os órgãos detentores do poder
foram criando projetos que substituíssem as coerções extremas:

[...] um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista


imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os
psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado
do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe
garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação
punitiva [...] (Foucault, 2014, p. 14).

Daí ocorreu uma mudança na arte de punir, pois se antes a figura do carrasco era primordial,
depois da Revolução Francesa surgiu um intenso debate sobre os diretos e garantias que todos os
indivíduos devem ter. Dessa forma, a revolução acelerou a alteração dos suplícios impostos pelos
algozes para a disciplina no ambiente carcerário. O detento então, passa a ser objeto de vigília, suas
ações são observadas para que o Estado pudesse chegar na melhor maneira de submetê-los.
Interessante destacar que essa alteração nas teias de dominação do preso não ocorreu somente
devido a proteção dos direitos essenciais e os debates ocasionados pela Revolução em favor dos
oprimidos, se processou efetivamente devido o desenvolvimento do capitalismo. No contexto
capitalista, é preciso, ou melhor, essencial disciplinar e aproximar todos do mundo do trabalho, já
que a mão de obra é vital para o sucesso das empresas emergentes.

A utilização da mão de obra carcerária foi o elemento que de fato desencadeou uma nova
relação do Estado com os encarcerados, estes passaram a ser alvos de técnicas disciplinares,
correção e reeducação, pois era preciso transformá-los em corpos dóceis. Nas palavras de Foucault,
a disciplina se configura em um:

[...] espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os


indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são
controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho
ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem
divisão, segundo uma figura hierárquica contínua [...] (Foucault, 2014, p. 163).

De fato, com a nova configuração do sistema prisional, os indivíduos passam a ser


controlados sistematicamente com horários rígidos para todas as atividades, desde às refeições e
rotinas pessoais, atividades escolares, culturais e profissionalizantes. Isso ocorre no intuito máximo
de disciplinar tendo em vista que é através de todos esses mecanismos de vigilância que se torna
mais fácil manter o “controle” e torná-los “dóceis”.
1031

Nesse universo, a educação desempenhará um papel primordial de oferecer novas


perspectivas para os detentos para que possam romper às barreiras da criminalidade após a saída
dos sistema prisional ademais, a participação nos programas educacionais será de extrema
importância, principalmente quando analisamos a realidade dos encarcerados: muitos não possuem
sequer ensino fundamental devido o fato de provirem de famílias onde desde cedo não havia
possibilidades para o estudo, mais sim para o trabalho ou para o mundo da ilegalidade. Em vista
disso, ao adentrarem nas celas a educação se torna um alento positivo, especialmente no combate
aos estigmas sociais, pois oferece uma perspectiva diferenciada contribuído em diversos aspectos,
inclusive, na obtenção de um emprego após a saída do sistema prisional. Contudo, não é somente
a educação que pode promover transformações na vida dos detentos, a própria mudança de atitude
dentro da prisão, no sentido de cumprir as regras, participar dos projetos, executar trabalhos
diversos, ter bom comportamento tende a promover uma ressocialização mais eficaz.

Coadunamos com a perspectiva de que no sistema prisional a educação tem duas facetas: a
primeira é a de promover um ensino que motive o alunado a estudar, a buscar informações através
das aulas, a segunda é de oportunizar através dos estudos uma possibilidade de mudança de vida.
Portanto, os projetos sociais desenvolvidos no sistema prisional terisinense se constiuem para os
prisioneiros e prisioneiras como nortes que apontam para a direção do progressso, do futuro que,
mesmo incerto, promovem alento, descontração, momentos de aprendizagem relevantes e mesmo
sob a ótica disciplinar, tão bem enunciada por Foucault, tais mecanismos são essenciais para manter
a boa conduta das presas e presos e tirá-los do ócio prisional.

Ressocialização entre muralhas: o ensino de história no sistema prisional

A educação no sistema prisional brasileiro é dotada de desafios e possibilidades, justamente


porque requer uma estrutura adequada de trabalho, onde os docentes se sintam seguros para
executar suas atividades. Nesse contexto, ensinar em um ambiente dotado de grades, armamentos
constitui uma instigação imensa para os profissionais de educação, principalmente porque o
ambiente e metodologias de ensino são totalmente diferente das salas convencionais onde podemos
nos expressar de uma forma de uma forma mais leve e menos tensa diferente das escolas prisionais,
onde de fato o professores se encontram sob imensa pressão.

Quando mencionamos que os docentes estão sob pressão, isso ocorre devido ao próprio
lugar em que o profissional se depara: o cárcere, os armamentos, os agentes penitenciários, barulho
dos veículos de polícia, a insalubridade de alguns espaços na cadeia, todas essas questões devem
1032

ser levadas em consideração quando falamos de ensino no sistema prisional, porque sabemos que
o espaço em que é executado a ação educativa influencia, deliberativamente, nas práticas.

Nesse sentido, as experiências que tivemos ministrando aulas no Programa Nacional de


Inclusão dos Jovens- Projovem Sistema Prisional foram marcantes, justamente porque toda equipe
sentiu a verdadeira realidade da educação nas prisões. Convém elencar que antes do início das aulas
tivemos Formações que, além de discutir várias questões relacionadas aos tipos de planejamentos
adequados as especificidades dos sistema, às condutas que deveríamos ter nas salas, nos levou para
conhecer as unidades prisionais que seriam nosso local de trabalho. Foi um momento muito
apreensivo, pois sentimos uma inquietude forte ao penetrarmos pela primeira vez no ambiente
entre muralhas. Assim, olhávamos para os muros, grades, armamentos com receio e, infelizmente,
com estigmas, pois acabamos nos deixando influenciar pelas concepções midiáticas, ou mesmo
governamentais que não buscam medidas efetivas para um ambiente carcerário digno para os
presos e presas.

No entanto, mesmo com toda a inquietação, a equipe estava disposta a romper os


preconceitos e estereótipos e, foi com esse desejo de tranformar realidades que começamos nossa
jornada. A experiência não foi fácil tendo em vista que na penitenciária Irmão Guido, nos meses
iniciais de aulas, não tínhamos agentes penitenciários que nos acompanhasse nas salas. À vista disso,
o primeiro dia de aula foi apreensivo, afinal tudo era muito novo e ficar em uma cadeia ministrando
aulas sem segurança foi um desafio angustiante. Contudo, permanecermos firmes e fortes no
intuito de oferecer o melhor e, mesmo com às adversidades, inciamos às aulas.

Interessante destacar que, a despeito dos nossos medos e da falta de agentes penitenciários,
nossas primeiras aulas no sistema prisional masculino444 foram muito tranquilas, os presos
responderam bem às atividades propostas, participavam, discutiam, houve mesmo uma
empolgação geral, pois projetos educacionais nesse ambiente promovem novas sociabilidades, a
posssibilidade de informações sobre o mundo, além de momentos de conhecimento e
descontração.

Com o passar dos meses no sistema prisional Irmão Guido foi instaurado um sistema de
segurança, onde um agente penitenciário armado nos acompanhava durante nossa permanência na
sala. Gostamos desse ocorrido, pois finalmente nos sentíamos seguras para oferecer o nosso
melhor, porém, novamente encontramos a pressão, tendo em vista que não era fácil trabalhar tão

444Convém pontuar que o contrário acontecia na penitenciária Feminina, pois nesse ambiente sempre teve muita
segurança, inclusive, em algumas circunstâncias específicas, acontecia de ter dois a três agentes penitenciários assistindo
nossas aulas.
1033

próximos de armamentos. Lembramos que uma das experiências marcantes foi expor uma aula de
história onde o profissional da segurança que nos acompanhava tirou às balas e colocou todas na
mesa da carteira, aquela imagem nos deixou angustiadas, pois sabíamos que havia uma contradição
muito grande em ensinar entre armas e agentes penitenciários. É como se vivêssemos uma das
tirinhas de Mafalda no qual com toda sua sagacidade, a personagem aponta para o cacete de um
guarda e reflete o seguinte: “Esta é a borracha de apagar ideologias” (Quino, 2003, p. 146).

A fala de Mafalda supracitada é bem elucidativa, pois a regra básica do sistema prisional é
a vigilância e disciplina e as armas, e todos os instrumentos de punição funcionam como suporte
para manter os presos e presas na ordem, longe de balbúrdias e discussões, isso não quer dizer que
confusões, desentendimentos ou tentativas de fugas não existissem, pelo contrário, havia sim
indisciplina, porém, sempre contida pelas repreensões ou sanções.

Os próprios agentes penitenciários, por terem uma educação tradicional, tentavam interferir
na forma com expúnhamos o conteúdo, por exemplo, muitas vezes quando finalizava nossas aulas
na penitenciária feminina, ouvíamos das agentes que deveríamos ter uma postura mais tradicional,
que ordenasse ao invés de promover deliberações, isso acontecia justamente porque às aulas que
realizávamos gerava muitos debate e discussões profícuas. Assim, apesar das orientações das
agentes em tentar conter nossa forma de repassar os conhecimentos, não modificávamos nossas
metodologias, justamente porque sabíamos como expor os conteúdos e defendíamos a ideia de
que, independente do espaço que estamos ensinando, sabemos que a educação deve levar em
consideração as reflexões dos aluno e alunas. Educação de qualidade é provocadora, excitante, já
que os discentes não são uma tábula rasa em que somente depositamos saberes, antes de tudo o
ato de educar requer entender que as experiências e vivências cotidianas de todos devem ser levadas
em consideração, pois além de estimular o debate, gera práticas extremamente significativas e
relevantes de aprendizagem, nos faz olhar e entender outros pontos de vista e novas perspectivas.
Os conhecimentos prévios são tão importantes para o desenvolvimento de competências em sala
de aula, por isso sempre se faz necessário, como bem reflete Celso Antunes:

Abandonar outra postura retrógrada, mas nem por isso invulgar de ignorar os
saberes que os alunos trazem e despejar sobre os mesmos os conteúdos da série
ou do ciclo. Somente se aprende quando o novo que chega se associa ao antigo
que a mente guarda. A ‘muitas coisas’ que sabe - das novelas que assiste, das
conversas que participa, dos saberes anteriores que se guarda, das emoções que
se registra- são âncoras de sua mente onde se ‘amarrarão’ os novos saberes
apresentados (Antunes, 2002, p. 38-39).
1034

Foi nesse ambiente que ministramos aulas de história, fato que se constituiu com um
imenso desafio profissional e, ao mesmo tempo que gerava instigação, desejos de ensinar e
promover mudanças de perspectivas, também nos deixava inquietas, justamente porque se fazia
necessário ter cuidado em nossas falas e posturas e nas interpretações que fazíamos das opiniões
dos discentes.

As inquietações surgiam principalmente porque, algumas temáticas eram difíceis de se


trabalhar nas aulas de história, entre os temas mais desafiantes podemos destacar dois: a
criminalidade e o uso das drogas. Com relação ao assuntos que envolviam criminalidade sempre
expomos com muita cautela, pois estávamos ministrando aulas para pessoas que cometeram atos
infracionários e que tinham uma visão própria do crime que haviam cometido, então, como
docentes, não podíamos chegar na sala tecendo jugamentos, pois poderíamos provocar a evasão
estávamos sim para promover deliberações que desencadeassem reflexões, mudança de atitude e
posicionamentos críticos.

Discutir a criminalidade com pessoas que cometeram transgressões foi desafiante e nos
propiciou momentos de debates eriquecedores, isso porque comumente aprendemos a vê somente
um lado da moeda, aquele em que o preso é visto como o malvado, o ruim, o merecedor de
punições, todavia, quando rompemos essa visão binária e passamos a exergar o outro lado,
percebemos que é necessário mudanças de visão dentro da sociedade e irmos além do senso
comum, pois como menciona Flávio Berutti e Adhemar Marques:

[...] Muitos preconceitos e estereótipos são nutridos socialmente a respeito das


situações históricas conflituosas [...]. Muitas das visões construídas a respeito
desse e de outros temas, além de nutrirem preconceitos e reforçarem
desigualdades, legitimam ações de discriminação e violência, podendo funcionar
como verdadeiros obstáculos para novas aprendizagens, requerem portanto um
trabalho cuidadoso de desconstrução e reconstrução de conceitos (Berutti;
Marques, 2009, p. 30).

Observando por esse ângulo, se faz necessário desenvolvermos estratégias que desconstrua
cada vez mais os estereótipos que rondeiam o preso e buscarmos desenvolver estratégias que
promovam inclusão, pois se os presos e presas ao retornarem para o convívio social não tiverem
possibilidades de progredir sabemos que o ciclo crime, prisão e liberdade retornará desencadeando,
infelizmente, novas vítimas, daí a necessidade de que o ex-detento possa ter um local para trabalhar
que garanta seu sustento e uma vida com dignidade.
1035

Com relação a temática do uso das drogas trabalhadas nas aulas de história, nós sempre
buscávamos pontuar as consequências negativas da utilização de substâncias viciantes de uma
maneira que levasse os discentes análise escolhas e das consequências de seus atos. A nossa ação
pedagógica sempre foi impulsionada pelo desenvolvimento cognitivo, social, ético desses homens
e mulheres, buscávamos trabalhar a reflexão sobre experiências vividas pelos estudantes,
incentivando-os a se perceberem enquanto sujeitos e agentes da realidade social. O diálogo foi a
mola propulsora que oportunizava a aprendizagem, novos conhecimentos, novas habilidades e
novas atitudes.

A temática das drogas provocava apreensão, justamente porque muitos alunos e alunas
faziam uso de tais substâncias, inclusive na prisão, fato que nos denota as falhas do sistema prisional
brasileiro, onde os encarcerados não são de fato ressocializados, devido a vários fatores,
principalmente a omissão de responsabilidade do Estado em promover políticas públicas mais
eficazes dentro do ambiente carcerário para que os encarcerados não tenham acesso ao uso de
drogas.

Tristemente, como bem elucida Jilía Diane Martins, apesar de na Constituição Federal os
preso e presas terem vários direitos, quando observamos a realidade brasileira há uma passividade
das estruturas de poder que, além de não oferecer um sistema prisional digno, “fecha os olhos”
para o uso de drogas. Existe um Estado de exceção, ou seja, na teoria os indivíduos presos teriam
uma ambiente digno, longe de drogas, com possibilidades múltiplas de progresso e dignidade para
pagarem suas penas e posteriormente retornarem ressocializados para o convívio social. Não
obstante, ocorre o contrário, pois são escassos os projetos que beneficie a massa de presos, tendo
em vista que somente alguns tem acesso e possibilidades de participar, ou mesmo trabalhar dentro
do sistema prisional (Martins, 2017).

Nas várias vezes que adentramos no sistema prisional, foi possível perceber que a liberdade
“[...] substancial dos indivíduos encarcerados é violada cotidianamente sem que haja preocupação
do Estado” (Martins, 2017, p. 130). Dessa forma, a educação e os projetos sociais desenvolvidos
no sistema prisional constituem-se como um suporte para intervir nesses espaços prisionais onde
a violação dos direitos essenciais, teoricamente garantidos por lei, passam muitas vezes,
despercebidos.

O ensino de história nas duas penitenciárias estudadas foi um prática galgada na busca
efetiva dos direitos fundamentais que todos temos e na construção de um novo horizonte “político
de superação da exploração do homem [...], mas também colaborar no processo de mitigação da
violência e barbárie, nocivas em qualquer forma de vida societária” (Martins, 2017, p. 130).
1036

Então, buscávamos trabalhar com músicas, literatura de cordel, teatro, textos


motivacionais, textos de história de temporalidades remotas, construção de maquetes, etc. Nos
surpreendíamos com a visão de mundo existente principalmente na penitenciária Irmão Guido,
pois os reeducandos tinham opiniões bastantes contundentes, fato que nos alegrávamos, pois as
discussões sempre trazia novas oportunidades de aprendizado e trocas de experiências.

Havia formas e metodologias diferentes de se trabalhar nos dois sistemas prisionais, pois
enquanto o sistema prisional feminimo as alunas eram menos participativas, fato que se fazia
necessário induzi-las a participação, então as aulas precisavam ser mais dinâmicas, o ensino de
história tinha que ser algo prazeroso e que promovesse um encontro com o cotidiano das
carcerárias. Assim, temas como: trabalho, cidadania e condições de vida; economia solidária;
educação, os novos desafios e juventude; lutas e conquistas no mundo do trabalho faziam muito
sucesso entre as detentas. Em um dado momento, nas aulas sobre revolução industrial, para que as
detentas pudessem entender melhor os processos históricos por trás do capitalismo, levamos o
filme Tempos Modernos, de Charlin Chaplin (Tempos Modernos, 1936) que gerou uma
repercussão incrível, pois mesmo tendo um teor engraçado, as alunas entenderam de fato a redução
do trabalhador a objeto das teias capitalistas, onde o homem o serviço do homem é desvalorizado
desde os primórdios do capitalismo.

Com relação a penitenciária Irmão Guido, os detentos ouviam as aulas de história e


participavam muito e suas opiniões foram extremamente reflexivas, grande parte dos alunos
falavam muito bem e tinham visões de mundo intelectuais. A metodologia se pautava na utilização
também de textos diversos, mas os detentos gostavam muito de ouvir músicas, assim, sempre que
possível. levávamos gêneros de Hip Hop, Rappe, Rock Nacional e relacionávamos com os
conteúdos do livro didático.

Conclusão

Sabemos que são muitos os desafios de se educar nas Unidades Prisionais de Teresina- PI,
pois há uma necessidade de mais equipamentos, recursos midiáticos, segurança que motive os
profissionais a participarem dos programas educacionais. O ensino de história, nessa conjectura,
foi uma experiência única e plural, que deixou toda equipe sob pressão, mas também, promoveu
experiências únicas, um amadurecimento profissional, desconstrução de estigmas, além de
percebemos que onde a educação chega é possível que a mudança positiva ocorra, pois o ato de
educar promove perspectivas diferentes, reacende sonhos de alunas e alunos com trajetórias
1037

marcadas pela violência, depressão, culpa, medo e arrependimento. A educação atua como uma luz
no fim do túnel e quem se banha com seu amálgama com certeza se transformará por inteiro.

Ficamos imensamente felizes em fazer parte do Programa Nacional de Inclusão dos Jovens-
Projovem Sistema Prisional e de ajudar a desenvolver posturas menos preconceituosas na
sociedade. Tristemente, como mencionamos nas linhas acima, ainda existem muitos estereótipos e
preconceitos contra os presos e presas, pois muitos acreditam que a punição deve ser total e
defendem que os encarcerados não devem ter benefícios dentro da enxovia. Contudo, cabe uma
reflexão: se os presos e presas não tiverem condições dignas dentro da cadeia e perspectivas de um
futuro melhor depois que cumprirem sua pena, como poderão serem ressocializados? Coadunamos
com a ideia de que somente a educação não transformará os encarcerados, se faz necessário um
conjunto de ações articuladas para que a realidade do sistema prisional mude. Enquanto isso não
ocorrer, os debates que gerem a desconstrução de estigmas são essenciais, porém é preciso mais,
se faz necessário políticas públicas que repensem a condição do encarcerado, pois enquanto isso
não acontecer, o preso voltará a criminalidade, o ciclo de prisão, reincidência e liberdade voltará e,
lamentavelmente, a próxima vítima pode ser você ou eu.

Referências

Antunes, C. Como desenvolver as competências em sala de aula. Petrópoles: Vozes, 2002.

Bordieu, Pierre. As regras da arte: a gênese da estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das
letras, 1996.

Berutti, Flávio; Marques, Adhemar. Ensinar e aprender história. Belo Horizonte: RHJ, 2009.

Foucault, Michel. Vigir e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

Martins, Jilia Diane. A condição do encarcerado no sistema prisional: biopolítica e desenvolvimento como
liberdade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça. Departamento Penitenciário Nacional – Brasil:


Informações Penitenciárias. Brasília – Abril de 2006.

Quino, J. L. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Tempos Modernos. Direção de Charles Chaplin. Estados Unidos: United Artists/ Charles
Chaplin Productions, 1936. C2005. 1DVD.
1038

Sobre as relações entre história e vida a partir da teoria da história:


desafios contemporâneos

Josias José Freire Júnior*

Resumo: A teoria da história é o campo de reflexão histórica que reconhece como seu objeto as
dimensões teórico-metodológicas da produção do conhecimento histórico e suas relações com a
vida prática. Seu intuito é compreender as dinâmicas da produção do conhecimento histórico em
suas especificidades e diversas manifestações, antes de qualquer caráter normativo. Esse trabalho
tem por objetivo discutir as relações entre ciência especializada e vida prática a partir do esquema
da matriz disciplinar da ciência da história elaborada pelo teórico e historiador alemão Jörn Rüsen.
Para tanto, serão apresentados e problematizados alguns conceitos da teoria da história de Rüsen.
Inicialmente, será retomado e discutido o esquema do paradigma disciplinar da ciência da história,
formulado por Rüsen e desenvolvido ao longo de sua obra. Esse paradigma disciplinar da ciência
da história tenta dar conta em perspectiva genérica dos fundamentos e etapas da produção do
conhecimento histórico. Depois, se refletirá sobre o conceito de cultura histórica, enquanto
contexto cultural que possibilita as conexões de sentido entre sujeito, objeto, processos e produtos
do conhecimento histórico, por assim dizer. Entende-se, ademais, que a dinâmica da produção do
saber histórico representado pela matriz disciplinar, entre carências e funções de orientação, está
imerso no contexto cultural da cultura histórica. Nenhum tipo de conhecimento científico pode
ignorar, pois, suas relações com seus contextos vitais. Entretanto, tais relações entre vida prática e
ciência especializada estão longe de serem naturais ou não problemáticas. Por isso, será questionado
acerca de modo através dos quais as carências de orientação e as funções de orientação existencial
se originam e retornam, respectivamente, para seus contextos culturais, na perspectiva do sentido
histórico.

Palavras-chave: Teoria da História, Cultura Histórica, Consciência Histórica, Sentido.

A teoria da história é o campo de reflexão da ciência da história que toma como seu objeto
as dimensões teórico-metodológicas da produção do conhecimento histórico, bem como suas
relações com a vida prática. Seu intuito é compreender as dinâmicas da produção do conhecimento
histórico em suas especificidades e diversas manifestações, antes de qualquer caráter normativo.
Assim, cabe a teoria da história, entre outras tarefas, se dedicar à produção historiográfica e seus
contextos de referência, de modo a elucidar suas relações de determinação recíproca.

Nesse contexto, esse trabalho tem por objetivo discutir as relações entre ciência
especializada e vida prática a partir do esquema da matriz disciplinar da ciência da história,
elaborada pelo teórico e historiador alemão Jörn Rüsen (2015; 2014; 2007; 2001). A teoria da
história de Jörn Rüsen tem uma expressiva recepção no contexto brasileiro, influenciando reflexões

* Doutor em História. Docente do Instituto Federal de Brasília (IFB).


1039

do próprio campo da teoria da história, da didática da história e da formação histórica, das relações
entre conhecimento histórico e contextos culturais específicos, bem como dos significados da
história para a vida prática.

Para o desenvolvimento da discussão ora proposta, serão apresentados e problematizados


alguns conceitos da teoria da história do historiador e teórico alemão. Inicialmente, será retomado
e discutido o esquema do paradigma disciplinar da ciência da história, formulado por Jörn Rüsen e
desenvolvido ao longo de sua obra. Esse paradigma disciplinar da ciência da história tenta dar
conta, em perspectiva geral, dos fundamentos e etapas da produção do conhecimento histórico.

Após a apresentação e discussão do paradigma da ciência da história formulado por Rüsen,


se refletirá sobre os contextos culturais a partir dos quais o conhecimento histórico se constitui,
especialmente a dimensão cultural do pensamento histórico originário que possibilita a produção
de saberes históricos, em suas diversas dimensões. Propõem-se, pois, se refletir sobre o conceito
de cultura histórica, enquanto contexto cultural que possibilita as conexões de sentido entre sujeito,
objeto, processos e produtos do conhecimento histórico, por assim dizer.

Entende-se, ademais, que a dinâmica da produção do saber histórico representado pela


matriz disciplinar, entre carências e funções de orientação, está imerso no contexto cultural da
cultura histórica. Nenhum tipo de conhecimento científico pode ignorar, pois, suas relações com
seus contextos vitais. Entretanto, tais relações entre vida prática e ciência especializada estão longe
de serem naturais ou não problemáticas. Ainda: ao se tratar dos contextos culturais que estabelecem
complexas relações com os saberes científicos produzidos a partir deles, deve-se reconhece a
particularidade da história, que tem também como origem a produção de sentido constitutiva de
seu contexto.

Dessa forma, entendendo as particularidades da ciência da história e suas complexas


relações com a vida prática que a origina, será questionado acerca de modo através dos quais as
carências de orientação e as funções de orientação existencial se originam e retornam,
respectivamente, para seus contextos culturais, na perspectiva do sentido histórico.

Como foi anteriormente mencionado, o pensamento histórico, em sua forma mais genérica,
possui um caráter universal na medida em que é reconhecido, em suas variadas formas, em
diferentes contextos culturais, sendo a história considerada, pois, "um elemento essencial de
qualquer orientação cultural da vida humana prática" que aparece "nos mais diversos formatos, em
todas as culturas" (Rüsen, 2015, p. 33). Assim, considera-se o pensamento histórico como uma
dimensão genérica da atividade humana, que tem na prática científica uma de suas dimensões
particulares. A presença de saberes históricos como “elemento essencial” da cultura humana, ao
1040

contrário de representar alguma independência desses saberes em relação a tais culturas, enfatiza
exatamente sua profunda e complexa relação com seus contextos vitais.

A referida dimensão particular, científica, do conhecimento histórico se caracteriza, grosso


modo, por sua especialização e controle teórico, metodológico e comunicativo, dentre outras
características. A teoria da história, como mencionado, tem por tarefa refletir sobre a dimensão
racional de uma experiência que pode ser considerada universal: a relação do ser humano com sua
condição temporal, nos intercâmbios entre tempo natural e tempo humano. Entende-se,
consequentemente, que a dimensão racional do conhecimento histórico não é exclusiva da ciência
da história – embora essa não possa acontecer sem tal dimensão – embora sempre lhe faça
referência. O ensino de história, a história pública e aqui, especialmente, a dimensão pré-científica
e, em alguma medida, racional da operação histórica de constituição de sentido, tem especial ênfase.

Por certo, não há experiência temporal apenas natural ou apenas humanos, ambos se
constituem a partir do pensamento humano sobre sua condição histórica individual e coletiva. Uma
porção importante daquele pensamento tem pretensões racionais, e por isso se constituem tema da
teoria da história; por isso para Rüsen “a teoria da história reflete sobre a ciência como uma forma
de vida, como princípio cultural da realidade social, sob o ponto de vista de descobrir se e como
ela realiza efetivamente suas pretensões de racionalidade” (Rüsen, 2007, p. 94). A ciência da história
como forma de vida inclui dimensões mais ou menos próxima dos contextos culturais que a origina,
isso em razão de sua necessidade de especialização, que garante sua eficácia enquanto processo de
compreensão racional da dimensão histórica da condição humana.

Por isso se considera que a "história como ciência é, pois, uma forma específica de
'racionalização' do pensamento histórico, sempre ativo na vida prática" (Rüsen, 2015, p. 75). A
partir dessa formulação, Jörn Rüsen desenvolve um paradigma da ciência da história na forma de
uma matriz disciplinar do conhecimento histórico.

O paradigma disciplinar da história é apresentado por Rüsen na forma de uma matriz


disciplinar formada por cinco fatores interligados, que conectam, ademais, as dimensões do saber
históricos associada à vida prática e a ciência especializada (Rüsen, 2001, p. 35). Se a teoria da
história "tem de aprender" "os fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o
campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia" (Rüsen, 2001, 29), uma de suas funções
fundamentais é formular o ordenamento sistemático destes fatores; é isso que a matriz disciplinar
do conhecimento histórica elaborada por Rüsen propõe.

Os fatores que compõem o paradigma da matriz disciplinar proposta por Jörn Rüsen são
os “interesses”, originados nas "carências de orientação no tempo, interpretadas", as “ideias”, como
1041

"perspectivas orientadoras da experiência do passado, os métodos, que são as "regras da pesquisa


empírica", as "formas de apresentação" do conhecimento histórico, e as "funções" "de orientação
existencial" (Rüsen, 2001, p. 35). Além de "todos os fatores" serem "desde o início" estabelecidos
"em uma relação de interdependência sistemática" (Rüsen, 2015, p. 74), eles possibilitam exibir a
especificidade das etapas da produção do pensamento histórico e, principalmente, "distinguir o
pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum" (Rüsen, 2001,
p. 35). Essa distinção é fundamental tanto para garantir a racionalidade própria da produção do
conhecimento histórico científico, que se distancia da vida prática se especializando, quanto para
destacar a inseparabilidade das dimensões da ciência e da vida, para onde o conhecimento histórico
"retorna" na forma de funções de orientação existencial.

Também para Rüsen "somente assim se pode evitar a falsa representação de um campo
autônomo do conhecimento histórico, sequestrado da vida prática, mantendo à vista suas conexões
internas com a vida humana" (Rüsen, 2015, p. 95). Enquanto prática social culturalmente orientada,
a produção do conhecimento histórico apenas teoricamente pode ser apartada de seu contexto
sociocultural. Essa separação é fundamental no processo – e no sucesso – do saber histórico
científico do mesmo modo que esse processo de abstração precisa ser compreendido como uma
etapa daquele processo, que necessariamente passa pelo retorno do conhecimento histórico as suas
origens.

A matriz disciplinar de Rüsen possibilita, igualmente, partir "da distinção entre teoria e
práxis, entre conhecimento histórico" e sua "aplicação" de modo a destacar a "conexão íntima entre
o pensamento e a vida" (Rüsen, 2011, p. 55), isto é, a teoria da história é um esforço racional de
compreensão sistemática das diferentes dimensões do conhecimento histórico, incluindo as pré-
científicas no contexto da cultura humana.

Trata-se, assim, de uma questão fundamental para a teoria da história refletir sobre a
“conexão do pensamento histórico científico com a vida humana prática” na pergunta sobre “qual
é o papel desempenhado pelo conhecimento histórico produzido pela história, como ciência, na
orientação cultural da vida humana” (Rüsen, 2015, p. 33). Ao lado dessa questão, destaca-se,
outrossim, a discussão sobre o papel da vida prática na produção de demandas, na forma de
desafios que, ao serem interpretados como histórico, se tornam carências que são elaborados em
interesses por respostas históricas, que podem operar na constituição de funções de orientação
existencial mediante a interpretação e atribuição de sentido à experiência do tempo.

Essa relação fundamental entre conhecimento histórico científico e vida prática pode
destacar, ademais, outra particularidade do conhecimento histórico que, na medida em que se
1042

especializa em uma disciplinarização que garante seu êxito científico, vai além de suas
especificidades disciplinares, de modo que a dimensão da ciência especializada não se torne um fim
em si. Para Jörn Rüsen "[...] a ciência da história como disciplina especializada [...] por princípio
sempre possui os traços também transdisciplinares por causa de suas raízes no nível funcional"
(Rüsen, 2015, p. 95). Claro que esse "apelo" não pode secundarizar "o desempenho cognitivo a que
os padrões metódicos da pesquisa histórica estão vocacionados” (Rüsen, 2015, p. 27). Isso também
significa que a disciplina histórico-científica é sempre e fundamentalmente disciplinar,
interdisciplinar e transdisciplinar (Rüsen, 2015, p. 32), no contexto de seu "desempenho cognitivo",
no seu sucesso científico, em sua relação com "outros manejos científicos com o passado" e na
"conexão do pensamento histórico científico com a vida humana prática (Rüsen, 2015, p. 32).
Reconhecendo-se a tensão constitutiva entre vida e ciência inscrita na origem do conhecimento
histórico, se avança para uma compreensão da interface entre aquelas dimensões como passagem.

O trânsito entre essas dimensões do pensamento histórico foi identificado, igualmente por
Rüsen, como elemento central da razão histórica:

[...] Razão é ‘transição’ [...] de um modo de argumentar para o outro, de uma


relação com a experiência para uma relação com a práxis, dos elementos não
narrativos para os elementos narrativos da constituição histórica de sentido.
Somente a racionalidade histórica que tematiza a si mesma e se auto-esclarece é
racional (Rüsen, 2001, p. 174).

A autorreflexão que caracteriza a teoria da história é constitutiva do conhecimento histórico


científico por ressaltar a reiterada desse conhecimento de se “conhecer” - e aqui também pode-se
aproximar da compreensão de que a história está inextrincavelmente vinculada ao que ela busca
conhecer. Ademais, compreende-se que é o contexto cultural daquela razão histórica que o conceito
de cultura histórica tenta abarcar.

Entende-se a cultura histórica como “o campo em que os potenciais de racionalidade do


pensamento histórico atuam na vida prática” (Rüsen, 2007, p. 121). A cultura história é formada
assim pelas referências fundamentais para todo pensar historicamente vinculado à dimensão da
vida prática. Por isso, a cultura histórica é considerada uma "práxis social" como "origem do
pensamento histórico na vida humana prática" (Rüsen, 2015, p. 217), enquanto o contexto cultural
a partir do qual o pensamento histórico busca suas referências fundamentais.

Nessa direção, o "campo" a partir do qual se dá a "interpretação do mundo e de si mesmo,


pelo ser humano" é a cultura histórica, na medida em que nela "devem efetivar-se as operações de
constituição do sentido da experiência do tempo, determinantes da consciência histórica humana"
(Rüsen, 2007, p. 121). Assim, Rüsen entende que a
1043

Cultura histórica é o suprassumo dos sentidos constituídos pela consciência


histórica humana. Ela abrange as práticas culturais de orientação do sofrer e do
agir humanos no tempo. A cultura histórica situa os homens nas mudanças
temporais nas quais têm de sofrer e agir, mudanças que - por sua vez - são (co)
determinadas e efetivadas pelo próprio agir e sofrer humanos (Rüsen, 2015, p.
217).

A produção da cultura histórica enquanto fenômeno histórico-social, estritamente


vinculado ao contexto de cada tempo e lugar, está vinculado com a capacidade elementar de pensar
historicamente, capacidade essa abarcada pelo conceito de consciência histórica.

A consciência histórica é o "lugar mental da cultura histórica"; isto é, a consciência histórica


são os "processos mentais genéricos e elementares da interpretação do mundo e de si mesmos
pelos homens, nos quais se constitui o que se pode chamar de consciência histórica" (Rüsen, 2001,
p. 55); entende-se, assim, que a consciência histórica deve ser compreendida como capacidade
elementar de pensar historicamente – conectar passado, presente e futuro mediante constituição
de sentido a partir dessa experiência.

A compreensão da história enquanto fenômeno cultural geral, representado pelo conceito


de cultura histórica, está intrinsecamente associado ao conceito de consciência histórica, como o
"modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção no tempo se realiza no
processo da vida humana" (Rüsen, 2011, p. 58). Por isso a consciência histórica pode ser
considerada a possibilidade de produzir sentido a partir da experiência do tempo, como "suma das
operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de
seu mundo e de si mesmos " (Rüsen, 2001, p. 58). Essa tarefa essencial da consciência histórica,
como "trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes
com a experiência do tempo" (Rüsen, 2001, p. 58) elabora a constituição de sentido diante da
experiência temporal como atividade fundamental diante da experiência temporal.

A produção de sentido histórico a partir da experiência temporal e mediada pela ação (agir
e sofrer) intencionalmente orientada é resultado da operação da consciência histórica em sua matriz
cultural específica: a cultura histórica. A constituição de sentido da experiência do tempo pode ser
organizada em “quatro operações mentais”, “a partir da experiência temporal”: “experiência ou
percepção, interpretação, orientação [externa: práxis; interna: identidade] e motivação” (Rüsen,
2015, p. 42). O sentido histórico "é a conexão interna entre essas quatro atividades" (Rüsen, 2015,
p. 43). A articulação dessas três dimensões do tempo nas "quatro atividades mentais: experimentar,
interpretar, orientar e motivar" (Rüsen, 2014, p. 267) constitui o sentido histórico:
1044

As atividades mentais da formação de sentido pela via da experiência temporal


seguem uma lógica que sintetiza previamente este três elementos: explicação de
interconexões, direcionamento normativo da vida humana para objetivos e
estabelecimento de uma relação retroativa de ambos com o autoentendimento dos
sujeitos sobre sua identidade. Todos os três são fundamentalmente determinados
por referências temporais: a experiência de mudança temporal pretérita pela via de
memoração, projeção de perspectivas futuras mediante a expectativa e duração do
próprio eu na interseção de ambos como presente vivo (Rüsen, 2014, 268-269).

Do mesmo modo, Rüsen pode considerar o sentido como a "a quarta dimensão do tempo,
sem a qual as outras três não podem ser humanamente vividas" (Rüsen, 2014, p. 256), haja vista
que o sentido é responsável por estabelecer a conexão entre experiência vivida, expectativa e ação
presente em um todo significativo, na medida em que "essa íntima interdependência de passado,
presente e futuro é concebida como uma representação da continuidade e serve à orientação da vida
humana prática atual" (Rüsen, 2011, p. 64).

A noção de sentido é, pois, fundamental para a compreensão da teoria da história de Jörn


Rüsen, tanto na perspectiva intradisciplinar, nas relações entre ideias, métodos e formas - como
fatores da matriz disciplinar pertencentes à dimensão da ciência especializada - quanto na estrutura
do saber histórico associado à vida prática - carências traduzidas em interesses e funções de
orientação motivadores de agir e sofrer intencionais - mas, especialmente, da relação entre as duas
dimensões. Para Rüsen o “[...] sentido como categoria fundamental da cultura humana [...] núcleo
do labor teórico científico” (Rüsen, 2014, p. 12-13). Esse núcleo, no contexto da produção do
conhecimento histórico está associado à possibilidade da “diferença temporal" ser "interpretada
quando integrada em uma representação abrangente do processo temporal que determina a
orientação cultural da vida humana prática” (Rüsen, 2015, p. 47); isto é, a teoria da história, ao
buscar refletir sobre as complexas relações entre a produção científica e a vida prática dialoga
também com um tema fundamental da própria cultural humana, no movimento constante de
produção de sentido.

A produção de sentido deve ser reconhecida, além do elemento fundamental da operação


de produção de saberes a partir da experiência temporal, como um “produto do espírito humano"
o sentido possibilita que o "mundo em que o homem vive adquir[a] um significado viabilizador da
vida” (Rüsen, 2015, p. 42). Ainda, para Rüsen:

Sentido torna possível a orientação. Ele situa a vida humana no horizonte das
interpretações; torna o homem e o mundo compreensíveis; possui uma função
explicativa; forma a subjetividade humana no construto coerente de um ‘eu’
(pessoal e social) [...]. Enfim, o sentido torna possível a comunicação como
processo de entendimento intra-humano (Rüsen, 2015, p. 42).
1045

É do mesmo modo nessa dimensão mais ampla da produção de sentido como experiência
fundamental da cultura humana, que as relações entre ciência e vida se tornam mais evidente. Para
Rüsen

A ciência serve à vida, ao dotar esse valor de uso da pretensão de validade que
lhe é própria. Dito de modo mais pretensioso: sua tarefa cultural prática consiste
em fornecer um saber útil aos fins de orientação, que resista ao controle crítico
de seu conteúdo empírico, de sua consistência e capacidade explicativa teóricas,
de suas implicações normativas e de suas configurações (Rüsen, 2015, p. 241).

A utilidade da ciência da história passa, portanto, pela sua utilidade prática de orientação
cultural da vida e, para tanto, necessita estar inserida também em um contexto de validade
científicas; não sendo, consequentemente, hierarquia entre esses níveis, e sim complementaridade.

Por fim, destaca-se que o aspecto produtivo da cultura humana que a elaboração de
conhecimento histórico tematizada pela teoria da história enfatiza, a saber, a produção de sentido
como “categoria fundamental da cultuar humana”, inclui ainda, necessariamente, a ausência de
sentido e o contrassenso como aspectos de sua atividade (Rüsen, 2015, p. 277). Isso significa que,
ao não se deixar desvincular dos contextos que a origina, a história incorpora em si as experiências
de vida marcadas pelo insucesso e pela descontinuidade, no agir e sofrer humanos. É essa exigência
que a teoria da história poderia mais uma vez ressaltar para produção contemporânea de
conhecimento histórico.

Referências

Rüsen, Jörn. Teoria da História: Uma Teoria da História Como Ciência. Trad. Estevão Martins.
Curitiba: Editora UFPR, 2015.

Rüsen, Jörn. Cultura Faz Sentido: Orientações Entre o Ontem e o Amanhã. Trad. Nélio Schneider.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

Rüsen, Jörn. História Viva: Teoria da História: Formas e Funções do Conhecimento Histórico.
Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

Rüsen, Jörn. Razão Histórica: teoria da história. Fundamentos da ciência da história. Trad. Estevão
Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
1046

O cotidiano na cidade de São Paulo (1780-1820)

Karla Maria da Silva*

Resumo: Este trabalho apresenta as linhas gerais e os resultados parciais de uma pesquisa
institucional ainda em desenvolvimento, que consiste em investigar a dimensão social dos
habitantes da cidade de São Paulo entre fins do século XVIII e início do XIX. Através de
documentos oficiais como as Atas da Câmara e o Registro Geral da cidade de São Paulo,
complementados por cartas, memórias, relatos de viajantes (como os de John Mawe, por exemplo),
e outros escritos contemporâneos ao período, a pesquisa pretende estabelecer as feições gerais da
população, analisar o cotidiano daqueles homens e mulheres, seus hábitos, aspectos de sua
alimentação, mobiliário, etc. Embora já tenham sido realizados inúmeros estudos acerca da cidade
de São Paulo, os quais evidenciaram a rusticidade e a pobreza de seus habitantes, a predominância
da vida rural sobre a urbana, e destacaram a precariedade das habitações - geralmente descritas
como choupanas de pau-a-pique, ladeadas por alguns poucos casarões de taipa - ainda são poucos
os estudos que reconstituem o seu dia-a-dia, a história das pessoas para além da história da
população. Pretende-se ainda, verificar se as mudanças econômicas e políticas ocorridas no
período, tanto no contexto interno quanto externo, teriam gerado algum impacto sobre a vida
cotidiana e alterado os hábitos, costumes e formas de viver daqueles habitantes. Desse modo, ao
se desvendar os códigos de vida de personagens anônimos e comuns, compreendendo-os também
como sujeitos da história, pretende-se lançar luzes sobre a temática e contribuir para a
reconstituição da vida urbana no burgo paulista daquela quadra histórica. Para tanto, a metodologia
utilizada consiste na análise dos documentos oficiais mencionados, seguida da comparação com o
contido nos demais escritos contemporâneos ao período.

Palavras-chave: São Paulo, Cidade, Cotidiano, Costumes.

Este trabalho apresenta as linhas gerais e as primeiras observações de uma pesquisa ainda
em desenvolvimento, que consiste em investigar a dimensão social dos habitantes da cidade de São
Paulo entre fins do século XVIII e início do XIX. A pesquisa procura estabelecer as feições gerais
da população, analisar o cotidiano daqueles homens, seus hábitos, aspectos de sua alimentação,
mobiliário, etc.

Embora já tenham sido realizados inúmeros estudos acerca da cidade de São Paulo, os quais
evidenciaram a rusticidade e a pobreza de seus habitantes, a predominância da vida rural sobre a
urbana, e destacaram a precariedade das habitações, geralmente descritas como choupanas de pau-
a-pique ladeadas por alguns poucos casarões de taipa, ainda são poucos os estudos que
reconstituem o seu dia-a-dia, a história das pessoas para além da história da população. Desse

* Professora Doutora do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá – UEM.


1047

modo, buscamos desvendar os códigos de vida de personagens anônimos e comuns, e contribuir


para a reconstrução da vida urbana do burgo paulista daquela quadra histórica.

A vila de São Paulo, chamada inicialmente de São Paulo de Piratininga, foi fundada em
1554, a partir da construção de um colégio jesuíta no planalto da capitania de São Vicente - o
Colégio de Trabalhos Apostólicos de São Paulo do Campo de Piratininga (reconstituído hoje no
Pátio do Colégio). Até então, a vida da capitania vicentina passara-se essencialmente no litoral,
principalmente nas vilas de São Vicente e Santos.

Originada de uma fundação religiosa, cujo principal objetivo era a conversão e a educação
dos índios, a cidade de São Paulo teria funcionado inicialmente como simples núcleo de catequese,
ao passo que outros núcleos quinhentistas de povoamento, como Salvador e Rio de Janeiro, por
exemplo, teriam funcionado como centro administrativo e de ação militar, respectivamente (Silva,
1955, p. 59).

No entanto, no ano de 1560, com a elevação de São Paulo à categoria de vila, foi-lhe
imposta também a função político-administrativa, reforçada pela instalação da Câmara que, apesar
do reduzido número de oficiais, foi um fator importante de fixação, firmando-se logo como
instância de poder. Em razão da constante ameaça de ataques de índios hostis – apesar da ação
pacificadora dos jesuítas – a cidade de São Paulo acabou por desempenhar ainda uma função
militar, desenvolvendo um aparelhamento de defesa fundamental para a sobrevivência da vila
quinhentista445.

Segundo Raul de Andrade Silva (1955, p. 61), rapidamente se desenvolveu entre os


habitantes “uma consciência comunal das necessidades coletivas e dos interesses locais”, o que
fortaleceu seu apego ao lugar e “os tornou mais solidários, em torno da autoridade municipal”.

Em 1681, a capital de São Vicente foi transferida para São Paulo, que passou então a ser a
“Cabeça da Capitania”. No ano de 1709, D. João V criou a capitania de “São Paulo e Minas do
Ouro”446 e, em 1711, a vila de São Paulo foi elevada à categoria de cidade. Nesse momento, a
Câmara Municipal recebeu o cobiçado título de Senado da Câmara.

No ano de 1748, em razão dos conflitos pelas zonas auríferas e da política de fortalecimento
do poder central, a capitania de São Paulo perdeu sua autonomia administrativa, passando para a

445
Aos poucos, os índios rebeldes foram migrando para o sertão, cada vez mais distante, fugindo das campanhas
preventivas empreendidas pelos Capitães-Mores, não registrando São Paulo a presença de índios hostis desde 1596,
como colocou Raul de Andrade Silva (1955, p. 63).
446
No ano de 1720, ocorreu um desmembramento, instituindo-se duas capitanias distintas, a de São Paulo e a de Minas
Gerais. Em 1748, foram também desmembradas de São Paulo as regiões de Mato Grosso e Goiás, dando origem a
duas novas capitanias.
1048

jurisdição do Rio de Janeiro. Nesse contexto, a cidade de São Paulo perdeu sua condição de capital
da capitania. No entanto, em 1765, a autonomia da capitania paulista foi restaurada e a cidade de
São Paulo passou novamente a ser a sede administrativa.

Desde sua fundação, a cidade de São Paulo apresentava traços e indícios de que tinha
condições para se tornar o centro político, administrativo, religioso e econômico de uma vasta
região. Em virtude de sua posição geográfica, já que era situada no meio de vias naturais de
penetração para o interior, tornou-se um centro de circulação terrestre e fluvial, e a cidade de São
Paulo se transformou “em um lugar obrigatório de passagem para todas as direções”, como afirmou
Maria Luíza Marcílio (1973, p. 21).

No entanto, nos primeiros séculos, antes que a cidade pudesse transformar-se em um


grande centro, essa mesma geografia seria responsável por sua pobreza e isolamento. Além das vias
naturais citadas por Marcílio, existiam as dificuldades de transposição da Serra do Mar - a “Grande
Muralha” – o que tornava extremamente custoso o intercâmbio, principalmente comercial, entre o
litoral e o planalto. O “caminho do mar” foi uma preocupação constante para os paulistas e, mesmo
já no início do século XIX, podemos verificar nas Atas da Câmara inúmeras referências acerca do
mau estado de conservação da estrada. Essas dificuldades geográficas contribuíram, de acordo com
Alfredo Ellis Junior (1979, p, 62), para que o planalto paulista fosse “uma região pobre, pequena,
fracamente povoada, pouco ou nada produzindo”.

Durante muito tempo, o pequeno grupo populacional planaltino teve uma vida bastante
difícil, condicionada às peculiaridades do meio físico, que lhe empunha padrões e costumes muito
particulares. Essa condição influiu decisivamente na história de São Paulo e, consequentemente,
do Brasil. Como escreveu Jaime Cortesão (1969, p. 255), “raras vezes a história duma nação foi tão
moldada sobre o quadro geográfico como a do Brasil”.

Assim, nos primeiros tempos da colonização, São Paulo não apresentava a pujança e o
dinamismo que teria a partir de meados do século XIX e, durante um longo período, permaneceu
uma vila pobre e isolada. Para Ellis Júnior (1979, p. 161), esse isolamento resultante da situação
geográfica teria provocado o “apresamento como base econômica, a pequena propriedade, o
patriarcalismo atenuado, a autarquia quase que total, a policultura, a democracia, o baixo índice
cultural e a fraca densidade da população”.

A rusticidade e a pobreza dos habitantes de São Paulo, assim como o desenvolvimento de


uma economia de subsistência e a predominância da vida rural sobre a urbana, foram destacadas
em inúmeras obras historiográficas, como também em diversos documentos da época, a exemplo
1049

das Atas da Câmara. São comuns também as referências à precariedade das habitações paulistanas,
geralmente descritas como choupanas de pau-a-pique ladeadas por alguns poucos casarões de taipa.

Uma passagem de Paulo Prado ilustra bem o espírito da cidade de São Paulo nos primeiros
tempos:

Envolta em neblinas, ou resignada às chuvas pesadas do morno verão,


deveriam correr-lhe os dias vagarosos, na melancolia de seus campos.
Poucas ruas eram calçadas com grandes lajes de pedra vermelha; os
melhores edifícios, feitos de taipa; as casas, sob largos beirais, baixas em
meio de vastos quintais, mais aumentavam o silêncio e o deserto da
cidade. (Prado, 1972, p. 99)

Comparada à região Nordeste, especialmente a algumas cidades das capitanias da Bahia e


de Pernambuco, que, desde os primórdios da ocupação portuguesa, tornaram-se núcleo econômico
e social, a São Paulo dos primeiros séculos parece, por contraste, ainda mais inexpressiva.

Mesmo nas vilas litorâneas da capitania vicentina dos primeiros tempos, o desenvolvimento
foi diminuto e as lavouras canavieiras da estreita orla marítima não alcançaram a robustez das do
Nordeste. Segundo consta, era notória a diferença entre os modestos canaviais paulistas e os
opulentos engenhos nordestinos.

De acordo com o já mencionado Ellis Junior (1979, p. 161), “enquanto o Nordeste


brasileiro sustentava-se na sólida base econômica açucareira, favorecido pela maior proximidade
com Portugal”, recebendo todas as atenções e benesses, “ao Sul, a capitania de São Vicente ficou
quase esquecida pela Metrópole”. Enquanto a capitania da Bahia possuía uma população estimada
em torno de 228.848 habitantes em 1780 e a de Pernambuco de 229.743 no ano de 1782, a
estimativa populacional da capitania de São Paulo (que compreendia também o Paraná) era, no
mesmo período, de 119.958 habitantes447. Note-se que a população estimada das duas capitanias
nordestinas era quase o dobro da de São Paulo.

Em contraste com as cidades do Nordeste, São Paulo – que em 1798 contava com apenas
22.535 habitantes448 - foi bastante pobre de recursos nos dois primeiros séculos da colonização e,
nos setecentos, a região se viu em condições piores do ponto de vista de seu abastecimento de

447 Séries Estatísticas Retrospectivas. Vol. 3. Fundação Instituto de Geografia e Estatística – IBGE. Rio de Janeiro,
1986. (p. 29).
448 Rabelo, Elizabeth Darwich. As Elites na Sociedade Paulista na Segunda Metade do Século XVIII. São Paulo: Editora

Comercial Safady, 1980. (p. 28)


1050

gêneros. Ocorria então a falta de mantimentos, o seu encarecimento e a miséria de grande parte da
população.

Em relação ao reduzido número de habitantes, uma série de fatores concorreu para manter
baixa a densidade demográfica de São Paulo durante o período colonial; dentre esses fatores,
podemos destacar, por exemplo, o bandeirantismo.

Símbolo de expansão e de povoamento, as bandeiras fizeram com que muitos paulistas se


afastassem de sua região, contribuindo para o atrofiamento urbano, demográfico e econômico da
vila de São Paulo. Nos primeiros tempos, eles retornavam aos seus lugares de origem, mas, aos
poucos, foram se fixando nos remotos territórios que descobriam e ocupavam. Assim, o
bandeirante transformou-se “no colono e povoador das regiões do Sul, criador de gado e
fazendeiro no Norte” (Prado, 1972, p. 88).

Tanto as bandeiras de apresamento do elemento indígena foi fator significativo do


raleamento da população paulista quanto o deslocamento para as regiões auríferas – primeiro Minas
Gerais, em seguida Goiás e Mato Grosso. Minas Gerais, além de ter atraído muitos homens, que
lá se estabeleceram, foi cenário do desaparecimento de outros tantos, envolvidos nas disputas pelas
jazidas de ouro, como a Guerra dos Emboabas (1707-1709), por exemplo.

Desse modo, embora o bandeirantismo tenha trazido consequências positivas para São
Paulo, a exemplo da ascensão político-administrativa, derivada da importância e do prestígio
alcançados com as campanhas sertanistas, trouxe também despovoamento e miséria.

Outro fator foi responsável pelos baixos índices demográficos de São Paulo: a corrente
povoadora que se deslocou para o sul, onde, segunda Oliveira Viana em Populações Meridionais do
Brasil (2005, 139) “o domínio rural se traslada, destarte, sob a forma de bandeira, integralmente,
para as novas terras descobertas”. Nesta região, prosperava principalmente a criação de animais
destinados ao comércio de carne e ao abastecimento de tropas, que empregavam esses animais
principalmente no transporte de longas distâncias.

O recrutamento militar também contribuiu para o deslocamento dos paulistas, os quais


participaram significativamente nas campanhas do Sul, onde muitos morreram lutando contra a
Espanha, pela posse da colônia de Sacramento durante quase todo o século XVIII. Além disso, de
acordo com Elizabeth D. Rabelo (1980, p. 36), “a simples possibilidade dos habitantes serem
chamados para o serviço militar provocava enorme pânico, fugas, abandono da agricultura”.

Foi apenas nas últimas décadas do século XVIII, segundo Maria L. Marcílio (1973, p. 22),
com o fim das bandeiras e da corrida para as regiões do ouro, que os habitantes da capitania de São
1051

Paulo (cerca de 190 mil à época da Independência) foram se enraizando significativamente e, “de
predadores, os paulistas se transformaram em comerciantes”. O prematuro esgotamento das minas
por volta de meados do século XVIII acabou liberando capitais e braços para outras atividades e,
a partir desse período, o Brasil sofreu um novo impulso em suas atividades agrícolas. Nessa fase, a
capitania paulista viveu um crescimento populacional considerável: sua ocupação intensificou-se
não só nas áreas já penetradas, mas também rumo ao Oeste. Foi nesse contexto que as lavouras
canavieiras receberam grande estímulo e o açúcar apareceu como um produto importante para a
capitania paulista. Além das circunstâncias internas, fatores externos também contribuíram para
que a cultura da cana se tornasse economicamente interessante para São Paulo, a exemplo das
“mudanças de hábitos alimentares na Europa, que tornaram o açúcar um produto sempre mais
desejado, e o aumento do preço do açúcar, devido à rebelião das colônias francesas”. (Petrone,
1968, p. 10).

Esse impulso do açúcar teria ocorrido a partir do governo de Luís de Souza Botelho
Mourão, o Morgado de Mateus, que governou a capitania - que recém readquirira a autonomia
administrativa – entre os anos de 1765 e 1775. Mesmo entre seus críticos, reconhece-se que ele
promoveu uma política de incentivo à produção tanto do açúcar quanto de outros gêneros
agrícolas, procurando incrementar a vida econômica. Sucederam ao Morgado de Mateus outros
governadores que, na passagem do século XVIII para o XIX, também se destacaram, incentivando
a agricultura e o comércio, promovendo assim um grande desenvolvimento na capitania de São
Paulo.

Assim, já na última década do século XVIII, verifica-se grande otimismo com relação ao
desenvolvimento da agricultura. São Paulo começava a deixar para trás a miséria e a decadência;
convencendo-se de que “a sua vocação, daí por diante, será a agricultura”, os paulistas dedicavam-
se intensamente à cultura da cana, “que por mais de meio século, vai ser o produto chave da
economia paulista”. (Petrone, 1968, p. 18).

Embora datem do governo do Morgado de Mateus as primeiras notícias de exportação de


açúcar e algodão, naturalmente essa recuperação não foi imediata e demandou tempo e esforço: a
notícia tornou-se mais frequente no desenrolar do século XIX.

Em suma, a quadra histórica localizada entre o fim do século XVIII e o início do XIX,
caracterizou-se como um período de reorganização econômica tanto de São Paulo quanto do
restante da colônia.

Foi justamente nesse período, na passagem do século XVIII para o XIX - em pleno
processo de reestruturação da capitania paulista - que focamos nossos estudos acerca da cidade de
1052

São Paulo, buscando reconstituir a vida cotidiana de seus habitantes. Dentre as fontes selecionadas
para essa empreitada, destacam-se os vários escritos deixados por viajantes, principalmente
estrangeiros, as Atas da Câmara da Cidade de São Paulo e o Registro Geral da Câmara da Cidade
de São Paulo, além de outros documentos. Mesmo um olhar panorâmico sobre esse conjunto
documental pode nos dar uma imagem bastante precisa daquele cenário.

Como exemplo, citemos um dos mais conhecidos registros acerca do burgo paulista e de
seus habitantes em fins do XVIII e início de XIX: o relato deixado pelo comerciante inglês John
Mawe, classificado por Claro Ribeiro de Lessa – um de seus tradutores no Brasil (1978) – como o
“número um dos viajantes-repórteres de nossa terra”. Mawe, que esteve no Brasil entre 1807 e
1811, transcreveu suas impressões no livro Viagens ao Interior do Brasil, publicado ainda 1812. Claro
está que tal relato não pode ser entendido como um retrato real e absoluto da época, mas é um
documento vivo.

Na parte de seu livro dedicada à cidade de São Paulo, Mawe registrou detalhes preciosos da
vida doméstica e da alimentação dos paulistanos, e fez interessantes anotações acerca do
comportamento dos homens e das mulheres, tanto no recesso do lar, quanto em ambientes
públicos e em situações formais. Tratou, ainda, de descrever o funcionamento do mercado, e
caracterizar as “poucas fábricas”, “a classe numerosa” dos comerciantes, e alguns ofícios urbanos.

Observações acerca das moléstias, dos animais domésticos e de criação, e das plantas
alimentícias, também constam nos relatos do viajante inglês.

No que diz respeito à sua impressão da cidade, de modo geral Mawe (1979, p. 63/64)
evidenciou a rusticidade das casas e igrejas, “muitas das quais, como toda a cidade, construídas de
taipa”, assim como os hábitos espartanos de seus habitantes, “na maioria, fazendeiros e modestos
lavradores, que cultivam pequenas porções de terra onde criam, para vender, grande número de
porcos e aves domésticas”.

Outros viajantes estrangeiros que estiveram na cidade de São Paulo no mesmo período,
como o também comerciante inglês Luccock, e o afamado botânico francês Saint-Hilaire,
igualmente fornecem importantes elementos para compreendermos a dimensão social do homem
comum daquela cidade, ainda modesta e inexpressiva à época.

Além dos relatos de viajantes estrangeiros, os documentos oficiais da Câmara da cidade São
Paulo - as Atas da Câmara e o Registro Geral - também registram informações preciosas sobre o
assunto, como já mencionamos.
1053

Invariavelmente, os assuntos relacionados ao dia-a-dia da população eram comuns nas


reuniões de vereança. Não apenas questões ligadas a aspectos econômicos, políticos e militares
entravam na pauta, mas também banalidades do cotidiano. Intrigas entre vizinhos, animais que
invadiam terrenos, descarte de dejetos, e problemas com formigueiros, por exemplo, eram matéria
frequente nos encontros dos oficiais camarários. Observemos a seguir alguns exemplos.

Na vereação de 30 de junho de 1792, entre outras coisas, a Câmara deliberou sobre a


necessidade de se eliminar um formigueiro e mandou que o escrivão

notificasse por carta a dona Escholástica que por sobre nome não perca senhora
das casas em que mora o doutor Miguel Marcellino Velozo e Gama para no termo
de oito dias das princípio a fazer extrahir um formigueiro que se acha dentro das
ditas casas e dentro de quinze dias mostra-lo de todo extincto: com penas de que
não o fazendo ser comndenada em seis mil reis para as despesas do concelho
pela sua desobediência... (Atas da Câmara de São Paulo, vol. XIX, ano de 1792,
p. 300)

O mesmo pode ser verificado em atas de outras sessões, como na de 26 de setembro de


1795, quando “se mandou notificar o Padre Manuel Duarte do Rego para no termo de oito dias
tirar um formigueiro de seu quintal” (Atas da Câmara de São Paulo, vol. XVII, p. 520). Note-se
que até o quintal do padre era passível de interferência.

Porcos soltos também ocuparam os oficiais camarários que, em agosto de 1789 (vol. XIX,
p. 98), mandaram aqueles que tinham porcos soltos que “dentro de quinze dias os façam recolher
às suas casas”.

Podería-se ainda citar passagens em que se discutiu a retirada de água das bicas, a
necessidade de caiar as casas e muros, onde os moradores deveriam deixar o lixo e jogar os dejetos,
enfim, coisas simples, mas importantíssimas para entendermos a dimensão social da vida urbana.

Desse modo, pode-se afirmar que a análise sistemática dos documentos mencionados pode
lançar luzes sobre a nossa temática e ajudar a mapear o dia-a-dia daqueles homens e mulheres
anônimos, até então pouco contemplados pela historiografia.

Referências

Atas da Câmara de São Paulo. Publicação Official do Archivo de São Paulo. Vol. XVIII a XXII.

Cortesão, Jaime. A colonização do Brasil. Lisboa: Portugália Editora, 1969.

Ellis Júnior, Alfredo. A Economia Paulista no Século XVIII. São Paulo: Academia Paulista de Letras,
1979.
1054

Marcílio, Maria Luíza. A Cidade de São Paulo: povoamento e população (1750-1850). São Paulo: Ed.
UES, 1973.

Mawe, John. Viagens ao interior do Brasil. Ed. Itatiaia, Ed. da Universidade de São Paulo, São Paulo,
1978.

Moura, Denise Soares de. Poder Local e o Funcionamento do Comércio Vicinal na Cidade de
São Paulo (1765-1822). Revista História. Vol. 24, nº 2. Franca, 2005.

Petrone, Maria Thereza Schorer. A Lavoura Canavieira em São Paulo. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1968.

Prado, Paulo. Província e Nação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.

Rabelo, Elizabeth Darwich. As Elites na Sociedade Paulista na Segunda Metade do Século XVIII. São
Paulo: Editora Comercial Safady, 1980.

Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Publicação Official do Archivo Municipal de
S. Paulo. São Paulo: Typografia Piratininga, 1920. Vol. XI ao XV.

Silva, Raul de Andrade. São Paulo Nos Tempos Coloniais. Revista de História, São Paulo. Vol. X,
ano VI, n. 21 e 22, p. 55-88, jan/jun, 1955.
1055

História Indígena em Planos de Aula: BNCC, Lei 11.645/08 e


saberes docentes no site da “Nova Escola”

Kátia Luzia Soares Oliveira*

Resumo: Esta comunicação apresenta uma análise das propostas de ensino de história indígena
disponíveis em um conjunto de Planos de Aula publicados no site de um grande portal educacional
intitulado “Nova Escola”. Estes Planos de Aula, publicados entre os meses de março e junho de
2019, constituem fontes importantes para a análise dos saberes docentes torno da aplicação da Lei
11.645/08 no contexto de implementação da BNCC nas escolas brasileiras. Este trabalho traz os
resultados parciais da pesquisa de doutorado, intitulada “Sentidos e significados do Ensino de
Histórias e Culturas Indígenas nas práticas discursivas de professores/as de história”, vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. As análises destes Planos de
Aula se deram, inicialmente, em torno das temáticas privilegiadas, dos objetivos, dos recortes
temporais e espaciais das abordagens, s e das habilidades da BNCC articuladas à promoção do
ensino de história indígena. Apesar de incluírem certas inovações historiográficas, na tentativa de
rompimento com as perspectivas eurocêntricas e racistas no ensino de história e de revelarem
esforços na introdução de novos recortes temporais, trazem ainda sérias limitações na abordagem
da diversidade étnico-cultural indígena e na articulação e problematização da relação entre passado
e presente.

Palavras-chave: BNCC, Lei 11.645/08, saberes docentes, planos de aula, Nova Escola.

Esta comunicação apresenta análise das propostas de ensino de histórias indígenas


disponíveis em um conjunto de Planos de Aula publicados no site de um grande portal educacional
a “Nova Escola”. Este trabalho traz os resultados parciais da pesquisa de doutorado, intitulada
“Sentidos e significados do Ensino de Histórias e Culturas Indígenas nas práticas discursivas de
professores/as de história”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
de Brasília.

Contando com o apoio do Google.org. e outros apoiadores técnicos, a Fundação Lemann,


a atual mantenedora do portal Nova Escola, criou em 2016 a Associação Nova Escola. Conforme
informações divulgadas no site da Nova Escola, “A Associação Nova Escola é um negócio social,
autossustentável e sem fins lucrativos que entrega conteúdos, produtos e serviços para toda a
jornada do educador brasileiro” (NOVA ESCOLA, 2017). No entanto, alguns estudos sobre a

*
Doutoranda em História pela Universidade de Brasília. Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia.
Especialista em História pela Universidade do Estado da Bahia. Graduada em História pela Universidade do Estado
da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Sustentabilidade, Educação e Tecnologia, cadastrado no
CNPq. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.
1056

trajetória histórica da Nova Escola, apontam para outras intenções, ou seja, conforme nos
informam Cóstola e Borghi, embora essas instituições carreguem o título de “sem fins lucrativos”,

Indiretamente irá lucrar com as reformas educacionais, seja no âmbito das


editoras dos livros didáticos; na formação inicial e continuada de professores; nas
avaliações externas; ou no âmbito das empresas que visam ter mão de obra barata,
com pouca qualificação, mas com competência produtiva; ou ainda nos diversos
outros setores do capital financeiro, como o Banco Mundial, que investem em
modelos educacionais do tipo (UNESCO, 1990), atuando na educação pela
disputa de orçamento (Cóstola; Borghi, 2018, p. 1315).

Nesse sentido não passa despercebido o protagonismo da Fundação Lemann junto ao


Movimento Todos pela Base que atuou fortemente na direção e agilidade do processo de
construção da Versão Final da BNCC. Estas considerações foram o nosso ponto de partida na
compreensão das condições de produção dos Planos de Aula sobre História Indígena que a Nova
Escola vem difundindo mais recentemente. Em 2017, a Associação Nova Escola lançou um projeto
para a criação de mais de seis mil (6.000) planos de atividades de Educação Infantil e de planos de
aula dos componentes obrigatórios do nível Fundamental (Matemática, Língua Portuguesa,
Ciências, Inglês, História e Geografia) alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Os
Planos de Aula para a disciplina História foram publicados entre os meses de março e junho de
2019 e constituem-se em fontes importantes para a análise dos saberes docentes em torno da
aplicação da Lei 11.645/08 no contexto de implementação da BNCC nas escolas brasileiras.

As análises iniciais destes Planos de Aula se deram em torno das temáticas privilegiadas,
dos objetivos, dos recortes temporais e espaciais das abordagens, e das habilidades da BNCC
articuladas à promoção do ensino de histórias indígenas. Apesar de incluírem certas inovações
historiográficas, na tentativa de rompimento com as perspectivas eurocêntricas e racistas no ensino
de história, e de revelarem esforços na introdução de novos temas, trazem ainda sérias limitações.
A título de exemplo, para essa apresentação podemos mencionar o tempo de duração previsto para
a aplicação dos planos de aula, que é de 50 minutos, o que aponta inicialmente para um espaço
reduzido do estudo da temática indígena no âmbito da sala de aula. Esse é um aspecto que já vem
sendo denunciado por vários pesquisadores do Ensino de História que se debruçaram sobre o
modelo curricular da BNCC, mas aqui podemos observar a concretização desse aspecto num
planejamento, numa proposta para a sala de aula e então observar os problemas que esse espaço
quantitativo de fato traz para o Ensino das Histórias Indígenas. É válido sinalizar que é comum a
todos os planos a presença da informação a respeito de que a habilidade trabalhada em respectivo
plano não será contemplada em sua totalidade, pois conforme proposta da BNCC seu
desenvolvimento deve se dar ao longo de todo ano. Assim, as propostas podem ter continuidade
1057

em aulas subsequentes. No entanto, a possibilidade anunciada de que as propostas tenham


continuidade em aulas subsequentes refere-se à habilidade e não à temática. Ainda, notamos que
cada plano faz parte de uma sequência composta por dois ou mais planos organizados em torno
de uma habilidade da BNCC. Nesse caso consideramos cada plano dentro de sua sequência e
pudemos constatar que nelas geralmente esses planos selecionados são os únicos a trazer a temática
dos povos indígenas. Para melhor elucidar essa observação, tomamos, como exemplo, o plano de
aula 1 intitulado “Povos indígenas e a origem do homem”, ele é o segundo de uma sequência de
cinco planos de aula, onde estão também o planos intitulados “A origem dos seres humanos”,
“Origem da humanidade: Criacionismo”, “A evolução do ser humano” e “Criacionismo e
Evolucionismo”. Esses cinco planos estão organizados em torno da habilidade prescrita pela
BNCC, EF06HI03 (Identificar as hipóteses científicas sobre o surgimento da espécie humana e sua
historicidade e analisar os significados dos mitos de fundação).

Já o plano de “As resistências dos povos indígenas brasileiros na conquista da América”, é


o último de uma sequência precedida pelos planos “O processo da ‘“conquista”’ da América
Espanhola”; “Descobrimento ou invasão? O processo de chegada dos portugueses na América”;
“Ocupação e consolidação do domínio português na América” e “O genocídio e as resistências dos
povos ameríndios”. Esses planos estão organizados em torno da habilidade da BNCC, EF07HI09
(Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações ameríndias
e identificar as formas de resistência).

Podemos observar então que as habilidades que relacionam os planos das duas sequências
mencionadas remetem a conteúdos canônicos de uma tradição historiográfica que toma como base
a perspectiva histórica europeia para pensar a dinâmica cultural de outros povos, julgando-os a
partir de seus valores e marcos temporais lineares. Assim, são habilidades que articulam um
entendimento de uma história cristianocêntrica e evolucionista e que reportam a uma tradição
interpretativa que conta as histórias indígenas sob o paradigma do descobrimento e a partir de um
ponto de vista do conquistador europeu. Fundamentadas nessa concepção de história e de ensino
tradicionais, as sequências abarcam as ancestralidades indígenas numa perspectiva secundária, o
que acaba por restringir o alcance do debate acerca de suas culturas, assim como as suas lutas e
resistências, ao longo da história que não são exploradas em uma aula de 50 minutos.

Esse espaço quantitativo dado às histórias indígenas brasileiras, atua sobre outras limitações
percebidas nos planos analisados especialmente, na abordagem da diversidade étnico-cultural
indígena e na articulação e problematização da relação entre passado e presente. São limitações
também representativas das deliberações da BNCC que trazem o entendimento que,
1058

A inclusão dos temas obrigatórios definidos pela legislação vigente, tais como a
história da África e das culturas afro-brasileira e indígena, deve ultrapassar a
dimensão puramente retórica e permitir que se defenda o estudo dessas
populações como artífices da própria história do Brasil. A relevância da história
desses grupos humanos reside na possibilidade de os estudantes compreenderem
o papel das alteridades presentes na sociedade brasileira, comprometerem-se com
elas e, ainda, perceberem que existem outros referenciais de produção, circulação
e transmissão de conhecimentos, que podem se entrecruzar com aqueles
considerados consagrados nos espaços formais de produção de saber (Brasil,
2018, p. 401).

Aqui é possível perceber como a proposição da BNCC buscam atender a Lei 11.645/08.
Contudo, não deixa de ser contraditória ao defender que a inclusão das histórias indígenas deve
“ultrapassar a dimensão puramente retórica”, ao mesmo tempo em que aconselha que sejam
tomadas como variantes que promovem a diversidade de análises, mas num quadro de conteúdos
em que aparecem articuladas a uma concepção de história que se mostra factual, determinista e sem
espaço suficiente para discussão a respeito de questões sobre o tempo passado e o presente destes
povos. Nessa perspectiva, as histórias indígenas não são vistas como centro da problematização
histórica em si mesmas, mas “aparecem como um suplemento de caráter legalista” (Pereira;
Rodrigues, 2018, p.10), isto é, embora apareçam em resposta às deliberações legais, continuam
sendo pensadas como apêndices de uma história maior, “a história europeia, cujo sentido engloba
e unifica a diversidade de etnias, culturas, grupos e atores sociais” (Pereira; Rodrigues, 2018, p .9) .
Consoante como essa percepção, nota-se que seguindo o desenho curricular proposto pela BNCC
para o ensino fundamental, a seleção de conteúdos, habilidades e competências listadas nos planos
selecionados, não permitem o rompimento com uma cultura histórica marcada pela invisibilização
e silenciamento das histórias indígenas. Desse modo, o que se verificar é um modelo que desvia
das demandas indígenas e da Lei 11.645/08 por uma representação ampliada do legado histórico
dos povos indígenas nas histórias a serem ensinadas nas escolas.

Esse aspecto pode ser melhor elucidado quando consideramos outros elementos
introdutórios dos planos. Assim, a análise geral das unidades temáticas e dos objetos de
conhecimento nos possibilita evidenciar como as histórias indígenas continuam sendo tratadas
em torno de temáticas como “Processo de sedentarização”; “A invenção do mundo clássico”; “A
conquista da América”; “A organização do poder e as dinâmicas do mundo colonial americano”;
“Humanismos, Renascimentos e o Novo Mundo”; “Reformas religiosas e a crise da cristandade”.
Ou seja, conteúdos ligados a um viés eurocêntrico e a uma temporalidade linear/evolucionista que
denota o predomínio de uma epistemologia eurocêntrica na produção do conhecimento história
1059

escolar, já que a história indígena emerge na compreensão dos processos que tem como centro o
protagonismo e dominação europeia.

Na tabela a seguir apresentamos as Habilidades da BNCC correspondentes aos planos de


aula, bem como os objetivos propostos e os recortes temporais e espaciais. Antes, ressaltamos que
conforme o modelo da BNCC, cada habilidade corresponde a um código alfanumérico o qual deve
ser lido conforme o modelo:

Figura 1 - Código alfanumérico e sua composição

Fonte: BNCC (BRASIL, 2018, p. 30).

Tabela 1 - Habilidades, objetivos e recorte temporal/espacial das abordagens

Título da Aula Nível de Habilidade da BNCC Recorte Objetivos


ensino temporal/
espacial
1.Povos 6º ano EF06HI03: Identificar as hipóteses Brasil Compreender como
indígenas e a científicas sobre o surgimento da contemporâne alguns povos indígenas
origem do espécie humana e sua historicidade o explicam a origem do
homem e analisar os significados dos mitos homem
de fundação.
2. Os povos 6º ano EF06HI08: Identificar os espaços Brasil colonial Identificar as
indígenas territoriais ocupados e os aportes e diferentes
brasileiros: culturais, científicos, sociais e contemporâne interpretações sobre os
Ontem e Hoje econômicos dos astecas, maias e o povos indígenas após a
incas e dos povos indígenas de chegada dos europeus
diversas regiões brasileiras. e seus reflexos para o
Brasil de hoje
3. Mitos e lendas 6º ano EF06HI08: Identificar os espaços Conhecer a
dos povos territoriais ocupados e os aportes América ( diversidade dos povos
indígenas culturais, científicos, sociais e Estados indígenas americanos
americanos econômicos dos astecas, maias e Unidos) por meio de seus mitos
de criação
1060

incas e dos povos indígenas de Brasil


diversas regiões brasileiras. Contemporâne
o
4. As resistências 7º ano EF07HI09: Analisar os diferentes Brasil Colônia Entender a relação de
dos povos impactos da conquista europeia da contato entre os
indígenas América para as populações nativos e os europeus
brasileiros na ameríndia. no início do processo
conquista da de colonização da
América América portuguesa,
considerando os jogos
e brincadeiras
indígenas como
formas de resistências
5. A Companhia 7º ano EF07HI05: Identificar e relacionar Brasil Colônia Compreender as ações
de Jesus e a as vinculações entre as reformas da Companhia de Jesus
conversão religiosas e os processos culturais e na conversão dos
indígena sociais do período moderno na indígenas assim como
Europa e na América. suas contradições

6. A busca por 7º ano EF07HI11: Analisar a formação Brasil Colônia Compreender como a
drogas do sertão histórico-geográfica do território da busca por drogas do
à custa da América portuguesa por meio de sertão estimulou a
exploração dos mapas históricos. exploração da
povos indígenas população indígena
na América durante o processo de
portuguesa expansão territorial da
América portuguesa
7. A diminuição 7º ano EF07HI12: Identificar a Brasil Colônia Entender como
da população distribuição territorial da população ocorreram a
indígena na brasileira em diferentes épocas, diminuição e a
considerando a diversidade étnico- distribuição da
América
racial e étnico-cultural (indígena, população indígena na
portuguesa africana, europeia e asiática). América portuguesa
8. A questão de 8º ano EF08HI19: Formular Brasil Império Relacionar a política
Terras Indígenas: questionamentos sobre o legado da (século XIX) da Lei de Terras de
do Império aos escravidão nas Américas, com base 1850 com a dificuldade
dias de hoje na seleção e consulta de fontes de de acesso à terra dos
diferentes naturezas. povos indígenas nos
dias de hoje
9. Políticas 8º ano EF08HI21: Identificar e analisar as Brasil Império Compreender as
dirigidas aos políticas oficiais com relação ao (século XIX) políticas para os povos
indígenas no indígena durante o Império. indígenas durante o
Império: as leis Império com base na
durante o análise das leis
período imperial imperiais de 1845 e
1850
10. Civilização e 8º ano EF08HI21: Identificar e analisar as Brasil Império Compreender o
aculturamento políticas oficiais com relação ao (século XIX) processo de
indígena: como indígena durante o Império. aculturamento dentro
os aldeamentos das políticas para os
tentaram povos indígenas no
“civilizar” os fim do século XIX
indígenas no fim
do Império
11. A Guerra 8º ano EF08HI14 Discutir a noção da Brasil no fim Relacionar a noção de
Guaranítica e a tutela dos grupos indígenas e a do período tutela com a Guerra
tutela da participação dos negros na colonial (1753) Guaranítica no fim do
população sociedade brasileira no fim do período colonial
indígena período colonial, identificando brasileiro ( 1753)
permanências na forma de
1061

preconceitos, estereótipos e
violências sobre as populações
indígenas e negras no Brasil e nas
Américas.
12. Resistência 8º ano EF08HI14 Discutir a noção da Brasil no fim Identificar o
Indígena: o tutela dos grupos indígenas e a do período protagonismo do povo
protagonismo participação dos negros na colonial (1753) guaicuru na resistência
dos guaicurus ( sociedade brasileira no fim do armada e nas
XVIII ) período colonial, identificando negociações com os
permanências na forma de europeus (XVIII)
preconceitos, estereótipos e
violências sobre as populações
indígenas e negras no Brasil e nas
Américas.
13. O indígena 8º ano EF08HI27 Identificar as tensões e Brasil nos Avaliar a imagem do
do Brasil no os significados dos discursos séculos XIX índio no Brasil com
século XIX e o civilizatórios, avaliando seus e XXI base na ideia do “ bom
bom selvagem impactos negativos para os povos selvagem” no século
indígenas originários e as XIX
populações negras nas Américas
14. Indianismo: a 8º ano EF08HI22 Discutir o papel das Brasil no século Analisar a forma como
imagem indígena culturas letradas, não letradas e das XIX os indígenas são
no romantismo artes na produção das identidades representados durante
brasileiro no Brasil do século XIX. o movimento do
romantismo brasileiro
no século XIX
15. O Indígena e 8º ano EF08HI27 Identificar as tensões e Brasil no século Compreender a
a atualidade: os significados dos discursos XXI identidade indígena
tribos como civilizatórios, avaliando seus dentro do contexto
espaço de impactos negativos para os povos atual.
resistência indígenas originários e as
populações negras nas Américas.
16. Ditadura 9º ano EF09HI21: Identificar e relacionar Brasil no século Compreender os
Civil-Militar e as as demandas indígenas e XX impactos do projeto
populações quilombolas como forma de se desenvolvimentista da
indígenas contestação ao modelo ditadura civil-militar
desenvolvimentista da ditadura. para as populações
indígenas
17. A inserção 9º ano EF09HI36: Identificar e discutir as Brasil no século Compreender a
dos povos diversidades identitárias e seus XXI importância da
indígenas na significados históricos no início do inserção dos povos
construção dos século XXI combatendo qualquer indígenas na
seus direitos forma de preconceito e violência. construção dos seus
direitos na atualidade
18. 9º ano EF09HI07 Identificar e explicar, em Brasil no Compreender o
Representação meio a lógicas de inclusão e contexto processo de integração
indígena nas exclusão, as pautas dos povos republicano até das populações
políticas indígenas, no contexto republicano metade do indígenas após a
governamentais (até 1964), e das populações século XX. Proclamação da
após a afrodescendentes. República
Proclamação da
República
Fonte: Tabela elaborada a partir da análise dos planos de aula publicados no site da Nova Escola (maio de 2020).
Disponível em: https://novaescola.org.br/plano-de-aula/busca?disciplina=História

Ao recuar na ampliação do estudo das Histórias e Culturas Indígenas, o texto final da


BNCC coloca a ênfase “sobre os direitos adquiridos pelos povos indígenas na contemporaneidade
1062

em detrimento do passado indígena, essencial na composição cultural brasileira” (Nazareno;


Araujo, 2018, p. 35). Nesse sentido, boa parte dos planos selecionados estão relacionados às
habilidades pautadas no questionamento sobre o legado da escravização nas Américas; na
identificação e análise de políticas oficiais com relação aos povos indígenas durante o Império; na
identificação de permanências na forma de preconceito, estereótipos e violências sobre as
populações indígenas; na identificação das tensões e dos significados dos discursos civilizatórios e
seus impactos para os povos indígenas; na identificação e explicação das pautas dos povos indígenas
no contexto republicano, na identificação e discussão das diversidades identitárias e seus
significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e
violência, etc. Assim, é possível observar em uma boa parte dos planos selecionados um recorte
temporal que abrange os séculos XVIII, XIX , XX e XXI.

Concordamos com Nazareno e Araújo sobre a importância do estudo do passado indígena,


sobretudo a partir de novos pressupostos teóricos e metodológicos que desloquem representações
estereotipadas ainda presentes no imaginário social. Contudo, essa ampliação pode ser bastante
significativa uma vez que permita abarcar diferenciadas vivências indígenas ao longo da história do
Brasil e abrir o currículo para se conceber outras alteridades, outras “histórias do possível”,
conforme proposto pela historiadora Susane de Oliveira (2019). Nessa direção, o historiador
indígena Casé Angatu, alerta que “consciente e/ou inconscientemente, ao congelarmos a imagem
dos Povos Indígenas nos séculos XVI e XVII, evitamos reflexões atuais relativas aos seus direitos
originários a terra” (2015, p. 187). Ao falar sobre os desafios da lei 11.645/08, o autor defende que
a própria trajetória contemporânea do Movimento Indígena e sua luta pelo reconhecimento étnico,
alteridade e direito ancestral à terra seja um dos eixos a serem tratados no ensino das Histórias e
Culturas Indígenas (Casé Angatu, 2015, p. 185-186) e questiona: “por que não começar as aulas
sobre as Histórias e Culturas dos Povos Originários abordando o atual momento de (re)existência
étnica e territorial indígena?” (Casé Angatu, 2015, p. 193). Assim o historiador indígena desloca o
foco de uma abordagem que contribuiu para uma percepção de povos originários como populações
em extinção ou como povos pretéritos, para uma abordagem que os visibiliza no presente e com
atuação e protagonismo histórico. Tal entendimento é compartilhado pelo indígena Kaiapó Edson
Machado de Brito, quando afirma que “avançando em direção a uma nova postura pedagógica, o
ensino de história pode trabalhar como uma noção de história que reconheça as histórias dos povos
indígenas e a sua presença na contemporaneidade nacional” (Brito, 2009, p. 68).

A preocupação em explicitar a presença indígena na contemporaneidade pode ser vista


também nos objetivos elencados pelos professores/as nos planos de aula da Nova Escola os quais
propõem: Compreender como alguns povos indígenas explicam a origem do homem”(plano
1063

número 1); “Identificar as diferentes interpretações sobre os povos indígenas após a chegada dos
europeus e seus reflexos para o Brasil de hoje” (plano número 2); “Conhecer a diversidade dos
povos indígenas americanos por meio de seus mitos de criação”( plano número 3); “ Entender a
relação de contato entre os nativos e os europeus no início do processo de colonização da América
portuguesa, considerando os jogos e brincadeiras indígenas como formas de resistências” (plano
número 4); Compreender as ações da Companhia de Jesus na conversão dos indígenas assim como
suas contradições (plano número 5) “Compreender como a busca por drogas do sertão estimulou
a exploração da população indígena durante o processo de expansão territorial da América
portuguesa” (plano número 6); “Entender como ocorreram a diminuição e a distribuição da
população indígena na América portuguesa” (plano número 7); “Relacionar a política da Lei de
Terras de 1850 com a dificuldade de acesso à terra dos povos indígenas nos dias de hoje” (plano
número 8); “Compreender as políticas para os povos indígenas durante o Império com base na
análise das leis imperiais de 1845 e 1850” (plano número 9); Compreender o processo de
aculturamento dentro das políticas para os povos indígenas no fim do século XIX (plano de
número 10)“Relacionar a noção de tutela com a Guerra Guaranítica no fim do período colonial
brasileiro (1753)” (plano número 11); “Identificar o protagonismo do povo guaicuru na resistência
armada e nas negociações com os europeus ( XVIII)” (plano número 12); “Avaliar a imagem do
índio no Brasil com base na ideia do ‘bom selvagem’ no século XIX” (plano número 13); “Analisar
a forma como os indígenas são representados durante o movimento do romantismo brasileiro no
século XIX” (plano número 14); “Compreender a identidade indígena dentro do contexto atual”
(plano número 15); “Compreender os impactos do projeto desenvolvimentista da ditadura civil-
militar para as populações indígenas” (plano número 16); “Compreender a importância da inserção
dos povos indígenas na construção dos seus direitos na atualidade” (plano número 17);
“Compreender o processo de integração das populações indígenas após a Proclamação da
República” (plano número 18).

Embora seja possível observar num primeiro momento que a relação dos temas/objetivos
com as habilidades prescritas na BNCC inserem a história indígena dentro de processos históricos
marcados pelo protagonismo dos europeus/colonizadores e posteriormente do Estado/governo,
em termos de recorte temporal, muitos destes objetivos reforçam um esforço já constatado em
prol do atendimento da demanda posta pelos movimentos indígenas, e legalizada na Lei
11.645/08, de romper com uma perspectiva que vê o indígena apenas no período colonial. Essa
demanda política e social que se relaciona com a necessidade de mostrar os indígenas como povos
do presente e não presos ao passado pode ser vista em alguns objetivos cujo recorte temático e
temporal visibilizam as histórias indígenas no século XIX, XX e XXI.
1064

Outro aspecto significativo dos saberes docentes mobilizados nos planos de aula da Nova
Escola pode ser visto na mobilização de fontes e orientações que reportam a uma recorte espacial
mais local, o que pode ser visto, por exemplo, no plano 1 “ Povos indígenas e a origem do homem”
que traz mitos de origem dos povos indígenas Palikur, Wajãpi e Wayana e os identifica como
habitantes no Amapá e norte do Pará; o plano 4 “As resistências dos povos indígenas brasileiros
na conquista da América” traz referências aos Bororo e menciona que são povos nativos que
atualmente habitam uma parte de Mato Grosso; o plano 11 “A Guerra Guaranítica e a tutela da
população indígena” traz fonte que reporta à história indígena no interior do Rio Grande do Sul
destacando a figura de Sepé Tiaraju na guerra Guaranítica; e o plano 12 “Resistência Indígena: o
protagonismo dos guaicurus (XVIII )” onde uma etnia tem o seu nome expresso no próprio título
da aula sendo também identificado em fonte mobilizada e nas orientações o território que
ocupavam (partes dos atuais estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul);

Apesar de comporem um número pequeno dentro do total, esses quatro planos apontam
para aspectos significativos e que são elencados como possibilidades potente na promoção de uma
abordagem capaz de valorizar o legado histórico-cultural dos povos indígenas para a nação
brasileira numa perspectiva que fuja às homogeneizações. Entre esses aspectos a consideração das
interlocuções entre as dimensões locais e regionais das histórias indígenas e a história nacional
(Almeida, 2017) e a necessária especificação das etnias indígenas a que se faz referência nas histórias
estudadas. A partir de suas respectivas localizações espaço-temporais (locais e regionais) e da
consideração de suas distintas identidades étnicas as historicidades de diferentes povos indígenas
podem ser apropriadas pelo saber histórico escolar numa perspectiva não mais generalista o que
sem dúvida contribui no combate ao preconceito e estereotipias que ainda aparecem vinculados a
esses povos.

Apesar dessas constatações iniciais apenas a análise aprofundada nos mostrará a abordagem
e o tipo de narrativa que está sendo construída pelos saberes docentes para as histórias indígenas
nesses planos de aula o que faremos no decorrer da pesquisa em que além desses aspectos nos
debruçaremos sobre os métodos de ensino-aprendizagem, dos recursos didáticos lançados mão
pelos professores/as no desenvolvimento dos planos.

Referências

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historiográficas. Revista Brasileira de História. São Paulo, 2017, pp. 16-38.
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1067

Análise de documentos: Diários da Câmara dos Deputados

Kauê Pisetta Garcia

Os Diários da Câmara dos Deputados são os registros institucionais das sessões da câmara
baixa do legislativo federal brasileiro. Neles estão registrados, por exemplo, os projetos de leis
discutidos, sejam eles elaborados pela própria Câmara, pelo Senado ou pelo poder executivo.
Também são transcritos nestes documentos, os votos, discursos, debates e homenagens feitas por
deputados e deputadas na tribuna da Câmara. A partir da análise destes documentos ao longo do
tempo, é possível perceber trajetórias políticas de diferentes sujeitos dentro do poder legislativo,
bem como as permanências e rupturas nos debates ali travados, temas que surgem ou desaparecem,
as relações entre diferentes assuntos, o impacto do momento histórico nas discussões
protagonizadas pelos legisladores federais.

O foco desta análise é encontrar as menções sobre a ditadura militar brasileira nos discursos
de parlamentares em momentos de ascensão do tema no debate público nacional. Para este
trabalho, portanto, analiso Diários do ano de 1984, entre 15 de março e 15 de abril, período
próximo à efeméride de 20 anos do golpe militar de 1964 – o último aniversário “redondo” antes
da abertura política e da eleição de um civil para o cargo mais alto da república.

Antes de me debruçar efetivamente sobre o corpo documental em si, é importante, em


primeiro lugar, compreender como se estruturam as sessões da Câmara Federal, já que esta
estrutura é integralmente impressa nos Diários. Para tal, é imprescindível consultar o Regimento
Interno da Câmara dos Deputados. O primeiro destaque importantíssimo a ser feito é a
diferenciação entre “sessão legislativa” e “sessão da Câmara” (ou “sessão ordinária”): a primeira é
o nome dado ao calendário de trabalho legislativo anual, ou seja, designa um ano inteiro dos
trabalhos da Câmara; a segunda, por outro lado, é como se chamam as reuniões plenárias. Há ainda
que se diferenciar estas de “legislatura” que é o termo usado para denominar o período de quatro
anos coincidente com os mandatos dos deputados e deputadas.

Os Diários da Câmara dos Deputados documentam as sessões da Câmara, as reuniões


plenárias.

Art. 65. As sessões da Câmara dos Deputados serão:


I - preparatórias, as que precedem a inauguração dos trabalhos do Congresso
Nacional na primeira e na terceira sessões legislativas de cada legislatura;
II - deliberativas:
1068

a) ordinárias, as de qualquer sessão legislativa, realizadas apenas uma vez por dia,
de terça a quinta-feira, iniciando-se às quatorze horas;
b) extraordinárias, as realizadas em dias ou horas diversos dos prefixados para as
ordinárias;
III - não deliberativas:
a) de debates, as realizadas de forma idêntica às ordinárias, porém sem Ordem
do Dia, apenas uma vez às segundas e sextas-feiras, iniciando-se às quatorze
horas nas segundas e às nove horas nas sextas-feiras, disciplinando o Presidente
da Câmara dos Deputados o tempo que corresponderia à Ordem do Dia,
podendo os Líderes delegar a membros de suas bancadas o tempo relativo às
Comunicações de Lideranças;
b) solenes, as realizadas para grandes comemorações ou para homenagens
especiais; (Brasil, 1989).

Dentro do recorte temporal selecionado, ocorreram 22 sessões, todas elas deliberativas


ordinárias. Este tipo de sessão se divide em três partes principais. Logo no início da sessão ocorre
o Pequeno Expediente, que se destina a discussão do expediente e à discursos de oradores inscritos.
Sendo assim, este momento se caracteriza por discursos curtos e temáticos, não havendo abertura
para debates e discussões. Em seguida, acontece o Grande Expediente, onde oradores inscritos
podem fazer discursos sobre assuntos livres. Este momento se diferencia do anterior por causa dos
discursos mais longos e a possibilidade dos parlamentares a concederem “apartes”449, possibilitando
debates mais longos e complexos. A terceira parte é a Ordem do Dia, onde são discutidos os
projetos de lei previstos para aquela sessão. Ainda valeria a pena destacar as Comunicações
Parlamentares, que podem ocorrer, caso haja tempo, de tema livre, por parte dos líderes e vice-
líderes dos partidos na Câmara.

Em cada uma das 22 sessões deste período aconteceram ao menos uma menção à ditadura
militar por algum parlamentar. Para encontrar estas menções, foi feita uma busca por termos
comuns neste tipo de discurso: “ditadura”, “golpe”, “militar”, “movimento”, “regime”,
“revolução”, “1964” e algumas combinações entre estes (“movimento de 1964”, “regime militar”,
etc.). Por se tratarem de termos bastante generalistas, os resultados destas buscas acabam
precisando ser selecionados a fim de encontrar aquelas que de fato configuram alusões à ditadura.
Feita esta filtragem, foram encontrados 274 discursos mencionando de alguma forma a ditadura
brasileira.

Encontradas as menções, é necessário classificá-las. Sendo que a intenção da análise é


buscar a trajetória discursiva e os temas relacionados com a ditadura militar nestes discursos, o
ponto inicial que considero essencial considerar é o caráter da menção. Ao longo da análise, foi
elaborada uma tabela com os diferentes modos que estas alusões ao período ditatorial aparecem

449Dentro do jargão legislativo, “um aparte” é como os deputados e deputadas chamam intervenções feitas no discurso
de outros parlamentares. Isto depende da aprovação do orador que estiver discursando no momento.
1069

nos discursos parlamentares, indo desde a forma mais positiva até o rechaço mais veemente. O
grau de menção mais positiva à ditadura seria o de “defesa”, onde se englobam desde as exaltações
mais apaixonadas até as defesas pontuais contra críticas feitas por seus pares. O nível seguinte é o
de “relativização”, onde se encaixam os casos de tentativa de justificar o golpe e a ditadura ainda
que possa haver reconhecimento de falhas e erros do regime. No extremo oposto, está a categoria
de “rechaço”, onde classifico os discursos que tem como objetivo escancarar as características mais
vis do regime ditatorial, sendo este o tema central do discurso. Também neste sentido, mas de
maneira mais contida, estão os discursos que classifiquei como “crítica”, onde não se medem
palavras para exaltar falhas dos governos militares, mas com foco em assuntos específicos ou sem
configurar o tema central do pronunciamento.

Ainda restam três categorias intermediárias, que se entrelaçam de maneira interessante.


Seriam elas: “referência”, “referência positiva” e “referência negativa”. Dentro delas estariam os
discursos que por ventura tangenciam o regime militar, mas seus autores não se propõem a
discorrer sobre isso, e muitas vezes fazem menções bastante sutis. Por exemplo, o deputado Pedro
Correa, do PDS de Pernambuco, faz um discurso no dia 27 de março onde fala sobre a
possibilidade de eleições diretas para presidente. Nele, o deputado menciona “governo” e “regime”
e deixa explícito seu apreço por uma “solução negociada” ainda que não se posicione sobre o
assunto em questão. Ao fim de seu discurso, menciona “restrições democráticas” dos 20 anos
anteriores. A linha é tênue, mas dado o esforço do parlamentar em se eximir de opiniões definidas
e o reconhecimento de que não há normalidade democrática (ainda que não haja juízo de valor por
parte dele), classifiquei esta menção na categoria de “referência”.

Todos os partidos que possuíam representação parlamentar no período aparecem ao menos


uma vez na lista de discursos. O PMDB aparece em mais da metade delas, 148 discursos foram de
parlamentares do partido. Os demais partidos de oposição ao regime somados fizeram 56 discursos
onde a ditadura é mencionada. Dos 204 discursos de parlamentares destes partidos, 202 aludem à
ditadura de forma negativa, como seria de se esperar. Um deles o faz com certa neutralidade, o do
deputado Fernando Santana, do PMDB da Bahia no dia 16 de março, ao mencionar as reformas
de base propostas por João Goulart; outro se trata de uma menção vagamente positiva, de João
Batista Fagundes, de Roraima pelo mesmo partido, onde destaca avanços na área de
telecomunicações. É digno de destaque, ainda, o discurso de Bento Porto, no dia 15 de março,
onde o parlamentar do PDS, partido do regime faz duras críticas e cobranças de medidas contra a
crise econômica por parte do então presidente Figueiredo.
1070

Neste ponto, creio ser interessante fazer uma contextualização do período onde estes
discursos estavam sendo elaborados e proferidos. O país já se se encaminhava para a abertura
política e a discussão principal no parlamento era a eleição presidencial do ano seguinte e os
movimentos populares que varriam o país pedido para que a votação fosse direta, e não por meio
do Colégio Eleitoral. É seguro inferir que o fim do regime era certo para praticamente todo os
deputados que discursavam sobre o assunto, mesmo para aqueles que o defendiam. Isto é
perceptível em vários discursos, onde se exaltam supostos avanços econômicos ou de
infraestrutura. A intenção, neste momento, não era a defesa para que o regime permanecesse, mas
sim por seu legado. Neste momento, já é óbvia uma disputa de memória, quando partidários da
ditadura voltam a trazer os hipotéticos perigos que justificavam o golpe – aliás, reivindicavam o
termo “revolução” ou até mesmo “revolução democrática”, para imputar certo grau de participação
popular e legitimidade – ou celebravam aquilo que consideravam triunfos do governo ditatorial.

Mesmo assim, é interessante perceber que alguns discursos de pedessistas defendiam,


simultaneamente, a ditadura – ou ao menos seu legado – e eleições diretas. A justificativa
apresentada nestes discursos usualmente eram declarações do próprio Figueiredo defendendo o
fim do Colégio Eleitoral para as próximas eleições450. Neste contexto, portanto, havia, dentro do
mesmo partido, quem defendesse a legitimidade de eleições indiretas, e usasse, para fazer essa
defesa, uma retórica de exaltação dos governos militares; e também quem defendesse uma abertura
política mais rápida, usando isto como argumento para a defesa de que o governo brasileiro não
poderia ser considerado ditatorial, já que o próprio “ditador” era a favor de eleições. Esta percepção
reitera o que afirma Céli Pinto (2017), ao dizer que o movimento “Diretas Já” constituiria um
significante vazio, ou seja, um termo com uma profusão de significados tão grandes que se
desconecta de seu sentido original. A autora cita como o movimento acabou por significar a luta
pelo fim da corrupção, da inflação e do desemprego. Estes discursos acrescentam a lista dois
sentidos diametralmente opostos, aproximando o termo da noção de significante flutuante: a luta
pelo fim da ditadura, e a luta pela defesa de seu legado.

Ainda que seja perfeitamente perceptível que o plenário da Câmara se constituía enquanto
palco de uma disputa de memória, é interessante destacar que mais da metade dos discursos aqui
analisados ocorre no Pequeno Expediente, único momento onde seria impossível que ocorresse,
de fato, um debate. Contudo, isto não significa que se evitasse o debate sobre o assunto: das 126

450Não é objetivo desta análise, e nem seria possível a partir destas fontes, avaliar se Figueiredo de fato agia no
sentido de garantir eleições diretas ou a veracidade dos discursos que usavam isto como argumento.
1071

menções feitas no Grande Expediente ou na Ordem do Dia, 85 contaram com algum tipo e
intervenção ou complemento por parte de outros parlamentares.

Além do já citado movimento por eleições diretas, os pronunciamentos analisados também


trazem a relação entre o debate sobre a ditadura e esferas mais cotidianas da sociedade brasileira.
Economia é tema recorrente, seja para rechaçar a ditadura usando a inflação ou a crise como
argumento, seja para enaltecer o regime, usando o “milagre econômico” como fundamento.
Direitos humanos aparecem com bastante frequência, também. Neste caso, contudo, normalmente
são utilizados apenas por parlamentares que procuram criticar os governos militares. A associação
mais imediata é com as violações praticadas por agentes do Estado em nome da manutenção do
regime, mas são feitas também relações, por exemplo, com liberdade de imprensa, censura, direitos
das populações indígenas, racismo e machismo. Estas três últimas, de fato, acabam por serem
personificadas em alguns parlamentares, que marcam sua trajetória com tais temas: Abdias
Nascimento, Mário Juruna e Irma Passoni. Em todos estes casos, se tratam de grupos
extremamente sub-representados. Mário Juruna era o único deputado indígena, e também foi o
único a destacar as violências do regime militar contra estas populações. Irma Passoni é uma das
duas únicas mulheres a se pronunciar sobre o regime militar no período analisado, e a única a
destacar os aspectos machistas do regime ditatorial. Não há, no portal do Congresso Nacional,
dados sobre a proporção de parlamentares negros na época, mas o único deputado a relacionar o
autoritarismo, a arbitrariedade das polícias e a questão racial foi Abdias Nascimento.

Sabendo quem são os autores dos discursos, creio que cabe finalizar pensando quem seria
o público alvo destas falas. É seguro inferir que os parlamentares aqui estudados queriam ser
ouvidos pelo máximo de pessoas possível, por todos e todas. Entretanto, deve-se destacar que a
TV Câmara foi fundada somente em 1998 e a Rádio Câmara no ano seguinte. Desta forma, a não
ser que o discurso chamasse atenção o suficiente de jornalistas para que tivesse trechos transmitidos
ou transcritos, o único público a ser alcançado seria aqueles que assistiam a sessão pessoalmente.
Por um lado, pode-se deduzir que isto inibisse alguns parlamentares de discursar, mas por outro
pode-se imaginar que isto inspiraria outros a serem ainda mais eloquentes.

A análise destes diários, e em especial destes discursos, no momento onde a ditadura era
alvo de holofotes no debate público – seja pela efeméride ou pela transição para a democracia –
constitui ponto importantíssimo na compreensão da história do Brasil no Tempo Presente.
Percebe-se aqui pontos iniciais do que viria a se tornar fundamento – e possivelmente ruína – da
democracia brasileira. É uma batalha em uma guerra de memórias que penderia para todos os lados
nas décadas seguintes.
1072

Referências

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Diário do Congresso Nacional. Seção I, Ano XXXIX, nº 25, 11/04/1984. Disponível em:
<https://imagem.camara.leg.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=11/4/1984>.
Acesso em: 30/08/2020.

Diário do Congresso Nacional. Seção I, Ano XXXIX, nº 26, 12/04/1984. Disponível em:
<https://imagem.camara.leg.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=12/4/1984>.
Acesso em: 30/08/2020.

Diário do Congresso Nacional. Seção I, Ano XXXIX, nº 27, 13/04/1984. Disponível em:
<https://imagem.camara.leg.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=13/4/1984>.
Acesso em: 30/08/2020.

Diário do Congresso Nacional. Seção I, Ano XXXIX, nº 28, 14/04/1984. Disponível em:
<https://imagem.camara.leg.br/dc_20b.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=14/4/1984>.
Acesso em: 30/08/2020.

Pinto, Celi Regina Jardim. Elementos para análise de discurso político. Barbarói (USCS), v. 24, p. 87-
118, 2006. Disponível em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/view/821/605>.

Pinto, Celi Regina Jardim. A trajetória discursiva das manifestações de rua no Brasil (2013-2015). Lua
Nova, São Paulo, 100: 119-153, 2017. <http://www.scielo.br/pdf/ln/n100/1807-0175-ln-100-
00119.pdf>.
1074

Ênio Silveira e a resistência cultural à ditadura militar: a criação do


jornal Reunião (1965)

Larissa Raele Cestari*

Resumo: Analiso o semanário Reunião, criado em outubro de 1965, pelo editor Ênio Silveira (ES),
proprietário da Editora Civilização Brasileira (ECB). Procuro mostrar que o lançamento do jornal
fez parte das estratégias de resistência cultural à ditadura militar empreendidas por ES e setores
intelectuais reunidos na ECB após o golpe de 1964. A intenção era articular os setores de esquerda
e progressistas e levar seu repertório aos leitores das classes médias. Um dos objetivos principais
era conquistar apoio para a uma frente ampla democrática contra a ditadura. Reunião também trazia
uma proposta de transformação social que contemplava a crítica aos valores culturais e
comportamentais da ordem dominante. Analiso, também, ação dos órgãos de repressão em relação
ao jornal e aos intelectuais envolvidos no projeto.

Palavras-chave: Reunião, Ênio Silveira, resistência cultural, ditadura militar.

Em outubro de 1965, o editor Ênio Silveira (ES), em um empreendimento inovador em


relação às suas práticas editoriais, lançava o semanário Reunião, buscando expandir o espaço da sua
Editora Civilização Brasileira (ECB) entre o público leitor de jornais. Para além de uma estratégia
empresarial, o lançamento do jornal compunha as estratégias de resistência cultural451 à ditadura militar
empreendidas por ES e setores intelectuais reunidos na ECB após o golpe de 1964. O fato não
passou despercebido pelos agentes da repressão, que ordenaram a apreensão do jornal. Reunião teve
vida curta: apenas três números. Apesar disso, ele é significativo para a compreensão das estratégias
de resistência empreendidas por ES e os intelectuais envolvidos no projeto.

Nesta comunicação, analiso a linha editorial de Reunião a fim de compreender o significado


dado à fundação do jornal. Para isso, faço uma caracterização geral do jornal: os motivos de sua
criação; os nomes envolvidos; a tiragem; a forma como o jornal chegou às mãos dos leitores; o

*
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista
do Programa de Bolsas de Pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PBPG).
451
Neste texto, o termo “resistência” é utilizado como um conjunto de ideias, práticas e posturas de combate à ditadura
em diversos campos, inclusive na cultura. Engloba diferentes setores da oposição cujo ponto em comum é a luta pelo
retorno das liberdades democráticas. O sentido do termo é inspirado na experiência histórica europeia da Segunda
Guerra Mundial, englobando todos os movimentos de oposição à ocupação nazifascista. Sigo ainda uma perspectiva
que não compreende a resistência como mera reação, mas também fundação, “lugar da potência, da criatividade e
liberdade humana” (Aguiar, 2004, p. 254, apud Napolitano, 2017, p.31). Nesse sentido, Resistência ganha “uma
dimensão de esfera pública, ligada ao pensamento e à ação, à vida em comum” (Napolitano, 2017, p. 31). Para uma
discussão do conceito de resistência, ver Napolitano, 2017, pp. 27-38.
1075

projeto gráfico; a forma de apresentação e distribuição dos conteúdos bem como a sua natureza; a
linguagem utilizada. Procuro identificar quais foram os principais temas tratados e a sua abordagem.
Esses aspectos ajudam a explicitar o projeto político que orientou seus propugnadores, objetivo
principal da comunicação. A leitura que os órgãos de repressão fizeram do jornal e as consequências
para os editores também são analisadas.

Procuro mostrar que, por meio de Reunião, ES e os intelectuais envolvidos no projeto


pretendiam ampliar a esfera pública, articulando os setores de esquerda e/ou progressistas e
levando seu repertório aos leitores das classes médias. O objetivo era conquistar apoio para a
estratégia de frente ampla democrática contra a ditadura. O jornal também trazia uma proposta de
transformação social que contemplava a crítica aos valores culturais e comportamentais da ordem
dominante participando de um universo de contestação cultural que teria seu auge no final dos
anos de 1960.

A ECB e Reunião

Após o golpe de 1964, ES fez da ECB o lugar dos debates das esquerdas e dos setores
progressistas, suprindo o vazio deixado após o desmantelamento dos diversos centros e instituições
de produção nacionalista e de esquerda. Em torno da ECB se articularam intelectuais e artistas de
diferentes percursos institucionais e políticos. No ano de 1965, ES inovava e investia no mercado
em expansão de publicações periódicas, lançando: Revista Civilização Brasileira (março); Revista Política
Externa Independente (julho); Folha da Manhã (setembro) e Reunião (outubro). Essas publicações
circularam na tentativa de alcançar diferentes públicos para os debates promovidos pela ECB cujo
ponto em comum eram as propostas de transformação da sociedade brasileira dentro de uma
perspectiva de esquerda e/ou progressista (Czajka, 2012).

Reunião foi um tabloide de caráter informativo, publicado semanalmente, dentro de uma


linha de interpretação progressista e/ou de esquerda dos fatos. Saía às quartas-feiras, com cerca de
32 páginas impressas em papel jornal, com apresentação gráfica convencional, semelhante aos
jornais de circulação diária do período. A tiragem era de 40 mil exemplares e custava CR$ 400,00452.
Era distribuído por todo o Brasil, não somente nas capitais, mas também no interior, e vendido em
bancas de jornais e livrarias. Sua redação ficava no Rio de Janeiro. Era impresso nas oficinas do
Jornal dos Sports e distribuído pela Distribuidora Imprensa, que fazia a distribuição de revistas de grande

452
Para um termo de comparação, o jornal diário Correio da Manhã, no mesmo período, custava CR$ 100,00, em dias
úteis, e CR$ 200,00 aos domingos. A revista semanal Manchete custava CR$ 500,00. Ambos eram voltados, sobretudo,
para um público de classe média.
1076

circulação como Manchete, Fatos e Fotos, Revista do Rádio etc. Os recursos vinham da própria Editora
Civilização Brasileira.

Entre os que participavam da elaboração do jornal estavam, além de Ênio Silveira (diretor
geral), Paulo Francis (diretor responsável), Thiago de Mello (secretaria e arte), Joaquim Ignacio
Cardoso (gerência) e Ana Arruda, Carlos Heitor Cony, Fernando Pessoa Ferreira (redatores). Carlos
Heitor Cony, Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Tristão de Athaíde (Alceu Amoroso Lima)
assinavam colunas que abordavam a política nacional; Cony também era autor do folhetim Vida,
paixão e glória do brasileiro José Sanz; Dias Gomes, Alex Viany, Glauber Rocha e Luiz Carlos Maciel
escreviam na seção Artes, Literatura, Espetáculos; Márcio Moreira Alves e Hermano Alves se
encarregavam do noticiário e análise da política nacional; Gilberto Paim e Jaime Azevedo Rodrigues
abordavam a política externa brasileira e economia; Newton Carlos fazia a cobertura internacional;
Tereza Cesário Alvim, Carmem da Silva e Estela Lachter, além de assinarem crônicas, abordavam
temas do comportamento, especialmente da juventude e da mulher. Jaguar encarregava-se da
ilustração e caricaturas.

Ao analisarmos os percursos políticos e institucionais dos editores e colaboradores do


jornal, percebemos que eram intelectuais vindos das esquerdas, sobretudo do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), ou do campo progressista, como os setores democrático-liberais. Eram militantes
ou simpatizantes do PCB, por exemplo: Ênio Silveira, Thiago de Mello, Ana Arruda, Dias Gomes,
Alex Viany, Glauber Rocha, Joaquim Ignacio Cardoso. Havia também intelectuais de esquerda não
pecebistas, como os trotskistas Paulo Francis, Edmundo Muniz, ou ainda Luiz Carlos Maciel, que
teria papel importante nos anos de 1970 como divulgador da contracultura e do movimento
underground. A “oposição liberal” ou “democrática-liberal” também estava representada, sobretudo
por meio dos jornalistas do Correio da Manhã, que haviam apoiado o golpe de 1964, mas que se
opuseram veementemente à ditadura: Otto Maria Carpeaux, Newton Rodrigues (ex-militante do
PCB), Carlos Heitor Cony, Marcio Moreira Alves. Havia também intelectuais católicos
progressistas como Alceu Amoroso Lima.

A distribuição dos conteúdos do jornal e a sua natureza nos ajudam a compreender a linha
editorial de Reunião. Os conteúdos estavam divididos em:

a) Política nacional. Ocupava entre 12 e 14 páginas do jornal. O eixo central dessa seção
foi a denúncia da institucionalização da ditadura no Brasil, conforme será analisado de
forma mais detida em um próximo tópico.

b) Política externa brasileira. Ocupava entre duas e quatro páginas. Fazia a crítica ao
abandono da política externa independente, baseada no princípio nacionalista da não
1077

intervenção e da autodeterminação dos povos, das relações terceiro-mundistas.


Denunciava o “alinhamento incondicional” aos EUA nos planos militar, econômico e
político, que faria do Brasil um país dependente e satélite armado dos EUA contra as
nações da América Latina.

c) Política internacional. Ocupava entre uma e três páginas. Trazia temas da Guerra Fria
e da América Latina. Explicava as guerrilhas pelo subdesenvolvimento dos países
latino-americanos, carentes de reformas estruturais. Denunciava o projeto de criação
de uma força militar interamericana contra o comunismo que faria dos EUA, com
participação brasileira, a polícia política da América Latina.

d) Problemas sociais. Ocupava duas páginas. Um dos temas destacados foi a denúncia da
política de remoção forçada dos moradores das favelas no Rio de Janeiro pelo
governador Carlos Lacerda. Analisava também a alta “estrutural” do preço da carne
devido ao controle desse comércio pelos frigoríficos estrangeiros.

e) Economia e finanças. Ocupava duas páginas. Analisava criticamente a política


econômica recessiva do governo Castelo Branco, ressaltava a necessidade de reformas
socioeconômicas estruturais para superar o subdesenvolvimento. Denunciava a
tentativa de desnacionalização de setores estratégicos da economia brasileira, como a
siderurgia, após o golpe de 1964. Defendia o comércio e a cooperação econômica entre
Brasil e URSS.

f) Cultura. Ocupava entre quatro e cinco páginas. Essa seção era intitulada “Artes, livros
e espetáculos”. Continha resenhas de livros, exposições, teatro e cinema, com foco nas
duas últimas. As obras analisadas eram, em sua maioria, produções de esquerda,
sobretudo de matriz nacional-popular no caso das produções brasileiras. Um dos eixos
era a discussão do engajamento da arte e do intelectual de esquerda. Dias Gomes, por
exemplo, questionava se a arte engajada permaneceria após seu contexto político de
produção. Outro eixo era a denúncia do terrorismo cultural por meio da prática da
censura do regime militar. Quanto aos livros, resenhavam-se os lançamentos das
editoras ECB, Zahar, Editora Martins, Editora do Autor, Record.

g) ¨Questão feminina. Ocupava entre duas e quatro páginas. A seção era intitulada
“Reunião Mulher”. Nesse espaço, os papéis tradicionais de gênero eram questionados.
A defesa da emancipação feminina aparecia no tratamento de questões como
virgindade, conduta sexual, divórcio, educação e profissionalização, modos de vestir. A
relação gênero e classe e a homossexualidade feminina também eram abordadas. Esta
1078

última, porém, embora se quisesse crítica, não conseguiu superar certo


conservadorismo abordando a homossexualidade como “problema” ou “desviação”,
fruto de uma educação baseada na subalternidade da mulher (Silva, 3 nov.1965, pp. 24-
25)

h) Comportamento. Ocupava entre duas e quatro páginas. Reforçava a abordagem de


“Reunião Mulher”, de crítica aos valores e costumes tradicionais, sobretudo na temática
sexual e jovem. A ênfase estava na investigação das mudanças (ou não) do
comportamento entre jovens universitários de classe média. Comportamentos
estéticos, sociabilidades, expectativas para o futuro, profissionalização, concepções de
família e moral sexual, relações de gênero e engajamentos políticos eram investigados
pelo jornal.

Esses conteúdos apareciam na forma de notícias, reportagens e colunas de opinião.


Crônicas do cotidiano e folhetim contribuíam como atrativos para ampliar o público. Charges de
Jaguar e/ou fotografias, presentes em todas as matérias do jornal, criavam ou reforçavam os
significados conferidos pelos autores aos conteúdos abordados.

Embora os diversos textos do jornal fizessem uso do humor e da ironia, sobretudo na


crítica à política nacional, a linguagem utilizada era formal, semelhante à da grande imprensa, e
buscava dar ao leitor uma interpretação histórico-social das principais questões do cenário político,
cultural, econômico e internacional do momento.

No caso de Reunião, a escolha dos conteúdos e a forma de sua abordagem, a distribuição


em bancas de jornais e livrarias, o preço, a linguagem utilizada revelava que o público que se queria
conquistar era, sobretudo, os leitores de jornal das classes médias. E não, necessariamente,
militantes e/ou consumidores das publicações da ECB. Havia, ainda, um investimento para se
conquistar um público jovem universitário que, naquele momento, alimentava a vida política e a
expansão do mercado editorial, e feminino, cujas pautas emancipatórias eram incorporadas no
jornal.

Como se pode perceber pelos conteúdos, na linha editorial permaneciam as referências das
esquerdas anteriores ao golpe de 1964, como a defesa do nacionalismo, da política externa
independente, das reformas estruturais, da cultura nacional-popular. Porém, essas referências eram
atualizadas tanto por uma crítica comportamental e feminina, revelando a percepção da
1079

indissociabilidade entre cultura/moral e política em um projeto de transformação social, quanto


pela denúncia da ditadura, foco central do jornal.

Quanto ao último ponto, o espaço dado à política nacional, que ocupava sozinha quase a
metade da matéria redacional, indicava que ES e os colaboradores de Reunião tinham a intenção de
promover uma intervenção direta na conjuntura política do país. A análise do primeiro editorial de
Reunião permite elucidar o ponto aqui defendido.

Reunião e o frentismo político

O primeiro número de Reunião circulou em 20 de outubro de 1965. No editorial de


apresentação, Ênio Silveira já dizia ao que vinha:

“[...] Reunião será um semanário de esquerda [...] mas de uma esquerda que
chamaríamos ecumênica, abrangendo todos aqueles (...) dentro ou fora de
partidos [...] Nossa política será a da frente democrática ampla e obviamente não
sectária. [...] Se a maioria da imprensa brasileira é hoje marcada pelos
compromissos e conveniências que torna os gerentes mais importantes do que
os redatores na fixação da linha de um jornal, Reunião procurará ser o oposto
disso. Seremos contra o conformismo, [...] contra as posições sistemáticas que
sob inspiração de duvidosas táticas, não conseguem jamais por de pé uma
estratégia de interesse nacional. Os melhores nomes do jornalismo brasileiro
estão em reunião colaborando conosco para criar um clima de liberdade e de
especulação criadora que, infelizmente, já não existe em plenitude na chamada
grande imprensa. Foi por isso que surgimos [...] O leitor verá por si próprio [...]
nossa posição democrática e não conformista[...]” (Silveira, 20 out. 1965, p. 2)

As motivações e intenções da criação de Reunião estavam demarcadas. Reunião seria um


veículo de esquerda alternativo à grande imprensa. Esta, alegava ES, por razões de ordem
empresarial, compromissos e/ou constrangimentos do regime militar, não atuava com liberdade de
expressão. Portanto, por meio de Reunião, pretendia-se ampliar a esfera pública, disputar a formação
de uma opinião pública com a grande imprensa e criar um espaço de resistência ao regime militar.

Para garantir o debate livre no campo progressista, condição que marcava as iniciativas
editoriais de ES, Reunião seria um órgão apartidário, apesar dos vínculos com o PCB de muitos de
seus colaboradores. Embora não explicitado por ES, na “esquerda ecumênica” estavam
contemplados também os intelectuais progressistas, fossem eles liberais, como Cony, ou católicos,
como Alceu Amoroso Lima. Unidos pela resistência à ditadura, esses setores assumiam temários
originalmente de esquerda (Czajka, 2013), defendendo perspectivas mais democráticas e abertas a
reformas sociais inclusivas.
1080

Com a intenção de intervir diretamente no cenário político, Reunião vinha a público também
para se constituir como um espaço de articulação dos setores de esquerda e progressistas na defesa
de uma Frente Democrática Ampla, ou seja, da resistência civil e desarmada ao regime militar. Essa
estratégia, defendida tanto pelo PCB quanto por setores liberais logo após o golpe, e explicitada
pela própria formação da equipe do jornal, pretendia formar uma grande frente de oposição ao
regime militar, aberta a todos os setores, inclusive da direita democrática (Napolitano, 2017).
Embora esta última não estivesse representada em Reunião. A luta era pela volta da democracia
golpeada em 1964. Nesse sentido, o grupo ali reunido se distanciava das esquerdas que optariam
pela luta armada e criticava o sectarismo de grupos que, por se recusar a alianças, não conseguiam
‘por de pé uma estratégia de interesse nacional”.

Vale destacar que, apesar de a constituição da Frente Ampla ser uma das razões da
existência de Reunião, o assunto gerou polêmica entre Paulo Francis e Leandro Konder. Fazendo
jus à proposta de liberdade de opinião e ecumenismo de esquerda, ES abriu a publicação ao debate.
No artigo “A crise das esquerdas”, Paulo Francis (20 out. 1965, p. 32) alegou que a política frentista
colocava a esquerda em posição de reboquismo, isolando-a das massas e deixando-a entregue às
cúpulas dos partidos burgueses. No seu lugar, propunha uma unidade de esquerda em torno de
princípios classistas. Leandro Konder (27 out. 1965, p. 31) rebateu o artigo. Argumentou que o
isolamento das esquerdas significaria fazer o jogo do inimigo comum. O momento era de união
em defesa de uma democracia avançada o que só seria conseguido por meio de uma política
frentista, posição que expressava a linha editorial do jornal.

Mas a articulação de uma frente de esquerda e/ou progressista contra a ditadura, conforme
pregada em Reunião, não deveria ficar restrita ao “pequeno mundo estreito” dos intelectuais. O
motivo da criação do jornal era exatamente expandir esse debate e conquistar um público leitor de
jornais, não necessariamente intelectualizado, militante ou consumidor de outros produtos da ECB.
No caso de Reunião, como visto acima, o público que se queria conquistar era, sobretudo, das classes
médias e, dentro desse setor, havia um investimento em um público jovem universitário e também
feminino.

A própria autorrepresentação de Reunião como um semanário de esquerda, porém


independente de partidos, servia para atrair leitores. Buscava um público interessado em uma
abordagem crítica dos acontecimentos, potencialmente insatisfeito com o regime que se
implantava, mas que, por diversas razões, não queria se identificar partidariamente. Importante
destacar que, em 1965, a larga base de apoio civil ao golpe se estreitava tanto devido à militarização
do regime quanto à sua política econômica recessiva que atingia não só os trabalhadores, mas
1081

também as classes médias, principal base social do golpe (Napolitano, 2014). O tema era explorado
no jornal, a exemplo de matérias como “Quem quer a ditadura no Brasil”, escrita por Hermano
Alves (3 nov.1965, pp. 16-17).

Com objetivo de trazer esse leitor ao debate e formar uma opinião pública de oposição e
resistência à ditadura, Reunião, no seu terceiro número, anunciou a criação do “Canto do Leitor”.
O objetivo era abrir uma página para que o leitor se pronunciasse e, nas palavras de ES, “manter
vivo o impulso ao debate”, pois “enquanto existir publicamente, a ditadura não se implantará com
facilidade” (Silveira, 3 nov.1965, p. 31). O projeto não foi para frente devido à extinção do jornal
após esse número.

A cobertura política e a convocação do leitor à defesa da democracia

O objetivo dos criadores de Reunião em formar uma opinião pública de resistência à ditadura
e defesa das instituições democráticas é destacada na cobertura política. O eixo dessa seção foi a
denúncia das articulações, promovidas pelo governo Castelo Branco, para institucionalizar a
ditadura no Brasil por meio de um novo ato institucional. Essa denúncia foi crescendo nos números
do jornal.

É importante destacar que, naquele momento, não era consenso na opinião pública de que
se vivia em um regime ditatorial. A ditadura não estava prevista na frente civil e militar que derrubou
João Goulart (Ferreira; Gomes, 2014). O golpe foi justificado por seus objetivos “saneadores”, em
nome da democracia contra o comunismo, e a intervenção militar seria temporária. O governo que se
seguiu empreendeu, a partir de uma série de embates, inclusive dentro da própria frente que
promovera o golpe, uma construção cotidiana da ditadura, buscando dar uma conformação
institucional ao regime autoritário (Napolitano, 2014; D’Araujo; Joffily, 2019).

Reunião foi lançado na conjuntura após as eleições para governador de 11 estados, em


outubro de 1965, e uma semana antes da decretação do AI-2, no dia 27 daquele mês. É importante
observar, para compreensão dos conteúdos, que os números dois (nas bancas em 27 de outubro)
e três (nas bancas em 3 de novembro) do jornal foram escritos antes da edição do AI-2. Isto porque
o semanário era impresso oito dias antes de ser posto à venda.

A cobertura política do primeiro número fornecia uma interpretação do caleidoscópio


político formado a partir dos resultados das eleições para governador. Os personagens principais
eram Castelo Branco, Carlos Lacerda, Golbery do Couto e Silva, Juscelino Kubitschek, Juraci
Magalhaes e os coadjuvantes eram Negrão de Lima, Israel Pinheiro e a extrema direita militar.
1082

A tese central que percorreu o editorial, o noticiário e as colunas políticas era a de que a
vitória dos candidatos do Partido Social Democrático (PSD), Francisco Negrão de Lima, na
Guanabara, e Israel Pinheiro, em Minas Gerais, tida como de oposição, era ilusória. Não trazia
nenhum sinal de retorno às liberdades civis. Os dois políticos eram apresentados como fisiológicos
e prontos a colaborar com o governo Castelo Branco. Eram de oposição apenas porque o eleitor
assim os representou e os elegeu. Além disso, as eleições de 1965 teriam sido orquestradas pelo
SNI e consentidas pelo governo (Silveira, 20 out. 1965, p. 2). O objetivo de Castelo Branco e do
“grupo militar da Sorbonne” que, segundo o jornal, haviam ocupado o poder após 1964, era livrar-
se sobretudo de Carlos Lacerda, aliado de primeira hora, mas agora principal concorrente do novo
regime. Por isso mesmo, a derrota de Flexa Ribeiro, candidato de Lacerda, era uma vitória de
Castelo Branco (Os votos..., 20 out.1965, p. 4).

Mas as ambiguidades dessas eleições, segundo a cobertura do jornal, não paravam por aí.
Afinal de contas, a vitória de Negrão de Lima e Israel Pinheiro, que foram lançados como
candidaturas de oposição, inclusive com articulação do PCB, sinalizava o descontentamento e a
perda de popularidade do regime. A isso acrescia a popularidade de Juscelino Kubistchek que, de
volta ao Brasil, tornava-se perigoso concorrente ao novo regime.

A percepção desses fatores revelaria, para os militares que tomaram o poder, a inviabilidade
das eleições direitas para presidente da República em 1966. Como ironizava Ênio Silveira: “(...)
depois de alguns resultados acima das expectativas acham que esse negócio de votar pode dar ideias
erradas (...) aos eleitores (...)” (Silveira, 20 out. 1965, p. 2). A isso somava-se a revolta da extrema
direita lacerdista nas Forças Armadas, que não aceitaram a posse dos eleitos em 1965, e tentaram
um golpe contra Castelo Branco, rapidamente controlado por Costa e Silva.

Reunião denunciava que, para responder a esse contexto, o governo Castelo Branco
preparava um conjunto de leis e emendas constitucionais que completariam o dispositivo salazarista
que inspirava o ‘grupo da Sorbonne’ no poder. Entre as medidas denunciadas estavam: suspensão
das eleições diretas em 1966; extinção do federalismo; ampliação dos poderes do executivo, um
“estatuto dos cassados”. Os leitores eram alertados de que o governo preparava-se para fechar
ainda mais o regime dando andamento à conformação de uma constitucionalidade ditatorial. Peça
chave para isso seria Juraci Magalhaes cuja tarefa seria costurar alianças ente o PSD e a UDN a fim
de “arrancar do congresso um conjunto de leis e emendas constitucionais que levariam ao domínio
da ficção as intenções democráticas do governo Castelo” (Os votos..., 20 out. 1965, p. 4).

O segundo número de Reunião, nas bancas em 27 de outubro, subia o tom. A ênfase desse
número era demonstrar a falsidade da ideia divulgada pela grande imprensa de que Castelo Branco
1083

era de linha liberal, mas estava sendo pressionado pela linha dura militar. Segundo Reunião,
“marechal Castelo Branco é a linha dura dotada de razão. O que ela pleiteia pelos métodos
irracionais [...] ele realiza racionalmente e leva sobre ela vantagem dupla de satisfazê-la ao mesmo
tempo que aparece como seu contrário perante a opinião desinformada da maioria do país.” (A
rolha..., 27 out. 1965, p 3-5)

O jornal denunciava que um segundo ato institucional seria “arrancado ao congresso pela
utilização de uma crise que o próprio Marechal Castelo estimulou e conduz” (A rolha... 27 out.1965,
pp. 3-5). Com esse ato, o governo pretendia incorporar ao sistema legal os princípios que
garantiriam a durabilidade da “revolução” institucionalizando a ditadura.

Em estado de alerta, ES convocava os leitores à mobilização:

[...] Estamos todos diante da perigosa ameaça, de novo atentado que se pretende
cometer contra a democracia e os mais legítimos direitos do povo brasileiro. [...]
É preciso lutar com vigor contra a violência pretendida e levar ao congresso, por
desmoralizado que esteja, por castrado que tenha ficado depois do expurgo de
alguns dos seus mais combativos representantes, o estímulo da revolta e do rotor de
toda a nação brasileira [...] quem se omitir em hora tão grave pagará o duplo preço
de opressão e da infâmia. Jornalistas de várias tendências ideológicas se encontram unidos
aqui nessa luta pela sobrevivência democrática. Em mobilização idêntica precisam encontrar-se
as camadas de nosso povo. Se souberem atuar coordenadamente, aliviaram o
Congresso da pressão e da chantagem que o Executivo exerce sobre ele e
poderão conquistar de modo pacífico o direito a dias melhores em futuro
próximo [...] Se capitularem, se permitirem que as cúpulas partidárias
conservadoras negociem à sua custa perderão a área de manobra de que ainda
dispõem. Ou estamos à altura das tarefas que a consciência democrática nos
impõe ou mereceremos a derrota e a ditadura” (Silveira, 27 out. 1965, p. 2).

Para os intelectuais de Reunião, naquele momento, o espaço principal da resistência deveria


ser o Congresso Nacional, as instituições representativas, os partidos políticos. Mas isso só seria
possível se houvesse apoio e estímulo por meio da mobilização da sociedade civil. Os leitores eram
convocados a unirem-se aos intelectuais em uma frente de apoio ao legislativo. A luta deveria ser
pacífica, a resistência era civil e desarmada, em uma frente ampla democrática.

No editorial do terceiro número, ES, a partir do discurso do ministro da Guerra, Costa e


Silva, em Itapeva, São Paulo, denunciava uma ditadura militarizada sob a fachada democrática:

Compreendemos então que ficaremos trancados em nossas casas, mas


protegidos pelos militares, que poderemos votar, orientado pelos militares,
que poderemos emitir nossa opinião livremente, desde que de acordo com
os militares, que teremos uma política externa própria, encaminhada pelos
militares, que manteremos o regime republicano, com os três poderes
operando numa interação democrática, desde que sob tutela dos militares
(...) (Silveira, 3 nov. 1965, p. 2).
1084

As colunas de Cony (3 nov. 1965, p. 9), Alceu Amoroso Lima (3 nov. 1965, p. 16) e Otto
Maria Carpeaux (3 nov. 1965, p.16) reforçavam a discussão sobre os subterfúgios do governo para
“mascarar a ditadura”. Falavam em nome do povo, como conjunto da nação, e clamavam pelo
retorno das liberdades políticas e civis, da democracia golpeada. A luta contra a conformação
institucional da ditadura, razão de ser da criação do jornal, era reiterada em diversas matérias desse
número.

E, novamente, os leitores eram convocados à esfera pública, ao exercício da liberdade de


expressão, dos direitos civis, forma de resistência à ditadura:

(...)achamos que o leitor, que o público brasileiro, é o grande mudo (...)


Ele assiste em silêncio a ação coercitiva de seus supostos benfeitores, que
lhe dizem o que devem fazer, como devem viver e, a julgar pelo avanço
crescente da censura, em breve lhe pedirão também o que pensar. Reunião
tem o propósito de ser uma trincheira do pensamento livre e progressista
do país. Cabe ao nosso leitor ratificá-lo, negá-lo e, principalmente, discuti-
lo (...) (Silveira, 3 nov. 1965, p. 31).

O fim de Reunião

A intenção dos criadores de Reunião de articular os setores progressista e /ou de esquerda,


formar uma opinião pública e resistir à ditadura não passou despercebida pelos órgãos de repressão.
Sobretudo porque o formato jornal, de leitura mais rápida e acessível, permitiria que a mensagem
chegasse a um público mais amplo, para além do “pequeno mundo estreito” dos intelectuais.

Em portaria do dia 5 de novembro de 1965, o delegado Mario Dias, do DOPS de São


Paulo, seguido pelo DOPS da Guanabara, determinou a apreensão e retirada de circulação de todas
as edições de Reunião e a instauração de inquérito policial para apurar as responsabilidades de ES e
de todos os colaboradores do jornal. Foram acusados de crime contra o Estado e a Ordem política
e social com infringência à lei 1.802 de 1953, que versava sobre crimes contra segurança nacional,
e ao Ato Institucional n° 2. Alegava-se, entre outros, que Reunião era produzido por “elementos
comunistas”, que continha “artigos subversivos de incitação à opinião pública contra os poderes
constituídos da República (...) provocando, inclusive, animosidade entre as classes armadas” (...)”,
que “inundaram o interior do país com a distribuição ostensiva (...) para venda a leitores menos
avisados” (Justiça Militar, 1967).

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, foram feitas várias diligências para recolher os
exemplares dos jornais. Donos de bancas, livrarias e distribuidoras da capital e do interior foram
1085

chamados a depor. Havia um grande interesse da polícia em saber quem eram os compradores,
sobretudo se possuíam vínculos com sindicatos, partidos políticos ou entidades estudantis.
Buscavam os vínculos organizativos e a “potencialidade subversiva” do jornal. Afinal, uma das
principais preocupações do novo regime, desde a primeira hora, foi dissolver os laços institucionais
e organizativos dos intelectuais de esquerda com os movimentos sociais. Conforme Napolitano,
era preciso “destruir certa elite, menos pela eliminação física dos seus membros e mais pela morte
civil e pelo isolamento político” (Napolitano, 2014, p. 103). As respostas dos vendedores e
distribuidores do jornal foram, no entanto, invariavelmente negativas453 (Justiça Militar, 1967).

Atento a isso, procurando se desvencilhar das acusações de subversão, ES, em seu


depoimento, procurou desvincular Reunião de qualquer partido ou corrente política, sobretudo do
PCB, alvo principal da polícia política, como se percebe nos documentos que compõem o
inquérito. Em janeiro de 1966, ES declarava ao delegado Manoel Villarinho:

(...) que o declarante nas três publicações do semanário Reunião escrevia o artigo
de abertura intitulado carta do editor, (...) que se havia por vezes opinião, crítica
a respeito de fatos ou pessoas, a mesma era de inteira e exclusiva responsabilidade
do depoente, não servindo ao qualquer um movimento, corrente ou partido
político (Justiça Militar, 1967).

Na mesma toada, seguiu o depoimento de Cony:

(...) que o declarante nunca pertenceu nem antes, durante ou depois da revolução
de 31 de março de 1964 a nenhum partido político, que sua linha pensamento
expressa no seus livros e artigos é profundamente humanista, a favor das
liberdades, tendo mesmo escrito repetido às vezes contra o senhor João Goulart
bem como contra o governo do Senhor Castelo Branco, que não exerce
militância política de nenhuma espécie e só interessa pela política na medida em
que ela viola os direitos da pessoa humana, que o declarante deseja esclarecer que
é considerado pelos esquerdistas como um elemento alienado, ou seja, não
militante de nenhum de seus dogmas ou de nenhuma de suas práticas, que por
isso mesmo considerando-se um homem livre e desengajado senti que sua
obrigação no momento atual é reclamar pela restauração das liberdades públicas
e individuais.(...)”. (Justiça Militar, 1967).

O engajamento dos intelectuais na defesa das liberdades políticas e civis e das garantias
constitucionais foi argumento de defesa dos jornalistas de Reunião. Era apresentado como o avesso

453
Poder-se-ia aventar que tal negativa seria uma estratégia de defesa dos depoentes para preservar a si e aos
compradores. Mas a invariabilidade das respostas, inclusive dos donos de bancas, que tomaram a iniciativa de avisar a
polícia sobre o novo jornal, nos leva a crer que, de fato, Reunião era comprado por um público não necessariamente
vinculado a movimentos e partidos políticos. Embora, claro, estes últimos também fossem leitores potenciais do jornal.
1086

de atitudes subversivas. Ao mesmo tempo, reforçavam a estratégia de resistência civil do grupo


Reunião. Como aponta Galúcio (2009, p. 139) até na polícia ES militava pela liberdade de expressão:

(...)que o depoente se julgava plenamente amparado pela Constituição Federal,


uma vez que o artigo 141 ainda não foram modificado (...)que o depoente deseja
declarar, ainda, que está hoje como sempre, com a consciência absolutamente
tranquila de não haver cometido ou tentado cometer qualquer crime contra sua
pátria que se suas opiniões pessoais, mesmo estando em desacordo com as
opiniões de autoridades constituídas, julgo declarante não constituírem crime as
mesmas, que a edição do semanário reunião representava apenas o desejo do
depoente contribuir para o campo livre e democrático debate de ideias (...). (
Justiça Militar, 1967).

O inquérito aberto, em novembro de 1965, pelo DOPS, em São Paulo, teve continuidade
no DOPS da Guanabara e terminaria na Justiça Militar em um processo que foi concluído, pelo
arquivamento, em janeiro de 1968.

Muito antes disso, no entanto, ES e os diretores de Reunião decidiram encerrar a publicação


do jornal após o seu terceiro número, em 3 de novembro de 1965. O motivo alegado foi a
decretação do AI-2 que proibia cidadãos com direitos políticos cassados, como era o caso de ES,
de assinarem matérias políticas em jornais. O risco político seria grande para ES, que já havia sido
preso três vezes entre 1964 e 1965. Além disso, a apreensão do jornal em vários pontos do país
tornava a publicação um risco financeiro. O encerramento de Reunião, no entanto, não implicou o
encerramento da resistência cultural de ES e do grupo Civilização. Diversas outras iniciativas
editoriais de resistência à ditadura foram empreendidas pela ECB. No entanto, com exceção de
Folha da Manhã, que já circulava, nenhuma delas mais no formato jornal.

Referências

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Duarte, André; Lopreato, Cristina e Magalhães, Marion (orgs). A banalização da violência: a
atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: relumbre Dumará, 2004, v.1.

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17.

Carpeaux, Otto Maria. O projeto exótico. Reunião. Rio de Janeiro, 3 nov. 1965, p.16.

Cony, Carlos Heitor. Momento de Verdade. Reunião. Rio de Janeiro, 3 nov. 1965, p. 9, Alceu
Amoroso Lima (maquiavelismo. 3 nov. 1965, p. 16) e Otto Maria Carpeaux (o projeto exótico,
p.16)
1087

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de 1960. In: Roxo, Marco; Sacramento, Igor. (Orgs.) Intelectuais Partidos. Os comunistas e as mídias no
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Czajka, Rodrigo. A Hora dos Intelectuais. Literatura, Imprensa e engajamento no Brasil (1964-
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103.

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Autoritário: ditadura militar e redemocratização: Quarta República (1964-1985). Rio de Janeiro,
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__________. Carta do Editor. Reunião. Rio de Janeiro, 27 out. 1965, p. 2.

__________. Carta do Editor. Reunião. Rio de Janeiro, 3 nov. 1965, p. 2.

__________. Canto do leitor. Reunião. Rio de Janeiro, 3 nov. 1965, p. 31.


1088

Acidentes e incidentes nos caminhos do trem a vapor na capital


de Pernambuco (1867-1889)

Lamarck Montenegro de Vasconcelos*

Resumo: A chegada da Maxambomba propiciou mudanças no transporte de pessoas,


mercadorias e cargas na cidade do Recife. Alguns acidentes acompanhavam a máquina a vapor na
via férrea, estações e composições. A superlotação e a forma imprudente com que as pessoas
caminhavam no centro das vias, compartilhando o espaço com a locomotiva a vapor, propiciavam
acidentes. Os objetivos deste Trabalho são de analisar os motivos das ocorrências de acidentes no
sistema ferroviário urbano; de analisar as consequências desses acidentes para as partes envolvidas;
de pesquisar a importância da manutenção das máquinas e material fixo para a prevenção de
acidentes; de pesquisar de que maneira a população se rebelava contra a superlotação, atrasos nas
viagens e estrutura das estações. A produção deste Trabalho se deu pela importância social,
histórica e econômica dos acidentes e incidentes que ocorriam no complexo sistema ferroviário
recifense. A fundamentação teórica se deu pela leitura das obras de José Lins Duarte e Mário Sette,
e consultas a Série Estradas de Ferro, do APEJE e acervo da Hemeroteca Digital. Concluímos que
apesar do avanço representado pela Maxambomba, a superlotação acelerava o seu desgaste,
resultando em acidentes e atrasos nas viagens. A imprudência de transeuntes e a ação de vândalos
eram corriqueiras.
Palavras-chaves: Maxambomba, Acidentes, Incidentes.

Sucedendo os primitivos meios de transporte urbano nas áreas mais povoadas da capital de
Pernambuco, o trem a vapor foi designado para suprir a carência das comunicações terrestres. A
implantação de uma ferrovia percorrida por uma pequena locomotiva e seus vagões de passageiros
foi a solução encontrada para o transporte de pessoas, mercadorias e cargas. Essa máquina a vapor
ligava o centro da cidade ao arrabalde de Apipucos, pois tal percurso era o mais habitado e
tendente ao assentamento de moradia permanente. O trajeto dessa principal linha era favorecido
pelos melhores meios de comunicação do período, conferindo aos seus habitantes ar de satisfação.
Apipucos, Poço da Panela e Monteiro gozavam de fama e de destaque. “A Linha Principal sempre
manteve fóros de fidalga... Daí o seu nome” (Sette, 1981, p. 225).

No início da operação provisória da linha principal, a Maxambomba ligava as estações


Central e Caldereiro, nos primeiros dias de 1867. No dia 1º de outubro, a via férrea foi concluída,

* Discente do Mestrado Profissional em História da Universidade Católica de Pernambuco.


www.lamarckvasconcelos@yahoo.com.br
1089

contando com catorze estações, quando a Brazilian Street Railway Company, concessionária
inglesa dos serviços ferroviários, ampliou esse número para vinte no final da década de 1880. O
ramal dos Aflitos, em operação a partir de 1871, permaneceu com cinco paragens, que
funcionavam em precário estado de conservação, quando a Concessionária alegava que a renda
da linha sequer cobria as despesas com a manutenção (Relatório Relatório anual da Brazilian
Street, 1874, p. 465).

A Companhia Ferroviária, apesar dos esforços, não conseguia abrigar os usuários e


funcionários em locais com boas condições de limpeza, conservação e segurança, susceptíveis de
acidentes. Em 1873, ocorreu um desabamento de paredes na paragem principal, situado na rua
do Sol, que ocasionou a morte de um funcionário (Relatório do Engenheiro Fiscal, 1873, p. 430).

Para melhorar a estrutura do sistema ferroviário, a Concessionária, promoveu a reforma


de algumas estações e a construção de outras em pedra e cal, substituindo as de madeira. Esses
pontos de convergência dos usuários, cenários de embarques e desembarques diários, serviam
como abrigo para as intempéries climáticas e vendagem de bilhetes para as viagens. Apesar das
melhorias, as estações eram locais inseguros: A noite, ocorriam invasões por desocupados, pondo
em risco a permanência dos passageiros. Abertas até a passagem do último trem, muitas serviam
de guarida a mendigos e vadios, que deixavam dejetos nos locais. Mesmo com intervenção policial
pouco se obteve (Relatório anual da Brazilian Street Railway, 1880, p. 415).

Além de contar com estações em precário estado de funcionamento, a superlotação das


composições gerava insatisfação dos usuários: um incidente envolvendo alguns passageiros foi
noticiado no Poço da Panela: na festividade de Nossa Senhora da Saúde, no dia 02 de fevereiro de
1867: no momento de retorno à estação principal, o condutor constatou a superlotação no trem
que estava na estação da localidade, e o que viria em sentido contrário não havia chegado. Assim, o
trenzinho não poderia partir do subúrbio, uma vez que a estrada férrea possuía via única. A
dificuldade de comunicação aumentava o risco de colisão. Mesmo com a presença da segurança
pública, inclusive do seu chefe, não foi possível conter a revolta de alguns usuários, que insatisfeitos
com as circunstâncias, danificaram o interior dos vagões. Apesar do tumulto, o comboio foi
liberado pela manhã. Como não pôde conduzir todos os passageiros, um grupo tentou impedir a
saída, já com o dia claro, provocando atraso. Enfim, às 5h, a viatura deixou o arrabalde, mas alguns
que não conseguiram embarcar e mais adiante, após uma curva, colocaram sobre os trilhos paus
e pedras, ocasionando nova demora (Jornal Diária de Pernambuco, 1867, p. 1).
1090

Segundo parecer da gerência, tal situação não foi contornada a tempo de evitar prejuízos
e danos, porque as pessoas não atenderam aos apelos dos funcionários da Companhia e a
quantidade de policiais presentes foi insuficiente para conter a turba (Duarte, 2005, p. 139).

Apesar do superior conhecimento tecnológico em relação aos concorrentes no ramo


ferroviário, os ingleses e suas máquinas fascinantes vivenciaram um considerável período de
adaptação às condições locais. Após o estabelecimento da via férrea no Recife, houve a
necessidade de ajustes que perduraram por razoável tempo devido ao elevado custo e às
dificuldades de reposição dos equipamentos. Eram comuns atrasos na entrega de peças de
reposição, propiciando pedidos de prorrogação na entrega das máquinas. A dificuldade de acesso
a materiais de reposição, vindos da Europa, associado ao limitado horário destinado a manutenção
disponível, entre às 10 e 13 horas, dificultavam a continuidade dos serviços (8Relatório anual da
Brazilian Street, 1873, p. 410).

Com investimento dos Ingleses, o Brasil presenciava um desenvolvimento inédito no ramo


ferroviário (Melo, 2000, p. 22). Pernambuco, recebeu parte desses investimentos, quando ingleses
e empreendedores locais apostaram no sucesso do empreendimento. Os ingleses investiram no
exterior como nunca antes e segundo alguns, como nunca depois (Hobsbawn, 1996, p. 299).

Acreditando na possibilidade de êxito financeiro, esses investidores se dispuseram a atuar


em Pernambuco. Os ingleses comportavam na sua estratégia de expansão, as companhias
ferroviárias. Pelo caráter particular das localidades onde seriam estabelecidos os serviços públicos,
as realizações dependeriam de acordos entre a companhia interessada, a presidência e a
Assembleia provincial. As regras para a concessão, garantias e privilégios concedidos pelo
Governo, não eram muito rígidas e qualquer firma poderia concorrer (Zancheti, 1989, p. 227).

Para manter a via rodante em operação, a Concessionária, conhecendo os períodos de


maior e menor fluxo de passageiros, elaborou uma tabela com os horários das viagens, com o
objetivo de estabelecer os horários de manutenção das máquinas a vapor, composições e via
permanente. Sem essa previsão nos horários de operação das locomotivas, seria dificultoso para a
concessionária inglesa Brazilian Street promover as melhorias necessárias para que o sistema
ferroviário permanecesse em pleno funcionamento. Cuidados com a manutenção seriam vitais
para a prevenção de acidentes.

O trem a vapor e seus componentes possuíam notável complexidade técnica, que


associados as adversidades impostas pelas características geográficas da cidade e seus arredores
repletos de áreas alagadas, propiciavam a ocorrência de acidentes. Na rotina da Inspetoria
provincial, constava manter domínio técnico sobre a qualidade dos materiais fixos e rodantes. Uma
1091

postura voltada para as condições locais, através de um pedido de fornecimento de novos vagões
de passageiros em 1871, sendo que, a partir daquela data, eles teriam que ser mais resistentes e
adequados ao clima da região (Regulamento para fiscalização da Estrada de Ferro, p. 202).

Associada as condições climáticas e ao estado das vias férreas que cortavam os terrenos
alagadiços da cidade, as Maxambombas sofriam com a ação de indivíduos que atiravam pedras
nas janelas dos vagões e cortavam os assentos dos carros. Sem falar das empreitadas criminosas,
quando trilhos da via férrea eram arrancados, sujeitando as máquinas a descarrilamentos: um
atentado a vida de passageiros e funcionários dos trens.

Os reparos necessários à continuidade dos serviços ferroviários tinham um alto custo,


repassado aos usuários. Daí o valor das passagens pesar no bolso das camadas mais pobres da
população. São frequentes os pedidos de passes da Câmara à Presidência da Província e a
Ferroviária, que beneficiariam seus funcionários, justificando se tratar de empregados de pequenos
ordenados, como mestre de obra, contínuos e guardas que executam serviços públicos em lugares
remotos, precisando de condução (Zaidan, 1992, p. 276).

A presidência Provincial acompanhava os momentos de insatisfação dos usuários com os


serviços prestados pela Concessionária, todavia não conseguia resultados imediatos, uma vez que,
mesmo tomando as devidas resoluções em conjunto com a gerência da ferrovia, logo outras
circunstâncias surgiam, dificultando a eliminação plena dos conflitos, pois normalmente incidiam
novos casos e reclamações. A direção da estrada de ferro relatou alguns atos de vandalismo e de
má índole efetuados durante a operação comercial, num deles, em junho de 1887, consta que foram
arrancados três bancos dos carros (Relatório do Gerente da Brazilian Street, 1887, p. 449).

Casos como esse e semelhantes eventualmente aconteciam: em fevereiro de 1888, surgiram


denúncias de que mal-educados e inescrupulosos estavam cortando as palhinhas dos assentos;
ainda durante o ano, foi averiguada a quebra de postigos, além de outro sério problema quanto à
integridade física dos usuários e funcionários, nesse período, registraram-se três vítimas de
pedradas, dois ferroviários em serviço e um passageiro (Relatório do Gerente da Brazilian Street,
1888, p. 494).

Passageiros da primeira ferrovia urbana do Brasil conviviam com a superlotação dos


vagões, que em diversas situações não comportavam a procura dos usuários. A sobrecarga acelerava
o desgaste e o sucateamento das locomotivas que apresentavam defeitos, tornando o sistema
susceptível a atrasos e acidentes. Os trens ingleses não apresentavam materiais suficientemente
resistentes à ação do clima da cidade e se depreciavam a olhos vistos. As tábuas e ferragens sofriam
com as vibrações dos equipamentos das estradas de ferro. Alguns vagões começaram a ser
1092

fabricados nas oficinas locais, com madeira brasileira, com maior custo, entretanto com qualidade
superior aos europeus. O que se constataram foram melhores resultados que justificavam a
mudança (Relatório anual da Brazilian Street Railway Company, 1875, p. 14).

As oficinas da Companhia, situadas na Rua Formosa, careciam de mão-de- obra


especializada para atender as demandas do novo sistema de transportes urbanos do Recife. Apesar
de suas carências, chegaram a fabricar os vagões e alguns equipamentos, prestando serviços de
boa qualidade, principalmente quanto a reforma e produção de vagões. Seus funcionários, pouco
são mencionados nos registros, a não ser quanto ao corpo diretivo e alguns membros da operação,
quando se metiam em problemas. Os funcionários da manutenção não eram mencionados nos
registros da Companhia, sequer seus nomes. Considerados de respeitada qualidade artística e boa
técnica profissional, muitos nacionais (Relatório anual da Brazilian Street Railway Company, 1886,
p. 314).

No primeiro relatório anual, o gerente da ferrovia informara que aquelas oficinas seriam
locais de organizada qualidade de trabalho, convenientemente instaladas e aparelhadas. Durante
as décadas de 1860 e 1870, as oficinas da Companhia mantiveram em operação um sistema de
transporte ferroviário que possibilitava o ir e vir das pessoas e mercadorias com maior rapidez,
economia e segurança. Atuavam na fabricação de novas peças, ferragens e marcenaria, mantendo
a rede em operação, produzindo bons resultados. Reduzia os custos dos consertos e o tempo de
estabelecimento dos trens no reparo (Primeiro relatório da gerência, 1870, p. 85).

A Brazilian Street Railway Company, segundo relatos, chegou em 1881 a prestar alguns
serviços a Companhia do Beberibe e a Companhia Ferroviária Trilhos Urbanos de Olinda. A
Concessionária continuava a fabricar e consertar peças e equipamentos importantes e de
qualidade, mantendo a produção de carros e carroças (Relatório anual da Brazilian Street Railway
Company., 1887). Em 1883, chegou a produzir dois carros especiais, com cobertura para o
transporte de mobílias e objetos que necessitassem de cuidados especiais.

Projetadas para operar com todos os passageiros acomodados, as locomotivas a vapor


além de sofrer com a superlotação, se deparava com a imperícia dos condutores, falhas humanas,
ausência de plano de manutenção preventiva, vandalismo e atropelamentos. A quebra das
máquinas ocorria cotidianamente, gerando insatisfação dos usuários. A imprensa local noticiou o
rompimento de um tubo da caldeira da locomotiva no Sítio da Jaqueira e no dia seguinte, o mesmo
ocorreu com um trem que estava na ponte da maxambomba (Jornal Diário de Pernambuco, 1868,
p. 2).
1093

Apesar dos esforços dos responsáveis pela manutenção do sistema ferroviário recifense,
o cotidiano da ferrovia era marcado por sinistros. Certa feita, um trem com cinco carros
superlotados, próximo à estação do Caldereiro partiu um eixo do quarto carro que foi arrastado
por dois minutos, até parar. Os passageiros apenas se assustaram, não houve acidentados.
Desengatou-se o carro danificado e minutos depois seguiu-se viagem (Jornal Diário de
Pernambuco, 1869, p. 2). Em 1º de janeiro de 1872, em Dois Irmãos, partiu-se um eixo de um
vagão de primeira classe e a plataforma de outro de segunda classe, causando o esmagamento dos
dedos de um indivíduo. Aos 12 de fevereiro, ocorreu outra quebra de eixo num carro de segunda
classe, na localidade de Ponte d Uchoa, provocando apenas atraso na viagem (Relatório Anual da
Brazilian Street, 1872, p. 41).

Acidentes e incidentes aconteciam tanto no interior da Maxambomba, quanto na via férrea


e dependências das estações. Em janeiro de 1884, um passageiro foi agredido em uma locomotiva
em movimento por um desordeiro. Na oportunidade, empurrou outro usuário, que estava no
aguardo da chegada do trem, resultando em lesões leves. A ocorrência foi presenciada pelos
guardas, sem que houvesse qualquer interferência (Duarte, 2005, p. 128).

O advento do progresso no transporte público urbano, fez com que a população recifense
passasse a conviver com situações nunca vistas antes, quando, perplexas pela sua presença, se
distraíam e se sujeitavam a acidentes. As locomotivas não escolhiam as vítimas e atingiam homens,
mulheres, crianças e animais. Cenas trágicas que traziam desconforto aos observadores (Duarte,
2005, p. 130)

Acidentes faziam parte do movimento frenético das composições, cabendo à


Concessionária a fiscalização do tráfego e aos funcionários, passageiros e pedestres procurarem,
da melhor forma possível, reduzir as ocorrências dentro de suas possibilidades. Para tal, se fazia
necessária a participação dos atores envolvidos, em uma convivência aceitável em que todos
conquistassem seus objetivos. Mesmo se tomando diversas medidas a fim de evitar os sinistros,
os resultados às vezes pareciam não surtir o efeito esperado.

Com trajetória pré-definida, a Maxambomba não era considerada culpada pela ocorrência
dos acidentes quando as pessoas teimavam em ocupar o caminho destinado à sua passagem. A
desatenção dos pedestres desafiava o movimento das composições ao tentar subir ou descer do
trem em movimento. A velocidade das locomotivas era motivo de preocupação para as autoridades
públicas e parte da população recifense, desafiando o antigo costume das pessoas e animais de
andar no meio das ruas e, que a partir desse momento, iriam compartilhar esses espaços. O risco
1094

de acidentes era constante. O artigo 4º do primeiro contrato delimitava a velocidade em 16 km/h


(Registro de Contratos, p. 1).

A imprudência de algumas pessoas, por vezes, resultava em acidentes facilmente evitados.


Apesar de várias precauções, sucediam acidentes envolvendo passageiros, viandantes e
empregados. Em maio de 1871, mencionou-se um acontecimento envolvendo dois ferroviários
que estavam em serviço: na ocasião, um sofreu ferimento no pé e o outro na perna, sem maiores
consequências à integridade física. Entretanto as repercussões tomaram dimensões incalculáveis,
chegando ao conhecimento do presidente da Província, que exigiu perícia e intervenção policial
(Duarte, 2005, p. 131).

Além dos atropelamentos ocorridos nas vias, outros acidentes eram vivenciados: colisões
entre locomotivas e veículos e os descarrilamentos das máquinas. Vidas humanas eram perdidas.
A cidade, espaço onde se aglomeravam pessoas com um sem número de pensamentos, mostrava-
se envolvida com o desalento das consequências da velocidade urbana. Pagava um preço alto para
ter um moderno sistema de transporte.

Vários transeuntes se viram envoltos em situações que fugiam a sua rotina cotidiana. Com
a chegada da locomotiva a vapor, as estradas destinadas ao acesso dos arrabaldes mais
movimentados tiveram de ser compartilhadas: pedestres, carruagens, carroças e animais que
dividiram esses espaços, passariam a ter a companhia do trem urbano, exigindo a melhor divisão
desses espaços e a preferência devido a sua natureza técnica: sua velocidade desenvolvida,
dimensões e peso, que dificultavam a frenagem mais célere. Essas questões fizeram com que os
pedestres tivessem mais atenção ao transitarem nessas localidades a fim de evitar acidentes. Em
maio de 1871, uma composição ao sair de Apipucos em direção a Caxangá, não conseguiu frear a
tempo e mesmo acionando o apito várias vezes, esmagou um trabalhador de nome Antônio
Ferreira da Silva que, em estado de embriaguez, estava sentado sobre os carris (Relatório
Engenheiro chefe da Brazilian Street, 1871, p. 114).

Pelo ocorrido, o maquinista Luiz Rozas foi recolhido à prisão, sendo necessária a
intervenção do gerente da Companhia que apesar de pedir a apuração do caso, solicitou a sua
soltura, alegando ser indispensável ao serviço. Foram inquiridas algumas testemunhas que
consideraram o sinistro casual, não por culpa do condutor do trem. Prontificaram-se a prestar
declaração em seu favor o foguista e os funcionários de lastro Pedro do Carmo, Francisco
Bernardo, Benedito Ferreira e Manoel Antônio, e um morado da localidade, Candido M. Vitorino
(Relatório Engenheiro chefe da Brazilian Street, 1871, p. 116). De acordo com os depoimentos
prestados, entendeu-se que o maquinista Luiz Rozas era inocente. No mesmo ano, um trem,
1095

descendo do povoado do Caldeireiro às 9h da manhã, terminou por atropelar um soldado que


circulava sobre a linha; mesmo tendo alertado com vários apitos, o maquinista não pôde evitar a
ocorrência (Relatório Engenheiro Fiscal, 1871, p. 120).

O tráfego mostrava surpresas e eventos estranhos: o corpo de um indivíduo encontrado


sobre a ponte do rio Camaragibe, não chegando a conhecimento público qual locomotiva havia
realizado o esmagamento. Não se encontrou registro do número pleno de sinistros incluindo
negros, todavia houve alguns casos que se destacaram. Foi relatado em 1873 um acidente
envolvendo um homem de cor preta. No dia 10 do corrente mês, o trem que partiu de Caxangá
às 8h da manhã, ao aproximar-se de Apipucos, atropelou matando um negro que se achava sentado
no trilho, chamava-se João Rebolo, escravo de D. Maria Lúcia, moradora da fazenda Dois Irmãos.
Além de ser surdo, tinha o hábito de embriagar-se (Relatório Engenheiro fiscal da Brazilian Street,
1873, p. 447).

Ações impensadas de pedestres possibilitavam a ocorrência de sinistros: em 05 de


fevereiro de 1881: dois esmagamentos de adultos, que se encontravam deitados na linha,
embriagados; em 06 de janeiro de 1886: quatro mortes por atropelamento: dois suicídios, pois as
vítimas se atiraram sobre os trilhos; em 13 de fevereiro de 1872: um menor negro de nome Sabino,
de propriedade de Francisco Jacintho Pereira da Mota, ao descer do trem em movimento, em
frente ao Campo das Princesas, foi arrastado para baixo do trem (Relatório Engenheiro fiscal da
Brazilian Street, 1872, p. 263).

Aos 15 de maio de 1871, às 9h e 30min da noite, no aterro do açude de Apipucos, após


proceder o engate de composições, alguns operários que estavam desatentos, caíram, sendo
atendidos pelo médico da Ferroviária, Dr. King, sendo liberados no dia seguinte. Após
investigação da Concessionária, foi apurado que o descarrilamento da Maxambomba ocorreu pela
imprudência dos operários e à negligência do maquinista. A Concessionária demitiu os três
empregados (Relatório Engenheiro fiscal da Brazilian Street, 1871, p. 117).

Em 28 de outubro de 1872, um maquinista foi queimado por água da caldeira quando


extinguia fogo por conta de um descarrilamento; aos 22 de abril de 1873, um empregado sofreu
grave acidente na oficina ao ser arrastado por uma correia de transmissão; no dia 16 de janeiro de
1986, ocorreu o desabamento de parte das paredes da estação na rua do Sol, matando um
empregado. No mês de fevereiro de 1888, dois operários da Brazilian Street sofreram acidentes
graves devido à negligência, enquanto trabalhavam na via férrea; a seguir, outros três sofreram
contusões leves, devido as suas imprudências (Relatório do Engenheiro Fiscal, vol. 13, p. 295, 414,
430 e vol. 27, p. 314 e 493).
1096

Noutro caso, às 8h e 30min da noite, ao se aproximar da estação Caminho Novo, o


maquinista, Delgado, desceu do trem ainda em movimento e caiu, ficando o pé esquerdo sobre
os trilhos, decepando um dedo e esmagado outro. O gerente solicitou à administração provincial
autorização para mudar o lugar da parada, não só por causa desse sinistro, mas pela proximidade
de uma curva, havendo constante perigo (Relatório do Engenheiro Fiscal, 1871, p. 149).

Aconteciam incidentes contra empregados e o maquinário da Companhia Ferroviária:


Uma locomotiva vinda da estação Caxangá, chegando ao Entroncamento, recebeu grande número
de usuários oriundos do Arraial. Ao se aproximar das Oficinas, o condutor, Luiz Ribeiro da Silva,
fazendo as devidas cobranças de passagens, foi atacado por alguns passageiros. Na oportunidade
foi socorrido por viajantes e pela força policial, entretanto, um dos indivíduos que atuou em defesa
da vítima, terminou preso. Foram quatro os agressores, todos identificados, sendo três deles
parentes, mas nenhum deles foi punido (Relatório do Chefe do trem, 1885, p. 66). No carnaval de
1888, alguns incidentes foram presenciados nos dias de festividades, resultando em consideráveis
danos ao patrimônio da Brazilian Street: prejuízo de 1:000.000 (um conto de réis), em virtude de
estragos causados em nove carros, que foram posteriormente vistoriados pela Inspetoria Pública
(Relatório do Gerente da Brazilian Street, 1888, p. 503).

No cotidiano da ferrovia urbana, os acidentes com animais foram relatados com certa
naturalidade, inclusive no período matutino. No dia 09 de janeiro de 1868, foi divulgado o
esmagamento de um cavalo que se encontrava vagando nas imediações da estação de Apipucos,
que causou o descarrilamento, sem danos aos passageiros pois interrompeu o tráfego por pouco
tempo (Jornal Diário de Pernambuco, 1868, p. 1).

Em 1871, foi relatado que por volta de 1h e 10min da tarde, a composição que descia da
Caxangá atingiu um cavalo montado por um negro, resultando na morte deste e ferindo levemente
o seu condutor; outro fato com o mesmo tipo de animal e tendo um preto como guia, aconteceu
em Apipucos, quando assustado com o apito da máquina, o animal se colocou diante dela,
provocando a sua morte e ferimentos leves no cavaleiro de nome Pedro, escravo de José Hilário
Paes Barreto (Relatório Engenheiro Fiscal, 1871, p. 175).

Uma colisão entre duas composições de passageiros ocorreu na tarde do mês de outubro
de 1872: se deslocando em sentidos opostos se chocaram na curva da entrada do Monteiro. Na
colisão não houve morte, apenas susto aos usuários. Os prejuízos foram materiais, ficaram
avariados uma máquina e um carro, ocorrendo o descarrilamento de dois vagões. Após perícia
técnica realizada, a gerência resolveu demitir o condutor do trem expresso, por suspeita de
negligência (Relatório Engenheiro Fiscal, 1872, p. 294).
1097

Em dezembro de 1880, aconteceu uma situação de demora provocada por


descarrilamento, quando o trem se deslocava em Dois Irmãos. Divulgou-se o seguinte: ... apenas
o foguista se machucou, deslocou a mão esquerda. Foram colocados outros trilhos sobre a linha,
em forma de agulha, foi proposital (Jornal Diário de Pernambuco, 1880, p. 2).

Um chefe de estação acusado de ter intencionalmente matado uma criança. O trem Recife
a Caxangá ao deixar a estação do Arco as 2 horas e 30 minutos da tarde anteontem, conduzindo
em suas carroças alguns meninos o chefe dessa estação deu uma bofetada em Samuel Pereira
Bulcão, que caiu sobre a linha fraturando a espinha dorsal e faleceu ontem, as 11 horas da manhã.
O delinqüente esta preso (Jornal Diário de Pernambuco, 1875, p. 2).

Envolvendo a Companhia do Beberibe, o gerente da ferrovia H. Stonehewer Bird relatou


um fato à presidência Provincial e pediu providências e ressarcimento dos danos causados por esta.
O ocorrido se deu na noite do dia 12 de janeiro de 1888, quando o trem de espetáculo que conduzia
pessoas após as apresentações no Teatro Santa Isabel, tendo partido do Campo das Princesas e já
estando saindo da estação do Monteiro, foi atingido por grande quantidade e água expelida por
um dos canos da rede de abastecimento, ficando encharcados vários passageiros. As mulheres
alegaram ter os vestidos danificados (Relatório do Gerente da Brazilian Street, 1888, p. 485).

Em algumas oportunidades, confusões ocorriam nos vagões por diversos motivos,


envolvendo passageiros, empregados e policiais. Casos fúteis com a presença de malfeitores e
valentões, que teimavam em romper a ordem das viagens. Uma ocorrência envolveu passageiros
que ocupavam um vagão de segunda classe do trem que voltava da Caxangá, às 8h e 35min da
noite. Não se soube o motivo que desencadeou o desentendimento no local, apenas que resultou
em punhaladas, não ficando claro se foram simples, graves ou fatais e quais as medidas tomadas
pelos guardas do trem (Relatório do Engenheiro Fiscal, 1873, p. 393).

Noutra oportunidade, um praça da cavalaria subiu na estação da Jaqueira, negou-se a pagar


a passagem e findou por desferir um golpe de punhal atingindo o condutor na mão direita; diversas
pessoas interferiram e conseguiram desarmá-lo. Ao chegar à estação do Entroncamento, foi
entregue ao subdelegado da freguesia da Graça (Relatório Gerente da Brazilian Street, 1882, p.
97).

Em agosto de 1879, o chefe de trem Oliveira, emitiu protestos ao gerente da ferrovia,


quando prendeu, por motivo de algazarra, o preto Manoel, levando-o ao chefe de polícia.
Acrescentou que os funcionários eram constantemente intimidados por passageiros armados com
facas e cacetes, na intenção de não pagarem pela viagem (Relatório do Chefe de trem, 1879, p.
389).
1098

Foi comunicado que alguns desordeiros por parte do preso o esperavam na Soledade a fim
de tirarem desforra. Informou que era costume do acusado descer do trem em movimento e
espalhar terror no interior dos vagões, ameaçando com faca de ponta e chicote os empregados,
despertando medo nos ferroviários que, temendo pelas vidas e sem força policial pública, não
reagiam. Um acidente na saída da estação das Oficinas, despertou estranheza, devido à condução
do processo: O subdelegado tentou prender o maquinista, percebeu-se que faltou clareza no
procedimento policial ou a vítima gozava de destacado prestígio e por isso se exigiu uma postura
mais ofensiva contra o infrator. O caso se deu próximo ao portão da Recife Drainage, por volta
das 7h e 23min da noite, quando um homem de cor parda tentou subir no trem em movimento e
caiu, sendo esmagado (Duarte, 2005, p. 142).

O acidentado ainda foi levado à parada, onde um médico da empresa, Dr. Ramos, o
examinou e concluiu que os ferimentos eram mortais. O profissional de saúde compareceu e
alegou que o empregado não teve culpa do ocorrido. Quando o comboio chegou à estação das
Oficinas, guiado pelo mesmo ferroviário, às 8h e 47min da noite, a força policial invadiu a viatura
com os guardas cívicos de sabre em punho, prontos para o espancá- lo e prendê-lo, o que não se
concretizou pela ação de populares e de empregados da Ferroviária. Estranhou-se a postura, tendo
em vista que o funcionário não teve culpa alguma, e prontamente várias testemunhas se
dispuseram a depor em sua defesa (Relatório do Engenheiro Fiscal da Brazilian Street, 1881, p.
25).

A direção da concessionária se mostrou indignada, emitindo parecer quanto ao acontecido,


ressaltando a falta de policiamento nas composições e estações. Afirmou que não comparecera
um praça sequer, causando prejuízos à Companhia. Cobrou uma posição da chefia de polícia,
considerando que cumpria regularmente com a distribuição de passes gratuitos destinados àquela
autoridade, de conformidade com um acordo entre eles. Outro fato atestava a imprudência e
ousadia de certo passageiro, de nome José da Ipatinga, acusado de desengatar um carro na estação
Zumbi. No relatório do engenheiro fiscal Paulo José de Oliveira, constava não ser a primeira vez
que ocorria aquela situação na referida localidade, e creditava-se a responsabilidade aos
vendedores de leite do lugar, de que o réu fazia parte, ainda foi argumentado que eles agiam daquela
forma na intenção de não pagar pela viagem (Relatório do Engenheiro Fiscal da Brazilian Street,
1879, p. 581)

Havia um acordo entre a Brazilian Street e os proprietários dos sítios por onde passava a
maxambomba, para não ser permitido o trânsito de pedestres naquelas terras. As medidas
tomadas: seguranças que constantemente usavam de cassetadas, oficio em que muitos não se
1099

submetiam; portão com cadeado que eram constantemente arrombados. Pregos nos dormentes:
não se tratava de armadilha mas tentativa de inibir a travessia de viandantes. No dia 9 de janeiro
de 1869, Miguel de tal, que outrora foi vigia do mesmo sitio, embarcou no trem que partiu do
Recife as 7h da noite, o mesmo só comprou passagem até a Jaqueira e não querendo pagar a
diferença, saltou do trem em movimento próximo ao referido bueiro, precipitou-se sobre os
pregos saindo com um braço e um pé feridos (Jornal Diário de Pernambuco, 1869, p. 1).

Os acidentes e incidentes ocorridos nos trens, estações e via férrea, eram aceitos por
alguns conhecedores do ramo ferroviário como satisfatórios, com números razoáveis comparados
com os de outras ferrovias do país e do exterior. Geradores de dificuldades, ocasionavam
transtornos, prejuízos e requeriam acompanhamento tanto pela Brazilian Street quanto pela
fiscalização provincial (Relatório do Engenheiro Fiscal da Brazilian Street, 1874, 470).

Com as melhorias implementadas no setor de transporte coletivo, os pedestres passaram


a compartilhar o espaço público urbano com as locomotivas a vapor, carroças e animais, que
compunham o cenário citadino. Essa convivência acumulava um considerável número de
acidentes, alguns deles fatais. A velocidade desenvolvida pela Maxambomba, de até 16km/h nas
vias locais, foi motivo de preocupação.

A ação de vândalos e malfeitores deixavam as autoridades públicas em alerta em


determinadas situações. Não era incomum os atrasos nas viagens e descarrilamento dos trens
quando pedras e paus eram dispostos ao longo da via férrea. Invasões noturnas a estações
ocorriam cotidianamente, quando andarilhos e mendigos buscavam abrigo e proteção das
intempéries climáticas. A lamentar o estado de sujeira deixado, quando dejetos e excrementos
eram vistos aos montes ao amanhecer das paragens.

Os momentos de lazer e divertimento nem sempre eram marcados pela pacificidade das
pessoas. As diferentes manifestações de contestação a ordem pública se mostravam presentes.
Protestos, provocações, brigas e agressões à faca e arma de fogo eram frequentes, principalmente
nos momentos de entretenimento, apesar da repressão policial. O Governo de Pernambuco,
visando cercear as atitudes desses encrenqueiros e baderneiros, limitou os horários de
encerramento desses eventos culturais e de lazer para que houvesse um maior controle no ir e vir
das pessoas em horários em que o policiamento não estivesse efetivamente presente nas ruas,
coibindo as ações nefastas de malfeitores e anarquistas.

Nas amostragens acima, verificamos que nem sempre os acidentes eram detalhados,
prevalecendo o entendimento da Companhia Ferroviária. Os motivos que ocasionavam os
sinistros eram os mais diversos: a imprudência de alguns pedestres, que se aventuravam ao
1100

caminhar no centro das vias públicas, dividindo o espaço com as locomotivas; a embriaguez de
viandantes que se arriscavam nas vias férreas e da imprudência dos condutores dos trens a vapor,
que em certas oportunidades, ultrapassavam a velocidade recomendada nas áreas mais habitadas,
de 6km/h, surpreendendo animais e pedestres.

A superlotação cotidiana das máquinas acelerava o desgaste e o sucateamento das


locomotivas, que transportavam pessoas penduradas nos balaústres, propiciando a ocorrência de
acidentes e a revolta dos usuários pelos atrasos nas viagens e quebras frequentes. O valor cobrado
pelas passagens, por vezes, motivava a insatisfação de alguns usuários, que tentavam utilizar o
novo modal de transporte público sem o devido pagamento. Todas essas circunstâncias
incomodavam bastante a Brazilian Street, pois remetiam ao descrédito de seu serviço, acarretando
prejuízos aos componentes ferroviários; usuários que deixavam de viajar, além da pressão exercida
pela Inspetoria pública.

Acidentes faziam parte do movimento frenético das composições, cabendo à


Concessionária a fiscalização do tráfego e aos funcionários, passageiros e pedestres procurarem,
da melhor forma possível, reduzir a ocorrência dentro de suas possibilidades. Para tal, se fazia
necessária a participação dos atores envolvidos, em uma convivência aceitável em que todos
conquistassem seus objetivos. Mesmo se tomando diversas medidas a fim de evitar os sinistros,
os resultados às vezes pareciam não surtir o efeito esperado.

Foi constatada dificuldade em examinar os equipamentos da ferrovia que chegavam da


Inglaterra, sede dos grandes especialistas no ramo ferroviário. As inspeções em locomotivas e
vagões eram realizadas de forma superficial, pois o quadro de profissionais ligados ao governo
nem sempre se mostrava com a devida habilidade e competência para realizar as inspeções, apesar
de obedecer aos critérios impostos no termo de contrato.

Apesar dos percalços, os caminhos-de-ferro viriam influir profundamente nos hábitos,


costumes e fatos de toda ordem, acelerando o transporte de mercadorias, encurtando o tempo
das viagens... (Pinto, 1949, p. 27). A chegada da Maxambomba trouxe benefícios que a urbe não
abriria mão. Daí a euforia das pessoas nas ruas, que desejavam se deslocar com rapidez e
segurança, das áreas centrais da cidade aos arrabaldes, subúrbios até então desconhecidos. O
interesse de estabelecer uma ferrovia urbana atendeu à ânsia de famílias ilustres que por vezes não
se sentiam à vontade nos deslocamentos para o veraneio no campo, as festas religiosas. Uma parcela
dos recifenses se sentia no direito de exigir um meio de transporte de passageiros à altura da
posição socioeconômica da urbe.
1101

Fontes Manuscritas

Fundo de Obras Públicas, pasta B18/1a. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano.
Série Estradas de Ferro, vol. 13, 17 e 27. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano.

Jornal
Diário de Pernambuco (1867-1880).

Referências bibliográficas

Duarte, José Lins. Recife no tempo da Maxambomba (1867-1889). Mestrado. UFPE. 2005.

Hobsbawn, Eric. A Era do Capital. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

Melo, Josemir Camilo de. Modernização e Mudanças: o Trem Inglês nos canaviais do Nordeste.
Doutorado. História, UFPE. Recife, 2000.

Pinto, Estevão. História de uma estrada de ferro no Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949.

Sette, Mário. Maxambombas e Maracatus. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1981.

Zaidan, Noêmia Maria. O Recife nos trilhos de burro (1870-1914). Mestrado. UFPE, Recife, 1992.

Zancheti, Silvio Mendes. O Estado e a cidade do Recife (1836-1889). Doutorado. Faculdade de


Arquitetura e Urbanismo de São Paulo. USP, 1989.
1102

Cultura política autoritária e permanência das desigualdades na


sociedade brasileira

Léa Maria Carrer Iamashita*

Quando divulga-se que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, pensamos logo
na injustiça quanto à repartição da riqueza produzida no país. Porém, a expressão desigualdade
social abrange o conjunto das relações existentes na sociedade, além da desigualdade de renda.
Incluem as desigualdades racial, de gênero, de oportunidades, geográficas e outras.

Também é preciso destacar que estas formas de desigualdades se articulam e se reafirmam.


Por exemplo, a desigualdade no acesso à educação, na oportunidade de emprego e na exclusão por
racismo, contam para que o cidadão permaneça nos níveis inferiores da escala social.

Conhecedores de que esta situação se configurou como processo e tem raízes na nossa
formação histórica, queremos neste artigo propor a reflexão sobre o peso da cultura na manutenção
dessas desigualdades. Mais especificamente, desejamos abordar aspectos da cultura política
brasileira que reforçam a desigualdade, que contribuem para "naturalizar" as hierarquias sociais
como características inerentes à sociedade brasileira, ou ainda, que colaboram para a acomodação
de quadro tão injusto e indigno.

Entendendo por "culturas políticas" o conjunto de representações que abarcam a


linguagem, a memória, o imaginário, os mitos, os símbolos, a ideologia, os discursos, a arte, enfim,
os códigos culturais de leitura do mundo, de interpretação do passado e do presente, que expressam
identidade coletiva e direcionam a projetos de futuro, propomos refletir sobre a distribuição de
poder na sociedade brasileira. Essa distribuição é desigual porque alguns grupos conseguem
submeter a seus interesses e a seu ordenamento a grande maioria da população, constituindo-se em
uma cultura política eivada de mando, por isso autoritária.

Por outro lado, nossa perspectiva de trabalho pretende ir além da desnaturalização da


desigualdade, mas também pensar na construção de experiências de igualdade, atentamo-nos
sempre para o fato de que, se o âmbito da cultura nos puxa para o estudo das permanências, o
cerne da ciência histórica é a mudança social no transcorrer do tempo.

* Doutora em História Social, Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília.


1103

Ao historicizarmos a formação social do Brasil, para compreender nossa experiência


política de predomínio autoritário, estamos refletindo e propondo mudanças no sentido da justiça
social.

Consenso acerca do autoritarismo no âmbito da cultura

Como tratado por Denise Rollemberg e Samanta Viz Quadrat, os estudos sobre
experiências autoritárias já não se centram mais exclusivamente na perspectiva das instituições, dos
ditadores ou das práticas coercitivas e manipulatórias (Rollemberg e Quadrat, 2010, p. 9-27).

Os estudos dos anos 1970-80 sobre os fascismos, a França sob ocupação durante a II
Guerra Mundial ou a ditadura militar brasileira que durou 21 anos, não se explicariam sem que
houvesse algum grau de consentimento ou de consenso acerca da legitimidade de regimes
autoritários nestas sociedades.

As autoras destacam que não se pode dividir a sociedade entre os apoiadores e os resistentes
a esses regimes, de forma binária (Idem). Tratar-se-ia neste caso de simplificação, que não se
coaduna mais com os avanços teóricos das ciências humanas.

Assim, entender os fenômenos e as experiências autoritários como produto social, que


emergem e conseguem se manter em determinadas sociedades por tempo considerável, implica
pesquisar por valores comuns dentre os integrantes destas sociedades: perscrutar identidades,
compromissos, compartilhamento de formas de pensar e de ver o mundo; práticas sociais que
acabam por legitimar, no todo ou em partes, ideias políticas autoritárias; instalação de governos
autoritários; ou, ainda, práticas autoritárias vigentes dentro de regimes declaradamente
democráticos.

Para empreender estas abordagens do campo do político muito tem contribuído para os
estudos historiográficos o conceito de "culturas políticas". Como esclarece Rodrigo Patto Sá Motta,
o retorno da História Política se deu basicamente em duas vertentes. A primeira, com a renovação
dos objetos tradicionais da política, como organizações estatais, instituições e movimentos
políticos, porém, buscando explicações de práticas coletivas e comportamentos sociais, fugindo à
perspectiva tradicional centrada nas elites e no Estado (Motta, 1996, p. 92).

A outra vertente é voltada para o estudo dos mecanismos de funcionamento do poder, as


intenções e os interesses dos agentes políticos e as ações empreendidas para a conquista e a
conservação do poder. Neste caso, a ênfase proposta é trabalhar a política não no nível da
1104

consciência e da ação informada por projetos e interesses claros e racionais, mas no nível do
inconsciente, das representações, do comportamento e dos valores (Idem, p. 93).

Do conceito de "cultura", o termo cultura política traz fundamentalmente as noções de


representações (valores, crenças, normas, linguagens, símbolos, percepções, comportamentos,
tradições) e de partilha, ou seja, é a partilha de representações por um determinado grupo humano
que lhe confere identidade.

Do termo "política", a cultura política traz o seu recorte sobre o qual se debruça, as questões
acerca do poder, buscando apreender os sentidos que os indivíduos/grupos imprimiram às suas
ações e relações travadas na disputa de poder em um determinado contexto histórico.

A intersecção da abordagem cultura e política busca a dimensão do poder além da


institucional, dos partidos e das eleições, considerando também as atitudes culturais, econômicas,
religiosas, todas percebidas como expressões de posicionamento político. Buscamos não só as
ideias e representações, mas também os espaços de cotidiano ao lugar em que os seres humanos
vão construindo sensos de identidade e de posicionamento no mundo.

Assim, se as representações existem em função da necessidade humana de conferir ao


mundo uma ordem, de compreender a realidade ou de conferir-lhe um sentido, afirmar que a
sociedade brasileira partilha de uma cultura política autoritária significa dizer que ela partilha com
considerável consenso de uma visão hierárquica de mundo. Predomina entre nós a visão de que
dentre a diferença inerente à complexidade social, admite-se que os interesses de alguns prevaleçam
sobre os de outros. A cultura autoritária não está só no nível das autoridades do Estado, está na
visão de mundo dos brasileiros, predominando sobre a legitimidade da cultura de justiça social.

Se a noção basilar de cidadania é o da igualdade de direitos e deveres entre todos os


indivíduos perante um determinado Estado, podemos dizer que a cidadania brasileira é incompleta
ou mutilada porque tacitamente se aceita a superioridade de uns sobre os outros, configurando-se
um quadro de grande injustiça social.

Significa dizer também que entre os cidadãos brasileiros as diferenças são percebidas de
forma hierarquizada, ou seja, ainda que legalmente seja estabelecida a igualdade entre os cidadãos
brasileiros, na vivência social cotidiana, há cidadãos considerados desiguais; existem os que se
percebem superiores, que se acham no direito de submeter os demais, identificando estes como
inferiores.

A permanência histórica desta situação na nação brasileira evidencia existir no âmbito de


nossa cultura política, em nossa visão acerca da repartição de poder na sociedade, consenso
1105

considerável acerca da desigualdade, como se fosse "natural". Afirmar que algo seja natural,
significa dizer que é de natureza biológica, característica que não se pode mudar, tal como afirmar
que a morte é da natureza humana. Ou seja, a percepção de que a desigualdade social é "natural"
da sociedade brasileira, que está entranhada no caráter dos brasileiros, no seu jeito de pensar e de
viver, significa que essa desigualdade (que foi construída historicamente) tem um peso imutável,
como a natureza biológica, ao qual não se possa fugir, como o envelhecimento e a morte.

Essa "naturalização" das desigualdades sociais no Brasil mascara a perversidade existente


nas relações autoritárias com que se construiu a história brasileira, e contribui para diminuir a crença
na possibilidade de mudança e de transformação social.

Desnaturalizar essa situação/percepção da sociedade brasileira significa compreender que


nossa realidade injusta foi construída por relações históricas de desigualdade, e que, portanto, pode
ser mudada.

Conteúdos e práticas autoritárias conformadas ao longo da história brasileira

Para Mário Stoppino, os termos Autoritário e Autoritarismo, devem ser empregados em


três contextos: na estrutura dos sistemas políticos, nas ideologias políticas e nas disposições
psicológicas a respeito do poder (Stoppino, 2000, p. 94).

Os sistemas políticos chamados autoritários privilegiam a autoridade governamental e


colocam em posição secundária as instituições representativas. Nesse contexto, a oposição e a
autonomia dos subsistemas políticos são reduzidos e as instituições destinadas a representar a
autoridade de baixo para cima são esvaziadas ou eliminadas (Idem).

Nesta perspectiva, podemos destacar na história republicana brasileira os oito anos da


Ditadura Varguista (1937-45) com a supressão da representação eleitoral e os vinte e um anos da
Ditadura Militar (1964 a 85), que alternaram períodos de representação eleitoral limitada e de
supressão da representação.

Em ambas os casos ocorreram experiências autoritárias, com despolitização da sociedade,


esvaziamento da consciência e da vivência da democracia, pela repressão à participação ou
contestação política, pela censura, ou ainda pelo investimento na propaganda das ideias autoritárias
de forma a legitimar socialmente os regimes com esses perfis e ainda na educação pensada para
ensinar a disciplina e a postura obediente, conciliadora e não contestatória.

Ressaltamos ainda a Primeira República Brasileira, quando vivemos sob o regime de uma
declarada democracia liberal, mas com restrições à cidadania, seja pelas eleições fraudulentas, pela
1106

restrição do voto às mulheres e aos analfabetos, seja perseguição e repressão aos movimentos
trabalhistas.

As ideologias autoritárias são aquelas que negam de uma maneira mais ou menos decisiva
a igualdade dos homens e colocam em destaque o princípio hierárquico, além de exaltarem regimes
autoritários ou virtudes da personalidade autoritária (Idem).

Nesta perspectiva, podemos ressaltar o racismo científico, ideologia influente ao final do


século XIX e início do XX, que alardeava ser científico e de base genética a superioridade das etnias
brancas europeia; ou as ideologias disseminadas pelos intelectuais autoritários da Primeira
República, que criticavam o liberalismo desenvolvido pelas oligarquias.

Voltando à definição de Stoppino, em sentido psicológico, a personalidade autoritária quer


denotar, de uma parte, a disposição à obediência preocupada com os superiores, "incluindo por
vezes o obséquio e a adulação para com todos aqueles que detém a força e o poder; de outra parte,
a disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos aqueles
que não tem poder e autoridade" (Idem).

Este aspecto da definição é o que mais nos interessa para o que nos propusemos a analisar
neste artigo ̶ tratar do consenso social acerca do autoritarismo ̶ uma percepção de mundo que
nega a igualdade entre os seres humanos.

Na obra "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, as raízes se referem aos


princípios formadores da sociedade brasileira e são responsáveis, em grande parte, pelo
autoritarismo predominante em nossa cultura (Holanda, 1995). De forma sintética, abordaremos
aqui alguns desses princípios que, ao orientarem os vínculos sociais de seguidas gerações, levaram
à interiorização da relação desequilibrada de poder como padrão social, corroborando para o efeito
de "naturalização" da desigualdade e para a conformação de uma cultura política autoritária, que
permeia a sociedade brasileira.

A escravidão é a raiz que nos deixou as marcas mais profundas de autoritarismo e o efeito
da desagregação social. A utilização de mão de obra escravizada, integrante do modelo de produção
"plantation" ̶ latifúndio, monocultura e trabalho escravo ̶ , tiveram impacto muito além da esfera
econômica. A sociedade em geral adotou a escravidão para a execução das mais variadas atividades,
tanto no meio rural, como no urbano. Isso significou a vivência de quase quatrocentos anos do
mais alto grau de desequilíbrio nas relações sociais, pois, nestas, um lado detinha o poder máximo
de submissão do outro. O proprietário do escravo concentrava o poder de explorá-lo, violentá-lo,
eliminá-lo e até desumanizá-lo, ao tratá-lo como mercadoria.
1107

Observamos que essa relação autoritária estava sancionada pelo sistema político
escravocrata; estava presente nas ideologias que justificavam o sistema, como por exemplo afirmar
que os escravizados eram inferiores, ou que os indígenas não tivessem alma; e com a vivência do
mando no cotidiano do Brasil Colonial e Imperial.

Outra raiz formadora de nossa sociedade é o patriarcalismo, que podemos definir como o
exercício da autoridade do pai ou do patriarca, que concentrava grande poder como chefe de uma
família extensa e que no Brasil se desenvolveu a partir da estrutura latifundiária da colônia. Esta
família abarcava a esposa, os filhos, os parentes, os afilhados, os serviçais e até os agregados que
viviam submetidos aos seus domínios.

Como ressaltou Sérgio Buarque, "a família colonial fornecia a ideia mais normal de poder,
da obediência e da coesão entre os homens. O resultado foi o predomínio na vida social de
sentimentos próprios a essa comunidade doméstica" (Idem, p. 82). Importante destacar que esse
etos patriarcal não vigorou apenas na época colonial. Prolongou-se durante a República.

Quando esse chefe patriarcal exercia seu poder no âmbito de sua família e de suas
propriedades ele está exercendo seu poder na esfera privada. À medida que sua influência se
ampliava, por exemplo, durante a Primeira República, ao indicar alguém para ocupar um cargo
público, o cargo de delegado, o de agente do correio, o da professora da escola local, seu poder
está invadindo a esfera pública. A isso denominamos "patrimonialismo", a atuação na esfera pública
segundo os interesses privados, ou, como define Lilia Moritz Schwarcz (2019, p. 82), "práticas que
implicam o uso do Estado para a resolução de questões privadas".

A mesma autora refere-se ao poder patriarcal como mandonismo, o poder do mandão local
que tem como base o latifúndio (Idem). Entender o papel do latifúndio na formação da sociedade
brasileira é essencial, pois o fato de um proprietário concentrar sob seu poder imensas extensões
de terra, implica que a maior parte da população estará excluída do acesso à terra, desprovida das
condições de sobrevivência. Enquanto a ela restava como alternativa viver às expensas dos
latifundiários, a estes, possuir terra não significava apenas ser mais abastado economicamente, mas
também ter poder sobre a vida dos que viviam sob suas ordens. Assim, aos integrantes dessa família
extensa, não havia espaço para o exercício da plena autonomia.

Nesse tipo de família patriarcal desenvolveu-se relações de cunho pessoal, baseadas em


sentimentos de confiança, desconfiança, bajulação, rancores, proteção e vingança. Essas relações
pessoalistas marcaram profundamente nossa sociedade, conformando vínculos clientelistas,
aqueles que se mantém entre um poderoso e seus clientes, integrantes da sua rede de relações. Os
1108

clientes de um homem de poder são aqueles que a ele prestam ou dele recebem favores, com o
qual criam vínculos de auxílio, dependência, submissão e fidelidade.

As relações do tipo pessoalista também invadiram a esfera pública, deixando-nos como


herança a tendência a desobedecer os princípios legais da imparcialidade e impessoalidade.

Destacamos que o "paternalismo" também é uma relação social autoritária, pois expressa o
vínculo dos pais com os filhos, que são protegidos, disciplinados e também castigados, conforme
a intenção do pai ao educar. Assim, o paternalismo refere-se "à atitude benévola como no caso de
uma atividade assistencial em favor do povo, mas que também o exclui da participação política"
(Matteucci, p. 909), tal como o pai exclui o filho considerado imaturo da tomada de decisões.

Considerações finais

Quanto ao conceito de autoritarismo pudemos compreender que ele é marcado pela


imposição da obediência no âmbito de uma relação social, expressando a ideia de desequilíbrio de
poder entre os membros da relação, negando portanto o princípio basilar da igualdade sobre o qual
repousa o conceito de cidadania.

Vimos que nossa formação social se deu orientada por princípios autoritários, que
operaram como organizadores e ordenadores da vida política e social na história brasileira. A
vivência prolongada desses valores, corroborou para que o autoritarismo se impregnasse em nossa
cultura política.

Destacamos no texto a experiência colonial brasileira porque a família nela organizada


prevaleceu como base e centro de toda a organização social e porque nela residiu o núcleo do que
resultaria na formação básica da elite brasileira.

No Império e na República, as elites dirigentes brasileiras investiram avidamente em


projetos modernizadores/civilizatórios que aproximassem o país dos centros desenvolvidos.
Porém, em uma nação cuja cultura política seria impregnada pelo legado da escravidão, a
modernização se deu num quadro de reconfiguração das desigualdades. Mesmo após a Abolição,
as hierarquias sociais foram também definidas pelas representações de raça e gênero, configurando-
se em várias estratégias de exclusão da vida pública.

Em uma nação culturalmente marcada pela classificação de cidadãos de primeira e de


segunda categorias, a sociedade de classe se configurou ainda mais perversamente, pois às
1109

hierarquias referentes ao poder de consumo da sociedade de mercado, permanece entrelaçada a


discriminação de raça e de gênero.

Da luta pela igualdade de direitos dos egressos da escravidão, aos movimentos sociais do
mundo do trabalho, às utopias revolucionárias, as conquistas populares continuam a se confrontar
com a resistência das elites à expansão da democracia, seja nos momentos de autoritarismo
declarado, como nas ditaduras de 1937 e de 1964, seja naqueles mais velados, como de
modernização autoritária que, mesmo na democracia, não se abre para a participação popular, para
a educação política e cultural que forme para a autonomia dos sujeitos.

O cultura política autoritária se evidencia quando, por exemplo, ouvimos a defesa de que,
para melhorar o governo, para combater a corrupção e a insegurança pública é necessário eleger
um candidato com pulso forte, que imponha sobre tudo e sobre todos, uma personalidade com
autoridade com força para mudar a realidade de forma rápida, nem que se mate todos os bandidos
de uma vez ou que se troque todo o Congresso para limpar a corrupção.

Essas concepções são fruto de ignorância, e a ignorância é muito perigosa. Perigosa para
quem? Ela é perigosa para a sociedade toda, mas principalmente para a população mais carente,
mais vulnerável socialmente, que é justamente a menos educada politicamente.

Referências

Almeida, Sílvio. O que é Racismo Estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

Guimarães, Antonio Sergio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2009.

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 1995, 26ª ed.

Lahuerta, Milton; AGGIO, Alberto (orgs.). Pensar o Século XX: problemas políticos e história
nacional na América Latina. São Paulo: UNESP, 2003.

Motta, Rodrigo Patto Sá. A história política e o conceito de cultura política. In: Anais do X
Encontro Regional de História da Anpuh-MG. LPH: Revista de História, nº. 6, Ouro Preto: UFOP,
1996.

Reis, Daniel Aarão. As armadilhas da memória e a reconstrução democrática. In: Vários Autores.
Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil de hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Rollemberg, Denise; Quadrat, Samantha Viz (orgs.). Apresentação. In: A construção social dos Regimes
Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, v.1.
1110

Rollemberg, Denise; Quadrat, Samantha Viz (orgs.). A construção social dos regimes autoritários:
legitimidade, consenso e consentimento no século XX – Europa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.

Schwarcz, Lilian. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Schwartzman, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Campus/UNESP, 2010.

Stoppino, Mário. Autoritarismo. In: Bobbio, Norberto et ali. Dicionário de Política. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2000.
1111

Marguerite Porete e o Movimento das Beguinas


Uma abordagem pela Teoria da Política Sexual de Prudence Allen

Leandro Oliveira

A pesquisa desenvolvida no doutorado propõe a realização de um estudo sobre a mística


Marguerite Porete, as beguinas455 e o Movimento do Livre Espírito456, tendo o arcabouço teórico
proposto pela filósofa estadunidense Prudence Allen.

As pesquisas históricas têm comprovado uma participação cada vez mais influente das
mulheres na Idade Média, principalmente no espaço religioso. A obra Le mirouer des âmes simples et
anienties et qui seulement demeurent em voluloir et desir d’amour de Marguerite Porete aponta não apenas
para uma participação na construção da espiritualidade medieval, mas faz da mística um importante
movimento político que, sobretudo fora da igreja institucional, fez com que esta se sentisse
ameaçada quanto à manutenção de sua ortodoxia teológica.

Nesse sentido, propõe-se um exercício de entendimento da Idade Média como período de


intensa participação das mulheres na vida espiritual e material dos Séculos XIII e XIV, manifestação
esta que recuou a partir da Idade Moderna.

O instrumental metodológico partirá da Teoria da Diferença Sexual e do conceito de


política sexual da filósofa Prudence Allen (1985), aprofundado em estudos históricos pela
medievalista espanhola Maria-Milagros Rivera Garretas (2005). Maria-Milagros Rivera aponta que
a teoria de Prudence Allen parte do entendimento de que mulheres e homens vivenciam em suas
experiências diárias basicamente dois tipos de relações: uma consigo mesmo e outra com relação
ao sexo oposto. A relação dos sexos é a forma da existência humana, a reflexão individual que cada
mulher e homem faz de sua vivência, enquanto ser homem ou mulher. A relação entre os sexos
está na forma como um sexo percebe o outro e na maneira como se relacionam, são as relações
entabuladas entre uma mulher e um homem e vice-versa.

455 Marguerite Porete foi julgada herege reincidente e condenada à morte pela fogueira no ano de 1310. Assim como a
ordem das beguinas e o Movimento do Livre Espírito foram declarados heréticos e condenados pelo Concílio de
Viena, por intermédio da Bula ad nostrum, de 6 de maio de 1312, pelo papa Clemente V, sofrendo posterior condenação,
em 1317, pelo papa João XXII (1244-1419).
456 O Movimento do Livre Espírito, também conhecido como Os Irmãos do Livre Espírito, foi um movimento leigo

inspirado nas ideias difundidas por João Escoto Erígena (810 – 877), Joaquim de Fiori (1135-1202) e Amaury de Bène,
que floresceu na Europa entre os séculos XIII e XIV.
1112

Prudence Allen entendeu a política sexual como melhor forma de convivência entre
mulheres e homens em sociedade, por intermédio da percepção e respeito da diferença sexual.
Maria-Milagros Rivera (2017) assim define política sexual:

Por política sexual entendo todos os tipos de relações que afetam o mundo
inteiro: as que envolvem e apoiam as mulheres ou os homens com o outro sexo,
e aqueles que cada sexo sustenta consigo mesmo, isto é, as interpretações e
avaliações que continuamente fazemos mulheres e homens o fato de nascer uma
mulher ou um homem, uma vez que a sexualidade humana pede para ser
continuamente interpretada porque é o primeiro dado histórico que o corpo
oferece e sofre. A política sexual permeia e matiza todas as relações humanas,
tanto em casa como na rua, tanto no jogo como na escola, tanto no trabalho
como na saúde, esportes, mídia, arte ou política profissional.

Assim, a relação dos sexos e entre os sexos constituem o fundamento da política sexual. A
política sexual será o fundamento de toda a política, ou seja, preconiza que nas relações dos sexos
e entre os sexos encontra-se a maneira de viver em sociedade, com costumes e instituições à qual
pertencem.

A autora observa que há lenta e gradual mudança ao longo dos séculos XII e XIII quanto
à forma dos sexos se relacionarem e como homens e mulheres se relacionam consigo, ou seja, com
o fato de terem nascido homens ou mulheres. Sua análise foi feita a partir do resgate da leitura
sistemática do filósofo Aristóteles nesses séculos na Europa, em busca de entender o espírito
misógino que orientou as relações sociais lentamente surgidas na Europa após o século XIV.

Para Prudence Allen, o Direito e a filosofia da Antiguidade Clássica, ambos com tradição
fortemente patriarcal e pouca participação das mulheres além da esfera privada e doméstica,
ajudaram a alterar o quadro de equilíbrio encontrado nas relações entre os sexos até meados do
século XII.

Assim, a filósofa americana traça sua teoria, basicamente, em três momentos distintos. A
política sexual viveu até o século XII o que ela denominou de complementaridade dos sexos.
Pela complementaridade dos sexos entende-se que mulheres e homens têm como principal
característica a constatação de que ambos são substancialmente diferentes e iguais. Em outras
palavras, homens e mulheres são diferentes quanto ao sexo e iguais em valor, sendo a mulher um
inteiro e o homem também um inteiro. Esta maneira de ser mulher e homem prevaleceu na Europa
durante até o século XII e boa parte do XIII e foi efeito e causa de muita liberdade na vida das
mulheres. Como exemplo dessa liberdade, os séculos XII e XIII foram de expansão para os
movimentos sociais e espirituais como as beguinas, a doutrina amalriciana, a cultura trovadoresca
e o Movimento do Livre Espírito, dentre outros.
1113

O momento entendido pela filósofa como da polaridade entre os sexos vai ganhando
corpo lentamente durante o século XIII na Europa ocidental, com o resgate da leitura do filósofo
Aristóteles nas nascentes universidades. A universidade foi um importante setor conservador da
sociedade que se fortaleceu nos séculos XIII e XIV, em especial a Universidade de Paris.
Responsável à época pelo avanço e construção do conhecimento ocidental, em 1225 esta
universidade estimulou a leitura das obras de Aristóteles defendendo a relação entre os sexos
vivenciadas na Grécia no século IV A.C.

Esta leitura descontextualizada das obras de Aristóteles no âmbito das universidades


fundamentou uma abordagem teológica e filosófica que serviu de amparo à misoginia. Afirmando
a polaridade entre os sexos, ou seja, homens e mulheres eram substancialmente diferentes, com
superioridade dos homens sobre as mulheres, o pensamento gerado foi de encontro ao que era
vivenciado até então entre homens e mulheres, introduzindo o que Prudence Allen chamou de
“revolução aristotélica”457, com efeitos significativos no fechamento dos espaços femininos, tendo
por uma das consequências a Querelle des Femmes458.

O último momento entendido pela filósofa é o da unidade entre os sexos, ou seja, a


reação contra a misoginia apresenta-se por intermédio da igualdade entre homens e mulheres,
deixando de lado a diferença sexual existente entre ambos. Para a unidade entre os sexos, portanto,
não cabe diferença alguma entre homens e mulheres, quer seja, jurídica, política ou sexual. Passou-
se ao regime de apenas um, ou seja, a igualdade biológica entre homens e mulheres gera o ser
humano, o que leva ao surgimento do pretenso neutro universal, mas que deixa o homem como o
único universal. Relega-se o sistema binário que reconhecia homens e mulheres como dois
universos infinitos e distintos na complementaridade, um mundo dominado pelo regime de dois,
para limitar o sexo feminino. Se na polaridade havia limitação na dimensão infinita da mulher, o
momento da unidade deixa o homem como único universal.

A teoria da diferença sexual preconizada por Prudence Allen permite mudança na produção
historiográfica, mediante novas análises metodológicas e teóricas, resultando em grandes avanços
para os estudos sobre as temáticas relacionadas às mulheres.

457 Prudence Allen elenca o ano de 1250 como data de corte para a sua análise ao considerar que a Revolução
Aristotélica se vê vitoriosa no campo do ensino filosófico, após o resgate do ensino das obras de Aristóteles na
Universidade de Paris. Detalha a escritora o seguinte: “The selection of 1250 as a finishing date for this book on the concept of
woman was made because Aristotle’s writings became required reading at the University of Paris in 1255. Therefore, it signals a moment
of institutional victory for the Aristotelian Revolution”. (Allen, Prudence. The Concept of Woman. The Aristotelian Revolution
(750 BC-AD 1250). Montreal-Londres: Eden Press, 1985, pp 87).
458 A Querelle des Femmes foi uma disputa em defesa do acesso das mulheres à formação intelectual e à participação social

mais ativa frente ao pensamento misógino. A primeira a participar ativamente deste debate foi a escritora Christine de
Pizan, que em 1405 escreveu os livros A Cidade das Damas e O Livro das Três Virtudes em que afasta os estereótipos
negativos e pejorativos em desfavor das mulheres para apresenta-las como boas e morais.
1114

Todavia, surgiu como um aparato distinto dos estudos contemporâneos dos movimentos
feministas. A teoria da diferença sexual utilizada na pesquisa possibilita vislumbrar que sempre
existiu, em meio a ordem patriarcal, mulheres que buscaram um sentido do mundo no feminino e
que em suas reflexões e experiências pessoais falaram do si como mulheres.

Fontes Primárias

Barton, Richard. The chronicler William of Nangis describes the trial and execution of Marguerite Porete,
1310. Disponível em http://www.uncg.edu/~rebarton/ margporete.htm, último acesso em
outubro de 2017. Esta fonte foi traduzida de Henry Charles Lea, juntamente com o julgamento
de Marguerite Porete consultada pelo pesquisados em A History of the Inquisition in the Middle Age, 3
vols. (NY: Macmillan, 1922), 2:575-578; e do Corpus documentorum inquisitionis haereticae pravitatis
Neerlandicae, ed. Paul Fredericq, Hoogeschool van Ghent, Werken van den pratischen leergang
van vaderlandsche geschiedenis, 5 (Ghent: J. Vuylsteke, 1896), 156-160.

Verdeyen, Paul. Le procès de l'Inquisition contre Marguerite Porete et Guiard de Cressonessart


(1309-10). Revue d'histoire ecclésiastique, 81, 1986, p. 47-94.

Referências

Allen, Prudence. The Concept of Woman. The Aristotelian Revolution (750 BC-AD 1250). Montreal-
Londres: Eden Press, 1985.

Brochado, Cláudia Costa. A Querelle de Femmes. Textos de História, vol. 9, nº 1/2, 2001.
Disponível em < file:///C:/Users/leandro.moliveira/Downloads/27815-
Texto%20do%20artigo-58342-1-10-20191023.pdf>. Acesso em fevereiro de 2021.

Porete, Marguerite. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no
desejo do amor. Tradução e notas Sílvia Schwartz. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.

Rivera Garretas, Maria-Milagros (dir.). La diferencia sexual em la história. Valência: PUV, 2005.

_________ . Signos de libertad femenina. (En diálogo con la historia y la política masculinas).
Disponível em < http://www.ub.edu/duoda/bvid/text.php?doc=Duoda:text:2012.02.0001>.
Acesso em fevereiro de 2021.
1115

Representações indígenas nos livros didáticos propostos pelo


PNLD 2018

Leidiane Lopes de Souza*

Resumo: O ensaio propõe reflexão sobre as representações indígenas difundidas nos livros
didáticos de história, apresentados no PNL de 2018. Busca-se perceber se em tais manuais há a
preocupação em atribuir espaço e protagonismo aos povos indígenas nas narrativas de construção
da sociedade brasileira, ou se nelas prevalecem visões eurocêntricas que contribuem para a
reprodução de discursos colonizadores. Pretende-se refletir sobre as condições de produção e de
funcionamento dessas representações, historicizar a ordem em que elas são dispostas nos livros
didáticos. Apoiando-se na noção de análise discursiva de Michel Foucault e nos conceitos de
representação de Roger Chartier e Stuart Holl, este ensaio propõe possibilidades de abordagens
atentas com o compromisso de reparação histórica e cultural com essas populações.

Palavras-chave: Representação, indígenas, livro didático.

Introdução

O livro didático continua sendo um importante instrumento de difusão de informação em


sala de aula. Apesar de algumas orientações educacionais proporem flexibilidade no uso desse
manual, associando-o a outros tipos de fontes, em muitas escolas, ele tem sido o único apoio no
processo de ensino aprendizagem. Tais livros funcionam como dispositivos de saber e de poder
que fazem circular conceitos, imagens e enunciados que atendem a interesses específicos (Foucault,
2003). No entendimento de Foucault, o dispositivo insere-se numa rede ampla, descentralizada,
atua em diferentes espaços e posições, está ligado a instituições, a estratégias de controle. Obedece
a um jogo, a uma ordem discursiva.

Assim, ao pensarmos o livro didático de História como um dispositivo, percebemos que


não há imparcialidade em sua produção, pois assim como em qualquer outra área do conhecimento,
a História não é inocente, não é neutra. História é disputa, é interpretação, é análise crítica e
compreensiva da humanidade em uma dimensão temporal. A História nos serve como um prisma
de entendimento de mundo, e cada grupo, sociedade, etnia enxerga o mundo de acordo com sua
perspectiva cultural. Dessa maneira, é necessário cuidado na escolha do livro didático, pois ele irá
auxiliar na aprendizagem dos estudantes, podendo atuar na construção do conhecimento, bem

*Aluna especial do Programa de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade de Brasília e Docente


da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
1116

como na orientação de atitudes e comportamentos. Docentes críticos e atentos para as relações de


poder que fomentam tais dispositivos podem exercer pressão sobre abordagens naturalizadas que
reforçam e/ou reproduzem estereótipos e preconceitos.

Dito isso, podemos iniciar problematizando como alguns grupos são representados no livro
didático. Aqui, o olhar será voltado para as representações indígenas difundidas em três livros
apresentados pelo PNLD de 2018. Dos três exemplares, um foi escolhido como material didático
do Ensino Médio para o triênio 2018, 2019, 2020 em algumas escolas públicas do Distrito
Federal.459

Entendemos representação como uma prática cultural que atua na produção de sentidos e
na construção de identidades (HALL, 2016). Representar é apresentar uma forma de ler o mundo.
Ou nas palavras de Hall,

Representação é a produção do sentido pela linguagem. (...) nós concedemos


sentido às coisas pela maneira como as representamos - as palavras que usamos para
nos referir a elas, as histórias que narramos a seu respeito, as imagens que delas
criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras como as classificamos e
conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos (Hall, 2016, p. 21).

“Por que é mais fácil você identificar um peruano ou até um japonês andando nas nossas
ruas e não aquele que é índio, um nativo daqui?” (Krenak, 2015). Conhecido nacionalmente ao
pronunciar-se em defesa dos povos indígenas, no Congresso Nacional, na sessão da Assembleia
Constituinte de 1987, Krenak é militante da causa indígena desde a década de 1970, mas será que
o seu nome e suas ações aparecem como referências indígenas nos livros didáticos? Será que o que
sabemos sobre povos indígenas é suficiente para diferenciá-los de outros nativos americanos,
inclusive dentro do próprio território nacional? Será que a criação da Lei 11.645/2008 que
estabelece diretrizes para a inclusão do estudo das Histórias e culturas indígenas no currículo da
Educação Básica possibilitou um conhecimento crítico e mais consistente sobre esses povos?
Questionamos se as representações dos povos originários presentes nos livros didáticos citados
atendem a perspectivas indígenas ou continuam a atender visões europeias?

Cabe-nos pontuar que não se trata apenas de apontar críticas negativas ou expor exemplares
e/ou autores especificamente, nem sair em defesa de uma versão em detrimento de outra. Pois
como nos lembra Chartier, os domínios da história cultural devem nos levar a caminhos contrários
ao das polarizações históricas, pois esse tipo de análise limita o trabalho do pesquisador e não

459Os manuais citados e analisados nesta pesquisa fazem parte conjunto de exemplares enviados para a unidade
educacional CEM 01 de Planaltina-DF. Dos três, História: Sociedade & Cidadania, História em Debate e História Global,
o primeiro foi escolhido pelo corpo docente.
1117

atribui importância aos desvios e apropriações que grupos ou indivíduos possam desenvolver
(Chartier, 1994).

A proposta é refletir sobre as formas em que populações que foram historicamente


marginalizadas, silenciadas em nossa sociedade aparecem nos manuais didáticos. Se essas aparições
são contextualizadas e atualizadas ou se restringem apenas a um período histórico, o da
colonização. Seria esse o motivo da dificuldade de reconhecer um indígena brasileiro em nossa
sociedade como foi apontado por Krenak? Adiantamos que esse parece ser um caminho possível
de reflexão.

Devemos reconhecer que as novas perspectivas adotadas no ensino de História, ocorridas


no final do século XX, com a abertura para diferentes temáticas e fontes históricas, houve uma
preocupação de revisão de determinadas abordagens. Entretanto, cabe ressaltar os problemas e
dificuldades que ainda permanecem atuais nesses materiais didáticos. Certamente a Lei 11.645/08
é relevante para reelaborar currículos e livros didáticos. Mas será que apesar das propostas de
mudança e do esforço em abordar determinados assuntos nos currículos e livros, ou em outros
tipos de fontes, a forma como esses são apresentados atendem às reais necessidades dos nativos?
Será que correspondem às suas pluralidades, atendendo ao compromisso de reparação histórica e
cultural com esses povos?

Compreendemos que o processo de elaboração do material didático a ser distribuído nas


escolas públicas, bem como a escolha do exemplar por parte do corpo docente segue normas e
interesses específicos. Muitas vezes, os manuais que são enviados para a escolha, não atendem às
expectativas dos professores e, quando atendem, nem sempre resulta no modelo adotado pela
Secretaria de Educação, pois nesse processo, também estão em jogo os interesses mercadológicos
das editoras e posições ideológicas de determinados grupos e instituições.

Dessa maneira, a pesquisa não tem como intenção, propor o não uso do livro didático, pelo
contrário, sugere-se a sua utilização com um olhar atento a essas problematizações, com propostas
de abordagens que proporcionem um olhar diferenciado sobre o outro. Apresentar versões que
atendam às necessidades e interesses de grupos historicamente silenciados. Dar voz, atribuir lugar
de fala as essas consideradas “minorias” para que elas possam falar de acordo com suas próprias
experiências.
1118

Diálogos possíveis: teorias e abordagens metodológicas.

Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, e depois uma
descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo
é a última. Os índios descobriram que apesar de eles serem simbolicamente os
donos do Brasil não têm lugar nenhum para viver nesse país. Terão que fazer
esse lugar existir dia a dia (Krenak, 2015).

Atribuir condição de sujeito a determinados indivíduos ou grupos é reconhecer a


pertinência deles para se pensar a conjuntura na qual estão inseridos. Refletir sobre as relações de
poder que os ligam a outros grupos e/ou instituições possibilita que tais subjetividades sejam
reveladas, pois como nos lembrou Foucault, “o que está em jogo, senão o desejo e o poder?”
(Foucault, 1999). Segundo o filósofo, as intenções de verdades [e de poder] são construídas nos
processos discursivos, portanto os sentidos deslocam-se quando se mudam as perspectivas. Dito
de outra forma,

(...) a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos


aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa
vontade de verdade e recoloca-la em questão contra a verdade (...).

(...) a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a
verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la (Foucault, 1999).

A fala de Krenak se aproxima das análises teóricas de Foucault ao pontuar as intenções de


verdade apresentadas pela narrativa do colonizador que atendem a estratégias de manutenção de
privilégios, excluindo e/ou silenciando o outro. Reconhecendo-se como parte desse outro e
entendendo as relações de poder envolvidas na sustentação dessas interpretações, Krenak acena
para as resistências como forma de preservação das culturas e das identidades dos povos indígenas,
resistir para existir.

Voltando às nossas preocupações com as representações indígenas nos livros didáticos, vale
o questionamento, será que essas abordagens atendem às inquietações apresentadas por Krenak?
Ressaltamos que a nossa história não começa com a colonização. E se começássemos narrando a
chegada dos portugueses pela perspectiva dos indígenas? Como se deu o encontro com povos que
ocuparam seus territórios, que impuseram outra cultura, e, aos poucos, foram os expulsando de
suas terras? E se ao invés de privilegiar interpretações de cronistas europeus sobre os nativos,
atribuíssemos espaço, déssemos lugar de fala aos seus descendentes que ainda lutam para manterem
vivas as memorias e culturas de seus povos? E se começássemos pelas conquistas de direitos
alcançadas pelos movimentos indígenas no final do século XX, a partir dos anos de 1970? Pelo
ingresso de pessoas indígenas nas universidades, na política, em movimentos de defesa dos direitos
1119

ambientais, na mídia e em outros espaços sociais? Talvez assim houvesse um conhecimento menos
superficial e generalizado das populações indígenas brasileiras, como nos provocou Krenak?

Ao falarmos de resistências, não estamos nos referindo especificamente a enfretamentos


diretos e violentos entre movimentos indígenas e forças governamentais e sociais, embora não
negamos que essa foi e, infelizmente, ainda tem sido uma realidade praticada em nosso país.460
Entendemos, assim como Foucault, que os mecanismos de funcionamento do poder em nossa
sociedade são heterogêneos, se constituem em diferentes lugares (Foucault, 2008). Assim, as lutas
pela preservação de suas tradições culturais, por séculos de história, apresentam-se como
resistências às imposições e tentativas de exclusões. A atuação dos movimentos indígenas é uma
forma de resistência arquitetada dentro do próprio sistema. Entendemos que por meio da educação
esse poder pode ser ampliado, desde que empreguemos cuidados aos tipos de abordagens realizadas
em sala de aula. Temos que ouvi-los em suas histórias e reivindicações, deixar que sejam
protagonistas de suas narrativas.

Os intelectuais da cultura ocidental escrevem livros, fazem filmes, dão


conferências, dão aulas nas universidades. Um intelectual, na tradição indígena,
não tem tantas responsabilidades institucionais, assim tão diversas, mas ele tem
uma responsabilidade permanente que é estar no meio do seu povo, narrando a
sua história, com seu grupo, suas famílias, os clãs, o sentido permanente dessa
herança cultural (Krenak, 1992, p. 202).

Aqui, mais uma vez, Krenak nos inspira com observações sobre o poder da educação na
manutenção de suas histórias e culturas. Acreditamos que essas preocupações também se fazem
presentes entre outros povos indígenas. Portanto, ao utilizamos fontes que abordem sobre essas
populações, temos que levar em consideração se nesses materiais eles são representados da maneira
como se veem ou se identificam.

Em um de seus trabalhos, Shohat e Stam abordam sobre as representações estereotipadas


das consideradas “minorias” no cinema. Tais autores chamam atenção para as condições de
produção dessas representações, pois a maneira como são inseridos nos filmes não é inocente,
obedece a uma ordem discursiva, como nos apontam em uma passagem do texto:

Não basta dizer que arte implica construção. Temos que perguntar: construção
para quem? E em que conjunção com quais ideologias e discursos? Dessa
perspectiva, a arte é uma representação não tanto em um sentido mimético, mas

460Cabe-nos ressaltar aqui as recorrentes práticas de violência, simbólica e física, contra as populações indígenas.
Mudança nas gestões que atendiam especificamente aos interesses e às necessidades indígenas, tanto na promoção de
suas culturas, quanto nas demarcações de terras ocupadas tradicionalmente. Enfrentamentos violentos e assassinatos
de militantes que lutam pela causa indígena contra grupos sociais (madeireiros, garimpeiros, posseiros, entre outros)
reforçam a despreocupação das políticas atuais ao direito de existência dessas etnias.
1120

político, uma delegação de vozes. (...) Que histórias são contadas? Por quem?
Como elas são produzidas? Disseminadas? Recebidas? Quais são os mecanismos
estruturais da indústria cinematográfica e dos meios de comunicação? (Shohat;
Stam, 2006, p. 265 e 270).

Ao direcionarmos o olhar às representações indígenas produzidas e difundidas nos livros


didáticos, esperamos poder identificar os mecanismos de funcionamento e a quais interesses
atendem. Aqui, mais uma vez, cabe-nos ressaltar que nossas análises se apoiam na noção de
abordagem discursiva proposta por Foucault, que orienta para as descontinuidades, para o que
escapa das generalizações, dos estereótipos.

A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-


se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de
determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais
justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar
ligado, de mostrar que outras formas de enunciação excluem (Foucault, 2008, p.
31).

Assim, apoiados em referenciais teóricos que possibilitam outras maneiras de olhar e


analisar objetos históricos, tomaremos como percurso os caminhos da História Cultural que, com
sua ampla possibilidade de abordagem, nos guiará pelas trilhas incertas e cambiantes pelas quais
perpassam os discursos historiográficos. Acreditamos na possibilidade de diálogo entre o ensino
das Histórias e culturas indígenas com outras visões não indígenas abordadas nos manuais
didáticos, bem como na necessidade de produção de conhecimento acadêmico desses povos sobre
suas próprias histórias e culturas, para que possam reforçar tais diálogos, ao colorarem suas
narrativas em um campo de maior visibilidade.461

Análise da proposta

No período colonial, as representações indígenas foram elaboradas pela visão do


colonizador, ou seja, tomando como base o imaginário europeu. Não por acaso, as imagens
referentes a esse período apresentam os indígenas de forma superficial, generalizada. Será que no
período atual, após tantas conquistas realizadas pelos movimentos indígenas e a implantação da Lei
11.645/08, as imagens que circulam nesses dispositivos didáticos foram revisadas ou, em sua
grande maioria, continuam as mesmas?

461Ao abordar o conceito de dispositivo, entendo-o como um instrumental analítico que percorre algumas dimensões,
Deleuze nos fala sobre as curvas de visibilidade e de enunciação, linhas que se fazem ver e se fazem falar. “Cada
dispositivo tem seu regime de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propaga, distribuindo o visível e o
invisível, fazendo com que nasça ou desapareça o objeto que sem ela não existe” (Deleuze, 1996, p. 1).
1121

Fonte: Boulos, 2016, p. 53.

A imagem acima, presente em dois dos três manuais analisados, retrata a colonização pela
perspectiva do europeu. Podemos perceber essa visão pelo posicionamento em que os grupos são
dispostos. O olhar do observador parte de fora para dentro, ou seja, acompanha a chegada dos
europeus, pois o oceano aparece em primeiro plano, enquanto o território ocupado pelos nativos
é colocado mais afastado, em segundo plano.

Fonte: Boulos, 2016, p. 70.

A imagem aborda a Batalha dos Guararapes travada contra os holandeses, em Pernambuco,


no século XVII. A gravura retrata a participação de diferentes povos no conflito, nela, portugueses,
negros e indígenas aparecem lutando juntos pelos mesmos ideais, expulsar os holandeses do
território. Embora haja, na legenda, a preocupação de esclarecer as intenções de divulgar uma
equivocada ideia de convivência pacífica entre colonizadores e colonizados, essa informação
1122

restringe-se apenas a esse espaço, o mesmo não acontece no corpo do texto em que a batalha é
abordada.

Na imagem, “André Vidal de Negreiros, filho de um senhor de engenho nascido na


Paraíba” (Boulos, 2016, p. 70), aparece ao centro, montado em um cavalo e em posição de
vantagem sobre os adversários, já os participantes representantes dos negros, Henrique Dias, e dos
indígenas, Felipe Camarão, estão posicionados na retaguarda, em um ângulo que confere pouca
visibilidade aos dois. Misturado aos outros combatentes, passariam despercebidos, não fossem as
identificações pelos respectivos nomes, o que parece reforçar a intenção de demonstrar passividade
entre indígenas e europeus, como foi apontado na legenda.

Cabe-nos destacar abordagens consideradas positivas no livro História: Sociedade & Cidadania
(Boulos, 2016). O manual não aborda os povos indígenas apenas em um capítulo específico, sua
presença também é marcada em outros momentos da obra. Embora não inicie com os indígenas
brasileiros, aponta para a diversidade entre essas populações, traz dados recentes em tabelas,
censos, o que demonstra a preocupação de ressaltar as lutas e resistências dessas populações em
nossa sociedade, não se restringindo apenas a representações que remontem ao período colonial.

Outro ponto considerado negativo na obra de Boulos é que muitas abordagens


consideradas importantes, aparecem apenas nos espaços direcionados às dicas ao professor, no
rodapé ou cabeçalho das páginas, ou em textos complementares, com subtítulos “Para refletir” ou
“Para saber mais”, o que traz uma ideia de que tais leituras são dispensadas em uma primeira
abordagem.462 Essa estratégia também foi adotada nos outros dois exemplares analisados.

No livro História Global (Cotrim, 2017), notamos que grande parte das representações
indígenas são ambientadas no período colonial, e sempre por uma perspectiva não indígena, como
podemos observar na imagem que aborda o filme A Missão (1986), pois além de não especificar a
diferença entre as etnias, como é mostrado no filme, a narrativa cinematográfica confere
protagonismo ao jesuíta europeu.

462Em História: sociedade & cidadania (2016), há a imagem de uma criança pataxó da aldeia Velha, Caraíva (BA), 2014, e
ao lado um texto abordando a resistência de indígenas às ocupações dos bandeirantes, sobretudo na região das minas.
Na narrativa aparecem informações relevantes para dar visibilidade à diversidade cultural desses povos, como o
primeiro nome dado às terras de Minas Gerais, Minas dos Cataguases, uma referência à etnia indígena procedente do
tronco Jê (Boulos, 2016, p. 100). Entendemos que informações como essa poderia ser abordada em campos de maior
destaque.
1123

Fonte: Boulos, 2016, p, 75.

Em outra passagem do livro, o texto referente às “Guerras Justas” (Cotrim, 2017, p. 17),
traz uma narrativa resumida do encontro entre europeus e indígenas, e embora cite no último
parágrafo algumas etnias como a dos caetés, tupinambás, carijós, tabajaras e potiguares, há uma
lacuna sobre a diversidade desses povos no referido texto e em outras passagens do livro.

Fonte: Cotrim, 2017, p. 22.


1124

Fonte: Cotrim, 2017, p. 31.

Mais uma vez, os indígenas são representados de forma generalizada, na primeira imagem
estão observando a chegada dos europeus, à espreita, pois a presença de povos não indígenas,
dispostos em um ângulo privilegiado sugere a ideia de estranhamento e passividade por parte dos
nativos. Na segunda, a ilustração é organizada de forma semelhante, com os indígenas em segundo
plano e sacerdotes europeus ao centro, com destaque para o símbolo da fé cristã, a cruz fixada em
uma espécie de altar. Ao analisar a função social dos estereótipos, Shohat e Stam nos chamam
atenção para a problemática que essas representações podem trazer.

A exigência de “imagens positivas” corresponde, portanto, a uma lógica profunda


que apenas os mais racistas podem se recusar a compreender. Diante de um
cinema dominante que vive de heróis e heroínas, as comunidades “minoritárias”
tem todo o direito de exigir representações justas (Shohat; Stam, 2006, p. 289).

Ao mesmo tempo, a abordagem baseada nos estudos de estereótipos tem que


enfrentar uma série de armadilhas teóricas e políticas. A preocupação exclusiva
com imagens, positivas ou negativas, pode levar a um certo tipo de essencialismo,
em que críticos menos sutis reduzem uma variedade complexa de retratos a uma
série limitada de fórmulas reificadas. Esse tipo de crítica força diversos
personagens a se encaixarem em categorias preestabelecidas, levando a um tipo
de simplificação reducionista que reproduz justamente o essencialismo racial que
deveria ser combatido (Shohat; Stam, 2006, p. 289).

Diante do tipo de abordagem proposta por essa pesquisa, e levando em consideração que
as interpretações de Shohat e Stam são feitas tomando como base outro tipo de narrativa, a
cinematográfica, reconhecemos que a tentativa de encaixar o autor de História Global em uma
categoria menos ou mais sutil de críticos seria, no mínimo, leviana. Porém, cabe-nos enfatizar que,
quase todas as imagens analisadas na presente obra, com exceção de uma, fazem referência ao
1125

período colonial, abordando apenas características generalizadas, dificultando a percepção de


diversidade e de conquistas alcançadas por movimentos indígenas contemporâneos. Apenas na
página 76, uma das últimas páginas a abordar a temática, aparece informações sobre essas
populações na atualidade, com um texto e com uma representação de uma criança indígena da etnia
caiapó, em Goiás. E embora apareça com o subtítulo “Em destaque” a narrativa é apresentada
como leitura complementar, pois aparece enquadrada na disposição de leituras para reflexão, em
uma página com formatações diferentes das demais.

Em História Global há um silenciamento sobre outros povos indígenas americanos. Na parte


referente à colonização da América do Norte, as informações referentes a essas etnias restringem-
se a um paragrafo apenas. Quanto aos indígenas pertencentes aos locais dominados pela Espanha,
não há registros no livro. Não nos parece difícil entender porque esse exemplar está entre os que
não foram escolhidos como material didático.

No livro História em Debate (Camargo; Mocellin, 2016), as representações estereotipadas


com sentidos de subserviência dos indígenas em relação aos colonizadores também aparecem.

Fonte: Cotrim, 2017, 43.

Na imagem, os europeus são colocados ao centro, em posição de altivez, enquanto os


ameríndios, posicionados em volta, aparentam expressões de espanto, encantamento, obediência.
Na mesma página, há duas narrativas sugerindo complementaridade sobre a temática, “A chegada
dos europeus à América”. A primeira, logo acima da imagem, traz um trecho da obra “A conquista
do Paraíso”, texto em que Todorov aborda as possíveis percepções de Colombo sobre os indígenas
e, em todas elas, aponta Todorov, há a prevalência do etnocentrismo. A segunda narrativa, disposta
abaixo da imagem é do cronista Gonzalo Fernandes de Oliviedo descrevendo a visão do espanhol
1126

sobre a conquista. Devemos lembrar que as crônicas são tipos de narrativas que eram construídas
para atender aos interesses e visões dos colonizadores, não por acaso, em sua grande maioria, as
imagens dos povos aqui encontrados denotavam inferioridade, perigo, preguiça, “selvageria”. Ou
seja, representações que colocavam em funcionamento o dispositivo de civilidade,463 mecanismo
utilizado para construir sujeitos racializados, para determinar os limites de aceitação e de exclusão
do que seria aceitável aos padrões europeus.

Em outra passagem, em um trecho com o subtítulo “Organizando as ideias”, ao final da


página que aborda sobre a conquista da América do Norte, aparece, no corpo do texto de autoria
do historiador Leandro Karnal, uma citação de Jonas Michaelius, de 1628. Reconhecemos a
relevância do texto de Karnal para apresentar as opiniões dos colonos em relação aos indígenas,
porém acreditamos que o espaço destinado a seu texto não oportuniza reflexões mais aprofundadas
sobre o assunto.

Ao folhearmos História em Debate (2016), percebemos algumas lacunas sobre a temática,


povos indígenas, pois na grande maioria, entre imagens e narrativas organizadas na obra, não há
referências atualizadas sobre esses povos. Gráficos, mapas e outros tipos de representações são
ambientados no período colonial e, quase sempre, de maneira estereotipada, apagando e/ou
silenciando as possibilidades de subjetivação dos sujeitos indígenas. Conquistas de direitos e
abordagens desses povos no período atual aparecem como sugestão de atividade ou em leituras
complementares.

No capítulo 10, referente às lutas pela conquista direitos humanas, visualizamos uma
abordagem positiva, na parte em que é proposta uma discussão mais ampla sobre direitos humanos
conquistados pelos povos e grupos historicamente excluídos. Com o subtítulo “Novos sujeitos,
novas abordagens”, o texto menciona diferentes movimentos sociais em suas lutas pelo
reconhecimento de seus direitos, entre eles: indígenas, negros, feministas, etários e pessoas
portadoras de deficiência. Chegam a citar conquistas alcançadas por alguns desses movimentos,
como a instituição do sistema de cotas, a demarcação de terras indígenas, reconhecimento das áreas
remanescentes dos quilombolas, porém nenhuma menção às leis 10. 639/2003 e 11.645/2008.
Nem mesmo uma breve citação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal que versam sobre

463
Como bem nos lembraram Foucault e Deleuze em suas análises sobre dispositivo, entendido como instrumentos
de poder que envolve saberes e possibilita a construção de subjetividades, nos apropriamos do termo aqui para
refletirmos como as representações dos indígenas e das consideradas “minorias” foram construídas, na forma negativa,
para legitimar um poder de dominação, de controle, de superioridade dos ditos “civilizados”, sobre o outro, ou sobre
os outros, os não-europeus. Deleuze, Gilles. O que é um dispositivo? In: O mistério de Ariana. Lisboa; 1996, p. 73-124.
Foucaul, Michel. “O dispositivo”. In: Microfísica do poder. Edições Graal, rio de janeiro, RJ, 2010, p.
1127

os direitos conquistados pelos indígenas.464 Entendemos que a citação dessas legislações, pelo
menos as que se referem à obrigatoriedade de incluir histórias e culturas desses povos no currículo
da educação básica poderia fomentar outras abordagens, achamos inclusive, que os capítulos
específicos dessas populações poderiam inicia-se com imagens e narrativas atualizadas e
mencionando a existência de tais leis para reforçar a importância do ativismo dos movimentos
indígenas e negros no país. Seria uma sugestão para iniciarmos a nossa história por outra
perspectiva, que não fosse a do colonizador/conquistador.

Considerações finais

Ao realizarmos uma breve análise das representações presentes em três livros didáticos de
História, percebemos alguns avanços, mas também muitas lacunas nas abordagens realizadas sobre
os povos indígenas. Entendemos que as dificuldades de releituras e de novas abordagens estejam
relacionadas a fatores para além da atuação dos autores dos manuais. Percebemos que há limitações
em diversos aspectos, nas regras editoriais, na ausência das temáticas na formação de docentes,
além da permanência de políticas estruturantes que reforçam práticas racistas e discriminatórias,
presentes em diferentes espaços sociais, inclusive nas universidades. Muito tem sido feito para a
mudança desse quadro de exclusão dos grupos considerados “minorias”. A atuação de movimentos
indígenas, acadêmicos, docentes, estudantes tem demonstrado que há pessoas atentas a essas
questões. Mas ainda percebemos alguns silenciamentos sobre o estudo das histórias e culturas
indígenas na educação brasileira, mesmo reconhecendo os muitos esforços.
Acreditamos que um trabalho em conjunto entre universidades, professores e
comunidades indígenas é fundamental para rompermos com muitas barreiras que dificultam esse
percurso de transformação. Assim, entendemos que a implantação da Lei 11.645/2008, bem como
outras, deve ocorrer de maneira interdisciplinar, não ficando a cargo apenas de áreas específicas
como a de História e a de Língua Portuguesa. Esse tipo de trabalho torna-se necessário, não apenas
para a aplicabilidade de legislações como essa, mas como para o próprio funcionamento de
propostas pedagógicas que devem ter como base norteadora a luta por igualdade, pelo respeito à
diversidade, pelo combate ao preconceito e a toda e qualquer forma de violência. Acreditamos que
sem esse compromisso não haverá avanços.

464Cabe-nos ressaltar aqui que a inclusão de um capítulo que versa sobre os direitos indígenas na Constituição de 1988l
foi fruto da manifestação do indígena e ativista Ailton Krenak na assembleia constituinte de 1987.
1128

Referências

Baczko, Bronislaw. A imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 5. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1985.

Boulos Júnior, Alfredo. História & Cidadania. Vol. Único. 1ª ed., São Paulo:
FTD, 2016.

Chartier, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A história
cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988.

_______________. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras, v. 13, n. 24.

Cotrim, Gilberto. História Global. 3º ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

Deleuze, Gilles. O que é um dispositivo? In: O mistério de Ariana. Lisboa; 1996

Foucaul, Michel. “O dispositivo”. In: Microfísica do poder. Edições Graal, rio de janeiro, RJ, 2010.

_______________. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

_______________. “O dispositivo de sexualidade”. In: História da Sexualidade I: a vontade de


saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

Hall, Stuart. “Introdução”. In: Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.

________________. “Capítulo I - O papel da representação”. In: Cultura e Representação. Rio de


Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.

________________. “O espetáculo do „outro‟”. In: Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Ed.


PUC-Rio: Apicuri, 2016.

Marcellin, Renato; Camargo, Rosiane de. História em debate. – 4ª ed. – São Paulo: Editora do Brasil,
2016.

Shohat, Ella; Stam, Robert. “Estereótipo, realismo e luta por representação”. In: Crítica da imagem
eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Tradução: Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify,
2006.
1129

O Império como “mero auxiliar”: estratégias militares e


diplomáticas do Brasil na campanha contra Rosas (1851-1852)

Leonardo dos Reis Gandia*

Resumo: Os conflitos na região do Rio da Prata marcaram o processo de consolidação dos Estados
na região ao longo do século XIX. Após o desfecho negativo da Guerra da Cisplatina, o Império
do Brasil buscou manter relativa neutralidade frente às questões externas na região platina, a
despeito da intensa beligerância que assolava os países vizinhos, sobretudo após a deflagração da
Guerra Grande no Uruguai, em 1839 – que opôs blancos (liderados por Manuel Oribe) e colorados
(capitaneados por Fructuoso Rivera). O conflito logo se espraiou para o outro lado do Prata, com
o envolvimento do governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, que almejava expandir seu
projeto federalista para outras partes do estuário platino e, consequentemente, alarmava o governo
de d. Pedro II, oferecendo riscos cada vez mais iminentes para os interesses políticos e diplomáticos
brasileiros na região. A neutralidade brasileira foi, finalmente, rompida com a intervenção militar
brasileira contra as forças de Manuel Oribe, na República Oriental do Uruguai, em 1851, e Juan
Manuel de Rosas, em território portenho, em 1852, com a célebre Batalha de Caseros – evento que
marcaria o fim do longo governo rosista. Nesse sentido, o presente trabalho tem por objetivo
elucidar alguns pontos referentes a essa intervenção brasileira, especificamente no que concerne ao
avanço contra as forças de Rosas, em território argentino. Por meio da análise de correspondências
das lideranças militares e diplomáticas brasileiras e do convênio de aliança firmado entre o Brasil,
o Uruguai e as províncias argentinas de Entre Rios e Corrientes, em 21 de novembro de 1851, o
trabalho visa demonstrar como o Império elaborou e pôs em prática ações militares e diplomáticas
seguras, que reduziram as responsabilidades pela intervenção, mas que, por outro lado,
consolidaram seus interesses geopolíticos na região platina, há muito ameaçados pela influência do
federalismo rosista.

Palavras-chave: Campanha contra Rosas, Convênio de 21 de novembro de 1851, Rio da Prata,


Diplomacia, Batalha de Caseros.

Em 12 de outubro de 1851, poucos meses após a irrupção da intervenção militar da aliança


entre Brasil, Entre Ríos e Montevidéu em território uruguaio, Manuel Oribe, líder do partido blanco,
capitulava sem oferecer resistência ao exército entrerriano liderado por Justo José de Urquiza.
Ultimada a Guerra Grande na Banda Oriental465, por meio da assinatura da Convenção de Paso
Molino, entre Urquiza e Oribe, iniciava-se uma nova etapa na condução da campanha.

*
Mestre e Doutorando em História Social pela FFLCH/USP, com pesquisa financiada pela CAPES. A pesquisa que
deu base ao presente trabalho foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo
FAPESP nº 2012/15479-7).
465
Para uma visão de conjunto sobre esse conflito, ver Barrán (1975); Moniz Bandeira (1998); Pomer (1979, pp. 30-
58); Souza (1985, pp. 141-161).
1130

Enquanto a situação política no Uruguai pós-guerra aguardava uma definição, outro fator
dividia as preocupações dos líderes brasileiros no Prata. Era preciso concretizar uma nova política
na região, que dependia invariavelmente da deposição de Juan Manuel de Rosas. Embora houvesse
perdido muita influência no estuário platino com a capitulação de Oribe, o governador de Buenos
Aires ainda oferecia riscos para a consolidação dos objetivos políticos brasileiros.

Ao longo da missão no Uruguai, por meio das definições do convênio secreto de 29 de


maio de 1851, o Império construiu a imagem de uma guerra exclusivamente contra Oribe,
permitindo, por uma série de determinações do mesmo diploma, que o Brasil se guarnecesse dos
meios necessários para um conflito iminente com Rosas, obrigando-o a declarar guerra ao Império.
Em outras palavras, a “ilusão” de uma guerra somente contra Oribe (Rosa, 2010, pp. 510 e ss.)
impôs a Rosas o ônus da declaração de guerra, tendo em vista a ofensiva contra seu aliado blanco.
Com isso, confirmava-se o disposto no artigo 15 do convênio de aliança de 29 de maio, segundo o
qual “se por causa desta mesma aliança o governo de Buenos Aires declarar a guerra aos aliados,
individual ou coletivamente, a aliança atual se tornará em aliança comum contra o dito governo”
(Convênio de 29 de maio de 1851..., Apud Costa, 1870, pp. 78-81).

Nesse sentido, mesmo elaborando uma aliança ofensiva e defensiva com o fito de combater
Oribe, Rosas esteve constantemente no horizonte do Império. Após bater o inimigo uruguaio,
enquanto a paz era consolidada de um lado do Prata, com as eleições e a execução do chamado
“sistema de tratados”466, a continuação da guerra era planejada como condição sine qua non para
findar as ameaças que Rosas oferecia ao Império.

Entretanto, os arranjos que confirmariam a aliança contra Rosas não se deram de forma
simples. O avanço das tropas de Urquiza no Uruguai e a assinatura da capitulação de Oribe, foram
feitos à revelia dos demais exércitos aliados, ignorando os interesses brasileiros e indispondo os
representantes do Império com o general entrerriano. Tal fato fomentou desconfianças de parte a
parte, exigindo maior cuidado do Brasil para assegurar a instável aliança. Nesse sentido, a
preocupação em manter Urquiza ao lado do Brasil tinha fundamento, uma vez que a presença do
governador de Entre Ríos atribuiria um caráter “nacional” ao embate contra Rosas467, sem
comprometer em demasia o Império, do ponto de vista diplomático.

466
Sobre a situação do Uruguai pós-guerra, as negociações para a assinatura e execução do “sistema de tratados” com
a República Oriental e as tratativas diplomáticas do Brasil com a elite uruguaia no período, ver Ferreira (2006, p. 179-
192); Moniz Bandeira (1979) e Barrán (1975, p. 47 e ss).
467
A questão da “nacionalização” da guerra contra Juan Manuel de Rosas é sugerida por Rosa (2010), Halperín Donghi,
(1987) e Sarobe (1962, p. 445-492).
1131

Foi, portanto, nesse contexto que a nova aliança ofensiva, agora contra Rosas, foi articulada,
durante os meses de outubro e novembro de 1851. Além das eleições e da execução do “sistema
de tratados” no Uruguai, o plenipotenciário brasileiro no Prata, Honório Hermeto Carneiro Leão,
tinha instruções claras do ministério para firmar um acordo que restringisse as ações de Urquiza e
fosse favorável ao Império, tendo em vista a desconfiança gerada pelo citado episódio de
Pantanoso, em decorrência das concessões que Urquiza havia oferecido a Oribe.468 Deste modo,
os objetivos eram “aproveitar a ocasião, apertar Rosas, dar com ele em terra, e obter o
complemento dos Tratados de 12 do corrente, ligando ao nosso sistema e política aqueles governos
[...] coadjuvado pelas nossas legações e chefes militares” (Apud Estefanes, 2013, p. 230-231).

Segundo Genserico de Vasconcelos (1941, p. 230-231), o “avanço” da aliança ofensiva


contra Rosas em relação àquela firmada em 29 de maio teria sido a presença de lideranças políticas
e militares durante as negociações. Para o autor, isso privilegiou alguns pontos importantes no
tangente às ações de guerra, evitando, por exemplo, a dispersão das tropas em operação e, com
isso, novas ações autônomas por parte do general Urquiza. No entanto, Vasconcelos pondera que
a negociação cometia o mesmo erro do convênio anterior, ao se basear em um “hibridismo político
e militar” que, ao invés de restringir as lideranças militares e definir formas de ação mais claras,
destacava, na prática, três chefes para a missão: Urquiza, enquanto general-em-chefe “de toda a
missão”; Caxias, como general-em-chefe das forças brasileiras e o almirante John Pascoe Grenfell,
como comandante da esquadra brasileira.

Porém, de acordo com o novo convênio, assinado em 21 de novembro de 1851 (Convênio


especial de Aliança..., Apud Vasconcelos, 1941, p. 347-352), o general Urquiza seria o líder das
operações em território argentino. Nada havia de claro a respeito de sua condição de comandante
geral da missão, uma vez que responderia como “general em chefe do exército Entrerriano-
Correntino”. Tampouco se determinava a submissão dos demais chefes militares às suas ordens,
pois previa-se que, em caso de ações separadas dos exércitos aliados, houvesse acordo prévio entre
os líderes de cada força. Com uma tênue, ainda que fundamental, diferença: no caso de ações
brasileiras, essa inteligência prévia deveria ser feita se possível, ficando vedado aos demais signatários
qualquer ação militar independente.

A grande vantagem do Império, pelos termos do convênio, referia-se a sua posição oficial
na campanha contra Rosas. Além de legitimar, pelo artigo I, uma guerra para libertar o “povo

468
Para uma análise mais cuidadosa da intervenção brasileira contra Oribe e as tensões com o aliado entrerriano, ver
Gandia (2019, p. 118-134). Sobre a atuação de Honório Hermeto Carneiro Leão como plenipotenciário e a articulação
dos interesses políticos brasileiros na região do Rio da Prata, ver Estefanes (2013, p. 218-238).
1132

Argentino da opressão que suporta sob a dominação tirânica do governador D. João Manuel de
Rosas” (Convênio especial de Aliança..., Apud Vasconcelos, 1941, p. 347), e não contra toda a
Confederação, o diploma dava a iniciativa das ações bélicas às províncias argentinas, retirando tanto
o Brasil quanto o Uruguai do centro da ofensiva, conforme se lê no artigo II:

Em virtude da declaração precedente, os Estados de Entre Ríos e de Corrientes


tomarão a iniciativa das operações de guerra, constituindo-se parte principal nela;
e o Império do Brasil e a República Oriental, tanto quanto permitir o bom e mais
breve êxito do fim, a que todos se dirigem, obrarão somente como meros auxiliares.
(Convênio especial de Aliança..., Apud Vasconcelos, 1941, p. 347, grifo meu).

Nota-se, portanto, a articulação de uma estratégia importante aos interesses imperiais na


missão. Colocar-se na posição de “mero auxiliar” dava ao Brasil margem de manobra diplomática
frente às possíveis intervenções europeias no conflito. Além do mais, reforçava o caráter “nacional”
da luta contra Rosas, ficando sob a responsabilidade de Urquiza a requisição dos auxílios, militares
ou financeiros, dos países aliados. Ao tomar a iniciativa bélica contra Buenos Aires, Entre Ríos e
Corrientes assumiam a maior parte do ônus da campanha, por meio de um tratado de aliança que,
ao contrário, oferecia os maiores benefícios aos interesses do Brasil.

Dessa forma, o convênio de 21 de novembro atenuava, de certo modo, o caráter


internacional e intervencionista da guerra contra Rosas, ao mesmo tempo que atrelava
profundamente os demais aliados aos interesses do Império. No limite, grande parte da campanha
contra Buenos Aires seria custeada pelo Brasil, por meio de repasses ao general Urquiza, além dos
suportes materiais que se somariam ao montante dos empréstimos mensais. Em outras palavras, a
posição “auxiliar” do Brasil contrastava com a centralidade e liberdade de ação que o diploma lhe
dava, fazendo, inclusive, com que os demais Estados signatários se tornassem, na prática, seus
dependentes militar, política e financeiramente.

Desta forma, há que se concordar que se criava uma dependência significativa das duas
províncias mesopotâmicas em relação ao Brasil, colocando-o em posição privilegiada na articulação
de seus interesses mais prementes na região platina. Isso fica ainda mais evidente se levarmos em
conta as determinações contidas no artigo XIV, referente à navegação dos rios da bacia do Prata,
conforme se lê abaixo:

[...] os governos de Entre Ríos e de Corrientes se comprometem a empregar toda


a sua influência junto ao governo que se organizar na Confederação Argentina,
para que este acorde e consinta na livre navegação do Paraná e dos demais
afluentes do Rio da Prata, não só para os navios pertencentes aos Estados
Aliados, senão também para os de todos os outros ribeirinhos que se prestem a
1133

mesma liberdade de navegação naquela parte dos mencionados rios que lhes
pertencer. Fica entendido que se o governo da Confederação e os dos Estados
ribeirinhos não quiserem admitir essa livre navegação pelo que lhes diz respeito,
e nem convir nos ajustes para esse fim necessário, os Estados de Entre Ríos e
Corrientes a manterão em favor dos Estados aliados e com eles somente tratarão
de estabelecer os regulamentos precisos para a polícia e segurança da dita
navegação. (Convênio especial de Aliança..., Apud Vasconcelos, 1941, p. 350)

Ou seja, para além da dependência econômica significativa das províncias mesopotâmicas


em relação ao Brasil, o Império alcançava um de seus mais candentes objetivos, não só com o
tratado de aliança, mas com a própria intervenção militar no Prata. Garantida a livre navegação dos
rios da bacia platina por meio do “sistema de tratados” com a República Oriental, a diplomacia
brasileira impunha o mesmo compromisso às províncias argentinas aliadas, tanto durante a
campanha contra Rosas quanto posteriormente. Desta feita, o artigo XIV do diploma de 21 de
novembro dava a Entre Ríos e a Corrientes – reconhecidas, pela aliança, como Estados soberanos
e investidos do “direito das gentes” (Aubert, 2017, p. 168-170) – a responsabilidade de zelar pela
medida junto aos futuros governos da Confederação.

Todas essas vantagens obtidas, não há dúvidas, geraram fortes vínculos e compromissos
das províncias argentinas frente ao Império, consolidando certos interesses brasileiros no estuário
platino. No entanto, seria demais afirmar, como o faz o revisionista argentino José Maria Rosa, que
isso faria parte de um projeto de criação da “República Mesopotâmica”, liderada por Urquiza, sob
os auspícios do Império. Nesse ponto, tendo a concordar com Gabriela Nunes Ferreira, que não
desconsidera as possibilidades de controle e influência do Brasil sobre as províncias argentinas,
embora circunscreva a suposta separação de Entre Ríos e Corrientes ao contexto ainda indefinido
de formação dos Estados na região, afirmando que, sendo a “formação nacional argentina ainda
uma incógnita, o Brasil considerava seriamente a possibilidade de separação dos dois Estados – e
talvez mesmo não a visse com maus olhos” (Ferreira, 2006, p. 196).

Ao contrário do convênio de aliança contra Oribe, o de 21 de novembro de 1851 limitou


fortemente as ações de Urquiza e não é demais pensar que a experiência recente com a capitulação
de Oribe, em Pantanoso, teria sido fundamental para que o Império se amparasse em meios de
ação mais limitados aos seus aliados e mais amplos para si. Mesmo cedendo às exigências do general
entrerriano para a celebração da aliança, não se tratava de uma submissão do Império ao aliado. Ao
contrário, aceitá-las foi o meio pelo qual o governo brasileiro manteve Urquiza ao seu lado e pôde
controlá-lo pelas vias institucionais, condição fundamental para o sucesso na guerra contra Rosas.

Exemplo disso é o caso dos já citados empréstimos mensais do Império. Os cem mil
patacões exigidos por Urquiza eram um valor alto e que a diplomacia brasileira resistia a aceitar.
1134

Entretanto, sabendo das disposições do general entrerriano em relação ao tema – “o patacones, o


se manejaba por su cuenta” (Rosa, 2010, p. 564) –, o conde de Caxias, líder do Exército Brasileiro
na missão, defendia que a exigência fosse aceita, percebendo o risco de Urquiza facilmente se voltar
contra o Brasil, no caso de encontrar em Rosas maiores vantagens para seus interesses políticos469.
Estando mais próximo de Urquiza e sendo um importante articulador brasileiro nas negociações
com os aliados, a posição de Caxias não foi desprezada pela diplomacia.470

Contudo, mesmo cedendo às exigências, o Império não deu a Urquiza a mesma liberdade
vista na campanha contra Oribe. Não obstante a posição oficial de “mero auxiliar”, o Império
estava longe de ser um simples contingente a ser livremente manejado por Urquiza. Se levarmos
em conta os termos do convênio referentes às forças lideradas por Caxias, estacionadas em Colônia
do Sacramento como “exército de reserva”, a autonomia que tinha o Império na missão fica ainda
mais clara, uma vez que se definiam dois pontos essenciais para os objetivos da intervenção
brasileira na região platina. Em primeiro lugar, por meio do artigo XIX, o Império legitimava a
permanência de seu exército em território oriental, com o intuito de negociar com a elite uruguaia
e promover a eleição de um governo favorável ao “sistema de tratados”, que ainda carecia da
ratificação dos representantes do país recém-pacificado.

Em segundo lugar, os termos do artigo davam a Caxias plenas condições de movimentar


suas tropas contra Rosas independentemente das ordens de Urquiza, dentro ou fora do território
argentino, com a garantia, além de tudo, de poder liderar toda a força imperial em caso de invasão
a Buenos Aires – como viria a ocorrer. Como se vê, portanto, dos três líderes militares reconhecidos
pelo convênio de 21 de novembro, o “auxiliar” era o que detinha o maior poder de ação.

Sobre esse quadro formado com o convênio assinado em 21 de novembro de 1851,


amplamente favorável aos interesses do Brasil, sobretudo no tocante ao controle das ações de
Urquiza, José Maria Rosa sintetiza a questão num tom inflamado, quase de um nacionalismo ferido
– e, em certos momentos, teleológico:

Así, por este tratado, «que se conservaría secreto» (art. 21) por temor al espíritu
nacionalista de los descendientes de españoles o a un veto británico a la
expansión brasileña, Urquiza obraría como un mero auxiliar de los imperiales, no
obstante el trastrueque consciente de los vocablos. Acepta guerras contra su

469 Conforme relatava ao ministro da Guerra, “Urquiza é muito despeitado e orgulhoso; qualquer negativa de nossa
parte irrita-lo-ia, sendo elle, como V. Exª sabe, alguem a quem pouco falta para mudar de opinião da noite a manhã.
Achando-se hoje com um exercito forte pelos reforços que recebeu das tropas argentinas que encontravam-se ao
mando de Oribe, não ser-lhe-ia muito dificil arranjar-se com Rosas mediante algumas concessão que este lhe fizesse, e
voltar-se contra nós” (Apud Rosa, 2010, p. 563).
470 Sobre a atuação de Caxias na condução da missão militar e na articulação política com os aliados ao longo da

intervenção militar contra Oribe e Rosas, ver Gandia (2019, p. 118-169).


1135

propia patria disimulando el hecho como «guerra contra su gobierno»; recibe


dinero, armas y municiones de Brasil; admite que el ejército imperial de Reserva
proceda con independencia; tolera que la división brasileña, integrante del
Ejército a sus órdenes, se maneje por su cuenta cuando su jefe no estuviera «en
inteligencia y acuerdo» con él; sufre que el almirante brasileño pueda tomar por
sí solo las disposiciones que creyese oportunas. El único que no pudo hacer
mucho por sí solo es Urquiza, que ni siquiera ajustaria por su responsabilidad
exclusiva la cesación de hostilidades. Y, finalmente, en las cláusulas del tratado
definitivo de paz permite, como en mayo del año anterior, ceder las Misiones
Orientales y la soberanía de los ríos. [...] La República de la Mesopotamia nacería
– en caso de permitirlo las rivalidades foráneas – hipotecada al Imperio en la
cuantiosa suma de las mensualidades fornecidas al general pronunciado, más sus
correspondientes intereses. (Rosa, 2010, p. 569).

Evidentemente que o autor carrega nas cores ao analisar a situação que se desenhara com
a assinatura da aliança. Ainda assim, uma leitura mais atenta dos artigos do convênio deixa claro
que o texto impunha claramente um cerceamento às ações de Urquiza e dava uma ampla margem
de ação ao Império, política e militarmente, do começo ao fim da campanha. E o fim vislumbrado
para a campanha não poderia ser aquele permitido na intervenção contra Oribe. É provável que a
experiência com a primeira etapa da guerra, ainda no Uruguai, tenha levado o Brasil a limitar mais
fortemente qualquer possibilidade de negociação de Urquiza com os inimigos da aliança, em
especial nesse segundo ato da guerra, quando o inimigo era Rosas, situação que estava no horizonte
desde o início da intervenção brasileira.

Como temia Caxias, uma nova aproximação entre os governadores de Buenos Aires e Entre
Ríos comprometeria profundamente a consolidação da nova política brasileira na região. Não é
demais pensar que, com a determinação do artigo XVIII, referente aos termos de paz, o convênio
eliminava quase totalmente as possibilidades de que acordos promovidos por Urquiza fossem
legitimados pela aliança, visto que as “condições de paz serão ajustadas entre os chefes das forças
aliadas, solicitando-se para sua execução a aprovação dos governos respectivos ou de seus
representantes devidamente autorizados” (Convênio especial de Aliança..., Apud Vasconcelos,
1941, p. 351).

Diante de todas as determinações do convênio de aliança e das negociações cuidadosas e


bem fundadas durante outubro e novembro de 1851, o Brasil acumulava boas margens de ação
para seu exército, pouca responsabilidade diplomática na nova fase do conflito que se abria, grande
autonomia ao seu general-em-chefe, além de perspectivas promissoras para a concretização de seus
interesses políticos e econômicos na região platina com o avanço contra Rosas, que duraria pouco
menos de três meses.

Após as primeiras negociações do convênio de aliança, Caxias seguiu com as forças


brasileiras para seu novo acampamento em Colônia do Sacramento. Definidas as condições do
1136

“auxílio” do Brasil a Urquiza e nomeado Manuel Marques de Sousa, futuro conde de Porto Alegre,
para o comando da divisão brasileira em território argentino, o contingente imperial foi reunido.
Entre os dias 24 e 25 de dezembro de 1851, o exército aliado transpôs o Prata e iniciou sua marcha
rumo a Buenos Aires, desde o sul da província de Santa Fé (aliada a Rosas), na altura de
Diamante.471

Ao longo da marcha, os aliados contaram com a passividade do exército inimigo e com as


deserções e sublevações de tropas rosistas, em especial em Rosário, que acabou por não oferecer
resistência à passagem das forças de Urquiza. Mesmo com um contingente militar superior, o
exército rosista não foi capaz de conter o avanço dos aliados, tanto pela falta de ações efetivas de
defesa, quanto pelas divergências entre as principais lideranças militares. O general entrerriano,
inteirado de tais rusgas, soube se aproveitar delas e comprometer ainda mais as relações entre os
líderes portenhos.

Por meio de um ardil bem tramado ao longo da marcha em direção a Buenos Aires, Urquiza
fez com que Rosas rompesse com seu mais destacado comandante, o general Ángel Pacheco.
Enviando diversas cartas a este general em tom cordial, Urquiza pretendia propagar a desconfiança
de que havia um acordo entre eles. Todas as missivas foram transportadas por caminhos onde
seriam facilmente interceptadas e, por mais de uma vez, chegaram ao conhecimento do governador
de Buenos Aires. No final de janeiro de 1852, Rosas se desentendeu e rompeu relações com
Pacheco, que foi retirado do posto de general-em-chefe do exército rosista. Desta feita, Rosas
assumiu diretamente o comando do exército e organizou as táticas de defesa da capital contra o
avanço do exército inimigo.

Este, por seu turno, embora tenha sido beneficiado pelo enfraquecimento moral e pela falta
de reação de Rosas, teve de enfrentar dificuldades no transcurso da marcha, sobretudo em relação
à manutenção das tropas. Na altura de San Nicolás, já transposta a fronteira entre as províncias
Santa Fé e Buenos Aires, Urquiza tinha dois caminhos a seguir. Um, que seguiria pelas margens do
Paraná; outro, um longo desvio pelo interior do território até as imediações da capital. O primeiro
era mais curto em 25 léguas e contava com o apoio da esquadra brasileira, que dominava as águas
do Paraná e do Prata, também guarnecido pela parte da esquadra comandada por Grenfell.

Mesmo assim, Urquiza optou pela segunda rota. Embora a primeira encurtasse
consideravelmente o caminho à capital, as margens do Paraná careciam de pastos que servissem

471
Não farei aqui uma descrição minuciosa das etapas da marcha em direção a Buenos Aires, do final de dezembro de
1851 ao início de fevereiro de 1852. Para uma narrativa detalhada da missão do exército aliado contra Rosas, ver Sarobe
(1962, p. 465 e ss) e Vasconcelos (1941, p. 241 e ss).
1137

para a alimentação das cavalhadas e de água tanto para os animais quanto para os soldados, visto
que, embora ribeirinha, a região apresentava margens muito acidentadas. Dessa forma, o general
entrerriano ordenou o desviou pelo interior em busca de melhores condições, mesmo que isso
significasse mais tempo de marcha.

No entanto, distanciar-se do rio não resultou somente na perda de proteção naval. Por meio
da esquadra brasileira, Caxias recebia com maior frequência e rapidez as notícias do exército aliado,
em especial da situação da divisão brasileira comandada por Marques de Sousa, podendo, assim,
organizar melhor suas ações. Interrompida essa comunicação, por semanas, Caxias decidiu
organizar uma incursão de reconhecimento a Buenos Aires com vistas a um ataque direto a Rosas,
pela parte sul da capital. Dava, portanto, os primeiros frutos a liberdade de ação do general-em-
chefe brasileiro perpetrada pelo convênio de 21 de novembro.

Caxias zarpou no dia 17 de janeiro e, mesmo com a presença da esquadra de Rosas e de


forças militares no porto, as tropas brasileiras entraram em Buenos Aires sem sofrer qualquer
hostilidade. Ao contrário, segundo relata Vasconcelos (1941, p. 270-271), na ocasião de seu
desembarque, Caxias e seu exército de observação foram recebidos com saudações tanto pela
população da cidade, quanto pelas tropas estrangeiras ali estacionadas. Entretanto, para além da
falta de comunicação com Urquiza, a esquadra e o exército de reserva, outras razões pareciam
justificar a decisão de Caxias.

Dias antes de seu embarque em Buenos Aires, Carneiro Leão lhe respondia um ofício de
10 de janeiro, que dá algumas ideias sobre o propósito da missão. Além de enviar “algumas
caricaturas de Rosas para V. Exª divertir-se com elas”, o plenipotenciário brasileiro demonstrava
entusiasmo e satisfação com a decisão de organizar a incursão de reconhecimento na capital
argentina com o intuito de atacar as forças de Rosas. Chama a atenção as preocupações dos dois
líderes brasileiros, evidenciadas no trecho abaixo:

Alegra-me a communicação de que já tinha combinado com Grenfell


procederem aos exames necessários para decidirem da conveniência de um
desembarque de tropas ao sul de Buenos Ayres.
Quanto mais eficaz e direta for a nossa operação, mais influencia política e credito militar
tiraremos em proveito dos sacrifícios que o Imperio tem feito. Não posso deixar de ponderar
a V. Exª que, a darmos esse golpe, deve ser como V. Exª bem diz com toda a
segurança; e parece-me que não haverá essa segurança se além de outras
condições, não esperar-se que o General Urquiza esteja em frente ao inimigo,
que assim ficará sob a ação simultânea de duas forças. (“Ofício de Honório
Hermeto Carneiro Leão ao Conde de Caxias, Montevidéu, 12/01/1852”, IHGB,
Coleção Leão Teixeira Filho, Lata 748, Pasta 10 (grifo meu).
1138

Fica claro, pelo trecho destacado, que a decisão de avançar sobre Buenos Aires tinha como
objetivo central a garantia de uma missão segura e eficaz de deposição de Rosas, não só pela
desconfiança que havia no tangente à capacidade militar de Urquiza. Com a presença do general-
em-chefe e do almirante brasileiros, a incursão asseguraria os interesses do Império com a tomada
da capital, evitando, assim, possíveis ações independentes de Urquiza, como na capitulação de
Oribe, meses antes. Contando ou não com o general entrerriano, o exército brasileiro teria
condições de se impor ao inimigo, obrigando-o, assim, a lutar em duas frentes.

Além do mais, outro fator teria motivado a celeridade do deslocamento do contingente


estacionado em Colônia do Sacramento. Conforme destacado anteriormente, uma das pretensões
do Império em oficializar uma posição de “mero auxiliar” na campanha contra Rosas era evitar
possíveis interferências das potências europeias no conflito e, assim, garantir maior influência na
condução da missão e na defesa de seus projetos políticos na região. Nesse sentido, o envio de uma
só divisão ao território argentino permitiria tanto a continuidade dos trabalhos ainda inconclusos
no Uruguai, quanto a manutenção do conveniente status de auxiliar do exército brasileiro, em uma
disputa “nacional”. Porém, planejar o desembarque de todo o contingente de Caxias em Buenos
Aires mudaria a situação e acarretaria novos riscos ao Brasil, como alertava Carneiro Leão ao
general brasileiro, em ofício reservado de 14 de janeiro de 1852:

Como verá da carta que dirijo ao General Urquiza, que junto remeto a selo
volante para que V. Exª e o Chefe de Esquadra Greenfell se inteirem do seu
conteúdo, o Sr. Southern lá está incomodando ao Governo Imperial, e
ameaçando-nos com a intervenção das forças Britanicas.
Cumpre, pois, que o que se tiver de fazer se faça quanto antes, de sorte que a se
realizarem as ameaças, todas as forças, elementos de guerra que possam ser
necessários, já estejam no território em que tem de obrar. O Governo Imperial
assim lho recomenda nos termos mais instantes. (“Ofício reservado de Honório
Hermeto Carneiro Leão ao Conde de Caxias, Montevidéu, 14/01/1852”, IHGB,
Coleção Leão Teixeira Filho, Lata 748, Pasta 10).

Naquele momento, Henry Southern, antes a serviço da Coroa inglesa em Buenos Aires,
fora enviado ao Rio de Janeiro, onde pretendia intervir em favor de Rosas, declaradamente seu
amigo. Southern, em primeiro lugar, exigiu explicações oficiais do governo brasileiro sobre os
rumores da assinatura de um tratado secreto entre o Brasil, Montevidéu e Entre Ríos, em 29 de
maio de 1851. A isso, o ministro Paulino de Sousa respondeu com a divulgação do dito acordo,
visto que nele estavam definidas somente as bases para a ofensiva contra Oribe, conforme havia
planejado a diplomacia brasileira na ocasião. Buscando outros meios de favorecer Rosas, Southern
teria inclusive solicitado a substituição de Carneiro Leão de seu posto de plenipotenciário, o que
foi repelido por Paulino de Sousa (Aubert, 2017, 180-181).
1139

Pressionado, o ministro dos Negócios Estrangeiros tentou se esquivar do diplomata


britânico até o início de janeiro de 1852, quando, enfim, atendeu às requisições por uma
conferência. Naquela oportunidade, Southern colocou-se à disposição para uma mediação entre o
Império e Buenos Aires, sem, contudo, apresentar ameaça ao governo brasileiro. Evadindo-se, uma
vez mais, às proposições do representante europeu, Paulino de Sousa teria dito que precisava
deliberar com o restante do ministério e esperar as ordens do imperador para aceitar a oferta de
mediação inglesa. Curiosamente, depois desse encontro de 2 de janeiro de 1852, Southern não
procurou mais o ministro brasileiro, preferindo deixar a questão em suspenso e “aguardar os
próximos acontecimentos”, segundo pontua Gabriela Nunes Ferreira.472

Mesmo após o desembarque do exército de observação de Caxias, em 17 de janeiro, o


receio de uma intervenção inglesa ainda permanecia. O temor dos líderes brasileiros era que
houvesse o bloqueio da esquadra de Grenfell, reunida em Colônia do Sacramento. Uma ação contra
a frota imperial ofereceria barreiras quase intransponíveis a qualquer pretensão brasileira de
transporte e desembarque de tropas em Buenos Aires para atacar Rosas. Sem notícias concretas a
respeito da posição inglesa, tampouco da movimentação de Urquiza, Caxias reuniu suas tropas e
colocou à disposição todo o necessário para “embarcar toda a força que tencionava levar dentro
de duas horas” (Apud Rosa, 2010, p. 604). O general planejava aguardar somente a chegada de
Urquiza às proximidades de Santos Lugares – onde Rosas acampava, aguardando o ataque inimigo
– para desembarcar em Buenos Aires, colocando o inimigo “entre dois fogos”. Apesar dos esforços
empreendidos por Caxias, conforme informava Carneiro Leão ao ministro Paulino de Sousa, em 4
de fevereiro de 1852:

Não foi preciso levar-se a effeito a expedição de um segundo contingente a frente


do qual estaria o Conde de Caxias. O Conde tinha todo o disposto em 31 do
corrente para embarcar toda a força que tencionava levar dentro de duas horas...
Os vapores de guerra são insufficientes para o transporte dessa expedição; e por
isso estava ajustado o fretamento do vapor oriental Rio Uruguay, e tencionava-se
fretar o Rio de Janeiro logo que chegasse. Tudo, porém, ficou sem effeito a vista
das noticias que chegaram hontem para hoje. (Apud Rosa, 2010, p. 604)

As notícias às quais se referia Carneiro Leão tratavam da célebre batalha de Caseros. Na


noite de 2 de fevereiro, as forças de Urquiza, inesperadamente, se encontraram com o exército de
Rosas, que marchava em direção ao inimigo. Naquele momento, Urquiza bloqueou as passagens e

472
Ferreira (2006, p. 197-199) ainda sublinha que o ministro dos Negócios Estrangeiros conjecturava, em despacho a
Honório Hermeto no início de janeiro, que Southern e o governo inglês teriam desistido de intervir na questão por
meio da negociação diplomática, ainda que tentassem, pela via indireta, atingir o Brasil, “fomentando no Uruguai a má
vontade dos Blancos para com o Império”.
1140

ordenou o ataque. O episódio de Caseros é descrito como uma batalha desesperada, com forças
militares desorganizadas e sem liderança, de ambos os lados.

Nesse sentido, a parte aliada tirou as maiores vantagens, em decorrência da rápida dispersão
das tropas inimigas, na região de Morón. A resistência mais efetiva se deu pela artilharia comandada
por Martiniano Chilavert. No perímetro das propriedades da abastada família Caseros (daí o nome
da batalha472), o coronel argentino enfrentou a divisão brasileira de Marques de Sousa, que havia se
separado das forças de Urquiza no último momento. Apesar da resistência, Chilavert, em poucas
horas, viu-se cercado pelas forças brasileiras e se rendeu.

Rosas, que, segundo José Maria Rosa, havia deixado seu acampamento em Santos Lugares
porque “tal vez quiso ahorrar a la ciudad el ataque de los brasileños de Caxias” (Rosa, 2010, p. 603),
ao ver suas tropas rapidamente dispersadas em Morón e rendidas em Caseros, bateu em retirada
do campo de batalha rumo ao sul da cidade, onde, ainda em 3 de fevereiro, apresentou sua renúncia
à Sala de Representantes. De todas as possibilidades de auxílio da Inglaterra, Rosas logrou somente
um curto refúgio na legação inglesa em Buenos Aires. Na madrugada de 4 de fevereiro, embarcou
no navio de guerra inglês Centaur, seguindo para o exílio na Europa.

Caxias, por sua vez, muito satisfeito com as notícias vindas de Buenos Aires, escrevia ao
amigo e então ministro da Guerra do gabinete Saquarema, Manuel Felizardo de Souza e Mello, uma
semana depois do enfrentamento nos campos de Morón e Caseros:

Havendo-se encontrado as 6 e ½ horas do dia 3 do cte. as forças do Exército


Aliado com as do Exército inimigo nos campos de Morón, se deu a batalha no
mesmo dia como consta no informe do Comandante da 1ª Divisão do Exército
sob meu comando.
Cumpre-me comunicar a V. Exª, para que o faça chegar a S. M. o Imperador, que
a citada divisão, formando parte do Exército Aliado que marchou sobre Buenos
Aires, fez prodígios de valor recuperando a honra das armas brasileiras perdidas
em 20 de fevereiro de 1827. (Apud Rosa, 2010, p. 605)

A data citada pelo general dizia respeito à derrota do exército brasileiro na célebre Batalha
de Ituzaingó, nos últimos tempos da Guerra da Cisplatina. Curiosamente, quando da vitória dos
aliados sobre Rosas, tal efeméride estava próxima de completar vinte e cinco anos, o que, nos
acontecimentos posteriores a Caseros, causaria alguns constrangimentos e tensões entre os líderes
aliados.

Caxias exigia a recuperação das bandeiras brasileiras, tomadas pelos argentinos após a
vitória em 1827 em Ituzaingó e que, desde então, exibiam-nas como despojos da desonra militar

472 Sobre o aspecto simbólico envolvendo o nome que se convencionou chamar tal batalha, ver Rosa (2010, p. 605).
1141

brasileira na catedral de Buenos Aires. Além disso, para engrossar o coro pela devolução das
bandeiras brasileiras, Marques de Souza não dispensava, como celebração da vitória, o desfile do
Exército aliado pela capital portenha. Mesmo opondo-se à entrada dos aliados estrangeiros em
Buenos Aires, os líderes argentinos acederam às exigências brasileiras. Mesmo temendo
“manifestações desagradáveis” durante a entrada na cidade, Urquiza aquiesceu, levando a cabo
todos os esforços para evitar qualquer incidente durante a marcha. Ao contrário do que se esperava,
a população que assistia à passagem das tropas saudou efusivamente a divisão brasileira,
hostilizando, em alguns momentos, o próprio Urquiza, que encabeçava o desfile triunfal do
Exército vencedor.473 Quanto às bandeiras tomadas na derrota de Ituzaingó, essas sim, tiveram de
permanecer na catedral de Buenos Aires, para evitar maiores inconvenientes diplomáticos que
pudessem obstar os planos do Brasil, ainda não completamente consolidados.474

A vitória do Exército Aliado e a renúncia de Rosas, longe de encerrarem as tensões,


colocaram novas questões na agenda do governo brasileiro. No entanto, desde antes do
encerramento do conflito, as prerrogativas abertas pelo convênio de 21 de novembro deram uma
primeira e significativa vitória diplomática ao Brasil, que garantiu o sucesso militar no avanço contra
Juan Manuel de Rosas, conforme busquei mostrar ao longo deste trabalho. Meses depois de iniciada
a missão, a célebre Batalha de Caseros colocou o ponto final aos mais de vinte anos de dominação
rosista em Buenos Aires. Mesmo sem perpetrar toda a revanche planejada por Caxias, simbolizada
no episódio das bandeiras de Ituzaingó, a intervenção militar brasileira contra Rosas marcou o
início de um novo momento da política brasileira na região do Rio da Prata.

473 Descrevendo os acontecimentos acerca da devolução das bandeiras de Ituzaingó e do desfile dos aliados sobre
Buenos Aires, Rosa (2010, p. 505-507) destaca que, mesmo tentando dissuadir o brigadeiro Marques de Sousa –
respaldado por seu general-em-chefe, Caxias –, ressaltando os riscos que um desfile sobre a capital, no aniversário de
Ituzaingó, poderiam trazer, com possíveis manifestações contrárias, o brigadeiro brasileiro teria sido inflexível,
afirmando a Urquiza que “a vitória desta campanha é uma vitória do Brasil e a Divisão Imperial entrará em Buenos
Aires com todas as honras que lhe são devidas, quer V. Exª. ache conveniente ou não”. Urquiza, desta feita, resignou-
se, aceitando o desfile que, a princípio, havia sido marcado para o dia 8 de fevereiro, passando-se para o dia 19 e, por
fim, curiosamente, para o dia 20. Para evitar possíveis hostilidades, Urquiza instalou o terror na capital portenha, com
centenas de execuções sumárias de líderes políticos e militares dissidentes ou antigos apoiadores de Rosas.
474 Mesmo que Urquiza tivesse concordado, de antemão, com a devolução das bandeiras, Andrés Lamas, representante

diplomático uruguaio no Rio de Janeiro, teria recorrido ao ministro Paulino de Sousa, com o intuito de impedir que tal
medida afrontasse a honra tanto de argentinos quanto de orientais, aliados no episódio de 1827. Paulino, tentando
contemporizar a situação, propunha, então, que a devolução fosse feita por Urquiza como uma “cortesia internacional”,
e não por meio de uma imposição do Brasil. Ainda temendo o caráter impopular do ato, Lamas teria inclusive pedido
a intervenção de d. Pedro II na questão (Rosa, 2010, p. 607-608).
1142

Referências

Aubert, Pedro Gustavo. “Fazermo-nos fortes, importantes e conhecidos”: o visconde do Uruguai e o


direito das gentes na América (1849-1865). Tese de Doutorado, História Social, FFLCH/USP,
2017.

Barrán, José Pedro. Apogeo y crisis del Uruguai partoril y caudillesco (1839-1875). Colección Historia
Uruguaya, Tomo 4, Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1975.

Convênio especial de Aliança entre o Sr. D. Pedro II, Imperador do Brasil, e a República Oriental do Uruguai, e
os Estados de Entre Ríos, e Corrientes, com o fim de assegurar o modo e meios de fazer efetiva a Aliança comum
estipulada no art. 15 do Convênio de 29 de Maio de 1851, assinado em Montevidéu em 21 de Novembro daquele
ano, e ratificado por parte do Brasil em 10 de Dezembro, pela da República Oriental em 21 de Novembro e pela
dos Estados de Entre Ríos, e Corrientes em 1º de Dezembro de 1851. In: Vasconcelos, Genserico. História
Militar do Brasil. Introdução da influência do fator militar na organização da nacionalidade: a
Campanha de 1851-1852. 2 vols., 3ª ed., Rio de Janeiro: Bedeschi/ Biblioteca do Exército, 1941,
vol. 2, pp. 347-352.

Convênio de 29 de maio de 1851, celebrado entre Brasil, a República Oriental do Uruguai e o Estado de Entre
Ríos, para uma aliança ofensiva e defensiva afim de manter a independência e de pacificar o território daquela
República. In: Costa, Francisco Felix Pereira da. História da Guerra do Brasil contra as repúblicas do
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1144

Brasil Pinheiro Machado e a historiografia paranaense

Letícia Leal de Almeida*

Resumo: Esse trabalho pretende fazer uma genealogia da consolidação do conceito de história
regional do historiador Brasil Pinheiro Machado na Historiografia paranaense. Machado era um
intelectual de família tradicional paranaense, com uma trajetória importante na organização política
do Estado, foi prefeito, deputado estadual, interventor durante o governo Eurico Gaspar Dutra,
procurador-geral da justiça do Paraná, ocupando posições de destaque também na Universidade
Federal do Paraná. Sua produção historiográfica está compreendida entre duas gerações de
professores da Universidade Federal do Paraná, base da historiografia acadêmica paranaense. A
primeira atuou de 1930 até 1960 e a outra, de 1960 até fins de 1970. O seu texto Esboço de uma
sinopse de História Regional do Paraná de 1951, foi tomado como um marco epistemológico das
produções historiográficas regionais que orientou as diretrizes do Departamento de História criado
em 1959, o que possibilitou o reconhecimento da produção acadêmica. A partir do conceito de
memória enquadrada de Michel Pollak, analisaremos o processo de consagração da sua produção,
relacionando a sua trajetória enquanto político e intelectual paranaense, historicizando sua
contribuição na consolidação e reconhecimento da produção historiografia acadêmica paranaense.
O texto de Machado foi construído como uma das bases de uma pretensa identidade
historiográfica, que buscava diferenciar-se das demais produções intelectuais do início do século
XX, como o Movimento Paranista. Em seus textos, Machado estabelece uma relação particular
entre o passado e o presente, por isso, partimos de referenciais da História do Tempo Presente,
tendo em vista o papel desta historiografia na organização de uma determinada cultura histórica
paranaense, que visava articular à historiográfica acadêmica regional à História do Brasil, sem perder
de vista as individualidades e particularidades.

Palavras-chave: Historiografia paranaense, História regional, Memória.

Este artigo faz parte da tese em andamento intitulada: “Entre o político e o historiador:
Brasil Pinheiro Machado e a historiografia paranaense”, sob orientação do professor Rogério Rosa
Rodrigues, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Santa
Catarina (UDESC).

Desde o final da graduação acompanhamos os debates acerca de história intelectual


paranaense no Grupo de Pesquisa História, Intelectuais e Educação no Brasil no contexto
internacional (GEPHIED) coordenado pelos professores Névio de Campos e Maria Julieta Weber
Cordova, na Universidade Estadual de Ponta Grossa. E também no grupo de pesquisa de
Historiografia Paranaense, então coordenado pelo professor Antônio Paulo Benatte. Naquela

*
Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina
(UDESC), sob orientação do professor Rogério Rosa Rodrigues. Mestre em História (2017) e mestre em Ciências
Sociais Aplicadas (2016), ambas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
1145

ocasião, tomamos contato com a produção acadêmica da primeira geração de professores da


Universidade Federal do Paraná, do qual resultou a dissertação do Mestrado em Ciências Sociais
Aplicadas, intitulada Regionalismo Paranaense: do esboço de uma história regional do Paraná à História do
Paraná (1951-1969), sob orientação da professora Maria Julieta Weber Cordova, defendida em 2016
e a dissertação de Mestrado em História, A construção da história demográfica na historiografia paranaense:
a historiadora Altiva Pilatti Balhana, sob orientação da professora Helena Isabel Mueller, defendida
em 2017.

Parte das fontes utilizadas naquelas pesquisas foram artigos, atas, cartas, prefácios, livros e
também do arquivo pessoal da historiadora Cecília Maria Westphalen, colega de departamento de
Balhana e Machado, com quem compartilhou textos e coletâneas, enquanto parte do metier
historiográfico que se delineou no final dos anos 50, a partir da criação do Departamento de
História da Universidade Federal do Paraná, recém-federalizada.

Desde os mestrados, nos inquietava a referência a Brasil Pinheiro Machado na produção


de história regional paranaense. Muito semelhante ao que ocorreu com Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque Holanda, Machado acabou sendo consolidado como cânone, porém, a partir de um único
texto, o Esboço de uma sinopse de História regional do Paraná, escrito em 1951, que integrou as
festividades do Centenário da Emancipação Política do Paraná (1953).

O arquivo pessoal do historiador foi doado em 2013 pela família ao Centro de


Documentação de Pesquisa em História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, através da
mediação da professora Helena Isabel Mueller, que foi amiga pessoal desde a infância de Maria
Célia Pinheiro Machado Paoli, filha de Machado. O arquivo é formado por revistas, recortes de
jornais, cadernos de anotações, correspondências, livros de poemas, artigos publicados,
manuscritos, relatórios e crônicas. Ainda em fase de catalogação, parte das fontes foram utilizadas
na pesquisa de pós-doutorado da professora Maria Julieta, Brasil Pinheiro Machado: um estudo de história
intelectual, defendida em 2019.

Como exposto acima, Machado já havia sido objeto de pesquisa de outras historiadoras,
com outros recortes, problemáticas, dos quais destacamos as teses de doutorado de Maria Julieta
Weber Cordova, Tinguís, Pioneiros e Adventícios na Mancha Loira do Sul do Brasil: o discurso regional
autorizado de formação social e histórica paranaense, defendida em 2009 e de Tatiana Dantas Marchette, A
trajetória de Brasil Pinheiro Machado e a construção da historiografia do Paraná no território acadêmico; 1928-
1953, defendida em 2013.

Machado nasceu em 1907 em Ponta Grossa, Paraná, em uma família tradicional paranaense
ligada aos negócios agrários (Oliveira, 2001) e devido às demandas da sua classe, foi estudar no Rio
1146

de Janeiro, no Colégio Liceu dos Padres Salesianos. Em 1926, ingressou no curso de Direito, na
Faculdade Nacional de Direito, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, momento que se
envolve com o Movimento Modernista. (Cordova, 2009, p. 156).

A partir da leitura dos trabalhos acima e da organização da pesquisa a partir da História do


Tempo Presente, problematizaremos as relações entre a prática docente e o envolvimento político
do historiador. Após o término do curso de Direito, Machado retornou à Ponta Grossa como
docente do Ginásio Regente Feijó, onde mais tarde foi diretor, além disso, foi nomeado prefeito
da cidade de Ponta Grossa em 1932. Em 1935 foi eleito deputado estadual pelo PSD, mas teve o
mandato interrompido pelo Estado Novo. Retornou a Ponta Grossa em 1936, casando-se com
Suzana Diez Jeart Pinheiro Machado. Nesse mesmo ano, foi eleito novamente deputado estadual
pelo PSD. Entre 1937 e 1938, continuou atuando como docente do colégio Regente Feijó, porém
muda-se para Curitiba em 1939. (Marchette, 2013, p. 11-12).

Atravessado pelas tensões da carreira acadêmica e da carreira política, em 1939 Machado


passou a integrar as discussões no Círculo de Estudos Bandeirantes (CEB), espaço de debate da
intelectualidade católica paranaense que visou formar uma elite dirigente que ocupasse diversos
postos políticos no estado. (Campos, 2006, p. 28).

Nem mesmo no campo acadêmico Machado se desvencilhou das atividades político-


administrativa, pois foi diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFPR, entre 1939 e
1951. Na Universidade, atuou ativamente, ocupando diversos cargos institucionais até sua
aposentadoria compulsória em 1977. Neste mesmo período, Machado conciliou a carreira política
com a acadêmica, enquanto procurador-geral da justiça do Paraná entre 1939 e 1945. Foi nomeado
interventor do estado do Paraná em 1946. De 1947 a 1951, foi eleito deputado federal pelo PSD.
Em 1950 Machado assumiu a cátedra de História do Brasil na Universidade do Paraná.

Detentor de diversos capitais (dos quais destacamos o político e acadêmico), Machado


integrou em 1951 a comissão organizadora das comemorações alusivas ao primeiro Centenário da
Emancipação Política do Paraná, representando outra instituição a qual fazia parte, o Instituto
Histórico Geográfico Etnográfico do Paraná (IHGEP). As comemorações foram articuladas pelo
governador e também professor da Universidade Federal do Paraná, Bento Munhoz da Rocha
Netto. Foi nesse contexto que Machado produziu o texto Esboço de Uma Sinopse de História Regional
(1951), texto que anos mais tarde o consagrou como uma leitura clássica dos estudos sobre História
regional paranaense.

Para Ricoeur (2010, p. 415) ao discutir o conceito de lugares de memória de Pierre Nora,
destaca como esses monumentos dedicados à comemoração (calendários, monumentos, arquivos,
1147

festas, dicionários) são oferecidos como objetos simbólicos de sustentação de um passado


vivenciado, como vestígios de memória. O livro que seria lançado em comemoração ao centenário,
cumpriria o sentido funcional e simbólico dos lugares de memória, visando fortalecer o sentimento
de pertencimento a uma determinada identidade paranaense.

Assim, como observado por Albuquerque Júnior (1990) ao pensar a invenção do Nordeste,
o recorte regional deve ser desconstruído, problematizado, compreendido enquanto prática
discursiva, nos termos de Foucault, que relaciona o conceito de região ao regionalismo paranaense.

Como destaca Albuquerque Júnior (2008), a história regional toma a região como um lugar
a priori, visando reafirmar a legitimidade para essa produção no campo acadêmico. Portanto, a
atuação de Machado é importante na organização de uma identidade para essa produção, enquanto
uma forma de saber em vias de institucionalização nos anos 50 e 60. A sua proposição de história
regional tinha como ponto de partida a ocupação do estado, entre os séculos XVIII e XIX, o que
ele chamou de Paraná Tradicional (litoral, Curitiba e Campos Gerais) e o Paraná Moderno (Norte
e Sudoeste). Organizações culturais e econômicas bastante distintas no espaço-tempo, que ele
buscou articular a um passado em comum, a partir do conceito de comunidade histórica.

A produção historiográfica de Machado oscilou entre dois regimes historiográficos, um


antigo; o dos Institutos Históricos Geográficos, da produção dos eruditos e ensaístas locais e outro
moderno; que buscava construir uma produção mediatizada pelos pressupostos teórico-
metodológicos da ciência histórica, e por isso ao longo da sua trajetória acadêmica buscou refletir
sobre sua prática, além de contribuir para a consolidação da produção acadêmica na Universidade
Federal do Paraná.

Após o levantamento de fontes para a tese, ficou evidente a referência ao texto de Machado
em praticamente todos os textos acadêmicos e fora da academia, no que se referem à história
regional paranaense. Apesar de não ter sido o objetivo do texto, que na verdade pretendia ser um
roteiro de um livro de História do Paraná, acabou se tornando um “clássico” e um conceito de
história regional.

Confesso, que num primeiro momento foi se desvencilhar dessa construção discursiva que
sacralizou o texto enquanto clássico. Mas, enquanto parte do processo de construção do
conhecimento também é pautado em desconstrução, mediada pela intervenção do meu orientador
nesse processo, comecei a problematizar o processo dessa consagração do texto de Machado e do
conceito de história regional:
1148

O historiador do regional seria aquele que poria em questão as versões, as


identidades, as verdades, as essências atribuídas às regiões. Seria aquele que abriria
estas espacialidades a novas possibilidades de significação, de nomeação, de
apropriação, de simulação. O historiador do regional seria aquele que se voltaria
contra qualquer cristalização do regional, que fugiria do gesto comum de alojar a
região no passado, numa origem: seria aquele que tomaria o recorte regional
como espaço de experiências aberto a horizontes de possibilidades outras.
(Albuquerque Júnior, 2008, p. 64)

A produção de Machado foi consagrada no ambiente acadêmico, a partir do seu conceito


de história regional o que consolidou uma determinada imagem para a sua produção, fornecendo
a base para a construção de uma identidade para a produção acadêmica paranaense. O que pode
ser observado na reedição do texto do esboço na Revista Questões e Debates da UFPR, em 1987:

Várias gerações de professores e estudantes de História têm utilizado a idéia de


um modelo explicativo da história regional, tanto na investigação como no ensino
de História do Paraná. Esta Revista já publicou texto que tratavam explicitamente
da questão, além de artigos do próprio professor Brasil Pinheiro Machado; a
referência a ele é constante em dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado,
e suas hipóteses fundamentais testadas obrigatoriamente em trabalhos que
resultam de pesquisas sobre o Paraná tradicional. Portanto, quase quarenta anos
após a sua primeira publicação, seu conteúdo continua atual, além de sua
importância para a historiografia paranaense. (Questões & Debates, 1987, p. 177)

Brasil é um dos organizadores do Departamento de História da UFPR (1959). Ele é


formador da primeira geração de professores acadêmicos nomes como Altiva Pilatti Balhana,
Cecília Maria Westphalen, Jaime Antônio Cardoso, Odah Boruszenko, entre outros.

Essa geração foi responsável por construir e consolidar um campo de produção acadêmica
na UFPR, responsável pela recepção dos Annales no Paraná. Dialogando com autores como Pierre
Chaunu, Fernand Braudel, Fredéric Mauro e Louis Henry.

De acordo com Ricoeur (2010), para uma geração servir de modelo para os demais, ela deve
ser interiorizada e organizar uma memória histórica. Assim, os primeiros professores do
Departamento de História da UFPR teceram a partir do texto do Esboço de Machado, uma memória
histórica para a produção que serviu de fio condutor para as gerações seguintes. Fato que se
estendeu até a criação do Programa de Pós-Graduação em História a nível de Mestrado em 1972,
com concentração em História do Brasil e duas linhas de pesquisa, uma delas em História
Demográfica e outra em História Econômica. (Cardoso, 2005, p. 22).

Como destacado Nicodemo (2018), a primeira geração de professores universitários se


notabiliza pela preocupação com o estatuto científico da História, buscando construir uma
individualidade e um caráter científico para a disciplina. Em seus textos, Brasil teceu uma relação
com a temporalidade, buscando responder as demandas do presente. Foi a partir do presente que
1149

o historiador relacionou as temporalidades, instaurando um lugar do passado no presente. Não era


uma mera ordenação do tempo enquanto processo de organização de um sentido para a
organização do Paraná enquanto estado, mas apreendê-lo a partir das suas próprias condições, não
apenas em sentido ao progresso.

A partir das orientações de João Ribeiro, Capistrano de Abreu e Varnhagen, o passado


paranaense deveria convergir para o nacionalismo brasileiro e a partir de uma proposta de síntese
que ele trouxe de João Ribeiro, a partir da qual Machado buscou compreender a organização de
núcleos coloniais e sua expansão para o interior.

O insigne João Ribeiro foi o mais profundo continuador dessa diretriz. Sua
pequena mas inestimável, “História do Brasil”, apareceu em 1900. Aí o
historiador declara ser o “primeiro a escrever integralmente nossa história
segunda nova síntese”, que muito se distinguia dos precedentes autores, que não
seguiam outro caminho sinão “o da cronologia e da sucessão de governadores,
caminho seguro mas falso em um país cuja história se fazia ao mesmo tempo por
múltiplos estímulos em diferentes pontos”. (Machado, 1987, p. 180)

A partir da dinâmica dos estratos do tempo, buscamos compreender as diferentes camadas


que compõem o tecido da história regional, relacionando a experiência desse intelectual na
produção historiográfica paranaense, as suas percepções sobre História, método, referências
teóricas, além dos pressupostos teóricos e metodológicos que orientam a história regional
paranaense, quais seus limites, quais as disputas e tensões. A partir de uma perspectiva
arqueogenealógica.

Ao tomarmos a produção de Machado, percebemos o processo de organização da História


enquanto disciplina no Paraná, organização de critérios, problemas e saberes. Como destaca
Nicollazi (2017, p. 14), trata-se de pensar a organização da consciência historiográfica, que buscava
legitimidade e reconhecimento no campo acadêmico. Assim, compreendemos as particularidades
dessa investigação e organização de uma identidade intelectual e de uma determinada cultura
histórica, nos termos de Le Goff.

Ao pensarmos a referência de Machado na organização da historiografia acadêmica


paranaense se deu a partir da constituição do Departamento de História da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade do Paraná em 1959. A Ata que se refere à fundação do
Departamento foi redigida em 1964 e foi publicada em 2009 na Revista Questões & Debates da
Universidade Federal do Paraná. (Almeida, 2017, p. 55). Para além da anamnese da sua fundação,
podemos compreender como os professores que compunham o corpo docente buscaram organizar
diretrizes para a produção acadêmica e como ponto de partida dessa configuração acadêmica,
1150

organizaram seminários de revisão da historiografia paranaense. Entre os professores presentes


estavam: Brasil Pinheiro Machado, Altiva Pilatti Balhana, Cecília Maria Westphalen, Jayme Antônio
Cardoso, Odah Regina Guimarães Costa e Oksana Boruszenko. (Ata, 2009, p. 285).

As diretrizes do Departamento seguiam as tendências observadas pela então chefe


departamental Cecília Westphalen, que havia regressado da Alemanha e França, trazendo na
bagagem um programa de pesquisas que deveria ser implementado no Departamento. Tratava-se
de uma reivindicação epistemológica, através da qual os docentes pretendiam instaurar um campo
de pesquisas acadêmica. Para tal atividade, foi instituída a prática de “Seminários de História”.

É finalidade do “Seminário de História” promover e realizar sessões de


Seminário sôbre o ensino da História, a pesquisa histórica, a teoria da História,
ou qualquer outro problema da ciência histórica; Artigo 3º.) - Para cumprir sua
finalidade, o “Seminário de História” será composto por três Secções de Estudos:
a) de Ensino da História; b) de Pesquisa da História; c) de Teoria da História. §
único – Cada Secção será dirigida por um Diretor, cuja função é a de promover
estudos e pesquisas históricas, como matéria preparatória para as sessões de
Seminário. (Ata, 2009, p 286)

Uma nova perspectiva se abria não apenas aos docentes, mas também aos estudantes,
buscando aos poucos implementar a prática da pesquisa, pois promoveriam sessões, publicações,
incentivando os docentes que se dedicassem à pesquisa em História. O que nos permite inferir, é
que essas proposições foram feitas pela segunda geração de professores, que possuíam um
diferencial, eram formados em História e haviam feito pesquisa em Institutos na Europa. Como
podemos observar nas professoras Altiva Pilatti Balhana e Cecília Westphalen. Balhana, havia
estagiado em 1957 no Musée de l'Homme em Paris e na Suíça no Comitê Intergouvenemental pour
les migrations européennes, tornando-se doutora em 1959. Westphalen, tornou-se doutora em
1957 e estagiou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colônia, Alemanha em 1958.

Além dos seminários, concentraram esforços na organização de fontes e arquivos de


pesquisa, dialogando com outros centros de pesquisa no Brasil, principalmente com a Universidade
de São Paulo e fora do Brasil, com École de Hautes Études. (Ata, 2009, p. 288).

Segundo Nora (2000 p. 413) a perda de referência à ideia de Estado nação, organiza uma
nova relação entre a história e a memória. Tratava-se do fim das sociedades memória e surge uma
memória que poderia ser apreendida pela História, o que ele chama de o “reinado do arquivo”, no
qual, o arquivo se apresenta como um expurgo da memória perdida.

A primeira sessão do Seminário foi realizada em 23 de setembro de 1959, na qual os


professores empenharam-se em uma revisão da Historiografia paranaense, buscando avaliar as
produções, seus limites e a partir disto construir um ponto de partida. (Ata, 2009, p. 290). Desta
1151

forma, o Seminário cumpriria com vários objetivos, dos quais destacamos: construir projetos de
pesquisa no Departamento, atualizar os docentes das perspectivas teórico-metodológicas da
disciplina e construir um centro de pesquisas acadêmicas no Paraná, que pudesse ser referência às
demais Universidades do estado.

No seminário, Machado analisou o livro História do Paraná de Romário Martins, publicado


originalmente em 1899. Em sua análise, nos fornece indícios dos seus anseios e preocupações com
a história regional, que aciona ao analisar a obra:

a) – O conceito de história regional, dentro do complexo da História do Brasil.


b) – Cada uma dessas histórias regionais tem uma “ambientação” que a diferencia
das outras. c) – A possibilidade, no estado atual de pesquisas, de se escrever uma
história geral do Paraná. d) – O estado atual da pesquisa histórica regional do
Paraná. e) O meio geográfico como fator da história regional. (Ata, 2009, p. 292)

Machado tentava articular as diferentes experiências temporais que compunham a História


do Paraná e o fio condutor dessa dita “História Geral” seria a história regional. A partir da obra de
Romário Martins, Machado buscou dar um novo sentido ao texto do Esboço de uma sinopse de História
Regional, de 1951.

A sensação é que para organizar um programa para a disciplina, tudo precisava ser feito.
Construir referências, realizar leitura crítica da produção anterior, para legitimar essa produção,
aprofundamento teórico e metodológico, a partir de intercâmbio com os principais centros de
pesquisa, no Brasil, a Universidade de São Paulo e na França, a École de Hautes Études. Não bastava
refletir sobre a situação da historiografia paranaense, mas construir uma rede de sentidos que ligasse
a produção acadêmica à produção anterior, demarcando a história regional como um interesse em
comum. Além disso, enfatizando a necessidade em se escrever uma História Geral do Paraná.

A estes historiadores se colocavam vários problemas: organizar uma história


compreensível, ordenar as múltiplas temporalidades de forma coerente e elaborar uma pretensa
identidade para essa produção, articulando a produção historiográfica paranaense à História do
Brasil, sem perder de vista as individualidades e particularidades. Era necessário fazer aproximações
e afastamentos, afinal o que a produção acadêmica diferiria da produção dos eruditos? Como
relacionar as diferentes formas temporais e discursivas contidas no texto de Romário Martins?

No campo das particularidades da produção acadêmica, os docentes do Departamento


foram se especializando em correntes imigratórias; Balhana, em estudos sobre italianos; Oksana,
sobre ucranianos e formando a segunda geração de docentes, alinhada às concepções teóricas da
1152

História Quantitativa e Demográfica, Ruy Wachochicz sobre os imigrantes poloneses e Sérgio


Odilon Nadalin, sobre os imigrantes alemães.

No campo das diferenciações, o Departamento de História da Universidade Federal do


Paraná foi alinhando-se ao Estruturalismo da Escola dos Annales, correspondendo-se com Fernand
Braudel frequentemente e da História Demográfica de Fredéric Mauro e Louis Henry. Assim,
nesses primeiros anos do Departamento, os historiadores buscaram fortalecer os laços com a
historiografia francesa, seja enviando estudantes para cursar mestrado e doutorado na Europa
como foi o caso de Jaime Cardoso, ou de trazendo os pesquisadores franceses para darem cursos
na UFPR.

Romário Martins seria o fio condutor da historiografia paranaense em outros momentos,


mesmo que de forma anacrônica, dando ênfase à preocupação quantitativista e com a organização
imigrante, no livro “A História do Paraná” de 1937.

Assim, a escrita de Machado, enquanto uma experiência transversalizada no tempo,


relacionou presente, passado e futuro. Buscando refletir as mudanças sociais que se operavam e
inserindo-as ao desenvolvimento global. Machado ao observar seu tempo, contruiu na narrativa
uma imagem de si e da sociedade do seu tempo, com uma determinada profundidade temporal. A
relação entre o velho (as estruturas sociais, econômicas, as velhas elites), se colocava um novo,
novas perspectivas, a expansão capitalista e o processo de modernização das cidades e a
industrialização.

Ao tomarmos esse processo de instauração da historiografia acadêmica paranaense, a partir


das preocupações de Machado, visamos refletir sobre o seu lugar de enunciação e a organização de
uma prática, ou seja, a historiográfica, como destacado por Nicodemo et. al (2018, p. 84): “A
releitura desses textos “fundacionais” a partir de nosso presente coloca-nos diante de dilemas ainda
não resolvidos. Podem ser mesmo tensões constitutivas da escrita da história”.

A partir desse texto fundacional, destacamos a relação entre a memória e a identidade na


produção historiográfica paranaense, buscando compreender como estas foram transmitidas pela
primeira geração de professores, que buscavam projetar e produzir legitimidade para a produção
acadêmica paranaense no campo acadêmico nacional e internacional. Como ressaltado por Pollak
(1992 p. 5-6), construir uma memória atrelada à identidade significava construir uma imagem de si
para os outros, fortalecendo as relações de pertencimento e continuidade no tempo. Além disso,
sem perder de vista o processo de consagração de um autor e de uma obra.
1153

Dito isso, percebemos como o texto de Machado foi investido de sentido pela primeira
geração de professores da UFPR, que evocaram a partir dele um sentimento de pertencimento, de
unidade, de coerência e continuidade para a historiografia regional. Pois no texto Machado
organizava uma determinada cronologia para a História do Paraná, que foi apreendida e seguida
pelas demais gerações de pesquisadores que se propuseram trabalhar com temas relacionadas à
história regional paranaense. O conceito de história regional pode ser compreendido como um
enquadramento da memória, nos termos de Pollak (1992), que visa relacionar e ordenar um
determinado passado e relacioná-lo a uma identidade e memória.

Essa demarcação separaria a produção dos eruditos locais e a produção universitária a partir
de 1959, que se fortaleceu com o aumento das publicações acadêmicas, estreitamento das relações
da historiografia com as demais ciências, formação de professores para atuar no ensino secundário,
além de reafirmar o papel da História na construção nacional. (Arruda; Proença, 2013, p. 245-246).

Para Rousso (2016, p. 16), o historiador pode ser compreendido entre dois polos: o a
experiência vivida e a produção narrativa. Dessa forma, percebe-se as tensões entre a experiência e
a produção do conhecimento, que se colocavam ao autor, o peso do passado a ser superado e o
presente alinhado à uma expectativa de futuro.

Conforme problematizado por Rousso (2016), podemos pensar a historicidade do texto


historiográfico, problematizando a atuação deste intelectual diante das demandas do presente, além
de perceber as diferentes temporalidades que subsistem no seu texto. Além disso, significa
problematizar a atuação deste intelectual na organização de um campo disciplinar.

Consideraçõs Finais

Machado guardava vários resquícios de uma tradição dos intelectuais da primeira metade
do século XX, recrutado pelo seu capital político e também por estar vinculado aos centros de
produção intelectual como Círculo de Estudos Bandeirantes e o Instituto Histórico Geográfico e
Etnográfico Paranaense. Assim como outros intelectuais do seu tempo, pôde produzir de forma
mais autônoma, além de ajudar a construir as diretrizes e bases da historiografia acadêmica, os
métodos e conceitos que mais tarde regulariam a prática dos historiadores.

A história regional foi predominante até meados dos anos 2000, fato evidenciado a partir
da fundação de revistas acadêmicas, exemplo disso é a Revista de História Regional da Universidade
Estadual de Ponta Grossa, fundada em 1996. Assim, mesmo após sua aposentadoria em 1977, a
produção de Machado continuou sendo apropriada e ressignificada no campo acadêmico.
1154

A historiografia regional dos anos 60 e 70 só começou a ser criticada a partir da


descentralização acadêmica, com a criação das Universidades Estaduais a partir dos anos 60 (UEL,
UEM e por último UEPG), esta última devido à proximidade, permaneceu ligada à UFPR até os
nos anos 2000, pois, a maioria do seu corpo docente fez graduação ou fez mestrado na UFPR.

A produção discursiva de Machado enquanto historiador, vai sendo construída a partir da


história regional e organiza um saber. Na sua escrita é possível perceber o descompasso entre os
anseios intelectuais e as condições da sociedade. Haviam múltiplos tempos, o passado a ser
superado e o moderno, enquanto projeto político.

A partir de modelos teóricos e conceituais, o historiador buscou refletir sobre a sociedade


do seu tempo, tomando consciência dos limites do seu trabalho, mas conferindo a ele critérios que
compunha o programa da disciplina que foi sendo instaurado na UFPR, uma produção
institucionalizada que pudesse ser referência aos historiadores paranaenses.

Referências

Albuquerque Júnior, Durval M. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de


região. Revista Fronteiras, Dourados, v. 10, n. 17, jan./jun. 2008, p. 107-126.

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& debates, 8(14/15):177-205, jul.-dez. 1987.

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Ricoeur, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas/SP: Unicamp, 2007.


1156

A “questão jurídica” nas páginas de “A Província de São Paulo”:


duas estratégias de protesto de Luiz Gama

Lizandra Júlia Silva Cruz*

Resumo: Até o presente, os estudos sobre Gama se encontram mais presentes entre os estudiosos
das letras e da literatura, do que entre a produção historiográfica e mesmo entre os estudos
jurídicos. Recentemente, contudo, novos estudos denotam a dimensão da riqueza ainda pouco
explorada de seus escritos475. Para o presente trabalho, partiremos da análise de um artigo publicado
no jornal A Província de São Paulo, escrito por Gama em 18 de dezembro de 1880, para analisarmos
sua postura enquanto jurista e como jornalista que utiliza de sua visibilidade pública para denunciar
os desgovernos do Império brasileiro, buscando evidenciar duas de suas estratégias de luta e
protesto a partir da lógica do Estado.

Palavras-Chave: Luiz Gama, Direito, Estratégias de protesto.

É possível precisar o início da trajetória da presente pesquisa com a execução da disciplina


obrigatória de nome Formação do Estado-Nação no Brasil, ministrada pela professora Dra. Maria Clara
Sales Carneiro Sampaio, no segundo semestre do ano de 2017, para os alunos e alunas do curso de
Licenciatura em História da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), no
campus de Marabá. Dentre os principais temas do curso – que compreendeu majoritariamente o
período imperial brasileiro – a questão da escravocracia permitiu que se evidenciasse o papel
fundamental de Luiz Gonzaga Pinto da Gama, o Luiz Gama (1830-1882) para os movimentos
abolicionistas no Brasil. Constatou-se, então, que dentre as mais afamadas figuras do contexto
histórico do Segundo Reinado, Luiz Gama se mostrou desconhecido por parte considerável dos
estudantes matriculados na disciplina. Dentre aqueles e aquelas que não sabiam de suas
contribuições históricas (para além das contribuições literárias, jurídicas, políticas e etc.), estava a
autora do presente trabalho, Lizandra Júlia Silva Cruz.

* Lizandra Júlia Silva Cruz é graduada em Administração pela Universidade Paulista (UNIP, 2018) e Licenciada em
História pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA, 2019). Atualmente finaliza a pesquisa de
mestrado no Programa de Pós-graduação em História (PPGHIST-UNIFESSPA), sob a orientação da Profa. Dra.
Maria Clara Sales Carneiro Sampaio. Tem se dedicado ao estudo da obra jornalística e epistolar de Luiz Gama desde
2017.
475 Na historiografia: Azevedo, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.

Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de pesquisa em História Social da Cultura, 1999; Pinto, Ana Flávia
Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista/Ana Flávia Magalhães
Pinto – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018; Santos, Eduardo Antonio Estevam. Luiz Gama, um intelectual
diaspórico: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882).
Doutorado em história, PUC-SP, 2014.
1157

A constatação sobre o pouco que se sabia sobre Gama acabou por ensejar não apenas o
presente trabalho (que compôs o corpo da monografia citada adiante), como resultou em outras
pesquisas e textos: dentre eles, o trabalho de conclusão de curso de Cruz, defendido em 2019, na
Faculdade de História (FAHIST) do Instituto de Ciências Humanas (ICH) da UNIFESSPA,
intitulado: “Abolição, protesto escravo e ensino de história: reflexões acerca de algumas perspectivas de Luiz Gama
sobre escravidão e liberdade”. Atualmente, as pesquisas continuam para Cruz em nível de mestrado
acadêmico no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST-UNIFESSPA), sob orientação
de Sampaio e com regime de dedicação exclusiva a pesquisa com o apoio da Fundação Amazônia
de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA).

Ante o exposto, traçar a trajetória ascensional de Luiz Gama nos colocou diante de um
acervo de escritos de sua autoria que pode nos proporcionar um conjunto de reflexões sobre sua
atuação contundente e resistente na luta pela à abolição no Brasil do século XIX. Para além de seu
livro Primeiras Trovas Burlescas de Getulino – 1859, dispomos de uma série de cartas, artigos
jornalísticos e peças jurídicas que podem possibilitar a construção das múltiplas facetas desse sujeito
histórico.

Até o presente, os estudos sobre Gama se encontram mais presentes entre os estudiosos
das letras e da literatura, do que entre a produção historiográfica e mesmo entre os estudos
jurídicos. Recentemente, contudo, novos estudos denotam a dimensão da riqueza ainda pouco
explorada de seus escritos476. Para o presente trabalho, partiremos da análise de um artigo publicado
no jornal A Província de São Paulo, escrito por Gama em 18 de dezembro de 1880, para analisarmos
sua postura enquanto jurista e como jornalista que utiliza de sua visibilidade pública para denunciar
os desgovernos do Império brasileiro, buscando evidenciar duas de suas estratégias de luta e
protesto a partir da lógica do Estado.

476Na historiografia: Azevedo, Elciene. Orfeu de carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de pesquisa em História Social da Cultura, 1999; Pinto, Ana Flávia
Magalhães. Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista/Ana Flávia Magalhães
Pinto – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018; Santos, Eduardo Antonio Estevam. Luiz Gama, um intelectual
diaspórico: intelectualidade, relações étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882).
Doutorado em história, PUC-SP, 2014.
1158

Figura 1 - página inicial do artigo “Questão Jurídica”

Fonte: Acervo Estadão. Disponível em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18801218-1744-nac-0005-999-5-


not

Com esta fonte buscaremos evidenciar suas marcas como um jurista que acreditava que
somente a legislação podia reger e “salvar” uma Nação, tornando-a livre das injustiças causadas
pelo regime escravista, como ele mesmo coloca em suas primeiras colocações no artigo “Questão
jurídica” quando diz que “só o poder judiciario podia salvar uma nação” (Gama, A Província de
São Paulo, 1880), e um intelectual que utilizou de sua conquista de visibilidade na esfera pública
para denunciar a escravidão e os desgovernos do Império brasileiro, apontando esta estratégia
como uma forma de protesto de alguém que passou por esta experiência e que, quando livre,
buscou apoiar as variadas formas de protestos escravos477.

Para que este ocupasse tais espaços e auferisse tais posições Ligia F. Ferreira (2012) aponta
que só foi possível porque Gama “provou seu valor” com a publicação de sua única obra literária,
o que o fez ascender socialmente, juntamente com a rede de relações que este conseguiu
estabelecer, em posições que nunca foram construídas para os negros e tampouco para os que
advinham da experiência da escravidão. Destaca Ferreira (2012, p. 13):

Depois de provar o sucesso e a legitimação propiciados pela publicação do seu


livro Luiz Gama não abraçaria outro projeto literário e, em meados dos anos de
1860, dá início a suas atividades na imprensa paulistana na qual viria a cumprir
papel histórico.

O ato de escrever acabou por pautar a vida cotidiana de Gama e esta ferramenta foi o que
lhe permitiu empreender caminhos pioneiros. Para citar apenas um exemplo, com o caricaturista
Angelo Agostini fundou em 1864 o primeiro periódico ilustrado da cidade de São Paulo, o
semanário Diabo Coxo. De maneira geral, o período em que este começa a se destacar publicamente
em jornais tem como base o recorte histórico que “[...] enfoca um período determinante da história

É importante destacar que não discutiremos os termos “autonomia”, “agência” e “protesto”. Para definições ver:
477

Machado, Maria Helena Pereira Toledo. Da autonomia escrava: uma nova direção para a História Social da Escravidão.
Rev. Bras. de Hist. S. Paulo, v. 8 nº 16, pp. 143-160, mar.88/ago.88; Reis, João José. Resistência escrava na Bahia:
“poderemos brincar, folgar e cantar...”: o protesto escravo na América. Afro-Ásia, 14 – 1983.
1159

brasileira cujas turbulências atravessam a vida e a carreira de Luiz Gama que se faria conhecer por
suas lutas em todo país.” (Ferreira, 2011, p. 92).

Diante dos apontamentos colocados, faz-se necessário que, em primeiro lugar,


compreendamos melhor a constituição e o papel da imprensa nesse período, bem como, como esta
foi utilizada por Gama para denunciar as arbitrariedades da monarquia brasileira, os
descumprimentos das Leis no que tangia a questão da escravidão, suas sátiras a tal regime e tantas
outras questões.

Ao lidar com o histórico da imprensa, Lilia Schwarcz aponta que este é breve, “tão breve
como sua história” (Schwarcz, 2017, p. 62) e que surgiu tardiamente no cenário brasileiro.
Enquanto na Europa os primeiros periódicos datam do início do século XVII, no Brasil este só
começou a circular – com o controle rígido da corte portuguesa – em 1808 com a vinda da Família
Real Portuguesa. De tal modo, o primeiro jornal a circular por aqui, “como não podia ser diferente,
tem como linha editorial divulgar e difundir os interesses da Coroa, sem conteúdo social.” (Jardim
e Brandão, 2014, p. 136).

Com a transferência da Corte portuguesa para a colônia a partir de 1808, esta torna-se o
Reino Unido de Portugal (1815) e a sede do Império, o que proporcionou a criação de uma
tipografia oficial e por sua vez desencadeou a produção de documentos oficiais, a Gazeta e também
os folhetins que, a partir da independência ganhariam ainda mais popularidade e ajudariam a
circular os novos ideais da Nação recém independente. “Com a criação da tipografia oficial,
começam a ser produzidos não apenas a Gazeta e a documentação governamental, mas também
outras obras populares como folhinhas, almanaques e textos literários e de cunho científico.”
(Oliveira, 2011, p. 132).

Enquanto o Brasil permanecia como Reino Unido de Portugal sua imprensa teve pouco
crescimento e, somente com a proclamação da independência, foi possível perceber um avanço
substancial no número de periódicos fundados e que começaram a circular pelo mais novo país
independente. Em São Paulo, por exemplo, o primeiro exemplar se deu somente em 1823 “[...]
com o lançamento de um jornal bissemanário denominado O Paulista, periódico que contava com
o apoio do governo da província.” (Schwarcz, 2017, p. 63).

A partir desse momento, a província foi tomada pela criação de diversos jornais que
tornaram significativos os números de circulação destes e exemplificam o quanto a imprensa tomou
grandes contornos num espaço que também estava em formação. Schwarcz (2017) aponta que
1160

[...] em 1840, existiam seis publicações na capital, sendo que já haviam aparecido,
até então, 22 periódicos. Esses números tenderam a elevar-se, já que em 1850
existiam 47 jornais e, de 1851 a 1860 apareceram 55 novos periódicos. Esses
dados tornam-se ainda mais relevantes se destacarmos que de 1861 a 1870
existiram sessenta novos jornais, de 1871 a 1880, oitenta periódicos; e, de 1881 a
1890, 273.
Só no ano de 1860, São Paulo presenciou o aparecimento de nada menos que
doze periódicos, para uma população de mais ou menos 20 mil almas. (Schwarcz,
2017, p. 63).

Dentro desse universo surge um dos periódicos que deu vazão aos discursos contundentes
de Gama que, é o cerne de nossa pesquisa, as páginas do jornal A Província de São Paulo, fundado
no Segundo Reinado, no ano de 1875 e que tinha como sua função primordial, assim como boa
parte dos jornais do período, a busca por uma eficiente comunicação de massa, bem como, ser
objeto de circulação dos ideais republicanos e de liberdade efervescentes no período.

Em 4 de janeiro de 1875 nasce este periódico que surgiu como uma ferramenta de combate
à monarquia e à escravidão e, transformou-se no atual jornal O Estado de São Paulo, como fica claro
na sua história:

O jornal O Estado de S. Paulo nasceu com o nome de A Província de São


Paulo. Seus fundadores foram um grupo de republicanos, liderados por Manoel
Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense, que decidiram criar um diário de
notícias para combater a monarquia e a escravidão. É estabelecida uma linha
mestra, que caracteriza o jornal até hoje: "fazer da sua independência o apanágio
de sua força". (acervo.estadao.com.br/historia-do-grupo/decada_1870 – acesso
em 15/04/2019 às 15:44).

Como o próprio acervo nos indica, este jornal existe até os dias de hoje e, foi um dos poucos
que resistiu as mudanças constantes quanto o “fazer jornal” no século XIX. Lilia Schwarcz em seu
livro Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX, esclarece que
estes periódicos, em sua maioria, tiveram vida efêmera e curta.

Entendendo a postura que o jornal tomou inicialmente para a sua criação, o documento
escolhido se faz representativo desses princípios. Para a segunda parte de nossa reflexão é preciso
compreender o que é este manuscrito e o que ele representou para a argumentação tão incisiva de
Gama. Este documento é uma publicação feita por ele ao periódico A Província de São Paulo em 18
de dezembro de 1880, na “Secção Livre”478, para expor sua indignação e denunciar a forma que o
Império estava conduzindo suas questões em relação as leis de proibição do tráfico de escravos.

478É importante destacar que optamos por usar a escrita das palavras conforme encontramos no documento com
ortografia da época.
1161

Esta edição do jornal possui 6 páginas divididas entre notícias locais, notícias de
investimentos, anúncios de aulas e duas “secções livres”, onde em uma delas é encontrada as
inquietações de Gama. Na quinta página do periódico encontramos este artigo escrito por ele
expondo sua aversão à arbitrariedade quanto a forma que o “Exmo. Sr. Desembargador Faria,
digno procurador da côroa, em energico discurso, apoiando-se nas opiniões dos Exmo. deputados
Sousa Lima, externado na câmara temporaria, e o conselheiro Nabuco de Araujo [...]” (Gama, A
Província de São Paulo, 1880) contrariaram o seu pedido de Habeas-corpus em favor do “preto
Caetano, africano livre, havido como escravo do sr. Comendador Joaquim Polycarpo Aranha,
fazendeiro do município de Campinas [...]” (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

A construção de toda sua narrativa é feita a partir do relato sobre a recusa do pedido de
Habeas-Corpus produzido por ele, onde o “desembargador Faria” com apoio de outros magistrados
relataram que a Lei de 26 de janeiro de 1818479 estava “implicitamente” revogada por conta da Lei
de 07 de novembro de 1831 e que este “facto” estava evidente para todos. Estas leis diziam respeito
ao cerceamento do tráfico transatlântico e previam que os africanos que estivessem a bordo dos
navios deveriam ser livres imediatamente e os donos das navegações deveriam ser levados a juízo
e punidos com perca de suas embarcações.

Neste artigo ao evocar três leis que serviram de base argumentativa para a defesa de Caetano
e, por conseguinte para toda sua crítica ao Estado, Gama aponta que todo seu posicionamento
crítico “[...] não estava só na insufficiencia das medidas legislativas, senão principalmente na
maxima corrupção administrativa e judiciaria que lavrava no paiz” (Gama, A Província de São Paulo,
1880). E, para além disso, este acreditava que o discurso feito pelo desembargador era perigoso e
que “só o poder judiciario seria bastante para resolver a questão! Este perigoso discurso; este
enviesado parecer do respeitavel magistrado obrigou-me a escrever este artigo.” (Gama, A Província
de São Paulo, 1880).

Esclarecidas as intenções do artigo de Gama, conforme a fonte nos aponta, o exercício de


reflexão a ser realizado pretende-se direcionar para duas questões: a maneira que ele usa extratos
dos diversos tratados e leis de proibição do tráfico de escravos para embasar seu argumento de que
o Império estava em delito e “onde impera o delicto, a iniquidade é lei” (Gama, A Província de São
Paulo, 1880) e por conseguinte a maneira que ele lida com a forma como os agentes do Estado

479Alvará redigido pelo magistrado Thomaz Antonio de Villanova Portugal, onde estabeleceu-se mais uma tentativa
de “prohibição do commercio de escravos em todos os portos da Costa d' Africa ao norte do Equador” (Cartas de
Leis e Alvarás Decretos e Cartas Régias, 1889, p. 7).
1162

agiam diante dessa situação, tornando-se condescendentes e claramente participes dessa


arbitrariedade.

Nosso primeiro passo, como sugere o próprio Gama é: “examinemos a questão de direito”
(Gama, A Província de São Paulo, 1880). Em 1815 foi celebrado entre Portugal e Grã-Bretanha um
tratado que proibia o tráfico de escravos, dois anos mais tarde ocorreu uma Convenção Adicional
que resultou, no ano seguinte (1818) no Alvará de 26 de janeiro que, em seu parágrafo principal
dizia:

Todas as pessoas, de qualquer qualidade e condição que sejam, que fizeram armar
e preparar navios para o resgate e compra de escravos, em qualquer dos portos
da Costa d’África, situados ao Norte do Equador, incorrerão na pena de
perdimento dos escravos, os quais <immediatamente ficarão libertos> [...]
(Gama, A Província de São Paulo, 1880)

Este é o primeiro extrato de lei utilizado por Gama para construir sua argumentação, cabe
destacar que a base argumentativa de nosso capítulo é a Lei de 7 de novembro de 1831, mas
utilizando o mesmo recurso que o próprio autor se vale, este trecho facilita uma introdução a
problemática, visto que, é por causa da suposta revogação deste alvará de 1818 que a Lei de 1831
entra em vigor “e que este facto, alias de maxima importancia, estava no espirito esclarecido de
todo o paiz e, dos poderes do estado, que cogitavam, com muito patriotismo e criterio, dos meios
de resolver o tormentoso problema do elemento servil. (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

Segundo ele, apesar da falta de interesse dos juízes em relação ao cumprimento deste Alvará
e da notória venda dos funcionários que “escandalosamente auxiliavam, sem o minimo rebuço, a
transgressão desta lei [...]” (Gama, A Província de São Paulo, 1880) era ela que deveria reger tanto
Portugal como Brasil. O cumprimento da legislação de proibição do tráfico era desrespeitado de
diversas maneiras que foi preciso elaborar uma sequência de novos “avisos” para tentar regularizar
a situação. Esse movimento é muito interessante para compreender as relações de força que o
Estado estabeleceu com os diversos meios da sociedade que aprovavam as medidas enquanto
documentos mas as desrespeitavam enquanto práticas.

Estes “avisos”, espécies de resoluções se tratando dos nossos dias, começaram a ser
editados em 14 de julho de 1821, sendo complementado por outro em 28 de agosto do mesmo
ano, dando “[...] instrucções á commissão mixta para regularidade do serviço de apprehensão dos
escravos e dos navios negreiros” (Gama, A Província de São Paulo, 1880), seguido por um
estabelecido em 3 de dezembro de 1821. Em 20 de outubro de 1823 se adotaria abertamente o
alvará de 1818 que, depois de tantos “reforços”, resultou em uma portaria expedida em 21 de maio
de 1831, evidenciada por Gama em seu artigo, onde o trecho principal dizia:
1163

[...] procedam immediatamente ao respectivo corpo de delicto e constatado por


este, que tal ou tal escravo boçal foi introduzido ahi por contrabando, façam delle
seqüestro, e o remettam com o mesmo corpo de delicto ao juiz criminal do
territorio, para elle proceder nos termos de direito em ordem a lhe ser restituída
a sua liberdade e punidos os usurpadores della, segundo o art. 179 do novo
codigo dando de tudo conta immediatamente á mesma secretaria. (Gama, A
Província de São Paulo, 1880)

Apontar toda essa legislação foi uma escolha argumentativa de Gama para chegar ao cerne
de sua questão, a promulgação da Lei Feijó, em de 7 de novembro de 1831 “[...] porque
reconhecesse o governo que a lei vigente por deficiencia manifesta, não attingia ao elevado fim de
sua decretação, e no intuito não só de vedar a continuação do trafico, como restituir á liberdade os
africanos criminosamente importados, promulgou nova lei” (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

Para ele, no entanto, todo esse arcabouço legislativo não era uma ferramenta eficaz nas
mãos dos governantes que insistiam em manter o tráfico funcionando com todo vigor e
descumprindo os claros artigos da Lei Feijó que, entre seus parágrafos, determinava que “todos os
escravos que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres; os
importadores de escravos no Brazil incorrerão na pena corporal do art. 179 do código criminal,
imposta aos que reduzem a escravidão pessoas livres” (Gama, A Província de São Paulo, 1880) entre
tantos outros parágrafos que versavam sobre estas questões.

Segundo Gama, essa ineficiência não estava apenas na insuficiência das leis e sim na
corrupção máxima dos agentes que deveriam agir para findar essa prática e, ao contrário disso,
“Ministros da côroa, conselheiros de estado, senadores, deputados, desembargadores, juizes de
todas as cathegorias, auctoridades policiaes, militares, agentes, professores de institutos scientificos
eram associados, auxiliares ou compradores de africanos livres” (Gama, A Província de São Paulo,
1880).

A realidade era que os embarques e desembarques aconteciam publicamente e renderam ao


Brasil uma quantidade muito grande de africanos livres480 introduzidos ao território após todas
essas leis. De 1817 a 1852, período de promulgação de todos esses tratados e leis, mais de um
milhão de pessoas desembarcaram nessas terras e foram escravizados ou colocados em trabalho
compulsório quando conseguiam comprovar que, de fato, eram “boçais”481.

480 Eram africanos livres aqueles emancipados em obediência às medidas de repressão do tráfico. No Brasil, ficaram
sob a responsabilidade da Coroa portuguesa e depois do Estado imperial brasileiro e deviam cumprir catorze anos de
trabalho compulsório para alcançar a “pela liberdade”. (Mamigonian, 2017, p. 19)
481 Beatriz Mamigonian explica que o termo boçal era utilizado para classificar os africanos recém desembarcados em

território brasileiro. Ver em: Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil – Companhia das Letras, 2017.
1164

A Tabela e a Linha do Tempo abaixo, encontradas no banco de dados Slave Voyages,


apontam as estimativas numéricas desse sistema de tráfico:

Figura 1 - Fonte: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates - acesso em 15/06/2019 as 17:00)


1165

Figura 2 - (Fonte: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates - acesso em 15/06/2019 as 17:09)

Como percebido nos dados, o número de africanos que entraram no país era exorbitante e
corrobora com o fato de que traficantes e governantes agiam em consonância, de maneira direta
ou indireta para a manutenção dessa prática criminosa. Entre os anos de 1817 a 1831, como aponta
a tabela e o desenho da linha do tempo, aproximadamente 712.865 pessoas entraram no país e, de
1831 a 1852, período de promulgação das Leis Feijó e Eusébio de Queiroz482, as mais significativas
desse período, entraram aproximadamente 738.599 pessoas, evidenciando a corruptibilidade
legislativa existente, como explica a historiadora Beatriz Mamigonian (2017):

A importação de dezenas de milhares de africanos desde a proibição do comércio


ao Norte do Equador demonstrava que comerciantes e compradores de escravos
haviam se adaptado à ilegalidade da mesma forma que autoridades encarregadas
da repressão haviam formulado um protocolo de conivência com o tráfico.
(Mamigonian, 2017, p. 63)

Diante de todos esses descumprimentos jurídicos e de toda gente que entrou em território
brasileiro, mesmo com a legislação, se fez crer que esses tratados e leis eram “para inglês ver e
estadista nenhum botar defeito” (Reis, 2017, p. 11). Quando tratam de a “lei para inglês ver”
referenciam comumente a Lei de 7 de novembro de 1831, evidenciando sua ineficácia, porém,
segundo João José Reis em seu prefácio ao livro Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no

482A Lei Eusébio de Queiroz foi promulgada em 4 de novembro de 1850 e foi a última estratégia utilizada para cessar
o tráfico de escravos até a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888. Ela não é objeto de nossa análise, por esse
motivo, não é contemplada com maior clareza em nosso capítulo.
1166

Brasil - 2017, “os abolicionistas brasileiros se mobilizaram com vigor em torno do que mandava a
regra de 1831 quanto a liberdade dos escravos ilegalmente introduzidos no país” (Reis, 2017, p.
11).

Não à toa, toda a argumentação de Gama em seu artigo é baseada nessa legislação e todo
seu rigor quanto a elas é para comprovar que o Império estava sendo corrupto e que não estavam
lidando com a jurisdição com a importância que ela impreterivelmente teria. Em outro trecho de
sua escrita aponta que reproduziu no contexto que ele elaborou para aquele artigo:

Os fundamentos da lei de 26 de janeiro de 1818, da portaria de 21 de maio e da


lei de 7 de novembro de 1831, do decreto de 12 de abril de 1832, da lei de 4 de
novembro de 1850; e expuz minuciosamente, guardando em tudo a verdade, aliás
provada, por factos irrecusaveis, os actos successivos, actos officiaes
governamentais dos quaes evidencia-se que a primeira das leis citadas, bem como
a subsequentes, estão em seu inteiro vigor. (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

E, se estão em seu pleno vigor e dentro do que se espera de um Estado que governe pela
lei

E’ principio invariavel de direito, é regra impreterivel de hermeneutica, que as


<leis novas>, quando são consecutivas e curam de factos anteriormente
previstos, interpretam-se doutrinalmente por disposições semelhantes
consagradas nas <antigas>.
O direito nasceu com homem, tem sua historia, conta um passado, revive no
presente, e é essencialmente progressivo. (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

Sob essa lógica, podemos ponderar o segundo ponto de nossa reflexão. O fato do jurista
Luiz Gama estar “[...] transformando a palavra, oral ou escrita, numa arma perigosíssima para as
instituições” (Câmara, 2010, p. 140) e perceber que suas palavras era uma maneira de criticar os
interesses dos poderosos e fortalecer as diversas formas de protestos dos escravizados e
escravizadas. Em diversos trechos da “Questão Jurídica” é possível perceber ironias e relatos de
casos que nos ajuda a compreender melhor o seu posicionamento.

Ao tratar, mais uma vez, da falta de rigidez dos “avaros defensores” (Gama, A Província de
São Paulo, 1880) das leis, Gama questiona:

Não ha no Brazil mais africanos a quem se deva restituir a liberdade? Afirma-lo


fora insania.
Na prepotencia dos fazendeiros que dominam o eleitorado? Na do eleitorado
que seduz aos magistrados politicos? Nas dos magistrados que julgam
parcialmente as causas dos correligionarios e amigos? Na dos conselheiros de
Estado, dos senadores e deputados, que dispõem da liberdade de milhões de
negros como administradores de fazenda?
1167

Mas isto é o cerceamento geral do Direito, é um attentado nacional, é a


precipitada escavação de um abysmo, é um crime inaudito, que só a nação poderia
julgar, convertida em tribunal! (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

E, como este mesmo destaca, todas as instituições do Império brasileiro trabalhavam em


conjunto para que o sistema escravista permanecesse intocável, com suas estruturas fortes e não
gerassem a liberdade daqueles que seriam a base de toda mão-de-obra existente no país. Em dois
casos, um hipotético e um real, ele levanta questionamentos quanto a que postura os governantes
tomariam em relação aos negros que estavam imersos nessa teia. No primeiro caso, o hipotético,
ele conjura a seguinte situação:

Dá-se um desembarque de africanos em um dos pontos da costa.


O capitão do navio, pressentindo o movimento seguro, perigoso, imminente da
auctoridade, foge com todos os seus comparsas e abandona os negros em terra,
sem deixar vestígios que o malsino.
A auctoridade apprehende os negros, mas não consegue descobrir quem os
conduziu, quando, nem que navio.
O que faz dos pretos? Vende-os?
Leva-os para si?
Suppõe-n’os cahidos do céu por descuido? Ou manda <constatar> que elles
emergiram do solo como tanajuras em verão? (Gama, A Província de São Paulo,
1880).

No segundo caso, o que ele aponta como verdadeiro, relata que um fazendeiro foi a capital
levando cartas aos “prestigiosos chefes políticos” (Gama, A Província de São Paulo, 1880) e as
autoridades pedindo ajuda para reaver dois escravos, africanos boçais, que haviam fugido e foram
postos em liberdade por comprovarem que entraram no país após a Lei de 1831, porém, obtendo
novas instruções das autoridades, o fazendeiro conseguiu gerar um anúncio que dizia o seguinte:

Os pretos F... e F..., postos ao serviço do Jardim Público dessa cidade, escravos
fugidos do fazendeiro B..., residente em A..., foram muito bem apprehendidos e
declarados livres pelo delegado de policia, como africanos illegalmente
importados no Império.
Cumpre, porem, considerar que esse facto, nas actuaes circunstancias do paiz, é
de grande perigo e gravidade; põe em sobressalto os lavradores, pode acarretar o
abalo dos seus creditos e vir a ser a causa, pela reproducção, de incalculaveis
prejuízos e abalo da ordem publica.
A lei foi estrictamente cumprida; há, porem, grandes interesses de ordem superior
que não podem ser olvidados, e que devem de preferencia ser considerados.
Se esses pretos desapparecessem do estabelecimento em que se acham, sem o
menor prejuízo do bom conceito das auctoridades e sem a sua responsabilidade,
que mal dahi resultaria? (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

Observemos que nas duas situações, tanto a hipotética quanto a real, Gama faz uma crítica
muito enfática em relação ao posicionamento do Império sobre essas questões. Ele coloca que,
para além do fato do cerceamento ilegal da liberdade dos africanos boçais, o Estado brasileiro, na
situação hipotética, não cumpre com os artigos previstos na Lei de 1831, que prevê liberdade
1168

imediata nesses casos e, que para além disso, não justifica o que faz com os negros encontrados, o
que os torna participes diretos da perpetuação da escravização deles. Na situação real, mesmo que
a Lei tenha sido cumprida, como o próprio anúncio sugere, o Estado move outros meios para que
as buscas aos “pretos F... e F...” sejam realizadas, com o argumento de que esses gerariam prejuízos
ao fazendeiro que os procurava.

Todos estes argumentos elencados nos ajudam a assimilar a postura de Luiz Gama frente
a jurisdição e ao Estado. Para ele tanto o parecer observado na última situação que observamos
quanto toda a postura do Império

[...] são formas de um só pensamento; representam um só interesse; sua origem


é o terror; seus meios, a violencia; seu fim, a negação do direito: os factos tem
sua logica infallivel.
E’ a prova inconcussa de um mau estado, é uma evolução lugubre da nossa
sociedade; uma das faces morbidas da sinistra politica do medo que a sobrepuja;
é uma mancha negra que, desde 1837, assignala indelevel a bandeira do partido
liberal. (Gama, A Província de São Paulo, 1880).

Diante de tudo isso, podemos perceber que Luiz Gama utilizou de suas diversas frentes de
lutas para protestar contra o regime escravista e contra o Estado brasileiro. Como advogado, usou
de todos os artifícios das Leis, principalmente a de 1831, para extrair sempre uma linha de raciocínio
jurídico que demonstrasse que seus clientes, escravizados e escravizadas, tinham direito à liberdade
em obediência as leis e aos tratados que foram observados pelas autoridades do Império. Como
intelectual, usou de sua carreira jornalística e política para trabalhar arduamente em defesa da
libertação escrava, como aponta Santos (2014):

Uma vez que acreditava na justiça e em suas operacionalizações nos processos


de libertação escrava, mas reconhecendo a necessidade da “resistência” nas
situações em que o poder jurídico é corrompido, só restava a Luiz Gama o espaço
do bacharelismo como campo de luta. (Santos, 2014, p. 35).

Como visto, o Direito foi seu campo de luta amplo e eficaz, porém, isso não retira das
outras frentes de lutas a grande importância que obtiveram e que fizeram de Gama um, dos vários
exemplos, de resistência e protesto frente a um Estado que perpetuou um regime cruel de
escravidão desde a colonização, suas ferramentas de embate que serviram para ditar o seu ser/estar
no mundo, como destaca Lígia F. Ferreira (2012) foram

O jornalismo como ferramenta de propaganda e de disseminação do ideal


republicano e abolicionista, a prática da advocacia principalmente voltada para a
libertação de escravos, a crítica ao regime monárquico e ao “modo extravagante
pelo qual se administrava a justiça no Brasil” se tornam caminhos convergentes
e formadores do “plano inclinado da política”, espinha dorsal da consciência de
Luiz Gama e de seu ser/estar no mundo. (Ferreira, 2012, p. 13)
1169

Diante de todos os apontamentos colocados, perceber a maneira que Luiz Gama se


posicionou perante a sociedade escravista do século XIX, desafiando o Estado ao se colocar
enquanto negro em espaços que eram reservados a brancos da elite pode ser compreendido como
uma maneira de protesto que possibilitou novas visibilidades as causas dos negros e negras que
lutavam e resistiam perante a esse sistema.

Segundo a historiadora Margaret Bakos (1988), referenciada pelo historiador Márcio Jesus
Ferreira Sônego (2011): “o negro em nenhum momento recebeu com passividade e indolência o
papel que lhe outorgaram, resistindo, na medida do possível, à escravidão e manifestando sua
inconformidade em variadíssimos atos [...]” (Bakos apud Sônego, 2011, p. 168). Com as constantes
mudanças que foram ocorrendo na sociedade e em seus ideais, as formas de protestos escravos
foram se alterando e começaram “[...] a enveredar por novos caminhos, transportando as fronteiras
das fazendas, vencendo o isolamento no qual haviam sido confinados os plantéis” (Machado, 2010,
p. 97).

O clamor era por liberdade e em contato com novos agentes, ganharam mais espaço e
notoriedade. Ao se entregar as causas emancipacionistas, Gama e suas diversas estratégias e frentes
de lutas acabaram por configurar uma frente de resistência utilizando as ferramentas próprias do
Estado – o Direito e a imprensa – e “suas estratégias semearam esperança entre os escravos e
pânico entre os senhores” (Machado apud Ferreira, 2015, p. 214). Podemos definir Gama como
um jurista, jornalista, escritor, maçom e republicano radical, vide suas diversas atuações perante um
Estado que sempre buscou determinar o lugar do negro na sociedade e a maneira que agiu e
interpretou a sociedade escravista que vivenciou deixou evidente que “a modernização da economia
e da política, em meio às relações de poder, jamais conteve as múltiplas formas de resistências e
luta daquele cuja cor, como ele dizia, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”
(Gama apud Santos, 2014, p. 83).

Referências

Câmara, Nelson. O advogado dos escravos: Luiz Gama / Nelson Câmara. – São Paulo: Lettera.doc,
2010.

Ferreira, Ligia Fonseca. Ethos, poética e política nos escritos de Luiz Gama. Revista Crioula (USP),
V. 1, p. 1-20, 2012.

Ferreira, Ligia Fonseca (Org). Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas. Imprensa
Oficial de São Paulo, 2011.
1170

Ferreira, Ligia Fonseca. De escravo a cidadão: Luiz Gama, voz negra no abolicionismo. In:
Machado, Maria Helena Pereira Toledo; Castilho, Celso Thomas. Tornando-se livres: Agentes
históricos e Lutas sociais no processo de abolição. São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 2015.

Gama, Luiz. A questão jurídica. A Província de São Paulo, 1880.

História do jornal “A Província de São Paulo”. acervo.estadao.com.br/historia-do-


grupo/decada_1870 acesso em 15/04/2019 às 15:44

Jardim, Trajano Silva; Brandão, Iolanda Bezerra dos Santos. Breve histórico da imprensa no Brasil:
Desde a colonização é tutelada e dependente do Estado. Hegemonia – Revista Eletrônica de Relações
Internacionais do Centro Universitário Unieuro. UNIEURO, Brasília, número 14, 2014, pp. 131-171

Linha do tempo demonstrativa do número de embarques e desembarques de africanos em portos


brasileiros. https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates - acesso em 15/06/2019 às 17:09

Machado, Maria Helena Pereira Toledo. O Plano e o Pânico: Os movimentos sociais na década da
abolição / Maria Helena Pereira Toledo Machado. – 2ª ed. – São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2010.

Mamigonian, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil/ Beatriz G.


Mamigonian. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das letras, 2017.

Oliveira, Rodrigo Santos de. A relação entre a história e a imprensa, breve história da imprensa e
as origens da imprensa no brasil (1808-1930). Historiæ, Rio Grande, 2 (3): 125-142, 2011.

Página da “Secção livre” – artigo escrito por Luiz Gama.


https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/18801218-1744-nac-0005-999-5-not acesso em
24/06/2019 às 00:34.

Santos, Eduardo Antonio Estevam. Luiz Gama, um intelectual diaspórico: intelectualidade, relações
étnico-raciais e produção cultural na modernidade paulistana (1830-1882). Doutorado em história,
PUC-SP, 2014.

Sônego, Márcio Jesus Ferreira. A cidade de Alegrete: escravidão, resistência e liberdade. Historiæ,
Rio Grande, 2 (2): 163-174, 2011.

Schwarcz, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX/ Lilia Moritz Schwarcz. – 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Tabela com o número de embarques e desembarques de africanos em portos brasileiros.


https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates - acesso em 15/06/2019 às 17:00
1171

O Pentáculo das Três Ninfas – Feitiçaria e Corrupção no Santo


Ofício Português (1616-1618)

Lorena de Araújo Costa*

Resumo: O presente artigo tem como ponto de partida, o intrigante processo inquisitorial,
referente a Alonso Carrilho de Albornoz. O réu foi denunciado por Fernando de Ataíde
Vasconcelos, no ano de 1617, pelos crimes de: bruxaria, feitiçaria, ter e utilizar de livro defeso. Essa
foi a sua segunda passagem pelos cárceres inquisitoriais. No ano de 1616, Carrilho já havia caído
nas malhas do Santo Ofício, “por ter e usar de um livro chamado Clavícula de Salomonis.”483 Com o
desenrolar do processo somos apresentados a novos personagens envolvidos nesta trama, sendo
eles, dois padres, Antônio Álvares e Antônio de Carcéres e Mariana Galindo. Todos presos
posteriormente, também denunciados por Ataíde, pelas práticas dos mesmos crimes que Carrilho
teria cometido. Além do caso de feitiçaria envolvendo estes processos inquisitoriais entrelaçados,
a documentação selecionada também apresentou um suposto caso de agentes do Santo Ofício,
envolvidos com práticas ilícitas. Tais práticas estão diretamente correlacionadas a Carrilho. O
objetivo desse artigo é apresentar os resultados parciais de uma investigação, que busca analisar os
caminhos da corrupção dentro do Santo Ofício de Lisboa, reconstruindo a teia de relacionamentos
que interliga ambos os delitos, por meio de um fio condutor em comum: Alonso Carrilho de
Albornoz.

Palavras-chave: Feitiçaria, Inquisição, Lisboa.

1. Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados parciais de uma pesquisa, que
buscou analisar a participação de clérigos em práticas de feitiçaria investigadas pelo Santo Ofício
português e um possível caso de corrupção dentro do Tribunal inquisitorial de Lisboa. Apesar de
serem temáticas aparentemente distintas, a análise dessas questões em conjunto se faz necessária
no estudo de caso que será apresentado.

A investigação teve início a partir do estudo de dois processos inquisitoriais, que continham
as datas de prisão e auto de fé similares. Eles pertencem a dois clérigos: padre Antônio de Cárceres
e padre Antônio Álvares, acusados de feitiçaria, superstições e pacto demoníaco. Por meio da
análise documental, foi possível constatar que, de fato, a prisão dos clérigos ocorrera em conjunto;
no entanto, surgiram também novos personagens envolvidos nesta trama: Mariana de Galindo e

* Graduanda do Curso de História pela Universidade Federal da Bahia, e bolsista PIBIC (Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação Científica – Bolsa UFBA), sob a orientação do Profª. Drª. Juliana Torres Rodrigues Pereira.
483 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4203.
1172

Alonso Carrilho de Albornoz. Sendo este último, o personagem que conecta os delitos de feitiçaria
e corrupção inquisitorial. O seu processo é o nó principal deste estudo.484

A trajetória de Alonso Carrilho nas malhas do Santo Ofício pode ser denominada como
peculiar; a sua relação com a Inquisição teve início em 1616 quando ele foi preso pela primeira vez,
acusado pelos crimes de bruxaria, feitiçaria, ter e utilizar de livro defeso. A sua primeira passagem
pelos cárceres foi relativamente breve, durando cerca de um ano, porém, poucos meses após a
celebração do seu auto-da-fé, ele foi preso novamente pelo Tribunal de Lisboa, tornando-se
pertinaz nos crimes contra a fé católica. A sua segunda prisão foi motivada pelas práticas dos
mesmos crimes que o levaram até a sua primeira condenação: feitiçaria, bruxaria e a utilização de
um livro defeso. Ao que tudo indica, Carrilho em conjunto com os padres Álvarez e Cárceres,
formavam uma espécie de grupo, que comercializavam sortilégios na cidade de Lisboa. As
denúncias apontam que a execução dos ritos mágicos praticados pelos réus contava com o auxílio
de uma obra chamada A Clavicula de Salomão. O manuscrito em questão está anexo ao processo e
surge com título Tratado de Salomony. A obra foi entregue à mesa inquisitorial, na manhã da
denunciação e descreve as maneiras como devem ser realizadas as invocações dos espíritos
malignos.

Embora o objetivo inicial fosse o de investigar processos relacionados a clérigos, no


percurso, deparei-me com uma nova problemática a ser analisada. As documentações selecionadas
apresentaram curiosas acusações que revelam uma suposta rede de corrupção, envolvendo
membros do alto escalão do Santo Oficio. As denúncias surgem em diversos momentos ao
decorrer dos processos e estão diretamente correlacionadas a Carrilho. Entre os acusados estão
presentes inquisidores, deputado e até mesmo o inquisidor geral. A acusação atribuída a esses
funcionários diz respeitos a três delitos bastante graves: o envolvimento em práticas mágicas, a
quebra de sigilo relacionada ao segredo dentro da Inquisição e a posse de livro defeso.

1.1 Discussão Bibliográfica

O Santo Ofício português foi criado em 1536, durante o reinado de D. João III, com o
objetivo de expurgar delitos que se enquadravam como heresia. O alvo mais frequente dessas
perseguições foram os cristãos-novos. Porém, a Inquisição também mantinha sob sua vigilância:

484
Durante as investigações realizadas ao longo da iniciação cientifica, só foi possível analisar o processo referente a
segunda prisão de Alonso Carrilho em 1617, na qual clérigos estiveram envolvidos. Dessa maneira, ainda há muitos
elementos a serem estudados no processo referente a sua prisão em 1616 e nos processos dos outros personagens
envolvidos na trama. A análise da trama será plenamente desenvolvida ao longo do mestrado.
1173

bígamos, sodomitas, mouriscos, falsos funcionários da Inquisição, blasfemadores (as), luteranos


(as) e por fim, os feiticeiros (as) (Marcocci & Paiva, 2013). É nestes últimos em que investigação
apresentada neste artigo será focada.

Ao tratar sobre o fenômeno da bruxaria e feitiçaria, é necessária uma definição desses


termos de significados múltiplos e a compreensão do seu surgimento.

O historiador francês Jules Michelet diz que o nascimento das práticas mágico-religiosas
aconteceu através de servos e camponeses, como uma forma de conspiração contra a Igreja; teria
ficado com as mulheres a missão de salvaguardar as tradições pagãs que o Cristianismo tentava
dizimar. Foi nesse contexto que teria surgido o sabá. (Michelet, 1992, p. 142).

Carlos Roberto Nogueira reforça esse argumento dizendo que a feitiçaria era um fenômeno
social que surgiu nos antigos sistemas agrícolas matriarcais, onde a mulher era vista como
responsável pelo cultivo da terra e sacerdotisa de cultos lunares. No contexto europeu, a feitiçaria
teria surgido com um caráter mais “urbano”, onde as feiticeiras atuavam como intermediárias para
solucionar os problemas humanos relacionados a ódios, paixões e desejos. Já a bruxaria envolveria,
a priori, um pacto demoníaco; a bruxa representava o grande mal, não sendo classificada como
uma simples prática herética que contrariava à religião, mas também um repudio a ortodoxia,
ocasionando no nefando crime da apostasia. Sendo assim, a feitiçaria era vista como uma magia
natural e a bruxaria como uma magia diabólica (Nogueira, 1991, p. 30-32).

Entretanto, para alguns historiadores, a bruxaria e a feitiçaria eram práticas mágicas


completamente distintas.

Segundo Keith Thomas a bruxaria e a feitiçaria portavam definições análogas. Para o autor,
a feiticeira precisava fazer o uso de objetos materiais, enquanto a bruxa só precisaria das suas
intenções malignas, porém, ambas teriam a intenção de causar malefícios. Resumidamente, a
feiticeira tornava-se, a bruxa nascia-se (Thomas, 1991).

De acordo com Laura de Mello e Souza a perseguição contra os crimes de bruxaria atingiu
maior visibilidade durante o período Moderno, quando a Inquisição passou a atuar com mais
veemência no combate aos dogmas desviantes, ocasionando em uma verdadeira busca de bruxas e
feiticeiras. Entretanto, desde o século XIV, durante a Baixa Idade Média, existia na Europa uma
certa preocupação e temor direcionadas as possíveis ameaças demoníacas (Mello e Souza, 1993, p.
23).

Para Jean Delumeau, esse medo foi ocasionado por conta dos diversos infortúnios que
estavam ocorrendo naquele período, marcado por um número considerável de guerras vigentes e
1174

doenças avassaladoras. Essas adversidades passaram a ser interpretadas como um castigo divido
mandado por Deus, que estaria punindo os homens pelos pecados que estavam sendo cometidos.
O sentimento de ameaça se abateu sobre a cristandade, iniciando uma verdadeira perseguição
contra todos considerados capazes de provocar tais malefícios (Delumeau, 1989, p. 309-393).

Para Stuart Clark, a ideia de bruxaria foi constituída sobre termos que não condiziam com
a realidade. A imagem da bruxa/feitiçaria estava diretamente atrelada a imagem do Satã, como se
fossem pares complementares que não existiriam de forma independente, estando sempre em
função ou oposição ao outro. A existência do mal era extremamente necessária para que o bem
pudesse se destacar com mais afinco. (Clark, 2006). Baseando-se em Stuart Clarck, Marcus Vinicius
Reis, afirma que a demonologia e a emergência desta ciência, se tornaram aspectos primordiais para
a compreensão de como o fenômeno de perseguição ao delito de bruxaria se entrelaçou
diretamente ao processo de demonização das mulheres (Reis, 2018, p. 19).

A identificação da mulher como agente demoníaco era algo corriqueiro em toda a Europa
nos princípios da Modernidade. Durante muitos séculos foi perpetuada a ideia das práticas mágicas
estarem diretamente relacionadas à natureza feminina; acreditava-se que todas as mulheres nasciam
com aptidão a se tornarem feiticeiras. O que explicaria a razão dos corpos femininos terem se
tornado verdadeiros bodes expiatórios e, consequentemente, o principal alvo da “caça às bruxas”
(Torres, 2011). Essa caçada também pode ser denominada como uma caça às mulheres, voltada
para um determinado grupo que mantinha posturas anômalas ao que era considerado aceitável
dentro das normas sociais modernas. “Mulheres não submetidas ao patriarcado, mulheres
incômodas, mulheres herdeiras” (Clark, 2006, p. 158).

A ideia relacionada à suposta natureza influenciável feminina, é essencial para compreender


o que está em jogo nos processos de feitiçaria e/ou bruxaria, pois haveria nas mulheres uma maior
predominância do instinto e não da razão ou inteligência, o que as tornaria presas fáceis para o
demônio, diferente dos homens, que não sucumbiriam às vontades demoníacas. A feitiçaria era
vista como um dos exemplos do que poderia acontecer se as rédeas femininas fossem soltas, dessa
maneira, cabia aos homens a tarefa de dominar os instintos irreprimíveis das mulheres (Delumeau,
2009).

Entretanto, os crimes de feitiçaria não se restringiram apenas ao sexo feminino, como foi
propagado por meio dos estereótipos criados pela teologia, literatura ou produções artísticas nos
quais, massivamente, as mulheres foram vistas como agentes representantes do maligno. As noções
de feitiçaria também diziam respeito às superstições e práticas mágicas; essas por sua vez, foram
executadas por ambos os sexos. A documentação utilizada como ponto de partida deste artigo
1175

demonstra, justamente, isto. A análise aqui proposta busca compreender um caso de feitiçaria que
envolve, em sua maioria, homens, integrantes da própria Igreja.

As referências mais evidentes encontradas, até o momento, envolvendo clérigos acusados


pelos crimes de feitiçaria estão presente em duas obras de Luiz Mott. A primeira delas está em:
Bahia: Inquisição e Sociedade (2010), que trata sobre a trajetória de um frade chamado Alberto de
Santo Tomás, que ao missionar pelo Brasil praticou uma série de exorcismos utilizando elementos
materiais semelhante à dos mandingueiros e calunduzeiros. E a segunda se encontra na obra Rosa
Egipcíaca: uma santa africana no Brasil (1993). A narrativa trata sobre a história de uma ex escrava
que passa a ter visões místicas, fato que a transformou em beata, sendo apoiada por um padre
exorcista chamado Francisco Gonçalves Lopes, popularmente conhecido como Xota-Diabos.
Ambos foram presos nos cárceres inquisitoriais. O clérigo foi acusado dos crimes de cumplicidade
em embustes, blasfémias, bruxaria e feitiçaria. Porém, pouco se fala sabe sobre ele, uma vez que as
narrativas das pesquisas já realizadas sempre estão focadas na trajetória de Rosa. Nesse sentido, a
análise dos processos referentes aos padres Cárceres e Álvares pode ser de grande contribuição,
trazendo luz sobre o tema.

Francisco Bethencourt, em sua obra O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e


curandeiros, também se aproxima desta temática, ao buscar o significado simbólico e social da
feitiçaria em Portugal, durante o século XVI. Segundo o historiador, as igrejas eram consideradas
espaços sagrados e, por conta disso, estavam na lista de lugares propícios para a elaboração das
práticas mágicas, sendo utilizados, inclusive, alguns objetos dos templos para a execução dos
sortilégios. A pedra d’ara, a hóstia e a água benta eram tidas como potencializadoras do poder
místico e, por essa razão, a comercialização ilegal desses elementos contava com a cumplicidade de
alguns clérigos. Havia também alguns ritos que eram realizados em consonância com as missas; a
consagração da hóstia, por exemplo, era utilizada para a consagração simultânea de feitiços, pois
acreditava-se que os clérigos vestidos para as celebrações proferiam muito poder (Bethencourt,
2012, p. 132).

Ora, se havia um comércio ilícito de materiais sagrados, onde se encontram esses


personagens nas narrativas históricas que buscam analisar as denúncias e crimes relacionados ao
delito de feitiçaria? Essa é uma das contribuições que esta pesquisa buscará, futuramente,
apresentar.

Já as investigações relacionadas a acusações contra membros de cargos elevados no corpo


inquisitorial, ao que se tem conhecimento, é um tema pouco explorado. Os estudos mais próximos
referentes a esta temática pertencem aos historiadores Célia Tavares e João Furtado de Mendonça.
1176

Tavares examina em sua tese de doutorado as relações entre jesuítas e o Tribunal da Inquisição de
Goa, único tribunal nos espaços ultramarinos portugueses, um capítulo chamado: Inquisição versus
Inquisição: a visitação ao Tribunal de Goa, em que ela analisa comportamentos desviantes de alguns
funcionários do tribunal, incluindo um inquisidor (Tavares, 2002, p. 171-174).

Já Martins tem uma obra mais completa sobre o tema, intitulada: Corrupção e incúria no
Santo Ofício. A sua pesquisa envolve ministros e oficiais inquisitoriais que foram alvo de processos
no Tribunal, porém as suas investigações estiveram focadas em delitos que eram contra o “reto
ministério do Santo Ofício” e dizem respeito a funcionários de cargos menores, que estavam tendo
mau desempenho em suas funções, deixando de lado crimes de outras instâncias (Martins, 2015).

2. A articulação do grupo e os seus ritos

A investigação apresentada tem como base cinco fontes primárias, compostas por registros
inquisitoriais interligados; eles pertencem a personagens que foram presos “juntos”, denunciados
pela mesma pessoa e crimes.

Os dois primeiros processos, dizem respeito a Alonso Carrilho de Albornoz, cristão-velho,


25 anos, espanhol, morador da cidade Lisboa e comediante de profissão, preso respectivamente
nos anos de 1616 e 1617. Ambas as prisões foram motivadas pelas mesmas infrações.485

O segundo pertence a Mariana de Galindo, prima de Carrilho, castelhana, parte cristã-nova,


32 anos e casada. Foi presa em 1618. Galindo é a única mulher envolvida neste caso, contrariando
todas as estatísticas.486

Os dois últimos processos pertencem a padres, ambos também presos em 1618.

O primeiro se chamava Antônio de Cárceres, 33 anos, cristão velho. Ele foi descrito no
processo como: “bexigoso de rosto, barba pouca e castanha”, de acordo com o seu denunciante,
ele vivia das esmolas que recebia durante as missas que celebrava e ordinariamente passava algum
tempo na casa do Padre Álvares. É a este que pertence a última documentação elencada.487

485 ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 04203; 109 fólios.


ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 04203-01; 219 fólios.
486 ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 12423; 53 fólios.
487 ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 02393; 91 fólios.
1177

O padre Antônio Álvares488 tinha 51 anos, era cristão velho, sacerdote de missa e integrava
o bispado de Coimbra. De acordo com as informações fornecidas, ele era uma “pessoa bem
conhecida, curava, benzia e usava de ensalmos.”489

O denunciante dos cinco réus em questão se chamava Dom Fernando de Ataíde


Vasconcelos, 35 anos, casado com Dona Violante e filho do Conde de Castanheira.

2.1 A denúncia

O processo inquisitorial que aqui será analisado teve início no ano de 1617 e diz respeito
ao réu que tinha por nome Alonso Carrilho de Albornoz. Foi no dia 13 de fevereiro que Dom
Fernando de Ataíde Vasconcelos, foi até a mesa do Santo Oficio para dizer que tinha que denunciar,
por desencargo da sua consciência, Alonso Carrilho.

De acordo com o denunciante, tudo teve início próximo a semana santa, durante o mês de
março, quando o padre Álvares e Cárceres teriam convidado Ataíde para uma reunião. Segundo o
seu relato, os clérigos teriam o chamado para contar que estava na cidade um moço chamado
Alonso Carrilho. Segundo Ataíde, o objetivo daquela reunião era propor uma negociação
envolvendo a venda de feitiços. Esses feitiços seriam executados por Carrilho e contariam com o
auxílio dos padres em questão. Neste artigo irei apresentar duas dessas ofertas.

2.2 Os ritos

Durante a reunião convocada pelos padres, a propaganda feita por eles a Fernando de
Ataíde, dizia que com a cópia da obra A Clavícula de Salomão, Carrilho conseguiria executar diversos
ritos mágicos e, através deles, o denunciante poderia conseguir qualquer coisa que almejasse. A
primeira proposta sugerida dizia respeito à produção de um colar que levaria em si um pentáculo
pendurado, esse pentáculo teria que ser produzido a partir de pele animal, mas não poderia ser uma
pele qualquer, teria de ser uma pele virgem.

Uma pele animal, para ser considerada virgem, não poderia ter sido utilizada para nenhum
outro propósito anteriormente. É a partir dela que são feitos os pergaminhos considerados de
melhor qualidade e era bastante comum que esse tipo de matéria prima fosse solicitada para o uso
de operações mágicas. Essa exigência relacionada à pureza da pele é explicada por meio do próprio
livro A Clavícula de Salomão, segundo a obra, existem duas variedades dessa categoria de pergaminho:

488
ANTT, Inquisição de Coimbra, proc. 02388; 239 fólios.
489
Ensalmos é a cura de doenças por meio de feitiços e rezas.
1178

o virgem e o não nascido. O considerado virgem é aquele em que o animal é retirado do ventre da
mãe sem que tenha completado o tempo gestacional e o não nascido é a tomada de um animal de
maneira precoce do seio materno. A pele virgem obteria a pureza necessária para o sucesso das
invocações demoníacas.490

O ritual de confecção do pentáculo tinha início a partir da preparação dessa pele imaculada
através de três elementos distintos, eram eles: âmbar, almíscar e algália.491 Após esse preparo a pele
deveria ser colocada em baixo de uma pedra d’ara492 e sobre estes elementos previamente
preparados, deveriam ser celebradas algumas missas, de quantidade as quais o denunciante não
conseguia se recordar. Na sequência, essa pele deveria ser colocada sobre uma lâmina de ouro e
deveria ser escrito com ferro alguns caracteres sobre ela. Por fim, com alguns fumos de cheiros,
haviam de ser invocados os espíritos os quais deveriam ser adorados.

As especificidades de um rito mágico como: os materiais utilizados, os dias da semana,


horários, locais e até mesmo a escolha da lua, não eram feitos de forma aleatória, sendo assim, é
possível dizer que o ato de se rezar missas para a elaboração de feitiço carregava o seu simbolismo
e o porquê de ser. As igrejas estavam entre os lugares considerados privilegiados para a elaboração
das práticas mágicas, por serem considerados, por muitos, locais sagrados. (Bethencourt, 2012).

A promessa feita por Carrilho dizia que a função do pentáculo era a de oferecer, para quem
o portasse, tudo o que mais desejasse e que o seu dono conseguiria de qualquer pessoa que fosse,
a realização das suas vontades, isto incluía até mesmo o rei e os seus ministros. Também teria sido
dito por Carrilho que o denunciante não precisaria lidar com o medo de ser preso pelo Santo Ofício,
em decorrência da encomenda dos feitiços, pois o espírito invocado no pentáculo o protegeria e
defenderia do que fosse necessário. O valor cobrado para a feitura desse feitiço foi o de 80 mil réis.

Neste momento, Carrilho teria levantado a possibilidade do denunciante querer uma prova
da veracidade das suas ofertas, isso pode ter sido motivado por uma certa resistência ou
incredulidade por parte de Ataíde. O que teria sido oferecido como comprovação dos seus

490 LIBER, Irene. Clavícula de Salomão: as chaves da magia cerimonial. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
491 O âmbar é uma resina fossilizada, muito popular desde o início da humanidade, atualmente ainda é bastante
comercializada, pois, teria uma influência positiva sobre o corpo humano, ajudando a melhorar a imunidade a partir da
absorção dos seus ácidos pela corrente sanguínea. O almíscar também tem uma fama bastante antiga, sendo encontradas
menções ao seu respeito no livro das tradições judaicas Talmude dos séculos 3º a 5º A.D., essa substância é derivada de uma
secreção glandular que alguns animais “almiscarados” produzem para atrair suas fêmeas e marcar território, ele era utilizado
na fabricação de perfumes uma vez que, acreditava-se ter poder afrodisíaco. Já a algalia era um medicamento extraído das
fezes de um animal chamado gato de algalia, o aparelho digestivo desses animais digere o grão e depois expele as sementes.
Atualmente essas sementes são torradas para a produção de um dos cafés mais caros do mundo.
492 Era bastante comum que esses amuletos fossem feitos a partir de objetos sagrados, em particular, os fragmentos de

pedra d’ara eram usados para os feitiços relacionados ao afeto. (Bethencourt, 2004).
1179

“poderes” foi um sortilégio amoroso. Foi dito a Ataíde que esse sortilégio seria feito a partir do
uso de alguns elementos como: telha de barro, maçã, ferros e novamente, o âmbar, a algalia e o
almíscar. Ele lhe teria sido prometido que após a conclusão do feitiço, bastaria o denunciante
colocar o seu pensamento na mulher que mais desejasse na cidade, que em torno de oito dias, ela
o procuraria.

“E que para isso faria huá maçaa digo, havia de tomar hua maçaa e polá sobre
hua telha composta e feita de barro e cheiros de âmbar, algalia e almíscar e na
telha havia de fazer hua figura de hua mulher com ferros (...) e posta a dita telha
sobre o fogo com a dita maçaa por tres ou quatro dias (...) ate se queimar de todo,
porque nesse queimar se dava tormeto aos espíritos que ele dito Alonso Carrilho
havia de invocar na dita maçaa”.493

O elemento da maçã traz consigo uma antiga fama cristã de ser “o fruto proibido”. A ideia
de “proibido” também pode ser atribuída ao feitiço, uma vez que Ataíde era um homem casado e
estava negociando um sortilégio para atrair uma mulher que não era a sua esposa. Com relação ao
uso da maçã, o livro A Clavícula de Salomão recomenda que antes de retira-la da árvore, fosse
borrifada água consagrada sobre ela e, após colhe-la do pé, perfumá-la com aromas. Aconselhava-
se também escolher com cautela o fruto que seria utilizado, pois ele não devia conter manchas ou
defeitos.

Após a notícia que o feitiço já havia sido realizado, o resultado prometido não se
concretizou e a mulher desejada não teria ido de encontro a Ataíde. O denunciante teria ficado
frustrado e além de ter dito que não pagaria mais nenhum valor aos réus, também solicitou que o
valor investido por ele fosse ressarcido. E é a partir desse fato que as temáticas de corrupção
inquisitorial e feitiçaria clerical se cruzam. Carrilho teria dito que iria devolver o valor investido por
Ataíde, pois, um deputado do Santo Ofício o teria procurado para encomendar um amuleto mágico.

3. Corrupção inquisitorial

Antes de dar início ao debate sobre corrupção inquisitorial, é importante frisar que ao
aplicar o conceito de “corrupção” às sociedades da Época moderna, compreendo a importância de
contextualizar o termo para evitar o anacronismo. Segundo a Adriana Romero, o termo
“corrupção” já se encontrava disseminado nos tratados políticos e morais da época. Há diferenças
entre os seus usos contemporâneos e modernos, apesar de em ambos os casos, a palavra
“corrupção” ser utilizada para designar desvios morais e ilícitos.

493 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 04203-1, [fl 6v].


1180

No período Moderno a corrupção não se tratava das práticas, mas sim o “resultado de
práticas”, ou seja, as práticas não são em si corruptas: elas desencadeiam o processo de corrupção.
Logo, o uso do termo não era utilizado como sinônimo de práticas tidas como delituosas, mas
como o sinônimo dos seus efeitos sobre aquela sociedade. No caso do processo aqui analisado, os
efeitos dessas atitudes tidas como ilícitas, sobre a inquisição enquanto instituição. (Romeiro, 2015,
p. 3).

As denúncias contra esses funcionários inquisitoriais, supostamente corruptos, surgem em


diversos momentos ao decorrer do processo analisado e estão diretamente, interligadas a Carrilho.

3.1 O deputado, Pedro da Silva de Faria.

O primeiro nome a ser citado é o do, então deputado, Pedro da Silva de Faria. A denúncia
conta ele surge, durante a primeira sessão de denunciação de Fernando de Ataíde.

Ataíde relata que logo após Carrilho ter realizado a primeira leva de feitiços, que por ele
haviam sido encomendados, um novo encontro aconteceu entre os padres, Carrilho e ele. A razão
da reunião foi motivada pelo fracasso dos feitiços. Como o denunciante havia investido um valor
considerável em sortilégios para alcançar os seus anseios e não obteve o resultado esperado, ele
solicitou que o dinheiro investido fosse ressarcido. Neste momento, a resposta dada por Carrilho
seria a de que, ele iria devolver pois, um deputado do Santo Ofício, havia o procurado para a
confecção de um pentáculo.

“Se achou elle declarante em casa do dito padre Antonio Alvares em companhia
do sobre dito padre Antonio de Carceres e o dito Alonso Carrilho (...) disse aly a
ele denunciante o dito Alonso carrilho q se quisesse o dinheiro que tinha dado,
que lhe tornaria, porque lhe dava muito mais Pero da Sylva de faria deputado
dessa inquisição para que lhe fizesse elle o pentaculo e todas as mais cousas sobre
ditas para vir a ser bispo”.494

Ataíde afirma que, quando Pedro da Silva de Faria procurou Carrilho para encomendar o
pentáculo, o réu teria comentado que na primeira vez em que esteve preso pelo Santo Oficio,
haviam lhe tomado e queimado o seu livro “Clavícula Salomonis”, e seria este o livro usado por ele
para a realização dos seus feitiços, neste momento, o depurado teria, supostamente, lhe mostrado
uma cópia da tal obra. A sessão de denuncia deste dia é encerrada após essas duas declarações.

494 ANTT, Inquisição de Lisboa, processo 04203-1, [fl 10v].


1181

3.2 O deputado, Dom João da Silva

No dia seguinte, Fernando de Ataíde retorna para continuar a sua sessão de denunciação e
o segundo nome de um agente inquisitorial surge: Dom João da Silva. Ataíde recomeça a sua
denúncia dizendo que no mês de agosto, quando Alonso Carrilho já estava preso pela segunda vez
nos cárceres inquisitoriais, ele esteve na casa de Mariana de Galindo, junto com o seu pajem Simão
da Cunha, os três estariam conversando sobre o fato de Carrilho ter sido preso novamente; foi
então que Galindo teria dito que esperava ter “bom sucesso” na soltura do réu, porque um
deputado chamado Dom João da Silva, estava relatando sobre tudo o que se passava na mesa de
denunciação para ela.

O ato de jurar manter segredo era um procedimento necessário e obrigatório no Santo


Ofício, não só para aqueles que trabalhavam para ele, mas também, para todos que adentravam as
suas portas, quem ali fosse ouvido precisava jurar com as mãos sobre o evangelho “dizer verdade
e ter segredo.” O segredo tinha um significado triplo dentro da inquisição, eram eles: a fidelidade
a Deus, à instituição e ao rei.” (Pieroni, 2000, p. 45)

3.3 O inquisidor, Pedro da Silva de Sampaio

O terceiro nome desse emaranhado surge através do interrogatório do Padre Antônio


Álvarez (ele se encontra anexo ao processo de Carrilho): Pedro da Silva de Sampaio. A acusação
de Álvares é muito semelhante a qual Fernando de Ataíde já havia feito anteriormente.

É dito pelo padre que o inquisidor, Pedro da Silva de Sampaio, pediu para Carrilho ir
encontrar com ele por duas vezes, a sua intenção era negociar a encomenda de dois feitiços: um
pentáculo e um familiar. O seu objetivo seria o mesmo de Pedro da Silva de Faria, chegar ao cargo
de bispo. Esse desejo em alcançar um cargo mais elevado que, suspostamente, ambos os agentes
almejavam, demonstra uma clara vontade de ascensão dentro da carreira eclesiástica.

Durante a negociação teria sido combinado que o valor de 300 cruzados seria pago, mas
não só; além disso, também teria sido prometido pelo inquisidor a devolução da obra “Clavícula
Salomonis” para Carrilho, caso houvesse a necessidade.

3.4 O inquisidor geral, Dom Fernando M. Mascarenhas e o seu criado, Belchior Veloso

O último nome a ser citado é o do inquisidor geral D. Fernando Martins Mascarenhas.


Durante uma nova sessão de denúncia, fica evidente que mesmo após o fracasso dos
primeiros feitiços encomendados, Ataíde teria insistido em fazer negócios com Carrilho. Para o
1182

novo feitiço solicitado, Carrilho teria informado que precisaria de uma túnica, ela seria uma parte
primordial para que as invocações demoníacas obtivessem sucesso. Para que a túnica fosse
confeccionada, Ataíde teria comprado quinze camadas de saragoça495 de cor escura, elas teriam lhe
custado mil cruzados.

Algum tempo depois, Carrilho teria informado para Ataíde, por meio de um escrito, que
precisou utilizar os tecidos como forma de barganha. Ele teria os entregue para Belchior Veloso,
criado do Inquisidor Geral D. Fernando Martins Mascarenhas. Segundo Ataíde, o objetivo de
Carrilho era que Veloso conseguisse uma liberação para que o réu pudesse permanecer em Lisboa
e não precisasse cumprir a sua sentença de degredo para Galés, a qual ele foi condenado em seu
primeiro processo.

D. Fernando Martins de Mascarenhas foi inquisidor geral durante o período de 4 de julho


de 1616 até 20 de janeiro de 1628, o seu mandato foi repleto de polêmicas. Algumas acusações
afirmavam que ele governava o Santo Ofício apenas na teoria, pois, na prática, seria o seu criado,
Belchior Veloso, quem estava à frente de tudo. Haviam informação de que Mascarenhas estaria
dispensando réus já condenados, das penitências impostas pelos inquisidores, em troca de dinheiro,
dinheiro este que estava indo parar nas mãos de Veloso. As denúncias também afirmavam que
Belchior Veloso vendia cargos dentro do Santo Oficio e por conta disso, o Tribunal estava sendo
tomado por pessoas que não tinham os pré-requisitos básicos para integra-lo. Estariam sendo
nomeados: menores de idade, pessoas sem graus acadêmicos, pecadores públicos e o mais grave:
cristãos novos. (Codes, 2011, p. 61-62).

Em outro momento da mesma denuncia, Ataíde relata que após Carrilho ter sido preso
pela segunda, ele teria encontrado na rua um criado do réu. O criado em questão estaria com
algumas cartas a serem entregues a mando do mesmo. Ataíde o teria questionado se entre aquelas
correspondências, não haveria algo para ele, o criado (o qual ele não sabia informar o nome), o
teria respondido que não tinha certeza. Neste momento, o denunciante teria tomada as cartas que
estavam em suas mãos. Ataíde teria se deparado com uma correspondência endereçada para
Belchior Veloso, a qual fingiu ser dele. De acordo com Ataíde, no conteúdo da carta, estaria escrito
que Carrilho estava enviando-lhe um anel, para que Veloso não viesse a se esquecer dele. De acordo
com Ataíde, o réu também buscava informações sobre quem teria ido até o Santo Oficio
testemunhar naqueles dias.

495 Saragoça é um tecido de lã escura, comumente utilizado para a confecção de roupas camponesas.
1183

Esses indícios apontam a alta probabilidade de existir uma amizade entre Belchior Veloso
e Alonso Carrilho. Esses relatos envolvendo trocas de correspondências e barganhas envolvendo
objetos de valor, reforçam a ideia de que, talvez, membros do Santo Ofício estiveram, de fato, em
contato com o réu.

4. Conclusão

Tomando como base a discussão bibliográfica apresentada anteriormente, é possível


perceber que no atual quadro de estudos a respeito da historiografia sobre o Santo Oficio português
existem poucos trabalhos voltados para a investigação de delitos cometidos por membros do corpo
clerical e inquisitorial. Dessa maneira, os resultados parciais da investigação aqui apresentada,
buscou trazer a lume casos de clérigos e agentes inquisitoriais, envolvidos com os delitos de
feitiçaria, pacto demoníaco e uso de livros proibidos.

Não é incomum encontrar estudos referentes a acusações de ministros eclesiásticos ao


tribunal, todavia, em sua grande maioria, as acusações estão relacionadas à blasfêmia, solicitação e
preposições heréticas. As motivações que levariam membros da própria igreja, os quais,
teoricamente, tinham o dever de promover os dogmas da fé católica, a se envolverem com práticas
de invocações demoníacas e comercialização de amuletos místicos é algo a ser analisado.

O volume de produções que buscam investigar atos de contravenção praticados por


funcionários do Santo Oficio, também é diminuto. Muito disso deve ser ocasionado pela falta de
documentações que exponham comportamentos desviantes por parte dos agentes, uma vez que o
mau desempenho de funções acabava por manchar a imagem da instituição.

O cotidiano do Tribunal do Santo Oficio é, essencialmente, conhecido por meio das


normas presentes nos Regimentos. Enveredar por caminhos pouco visitados dentro desta esfera
temática poderá contribuir, futuramente, para a análise de comportamentos, práticas e aspirações
desses sujeitos dentro da carreira eclesiástica.

Dessa forma, a pesquisa aqui apresentada poderá vir a ser uma oportunidade de descortinar
questões, protegidas ao longo dos séculos, por meio dos famosos segredos inquisitoriais. Se tudo
o que se passava porta a dentro do Santo era secreto, os comportamentos inadequados dos seus
agentes também haveriam de ser.

Fontes Digitalizadas:

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4203 - Processo de Alonso
Carrilho de Alborboz.
1184

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 4203-1 – Processo de Alonso
Carrilho de Albornoz.

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2388 - Processo do Padre Antônio
Álvares.

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 2393 - Processo do Padre Antônio
de Cárceres.

ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12423 - Processo de Mariana de
Galindo.

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1185

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Florianópolis. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR), 2011. v. III.
1186

“Brasil Outros 500”: marchas e manifestos de movimentos


indígenas contra as comemorações oficiais dos 500 anos e a
colonialidade da história

Lucas da Mota Farias*

Resumo: Trata-se de uma análise de práticas discursivas e não-discursivas produzidas por


movimentos indígenas diante das Comemorações Oficiais dos V Centenário do “Descobrimento
do Brasil”. Entre os anos de 1998 e 2000, diversas organizações indígenas se mobilizaram junto a
entidades dos movimentos negros, partidos políticos, sindicatos, entidades de classe, movimentos
estudantis, setores de igrejas e universidades brasileiras formando o Movimento Brasil: 500 Anos
de Resistência Indígena, Negra e Popular e produzindo discursos críticos que foram capaz de
desestabilizar as perspectivas históricas e os projetos governamentais e midiáticos relacionados às
comemorações oficiais dos 500 anos de Brasil. Com o objetivo de analisar também as condições
de emergência desta mobilização, partimos de um entendimento de tais comemorações como
dispositivos (Foucault, 2000) de saber-poder que, por meio de um conjunto heterogêneo de obras
arquitetônicas, intervenções paisagísticas, cerimônias, imagens, memórias e pronunciamentos,
reforçavam discursos históricos fundadores do mito da democracia racial e dos modos de
subjetivação inerentes à matriz moderna/colonial de poder, constituindo-se, portanto, em
instrumentos de colonialidade (Quijano, 2014) do poder. Por fim, a partir de uma abordagem
discursiva e decolonial, discutimos as formas de organização, as marchas de protesto e manifestos
publicados por organizações dos movimentos indígenas como estratégias e táticas de ativação de
memórias dissidentes (Zambrano, Gnecco, 2000) e de resistências à colonialidade da história e do
poder.

Palavras-chaves: comemorações, 500 anos; memórias insurgentes, indígenas, colonialidade.

Neste trabalho, pretendemos apresentar parte dos resultados de pesquisa realizada junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, para a conclusão do
mestrado. Analisaremos as disputas em torno da gestão do passado do Brasil, no contexto das
comemorações dos chamados 500 anos do descobrimento do país, a partir de estratégias, táticas e
práticas discursiva e não-discursivas elaboradas por: agentes promotores das celebrações oficiais,
e, especial o Estado brasileiro; e movimentos sociais críticos aos festejos, em especial o movimento
indígena.

As comemorações cívicas constituem um campo privilegiado de investigação, pois nos


permitem uma aproximação das disputas entre memórias e discursos sobre o passado e suas
relações com as identidades e os projetos políticos de coletividades. No caso das celebrações dos
500 anos do “nascimento” da nação brasileira, programadas para o dia 22 de abril de 2000, os

*
Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília.
1187

embates mais incisivos se deram entre as iniciativas festivas promovidas pelo governo brasileiro,
com o apoio de veículos da grande imprensa nacional, e as ações coletivas de contestação no marco
do Movimento Brasil: 500 anos de Resistência Indígena, Negra e Popular. O mote da campanha
desse Movimento foi “Brasil: Outros 500”, com o objetivo de “lembrar os quinhentos anos de
massacre, genocídio, etnocídio, escravidão, sofrimento e humilhações – e também de alguns
momentos de efêmeras vitórias”. O título dessa campanha buscava assinalar os efeitos nefastos da
conquista e colonização do Brasil, e a correlata resistência oferecida pelos grupos sociais que
promoveram tal campanha.

Embora possamos identificar, no início da década de 1990, as primeiras iniciativas no


âmbito do Estado brasileiro relacionadas com as comemorações dos 500 anos do chamado
descobrimento do Brasil; os preparativos para os festejos começaram a tomar corpo a partir da
aprovação do regulamento da Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do
Brasil (CNVC), no dia 13 de junho de 1997.Assim definiu-se para a comissão: os seus objetivos, os
representantes do Estado que a compunham, as normas relativas a decisões e projetos, o modelo
de financiamento e a participação de comitês de assessoramento (Brasil, 1997, p. 12407-12408). A
escolha da expressão “descobrimento” já revelava, desde então, o caráter colonialista que
assumiriam as ações comemorativas oficiais, bem como os valores e acontecimentos a serem
rememorados e celebrados pela nação.

Buscando integrar as diferentes esferas do poder público na promoção das comemorações,


a CNVC elaborou uma agenda plural de eventos com o assessoramento de diversos comitês de
apoio, comunicação social e empresarial. Lúcia Lippi de Oliveira (2000, p. 25-26) destaca entre os
projetos elaborados pelo governo federal: o seminário “500 anos, experiência e destino”,
apresentado por Márcio Souza que devia discorrer sobre a “singularidade do Brasil”; o
relançamento do filme “O Descobrimento do Brasil de Humberto Ramos, em versão
remasterizada; a publicação da revista “Rumos – os caminhos do Brasil em debate”, trazendo
artigos de intelectuais e especialistas, e divulgando o andamento dos projetos para as
comemorações; a realização do “Congresso Brasil/Portugal Ano 2000”, promovendo eventos
acadêmicos em diferentes cidades brasileiras e portuguesas junto à Comissão Bilateral
Brasil/Portugal; o projeto “Resgate de Documentação Histórica”, que envolvia a identificação,
organização, microfilmagem e digitalização de documentos históricos referentes ao Brasil
armazenados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) de Portugal; e o Museu Aberto do
Descobrimento (MADE), conjunto de obras a ser realizado na chamada “Costa do
Descobrimento”, local onde se imagina ter ocorrido o desembarque das primeiras caravelas
1188

portuguesas em 1500, e que, atualmente, pertence ao município de Santa Cruz de Cabrália, litoral
do extremo sul da Bahia.

Dentre as iniciativas do governo brasileiro, o projeto do Museu Aberto do Descobrimento


adquiriu lugar de destaque nas celebrações. Segundo Kelly Cristina Silva (2003, p. 143-144), esse
projeto teria como objetivo revitalizar a região conhecida como Coroa Vermelha, em Santa Cruz
de Cabrália, reelaborando o lugar mítico da “fundação da nação” como “cenário do apogeu das
comemorações” por meio de: recuperação de centros históricos; construção de monumentos;
proteção da paisagem natural – Monte Pascoal, enseada de Porto Seguro, mangues etc. -; e
preservação de “núcleos urbanos tradicionais”, como as terras indígenas dos pataxós de Coroa
Vermelha. A autora argumenta que o projeto do MADE, ao envolver a demarcação de terras
indígenas dos pataxós junto a várias iniciativas de promoção do turismo na mesma área – centros
turísticos comerciais, terminal turístico etc. – promovia uma trivialização dos eventos históricos e
uma mercantilização da cultura pataxó (idem).

Para o apogeu das comemorações oficiais no mês de abril de 2000, o governo programou
ainda, para a região da “Costa do Descobrimento”, a realização de uma série de eventos que
encenariam as diversas etapas da chegada de Pedro Álvarez Cabral em terras brasileiras, tendo por
destaque: a representação do “encontro”, com réplicas da caravela do navegador português e de
canoas indígenas; a cerimônia oficial, com a presença do Presidente da República Federativa do
Brasil e com o Presidente da República Portuguesa; e a celebração da “Missa dos 500”, em alusão
à primeira missa realizada em solo brasileiro no dia 26 de abril de 1500 (Bezerra, 2011; Silva, 2003).
Tratava-se de eventos simbólicos que ao contar com a presença dos presidentes do Brasil e de
Portugal serviriam, sobretudo, para reforçar e reatar laços sociais, políticos e mercantis entre os
dois países no presente.

Essa preocupação com a memória, que se revela nas comemorações dos 500 anos, está
intimamente ligada a uma preocupação cultural e política também emergente em outras sociedades
do final do século XX. Nessa preocupação, como bem observou Huyssen, desloca-se o foco dos
“futuros presentes para os passados presentes”, um “deslocamento na experiência e na
sensibilidade do tempo” (2000, p. 9). As memórias revitalizadas pelas comemorações dos 500 anos
revelam, sobretudo, um “medo do esquecimento” do papel dos colonizadores na formação do
Brasil, isso traduz uma preocupação com o presente e o futuro dos laços de dependência política e
econômica do Brasil com a Europa. O passado presente parece assim nos aproximar de uma
imagem anterior, de um território colonizado. Mesmo com o fim do colonialismo formal, tais
comemorações emergem como resultado também de um “medo do esquecimento” do
1189

protagonismo tido como superior e heroico dos colonizadores portugueses, que nos coloca como
uma nação que “nasce” colonial, a partir desse vínculo fundamental e moderno com nossos
colonizadores. Essa memória se faz bastante útil na manutenção de nossos laços com a Europa,
reforçando o lugar do Brasil e de Portugal nas relações de poder capitalistas globalizadas.

É importante destacar que, toda essa gama de projetos que o Estado brasileiro lançou mão
no contexto das comemorações dos 500, segue um roteiro comum a diversas festas cívicas desde
o século XIX, como a formação de uma comissão nacional de notáveis, promoção de seminários
e exposições, recuperação e construção de monumentos, museus e arquivos, realização de festas e
rituais de celebração da nacionalidade. Entendemos essas iniciativas de monumentalização e
ritualização do passado como dispositivos de saber-poder (Foucault, 2000), ou seja, como um
conjunto heterogêneo de práticas discursivas e não-discursivas que partilham, distribuem e
ordenam os saberes e os rastros do passado de modo a atender uma função disciplinar, um
determinado imperativo histórico, capaz de fortalecer processos de subjetivação particulares,
instituindo e exigindo comportamentos e gestos específicos. Esses dispositivos se posicionam em
redes com outros tantos dispositivos, dentre os quais, no caso das comemorações dos oficiais dos
500 anos do chamado “descobrimento do Brasil, um lugar especial é reservado à colonialidade que,
nas palavras de Maldonado-Torres, pode ser entendida como:

um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno,


mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos
ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade
e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista
mundial e da idéia de raça (2007, p. 131).

Desse modo, a colonialidade preserva sua vitalidade, em virtude de sua dimensão


multifacetada, o caráter heterogêneo das redes de dispositivos que se capilarizam por todo o tecido
social através das articulações entre: a colonialidade do poder, classificação social básica da humanidade
segundo a ideia de raça, hierarquizando corpos e subjetividades para a produção de riquezas
destinados ao mercado capitalista mundial (Quijano, 2014); a colonialidade do saber, impondo a
universalidade da episteme europeia/ocidental, e a marginalização e invisibilização dos saberes
produzidos nas regiões periféricas/colonizadas do globo (Lander, 2005); e a colonialidade do ser, os
efeitos do padrão de poder colonial sobre as experiências vividas por sujeitos
racializados/colonizados, ou seja, a dimensão ontológica da colonialidade que torna a maior parte
da população mundial invisível, subalterna, nos termos de Frantz Fanon, “condenados da terra”
(Maldonado-Torres, 2008).
1190

Entendemos que as comemorações dos 500 anos do chamado “descobrimento do Brasil”


nos permitem refletir sobre o que chamamos aqui de colonialidade da história, ou seja, uma
dimensão da colonialidade do saber que atende a função de gerir as memórias, os imaginários e
saberes sobre o passado. Na condição de dispositivos de saber-poder, a colonialidade da história
opera, portanto, como técnicas que asseguram regimes de verdade, métodos de análise e interpretações
dos fenômenos históricos, segundo certo devir progressivo, linear e eurocentrado, cujo sentido
emana primordialmente dos processos históricos posicionados no Estado e na economia
capitalista. Além disso, carrega procedimentos de interdição, encobrimento, apagando a
persistência histórica das matrizes coloniais e suas dimensões constitutivas das relações assimétricas
de poder no contexto latino-americano, bem como hierarquizando e marginalizando narrativas,
representações e saberes “outros” elaborados pelos sujeitos colonizados, tidos como míticos496,
primitivos, irracionais, a-históricos ou não-científicos. Por fim, a colonialidade da história se assenta
em uma função que aponta para a racialização de sujeitos e povos como elemento significante do
devir histórico, ao mesmo tempo que recusa a historicidade conflitiva das relações étnico-raciais
por meio de leituras conciliadoras e eufemísticas que exaltam uma miscigenação sustentada na
chave da harmonia, dos mitos da democracia racial, do “encontro de dois mundos”.

Entendemos, portanto, que os sentidos sobre o passado do Brasil difundidos pelas


comemorações oficiais constituem dispositivos de colonialidade da história, reforçando e legitimando
desigualdades e processos de subalternização das populações indígenas, negras e setores populares.
Dessa forma, invisibilizam as experiências, memórias, epistemes e saberes históricos de sujeitos
alvos da colonização. Na condição de meros figurantes de um processo histórico protagonizado
por homens brancos/europeus, o lugar projetado para esses grupos nas comemorações oficiais não
passava da de espectadores ou telespectadores, quando, no máximo, assumiam algum papel
folclórico que resumia as suas diferenças culturais, a meros estereótipos e caricaturas.

É importante salientar que a promoção das comemorações dos 500 anos do chamado
“descobrimento” teve ainda como protagonista os órgãos tradicionais da imprensa brasileira que,
como bem assinalou Maria Francisca Moura (2000), foram responsáveis por pautar eventos e
programações, estabelecendo que temas seriam relevantes para serem pensados e discutidos. Tal
papel foi desempenhado sob a liderança das Organizações Globo, responsáveis pelo projeto Brasil
500, que elaborou uma programação envolvendo três principais esferas: a Festa, por meio de um

496Como bem pontuou Susane Rodrigues de Oliveira (2006, p. 40), hierarquizações e concepções dualistas entre mito
e história perpassam a ciência moderna, com seus enquadramentos evolucionistas, eurocêntricos e androcêntricos.
Deste modo, “discursos de outros povos localizados em diferentes épocas e lugares, especialmente aqueles discursos
reveladores de outras possibilidades de existência para homens e mulheres em sociedade foram assim concebidos como
a-históricos, míticos, ilusórios, primitivos e irracionais” (idem).
1191

calendário de eventos, shows e festas de comemoração com a participação popular, sendo o apogeu
no mês de abril de 2000; a Ação Educacional, por meio da promoção de seminários, campanhas e
iniciativas em favor da melhoria da educação básica; e a História, promovendo a rememoração de
acontecimentos históricos considerados marcantes, bem como suas conexões com o presente e o
futuro do país (Moura, 2001, p. 57-58). Das iniciativas da Globo, Silva (2003, p. 142-143) destaca
ainda, além da produção de minisséries, show e projetos educativos, a instalação de relógios496 nas
principais cidades do país marcando a contagem regressiva para o dia 22 de abril de 2000, bem
como a inserção de vinhetas em sua programação diária lembrando aos telespectadores a
aproximação desta data.

O protagonismo dos veículos de mídia na promoção das comemorações dos 500 anos do
descobrimento, foi muito além da cobertura passiva dos eventos comemorativos, envolvendo
práticas discursivas e não discursivas que veiculavam, mas também construíam e reconstruíam
sentidos para o passado brasileiro e a identidade nacional. Desse modo, entendemos a ação dos
dispositivos midiáticos497 não apenas como aparatos que, alinhados com os projetos
comemorativos do governo, conferiam visibilidade aos discursos oficiais das comemorações; mas
sim como agentes que acentuavam, reelaboravam e dinamizavam, através de novas discursividades,
os sentidos sobre os 500 anos. Esse caráter interventor da mídia apareceu de forma evidente
também quando movimentos sociais tomaram as ruas em protesto, produzindo fissuras nos
discursos oficiais, tensionando os debates e impondo recuos aos projetos comemorativos.

As contestações aos discursos comemorativos oficiais dos 500 anos emergiram de


diferentes pontos, mostrando focos de insatisfação com as perspectivas históricas celebradas e com
os projetos de sociedade idealizados pelos setores hegemônicos da sociedade. A articulação do
Movimento Brasil: Outros 500 apresentou-se como ponto de convergência de discursos críticos às
comemorações, reunindo organizações representativas de amplos setores da sociedade, entre as
quais: entidades do movimento negro, como a Coordenação Nacional da Entidades Negras
(CONEN) e o Movimento Negro Unificado (MNU); Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST); entidades sindicais; partidos políticos de oposição ao governo de FHC; setores da

496 O Relógio dos 500 anos ganhou tanto destaque que, não por acaso, possui hoje um verbete na Wikipédia. Cf.:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Rel%C3%B3gio_dos_500_Anos
497 Para a reflexão sobre a atuação dos dispositivos midiáticos, tomamos por referência as colocações de Fabiana

Marcello sobre a mídia como aparato que “se ocupa apenas de emitir visibilidades, mas também, aliada ao processo
incessante de repetição discursiva, ela justamente cria condições para a produção de novas discursividades. Ao
reduplicar os discursos [...], a mídia trata de reorganizá-los, construindo, por sua vez, novos e outros discursos. Tal
conclusão está ligada a duas constatações em relação a este meio. Uma diz respeito à tal reduplicação via edição –
cenários e personagens criados e reproduzidos pela própria linguagem que lhe é específica. A outra diz respeito à sua
veiculação mesma, à abrangência massiva que hoje a mídia adquire – fato que, de certa forma, confere nova vida e
materialidade distinta aos discursos (Marcello, 2004, p. 203)
1192

universidades e entidades estudantis; organizações da ala progressista da igreja católica, como o


Conselho Indigenista Missionário (CIMI); organizações do movimento indígena, como o Conselho
da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil (CAPOIB), Conselho das
Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e
Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOIME) (Cesar, 2002;
Herschemann; Pereira, 2000; Silva, 2003).

O Movimento Brasil: Outros 500 tomava como referência a Campanha Continental de


Resistência Indígena, Negra e Popular que, entre o final da década de 1980 e o início da década de
1990, havia sido responsável por uma ampla articulação de movimentos sociais da América em
oposição às comemorações do quinto centenário da chegada de Cristóvão Colombo ao continente,
programadas estas para 12 de outubro de 1992 (Conselho Indigenista Missionário, 2000, p. 12).
Por um lado, o Movimento retomava debates, táticas e estratégias destes conclaves continentais;
enquanto, por outro, como bem lembram José Maurício Arruti e Luciana Heyman (2012, p. 17),
essa articulação pode ser vista como parte também dos processos de mobilização e lutas sociais
intensificadas a partir da redemocratização do país, pois traziam à tona as pautas de grupos
historicamente subalternizados e suas demandas por reconhecimento do direito à diferença e pela
gestão da memória nacional.

Em dezembro de 1998, entidades de movimentos sociais representando diferentes setores


da sociedade apresentaram o documento de lançamento do Movimento, o “Manifesto Movimento
Brasil: 500 Anos de Resistência indígena, Negra e Popular”, no qual propunham uma leitura para
a história do país que partisse de “um lugar bem definido - dos que sofreram e lutaram contra a
espoliação colonial e a exploração de classe, dos condenados da terra, das periferias da cidade e da
história oficial” (Movimento Brasil: 500 anos de resistência indígena, negra e popular, 1998, p. 1).
Contestava-se assim as imagens de uma trajetória histórica harmônica, denunciando a permanência
de desigualdades e injustiças na sociedade brasileira. Desse modo, o manifesto se constituía,
sobretudo, em um clamor para a ação coletiva a ser desencadeada pelos movimentos sociais, tendo
como projeto principal a realização de mobilizações e protestos no mês de abril de 2000, no mesmo
“lugar mítico” onde se deu o desembarque dos primeiros portugueses em terras brasileira e para
onde o governo brasileiro planejara o encerramento dos festejos oficiais dos 500 anos.

Apesar dos esforços para viabilizar a coordenação das ações coletivas em nível nacional, o
Movimento Brasil: Outros 500 Anos enfrentou uma série de dificuldades em decorrência tanto das
diferenças entre trajetórias e demandas das entidades que o compunham, quanto às limitações de
recursos financeiros (César, 2002, p. 18-19). Consta na cartilha “Zumbi Apareceu na Coroa
1193

Vermelha: Porto Seguro/Santa Cruz de Cabrália, abril de 2000” que houve também entraves em
razão de discordâncias relativas às perspectivas político-ideológicas que o Movimento deveria
assumir, pois os movimentos negros e movimentos populares disputavam quanto à prevalência das
questões étnico-raciais ou da luta de classes na explicação da realidade brasileira (Movimento Negro
Unificado; Fonseca; Santos, 2010, p. 45). América Lúcia César aponta também dissensos em relação
à forma de atuação do movimento; pois

enquanto alguns defendiam uma atuação centrada na realização de eventos,


outros entendiam que o movimento deveria estrategicamente discutir questões
no eixo de revisão histórica, do papel dos excluídos, e caracterizar a permanência
do colonialismo enquanto sistema de dominação, que não mudou com a
independência do país (2002, p. 18).

Diante das fragilidades da Coordenação Nacional do Movimento, cada entidade e


movimento social acabou elaborando o seu próprio planejamento visando as mobilizações do mês
de abril de 2000 na região do extremo sul da Bahia (MALDOS, 2000, p. 3). Em seu conjunto, as
atividades continuariam a ser denominadas como Marcha Nacional Brasil: 500 Anos de Resistência
Indígena, Negra e Popular, e tiveram três eixos principais: a Marcha Indígena 2000 e Conferência
dos Povos e Organizações Indígenas (ou Conferência Indígena 2000), sob a coordenação do CIMI,
da CAPOIB, da COIAB, e da APOINME; o Abril Vermelho, organizado pelo MST em
homenagem aos sem-terra assassinados no Massacre de Eldorado do Carajás; e o Acampamento
Quilombo Palmares, organizado por entidades dos movimentos negros (Movimento Negro
Unificado; Fonseca; Santos, 2010, p. 46).
As organizações dos movimentos indígenas focaram-se então na organização do ambicioso
projeto de realizar a Marcha Indígena 2000, como um longa caminhada em que os povos indígenas
sairiam de seus territórios, realizando protestos em determinadas cidades, até chegar à Santa Cruz
de Cabrália, mais precisamente à Terra Indígena Pataxó de Coroa Vermelha, onde ocorreria a
Conferência dos povos e Organizações Indígenas. Conforme o então assessor político do CIMI,
Paulo Maldos (2000, p. 3), nos encontros preparatórios para a Marcha e a Conferência Indígena,
lideranças indígenas e de entidades de apoio estabeleceram o planejamento e a logística para os
deslocamentos dos representantes indígenas que participariam das mobilizações em caravanas,
conforme regiões e/ou estados498. Para o percurso de cada caravana, foram planejadas paradas em
determinadas cidades para a recepção de povos indígenas que habitavam nas proximidades e para

498
Caravana Indígena do Norte (Amazônia), com lideranças do Amapá, Amazonas, Maranhão, Pará, Roraima e
Tocantins; Caravana da Amazônia Ocidental com lideranças do Acre, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e do sul do
Amazonas; Caravana do Mato Grosso do Sul, com lideranças do estado homônimo; Caravana do Sul, com lideranças
do Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo; Caravana do Leste, com lideranças do Espírito Santo, Minas
Gerais e do sul do Bahia; e a Caravana do Nordeste, com lideranças de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Recife
(CIMI, 2000, p. 25-69).
1194

a realização de protesto e manifestações, sendo que os principais atos estavam programados para
ocorrer em Brasília (entre os dias 13 e 14 de abril), Salvador (dia 16), Monte Pascoal (dia 19) e Porto
Seguro (dia 22) (Movimento de resistência indígena, negra e popular, 1999, p. 4).
Destacamos aqui o Manifesto de Manaus, publicado no dia 3 de abril de 2000, no contexto
da passagem da Marcha Indígena 2000 pela capital amazonense. Segundo matéria do jornal O
Estado de São Paulo (Procurador..., 2000, p. 11), sete lideranças do povo Ticuna entregaram esse
documento ao procurador Ageu Florêncio, na sede da Procuradoria da República do Amazonas.
Durante o ato, os líderes indígenas criticaram as comemorações oficiais e exigiram que os
participantes da Marcha Indígena 2000 não fossem impedidos de atravessar as fronteiras
interestaduais ao longo do percurso em direção à Santa Cruz de Cabrália, Bahia. O procurador
encaminhou o documento à Funai, à Polícia Federal e ao Ibama, bem como solicitou às autoridades
federais e estaduais que garantissem a segurança das lideranças indígenas durante a Marcha (idem).

O texto do Manifesto de Manaus se divide basicamente em duas partes: a primeira expondo


denúncias; e a segunda em que apresenta as reivindicações do Movimento. As denúncias versam
sobre o caráter etnocida das comemorações oficiais dos 500 anos, bem como de seu projeto
colonialista, inaugurado há cinco séculos, baseado nas diferentes práticas de violências, exploração,
exclusão e extermínio dos povos indígenas, das populações negras e das camadas empobrecidas.
Destaca-se ainda as consequências dessas políticas históricas implementadas pelas “elites
colonialistas”: a expulsão dos povos indígenas de seus territórios e a profunda concentração
fundiária; a exploração predatória da riqueza econômica e sociocultural da Amazônia; e o quadro
de “extrema miséria, desemprego, salário mínimo de R$ 150,00, expulsão da população do interior,
abandono da saúde e educação pública, falta de moradia e violência urbana” (Movimento de
resistência indígena, negra e popular, 2000, p. 1). Na segunda parte do documento, identifica-se o
Movimento como continuidade das resistências históricas, como as protagonizadas por povos do
Rio Negro e do Rio Solimões, pelo povo Mura, pela Cabanagem, pelos quilombos e pelas lutas
contra as ditaduras, o manifesto apresenta as seguintes reivindicações:

1. A demarcação e garantia de todas as terras indígenas, demarcação das terras


dos remanescentes de quilombos, e o acesso e garantia de terra para as
populações regionais, reconhecendo e respeitando seus conhecimentos e culturas
tradicionais
2. O fim de todas as formas de discriminação, exclusão, massacres, violências e
impunidade. O imediato julgamento e punição dos responsáveis pelos massacres
Ticuna, ocorrido em 28 de março 1988 e dos Korubo, em setembro de 1989.
3. Que a utilização dos recursos naturais (madeira, minérios, biodiversidade) não
continuem beneficiando alguns, mas que através das formas de manejo
sustentáveis, possam trazer benefícios permanentes para toda a população da
região.
1195

4. Que uma política nacional para a Amazônia seja elaborada com a participação
de todos os segmentos da sociedade, a partir dos conhecimentos, projetos de
vida e sociodiversidade aqui existentes.
5. Que a verdadeira história deste país seja reconhecida e ensinada nas escolas,
levando em conta os milhares de anos de existência das populações indígenas
nesta terra (Movimento de resistência indígena, negra e popular, 2000, p. 2).

O Manifesto de Manaus é bastante revelador do modo como a história constitui um


instrumento político fundamental nas lutas pela demarcação de terras indígenas e quilombolas e
pelo acesso e garantia de terras para as populações regionais, bem como pelo reconhecimento de
projetos de vida, conhecimento e sociodiversidades existentes na região da Amazônia. Ao evocar
“a verdadeira história deste país”, e que ela seja reconhecida e ensinada nas escolas, o Manifesto
reafirma ainda o reconhecimento da dimensão política e educativa da história nas lutas por projetos
políticos dos grupos signatários do Manifesto. Devemos ressaltar que uma tensão entre práticas
culturais globais e locais atravessa esse manifesto, bem como a luta pelo reconhecimento,
resistência e sobrevivência das identidades locais frente a um projeto moderno-colonial (expresso
nas comemorações oficiais dos 500 anos) que se edifica na dissolução de conhecimentos,
representações históricas, projetos de vida e sociodiversidades existentes a nível local e que não
favorecem o mercado, a exploração econômica, a acumulação do capital e a desigualdade estrutural
do capitalismo global.

Observa-se nos documentos lançados pelo Movimento Brasil: Outros 500 a relação entre
memória, história e identidades, haja vista o modo como conferem sentidos e valorização às lutas
sociais e aos projetos políticos do tempo presente a partir da afirmação de uma memória histórica
posta em esquecimento por aquela das comemorações oficiais dos 500 anos. O Movimento evoca
uma memória histórica coletiva de lutas e resistências que colabora na legitimação de um projeto
político democrático, multiétnico e pluricultural de exercício da cidadania. A memória da resistência
indígena, negra e popular durante esses 500 anos, constitui instrumento político de fortalecimento
de uma identidade coletiva identificada com um projeto político de transformação social. Nesse
sentido, se pensarmos que, como bem lembram Zambrano e Gnecco (2000, p. 14), a supressão da
memória (através da implementação de um regime de memória que sepulta ou apaga a dos grupos
subalternos) implica na supressão da identidade; a recuperação dessa memória de resistência
configura-se enquanto recuperação de uma identidade coletiva que fundamenta e fortalece as
reivindicações em torno de seu projeto político. Em outras palavras, na luta pela definição e
fortalecimento das identidades de grupos historicamente marginalizados, os sistemas de
representação histórica têm um papel determinante.
1196

Buscamos analisar ao longo do artigo as disputas que emergiram no contexto das


comemorações do chamado 500 anos de “descobrimento do Brasil”, evidenciando as
representações, memórias e significados sobre o passado em jogo, bem como a que projetos de
sociedades tais concepções respondiam e que ideias de nacionalidade estavam em jogo. Assim,
buscamos descrever como as perspectivas governamentais mobilizaram um conjunto heterogêneo
de práticas discursivas e não-discursiva que reconfiguravam certas concepções de história do Brasil
e identidade nacional, profundamente ancorados no imaginário nacional, e que reproduziam e
reforçavam o padrão moderno-colonial de poder. Por outro lado, abordamos estratégias e táticas
do Movimento Brasil: Outros 500 e, mais especificamente, de organizações indígenas voltadas para
resistir à colonialidade da história, ativando memórias dissidentes, saberes alternativos e modos de
subjetivação outros, capazes de imaginar um outro projeto de sociedade, voltado para o
reconhecimento e valorização das diferenças étnicas, culturais e de modos de vida.

Referência

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1199

Centralidade do Corpo e Agência do Historiador à luz do Tempo


Presente: pesquisa histórica e escrita historiográfica entre o
indivíduo e o mundo

Luciano Chinda Doarte*

Resumo: no mundo de perspectiva historicista, nascedouro da História, a relação dada pela chave
sujeito-objeto marcava as posições do pesquisador e de seu material de estudo. Dessa forma,
alegando neutralidade, universalismo e seriedade, historiadores acreditavam que a distância para
com o seu objeto (o passado, o que já não mais é), e o método rigoroso garantiriam a anulação da
presença do próprio historiador enquanto portador de subjetividades, que seria articulador de
ferramentas com as quais se investiga o passado a partir de testemunhos. Este trabalho dedica-se,
diferentemente da proposta oitocentista de certo modo ainda vigente, a pensar uma proposta
teórica que considera e propõe justificativa não só para a consciência da agência do historiador
como um produto-produtor da sua historiografia e do contexto do qual participa, mas, ainda,
sublinha a centralidade desta concepção, a partir da qual, crê-se, é possível interpretar de maneira
mais profunda a ação do pesquisador e as mensagens objetivas e sutis de seu trabalho, o que
oportuniza uma consciência mais aguçada sobre as relações de pertencimento e negação
estabelecidas. Para tanto, retomam-se as ideias da mediação corporal entre o indivíduo e o mundo
de Maurice Merleau-Ponty, David Le Breton e Eduardo Miranda, articuladas com as propostas
teórico-metodológicas da História do Tempo Presente, fundamentadas por François Hartog e
Hans Ulrich Gumbrecht. Também se serve nesta proposta do entendimento da identidade
relacional, trabalhada por Stuart Hall e João Luiz Medeiros. Com as bases teóricas eleitas, aponta-
se para a incontornável e permanente troca entre o saber, os valores e as relações contextuais que
constituem o indivíduo historiador, seu meio de experiência e o conhecimento por ele produzido,
difundido e registrado na prosa historiográfica. Dessa forma, garante-se a necessidade e a
justificativa da produção historiográfica enquanto também se salienta a experiência e a ação
humanas do próprio historiador.

Palavras-chave: Historiador, Pesquisa em História, Produção historiográfica, Produção do


conhecimento, Historiografia.

Introdução

A História enquanto esforço de pesquisa sobre o passado com preocupações com os fatos,
suas construções e interpretações e também enquanto certa atmosfera de produção, validação,
avaliação, interação entre seus produtores – os historiadores – como um saber de um grupo que se

* Graduado em Licenciatura em História (PUCPR). Atualmente é professor-coordenador do Grupo de Estudos e


Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPC); professor e coordenador do Curso de Pós-Graduação (lato sensu) em
Patrimônio Cultural e Sociedade, da Universidade Positivo (UP); e professor da extensão universitária do Centro
Universitário Santa Cruz de Curitiba; em Curitiba; e presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de São
José dos Pinhais/PR (COMPAC), gestão 2020-2022. Contato: lucianochinda.lcd@gmail.com.
1200

dedica a ele, como sabemos, é fruto de movimentos epistêmicos mais perceptíveis no século XIX.
O modelo de História que atua sobre e pesquisa a(s) história(s) chamado de “historicista, que
pretendia uma “História Universal” da humanidade como um todo, propunha, então, um conceito
singular de história.

O historicismo desenvolvido ao longo do século XIX alemão foi afetado – e também afetou
– por pensadores como Immanuel Kant, Johann Gottfried von Herder, Georg Wilhelm Friedrich
Hegel e Arthur Schopenhauer, e também pode ser encontrado em certa medida nos trabalhos
literários de escritores como Johann Wolfgang von Goethe e Friedrich Schiller. O movimento teve
como grande articulador Wilhelm Von Humboldt, especialmente em seu ensaio Sobre a Tarefa do
Historiador (1821), no qual propõe uma história empirista e discorre sobre o observador dos
processos históricos.

Humboldt, dentre outros pensamentos, propõe as duas atitudes do trabalho historiográfico:


a primeira metódica e empírica – a investigação do objeto de pesquisa –; e a segunda criativa e
artística – a organização dos dados coletados e a interpretação deles, até de caráter imaginativo
sobre o que as fontes não supriam de todo. É neste trabalho que o autor apresenta uma ideia central
para o modelo de História – científica – do século XIX: um objetivismo de caráter neutro sobre os
objetos sobre os quais se debruça, ao passo que valoriza a historicidade de cada coisa, ação, lugar.

Também no XIX, na França, outro movimento intelectual afetou a formação e a


constituição da História: a Escola Metódica, muito guiada pelo positivismo de August Comte, que
aplicava à História a pretensão de ser uma ciência metodologicamente aplicável, tendo as ciências
matemáticas e físicas como modelo. O modelo tratou de temas como o tempo – ainda fundamental
para a historiografia – e as fontes históricas, privilegiando os documentos textuais, especialmente
os de cunho oficial (de governos, instituições, organizações).

Em ambos os casos uma proposta salta aos olhos do século XXI e é sobre este ponto que
se articula este trabalho: a pretensão de distância, tanto temporal entre o historiador e o objeto de
estudo dele, o que pode ser possível quando se estuda um longo passado a partir de seu presente,
quanto de relação, sobretudo subjetiva, entre o pesquisador e seu objeto. Neste sentido, o
historiador é mero articulador de métodos com os quais se interpreta o passado com base nas
fontes históricas ao passo que nãos e afeta pelo seu estudo, não permite que a via contrária também
aconteça e não possibilita que sua própria presença exista.

Com a anulação da presença do historiador enquanto indivíduo portador de valores,


história, concepções, códigos pessoais, pertencimentos coletivos, este seria um “buscador de coisas
no passado” de modo seco, sem que nem porquê. É atento a essa proposta oitocentista que ainda
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paira em certos âmbitos acadêmicos, científicos, políticos e culturais contemporâneos que este
trabalho se ocupa da existência incontornável do historiador enquanto pessoa complexa e também
de como o próprio corpo do historiador é venal, porque é potencializador e limitador de sua ação,
dado que, por exemplo, sua própria “fábrica de história” depende do corpo: o cérebro. Aliado a
isso, articula-se como a proposta da História do Tempo Presente pode acolher estas percepções
incontornáveis ao mesmo tempo em que possibilita a ação historiográfica à revelia da proposta de
que o corpo e o indivíduo historiador devam ser anulados na pesquisa histórica e na escrita da
prosa historiográfica.

A Centralidade do Corpo

Para este estudo, parte-se da ideia da incontornabilidade do corpo enquanto instrumento,


enquanto lugar do indivíduo em si mesmo, enquanto materialidade do ser, enquanto
potencializador da pessoa e também limitador dela. A produção, a transmissão, a atualização, a
negação de conhecimento e de sentido, assim, passa pela existência do corpo.

O corpo é por ele mesmo um exemplo de presença do passado no presente, uma vez que
segue “em frente” apesar dos acontecimentos de antes, carregando as marcas, as memórias do que
já aconteceu. O corpo que participa de uma experiência torna-se, especialmente ao longo do século
XX, lugar privilegiado de produção de conhecimento sobre a própria experiência pela qual passou,
articulando certo poder simbólico no meio social para justificar-se e justificar o que narra. Viver e
narrar o vivido são potências do corpo muito valorizadas no mundo contemporâneo.

Mulheres negras no Brasil, que reúnem historicamente uma gama enorme de violências
históricas, estão, pelo corpo e pela experiência, autorizadas a narrar sobre as violências de raça e de
gênero no contexto brasileiro. Disparidades salariais, índices de violência prática e simbólica,
conjuntos de valores articulados em detrimento de si, limitações socioculturais à realização de si e
outras ações nocivas comumente ativas no Brasil podem ser explicadas por quem as viveu, e a
vivência nãos e dá senão pelo corpo. Desta forma, o corpo torna-se não só o meio pelo qual se dá
a experiência, mas também o motivo, o referente e a referência da própria experiência.

Distanciando-se de modelos intelectuais racionalistas de matriz socrático-platônica e o


empirismo puro, Maurice Merleau-Ponty sublinha a impossibilidade de produção de conhecimento
sem considerar a presença do corpo. Todo conhecimento é mediado pelo corpo. Isto não ignora
as práticas interpretativas, próprias da abstração do pensamento. Uma coisa afeta e depende da
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outra. O corpo é visto, ainda, como o resultado dos elementos das experiências vividas e como
aquilo que singulariza o indivíduo.

Isto posto, Merleau-Ponty articula sua ideia de percepção: o resultado do gesto ativo de
vontade de compreensão, sempre prefigurada pelo corpo. Sem precisar ser objetificado de alguma
maneira, o corpo sintetiza as vivências numa presença só – a do indivíduo singular – e pode
produzir de forma original e consciente o conhecimento a partir da relação do indivíduo com o
mundo. Diz Merleau-Ponty:

A síntese do tempo assim como a do espaço são sempre para recomeçar. A


experiência motora de nosso corpo não é um caso particular de conhecimento;
ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao mundo e ao objeto, uma
“praktagnosia” [um conhecimento tácito pré-consciente] que deve ser
reconhecida como original e talvez como originária. Meu corpo tem seu mundo
ou compreende seu mundo sem precisar passar por “representações”, sem
subordinar-se a uma “função simbólica” ou “objetificante” [...]. Assim como está
necessariamente “aqui”, o corpo existe necessariamente “agora”; ele nunca pode
tornar-se “passado”, e se no estado de saúde não podemos conservar a
recordação viva da doença, ou na idade adulta a recordação de nosso corpo
quando éramos crianças, essas “lacunas da memória” apenas exprimem a
estrutura temporal de nosso corpo. A cada instante de um movimento, o instante
precedente não é ignorado, mas está como que encaixado no presente, e a
percepção presente consiste em suma em reaprender, apoiando-se na posição
atual, a série das posições anteriores que se envolvem umas às outras. Mas a
própria posição iminente está envolvida no presente, e através dela todas as que
advirão até o termo do movimento. Cada momento do movimento abarca toda
a sua extensão, e em particular o primeiro momento, a iniciação cinética, inaugura
a ligação entre um aqui e um ali, entre uma gora e um futuro, que os outros
momentos se limitarão a desenvolver (1994, p. 194).

À luz da proposta merleaupontiana podemos tomar a importância da existência do corpo


como mediador das experiências do indivíduo, como possibilitador da produção de conhecimento
(qualquer que seja ele) e como algo que existe na efemeridade do presente. Lugar a partir do qual
se atua no meio social e para consigo, o corpo carrega a potência criadora de saber que volta-se ao
presente, mas que não ignora afetações das experiências do passado, tanto as que se encerraram no
passado e são memória, quanto as que não se encerraram no passado e se re-presentificam.

Ao pensarmos sobre a existência do indivíduo no meio social de forma prefigurada pelo


corpo, devemos também lembrar que o corpo e o ser não se desenvolvem de forma totalmente
livre, uma vez que as condições externas e as características internas são instrumentos de
socialização, portanto, ajudam a definir como, quando e o que o corpo e o ser serão, como atuarão,
suas reações e proposições.
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Os contextos socioculturais nos quais os indivíduos se inserem por livre escolha, como os
grupos profissionais, ou se percebem partícipes em uma tomada de consciência, como a família,
determinam em alguma medida as possibilidades que o mundo oferta à pessoa ao mesmo tempo
em que formam as características individuais próprias dela, como os valores, as predileções, as
vontades. Para tanto, somos socializados de algumas maneiras que nos afetam, somos levados a
comportamentos, interpretações e desejos pelo mundo que nos cerca. Os níveis de força autoritária
deste movimento dependem, é claro, da própria formação do contexto em que se vive (se em
regime político democrático ou ditatorial, se com direitos sociais ofertados ou não – e com que
qualidade –, se a diversidade é um valor endossado na sociedade ou não; isto tudo pensando apenas
os valores ocidentais, não querendo silenciar outras propostas de mundo).

Novamente, todas as interações do indivíduo com o mundo e vice-versa, se dão pelo corpo,
por isso como, com quais valores, com que possibilidades e limites a formação acontece é
importante de ser notada, como aponta David Le Breton:

Moldado pelo contexto social e cultural em que o ator se insere, o corpo é vetor
semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída: atividades
perceptivas, mas também expressão dos sentimentos, cerimoniais dos ritos de
interação, conjunto de gestos e mímicas, produção da aparência, jogos sutis da
sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o
sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal (2007, p. 07).

O corpo enquanto vetor de participação do indivíduo no mundo é o espaço, o local, o


território de ação de um sobre o outro, nas duas vias de sentido. Fruto do contemporâneo
relacional, a própria relação e a performance do/pelo corpo é ação constante, nunca acabada,
sempre em reformulação e que exige esforços conscientes para se realizar e permitir a realização
do indivíduo. Historicamente o mesmo, mas ao mesmo tempo um presente diferente do passado,
o corpo se apresenta como algo do agora ao pensarmos sua existência e os contatos estabelecidos
(todos eles).

Eduardo Miranda, ao tratar do tema da Educação, ocupa-se também do corpo recuperando


o conceito por ele articulado em 2014: corpo-território. O corpo-território é, por excelência, a
interpretação do corpo como lugar de ação, reação e interação do indivíduo para com a sociedade,
as instituições, as artes, os saberes, as práticas, as fofocas, as missas, as manifestações políticas
organizadas, as eleições etc.

Tomar o corpo neste sentido potencializa a experiência individual de produção de


conhecimento e pode dignificar sua ação por ela mesma, independendo de valores, estereótipos,
marcações sociais de diferença, como aponta Miranda:
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Elucido que o corpo-território é um texto vivo, um texto-corpo que narra as


histórias e as experiências que o atravessa. Por isso, consigo lembrar com riquezas
de detalhes as primeiras vezes que o meu corpo-território sentiu-se atravessado pelos
corpos-sonoros dos atabaques pombalenses, por volta de 2011 e 2012. [...]
Exercitar esses sentidos é permitir ao corpo-território viver/existir a partir de sua
própria experiência e não se reduzir a viver pela linguagem e experimento do
outro. Ou seja, olhar o mundo, exclusivamente, pelas narrativas do outro pode
se tornar problemático, já que o nosso corpo-território recai na leitura embaçada e
colonial sobre os elementos que compõem as suas espacialidades, em que muito
se perde, detalhes são minimizados, particularidades são homogeneizadas (2020,
p. 25; 27).

Isto posto, o que se pretende por ora é marcar o caráter propriamente incontornável do
corpo na vida humana em geral, o que afeta e afetará sobremaneira a atuação do historiador ao
produzir historiografia, pesquisar em campo e/ou em acervos, interagir com seu tempo e participar
efetivamente dele. Marcar a centralidade do corpo é escapar, como outros, da ideia de
conhecimento metafísico puro, do sujeito universal – sem identidade – efetivo e da contingência
da articulação de metodologia em favor da realização da pesquisa histórica por ela mesma sem
marcar e ser marcada pela existência do historiador em si.

Esta proposta pode ser articulada com a concepção de identidade relacional, pela qual a
formação identitária dos indivíduos ocorre nos momentos de ação na vida pública e também nas
interações pessoais consigo. Assim, não há qualquer essencialidade ou especificidade das
identidades que se deem nem de forma estável e perene, nem de forma anterior à ação do sujeito
individual ou coletivo. Este modelo moderno de identidade estável, perene e acabada em um bloco
que antecede a experiência e é “apenas” performada está sendo “descentrado” por meio de
deslocamentos e fragmentações (Hall, 2019, p. 9).

Assim como o corpo território, a identidade em sentido relacional se dá no efêmero momento do


presente, sem nunca ignorar as cargas de passado que a conformam enquanto ação histórica.
Todavia, a ação identitária, sua formação e, neste ponto, a ação do próprio corpo são produtos do
aqui e do agora do indivíduo. O historiador, neste sentido, depende das potências e dos limites de
seu tempo, se serve das estruturas externas a si disponíveis em um contexto enquanto também
interage a partir de suas vontades, sentidos, sentimentos e valores próprios de sua subjetividade.

O corpo que não se torna passado, em nenhum momento, mas que também não o deixa
de ser, é o espaço de manifestação de diferentes presenças e formas do passado no presente e do
presente nele mesmo. O corpo é, em resumo, como apontado no início deste texto, o instrumento
de potência e de limitação, movimentos sempre em ação ao mesmo tempo, do indivíduo e sua
interação com o mundo contextual, e é aí que historiadores e produção historiográfica são
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interpretados neste estudo: como agentes que dependem da própria presença para a realização de
seu trabalho, não sendo possível um saber histórico sem algum tipo de pertencimento, sem
afetações por valores e sem influências de seu tempo.

A Presença no Tempo Presente

Posta a importância do entendimento da presença do historiador (e de todos os indivíduos)


para a realização de sua própria experiência, a centralidade do corpo nesta dinâmica e que as
relações se dão de forma contextual, relativas ao momento específico delas, aliam-se estas ideias às
ideias da presença potencializada pela proposta teórico-metodológica da História do Tempo
Presente.

A História do Tempo Presente (HTP) enquanto conjunto de ideias para o trabalho


historiográfico, desde a concepção do objeto de pesquisa até o resultado da prosa historiográfica,
apresenta a possibilidade de valorizar a presença do historiador ao invés de, como se pretendia nas
ideias oitocentistas de História, anulá-la. A HTP é, então, um conjunto de proposta heurísticas
compartilhadas pelos agentes profissionais do campo da História (os historiadores), que dedicam-
se séria e profissionalmente a realizar pesquisas debruçando-se sobre o passado.

A HTP é uma proposta disciplinar que surge e se alimenta da valorização das presenças no
mundo ocidental do século XX. Menos se ocupando da delimitação do que seria ou não o presente,
o que já seria ou ainda não o passado, a História do Tempo Presente tem como objetivo estudar as
diferentes presenças em um mesmo presente, como sincrônicos, coexistentes. Sua gênese está no
ano de 1978, no Instituto de História do Tempo Presente, na França, como parte do Centro
Nacional de Pesquisa Científica. E tem como expoentes pensadores como René Demond, Jean-
François Soulet, Pierre Laborie, François Bédarida, François Dosse entre outros.

O que cumpre valorizar neste breve texto é a ideia de incidência das formas de passado
representificadas no presente. Como escreveu François Dosse, estudando as propostas de Henri-
Irénée Marrou que, segundo Dosse:

[...] instituiu nesse discurso maior do presente propondo uma equação que o
expressava. Para o historiador [Marrou], a História resulta de uma equação do
passado sobre o presente (# = %'&), e não de uma restituição do passado, mais
infelizmente uma pequena parte inevitável de presente (# = % + &), tal como a
escola metódica, dita positivista, concebe-a [...] (2012, p. 10).

A partir desta concepção de posicionamento metodológico sobre a prática da História


através de seus agentes, os historiadores, sublinha-se a existência de uma atmosfera no
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contemporâneo que valoriza o tempo presente e as presenças, o que potencializa o corpo, sua
experiência e as narrativas e ações a partir dele, como vimos antes. Esta sensação de um presente
valorizado e de endosso às presenças é objeto de investigação da História há algum tempo e aqui
ressalto dois grandes ícones deste tema: François Hartog e Hans Ulrich Gumbrecht.

Ao falar do Regime de Historicidade Presentista, Hartog aponta para o mesmo que Gumbrecht
quando discorre sobre o Cronótopo do Presente Amplo. Em ambos os casos o mote está em como o
século XX e nosso contemporâneo no início do século XXI valorizam o tempo presente, a
experiência do efêmero, as identidades e a ação do corpo/pelo corpo/com o corpo.

Ambos os autores apontam que houve uma passagem de uma preocupação com o futuro,
quando tudo era guiado pelas utopias, para uma valorização do agora, e este modo de
relacionamento com o tempo é compartilhado coletivamente, vivido pelas sociedades. Para Hartog:

Pode-se enfatizar seja a presença do homem para si mesmo enquanto história,


seja sua finitude, seja sua abertura para o futuro [...]. Retenhamos aqui que o
termo [Regime de Historicidade] expressa a forma de condição histórica, a
maneira como um indivíduo ou uma coletividade se instaura e se desenvolve no
tempo (2014, p. 12).

É neste momento contemporâneo de valorização do presente que as presenças são


sublinhadas enquanto tal, capacitando-as como potência e como modo de ação dos sujeitos
individuais e/ou coletivos em seu meio, em seu contexto. A identidade, neste caso, não tem
contorno definido ou estável, e os grupos perdem a capacidade de legar coisas para as gerações
vindouras, dado o fechamento do futuro que passa, então, a se apresentar como ameaça, gerando
angústia e não esperança (Gumbrecht, 2015).

Nesta ambientação de um presente valorizado, as presenças no presente são argumento,


motor, combustível, ponto de partida e também de chegada de muitas discussões, performances,
proposições, escolhas, narrativas, estéticas etc. Há de se reconhecer, como no exemplo da mulher
negra brasileira, o potencial narrativo em si de alguém que narra as violências que experimenta no
cotidiano do Brasil. Novamente, neste caso as violências práticas e simbólicas pelo gênero ou pela
raça vividas ganham muito em teor de discurso e validação quando narradas pelo corpo, pela
presença, pela experiência que a viveu.

Noutro exemplo, este tempo e esta noção de ser e estar pode potencializar a prática do
historiador no que diz respeito à sua experiência no mundo, seus pertencimentos e suas
dissonâncias. Escolher estudar história política ou história cultural não se dá por sorteio durante o
curso de graduação, mas sim por escolhas profissionais. Estas escolhas são, isto sim, fruto das
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relações também subjetivas do indivíduo historiador para com o mundo que o cerca e no qual vive.
Ao optar pela história cultural, ainda se elege quando, por que e se irá estudar história da arte em
sentido formal ou se narrativas silenciadas no tradicionalismo museológico oitocentista ocidental,
e esta, mais uma vez, é uma escolha consciente que é afetada pela subjetividade, pela experiência e
pela própria presença do historiador enquanto pessoa.

Este entendimento defende que a proposta do século XIX de anular a presença do


historiador não só é inviável na prática quanto castradora. Se se aceita a presença do historiador
enquanto pessoa em ação política constante, ganha-se uma camada de complexidade que atribui
novos sentidos ao seu produto historiográfico, não tomando este apenas como meio pelo qual o
conteúdo sobre o passado é dinamizado. A prosa historiográfica tem historicidade nela mesma
enquanto fruto de um alguém, de um esforço consciente e de um tempo.

Aceitar que o historiador afeta seu estudo com sua subjetividade, e que ele também é
afetado pelo mundo e pelo que encontra/produz/interpreta ao praticar a História, torna mais
integral a leitura das historiografias, ao passo que mais complexa. Entender os pertencimentos, os
valores, as formas de participação do historiador enquanto agente político pode dar sentidos que
complementam (se não possibilitam de fato) sua produção historiográfica e sua participação em
um campo de saber. Uma historiadora negra que estude desigualdades de raça e gênero no Brasil
muito possivelmente não o faz apenas porque o tema lhe pareceu, em algum momento, atrativo,
mas, sim, porque este tema implica também em sua vida cotidiana. Escolher história política e
estudar governos brasileiros ou história cultural e estudar narrativas museológicas não se dá por
acaso, mas, isto sim, por influências de dentro para fora (da subjetividade para sua relação com o
mundo social) e de fora para dentro (das possibilidades apresentadas pelo mundo e as formas de o
sujeito interagir com elas).

Das Formas de Relação com o Passado

Ainda, estabelecida a relação do contemporâneo com o tempo presente e a valorização das


presenças, sobretudo pelo corpo, é importante neste estudo estarmos cientes das formas de relação
para com o passado, como se dão, como se formaram e quais suas potências. É essencial a
consciência de que as formas assumidas para o relacionamento com o passado usando a memória,
os patrimônios, os museus, a História, a oralidade etc. são, tanto quanto as identidades que operam
e são operadas por estes processos, contextuais e demonstram especificamente como cada
sociedade, em cada tempo, relaciona-se com a memória e como passado por meio dela (Assman,
2011).
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Assim sendo, termos no mundo atual a História como saber disciplinar com agentes
profissionais, bem como a valorização do presente e das presenças, já denuncia que esta é a forma
assumida pelas sociedades de cultura ocidental globalizada para se relacionar com o passado. Esta
não é uma forma natural, esperada ou anunciada por um divino. É criada pelo esforço sociocultural,
pela produção intelectual e pela validação dela no meio social em diferentes formas e momentos.
Da mesma forma que a História enquanto tal é uma forma de relação com o passado, outras
também o são.

Pensando na constituição científica da História no século XIX, sua defesa disciplinar


metodológica e a fala em favor da anulação da presença do historiador, também é interessante
lembrar as raízes Antigas da História, que muito influenciaram a realização do saber disciplinar que
temos hoje. A ciência e seus praticantes em um dado presente costumam, muitas vezes, se esquecer
da própria constituição histórica da própria ciência (o que para a História pode até doar como uma
piada). Como aponta Paolo Rossi:

Os cientistas empenhados em pesquisas não têm muito interesse pelos estranhos


modos em que foram inicialmente formulados os problemas sobre os quais
trabalham. Na maior parte dos casos, não discutem sobre os modos de formação
de sua especialidade. Muitos, de maneira mais simples, partem dela e assumem-
na como ponto de partida. [...] Os cientistas tendem a colocar sua atividade sob
o signo de uma concepção linear do progresso. Reescrevem continuamente seus
manuais, mas reescrevem continuamente “uma história ao revés” (2010, p. 172-
173; 175).

No caso da História, diferentemente da proposta historicista ou da metódica, as raízes


clássicas apontam para a importância da presença (e assim também do corpo) do próprio
historiador ao produzir sobre o que narra. Heródoto e Tucídides reivindicam, às suas formas, a
premissa do corpo para a narração da história. Heródoto ainda reconhecia a possibilidade de narrar
o que não viu, mas que ouviu de alguém que viu. Este método de trabalho é há muito estudado,
criticado e revisado por historiadores de diferentes tempos. Catherine Darbo-Peschansky, por
exemplo, aponta para certo desencontro entre a proposta de hierarquia de informantes (sendo os
mais confiáveis os mais próximos temporal e geograficamente dos acontecimentos que narra) e a
prática da escuta e registro da história por Heródoto, que ao mesmo tempo em que defendia
diferentes níveis de interesse na narrativa, desconsiderava:

[...] a situação de seus informantes ao prestarem o seu depoimento [nem] sua


posição em face dos acontecimentos [...]. Também as condições políticas,
econômicas, subjetivas, que permitiriam distinguir suas intenções e calcular-lhes
os efeitos. [...] a sua investigação não se ocupa nem em verificar a presença do
informante nos acontecimentos, [...] nem os fatores de reelaboração dos fatos
pelo discurso (1998, p. 105).
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Não nos ocupando das críticas ou análises acerca da prática historiadora de Heródoto, o
que nos cumpre marcar é a o uso do testemunho, portanto, de algum teor de presença ou relação
com o que é narrado. Um cidadão de Argos que narra a luta contra Esparta, por exemplo, é afetado
de alguma forma pelo evento, seja praticamente ou seja historicamente, tomando este
acontecimento histórico como um formador coletivo da identidade dos moradores de Argos.

Diferente de Heródoto, Tucídides não trabalhava com a coleta de relatos, pois demandava
a incontornável experiência de ter visto algo para que o narrasse. Assim foi que escreveu sobre a
Guerra do Peloponeso, ocorrida entre atenienses e peloponésios, como explica Carla Gastaud:

Tucídides, historiador grego do século V a.C., escreveu a história da guerra do


Peloponeso, preservando a memória dos acontecimentos da guerra entre
peloponésios e atenienses, que aconteceu durante seu tempo de vida e cuja
magnitude, segundo ele, superava qualquer guerra até então ocorrida. A Atenas
do século V, tempo e lugar de Tucídides, tem sido objeto recorrente de estudo
por suas características peculiares e por tudo que apresentou de inovador e único.
Tucídides escreveu sua obra em franca solidariedade com o ambiente histórico
que o produziu e este ambiente, Atenas do século V, é marcado pela crescente
curiosidade científica relacionada diretamente à procura por uma intelecção
racional do mundo (2001, s.p. [1]).

Em ambos os casos Antigos, o que nos importa neste estudo é a experiência da testemunha
e a inegável afetação pela subjetividade, seja de quem narra para Heródoto, seja do próprio
Tucídides ao narrar seu tempo. Neste sentido é que a proposta oitocentista de anulação da presença
do historiador é senão hipócrita, um paradoxo da conformação histórica da História. A presença
na produção historiográfica é essencial para que ela possa se realizar em seus termos. Sem a ação
historiadora, que é sempre humana, não há historiografia nem estudo disciplinar sobre o passado
como tal. Portanto, ignorar as afetações que acontecem entre historiador e objeto de estudo é uma
contradição histórica e uma proposta praticamente infértil.

A presença do historiador em si é, sendo assim, a verdadeira possibilidade de se praticar


História ao mesmo tempo em que pode apresentar condicionantes para esta produção. Em ambos
os casos, me parece ser inescapável esta relação, portanto, nos cabe assumi-la e pensar a partir dela,
não travando longas lutas heurísticas (e somente heurísticas) contra estas.

Considerações Finais

Por fim, aponta-se que a prática do historiador, e de sua produção historiográfica, pode ser
melhor compreendida quando considerados os posicionamentos, os lugares, as epistemes que
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compõem o indivíduo. Cientes de que o historiador é um agente humano ao mesmo tempo que
um cientista, e que as duas vertentes se complementam indivisivelmente, a prática da experiência
pesquisadora deve ser aliada às ações político-públicas do indivíduo dedicado à ciência histórica.

Isso permite posicionamentos de equivalência ou diferença em variados momentos, a partir


de um compêndio pessoal de ética e moral. E reconhecer a atuação constante do compêndio
pessoal sobre o mundo quando do trabalho do historiador não deve desmerecer o caráter científico
da historiografia, mas, isto sim, dinamizar tanto quanto possível as diversas faces que participam
desta atividade de pesquisa e divulgação do conhecimento. Ainda, a não invalidação da produção
historiográfica se dá pela impossibilidade de haver prática em História sem esta relação.

A agência do historiador se dá, nesta esteira, a partir também de seu compêndio de valores,
de sua subjetividade e de seu corpo, metonímia máxima da sua singularidade, sempre em atuação
sincrônica. A agência, para tanto, é entendida aqui:

[...] como um processo incorporado temporalmente de engajamento social,


informado pelo passado (em seu aspecto "interacional" ou habitual), mas
também orientado para o futuro (como uma capacidade “projetiva” de imaginar
possíveis alternativas) e para o presente (como uma capacidade "prático-
avaliativa" de contextualizar hábitos passados e projetos futuros dentro das
contingências do momento) (Emirbyer; Mische, 1998, p. 962).499

Por fim, cumpre simplificar a proposta num resumo. Não há maneira de que a presença (e
com ela o corpo) do historiador seja desconsiderado ou silenciado quando da atuação em História
e quando da escrita e divulgação da prosa historiográfica. Ainda, acompanhando a presença do ser
e de seu corpo, há de se ter em mente que o complexo cabedal de subjetividade que forma o
indivíduo dedicado à História também é atuante no trabalho de pesquisa e escrita, o que não
diminui qualquer caráter de validação científica. Ainda, é valoroso perceber que o tempo
contemporâneo, que valoriza o tempo presente e as presenças, podem enriquecer esta interpretação
de História ao passo que potencializa a narração pela experiência. Sendo assim, historiadores
dependem de sua própria experiência com o mundo para atuar em pesquisa histórica, não sendo
viável articular universalmente métodos nem alcançar a distância plena.

Dentro do presentismo/amplo presente, a História do Tempo Presente pode ser um auxílio aos
profissionais da História para este entendimento, justamente porquê está atenta – a proposta

499 Tradução livre de “[…] as a temporally embedded process of social engagement, informed by the past (in its
‘interational’ or habitual aspect) but also oriented toward the future (as a ‘projective’ capacity to imagine alternative
possibilities) and toward the present (as a ‘practical-evaluative’ capacity to contextualize past habits and future projects
within the contingencies of the moment)”.
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teórico-metodológica – às presenças, às representificações do passado em um mesmo presente, o


que inclui tanto as formas de permanência do objeto de estudo de um passado em um dado
presente, quanto a presença jamais invisível do próprio pesquisador.

Esta concepção busca aprofundar a relação entre profissional da História e seu estudo sobre
a(s) história(s) possíveis e passíveis de análise. Potencializar a presença do indivíduo historiador
pode, crê-se, atribuir uma camada à análise de historiografia que oferece cada vez mais instrumentos
e conhecimento para entender a escrita da História, a pesquisa em História, as escolhas em História,
que são constantes no trabalho do historiador.

Referências

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Editora da Unicamp, 2011.

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Gastaud, Carla. Historiografia Grega: Tucídides e a Guerra do Peloponeso. História em Revista,


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1212

Miguelismo: entre contrarrevolução e estado de exceção

Luciano dos Santos Abade*

Resumo: ao suspender direitos e garantias civis, usar aparato do Estado para perseguir detratores
e usar o força como instrumento de governo o regime miguelista política e ideologicamente se
amolda a um modelo de Estado absolutista? De que forma o exercício do poder pela força e a
suspensão das garantias civis e individuais é medida extraordinária típica de um Estado de Exceção
ou tais fatores são inerentes ao processo contrarrevolucionário? Na tentativa de resposta a estas
questões, o presente trabalho norteou-se pela pesquisa da institucionalidade do regime miguelista,
a partir da pesquisa dos processos políticos instaurados contra os opositores. Do ponto de vista
historiográfico, percebeu-se a necessidade de se interpretar o período a partir de uma perspectiva
que supere o dualismo das perspectivas liberal, que representa o Miguelismo como governo de
usurpação e que tem por objetivo a simples restauração do Estado absolutista, e da abordagem
antiliberal que elabora uma narrativa apologética do miguelismo, desprendida da ação política, e
que o concebe como a concretização de um passado ideal, para acomodar o Miguelismo dentro
de um contexto maior e multifacetado, um processo histórico complexo, interpretado como
elemento constitutivo da história de Portugal, mas integrado ao movimento da contrarrevolução
europeia do século XIX.

Palavras-chave: Miguelismo, Estado de Exceção, Contrarrevolução, Historiografia.

Introdução

O Miguelismo (1828-1834), entendido e caracterizado como regime de Terror (Martins,


2010) que assolou o povo português entre a segunda e terceira década do século XIX, deve seu
epíteto à historiografia liberal portuguesa dos séculos XIX e XX, que descreve o fenômeno
contrarrevolucionário português como um movimento social que contava com amplo apoio da
massa ignara, manipulada por uma eficiente propaganda de Estado que a insuflava contra os liberais
defensores da constituição portuguesa, um governo de usurpação e com o objetivo de restauração
absolutista, que atendia diretamente a interesses de parte da aristocracia tradicional alijada de seus
privilégios sedimentados desde o medievo e dos eclesiásticos, descontentes com a ruptura da
longeva e bem sucedida aliança trono-altar, característica do antigo regime na Península Ibérica.

Em contraponto, no mesmo período surge uma corrente historiográfica antiliberal, que


cria uma narrativa apologética ao miguelismo, desprendida da ação política e que concebe os breves
anos do reinado de D. Miguel como a concretização de um passado ideal.

* Mestrando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail:
luciano.abade@aluno.ufop.edu.br
1213

A historiografia mais moderna ao abordar o Miguelismo, tem revisto e reinterpretado o


tema, abandonando o dualismo das perspectivas liberal/antiliberal para acomodar o Miguelismo
dentro de um contexto maior e multifacetado, um processo histórico complexo integrado à
historiografia como elemento constitutivo da história de Portugal, interpretado no interior do
movimento da contrarrevolução europeia do século XIX.

Dessa nova abordagem historiográfica emergem questões que entendemos importantes


para entender melhor e na extensão de sua complexidade o período em recorte e que se propõe a
seguir: o regime miguelista política e ideologicamente se amolda a um modelo de Estado
absolutista? De que forma o exercício do poder pela força e a suspensão das garantias civis e
individuais é medida extraordinária ou tais fatores são inerentes à matriz de pensamento
contrarrevolucionária?

Na tentativa de resposta a estas questões, o presente trabalho norteou-se pela pesquisa da


institucionalidade do regime miguelista. Nesse contexto, percebeu-se que politicamente o regime
miguelista estruturalmente se utiliza das bases institucionais que lastrearam o modelo de Estado
absolutista, com forte centralização do poder político nas mãos do rei e do caráter sacralizado que
reveste a posição real, com a renovação da aliança trono-altar, fator chave para a consolidação do
poder real e legitimação do regime junto às massas populares.

Analisado sob a lente da história global, a contrarrevolução como conceito político pode
ser entendida como o palco no qual se observa a construção e definição de novas identidades
políticas via de regra antiliberais e vinculadas, no caso português ao pertencimento, aos direitos
adquiridos ao longo dos séculos e à tradição, característica que informará o delineamento dos
nacionalismos que se observa nos processos formativos dos Estados nacionais
modernos(ocidentais) do século XIX, o que a caracteriza como fenômeno moderno. Essa
constatação “ajuda a entender como as mudanças operadas no célebre tempo conjuntura da década
de 1820 e início da de 1830 acabam por combinar meios pretéritos e modernos de abordar a questão
da Nação (Gonçalves, 2012, p. 38)” articuladas com a politização das identidades coletivas.

No caso da contrarrevolução portuguesa, entretanto, algumas ressalvas devem ser feitas.


Conforme pontua Andréa Gonçalves (Luiz, 1999, p. 35), não há consenso na historiografia do
período no tocante à configuração do governo de D. Miguel como uma restauração pura e simples
do Estado Absolutista, ponto de vista do qual somo tributários, desenvolvendo nossa pesquisa de
mestrado justamente lastrado na percepção de que regime miguelista estruturalmente se utiliza das
bases institucionais do modelo de Estado absolutista, com forte centralização do poder político
nas mãos do rei e do caráter sacralizado que reveste a posição real, com a renovação da aliança
1214

trono-altar, fator chave para a consolidação do poder real e de um sofisticado sistema de iniciativas
com o intuito de mobilização de exércitos particulares, formação de milícias populares (Sarlin,
2019) e arregimentação das classes populares, seja pela via das conspirações e atividades sediciosa,
da criação de redes monarquista pelo continente europeu e da movimentação dos exilados pela(s)
revolução (ões) na mobilização da opinião pública por meio de escritos panfletários500 e da
construção carismática do caráter dos líderes contrarrevolucionários.

No caso brasileiro os princípios contrarrevolucionários estão no cerne do Estado Nação


surgido após a desagregação do império luso brasileiro (Chaves e Silveira, 2007, p. 186), que se dá
com a vinda da família real, interpretada segundo Maria de Lourdes Lyra (apud Gonçalves:2012)
como fenômeno contrarrevolucionário, uma vez que a transladação teria ocorrido justamente para
preservar a monarquia bragantina dos ventos revolucionários que solapavam a Europa no contexto
das guerras napoleônicas, moto que foi reforçado com a elevação do Brasil a reino unido em 1815,
momento no qual as nações vizinhas se tornavam independentes e adotavam o regime republicano
como forma de Estado. Maxwell (2000, p. 177) também esposa entendimento semelhante ao
defender “que o que estava em jogo no início da década de 1820 era mais uma questão de
monarquia, estabilidade, continuidade e integridade territorial do que de revolução colonial.”501

Processos políticos, contra revolução e estado de exceção

Para Derrida (2018, p.8) o direito é sempre uma força autorizada, que se justifica e tem sua
aplicação justificada, ainda que essa justificação possa ser considerada injusta. Não há direito sem
força e sua aplicabilidade [do direito] está condicionada a esta força (enforceability) que por sua vez
está “essencialmente implicada no conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida em
que ela se torna lei, da lei enquanto direito”. Nesse contexto o poder do Estado (Staatsgewalt) pode
ser entendido como como violência e poder legítimo, como a autoridade justificada.

Essa construção é corroborada pelo pensamento de Edmund Burke, que advogava a tese
de que os direitos são como blocos normativos que estruturam a política (Shapiro,2008). Direitos

500 Sobre o tema, lapidar a dissertação de Guimarães (2016).


501 Interessante notar que D. Pedro, é um personagem controverso, que submetido à narrativa historiográfica
portuguesa é entendido como um acérrimo liberal, ao passo que parte da historiografia brasileira vê em sua conduta
laivos de um despotismo esclarecido. Superando essa análise dicotômica, entretanto, percebe-se em suas ações traços
que o aproximam ora de ideias liberais, ora de ideias próximas aos sistema de pensamento contrarrevolucionário, ponto
este que nos interessa mais e que passamos a analisar, veja-se: brecou reformas estruturais consideradas progressistas
demais constantes do projeto de Bonifácio, cuja constituinte foi abortada na última hora, sendo substituída por uma
carta outorgada que tinha um objetivo e um propósito claro: evitar a revolução e o republicanismo que se observava
nas nações recém constituídas do que outrora constituía a América espanhola e fortalecer a monarquia centralizada
instituída desde 1808, mantendo a integridade territorial e a estabilidade, em um processo de continuidade.
1215

e obrigações estariam enraizados nas tradições herdadas que sustentam as comunidades políticas,
nas quais irá prevalecer a ideia da primazia das tradições coletivas sobre os direitos e deveres
individuais, que vem a ser a base na qual se estrutura o pensamento contrarrevolucionário.

O regime miguelista estruturalmente se utiliza das bases institucionais que lastrearam o


modelo de Estado absolutista, com forte centralização do poder político nas mãos do rei e do
caráter sacralizado que reveste a posição real, com a renovação da aliança trono-altar, fator chave
para a consolidação do poder real e legitimação do regime junto às massas populares.

O regime também é marcado pelo seu caráter repressivo e autoritário , com exercício do
poder pela força e a suspensão das garantias civis e individuais e o uso do aparato do Estado para
perseguir detratores do regime ( cartistas, liberais ou simples críticos do rei) e sobre essa
conformação fica a dúvida se configuram medidas extraordinárias típicas de um estado de exceção
ou se são desdobramentos inerentes ao processo da retradicionalização ideológica que caracteriza
o governo contrarrevolucionário de D. Miguel, operando sob a égide do rule of law e da legitimidade
político-jurídica.

Fátima de Sá((2014) corrobora essa percepção ao analisar os mecanismos jurídicos e os


modelos punitivos que alicerçam as sentenças prolatadas nos processos crimes políticos, afirmando
que os procedimentos jurídicos que desembocaram nessa violenta repressão não terão sido, no
geral, arbitrários, na medida em que procuravam cingir-se aos mecanismos legais e processuais
previstos nas Ordenações do Reino contra os crimes de rebelião e “lesa-magestade”502, sem haver,
contudo, uma recorrência ampla e sistemática à leis de exceção.

Linz503 ao discorrer sobre nacionalismos e o processo de construção dos Estados


democráticos contemporâneos, ainda que o autor deixe claro não se referir ao State Building e os
processos políticos ocorridos nos Estados europeus ao longo do séc. XIX, tece argumentos
pertinentes para se pensar a conformação institucional de Portugal sob o governo de D. Miguel e
a política de expurgo dos elementos contestadores do regime e defensores das ideias liberais levada
a cabo por meio dos processos crime.

502 Ao invés de recorrer a leis de exceção, o aparato repressivo do regime Miguelista cria uma comissão especializada
no julgamento de crimes políticos perpetrados contra “Sua Magestade” e contra a Segurança do Estado” Sá (2014,
s/n).
503 Além da questão da possibilidade do regime não democrático ter livre acesso para suprimir os detratores, ele avança

na discussão acerca do domínio do governo sobre os direitos da população, pelo fato de não poder ser contestado
através de canais institucionais dotadas de autoridade e de poder de coerção, tais como tribunais e eleições abertas e
diretas. Defende ainda que os direitos de cidadania têm pouca ou nenhuma relevância nesse contexto porque todos,
em geral, são excluídos de tais direitos. (1999, p.45).
1216

Por certo o reinado miguelista se insere na categoria dos regimes não democráticos e por
sua própria conformação é passível de ser analisado, entre outros aspectos, a partir da seguinte
afirmação, sem que se incorra em anacronismo:

Um regime não democrático pode ser capaz de impor aquiescência a grandes


grupos humanos, por longos períodos no tempo, sem que a coesão do Estado
seja ameaçada. Em um regime não democrático o fato da autoridade central não
ser derivada da livre competição eleitoral e através dela mantida, significa que as
aspirações separatistas ou irredentistas, caso existam, não precisam ser levadas
em conta no curso normal e rotineiro da política, e talvez, possa ser simplesmente
suprimidas.504

A análise dos processos políticos instaurados contra os detratores do regime (muitos deles
tendo como réus brasileiros e outros estrangeiros defensores em maior ou menor grau da causa
constitucional ou simplesmente indivíduos críticos do regime) tem todos em comum um elemento
que é onipresente: a questão da legitimidade, que permeia toda a matriz de pensamento
contrarrevolucionário e as relações de poder e as tramas políticas dentro do miguelismo (Remond,
s.d, p. 9).

As fontes do direito – tomadas a partir da acepção de fontes do conhecimento do direito505


- se constituem como chaves fundamentais para uma correta avaliação, mensuração e análise de
enquadramentos históricos da sociedade portuguesa e da dimensão jurídica da realidade coletiva
no recorte temporal a que se refere a pesquisa, contrapostas aos usos das instituições e do aparato
jurídico nos processos políticos instaurados contra os detratores do governo, dentre os quais
aqueles excertos contidos no sumário de processos listados por Lima (1967).

Conclusão

Conforme aponta Gonçalves (2019) o período miguelista é marcado por uma forte
repressão, sendo contabilizadas 14 mil506 prisões em uma população, estimada à época em 3 milhões
de habitantes. Segundo apurou, os inventários relacionam 1042 processos abertos em Lisboa, cada
um envolvendo mais de um implicado, condição que torna impossível se determinar o número
exato de processados.

504 Cit. 14, p. 46


505 Leal (1988, p.188-189), em breve artigo faz uma importante consideração acerca da consideração das fontes de
direito e suas múltiplas acepções : (i) como modos ou processos típicos de formação e revelação das normas jurídicas,
expressão da função de organização dos sistemas jurídicos, (ii) suportes concretos que asseguram ou permitem o
conhecimento das normas jurídicas (textos legais, ritos e práticas consuetudinárias, bem como decisões judiciais força
obrigatória geral ou que constituam precedentes vinculativos e ainda as tradições orais. (in: Arquivo e Historiografia,
Colóquio sobre as Fontes de História Contemporânea Portuguesa, coordenação: Maria José da Silva Leal, Mirian
Halpern Pereira; Lisboa; Imprensa Nacional da Casa da Moeda, Lisboa, 1988).
506 Cit. 5, p. 202.
1217

A análise dos processos torna-se ainda mais relevante pelo fato de que a estrutura de
distribuição de justiça nos termos do Livro V das Ordenações Filipinas, erigida sob o pálio da
ideologia de sociedade de ordem que caracteriza o Antigo Regime, tem impacto direto na condução
do processo penal, bem como na dosimetria e gravidade das penas impostas consequente
apenamento dos acusados – exemplo disso é a proibição de castigos corporais aos nobres e fidalgos.
É importante ainda ressaltar que muito dos processos instaurados não possuem nenhuma base
fática que os sustentem ou justifiquem, baseados apenas em “murmúrios” 507.

Questão transversal, mas que ganha importância nessa análise é que as prisões e os
julgamentos políticos têm lugar em uma sociedade que vem de uma experiência constitucional
(ainda que breve) na qual o conteúdo jurídico de igualdade de todos perante a lei foi, pelo menos
em tese, um dos pilares em que o regime cartista se apoiou durante sua breve vigência (1822-
1823/1826-1828).

Á vista do exposto, propõe-se uma análise retrospectiva dos processos crime, no modo que
expomos a seguir, buscando adaptar ao caso em estudo a metodologia proposta por Antônio
Manoel Hespanha quando da análise do conteúdo do repertório dos acórdãos do STJ português
no período compreendido entre 1837 e 1868 (Hespanha, 2017, “l” 719). Na consecução dos
objetivos propostos, procedeu-se à revisão das fontes do direito português no período miguelista,
selecionando-se, dentro do arcabouço legislativo as leis e normas jurídicas que se amoldam aos
objetivos específicos da pesquisa em tela, a saber:

Tabela 1
Fontes do Direito Normas

Nomeadamente o Livro V, que trata do direito


penal e processual penal, reformado em 1783 por
Ordenações Filipinas
Pascoal de Mello Freire

Lei da Boa Razão (Lei de 18 de agosto de 1769);

Carta régia de 14 de Julho de 1828;


Legislação Extravagante
Edital da Intendência Geral de Polícia de 22 de
julho de 1828;

507 Cit. 16, p. 384.


1218

Incluindo as Institutiones Iuris Criminalis Lusitani de


Doutrina portuguesa pós pombalina
Pascoal de Mello Freira

Jurisprudência Criminal das Alçadas e da Casa de


Suplicação versando sobre matéria penal coeva aos
processos crimes pesquisado

Fonte: tabela elaborada pelo próprio autor tendo por base as fontes de direito do período disponíveis

Por todo o exposto e analisado sob determinadas categorias do direito e da história das
instituições possui inúmeros traços em comum com o fenômeno político-jurídico denominado de
Estado de Exceção.508 Isto porque para instaurar e se garantir a estabilidade de seu governo D.
Miguel promoveu verdadeira cruzada contra qualquer um que se alinhasse ideologicamente à causa
liberal, utilizando-se, politicamente, do aparelho de justiça do reino para empreender o que
Agamben chama de “guerra civil legal”, extirpando do seio da sociedade portuguesa adversários
políticos e indivíduos que “por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político”
(Agamben, 2003). O conteúdo jurídico/político e a sistemática que norteou a implementação do
miguelismo e sua classificação como regime de exceção, carecem, entretanto, de uma análise
cuidadosa.

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http://bdlb.bn.gov.br
Carta régia de 14 de julho de 1828; Biblioteca Digital Luso-brasileira, disponível em
http://bdlb.bn.gov.br
Edital da Intendência Geral de Polícia de 22 de julho de 1828; Biblioteca Digital Luso-brasileira,
disponível em http://bdlb.bn.gov.br
Institutiones Iuris Criminalis Lusitani de Pascoal de Mello Freira: Biblioteca Digital da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, disponível em: https://bibdigital.fd.uc.pt/C-11-
9/rosto.html

Bibliografia

508A perspectiva a nosso ver não é anacrônica pelo fato do governo miguelista estar cingido umbilicalmente ao
processo de construção dos estados constitucionais europeus contemporâneos, o que possibilita que se use o conceito
de estado de exceção como categoria de análise.
1219

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1222

Poder e Posse de Terras em Santa Isabel do Paraguassú


(MUCUGÊ – BA, 1844-1871)

Luiz Alexandre Brandão Freire*

Resumo: Com o início das atividades de extração de diamantes a partir de 1844 nas Lavras da
Bahia, a eminente valorização daqueles terrenos pôs em voga a disputa pela propriedade da terra
naquela região. Isto posto, é possível inferir a partir de fontes históricas do século XIX a
concentração fundiária e econômica centralizada a partir da família Rocha Medrado, que se valeu
de uma série de dinâmicas clientelísticas para salvaguardar e ampliar suas posses. Dessa maneira,
este trabalho busca ressaltar as relações produtivas desenvolvidas a partir da propriedade da terra,
bem como as maneiras pela qual a família Rocha Medrado legitimou a concentração das riquezas
contidas na região.

Palavras-Chave: Concentração Fundiária, Lavras Diamantinas, Poder Socioeconômico.

Introdução

Condição nevrálgica para a manutenção do poder nos espaços municipais do Brasil


Oitocentista, a instrumentalização da posse de terras constituiu-se como um dos aspectos mais
investigados no século XIX, desde autoras como Márcia Maria Menendes Motta (Motta, 1996), até
brasilianistas como Richard Graham (Graham, 1997). No caso das Lavras Diamantinas da Bahia,
destacam-se estudos como o de Maria Cristina Dantas Pina (Pina, 2000) e Rômulo de Oliveira
Martins (Martins, 2013).

A rigor, mesmo antes da Lei de Terras em 1850, a consagração da propriedade dependia,


sobretudo, das práticas de granjear aliados, fosse por meio da concessão de favores, por meio da
consolidação de alianças extrafamiliares através de casamento, ou até mesmo através do
arrendamento de pequenas parcelas de terras para indivíduos despossuídos. Nessas dinâmicas
eminentemente clientelistas, se residia a legitimação da propriedade por meio do exercício do poder
privado (Graham, 1997).

A respeito das condições históricas da propriedade na Chapada Diamantina, pesquisas


recentes demonstram que uma significativa parcela das terras diamantíferas da região estavam

*Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), bolsista de iniciação científica
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Contato: alexandrefreireuesb@gmail.com
1223

concentradas no seio da família Rocha Medrado, pelo menos desde o fim do século XVIII, como
defende Luiz Alexandre Freire (Freire, 2020).

Atuando como Comandantes Superiores da Guarda Nacional, Juízes de Paz, Delegados


Municipais, dentre outras posições administrativas de igual relevância, os Rocha Medrado
exerceram sua influência de forma decisiva para a constituição da sociedade das Lavras. Ao que
tudo indica, a família foi a principal beneficiada dos volumosos negócios de compra e venda de
diamantes que se instalaram na região a partir de setembro de 1844 (Freire, 2020).

Isto posto, este trabalho pretende investigar as condições de propriedade de terras e das
dinâmicas de poder exercidas em Santa Isabel do Paraguassú, primeiro município das Lavras
Diamantinas da Bahia. Para tanto, faz-se necessário a análise de documentos históricos coetâneos,
como Livros de Notas, registros da Câmara Municipal de Santa Isabel, inventários, além das atas
do Senado Imperial e da Assembleia Legislativa da Província da Bahia.

Propriedade fundiária e poder político-econômico nas lavras baianas

Decerto, como apontam autores como Teodoro Sampaio (SAMPAIO, 1905) e Orville
Derby (DERBY, 1906), a mineração na Chapada Diamantina iniciou-se em movimento de norte
ao sul. Isto é, os primeiros diamantes extraídos, ainda em 1839, foram encontrados na serra do
Assuruá, nas Lavras de Santo Ignacio (atual Gentio do Ouro – BA). Entretanto, com o rápido
esgotamento daquelas jazidas, a mobilidade do trabalho passou a buscar atividades econômicas
semelhantes nas regiões centrais da Bahia, indo ao encontro do município de Morro do Chapéu,
onde também se minerou algum volume de diamantes até meados de 1844.

No entanto, indubitavelmente, foram os terrenos do alto do Paraguaçu, localizados na serra


do Sincorá, quem colocaram a Bahia em lugar de destaque econômico na produção de diamantes
por algumas décadas, principalmente na segunda metade do século XIX. A mineração de
diamantes, dessa forma, colocou em voga o povoamento das regiões das serranias centrais da Bahia,
que outrora desprovidas de densidade demográfica, viram a imigração de um notável número de
indivíduos para aquelas localidades. Dessa forma, Derby assim resume o processo:

A primeira, em Santo Ignacio e feita por faiscadores de ouro do Gentio, trouxe


um grande influxo de garimpeiros experimentados vindos em grande parte de
Grão-Mogol. O grande pulo dahi para o Morro do Chapeó, passando por
terrenos que foram depois reconhecidos por diamantíferos, foi provavelmente
determinado por uma estrada para a capital [...] Cerca de um anno mais tarde
(1844) houve as primeiras descobertas na vertente oriental da mesma Serra no
rio Mucugê, cuja história já é bem conhecida (Derby, 1906, p. 09)
1224

Para Marcia Menendes Motta, a forma de ocupação da propriedade era de suma


importância para salvaguardar os interesses de legitimação da posse por determinado indivíduo.
Sendo assim, as propriedades, em seus bojos, eram historicamente ocupadas por diferentes formas,
fosse por doação de sesmaria, por registro de compra e venda, por herança, por dote de casamento,
dentre outras condições (Motta, 1996). No caso de Santa Isabel do Paraguassú, a família Rocha
Medrado detinha em seus registros a parte majoritária daquelas terras herdadas por sesmarias, ou
pelo processo de compra e venda (Pina, 2000; Freire, 2020).

De fato, a origem de propriedades no alto do Paraguaçu já constava em inventários de


ascendentes da família, como Bernardo de Matos de Albuquerque, no fim do século XVIII. A
ampliação das posses na região, ainda, deu-se através de movimentos como a compra das terras da
região de Itaeté, ainda na primeira década do século XIX, e do curso do rio Paraguaçu, como consta
em um documento de transação datado de 1838.509

Em documentos produzidos por autoridades e viajantes do século XIX, como Gustavo


Adolfo de Menezes e Teodoro Sampaio, os Rocha Medrado também são evidenciados como os
primeiros particulares a ocuparem aqueles terrenos. Bem verdade, tanto no relatório escrito por
Gustavo Menezes para a Repartição dos Terrenos Diamantinos da Bahia quanto por Teodoro
Sampaio em seu livro sobre as Lavras, é registrado que a família Rocha Medrado era ocupante de
longa data da região, tendo, até mesmo, o sargento-mor Francisco José da Rocha Medrado sido
avisado da presença de diamantes na região duas décadas antes do início da mineração.

Spix e o Dr. Martius, atravessando o braço da serra do Sincorá, ora conhecida


por serra Diamantina, recorreram pela natureza de suas chapadas a existência de
preciosos diamantes, e a revelaram ao cavalheiro sargento-mor Francisco José da
Rocha Medrado, possuidor de vários terrenos desses interessantes logares, cujas
jazidas, vendo que se estendiam ao norte, os atraiu.510

De maneira semelhante, o cronista Gonçalo de Athayde Pereira (Pereira, 1906), um dos


primeiros indivíduos a escrever de forma mais sistematizada acerca das memórias sobre Mucugê,
também coaduna com as informações acerca do domínio dos Rocha Medrado na região,
pontuando que a parentela vigorou como “absoluta senhora feudal daquelas terras” (Pereira, 1906,
p. 22).

Como defende Marcia Motta, dinâmicas como essas observadas no discurso de cronistas e
autoridades reforçavam a legitimação de um indivíduo, ou de uma família, sobre a apropriação de

509APEB, Colonial e Provincial, Registro Paroquial de Terras, Doc n° 4792.


510Menezes, Gustavo Adolpho de. Memoria Descriptiva e Estatística da Riqueza Mineral da Provincia da Bahia. Rio de Janeiro
– RJ: Revista do IHGB, ano de 1863.
1225

determinada sorte de terras. Como lembra a autora, antes da Lei de Terras, o processo de
instrumentalização de terras dava-se a partir do direito consuetudinário, pois muito dificilmente
documentos escritos corroboravam provas suficientes para a posse.

De maneira semelhante, mesmo com a Lei de Terras, o registro paroquial prescindiu de


documentos manuscritos, e as contendas resultantes desse movimento eram resolvidas perante ao
Juiz Municipal a partir de elementos que demonstrassem o uso longínquo da propriedade, no qual
a utilização de testemunhas era fundamental para salvaguardar a prova da utilização, condição
central para garantir a posse (Motta, 1996).

Além disso, a disputa pelas terras devolutas, caracterizadas por matas virgens, também se
davam de forma frequente entre os particulares. Isto posto, nos inventários dos membros da família
Rocha Medrado é possível observar que o processo de apropriação de terras na região foi, de fato,
capitaneado por eles. Como corrobora Maria Cristina Pina, a propriedade de terras do município
estava concentrada no bojo da parentela, que se valia de dinâmicas comuns aos potentados locais
para fazer valer essas prerrogativas (Pina, 2000).

Santa Isabel, como a maioria das vilas brasileiras, tem sua origem ligada ao
processo de apropriação de terras. Essas apropriações provavelmente
aconteceram antes da Lei de Terras de 1850, portanto, os fazendeiros da região
incluíram nas suas posses as chamadas terras devolutas [...] Em Santa Isabel, esse
processo foi liderado pela família Rocha Medrado (Pina, 2000, p. 51).

No inventário de Maria Magdalena de Novaes Rocha, esposa do Cel. Reginaldo Landulfo


da Rocha Medrado, por exemplo, encontram-se localizadas a posse de diversos terrenos
diamantíferos, que abarcavam desde o rio Paraguaçu em Mucugê, Igatu e Andaraí, até os rios S.
Antônio, além das regiões do rio Una e da fazenda Araras, em Itaeté. Certamente, grande parte
dessas propriedades foram arrendadas a Companhias de Garimpo. Somente seu montante de terras
foram avaliados em mais de 27:300:000 contos de réis.511

Os limites de suas terras, no entanto, não eram bem delimitados. Para Márcia Motta, essa
era uma estratégia comum por parte dos fazendeiros, que se aproveitam dos precários instrumentos
de demarcação e da ausência de uma fiscalização mais incisiva para terem sob seu domínio
territórios que poderiam se alargar sem quaisquer limitações (Motta, 1996). Dessa maneira, no
inventário de 1856, assim lê-se as declarações do inventariante, Joaquim José Landulfo da Rocha
Medrado:

511 APMM, Inventários, estante 11, caixa 47, maço 56.


1226

Diz o inventariante os bens de raiz da fazenda S. João, contando com cazas de


morar, currais, regos d’água, avaliada por seiscentos mil réis [...] a fazenda
Sumidouro, contando com cazas de morar, serras d’água, roças, e tudo mais que
a fazenda possuir, avaliadas em dois contos de réis.512

Além de referir-se as fazendas de forma imprecisa, contando com os bens contidos nestas
propriedades, é possível verificar que terras mais amplas, conhecidas como “gerais”, também
foram contabilizadas no inventário. Não satisfeito, ainda se somou as terras da própria vila de
Santa Isabel, limítrofes com Andaraí e Chique-Chique (Igatu – BA), onde delimitava-se um
extenso território.

Diz mais o inventariante as terras dessas quatro fazendas (S. João, Sumidouro,
Licuri e Santo Antônio), incluindo os gerais, avaliados por dez contos de réis [...]
as terras da villa de Santa Isabel, Andarahy, Chique-Chique, com a Chapada
Diamantina conforme as divisas da escriptura da fazenda das Araras lado
esquerdo do Paraguassú. Digo, conforme as escripturas da fazenda do rio de Una
pela margem direita do rio Paraguassú e a fazenda das Araras pela margem
esquerda do dito rio.513

Além disso, registros da família também demonstram que os mesmos atuaram como
negociantes de terras, tanto no ato de compra como de venda de propriedades. No Livro de Notas
do município de 1848, por exemplo, vê-se a aquisição de uma propriedade por parte de Reginaldo
Landulfo da Rocha Medrado, no valor de três contos de réis, vendida pelo Alferes João de Souza
Ferreira, em virtude da morte de seu filho.514

Em outro documento datado de 1863, Landulfo da Rocha Medrado, filho de Reginaldo,


também negociava terras no valor de mais de dois contos de réis, pleiteando as margens do rio
Chique-Chique acima até a sua povoação, com limites pelo garimpo Cousa-Boa, limítrofe com as
terras do alferes Simplício da Cunha Braga e com a foz do córrego Boca da Mata. As terras eram
negociadas com Simpliciano Rabello Lima, importante dono de garimpos em Santa Isabel.515

Certamente, a família tinha interesse em acumular no seu patrimônio terras que pudessem
salvaguardar seus negócios; como fica evidente em inventários de membros da família, além de
arrendarem terrenos diamantíferos, a posse de gado vacum, cavalos, éguas, dentre outros
semoventes comprovam o caráter dinâmico dos negócios da parentela. Como lembra Richard
Graham, o alargamento dos domínios indicava, ao mesmo tempo, a ampliação da esfera de mando
e do exercício de influência política (Graham, 1997).

512 APMM, Inventários, estante 11, caixa 47, maço 56.


513 APMM, Inventários, estante 11, caixa 47, maço 56.
514 APMM, Livro de Notas. (1847-48), 13 de dezembro de 1847, pg. 24.
515 CMA, Livro de Notas, 1863. Processo N° 680.
1227

Entretanto, não raro também era o movimento inverso. Para Maria Cristina Pina, Reginaldo
Landulfo atuou intensamente na venda de terras em Santa Isabel, principalmente aquelas que
possuíam regos d’água, espaços de mineração de diamantes, além de negociar também escravos.
Dessa maneira, essa era outra forma da família granjear alianças e salvaguardar seus negócios. Na
década de 1850, Pina encontra registros desses negócios nos Livros de Notas do município.

O Coronel Reginaldo Landulfo da Rocha Medrado controlava as explorações, já


que a maioria dos garimpos pagavam a ele o uso das serras e terras de minerar.
Nas escrituras públicas é comum encontrar seu nome como comprador ou
vendedor dessas terras (Pina, 2000, p. 54).

A rigor, Miriam Dolhnikoff (Dolhnikoff, 2007) suscita que a instrumentalização da


Constituição e de atos como a Lei de Terras tinham como prerrogativas a delineação dos limites
entre público e privado. Dessa forma, a autora compreende que senadores e deputados
empreenderam esforços no sentido de limitar a ação dos potentados locais, de forma a apreender
a equalização entre a construção do Estado Nacional e os interesses desses indivíduos.

Isto posto, foram instituídos nos municípios, além da limitação dos poderes da Câmara
Municipal, instâncias administrativas inatas ao governo central e a Assembleia Legislativa
Provincial, de forma a assegurar o controle de processos como as eleições, prerrogativas tributárias,
obras públicas, as posturas municipais, etc. O cargo de delegado, por exemplo, possuía
prerrogativas policiais e de fiscalização, sendo indicado pelo governo central; em contrapartida, o
subdelegado era indicado pela Assembleia Legislativa, assim assegurando o equilíbrio entre as
instâncias.

A uniformidade do Império dependia dos delegados do governo central em cada


província. As reformas liberais impuseram um modelo que previa a autonomia
provincial, mas com o cuidado de não colocar em risco a integridade territorial.
Daí a manutenção pelos liberais de um delegado do governo geral na província.
A autonomia provincial teria que conviver com um agente do governo central
capaz de garantir a integração entre as províncias, dirigida pelo Estado, condição
para articular autonomia e unidade, elemento essencial da proposta liberal
federativa. (Dolhnikoff, 2007, p. 115).

Dessa maneira, essa forma com qual o poder central e provincial se manifestava nos
municípios justificam os debates ocorridos no Senado Imperial acerca das Lavras Baianas. Na fala
dos senadores, a preocupação com a apropriação das riquezas por parte dos particulares e dos
estrangeiros é eminente, de forma a ponderar que aquela riqueza produzida pelos diamantes deveria
ser patrimônio nacional, usufruído por toda a nação.
1228

Apareceu na província da Bahia uma grande fortuna de diamante: o ministério


viu indiferente apoderarem-se os particulares dessa fortuna; não deu providência
alguma, quando essas ricas minas poderiam dar meios para pagar-se em dois anos
toda a dívida pública!... O abandono continua: é muito pernicioso para o país em
geral; mas ao menos vai concorrendo para felicitar aquela porção de Brasileiros
que trata de explorar tanta riqueza.516

De fato, no primeiro ano de mineração, em 1845, jornais como O Musaico (BA) apontavam
que a extração de diamantes naquela localidade dependia, sobretudo, de um contrato particular
com os detentores daquelas terras, que as arrendavam frente a vultosas contribuições. Além disso,
pelos privilégios socioeconômicos como primeiros detentores daquelas terras, os Rocha Medrado
também passaram a atuar de forma incisiva no avanço das relações de produção na região.

A população disseminada na extensão do distrito diamantino, segundo as novas


informações que ultimamente obtivemos, excede à 20.000 almas; mas no logar
denominado commercio é esta população somente de 8.000 a 10.000 habitantes,
e muito pouco fixa; porque o movimento comercial a desfalca com a mesma
rapidez com que a aumenta [...] as lavras dos diamantes estão na distância de
algumas legoas do Commercio, e colocadas todas na direção do rio Paraguassú.
Estão todas situadas em terrenos pertencentes a um particular, que os arrenda
mediante uma contribuição bem productiva.517

De fato, o processo de povoamento da Chapada Diamantina confluiu para uma sociedade


heterogênea, de indivíduos oriundos de várias partes do país, e até mesmo do estrangeiro. Segundo
Gustavo Adolpho Menezes, em 1860 a população nas Lavras da Bahia havia chegado a cerca de
50.000 indivíduos, número impressionante para aquelas localidades do sertão. Dessa maneira,
aquele lugar tinha importância central para a Bahia oitocentista, configurando-se como um dos
locais de maior tráfego de indivíduos na província na segunda metade do século XIX.

Essas serras outrora inhospitas e desabitadas, esconderijos dos repteis e das feras,
conhecidas apenas pelos caçadores, e de um ou outro exquesito, que nelas
habitava na maior rusticidade entre suas florestas virgens e gigantescas,
rivalizando com o elevado aspecto desses collosos de rocha e de granito são
presentemente habitadas, e onde a civilização, a moral, e grandes sacrifícios dos
novos habitantes crearam as villas de Santa Isabel, de Lençóis, de notáveis arraies,
quaes o do Andarahy, Chique-Chique, Barro-Branco, Cravado e outros de 2° e
3° ordem.518

Dessa maneira, no relatório de Benedicto Marques de Acauã, cujo foi inspetor geral da
Repartição Diamantina da Bahia em 1846 e 1847, o mesmo relata as dificuldades provenientes da
ocupação demográfica da região, e da intrínseca relação desse povoamento com o escoamento da

516 Atas do Senado Imperial, Sessão de 13 de setembro de 1845.


517 O Musaico, agosto de 1845, Edição 00002.
518 Menezes, Gustavo Adolpho de. Memoria Descriptiva e Estatística da Riqueza Mineral da Provincia da Bahia. Rio

de Janeiro – RJ: Revista do IHGB, ano de 1863.


1229

produção de forma ilegal. Certamente, as autoridades centravam no bojo das discussões o garimpo
ilegal de diamantes, sendo de extrema dificuldade coibir o avanço dessas relações de produção.

A parte descritiva do presente relatório é uma prova suficiente da grandíssima


dificuldade com que luta a administração para impedir as explorações dos
terrenos, e mesmo para as conhecer afim de as punir, e a disposição do art. 46
do regulamento, que manda aplicar aos denunciantes as multas impostas aos
infractores, nenhum favor oferece à mesma administração, porque uns não
denunciam por temerem ociosidade e vinganças, muitos porque tem sido
infractores e pretendem ser, e todos porque estigmatizam aquele a quem o
interesse pecuniário ou outro qualquer fez um denunciante.519

Certamente, o volume de diamantes extraídos sem quaisquer critérios de taxação e


capitalização representavam prejuízos para todos, desde os proprietários daqueles terrenos locais,
até ao governo central, que via correr para longe da fazenda pública os possíveis montantes de
tributos arrecadados pelos montantes dos diamantes. Dessa maneira, discutia-se no Senado
Imperial o baixo valor dos diamantes frente à grande oferta desses no mercado:

Antes do Sincorá avaliavam-se os diamantes que se exportavam em 4,000 contos.


Depois do Sincorá, ao menos nestes dois anos, não digo que os diamantes
tenham esse valor, estou persuadido de que o tem perdido quase todo, não só
pela abundância deles, mas também pelas circunstâncias extraordinárias do país
[...] Os diamantes que se exportavam de Minas em outro tempo, diziam os que
traficavam neste objeto que montava em 3 a 4,000:000$; nos anos em que a
importação é maior acresceram os diamantes da Bahia, do Sincorá, que talvez se
possam avaliar em 1,500 a 2,000:000$.520

De forma semelhante, o jornal O Guaycuru (BA) denunciava que os estrangeiros, ávidos


pelas riquezas baianas, prejudicavam a autonomia nacional na condução dos negócios de extração
de diamantes. Dessa forma, o consulado francês teria coadunado com a depreciação do preço dos
diamantes em benefício próprio, de forma a comprar toneladas do produto a baixo custo. Em
suma, o Guaycuru responsabilizava Maxine Raybaud, cônsul francês estabelecido na Bahia, por
esse movimento.

O consul francez na Bahia dirigio um relatório ao ministro dos negócios


estrangeiros de França, annunciando-lhe a descoberta de uma abundante mina
de diamantes, distante 80 legoas da Bahia, uma fonte incalculável de riquezas para
a província. Acha-se a mina situada em um lugar deserto, e apenas acessível,
tendo sido descoberta por puro acaso. O chefe de uma Companhia ingleza
exportou já, diz-se, cerca de 200:000 L. Est. (RS. 1,800.000$000!!!) de productos
dessa mina; e como a exploração he livre a qualquer que a queira intentar, tem corrido para
ali grande multidão de gente, em busca desses thesouros [...] A Bahia deve estar muito

519 Acauã, Benedicto Marques de. Relatório Dirigido ao Governo Imperial pelo Inspetor Geral dos Terrenos
Diamantinos da Província da Bahia, o Bacharel Benedicto Marques de Acauã, em 15 de abril de 1847. Gazeta Oficial
do Império do Brasil, Ano 1847, Edição 0054.
520 Atas do Senado Imperial, ano de 1848.
1230

agradecida ao Sr. Raybaud, pelo afan com que embocou a tuba, e fez, em uma
participação especial, retumbar nas principaes capitaes da Europa a notícia dos
diamantes descobertos na Bahia, e com tanta boa fé ou simplicidade, que por
toda parte se julgou que haveria inudanção de diamantes, e d’ahi, a baixa que elles
logo começarão a sofrer, e ultimamente, a estagnação completa dessa valiosa
mercadoria, que hoje na Europa nenhum preço, por diminuto que seja, pode
encontrar nos grandes mercados, onde sempre aparecia com vantagem [...]521

A Câmara Municipal de Santa Isabel, por sua vez, também não deixou de comentar acerca
dos motivos da depreciação dos diamantes. Certamente, os preços diminutos afetavam os
interesses diretos dos particulares que ali residiam, e, portanto, cobravam dos deputados da
Assembleia Legislativa uma solução energética para a crise:

Aos vinte dois dias do mês de Junho de mil oitocentos e quarenta e oito nesta
Villa de Santa Isabel do Paraguassu, e Sala das Sessões da Câmara Municipal da
mesma [...] Propos o Senhor Presidente desta Câmara que se representasse à
Câmara dos Senhores Deputados a necessidade que há de uma providência
energica para obviar os males que pezâo sobre as Lavras diamantinas da Provincia
pelos diminutos preços que de presente dão aos diamantes, e sendo approvada
esta proposta, requereo o Senhor Veriador Tenente Coronel Amarante Costa,
que visto ser o motivo desta reunião tratar de tal Representação, fosse ella
escripta, o que satisfez-se ficando adiado todos os mais trabalhos [...].”522

A depreciação do preço dos diamantes da Chapada Diamantina correlacionava-se, dentre


outras questões, com a ausência da organização produtiva mais rigorosa, própria de sociedades
onde a divisão do trabalho indicia a expropriação dos produtores por meio da defesa absoluta em
prol da propriedade privada. No caso da sociedade de Santa Isabel, as contradições em relação a
posse de terras ampliavam as problemáticas de fiscalização.

Certamente, a distância das serras e dos rios em relação aos centros urbanos dificultava a
ação das autoridades, que tinham pouco controle em relação as entradas e saídas dos pontos de
garimpos nas diversas regiões. Dessa maneira, o limiar entre terras devolutas e propriedades, que
muitas vezes não ficava claro, era uma das contradições daquela sociedade, na qual a terra aparecia
sem limitações claras, como fica evidente na documentação a respeito dessas propriedades.

Mesmo assim, sem dúvidas a própria administração provincial e municipal beneficiavam a


família Rocha Medrado, os reconhecendo como os primeiros e legítimos proprietários das terras
da vila de Santa Isabel do Paraguassú. Em um documento datado de 1852, cujo tratava-se de um
requerimento para a abertura de estradas para melhor circulação de gêneros alimentícios para as
Lavras da Bahia, a Assembleia Legislativa admitia que os primeiros moradores da região eram os

521 O Guaycuru, 1845, Edição de Julho, N°0002.


522 APMM, Atas da Câmara Municipal, 1848-49.
1231

mais indicados para apontar os caminhos mais coerentes, onde deveriam ser abertas as vias de
comunicação.

Por acto de 17 de outubro passado (1851) foi nomeada uma Comissão composta
dos primeiros proprietários do Municipio de Mata de S. João, para que estes com
a experiência das localidades em que residem, e pelo interesse imediato de suas
fazendas, indicassem a mais conveniente estrada em relação a sua direção e
commodos para ser mandada abrir pelo Governo debaixo de sua fiscalização,
com o fim de facilitar o transporte dos produtos agrícolas daquele rico e
importante município, e os das terras contiguas ou do interior que por ele fazem
caminho [...] Toda esta obra foi executada debaixo da direcção do Delegado o
Coronel Francisco José da Rocha Medrado, e acerca dela diz a Camara Municipal
que – foi concluída com 8 leguas de matas virgens, regularmente praticada pelos
sítios mais convenientes e com mais de duas braças de largura.523

Não obstante, ainda fica explícito que a obra se dava em razão do interesse imediato de
suas fazendas, ou seja, essa atuação era em prol da manutenção e ampliação de suas riquezas, à
época ligada aos garimpos. Dessa maneira, a abertura de vias de comunicação era interessante para
a manutenção dos trabalhos nas serras, sem maiores interrupções.

Além disso, percebe-se que Francisco José da Rocha Medrado, nesse caso, ocupa o cargo
de Delegado, cujo é indicado diretamente pelo Presidente da Província, representante do governo
central. Isso demonstra, portanto, que aqueles potentados locais eram de suma importância para a
província, vindo até mesmo a ocupar cargos administrativos estratégicos nas dinâmicas políticas do
Brasil oitocentista.

A respeito dos espaços de poder, os Rocha Medrado ocupavam com frequência cargos
públicos importantes para a perpetuação do poder de mando. Reginaldo Landulfo e Francisco José,
por exemplo, foram indicados como Comandantes Superiores da Comarca de Rio de Contas em
1848, além de atuarem, durante algum período, também como Juízes Municipais e Delegados.

O filho de Reginaldo Landulfo, Joaquim José Landulfo da Rocha Medrado, chegou até
mesmo a ser eleito como deputado provincial, atuando de 1857 até a data de sua morte em 1860.
Certamente, a trajetória intelectual de membros da família como Joaquim José e Sebastião Landulfo
da Rocha Medrado demonstra as dinâmicas de manutenção dos privilégios socioeconômicos dessa
parentela.

Como ressalta Erivaldo Fagundes das Neves (Neves, 1998), os Rocha Medrado também
detinham alianças com indivíduos importantes à época, sobretudo o Cel. Antônio de Sousa Spínola,
que também veio a ocupar cargos administrativos importantes no município de Lençóis a partir de

523 Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (BA) – 1823 a 1889. Ano 1852, Edição 0001.
1232

1856, além de atuar de forma pioneira na abertura de uma via fluvial que ligasse o distrito de Andaraí
à Cachoeira pelo rio Paraguaçu.

Certamente, os vínculos políticos da família também ultrapassaram o século XIX. O


deputado Marcolino de Moura e Albuquerque foi casado com Amélia da Rocha Medrado, filha de
Reginaldo Landulfo, além do apoio expressivo de Francisco José à várias candidaturas de César
Zama a deputado provincial. Certamente, esses indivíduos possuíam representação expressiva em
várias das instâncias políticas do Brasil da segunda metade do século XIX.

Na segunda metade do século XIX alternaram-se no poder local os irmãos


coronéis Reginaldo Landulfo e Francisco José da Rocha Medrado, inicialmente
aliados, rompendo-se depois [...] O Bacharel Landulfo da Rocha Medrado, filho
do Coronel Reginaldo Landulfo, vinculado ao Partido Liberal, comandou seu
batalhão da Guarda Nacional em Santa Isabel. Participou da guerra movida pelo
Brasil contra a República do Paraguai onde morreu no campo de batalha em 3
de novembro de 1867 [...] também o coronel Marcolino Moura, deputado em
várias legislaturas, vinculava-se à família por relações de parentesco e como genro
do Coronel Reginaldo Landulfo (Neves, 1998, p. 32).

Como afirma Richard Graham, as alianças políticas dos potentados locais estavam em
proporção direta com suas riquezas ligadas à terra. A grande propriedade detida pelos Medrados
logrou a possibilidade de granjear apoio de homens de posses, como o próprio Cel. Horácio de
Matos no fim do século XIX e início do XX. Dessa maneira, infere-se daí a importância da
instrumentalização da posse de terras (Graham, 1997).

Dessa maneira, na obra de Teodoro Sampaio, o autor infere que na época de 1880, os
Rocha Medrado ainda figuravam como um dos principais detentores de lavras na região, junto de
outros indivíduos como Simpliciano Rabello Lima, cujo negociou as terras de Chique-Chique com
Landulfo Rocha Medrado em 1863.

Informou-nos o coronel (Rodrigues de Lima) sobre o estado da mineração no


município (de Santa Isabel), fornecendo-nos os nomes dos proprietários das
lavras mais prosperas e assentadas em melhor escala: o coronel Francisco José da
Rocha Medrado, o tenente coronel Simpliciano Rabello Lima, José Gomes
Flores, capitão Simplício da Cunha Braga, José da Silva Reis e Modesto Cypriano
de Athayde (Sampaio, 1905, p. 144).

Além disso, o domínio da família na região pode ser atestado de forma semelhante pelo
inventário do Cel. Reginaldo Landulfo, que falecido em 1892 ainda detinha entre seus bens de raiz
as terras das serras do município de Santa Isabel. Decerto, mesmo que em seu inventário já não
1233

detivesse tantas riquezas em razão de contos de réis, seu filho Douca Medrado era um dos
indivíduos mais influentes das serranias centrais da Bahia à época.524

Nos jornais, ainda, sempre é possível verificar que a parentela, além de suas alianças dentro
da Assembleia Legislativa, pleiteava de forma frequente cargos como deputado, vereadores da
câmara municipal, e juiz de paz do município, coadunando com o processo de ampliação das
riquezas em posse da família através da posse de terrenos diamantíferos.

A respeito do controle desses terrenos diamantíferos, Gonçalo de Athayde Pereira ainda


prenuncia que Francisco José também teria ocupado, durante alguns anos, o cargo de Inspetor
Geral da Repartição dos Terrenos Diamantinos da Bahia, assim como também Antonio Carlos da
Rocha Medrado teria ocupado o cargo de Secretário da mesma repartição. Certamente, como a
repartição tinha como objetivo a realização de contratos mediante a demarcação de terrenos para
a extração, os Rocha Medrado detinham interesse central nesse organismo do governo central.

Como diz Maria Cristina Dantas Pina, uma das estratégias mediadas pelos proprietários de
Companhias de Garimpo era o silêncio em relação a descobertas de novas terras diamantinas.
Certamente, a ausência de notícias era intencional, pois a partir desse movimento a riqueza poderia
ser melhor acumulada.

Essa ausência de notícias evidencia o que afirmamos anteriormente, a mineração


do diamante, nas Lavras diamantinas, foi uma atividade organizada por
particulares que muito pouco informavam ao governo. A ausência de notícias era
certamente intencional, o sucesso de exploração dependia do sigilo, pois quantos
menos pessoas soubessem, menos pessoas explorariam a riqueza que poderia ser
melhor acumulada. Além disso, esses proprietários tinham na Repartição
Diamantina uma aliada nesse silêncio (Pina, 2000, p. 58).

Além disso, como investigou Benedicto Marques de Acauã em seu relatório, dificilmente
uma terra era arrendada sem que previamente o interessado já a conhecesse. De fato, a problemática
do controle de terras e consequentemente da produção vigorou em todo o período de mineração
da Chapada Diamantina, sem que houvesse, de fato, uma predileção ou forma exata de trabalho na
mineração.

A administração, portanto, tem a convicção de que raríssima vez se requerem a


medição e arrendamento de um terreno diamantino sem que sua riqueza não seja
sabida pelo requerente, contra quem aliás não tem provas para proceder, e com
quanto tenha de ir ao mesmo terreno a hasta publica se arrendado, e assim se

524 APMM, estante 11, caixa 47, maço 67


1234

presuma a competência levará o arrendamento a um preço muito maior do que


aquelle a que teria que montar o lote na razão de 30 rs por uma braça.525

Dessa maneira, percebe-se que, assim como as conclusões de Pina, as Lavras Diamantinas
foram concebidas em razão do projeto de sociedade pensado por poucos indivíduos, cujo tinha no
bojo de seus interesses o intuito de salvaguardar seus capitais políticos e financeiros.

Por fim, fica evidente como a família Rocha Medrado, através dos instrumentos de
propriedade, foi parte nevrálgica desse processo, atuando nas mais diversas esferas de poder,
instituindo mecanismos para granjear clientes e apadrinhados. A atuação de Reginaldo Landulfo da
Rocha Medrado como comprador e vendedor de terras, assim como a de Francisco José da Rocha
Medrado como ocupante de vários cargos administrativos de destaque, ensejaram a riqueza da
família, que foi uma das mais importantes da região de Mucugê.

Conclusão

A posse de terras esteve diretamente ligada aos mecanismos de poder instituídos em Santa
Isabel do Paraguassú, cujo valorização esteve intimamente relacionada com o garimpo de
diamantes. Apesar disso, os instrumentos de posse não eram tão simples de serem legitimados,
uma vez que a fiscalização efetiva dessas propriedades estava cercada por dificuldades objetivas.

A falta de instrumentos delimitadores, por um lado, garantia aos particulares que seus
domínios sempre pudessem ser alargados, de forma que as fronteiras nunca estavam definidas,
propositalmente. Entretanto, de outra forma, com os limites em xeque, esses proprietários também
lidavam com o garimpo ilegal de diamantes, por parte de indivíduos desprovidos de alianças com
Companhias ou sociedades.

Referências

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IGHBa: Salvador – BA, 1906, pp. 142-152.

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da Família Rocha Medrado (Bahia, Séculos XVIII e XIX). Juiz de Fora – MG: Anais da XXXXVI
Semana de História da UFJF, 2020.

525Acauã, Benedicto Marques de. Relatório Dirigido ao Governo Imperial pelo Inspetor Geral dos Terrenos
Diamantinos da Província da Bahia, o Bacharel Benedicto Marques de Acauã, em 15 de abril de 1847. Gazeta Oficial
do Império do Brasil, Ano 1847, Edição 0054.
1235

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Sampaio, Teodoro. O rio S. Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo – SP: Escola Profissional
Salesiana, 1905.
1236

“De Portugal, onde meia nação está proscrita, exilada ou


encarcerada”: exílios e culturas políticas do Sul da Europa no
Brasil Imperial (1820-1840)

Luiz Gustavo Martins da Silva*

Resumo: ao focar na temática da formação do Estado e da Nação no Brasil oitocentista, a proposta


do Simpósio Temático 19 nos permite refletir sobre os sujeitos e grupos envolvidos nessa época.
Entre os indivíduos comprometidos com a construção da unidade política e territorial do Império
do Brasil, a presença de exilados liberais - especialmente portugueses - é notada a partir de 1828.
Perseguidos pelo governo miguelista (1828-1834), instaurado em Portugal, após a tomada do poder
por Dom Miguel, os exilados contribuíram com projetos políticos dentro do contexto dos conflitos
entre “ser português” ou “ser brasileiro” e da Abdicação de Dom Pedro I, irmão mais velho de
Miguel. A confluência com o cenário europeu é fundamento para a compreensão dos exílios liberais
e contrarrevolucionários e de seus impactos nas Américas, sobretudo no Brasil. Assim, há o
interesse em abordar o tema dos exílios como fenômenos históricos e político-sociais, resultantes
da contrarrevolução europeia formada em reação às revoluções liberais e constitucionalistas do Sul
da Europa, sendo particular o caso português. As pesquisas têm indicado que esses exilados se
constituíram como porta-vozes de culturas políticas, uma vez estabelecidos em território brasileiro,
aspecto a ser abordado também. Tendo por fontes atas, memórias, diários, correspondências,
jornais, muitas delas produzidas pelos exilados, esta pesquisa contribuirá para a apreensão da
emigração política portuguesa no mundo contemporâneo, e para o assunto sobre o processo de
constituição dos Estados Nacionais Modernos.

Palavras-chave: Contrarrevolução, exílios políticos, culturas políticas, Estados Nacionais.

Introdução
A imagem do Google Earth elucida
o fluxo de pessoas, ideias e projetos políticos
no Mediterrâneo e no Atlântico nas
primeiras décadas do século XIX. O mapa,
por ser atual, não corresponde geográfica e
politicamente com o mapa da Europa da
época das Restaurações. O recurso à
metodologia imersiva, embora congelada
nessa imagem, adquire um caráter de fonte - como ponto de partida - para se abordar também o
assunto sobre parte do trajeto percorrido por cidadãos portugueses da Europa ao Império do

*Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: luiz.martins@aluno.ufop.edu.br. Agradeço à
CAPES pelo recurso financeiro e à UFOP pelo apoio em todas as etapas da pesquisa.
1237

Brasil, após a tomada do poder político por Dom Miguel e seus partidários em Portugal. As
reflexões apresentadas a seguir são derivadas de uma pesquisa de doutorado em andamento, cujo
período de análise circunscreve-se entre 1820 e 1840.

A temática da emigração política de portugueses insere-se numa conjuntura transnacional


ampla e específica, e transatlântica. O contexto geral é o da contrarrevolução europeia que se
formou em reação às revoluções liberais e constitucionalistas de 1820 ocorridas, sobretudo, no sul
da Europa, em países como Grécia, Espanha, Portugal e nos reinos e ducados italianos, Nápoles e
Piemonte. As revoluções aspiravam os desígnios do Liberalismo e da Revolução Francesa de 1789.
O novo realinhamento europeu consertado pelas grandes potências deu-se logo depois das
revoluções.

A revisão do status quo territorial e político foi praticada desde 1814 e 1815 na reunião de
congressistas em Viena. Visava-se aí dotar a Europa de “estabilidade”, após as Guerras
Napoleônicas. A institucionalização de um sistema europeu caracterizou-se pela existência de um
grupo de Estados poderosos, que dividiu a Europa durante os trabalhos do Congresso de Viena, e
colocou uma questão política. A resposta ao problema imposto constituiu-se pelas Santas Alianças.
Uma Aliança em 1815, oferecida pelo czar Alexandre I da Rússia, que não trouxe resolução prática,
e que foi contraposta pela Quádrupla Aliança, subscrita pela Grã-Bretanha, Áustria, Prússia e Rússia
no mesmo ano e degenerada em 1817526. No ano seguinte, no Congresso de Aix-la-Chapelle (1818)
a Quádrupla se transformou em Quíntupla Aliança com a admissão da França sob o cetro Bourbon.

O problema que se impôs a partir de 1815 era o propósito futuro das alianças, já que se
tornava cada vez mais evidente a falta de unidade de princípios entre as potências Ocidentais e
Orientais (Bonifácio, 1996), como o direito de intervenção, concebido de forma diferente de ambos
os lados, pauta sempre debatida na tentativa de definir as bases legais de intervenção. As
divergências mantiveram-se e adentraram a década de 1820. O próprio fato da existência das
alianças originava em si os conflitos políticos e econômicos, visto que o reconhecimento do
alinhamento implicava o prosseguimento de uma política unitária e, claro, coletiva527.

O Concerto da Europa foi colapsado gradualmente pelas rivalidades entre as potências.


Tanto assim que em 1822 a partir do Congresso de Verona cada potência individual e cada bloco
(Ocidental e Oriental) resolveu livre e unilateralmente daí por diante, ainda que a Revolução Belga

526 Os principais representantes de relações exteriores foram respectivamente Robert Stewart, Klemens von
Metternich, Guilherme III e Alexandre, já citado.
527 O sistema europeu, isto é, o sistema das grandes potências da suposta paz de Viena foi eminentemente conflituoso

e competitivo no qual cada potência procurava expandir as respectivas áreas de influência e, paradoxalmente, todas
elas se perceberam numa interferência constante com o intuito de evitar a medida mais ou menos drástica de
intervenção.
1238

contra o Reino dos Países Baixos tenha reativado o sistema de congressos entre 1830 e 1832. E as
potências Ocidentais com a Quádrupla Aliança de 1834 decidiram intervir na Península Ibérica,
embora França e Grã-Bretanha intervieram cinco vezes na Península entre 1815 e 1847 (Bonifácio,
1996, p. 304-314). A rivalidade anglo-francesa recrudesceu-se a partir de questões como a
unificação italiana e a autodeterminação das nações. Na Era dos Congressos, cabe lembrar, que as
antigas metrópoles ibéricas, Portugal e Espanha, já se encontravam em situação de “periferização”
(Costa, 2010, p. 7) no cenário europeu a partir, ou mesmo antes, dos processos de ruptura e
construção nacional de suas ex-colônias nas Américas.

O novo realinhamento europeu depois das revoluções de 1820 tratou de uma aliança
informal das potências Orientais, denominadas também como potências do Norte, que teve por
objetivo essencial a comum aversão ao Liberalismo e ao Nacionalismo. Criava-se, então, a Santa
Aliança, não àquela que Alexandre I propusera em 1815, nem mesmo a Quíntupla Aliança de 1818
firmada em Aix-la-Chapelle. Mas a Santa Aliança que ficou para a história. No realinhamento à
Leste, Alexandre trocou Luís XVIII por Metternich e este trocou a Inglaterra pela Rússia
(Bonifácio, 1996).

Ao examinar as intervenções inglesas de 1826, 1834 e 1847 em Portugal, Maria Bonifácio


afirmou em nota que “quando a Europa teve conhecimento da outorga da Carta [de 1826 por Dom
Pedro IV], Metternich expediu em 4 de julho de 1826 uma circular a Paris, Berlim e S. Petersburgo
(...). Na sequência desta circular realizou-se a 24 de julho uma conferência de embaixadores em
Paris que admoestou Portugal” (Bonifácio, 1996, p. 331). Talvez essa reunião ocorrida na França
esclareça um pouco mais a relação entre a conjuntura ampla europeia e a específica em Portugal.
O que se depreende do trecho citado é o fato de ter havido uma oposição absolutista externa,
alinhada aos interesses internos da contrarrevolução portuguesa, levada a cabo pelo Império
Austríaco. Mesmo assim, o que se sabe, é que entre 1826 e 1828, o regime político em Portugal
não era uma monarquia absolutista, porque a Carta Constitucional de 1826 esteve vigente no país.

O fenômeno da contrarrevolução em geral e da miguelista no particular, como se verá mais


à frente, inscreve-se na Modernidade, no processo histórico de rupturas e permanências. O
conceito de modernidade, por vezes, oposto ao de tradição, apresenta vários significados e
contradições. Jacques Le Goff afirmou que a “consciência da modernidade nasce quando há um
sentimento de ruptura com o passado”. Mais interessante é o seu questionamento: “será legítimo
que o historiador reconheça como moderno o que as pessoas do passado não sentiram como tal?”
(Goff, 1990, p. 93). Charles Baudelaire (1997), autor de As flores do mal, pensou a modernidade
como as mudanças que iam operando em seu presente. Em que pese a polissemia aí percebida,
1239

reconhece-se que a Ilustração foi responsável pelo início da Modernidade, pois o Iluminismo
alterou a relação do homem com o tempo, o tempo presente pelo qual “a dimensão temporal do
passado entra em relação de reciprocidade com a dimensão temporal do futuro” (Koselleck, 2012,
p. 15).

A contrarrevolução enquanto categoria de análise é aqui adotada como par antitético de


revolução e restauração, isto é, um contraconceito, porém como tal ela pode ser inserida em
contextos que não se tenha havido, de fato, uma revolução528. Que o conceito de revolução é
“produto linguístico” da Modernidade, o de contrarrevolução não o deixe de o ser também. “O
que se deve entender por revolução?”, questionou Florestan Fernandes, em 1981, com referências
ao golpe de Estado no Brasil em 1964. Ora, “a revolução constitui uma realidade histórica; a contra-
revolução é sempre o seu contrário (não apenas a revolução pelo avesso: é aquilo que impede ou
adultera a revolução)” (Fernandes; Júnior, 2005, p. 57), respondeu assertivamente o autor.

A distinção entre uma revolução política, uma revolução social ou uma revolução técnica e
industrial é comum desde o século XIX. A expressão “révolution” ou “revolution” adquiriu
“possibilidades semânticas flexíveis, ambivalentes e ubíquas” (Koselleck, 2006, p. 62) desde a
Revolução Francesa. Ao buscar as características definidoras do campo semântico do termo
revolução após 1789, Koselleck destacou a legitimidade da revolução como um dos critérios de sua
análise. Segundo o autor, “ao passo que a legitimidade da Restauração permanecia atada à noção
de tradição, a legitimidade revolucionária tornava-se um coeficiente dinâmico, que direcionava a
história a partir de determinadas perspectivas do futuro” (Koselleck, 2006, p. 75). As
descontinuidades e continuidades provocadas pelas revoluções e pelas contrarrevoluções
circunscrevem-se nessa lógica de pensamento próprio à história dos conceitos.

As conexões entre os fenômenos revolucionários e contrarrevolucionários motivaram a


emergência dos exílios políticos liberal e antiliberal, sobretudo na Europa Meridional529. Se tratando
das revoluções, os impactos e desdobramentos provocados pela ruptura do status quo, deflagrados
na Espanha pela Revolução de Cádiz de 1810 e pela Carta Constitucional de 1812, marcaram o
turning point na política europeia. A Carta de Cádiz foi restabelecida no país entre 1820 e 1823,

528 Entre os historiadores brasileiros, o uso do conceito de restauração após a Independência e, posteriormente, no
período Regencial, é recorrente, já que se associava muito mais a monarquia (Holanda, 2010); (Jancsó, 2005); (Araujo,
2008). O conceito de contrarrevolução na tradição historiográfica brasileira foi adotado só excepcionalmente. A
exceção é de José Honório Rodrigues (1975), Maria de Lourdes Lyra (2002), Florestan Fernandes (1981) e Andréa
Gonçalves (2019).
529 No início de minhas pesquisas, ocupei-me dos exílios liberais, sendo necessário no momento ampliar o foco da

análise para os exílios antiliberais, já que serviram de sustentáculos da contrarrevolução e fortaleceram regimes
autoritários, no caso o miguelista.
1240

configurando o que se chamou de Triênio Liberal espanhol. Esse evento impactou o que já vinha
acontecendo em outros países do sul da Europa, atenção também que se expressou nas Américas530.

Em Portugal, a Revolução Liberal ocorrida na cidade do Porto, agosto de 1820, marcou a


primeira experiência liberal e constitucional no país. O vintismo português foi “tributário direto do
Liberalismo espanhol de Cádiz e, por via reflexa, do discurso revolucionário francês de 1789-1791”
(Lynch, 2009, p. 145). Dos vínculos entre Portugal e Espanha, “a troca de experiência entre a
militância liberal, nos dois lados da fronteira, manifestou-se na propaganda política, no apoio tático,
na criação de lojas maçônicas, sendo marcante a cooperação espanhola nesse processo”
(Gonçalves, 2015, p. 31), tanto assim que cerca de 200 exemplares da constituição gaditana
estiveram presentes em Lisboa531.

As experiências constitucionais em Portugal foram efêmeras (1820-1823) e (1826-1828).


Após o primeiro marco, a contrarrevolução portuguesa manifestou-se quando a Constituição
Portuguesa de 1821 foi aprovada e promulgada. Depois da Revolução Liberal as eleições ocorreram
pelo método prescrito na Carta de Cádiz, elegendo-se uma Regência para governar o país. Em
reação à nova ordem instituinte, a Monarquia Constitucional, e a difusão dos princípios liberais, o
primeiro movimento contrarrevolucionário, Vila Francada (1823), foi liderado pelo Infante Dom
Miguel. Na sequência, a Abrilada (1824) definiu a segunda reação dos contrarrevolucionários, o
que levou o Infante a exilar-se em Viena, na Áustria532.

O impacto desses movimentos contrarrevolucionários constituiu o primeiro exílio de


liberais portugueses, de 1823 até 1826, quando iniciou-se o processo de crise de sucessão dinástica
com a morte do Rei Dom João VI. Figuras como Almeida Garrett, Alexandre Herculano, José
Ferreira Borges, José da Silva Carvalho, Bernardo Sá Nogueira (futuro Sá da Bandeira), entre
outros, voltariam a sair novamente de Portugal com o regresso do Infante Miguel ao país, de Viena
de Áustria com passagem por Londres e Paris, em fevereiro de 1828, no que se entendeu por
segundo exílio de liberais, o maior fenômeno de exílio português das primeiras décadas do século

530 Na coletânea organizada por Márcia Berbel e Cecília Oliveira (2013), estudos destacam as especificidades das
experiências constitucionais nos diferentes domínios imperiais ibéricos ao aproximar e distinguir os modelos propostos
em Cádiz, Porto e Lisboa. Tais pesquisas possibilitam compreender as formas de adoção e adaptação local do
constitucionalismo gaditano na conjuntura crítica que marcou o processo de desagregação dos impérios ibéricos e
propiciam o entendimento das particularidades do constitucionalismo inaugurado pela Revolução de Cádiz na sua
versão peninsular e brasileira e hispano-americana.
531 No que se refere à Península itálica, não teria sido tão diferente, pois as intervenções austríacas - o direito de

intervenção mencionado anteriormente - em Nápoles e no Piemonte, em 1821, provocaram o exílio de milhares de


italianos na Espanha e em Portugal por defenderem o constitucionalismo.
532 Talvez cabe aqui a hipótese de que, uma vez na Áustria, o Infante Miguel tenha recebido influências ideológicas do

Chanceler Klemens von Metternich, uma das figuras mais tradicionalistas de sua época, impactando em suas ações pela
tomada do poder político em 1828.
1241

XIX (Faria, 2015). A questão dinástica que se impôs envolveu a disputa entre os dois irmãos da
mesma Casa dos Braganças, o Infante Miguel e Dom Pedro I do Brasil, IV de Portugal.

A situação acentuou-se com a outorga da Constituição brasileira de 1824 em Portugal por


Dom Pedro. Adaptada ao Reino, a Carta garantia a legitimidade da sucessão do trono para sua filha
mais velha, a Princesa Maria da Glória, já que Dom Pedro era o Imperador do Brasil nessa altura.
Se o Infante Miguel jurou o consórcio com a sua sobrinha, como regia as leis do Reino e da
Monarquia, na prática ele não o cumpriu, e com a ajuda de seus adeptos contrarrevolucionários e
boa parte da nobreza titulada (Lousada, 1987) foi aclamado Rei de Portugal ao retomar os três
estados tradicionais do Reino - Clero, Nobreza e Povo.

Dom Miguel tomou o poder e instituiu um sistema de governo autoritário e dissimulado


no qual o elemento que se sobressaia era a tirania, efetuando-se prisões e degredos. Um genuíno
governo de “terror”, na acepção de Almeida Garrett, para designar o regime miguelista. Na sua
opinião, para Portugal era um tanto complicadas e abstrusas dificuldades equilibrar-se na balança
da Europa, “onde meia nação está proscrita, exilada ou encarcerada” (Garrett, 1830, p. 277), frase
que dá título a este texto533. Além disso, o regime contou com expressiva adesão das camadas
populares, capilarizadas pelo Clero e pelas milícias, mas também se viu frente a uma militância
popular contrária ao Rei, e favorável a Dom Pedro IV. A emigração política de liberais portugueses
de sua pátria, perseguidos pelos miguelistas, emergiu nesse contexto particular de crise
constitucional e dinástica, inserindo-se também na conjuntura ampla da contrarrevolução europeia,
como descrito.

O que talvez pareça ser um paradoxo é o fato de que a contrarrevolução - em geral e a


específica de cada Estado - provocou o seu próprio fenômeno do exílio, o antiliberal ou
contrarrevolucionário. Fernando VII, tio de Dom Miguel, com o apoio das tropas francesas, ao
recuperar o trono espanhol adotou “uma medida repressiva que afetava um número significativo
de espanhóis considerados liberais e punidos por suas colaborações no regime destituído”
(Brancato, 2004, p. 141), ao mesmo tempo que possibilitou o refúgio dos aliados de seu sobrinho
Miguel em território espanhol, o que contribuiu com a sua ascensão e o fortalecimento do governo
miguelista. Calcula-se que cerca de 6.000 contrarrevolucionários encontravam-se na Espanha, com

533 Nas fontes do Arquivo da Torre do Tombo pesquisadas já há um tempo por Andréa Lisly Gonçalves, vê-se o
aspecto institucionalizado da repressão miguelista contra seus adversários, cálculo a que se chega em torno de 30 mil
prisões numa população de cerca de três milhões de cidadãos, cuja maioria eram portugueses, só em Lisboa abriram-
se 1.406 processos crime, envolvendo mais de 6 mil implicados, além de devassas abertas em outros Concelhos e Vilas,
investigadas pela autora também.
1242

o apoio do Rei, promovendo intervenções em Portugal entre 1826 e 1827 (Pereira, 2012). De modo
geral, uma síntese sobre o fenômeno dos exílios antiliberais pode ser lida no trecho seguinte:

A luta contra a revolução tinha dimensões supranacionais e também havia


exilados nas fileiras da contrarrevolução, como espanhóis que durante o Triênio
utilizaram o sul da França como campo de organização das milícias reais
voluntárias. Este exílio contrarrevolucionário teve uma relevância marcante na
elaboração de ideias antiliberais e na criação de laços entre setores reacionários
europeus que reforçaram os laços dinásticos construídos na Europa dos
Congressos e que foram centrais para o desenvolvimento do tradicionalismo
europeu. Pode-se dizer que a partir desse momento, uma ‘internacional blanca’
contrarrevolucionária começou a se formar na Europa, que ligaria apostólicos
espanhóis e carlistas, miguelistas portugueses, ultra franceses e legitimistas
italianos, entre outros (Simal, 2012, p. 35 apud Canal, 2000, p. 11, 71-72).

Essa citação aponta, então, para a existência no exílio de duas internacionais, a


“internacional blanca” vinculada à contrarrevolução, e, para o caso particular português, a
“internacional antimiguelista” (Gonçalves, 2015, p. 33) surgida no interior de uma sociedade secreta
na época, a Assembleia de Constitucionais Europeus, que incluía militantes liberais de diversas
nacionalidades, como espanhóis, portugueses, italianos, brasileiros, franceses, ibero-americanos e
ingleses. Também se nota no trecho supracitado uma marcante do exílio contrarrevolucionário, a
“elaboração de ideias antiliberais”, cujo impacto se fez presente na imprensa jornalística, a qual se
tornou tanto uma arma de combate aos liberais como ainda um dispositivo de sobrevivência
individual e coletiva.

No caso do exílio liberal português, ele se expressou dentro e fora do país por diversas
dimensões: política, social, cultural, geográfica, bélica e jornalística. Os exilados registraram parte
de suas experiências atuando na imprensa periódica, e na “elaboração de folhetos de propaganda
política, de traduções e da publicação de obras originais e permitiram o estabelecimento de contatos
pessoais ao nível internacional, o que levou ao desenvolvimento de uma sociedade civil
transnacional” (Simal, 2012a, p. 489) e, com isso, criaram redes de sociabilidades possibilitando
uma expressão sociocultural do exílio, e também a criação e extensão do Liberalismo europeu e de
uma identidade associada a ele (Simal, 2012b, p. 2)534. Algumas intervenções dos portugueses no
exílio contribuíram para criar identidades coletivas forjadas em práticas políticas e memórias
comuns aos seus conterrâneos535.

534 As diversas produções dos exilados liberais, entre as quais, jornalística, histórica e literária, tornaram-se essenciais
para conformar a legitimação intelectual e cultural do Liberalismo na Europa e nas Américas.
535 É o caso, por exemplo, dos exilados na cidade de Bruges, na Bélgica. Esses exilados portugueses se recusaram a

prestar o juramento da Carta Constitucional que lhes foi exigido em 1830, para reconhecer e obedecer à Regência
estabelecida da Ilha Terceira em nome de Dona Maria da Glória. Ao não jurar, eles produziram uma “exposição
apologética” direcionada ao público português e aos seus concidadãos emigrados para que pudessem avaliar seus
1243

Com a aclamação de Dom Miguel como Rei de Portugal, março de 1828, calcula-se que
cerca de 12.000 cidadãos portugueses de várias camadas sociais reuniram-se na cidade do Porto e,
juntamente com o Exército constitucional português, seguiram-se para o exílio, evento conhecido
como Revolução do Porto de 1828 (Maia, 1844). O relato sobre alguns acontecimentos em Portugal
e o percurso realizado pelos exilados na Europa e no Brasil, pode ser lido nas Memórias póstumas
de Joaquim José da Silva Maia.

A partir do segundo marco da experiência constitucional portuguesa (1826-1828), esse


exílio liberal provocado pelos miguelistas espalhou-se e, uma vez na Inglaterra, os exilados
concentraram-se em Plymouth, local que se construiu o Depósito Geral de Emigrados, e em
Londres. Na França, alguns permaneceram em Brest e Paris. Outros estabeleceram-se em Ostende
e Bruges, na Bélgica. Um número de exilados seguiu para a Ilha Terceira dos Açores. Na conjuntura
transatlântica e trans-imperial, o Império do Brasil, tornou-se um destino de exílio. A capital da
Corte, Rio de Janeiro, foi a principal cidade em que alguns exilados se instalaram, ainda que há
indícios da presença de exilados nas províncias do Maranhão e do Rio Grande do Sul.

Que há controvérsia em relação à quantidade de exilados desembarcados em todos esses


países, no próprio cruzamento das fontes documentais é possível saber, pois algumas delas
apontam para um número maior ou menor do que os informados por Joaquim Maia. Fato é que já
se constatou a presença de, pelo menos, 4 exilados portugueses residentes no Império do Brasil.
Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo536, Joaquim José da Silva Maia537, Emílio Joaquim da Silva
Maia538 e José Marcelino da Rocha Cabral, todos eles foram defensores incontestes do Liberalismo,

motivos e intenções. Ao refletirem sobre os exemplos de Regência em Portugal, que, segundo eles, não houve
juramento, acreditavam que se fizessem o juramento imposto, poderiam legitimar o governo de Dom Miguel, visto
que para eles, as Regências eram um poder representativo, a delegação de um poder antes reconhecido ou o mesmo
poder exercido temporariamente por outras mãos.
536 Nasceu em 26 de setembro de 1795, em Santarém, Portugal. Filho de D. Francisca Xavier de Sá Mendonça Cabral

da Cunha Godolfim e Faustino José Lopes de Figueiredo, desembargador da cidade do Porto. Bernardo Figueiredo
foi um político e militar e ocupou diversas pastas ministeriais, como ministro da Marinha e do Reino; governador de
Peniche; ministro da Fazenda e dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e de Obras Públicas; e presidiu o Conselho
Ultramarino, criado em 1851. Foi agraciado com os títulos nobiliárquicos de 1º Barão (1833), 1º Visconde (1834) e 1º
Marquês de Sá da Bandeira (1864). Exilou-se no Rio de Janeiro em 1829, residindo por alguns meses e retornou à
Europa. Faleceu (1876) em Lisboa com 81 anos de idade.
537 Nasceu em 3 de dezembro de 1776, no Porto, Portugal. Filho de D. Clara Josefa Bernardina e de Francisco José da

Silva Maia, aos 26 anos de idade, transferiu-se de Portugal para o Brasil, e se estabeleceu na capitania da Bahia, em
Salvador. Casou-se com D. Joaquina Rosa da Costa, com quem teve três filhos: duas meninas e um menino, Emílio
Joaquim da Silva Maia. Negociante matriculado na Real Junta de Comércio (1811). Foi redator ainda na Bahia do
Semanário Cívico (1822-1823) e do Sentinela Bahiense (1822). Foi Procurador do Senado da Câmara de Salvador até o ano
de 1823. Foi redator do Imparcial, no Porto, entre 1826 e 1828. Exilou-se em 1829 no Rio de Janeiro, local em que
publicava o jornal O Brasileiro Imparcial no ano de 1830. Faleceu (1832) no Rio com 56 anos de idade.
538 Nasceu em 1808, na Bahia, Brasil. Filho de Joaquim José da Silva Maia e D. Joaquina Rosa da Costa. Com a mudança

de sua família de Salvador para Portugal, em 1823, interrompeu seus estudos no Brasil e se preparou para continuar o
curso de Medicina na Universidade de Coimbra. Formou-se bacharel em Filosofia. Na ocasião em que esteve exilado
com o Exército constitucional, em razão das perseguições miguelistas, engajou-se no corpo de Voluntários
Acadêmicos. Exilou-se no Rio de Janeiro, em 1829, permanecendo por alguns meses, até que retornou à Europa e
1244

do Constitucionalismo e da Constituição de 1826 e da legitimidade de Dona Maria da Glória ao


trono de Portugal.

Tanto individual ou coletivamente é possível compreender os exilados como porta-vozes


das culturas políticas liberal e constitucional do Mediterrâneo, sendo assim, politicamente alvos das
prisões e perseguições dos miguelistas e da contrarrevolução. Aqui o entendimento é que culturas
políticas podem significar o “conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas
partilhado por determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras
comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro”
(Motta, 2009, p. 9).

Assim, Joaquim Maia e Emílio Maia, pai e filho, comprometeram-se na Revolução de 1828, já
citada, acompanhando o Exército constitucional do Porto até a Inglaterra. Bernardo de Sá
Figueiredo teve destacada atuação na Revolução Liberal de 1820. Os quatro sujeitos exilados no
Brasil fizeram parte de um círculo de letrados. Como escritores públicos atuaram na imprensa
periódica. Joaquim Maia foi redator no Porto do jornal Imparcial (1826-1828) e, no Brasil, redigiu
O Brasileiro Imparcial em 1830, no qual publicou assuntos de Portugal e do Rio de Janeiro nas 104
edições e também defendia o governo de Dom Pedro. José da Rocha Cabral foi um dos fundadores
do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e diretor do periódico Despertador durante
os 7 anos que residia na província do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, ele atuou como
encarregado do Consulado Geral de Portugal. O bacharel em Filosofia Emílio Maia, tornou-se
Doutor em Medicina pela Faculdade de Paris e, posteriormente, sócio e secretário do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, momento em que divulgou as Memórias de seu pai, Joaquim Maia.

As atuações desses exilados em território brasileiro direcionaram-se para a unidade do


Império. A presença desses cidadãos causou dissensos sócio-políticos e identitários registrados na
imprensa jornalística e, ainda, constituiu um contraponto aos discursos de alguns dos periódicos
brasileiros de tendência liberal moderada, sendo o maior exemplo o A Aurora Fluminense, que os
acusavam - acusações que recaíram sobre Dom Pedro e seu governo - de “agentes do despotismo”,
por defenderem as liberdades em Portugal, e no Brasil a “opressão” e as “doutrinas da escravidão”,
acusações infundadas, como se verá a seguir.

A investigação sobre a presença da emigração portuguesa no Império do Brasil deve ser


inserida na conjuntura da ruptura da Independência de 1822 e dentro do contexto de Abdicação

obteve o grau de bacharel em Ciências Físicas e Matemática e, em 1833, o de doutor em Medicina pela Faculdade de
Paris. No Período Regencial, em 14 de março de 1834, retornou novamente para o Rio de Janeiro, e casou-se com Ana
Maia com quem teve sete filhos. Foi sócio do IHGB em 1841. Faleceu (1859) no Brasil com 51 anos de idade.
1245

de Dom Pedro I em 1831, um ano antes da vitória das forças liberais lideradas por ele em Portugal
-. Também deve-se avançar para as décadas de 1830 e 1840 do período Regencial brasileiro, pois
“os projetos de reaproximação entre Portugal e Brasil vão ganhar força renovada após a morte de
D. João VI e se estende até pelo menos 1834, com o fim da guerra civil portuguesa” (Gonçalves,
2020, p. 101).

Ainda mais, porque, quinze anos após a Independência, em 14 de maio de 1837, “um grupo
de 43 emigrantes portugueses (...) reuniu-se na casa do Dr. António José Coelho Lousada, na antiga
rua Direita”, no Rio de Janeiro, com o objetivo de criar “uma biblioteca para ampliar os
conhecimentos de seus sócios e dar oportunidade aos portugueses residentes na então capital do
Império de ilustrar o seu espírito”. A maioria desses homens eram “comerciantes da praça”, entre
os quais, havia alguns “perseguidos em Portugal pelo absolutismo e que tinham emigrado para o
Brasil”. Foi o caso de “José Marcelino Rocha Cabral, advogado e jornalista, que iria ser eleito
primeiro presidente da instituição”539. Além do RGPL, criou-se no ano seguinte o IHGB, do qual
foi sócio e secretário o exilado Emílio Maia. Ambas instituições de caráter associativo foram
fundamentais para a construção das identidades políticas vinculada à história do Brasil e de
Portugal, por isso mesmo, a importância de compreender a atuação dos exilados nesses espaços.

Ao analisar a trajetória das identidades políticas no universo americano, João Paulo G.


Pimenta e István Jancsó compreenderam que somente a partir da elevação do Brasil à condição de
Reino Unido a Portugal e Algarves, em 1815, a “nação brasileira” se tornava pensável se referida
ao Estado. Constataram que a “instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência, no
interior do que fora anteriormente a América portuguesa, de múltiplas identidades políticas
coletivas (...) cada qual referia-se a alguma realidade e a algum projeto de tipo nacional” (Jancsó;
Pimenta, 2000, p. 131-132). A ideia de superação da Nação portuguesa foi colocada pelo exilado
Sá da Bandeira, uma vez no Brasil. Poder-se-á questionar o por que um português projetaria tal
ideia a um Império independente. Esperar-se-ia que ele tivesse interesse recolonizador? Para alguns
talvez, mas o fato é que não se passou por aí.

João Pimenta e Jancsó ainda chamaram atenção: “é preciso ter em mente nas primeiras
décadas do século XIX o conceito de nação, ainda que carregado de enorme fluidez, espalhava-se
rapidamente pelo universo atlântico, deslocando-se para o centro dos ideários políticos” (Jancsó;

539Lê-se no site do Real Gabinete Português de Leitura que a biblioteca contém obras de autores fora de Portugal,
cujo acervo informatizado totaliza cerca de 350 mil volumes, incluindo diversos manuscritos. Disponível:
https://www.realgabinete.com.br/Biblioteca/Apresentacao/Historia.
1246

Pimenta, 2000, p. 159)540. Sá da Bandeira ao exilar-se no Império do Brasil trazia consigo o sentido
político do termo. Ele alertava a Dom Pedro - ambos foram um pouco próximos - sobre a ameaça
contra a autonomia do Império do Brasil e a nova Nação, chegando apontar planos concertados
por Dom Miguel e Fernando VII541. O alinhamento entre os “governos tirânicos” ficou evidente
numa exposição em que Sá da Bandeira escreveu para Dom Pedro ao noticiar que o Rei espanhol
não teria desistido da ideia de “reconquistar a América” com seu Exército de cerca de 12 mil
homens recebendo reforços da Península ibérica com tropas que partiam da cidade de Corunha
para a de Havana em Cuba542. Sá da Bandeira empregou o conceito porque já estava convencido
das pretensões de Dom Miguel e, ao fazê-lo, em 1829, projetava para a organização do Estado e
da Nação brasileiros, mesmo não tendo sido um “independentista” de 1822543.

No que se refere às dissensões de identidade - “ser português ou ser brasileiro”, esses


conflitos se acentuaram com a presença dos exilados no Brasil. O embate partia do periódico A
Aurora Fluminense para com os exilados enquanto grupo e, depois acusações direcionadas ao jornal
O Brasileiro Imparcial, já referido, redigido por Joaquim Maia. Como se sabe, o Aurora foi um dos
jornais de maior tiragem na Corte do Rio de Janeiro544 e como tal sua preponderância de leitores
era ampla também; diferente do Imparcial, que circulou somente no ano de 1830545.

Na edição 324 de 14 de abril de 1830, o Aurora atribuía aos exilados o “espírito de


desconfiança”. Em sua defesa, Joaquim Maia escrevia que essa atitude do Aurora poderia reviver
os conflitos entre brasileiros e portugueses - algo aliás, que não estava resolvido -, afirmando ser o
Aurora um dos “periódicos incendiários”546. Com a Independência (1822), o “ser português” era

540 Atentar para a metamorfose do conceito de nação, sobretudo no século XIX, é prudente haja vista a ambiguidade
do termo nação e sua conotação política no princípio das nacionalidades, conforme abordado por José Chiaramonte
em 2003.
541 Diário de Bernardo de Sá Nogueira sobre o “Estado do Brasil”. Lisboa, Arquivo Histórico Militar. PT

AHM/DIV/3/18/11/17/03. Vê-se reunida parte dos registros de Sá da Bandeira em TENGARRINHA (1976).


542 Processo nº. 6 da Caixa 10, 3ª Divisão, 18ª Seção. Não temos notícias se essa exposição foi entregue ao Imperador,

como outras lhe foram entregues. Além disso, ela não está datada. Supõe-se que foi escrita em 1829, pois foi localizada
com outras correspondências endereçadas a Dom Pedro.
543 No momento em que o exilado fazia tal orientação de unidade, o Brasil ainda vivia o processo de consolidação de

sua Independência, reconhecida por Portugal em 1825, que se arrastou por pelo menos toda a primeira metade do
século XI, como afirmaram João Pimenta e István Jancsó (2000). As clivagens entre “ser português” ou “ser brasileiro”
presentes nesse contexto, parece-me não ter sido as maiores preocupações de Sá da Bandeira. Talvez no sentido
político, o emprego do termo Nação, tomado pelo exilado, endossa não só a ideia da superação de uma crise, do
Império luso-brasileiro, colocado já pelos governantes portugueses a partir de 1790, tendo como figura de destaque
Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, mas, mais do que isso, corrobora com a questão nacional em relação à
Independência brasileira.
544 Fundado em 1826 pelo médico francês José Francisco Xavier Sigaud, pelo professor Francisco Chrispiniano

Valdetaro e pelo jornalista José Apolinário Pereira de Morais. Evaristo da Veiga se juntou a eles, em 1829, e deu ao
periódico contornos políticos da linha moderada.
545 Pode-se questionar, assim, que o Aurora teria tido maior crédito de suas notícias, colocando, em certa medida, o

Imparcial em detrimento de suas informações? Questão que cabe investigar.


546 O Brasileiro Imparcial, 17 de abril de 1830, n. 31, p. 124.
1247

atribuído àquele que se enquadrava no “portuguesismo”, os “maus portugueses e brasileiros natos”


contrários a ela, ou seja, ao português e ao brasileiro por constituição poderia ser atribuído o termo
de absolutista, ainda mais se defendesse as ideias liberais das Cortes de Lisboa (Ribeiro, 1997).

Na edição 407, o Aurora afirmava que o Imparcial “não é nem Brasileiro nem Português” e
ainda o acusava de ser um “órgão da facção cortesã” e uma “folha da recolonização” e, a Joaquim
Maia, acusou-o de ser um “jornalista recolonizador”. Em sua defesa, na segunda edição, o Imparcial
esclareceu ao público que “somos Brasileiros, e como tais temos todo o direito a interferir nos
negócios do Brasil como membros do corpo social”, já que as críticas do Aurora o acusavam de
“estrangeiros” (Imparcial, 1830, p. 3). Há pelo menos três pontos importantes que devem ser aqui
apontados. O primeiro é o fato da acusação de recolonização não ter sido sustentada. O segundo,
refere-se à Constituição de 1824 que garantia a Joaquim Maia a nacionalidade brasileira, já que ele
nasceu em Portugal, sendo residente no Brasil, em Salvador, na época em que se proclamou a
Independência, ou seja, brasileiro por Constituição, na forma da lei (Carta, 1824). Por fim, e último
apontamento, é o emprego da expressão “membros do corpo social”. Observa-se que o exilado
Joaquim Maia destacou aí para a ideia de unidade, coletividade, e, não há dúvida, que ele entendia
esse pertencimento vinculado à Nação brasileira.

O tema da escravidão deve ser destacado também, aliás, o escravismo como variável
ordenadora da sociedade nesse contexto é fundamental para compreender a politização das
identidades (Pimenta; Jancsó, 2000). Assunto muito bem pesquisado por Hebe Mattos, Silvia Lara
e Rafael Marquese. Em um de seus estudos, Rafael Marquese apontou para o caráter supostamente
benigno da escravidão brasileira destacado pelos viagentes estrangeiros que percorreram o Brasil,
bem como, posteriormente, pelos herdeiros e construtores do Império. Apesar de o termo de
exilado caber melhor a Sá da Bandeira, a expressão “viajante” não o deixa de o ser também. Porém,
ao contrário de perceber e destacar o aspecto “brando” da escravidão, Sá da Bandeira não só dizia
que a escravidão era um “cranco que rói” o Brasil, um obstáculo para o “progresso” e para a
“prosperidade industrial” no país, mas que era “muito necessária a abolição da escravatura”547.

Dizia então Sá da Bandeira que “os senhores só querem tirar fruto dos escravos fazendo-
os trabalhar muito, dando-lhes mal de comer e de vestir, que no inverno andam aqui cheios de frio,
além disso, castigam-nos muito, que este tratamento é a razão do pouco aumento da população
negra comparada à branca” (Tengarrinha, 1796, p. 135 apud Maia, 1996, p. 49). Hebe Mattos, no
entanto, diz-nos que “entre os séculos XVI e XVIII, mais de 1 milhão de pessoas viveram como
escravos na Península Ibérica” (Mattos, 2001, p. 146). Cálculo que, talvez esteja exagerado,

547 Processo nº 6, já referido.


1248

compreende cerca de 10% da população do Algarve e de Lisboa, segundo a autora. Já Rafael


Marquese afirmou que “no período de quarenta anos compreendido entre a vinda da família real
para o Brasil (1808) e o fim definitivo do tráfico, em 1850, foi introduzido mais de 1,4 milhão de
cativos no Império, ou seja, cerca de 40% de todos os africanos desembarcados como escravos em
três séculos da história do Brasil” (Marquese, 2006, p. 121).

Ao acompanhar parte da história de Lourenço da Silva Mendonça, homem pardo e livre,


Hebe Mattos constatou que, já no século XVII, existia “uma elite de homens pretos e pardos com
surpreendentes conexões por todo o Império e para além dele (Mattos, 2001, p. 151), constatação,
aqui, para ponderar a visão única de Sá da Bandeira acima referenciada. Há com tudo isso um ponto
comum entre Sá da Bandeira e Lourenço Mendonça - ainda que suas projeções de futuro se
diferenciavam -, que é o fato de ambos terem argumentado contra a instituição da escravidão no
Brasil.

Porém, como se sabe, essa instituição se manteve e a partir do século XIX em outros
quadros, tendo sido reiterada e adaptada. Fernando Novais, em seu clássico estudo sobre a crise
do Antigo Sistema Colonial já dizia que, paradoxalmente, é a partir do tráfico negreiro que se pode
entender a escravidão africana colonial, e não o contrário (Novais, 1983). Que a compra de pessoas
perdurou política e ilegalmente, após a Abdicação de Dom Pedro I, em 1831 (Grinberg, 2020), nos
quadros de um Estado Nacional e Liberal, a expressão segunda escravidão elucida tal tratativa
(Marquese; Parron, 2011).

Considerações finais

A literatura especializada sobre a história do Brasil Imperial e de Portugal é numerosa e,


embora bem pesquisada, possui problemas historiográficos, talvez devido à pouca atenção atribuída
a certos temas. A respeito do tema da presença da emigração portuguesa no Império do Brasil a
partir de 1828, observa-se que ele está ausente nos estudos de uma fecunda linhagem de
historiadores, sobretudo brasileiros e, inclusive, os referidos neste texto. A grande referência e
pioneira na historiografia brasileira é Andréa Lisly Gonçalves, que não só atribuiu importância à
temática como tem-se dedicado a ela até os dias de hoje. A constatação de que as articulações entre
Portugal e o Império do Brasil se mantiveram firmes nas décadas de 1820 e 1830, e nesse ínterim,
os projetos de reaproximação entre os países adquiriram força revigorada (Gonçalves, 2020), é uma
das perspectivas da autora, adotada por mim. Os aspectos da experiência política de exilados liberais
- presos e perseguidos em Portugal pelo regime miguelista - na Europa e no Brasil, que desenvolvi
1249

em outro momento548 (Silva, 2019), já são constatações desse vínculo entre a ex-metrópole e sua
ex-colônia na América.

A novidade que esse tema traz talvez não seja só a das conexões políticas e sociais entre os
dois lados do Atlântico, mas a tese de que os sujeitos dessa emigração portuguesa também
estiveram comprometidos - construtores - com a unidade política e territorial do Império, na
conjuntura da formação do Estado e da Nação brasileiros. O interesse aqui foi evidenciar o tema
da emigração relacionando-o com parte dos estudos dos especialistas citados, e demonstrar que ele
completa certas evidências. É um tema inerente à história do Brasil Imperial e contribui para o
avanço de sua historiografia.

A análise atenta da documentação e das historiografias brasileira e estrangeira abre


possibilidades para abordar assuntos como o papel do periodismo na esfera pública, os conflitos e
as construções identitárias, com os temas da escravidão e da formação dos Estados Nacionais
contemporâneos5. O percurso realizado pelos exilados na Europa e no Brasil, como ilustrado no
mapa Google Earth e descrito aqui, possibilita compreender essas questões, ainda mais
considerando o amplo debate europeu da época das Restaurações e do Concerto da Europa. As
lacunas na história e na historiografia do Brasil Imperial ainda precisam ser preenchidas, sendo o
tema da emigração política de liberais portugueses no Império não indiferente e, portanto, capaz
de dar luz à novas abordagens, entre as quais, a contribuição dos exilados para a cultura portuguesa
no Brasil.

Fontes
A Aurora Fluminense (1827-1839)

ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR. Processo nº. 6, Caixa 10, 3ª Divisão, 18ª Seção. Diário de
Bernardo de Sá Nogueira sobre o “Estado do Brasil”. Lisboa, PT AHM/DIV/3/18/11/17/03.

Constituição Política do Império do Brasil. Carta de lei de 25 de março de 1824.

Exposição apologética dos portugueses emigrados na Bélgica, que recusaram prestar o juramento deles, exigido no
dia 26 de agosto de 1830. Bruges: na Imprensa de C. de Moor. Autor: [Julio Gomes da Silva Sanches
Machado da Rocha / António Luiz de Seabra], 1830.

MAIA, Joaquim José da Silva. Memórias Históricas, políticas e filosóficas da Revolução do Porto em maio de
1828 e dos emigrados portugueses em Espanha, Inglaterra, França e Bélgica. Obra póstuma publicada por
Emílio Joaquim da Silva Maia. Rio de Janeiro: Tipografia Austral, 1844.

548A hipótese aventada, que defendi no mestrado, foi a de que a presença dos exilados no Brasil constituiu um
contraponto aos discursos de alguns periódicos brasileiros de tendência liberal moderada, como o A Aurora Fluminense.
5
Há outra questão quase um insight que me veio à mente no ato desta escrita. Diz respeito às tropas de Dom Pedro I,
alguns integraram a tropa nacional, após o desembarque no Rio de Janeiro. A história da instituição militar no Brasil -
sua constituição e composição social - no século XIX também pode ser narrada a partir do tema da emigração
portuguesa.
1250

O Brasileiro Imparcial (1830).

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1253

Nas areias quentes de Copacabana: uma praia em disputa


(aproximações contrastes e tensões) entre 1940 a 1980

Luzimar Soares Bernardo

Resumo: A proposta que apresento tem o objetivo de compreender a dinâmica social estabelecida
entre a praia e o bairro de Copacabana, sua relação com o desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro e com os chamados protagonistas de areia, que coexistem e disputam o espaço físico das
areias numa praia que agrega adjetivos tais como: cosmopolita, moderna, futurista, agregadora,
democrática, republicana e, finalmente, princesinha do mar. Com isso, pretendo entender as
trajetórias, vivências, disputas, culturas e sociabilidades à luz da História Social com aspectos da
História Oral e da História Ambiental, lançando luz sobre a cotidianidade desses protagonistas
que são: os pescadores da Colônia Z-13, os vendedores ambulantes e os praticantes de esportes.

Palavras-chave: Pescadores, Copacabana, Cotidianidade, Vendedores Ambulantes, Esportistas.

Abstract: The proposal presented here intends to comprehend the social dynamics stablished
between the beach and the neighborhood of Copacabana, just as its relation with the development
of the city of Rio de Janeiro, and the so called beach’s main characters that coexists and contests
the physical space of the sands in a beach that adds adjectives such as: cosmopolitan, modern,
futurist, aggregator, democratic, republican and, at last, Little Sea Princess. Thus, I intend to
understand the paths, experiences, disputes, cultures and sociability under the look of Social
History, with elements from the Oral History, and from the Environmental History, throwing
light upon the daily activities of these main characters that are: the fishermen from Z-13 Colony,
the hawkers and the sport players.

Keywords: Fishermen, Copacabana, Everyday Life, Hawkers, Sport Players.

Relevância do Tema

Em livro que publiquei neste ano de 2020, pesquisei a paradoxal existência de uma Colônia
de Pescadores Artesanais nas areias de Copacabana, na área do Posto 6. Constatei que tais
trabalhadores persistem em se conceber como uma comunidade tradicional em contraste com um
dos espaços mais ricos e sofisticados da cidade e do bairro de Copacabana. As disputas diárias nas
areias com outros protagonistas, incluindo aí as elites e as camadas médias, e mais os vendedores
ambulantes e os praticantes de esportes, em especial, as escolinhas que têm em comum com estes
últimos, o uso da praia como ferramenta de existência e subsistência.

No tocante ao lugar, encontrou-se o uso deste sendo transformado em espaço e vivificado


pelos pescadores em uma disputa diária e constante com outros atores que vivem naquela
localidade. No uso desse espaço, percebe-se algo parecido com o que foi descrito por Michel de
1254

Certeau, quando diz “(...) a rua geometricamente definida pelo urbanismo é transformada em
espaço pelos pedestres” (Certeau, 1998, p. 201). Ou seja, os pescadores e os demais sujeitos, na
cotidianidade, transformam as areias de Copacabana no lugar vivido, disputado e de construção de
cultura viva. Esse espaço vivido e disputado tem significados diferentes para pescadores e demais
sujeitos.

Quanto ao espaço, a primeira constatação é que a superfície da praia não é a


mesma coisa para o banhista (que eu era) e o pescador. Pra este, a praia está
dividida em portos ou pontos de pesca, que delimitam sua atividade e são parte
de um complexo sistema de regras jurídicas que ordena a captura das espécies.
A praia é vista como parte de um sistema, em que o mar e a terra são oposições
fundamentais, encontrando seus limites na praia. (Lima, 1997, p. 35).

É justamente neste lugar de disputas por território que se misturam e convivem os


protagonistas, aqueles que têm na areia o seu sustento. Mas, antes de observar as disputas, é
necessário que se observe o território, pois se trata de Copacabana.

Copacabana

O cenário da Copacabana atual tem muito pouco, ou quase nada a ver com aquele dos idos
de 1940. Naquele período em que o Rio de Janeiro ainda era capital do País, a praia de Copacabana
já era mundialmente conhecida, haja vista, ainda na década de 1920, ter sido erguido um dos seus
mais importantes símbolos, o Copacabana Palace.

As areias enquanto espaço de sociabilidade tem uma construção histórica que pode ser
considerada recente. Na história da humanidade, é sabido que o uso do sol para dourar os corpos
e as areias para convivência é contemporâneo. Tratando-se da cidade do Rio de Janeiro, mais
especificamente de Copacabana, tem-se que somente com a abertura do Túnel Alaor Prata em
1892, a cidade realmente chegou ao bairro. Além disso, os banhos de mar eram poucos frequentes.

No início de século XX, os moradores de Copacabana já estavam habituados aos usos da


praia como forma de terapia. Neste período, acreditava-se que os banhos de mar contribuíam para
o restabelecimento da saúde. Portanto, a descoberta do “prazer praiano” é novo, como mostra
Julia O´Donnell,

Acostumado ao discurso médico que permeava a sua relação com o oceano à


sua porta, incorporara os banhos de mar – costumeiramente seguidos de um
copo de leite consumido diretamente em um dos tantos estábulos de seu bairro
– às suas atividades regulares. O Novo Rio era, afinal, o éden da salubridade
(Dornelles, 2013, p. 93)
1255

Copacabana é muito mais do que um bairro, é mais do que uma praia, suas areias são um
microcosmo onde se misturam os mais diferentes sujeitos, culturas, vivências, disputas,
sociabilidades, religiões e interações. Neste microcosmo, as construções se dão através dos usos do
espaço que são costurados diariamente. Os vendedores ambulantes e os praticantes de esportes,
muitas vezes, utilizam as instalações da Colônia para exibirem seus produtos e guardarem seus
materiais respectivamente.

Os pescadores artesanais são considerados os mais antigos moradores do bairro, quando


este ainda não era considerado parte da paisagem urbana. A construção do bairro e as muitas
mudanças através dos planos urbanísticos deram-se de forma a ocultar a presença desses
trabalhadores, ou pelo menos, a tratá-los como sujeitos passivos e dóceis. Como bem relata Julia
O`Donnell,

Nesse sentido, chama a atenção a suavidade com que a urbanização de


Copacabana é relatada em uníssono pelos diversos testemunhos, como se a
progressiva chegada das ruas e palacetes tivesse ocorrido numa substituição
natural e indolor das "choupanas" e barracões” pelos índices de civilização
almejada (Idem, p. 63-64).

A proximidade dos pescadores com os vendedores ambulantes e, também, as suas


disputas, são antigas. A seção "Cartas à Redação" do jornal Correio da Manhã de 23 de abril de
1936, reproduziu uma carta do comandante da marinha Frederico Villar, fundador das Colônias
de Pescadores, que reclamava da ação daqueles trabalhadores, como se observa a seguir:

Os vendedores ambulantes não tem nenhum controle e não conhecem tabela


de preço. Fazem o que querem. Não é, pois, de admirar que o povo carioca
pague caro o pescado que compra. E agora, meu caro director do “Correio da
Manhã”, se o Conselho da Caça e Pesca não conseguir annullar pela sua
intervenção junto ao dr. Getúlio Vargas, o “novo” regulamento do Entreposto,
vai ser cada vez pelor (...).550

A correspondência enviada ao Jornal é extensa e relata, além de uma proximidade desses


trabalhadores, uma disputa que, ao olhar daquele que era uma autoridade no assunto da pesca, não
era benéfica aos pescadores. Os dados levantados até o momento dão conta de que a primeira vez
que vendedores ambulantes e pescadores apareceram na mesma reportagem, publicada em 22 de

"Cartas à Redação". Correio da Manhã, Rio de Janeiro, ed. 12711, 23 de abril de 1936, p. 07. Disponível em:
550

<http://memoria.bn.br/DocReader/089842_04/33346> Acessado em: 20 out. de 2020. >cessado em: 10 nov. de


2020.
1256

setembro de 1932, foi sobre o alto preço do pescado que era praticado pelos vendedores
ambulantes.

A atividade de vendedores ambulantes tem como prática, justamente, sua mobilidade. Na


cidade do Rio de Janeiro, esta atividade tem, como herança, a exploração do trabalhador, seja na
precariedade da sua atividade, seja na aplicação de multas ou confisco de mercadorias pelo poder
público. Os vendedores ambulantes movimentam cifras consideráveis. Por esta razão, são
considerados um contingente de trabalhadores importante. Além disso, contribuem como uma
significativa fonte de renda para o município, como bem salientou Poliana dos Santos:

Embora os dados sejam esparsos, pode-se ter uma ideia da produção da riqueza
que o trabalho ambulante significava para a municipalidade, visto que se
arrecadavam com alvarás, multas, impostos, taxas sanitárias, tomadas de gêneros
negociados e vendas em hasta pública. Portanto, os volantes se tornaram um
mal necessário. E, nesse sentido, o que buscava era remediar ou disciplinar
aquilo que se via como impertinente (Santos, 2018)

O momento exato da chegada desses trabalhadores às areias de Copacabana ainda não foi
possível descobrir. Todavia, em razão da sua natureza de deslocamento constante e de estar o
tempo todo buscando novos mercados, supõe-se que sua chegada à praia está intrinsecamente
ligada aos usos das areias. Ou seja, o surgimento da praia enquanto espaço de lazer trouxe público
e, por conseguinte, os vendedores.

Todavia, um dado importante a ser destacado é a chegada do “Biscoito Globo” ao Rio de


Janeiro, hoje um dos itens mais comercializados nas praias cariocas. Trazido de São Paulo no ano
de 1955, virou a marca que ocupa posição de relevância para os trabalhadores ambulantes.

O terceiro ator a figurar na pesquisa é o esportista, naquele espaço onde o pescador é


detentor do Termo de Posse (documento que dá direito do uso do espaço). Muitos esportistas,
também, usufruem das areias e das águas para garantirem seus sustentos. Dentre os ocupantes da
praia, há os banhistas, os esportistas eventuais, e há, também, aqueles que se dirigem a esse recanto
com seus alunos para ministrar aulas. Entre as atividades, além do vôlei de praia, que é praticado
nas areias de Copacabana desde os anos de 1940, tem também natação, stand-up pedal, corrida na
areia, frescobol e caminhadas guiadas.

Estudos acerca dos pescadores artesanais no estado do Rio de Janeiro são parcos. A
referência bibliográfica mais importante encontrada até o momento vem da geografia e
1257

demonstra, com bastante clareza, a questão da desterritorialização551 sofrida pelos pescadores do


Posto Seis, processo esse que se deu dentre outras razões pela especulação imobiliária (Gianella,
2012, p. 53-72).

No tocante aos vendedores ambulantes, especialmente àqueles que ocupam a área de


Copacabana é escassa a produção acadêmica, eles aparecem, apenas, como parte de estudos
maiores. Portanto, acredita-se ser importante aprofundar a pesquisa e trazer à baila a história, as
lutas, as trajetórias e sociabilidades desses sujeitos. A pesquisa analisada dá conta, por exemplo, de
que a origem de grande parte dos vendedores é do Nordeste do país, o que os aproxima dos
pescadores que, também, tem essa origem em sua grande maioria. Desse modo, segundo Maria de
Fátima Gomes e Caterine Reginensi,

Com efeito, a maioria dos vendedores que responderam às perguntas sobre as


redes eram originária do Nordeste brasileiro (dos Estados do Ceará,
Pernambuco, Paraíba e Bahia) Nesse sentido, poder-se-ia confirmar a hipótese
que é na mobilidade que se constituem os recursos dos indivíduos (Gomes,
2008, p. 7).

Os esportistas, por sua vez, carregam o senso comum de aura de pessoas saudáveis e
pertencentes a classes sociais diferentes dos outros dois sujeitos. No entanto, aqueles que buscam
tirar dali o sustentáculo de vida no sentido financeiro, disputam o mesmo espaço físico e, por
conseguinte, são atores das mesmas sociabilidades no momento de trabalho.

Um estudo feito em 2010 aponta para o surgimento da atividade esportista nas areias de
Copacabana. Esta, todavia, era tida como atividade lúdica e não de subsistência, como revelou os
estudos de Lenice Oliveira e Vera Lúcia Menezes Costa, que realizaram uma pesquisa através da
história oral sobre os pioneiros do vôlei de praia a partir de 1940. Portanto, estabelecendo a
trajetória inicial deste esporte como lazer na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro (Oliveira,
2010). Um dos esportes nascidos em Copacabana e que agrega, naquelas areias, praticantes de
várias idades é o frescobol. Este é patrimônio cultural de natureza imaterial, nascido na década de
1940, e também é parte integrante daquela paisagem.

Em Copacabana, há alunos de 82 anos, mas também de sete – curiosamente, a


mesma idade que o primeiro tinha no contexto da criação do esporte, em 1945,

551A desterritorialização é precisamente a quebra do controlo de cada indivíduo, comunidade ou empresa sobre o seu
território: no caso específico das populações, essa implica uma quebra de vínculos, uma perda de território, um
afastamento aos respetivos espaços de afirmação material e/ou imaterial, funcional e/ou simbólica (Fernandes, 2008).
1258

naquela mesma praia que, apesar de também receber as novas gerações, é


escolhida majoritariamente, por pessoas com mais idade.552

Portanto, compreender as trajetórias e as disputas, os lugares de cada um, suas mudanças,


construções e desconstruções ao longo dos anos se torna uma das buscas da pesquisa.

Quadro Teórico

Quem são, em todo Brasil, os pescadores? São homens inteiramente alheios as


às conquistas da civilização e do trabalho. Na proporção talvez de 90%, os
chamados praianos não sabem ler nem escrever; vivem doentes, esquálidos,
demolidos pelas endemias do litoral, cobertos de úlceras, com os intestinos
pandos de tricocéfalos, ascarise anquilostomos, debilitados pela malária, pela
lepra, pela sífilis, pelo alcoolismo e pelos entorpecentes (Villar, 1945, p. 46).

A narrativa utilizada pelos governantes para se referirem a essa classe de trabalhadores,


como demostra o texto acima, é desclassificatória, a saber: o período era de uma política de eugenia
e, ao mesmo tempo, nacionalista. Era necessário civilizar os homens do mar para que estes fossem
capazes de defender a pátria. Vale acrescentar que o autor do excerto escolhido acima, Frederico
Villar, o então comandante da Marinha, percorreu a costa brasileira entre 1919 e 1924, a bordo do
Cruzador José Bonifácio. A sua intenção era criar colônias de pescadores ao longa da vasta costa.
O espaço era considerado uma importante reserva naval e um ponto decisivo para atuação de
controle do Estado nas regiões costeiras.

Em um período de políticas que se sustentavam pela formação de núcleos de benfeitorias


nas zonas habitadas por uma elite, especialmente na capital do país, e pelo abandono das áreas
periféricas, locais de moradia da classe trabalhadora; os pescadores da Colônia Z-13, ilogicamente,
permaneceram na zona sul da cidade. Não somente na zona sul, mas em Copacabana, o que, no
imaginário popular, é ainda mais contraditório. Segundo Maurício de abreu,

Já na década de 1920 estavam, pois, lançadas as bases para a formação da Área


Metropolitana do Rio de Janeiro. Sua estrutura urbana também já se cristalizava,
assumindo cada vez mais um forma dicotômica: um núcleo bem servido de
infraestrutura, onde a ação pública se fazia presente com grande intensidade e
onde residiam as classes mais favorecidas, e uma periferia carente da mesma
infraestrutura, que servia de local de moradia às populações mais pobres, e onde
a ação do Estado era praticamente nula (Abreu, 1988, p. 82).

552“Frescobol: o esporte nascido em Copacabana segue conquistando novos adeptos. Posto Seis: o Jornal de Copacabana,
Rio de Janeiro, ano 25, edição 538, novembro de 2020, p. 02.
1259

Os vendedores ambulantes carregam a informalidade e a exploração como marca. Se


retrocedermos na história, encontra-se essa atividade como forma de subsistência desde há muito
tempo exercida por sujeitos que não necessariamente são considerados por políticas públicas e
planejamento das cidades. De acordo com Maria de Fátima Gomes e Caterine Reginensi, “(...) esse
segmento da população tem sido considerado excluído em razão do conjunto de dificuldades dos
modos e dos problemas de uma inclusão precária, instável e marginal no mercado de trabalho”.
(Gomes, 2008).

Objetivando compreender essas imbricações, a pesquisa se lançará para envolver as


problemáticas das relações desses três sujeitos na paradoxal “princesinha do mar” e como essas
interações, nas fontes pesquisadas até o momento, foram estreitadas na década de 1940. Será
buscada, também, a identificação da cidadania sabendo que, como disse Angela de Castro Gomes,
a construção da cidadania brasileira se deu nesse período.

Em nosso país, foi basicamente a partir dos anos de pós-30 e especialmente no


período do Estado Novo que a classe trabalhadora foi incorporada como um
autor relevante – e até mesmo central – ao cenário da política nacional. Neste
sentido, o acesso da classe trabalhadora à cidadania no Brasil assumiu contornos
bem significativos (Gomes, 2005, p. 23).

Portanto, cada um desses grupos de trabalhadores que compõem a pesquisa tem seu peso,
sua história e sua trajetória. As disputas e sociabilidades vividas por eles, e as adversidades da
convivência comporão a finalidade da pesquisa.

Justificativa

Na historiografia contemporânea, destacam-se autores como Walter Benjamin, Raymond


Williams, E. P. Thompson, dentre tantos outros, e com o auxílio teórico a partir deles, é possível
fazer um levantamento histórico de uma comunidade tradicional com embasamento. Além de,
neste caso, ter contado com o uso da História Oral, muito bem balizada por Verena Alberti.

Em pesquisa anterior sobre os pescadores, não se pôde aprofundar os contrastes entre a


comunidade tradicional e os modernismos de Copacabana, que lançava moda na cidade. Até para
entender melhor a disputa territorial que se dá, quase sempre, por um jogo político, às vezes,
imperceptível a quem não está nele.

Portanto, sem captar o jogo político que o objetiva, e as determinações político-


culturais que o ordenam, não se consegue entender em profundidade um
processo concreto de valorização do espaço. O território nesse sentido, expressa
1260

combates e antagonismos entre interesses e projetos sociais. [...] Enfim, o


desenvolvimento histórico se faz sobre e com o espaço terrestre, e, neste
sentido, toda formação social é também territorial, pois necessariamente se
especializa (Moraes, 2005, p. 46-47).

A construção e as disputas que envolvem esse espaço territorial serão parte integrante da
nova pesquisa, buscando um olhar sobre os outros dois grupos de trabalhadores, bem como se
pretende alargar para outros que compõem a vida naquele espaço, ou seja: os compradores
(clientes da Colônia e dos vendedores), os turistas, os vizinhos (Clube Marimbá, Corpo de
Bombeiros e direção do Forte e Copacabana) e os donos da peixaria.

Partindo da dominação através da cultura, e sabendo que aconteceu uma desagregação


através da expulsão, o que realmente restou de cultura daquela comunidade do princípio de sua
formação documental em 1923? No entanto, o local de pertencimento, de convivência, de
construção da vida em sociedade e comunidade, que é definido como “sítio” por Hassan Zaoual,
pode não necessitar da unidade territorial.

O sítio é antes de tudo um imaginário social moldado pelas contingências e pela


trajetória da vida comum dos atores considerados. Esquematicamente, ele
contém uma caixa preta que o torna espaço cognitivo de pertencimento. As
crenças e os mitos dão sentido e direção aos aderentes do sítio. O sítio supõe
também cumplicidade e proximidade. Assim sendo, ele é singular, mas também
plural, devido a sua abertura ao meio circundante, então, à mudança (Zaoual,
2006, p. 88).

Analisando o que foi colocado pelo autor, o espaço de se impender, não essencialmente, é
físico. Portanto, é possível pensar que a eliminação das moradias não desagregou o sentimento de
vínculo existente entre o grupo, especialmente no tocante à cultura material e ao saber tradicional.
Haja vista que, até hoje, existe um sentimento forte de transmissão dessa sapiência de pai para
filho e de respeito pela experiência dos mais velhos.

Na esteira das investigações preliminares, a relação de gênero está posta em todos os três
sujeitos que compõem o quadro do local. As pescadoras são minoria, mas estão diariamente na
praia. A presidente da Colônia, até o ano de 2020, foi uma mulher. Pescadora esta que vive da
pesca desde sua juventude, deixou a presidência, mas permanece na Colônia. Como revelou Victor
Ohana, “(...) à primeira vista, o trabalho da pesca é associado aos homens, o que faz dessas
mulheres constantes vítimas de machismo” (Ohana, 2020).

Aliás, o estudo sobre a participação feminina na pesca é alvo de uma pesquisa realizada pela
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e pela Fundação de Apoio à Pesquisa da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O projeto “Mulheres na pesca” visa retratar
1261

o cotidiano das mulheres pesqueiras em sete municípios que compõem as mesorregiões das
baixadas litorâneas e do norte do Estado do Rio de Janeiro, entre os quais: São Francisco de
Itabapoana, Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé, Quissamã, Cabo Frio e Arraial
do Cabo. Para tanto, um mapa completo foi disponibilizado na internet com entrevistas de 180
mulheres, além de levantamentos e de representações cartográficas.553

As vendedoras ambulantes, também, fazem parte da cotidianidade, são mulheres que


comercializam suas artes culinárias, disputando com alguns homens o espaço de venda. Assim
como as pescadoras, as vendedoras enfrentam as opressões da cultura machista? Com relação às
mulheres esportistas, até o presente momento da pesquisa não foi possível verificar se ocupam
aquele espaço específico enquanto trabalhadoras, apenas se sabe que, como alunas, são muitas. Se,
enquanto trabalhadoras também estão presentes, qual é a representatividade dessas trabalhadoras
e de suas trajetórias integrarão à pesquisa.

Contudo, há o registro da participação feminina no futebol. Até 1979, o futebol feminino


era proibido para mulheres. Com a revogação da interdição, surgiram diversos clubes de futebol.
Entre eles, podemos destacar o Esporte Clube Radar refundado em 1981, desta vez com a presença
feminina, já que originalmente fora criado em 1932 nas areias de praia de Copacabana. Segundo
Caroline Soares de Almeida, ao que tudo indica, o futebol entre as mulheres virou uma moda na
praia no final dos anos de 1970. Ao ponto de cada equipe ser formada a partir das diversas ruas
que constituem o bairro, a exemplo de Prado Junior, de Ronald Carvalho/Lido, de Paula Freitas,
de Constante Ramos, de Bairro Peixoto. (Almeida, 2014).

Quais as relações entre os vendedores ambulantes e os pescadores? Quais os


pertencimentos culturais que os conectam? Buscar pelas origens e locais de moradia, bem como
compreender os motivos que levaram esses sujeitos a exercerem esse tipo de atividade. Sabendo que
a taxa de desemprego no país tem aumentado de forma bastante acentuada nos últimos anos, a
pesquisa examinará, também, os aspectos socioeconômicos dos vendedores.

Possivelmente, o aumento do desemprego em níveis galopantes seja um dos fatores que


conduziu, para as areias, os profissionais da educação física que levam seus alunos para praticarem
suas atividades. Ou seja, os esportistas profissionais que transformam as areias e as águas do mar
em espaço para treinarem seus alunos sem o pagamento de um aluguel e, também, sem o
empregador.

Sobre este assunto, ver “Mulheres na pesca”. Disponível em: <https://www.mulheresnapesca.uenf.br> Acessado
553

em: 15 nov. de 2020.


1262

Desse modo, acredita-se que a pesquisa tenha relevância no âmbito da História Social por
trazer a necessidade de contar a história a contrapelo, e buscar aclarar as necessidades, lutas,
resistências e pertencimentos dos grupos estudados. Inserindo-se na linha de pesquisa: História da
cultura, da cultura científica e historiografia.

Hipóteses

1. As areias de Copacabana foram e são, até hoje, espaços de disputas entre aqueles que as
utilizam em vários sentidos, revelando contrastes que acompanham a evolução urbana
do bairro e da cidade;
2. As relações entre pescadores artesanais, vendedores ambulantes e praticantes de esportes
possuem aproximações ditadas pelo que é incomum entre eles: existência e sustento;
3. Essas relações não excluem, entretanto, disputas que modificaram os padrões de
comportamento dos protagonistas, levando a situações limite de convivência;
4. Essas disputas vão além dos protagonistas e são percebidas e usadas pelos donos da praia
que manobram os interesses políticos, como os quiosqueiros. É importante assinalar que
as hipóteses devem se desdobrar no sentido de apresentar as visões dos demais usuários
das areias com relação aos protagonistas selecionados.

Metodologia

No Rio de Janeiro, os trabalhadores vivem, em geral, em condições de muita pobreza


devido à estrutura precária de sua economia e devido à deterioração das condições
ambientais (poluição das águas das baías e dos rios causada pela industrialização e pela
deficiência do de saneamento básica) e à redução das áreas de pesca (embarque-
desembarque), de navegação e as áreas tradicionais de comunidade de pescadores e de
venda de pescado por causa da pressão de ocupação urbana e da modernização espacial
feita pelos grandes empreendedores industriais e pelo crescimento de domicílios
residenciais (Silva, 2015, p. 3).

Mediante a afirmativa da autora, percebe-se que, além de pouco material já publicado, ela
corrobora aquilo que os pescadores narraram em suas entrevistas para pesquisas anteriores no
tocante às suas apreensões. O fio condutor da autora se pauta, justamente, por todos os medos e
constatações dos atores pesquisados.

A atividade dos vendedores ambulantes é exercida no Brasil desde há muito tempo. Há


relatos e estudos que veem esta forma de trabalho ainda no período da escravização da população
negra. Neste caso, não é compreendida como trabalho remunerado do sujeito que a exercia, afinal,
1263

o ganho não era dele, mas de seu dono. Este fato faz com que seja necessária a busca pela
cidadania, mais uma vez sabendo que, neste período, o trabalhador escravizado era o não cidadão.
Não por acaso, segundo Angela de Castro Gomes diz que, “(...) privado da liberdade, da própria
condição humana de racionalidade, o trabalhador -escravo era o não cidadão no sentido pleno: a
ele não era reconhecido nenhum tipo de direito, uma vez que não lhe era atribuída a identidade
social” (Gomes, 2005, p. 45).

Não há elementos comparativos do homem livre com o escravizado, todavia, a atividade


praticada naquele período, até hoje, continua recebendo estigma do senso comum de um trabalho
de menor valor. Portanto, é importante buscar entender as conquistas, as limitações, as culturas e
as histórias desses sujeitos, especialmente, em razão de a licença para exercer a atividade poder ser
revogada a qualquer momento no Rio de Janeiro, conforme se observa na publicação da página
oficial da prefeitura da cidade sobre o comércio ambulante a seguir:

O comércio ambulante, assim entendido como o exercício de atividades


econômicas em área pública (vias de circulação, calçadas, praças, parques,
praias), é autorizado a título precário, o que significa que pode ser revogado a
qualquer tempo, havendo motivo que justifique o ato.554

O transcorrer do tempo, as reformas administrativas, as políticas públicas, as novas formas


de turismo, a venda de Copacabana enquanto local turístico e a “chegada” dos esportistas como
trabalhadores nas areias da praia dividindo aquele espaço com os pescadores e os vendedores
ambulantes têm suas questões, disputas, parcerias e vivências. Como tudo isso se dá será o objeto
dessa pesquisa.

Sendo assim, propõe-se uma pesquisa que trate das questões culturais, mais precisamente,
pautadas na convivência social e cultural entre os sujeitos estudados. Além de buscar resolver
questões que, no mestrado, não foram possíveis, tais como: natureza e espaço territorial, natureza
econômica, dentre outras.

Buscar trabalhar a história ambiental de maneira mais aprofundada, haja vista a


impossibilidade de dissociar o trabalho desses atores do meio ambiente e a necessidade de
preservar esse meio. Sabendo que há uma necessidade premente de preservação ambiental que
deve partir do estado como construtor de políticas públicas que viabilizem a manutenção dos

554"Comércio Ambulante". Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/smf/comercio-ambulante. Acesso em: 10


de outubro de 2020. A esta advertência, a Lei Nº 6272 DE 01/11/2017 regulariza as atividades realizadas pelos
ambulantes na cidade.
1264

trabalhadores, bem como, impeçam a ocorrência de uma catástrofe ambiental. Buscar-se-á pela
existência ou não de políticas públicas que tenham, como direcionamento, o espaço ambiental do
mar, ou seja, a história marítima e ambiental enquanto norte de investimento. Segundo Lise Sedrez,
“(...) longe, portanto, de serem simples desdobramento de funções do Estado, as políticas públicas
para desastres refletem tensões sociais específicas, de sociedades específicas, que ocupam um
espaço específico – em momentos específicos” (Sedrez, 2013).

Para a análise documental da Colônia (atas de assembleias, registros de pescadores,


estatuto interno e termo de posse), será feito uso teórico de autores como Edward P. Thompson
(1987) que revelou aspectos da vida dos trabalhadores ingleses até então ignorados. O
historiador britânico, a partir das notícias das vendas das esposas publicadas em jornais, expôs a
crueldade de um sistema que, ao negar o direito do trabalhador de se divorciar, obrigava-o a
encontrar uma solução fora dos padrões comportamentais das elites (Thompson, 2001). Por sua
vez, Jesús Martín–Barbero (1997) mostra a diferença entre trabalhar a história da cultura e a
história cultural. Carlo Ginzburg (1987) examinou a importância da classe operária através do
estudo sobre um moleiro; enquanto Walter Benjamin (1989) ressaltou a necessidade urgente de
buscar a exposição da história da classe trabalhadora, de modo a dar visibilidade a esses sujeitos,
ou seja, contar a história a contrapelo.

Para concluir, novas entrevistas com outros pescadores artesanais serão realizadas, bem
como pretendo realizar entrevistas com trabalhadores ambulantes e praticantes de esportes que
frequentam o Posto 6 da praia de Copacabana, nas proximidades da Colônia de Pescadores. A
metodologia empregada seguirá a historiografia já consagrada sobre o tema, em especial a de
Verena Alberti (2004), de Maurice Halbwachs (1990) e de Ecléa Bosi (1983). Além disso, o
levantamento de filmes e documentários existentes poderão contribuir à pesquisa, trazendo
algumas questões relacionadas à historiografia. Neste sentido, os estudos seminais de Ismail Xavier
(2014), de Walter Benjamin (2014) e de André Bazin (2018) possibilitam compreender como a
filmografia pode contribuir para o desenvolvimento da pesquisa555. Para o uso das fotografias,
Alessandra Di Giorgi Chélest (2017) junto com Peter Burke (2017) e outros darão base para
trabalhar esse tipo de fonte. Com intuito de entender as relações, bem como a longevidade desses
sujeitos no bairro, também serão utilizadas reportagens do jornal A Tribuna do Rio de Janeiro que,
desde o século XIX, já fazia reportagens sobre a presença dos pescadores nas areias de
Copacabana. Além disso, o periódico Correio da Manhã publicou relevantes reportagens sobre os

A esse respeito vale a pena destacar o documentário produzido pela Colônia Z-13 disponibilizado no canal do
555

Youtube em: <https://www.youtube.com/watch?v=8MepEWDw1PU>. Outro documentário digno de nota é o “Ao


som do mar”, produzido por Pedro Amorim, sobre a história do futebol de praia de Copacabana.
1265

vendedores ambulantes no período compreendido entre as décadas de 1940 e 1980, por sua vez,
já levantadas previamente para elaboração desse plano de pesquisa. As historiadoras Laura Antunes
Maciel (2014), bem como Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto (2007)
comporão parte dos referenciais teórico-metodológicos para a utilização desse último tipo de
fonte. E, finalmente para análise das revistas ilustradas, Ana Luiza Martins será uma das referências
para análise desse material. Segundo ela, as revistas ilustradas são fontes preferenciais.

(...) para pesquisar de teor vário, a revista é gênero impresso valorizado,


sobretudo (por documentar) o passado através do registro múltiplo: do textual
ao iconográfico, do extratextual - reclame ou propaganda - à segmentação, do
perfil de seus proprietários àqueles de seus consumidores (Martins, 2000, p. 21).

Acredita-se que a pluralidade de fontes trará um enriquecimento na composição da


pesquisa, uma vez que há escassa produção historiográfica a respeito da presença desses sujeitos em
Copacabana. Além da heterogeneidade do bairro e, também, da complexidade que envolve a
existência e a resistência desses sujeitos naquela localidade.

O recorte adotado nesta pesquisa contempla o período de 1940 e de 1980, em especial o


período do Estado Novo do Governo de Getúlio Vargas; e a década de 1980, período marcado pela
abertura política da história recente do nosso país, que se consolida com a promulgação da
Constituição Federal de 1988. A primeira data corresponde à criação do estatuto para as colônias
pelo governo. Além disso, a Zona Sul se consolida como polo de atração de moradores e de
visitantes de outros lugares em direção à praia.

Nesta época, o acesso à Copacabana foi facilitado pela duplicação do Túnel Novo e pela
implantação de linhas de ônibus, aumentando exponencialmente a população que visitava a praia.
Décadas se passaram, e, Copacabana se consolidou nacional e mundialmente como um referencial
cosmopolita e moderno, não só para a cidade do Rio de Janeiro, como para o país, atraindo
moradores de outras localidades, além de turistas nacionais e estrangeiros; o que contribuiu para
ampliação da atuação dos ambulantes na praia ao longo do ano, especialmente nas datas festivas
como Ano Novo e nas férias de verão.

As areias de Copacabana, portanto, tornaram-se um espaço singular de sociabilidades e,


posteriormente, um espaço de megaeventos organizados na sua faixa de litoral. A este exemplo,
pode-se ressaltar a tradicional festa de Réveillon, que pouco a pouco, ganhou outra dimensão,
sendo explorada comercial e economicamente pelas empresas de turismo e pelas redes de hotéis,
tornando-se um negócio bem-sucedido e lucrativo; contribuindo para ampliar as atividades de
lazer até então existentes, atraindo trabalhadores, frequentadores e esportistas. Em 1943, o
1266

jornalista e escritor Joel Silveira enaltecia, no periódico O Cruzeiro, o potencial da praia de


Copacabana, ressaltando que tudo ali ao redor existia “em função da praia”. Ao que parece, pode-
se supor, ainda se mantém, como se observa na passagem a seguir:

A verdade é que tudo ali existe em função da praia. Foi a praia que valorizou o
chão, foi a praia que ergueu os arranha-céus. A praia criou aquela mocinha
queimada e de óculos escuros, que fala uma linguagem que você, da Tijuca ou
de Madureira, não compreenderá. Bars, cassinos, homens de terras distantes,
americanos alegres e austríacos enterrados na sua melancolia, casas de
antiguidades, atletas e cocktails – tudo isso é fruto da praia. Prestem bem
atenção a essa coisa importante: a Tijuca também é lugar onde se mora e se vive,
mas lá o chão não está espetado de arranha-céus e penso que a bebida que ainda
hoje predomina, nas suas casas e nos seus bares, é o bom e amigo leite
doméstico (Silvieira, 1943, p. 18).

Nesse sentido, pretende-se trabalhar a história de Copacabana no entrelaçamento das


vivências e disputas destes três atores. Todavia, para compreender o momento em que existe uma
construção da ideia de cidadania e, também, a aproximação maior dos sujeitos, será preciso um
retorno às décadas de 19400 a 1980 para compreender essas disputas. Partindo da ideia de
trabalhismo para chegar à atualidade e buscar saber como as políticas influenciaram na
cotidianidade e, por conseguinte, na vida desses trabalhadores.

Seguindo o pensamento de que a classe trabalhadora, muitas vezes, é esquecida por quem
conta a história, por quem cria as reformas, busca-se aqui o olhar dos sujeitos em seus espaços de
trabalho e sociais, suas vivências e construções de relações de trabalho, de cultura, de religião, de
disputa, de medos, incerteza, e persistência e de manutenção de seus saberes sejam eles tradicionais
ou não.

Nas correlações diárias, os três atores têm como principal elo a praia, espaço que se tornou
muito mais do que um lugar de trabalho, é o lugar das relações sociais, das interações, das
cotidianidades, bem como das representações. É na praia que suas vidas se cruzam, no entanto é
também nela que se separam em disputas. É nesse espaço de areia onde a vida social acontece, em
que vendedores ambulantes, esportistas e pescadores insistem e resistem, travando diariamente suas
lutas.

Desse modo, considera-se que o projeto de pesquisa ora apresentado se insere com
propriedade na linha de pesquisa História da cultura, da cultura científica e historiografia; no eixo
temático: Relações étnicas, raciais e de gênero. Acredita-se que o Programa de Pós- graduação em
História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro será uma oportunidade inigualável de
adentrar nos estudos urbanos, na construção de uma micro-história dos sujeitos estudados nesta
1267

pesquisa, dentre outras razões, por utilizar a História Oral como um dos métodos de pesquisa.
Além disso, acredita-se que o contato com o corpo docente do Programa trará significativa
contribuição à pesquisa e à trajetória acadêmica.

O conjunto documental para sustentar esse plano de pesquisa corresponde a um rol de


fontes primárias levantadas nos acervos da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, como
jornais e periódicos ilustrados, além de leis, posturas municipais e decretos publicados pelas esferas
governamentais. Além disso, há documentários e a coleção de documentos do acervo da Colônia
Z-13.

No rol das fontes levantadas na base da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,


selecionaram-se jornais de grande circulação como Correio da Manhã, A Tribuna do Rio de Janeiro,
Jornal dos Sports e Jornal do Brasil. Além disso, revistas ilustradas como O Cruzeiro, Fon-Fon, Revista da
Semana, bem como Posto 6: Copacabana podem trazer informações relevantes sobre os hábitos e os
costumes da sociedade carioca entre 1940 e a década de 1980. Colunas, matérias e fotografias
publicadas podem elucidar as transformações dos comportamentos de uma sociedade que
pretendia se enquadrar em um modelo de comportamento e de interação entre os frequentadores
das praias, dando origem a uma “cultura da praia”.

Desse modo, novas relações de sociabilidades se apresentavam, assim como um novo


vestuário adequado e uma nova forma de lazer através do surgimento de práticas esportistas, que
se tornavam “febre” nas areias da praia de Copacabana. A praia se tornava um ponto de encontro
entre amigos e um local de lazer da família. De um lugar praticamente inóspito no início do século
XX, as praias se tornaram locais de um amplo divertimento, considerado por muitos como um
ambiente democrático. Os esportes ao ar livre como natação, futebol, vôlei, futevôlei, remo e o
frescobol passaram, também, a ditar moda, pois se faziam necessárias roupas mais confortáveis que
garantissem a liberdade de movimento.

Assim, os trajes dos banhistas passaram a ser menores, justos e adequados aos corpos.
Pode-se constatar que, no período de 1940 a 1980, a prática desportiva se inseriu definitivamente
nas areias da praia de Copacabana. Com o aumento da frequência dos banhistas, novos serviços e
novos atores surgiram, como os trabalhadores ambulantes, que passaram a vender diversos
produtos para o consumo imediato daquele indivíduo, que permanecia o dia na praia, a exemplo
dos vendedores do clássico biscoito “O Globo” e do “Matte Leão”, que se tornaram um ícone das
praias. É nesse sentido que o levantamento de leis, decretos e posturas municipais podem trazer à
tona a regulamentação de tais serviços, assim como as disputas pelo espaço. Além disso, pode-se
1268

compreender a relação entre tais atores e a Colônia de Pescadores do Posto 6, que também vende
seu produto principal, o pescado.

Salientando que as fontes levantadas até o momento serão ampliadas durante o andamento
do doutorado, ainda não foi possível pesquisar no Arquivo nacional e nos arquivos da Marinha.
Além disso, serão consultados os arquivos da MUCA – Movimento Unido dos Camelôs, uma
organização de trabalhadores ambulantes fundada em 2003. Esta organização traz, em sua página
da internet, a descrição de que “representa de forma independente e autônoma o interesse dos
ambulantes em toda a cidade”556. Serão feitas, também, entrevistas com todos os atores envolvidos,
na busca por compreender e trabalhar suas histórias, memórias, lutas, disputas e vivências da
atualidade.

Fontes e Bibliografia:

Fontes Levantadas:

Acervo particular da Colônia Z-13

Atas da Assembleia geral extraordinária realizada na sede da Colônia Z- 13 em 26 ̸ 092016.


Estatuto para a Colônia de pescadores Z-13, Copacabana, Rio de Janeiro, 16 ̸ 10 ̸ 2006
Coleção de fotografias
Regimento da Colônia de Pescadores (2008)
Livro de registro dos pescadores (1936)

Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Jornal A Tribuna do Rio de Janeiro


Correio da Manhã
Jornal do Brasil
Jornal dos Sports
Posto 6: O Jornal de Copacabana
O Cruzeiro (1928-1985)
Revista do Esporte
Revista da Semana (1900-1959)
Revista Fon-Fon (1907-1958)

Leis e Decretos

556
Texto da apresentação da organização, disponível em: <http://movimentounidoscamelos.wordpress.com>.
Acessado em: 19 out. de 2020.
1269

Constituição Federal de 1988, Artigos 215 e 216 - Título VIII - Da Ordem Social - Capítulo III -
Da Educação, da Cultura e do Desporto - Seção II - Da Cultura.
Boletim da Prefeitura do Distrito Federal (1910-1949)
Diário Oficial da Prefeitura do Distrito Federal (1950-1960)
Diário Oficial do Estado da Guanabara (1960-1975)
Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro (1975-2000)
Lei nº 1876, de 29 de junho de 1992 – Regulamenta a atividade dos vendedores ambulantes no
Rio de Janeiro.
Decreto nº 20.225 De 13 De Julho De 2001. Cria o Regulamento 26 da Consolidação das
Posturas Municipais, aprovado pelo Decreto Nº 1.601/78, dispõe sobre os usos e atividades na
orla marítima do município e dá outras providências.

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Osório Thaumaturgo César: pioneiro da Arte-terapia em São


Paulo e no Brasil

Mara Cristina Gonçalves da Silva

Resumo - O texto propõe apresentar a biografia de Osório Thaumaturgo César o pioneiro da arte-
terapia em São Paulo e no Brasil. No desenvolvimento do texto destacamos sua atuação política
como militante do Partido Comunista Brasileiro e também militante da Oposição de Esquerda
Internacional, foi ativista político do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo e do Clube dos
Artistas e Amigos da Arte. Também procuramos destacar sua atuação como médico psiquiatra no
Hospital de Alienados do Juquery, onde conduziu a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery,
local onde aprimora a metodologia de deixar os pacientes escolherem livremente o tema e as
técnicas para se expressarem; o material produzido pelos pacientes como desenhos, pinturas,
esculturas eram guardados organizadamente para o estudo de suas patologias; e também houve o
ensino de técnicas artísticas para o aprimoramento dos pacientes, transformando-os em pacientes-
artistas proporcionando aos mesmos uma existência com dignidade. Esse notório trabalho que
realizou no Hospital Juquery, sendo o pioneiro em São Paulo e no Brasil do uso da arte como
metodologia para o estudo das características do sofrimento mental de inúmeros pacientes do
Hospital Juquery, essa metodologia também foi instrumento para uma análise cientifica das
expressões dos elementos que povoavam as mentes desses pacientes e uma contribuição para
aqueles pacientes que conquistaram alta hospitalar, o aprendizado de várias técnicas artísticas,
devolvendo a essas pessoas a dignidade de procurar se reinserir na sociedade através do trabalho
artístico aprendido na Escola Livre de Artes Plásticas; a coordenação de todas essas ações que
trataram essas pessoas com dignidade, sem violência e uma profunda elevação da autoestima dos
pacientes quando passa a serem tratados como pacientes-artistas, comprovando uma de suas
reflexões que o “doente mental não era um inútil” é mérito do Dr. Osório César.

Palavras-chaves: Osório César, arte-terapia, comunismo e arte.

Introdução

A pesquisa sobre Osório Thaumaturgo César se desenvolveu devido ao Projeto: “Franco


da Rocha – História e Imagens” de 2013 foi um projeto desenvolvido como atividade
extraordinária fora do horário das aulas regulares do Ensino Médio da Etec (Escola Técnica) Dr.
Emílio Hernandez Aguilar de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo.

Esse projeto está completado e as pesquisas organizadas para irmos em busca de patrocínio
para tornar-se um livro.

Esse artigo foi fruto de um intenso conflito dentro do projeto, no ano de 2013 os estudantes
participaram das Jornadas de Junho pelos R$0,20 e retornaram em agosto dispostos a arrancar a
formação do Grêmio Estudantil das restrições da gestão escolar.
1276

Isso gerou intensos atritos que reverberaram nas pesquisas e sobre a pesquisa eferente ao
Dr. Osório César precisou ser refeita, e a turma de 2013 se formou em 2015, restou a mim,
professora responsável pelo projeto realizar a parte sobre a sua biografia, que na época era bem
difícil, quase não havia fontes, os estudantes de outras turmas: 2016 e 2017 colaboraram com outras
pesquisas: a leitura de algumas obras do Dr. Osório César, que não estão aqui neste texto, o
conjunto destes estudos ultrapassam cinquenta páginas.

Osório Thaumaturgo César

Osório Thaumaturgo César (Paraíba, 17 de novembro de 1895 – Franco da Rocha, 3 de


dezembro de 1979, de insuficiência renal aguda e crônica e também uma hipertensão) foi um
renomado anatomopatologista, (especialista na avaliação macro e microscópica de tecidos e células
de um paciente), psiquiatra e intelectual brasileiro.

Sua família era de músicos na Paraíba; viveu em São Paulo a partir de 1912 como musicista
e professor de violino até 1916. Nesse período também tocou violino para o senador e mecenas
paulista José de Freitas Valle na sua residência a Villa Kirial.

Sua primeira formação universitária foi em odontologia na Universidade Livre de São


Paulo, em São Paulo, seguidamente, graduou-se em medicina na Faculdade da Praia Vermelha, no
Rio de Janeiro, onde se especializou em psiquiatria. E em seguida, viajou para a Europa onde
trabalhou no Hospital da Salpêtrière com discípulos de Carl Gustav Jung, fundador da psicologia
analítica.

Em 1923 começou a trabalhar no Complexo Hospitalar do Juquery e desenvolve a Escola


Livre de Artes Plásticas do Juquery formalizada em 1949.

De 1923 a 1929 estudou a produção artística dos pacientes que culminou com a obra “A
expressão artística dos alienados: contribuição para o estudo dos símbolos na arte”, 1929; segundo
Mendes (2018, p. 60)

Definiu a arte do primitivo influenciado pelos predicados da psique do homem


paleolítico como base comparativa; para a arte primitiva sobressaiu as
características do pensamento totêmico. Para a arte clássica, o debate foi
moderado em torno das convenções sobre as produções plásticas, o qual
preconizava o fazer artístico seguindo os modelos da representação. A arte de
vanguarda estava relacionada à etapa de desenvolvimento anímico no qual o
individuo estava liberto da censura dos fenômenos mentais determinados pela
educação e convenções sociais, possibilitando acessar desse modo as tramas
inconscientes.
1277

Em 1931 viajou para a Europa por aproximadamente por um ano e esteve na Alemanha,
na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e na França. "As especializações médicas de
Osório César em instituições europeias foi outra justificativa para a viagem. Na Rússia, ele observou
hospitais, escolas e centros de pesquisa conforme relatou no seu livro Onde o proletário dirige",
de 1932.

Ainda segundo Carvalho (2016), "Onde o proletário dirige",

(...), Osório fez uma descrição geopolítica e cultural da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas e abordou o projeto pensado para a educação, saúde e
cultura das massas. Nos três primeiros capítulos do livro ele descreveu as
propostas educacionais elaboradas para a criação da nação socialista. A
priorização na construção de creches, escolas fundamentais e faculdades –
inclusive para diminuir o número de analfabetos adultos – foi recebida com
admiração por Osório Cesar. O mesmo sentimento foi demonstrado com relação
as propostas para a saúde física e mental da população. (Carvalho, 2016, p. 48).

Segundo vários autores foi participante do Partido Comunista do Brasil, no entanto, sua
atuação política viveu intercâmbios com intelectuais de esquerda e acompanhou os debates e as
divergências do movimento comunista internacional desta época, em particular, o conflito entre a
direção de Stalin para a antiga URSS e consequentemente para a III Internacional Comunista
(partido internacional da classe operaria fundada em 1919 por Vladimir Lenin para reunir os
partidos comunistas do mundo todo) e a Oposição de Esquerda Internacional (reuniu os opositores
a política de Josef Stálin a partir de 1923). dirigida por Leon Trotsky opositor da pratica stalinista
do "socialismo num só país" (só na ex-URSS e não lutar para espalhar a revolução socialista pelo
mundo). Esses simpatizantes "não ficavam simplesmente assistindo à luta encetada por amigos,
mas que participavam ativamente dessa luta, criando subgrupos". (Campos, 2016, p. 130).

Segundo Mendes (2018), “em 1932, os registros do DEOPS revelam a primeira detenção
de Osório Cesar. Recolhido por cerca de 50 dias, sob a alegação de campanha comunista a favor
do governo soviético”, (p. 82). Após a prisão retoma as atividades de agitação, propaganda e
organização comunista. Ainda segundo Mendes (2018, p. 83),

Essas prisões, desencadearam os movimentos de aproximações e afastamentos


entre os agentes comunistas da seção brasileira. Os embates sobre as novas
direções políticas se fortaleceram, suscitaram as dissidências e rupturas dentro da
organização. Os “camaradas” passaram a se dividir: de um lado permaneceram
os marxistas-leninistas e de outro organizaram-se os trotskistas ou bolchevistas-
leninistas. Estes últimos, integravam também a Liga Comunista Internacionalista
(LCI), órgão vinculado à Oposição Internacional de Esquerda (OIE), composta
por Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Aristides Lobo, Plínio Gomes de Melo, João
Mateus, Benjamin Péret, Victor Azevedo Pinheiro, João da Costa Pimenta,
1278

Fúlvio Abramo, Raquel de Queiroz, Dalla Déa, entre outros. Declaravam-se a


fração à esquerda do PCB.

Também Campos (1998), demonstra como as relações são permeáveis pela intensa
dinâmica da luta política no cenário nacional e internacional

Os intercâmbios comuns entre intelectuais de esquerda acabavam por criar


simpatizantes da liga, como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Osório
César, Tarsila do Amaral, Patrícia Galvão. Simpatizantes, em geral, que se
moviam nas fronteiras do Partido, adernando para a liga nos momentos em que
ocorriam expulsões — próprias ou de companheiros. Simpatizantes que não
ficavam simplesmente assistindo à luta encetada por amigos, mas que
participavam ativamente dessa luta, organizando subgrupos. (p. 134).

Osório Cesar foi preso diversas vezes por expressar sua orientação política e ideológica,
como em onze de abril até vinte e sete de abril de 1933 no presídio Paraíso incomunicável; e
também de 28/11/1935 a 27/07/1937.

Exerceu considerável influência na arte produzida por sua companheira temporária, Tarsila
do Amaral, com quadros relatando imagens com temática social.

Segundo Mendes (2018), em 1933, Osório Cesar e Flavio Resende de Carvalho organizaram
a

Semana dos Loucos e das Crianças": exposições com desenhos de crianças de


escolas públicas e particulares de São Paulo e produções dos internos do Juquery
no Clube dos Artistas Modernos (CAM). Essa exposição é considerada por
historiadores uma afronta as convenções sobre estética, defendidas pela Escola
Nacional de Belas Artes e também um dos marcos das discussões acerca das
estéticas e rupturas da história da arte no Brasil, depois da Semana de 22. (Olearia
de ideias, 2018).

Ainda em 1933 o médico Osório Cesar presidiu o Comitê Brasileiro Antiguerreiro, (comitê
de luta contra o integralismo, o fascismo e a guerra), segundo relatório no prontuário do mesmo
no Deops (Nº 1936, do Arquivo Público do Estado de São Paulo) foi segundo secretário do mesmo
comitê.
1279

Figura 1 - - Retirada do prontuário do Osório T. César no Arquivo Público do Estado de São


Paulo. Fotografia de Raul Boldrin Martins, 2016

Em 1935 enfrentou a sua mais severa prisão que chegou a pôr em risco sua saúde e vida,
após ter participado do XV Congresso Internacional de Fisiologia ficando preso até 27/06/1937.
Nessa época já existia no Brasil um grupo atuante de comunistas aliados a Oposição de Esquerda
Internacional que no interior da III Internacional Comunista combatiam as orientações políticas
de Stalin tanto para a antiga URSS como para a própria III Internacional Comunista, assim como
as divergências com o Partido Comunista do Brasil.

Antes de ser preso em 1935, Osório César participou do XV Congresso Internacional de


Fisiologia em Leningrado, na ex-URSS sob a direção de Pavlov no projeto do livro estamos
transcrevendo um manuscrito do Dr. Osório César que ministrou para médicos do Rio de Janeiro
em que apresentou os avanços realizados pelo Instituto de Pesquisa de Moscou sobre a barreira
hematoencefálica.

A prisão de Osório César em 1935 pode ser inscrita na sua atividade militante num período
de atuação próxima a Liga Comunista Internacionalista – LCI, (partido político fundado em São
Paulo em 1934 por militantes comunistas contrários à política do Partido Comunista Brasileiro –
PCB); provavelmente em função de uma visão crítica à política do PCB em favor das frentes
populares (com representação da burguesia), no lugar da frente única (com representação das
diferentes organizações da classe operária); o preço foi a traição dos dirigentes do PCB que segundo
Campos (2008),
1280

de acordo com os oposicionistas, o PCB (Partido Comunista Brasileiro),


denunciou à polícia, em manifesto da Federação Sindical Regional, vários
camaradas da Oposição de Esquerda, sob a alegação de um ‘dever de apontar ao
proletariado os trotskistas contrarrevolucionários’. A polícia, porém, que não via
distinção entre um membro do partido e um aderente da Oposição de Esquerda,
serviu-se da delação dos stalinistas (denominação dos militantes fieis a direção do
PCB e da III Internacional) para prender também os “contrarrevolucionários’
cujos nomes lhe foram fornecidos. (p. 24).

Sua intensa atividade militante nesse período pode ser compreendida como sendo o seu
compromisso para a expansão da revolução socialista internacional para a superação das
contradições do capitalismo e a superação dos graves erros da ex - U. R. S. S, sob a direção de
Stálin.

Afinal segundo Campos (2008),

(...): a Oposição de Esquerda era quem representava de fato as tradições


revolucionarias do partido, sustentando teoricamente as suas ideias e defendendo
praticamente os seus métodos de luta; os burocratas dirigentes eram incapazes
de discutir, de sustentar numa discussão livre as suas ideias; (...).
O grupo ‘Fernando-Alves’ não resistiu à repressão de 1935. Victor Pinheiro
(‘Alves’) foi recolhido ao Presídio Paraíso em 25/11/1935, na companhia de João
Matheus. Poucos dias antes do movimento de 35, eles organizaram um reunido
do grupo ‘Fernando (Aristides Lobo) - Alves’, com a presença de vários
companheiros, conforme ata que foi encontrada pela polícia em poder de João
Matheus. Essa ata anota a presença de Osório César, detido um pouco antes do
movimento de novembro entre os oposicionistas A polícia nota que os
prisioneiros mantinham constantes ligações com Aristides Lobo e, nos dias que
antecederam a Intentona, as mesmas tinham sido intensificadas ‘no sentido de
unirem-se as massas’, como fala um relatório policial. (p. 26).

A Intentona Comunista foi um levante organizado pelo PCB com apoio da ANL – Aliança
Nacional Libertadora a formação que a Frente Popular (coligação entre partidos como os socialistas
e os comunistas com os burgueses liberais e democratas radicais); assumiu no Brasil;

(...) a ANL defendia propostas nacionalistas e tinha como uma de suas bandeiras
a luta pela reforma agrária. Embora liderada pelos comunistas, conseguiu
congregar os mais diversos setores da sociedade e rapidamente tornou-se um
movimento de massas. Muitos militares, católicos, socialistas e liberais,
desiludidos com o rumo do processo político iniciado em 1930, quando Getúlio
Vargas, pela força das armas, assumiu a presidência da República, aderiram ao
movimento.
Com sedes espalhadas em diversas cidades do país e contando com a adesão de
milhares de simpatizantes, em julho de 1935, apenas alguns meses após sua
criação, a ANL foi posta na ilegalidade. Ainda que a dificuldade para mobilizar
adeptos tenha aumentado, mesmo na ilegalidade a ANL continuou realizando
comícios e divulgando boletins contra o governo. Em agosto, a organização
intensificou os preparativos para um movimento armado com o objetivo de
derrubar Vargas do poder e instalar um governo popular chefiado por Luís
Carlos Prestes. Iniciado com levantes militares em várias regiões, o movimento
1281

deveria contar com o apoio do operariado, que desencadearia greves em todo o


território nacional.
O primeiro levante militar foi deflagrado no dia 23 de novembro de 1935, na
cidade de Natal. No dia seguinte, outra sublevação militar ocorreu em Recife.
No dia 27, a revolta eclodiu no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Sem
contar com a adesão do operariado, e restrita às três cidades, a rebelião foi rápida
e violentamente debelada. A partir daí, uma forte repressão se abateu não só
contra os comunistas, mas contra todos os opositores do governo. Milhares de
pessoas foram presas em todo o país, inclusive deputados, senadores e até
mesmo o prefeito do Distrito Federal, Pedro Ernesto Batista.
A despeito de seu fracasso, a chamada revolta comunista forneceu forte pretexto
para o fechamento do regime. Depois de novembro de 1935, o Congresso
passou a aprovar uma série de medidas que cerceavam seu próprio poder,
enquanto o Executivo ganhava poderes de repressão praticamente ilimitados.
Esse processo culminou com o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937,
que fechou o Congresso, cancelou eleições e manteve Vargas no poder.
Instituiu-se assim uma ditadura no país, o chamado Estado Novo, que se
estendeu até 1945. Pandolfi, D. C.
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/RevoltaComunista

Segundo Karepovs (2003), o programa de governo defendido pela Aliança Nacional


Libertadora ao mesmo tempo em que proclamava a necessidade de tal governo surgir do povo
armado e de caráter anti-imperialista e antifascista, o programa preserva a propriedade privada dos
meios de produção.

Dedicando-se à preparação militar do golpe e deixando de lado o trabalho de


organização e construção de um apoio de massas, o PCB, influenciado pelos
‘informes-baluartes”, como eram chamadas as informações exageradas e
distorcidas, suscitou as fracassadas tentativas insurrecionais acontecidas em
Natal, Recife e Rio de Janeiro, de 23 a 27 de novembro de 1935. O
desencadeamento do putsch evidenciou-se como iniciativa do próprio PCB, à
qual a Internacional Comunista (a III Internacional) apôs seu aval. (Karepovs,
2003, p. 53).

A Lei de Segurança Nacional de 1935 foi a principal ferramenta legal de uma grande
repressão política contra todos os opositores ao governo de Getúlio Vargas, essa lei definia crimes
contra a ordem social e política e suspendia direitos constitucionais, sua aplicação foi reforçada
com a instituição de um tribunal de segurança civil e militar – Tribunal de Segurança Nacional, que
julgava processos contra os considerados comunistas e opositores a Vargas.

Após sua liberdade em 1937 Osório César se dedica a obra “Misticismo e loucura:
contribuição para o estudo das loucuras religiosas no Brasil”, lançada em 1939 e segundo Mendes
(2018) uma diminuição de suas atividades militantes por influencia de Tarsila Amaral, apesar de o
documento ser um relatório da Delegacia de Ordem Social de São Paulo com a data de vinte e três
de março de 1936 o reservado Guarani relata uma carta apreendida de Tarsila Amaral:
1282

[...] nos revela que essa artista não compartilhava mais dos ideais do Dr. Osório
Cesar, aconselhando-o a “pensar mais na ciência e na carreira, do que nas
questões sociais”;
“diz ainda:- “não tens, como eu, reivindicações a fazer, que te adiantará todo o
sacrifício que já tens feito para um dia ser chamado de traidor” (Prontuário
Osório Cesar).
O agente acrescenta outro trecho em que afirma que, Tarsila do Amaral
“reconhece a carta de sua autoria” e ainda assevera ter aconselhado Cesar a
dedicar-se mais aos estudos das ciências médicas do que às sociais, sobretudo o
marxismo e que “não ignora que o Dr. Osório Cesar é um entusiasta do
marxismo e sabe que a família deste é contra as ideias por ele adoptadas”
(Prontuário Osório Cesar). (p. 94).

Qual o significado do termo traidor que Tarsila Amaral cita? Os partidos comunistas
classificam “de traição toda reafirmação do conceito de luta de classes quando a política lhe
apresenta a necessidade de uma definição em face de uma situação política concreta”. (Abramo,
1987, p. 38), ou seja, traidor é todo militante que não obedece às orientações de políticas de
colaboração com setores da burguesia democrática vindas da direção nacional do Partido
Comunista ou da III Internacional que nessa época já era dirigida pela política stalinista de todo
partido comunista no mundo deveria fazer a defesa total da ex – URSS através das frentes
populares.

Um comunista como Osório César não teme o insulto de “traidor”, foi um militante
convicto; no mesmo relatório já citado de 1936, temos a transcrição de uma carta de

Osório César ao Profº Antônio Austregesillo: - O papel dos intelectuais


revolucionários, dos professores conscientes dos verdadeiros trabalhadores da
ciência é o de orientar a mocidade vacilante, corrompida pela política imperialista,
patrioteira, no caminho da verdade, do materialismo histórico, analisando os
erros do passado para lutarem pela revolução social ao lado dos nossos irmãos
trabalhadores; - E, mais adiante: - Por minha parte, já me defini: estou ao lado do
proletariado. Desde 1931 que passei para as fileiras dos oprimidos e luto ao seu
lado com verdadeira consciência revolucionária. (Relatório Deops, ps. 8 e 9).

Um militante tão cônscio de suas escolhas não para sua atuação política apenas por um
conselho de sua ex - companheira ou até mesmo por uma saúde mais fragilizada depois da dura
prisão de 1935 a 1937. Consideramos que outros elementos, próprios do campo da política em que
os militantes comunistas estiveram envoltos desde o início da segunda guerra mundial até a queda
do Muro de Berlim em 1989, podem nos auxiliar a compreender melhor como esse agitador e
organizador comunista vai parando suas atividades políticas organizadas em partido político. Neste
momento procuraremos explicar os principais itens deste debate, em particular, na década de 1940.

Em 1938 a IV Internacional foi fundada próxima do inicio da 2ª Guerra Mundial e quase


dois anos depois o principal dirigente político da IV Internacional Leon Trotsky foi assassinado no
1283

México onde morava. Um pouco antes e durante a 2ª Guerra Mundial, inúmeros militantes foram
mortos ou nos processos de Moscou, ou nos combates da própria guerra e também pela Gestapo
(polícia política do nazismo). Como consequência da guerra a seção mais organizada vai ser a seção
norte-americana Socialist Workers Party (SWP).

O destino dos trotskistas ao longo deste período de intensos conflitos que se


seguiu ao fim da Segunda Guerra foi dramático, uma vez que o movimento
permaneceu incapaz de romper seu isolamento e se popularizar como referencia
política. Ao contrário, os trotskistas passaram por um crescente processo de
fragmentação, em grande parte influenciado pelas agudas polêmicas internas.
(Monteiro, 2016, p. 194).

As polêmicas começam segundo Monteiro com o SWP formando uma direção


internacional aliada a sua posição que no fim da segunda guerra haveria uma grande crise econômica
internacional, os setores que não compartilhavam com essa posição foram alijados e os estatutos
deixados por Leon Trotsky alterados para instituir o “centralismo de organismo (a exigência que
os membros dos organismos dirigentes se comportassem de forma unitária perante o restante da
organização)” (2016, p. 193); uma pratica política em desacordo com o centralismo democrático
desenvolvido pelos bolcheviques através de Lenin onde deve haver a maior liberdade na discussão
e a maior unidade na ação.

Ainda segundo Monteiro os temas relacionados a expansão soviética no Leste Europeu, a


ruptura Tito – Stálin, e a Guerra da Coreia vão ampliar as divergências até a década de 1960. Todos
os processos revolucionários de 1949 na China em diante até a Revolução Sandinista de 1979 na
Nicarágua tiveram lugar em países periféricos do capitalismo com a preponderância de uma massa
rural muito ampla e heterogênea (assalariados, pequenos proprietários, produtores arrendatários,
camponeses); com uma classe operária pequena e liderada ou por Partidos Comunistas ou partidos
democráticos burgueses; com forte caráter nacionalista.

A direção internacional passou a identificar esses processos como um caminho mais rápido
para o socialismo mesmo “diante de várias outras situações explosivas que ocorreram no mesmo
período e da ausência de democracia proletária e de orientação internacionalista dos regimes
criados." (Monteiro, 2016, p. 207).

A não observância destas características dos processos nacionalistas que ocorreram após a
segunda guerra mundial permitiu o desenvolvimento de uma interpretação de que

sujeitos ‘imperfeitos’ que ascendem ao poder via mobilização de massas,


formando ‘Governos Operários e Camponeses’, serem ‘empurrados’ a criar
Estados operários. Ante o que os trotskistas ficariam reduzidos a um papel
secundário, não mais almejando o objetivo central da Quarta Internacional
1284

quando de sua fundação – o de ser a solução para a ‘crise de direção’ do


proletariado. (Monteiro, 2016, p. 208).

Esse tipo de atuação política para empurrar direções democráticas burguesas ou


burocráticas operarias não condiz com as características pessoais e políticas do Dr. Osório César,
um agitador e organizador da classe trabalhadora, além-claro, do tempo infindável, do desgaste e a
consequente paralisia desses debates sem orientações profícuas para a atuação junto a classe
operária, provavelmente, afastando o Dr. Osório César de participar de um quadro organizado com
essas pautas.

Nas décadas de 1940 e 1950 o Dr. Osório César dedicou-se a escrever artigos jornalísticos
com assuntos relacionados à arte e à cultura brasileira e estrangeiras, além de economia e política.
E também uma atuação política sem vínculo partidário, pois não retornou ao PCB e nem participa
dos grupos surgidos da crise da IV ª Internacional que existiram na década de 1950 na Universidade
de São Paulo, que muito provavelmente para o Osório César eram grupos de leitura sem
intervenção concreta no movimento operário, situação que não devia estimula-lo a dedicar sua
atenção.

Segundo Carvalho (2016) Osório César através da imprensa escrita de jornal combateu o
fascismo e a guerra através da defesa da livre expressão artística “o fascismo era a negação da beleza,
da criatividade e da vida” (p. 65); nesse processo passou a frequentar “grupos de artistas menos
abastados, principalmente aqueles organizados por imigrantes ou filhos de imigrantes”, (p. 66).
Como o grupo Santa Helena.

Segundo Ferraz, (1998), Osório César publicou artigos nos seguintes periódicos: O Correio
Paulistano, Diário da Noite, Diário de São Paulo, O Estado de São Paulo, Folha da Noite, Folha
de São Paulo, A Gazeta, Jornal de São Paulo; todos do estado de São Paulo (p. 131 e 132).

O médico e o crítico de arte

Osório César se tornou colecionador e divulgador na imprensa das obras de artistas de


origem popular e segundo Carvalho (2016) incentivava todos os artistas que trabalhavam suas
manifestações culturais fora dos padrões da pintura acadêmica que deveriam ser sócios do Sindicato
dos Artistas Plásticos de São Paulo; atuando na organização desse sindicato e de suas exposições
artísticas.

Ainda segundo Carvalho (2016) Osório César pesquisou também sobre processos
perceptivos e organizou reuniões musicais com artistas em seu apartamento em São Paulo, com o
1285

objetivo de observar e analisar a “capacidade de criação instantânea de imagens emocionais a partir


do estimulo sonoro.” (p. 68).

Osório César notabilizou-se pelo trabalho que realizou por mais de quatro décadas no
Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha. Que seria o uso da arte como tratamento
terapêutico para doentes mentais, a “Arte-terapia”.

Osório César publicou um grande número das obras de arte de seus pacientes, doou parte
de seu acervo ao MASP.

Outra parte significativa do seu trabalho foi a criação da Escola Livre de Artes Plásticas do
Juquery, no Complexo Hospitalar do Juquery, no município de Franco da Rocha, região
metropolitana da capital paulista.

A Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery foi fruto da atuação do Dr. Osório César em
incentivar todo paciente que percebesse que se expressava por desenhos nas paredes, no solo, no
chão ou com esculturas de miolo de pão a serem tratados por ele.

Em 28 de junho de 1938 foi constituída a “Instituição de Assistência Social ao Psicopata”,


para arrecadar recursos e auxiliar os pacientes e também desenvolver atividades artísticas como
música, pintura, escultura e cerâmica. Esse órgão tinha bastante independência, não dependia de
recursos públicos podendo arrecadar junto a sociedade civil e foi dirigido por muitos anos pelo Dr.
Osório César que sustentou a Seção de Artes Plásticas e a Escola Livre de Artes Plásticas do
Juquery. (FERRAZ, 1998, os. 56 e 57). Dentro da Seção de Artes Plásticas, em 1943 desenvolveu-
se para ser usado nas ações de praxiterapia, (técnica psiquiátrica de tratamento usada com pacientes
crônicos hospitalizados de usando terapêutica do trabalho que vai distribuindo tarefas de
dificuldade crescente), a oficina de pintura.

Osório César estrutura o “acompanhamento artístico junto aos pacientes com base na
expressão individual, (...), por meio da escolha livre de temas ou da cópia do natural, evitando, de
sua parte, interferências tanto de ordem técnica quanto nas representações”. (Ferraz, 1998, p. 58).
Em 1948 foi organizado por Osório César a I Exposição de Arte do Hospital do Juquery, no Museu
de Arte de São Paulo (MASP), de 19 de outubro a 19 de dezembro de 1948. Essa exposição e seu
sucesso foram importantes para a criação da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery (ELAP),
em 1949 na gestão do hospital pelo Dr. Raul Bressane Malta. O primeiro diretor da ELAP foi o
Dr. Mário Yahn, em 1950 o Dr. Osório César assume a ELAP.
1286

Segundo Ferraz (1998), Osório César vai convidar artistas para ensinar aos pacientes
técnicas de pintura, escultura, gravura e desenho, os artistas professores foram: Maria Leontina
Franco da Costa, Clélia Rocha da Silva e Moacyr Rocha.

Como já citamos as atividades desenvolvidas pelos pacientes eram de livre escolha dos
mesmos, tanto na seleção dos temas quanto por quais meios expressivos. “A criação espontânea
mantinha-se como base fundamental do processo artístico, acentuando o que já havia sido feito
desde os anos 20”, (do século XX). (Ferraz, 1998, p. 84).

Essa liberdade de escolha dos temas para representar o universo interno de cada paciente
das técnicas pelas quais essa interioridade e/ou observação do meio foram expressas levaram aos
pacientes, segundo Ferraz (1998) a oportunidade de direcionar suas energias, aliviando conflitos
propiciando o desenvolvimento da “arte-terapia, da pesquisa (acompanhamento e análise dos
trabalhos) e o artesanato. Dessa forma, alcançar tais objetivos significava atingir a cura e a
reabilitação, (...), que não depende apenas dos indivíduos, mas da aceitação social em sua
reintegração.” (Ferraz, 1988, p. 83).

Vários pacientes se tornaram artistas, a autora Maria Heloisa Correa de Toledo Ferraz na
obra “Arte e Loucura – limites do imprevisível”, de 1998, conseguiu identificar os pacientes-artistas
de alguns períodos como de 1949-1951 cujas obras foram exibidas em várias exposições que Osório
César organizou e as obras também eram vendidas para manter a ELAP.

As Exposições foram: no Museu de Arte de São Paulo (MASP), Clube dos Artistas e
Amigos da Arte em SP, em Ribeirão Preto, em Santos, em Sorocaba, Galeria Prestes Maia em São
Paulo, Gabinete de Leitura Rui Barbosa em Jundiaí, no Instituto dos Arquitetos, em Atibaia, na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco em SP, nos anos de 1955 a 1958.

Os pacientes-artistas produziram um grande número de arte, que grande parte dela, já ficou
expostas no Museu Osório César que passou por recente reforma. Os quadros e esculturas não
eram temáticos, mas sim representavam muitas vezes lembranças verdadeiras dos pacientes, ou
apenas a criatividade que eles possuíam. Segundo Carvalho (2016, resumo),

(...), iniciou uma extensa produção escrita a respeito das semelhanças


configuracionais, encontradas nas manifestações simbólicas de loucos e nos
estilos artísticos, sobretudo nas obras modernas. (,,,) porque ele justificou as
semelhanças configuracionais, encontradas nas manifestações de loucos e nas
obras de arte de de arte de vanguarda, com o princípio da mente primitiva, ou
seja, o artista demonstrava a necessidade de encontrar uma arte renovada nos
estados inconscientes de contemplação vividos pelo homem primitivo e nas
culturas ditas primitivas: como a africana, a indígena e a oriental. A partir desse
1287

princípio, Osório César inseriu a manifestação simbólica dos loucos na complexa


discussão do primitivismo nas artes.

Os trabalhos de alguns pacientes-artistas que foram escolhidos da Exposição “Arte e


Loucura: Limites do Imprevisível”, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo, em São Paulo no ano de 1987; com a curadoria da Maria Heloisa Correa de Toledo Ferraz,
fruto da pesquisa desenvolvida por essa arte-educadora na obra já citada, todo o seu esforço
investigativo resultou na organização do Museu Osório César inaugurado em dezembro de 1985.
Hoje (dezembro de 2020), o Museu Osório César foi reinaugurado on line dia 01/12/2020.

Segundo Ferraz, (1998) os dados biográficos de vários pacientes-artistas são reduzidos pela
dificuldade em encontrar os prontuários no Hospital Juquery da época de sua pesquisa e o que
temos sobre Farid Geber nasceu em 1918 e foi diagnosticado com esquizofrenia crônica; Helena
Gadia nasceu em 1909, e foi removida para o Hospital Espirita de Marília em 29 de outubro de
1972 foi diagnosticada com esquizofrenia paranoide em cronicidade, (p. 70). Sebastião Farias, foi
internado em 1949, com 32 anos de idade e foi diagnosticado com esquizofrenia paranóide, (p. 71).
Toski Todo nasceu em 1920 e morreu em 26 de abril de 1971, (p. 87). Sobre os pacientes-artistas
Ubirajara Ferreira Braga e Valeriano não encontramos referenciais biográficos.

Antônio Sérgio de Oliveira. Pintor. Aos 12 anos de idade, é internado no Hospital


Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo, em 1959, com diagnóstico de
personalidade psicótica. Recebe alta em 1972. Enquanto interno, frequenta a Escola Livre de Artes
Plásticas do hospital. Entre as mostras de que participa, destacam-se: Bienal Internacional de São
Paulo, 1981 (Sala Especial: Arte Incomum); Arte e Loucura: Limites do Imprevisível, no Museu de
Arte Contemporânea da USP, São Paulo, 1987; Juqueri: Encontro com a Arte, no Sesc Pompéia,
São Paulo, 1988.
1288

Aurora Cursino dos Santos (s.l. ca.1896 - Franco da Rocha SP 1959). Pintora. É internada
no Hospital Psiquiátrico do Juqueri em 1944. Nessa instituição, freqüenta a Oficina de Pintura e,
mais tarde, a Escola Livre de Artes Pláticas. Antes vive algum tempo dormindo em albergues
noturnos e três anos internada no Hospital Psiquiátrico de Perdizes, São Paulo.

Mesmo com o notório trabalho que realizou no Hospital Juquery, sendo o pioneiro em São
Paulo e no Brasil do uso da arte como metodologia para o estudo das características do sofrimento
mental de inúmeros pacientes do Hospital Juquery, essa metodologia também foi instrumento para
uma análise cientifica das expressões dos elementos que povoavam as mentes desses pacientes e
uma importante contribuição para aqueles pacientes que conquistaram alta hospitalar, o
aprendizado de várias técnicas de desenho, pintura, escultura e gravura, devolvendo a essas pessoas
a dignidade de procurar se reinserir na sociedade através do trabalho artístico aprendido na Escola
Livre de Artes Plásticas; a coordenação de todas essas ações que trataram essas pessoas com
dignidade, sem violência e uma profunda elevação da autoestima dos pacientes quando passa a
serem tratados como pacientes-artistas, comprovando uma de suas reflexões que o “doente mental
não era um inútil” (Ferraz, 1998, p. 95); a primeira vez que visitei o Museu Osório César em meados
da década de 1990 essa frase estava bordada num tipo de caminho de mesa, exposta numa parede.

Osório César foi um ativo intelectual com aproximadamente vinte livros escritos por ele e alguns também
publicados por editoras de curta existência que ele era o dono e o editor.
O novo tipo de tratamento que criou; seu trabalho e fama estão se perdendo com o tempo. Podemos perceber
isso quando falamos sobre ele pelas ruas da cidade, de fato são poucas as pessoas que o conhecem e menos ainda às
1289

que já visitaram o museu. A principal causa é o fato de seu trabalho de pioneirismo, de excelência cientifica e de
profunda humanidade para com os pacientes, a dignidade que essas pessoas possam se expressar livremente aliviando
seus sofrimentos, o fundamento de uma abordagem tão diferenciada é inquestionavelmente relacionada às suas
convicções sobre a superioridade do comunismo como forma de organização social. E obviamente a ditadura civil
militar de 1964-1985 não prezava por essa prática e tudo foi sendo abandonado até a última funcionaria que
trabalhou com o Dr. Osório César se aposentar e tudo ficar sendo empoeirado pelo passar do tempo.
Apenas com o crescimento da luta pela democratização do país na década de 1980 permite o resgate desse
intenso trabalho desenvolvido por Osório Thaumaturgo César.
E este trabalho, entre muitas funções, possui essa, de manter viva a memória deste grande psiquiatra,
intelectual, pedagogo, poliglota e comunista, Osório T. César.

Referências

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Internacionalista 1930 -1933. SP: Brasiliense, 1987.

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Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em:
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1987-sao-paulo-sp>. Acesso em: 14 de Set. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-
060-7.

Brill, Alice. Samson Flexor: do figurativismo ao abstracionismo. São Paulo: MWM-IFK, 1990. 261p.
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Autocriticas e expurgos nos círculos revolucionários paulistas (1928 – 1935). Antíteses, v. 9, nº
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Carvalho, Rosa C. M. A formação do pensamento estético de Osório Cesar: estudo dos textos
sobre arte e cultura escritos no período de 1920 a 1960. Tese (doutorado em história da arte)
da Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2016.

Catalogo Aldo Bonadei. Exposição de 07/11 a 06/12/2013, na Galeria de Arte Almeida &
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1290

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Pandolfi, D. C. https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/RevoltaComunista
1291

A história como linguagem política na França da Restauração


Bourbônica (1815-1830) – As Lettres sur l’histoire de France

Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira*

Car notre siècle a cela de singulier qu'il appréhende par souvenirs, comme il fait de la
politique avec des souvenirs.
Joseph Fièvée

“Uma revolução na forma de escrever a história”

As Lettres sur l’histoire de France de Augustin Thierry foram originalmente um conjunto


de dez artigos semanais de caráter teórico/político publicados entre os meses de agosto e outubro
de 1820 no Courrier Français, um dos combativos periódicos com que colaborava o ex-secretário
do Conde de Saint-Simon. Jacques Nicolas Augustin Thierry (1795-1856), oriundo da pequena
burguesia rural, destacado estudante fora premiado com a possibilidade de estudar na École
Normale Supèrieure, de onde sairia como colaborador do Conde de Saint-Simon. Da parceria com
o socialismo idealista do Conde adviriam uma obra em conjunto (que propunha uma Comunidade
Européia unificada). De la réorganisation de la société européenne (1814) e alguns traços
diferenciais no pensamento de Thierry, como o otimismo em relação ao progresso, e a sensibilidade
para a participação popular na história. Essa experiencia, associada aos estudos que realiza em prol
das suas convicções liberais, farão dele o porta-voz de uma nova história, através das Lettres.

Em suas palavras, esses artigos tinham por objetivo geral submeter a um exame severo várias das
obras sobre história da França consideradas clássicas. Sendo esse o objetivo explícito, o autor confessaria
porém, em 1827, que o real intento fosse contribuir com o triunfo das ideias constitucionais, ou seja,
contribuir com o debate político que assumira a forma de disputa pelo passado nos anos 1820.
Esse desejo, afirma, fê-lo buscar nos livros de história comprovação e argumentos que apoiassem [suas] convicções
politicas. No entanto, o encontro com a história representaria uma importante descoberta, quando
abandonando os livros modernos pelos velhos, as histórias pelas crônicas, [pudera] entrever a verdade estofada sob

* Mestre em história. Pesquisadora associada do NEHM/UFOP.


1292

as fórmulas da convenção e do estilo pomposo dos escritores (Thierry, 1827, VI)557. A escrita da história carecia
sofrer sua própria revolução, e suas Lettres tornaram-se o porta-estandarte desse movimento.

A importância dessa publicação se percebe pelas decorrências: consideradas subversivas


pela censura régia, levaram ao fechamento do Courrier Français, pouco depois; as Lettres, porém,
seguiam seu percurso. Em 1827 veio a primeira versão em livro, onde se amplia o escopo
crítico/propositivo com quinze novas “cartas”: agora destinadas, segundo seu autor, ao estudo da
formação da nação francesa e das revoluções comunais do século XII tidas como o maior movimento social já
ocorrido desde o estabelecimento do cristianismo até a Revolução francesa (Thierry, 1827, VI). Em paralelo
observa-se o aumento constante de paratextos (prefácios e afins) cumulativos, sempre mais
reflexivos nas reedições constantes558. A nova história fincava suas raízes e divulgava-se desde os
prefácios, onde o caráter progressivo se reflete pela assunção de sua historicidade, aí demonstrada
na recorrente reflexão sobre trajetória e avanços.

Justificada a escolha dessa obra como objeto de análise, afirma-se a intenção de visualizar
através dela o processo de debate em que se forja uma linguagem historiográfica cujas vitórias não
se reduzem ao desmonte da Restauração monárquica e a revolução liberal de 1830. Essa peleja
teórica também instaurou um pensamento historiográfico nacional que a partir de 1830 ditou os
novos rumos da escrita e cultura histórica como fator político-civilizacional; e, em princípio, da
política liberal nos séculos seguintes. Os conceitos então elaborados, e o esforço de sua
naturalização e universalização, demonstram seu sucesso por serem facilmente reconhecidos em
nosso léxico, a exemplo da concepção evolutiva da humanidade e de suas sociedades; e da certeza
da democracia como um regime de iguais e livres. Esses conceitos foram incorporados de forma
universal permanecendo ainda hoje como uma bandeira facilmente reconhecível.

Graças à riqueza do material a análise fez uso de um conjunto de ferramentas conceituais,


num espectro relativamente amplo do contextualismo linguístico como Quentin Skinner, pela
percepção da escrita como parte de um embate político (Visões da Politica, 2002); Pocock, no
destaque do caráter social (como atividade coletiva) da formação e uso de uma linguagem política
(Linguagens do Ideário Politico, 2003) e finalmente Koselleck, em sua atenção aos câmbios
epistêmicos ocorridos antes e durante o período a que se dedica essa análise, e o destaque atribuído

557Tradução e negritos meus.


558Acometido de cegueira progressiva no final da década de 1820, Thierry dedicou-se a partir de então à reescrita e
republicação de suas obras, que sempre sofreriam modificações e ampliações nas diversas edições. Além disso, a
vitória liberal na Revolução de Julho, abrandou o tom arrojado dos autores liberais na década anterior, tornando-se
eles mais moderados e dedicados à consolidação da cultura histórica proposta. (Smithson, 1973)
1293

aos conceitos como indiciais do pensamento de seu tempo (Futuro Passado, 2006). Esse
referencial teórico está implícito na percepção analítica que aqui se apresenta.

O artigo reconhece a extensão do tema, e propõe-se a uma abordagem rápida e panorâmica.


Retorna-se ao período da Restauração, como momento em que história e política fundem-se
conscientemente em uma só linguagem; descreve-se o processo desse desenvolvimento desde o
embate iniciado pelos conservadores até a vitória liberal, destacando-se a importância assumida
pelo pensamento histórico no período; e finalmente considera-se alguns dos conceitos
histórico/políticos resultantes desse processo, presentes na obra de Augustin Thierry. nesses
conceitos, hoje identificados historiográficos, desnaturalizam-se brevemente para que se ressalte
seu sentido político.

O momento de eclosão da noção tripartite de tempo e seus conceitos inerentes, que


aprendemos a compreender como naturalmente a história e sua forma de sabê-la, derivam desse
tempo em que a história respondia às questões então propostas: e que aquele futuro, agora presente,
tornou reais; ou não. E portanto, rever seu momento de surgimento, representa também
reconhecer sua historicidade, exatamente no tempo em que o “presentismo”, a grande crise, e as
incertezas de nossa arte põem em questão aquelas conquistas. O processo de releitura visa retomar,
ou, como dirá Marcel Gauchet, re-haver a significação dessa ruptura fecunda (GAUCHET, 1986, 248)
(minha tradução).

Restaurar (Regenerar) a Ordem Natural

RESTAURER. v. a. Réparer, rétablir, remettre en bon état, en vigueur.


RÉGÉNÉRER. v. a. Engendrer de nouveau, donner une nouvelle naissance.
(Dictionnaire de l’Académie
Française, 1798)

RESTAURER se dit, au sens moral, en parlant des lettres, du commerce, des lois, de la
discipline, du gouvernement.
[RÉGÉNÉRER] Il signifie aussi figurément, Réformer, améliorer, renouveler. Régénérer les
moeurs. Régénérer une nation.
(Dictionnaire de l’Académie
Française, 1835)
1294

De início chamo a atenção para a amplitude de interesse e olhares destinados à Restauração


monárquica francesa, ocorrida no período pós-napoleônico. Centralizando as esperanças
conservadoras europeias de comprovar a possibilidade de anular a Revolução (e assim fazer recuar
o tempo à sua imobilidade anterior), a Restauração Bourbônica (1814/1815 - 1830) foi imposta à
França derrotada e sob domínio estrangeiro em 1814, com o imperativo de fazer com que as coisas
voltassem ao seu antigo estado: restaurar. A Santa Aliança acreditava na força das instituições
milenares: o “Trono-Altar”, como suficientes para sustentar o processo de retroação do tempo ao
que se concebia no século XVIII. Mas, como se demonstraria pelo episódio dos Cem Dias559, e as
derrotas constantes nas eleições para as câmaras representativas nas décadas de 1810 – 1820 mesmo
em face das diversas concessões liberais efetuadas (Pertué, 2014) – tornava visível que o esforço de
retroação patinhava (Caron, 1993; Tudesq & Rudel, 1968).

Quando em 1820 um bonapartista assassinou o Duque de Berry, último herdeiro Bourbon,


a Restauração ameaçada assume nova feição mais autoritária e violenta, mas também mais política
e voltada para a reorientação narrativa560. Como bem se ilustra pelos câmbios linguísticos
exemplificados na epígrafe desse tópico, estava claro que tanto o conceito de Restauração quanto
as práticas a ele associadas não eram suficientes para anular as grandes modificações trazidas pela
Revolução; concluiu-se que fosse preciso reengendrar a monarquia no país, ou seja, regenerá-la.
Regeneração, nesse momento, torna-se o antídoto conceitual do campo conservador para as
revoluções.

A luta visceral transfere-se agora para o âmbito das narrativas. Essa é a conclusão de Stanley
Mellon, pioneiro estudioso do tema, que em seu clássico estudo sobre o fenômeno, intitulado The
political uses of history - a study of historians in the French Restoration (1958) conclui que na
Restauração a história era o assunto mais popular, atraindo igualmente os talentos mais e menos dotados, porque
nesse momento a história era a linguagem da política (Mellon, 1958, p. 2) (minha tradução). Natural,
portanto, que os autores do campo conservador, iniciassem involuntariamente o processo de forja
das novas noções e conceitos que seriam posteriormente desenvolvidos pela imprensa liberal561.

559 Cem dias (20 de março a 8 de julho de 1815), aventuresca situação de retorno napoleônico nos braços de seu bem
treinado exército e de bonapartistas fiéis espalhados pela máquina estatal, que durante mais de três meses estiveram
em processo de retomada do poder francês.
560 O Duque deixara grávida sua esposa, que em alguns meses daria à luz uma criança póstuma que, para júbilo dos

conservadores era do sexo masculino e ficou conhecido como enfant du Miracle. Mesmo assim, a Revolução de 1830
que entroniza a casa dos Orleans, encerra com as pretensões dos Bourbon definitivamente.
561 Nesse sentido, Carolina Armenteros em L’idée Française de l’histoire nos apresenta o conservador “émigré”

Conde Joseph de Maistre como um dos mais interessantes personagens conservadores desse período, e também um
colaborador nesse processo, estando entre os primeiros a compreender a irreversibilidade da Revolução e a o
protagonismo humano no desenrolar da história (Armenteros, 2018). Löic Rignol (2002) adverte para a participação
do Conde de Montlosier na retomada da teoria dos direitos de conquista (Boullanviers, século XVIII), em que pugna
pela restauração dos privilégios nobres baseando-se na hereditariedade dos direitos de conquista dos Francos. Ao
1295

Os restauradores dão início à pugna, buscando refundar a narrativa monárquica em sua


legitimidade perdida6562, em narrativa calcada no desmerecer da Revolução; moviam-se com
excessivo otimismo na capacidade de reverter os efeitos causados pelo desmonte das certezas
escolásticas. Menosprezavam, talvez, a crise sistêmica iniciada pelo iluminismo e pela difusão das
ideias revolucionárias através de uma potente imprensa popular e os efeitos da Revolução, que
tornaram insustentável a narrativa anterior que justificava as regalias, privilégios e a opressão da
plebe como uma Ordem Natural (e portanto, imutável).

Nesse sentido impunha-se as esses homens uma inversão paradoxal, como observa Jeremy
Popkin: havia que traduzir a mensagem de retorno a uma sociedade hierarquizada, delimitada por suas
elites naturais, em uma linguagem a ser compreendida por uma população cujo pensamento se
educara pelos grandes fomentadores da Revolução, a imprensa e os jornalistas, especialistas na
manipulação da opinião pública, e cujo poder funesto se demonstrara durante a Revolução (POPKIN,
2001, 3) (Minha tradução).

Encontravam-se de fato malparados como cedo observa Joseph Fiévée563, dentre os


conservadores, o mais afeito à imprensa

Há já trinta anos que a revolução fez sua entrèe no mundo; ela é adulta, e se
conduz muito bem sozinha; ganhou em habilidade o que foi perdido em
efervescência. Seria necessário um talento extraordinário para resistir a ela;
não se lhe opuseram senão crianças que não a conheceram, homens que dela
fugiram e outros que, salvo a honra de outrora, nada perderam. (Fiévée, 1818)
(minha tradução)

A revolução soubera adaptar-se ao cotidiano, em modos amenos, enquanto seus


contendores se apresentam jovens demais, homens apequenados pela fuga, ou aqueles que
souberam modular-se aos tempos. Eis a descrição exta de uma companhia que não tinha condições
de vencer esse embate; e o diagnóstico vinha de um conservador.

reverter esse conceito, Thierry elabora o conceito de guerra de raças: na luta de uma raça oprimida contra a raça
opressora, é que se constrói a história (Garcia, 2002). Esse conceito, por sinal, teria dado origem à luta de classes
marxiana (Reizov, 1962)
562 Em 1814, o Conde de Montlosier (1755-1838) publicava seu De la monarquie Française, obra encomendada por

Napoleão que permanecera inédita. A tese central, numa retomada da história francesa que ia desde a invasão dos
francos, era a defesa dos direitos de conquista, ou seja, a restauração das regalias feudais. Ao apontar para o direito de
conquista como justificativa para a dominação e exploração dos camponeses galo-romanos, Montlosier inspirou em
Augustin Thierry uma de suas maiores conquistas – a compreensão de que a história se movesse pelo conflito entre
opressores e oprimidos, que ele definiria como “guerra de raças”6; anos depois Karl Marx refundaria o conceito,
doravante denominado luta de classes (Reizov, 1962; gauchet, 2002)6.
563 Fiévée foi personagem controverso, um self made man pós-revolução, dono de opiniões muito próprias,

correspondente de Napoleão que batendo-se pelos conservadores na década de 1810, nos anos seguintes seria
convencido pelas ideias liberais. (Popkin, 2001)
1296

Se o passado era o eixo central da narrativa a ser refundada no intuito de restaurar/regenerar


a sociedade francesa e concretizar o retorno institucional, faltou aos Ultras (outro termo referente
aos conservadores) compreender que o dogmatismo que sustentara a ordem anterior perdia
efetividade frente a uma realidade em que a opinião pública e suas esferas de representação: a
imprensa e as câmaras políticas, sistematizaram o constante questionamento e revalidação de
teorias e certezas sobre o poder, suas origens e fins, em sua própria narrativa. Prova disso seria o
volume de trabalhos de história publicados no período: Stanley Mellon nos oferece a cifra de
quarenta milhões de páginas de história que segundo ele, foram publicadas apenas no ano de 1825 (idem,
ibidem).

Por sua vez, os liberais eram confrontados com o discurso de verdade: a história, até então
privativo das autoridades; era necessário que se familiarizassem com essa linguagem, ao mesmo
tempo em que careciam encontrar defesa para o calcanhar de Aquiles representado pelo período
do Terror. A operação de separação de momentos e grupos a serem esquecidos e de um substrato
ideal a ser consolidado como nova narrativa verdadeira, encontram-se entre as grandes vitórias
liberais do período, segundo Marcel Gauchet (2002).

Nesse processo, conceitos e questões importantes como as relações entre o homem e o


tempo, e a história como produto dessa relação, tornaram-se centrais no debate iniciado por aqueles
que reagiam ao câmbio epistemológico consequente da Revolução. O desejo conservador de um
retrocesso narrativo e político, esbarrava na consciência quase universal de que a aceleração do
tempo fosse um processo irreversível (KOSELLECK, 2006). O século XIX não podia mais referir-
se ao tempo e à história, com as mesmas formas e conceitos.

Compreender o passado

History is the muse of our time; we are the first, I think, the first who have understood the
past.

(Duquesa de Broglie, apud Stanley Mellon - The political


uses of history)

Car il n'est personne parmi nous, hommes du dix-neuvième siècle, qui n'en sache plus que Velly
ou Mably, plus que Voltaire lui-même sur les rébellions et les conquêtes, le démembrement des
empires, la chute et la restauration des dynasties, les révolutions démocratiques et les réactions en
sens contraire.

(Augustin Thierry, Lettres sur l’histoire


de France)
1297

Coube aos liberais formalizar uma percepção que se pressentira e estava sendo vivenciada
pelos autores conservadores: o passado e o presente não eram mais semelhantes564. Essa
consciência, demonstrada nas citações epigráficas, justifica inclusive a sensação de superioridade
sobre o passado e até mesmo de posse nelas demonstrada: o século XIX é o primeiro a entender o
passado, afirma Mme. de Broglie. E em sentido ainda mais amplo, “os homens do século XIX,
sabem mais que todos os sábios anteriores sobre o passado, sobre os câmbios e mudanças, as
revoluções democráticas ... é o que nos ensina Thierry. Eles compreendiam (como afirma a duquesa de
Broglie) que o passado fosse essencialmente distinto, mas haviam ido além; Thierry reafirma a
superioridade dos Modernos sobre os Antigos e mesmo sobre os predecessores imediatos,
incapazes de perceber que o passado é aquilo que já não é.

Herdeira da laicização proposta pelo Iluminismo, essa geração de historiadores entende que
seu tempo e nível de conhecimento são muito superiores, e portanto que são os únicos capazes de
compreender e narrar com exatidão, o passado. Para isso, houve que compreender que entre as
eras havia diferentes gradações de evolução social; uma sociedade portanto, não é divinamente
estática (como queriam os conservadores), mas humana e progressiva, porque a história é fruto da
ação humana; e como a humanidade está em constante evolução social, sua história marcha sempre
em sentido superior.

O sentido da história se apreendo como sendo o momento de realização das sociedades de


maneira economicamente progressiva; mas também e principalmente (no caso francês), quando a
humanidade alcance novamente a liberdade e igualdade, direito natural identificado pelo estudo das
sociedades primitivas565. O motor da história é a luta social pela liberdade e igualdade. Os vilões
serão aqueles (nesse momento, raças) que oprimem uma parte da sociedade, privando-os da
liberdade e igualdade, como direitos naturais e inalienáveis; e as revoluções como movimentos

564 Acerca das relações entre autores conservadores e a percepção de cambio, conferir Carolina Armenteros (2018) e
François Hartog (2013).
565 É bem conhecido o interesse dos iluministas pelos selvagens e sua vida natural e a simpatia despertada em Rousseau.

Os autores liberais do século XIX levam essas questões para o dia a dia em obras de caráter popular, graças à
sofisticação operada no terceiro estado pela imprensa. O índio por vezes assume a forma de critico da Restauração,
como nesse “diálogo dos mortos entre Napoleão Bonaparte e um botocudo (selvagem do Brasil):
Após várias comparações, em que o indígena sempre aponta as florestas como lugar de liberdade, e a França como seu
oposto, o selvagem leva a melhor: tendo conhecido as duas formas de viver, me permita preferir aquela de meus ancestrais, crendo que
o homem aviltado e degradado pelo jugo social, não carrega mais nada de sua nobre natureza primitiva. Só o selvagem é homem, porque é
livre; vós não passais de micos amestrados, que se encantam com seus grilhões. (D’Outrepont, 1825, p. 20) (minha tradução)
Claro será que não se trata de enaltecer o índio, mas de sublinhar a decadência de uma sociedade que perde aquilo que
se considera mais precioso, a liberdade. Dessa forma, no entanto, os liberais colocam o indígena brasileiro no
imaginário francês em caráter político, não edênico. Não é de pecado que se trata (embora em outro tempo, o pecado
também fosse político), mas de política, e de sociedade – o índio é ícone da ausência de hierarquias e, portanto, de
poder.
1298

sociais de luta pelo fim da opressão (que é sempre injusta), são reações legítimas de parcelas da
sociedade a quem foram negados esses princípios universais humanos.

No processo de reabilitação da Revolução, “descobriram-se” verdades apreendidas pela


nova terminologia liberal. A noção de um tempo desigual, o que se deduzia pelo (assim
considerado) feio equívoco do anacronismo: considerado muito comum entre os autores
anteriores, porque narravam a história dos personagens do passado como se eles vivessem e
atuassem como as pessoas de hoje; a importância da ação humana coletiva na história: os
movimentos sociais e a necessidade de ler uma história a contrapelo, de forma teórica e
metodologicamente orientada. Todas essas atitudes agora historiográficas, surgem nesse momento
como decisões políticas, em busca de narrar uma outra história, a história nacional.

História do povo – história nacional

Autrefois on écrivait l'histoire à l'usage du dauphin; aujourd'hui c'est à l'usage du peuple qu'il
faut l'écrire, et les fils des rois s'instruiront à leur tour dans les livres faits pour le peuple.

(Félix Bodin – Résumé de l’histoire de


France)

No processo de descoberta da história da Nação, Augustin Thierry, segundo Boris Reizov


(1962) descobrira que esse era o personagem central da história, seu povo, como corporeidade da
Nação. Em um trecho ainda inicial da primeira Lettre ele proclama a necessidade de escrever-se a
verdadeira história nacional, que mereceria tornar-se popular, e que se encontrava ainda soterrada na poeira das
crônicas contemporâneas. Essas narrativas, continua, em que um diminuto número de privilegiados ocupam
sozinhos a cena histórica e onde toda a massa da nação desaparece atrás dos mantos da corte, não apresenta
informação, nem lições nem sequer empatia (Thierry, 1827, p. 4).

Havia que narrar a história das massas, tornar visível quem era o verdadeiro protagonista
da história nacional, seu povo. Como identidade em formação e sempre em desenvolvimento, o
povo é o verdadeiro ator da história pátria, e o seu libertador. A Revolução, portanto, representa o
momento em que a Nação assume sua verdadeira identidade; o povo que venceu a opressão, deve
agora narrar sua história.

Em estudo dedicado ao contexto de surgimento do romance histórico (Der Historische


Roman, 1955), Georg Lukács entusiasma-se pelas transformações produzidas pela Revolução nas
populações europeias, seu despertar para a história e a política. Segundo ele, foram a Revolução
Francesa, a expansão e queda de Napoleão que converteram a história em uma experiencia de massas.
1299

Afinal, adverte, o grande número de revoluções que se seguiu e o decorrente comprometimento


dos populares na guerra, fizeram com que as pessoas se apercebessem de uma avassaladora e única
história; e nela, como atores, os indivíduos comuns (Lukács, 1966, p. 19-20) (minha tradução)566.

Todas essas calamidades haviam criado possibilidades concretas para que os indivíduos
[percebessem] sua própria existência como algo condicionado historicamente, e que a história é algo que interfere
profundamente em sua vida cotidiana, em seus interesses imediatos (Idem, Idem, 22) (minha tradução). Assim,
conclui-se: não se trata apenas de uma curiosidade pela história – mas de uma relação mais pessoal,
um sentimento de pertença e familiaridade, que não seria possível em tempos anteriores.

Walter Scott, seria o primeiro autor a realizar essa nova consciência em forma narrativa.
Suas obras caracterizam-se pela habilidade em plasmar na trajetória de um personagem, um
momento de câmbio da sociedade. Sua história fala do passado através de uma narrativa imagética,
de forte apelo sensorial porque pictórico, capaz de fomentar nos leitores o pathos pelo passado, e
por conseguinte, despertando massivo interesse pela história567.

Na Lettre IX, destaca-se Scott na formação de uma cultura histórica moderna: se em nossos
dia vem se operando uma revolução na maneira de ler e escrever a história, essas composições aparentemente frívolas
tiveram uma contribuição singular. Mas o romance histórico fora além da divulgação: ele cooperara no
restabelecimento de épocas pouco valorizadas, as “trevas medievais” esses séculos e homens descritos
como bárbaros que no entanto, representam o passado nacional. Portanto o restabelecimento dessa
época, e a curiosidade produzida por Scott, trarão à historiografia em si um sucesso inesperado
(Thierry, 1827, p. 84).

Mas a contribuição de Walter Scott vai além. Ele não é apenas um divulgador do passado,
mas também alguém que tem uma percepção inovadora, uma intenção historiográfica inerente568

Sem dúvida não seria possível atribuir aos escritos de Walter Scott a
autoridade de trabalhos históricos; mas não se pode recusar ao autor o mérito
de ser o primeiro a pôr em cena as diferentes raças de homens cuja fusão
gradual formou as grandes nações da Europa. Esses fatos e tantos outros de
igual importância permaneciam ignorados: tudo que aplainasse os níveis da
civilização passaram despercebidos pelos historiadores modernos. (Thierry,
1827, p. 84-5) (minha tradução)

566 Koselleck já demonstrou inclusive o surgimento de um novo conceito para essa história, em língua alemã, no
período.
567 Ao tratar de Thierry, Gossman
568 Denomino por essa expressão, a narrativa de ficção histórica cujo compromisso com a narrativa do passado,

principalmente no caso do século XIX, intente colaborar na “adivinhação”, no conhecimento e esclarecimento do


passado.
1300

Thierry atribui ao romance histórico de Scott, duas contribuições importantes – abrir


espaço para a escrita da historia, criando um publico leitor que se interessara pelo passado graças a
suas obras; e elaborando uma narrativa em que os processos de construção da nação – ou seja, os
encontros raciais (o conceito é dele) são apresentados em cena, como presença do passado (em toda
sua especificidade) nas personagens de Scott. (Thierry, 1827, 83-84). Scott é o primeiro, segundo
Thierry, a fazer o passado assumir sua verdadeira e irrepetível forma, suas cores reais. Portanto,
duas das grandes conquistas de Thierry, como ele mesmo admite, derivam de sua leitura da ficção
histórica de Walter Scott.

Trata-se de cláusula pétrea para essa nova narrativa, que se distinga totalmente as diferenças
entre presente e passado. E se chamamos isso de diacronia, termo que não se encontra presente
em Thierry, ele por sua vez é cirúrgico, em apontar o grave defeito dos historiadores então
“clássicos” de seu tempo – “pintar” o passado com as “cores” do presente. Seu crime é
denominado de anacronismo569. É nesse momento, também que a preocupação com o
anacronismo se demonstra mais acirrada.

No tempo, na história

A temporalidade nessa nova narrativa é central. De imediato há a fruição estética do


passado, cuja alteridade transforma em preciosidade, como os gabinetes antiquários. Mas, a noção
de movimento do tempo tripartite: em que se encontram previstos passado, presente e futuro,
também erige a obsolescência e o gosto pelo novo. A certeza de que os modernos são aqueles que
podem ver melhor a história, como já apontado em epígrafe anterior, deu a esses jovens a
autoridade para julgar seus antecessores pela dupla categorização de anacronismo e “falsas cores”:
um seu sinônimo.

Novamente voltamos a Scott como exemplo de compleição correta: sua narrativa apresenta
precisamente o especifico histórico: o derivar da singularidade histórica de seu tempo, a excepcionalidade na atuação
de cada personagem (Lukács, 1966, 15) (minha tradução) Para Lukács, Scott não apenas é o primeiro
a perceber a verdade histórica pela especificidade do tempo – seus personagens agem, sentem e

569A história deveria provar-se distinta, e irrepetível. Só assim se teria certeza de que os tempos das regalias estavam
definitivamente mortos, como também bem enterrados estariam Robespierre e os jacobinos. Um exemplo interessante
da fantasmagoria que associa essas personagens no imaginário dos franceses é uma coletânea de contos fantásticos,
mas sempre relacionados ao passado próximo, intitulada A mulher da gargantilha de veludo e outras histórias de
terror (DUMAS, 2012) de Alexandre Dumas. Autor simpatizante do âmbito liberal, e autor de diversas obras de ficção
histórica de grande gosto popular, nesse volume reúne uma diversidade de narrativas em que o passado recente ainda
assusta os franceses comuns, na forma de fantasmas de nobres e reis - espicaçados pelos plebeus em seus túmulos, ou
de personagens revolucionárias guilhotinadas, como a favorita de Danton. Essa obra reúne 2 títulos Les Mille et Un
Fantômes (1849) e La Femme au collier de velours (1850)
1301

pensam dentro dos limites de seu tempo; como também dedicou-se a representar momentos-chave
da história, momentos de câmbio em que o processo histórico se realiza em sua fatalidade
progressiva (Lukács, 1966). E tudo isso de forma pictórica, quase sensorial.

E com isso ele também seria responsável pela difusão da concepção diacrônica do passado,
em que seus personagens falam e se comportam como seres de seu tempo, diferentes dos leitores.
Essa era uma das primeiras e importantes criticas de Thierry à historiografia francesa de seu tempo
– o anacronismo.

Essa veracidade na representação, que se denominaria “cor local” e seu antônimo: o


anacronismo, é tratada na Lettre IV, enquanto tece a crítica dos historiadores anteriores Père
David, l’abbé Vally, Mably, incapazes de inserir o indivíduo em seu meio e seu tempo e de relacionar
as aventuras deste com os destinos de sua classe e Nação (como fizera Scott). Concluirá ele que
dentre eles o Père David se destacava, por apresentar algumas das características modernas:

A primeira qualidade do historiador não é a fidelidade a tal ou qual opinião


justa, importante, honesta; mas a fidelidade à história: … devemos reconhecer
nele o sentimento da verdade histórica e sobretudo exigir que a seu exemplo
sejam banidos os anacronismos de costumes e essa cor convencional de que
cada autor reveste sua narrativa, ao gosto da política dominante. (minha
tradução) (Thierry, 1827, 36)

O desejo de que a história seja visível atrai a caracterização conceitual do pictórico, as


“cores” que podem ser falsas (anacrônicas) ou verdadeiras – apresentarem a verdadeira “cor local”
– o espaço se confunde com o tempo. longe de representar exotismo, alerta Temístocles Cezar, é
uma outra forma de atentar para a relação diacrônica da representação em relação ao tempo dos
acontecimentos relatados – a cor local corresponde à veracidade do representado, num momento
em que a pintura é considerada a mais veraz forma de representação (Cézar, 2004)570. Na Lettre V,
Thierry finaliza defendendo a veracidade da cor local, que deve ser própria da história (Thierry, 1827, 52).

Aquilo que incomoda profundamente Thierry, e que denomina de “cores da convenção”,


nada mais é que a perpetuidade de um modelo aristocrático: a historia Magistrae vitae, representada
na exemplaridade buscada nos modelos antigos, sempre em continuidade de uma narrativa escrita
para “uso do Delfim”; parece abominável a um autor que quer retratar os movimentos sociais,
principalmente porque teriam prenunciado o maior deles, a Revolução.

570O tema da cor local, bastante presente nos estudos literários é uma chave-de-leitura ainda pouco explorada pela
historiografia. Portanto é muito bem-vindo o trabalho do jovem historiador Eduardo Wright Cardoso, A cor local e a
escrita da história no século XIX: o uso da retórica pictórica na historiografia nacional publicado em 2019, e que
também foi consultado para esse artigo.
1302

O que se conta é novo – a história nacional. E portanto, há que elaborar-se uma forma,
personalizada de acordo com a realidade da Nação a ser retratada. Além disso, há também um
desejo do pathos, de que essa narrativa desperte emoções em função de sua retórica.
Posteriormente essa característica será menos exacerbada, nos prefácios posteriores das cartas. Mas
em 1827 a história é uma forma de luta, uma pedagogia política, que avulta desde a primeira Lettre:

Talvez a história nada tenha a oferecer no grande debate das questões


modernas; mas, se persistirmos em suscita-la, como fazemos diariamente,
podemos tirar dela uma grande lição: é que na França ninguém libertou
ninguém, que não existe, entre nós nenhum direito de aquisição recente; e que
a geração atual deve todos os direitos que possui à coragem das gerações que
a precederam. (Thierry, 1827, XII)

Aprender com o passado?

les livres les plus instructifs sont ceux qui ont précédé les événements et les ont prédits. Il y a là
l'autorité de la chose jugée.
(Joseph Fiévée, 1818, VII)

Encerro essa explanação com a certeza de uma leitura rápida e muito inicial dessas Cartas
tão ricas em informações para a história intelectual e a história da historiografia. Em seu momento,
o autor reconhecia a originalidade de seu projeto, e poucos anos depois, já se percebia colhendo
frutos. Essa Revolução historiográfica, em termos que o próprio autor usava – e sem exageros -
abriu espaço para questões que ainda se encontram parcialmente respondidas; e contribuiu de
maneira importante para o estabelecimento das histórias nacionais como foram compreendidas e
escritas, pelos últimos dois séculos.

A critica já efetuada acerca dessa narrativa se faria já em 1848, quando as barricadas de Paris
puseram abaixo o belo edifício político construído pelos liberais no poder, desde 1830. Seu legado
historiográfico, apesar dos pesares, e de uma volumosa e pertinente critica, acerca das limitações
politicas do desejo de ordem, que superou o de liberdade, teve por decorrência o apagamento do
momento original, em que essas vozes se alçaram em uma experiência efetivamente revolucionária,
de pensar e escrever a história – e de também pensar e compreender a ordem social.

A ironia de retornar ao passado moderno, justo aquele que nos ensinou que a história não
se repetiria, e suas lições perdiam eficácia, ganha novos contornos se percebermos que foram
também eles que nos ensinaram que a história é móvel, como a humanidade. Foram também esses
1303

precursores que nos ensinaram a realizar as perguntas corretas ao passado, em busca de respostas
efetivas; afinal, a história sempre seria escrita a partir do presente. Nesse momento em que a história
como a compreendemos, sua narrativa e a sociedade, que herdamos desses pioneiros demonstram-
se mais que nunca em aberto. Reler essas cartas, e essas esperanças herdadas, deve fazer parte de
uma autocritica imperiosa.

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1306

Fernando de Noronha no pós-abolição: relações de poder e


arbitrariedade no isolamento da ilha

Maria Eduarda Rodrigues Antunes

Resumo: O presente trabalho faz uma viagem ao século XIX, guiado por um habeas corpus
impetrado na justiça pernambucana, pleiteando a liberdade de treze homens. Presos nos Estados
da Bahia e Rio de Janeiro, acusados de capoeiragem, foram deportados ao arquipélago de Fernando
de Noronha, onde funcionou a Colônia Correcional. Nessa trilha, temas como relações de poder e
controle social serão abordados, sob a ótica de Michel Foucault, Erving Goffman, com o amparo
de artigos e legislação.

Introdução

Ao longo da história, uma das formas de observar as modificações ocorridas na sociedade é


dirigir o olhar para temas como justiça e controle social. Preconceitos e desigualdades ficam
evidentes na forma como punições são aplicadas. No presente trabalho, partiremos de um caso
concreto para entender como relações de poder definiram, na segunda metade do século XIX, a
ordem então vigente.

O ponto de partida será a década iniciada em 1890. Nessa época, a vadiagem e a capoeira
eram crimes previstos em lei. Como penalidade, os acusados eram deportados a Fernando de
Noronha, arquipélago que entre os anos de 1737 a 1939 abrigou a Colônia Correcional, sob
domínio de Pernambuco. Em nossa análise, seremos amparados por pesquisas em livros, artigos
e legislação.

Deportação

A presente investigação começa com um pedido de liberdade formulado através de um


Habeas Corpus - HC, tendo como pacientes treze homens. Eles foram presos no Rio de Janeiro e
Bahia pelo Questor Policial, entre os meses de setembro e novembro de 1889. Logo após,
deportados ao arquipélago.

O HC (Brasil, Dossiê processo 1895.07.12) foi impetrado em julho de 1895 em


Pernambuco, por Joaquim Rocha dos Santos. Representante do Jornal do Brasil do Rio de Janeiro
– então Capital Federal do Brasil, registrou em sua petição: “cumpro o dever de assumir a
responsabilidade de advogar esta justa causa, porque considero que assim procedendo, tenho dado
1307

à sociedade as maiores provas do quanto valem os esforços daqueles que bem compreendem a
missão do jornalismo brasileiro. Assim, pois, demonstrado que os pacientes sofrem prisão ilegal há
cinco anos e seis meses”.

Não fica claro, no documento, se havia alguma relação de amizade ou trabalho entre
Joaquim e os aprisionados. Chama atenção, no entanto, o fato de o mesmo ressaltar, na petição,
ser missão do jornalismo nacional lutar pela liberdade e combate às ilegalidades. Mas isso é uma
outra história, que por enquanto não faz parte do objeto estudado.

Quase meia década privados de liberdade, na oportunidade em que foram ouvidos pelo juiz
Antônio de Olinda Almeida Cavalcanti, na Casa de Detenção do Recife, pouco tiveram a dizer. Ou
melhor, na leitura do documento, percebe-se que muito pouca oportunidade foi-lhes dada a falar.
Acusados de serem vadios e capoeiras, nem eles próprios sabiam o motivo do encarceramento.

No interrogatório para decisão do HC, realizado em 14 de julho de 1895, as perguntas a


todos seguiram o mesmo padrão. Após a qualificação dos réus, que nem sempre traz a idade dos
acusados, o juiz limitava-se a questionar sobre o motivo da prisão, onde e quando se deu a coação
de liberdade e a data da deportação para Fernando de Noronha. E só. A situação da prisão revela
muito da sociedade à época.

O código de justiça optou por punir os menos favorecidos economicamente. O simples


fato de estar bêbado na rua, sair à noite ou reunir-se em locais públicos para praticar a capoeira, já
era motivo para passar anos privado de liberdade. Na verdade, era passível de punição tudo o que
representasse ameaça à ordem vigente, como veremos a seguir.

Antônio Marques d’Oliveira, carioca, analfabeto. Profissão: criado, preso no Rio de Janeiro
quando saía da casa de seu patrão, mais ou menos depois da proclamação da República. Após vinte
dias da prisão, foi deportado a Fernando de Noronha, no navio de guerra “Pierres”; Alexandre
Hypolito da Silva, carioca, crido doméstico, foi preso tarde da noite, quando se recolhia a casa;
Emídio Rodrigues do Couto, baiano, guaribador. Sabia ler e escrever; foi preso em Salvador,
ignorando o motivo; Henrique de Araújo, analfabeto, foi preso quando trabalhava no carvão de
pedra, segundo alegou, sem dar motivo algum à prisão, ocorrida logo após a República.

José Theodoro Lambert, baiano, charreteiro, 56 anos. Sabia ler e escrever; foi recolhido em
uma noite em Salvador, quando voltava de um batizado, “perturbado da cabeça pela perfídia das
bebidas alcoólicas”. Atribuiu sua prisão a “capricho do subdelegado daquela freguesia, pelo fato
dele e seus irmãos não quererem acompanhá-lo nas votações políticas”. Algum tempo depois, foi
mandado ao Amazonas e, nas palavras dele, quando chegou a este porto, conseguiu sair à terra. Ao
1308

voltar, não encontrou mais o vapor – discurso estratégico em frente a um juiz, para o qual não
poderia assumir a fuga. E assim ele ficou em liberdade por 14 dias, quando de novo foi preso e
deportado a Fernando de Noronha.

Joaquim Guimarães, carioca, padeiro. Analfabeto, foi preso no Rio de Janeiro em uma noite
em que ceava em uma frege (taberna), ignorando o motivo do ocorrido; Manoel Joaquim Luiz,
analfabeto, foi preso na Capital Federal (RJ) por estar “caído bêbado”, enquanto bebia com um
companheiro, sem saber nada mais sobre o motivo do encarceramento; Manoel Antônio dos
Santos, carioca, 23 anos, copeiro. Analfabeto, não fica explicitado, nos autos, o questionamento
sobre sua prisão; Manoel da Roza, mais de 50 anos, estivador, analfabeto, morava no Rio de Janeiro.
Sem saber o motivo da prisão, foi mandado para a fortaleza de Santa Cruz e depois remetido a
Fernando de Noronha no vapor Pierres. Lá, foi submetido por duas vezes à inspeção de saúde para
assentar praça no exército, mas foi julgado ineficaz; Manoel Jacintho Ribeiro, português, 38 anos.
Analfabeto, foi preso no Rio de Janeiro por estar um pouco embriagado. Sua esposa morreu após
sua prisão.

Assim como Manoel Jacintho, Polidoro Domingos também foi preso por estar embriagado.
Morava no Rio de Janeiro e era guaribador. Analfabeto, tinha 20 anos idade à época do
interrogatório; Augusto Claudino do Nascimento, carioca, 33 anos, profissão ilegível nos autos;
sabia ler e escrever e foi preso por estar com uma navalha; o mais idoso de todos era Francisco de
Paula Alves, com 78 anos. Talhador, analfabeto, foi preso no Rio de Janeiro. Ignorando o motivo
da prisão, atribuiu ao fato de morar em companhia de um negociante que não aceitou a República.

Liberdade para quem?

Para entender melhor os acontecimentos narrados acima, temos que nos direcionar ao
contexto da época. Tudo isso aconteceu no início da República, logo após a abolição da escravatura.
Ocorre que liberdade obtida com a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, não veio acompanhada dos
meios de subsistência para fazer frente à nova situação social. Sem trabalho ou moradia, as ruas
passaram a ser o abrigo natural de quem antes vivia nas senzalas, assim também dos menos
abastados. E isso era ameaçador à elite dominante.

Como reação ao novo cenário, foi editado o Código Penal de 1890, através do Decreto-Lei
487 (Brasil,1890), contendo dispositivos repressores à população desfavorecida economicamente.
O referido diploma trouxe, no Livro III (Das Contravenções em Espécie), o capítulo XIII,
dedicado aos Vadios e Capoeiras.
1309

Art.399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe


a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite;
prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:
Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.
§ 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo,
será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias,
contados do cumprimento da pena.
§ 2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares
industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos.
Art. 400. Si o termo for quebrado, o que importará reincidencia, o infractor será
recolhido, por um a tres annos, a colonias penaes que se fundarem em ilhas
maritimas, ou nas fronteiras do territorio nacional, podendo para esse fim ser
aproveitados os presidios militares existentes.
Paragrapho unico. Si o infractor for estrangeiro será deportado.
Art. 401. A pena imposta aos infractores, a que se referem os artigos precedentes,
ficará extincta, si o condemnado provar superveniente acquisição de renda
bastante para sua subsistencia; e suspensa, si apresentar fiador idoneo que por
elle se obrigue.
Paragrapho unico. A sentença que, a requerimento do fiador, julgar quebrada a
fiança, tornará effectiva a condemnação suspensa por virtude della.
Art. 402.Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza
corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com
armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando
tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor
de algum mal:
Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira
a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a
pena do art. 400.
Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.
Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar
alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a
tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá
cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.

Manter sob rígida vigilância quem representava ameaça à ordem imposta era preocupação
evidente das autoridades. Não interessava dividir espaço com quem sempre foi forçado a obedecer
a ordens. Temia-se que a insubordinação ganhasse voz, fazendo desaparecer assim, a desigualdade
fundante do país. Em outras palavras, temia-se que a população menos abastada descobrisse seu
lugar na relação de poder tão bem descrita por Michael Foucault, como revela Ricardo Luiz Souza,
na obra O Poder e o Conhecimento Introdução ao Pensamento de Michel Foucault:

O poder é, para Foucault, uma força criadora, ou seja, capaz de criar relações
entre grupos sociais, dando consistência a um material até então amorfo, e
estruturando, a partir dele, uma capacidade discursiva. O poder, portanto,
permite que esses grupos criem imagens a respeito de si próprios e se vejam
refletidos nestas imagens (Souza, 2014, p.4).
1310

Longe do continente, o abuso o poder

Seguindo este raciocínio, era preciso manter bem longe qualquer ameaça à ordem. Para
garantir tal intento, nada melhor que isolar longe do continente os tidos como marginais e também
os marginalizados. Dessa forma, como os treze detidos citados no habeas corpus acima, eram
deportados para a Colônia Correcional de Fernando de Noronha acusados de crimes, assim como
menores de idade e quem mais incomodasse, seja lá por qual motivo. Essa realidade dura é descrita
pela historiadora Marieta Borges Lins e Silva, no livro Fernando de Noronha Cinco Séculos de
História.

Fernando de Noronha é utilizado pelo governo de Pernambuco como presídio,


mas o que lá existe não parece ser propriamente um presídio, tal a mistura de
gente lá sequestrada, entre a qual parece mais victimas que algozes da sociedade
que a sequestra. Havia até vários menores mandados pela polícia do Recife, sem
a menor forma de processo (Silva, 2007, p. 194).

Para se ter uma ideia, em 1864 a população carcerária somava aproximadamente mil
pessoas, sendo a maioria homens: presos militares, civis e condenados a galés perpétuas; as
mulheres somavam apenas 19, das quais 17 eram homicidas (Silva, 2007, p. 198). Eles viviam soltos,
misturados aos soldados, vez que isolados na ilha, não havia meios fáceis de fuga. Não por acaso,
essa ilusão de liberdade é das mais eficientes para garantir o controle dos aprisionados.

Na análise de Erving Goffman, no livro Manicômios, Prisões e Conventos, tais estruturas


são definidas como instituições totais. Nelas, há um aspecto central: a ruptura com o meio exterior,
no qual eram realizadas atividades cotidianas. “Se a estada do indivíduo é muito longa, pode
ocorrer, caso ele volte ao mundo exterior, o ‘desculturamento’- isto é, ‘destreinamento’ – que o
torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos da vida diária” (Goffman, 2013, p. 17,
23).

A instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial,


parcialmente organização formal; aí reside seu principal interesse sociológico. Há
também outros motivos que suscitam nosso interesse por esses estabelecimentos.
Em nossa sociedade, são estufas para mudar pessoas; cada uma é um
experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu.

O cotidiano em Fernando de Noronha incluía trabalhos forçados, sem descanso. Seja


carregando pedra para levantar as fortificações, seja caçando uma cota inatingível dos inumeráveis
ratos que viviam na ilha. Ao menor deslize, os castigos eram os mais severos. Há relatos de torturas,
1311

gritos lancinantes que podiam ser ouvidos à note, vindos das celas, desmoralizações as mais
variadas, entre outras coisas.

Até onde ia a mão do Estado no direito de punir? A uma distância de aproximadamente


360 quilômetros do continente, não havia controle da administração, nem limite nesse horizonte.
Assim, a fim mudar a forma de administrar a ilha e buscar sanear os desmandos praticados ali, o
arquipélago, então pertencente a Pernambuco, teve o comando transferido ao Ministério da Justiça
em 1877, cessando em 1891.

Por causa da vinculação que se havia estabelecido, em 1890, o primeiro Ato do


Governo Republicano tinha sido “banir para Fernando de Noronha todos os
capoeiristas do Brasil”, considerados àquela altura como “vadios e desordeiros”.
Também havia sido reconhecido, no Decreto 1034, de 14/11/1890, que a Justiça
constituída em Fernando de Noronha pertencia a Pernambuco, reconhecendo-
se assim o direito à jurisdição no território do arquipélago (Silva, 2007, p. 199).

Antes disso, na verdade, desde o Brasil Império, o Código Criminal assinado por Dom
Pedro em 1830 já previa o enquadramento de vadios e mendigos. A capoeira, então, era
implicitamente incluída nesses tipos penais. Havia o temor, por parte das autoridades, que pessoas
se reunissem nas ruas ou promovessem possíveis rebeliões de escravos frente às agressões de
capitães-do-mato e emboscadas. Com a Lei Áurea, a capoeira passou a ser executada nas vias
públicas, por libertos sem trabalho e moradia (Braga & Saldanha, 2014).

Vale a pena observar a realidade acima, analisando o pano de fundo do interesse em


segregar parte da população. Aqui, mais uma vez, recorremos a Foucault. Na obra Segurança,
Penalidade e Prisão, ele afirma ter sido criado um aparato de vigilância, controle e identificação de
indivíduos, a partir dos séculos XVI e XVII. “Uma tecnologia do poder apurado e cotidiano, do
poder sobre os corpos. A prisão é a figura última dessa era das disciplinas” (Foucault, 2012).

Indo mais além, o filósofo nos traz a figura do delinquente, que começa a ser definida no
século XIX. Na visão dele, a constituição deste meio é correlata à existência da prisão: “Procurou-
se constituir no próprio interior das massas um pequeno núcleo de pessoas que seriam, se assim
podemos dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas
rejeitadas, desprezadas e temidas pelo mundo” (Foucault, 2012, p. 30).
1312

Conclusão

Os personagens apresentados no habeas corpus são o retrato fiel da definição trazida por
Foucault. Não há registros de como transcorreu a vida daqueles treze homens após saírem da
Colônia Correcional. Mesmo assim, não é difícil apostar nas dificuldades que certamente
enfrentaram na retomada do cotidiano. Situação esta, aliás, que apesar de passados séculos,
atualmente não é muito diferente, em sua essência.

A capoeira - motivo que os levou à cadeia, deixou de ser considerada crime em 1936, no
governo Getúlio Vargas. Em 2014, foi elevada à categoria de Patrimônio Cultural Imaterial da
Humanidade (IPHAN, 2020). Entretanto, os reflexos dos preconceitos que envolvem as
manifestações da cultura africana ainda estão muito presentes no século XXI. Fernando de
Noronha, local que já foi cenário de torturas aos acusados dessa prática, ganhou os títulos de Parque
Nacional em 1988 e Patrimônio Mundial Natural, a partir de 2001, por suas belezas naturais e
biodiversidade marinha.

Importa ressaltar, com isso, que se alguns conceitos e práticas da sociedade mudaram a
roupagem no século XXI, a marca indelével da violência retratada nestes acontecimentos do século
XIX ainda resistem como tatuagem no corpo social. Assim, concluímos com Foucault: “O que
deve ser objeto da luta é o funcionamento do sistema penal e do aparelho judiciário na sociedade.
Pois são eles que geram os ilegalismos que os fazem jogar uns contra os outros” (Foucault, 2012.
p. 35).

Referências

Braga, Janine de Caralho Ferreira & Saldanha, Bianca de Souza. Capoeira: da Criminalização no
Código Penal de 1890 ao Reconhecimento como Esporte Nacional e Legislação Aplicada. Direito,
Arte e Literatura II: XXIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2014. Disponível em :
https://www.academia.edu/36605098/Capoeira_da_criminaliza%C3%A7%C3%A3o_no_C%C3
%B3digo_Penal_de_1890_ao_reconhecimento_como_esporte_nacional_e_legisla%C3%A7%C3
%A3o_aplicada.

Brasil. Decreto 487, de 11 de outubro de 1890. Art. 339-404. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htm.

Brasil. Dossiê processo 1895.07.12. Antônio Marques d’Oliveira e Outros Contra Questor Policial.
Disponível em https://atom.tjpe.jus.br/index.php/antonio-marques-d-oliveira-e-outros-contra-
o-questor-policial. Acesso em: 26/04/2020.

Brasil. Lei 3353, de 13 de maio de 1888. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LtIM3353.htm. Acesso em: 26/04/2020.
1313

Foucault, Michel. Segurança, Penalidade e Prisão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.30, 35.

Goffman, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 17, 23.

IPHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br, em 14/06/2020.

Silva, Mareta Borges Lins e. Fernando de Noronha – Cinco Séculos de História. Recife: Celpe, 2007,
p.194-195; 198 -199.

Souza, Ricardo Luiz de. O Poder e Conhecimento Introdução ao Pensamento de Michel Foucault. Salvador:
Edufba, 2014, p.4.
1314

A autoridade feminina de Santa Teresa D’Ávila ao reformar a


Ordem das Carmelitas e ao fundar mosteiros pela Espanha no
século XVI

Maria Júlia Guimarães Salgado

Resumo: este trabalho propõe um estudo sobre a autoridade das mulheres na passagem da Idade
Média para a Moderna a partir da análise da obra da escritora e mística Teresa D’Ávila. O estudo tem
por objetivo observar as experiências femininas mediante análise da obra dessa mulher do período
medieval, especificamente As Fundações. O projeto tem por base a reflexão de que os escritos
femininos podem contribuir para uma aproximação às experiências e relações femininas ao longo
da história, algo pouco conhecido, suas maneiras de entender e estar no mundo. O estudo das
mulheres tem ainda um espaço reduzido na academia, comparativamente. Quando se pensa sobre
a Idade Média, os personagens são, em geral, reis, camponeses, guerreiros, padres, ou seja, figuras
masculinas. E as mulheres, qual o lugar que ocupam nessa sociedade? Será que elas não possuem
papeis de destaque, ou os estudos relacionados a elas são tão escassos a ponto de terem sido
esquecidas? Neste trabalho, partiremos de Teresa D’Ávila para observar os debates quanto à
autoridade feminina na Idade Média, mais especificamente, lidaremos com a hipótese de que no
século XVI, considerado o Século de Ouro da cultura espanhola, mulheres como Teresa D’Ávila
detém autoridade, no seu caso, ao se posicionar de forma contundente frente à fundação e reforma
de instituições religiosas.

Palavras-Chaves: Idade Média, Espanha, Mulher, Teresa D’Ávila, Fundações.

Capitulo 1: Contexto Histórico

Teresa Sánchez de Cepede y Ahumada, também conhecida como Teresa de Jesus ou Teresa
de Ávila, nasceu no dia 28 de março de 1515, filha de Alonso Sánches de Cepeda e de Beatriz de
Ahumada. Teresa em sua autobiografia, Livro da Vida, afirma:

Ter pais virtuosos e tementes a Deus – se eu não fosse tão ruim – me bastaria,
com o que o Senhor me favorecia, para ser boa. Era meu pai afeiçoado a ler bons
livros e assim os tinha em vernáculo para que, seus filhos os lessem. Isto, com o
cuidado que minha mãe tinha em fazer-nos rezar e sermos devotos de Nossa
Senhora e de alguns Santos, fez-me despertar – segundo me parece – na idade de
seis ou sete anos. Ajudava-me o não ver em meus pais favor senão para a virtude.
Tinham muitas. (Teresa D’Ávila, 2006).

Após a morte de sua mãe, Teresa é mandada para um convento agostiniano para estudar,
permanecendo por alguns anos ali. Aos 20 anos, decidiu ser freira enclausurada e, contra a vontade
de seu pai, vai para o mosteiro da Encarnação. No entanto, devido a uma doença, ela lá permaneceu
por apenas um ano.
1315

O mosteiro da Encarnação estava sob ordem da Regra Mitigada, que consiste em


adequações e retirada de regras consideradas rígidas demais. Teresa faz críticas a essa regra,
defendendo a Regra Primitiva como necessária para a purificação da alma, como será tratado mais
a frente.

A discordância com a Regra Mitigada motivou a santa a reformar a Ordem Carmelita


Calçada e a fundar a Ordem Carmelita Descalça, seguindo a Regra Primitiva. E em 1562, Teresa
recebe autorização, após trâmites burocráticos, para a fundar em Ávila.

Teresa está inserida em um tempo de difícil produção literária para as mulheres, esse espaço
era ocupado em grande parte pelos homens, tendo as mulheres pequena participação. Já em relação
ao conteúdo das produções, ressaltava-se nas personagens femininas aspectos negativos e traços
de inferioridade.

Diante desse contexto, pode-se afirmar que a representação da figura feminina carregava
uma dualidade, de um lado as mulheres são associadas à Eva, a figura que trouxe o pecado ao
mundo, ceder às tentações da Serpente no segundo livro do Gênesis. Esse discurso é um dos mais
fortes na desvalorização das mulheres. Por outro lado, é por meio de Maria, mãe de Jesus, que a
figura feminina recebe certa valorização, uma vez que é através dela que a salvação veio ao mundo.
De acordo com o livro de Lucas, todas as gerações devem proclamar Maria como a bem-
aventurada, e a devoção à Virgem é construída durante a Idade Média. Apesar disso, é necessário
destacar que a figura de Maria é colocada como algo inalcançável, um modelo que as demais
mulheres jamais conseguirão seguir. Ou seja, são dois discursos contrários, mas, ao mesmo tempo,
que se reforçam.

O Catecismo Romano571, derivado do Concílio de Trento (1545-1563), ao debater sobre da


ligação entre Eva e Maria, reafirma a dicotomia

Por ter dado crédito à serpente, Eva acarretou maldição e morte ao gênero
humano. Maria acreditou nas palavras do Anjo, e obteve que aos homens viesse
[novamente] bênção e vida. Por culpa de Eva, nascemos filhos da ira; por Maria
recebemos Jesus Cristo, que nos faz renascer como filhos da graça. A Eva foi
dito: “Em dores darás a luz [teus] filhos”. Maria ficou isenta desta lei.
Conservando a integridade de sua virginal pureza, como dizíamos há pouco,
Maria deu à luz a Jesus, Filho de Deus, sem sofrer dor de espécie alguma.
(Catecismo Romano, 1990, p. 117)

Essa dicotomia na visão de mulher nos insere na maneira com as mulheres se relacionavam

571 O Catecismo Romano consiste na organização das regras e da doutrina da Igreja Católica.
1316

consigo mesma e com os outros, uma vez que as representações de Eva e Maria fazem parte do
imaginário feminino medieval, e o definem. Para entender esse relacionamento é necessário
compreender a política sexual, que conceitua as “relações de poder estabelecidas entre mulheres e
homens ao longo do tempo, tendo a sexualidade e a reprodução como centro (Brochado, 2019, p.
5). Essa política é vista pela filósofa Prudence Allen como “as relações de poder entre homens e
mulheres em função do sexo, vendo-as como anteriores a quaisquer outras, mesmo havendo
diferenças conforme tempo e cultura” (Allen apud Brochado, 2019, p. 6). Prudence Allen, a partir
da analise das mulheres medievais, afirma que na Idade Média houveram tendências distintas na
política sexual, que dizem respeito a relação dos sexos e entre os sexos572.

A primeira, chamada teoria da complementariedade dos sexos, afirma que “homens e


mulheres são distintos, mas não há ser humano superior” (Brochado, 2019, p. 6). A segunda, teoria
da polaridade dos sexos, propõe que “homens e mulheres são substancialmente diferentes, e os
homens são superiores” (Brochado, 2019, p. 10). A mudança da complementariedade para a
polaridade, para Allen, tem relação direta com a disseminação das ideias de Aristóteles a partir do
século XIII, razão de chamar de “Revolução Aristotélica”.

Aristóteles, em seus textos, apresentou uma visão que inferiorizava as mulheres, afirmando
que “a fêmea é como um macho mutilado, e as menstruações são esperma, embora não puro, pois
lhes falta apenas uma coisa, o princípio da alma” (Aristóteles apud Brochado, 2019, p. 11). Apesar
de Aristóteles considerar todos os seres com faculdades racionais, as mulheres não as possuem nas
mesmas proporções que os homens, sendo necessário que sejam “dirigidas pelos homens dada sua
incapacidade de pensar de forma ordenada” (Brochado, 2019, p. 11). O contato dos intelectuais,
sobretudo dos homens que ocupavam as universidades, com a filosofia da Antiguidade, ocasionou
um olhar de crítica para com as mulheres, uma vez que passam a serem vistas como inferiores,
como incapazes de uma produção intelectual. É nesse contexto que surge a querele des femmes573,
como uma resposta à polaridade.

A Querele des femmes surge como resposta a produções de textos com conteúdo anti-
feminino, com destaque para a obra Roman de la Rose, que foi escrita no século XIII por Guilherme

572 Maria-Milagros Rivera Garreta define a relação dos sexos e entre os sexos: “las relaciones de los sexos – se dan
siempre em una existência humana: cada mujer y cada hombre reflexiona una o muchas veces a lo largo de su vida
sobre su relación com el hecho de ser mujer u hombre; a su vez, mi manera de vivirme como mujer interviene
decisivamente em mi modo de relacionarme com las mujeres y con los hombres, y al revés” (Rivera, 2005, p. 96). A
respeito da relação entre os sexos, Cláudia Brochado afirma: “refere-se à maneira como cada um dos sexos lida com o
fato de nascerem mulheres e homens, ou seja, como lidam com essa questão fundadora e repleta de sentido que é
nascer num dado corpo, em suma, como lidam com a diferença sexual” (Brochado, 2019, p. 6).
573 Para aprofundar no assunto ver Rivera Garretas, Maria Milagros. La querela de las mujeres - una interpretación

desde la diferencia sexual. México: Política y Cultura, núm. 6, 1996, p. 25-39.


1317

de Lorris. O autor a deixou incompleta, sendo posteriormente finalizada com versos de Jean de
Meung. A historiadora Lucimara Leite fala sobre essa nova parte do Roman:

Essa segunda parte é mais incisiva no tocante ao perfil que traça da mulher, pois
a coloca numa posição de fragilidade e inferioridade, o que veio contribuir para
o aumento da misoginia, principalmente na esfera do conhecimento, da qual as
mulheres foram excluídas. (Leite, 2008, p. 90)

Em resposta a esse texto, Christine de Pizan escreveu uma carta, posicionando-se contra
os que tinham discursos contrários às mulheres. Pizan, a partir desse momento, passa a escrever
textos buscando restabelecer a figura feminina, entre eles destaca-se a obra La Cité des Dames. Para
Lucimara Leite, a autora “teve a perspicácia de atender ao chamado de sua missão: restabelecer a
dignidade feminina, principalmente fazendo-se ouvir pelos poderosos da época” (Leite, 2008, p.
15).
De forma similar Teresa se apresenta, já que seus escritos tiveram grande impacto,
principalmente a obra Las Moradas del Castillo Interior, na qual propõe a construção de um castelo da
alma, um castelo interior. Essa obra de Teresa, e o ideal elaborado, tem semelhanças com a ideia
da “Cidade das Damas” de Pizan, uma vez que constrói um espaço sobretudo para as mulheres,
como propõe a historiadora Esther Alegre Carvajal (Carvajal, 2016, p. 211). A relação é ainda mais
evidente com “As Fundações”, pois Teresa cria um espaço de liberdade para as mulheres dentro
da Ordem das Carmelitas Descalças, um espaço de liberdade interior, principalmente, lugar de cura
das vaidades e riquezas.

A obra teresiana bebe também da fonte do humanismo, sobretudo do humanismo


espanhol, com o qual teve mais contato. Esse teve características diferentes do humanismo italiano:

[...] o humanismo espanhol teve um aspecto e um desenvolvimento certamente


singulares em relação ao quadro geral europeu, mas manteve, ainda assim, em
suas mensagens definitivas e substanciais um equilíbrio, uma amplitude de
olhares e uma universalidade superiores, inclusive, em alguns sentidos, às
daquele. Diante de um humanismo filológico e erudito de estirpe italiano [...] o
humanismo espanhol foi se desencadeando no que se pode considerar seus
principais sinais de identidade: seu caráter pedagógico e emocional, sua
capacidade sincrética e pragmática, sua vocação de divulgação na língua vernácula
e sua canalização pela via da literatura. (Gárcia Gilbert, 2010, p. 58).

A Reforma Protestante e a Reforma Católica são essenciais para entender as fundações.


Em 1536, o papa Paulo III nomeou nove cardeais favoráveis a uma reforma, criando uma comissão
que elaborou o relatório “Conselho para a Reforma da Igreja” (Consilium de Emendada Ecclesia). Entre
1318

1545 e 1563, ocorre o Concílio de Trento, uma resposta à Reforma de Lutero. Um concílio tem
como objetivo legislar sobre a doutrina da Igreja,

[...] sólo se pronuncia sobre un tema cuando se constata que hay un consenso muy amplio entre
una grandísima mayoría de los padres conciliares. Los temas excesivamente polémicos quedan
preteridos si durante los debates, a veces largos y ásperos, no se llega a formular posiciones
ampliamente unitarias. (Terricabras, 2014, p. 1).

O Concílio de Trento foi responsável pela organização do Catecismo Romano, que tem
como função apresentar a doutrina católica. Nesse concílio foi determinado, como apresenta
Terricabras, regras sobre a vida das comunidades religiosas, além de detalhes sobre a alimentação
e vestimentas de cada ordem. Junto a isso, a dimensão religiosa relacionada aos votos de obediência,
pobreza e castidade. No que diz respeito à especificidade feminina, diz o autor “se toman medidas
para asegurar la libertad de las mujeres que entren en una orden religiosa, garantizando que no lo hagan coaccionadas
o pressionadas” (Terricabras, 2014, p. 2). A elas também é designado a clausura estrita, sendo assim,
a saída do mosteiro foi dificultada. Já para os religiosos do sexo masculino, a clausura não é rígida,
sendo permitida com autorização dos superiores. O Concílio, assim, reafirmou a necessidade da
clausura, sobretudo para as mulheres

A Reforma Católica foi fundamental para a missão de Teresa de fundar a Ordem das
Carmelitas Descalças. Segundo Concha Torres Sánchez:

El protagonismo de las monjas Descalzas, en detrimento de los frailes, es un hecho sin


precedentes en la historia de la Contrarreforma y de todos los movimientos evangelizadores y
fundadores que se habían dado hasta la fecha dentro de la iglesia católica. (Sánchez, 2000,
p. 17).

Teresa de Ávila representou um marco, sendo a primeira mulher a ser proclamada doutora
da Igreja. No entanto, em vida, seus textos chegaram a ser aprendidos pelo Tribunal do Santo
Ofício. A historiadora Célia Maia Borges afirma que já no início do século XVI, na Espanha, havia
a “perseguição a todas as práticas vistas como heterodoxas”, ou seja, práticas que não se adequavam
à religiosidade formal, como é o caso da literatura mística (Borges, 2005, p. 2).

As experiências místicas estavam no alvo da Inquisição, que condenou de heresia muitos e


muitas que afirmavam tê-las. O medo da condenação pela Inquisição justifica o fato de Teresa
manter em segredo suas experiências místicas, não falando sobre elas nem mesmo aos seus
confessores. No Livro da Vida, ao explicar como se deu o desejo de fundar o Carmelo das Descalças
e das experiências místicas que tinha, ela escreve:
1319

Disse-me [a viúva que desejava ajudar Teresa com a fundação da Ordem] que o
tratasse com meu prelado e, o que ele dissesse, isso fizesse. Eu não tratava destas
visões com o prelado, mas a tal senhora, que queria fazer o mosteiro, foi falar
com ele. O Provincial anuiu a isso de boamente, pois é amigo de toda a perfeição
e deu-lhe todo o apoio necessário e disse-lhe que admitiria a casa. (Teresa D’ávila,
2006).

Ela procura sempre desmentir qualquer rumor sobre suas visões:

[...] começou aqui o demônio a procurar que, de boca em boca, se fosse


espalhando e entendendo que eu havia tido alguma revelação neste negócio e
vinham, pois, a mim com muito medo a dizer que andavam os tempos difíceis e
podia ser que me levantassem alguma suspeita e fossem acusar-me aos
inquisidores. [...]. Disse, pois, que disto não temessem; muito mau seria para a
minha alma se nela houvesse coisa que fosse de molde a eu temer a Inquisição.
(Teresa D’Ávila, 2006).

Apesar das restrições, a reformadora do Carmelo tornou-se uma autoridade respeitada,


sendo exemplo de santidade e uma figura cuja intimidade com Deus era reconhecida. Assim, Teresa
se destaca em seu período e no tempo futuro, tornando-se uma fonte inesgotável para quem deseja
estudar a história das mulheres. Seus tratados teológicos e autobiográficos tratam da figura feminina
e nos apresenta como as mulheres se relacionavam consigo mesmas e com outro sexo. Ela foi a
fundadora da Ordem das Carmelitas Descalças e responsável pela criação e expansão de diversos
mosteiros pela Espanha, tornando-se uma figura feminina de grande autoridade dentro e fora da
Igreja.

Capítulo 2: As fundações

A ordem carmelita tem sua origem no ano de 1210 com a Regra de San Alberto. No século
XVI, o Carmelo sofre uma reforma motivada por Teresa de Ávila e Juan de la Cruz (1542-1591).
De acordo com Concha Torres Sánchez, essa reforma é motivada por três conceitos:

La búsqueda de unión con Dios, que es el fin primordial de la experiencia mística; la


contemplación como instrumento para llegar a esa experiencia mística, la unión del alma con el
creador; y por último, el ascetismo, que es la revisión actualizada del eremitismo, como única
forma de vida que propicia la consecución de los fines anteriores. (Sánchez, 2000, p. 154).

O mosteiro era para Teresa um lugar de purificação onde Deus retira as vaidades e as
riquezas que muitas ostentavam. No entanto, ao ingressar em um mosteiro, as mulheres levavam
consigo suas riquezas, heranças e privilégios, além de poder receber visitas e presentes, não vivendo
de forma rigorosa a clausura, o que, segundo Teresa, seria um relaxamento. Teresa crítica a vida
religiosa que foi adotada pela Regra Mitigada, que surge em 1247 por meio da Bula Pontifícia Quae
Honorem. Essa bula introduziu moderações à Regra Primitiva, como por exemplo a permissão para
residirem nas cidades. Na dimensão religiosa, o Ofício Divino passa a ser rezado em comunidade
1320

e a vivência do silencio será diminuído. Em relação às penitências e aos jejuns, a abstinência de


carne foi também reduzida. Teresa se opunha a essas práticas:

Pensava o que poderia fazer por Deus e pensei que a primeira coisa era seguir o
chamamento que Sua Majestade me fizera à Religião, guardando minha Regra
com a maior perfeição que pudesse. Na casa onde estava, havia muitas servas de
Deus e o Senhor era nela muito servido. Mas, por causa de ter grande necessidade
o mosteiro, as monjas saíam muitas vezes a lugares onde, com toda a honestidade
e religião, podiam estar. E também não estava fundada a Regra em seu primeiro
rigor, senão que se guardava conforme ao que se fazia em toda a Ordem, que é
com Bula de mitigação. Havia ainda outros inconvenientes, pois parecia-me a
mim que tinha muito regalo por ser a casa grande e deleitosa. (Teresa D’Ávila,
2006).

A preocupação de Teresa em relação aos locais públicos refere-se ao medo de que as freiras
se afastassem do relacionamento com o divino, como consequência dos pecados que rondavam as
cidades. É importante destacar que a presença dos religiosos no meio urbano já era corrente, a Bula
apenas normatizou uma prática já comum. Os mosteiros das Descalças estabeleceram-se em
diversas cidades espanholas, entre elas Ávila (1562), Medina del Campo (1567), Malagón (1568),
Valladolid (1568), Toledo (1569), Pastrana (1569), Salamanca (1570), Alba de Tormes (1571),
Segóvia (1574), Beas (1575), Servilha (1575), Caravaca (1576), Villanueva de la Jara (1580), Palencia
(1580), Soria (1581), Granada (1582) e Burgo (1582).

Teresa deixa claro em seu texto que a virtude da obediência é fundamental, tendo ela
permeado sua ação e obra. Fundar os mosteiros e reformar a ordem não se deve apenas à sua
discordância, mas é resultado de uma inspiração e solicitação divina, já que ela afirma viver
experiências sobrenaturais com a figura divina. Apesar das contrariedades advindas da sua saúde
debilitada, ela acredita que devido à obediência à Deus as fundações seriam possíveis:

Enquanto me encomendava a Deus um tanto aflita por me ver com tão pouca
capacidade e com má saúde, - que, ainda sem este acréscimo muitas vezes me
parecia excessivo o trabalho para a minha fraca natureza, - disse-me o Senhor:
‘Filha, a obediência dá forças’. (Teresa D’Ávila, 1939, p. 8).

No total foram 32 mosteiros, 17 femininos e 15 masculinos, esses últimos com a ajuda de


San Juan de La Cruz. Durante todo o processo das fundações, das instalações das casas e das
licenças, surgiram pessoas, sobretudo mulheres, que ajudaram Teresa D’Ávila. Além das questões
financeiras, essas personagens organizaram as viagens, facilitaram o aluguel de casas e a assinatura
de licenças para a abertura dos conventos. Teresa, em seu texto, dedicou-se a apresentar essas
mulheres, e, a partir de nossa análise, foi possível perceber seus espaços de atuação e os papéis que
desempenharam.
1321

A primeira mulher apresentada por Teresa é a viúva Guiomar de Ulloa (1529-1592), vinda
de uma família nobre de Toro (província de Zamora), que se mudou para Ávila após a morte do
pai, Pedro de Ulloa. Sua irmã, Aldonza de Ulloa, era interna no Convento da Encarnação. Dona
Guiomar de Ulloa casou-se com Francisco Dávila, que era membro de uma poderosa família.
Francisco morreu em 1552, deixando os quatro filhos do casal; as três filhas ingressaram no
Convento da Encarnação, e o filho sucedeu seu pai na direção da família574.

Viúva e herdeira de grande patrimônio, Guiomar de Ulloa acompanha a carmelita durante


a fundação do mosteiro de São José, pois também desejava essa reforma, e permitiu que a nova
casa tivesse renda. Ela é responsável por convencer Teresa a comunicar suas visões ao prelado, e
por sua intermediação com autoridades diversas, conseguiu a licença da ordem. Ou seja, sua
autoridade muito contribuiu na fundação do mosteiro São José de Ávila, em 1562, bem como
aproximou Teresa ao poder clerical, personificado nas figuras do confessor e do Provincial.

Teresa no Livro da Vida apresenta a ajuda dessa mulher, afirmando que

Ela foi ter com um grande letrado, muito grande servo de Deus, da Ordem de S.
Domingos, a dizer e a dar conta de tudo. [...] Esta senhora deu, pois, relação de
tudo, e conta da renda que tinha do seu morgadio, a este santo varão, com grande
desejo que nos ajudasse, porque era ele o maior letrado que então havia neste
lugar e poucos maiores havia em sua Ordem. (Teresa D’Ávila, 2006, Capítulo 32,
parágrafo 16).

No livro As Fundações, Teresa apresenta de maneira mais detalhada as personagens que


contribuíram para a Ordem. O que a motivou a escrever sobre o São José foi o pedido do seu então
confessor Frei Garcia de Toledo, em 1562, e mais adiante, em 1573, do Mestre Ripalda (Jerónimo
Ripalda – 1535-1618). Como ela diz, tendo Ripalda contato com o primeiro texto a respeito do São
José, ele “julgou do serviço de Nosso Senhor escrever-se uma notícia sobre os sete mosteiros que
de então para cá, pela bondade do Senhor, se hão fundado, [...], e mandou-me que a fizesse” (Teresa
D’Ávila, 1939, p. 8).

O segundo mosteiro foi o de São José do Carmo, em Medina del Campo, fundado no ano
de 1567, após Teresa passar 5 anos no mosteiro de Ávila. Estando nessa cidade, ela narra sobre a
fundação de Ávila, e apresenta a figura do Padre Geral575 João Batista Rossi (Frei João Batista
Rubeo de Ravena – 1507-1578). Esses superiores, dirá, “sempre residiram em Roma, e nunca tinha
vindo algum deles à Espanha” (Teresa D’Ávila, 1939, p. 17). No entanto, Padre João Batista

574 Fita, Fidel. Santa Teresa de Jesus en aldea del Palo, año 1557. Boletín de la Real Academia de la História, tomo 66, ano 1915.
Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008.
575 Padre com função de superior em uma Ordem Religiosa e comissário apostólico.
1322

recebeu ordem de ir à Espanha quando Teresa ainda estava em Ávila. Diante disso, ela sente medo,
uma vez que havia a possibilidade dele se opor a suas pretensões e mandá-la de volta ao mosteiro
da Encarnação. O mosteiro São José de Ávila estava sob jurisdição do Bispo, já que o Provincial576
se opunha a fundação, por isso o receio de Teresa à visita. O sentimento de medo descrito pela
santa frente às autoridades masculinas demonstra a humildade dela, um meio utilizado para que seu
discurso fosse legitimado, já que estava sujeita a ser perseguida e acusada pela Inquisição. A maneira
como ela apresenta o discurso de inferioridade feminina é um cuidado para que não seja mal
interpretada. O medo de Teresa é devido a possível não aprovação dos mosteiros pela Igreja, na
figura do Padre Geral, uma vez que o considera um “lugar de Deus”.

Por exemplo, diante da presença do padre Rossi, Teresa diz ver-se como uma “mulherzinha
tão sem autoridade [...] sendo de nada capaz”, afirmando que “a fé e o desejo amoroso de contentar
a Deus tornam possível o que, segundo a razão natural, não o é” (Teresa D’Ávila, 1939, p. 17). Ela
reafirma, assim, a ideia da inferioridade das mulheres em seu discurso: “é que o natural das mulheres
é fraco; e o amor-próprio que em nós reina, muito sutil” (Teresa D’Ávila, 1939, p. 31).

Teresa possuía grande autoridade, que se evidencia na própria reforma e fundação das
Carmelitas Descalças, assim, ao mesmo tempo que se coloca como inferior, ela reconhece uma
autoridade, mas não advinda da mulher “comum” por si só, e sim da figura da Virgem Maria, isto
é, será a partir da Virgem que a grandeza de Deus se manifestou nas mulheres.

Á medida que se foram povoando este pombaizinhos da Virgem Nossa Senhora,


começou a Divina Majestade a mostrar suas grandezas nestas pobres mulherzinhas
fracas por natureza, mas fortes nos desejos e no desapego de todas as coisas
criadas. (Teresa D’Ávila, 1939, p. 32).

A primeira mulher citada no livro As Fundações é Dona Cassilda de Padilla, apesar dela não
ter ajudado diretamente na fundação, sua história nos ajuda a entender o papel das mulheres diante
do casamento e da vida religiosa.

Teresa utiliza o adjetivo “lavradorazinha” para descrever Cassilda de Padilla, filha de Maria
de Acuña (? -1607) e Juan de Padilla Manrique (? -1563), gadelantado mayor (governador) de Castilha.

Além de Cassilda, o casal teve três filhas e um filho; o filho, Antonio de Padilla (1554-1611),
que pertencia à Companhia de Jesus; Luisa de Padilla, monja franciscana; Maria de Acuña, que irá
para o mosteiro dominicano de Santa Catarina de Siena; e a caçula Cassilda de Padillha, que fica

576Provincial corresponde “a um superior de nível hierárquico mais alto em uma instituição religiosa e que age sob o
comando do superior geral da instituição, supervisionado todos os membros numa divisão territorial da ordem
chamada de província” (Enciclopédia Católica, Disponível em <https://www.newadvent.org/cathen/12514b.htm>,
acesso em 9 de junho de 2020, tradução livre).
1323

noiva aos 12 anos, em 1573. A mais nova da família era prometida em casamento ao seu tio Martín
de Padilla Manrique (1540-1602), no entanto, desejava entrar no mosteiro da Conceição de
Valladolid. Segundo Teresa, essa jovem “parecia-lhe ver claramente que nessa casa, teria segura
salvação” (Ávila, 1939, p. 82). Apesar do desejo da jovem de entrar no mosteiro, havia impedimento
ao seu desejo.

Diante dessa personagem feminina é possível analisar a função matrimonial nno período.
O casamento era também uma instituição política, ou seja, ocorria para formar laços familiares.
Georges Duby apresenta que o papel do casamento é “assegurar sem prejuízo a transmissão de um
capital de bens, de glória, de honra, e de garantir à descendência uma condição, uma “posição”
pelo menos igual àquela de que se beneficiavam os ancestrais” (Duby, 2011, p. 15). No entanto, o
desejo da personagem de ser carmelita era maior, e com a ajuda de sua avó, Cassilda entra no
Carmelo e toma o hábito em 13 de janeiro de 1577. Sua irmã Luisa, diante do ingresso de Cassilda
na vida religiosa, abandona o hábito franciscano e casa-se com Martín Manrique, resolvendo o
problema familiar. Em 1581, é dada a Cassilda a missão de abadessa no convento da Puríssima
Conceição Calçada.

Por todo o livro, Teresa D’Ávila cita diversas personagens que contribuíram para o projeto
das fundações quer seja por entrarem no Carmelo, ou por suas histórias interessarem a Teresa, ao
ponto de desejar narrá-las. Para citar algumas, Ana da Madre de Deus (noviça em Toledo); Princesa
de Éboli (ajuda na fundação em Pastrana); Teresa de Lays (filha do contador do Duque de Alba de
Tormes); Dona Catarina Godines e suas filhas, Catarina Godines e Maria de Sandoval e a jovem
sevilhana, Beatriz.

Conclusão

Diante do exposto, pode-se concluir que as mulheres do período medieval e do início da


modernidade foram autoridades reconhecidas. Mulheres que desempenharam diferentes papéis,
religiosas, casadas e solteiras, camponesas ou advindas da elite. Os escritos e ações de Teresa
tiveram repercussão na sociedade da época e nas posteriores. Ela se importava com o lugar das
mulheres na sociedade, e também por isso se interessou em apresentar sua vida em seus escritos.

Essas mulheres não eram “a frente de seu tempo”, mas eram influenciadas pelos
pensamentos e mentalidades correntes. Teresa, como apresentado, foi formada pelo seu próprio
contexto histórico, que não a impediu de ser uma voz ativa, tanto no seu papel diante do poder
eclesial, quanto na crítica literária. A vida de Teresa atingiu diversas áreas das ciências, como a
1324

Literatura, a História, a Teologia. Seus escritos e sua vida são importantes para entender o lugar das
mulheres na história e na sociedade espanhola do século XVI.

Apesar da importância dessas mulheres, trabalhos e artigos sobre elas são ainda escassos,
os poucos estudos que têm as mulheres como tema se expandiram principalmente a partir da
década de 1990. Isso mostra que a historiografia não deu a devida importância à História das
Mulheres. Com a maior presença feminina nas universidades, há um interesse maior por essas
personagens, que assim passam a ser estudadas, ganhando cada vez mais protagonismo. A memória
feminina é a memória das pegadas, não chegando à contemporaneidade da mesma forma que a
história dos homens, a história das marcas, e tendo como impedimento a própria narrativa histórica
que apagou as possíveis marcas de sua memória.

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1326

Mulheres em ações de liberdade: a arena judicial como estratégia


de resistência no Recife oitocentista (1871-1885)

Maria Marinho Harten*

Resumo: nossa pesquisa tem como objetivo apresentar o protagonismo de mulheres escravizadas
em micro resistências na resolução dos conflitos advindos do regime escravista no Recife das
últimas décadas que antecederam a abolição. Como fonte buscamos os processos de ações de
liberdades acondicionadas no Memorial de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de
Pernambuco. O recorte temporal tem como marco a promulgação da Lei 2.040 de 28 de setembro
de 1871, privilegiada como amparo legal para ações movidas por escravizadas em conflitos contra
o domínio senhorial, conflito entre o direito natural de liberdades e o direito da propriedade
escrava. Vestígios e fragmentos das ações, nosso fio condutor, cruzado a notas e notícias
publicitadas em periódicos locais e ainda a historiografia recente, oportuniza a construção da
narrativa onde o lugar central ocupado por mulheres foge da imagem submissa que perdurou por
muitos anos. Aqui apresentamos mulheres numa sociedade de traços patriarcais, paternalista e
fortemente hierarquizado, que “ousam” buscar a arena judicial, rompendo com a invisibilidade
imposta aos grupos subalternos na luta por autonomia, mobilidade e liberdades. Ao mesmo tempo
que individualmente vão criando estratégias de sobrevivência e resistência, vão coletivamente
conquistando o direito coletivo da abolição gradual. A fonte judicial nos apresenta como a
interferência do Estado passa a ditar um novo padrão nas relações sociais e de poder entre o
domínio senhorial e escravizadas. O direito costumeiro da “alforria concedida” exclusivamente
pelo proprietário passa a ser discutida na esfera judicial com a garantia da irrevogabilidade. O que
move as mulheres escravizadas, de idades, cores de pele e atividades diversas, têm algo em comum:
o sonho e o desejo por liberdades. Rofina, Silvéria, Luíza e Benedicta são algumas das que
vivenciaram o confronto entre seus desejos e sonhos de liberdades e os interesses do poderio
senhorial em oposição ao lugar subalterno e invisível. Suas histórias fragmentadas nas ações instiga
a percepção e afastamento da imagem de escravizadas disciplinadas e submissas, contribuindo para
incluir as mulheres da condição servil na condução da abolição de 13 de maio de 1888.

Palavras-chave: Ações de liberdade, mulheres escravizadas, estratégia de resistência.

O trabalho aqui apresentado é o resultado da pesquisa realizada durante o Mestrado


Profissional de História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Católica de
Pernambuco, entre os anos de 2018 e 2020, sobre a judicialização das tensões, estratégia de
resistência empreendida por mulheres escravizadas na cidade do Recife entre as décadas de 1870 e
1880. Nossa abordagem segue a metodologia do paradigma indiciário indicada por Carlo Ginzburg
(1989). Seguimos nominalmente personagens das ações judiciais por periódicos em circulação no
período recortado, Diario de Pernambuco, Jornal do Recife e A Província- Órgão do Partido

* Mestranda do PPGH Mestrado Profissional de História da Universidade Católica de Pernambuco.


1327

Liberal para a construção de uma narrativa para além do espaço de judicialização, contemplando
as transformações que deixaram a cidade com ares abolicionistas.

O período analisado dá-se a partir da primeira legislação positiva a escravizadas e


escravizados, conquistada depois de muitas discussões que perduraram por mais de uma década, e
quando o clamor pelo final do regime de mão de obra cativa era colocado na ordem e pauta do
parlamento, da imprensa, pauta de teatros, meetings, discursos inflamados transpunham as paredes
das instituições imperiais e ocupavam ruas, faculdades, praças, conversas de botequins, associações
e clubes abolicionistas eram formados e a questão servil vai passando a ser socialmente ilegítima.
(Alonso, 2015, p. 280).

A fonte judicial aqui é apresentada como palco privilegiado para a observação e análise do
protagonismo de mulheres escravizadas que foram buscar a mediação do Estado para a compra de
suas alforrias. O pecúlio, direito costumeiro e regulamentado na legislação de 28 de setembro de
1871em seu artigo 4º é o embasamento legal para as súplicas das quatro mulheres que
apresentaremos neste artigo, são histórias de vida real, fragmentos das vidas de mulheres anônimas
que passam a História por terem ousado dirimir seus conflitos em ações de liberdade. O cenário
onde viveram Rofina577, Silvéria578, Luíza579 e Benedicta580, o Recife da segunda metade do
oitocentos, havia passado por grandes reformas urbanistas e estava em franca extensão territorial,
as fronteiras da cidade se alargavam para locais outrora engenhos. Cidade portuária, 3ª maior do
Brasil, ficando atrás do Rio de Janeiro e Salvador, por seus portos eram exportados e importados
além de mercadorias, as modas e modos vindos da Europa, assim as ideias libertárias ali atracavam,
bem como as ferragens que edificavam os teatros e mercados da capital da província.

O Recife, segundo o Censo Geral do Império, de 1872, em 11 paróquias, contabilizava uma


população que passava dos 116 mil habitantes. O censo dividiu a população nas categorias de almas
livres e almas escravas, pretas, pardas, crioulas, dessas 8.000 eram mulheres escravizadas em
atividades diversas, a atividade doméstica prevalecia, mas, os registros historiográficos as apontam
nas ruas da cidade, com tabuleiros na cabeça, seus vozerios e cantorias faziam parte de suas
estratégias de sobrevivência e resistência a uma sociedade fortemente hierarquizada, com traços
patriarcais e paternalistas.

Cidade anfíbia, cortada por rios, Capibaribe e Beberibe, é apontada pelo historiador Marcus
Carvalho, como a cidade que cheirava escravidão. Para o autor de Liberdade, Rotinas e Rupturas

577 Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco. Processo judicial civil. Processo de Rofina. 1871. Caixa nº 1214.
578 Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco. Processo judicial civil. Processo de Silvéria. 1878. Caixa nº 247.
579 Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco. Processo judicial civil. Processo de Luiza. 1880. Caixa nº1162.
580 Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco. Processo judicial civil. Processo de Rofina. 1885. Caixa nº 7.
1328

do Escravismo no Recife, 1822-1850, o Recife era um caldeirão cultural em plena ebulição


(Carvalho, 2010, p. 70). A influência francesa, inglesa e portuguesa, podia ser percebida em
anúncios comerciais das lojas de tecidos e alfaiatarias da cidade em expansão, anúncios que
figuravam nos periódicos da época, lado a lado com anúncios de compra, venda, aluguel e fugas de
escravizadas e escravizados, vivia a contradição entre ser uma cidade moderna e civilizada e o
emprego da mão de obra escravizada.

A Lei 2.040, Lei Rio Branco, ou Lei do Ventre Livre, como ficou conhecida, trouxe em seu
escopo dispositivos positivos, mesmo ainda sendo conservadora e precária, que passaram a ser
avocados na arena judicial. Além do artigo 1º, que definia o ventre livre, crianças nascidas a partir
de 28 de setembro de 1871, seriam consideradas livres, podendo viver sobre a guarda do senhor da
escravizada até os 21 anos, ou serem “filhos do Estado” ao completarem 8 anos de idade, em troca
da indenização ao proprietário, a regulamentação do pecúlio aumentou consideravelmente o
número de ações em prol da liberdade.

Para Cowling (2018), na década de 1870, as mulheres desempenharam papel importante


nas negociações em torno da liberdade. O processo de mudança a partir da Lei 2.040 de 28 de
setembro de 1871, conhecida como a Lei do Ventre Livre, teria “redesenhado o panorama das
batalhas judiciais” e “a relação singular das mulheres com a lei vinha de longa data” em razão do
“desejo de libertarem seus filhos, ao longo da história da escravidão nas Américas”, as colocarem
em posição de protagonistas e de sujeitos ativos nas liberdades. Silvéria havia ocupado o lugar de
sujeito ativo no protagonismo por suas liberdades, provavelmente continuou na luta e na labuta,
na resistência ao regime opressor.

Destituídas dos direitos inerentes a cidadania, as escravizadas não podiam acionar a justiça
a seu favor sozinhas. Grinberg (1994) indica que uma ação cível de liberdade e seus argumentos
eram levados à justiça por um representante, livre ou liberto, assinando a rogo pela suplicante. Em
seguida, o juiz de direito nomeava um curador, que poderia ser o representante ou não, e ordenava
o depósito581 da escravizada, para que ela ficasse resguardada enquanto a propriedade era
confrontada, protegida de ameaças e coações. O curador apresentava ao juízo argumentos que
embasariam o processo. As tensões poderiam chegar ao judiciário, quando as negociações privadas
não chegavam a consenso.

A liberdade, como conceito dinâmico, terreno de conflito, assim percebida por Carvalho
(2010), deveria ser compreendida no plural, não de forma estática, entendendo-a como “liberdades”

581O depósito de escravizadas e escravizados fazia parte do rito processual em causas de liberdade, ocorria para ser
evitado possíveis constrangimentos e represálias.
1329

(p.213), “um processo de conquistas que podem ou não ser alcançadas” (p.214) e, ainda, os
“desdobramentos de um conjunto de direitos que podem ser adquiridos ou perdidos” (p. 219),
“um caminho a ser percorrido” (p. 220), que muitas vezes “começava na construção de uma rede
de relações pessoais” (p. 220), “tortuoso, ainda mais para as mulheres, independentemente de
serem livres, forras, libertas ou escravizadas, estavam em condição inferior” (p. 227). Poderia não
surgir com a alforria, seria relativa, uma vez que a mulher liberta, na sociedade patriarcal escravista,
estaria “um degrau abaixo de todos os homens da mesma condição” (p. 227). Já para Chalhoub
(2011), a liberdade teria sentidos diversos, podendo ter representado, para escravizadas e
escravizados, “a esperança de autonomia de movimento e de maior segurança na constituição das
relações afetivas”, além da “escolha a quem servir ou escolher não servir a ninguém” (p. 98).

Para o Direito, o elemento servil só era reconhecido como pessoa quando criminalmente
fosse imputável, “para os demais atos jurídicos era uma coisa”, não sendo considerada nem
testemunha, figurava como informante (Carvalho, 2010, p. 218-219). Ao ser escravizada, tantas
vezes, perdia-se nome, laços familiares, tradições culturais e religiosas eram perdidas ou
ressignificadas. Constantemente perseguidas, viviam sob rígido controle senhorial e social, com
passos limitados aos locais estabelecidos para “pessoas de cor”, que deveriam “saber seu lugar”.
(Albuquerque, 2009, p. 33).

Para Camillia Cowlling (2018, p. 63), a vida nas cidades era vista como a oportunidade de
uma certa autonomia e acesso ao dinheiro, “importante para a compra da liberdade. A autora
pontua que nas cidades algumas escravizadas e escravizados trabalhavam por um salário diário,
prática conhecida no Brasil como “trabalhar ao ganho” e que desde que pagassem a quantia diária
exigida por seu senhor, a forma como ganhasse o dinheiro e a forma como gastasse o excedente,
não importava. A historiadora acredita que apesar da maioria não ter conseguido comprar a
liberdade, ao longo de suas vidas, as altas taxas de alforria sugerem que conheciam pessoas que
haviam alcançado esse objetivo e assim era possível terem esperanças de também conseguirem a
compra da liberdade e que a chance de acontecer era bem maior nas cidades que nas áreas rurais.

Assim, as quatro escravizadas aqui apresentadas, chegaram acompanhadas aos Cartórios


Cíveis da cidade do Recife. Rofina, em 4 de novembro de 1871, pouco mais de um mês da
promulgação da Lei 2.040, Silvéria em 1878, Luiza, em 1880 e Benedicta Thereza de Jesus em 1885.

Rofina, acompanhada do advogado Joaquim Aleixo, que por ela assina e a acompanha na
qualidade de curador durante o tramite processual. O desejo de liberdades, exposto nos argumentos
levados a juízo, por “valor acomodado” e depósito da sua pessoa. A negociação de Rofina com seu
proprietário, Francisco Ferreira de Novaes, iniciada no âmbito privado não logrou êxito pois o
1330

senhor exigia de Rofina o pagamento de um conto e quinhentos mil réis em troca da alforria
desejada. Cozinheira, engomadeira e costureira, “fazia tudo com perfeição”, alegava seu
proprietário, na tentativa de supervalorizar o preço de Rofina. O embate entre o direito natural à
liberdade e o direito constitucional da propriedade ocuparam as discussões apresentadas ao juízo.
Rofina, contava com 30 anos, “pouco mais ou menos”, a preta crioula era a escravizada de número
5 do senhor Francisco Novaes. Em favor da liberdade de Rofina, seu curador, o recém formado
pela Faculdade de Direito do Recife, Joaquim Gonçalves Aleixo, indica o depositário Cucy Juvenal
do Rego, no bairro do Poço da Panela, para quem o juízo determina a guarda da suplicante até que
o litígio judicial chegue ao final. O valor anunciado para indenização do senhor deveria ser
depositado em depósito público, o que não ocorreu. Francisco Ferreira de Novaes, em petição
apresentada aos autos, alega que estaria tendo prejuízo, que o valor anunciado além de não ser
suficiente para indenizá-lo, não teria sido depositado, alegando que acreditava que nem mesmo a
referida quantia de 800 mil réis a escravizada possuísse e que tudo não passava de um plano para ir
ganhando tempo, arrancando a escravizada de seu poder, para que a mesma andasse como livre
durante o litígio e alerta que isto poderia abrir precedentes e que colocaria o direito de propriedade,
“tão solenemente” garantido pela constituição do Império em perigo, requereu que o Juízo a
entregasse.

Em despacho, o juízo determinou que o depositário Cucy Juvenal do Rego procedesse a


entrega de Rofina ao oficial de justiça para que ela retornasse as mãos do seu proprietário enquanto
tramitasse a ação. A preta não foi encontrada no depósito, mas, na casa do seu curador, em Bairro
central da cidade, São José. Rofina resiste tentando fugir. Apreendida é entregue ao seu senhor. O
curador tenta embargar esta decisão do Juízo, alegando que o artigo da Lei 2.040 determina que em
decisões contrárias a liberdade, ex officio deveria haver encaminhamento para a instância superior, o
Tribunal das Relações. Rofina fica em posse do proprietário Francisco Novaes enquanto o litígio
segue.

Em março de 1872, Joaquim Gonçalves Aleixo vai a juízo requerer uma ordem de Habeas
Corpus em favor da preta Rofina. Alega que a sua curatelada estaria sofrendo constrangimento pois
ainda com a ação de arbitramento em curso, o seu proprietário a teria vendido e como evidência
do fato, argumenta que em foi publicado no Diario de Pernambuco de 23 de março de 1872, que
pelo nome, cor e sinais tratava-se de sua curatelada, que segundo o anúncio ela estaria sob a
propriedade de Alexandre da Motta a quem, certamente, Francisco Novaes teria vendido objeto
litigioso.
1331

A história de Rofina, narrada pelas mãos de agentes públicos e localizada por nossa pesquisa
no Memorial de Justiça do Estado de Pernambuco, não é a única. Alí, dentre tantas mais também
encontramos os fragmentos da história de Silvéria.

Silvéria, com 36 anos de idade, “pouco mais ou menos”, teria começado a negociação com
seu senhor, José Moreira da Silva, dois anos antes do abril de 1878, quando requereu avaliação
“justa” para “não morrer no cativeiro” e por desejar “uma liberdade completa”, ao Juízo 2ª Vara
Cível do Recife, levando súplica ao Cartório do escrivão de Paz Manuel Francisco Coelho Junior.582
Em mãos, Silvéria contava com recibos dos valores pagos em troca da alforria e atestado médico.
Ao seu lado, o procurador e solicitador a representou e por ela assinou a rogo, o Bacharel Romualdo
Alves de Oliveira, o mesmo que lhe serviria como curador na ação de arbitramento. Em maio de
1876, Silvéria pagou ao seu proprietário 150 mil réis, um pecúlio acumulado não sabemos em
quanto tempo, mas, provavelmente obtido da economia do trabalho exercido por ela nas cozinhas
e nos rios lavando roupas daqueles que alugavam seus serviços.

Silvéria provavelmente teria dificuldade para pagar os duzentos e trinta e nove mil réis que
ainda restavam para obter sua “liberdade completa”. O atestado médico, datado de 1º de dezembro
de 1876, apresentado aos autos, atestava que a” crioula” sofria de “tubérculos aisseminados no
ápice do pulmão direito” e que “o tratamento requer energia, assídua medicação acompanhada de
uma alimentação tônica e saudável”. A tuberculose, doença grave, bastante ignorada pelos médicos,
atingia em maiores números a população negra, não havendo por essa razão prioridade nas políticas
públicas, as doenças hostis a população branca, como a febre amarela ganhavam a atenção dos
médicos higienistas. as políticas públicas de saúde atendiam com prioridade doenças que atingiam
a população branca e “esperar que a miscigenação”-promovida pela imigração europeia, lograssem
o embranquecimento da população.” (Challoub, 2017, p. 11).

Cozinheira e lavadeira, se via obrigada a pagar jornal diário ou semanal ao seu senhor, além
do valor dos valores em prestações para a alforria. O trabalho de ganho provavelmente exigia da
escravizada dupla jornada, além do jornal e das prestações ela teria que arcar com despesas pessoais.
O autor de “Ganhadores: a greve de 1857 na Bahia”, João José Reis define o trabalho de ganho
como aquele em que escravizadas e escravizados contratavam com seus senhores o pagamento
semanal ou diário de uma determinada quantia, ficando de posse do que “sobrasse”, o que permitia
que “poupassem o suficiente para a compra da alforria” (p. 15). O autor defende que “o trabalho
de ganho não era um mar de rosas” e se dava “consumindo os corpos”, “com frequência lhes

582
Memorial de Justiça de Pernambuco. Documento 110226, Caixa 247. Processo Judicial Cível. Processo de Silvéria.
Recife, 1878.
1332

abreviando a vida” (pg. 44). As doenças nos pulmões era comum nas cidades, a tuberculose
consumia os corpos e matava583.

Seguindo nominalmente os personagens da história real de Silvéria, chegamos ao anúncio


da sua fuga, meses depois de ter começado a pagar as prestações a José Moreira da Silva, no Diario
de Pernambuco nas edições dos dias 8, 9 e 10 de novembro de 1877. O anúncio intitulado por
“Attenção”584, rogava às autoridades policiais e capitães de campo a apreensão de Silvéria,
prometendo recompensa. José Moreira da Silva indicava o endereço da Rua Estreita do Rosário,
31 e descrevia Silvéria, como uma “escrava de 38 anos de idade, baixa, magra, pés pequenos, com
falta de alguns dentes e cabelos carapinhos”. A nota informava, ainda, como ela estaria trajada e
afirmava que ela teria levado “um vestido de listras claras e chale de lã branca”.585O desejo por
liberdades vinha sendo perseguido por Silvéria que se utilizou de várias estratégias para a conquista
de seu intento. Trabalhava ao ganho, negociava o pagamento em prestações, empreendeu fuga e
levou suas súplicas a esfera pública, depositando seus anseios por liberdades na arena judicial, lugar
onde o embate teria a mediação do Estado: esse era mais um dos caminhos que poderia dar a
chance de Silvéria “não morrer no cativeiro”.

Escolhidos os avaliadores, Silvéria é levada a presença dos peritos, e avaliada em 200 mil
réis, pelo perito indicado pelo curador da suplicante, João Frederico do Rego Vasconcelos e
avaliada em 300 mil réis por Caetano Teixeira de Britto, avaliador indicado pelos advogados do
suplicado. Assim, ao terceiro avaliador, nomeado pelo juiz, mas, que havia sido indicado pelo
suplicado, Álvaro Paulo Noblato, caberia a função de desempatador. O valor arbitrado a
escravizada “doente” é de 300 mil réis, valor intermediário entre o definido por José Moreira da
Silva e o valor que proposto na petição inicial por Silvéria.

A sentença do juiz “desconsidera a gravidade do estado de saúde” e “o excesso cometido


pelos avaliadores” e determina que o valor a ser pago por Silvéria é de 300 mil réis e que deve ser
acrescido 6% por ano, caso não seja pago de imediato o valor estipulado na sentença. A ação de
arbitramento de Silvéria tramitou durante 5 meses no Juízo da 2ª Vara Cível, em rito sumário, como
determinava a Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871, parágrafo 1º do seu artigo 7º,586 não havendo
audiência de oitiva de testemunhas, nem réplicas ou tréplicas. Não tivemos acesso a qualquer

583 Para saber mais sobre as doenças que assolavam as cidades e o tratamento dispensado pela política pública higienista
que visava controlar as consideradas classes pobres e perigosas ler Chalhoub, Sidney. Cidade Febril (2017).
584 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Diário de Pernambuco. Recife, 8 , 9 e 10 de novembro de 1877. Eds.

257, 258, p. 4 e ed. 259, p. 5


585 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Diário de Pernambuco. Recife, 8 , 9 e 10 de novembro de 1877. Eds.

257, 258, p. 4 e ed. 259, p. 5.


586 Art. 7º Nas causas em favor da liberdade:§ 1º O processo será sumário.
1333

apelação, como previsto no artigo mencionado, “das causas em favor da liberdade”, em seu
parágrafo 2º, uma vez que a sentença foi desfavorável a liberdade legal de Silvéria. Tentaremos
fazer um esforço e levantaremos suposições de como teria sido a vida dessa escravizada “que já
não era um mar de rosas”. Não haverá certezas, mas, caso, a apelação ex -officio, ou requerida por
seu curador não lhe tenha sido favorável, o estatuto jurídico de Silvéria não lhe dava cidadania,
mas, dentro dos limites do que ser escrava na cidade do Recife oitocentista, ela deve ter continuado
o seu vai e vem pelas pontes e rios da cidade, podendo usar a autonomia que o trabalho de ganho
lhe oferecia, vivendo ”sobre si”, ganhava as ruas, tecendo liberdades, “transgredindo as normas
escravistas” e sonhando com o não morrer no cativeiro até onde seus pulmões aguentarem,
entoando as cantorias que animavam o trabalho das escravizadas.587 No caso de a apelação ao
Tribunal de Relações ser favorável a liberdade, Silvéria passaria de escravizada a liberta, mas, será
que as diferenças do estatuto jurídico lhe dariam uma liberdade completa? A historiografia aponta
para a precarização da liberdade.

Luíza, “parda”, pôs-se em frente ao escrivão em 20 de agosto de 1880, alegou possuir um


pecúlio no valor de 300 mil réis e, “em virtude de os senhores quererem embarcá-la amanhã para
o sul do Império”, desejava libertar-se588. A ação de Luiza ganha nota em jornais da cidade.
Inconformado com o embargo do embarque da parda e de outras escravizadas e um ingênuo, o
despachante, Joaquim Teixeira Peixoto, vai aos jornais em tom irônico elogiar o trabalho do
delegado de polícia e assim o fazendo nos deixou pistas para descortinar o movimento da sociedade
teatral da cidade em prol das liberdades. Espetáculos eram promovidos para arrecadar recursos
para a compra das alforrias. Certamente, o valor pago, em acordo extra judicial, entre o curador
Francisco Itaciano Teixeira e o proprietário de Luiza adveio do espetáculo anunciado na página 3
do Jornal de Recife no dia 4 de setembro de 1880. Toda a companhia entraria em cena. Luiza estaria
desembarcando no Porto do Rio de Janeiro no final de agosto de 1880 se não tivesse tomado uma
atitude ousada para uma escravizada. Com 17 anos de idade, a “parda” ficou sabendo que seria
vendida e embarcada para a cidade do Rio de Janeiro. Era preciso interromper o embarque e a via
judicial era o caminho mais rápido. Luiza depositou suas súplicas em 25 de agosto de 1880. “A
ameaça de venda para o trabalho nas plantations era constantemente utilizada pelos proprietários
para garantir a obediência e a disciplina”, (Cowling, 2018, p. 61) e é bem possível que Luiza temesse
o trabalho dos cafezais do sul do país. Acostumada com a vida urbana, talvez Luiza estivesse

587 Chalhoub. Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2017,
pp.30-31.
588 Memorial de Justiça de Pernambuco. Caixa 1162. Processo Judicial Cível. Processo de Luiza. Recife, 1880.
1334

familiarizada com o passear vagarosamente pelas ruas do comércio do Recife, pelo bairro de Santo
Antônio. Talvez gostasse de ver os belos vestidos franceses expostos nas vitrines das lojas.

Pelo porto do Recife, nos três anos antecederam a ação de Luiza, mais de cinco mil
escravizadas e escravizados foram exportados para o Sul do Império. A expansão da cultura cafeeira
de exportação no eixo sul do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo, movimentou um
novo mercado para o comércio de pessoas o tráfico interprovincial, entre a região norte e a região
sul.

Em discurso pronunciado na Câmara de Deputados em 22 de março de 1879, numa


discussão sobre o orçamento do Ministério da Agricultura, a que as questões do elemento servil
estavam vinculadas, o então deputado Joaquim Nabuco é efusivo e diz que o tráfico de escravos
não acabou, que o tráfico continua entre as províncias do Norte para as do Sul. Recebendo apoio
de colegas da Câmara, Nabuco continua seu discurso expressando repúdio.

[...]o tráfico de escravos que se faz do norte para o sul, se não é mais bárbaro, se
não é mais trágico, se não povoa a imaginação com essas cenas de horror e de
sangue que passavam-se nos navios negreiros, perseguidos pelos cruzeiros
ingleses, é a muitos respeitos, e sobretudo, se a dor é uma faculdade intelectual;
se o homem sofre tanto mais quanto mais desenvolvidas tem essas faculdades, o
escravo, transformado pela nossa civilização, posto em contato com as raças
superiores, mais ligado e mais preso por todos esses sentimentos que cria a
estabilidade e as relações sociais, de prosperidade e de família, para o escravo é
sem dúvida o tráfico atual muito mais cruel, muito mais doloroso do que o outro.
(muitos apoiados)”589

A ação de arbitramento proposta por Luiza tramitou rapidamente pelo judiciário. Foram
produzidas apenas 9 páginas em uma tramitação de dois meses, e “a parda” conquistou seu
objetivo. Os termos da negociação com o seu proprietário não constaram da ação de arbitramento:
Luiza não passou por avaliação. Os atos processuais se resumiram a autuação da petição inicial,
datada de 26 de agosto, nomeação do curador, expedição de ofício ao chefe de polícia para que
fossem tomadas providências para impedir o embarque, intimação da firma suplicada, audiência de
ouvida dos réus, juntada do ofício do chefe de polícia, juntada de petição do curador de Luiza
informando um acordo extrajudicial e solicitando a desistência da ação e a publicação da sentença
homologando a desistência. O confronto iniciado na arena judicial ganha espaço nos periódicos a
partir do embargo a seu embarque e do espetáculo promovido em prol da liberdade de Luiza.590

589
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Diário de Pernambuco. Recife, 4 de abril de 1879, p. 8. Nº 78
590
Memorial de Justiça de Pernambuco. Caixa 1162. Processo Judicial Cível. Processo de Luiza. Recife, 1880.
1335

As histórias de Luiza, Francisco Itaciano Teixeira e de Joaquim Teixeira Peixoto revelam a


batalha travada fora da arena judicial envolvendo o comerciante de gente e “os novos protetores
de liberdade de escravos”. A resistência empreendida por Luiza, a ação de arbitramento, a que
tivemos acesso em nossa pesquisa e narrada em nosso texto, descortina ações em prol das
liberdades que unem a agência escrava, a ação de abolicionistas e artistas de teatro na última década
do regime escravista tendo como cenário a cidade do Recife.

Luiza subverteu a norma escravista e, mesmo não sabendo quem de fato era seu
proprietário, sentia o peso do domínio senhorial ao se ver na iminência de ser afastada de sua cidade
a liberdade significou o controle sua própria mobilidade e a chance de ficar na cidade onde
mantinha suas relações pessoais e familiares, na iminência de ser embarcada para um destino
desconhecido, ou conhecido apenas por ouvir falar.

Benedicta Thereza de Jesus, 54 anos, pouco mais ou menos, chega ao Cartório Civel do
Recife em julho de 1885, acompanhada de um comerciante da cidade, que assina a rogo, uma vez
que a escravizada “não sabia ler nem escrever”, e ao escrivão argumenta pleitear sua liberdade com
o pecúlio de cem mil réis, adquirido por “esforço do seu trabalho”. Não encontramos vestígios de
que tivesse havido alguma negociação privada entre Benedicta e seu proprietário, o doutor Antonio
Vitruvio. O curador, Doutor Alfredo de Medeiros é nomeado, o valor apresentado é depositado
de imediato, Benedicta encaminhada ao depósito, indicado os avaliadores. Procedida a avaliação,
Benedicta é avaliada em duzentos mil réis, seu curador faz o depósito da diferença.

O trâmite da ação de Benedicta, com 27 páginas, levou pouco mais de 3 meses, do


recebimento da súplica em 28 de julho de 1885 a expedição da carta de liberdade em 12 de outubro
do mesmo ano e o último ato, a certidão do escrivão, passada nos autos em 7 de novembro de
1885, Pedro Tertuliano da Cunha, de expedição da carta precatória para levantamento do valor
depositado “como requerida na petição” encaminhada pelo curador.591

A arena judicial foi percebida por Rofina, Silvéria, Luiza e Benedicta como uma estratégia
de resistência e via para solução do conflito entre seu direito natural a liberdade e o direito positivo
da propriedade. A arena judicial a via para qual se dirigem e produzem discursos que traduzem a
não acomodação ao sistema que as oprimia Ali, passam a sujeitos ativos da história.

Certamente, a cidade do Recife já tinha os ares mais voltados para as lutas abolicionistas
do que o cheiro da escravidão do ano da promulgação da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871. O

591
Memorial de Justiça de Pernambuco. Caixa 7. Processo Judicial Cível. Processo de Benedicta Thereza de Jesus.
Recife, 1885.
1336

Estado do Ceará havia promovido a libertação de escravizadas e escravizados em 25 de março de


1884. Esse fato, bastante comemorado na Província de Pernambuco, trouxe repercussões que
estimularam ainda mais o debate em jornais e nas ruas, potencializando o movimento abolicionista
que na década de 1880 já era uma causa popular, como aponta a historiadora Maria Emília
Vasconcelos dos Santos (2015, p. 160) e de muita tensão e incertezas para o grupo senhorial
temeroso com a “inevitabilidade do fim do sistema” e o “encaminhamento da questão servil”. Foi
nessa década que as ações a favor das manumissões ganham força e ações para arrecadar pecúlio e
promover alforrias tomaram as ruas e os teatros do Recife. A Sociedade de Senhoras Abolicionistas
– Ave Libertas, no dia 4 de maio de 1884, em sessão deliberativa definiu estratégias para promover
a libertação no Recife, rua a rua, iniciando seus trabalhos pela rua Princesa Isabel, convidando os
moradores e comerciantes a libertarem seus “escravos” e a se comprometerem a “não mais admitir
escravos em suas casas”.592

A liberdade legal de Benedicta Thereza de Jesus se deu num contexto favorável à causa
abolicionista. Para as mulheres escravizadas, a escravidão significava, dentre outras formas, a
expressão da violência a que seus corpos estariam sujeitos, submetidas por seus proprietários
homens ao sexo muitas vezes geravam em seus ventres cativos, os filhos de seus algozes. Para a
autora Camillia Cowlling, O esforço de uma vida na escravidão, diferentemente dos escravizados,
seus corpos serviam a outros tipos de “trabalhos íntimos”. Contar a história da escravidão
silenciando as mulheres já não é mais possível. A elas, cabe o lugar de protagonistas das liberdades,
sujeito ativo da história do abolicionismo. Não é possível mais atribuir a uma mulher branca os
louros da abolição. Rofina, Silvéria, Luiza e Benedicta Thereza de Jesus estão entre tantas outras
mulheres que em suas lutas por direitos protagonizaram a abolição de 13 de maio de 1888.

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592
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Diario de Pernambuco. Recife, 06 de maio de 1884, p. 2. Nº 104.
1337

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a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento
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Recife: desde sua fundação em Olinda, no anno de 1828, até o anno de 1931. Recife: Typographia
Diário da manhã, 1931.
1340

A resistência estudantil no Território Federal do Amapá durante a


ditadura militar no Brasil

Marcella Vieira Viana*

Resumo: O Movimento Estudantil do Amapá caracteriza-se por uma história atravessada de


contradições e complexidades. Dentre estas, estão as atuações, durante o regime militar, das
organizações clandestinas e da principal entidade estudantil do território na época, a União dos
Estudantes dos Cursos Secundários do Amapá (UECSA). A partir do recorte temporal da Ditadura
Militar, entre os anos de 1964 e 1968, se estabelece como objetivo deste artigo, investigar como se
deu o processo de resistência ao regime militar por parte destas organizações, inclusive da UECSA,
que apesar de ter deliberado apoio ao golpe, teve resistência a este dentro de suas próprias fileiras.
Como base documental, serão utilizados o levantamento publicado em 2017 do Relatório da
Comissão Estadual da Verdade do Amapá (CEV-AP), produzido entre os anos de 2013 e 2016, o
arquivo não publicado do relatório, que inclui as oitivas e documentos oficiais que foram cedidos
pela CEV-AP para a realização desta pesquisa, além de registros pessoais de colaboradores dos
grupos clandestinos.

Palavras-chave: Ditadura militar, Movimento Estudantil, Amapá, Resistência.

Introdução

O golpe militar que se estabeleceu no Brasil a partir do ano de 1964, influenciou, de muitas
formas, as organizações e movimentos sociais no país. A exemplo disso, em âmbito nacional
referente ao Movimento Estudantil, “uma das primeiras ações dos militares após o golpe de Estado,
em 1964, foi o incêndio do prédio da UNE. O ato em si já demonstrou a posição dos novos
governantes em relação à associação.” (Muller, 2010, p. 21).

A União Nacional dos Estudantes (UNE) exerceu durante os anos de chumbo, papel de
forte opositora à ditadura, posicionamento que se estendeu, de forma aberta, até a decretação do
Ato Institucional n. 5 (1968) e do Decreto-Lei n. 47718 (1969). A partir disso, a UNE passou a
atuar na clandestinidade, mantendo a continuidade da luta de resistência à ditadura.593 De forma

*Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília.


593
Müller, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à
cena pública (1969-1979). 2010. 267 p. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo; Centre d‟Histoire Sociale du XXème Siècle. Université de Paris 1. Panthéon
Sorbonne. São Paulo; Paris, 2010, p. 23.
1341

geral, o “movimento Estudantil foi responsável por muitas ações de protesto em oposição ao
regime e teve apoio de partidos e organizações políticas. (Santos, 2009, p. 101).

No Amapá, na época Território Federal594, a situação não destoou completamente. O ME595


foi responsável por muitas ações de resistência, recebeu apoio de partidos e organizações sindicais
e atuou na clandestinidade (CEV, Amapá. 2017, p .28). Apesar de uma das suas peculiaridades ter
sido o apoio deliberado da principal entidade estudantil organizada do território, a União dos
Estudantes do Curso Secundarista do Amapá (UECSA), as atuações de grupos de resistência ao
golpe não foram inexistentes.

A dinâmica do movimento estudantil no Amapá precisa de análises que abarquem seus


contextos regional, territorial e estrutural. O Território, que à época não contava com instituições
de ensino superior, teve um movimento estudantil secundarista organizado através de “grupos
independentes, grêmios, organizações e dissidências” (CEV, Amapaá, 2017, p. 28). Algumas outras
características se baseiam na:

Ausência de uma Instituição de Ensino Superior no Território, o que conservava


o movimento organizado restrito à Educação Básica; a maciça presença de filhos
e filhas de funcionários da máquina estatal no sistema público de ensino; e a
intensa propaganda feita pelo governo nas escolas. Portanto, o controle direto
que o governo territorial buscou exercer sobre a UECSA, desde a sua criação,
teria levado parte de estudantes do movimento secundarista a apoiar o golpe.
(CEV, Amapá. 2017, p. 30)

Esse controle direto, ao qual o Relatório da Comissão Estadual da Verdade se refere, diz
respeito, por exemplo, a atos como a criação do primeiro Estatuto da UECSA, que, em seu Artigo
3 estabelece, entre outros objetivos da entidade, que a mesma deve “(f) colaborar com as
autoridades de ensino” (Estatuto da UECSA, 12/07/1950). De acordo com Randolfe Rodrigues,
a UECSA, logo nesse primeiro Estatuto, demonstra “uma clara preocupação em caracterizar a
UECSA não como uma entidade questionadora das autoridades constituídas; ao contrário, como
uma colaboradora destas” (Rodrigues, 2009, p. 126).

Isso, no entanto, apesar de ter uma clara influência externa, não foi a única corrente que
prevaleceu no decorrer dos anos dentro da entidade. Em depoimentos cedidos à Comissão
Estadual da Verdade do Amapá, opiniões e posturas divergentes também foram observadas. (CEV,
Amapá, 2017, p. 30)

594 Os Territórios Federais foram mecanismos adotados pelo Governo Central brasileiro para estimular a ocupação
de áreas de reduzida densidade demográfica, administrar sua potencialidade natural e garantir o domínio da região
fronteiriça nacional. (Porto, 1999, p. 1)
595 Movimento Estudantil
1342

A resistência estudantil

O Movimento Estudantil no TFA não se resumiu à atuação da UECSA, e nem ela própria
a atuação de sua corrente que apoiava o golpe. É importante destacar, além das dissidências
existentes na UECSA, as organizações da Juventude Católica amapaense: Juventude Universitária
Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Operária Católica (JOC). Todas
nascidas no início da década de 50, e tiveram uma atuação importante na resistência estudantil do
TFA.596 A JEC, por exemplo, foi responsável por promover pichações contra militares, feitas a
partir das ceras das velas da igreja católica. (Rodrigues, 2009, p. 134)

A atuação dessas organizações foi mais livre por dois fatores importantes: contavam com
certa proteção da igreja católica e não eram tão vigiadas como a UECSA (CEV, Amapá, 2017, p.
34). Isso, no entanto, não impediu que ocorressem prisões dentro de suas fileiras.

A CIA já estava dentro do país informando, ninguém podia fazer nada que tudo
era comunista. Quando estourou a revolução de 64 fomos apanhados. [...]. Eu
participava da JOC, Juventude Operária Católica, que teve um trabalho no
Amapá de denominar o nome dos bairros de Macapá. Nessa época só chamavam
Igarapé e foi mudado para Perpétuo Socorro e no Beirol surgiu o Santa Inês. A
JOC passou a fazer enfrentamento e os militares diziam que os padres eram
brancos por fora e vermelhos por dentro. Então fomos presos e veio para cá uma
Comissão Sumária e passou a fazer interrogatório de todas as pessoas que tinham
sido presas ou informadas pelo SNI ou suspeitos de serem contra os interesses
da Revolução. (Josias Nogueira Hagen Cardoso. Depoimento cedido a CEV/AP,
em 21 de agosto de 2014).

Em seu depoimento, Josias relata desde a prisão dele e de outros estudantes à proteção que
a igreja promovia. A JOC, como podemos ver, não tinha sua atuação principal voltada às pautas
estudantis mas, por abrigar estudantes que não concordavam com o regime, teve sua estrutura
vigiada e membros presos.

Outros relatos de estudantes da época são importantes para compreender as peculiaridades


do ME amapaense. Guilherme Jarbas, por exemplo, foi um dos únicos integrantes da JOC que não
fora preso devido sua proximidade com as lideranças da igreja.

Vale destacar que Guilherme Jarbas foi presidente dos Grêmios Literários Barão do Rio
Branco e Rui Barbosa, secretário-geral e vice-presidente da UECSA. Em seu relato, Guilherme fala
da repressão aos estudantes e da resistência que havia dentro da JOC.

596 Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá – Francisco das chagas Bezerra, p. 34, 2017.
1343

“– Você anda com quem?” “ – Eu ando com o fulano...”. Bastava citar o nome
que eles recolhiam. Então aqueles ligados às entidades estudantis, eles todos
foram realmente presos. O único que não foi preso foi eu, porque eu tinha uma
proteção da igreja, do bispo Dom Aristides Piróvano. Eu era da Juventude
Estudantil Católica, e havia um movimento, eu tenho até essa foto da discussão
aqui no Cine João XXIII, da Juventude Estudantil Católica, onde eu fiz um rebate
a uma agressão que o padre Antônio sofreu por parte do Ribeirinho. O padre
Antônio, numa solenidade, em vez de cantar o hino nacional, ele pediu que
rezassem o pai nosso. E eu prestei uma solidariedade ao padre Antônio, afinal eu
vivia ali com os padres. Então, eu fui chamado pelos padres, pelo Dom Aristides
que eu deveria ser da Prelazia, que eu estava sendo cassado por esse Capitão
Fontenelle. E eu fiquei até aliviar a barra. Eu acabei não sendo preso. O único
dirigente de entidade que não acabou preso por causa dessa proteção. (Guilherme
Jarbas Barbosa de Santana. Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de
2014).

O depoimento de Guilherme nos leva a concluir, além da proteção e influência real da igreja
sobre os ditadores, que o levantamento de prisões e repressões em arquivo nacional ou no sistema
judiciário, não dariam conta de relatar o que ocorria nas fileiras estudantis. A proteção da igreja
católica era importante, mas estudantes que faziam parte de diversos movimentos, acabavam sendo
presos por razões diversas.

No dia 15 de março, me recordo bem, foi uma festona e no dia 31 a Polícia


Federal, o exército invadiu a sede do Grêmio Rui Barbosa. Então, nesse período
o movimento estudantil, ele se voltava mais para a área cívica e cultural com
pequenos movimentos sociais diferenciados, e era também um grupo muito
pequeno, ligado mais ao Messias Tavares, ao Ribeirinho, tinha o Ermínio Gurgel.
Era um grupo muito pequeno. [...]. Quando o governo federal tomou o grêmio,
nós tínhamos ali uma biblioteca. Toda história estudantil do Amapá, estava
encadernada através daquele jornal O Castelo, que eles levaram tudo. Fecharam
e aí veio a ditadura que acabou com o movimento estudantil. [...]. Aí, quando veio
a revolução, fecharam lá, fizeram até um departamento da Polícia Federal.
Inicialmente a UECSA acabou pagando um preço alto e tornou-se aí um
departamento da Policia Federal. O grêmio Rui Barbosa fechou. Quando veio o
governador, o General Luiz Mendes da Silva, ele fez uma reunião no Colégio
Amapaense e fez uma proposta numa Assembleia. Naquele tempo os alunos
estudavam no segundo andar que tinha uma sala enorme. Ele transformaria ali
numa escola e que depois reformaria. Então, naquele primeiro momento da
revolução, se tornaria um ponto de encontro de estudantes. Na verdade, ele
terminou a escola, saiu a escola de lá, fechou o grêmio novamente. E no governo
de Lisboa Freire em 73, foi entregue para os Campus Avançados. Aí passou [ser]
a sede dos Campus Avançados. (Guilherme Jarbas Barbosa de Santana.
Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de 2014).

Esse trecho do depoimento de Guilherme nos leva a um ligação direta da atuação dos
militares em âmbito nacional e territorial. O golpe atuou de forma incisiva sobre os movimentos
estudantis organizados e não tardou em reprimir qualquer tipo de manifestação por parte desta
classe, que era vista como uma ameaça. No TFA não foi diferente, e apesar de contar com apoio,
os militares tiveram trabalho para conter a classe no Amapá.
1344

Soma-se a essas especificidades as questões territoriais e regionais. Sob aparência pacata,


provinciana e submissa, a sociedade amapaense escondeu, com dificuldade, as movimentações de
resistência ao golpe militar. Deu-se de forma “escondidas, disfarçada de molecagem, de artes, de
músicas, de silêncios, de recusas e afirmações” (CEV/AP, 2017, p. 35). Os anos de chumbo foram
também de amadurecimento político da juventude amapaense.

Outra organização que atuou no período, em forma de resistência à ditadura, foi a


Juventude Oratoriana do Trem (JOT). Tratava-se de um grupo de jovens que saía a noite, de
bicicleta, quebrava placas de sinalização, lâmpadas de iluminação pública, apedrejava órgãos
públicos e depredava veículos oficiais. À época, o regime via as atuações como vandalismo, mas
eram claramente atuações no sentido de resistência à ditadura militar no território.

a gente se reunia na JOT [Juventude Oratoriana do Trem] em uma sala da


paróquia da Igreja de Nossa Senhora da Conceição [...]. Éramos supervisionados
pelo Padre Vitório Galianni, que apesar de descontente com a situação brasileira,
preferia e até nos aconselhava a se preocupar com o futebol, esportes e lazer, mas
fechava os olhos quando discutíamos aqui e ali alguma coisa de política. Não
propriamente de política, mas a gente gostava de rock, jovem guarda, Beatles,
Elvis, cachaça, calça boca de sino, cabelos grandes, e a polícia, especialmente, o
delegado Oscar que era magrinho e enrugado e apelidamos ele de “Calo Seco” e
o delegado Uchôa, meu tio, perseguiam a gente sem quê, nem porquê. Um dia
decidimos aprontar. Quebrar placa de rua, lâmpadas de poste e apedrejar a
Central de Polícia que ficava ali onde é o BANAP [Banco do Estado do Amapá]
hoje. Saíamos pelo menos uma vez por semana para estas incursões até a nossa
proeza máxima que foi quebrar todas as lâmpadas da pista do aeroporto. A coisa
repercutiu muito e decidimos parar com aquilo [...]. (Entrevista de Raimundo
Simões Nobre, concedida a Dorival Santos, em fevereiro de 2000. In: Santos,
Op. Cot, 2001)

Tratava-se de uma impossibilidade de resistência armada ou organizada sob vias


estruturadas. Era a maneira como os estudantes conseguiam atuar, em forma de manifestações e
depredações silenciosas quanto ao som, mas muito barulhentas em relação ao seu significado diante
dos ditadores.

Outra organização clandestina de resistência à ditadura existente na época, foi o Clã Liberal
do Laguinho. O grupo era formado, sobretudo, por jovens moradores do bairro do Laguinho
(dentre eles, alguns estudantes do Colégio Amapaense), e tinha o propósito de discutir arte, religião
e ciência, e, todavia, acabou incomodando o regime militar.

Isso se deu graças à “independência e a criatividade com que o grupo funcionava”, isso era
inconcebível no contexto repressivo sob o qual se encontrava o TFA. Fernando Canto, um dos
presos na época, recorda o seguinte:
1345

Eu participei juntamente com o João de Deus de todas as atividades do Clã


Liberal do Laguinho, no período de 1972 e 73, e até se romper mesmo com auge
da missão esdrúxula que aconteceu aqui no Amapá e Macapá que chamava
“Operação Engasga -Engasga”. Mas, a gente era um grupo de jovens que tentava
buscar além das atividades é... sociais e religiosas, que nós éramos ligados também
muito à igreja São Benedito do movimento jovem, mas que não era o suficiente
pra gente estender nossas próprias ideias e também nossas canções, e a gente
reunia no Clã Liberal do Laguinho pra, no quintal do Pai do João de Deus,
(inaudível) no lado do poço do mato, lugar muito aprazível, muito bonito, a gente
se reunia lá pra se divertir e pra conversar, era tão interessante que até o programa
de rádio ia ser transmitido direto de lá, e a gente ia. (Fernando Pimentel Canto.
Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Mesmo com a insistente alegação da existência do clã apenas ligado às questões culturais e
artísticas, a repressão também os atingiu. Todavia, não há negação dos depoentes participantes do
movimento da época, de que essas expressões eram formas de resistência ao golpe de 64.

O grupo tinha em torno de setenta integrantes, muitos menores de idade. Esse número
elevado (para a época e o território), permitia conversas e discussões que ameaçavam a estrutura
repressiva dos ditadores. O Estado reprimiu fortemente o Clã do Laguinho.

Nós não tínhamos universidade. Todo mundo tinha que ir pra fora estudar tanto
que nós fomos, mas depois do “engasga-engasga” e também quando eu terminei
o meu curso essencial em 1973 eu ia sendo expulso por causa disso, eu tive que
ir embora daqui, eu fui preso. Toda hora a gente ia ser preso a qualquer motivo.
A repressão era tão grande que a gente era marcado. A gente já sabia que se
fizesse qualquer coisinha, andasse sem carteira de identidade, ia preso, um
negócio que realmente revoltou muita gente, traumatizou de alguma forma, né?
Até hoje a gente sente isso. Depois que a gente foi preso junto lá no exército, e
os outros nossos companheiros estavam presos em Macapá, enjaulados lá, tanto
que existe vários depoimentos e tudo mais. Mas agora, tu tava falando a respeito
dessa formação intelectual que nós tínhamos. Não chegaram a levar livro meu e
nem entrar em casa, o cara que foi me buscar foi o Amaury, o filho do seu
Amaury [Antônio Farias] o subtenente R2 cheio de soldados armados com
metralhadora [...]. A ditadura tinha que ter um, um, bode expiatório, né? E no
caso seria aqueles caras que tinham sido presos na época de 64, então vai lá,
prende o padeiro, prende o Chaguinha, prende o Gurgel, prende o Isnard, prende
o Odilardo, quer dizer, tudo isso é carta marcada, ao passo que eles estavam
fazendo um tipo de atividades que se soube depois que não era exatamente um
combate aos criminosos. (Fernando Pimentel Canto. Depoimento cedido a
CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Como bem destacou Fernando Canto, qualquer movimentação minimamente intelectual,


ofendia os ditadores que estavam no poder. As prisões eram arbitrárias, e feitas a qualquer custo e
sem justificativas plausíveis. O depoimento de Rui Gonçalves, integrante do grupo, reverbera, no
entanto, a faceta política entranhada no Clã do Laguinho:

Manoel Bispo, artista plástico e tudo, ele foi do primeiro, se eu não me engano
foi o primeiro presidente do Clã Liberal do Laguinho [...]. Era interessante o
1346

movimento. Mas ali se reunia para debater mesmo alguns assuntos, debatia,
conversava [...]. Principalmente política, questões mesmo do Amapá. Não era
todo final de semana, mas todo uma vez por mês a gente fazia uma feijoada lá na
casa do João de Deus, que ficava nas Nações Unidas, na rua de casa. (Rui
Gonçalves Lima. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Como pode-se notar, o grupo era bem mais que uma dissidência ou uma aleatoriedade.
Tinha uma estrutura estabelecida. Um presidente, pautas, pontos e dias de encontro.

A resistência dentro da UECSA

Apesar da declaração de apoio da União dos Estudantes dos Cursos Secundaristas do


Amapá ao Golpe de Estado de 64, o próprio regime identificou e tinha conhecimento da existência
de estudantes “subversivos” dentro da entidade.

Logo no início do golpe, estudantes ligados a entidades foram presos e interrogados pelos
ditadores. A exemplo disso, o estudante Savino, foi preso na Fortaleza de São José de Macapá, logo
no início do golpe, por prestar apoio ao diretor do Colégio Amapaense e chefe da Guarda
Territorial, Uadih Charone597.

597 Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá – Francisco das chagas Bezerra, p. 30, 2017.
1347

Quando iniciou a Revolução ficou um ambiente meio pesado. E o governador,


se não me engano, era o Terêncio Porto. Eu me candidatei a presidente da
UECSA. O Charone foi chamado pelo governador pra ele prender o Amaury
Farias e um outro cidadão lá de Amapá, o Elfredo Távora. Mandou prender os
dois que eles não obedeceram a ordem dada pelo governador. Charone disse que
não ia prender porque não havia razão. Não prendeu. Rebelou-se. O que ele fez?
Aquartelou-se na fortaleza junto com os guardas territoriais. Ele (o governador)
telefonou pra 8ª Região Militar do exército, pedindo reforço porque a guarda
estava sob o comando do chefe da guarda que não queria seguir as ordens
emanadas do governo. Chegou aqui um avião, à tarde, uma guarnição do exército
cheio de metralhadoras. (José Figueiredo de Souza. Depoimento cedido a
CEV/AP em 11 de novembro de 2014)

O estudante José Figueiredo, que era conhecido como Savino, se utilizou de sua liderança
estudantil para promover um movimento de resistência ao ato arbitrário dos ditadores. Organizou
uma passeata pelo centro da cidade até a Delegacia de Polícia em busca de Uadih Charone, diretor
do Colégio Amapaense na época.

Nessa altura, eu reuni os alunos dos colégios aqui no centro. O Charone ficava
sempre onde é a Biblioteca Elcy Lacerda. Era ali que funcionava a chefia de
polícia. Eu convoquei os estudantes pra lá. Eu me lembro bem que a esposa do
Amaury Farias, a Deusolina Farias, estava lá e várias lideranças. Pegamos a
bandeira brasileira e saímos rumo a fortaleza pra dar apoio ao tenente Charone
porque o exército já estava lá. Chegamos lá, eu subi a rampa, quando eu subi a
rampa, eu disse: “ – Peço a palavra”, “ – Tá Preso! Encoste ali! Seu Charone
quem é esse rapaz?”, “ – É um líder estudantil”, “ – Tá preso o senhor também!”.
Na hora eu fui preso e já tinha outros presos lá também. Então, daí começou a
história da revolução conosco, principalmente com os estudantes. O primeiro
caso político estudantil foi esse. Fui preso lá. [...]. Quando eu entrei no ônibus, o
que tinha de pente de metralhadora!! Eles vinham aqui parece iam pra uma
guerra. Esse governador fez pensar que tinha realmente uma guerra aqui. Ele
disse, inclusive, que eu havia colocado um monte de tambores para o avião não
descer, avião búfalo. Não era nada disso. Aí, mandaram me levar lá para o xadrez.
Primeiro me jogaram numa cafua fedorenta. Me deram uma caixa [de fósforo]
pra eu riscar e cheirar, que era só o que diminuía o fedor. (José Figueiredo de
Souza. Depoimento cedido a CEV/AP em 11 de novembro de 2014.)

A consequência desse ato de resistência levou à prisão do então estudante da época, José
Figueiredo. O mesmo fora preso sob a justificativa de perturbação de ordem e incitação ao
comunismo.598

Outro estudante, de nome Nestlerino dos Santos Valente, também relatou movimentos
resistentes ao regime militar dentro da UECSA. Destacou, claramente, a existência das duas
correntes:

598 Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá – Francisco das chagas Bezerra, p. 30, 2017.
1348

Eu fui presidente do grêmio Rui Barbosa, concorri a presidência da UECSA,


aonde eu perdi as eleições, mas a época no Colégio Amapaense tinha algumas
figuras que gosto de lembrar e me dá até uma crise de risos, eram pessoas que eu
respeitava muito, como: José Ribeiro que era um guarda territorial envolvido em
um processo de política estudantil, Messias Tavares, Isnard Lima, José Figueiredo
de Souza (Savino), Raimundo de Souza de Oliveira, o irmão dele, Francisco de
Souza de Oliveira [...], e tantos outros nomes importantes da política estudantil,
só que se dividiam em duas correntes: uma dos “subversivos” comunistas e a
outra daqueles que faziam apenas a política estudantil, uma espécie de atividade
social para a congregar a classe estudantil para participar desses movimentos
sociais todos, menos o político, e a gente participava de um grupo mais político,
mais politizado. (Nestlerino dos Sanos Valente. Depoimento cedido a CEV/AP
em 28 de agosto de 2014)

Nestlerino destaca a existência das correntes conhecidas como “os subversivos” e a


“direita”. Ele fazia parte dos subversivos, que, apesar de serem conhecidos assim, a maioria não
tinha qualquer ligação, por exemplo, com o Partido Comunista do Brasil e nem tinha contato com
as ideologias praticadas pelo mesmo. Eram estudantes insatisfeitos com a ditadura militar no Brasil
e no TFA.
1349

A identidade subversiva

Para além das intensas movimentações dos estudantes do Território Federal do Amapá, é
importante destacar a maneira como eles eram “encontrados”. Como vimos, não importava a qual
entidade ele pertencia, e se pertencia a alguma. O estudante precisava apenar conter determinada
característica que o regime considerasse ameaçadora, e isso incluía características pessoais, gostos,
grupos que andavam juntos, musicas que ouviam. Os critérios eram muitos, e eram identificados,
muitas vezes, por professores e diretores dentro das escolas.

O cargo de diretor escolar, na época, era considerado uma função estratégica para o regime.
Logo, a quantidade de infiltrados repressores nos ambientes estudantis era grande.

De acordo com o depoente Fernando Canto, para qualificar um estudante como


“subversivo” valiam os mais diversos absurdos: “o referido professor (Mário Quirino) propagava
que todo cabeludo e barbudo era subversivo e eu estava incluído por usar cabelo grande”.

O professor Mário Quirino disse-me que era agente do Serviço Nacional de


Informações e mostrou-se brutal no tratamento a mim dispensado, o que gerou
discussão, quase motivando minha expulsão do colégio, cogitada por ele, o que
não aconteceu graças à intervenção da orientadora. Afinal eu estudaria o último
ano do curso de contabilidade. (Resistência, Belém, maio de 1980).

Na impossibilidade de uma resistência física ou armada, o corpo era instrumentalizado


pelos estudantes para declararem o seu inconformismo. Isso era um tanto quanto difícil, tendo em
vista que o próprio aparato estatal que controlava as escolas já estava atrelado ao regime, assim
como o funcionalismo público que, muitas vezes, eram pais e parentes dos estudantes.

Naquela época nossa atividade estudantil era um tanto restrita porque todos os
estabelecimentos de ensino no Território eram de propriedade do governo, de
modo que era difícil fazer uma campanha que não afetas se o governo. E você
que estudava na escola do governo terminava se prejudicando. [...] eu, o
Nestlerino (Valente), o Aroldo Franco, Celso Saleh, Adelbaldo Andrade, Jair
Farias, Messias Tavares, Alopércio Franco, uma série de estudantes abraçavam a
política estudantil. Quando começamos, a gente era penalizado. Quando
tomávamos alguma iniciativa ou medida que esbarrasse no governo, com certeza
seríamos punidos. (Josias Nogueira Hagen Cardoso. Depoimento cedido a
CEV/AP, em 19 de setembro de 2014.)

Não havia muito para onde correr, e foi justamente esse tipo de estrutura narrada por Josias,
que incentivou a atuação dos grupos clandestinos e agrupamentos católicos que mencionamos
anteriormente.
1350

Considerações finais

A forma como o Movimento Estudantil do Território Federal do Amapá atuou durante a


ditadura militar, em muito se difere de outros estados. Seja por questões estruturais, muito ligadas
à categoria de território federal, seja por questões culturais, que não permitia, desde sempre, um
claro movimento de resistência dos estudantes. A característica de movimento cultural e artístico
serviu como camuflagem para esses aglomerados de jovens estudantes que estavam insatisfeitos
com o golpe de Estado recém inaugurado.

Pelas características regionais, que faziam do TFA um local pequeno e fadado a não
possibilidade de segredos, os jovens estudantes que resistiram à ditadura o fizeram ora organizados,
ora de qualquer forma, mas é certo que não deixaram de resistir.

Os apoios declarados aos ditadores também foram frutos dessa designação cultural que já
vinha de muito antes do golpe. Os filhos e filhas dos funcionários públicos de um território federal,
não tinham muitas saídas a não ser seguir as orientações do Estado. A UECSA, principal entidade,
prova essa tese. Já nascera sob a orientação de não resistência a qualquer ordem incumbida por
qualquer poder estabelecido. Ao mesmo tempo que isso comprova e reverbera a repressão sofrida
pelos estudantes, também mostra como o regime militar agia, estruturalmente, muito antes do golpe
militar ser instalado.

Referências bibliográficas

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Santos, Dorival da Costa dos Santos. O regime ditatorial militar no Amapá: Terror, Resistência e
Subordinação – 1964/1974. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em
História. Campinas, SP: Unicamp.
1352

Pierre Seel: sujeito esquecido da memória entre a necessidade do


lembrar e a prática do testemunhar

Mateus Henrique Siqueira Gonçalves*

Resumo: O artigo propõe uma análise dos caminhos discursivos percorridos por Pierre Seel,
deportado durante a Segunda Guerra Mundial e enviado a um campo de concentração por ser
homossexual, em sua escrita autobiográfica e testemunhal do horror nazista. Evidencia-se, na
produção de Seel, uma estratégia retórica que dá destaque às suas memórias infantojuvenis para
entender as motivações da sua obra e de sua exposição, após anos em silêncio frente às atrocidades
que passou enquanto esteve encarcerado. Tanto em termos íntimos quanto em um sentido coletivo,
“Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”, possibilita uma tentativa de compreensão dos aspectos
que constituem os impactos discursivos pretendidos pela obra a partir do agenciamento de Seel,
frente ao tabu e o silenciamento relativos a essa experiência-limite, perpetuados por sua própria
família e pelo Estado francês.

Palavras-chave: História LGBTI+; Testemunho; Autobiografia; Memória.

Abstract: The article proposes an analysis of the discursive paths taken by Pierre Seel, deported
during World War II and sent to a concentration camp for being homosexual, in his
autobiographical writing and testimony of nazi horror. Seel's production shows a rhetorical strategy
that emphasizes his childhood and youth memories to understand the motivations of his work and
his exposition, after years in silence facing the atrocities he spent while incarcerated. Both in
intimate terms and in a collective sense, “I, Pierre Seel, deported homosexual”, allows an attempt
to understand the aspects that constitute the discursive impacts intended by the work from Seel's
agency, facing the taboo and silencing of this boundary experience, perpetuated by his own family
and the French state.

Key-words: LGBTI+ History; Testimony; Autobiography; Memory.

Introdução

Em 1994, Pierre Seel, se tornou internacionalmente conhecido após o lançamento de sua


autobiografia Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel (2012). Essa narrativa foi amparada diretamente pelo
jornalista, ativista da causa homossexual, do combate a AIDS e seus preconceitos, fundador da
revista abertamente política Gai Pied, Jean Le Bitoux. Esse intelectual e ativista foi responsável por

*
Mestrando do PPGHIS da Universidade de Brasília, linha de História Social. Bacharel e licenciado em História pela
mesma universidade. Bolsista CAPES.
Este artigo é uma versão revisada, corrigida e reduzida do texto original, confeccionado na matéria de História Social
realizado na Universidade de Brasília no PPGHIS durante o 2/2019. Em caráter de experimentação, no primeiro e
prematuro contato com o documento, essa produção de natureza mais ensaística se fez viável.
1353

referenciar o texto de Seel, conversando com a mídia impressa do período e as contribuições


acadêmicas sobre o tema abordado. O texto de Seel é concebido, portanto, enquanto uma obra
memorialística de caráter testemunhal, resultado final de uma luta por reconhecimento da
deportação por homossexualidade praticada pelos nazistas. Sua literatura, de sobrevivente da
catástrofe, não diz respeito apenas aos acontecimentos escabrosos que marcam o período da
Europa ocupada, mas, primordialmente, de quem foi Pierre Seel antes e após esse evento-limite.

Nesse presente artigo, busco evidenciar e problematizar a trajetória da escrita desse


indivíduo ao expor suas intenções ditas e não ditas claramente durante seu texto. Sobretudo, através
das lacunas e tropeços da sua narrativa, historicizar seu passado e compreender suas motivações.
Por isso a importância do trato da memória na literatura de caráter ambiguamente autobiográfica e
testemunhal. É na sua intimidade e naquilo que o narrador de si tem por real que podemos enxergar
as estruturas singulares da ética e estética desse tipo específico de literatura, relacionadas
intrinsecamente à dor, ao sofrimento (Seligmann-Silva, 2005, p. 111). Busco por explanar os
elementos dolorosos que constituem o alicerce da sua obra, pois somente assim é possível
compreendê-la.

A voz autobiográfica-testemunhal silenciada de Pierre Seel: percursos e intenções

O momento decisório da sua escrita que marca o rompimento de seu silêncio quase
compulsório acontece cerca de 50 anos depois da sua catástrofe. E por quê? Após o fim da
Segunda Guerra Mundial e o início do processo de desnazificação da Europa, a França reformulou
seu Código Penal expurgando as leis antissemitas, porém, a cláusula que criminalizava a
homossexualidade anexada por causa dos alemães permaneceu intocada.599 Até que na década de
1960, segundo Tiago Elídio, o parlamento reforçou a lei anti-homossexuais encarando a
homossexualidade como uma “praga social”, equiparada ao alcoolismo, à tuberculose, à
prostituição (2010, p. 68). Somente anos depois, em 1982, a homossexualidade deixou de ser
crime na França (2010, p. 15). Essa conquista, portanto, era fruto de um novo governo que
ascendia ao poder, de pressões populares e de grupos ativistas ligados a causa homossexual por
direitos, visibilidade e reparações (2010, p. 169-170).

Porém, o início de todas as inquietações e interesses por testemunhar de Pierre Seel


surgem em 1981. Aos 58 anos, ele foi confrontado diretamente com suas memórias de horror ao

599O dispositivo do Parágrafo 175 operou na Alemanha em sua unificação desde o final do século XIX, em 1871, e
permaneceu ativo até 1994. O próprio Hitler, no ano de 1935, reformulou a lei e a recrudesceu para que a perseguição
dos homossexuais fosse elevada a um nível sistêmico (Elídio, 2010, p. 16).
1354

participar do lançamento do livro Les Hommes au triangle rose na livraria Les Ombres blanches, em
Toulouse. Ao passo que Jean-Pierre Joecker e Jean-Marie Combettes apresentavam o mais novo
lançamento da sua editora, Seel descreve um “estremecimento”:

Fazia quarenta anos que eu não ouvia o que ouvi ali. Encontrei equivalências de
situação, a descrição da mesma dor e das mesmas selvagerias. Minha memória
endurecida reconstituía-se através de flashes. [...] Eu tinha vontade de gritar do
fundo da sala: “Eu também, eu vivi coisas idênticas!” Mas não era o caso. Eu
ainda mantinha o meu anonimato (Seel, 2012, p. 134).

A memória, nesse instante, se manifesta como um aglutinador identitário. Ouvir o relato


escrito e publicado do homossexual austríaco Josef Kohout, pelas mãos do escritor alemão Hans
Neumann sob pseudônimo de Heinz Heger, lhe deu certeza de que não era o único a ter
sobrevivido aquela tragédia distinta. O momento histórico que o acometeu é comunitário, mesmo
que as memórias desses eventos possam ser construídas de maneiras isoladas, como se fossem
exclusivamente particulares e íntimas, elas não se dão no plano real desacompanhadas de outros
sujeitos. A ocasião do vivido é, por excelência, “um fenômeno coletivo e social” (Pollak, 1992, p.
201). Nesse sentido, é irremediável que a percepção da realidade não seja comungada pelas vítimas
da mesma tragédia.

Seu silêncio compulsório foi selado no imediato do pós-guerra pelo seu pai, movido pela
homofobia social e religiosa e, principalmente, da vergonha familiar, Pierre Seel colocou sua
sexualidade desviante em uma zona de negação e não aceitação. Isso o levou a um casamento
heterossexual, três filhos, aos transtornos psicológicos, ao alcoolismo e, durante um tempo, à
vivência enquanto pessoa em condição de rua (Silva, 2018, p. 20). Aos poucos retomou a mínima
normalidade de sua vida. Já no governo de François Mitterrand, responsável por alavancar os
primeiros debates públicos sobre os homossexuais deportados durante a França ocupada e
colaboracionista, um desejo de testemunhar florescia gradativamente em Seel.

Na livraria Les Ombres blanches, foi convencido pela necessidade de testemunhar oralmente
sua história entre os seus iguais, afinal, seu relato não dizia respeito somente a si próprio, mas “a
muitos desaparecidos”, como assinalou Jean-Pierre Joecker (Seel, 2012, p. 134). Os sentimentos
de libertação política e liberação interior começaram a encaixar com a fomentação de um possível
relato escrito testemunhal. Porém, o receio ainda se fazia fortemente presente: “Esse foi o
verdadeiro início de tudo o que veio depois. Percebi que havia um combate a vencer. Testemunhar,
era necessário que me atrevesse a testemunhar, mesmo que anonimamente” (Seel, 2012, p. 135).

É a partir da ferramenta literária do testemunho que Pierre Seel se posiciona enquanto


sujeito em suas subjetividades, buscando por alcançar as objetividades no cenário histórico da qual
1355

faz parte, isto é, integra de forma ativa e efetiva. A memória, nesse percurso, é a engrenagem que
interliga passado-presente-futuro. Através da rememoração que se torna possível a produção
dessa narrativa, desse texto de colocação íntima e, ao mesmo tempo, coletiva e providenciada ao
público. Essa escrita autobiográfica “[...] tem como objeto o si próprio, a análise, isto é, a
autoanálise da história de uma vida, a vida do próprio sujeito narrada por ele próprio” (Teixeira,
2003, p. 43).

Portanto, o seu texto não é somente uma autobiografia, ele é, por excelência, um manifesto
de uma revolta sócio-política autêntica. Um compilado de denúncias dos crimes contra a
humanidade perpetrado pelos nazistas acerca de um grupo específico de perseguidos,
encarcerados, assassinados. Um grito de socorro, um meio de se auto libertar, e libertar os seus
também. A força condutora de sua escrita, dos motivos que o fizeram sentar, lembrar, escrever, é,
primordialmente, uma causa sócio-política. A recusa absoluta do esquecimento, a defesa pelo
direito a se ressentir. Nela, a memória do narrador é ferramenta reconstrutora dos significados de
suas vivências (Abrahão, 2003, p. 76). Há uma militância sócio-política do “eu” e uma necessidade,
cedo ou tarde, por testemunhar, por escrever e tornar dizível, comunicável, sua catástrofe.

Conduzido pelo ressentimento legítimo à violência homofóbica que sofreu durante parte
significante de sua vida e, de forma mais severa, sob custódia dos nazistas, Seel tomou a decisão
definitiva de sair do lugar obscuro do silêncio. Assim como na música de Chico Buarque: “deixe
em paz meu coração que ele é um pote até aqui de mágoa, e qualquer desatenção, faça não, pode
ser a gota d’água” (Hollanda, 1977), o apogeu desse ressentimento veio à tona. No dia 8 de abril
de 1982, um pronunciamento público do bispo da Igreja Católica de Estrasburgo fez com que
Seel se inflamasse de cólera. O religioso, Léon Arthur Elchinger, disse: “Eu considero a
homossexualidade uma doença. Eu respeito os homossexuais da mesma forma como respeito os
doentes. Mas se eles querem transformar sua doença em saúde, eu não concordo” (Seel, 2012, p.
137).

Esse escarcéu se deu pelo fato do cancelamento categórico e repentino do bispo às


reservas de quarto efetuadas no seu lar católico por ativistas homossexuais da associação
internacional homossexual, a ILGA. Motivado pela raiva, Seel se uniu aos ativistas da causa,
passou cerca de seis meses escrevendo e reescrevendo uma carta testemunhando os infortúnios
que sofreu durante o nazismo e a perpetuação da guerra. Pela primeira vez, sua memória desses
eventos foi materializada em escrita e exposta ao público de maneira geral. Seel enviou o
documento à sua família, ao bispo, à mídia popular e à imprensa homossexual. Sua carta aberta
1356

foi publicada na revista francesa homossexual Gai Pied. Seu anonimato, finalmente, depois de
quase 50 anos chegara ao fim em dezembro de 1982:

Decidi dar o meu total apoio às numerosas vozes de todos aqueles e aquelas que
se sentiram ofendidos pela sua declaração de 8 de abril de 1982. Vítima do
nazismo, denuncio publicamente, com todas as minhas forças, que tais discursos
favoreceram e justificaram o extermínio de milhões de doentes por razões
políticas, religiosas, raciais ou de comportamento sexual. Não sou um doente e
não padeço de nenhuma doença. Não desejo retornar às enfermarias onde
curaram a minha homossexualidade, mais precisamente em um local que não
fica longe da capital alsaciana. Foi em 1941. Eu só tinha dezoito anos. Detido,
torturado, golpeado, preso, internado fora de toda jurisdição, sem nenhuma
defesa, nem processo, nem julgamento. Estou muito cansado essa noite por me
lembrar de todas as torturas morais e físicas e os sofrimentos indescritíveis e
inexprimíveis que então suportei. Desde então, toda a minha vida foi vivida na
terrível dor compartilhada com a minha família por causa dessa detenção
arbitrária. Sua declaração de 8 de abril de 1982 despertou em mim um
amontoado de lembranças atrozes e decidi também, aos cinquenta e nove anos,
sair do anonimato. Por toda minha vida e até hoje, eu não conheci o ódio por
ninguém. E, no entanto, sofrendo do desamparo profundo no qual nos deixa
essa homofobia sempre presente, estremeço pensando em todos os
homossexuais desaparecidos e em todos aqueles que, no mundo, infelizmente
ainda são torturados e exterminados como tantas outras minorias (Seel, 2012,
p. 172-173).

Uma carta repleta de sacarmos, indignação, sofrimento, raiva, frustração e ressentimento.


Aqui, o ressentimento atua como um antídoto ao não esquecimento das situações de extrema
violência da qual Seel foi submetido. Com essa postura, Seel pode dialogar com Jean Améry, outro
sobrevivente do universo concentracionário nazista que após a libertação começou uma extensa
produção literária acerca dos seus sofrimentos, de suas memórias e, fundamentalmente,
assumindo a reivindicação do ressentimento enquanto um direito legítimo de vítimas dessa
calamidade. Nessa perspectiva, repudia-se o fácil e falso perdão, e dá-se retomada à consciência
dos crimes inomináveis perpetrados pelos agentes e seguidores do Terceiro Reich. Ressentir-se é
fazer a tragédia presente (Grin, 2013, p. 9-10). De maneira consciente, algumas vítimas optam
pelo ressentimento como forma de luta política contra o esquecimento, contra o perdão e,
consequentemente, o aniquilamento de suas narrativas. A tortura, citada na carta de Seel, também
é um aspecto compartilhado por Améry. Do ponto de vista de quem sofreu, ele escreve:

Quem foi torturado permanece torturado. [...] Quem sofreu o tormento não
poderá mais ambientar-se no mundo, a miséria do aniquilamento jamais se
extingue. A confiança na humanidade, já abalada pelo primeiro tapa no rosto,
demolida posteriormente pela tortura, não se readquire mais (Améry apud Levi,
2016, p. 18).
1357

Essa, certamente, é uma marca irreversível nessas vítimas. Muitas vezes leva à loucura, ao
suicídio. Améry se matou em 1978, Levi em 1987, tantos outros também seguiram o mesmo
caminho. A libertação física dos campos, o retorno à vida minimamente “normal” pós-guerra,
reportar traumas, denunciar crimes, testemunhar o genocídio, às vezes, não leva o sobrevivente a
fazer, de fato, uma travessia. Para alguns, a tortura é uma morte interminável (Levi, 2016, p. 18).
O próprio Seel relata que quase enlouqueceu. Com a pressão do seu segredo dentro de si,
afundou-se na bebida alcóolica, viu seu casamento desmoronar, sua relação com os filhos
deteriorar, no fim, Seel terminou sozinho. O desejo suicida também foi parte do seu desespero
(Seel, 2012, p. 131-132).

Enfim, sua carta introduziu Seel ao ativismo homossexual, à vida política. Seel tinha
consciência do poder da linguagem, sabia que o extermínio começava no campo simbólico.
Segundo ele, são os discursos que colocam os homossexuais no papel de doentes, moralmente
corrompidos, e afins, “[...] que levaram à perseguição e ao assassinato milhares de inocentes por
parte dos nazistas” (Elídio, 2010, p. 16). Aqui, encontra-se uma motivação importante para sua
escrita, primeiro a carta, depois a autobiografia testemunhal com o intuito de alcançar o grande
público: a emergência de fazer “os outros” testemunharem consigo.

A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes,


alcançou entre nós, antes, e depois da libertação, caráter de impulso imediato e
violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro
foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a
finalidade de liberação interior (Levi, 1988, p. 8).

A “libertação interior” da qual Levi se refere é muito mais complexa do que se auto
expurgar, auto analisar, é também uma tentativa de fazer a liberação sob a condição do terceiro,
isto é, a libertação de si no outro, se validando em terceiros, se apegando a ideia de que seu relato
será verdadeiramente ouvido e apreendido como se deve. “Testemunhar para proteger o futuro,
testemunhar para acabar com a amnésia dos meus contemporâneos”, como dissertou Seel (2012,
p. 137). Ainda que a testemunha queira se fazer creditar com todos os esforços que apreende, seu
texto não é um produto de história profissional, um trabalho historiográfico, do ponto de vista
que o relato não é problematizado, racionalizado, questionado em um nexo teórico-metodológico
acadêmico. E não poderia. O sobrevivente narrador não é totalmente capaz de traduzir o que lhe
acometeu, pois, o trauma é inibidor do pensar racional sobre as memórias desses episódios. Ao
mesmo tempo, a experiência traumática estagna e impulsiona, o que leva ao testemunho, mas não
a sua racionalização, distanciamento emocional, decodificação.
1358

A obra de Pierre Seel, enquanto fonte dessa pesquisa historiográfica, formaliza diálogo
individual com o leitor, com o pesquisador, e com o meio sociocultural da qual se insurge, tendo
em vista que “põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza seus conhecimentos, os seus
valores, as suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com seus contextos”
(Moita apud Abrahão, 2003, p. 81). Essa narrativa da vida particular, escrita e exercício do “eu”,
não diz respeito somente ao indivíduo que a produz, mas, igualmente, do seu espaço-tempo. As
narrativas pessoais, portanto, partem do esforço de comunicar e integrar micro vidas com macro
espaços (Teixeira, 2003, p. 39). “É com o objetivo de relacionar a história de vida com a história
da sociedade que a “fala” dos sujeitos é considerada como espaço de articulação de memória e
história” (2003, p. 38), isto é, as vicissitudes podem ser iluminadas pelo horizonte histórico-social
que se abre por esse tipo de fonte.

Há no exercício de escrever sobre si uma motivação à superação desde a cultura greco-


romana, “[...] de ultrapassar alguma situação difícil (um luto, um exílio, uma depressão, uma
desgraça)” (Rabinow & Dreyfus, 1995, p. 271-272). Constituir a si mesmo no papel é,
similarmente, religar partes rompidas por ocasiões e desventuras da vida. Portanto, acredito que
seguindo esse raciocínio da tentativa de voltar à vida em posições não somente referentes à
dignidade humana, mas, política, social, cultural, enfim, identitária, Pierre Seel se debruça em suas
memórias mais antigas, pré evento-limite, pré trauma provindo dos nazistas, para reconectar
partes suas que estavam obliteradas. Portanto, o “testemunho tem algo de incomensurável. Ele é
ao mesmo tempo significante, palavra-corpo, e tentativa de criar significado, de simbolizar e dar
forma ao real” (Seligmann-Silva in Seel, 2012, p. 17).

Urgência à normalidade e naturalidade acerca da vida pré catástrofe nazista: o propósito


das memórias infantojuvenis

O capítulo que inaugura sua obra é intitulado “Uma família burguesa como as outras”
(Seel, 2012, p. 19), o que já manifesta um intuito pretensioso de normalização do seu núcleo
familiar. A escrita desse fragmento foca em duas partes: a si próprio, traçando uma retrospectiva
desde sua infância até o momento de sua ida à delegacia pelo furto de seu relógio, aos 17 anos; e
sobre uma descrição mais íntima de sua família, da ocupação profissional – donos de uma
importante e reconhecida confeitaria que se situava no centro da cidade – e do papel social que
seus familiares exerciam em sua comunidade natal, Mulhouse, Alsácia.

Além da religião cristã-católica, o que marca seu depoimento familiar é o


ultranacionalismo francês, principalmente acerca da memória da ocupação da Alsácia por parte
dos alemães durante a Grande Guerra:
1359

[...] meus pais haviam escondido patriotas. Para nós, a fé e a adesão à pátria livre
e católica eram a mesma coisa. Na infância, eu lembro que nos contavam
frequentemente algumas histórias da guerra de 14-18 que podiam proporcionar
aos mais jovens o sentido de orgulho de ser francês e católico, frente ao
protestantismo germânico. Como a história da bandeira francesa que a minha
família havia escondido no sótão e desenterrava, nos dias de desespero, para
cantar La Marseillaise ao redor dela, à meia voz, enquanto no andar de cima o
inimigo pisoteava o chão (Seel, 2012, p. 21-22).

A exatidão dessa memória exposta por Seel não é uma adulteração, mas é uma memória,
em parte, não vivida por esse sujeito histórico. Pierre Seel é o caçula de cinco filhos, nascido em
16 de agosto de 1923. Os eventos que marcam a Primeira Guerra Mundial datam de 1914-1918.
Portanto, o fenômeno que acontece nesse momento é denominado por Michael Pollak como
“vividos por tabela”, isto é, a memória que tem como base o pertencimento na coletividade
mesmo sem o indivíduo ter experienciado aquele espaço-tempo, aquele evento, diretamente (1992,
p. 201). Mesmo sem ter vivenciado esses eventos, ele se posiciona em sua escrita como parte ativa
do período e desse processo histórico, tendo em vista que seu núcleo familiar o transmitiu
oralmente as representações, significados e sentidos sobre esse conjunto específico de memórias.

Longe de querer falsificar posições ou identidades, Seel busca-se inserir ao seu grupo base,
às memórias da sua coletividade originária, gerando, assim, reconhecimentos, aproximações,
sentimentos de coligações e pertencimentos. Seel narra uma história patriótica familiar com o
intuito de se distanciar dos alemães, de construir barreiras culturais, sociais, identitárias, que
dividem “os nossos” dos “deles”, “nós” e “os outros”. No trecho: “[...] eu me lembro que nos
contavam frequentemente algumas histórias...” (Seel, 2012, p. 21), é possível enxergarmos as
transferências e projeções memoriais dessa família, realizadas por vias da afetividade, interligando
percepções do real com fundamentações identitários do meio social (Pollak, 1992, p. 201).

Sobre si, o que chama atenção é a exposição da sua sexualidade desviante, marcada
primordialmente pelas categorias da culpa e da vergonha. Após a descoberta da
homossexualidade, Seel busca um padre para se confessar, ali, ele se sente interrogado e invadido:

Tentei me abrir com o meu confessor. Mas sofri as consequências das minhas
audaciosas confidências. A confissão de uma simples masturbação havia feito o
padre se recusar a me dar a absolvição. Isso me levou a noites inteiras de
obsessão com o inferno e com vergonha do pecado. Aguçado pelas minhas
angústias de adolescente, ele ia cada vez mais longe na sua investigação, e a
questão do desejo homossexual surgia naturalmente. Assim, ele explorava a
intimidade da minha consciência com o voyeurismo de uma câmera impudica.
Provocantes, as suas perguntas incendiavam a minha imaginação ou avivavam
as minhas angústias. Você fez isso? Teve vontade? Com quem? Como? Onde?
Quando? Quantas vezes? Sentiu vergonha ou prazer? Quando o assédio parava,
1360

tinha a convicção de que eu era um monstro. Fui, por muito tempo, prisioneiro
do ciclo confissão-comunhão, com a absolvição erguida como uma barreira
alfandegaria entre a confissão e a hóstia. Um esquecimento, uma dissimulação,
um detalhe a mais ou a menos e a minha sensação de culpa se multiplicava.
Minha adolescência foi marcada por essa inquietação sem trégua que me isolava
dos demais (Seel, 2012, p. 27-28).

A vergonha e a culpa, fundamentadas por uma lógica cristã-católica de moralidade que


imputa a noção de pecado às sexualidades homossexuais e afetivas juntamente com suas práticas
homoeróticas, levou Seel à repulsa de sua própria identidade humana. Essas, portanto, são as
emoções disfóricas e com pesadas cargas negativas que os sujeitos se dispõem a sustentar, por
vezes, involuntariamente (Costa, 2008, p. 10). Dentro de uma educação onde a moralidade cristã
se sobrepõe e solapam os indivíduos, é regularmente permitido sentir tais impressões. Esses
sentimentos, portanto, assolam as pessoas por um enquadramento íntimo e pessoal dentro do
sistema moral que carrega vergonha e culpa enquanto meios de se auto refletir, auto avaliar e,
ouso dizer, auto punir.

Aos 17 anos, Seel já tinha se libertado dessas noções e tomado sua sexualidade enquanto
algo viável. Frequentando a praça Steinbach, onde, normalmente, homens gays se encontravam
para exercerem livremente suas sexualidades, Pierre Seel foi lesado. Desesperado pelo roubo de
seu relógio, sem saber o que diria à sua família, decidiu ir à delegacia local. Naquele instante,
encontrou-se encurralado:

Eu enrubesci, mas quis estabelecer a verdade do incidente. O delito era o roubo,


não a minha sexualidade. Ele me fez assinar a declaração e a arquivou. Porém,
no momento de me levantar para sair, ele me fez sentar novamente. Depois,
começou de repente a me tratar de maneira mais informal. Ficaria eu contente
se meu pai, com a sua íntegra reputação na cidade, descobrisse onde seu filho
de dezessete anos vagabundeava ao invés de estar em casa? Eu não desejava
criar nenhuma sombra de dúvida sobre a boa reputação da minha família.
Comecei então a chorar. Lágrimas de vergonha ou de aflição por ter sido pego,
já não sei mais. Em todo caso, eu percebi tarde demais a ingenuidade da minha
ação. O oficial de polícia, depois de me humilhar e me amedrontar, terminou
mais tranquilizador: dessa vez, nada desse assunto comprometedor seria
divulgado; bastava que eu não frequentasse mais aquele lugar de má fama. Em
seguida, ele me liberou. Entrei na delegacia como cidadão roubado, saí de lá
como homossexual envergonhado (Seel, 2012, p. 30).

De maneira ilegal, o oficial de polícia assinalou no boletim de ocorrência a


homossexualidade de Pierre Seel. À época, o Código Napoleônico não criminalizava a sexualidade
desviante. Esse documento, portanto, redigido de maneira criminosa e amparado pela homofobia
pessoal do policial, arquivado em Mulhouse, levou Seel a cair nas mãos da Gestapo pós ocupação.
Sobre esse momento-limite, Pierre Seel escreveu:
1361

O incidente não teve, de fato, consequências familiares e sociais imediatas. O


ladrão nunca foi encontrado, e eu guardei desse episódio uma simples
lembrança molesta. Eu ignorava que meu nome acabava de entrar para o
arquivo policial dos homossexuais da cidade e que, três anos mais tarde, meus
pais tomariam assim conhecimento de minha homossexualidade. E, acima de
tudo, como eu imaginaria que eu iria, por causa disso, cair nas garras dos
nazistas? (Seel, 2012, p. 30).

O roubo do relógio é uma imersão dentro do início da calamidade nazista para Pierre Seel.
meses depois, sua vida seria aniquilada – expressão que ele mesmo utiliza para explanar o evento
– e transformada para sempre com sua deportação por homossexualidade à Schirmeck-Vorbrüch.
Ali, viveria a experiência-limite do calvário da humilhação e da tortura dentro do evento-limite
que foram os projetos de desumanização e extermínio encarnados nas estruturas físicas,
psicológicas, enfim, coercitivas dos campos de trabalho forçado e extermínio. A degradação de
sua condição humana frente ao preconceito homofóbico do oficial de polícia, na hora do registro
da ocorrência, no ato de tomar-lhe depoimento, fez com que Seel vivenciasse pela primeira vez o
peso do Estado sobre sua homossexualidade. Esse é o marco que funda o início e o fim do
capítulo sobre suas memórias infantojuvenis.

A procura por normalização e naturalização da sua existência também se dá pela


preferência em narrar os traumas e o seu desenvolvimento no seu núcleo familiar, demonstrando
que Seel é alguém que sente, que sofre, que é tão humano e problemático quanto qualquer outro
indivíduo, que tem família e uma história sólida pré contato com os nazistas. Não importando se
faz acréscimos ou diminuições, até porque isso está implícito nesse tipo de literatura. Mas o que
realmente importa na sua narração é o que se ilumina, aquilo que o autor escolheu consciente por
expor. Os dispositivos de escrita que Seel utiliza estão interligados às suas emoções mais íntimas,
mas também apegado ao palpável, ao documental.

Na esteira da legitimação do seu testemunho, ele apresenta em anexo no final da obra


duas documentações que comprovam sua deportação por homossexualidade pelos nazistas. O
primeiro, data de 1941, com a ordem de deportação pela Gestapo solicitando a transferência de
Seel da prisão de Mulhouse para o campo de concentração de Schirmeck-Vorbrüch. Um
documento parcialmente censurado, entregue à Seel pelo Ministério da Justiça francesa somente
décadas depois de sua deportação. O segundo, data do final daquele mesmo ano, assinalando a
saída de Seel do campo de concentração, assinado pelo chefe do complexo, Karl Buck.

Contudo, para a França, um indivíduo só poderia ter acesso à reparação do Estado se


conseguisse montar um dossiê com testemunhas oculares de sua passagem por tais situações,
principalmente, pelos campos de concentração. Esse empecilho, logicamente, impediu que Seel
1362

fosse reconhecido oficialmente pela França como um deportado por homossexualidade. A


burocracia o cerceou. Absurdo pensar que a documentação existe, estava sob posse do governo
francês, mas mesmo com tais documentos o reconhecimento de sua história oficialmente foi
negado, pois faltavam “testemunhas oculares” do seu horror.

Em conclusão de sua obra, ele escreve:

Para a redação desse livro, minha memória foi duramente colocada à prova. E
contar sobre esses dolorosos episódios, para alguns leitores, talvez tenha trazido
à tona evocações similares, e também lúgubres. Que eles me perdoem, mas essa
escrita é também um insistente apelo às testemunhas e aos historiadores. Faltam
muitas obras sobre esse assunto. Para que eu deixe de ser o único a testemunhar
sobre a deportação dos homossexuais pelos nazistas (Seel, 2012, p. 149).

Apoiado na categoria da memória, o trabalho historiográfico formaliza um elo das


transmissões daquilo que passou. O historiador habita sempre o presente, mesmo estando em
contato íntimo com o passado, com os mortos, e fazer história é lidar regularmente com essa
fragilidade da condição humana. A ética do historiador implica assumir responsabilidades com os
mortos, com os outros, os vivos integralmente e, sobretudo, consigo mesmo no exercício do seu
trabalho (Gagnebin, 2006). Talvez, por isso, o clamor de Seel aos estudiosos profissionais da
História, para que os habilitados pudessem colocar holofotes sobre questões e gente
marginalizadas. Narrativas históricas não apaziguam tragédias históricas, mas, sobretudo, tentam
explicá-las, compreender os personagens que as integraram.

Sobre as testemunhas, Seel pretende por criar atmosfera propícia aos seus, assim como na
música Tropicália de Caetano Veloso (1968), organizar o movimento e orientar o carnaval é uma
maneira de tomar posse da dimensão histórica e política do evento que remexeram suas vidas por
completo. A questão não é puramente lembrar o passado, mas pensar as atrocidades desse tempo
acabado e, igualmente, inacabado, dessa experiência histórica, como formas de impedir que
similares catástrofes aconteçam. A História não pode ser só violência, extermínio, destruição e
ruínas, ela é igualmente reconstrução, sobrevivência, busca pela verdade, memória e justiça.

Conclusão

Se as palavras são o domínio sobre o mundo, como escreveu Clarice Lispector (1999, p.
59), Pierre Seel guiado por suas palavras, reorganiza o seu corpo e os corpos de quem o lê. É
através da linguagem que nos comunicamos enquanto animais capazes de pensar e reproduzir
pensamentos por códigos e símbolos. É por essa ferramenta que também sentimos,
desenvolvemos empatias e ódios. As palavras são as rédeas do mundo. A realidade se traduz pela
1363

expressão falada, escrita, significada. Por isso me atentei ao testemunho desse sujeito esquecido
da história entre a necessidade do lembrar e a prática do testemunhar.

Seel é o sujeito de sua história, mesmo que tenha sido interrompido por ela, em
determinado grau e momento, esse personagem da vida concreta não quer se deixar apagar no
tempo com seus problemas não resolvidos, seus demônios não exorcizados. Os indivíduos
presentemente visíveis na história são aqueles que ultrapassam a barreira da subalternidade. Esses
agentes históricos marcados pelo sofrimento que lhes impuseram se desdobram para dar novos
sentidos e novas perspectivas à vida ao se estabelecerem na conjuntura da sobrevivência.
Sobreviveram, mas agora precisam viver (Mezzadra & Spivak, 2008). Não há meios de viver
plenamente com arcos não fechados, ciclos não encerrados. O meio de ultrapassar a morte e todos
os horrores que caminham junto dessa, por excelência, são suas escritas do “eu”.

O que se apreende, de maneira geral desse testemunho doloroso, é uma luta sócio-política
por visibilidade, por necessidade de se auto solucionar dentro da sociedade. Seus problemas
íntimos não são somente seus, faz parte de um cotidiano, de uma rotina social. Emancipar-se é
não ter medo de gritar os abusos sofridos, penso que essa escrita funciona muito bem nessa
questão. Através da literatura de testemunho, Pierre Seel, atravessa seu horror de maneira decisiva,
se posiciona em uma militância efetiva, quer ser reconhecido como uma vítima de deportação por
homossexualidade, quer fazer com que outras vítimas surjam a partir do seu testemunho, quer
uma retomada de consciência social sobre crimes que foram praticados mas não julgados, não
solucionados. Sua escrita, em primeira e última instancia, busca incansavelmente atender a si e a
todos os que estão ao seu redor. É possível fechar os olhos uma vez abertos às desigualdades,
atrocidades e injustiças do mundo? Acredito que não. Pierre Seel, como vítima direta da maior
tragédia do século passado, talvez comungasse do mesmo ideal.

Referências

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da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n. 14, set. 2003, p. 79-95.

Costa, Carla Filomena César Dias da. As emoções morais: a vergonha, a culpa, e as bases
motivacionais do ser humano. Dissertação de mestrado em Psicologia. Lisboa: Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 2008.

Elídio, Tiago. A perseguição nazista aos homossexuais: o testemunho de um dos esquecidos da


memória. 2010. 95 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem, Campinas, SP.

Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
1364

Grin, Monica. Reflexões sobre o direito ao ressentimento. In: XXVII Simpósio Nacional de História,
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Levi, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

__________. Os afogados e os sobreviventes. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Mezzadra, Sandro; Spivak, Gayatri e outros (org.). Estudios postcoloniales: ensayos fundamentals.
Madrid: Editores Traficantes de Sueño, 2008.

Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5 (10), 1992, p.
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Rio de Janeiro: Cassará Editora, 2012.

Seligmann-Silva, Márcio (org.). O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e
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Silva, Karen Pereira da. Triângulo rosa: a diversidade memorial dos prisioneiros homossexuais do
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Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Licenciatura em História, Porto
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Teixeira, Leônia Cavalcante. Escrita autobiográfica e construção subjetiva. Psicologia USP, São
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Veloso, Caetano. Tropicália. Rio de Janeiro: Philips Records, 1968. (3min43sec).


1365

Imagens que dizem textos e contextos: representações do povo no


filme “Os deuses e os mortos”

Michael Silva Roseno*

Resumo: Diante da profusão de imagens que povoam o nosso cotidiano, estas passam a ser alvo
de interesse dos historiadores, tão influenciados pelo seu tempo. Estas imagens possibilitam outras
análises, ou ainda, outras histórias, como pensava o historiador Marc Ferro (1992) a respeito da
utilização dos filmes para a pesquisa histórica. A presente comunicação visa apresentar um recorte
temático acerca das representações do povo em Os deuses e os mortos (1970), filmado pelo
moçambicano Ruy Guerra e cujas gravações foram realizadas nas cidades de Itajuípe, Ilhéus e
Itabuna, localizadas no sul baiano. Este filme, que retrata a decadência da economia cacaueira na
década de 30, é objeto de pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação
em História – Atlântico e Diáspora Africana -, sob o título “Os frutos de ouro na terra adubada com
sangue: representações da identidade regional na literatura e no filme ‘Os deuses e os mortos’”. Conforme assinala
Ismail Xavier (1997), em decorrência dos acontecimentos políticos do período entre 1964 e 1968
ocorreu uma crise da “teleologia da salvação” que alimentava o Cinema Novo. O povo e o apelo
por uma conscientização deste estão sempre na órbita dos interesses desses cineastas, originários
da classe média e que propunham uma visão de classe através do cinema. Em diversas produções
do Cinema Novo podemos notar um ‘refluxo temático’ para as áreas rurais nas décadas de 30-40,
visando identificar este espaço enquanto detentor de contradições e que vivia a instabilidade de
uma sociedade em transição. Ao observar outras produções do período, a exemplo de O dragão da
maldade (1969), é possível constatar que estas representações são formuladas num contexto. Isto
nos permite atentar não apenas para as representações em si, mas também para quem as produz,
seguindo a contribuição de Roger Chartier (1990) quando afirma que estas representações são
forjadas para os interesses de determinado grupo.

Palavras-chave: Cinema, Representações, Povo.

Introdução

Nos últimos anos da década de cinquenta do século anterior, o Brasil passava por mudanças
estruturais que fizeram parte de um projeto nacional-desenvolvimentista posto em prática desde o
fim da ditadura do Estado Novo. A construção de Brasília e a consequente interiorização do Brasil,
o aumento considerável na construção de rodovias e o impulsionamento de setores industriais –
um deles, não por acaso, foi o automobilístico – ilustram, em partes, o contexto político e certa
expectativa em relação ao país.

*
Graduado em Licenciatura em História (2016) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (2017). Mestrando no
Programa de Pós-Graduação em História: Atlântico e Diáspora Africana (2020) pela Universidade Estadual de Santa
Cruz. E-mail: michael.roseno1212@gmail.com
1366

O país que ambicionava crescer “cinquenta anos em cinco”, conforme o demagogo slogan
que norteava o governo JK, não presenciou mudanças apenas em sua estrutura socioeconômica. O
campo das artes também absorveu esse discurso de “modernidade”, tendo como destaques, na
música, a Bossa Nova e a Tropicália. No cinema, um campo tão emblemático no século XX, o
anseio estético de “contar algo sobre uma realidade nova”, que tinha de “ser uma forma também
nova” (Borges, 2017, p. 404), ficou conhecida como Cinema Novo, conforme termo cunhado pelo
crítico de cinema Ely Azeredo.

As produções realizadas pelos cineastas do período eram marcadas por pontos de


convergência. Difícil dissociar o Cinema Novo de seus filmes que tiveram o Nordeste como cenário
e retrataram cangaceiros, beatos, profetas, jagunços como personagens em evidência componentes
deste espaço geográfico, e para os objetivos deste trabalho, também simbólico. Temas, tipos e tropos
que estiveram representados também na literatura regionalista de 30, campo artístico ao qual alguns
cineastas do Cinema Novo buscaram dialogar.

Para Durval Muniz de Albuquerque, este diálogo acontecia também por conta de uma
“precariedade do espaço cinematográfico” fazendo com que os cineastas busquem “imagens e
enunciados” representativos do país e suas regiões em outras linguagens do campo artístico,
“principalmente na literatura, no teatro, no rádio e na pintura”. Destarte, os filmes que buscam
retratar o Nordeste “quando não são adaptações para o cinema de romances produzidos pela
geração de trinta, buscarão nestes romances suas imagens e enunciados mais consagrados”
(Albuquerque Júnior, 2011, p. 297).

A assertiva acima evidencia que as imagens e discursos presentes nos romances da geração
de 30 foram utilizados pelos cineastas do Cinema Novo como inspiração para os seus filmes. Seja
através de adaptações literais ou como fonte de inspiração, as temáticas e paisagens nortearam parte
das produções fílmicas, retratando uma imagem de Nordeste elaborado “a partir de uma estratégia
que visava denunciar a miséria de suas camadas populares, as injustiças sociais a que estavam
submetidas e, ao mesmo tempo, resgatar as práticas e discursos de revolta popular ocorridos neste
espaço” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 208). Desta forma, o presente texto propõe problematizar
as representações das camadas populares no filme Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra, considerando
esta produção enquanto componente de um debate contemporâneo à sua época de lançamento.

Os deuses e os mortos: imagens, trama e influência

Depois de lançar filmes importantes para o cinema brasileiro – a saber, Os cafajestes (1962)
e Os fuzis (1964) -, Ruy Guerra lança em solo europeu o filme Sweet Hunters (1969). Logo após o
1367

festival de Veneza, onde o diretor apresentava este lançamento, o ator Paulo José “contou a Ruy
que tinha um grupo de pessoas interessadas em investir dinheiro em filmes. Com um Ruy
habitualmente cheio de projetos e ávido para filmar, desse encontro nasceu Os deuses e os mortos”
(Borges, 2017, p. 243).

Inicialmente, Ruy Guerra havia pensado em fazer este filme seguindo o gênero faroeste, o
que correspondia um anseio do diretor em fazer um filme “bem popular” (BORGES, 2017) e
explicitava uma dupla preocupação de cineastas do Cinema Novo: atuar como artistas, mas também
preocupados em participar de outras etapas da engenharia industrial referente ao cinema.

O filme foi gravado na região Sul da Bahia, em áreas que correspondem aos atuais
municípios de Ilhéus, Itabuna e Itajuípe. “Ruy, Paulo José e Flávio Império (...) bolaram um roteiro
que levaria Ruy de volta a seu querido Nordeste” (Borges, 2017, p. 244), espaço interessante aos
diretores e roteiristas do Cinema Novo para retratar as contradições do país. Ao mesmo tempo em
que as imagens desta região estão atravessadas pela seca e pela pobreza, é neste lugar que estão
contidas as ‘tradições’ do povo brasileiro, em contraponto com o ambiente das grandes cidades.
Estas tradições nordestinas “são sempre buscadas em fragmentos de um passado rural e pré-
capitalista; são buscadas em padrões de sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não
escravistas” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 91).

O filme retrata disputas de poder na região cacaueira durante a década de trinta do século
passado. Duas famílias - os Santana da Terra e os D’Água Limpa – disputam o controle político e
econômico da região “na lei do sangue”. Dois personagens estrangeiros chegam à região para
interferir nessa disputa. Um deles é Sete Vezes. O forasteiro que é alvejado por sete tiros nos trilhos
do trem e sobrevive para impor um radical ritual de vingança contra os oligarcas locais. Representa
a barbárie, o primitivo. O outro é um homem de negócios, representante do capital londrino. Ao
contrário de Sete Vezes que participa do derramamento de sangue nas “terras do sem fim”, o
negociante não participa do conflito, estando ali para falar de preços e demonstrar que o lucro do
“império do cacau” tinha outros destinatários.

Conforme assinala Antonio Guerreiro de Freitas, “a maior parte desse excedente não
retornava à região. mas servia à acumulação da economia de países (...) como a Inglaterra” (Freitas,
1979, p.30), ao passo que a dinâmica da economia regional caracterizou-se por monocultura de
cacau visando a exportação, mão de obra migrante para trabalhar sob condições insalubres, bem
como a valorização do grande produtor latifundiário, em detrimento ao médio e pequeno produtor.

Logo no começo do filme, após a abertura e exibição de créditos, é mostrado um plano


aberto com jagunços perfilados numa árvore. Após o plano, vemos um monólogo inflamado de
1368

um motorista de caminhão perante uma multidão. Este diz que “deu cupim na alma da caatinga”,
mas que os levará para um lugar indefinido ao Sul, que é “todo verde”, apresentando como
contraponto ao sertão.

Mesmo que a temática tenha como foco a economia e a sociedade cacaueira, o filme
ambienta suas cenas inicias, ou ponto de partida, num território marcado pela seca pois a
representação do Nordeste é construída “sempre a partir da seca e do deserto (...). A retirada, o
êxodo que ela provoca, estabelece uma verdadeira estrutura narrativa (...) até se chegar ao litoral ou
à terra prometida do Sul” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 138).

Os migrantes estão indo, uma parte para São Paulo, outra parte para o cacau, como fica
claro numa cena posterior envolvendo dois motoristas de caminhão num posto de gasolina. Um
cortejo de migrantes demonstra que o filme começa numa temporalidade mais recente: podemos
ver caminhões, estradas, postos de gasolina – elementos impensáveis para a década de 30, o que
sugere que os problemas referentes à economia cacaueira são atemporais. Este início teve cenas
gravadas em Milagres. Não por acaso, nas mesmas locações onde foi filmado o final de O Dragão
da Maldade contra o Santo Guerreiro.

Em entrevista na década de 1990, Ruy Guerra afirmou que falar da “luta pelo cacau nos
anos 1920 o atraiu por seu lado um pouco cíclico da colonização capitalista” (BORGES, 2017, p.
247). Dessa forma, poder-se-ia considerar quaisquer produtos para a representação da teia
econômica do capitalismo nas primeiras décadas do século XX. Mas Ruy escolheu o cacau. Produto
de relevante participação nas exportações baianas e signo exaustivamente escolhido para
representar uma “civilização”. As personagens “ruyguerreanas”600 confundem a cor amarela do
fruto com o amarelo do ouro, pois “o cacau é ouro, como todos repetem desde Terras do Sem Fim,
romance de Jorge Amado com o qual o filme de Ruy Guerra dialoga” (Xavier, 1997, p. 145).

Este romance narra “a trajetória épica” das figuras políticas conhecidas como coronéis,
onipresentes nas representações acerca do Nordeste. Mesmo não se tratando de uma adaptação
literal, é possível enxergar em Os deuses e os mortos alguns elementos presentes no texto de Jorge
Amado, tais como: a disputa de poder por duas famílias de coronéis locais e o destaque dado á
violência como característica ‘fundadora’ de uma civilização. É o próprio romancista quem vai
incluir a região do cacau na geografia imaginária da Bahia, pois “a ideia de Nordeste já cristalizada,

600Termo utilizado por Glauber Rocha para adjetivar aos personagens criados por Ruy Guerra. Conforme assinalado
por Vavy Pacheco Borges, em 1980 Glauber “concluía que os personagens (...) não eram brasileiros: ‘São ruyguerreanos
aqui ou acolá’” (Borges, 2017, p. 213).
1369

não incorporava ainda a Bahia”, sendo esta pensada como unicamente “sendo só a região do
Recôncavo, polarizada por Salvador”. (Albuquerque Junior, 2011, p. 245).

“Com sangue e bala”, estes coronéis tomaram posse das terras do Sul da Bahia e, mesmo
conseguindo fazer fortuna, perdem boa parte para os exploradores estrangeiros na década de 30,
acarretando num tombamento, sem luta, da sociedade do sangue diante da sociedade do dinheiro
(Albuquerque Júnior, 2011). No entender de Durval Muniz, a grande temática da obra amadiana
“é a transição entre a sociedade tradicional cacaueira e a submissão dos velhos coronéis (...) ao
capital internacional, (...) que passa a controlar, além da intermediação, a própria produção do
cacau” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 251).

Nascido em Moçambique enquanto esta era colônia portuguesa, Ruy Guerra propõe o
retrato de uma sociedade em decadência, retratada de forma a colocar dois “mundos” em oposição:
àquele referente aos estratagemas do capital e outro, de cunho metafísico, representado pelos
cadáveres que aparecem ao longo do filme, simbolizando uma localidade povoada por
assombrações, conotando um passado que está ali presente e representado. Para além de um colapso
consequente do colonialismo e do imperialismo, as imagens propostas pelo diretor evidenciam uma
sociedade que sucumbe à sua própria dinâmica interna.

Representações do povo: texto e contexto

Os primeiros filmes do Cinema Novo foram realizados durante um período democrático


na política brasileira. O ano de 1964 ficou marcado pelo golpe militar, mas também pelo
lançamento de filmes importantes ligados àquele movimento cinematográfico: Deus e o diabo na terra
do sol, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Ruy Guerra. Com um forte teor crítico, estas obras não
visavam uma crítica direta ao regime, ainda que estivessem envolvidas num debate político, pois o
Cinema Novo propunha atuar como “uma retórica de conscientização, de estabelecimento do que
era a realidade nacional, superando nossa alienação, descobrindo nosso inconsciente sob os
recalques produzidos por séculos de dominação colonial” (Albuquerque Júnior, 2011, p. 305).

Em finais da década de sessenta, por conta dos acontecimentos políticos do período


compreendido entre 1964 e 1968, “entrou em crise a teleologia da salvação que alimentava o
Cinema Novo” (Xavier, 1997, p. 132). Algumas produções601 deste período retrataram o tema da
decadência, vinculada a famílias de proprietários de terras, adeptos da monocultura, sugerindo

601
Além dos já citados Os deuses e os mortos e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, outros filmes deste período
que exemplificam esta temática são Os Herdeiros (1969), dirigido por Cacá Diegues, e A Casa Assassinada (1971), dirigido
por Paulo César Saraceni.
1370

ambientes em crise por conta de uma transição de um período rural e pré-capitalista. Em relação à
filmografia do Cinema Novo, este recuo no tempo, característico do ‘filme histórico’ pode ainda
significar que

Do ponto de vista temático, nos filmes do Cinema Novo percebe-se que a quase
totalidade está voltada para a crítica do sistema agrário, a miséria do camponês,
seu esgotamento, o latifúndio, os vários sistemas de opressão. e que a burguesia
industrial, até 1964, não comparece nos filmes. (...) No mais, os personagens são
os do mundo agrário. É como se houvesse um pacto tácito, certamente nunca
formulado nem mesmo conscientizado, entre esse movimento cinematográfico
e a burguesia ligada à industrialização, no sentido de ela não ser questionada. E
também no sentido de não se valorizar, no campo, os movimentos que estavam
então se desenvolvendo, como as Ligas Camponesas, mas dando do Nordeste
uma imagem estilo ‘feudal’ (Bernardet, 2009, p. 70-71).

O retrato de um Nordeste ‘feudal’ favorece uma abordagem que propõe, de forma


alegórica, representar o sistema neocolonial. O colapso da zona cacaueira atinge também sua
própria elite local, pois é o lugar que está metaforicamente morto, condenado à lama. Os espectros
que remontam ao título do filme representam uma estrutura interna fadada ao caos.
Diferentemente de O Dragão da Maldade, cujo final sugere a força dos elementos populares através
do golpe desferido por São Jorge/Oxóssi e da redenção de Antonio das Mortes, Os deuses e os mortos
propõe uma metafísica de cunho popular que evidencia figuras fantasmagóricas, de características
sombrias.

O povo, ou o apelo por uma conscientização deste, estão sempre na órbita dos interesses
desses cineastas. No filme de Glauber Rocha citado nesse respectivo texto, as camadas populares
se fazem presentes, quase sempre, em momentos que retratam a religiosidade desta, bem como as
precárias condições materiais dessas classes mais baixas. Na película de Ruy Guerra, o povo está
representado pelas personagens Sete Vezes e Sereno, que agem dentro da lógica de violência já
instaurada nessa região. Mesmo assassinando os coronéis, estas personagens não promovem uma
alteração significativa nos mecanismos econômicos e políticos locais, o que implica um desfecho
distante tanto dos filmes que sugeriam que “a esperança vem do povo”, ou de que a salvação seria
guiada pelos intelectuais e artistas.

Sete Vezes é o desconhecido ‘sem nome’ cuja identidade se empalidece diante da


contundência desta sobrevida de quem sofreu toda a violência possível e vê no
mundo dos homens algo já sem segredos. Ele é eficaz em suas ingerências na
ordem dos acontecimentos – lembra, por exemplo, um Antonio das Mortes – e
deixa claro que sua força misteriosa está contra os D’Água Limpa. (...) Se há uma
tradição de violência, seu papel é acirrá-la, participar do circuito da vingança
como uma emanação natural da terra, embora ninguém o conheça. (...) Sempre
1371

oracular na fala, é no cenário de um ritual de sangue que desenha para nós sua
perspectiva (Xavier, 1997, p. 146).

No decorrer de Os deuses e os mortos, Sete Vezes – “homem sem rosto, sem identidade, apenas
mais um retirante” e vindo pra “uma terra braba, terra de tiro e morte” (Albuquerque Júnior, p.
245), onde “só se falava em cacau e mortes” (Amado, 2008, p. 47) – acirra a guerra entre os Santana
da Terra e os D’Água Limpa, resultando na morte dos dois coronéis. Sete Vezes, nomeado herdeiro
pelo Coronel Santana da Terra, assume o lugar deste, senta-se em sua mesa e até deita-se na cama
com a viúva do coronel, evocando Os condenados da terra, quando Frantz Fanon (1979) aponta que
o sujeito colonizado está mais interessado em assumir o lugar do colono, do que necessariamente
em alterar a ordem das coisas, diferente de Antonio das Mortes – personagem central do filme O
Dragão da Maldade -, que se arrepende da fama de “matador de cangaceiros”.

Aliada de Sete Vezes no ritual de vingança que solapa a ‘civilização cacaueira’, Sereno é
outra personagem vinculada às classes populares com destaque na narrativa de Os deuses. Seu marido
era funcionário do Coronel Santana da Terra e foi assassinado pelo clã D’Água Limpa. O Cel.
Santana havia prometido ao marido de Sereno a escritura das terras onde o casal possuía um
casebre. Revoltada com a morte do marido e o não cumprimento da promessa, Sereno resolve agir
por conta própria. Após um breve período na prostituição - ocupação recorrente para representar
as mulheres nestas sociedades rurais ‘em transição -, ela participa dos assassinatos de integrantes
das duas famílias, funcionando, ao lado de Sete Vezes, como arlequins responsáveis por
movimentar a trama.

Ambos os personagens promovem uma revolta ‘primitiva’, não resultando numa melhoria
do funcionamento social, mas acelerando o esfacelamento da ‘civilização cacaueira’. Estas revoltas

(...) seriam produto da falta de luzes, de consciência; seriam instintividade,


barbárie. Busca-se sempre retirar destas manifestações as imagens que mais
chocam, que mais ressaltam sua diferença em relação à ordem futura que se quer
criar. Imagens chocantes que querem mostrar que a revolta é a insuficiência da
prática revolucionária (Albuquerque Júnior, p. 2011, p. 219).

Sereno e Sete Vezes, personagens oriundos das classes populares, promovem suas ações
baseados num instinto de barbárie. A opção por representá-los enquanto “produto da falta de luzes,
de consciência” – para aludir à citação acima – vai de encontro à ambição dos cineastas integrantes
do Cinema Novo de proporem uma ‘conscientização’ do povo através das suas obras. Estas
utilizam do povo como pretexto para que o cineasta dirija suas queixas aos grupos dirigentes. Falar
em nome deste heterogêneo povo legitima o discurso destes indivíduos (Albuquerque, 2011). O
ato de iluminar a consciência daqueles que parecem não possuí-la é analisado por Jean-Claude
1372

Bernardet (2009) como “uma agressiva posição de classe”. Afinal, “os cineastas provinham da
classe média e o cinema que realizavam era uma visão de classe” (Borges, 2017, p. 199).

Mesmo prezando por um cinema de autor, priorizando traços autorais de cada cineasta
integrante do movimento, os discursos imagéticos presentes no Cinema Novo aludem à máxima
levantada pelo historiador Roger Chartier. Este afirma que embora as representações sejam
construídas através de elementos do mundo material, elas “são sempre determinadas pelos
interesses de grupo que as forjam” (Chartier, 2002, p. 17), sendo impossível dissociá-las dos grupos
que a produzem.

Tendo em vista que a narrativa de Ruy Guerra inspirou-se no texto de Jorge Amado,
pertencente á uma oligarquia local, podemos problematizar a própria escolha do símbolo ‘cacau’
como ilustração para uma alegoria do sistema colonial. Stuart Hall alerta para as constantes lutas
de representações no terreno da cultura popular. Ao considerarmos que “o significado de um
símbolo cultural é atribuído em parte pelo campo social ao qual está incorporado, pelas práticas às
quais se articulam e é chamado a ressoar” (Hall, 2003, p. 258), podemos inferir que a partir da
utilização do cacau enquanto signo de uma ‘civilização’ trata-se de uma estratégia de determinados
grupos sociais que temem sucumbir junto com o meio social à qual estão vinculados, pois “todo
grupo social em crise (...) tenta deter sua morte, detendo a história” (Albuquerque Júnior, 2011, p.
91).

A pesquisa acerca destes signos e representações expressos no cinema nos sugere “analisar
no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é
filme” (Ferro, 1992, p. 87), considerando aspectos técnicos intrínsecos da obra cinematográfica,
sem deixar de analisar aspectos externos à realização da mesma. Ruy Guerra não considera a história
em si de suas obras como o elemento mais importante das mesmas, e sim a forma como essa
história é contada, o que sugere bastante atenção no que tange à montagem do filme. Em Os deuses
e os mortos, o diretor abusa do recurso conhecido como plano-sequência, que pode sugerir “uma
tensão entre o movimento e a imobilidade da câmera, dos personagens” (Vanoye, 2012, p. 98).
Durante algumas sequências, notamos cortes no meio destas, causando um “travar” dos
acontecimentos. Isto pode sugerir a própria forma com que o autor enxergou a dinâmica
econômica e social da região cacaueira, insinuando uma vagarosidade em relação às transformações
deste local, mas também destacando, a partir de cortes bruscos e do não prosseguimento das
sequências, uma dificuldade desta região em dar uma ‘guinada’ para a continuação da história.

Para ilustrar esse mundo ‘em rodeio’, que parece sempre voltar ao mesmo lugar, o final da
história apresenta um Sete Vezes que descobre não ser dono de nada, mesmo após este ter
1373

arquitetado a morte dos coronéis e tornar-se herdeiro de Santana da Terra. Ele descobre que as
lutas deixaram o legado financeiro de Santana vazio e que este patrimônio herdado por ele pertence
ao capital londrino, que não se envolveu na guerra nas terras do sem fim, muito menos no massacre
dos jagunços, filmado na praça da feira de Itajuípe, onde “o povo vem ao centro da cena como
jagunço na praça de guerra” (Xavier, 1997, p. 149). Esta cena contou com o recurso da câmera na
mão, famoso por ser utilizado nas obras do Cinema Novo. Movimentar a câmera de forma manual,
recorrendo a movimentos circulares pode “simular a verdadeira vertigem em que vivem os seus
personagens, servem para dar ilusão de movimento a personagens que são eminentemente estáticos
e teatrais (Albuquerque Júnior, 2011, p. 323).

Apesar de fatores como os fenômenos naturais (enchentes, estiagens e pragas), da flutuação


de preços do cacau no mercado de exportação, além de variações da demanda influenciarem no
crescimento de propriedades hipotecadas nos primeiros anos do século XX, a hipoteca de fazendas,
a partir de 1909/10 passou “a ser uma prática rotineira e salvo os anos de guerra, quando ocorreu
uma redução sensível, permaneceu entre 1900/1930 (...) numa faixa situada entre 150 e 200
hipotecas por ano” (Freitas, 1979, p. 33).

A derrocada de Sete Vezes, simbolizada no momento em que este perde a posse do


latifúndio, pode sugerir o final do filme. Mas a intenção de Ruy Guerra é propor uma dualidade de
instâncias. O espaço-tempo metafísico é justaposto ao espaço-tempo socioeconômico. No filme
de Glauber Rocha, personagens que representam o sincretismo das religiões afro-brasileiras com a
religião católica participam de forma ativa no andamento da narrativa. Estão lá Santa Bárbara/Iansã
e São Jorge/Oxossi ou Ogum; inclusive este assassina o coronel Horácio, em cena que evoca o
título do filme. A metafísica no filme de Ruy Guerra está presente em personagens que representam
espectros. Estão sempre “seminus ou envoltos em trajes rotos e empoeirados como mendigos,
escravos ou penitentes” e são os primeiros a aparecerem quando as ações se voltam para a região
do cacau, como quem dá as boas vindas cobrando “a dívida de sangue aí acumulada” (Xavier, 1997,
p. 136-137).

Ao final do filme, podemos ver os espectros – os verdadeiros deuses e mortos – formarem


“um círculo em torno de Sete Vezes, (...) caído de cara no chão, como um feto de bruços, na mesma
posição que o vimos lá no início entre os trilhos da estrada de ferro, caçado pelos jagunços. Fecha-
se o ciclo da morte adiada” (Xavier, 1997, p.159). Abordar o colapso sob o duplo viés do
socioeconômico e do metafísico através de imagens e textos metafóricos correspondia a um
imperativo de ordem política ocorrido meses antes das filmagens de Os deuses e os mortos – o Ato
1374

Institucional nº 5, que coibia a liberdade de expressão, principalmente em meios artísticos e


intelectuais. Sendo assim,

a saída para estes cineastas foi o apelo às formas alegóricas, enfocando


situações que diziam respeito às profundas questões que assolavam o país,
em que as personagens representavam não indivíduos determinados, mas
estereótipos que se confrontavam, se reconheciam e se questionavam”
(Malafaia, 2012, p. 64).

Considerações finais

Conforme postulado por Marc Ferro, pioneiro nos estudos acerca das relações cinema-
história, o filme deve ser observado “não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma
imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas” (Ferro, 1992, p. 87).
Analisar as imagens não apenas voltados para buscar significados referentes a aspectos
cinematográficos, mas compreendê-las enquanto integrantes de um debate mais amplo. Por isso, é
importante frisar que a pesquisa realizada a partir de fontes fílmicas deve “analisar o filme juntando
o que é filme – planos, temas – com o que não é filme – autor, produção, público, crítica, regime
político” (Kornis, 1992, p. 244).

Ruy Guerra, nascido na colônia portuguesa de Moçambique, saiu de sua terra natal para
estudar cinema na França nos anos cinquenta, posteriormente chegando ao Brasil em 1958, quando
o país vivia a euforia dos anos JK e via um grupo de jovens interessados em cinema reunir-se no
Rio de Janeiro. Na condição de intelectual diaspórico de quem viveu o sistema colonial de perto,
Ruy propôs em Os deuses e os mortos uma crítica desse modelo, retratando uma região que sucumbe
face à sua própria violência interna e cujo capital será possuído pelo capital externo. Pertencente
ao Cinema Novo, cujos integrantes eram majoritariamente de classe média, esses filmes retratavam
um povo relegado à miséria, ao atraso, cujo processo de ‘conscientização’ seria consequência da
atuação dos intelectuais. Em se tratando dos cineastas, esse ‘despertar da consciência’ seria
provocado através de seus filmes, o que nos permite inferir que “as formas institucionalizadas (...)
em virtude das quais ‘representantes’ (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de
modo visível e perpétuo a existência do grupo (...) ou da classe” (Chartier, 1991, p. 183).

Se por um lado, Os deuses e os mortos é uma produção fílmica dentro de um contexto mais
amplo, pois busca dialogar com outras produções que trouxeram o Nordeste como temática, por
outro a obra faz parte de um momento do cinema brasileiro, que Ruy Guerra chamou de “cinema
de metáforas visuais”, pois buscava utilizar as imagens para dizer determinadas coisas que a
literalidade da palavra dificultava. Podemos localizar Os deuses e os mortos num contexto de profusão
1375

de imagens acerca do Nordeste, através de um diálogo com as imagens já cristalizadas acerca deste
espaço, propostas principalmente pelo discurso naturalista, de Gilberto Freyre, e pelos romances
regionalistas da geração de 30.
Em 1977, numa entrevista para a reviste Ele & Ela, Ruy Guerra afirma ter sugerido que a
palavra “fim” não entrasse no final. Na versão assistida para esta análise, disponível no YouTube,
a palavra aparece. Mas com jeito de ser incluída depois, pois até mesmo a cor e a fonte da letra não
tem nada a ver com as imagens e textos que rolaram por aproximadamente cem minutos. A
sugestão de Ruy parece querer comunicar que aquela situação retratada é atemporal, não sendo
possível estabelecer um início, e muito menos um final. Um mito natimorto está pra nascer.

Referências

Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. Ed. São Paulo:
Cortez, 2011;

Amado, Jorge. Terras do sem-fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2008;

Bernardet, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009;

Borges, Vavy Pacheco. Ruy Guerra: paixão escancarada. 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2017;

Chartier, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, v. 5, n. 11. São Paulo, abril
1991;

_______________. Por uma sociologia histórica das práticas culturais.. In: Chartier, Roger. A
história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difel, 2002, pp. 13-28;

Fanon, Frantz. Os condenados da terra. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 275p.
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1377

Fronteiras do cativeiro: significados transnacionais de liberdade e


escravidão (Brasil/Uruguai, segunda metade do XIX)

Michele dos Santos*

Resumo: este projeto de pesquisa de mestrado, que ainda está em seu início, tem como objetivo
compreender as experiências das pessoas que viviam e trabalhavam na região de fronteira do Rio
Grande do Sul com o Uruguai, como eram as relações de liberdade e de escravidão destes
indivíduos, como funcionavam os mecanismos de tráfico ilegal e de reescravização assim como as
experiências e vivências de homens e mulheres escravizados na região. As principais fontes de
nossa análise serão as ações de liberdade movidas pelos próprios indivíduos negros (através de seus
curadores) e os processos de escravização ilegal (acionados pela justiça imperial) principalmente
visando súditos uruguaios injustamente escravizados. Esses documentos judiciários estão
custodiados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e no Arquivo do Judiciário
Centralizado. Usando documentos judiciários, procuro entender as experiências sociais e políticas
de domínio senhorial numa região de fronteira no século XIX, onde os países limítrofes como o
Uruguai, já haviam abolido a escravidão. Tentar demonstrar a realidade tão pouco estudada destas
experiências escravistas fronteiriças e do protagonismo dos indivíduos livres e escravizados, com a
utilização de fontes jurídicas, assim também permitindo um exercício metodológico sobre essas
fontes primárias específicas.

Palavras chave: Escravidão, Fronteira, Ações de Liberdade

O caráter fronteiriço da província do Rio Grande do Sul tornou comum que muitos de seus
estancieiros (geralmente também senhores de escravos) possuíssem terras no Estado Oriental.
Quando o território uruguaio foi anexado ao Império brasileiro, entre os anos de 1821 e 1828,
intensificou-se a presença de brasileiros, principalmente sul rio-grandenses, que possuíam terras
naquela região (Izeckson, 2010, p. 385-424) (Ferreira, 2010, p. 309-341) sobretudo pecuaristas, para
a engorda de seus rebanhos. Porém a escravidão no Uruguai foi extinta em dois momentos, em
1842 e 1846, o que causou problemas aos estancieiros sul rio-grandenses que possuíam terras na
Banda Oriental e não poderiam mais usar campeiros e peões escravizados nas lidas de suas
propriedades, vinculadas principalmente a criação de gado.

A sociedade escravista gestada na fronteira meridional era extremamente dependente desta


mobilidade transnacional, principalmente para a engorda de gado ou para fuga de conflitos como
a Guerra Civil Farroupilha (1835-1845) e nesse sentido as leis abolicionistas promulgadas no
Uruguai e Brasil eram a todo momento burladas.

* Mestranda UNISINOS. michelesantos.hist@gmail.com


1378

O local ficou muito visado depois da proibição do tráfico negreiro internacional, quando
promulgada a lei Feijó de 1831 e, principalmente, a lei Eusébio de Queirós de 4 de setembro de
1850, e que acabaram por estimular a clandestinidade por parte principalmente dos grandes
fazendeiros estabelecidos no Rio Grande do Sul, que usavam os férteis pastos uruguaios como local
de invernada de seus gados, manejados por trabalhadores rurais escravizados. Como bem coloca
Farinatti:

No entanto, se por um lado era vantajoso manter propriedades no Uruguai, por


outro também havia complicações, uma vez que, frequentemente, estas
propriedades eram alvo de embargos e confiscos empreendido por milícias de
líderes uruguaios. Até o início da Guerra dos Farrapos (1835 -1845), o Uruguai
recebeu o afluxo de proprietários brasileiros e durante o primeiro ano do conflito,
pode-se dizer que os criadores rio-grandenses salvaguardaram suas reses nos
campos orientais. Quando findou a guerra do império, a debilitada economia rio-
grandense necessitou lançar mão de seus gados 'estocados' no país vizinho, no
entanto, encontrou o Uruguai afundado em uma guerra civil e abastecendo-se do
gado disponível nas propriedades rurais (Farinatti, 2009, p. 162).

A guerra civil que estava sendo travada no Uruguai foi a chamada Guerra Grande, que
ocorreu entre os anos 1839 e 1851, teve como personagens principais D. Juan Manuel Rosas, que
exercia o poder na Argentina desde 1829, e Manuel Oribe, que presidia a República do Estado
Oriental do Uruguai desde 1835. Rosas queria a reconstrução do antigo Vice-Reinado do Prata,
que abrangia territórios do Uruguai, Paraguai e Bolívia. Manuel Oribe era membro fundador do
Partido Blanco e, em oposição, havia o Partido Colorado. Rosas se recusou a abrir a navegação
pelo Rio da Prata, dentre outros desentendimentos diplomáticos, acabando por romper relações
com o Império brasileiro. Rosas colocou Manuel Oribe (que havia renunciando em 1839,
pressionado pelo colorado Rivera) como general de seu exército, que acabou por dominar
Montevidéu. Após vencer no Uruguai, começa o ataque ao sul do Brasil, atitude esta que fez com
que Dom Pedro II enviasse parte de seu exército para a fronteira meridional, formando uma aliança
com a Bolívia e o Paraguai e opositores internos no Uruguai. Em 19 de outubro de 1851 Manuel
Oribe se rende ao ver o tamanho do exército que havia sido deslocado pela Coroa brasileira para
encerrar com o seu domínio. Após essas mesmas forças armadas que tiraram Oribe do poder,
marcharam até Buenos Aires e, em fevereiro de 1852, venceram Rosas, que se refugiou no Reino
Unido em segredo.

As ações de liberdade que usei em meu trabalho de conclusão, falam também destes
trabalhadores que viviam cotidianamente neste conflito de ordem estrutural dos dois países
1379

O estudo das ações de liberdade ocorridas entre 1867 e 1869 no extremo sul do
Império, no entanto, soma a estas outras questões: nestes casos, além do vigor
da lei de 1831, os defensores dos escravos usaram o argumento do “princípio da
liberdade”, segundo o qual se um escravo pisar em solo livre, ele
automaticamente conquistará o direito à liberdade. Seguindo este raciocínio, para
estes advogados, os casos ocorridos na fronteira sul do Império brasileiro,
especificamente relativos aos escravos que cruzaram a fronteira com o Uruguai
(mas também com a Argentina, Paraguai e Peru), configuravam re-escravização,
já que estes escravos deveriam ter conquistado suas liberdades pelo simples fato
de terem cruzado a fronteira e pisado no solo destes países. Argumento
semelhante foi usado na França e na Inglaterra para libertar escravos vindos do
Caribe com seus senhores no século XVIII e, nos Estados Unidos, para advogar
a libertação de escravos que passaram dos estados escravistas para os estados
livres ao longo do século XIX. (Grinberg, 1994, p. 03)

No Arquivo Judiciário Centralizado, onde realizei estágio durante o período de 2012 até
2014, localizei algumas peças jurídicas que relatavam experiências de indivíduos escravizados aqui
na província sulina, e que se relacionavam com a mobilidade fronteiriça. Esses processos se
relacionavam com as leis abolicionistas uruguaias e antitráfico internacional brasileiras.

Minha pesquisa teve seu início com a ‘descoberta’ de uma ação de liberdade que o pardo
Antônio moveu contra sua senhora Joanna Silveira do Amaral, na segunda metade do século XIX.
Essa ação de liberdade baseava-se no argumento de que aquele escravizado dizia ser livre por ter
nascido e sido batizado na Banda Oriental, quando lá a escravidão negra já estaria proibida por lei
e, após certo tempo, ter sido trazido para a o Rio Grande do Sul e aqui ainda sendo considerado
como escravo por sua senhora.

O pardo Antônio, chegou a Delegacia de Polícia de Canguçú em 13 de maio de 1868,


apresentado por seu curador José Pires da Costa, para mover uma ação contra sua senhora, Joanna
Silveira do Amaral, afirmando ser livre de nascimento “por ter estado no Estado oriental por vontade de
seu senhor e ali ter sido batizado”. A família Amaral mudou-se em 1837 indo para o Estado Oriental,
talvez fugindo da guerra civil farroupilha (1835-1845), e o pardo Antônio nasceu naquele território
já independente por volta de 1840, segundo testemunhos, e ficou por décadas sendo tratado como
cativo.

O que podemos supor de sua vida temos apenas descrito nos testemunhos de três pessoas
que foram ouvidas pelas autoridades brasileiras: Domingos Jozé Borges (cunhado da senhora de
Antônio, Joanna Silveira do Amaral), Deolindo Fernandez e Manoel Machado dos Santos.
Infelizmente não há o testemunho de Antônio em nenhuma parte do processo de liberdade. Os
três testemunhos apontaram em seus depoimentos que o pardo Antônio havia nascido na Banda
Oriental e quando se deu a revolução de Manoel Oribe, ou a chamada Guerra Grande, Francisco
Amaral voltou ao Brasil com sua família, trazendo o pardo Antônio o qual, segundo os depoimentos,
1380

manteve seu status de escravizado em solo sul-rio-grandense. Parece óbvio que Antônio foi
batizado como escravizado no Uruguai e ao que parece sua mãe não mais vivia quando da
transferência da família de seus senhores de volta para o Rio Grande do Sul.

Logo após as testemunhas serem inquiridas, o juiz chega à seguinte conclusão:

19 de maio de 1868, nesta vila de Canguçu.


Pelo presente hei por provado concludentemente o estado livre do pardo
Antônio, até hoje tido, havido e possuído por Joaquina Silveira do Amaral como
escravo; por quanto pelos depoimentos prestados se vê que o dito pardo Antônio
nasceu há cerca de trinta anos, ou menos, no Estado Oriental do Uruguai, de
Leocádia, que vivia em casa de Francisco Silveira do Amaral, que a tinha como
escrava; mas que também era livre pelo simples fato de ali ter estado em
companhia desse que tinha sido seu senhor, o que indica que ele consentiu em
que ela ali estivesse. Livre a mãe, livre deveria nascer o filho, e livre nasceu. À
parte, porém, a condição da mãe, depois de abolida a escravidão naquele estado,
ninguém mais ali nasceu escravo. Demais, pelo decreto de 1831, que extinguiu o
tráfico de escravos, ninguém mais pode entrar no Império nessa condição, e livre
é todo indivíduo que vem de pais estrangeiro, tal é o caso em que se acha
Antônio, de quem se trata. Portanto, mando que seja ele respeitado e havido de
ora em diante como livre que é. Seja sua senhora intimada deste despacho para
usar da ação de escravidão, 'se quiser', do das mais que por direito lhe possam
caber, dentro do prazo de trinta dias, que lhe marco. Cópia desta por certidão
seja dado ao mesmo Antônio para sua servidão e uso.
Canguçu, 20 de maio de 1868.
João Francisco da Silveira Souza.

As razões para o pardo ter sido considerado livre, como se lê na conclusão, seriam o fato
de sua mãe, por ter sido levada juntamente com a família Amaral para o Estado Oriental após a Lei
de 1831, não poderia mais ser considerada como escrava. Já que Antônio teria nascido no Estado
Oriental após a migração de sua mãe Leocádia, está livre por lei, seu filho também seria livre.

O papel acima citado, assinado pelo Juiz João Francisco da Silveira Souza, serviria como
documento de liberdade de Antônio. Sua alforria, assim, era duplamente confirmada, por ter vindo
de um Estado onde a escravidão não mais existia e tendo entrado em um Estado que abolira o
tráfico internacional pelo menos desde 1831.

Outra trajetória muito interessante que encontrei em minhas pesquisas, e também aborda
a questão fronteiriça, ocorre no extremo sul do estado do Rio Grande de São Pedro, no ano de
1873, mais especificamente no primeiro distrito de Cerrito602, que a época pertencia a Canguçu.
Nosso personagem é Jacintho, um africano vivendo ilegalmente escravizado há décadas.

602O distrito do Cerrito, também chamado Cerrito de Jaguarão, foi elevado a categoria de freguesia pela lei nº 154, de
7 de agosto de 1848, durante a gestão do Presidente da Província Francisco José Soares de Andréa, e hoje é chamado
de Freire e seu território pertence ao município de Pedro Osório (Fortes; Wagner, 1963, p. 316)
1381

O africano Jacintho, um senhor de setenta anos (segundo ele “mais ou menos”), idade
avançada principalmente quando imaginamos como era dura a vida de um cativo que trabalhava
na lavoura, com suas mãos calejadas e sua pele castigada pelo sol. Um dia, conta ele em seu
depoimento, encontra seu antigo senhor, Manuel D'Ávila, que lhe pergunta se ele ainda continuava
cativo. Ao receber a resposta positiva, o ex-senhor se mostra surpreso, talvez por saber que aquele
lavrador havia passado alguns anos no Estado Oriental e que lá a escravidão fora abolida anos atrás.

Alertado pela surpresa de seu ex-senhor, Jacintho foi falar primeiramente com seu senhor, o
Capitão Apparício José Barbosa, creio que com esperança de que ele fosse justo, afinal o servia
desde fins da década de 1840, porém, o capitão teve a pior reação: ameaçou Jacintho de castigá-lo
por se atrever, ter a ousadia decerto, de pedir a sua liberdade.

Sem conseguir resolver a questão privadamente com seu senhor, sem outra opção, Jacintho
foi a Subdelegacia de polícia do 1º distrito de Canguçu, em 26 de setembro de 1873, e lá encontra
o subdelegado capitão José Gomes de Araújo, ao qual afirma ser livre e que estaria sendo mantido
indevidamente como escravo pelo capitão Apparicio.

O mais interessante nesta ação de liberdade é que nela temos o auto de perguntas que foram
feitas não somente ao dito senhor de Jacintho, mas também o depoimento do próprio preto
reivindicando sua liberdade. Normalmente nas ações civis somente encontramos as ‘vozes’ dos
brancos, diferente do que ocorre nos processos crimes em que há, com mais frequência, a voz dos
indivíduos negros envolvidos, sejam eles testemunhas ou réus.

No seu depoimento, Jacintho afirma ser africano, que tinha setenta anos de idade mais ou
menos, era solteiro e lavrador. Quando perguntado o que ele pretendia requerer na subdelegacia
ele afirmou ser escravizado de Bemevioso Pereira Terres, este um estancieiro da banda Oriental,
mas que sabendo que pela lei daquele país já havia cessado a escravidão, afirmou que daria a
liberdade a Jacintho, dizendo-lhe que ele poderia ir “tratar de sua vida”.

Supomos que isso tenha ocorrido quando foi promulgada a primeira lei abolicionista
uruguaia, em 1842. Tão logo obteve a liberdade informalmente, pois não lhe foi passado nenhum
documento de liberdade, Jacintho quis atravessar a fronteira e vir para o Rio Grande do Sul, mas a
guerra civil farroupilha mudou os seus planos.

Talvez Jacintho tivesse medo de ser recrutado compulsoriamente e ter que defender um
dos lados, farroupilhas ou legalistas. O fato é que ele não dá maiores explicações sobre o porquê
de seu desejo, só afirmando que depois de livre ele queria vir para o Brasil.
1382

Jacintho, além de estar impedido de voltar para Rio Grande de São Pedro como desejava,
ainda teve de prestar serviço como soldado por dois anos no Estado Oriental e somente após esta
data veio para a província acompanhando seu atual senhor Apparicio, este concunhado de seu
antigo senhor Bemevioso Terres, e aqui continuou sendo tratado como escravizado desde então.
Jacintho depôs dizendo ter decidido procurar a autoridade policial para fazer a exposição de seus
problemas, pois diz ter os mesmos direitos das pessoas livres. O Subdelegado, acatando a queixa,
nomeou como seu curador Pedro Baptista Correa da Câmara.

Um mandado foi enviado ao seu senhor, dando-lhe vinte e quatro horas para prestar
explicações sobre a situação do cativo, então Apparicio José Barboza foi indiciado e teve de
responder um auto de perguntas sobre o seu preto Jacintho e sua relação com ele, isto em 6 de
outubro de 1873.

Na delegacia de polícia o subdelegado perguntou o nome, idade, profissão e estado civil do


capitão, ao que ele respondeu chamar-se Apparicio, ter cinquenta e cinco anos, ser casado, criador
e natural da vila de Canguçu. Foi questionado também se Jacintho era seu escravo, ao que ele
afirmou que o mantinha em cativeiro desde 1846 ou 1848, dizendo que a razão para o manter
escravizado seria a de que seu cunhado Duviniozo Terra cedeu-lhe o cativo quando se retirou ao
Estado oriental, por não poder possuir escravos lá. E desde então o preto vem lhe servindo como
escravo. Talvez o nome diferente do ex-senhor de Jacintho, que consta no auto, tenha sido produto
de um erro do escrivão, mas certamente trata-se da mesma pessoa anteriormente referida pelo
septuagenário escravizado.

Apparicio afirma saber que Jacintho viveu desde 1839 até 1842 na Banda Oriental, data em
que veio para o Brasil. Disse que o cativo estava matriculado em nome de Maria Jozé Barboza,
viúva de Duvinioso Terra, e desconhecia a lei de 1831 que proibia o tráfico internacional de
escravos, pela qual Jacintho seria considerado livre.

Ao chegar na delegacia de Canguçú, Jacintho afirma ser era livre pelas leis do país oriental,
pois foi isto que ouviu de seus antigos senhores, tanto Bemevioso e Manuel. Ou seja, a lei que o
cativo se referiu seria a abolição da escravidão negra em 1842, no Uruguai, pelo menos é assim que
interpretamos o depoimento de Jacintho.

Pelas datas que temos descritas na ação de liberdade, o africano já seria livre pelo simples
fato de ter sido levado ao Uruguai após a primeira lei que estipulava o fim do tráfico negreiro
internacional, a lei Feijó de 1831, esta citada em vários processos de liberdade. Jacintho seria livre
desde o momento que pisou em solo oriental.
1383

Ainda, segundo Apparicio, a justificativa para ele desconhecer tal lei, seria porque via muitas
escrituras de compra e venda de escravos, e disse que inclusive seu cunhado fazia suas vendas em
Jaguarão. Estas escrituras eram passadas aos compradores de negros escravizados a quem era
confiada a guarda e execução das leis. Ou seja, ele via escravos sendo comercializados na região
fronteiriça e, por este motivo, acreditava que o tráfico de escravos não havia sido proibido por lei.

Quando perguntado do porquê ele ainda não ter dado a liberdade a Jacintho, e se ele
pretendia dá-la, disse que inclusive sua irmã, através de seus herdeiros, já havia dito a ele para dar
a liberdade ao negro, porém, a desculpa que ele usou foi de que andava ausente de casa e que quando
chegou não encontrou Jacintho, mas que não se opunha em lhe dar a alforria.

O capitão Apparicio justifica o fato de não ter dado liberdade a Jacintho pois ele não se
encontrava em casa. Mas então, durante todo esse tempo, porque não havia passado a carta de
alforria? Eles nunca se encontrariam em casa, pois sempre um estava ausente? Presumimos que o
ato do Coronel Apparicio ter ameaçado de surra o seu septuagenário roceiro tenha sido provocado
por ele ter tomado a iniciativa, quando o senhor considerada que a prerrogativa de libertar o cativo
cabia-lhe exclusivamente. A desculpa no final convenceu o Juiz, que não condenou Apparicio por
ter escravizado Jacintho durante tantos anos, ao menos até o final da ação não aparece nada
relacionado a isto.

Então, em 18 de novembro de 1873 o Juiz de Canguçu, Abílio Álvaro Martins e Castro,


concluiu a ação dando a liberdade ao preto:

[....] vistos estes autos: considerando o que delles consta, e que se prova que o
preto Jacintho residio e permaneceu por algum tempo no Estado Oriental do
Uruguay, com sciencia e consentimento de seu senhor, que com elle estava;
Considerando que isso não foi contestado, e antes confirmado por Apparicio
José Barbosa, em cujo poder e guarda tem estado o dito preto desde o anno de
1845 ou 1848;
Considerando o mais dos mesmos autos, e disposição de direito:julgo e declaro
livre o referido preto Jacintho, que d’ora em diante assim será tido e havido,
dando-se lhe o necessário título.
Villa de Cangussu, 18 de novembro de 1873
Abílio Álvaro Martins e Castro

Pelo que podemos entender destes papéis judiciários, Jacintho veio da África para o Brasil,
provavelmente através de algum dos principais portos brasileiros escoadouros deste tráfico de
mercadorias humanas, como Rio de Janeiro, Salvador, Recife (Berute, 2006). De lá deve ter sido
comercializado para o Brasil meridional, onde foi cativo de Manoel D’Avila. Não sabemos quando
ele foi vendido para Bemevioso Terres ou Duviniozo Terra, que morava no Estado Oriental, onde
Jacintho permaneceu entre 1839 e 1842. Promulgada a abolição na Banda Oriental, Jacintho foi
1384

trazido para o Cerrito de Canguçu pelo Capitão Apparício José Barbosa, padecendo injusto e
criminoso cativeiro até 1873.

Interessante que a lei acionada no caso não foi a Euzébio de Queiroz, de 1850, mas a Feijó,
de 1831, considerada por muitos uma lei para inglês ver (Rodrigues, 2000). No restante da ação
infelizmente não aparece se realmente a liberdade teria sido o destino do nosso personagem
Jacintho.

Estas são duas trajetórias que me deparei, dentre tantas outras que desconhecemos.
Trajetórias de lutas para sair da condição desumana da escravidão. É importante também salientar
o aspecto conflitivo das ações de liberdade, que só eram acionadas pelo escravo após o fracasso de
acordos privados entre senhores e escravos para a obtenção da alforria.

O estudo de documentos judiciários da segunda metade do século XIX, nos permite


investigar, mesmo que indícios, aspectos específicos em relação a realidade dos negros e negras
escravizadas, mas também como a sociedade escravista percebia os limites entre liberdade e
escravidão, e as experiências limítrofes de libertandos (alforriados condicionais, ingênuos, etc.).
Travava-se no período um embate entre significados díspares sobre escravidão e liberdade que
envolviam projetos específicos para o país, e que se refletia na questão da cidadania em suas
variadas facetas (eleitorais, educacionais, associativos).

As formas teóricas e metodológicas que tem sido operacionalizada pelos historiadores, nos
últimos anos, são variadas, mas muitos se abrigam nas recomendações dos micro-historiadores,
principalmente italianos.

A partir da década de 1930, com o surgimento da escola de Annales, fundada por Lucien
Febvre e Marc Bloch, a historiografia passou por grandes modificações metodológicas que
permitiram maior conhecimento do cotidiano do passado, através da incorporação de novos tipos
de fontes de pesquisa (Burke, 1997).

A partir desde fenômeno, surge um movimento, na década de 70, que ficou intitulado
de micro-história e vem sendo praticada, inclusive nos estudos de escravidão, defendendo uma
delimitação temática extremamente específica por parte do historiador (inclusive em termos de
espacialidade e de temporalidade), mas não se reduz apenas a isto. Esta abordagem demonstra que
uma outra história é possível a partir da escolha de um ponto de vista particular, demonstrando ser
suscetível de restituir uma parte ignorada ou escondida da existência social.

Conforme Henrique Espada Lima “a micro-história foi formulada, nos seus princípios,
como um conjunto de proposições e questionamentos sobre os métodos e os procedimentos da
1385

história social” (Lima, 2006, p. 262). Examinando uma sociedade reduzindo a escala de observação,
e tendo como intuito de analisar certos aspectos que de outra maneira passariam despercebidos,
poderemos tentar compreender mais profundamente características mais específicas relativas a uma
sociedade ampla. Procurando o que se passa despercebido, e usando esses fragmentos para ter uma
visão mais ampla de uma questão social com o uso de fontes primárias.

O escravizado acessava a justiça quando não havia mais negociação por parte do seu senhor,
e a busca pela justiça nos demonstra que estes indivíduos estavam informados sobre os
desdobramentos legais relacionados ao fim do tráfico internacional e ao processo abolicionista.
Para isto, usarei ações cíveis de liberdade para também refletir sobre a vida política, as relações
sociais, as regras econômicas, enfim, todo o contexto histórico para melhor compreensão da
sociedade da época.

A região de fronteira evidencia-se como um observatório social, onde podemos aprender


os significados de liberdade e cativeiro que estavam na época sendo tensamente forjados de ambos
os lados dos limites entre Brasil e Uruguai. Se no Brasil a segunda metade do oitocentos foi marcada
por uma abolição gradual (Lei Feijó 1831, Eusébio de Queiroz 1850, Ventre Livre 1871, Lei dos
Sexagenários 1885), no Uruguai ficou estabelecido que não haveria mais escravidão em seu solo
em 1842 e em 1846, decretando que todo o escravizado que fosse nascido ou cruzasse para o lado
uruguaio seria considerado liberto.

Os documentos judiciários nos inserirão em um espaço territorial entre Brasil e Uruguai,


no qual os próprios significados de liberdade estavam sendo construídos de forma dialógica,
conjugando experiências sociais de indivíduos escravizados e forros, de ambos os lados da
fronteira. Saber um pouco mais sobre estes escravizados, mas também nas testemunhas como
especialistas do direito (advogados, solicitadores), jurados, funcionários públicos (juízes,
promotores públicos, cônsules), que estariam imersos em um ambiente no qual a
transnacionalidade era natural, com a fronteira fazendo parte de seus planos e estratégias de
sobrevivência e vida.

Procuro entender os significados da liberdade em um contexto de fronteira, onde existem


dois países com formas distintas de tratar a escravidão, um recém findando o tráfico atlântico e
lidando com estas tensões e outro cuja abolição já tinha acontecido. Analisar como essas pessoas
circulavam num espaço que representava possibilidades de liberdade, buscando compreender essas
estratégias e os seus significados e demonstrando, também, através de fontes primarias e da micro
história, que os homens e mulheres escravizados não se mantinham conformados com a realidade
que lhes foi imposta, e que lutavam pelos seus direitos e sua liberdade.
1386

Mesmo nessa sociedade escravista brasileira do século XIX, era possível aos cativos acessar
a justiça contra seus senhores, defendendo direitos que julgavam possuir e, por vezes, ganhando
suas liberdades, mesmo que depois tivessem que lutar o tempo todo para mantê-la (Cunha,
1987)(Lara, 1988)(Schalhoub, 1990)603. Tais estratégias de acesso a justiça dependiam da montagem
de redes sociais de apoio, mediante as quais as vítimas dos processos de reescravização ou
escravização ilegal (e suas famílias) mobilizariam potenciais aliados na tentativa de defender seus
direitos, deixando de serem “vítimas passivas” do devir histórico (Thompson, 1987, p 12).

A ideia de pesquisar documentos judiciários surgiu na graduação, onde tive a oportunidade


de trabalhar como bolsista de iniciação científica em 2011, com o professor Dr Paulo Roberto
Staudt Moreira. O professor nos indicou, para pesquisa e busca de documentos, o setor de Guarda
Permanente localizado no Arquivo Judicial Centralizado, na Av. Pernambuco, 649, em Porto
Alegre, local onde ele já havia feito pesquisas e tinha conhecimento do acervo que lá se encontrava.

Para um trabalho da cadeira de África, fui ao acervo em busca de algum documento que
me servisse como tema. Acabei me deparando, depois de uma curta busca nas caixas do município
de Canguçu, do século XIX, com uma Ação de Liberdade muito interessante, a do pardo Antônio,
um negro escravizado que moveu a ação contra seu senhor se dizendo livre por ter atravessado a
fronteira do Uruguai após a lei de 1831, além de outras ações com experiências de indivíduos
escravizados aqui na província sulina, e que se relacionavam com a mobilidade fronteiriça. Esses
processos estavam relacionados com as leis abolicionistas uruguaias e antitráfico internacional
brasileiras.

A guarda, eliminação e conservação dos processos ali custodiados no setor de Guarda


Permanente, seguem uma Tabela de Temporalidade, organizada de acordo com determinações do
Conselho Nacional de Justiça604. O Serviço de Arquivos Judiciais e Administrativos está
subordinado a Direção Administrativa do Tribunal de Justiça do RS. O atual arquivo formou-se a
partir de Agosto de 2006, quando ficou decidido pela alta Administração do Tribunal de Justiça
que os documentos depositados nas comarcas do interior do estado fossem recolhidos e
centralizados em Porto Alegre.

A história da formação do Acervo Histórico Judicial iniciou, ainda em 2006, quando era
Coordenador do Arquivo Judicial Centralizado o historiador e arquivista Alexandre Veiga. Ele foi

603Sobre as expectativas dos cativos sobre direitos específicos.


604A tabela de temporalidade é um instrumento de destinação, aprovado pela autoridade competente, que determina
os prazos em que os documentos devem ser mantidos nos arquivos correntes e intermediários, ou recolhidos aos
arquivos permanentes, estabelecendo critérios para microfilmagem e eliminação. (Bellotto, Heloísa Liberalli. Arquivos
permanentes: tratamento documental. São Paulo: T.A. Queiroz, 1991).
1387

o mentor desta iniciativa e logo confiou a Anelda Pereira de Oliveira (funcionária concursada,
primeiramente nomeada em 2003 no Foro Central, onde foi lotada na Central de
Correspondências. Em 2006 foi designada, pelo Presidente do Tribunal de Justiça Desembargador
Marco Antonio Barbosa Leal, para servir no então denominado Arquivo Judicial Centralizado) esta
tarefa de constituir um Acervo Histórico com os processos judiciais findos. Para tanto, a autorizou
a recolher processos do século XIX, pesquisá-los e conservá-los. A medida que foi garimpando
verdadeiros tesouros documentais, Anelda recebeu ajuda de um estagiário e, com o aumento do
serviço, acabou consequentemente precisando de mais mãos para auxiliá-la. O setor de Guarda
Permanente, ou seja o Núcleo Permanente do Arquivo, foi criado oficialmente a partir de 2012.

Já existiam as caixas AHJ (Arquivo Histórico Judicial) com documentos cadastrados por
tipos de processos: inventários, ações de medição de terras, ações de liberdade, e muitas outras.
Todos separados por comarcas de origem, períodos históricos, etc.

Além dos documentos do AHJ, nossa busca se estenderá ao Arquivo Público do Estado
do Rio Grande do Sul (APERS), no qual já localizamos alguns processos de escravização ilegal. A
pesquisa no APERS é facilitada pela excelente organização arquivística daquela instituição,
especialmente no caso da temática da escravidão, para a qual foram feitos catálogos específicos
sobre processos crimes, inventários post-mortem, testamentos e cartas de alforria.

Também destacamos a importância dos documentos custodiados pelo Archivo General de


la Nación, localizado em Montevidéu (Uruguai). Os documentos listados abaixo, nas fontes, foram
fotografados e disponibilizados pelo professor Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira, e trazem ofícios
e relatórios trocados entre autoridades brasileiras e uruguaias a respeito de assuntos diversos,
destacando-se os assuntos sobre presença de escravizados de senhores brasileiros em território
uruguaio e o sequestro de cidadãos uruguaios livres, levados para o Brasil e ilegalmente colocados
em cativeiro.605

Referências

Arquivo Judicial Centralizado


Setor de Guarda Permanente: Caixas “Canguçu: Civil, século XIX” caixas número: HJ0 001387,
1A 58140103, HJ0 001293, HJ0 000476, HJ0 000696, HJ0 000496

Processos: A15082404, F9001998433207, F9001994627561, F9001994627567, F9001994627553,


F9001994627554, A14406492

605Os documentos fotografados e disponibilizados são em número muito maior do que os listados aqui, mas citamos
apenas os fundos documentais nos quais temos certeza de encontrar informações a respeito do tema do presente
projeto.
1388

Archivo General de la Nación


LEGACIÓN DEL URUGUAY EN EL BRASIL
LISTADO CRONOLÓGICO DE LAS CAJAS
Nº de CAJA AÑO CARPETAS Nº
606
106 1852-1855 1-8 1
102 1856-1858 88-129 2
89 1857-1858 130-198 3
108 1859-1860 199-263 4
152 1861-1862 1-70 1
138 1862-1866 71-197 2
137 1867- 1870 198 – 274 3

LEGACIÓN DEL BRASILEN EL URUGUAY


LISTADO CRONOLÓGICO DE LAS CAJAS
Nº de CAJA AÑO CARPETAS Nº
125 1839, 43, 50-55 2-131 1
126 1856-1860, 1862 132-233 2
120 1860-1862 234-287 3
607
128 1869-1872 501-565 7

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de Doutorado).

606Fotografei só os que se referiam explicitamente a sequestro de negros uruguaios e alguns poucos outros.
607Olhei, mas fotografei apenas as capas das carpetas e alguns documentos específicos, sobre escravos ou tropelias
na fronteira.
1389

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1391

Remodelando as Memórias dos Deslocados Compulsórios na


cidade de Petrolândia, Brasil e Aldeia da Luz. Portugal (1997/2002)

Maria S. Ramalho Braga

Resumo: Com os avanços tecnológicos que vivenciamos a cada dia, é possível notar que, para
suprir a carência de energia elétrica não é necessário que seja implantado sistemas que causam
impactos socioambientais como vivenciamos no passado, esses impactos são permanente e
contínuos, já que é alterada toda uma cadeia tanto biótica como abiótica, que interfere diretamente
na vida das pessoas, sejam pelas atividades psicossociais, climáticas ou alterações geográficas.
Objetivamos analisar e comparar os danos causados as comunidades atingidas, mesmo que de
forma delimitada os fatos sociais de lutas da história recente, entre Petrolândia PE, Brasil, e Aldeia
da Luz, Portugal. Como resultado o estudo mostrou que, apesar de ser observado uma melhora no
desenvolvimento económico das regiões em que as barragens foram construídas, sobretudo
Petrolândia, são diversas as marcas sensíveis e psicossociais em consequência do deslocamento,
sendo constatado que a região do sertão pernambucano, têm, atualmente, um dos maiores índices
de depressão e suicídio do Brasil, ao passo que para os moradores da Aldeia da Luz, a região
tornou-se um local de tristeza e solidão, atribuindo as futuras gerações a responsabilidade de
desenvolvimento económico para a região.

Palavra-chave: deslocamento compulsório; reassentamento; assentamento; atingidos

Abstract: with the technological advances we experience every day, it is possible to notice that, to
supply the shortage of electricity, it is not necessary to implement systems that cause
socioenvironmental impacts which were experienced in the past, these impacts are permanent and
continuous, since a whole change is made to both biotic and non-biotic chain, which directly
interferes in people's lives, whether due to climatic social activities or geographical changes. It is
important that the discussions generated from this article, even if delimited based on facts that
took place in Petrolândia PE, Brazil, are a clear answer to technicians and scholars who are looking
for development projects that are able to supply the electricity shortage, the Itaparica dam was and
is a real and contemporary example of projects that aim to bring progress to poor infrastructure
regions. Relocation is usually part of the hydroelectric dams construction package as the dams are
the main operating instrument of the plants because they store a very large volume of water that
ends up advancing through areas that were not foreseen in the projects, generating future social
consequences for those who did not take part in the resettlement projects and the relocation causes
a social wound that never heals because it alters a history that is linked to the people who were
born and raised in that place.

Keyword: compulsory relocation, resettlement, settlement


1392

Introdução

Dizer que a capacidade de um município em fornecer energia regularmente não traga


desenvolvimento, com este pensamento estaríamos sendo ingênuos, mas a questão do tema deste
artigo vai um pouco mais além, e discute assuntos referente a questão humana e ambiental. As
abordagens colocam o leitor diante de uma nova perspectiva socioambiental, para que assim tenha
como pensar sobre a questão do meio ambiente e refletir sobre as escolhas que envolvem o
progresso.

Este artigo teve como foco as questões relacionadas as construções das barragens de
Itaparica-PE. e Alqueva-Portugal, e seus respectivos impactos nas áreas sociais e ambientais, o eixo dos
estudos se desenvolve fundamentado, as regiões onde os processos de inundação atingiu todo um
sistema econômico social das duas comunidades. Petrolândia -PE e Aldeia da Luz em Portugal. As
duas regiões viveram após as construções das barragens e das inundações suas estruturas política e
administrativa realocadas em um outro assentamento construído para esse propósito com o intuito
de amenizar os impactos da realocação da população urbana.

Pelo fato das comunidades vir a ser submersas pelo grande volume da água, ficaram as
expectativas do deslocamento vir a ser espaços em condições estruturais e de melhoraria para a
vida destas comunidades, com o objetivo de reassentar esses moradores. E para a população rural
o projeto se deu com a criação de uma estrutura rural com todos os requisitos necessário para o
desenvolvimento das atividades agrícolas. Mas mesmo com todos os projetos envolvidos não foi
possível que se cumprisse o que foi proposto a população atingida de Petrolândia e Aldeia da Luz,
após todos esses anos ainda sentem a necessidade da identificação que tinham com as antigas
moradias, essa ligação traz muitos contextos. Este trabalho aborda assuntos que são inerentes aos
projetos dos governantes e que são de caráter compulsórios, mergulhados em normas e regras que
não atendem, e muito menos respeitou ou respeitaram os sentimentos culturais da população de
Petrolândia e Aldeia da Luz.

O trabalho é embasado em pesquisas descritivas por estas apresentarem a linguagem


necessária para o entendimento do estudo, as pesquisas serão realizadas com a ajuda de mecanismos
de buscas virtuais em consequência do estado de emergência e do distanciamento social, nos
utilizamos de periódicos, revistas eletrônicas e outros materiais que puderam contribuir para o
desenvolvimento do trabalho. Este é um trabalho de grande relevância socioeducativa e busca criar
1393

uma discussão embasada em um tema contemporâneo e de muitas arestas socias e politicas já que
vivemos em um contexto de muitos avanços tecnológicos que permitem escolhas que não afetam
tanto as comunidades e o meio ambiente.

Construção de barragens

No Brasil seria difícil dizer que a finalidade da água seja apenas para suprir a demanda do
consumo humano ou da agricultura e pecuária, a geografia das bacias hidrográficas brasileiras tem
sido utilizadas para a geração de energia hidráulica ou hídrica, mas para que isso ocorra precisa
que se construa as usinas hidrelétricas. Os recursos oferecidos pelos rios para que estas obras
sejam possíveis despertam o assédio do governo e das grandes empresas do setor que aproveitam
esse abundante recurso e ignoram os danos causados na construção dessas obras (Secretaria
Nacional 2011).

Na história da nossa organização, os casos de violação dos direitos humanos e


negação dos direitos dos atingidos por barragens foram se acumulando ao longo
dos anos. A partir dos anos 80 e início da década de 90, nos locais onde a
resistência e a mobilização foram mais amplas, alguns direitos foram
considerados e respeitados. Em outros locais, as famílias foram expulsas de suas
terras injustamente, sem reassentamento e com a maioria dos direitos negados
(Secretaria Nacional 2011, 4).

Nesse mesmo sentido e no intuito das necessidades econômicas de desenvolver a região


do Alentejo no centro sul de Portugal, garantindo estruturas que permitam o desenvolvimento
das indústrias, no Nordeste brasileiro, o turismo rural e a agricultura irrigada na região Alentejana
da Aldeia da Luz, para que isso seja possível, uma das principais fontes de desenvolvimento é a
energia elétrica que vai permitir as instalações de parques industriais e gerar outras atividades que
requer ofertar e regular esses recursos. Mas ao mesmo tempo que chega o progresso vem também
os problemas que estão relacionados ao preço a ser pago, não há como deixar todos felizes nessa
corrida rumo ao progresso.

A construção de barragens para geração de energia hidráulica (hidroelétricas), tem sido


um cenário de debates por ambientalistas e pela população que compõe as regiões onde estas
obras se desenvolvem, os impactos são de ordem tanto ambiental como humano e acaba por
ocasionar muitas discussões em torno desse assunto, sem que nada seja levado em consideração e
estas obras sempre acabam por serem concluídas. (Pereira, 2016).
1394

Os danos causados por uma usina hidrelétrica são irreversíveis mesmo


utilizando um recurso natural onde não poluem em alguns aspectos, de acordo
com Souza (2000) as usinas hidrelétricas tem um fator crucial em relação ao
meio ambiente o desmatamento ambiental, porém é algo que não se consegue
ser tirado facilmente do território brasileiro, pois é através das hidrelétricas que
geram a maior parte de energia para o país (Pereira, 2016, 3).

Os interesses financeiros em sua maioria tem vencido os interesses da consciência


ambiental, o interesse em preservar os recursos naturais são ignorados, e não é seguido uma
diretriz que traga o almejado desenvolvimento sustentável, e perpetua as questões referentes aos
benefícios e a degradação dos ambientes naturais, e a possível extinção de espécies que dependem
dos cursos dos rios e das matas que fazem parte desse ambiente, onde muitos animais se
desenvolverem e são espécies exclusivas desses biomas.

Os impactos causados pela construção das hidrelétricas têm como vítima não apenas a
vida animal mas também traz impactos sociais de grandes proporções, com os deslocamentos
compulsórios, e alteração no segmento cultural de povos que habitam e vivem nestas áreas onde
tiveram suas origens.

Esses deslocamentos geralmente são impostos com o apoio de uma política social que
traz mudanças inesperadas nas rotinas e no desenvolvimento econômico, esse aspecto econômico
vivenciado pelas populações de áreas nativas culminam com inúmeros problemas culturais. Não
podemos deixar de descartar que o desenvolvimento traz certo progresso, mas elimina a
identidade dessa população que habita essas áreas naturais e na sua grande maioria são pequenos
agricultores, pescadores, extrativistas e raramente buscam a vida urbana, seus produtos
econômicos são baseados em atividades artesanais e da agricultura extensiva familiar (Pereira,
2016).

As terras e os rios são a únicas fonte de renda para as populações nativas, e o


reassentamento não permite que estas famílias continuem com as suas atividades culturais e que
possam continuar a única prática que dominam. Estes deslocamentos forçam a retirada das
pessoas de suas terras, deixando para traz sua história e sua vida, são lançados em um novo sistema
com novas regras e tendo que aprender e absorver novos conhecimentos depois de uma vida
inteira em seu ambiente natural.
1395

Tomando-se como exemplo as ações do governo brasileiro no tocante à


política de geração de energia elétrica, verifica-se que a década de 1980 assinala
a reorientação do modelo de intervenção até então adotado. Tais mudanças,
todavia, não surgem do acaso, mas, ao contrário, resultam de uma pluralidade
de fenômenos e de novas ideias, que conduziram a transformações
significativas na relação Estado Sociedade (Corrêa de Araújo 2001, p. 7).

Estas contextualizações são os principais assuntos discutidos nas questões que norteiam
as construções de Usinas Hidrelétricas, não há como evitar que após a construção dessas
gigantescas obras de engenharia não se perceba o impacto ambiental imediato e o caos social.

As comunidades e as aldeias que são áreas alvo dessas construções precisam


constantemente de apoio em todas as áreas necessitando de um planejamento abrangente e
audacioso que atendam às necessidades culturais dessas populações que são afetadas e tem sua
vida modificada por ter que deixar para traz seus sonhos (Costa , Locks e Matos, 2010).

No Brasil, o procedimento de avaliação de impactos ambientais está vinculado


ao processo de licenciamento ambiental. A Avaliação de Impacto Ambiental foi
instituída em vários países para possibilitar uma análise prévia da viabilidade
ambiental de um empreendimento ou atividade proposta, propiciando a adoção
de medidas mitigadoras para os potenciais impactos identificados, incluindo as
alterações no projeto original que tornem o empreendimento viável do ponto
de vista socioambiental que possibilite sua inserção local e regional (Costa,
Locks e Matos, 2010, 9).

Não é difícil entender que mesmo que toda atenção seja dispensada com a ideia de dar o
suporte para aqueles que deixaram suas terras, seja o suficiente para preencher o vazio deixado no
pensamento dessas famílias que abandonaram o seu lugar sua identificação. Saber que todos
aqueles lugares por onde viveram e cresceram desapareceu no findo de um lago é um grande
sofrimento e parte de um impacto permanente difícil de ser esquecido, muitas famílias passam
por experiências que mesmo ao passar dos anos nunca sessam sua saudade e a dificuldade de
adaptação aos novos processos de convívio ao qual foram submetidos.

Deslocados de Petrolândia e Aldeia da Luz

Este trabalho tem como essência mostrar o retrospecto causado em consequência da


construção das (Usinas Hidroelétricas, Luiz Gonzaga e Alqueva), estas usinas se localizam na bacia
do Rio São Francisco, PE. Nordeste Brasileiro e no Rio Guadiana região do Alentejo centro-sul
de Portugal. Petrolândia pertencente ao antigo município de Jatobá, Itaparica, nomes dados ao
município da velha cidade de Petrolândia no Estado de Pernambuco, A velha Petrolândia, se
distanciava, 25 Km do município da nova Petrolândia. Esta hidroelétrica é gerida pela Chesf
1396

(Companhia Hidro Elétrica do São Francisco ) as obras se iniciaram no ano de 1979 sendo
inaugurada no ano de 1988, a nova Aldeia da Luz foi construída as margens do lago da barragem
do Alqueva, a poucos metros de distância, é gerida pela EDIA (Empresa de Desenvolvimento e
infraestrutura do Alqueva) as obras tiveram inicio no ano de 1996 e inaugurada em 20002.

O Programa de Reassentamento de Itaparica é a mais longa experiência de


reparação de danos pela construção de barragens no Brasil, pois mesmo passados
24 anos da entrada em operação da usina Luiz Gonzaga ele ainda consta do
orçamento da CHESF, caracterizando-se como um caso complexo e de
profundo conteúdo social. O Reassentamento de Itaparica surgiu da
necessidade de compensar o impacto causado sobre, aproximadamente, 10,5 mil
famílias que moravam na área inundada pela Usina, das quais 4,6 mil na zona
urbana e 5,9 mil na área rural, e dentre estas, 211 famílias indígenas da tribo
Tuxá (Da Cunha, Responsabilidade Social Corporativa: A Memória do
Programa de Reassentamento dos Atingidos pela Barragem Usina Hidrelétrica
Luyiz Gonzaga ex Itaparica, 2012, p. 3).

Como já foi contextualizado a construção das usinas hidrelétricas são projetos que
demandam muitos estudos, e envolvem especialistas responsáveis por todas as pesquisas
inerentes aos processos ambientais que são parte dos requisitos necessários para a aprovação e
execução das obras. Mas a parte sensível e com maior peso, e que é geradora de críticas, é
justamente o impacto social e ambiental, não apenas no que se refere discussões sociais, mas
existe um problema de ordem cultural específicos, como já foi assuntos abordados nos
parágrafos anteriores e são fenômenos que rompem um paradigma social de um povo de uma
cultura.

Como tem sido abordado neste trabalho as áreas inundadas pelausinas de Itaparica e
Alqueva tema de estudo, pode ser observado no desenvolvimento dos textos as questões
humanas, que são abordas, no que se refere a gigantesca área que foram deslocadas para as
construções destes lagos, o de Itaparica tem uma extensão de 150km cobrindo uma grande
superfície que equivale a 83.400 hectares, e estes superfície avança por regiões do Estado da
Bahia e do Pernambuco (CODEVASF, 2020). Essa imensidão coberta pelo lago é de fato uma
violência imposta as famílias de tal modo que A barragem do Alqueva, construída no rio
Guadiana, mede 96 metros de altura para um coroamento total de 458, e superfície de 250 km
por 215km em Portugal, 35 km em Espanha, o que equivale a quatro vezes a superfície da cidade
de Lisboa. Ate hoje representa a maior retenção de água da Europa. Nesse sentido, não tendo
outra opção a não ser ter deixado o seu lugar, mesmo se opondo e contra a sua vontade esses
familiares não tinham para onde ir.

Essas áreas que foram cobertas pelas águas trouxeram muitos problemas para as famílias
que habitavam e desenvolvia a economia local, estes sobreviviam de atividades rudimentares que
1397

traziam como tradição familiar, as áreas atingidas pela inundação são regiões onde estes
moradores tinham sua adaptação e seu modo de vida definido, estes lugares ficaram perdidos
com parte da sua história (Da Cunha, Responsabilidade Social Corporativa: A Memória do
Programa de Reassentamento dos Atingidos pela Barragem Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga ex
Itaparica, 2012). No ano de 1988 e 2002 as sedes administrativas e as demais atividades das
velhas Petrolândia e Aldeia da Luz, foram deslocadas para a cidade nova, sendo que as áreas e
povoados que existiam próximos aos rios foram alagados.

Esta mudança no ambiente de vida dos moradores, afetou todo um ciclo de vida de mais
de várias famílias que habitavam as áreas de inundação, que sobreviviam nestas regiões que foram
inundadas pelas usinas, sendo que boa parte dessa população morava em zonas urbanas e outra
parte na zona rural em Petrolândia famílias indígenas da etnia Tuxá no qual daria a soma de cerca
de 21 mil pessoas que eram moradoras das áreas ficaram submersas.

Os defensores da construção de barragens citam as contribuições das usinas


hidrelétricas para o desenvolvimento socioeconômico, invocando entre as
vantagens o controle de enchentes, aumento da produção de alimentos graças à
irrigação, serem uma fonte limpa de energia, etc. Por outro lado, os críticos
afirmam que as consequências negativas deste empreendimento são mais
percebidas pelas comunidades que ficam localizadas mais próximas de onde as
barragens são construídas e muitas vezes os benefícios advindos dessas obras
serão sentidos nas grandes cidades e regiões mais desenvolvidas (Da Cunha,
Responsabilidade Social Corporativa: A Memória do Programa de
Reassentamento dos Atingidos pela Barragem Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga
ex Itaparica, 2012, 35).

Os impactos são abrangentes, e diversificados atingindo todo um sistema tanto ambiental


e social que estava acomodado em suas rotinas culturais firmes nas convicções dos cidadãos, estas
comunidades viviam da forma que gostavam e estavam adaptados. Em busca de evitar que o
impacto fosse maior, um plano de realocação foi colocado em prática, os projetos propostos pela
CHESF e EDIA, parecia perfeito, mas esse plano não foi uma ação que envolveu os moradores,
de certa forma não foi uma ação democrática, mas sim uma realocação compulsória que que teve
como objetivo evitar o aumento das discussões sociais e o acirramento dos debates em níveis
técnicos elevados, causados pela construção das barragens.

Mesmo com todos os cuidados para amparar as famílias que saíram de suas terras os
impactos não deixam de existir, a readaptação nas novas estruturas, as garantias de renda para
sobrevivência nunca corresponderam ao esperado pois essas famílias tantos as indígenas como a
população urbana e rural precisam aprender a conviver com outros sistemas.
1398

A nova Petrolândia é uma cidade que não tem mais o privilégio de ser uma cidade que pode
ser considerada banhada pelo Rio São Francisco, a cidade apenas é banhada pela imensidão da
Represa de Itaparica. A cidade velha (Petrolândia) já não existe mais, o que pode ser comprovado
vendo apenas o teto da igreja Sagrado Coração de Jesus, submersa na represa, na imensidão das
águas de um grande lago artificial, a represa engoliu a velha Petrolândia, cidade que só existe nas
lembranças dos mais antigos moradores. O mesmo aconteceu com a Aldeia da Luz, sobraram um
grande lago e em baixo dele todas as sensíveis memórias dos atingidos e os resquícios da fortaleza
de Lousã, identificada a área de sua localização no fundo da albufeira do Alqueva, através de uma
placa.

Mas nada pode sobrepor a cultura e mesmo que fosse construída uma cidade uma aldeia
perfeita ainda iria faltar parte da vida desse povo deixada nas antigas comunidades, a população
realocada não se sente confortada e nem se sente feliz pois foram levados para uma cidade artificial
sem alma sem identificação com sua história, não se pode ter raízes culturais na nova Petrolândia
ou na nova Aldeia da Luz.

A construção destes novos empreendimentos para na nova Petrolândia e na nova Aldeia da


Luz, foi um marco para muitos que viam na construção das barragens uma motivação para o
desenvolvimento, pensavam uma boa parte da população que estas áreas seriam atraídas novos
investimentos, para as áreas de irrigadas que possibilitariam uma melhoria no plantio e favoreceria
as atividades agrícolas e pesqueira da comunidade.

Outra parcela da população achava que com a chegada da hidrelétrica melhorariam o


comércio e que as regiões se emergiria então valia a apena sacrificar suas antigas comunidades em
nome do progresso, mas passado o tempo perceberam que os benefícios só vieram para outras
regiões principalmente na região do Alentejo, Portugal as irrigações com a agua da barragem do
Alqueva atraíram outros empreendimentos a milhas de distância da antiga aldeia beneficiando
outros concelhos expandindo a agricultura do agronegócio do vinho e do azeite.

E a população que não foi realocada encontra dificuldades para realizar suas atividades, e
com a criação das áreas de proteção ambiental, tudo ficou mais difícil as empresas não chegaram
e muito menos o esperado progresso. No caso das comunidades nativas os problemas são ainda
maiores, após serem realocadas as famílias não tiveram o fim do seu sofrimento, as lembranças de
ter deixado suas terras, as famílias indígenas passam a enfrentar outros problemas que são ainda
maiores.

A construção de uma barragem por mais simples que pareça não é como uma outra
construção qualquer, no caso do Brasil e Portugal, as construções enfrentaram inúmeros
1399

problemas que não são solucionados, após a realocação dos povos que ocupam as áreas de
interesses estes são esquecidos deixados não existem um planejamento para que estes indivíduos
se sintam amparados, a falta de apoio permanente causa uma certa dificuldade a longo prazo que
só vem se agravando (Caetano 2018).

As terras dos Tuxá foram inundadas juntamente com três municípios da Bahia e quatro
de Pernambuco na década de 1980, com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica,
iniciativa da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF). A inundação atingiu
cerca de 830 km² ao longo de 100 km de margem do Rio São Francisco, deslocando
aproximadamente 40 mil pessoas. Dessas, cerca de 1.200 eram indígenas Tuxá.
Após a inundação das terras e destruição de seus bens, o povo Tuxá se reorganizou e
pleiteia a demarcação da nova área desde 2003 (Caetano 2018, 1).

A posição geográfica das regiões nem sempre são de interesses econômicos e a construção
desses mega empreendimentos, abalam as estruturas frágeis dessas comunidades que vivem de
maneira simples e mesmo que alguns se agradam outros se sentem perdidos sem a referência, e
ficam sem rumo.

Nem sempre a construção de usinas hidrelétricas é sinônimo de desenvolvimento para a


região onde se desenvolve as construções, mas são argumentos que são usados para convencer a
sociedade local e assim enfraquecer a oposição e organização da sociedade contra os projetos
(Filho 1988).

As obras nem sempre tendem desenvolver o local onde se localiza existe ali as
transformações econômicas e melhoria na qualidade de vida esperada esse ainda não é o principal
objetivo das construções para aqueles locais, mas sim para cidades mais estruturadas com parques
industriais e outros requisitos importantes para o desenvolvimento.

Segundo (Filho 1988):

O aproveitamento hidrelétrico de Itaparica localiza-se no trecho denominado


seção inferior do médio São Francisco, no semiárido do Nordeste brasileiro,
entre os estados da Bahia e de Pernambuco. A energia disponível em Itaparica
é da ordem de 900.000 kW médios, permitindo a instalação de 10 unidades
geradoras com potência de 250.000 kW cada. A barragem de seção mista
(terra/rocha), associada às estruturas de concreto da casa de máquinas e do
vertedouro, tem uma extensão total de crista de 4.700m e uma altura máxima
de 105m.

O impacto causado ao meio ambiente devido à construção das grandes obras do setor
elétrico no Brasil e Portugal, é tema de grande debate na sociedade civil e também dentro do
ambiente governamental e a necessidade da construção das usinas e de novas linhas de
transmissão para a geração e distribuição de energia elétrica se confrontam ente dois interesse
1400

ambiental e econômico. Portanto não há dúvidas de que as obras são causadoras de profundos
impactos ambientais físicos, na biótica e também no meio sócio- econômico, mas tanto no Brasil
como em portugal, há muitas outras alternativas que podem resultar no suprimento de energia
elétrica.

Vale lembrar que Itaparica localiza-se perto de Moxotó, outra usina construída
pela Chesf na década de 70. Mesmo tendo Moxotó uma área alagada bem menor
do que Itaparica, atingindo apenas o município de Glória e uma parte rural de
Petrolândia, o resultado do reassentamento foi desastroso. Para se ter uma idéia,
a Chesf hoje está incluindo no projeto de Itaparica o reassentamento de parte
das famílias que foram atingidas pela obra de Moxotó. Trata-se, sem dúvida, de
uma dívida reconhecida, que o Estado está resgatando junto a essa população e
que, de acordo com uma avaliação, poderia ser estendida a outras obras
realizadas anteriormente (Filho, 1988, 11).

Para que seja organizado o reassentamento é necessário que vários órgãos governamentais
sejam envolvidos, em Portugal basicamente na região do semiárido do Alentejo, a paisagem e
condições etnográficas da região alentejana, favoreciam implantação de ações que, por meio de
suas transformações fossem capazes de otimizar não apenas as atividades económicas da região,
mas, também, oferecer suporte para o sustento do desenvolvimento das regiões que estão a sua
volta. Porém esses grandes projetos não consideram o enraizamento cultural e social que os
moradores tem com o local, como no caso dos antigos moradores da Aldeia da Luz, que se
sentiam-se formente ligados ao a sua Aldeia, sendo essa ligação fortificada pelo relacionamento
com os vizinhos e a solidariedade familiar. (Reino, Duarte & Antunes, 2017)

Todas estas entidades em grande parte não são estruturadas e não funcionam como
deveriam são desorganizadas sem o aparelhamento necessário e a as leis que regem estes
organismos são confusas, e ainda existe uma indefinição de quem é responsável por ou o que, é
muito deficiente a forma como estes organismos operam (Pereira 2016).

Todas essas ações que envolveram o reassentamento em Petrolândia e Aldeia da Luz são
parte de projetos que tem como objetivo amenizar os impactos ambientais e sociais mas a forma
como foi implantado e como deram-te os processos e como é organizado essas entidades dos
governos deixam a desejar.

Divisão da sociedade

Quando a decisão da construção de grandes empreendimentos chegam a regiões como


chegaram em Petrolândia e Aldeia da Luz houve uma nova perspectiva principalmente daqueles que
viviam nestas regiões como os comerciantes e a maioria da casta política que se alimentavam os
1401

ânimos com a esperança de que ali se teria uma evolução econômica. Mas por outro lado a decisão
e o apoio gerou uma divisão sendo que as famílias que tinha suas propriedades nas áreas rurais
sabiam que quando perdessem suas terras não lhes sobrariam muitas oportunidades e não
seria fácil se adaptar as novas regras e novos sistemas de vida. Este mesmo temor afetou de certa
forma as comunidades indígenas que tinham sua existência as margens do Rio São Francisco o
povo Tuxá foram os que mais sofrem devido essa ruptura cultural que sofreram. Essas grandes
mudanças eram alimentadas com uma grande euforia em torno do progresso econômico que
escondeu a realidade do que seria enfrentada no futuro (Silva 2017).

Pensando a história de Petrolândia, bem como outras que foram também


inundadas por consequência da construção de barragens, em nome de um
progresso que se quer pensou nos impactos ambientais, nem tão pouco nos
danos e mágoas causados aos ribeirinhos moradores destas comunidades,
surgem os questionamentos: Até que ponto democracia é democracia? Será que
em nome da democracia é aceitável burlar o direito do outro em busca de
interesses convencionais ou de uma parcela que visa interesses próprios? Anais
Seminário Interlinhas 2017.1 — Fábrica de Letras | 190 Há um dito popular
que diz: “O meu direito acaba quando o direito do outro começa”. Ou será que
nós fazemos de desentendidos, buscando muitas vezes não o bem comum, mas
aquilo que irá nos beneficiar de alguma maneira, e assim, desrespeitamos ou
minorizamos o que é do outro, sem avaliar os males causados por nossas
iniciativas (Silva, 2017, p. 6).

A promessa de possuir uma nova casa e para receber a população realocada de Petrolândia
e Aldeia da Luz, pareciam uma ideia revolucionária para os habitantes das áreas urbanas, a
promessa da realocação dos moradores das áreas rurais para áreas irrigadas com sistemas
modernos parecia um sonho para uns mais um pesadelo anunciado para outros.

Tornavam-se evidentes às insuficiências, mesmo depois de todo o planejamento e de


todas as medidas de construções dos novos espaços de moradias destinados à
população da “velha” Petrolândia. Ainda, em 2013, o Ministério Público Federal
acionaria a CHESF para que cumprisse algumas pendências do acordo firmado entre
ela e o Polo Sindical, em 1986. Os atrasos no calendário de mudanças e nas medidas
incorporadas a ele, tanto antes da inundação, quanto depois, provocaria angústias e
uma insegurança coletiva. Na segunda metade da década de 1980, os temores
fomentavam uma mobilização que, de certa forma, acelerava algumas decisões frente
à necessidade de adiantar o que se encontrava em atraso em relação ao calendário
estabelecido no acordo de 1986 (de Menezes e Marques 2019, 70).

A maioria da população de Petrolândia não via com bons olhos os projetos de realocação,
e não acreditavam que a construção da usina e o sacrifico dito como uma necessidade para se ter
o progresso, prometido pelos políticos seriam o suficiente. Sabendo que a população de modo
geral até mesmo os que apoiavam a construção da usina sabiam que ser levados para outra cidade
não traria melhorias significativas e teriam seu elo cultural rompido pois iriam morar em uma
1402

cidade que não foi construída com uma história de lutas e conquistas, não haveria nessa nova
Petrolândia nenhum vínculo cultural (de Menezes e Marques 2019).

É evidente que falar sobre as memórias de Petrolândia e da Aldeia da Luz, não significa nos
arremeter ao passado, mas falar da identificação cultural é preciso muito mais do que isso, hoje
submersas, suas histórias permanecem e permanecerá viva para muitos, povoamentos daquelas
regiões, pois se trata de uma esperança que ficou perdida. De alguma forma em nome do
progresso, nada é levado em consideração, e grande parte das construções de barragens é obvio
que é direcionada a regiões estrategicamente identificadas ou porque não ignoradas, todo esse
planejamento é baseado na importância desses concelhos ou municípios a que será sacrificado
juntamente com sua cultura.

Segundo (de Menezes e Marques 2019):

A construção da Barragem de Itaparica implicou em grandes rupturas estruturais. Com


efeito, houveram muitas dissidências socioculturais ocasionadas pelas migrações em
massa. Deve- se ressaltar que os deslocamentos são problemas fulcrais atrelados às
políticas de hidroeletricidade. “A amplitude das usinas hidrelétricas (UHE),
construídas, obriga um grande número de famílias a se transferir para outros locais,
fato que implica alterações nos padrões determinantes das produções agrícolas e
redefinições de relações sociais.

Geralmente as urbes que são detentoras das grandes construções de barragens para suprir
a demanda das hidrelétricas são regiões que não se desenvolvem como se espera, e como divulga
os políticos, mas existe o reflexo que é desejado e que ilude e permeia os pensamentos dos mais
sonhadores. Não há como não impactar toda uma população quando se altera o ambiente, fugir
dessa realidade não resolve o problema, mas sim o torna maior, não há meios que podem apagar
as lembranças pois as lembranças é que torna um povo conhecido e que se identifica com algum
lugar onde nasceram e cresceram e tem suas raízes.

Considerações finais

É interessante que o leitor entenda que este artigo estudou as condições vividas pelos
povos de Petrolândia- PE e Aldeia da Luz, Portugal, quando as urbes foram inundadas pelos
reservatórios de água das barragens de Itaparica e Alqueva, devido a construção das hidrelétricas,
se fez necessário que a população mudassem para outras localidades projetadas para abrigar os
atingidos por esses megas empreendimentos. Nesse sentido, este estudo cria novas possibilidades
para que o leitor entenda que a criação dessas novas urbes tiveram por finalidades reassentar e
1403

amparar os deslocados compulsórios de Petrolândia e Aldeia da Luz, que foram submersas, sendo
assim esses projetos não foram desenvolvidos com total apoio da população atingida, mas sim
defendido no meio político e empresarial com o intuito de alavancar a economia dessas regiões
o que não aconteceu. A construção das usinas hidrelétricas envolve um grande e longo processo
de estudos de órgãos oficiais, mas mesmo com o envolvimento de todas estas instituições o
interesse em desenvolver uma grande obra como são as usinas não apresentam a sustentabilidade
socioambiental que é defendida pelos idealizadores desses projetos.

E não há como garantir que esses impactos ambientais e psicossociais gerados por esses
projetos propostos sejam amenizados ou que a longo prazo não causariam problemas
socioambientais, não há como prever o futuro com e a dimensão dessas obras. Ficou claro que
neste estudo não é possível aprofundar o conhecimento sobre essas gigantescas obras que são
representadas pelas hidroelétricas, e muito menos detalhar os impactos imediatos, pois teriam
que ser contextualizados com outras linhas de estudos, para além da construção da barragem do
Alqueva construída na freguesia da Aldeia da Luz, região do Alentejo Portugal.

O interesse por esse tema, possibilita trilhar por outros caminhos, buscar outros
conhecimentos em outras obras e outras bibliografias que embasaram este trabalho, pois este é
um tema de muita relevância contemporânea e de interesse social. Podemos definir que os
projetos de impactos que criaram os deslocados compulsórios de Petrolândi e Aldeia da Luz, foram
projetos que tiveram como base e alvo regiões de pouca expressão econômica e política, mas
foram criadas muitas expectativas que foram usadas como promessas vazias.

Hoje a população que vive em Nova Petrolândia e na nova Aldeia da Luz, sente-se como se
não tivessem uma identidade, uma história, e seu passado perdido. Embora, esse sentimento não
seja somente destes povos, mas de todas as vítimas de construção de barragens. Pois, não há
como substituir a cultura a história de vida daqueles que são retirados do lugar onde viram crescer
e se desenvolver com suas próprias mãos, os deslocados destas regiões, principalmente os mais
velhos não tiveram tempo para vivenciar o que foi prometido, os impactos são diversificados e
sem solução aparente.

Bibliografia

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1405

Um estudo sobre o pensamento racial na obra de Lilia Katri Moritz


Schwarcz

Micheli Longo Dorigan*

Resumo: uma das grandes referências, ao adentrar no campo de estudo das relações raciais, é Lilia
K. M. Schwarcz, pesquisadora que vem dedicando boa parte de sua produção a essa temática. De
sua trajetória acadêmica surgiram títulos de destaque como o livro Retrato em Branco e Negro (1987)
e O espetáculo das raças (1993). Estes trabalhos fazem parte de um conjunto maior de obras realizadas
nos anos 1980 responsáveis por mudar a perspectiva dos estudos sobre a população negra do Brasil,
sobretudo, por inserir na análise a capacidade de agência dessas pessoas. Nesse sentido, esta
pesquisa busca compreender como a autora constrói seu pensamento sobre as relações raciais e o
pensamento racial, tomando como fonte os textos publicados pela autora até o período em questão.
Teórica e metodologicamente a pesquisa orienta-se nas considerações de John Pocock: vocabulário
normativo, contexto social; e nas reflexões de Pierre Bourdieu acerca do campo intelectual. Foi
possível ainda fazer um levantamento das fontes mobilizadas e dos referenciais teóricos adotados.
Nessa perspectiva, a partir dos textos escritos, das faculdades frequentadas, e sobretudo do
contexto histórico do período em geral, é possível percorrer a trajetória da autora, e formular
hipóteses acerca de suas ações e intenções.

Palavras-chave: Pensamento Social, Relações Raciais, Lilia Schwarcz

Introdução608

Uma das grandes referências, ao adentrar no campo de estudo das relações raciais, é sem
dúvida, Lilia K. M. Schwarcz, pesquisadora que vem dedicando boa parte de sua produção a essa
temática. Desde sua graduação em História pela Universidade de São Paulo, em 1976, com o
trabalho de conclusão de curso Escravidão em Vila Bela, seguindo para o mestrado em Antropologia
Social defendido na UNICAMP Imagens de negros. A imprensa paulistana em finais do século XIX –
versada em livro no ano de 1987 com o título de Retrato em Branco e Negro; sua tese de doutorado –
Homens de sciencia e a raça dos homens: cientistas, instituições e teorias raciais no Brasil de finais do século XIX
– defendida em 1993, e no mesmo ano convertida em livro sob o título de O espetáculo das raças,
pode-se perceber uma trajetória bastante consistente no estudo do pensamento racial.

Entende-se que a obra da autora produziu um pensamento e uma interpretação das relações
raciais no Brasil, bem como fez circular determinadas concepções e ideias sobre a temática.

*
Graduanda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá e Bolsista PIBIC/CNPq-FA-UEM
608
O presente trabalho tem origem no relatório final do Projeto de PIBIC Pérolas sob o sol: um estudo sobre a
obra de Lilia Katri Moritz Schwarcz, realizado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Maringá
1406

Ademais, o material em questão faz parte de um conjunto maior de obras realizadas nos anos 1980
responsáveis por mudar a perspectiva dos estudos sobre a população negra do Brasil, sobretudo,
por inserir na análise a capacidade de agência dessas pessoas. Nessa direção, a produção de
Schwarcz, se mostra bastante notável, por construir uma interpretação das relações raciais no Brasil,
ao longo de sua carreira acadêmica, evidenciando não só o papel ativo de um povo considerado
incapaz, mas também, a originalidade presente na história de um país marcado pela falta de
identidade.

Nesse sentido, o objetivo da presente pesquisa é buscar compreender como a antropóloga


constrói seu argumento sobre as relações raciais e o pensamento racial em seu estudo, tomando
como fonte os textos publicados pela autora até o período em questão. Logo, pretende-se observar
as fontes mobilizadas, os referenciais teóricos, bem como o ambiente de onde tal produção
emergiu, além de elaborar um levantamento bibliográfico acerca da autora, tendo em vista a sua
quase obrigatoriedade no estudo das relações raciais no Brasil, e a concomitante ausência de
trabalhos voltados à construção de sua obra. Nesta direção, buscou-se uma literatura que pudesse
fornecer elementos para tal movimento, assim, recorreu-se a John Pocock (2003) e Pierre Bourdieu
(2008).

Desse modo, a presente pesquisa, orientou-se metodologicamente nas considerações de


John Pocock, no que diz respeito, a busca pela compreensão do vocabulário normativo a que as
obras da autora estavam submetidas, bem como a procura do entendimento do contexto social da
mesma, e as demandas impostas pela sociedade, em grande medida, à produção intelectual. Além
disso, conta-se com as sugestões de Pierre Bourdieu acerca do campo intelectual, no intuito de
buscar compreender melhor as escolhas e as opções disponíveis à autora. Nesse sentido, destaca-
se a questão do efeito de teoria, abordada por Bourdieu em A economia das trocas lingüísticas (2008),
em que ao mesmo tempo em que as Ciências Sociais investigam e analisam a realidade elas também
corroboram em sua construção. Segundo o autor:

Em resumo, a ciência social deve englobar na teoria do mundo social uma teoria
do efeito de teoria que, ao contribuir para impor uma maneira mais ou menos
autorizada de ver o mundo social, contribui para fazer a realidade desse mundo:
a palavra, ou a fortiori, o ditado, o provérbio e todas as formas estereotipadas ou
rituais de expressão, são programas de percepção.[...] Sob pena de ver-se
impedida de compreender os fenômenos sociais mais fundamentais [...] a ciência
social deve levar em conta o fato da eficácia simbólica dos ritos de instituição, ou
seja, o poder que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação
do real. (Bourdieu, 2008, p. 82-99).

Outra questão interessante apontada pelo autor, diz respeito a censura, de acordo com ele:
1407

Entre as censuras mais eficazes e mais bem-dissimuladas situam-se aquelas que


consistem em excluir certos agentes da comunicação, excluindo-os dos grupos
que falam ou das posições de onde se fala com autoridade [...] Assim, as
produções simbólicas devem suas propriedades mais específicas às condições
sociais de sua produção e, mais precisamente, à posição do produtor no campo
de produção. (Bourdieu, 2008, p.133).

O contexto histórico

O período estudado nesta pesquisa, compreende os anos 80, intitulado por inúmeros
intelectuais como a “década perdida”, que se caracterizou como um período de transição, com o
estimado “término” do regime autoritário instaurado em 1964, e concomitantemente com a
retomada, aos poucos, da democracia. No que tange ao aspecto intelectual, em virtude do processo
de abertura política, novas ideias começaram a circular, concomitantemente as novas possibilidades
teóricas e metodológicas, permitindo aos futuros autores um olhar diferente sobre os problemas
existentes na sociedade brasileira. O tema da escravidão africana, na historiografia, foi um dos que
foram atingidos diretamente por essa conjuntura, com a realização de novas pesquisas, debates,
abrindo novos campos dentro do assunto. Sobretudo, o trabalho interdisciplinar, direcionou novas
abordagens, fazendo com que a história da escravidão, em seu sentido próprio e direto, ampliasse-
se na história social do negro no Brasil.

Nesse contexto, despontam novos atores no cenário político e social que começavam a
desenvolver ações não assumidas pelo Estado, com vários movimentos e organizações procurando
conscientizar os indivíduos da sua condição enquanto sujeitos de direitos, e de deveres. O
movimento negro, em específico, ganha novo impulso, ganhando corpo também, no pensamento
dos historiadores e cientistas sociais. Nesse período, observa-se ainda avanços em relação ao
reconhecimento do papel essencial da população negra na formação sócio histórica do país, com
demandas, inclusive para o Estado, pressionando o Poder Público para responder aos problemas
raciais existentes no país. (Moehlecke, 2012, p. 202).

Ademais, as universidades nesse período, de acordo com Motta (2008), tinham papel
essencial para o desempenho do governo militar, na formação das futuras elites e profissionais na
gestão do país, sendo necessário, por isso, medidas a fim de obter o auxílio dos dirigentes dessas
instituições. Nesse sentido, as AESI (Assessorias Especiais de Segurança e Informações),
constituíram um eixo central no que diz respeito à vigilância e repressão, e foram formadas a partir
de janeiro de 1971, e instaladas nas Universidades Públicas, com apoio da Reitoria, para monitorar
a vida acadêmica. Entre suas principais ações, destacam-se: filtragem nas contratações; barragens
na entrada de professores ‘’esquerdistas’’; controle de manifestações e ações políticas promovidas
1408

pelas lideranças estudantis; controle da circulação internacional de docentes e a dispersão da


propaganda emitida pelo governo.

No seu eixo conservador, a política do regime militar para as Universidades


implicou o combate e a censura às idéias de esquerda e tudo o mais considerado
perigoso e desviante – e, naturalmente, reprimiu e afastou dos meios acadêmicos
os seus defensores; o controle e a subjugação do movimento estudantil; a criação
de agências de informação (as AESI) para vigiar a comunidade universitária; a
censura à pesquisa, assim como à publicação e circulação de livros; e tentativas
de disseminar valores tradicionais (Motta, 2008, p. 32).

Ademais, segundo Motta (2008), o monitoramento tinha como alvo também umas das
importantes atividades da Universidade: a pesquisa. Os assuntos de mais interesse eram os que
tinham relação com a segurança nacional, com os cientistas ligados a tais áreas, sendo
constantemente vigiados. Contudo, durante a gestão de Ernesto Geisel (1974-1979), o eixo
modernizante609 amplia-se nas Universidades, com a expansão das verbas públicas para o ensino
superior, e investimentos em instituições de pesquisa, como o CNPQ, Finep e Fapesp.

Nesse contexto, a equipe da AESI/USP manifestou desagrado com a atuação da


Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), acusada de
financiar pesquisadores e projetos com perfil esquerdista. Um documento
produzido pela AESI/USP afirma que o governo paulista deixará a esquerda
infiltrar-se na Fapesp e, com isso, verbas estariam sendo destinadas a inimigos
do regime. Mas o pessoal das AESI também interferiu em temas que ameaçavam
menos a ordem política e mais a imagem do Brasil construída por suas elites,
embora fazendo uso do indefectível argumento de ameaça à Segurança Nacional.
Na segunda metade da década de 1970, a AESI/USP se interessou por pesquisas
sobre a temática racial realizadas por cientistas sociais ligados à Universidade de
São Paulo. (Motta, 2008, p. 49).

Ainda, o autor destaca que:

Esses casos são interessantes por mostrar a maneira elástica como o


conceito de segurança nacional era manipulado pelas elites governantes.
O regime militar havia incorporado o conceito de “democracia racial”
como dogma, e preocupava-se em evitar que pesquisadores acadêmicos
questionassem sua validade. O temor era que a denúncia da existência de
racismo no Brasil servisse de estímulo à eclosão de conflitos sociais de
natureza racial, colocando em xeque a ordem e segurança interna. (Motta,
2008, p.50)

Nesse quadro, é interessante notar o ambiente específico dentro das universidades pelas
quais Schwarcz passou: Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas

609Nas universidades o eixo modernizante significou, segundo Motta (2008): racionalização de recursos, expansão de
vagas, reforço da iniciativa privada, organização da carreira docente, criação de departamentos, substituindo o sistema
de cátedras, incentivo e recursos à pesquisa e à pós-graduação.
1409

(UNICAMP). Durante o regime militar, na Universidade de São Paulo, de acordo com a Comissão
da Verdade da USP610, ocorreram graves violações aos direitos humanos, que afetaram desde
docentes, até funcionários e alunos. De acordo com Janice Theodoro da Silva, coordenadora da
comissão e professora aposentada do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, de um total de 434 pessoas identificadas como mortas e/ou
desaparecidas pela Comissão Nacional da Verdade, mais de 10% pertenciam comunidade USP, por
atuação, principalmente de organizações políticas que nasceram dentro da Universidade. Ainda, as
ações se deram muito em prol da facilidade de fiscalização por parte do governo, tendo em vista a
aderência dos Reitores ao regime.

Além disso, durante a segunda gestão do reitor Miguel Reale (1969-1976), foi criada a
(AESI). Nesse período de terrorismo cultural, deu-se início a cassação de professores, em todas as
áreas de conhecimento, que possuíssem ‘’ideias marxistas ou subversivas’’ 611. Após a instauração
do Ato Institucional n°5 a tensão aumenta e:

Desencadeia-se, então, a fase mais violenta da repressão policial, que atinge a


toda a sociedade civil. [...] Da cúpula universitária, já domesticada pelo expurgo,
não parte nenhum protesto. A imprensa, amordaçada pela censura, não denuncia
mais. Estudantes e docentes são presos dentro do próprio campus e alguns
inclusive retirados à força das aulas por policiais armados, em clima de grande
comoção. [...] Multiplicam-se as sessões de tortura. Dezenas de professores, em
uma ou outra ocasião, são detidos ou intimidados a comparecer aos órgãos de
segurança para prestar informações. Muitos são presos, alguns são torturados.
Alunos são mortos, outros “desaparecem”. (2004, p.65, disponível em
https://www.adusp.org.br/files/cadernos/livronegro.pdf)

Devido a tamanha violência e repressão ocorridas na Universidade de São Paulo, a vida


acadêmica na Universidade Estadual de Campinas aparenta relativa tranquilidade, contudo, de
acordo com a Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni’’, as coisas não foram bem assim.
Segundo Caio N. de Toledo, no texto ‘’A UNICAMP não foi uma ilha: por uma Comissão da
Verdade e Memoria’’, vários docentes e discentes sofreram ameaças de morte, além de serem
igualmente presos e torturados na década de 1970. Embora alguns fatos, corroboram no intuito de
acreditar que a instituição teria sido uma ‘’ilha’’, como a defesa de ‘’dirigentes esclarecidos’’, o
acolhimento de estudantes de outras universidades, contratações de docentes, que eram críticos
abertos ao regime militar (vindos da USP, inclusive), a conclusão não deve ser feita nessa direção,
pelo contrário:

610 Relatório contendo documentos e relatos a fim de investigar e esclarecer os atos ocorridos na época, dividido em
dez volumes
611 Expressões cunhadas no livro o ‘’O Controle Ideológico na USP (1964-1978)’’
1410

Além de reconhecer a atuação dos membros da comunidade acadêmica que não


se calaram no combate ao terrorismo de Estado do pós-1964, os trabalhos da
Comissão poderiam também comprovar que – não obstante, os riscos e os
interditos – a Unicamp construiu espaços de resistência democrática. [...]
Igualmente, a pesquisa sobre os tempos da ditadura poderá mostrar que a
Unicamp teve unidades de ensino e centros de pesquisa que questionavam
abertamente a política econômica, social e educacional do regime militar bem
como organizou eventos (inclusive internacionais) com a participação de autores
de esquerda e críticos da ditadura. A criação de uma Comissão da Verdade e Memória
seria, pois, uma clara afirmação de que a comunidade acadêmica da Unicamp está
radicalmente comprometida com os valores democráticos e repudia o arbítrio, a
intolerância e o autoritarismo do regime de 1964. Comprometida com a
permanente busca da “verdade histórica”, nossa comunidade acadêmica
afirmaria que não transige em matéria de pesquisa livre, de docência crítica e
espaço do irrestrito debate democrático. (Toledo, 2013, p. 9-11).

Do contexto às obras da autora

Tendo em vista a dimensão da produção de Schwarcz, será dado um enfoque a três obras
principais, para a compreensão do pensamento da autora.

Retrato em branco e negro612

Nas últimas décadas, um dos temas mais discutidos da historiografia contemporânea é o


uso de jornais como fonte e objeto de pesquisa, por virem ocupando e se disseminando como
ferramenta fundamental nos campos de ensino e pesquisa. Tal interesse na imprensa, contudo, só
se deu recentemente, sendo reconhecido seu valor real apenas com a revolução no interior da
disciplina de história, na década de 1970, onde emergiram novas tendências historiográficas, a fim
de incorporar novos problemas, objetos e abordagens, redimensionando a história para o campo
social e cultural.

Nesse sentido, os estudos relativos à imprensa surgem como uma possibilidade de estudar
e interpretar fatos e eventos passados, assim como compreender processos no interior de uma
sociedade, que dificilmente apareceriam de forma tão detalhada em outros tipos de fontes. Além
disso, o novo olhar dado à imprensa no espaço acadêmico, se deu fortemente a partir da relação
da própria, com a história do Brasil, desde o início do século XIX. Nesse contexto, os jornais eram
entendidos como importantes agentes de formação e construção no interior dos processos sociais,
políticos e econômicos em que atuam. Se constituindo como forças ativas, políticas, veículos
formadores de opiniões, que podiam orientar o rumo das decisões na sociedade.

612Referência ao livro da autora publicado em 1987 pela Companhia das Letras, ‘’Retrato em branco e negro: jornais,
escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX’’
1411

É com isso em mente, que Lilia K. M. Schwarcz, em um dos seus primeiros livros Retrato
em Branco e Negro, fruto de sua dissertação de mestrado em Antropologia Social realizada na
UNICAMP em 1987, utiliza os jornais como fonte principal a fim de compreender o imaginário
social do negro, como era falada e representada a sua condição, na cidade de São Paulo no final do
século XIX. Nas palavras da autora os jornais são entendidos, ‘’primeiramente, enquanto ‘produto
social’, isto é, resultado de um ofício exercido e socialmente reconhecido, constituindo-se como
um objeto de expectativas, posições e representações especificas’’. (Schwarcz, 1987, p. 15).

Além do mais, consciente da circunstância proveniente do uso de tais fontes, não sendo
transmissores imparciais, Schwarcz, relacionando ao contexto histórico de sua produção, e usando
outras fontes como referência. Assim, apreendendo-os não como expressões verídicas de um
determinado período, mas sim como segmentos localizados e importantes na sociedade, que
produziam, refletiam e representavam pensamentos e valores da época (Schwarcz, 1987, p. 17).
Nessa lógica, a autora analisa a imprensa de São Paulo nos finais do século, como palco das
principais discussões da época, centradas em duas questões principais: o problema do negro, em
meio ao processo abolicionista e as mudanças no regime político, com o advento da República, a
fim de entender a dinâmica estabelecida, de construção e manipulação da representação do negro
cativo ou liberto, no momento de intensificação das rebeliões negras, no período final da abolição.

Ademais, além de tais debates, que carregavam embates práticos e políticos sobre os
diversos grupos dirigentes, e lidavam como problemas centrais como raça, cidadania e igualdade,
o novo centro de atividades, que era a cidade de São Paulo contou também com novas ideias, que
se difundiram rapidamente como justificativa a estrutura social vigente. Entre elas, o positivismo e
o evolucionismo ganharam destaque e repercutiram na imprensa do final do século, com os
discursos deterministas sobre a inferioridade negra, agora afirmado via ‘’sciencia’’, aparecendo não
só não grandes debates, mas também nas pequenas seções, que compunham as partes básicas e
cotidianas dos jornais. (Schwarcz, 1987, p.40).

Desse modo, com São Paulo se tornando o principal centro político, econômico e social
do país, a imprensa se dará não só como reflexo, mas também como produção de valores e
posturas, e cumpriria papel de grande importância, ganhando cada vez mais destaque até se
constituir nos termos irônicos de Lima Barreto na ‘’Onipotente imprensa, o quarto poder fora da
constituição’’ tendo o poder de ‘’tudo publicar e a todos ferir’’. (Schwarcz, 1987 p 52-3).
1412

Entre amigas: relações de boa vizinhança613

O título do artigo, que é no mínimo curioso, constitui uma referência a expressão utilizada
por Robert Darnton, sobre a discussão existente entre antropologia e história. Nesse sentido, a
autora, que sempre perambulou entre as duas disciplinas durante sua carreira acadêmica,
defendendo a sua aliança, discorre acerca de tais ‘’boas relações’’. Segundo Schwarcz Marc Bloch,
em 1923, em um trabalho sobre os ‘’reis taumaturgos’’ já atentava para ‘‘a natureza profunda dos
fenômenos sociais’, e assim de acordo com Le Goff (1993), estava a partir de então fundada uma
nova vertente, [...] denominada ‘antropologia histórica’.’’ (Schwarcz, 1994 p. 69). O problema seria,
para Bloch, escolher entre a objetividade e racionalidade das explicações e a existência de um lugar
próprio da cultura, como protagonista.

De acordo com a autora, tal ambiguidade serviu de inspiração, por exemplo, para o
antropólogo Claude Lévi-Strauss, grande nome no campo estruturalista, para refletir e analisar a
questão da magia. Nessa perspectiva, ‘’o trabalho com certos conceitos herdados da famosa escola
dos Annales, como ‘a longa duração’ e sobretudo a noção de ‘mentalidades’, traz ganhos
fundamentais, [...] para retraçar os vínculos entre antropologia e história‘’. (Schwarcz, 1994 p.70).
A partir disso, ela argumenta que:

Um novo grau de autonomia para a história cultural e para a cultura é conquistado


nesse momento, assim como se diluem as fronteiras que dividiam os mitos e a
história, como se coubesse aos primeiros o reino da subjetividade e da
imaginação e à segunda, pensada sempre no singular, o universo da verdade e da
objetividade. Com o enfraquecimento de uma história do tipo événementielle e
o reconhecimento de lógicas culturais diversas, apreendidas na longa duração, a
‘vizinhança’ deixa de ser assumida enquanto área de litígio e passa a ser pensada
em termos de relações de companheirismo e de trocas recíprocas. (Schwarcz,
1994, p. 70).

Ela continua:

A diversidade e a alteridade, redutos de uma antropologia tão marcada pelo


estudo do ‘outro’, passam a ser flagradas não somente através do recuo
geográfico, mas, nesse caso, por meio de um afastamento temporal, cujo
estranhamento leva a crer na existência de outros homens e outros mundos, que
não têm de se conformar à nossa ‘vil tradição ocidental’. Assim, outrora
separadas por aportes quase opostos- a diacronia para a história e a sincronia no
caso da antropologia -, as duas disciplinas aparecem, nesse contexto, unidas ou
mesmo irmanadas no sentido de abrir mão de antigas e estabelecidas dicotomias
e refletir sobre a contiguidade dos fenômenos, a estrutura e a história, ou mesmo
‘quando o mito é realidade e a história vira metáfora’. (Schwarcz, 1994, p. 70).

613 Referência ao artigo ‘’Entre Boas Amigas: História e Antropologia’’ publicado em 1994 na Revista USP.
1413

Desse modo, segundo Schwarcz, deve-se focar principalmente nas questões teóricas
responsáveis por unir e manter as duas áreas, em vez de seus objetos, a fim de compreender a
relação entre elas. Nesse quadro, a autora utiliza como método a comparação entre as disciplinas e
o uso particular e comum de seus conceitos, tomando como referência o antropólogo norte-
americano Marshall Sahlins, e o historiador da cultura Robert Darnton. Assim, apesar da grande
diversidade existente entre os dois, é possível refinar um diálogo ‘’com o modelo estrutural - no
que ele tem de significante, sincrônico e permanente -, sem que se abra mão do contexto, da cultura
e da história. Uma estrutura que se atualiza, a história que se altera com a cultura e vice-versa. ‘’
(Schwarcz, 1994 p.71).

Assim, interessa ao antropólogo desvendar mitos contemporâneos que revelem


como os povos carregam olhares culturais que os distinguem e que condicionam
a sua interpretação e capacidade de compreensão. O ineditismo está, portanto,
no estabelecimento de um debate com os estudos tradicionais, reconhecendo
nesses povos respostas criativas, e não exclusivamente reações passivas frente a
modelos externamente impostos. É esse o contexto para a construção de novas
historicidades, elaboradas tanto no interior de uma sociedade como entre
sociedades que reavaliam suas categorias. A cultura trapaceia com a natureza,
dando velhos nomes a novos significados; é a prática que atualiza a estrutura.
(Schwarcz, 1994 p.74).

Desse modo, a Schwarcz chega à conclusão que se deve, primeiramente, enaltecer as


culturas diferentes, entendendo a diferença como aspecto positivo; e em segundo lugar perceber a
lógica dos universos culturais em sua radicalidade, não limitando-os a contextos imediatos e
específicos. “Trata-se de afirmar a existência de historicidades particulares a cada cultura, bem
como de compreender que os eventos ganham interpretações variadas em função do arsenal
cultural de cada povo.”. (Schwarcz, 1994, p.75). Por outro lado, a autora defende que é preciso
retomar à noção de diferença, propondo então contrapor a ideia particularista de cultura à noção
flexível de circularidade cultural e criticar o conhecimento que impõe às outras culturas uma visão
estereotipada de sociedades não ocidentais.

Talvez a partir desse recorte seja possível repensar o viciado debate em torno da
cultura nacional brasileira, sempre vista sob o ângulo da ‘falta’, e retomá-lo, nos
termos de R Morse, enquanto opção cultural (1990). (Schwarcz, 1994, p. 75).

Complexo de Zé Carioca

A antropóloga inicia o texto com um tema já discutido mais atenciosamente no artigo Entre
amigas: Relações de Boa Vizinhança (1994): a interdisciplinaridade entre história e antropologia. Nessa
linha, a questão da diacronia e sincronia aparece como central aos seus olhos, assim como a
1414

tendência, tanto histórica quanto antropológica, de ‘’ transformar o ‘outro’ em ‘um’; determinar


uma história e uma antropologia, sem que se destaquem escolas, vertentes ou recortes.’’ (Schwarcz,
1995). Desse modo, para a autora, inspirada em Marc Bloch, uma possível solução seria priorizar
e desenvolver as questões que utilizam da diacronia e da sincronia, não separadamente, mas sim
em conjunto. Nesse sentido, segundo Schwarcz:

Estamos, portanto, no pantanoso terreno que opõe estrutura e história, e é talvez


nesse gancho que a ‘história da cultura’ se separa de uma ‘antropologia cultural’.
Ou seja, em vez de exclusivamente focar o processo de construção e
desconstrução de sentidos, em sua referência ao contexto em que se insere, talvez
o desafio seja insistir nas ‘persistências’, no diálogo que a cultura trava e em como
atravessa explicações apenas pontuais. Fazer uma história recortada por
problemas e conceitos talvez nos leve a repensar a dimensão estrutural e a
estourar a noção de cultura; reconhecer a existência de valores de permanência,
que sobrevivem à infra-estrutura mais imediata e dialogam, re-significados, em
outros contextos. (Schwarcz, 1995).

Além disso:

Nesse sentido, a ‘fábula das três raças’, essa ladainha que desde os tempos
coloniais reconta nossa história a partir do papel formador dos negros, índios e
brancos, parece relevante para se pensar em como a assim chamada cultura
nacional sempre se constituiu por meio de um processo de tradução, seleção,
cópia, alteração e atualização. A ideia é, portanto [...] indagar sobre a recorrência
da explicação que insiste no caráter misto de nossa sociedade; sobre o diálogo
que essas pequenas narrativas estabelecem entre si e que, ao mesmo tempo,
constroem e desconstroem a mestiçagem como tema; a malandragem como
representação. Na pista de M. Sahlins, pensar como a ‘história vira metáfora e o
mito realidade’. (Schwarcz, 1995)

Ademais, segundo a antropóloga, não é recente a crítica dos intelectuais brasileiros a


ausência de tradições e singularidades, assim como de uma carente cultura nacional. Nesse sentido,
Sílvio Romero é um exemplo essencial, ao lamentar em suas obras, a tímida originalidade existente
em nosso país, apontando, em vez disso, a ‘’cópia’’ como nosso maior mal. Além disso, ao lado do
mal-estar da cópia encontra-se um outro tipo de desconforto, quase paralelo: a questão da
identidade nacional, que vem à tona ora como elogio, ora como demérito e acusação. Assim, a
autora busca encontrar, neste trabalho, respostas para a questão da nacionalidade brasileira,
recorrentemente ligada à mestiçagem, ora positiva ora negativamente.

A intenção é atentar para a existência de uma certa ‘estrutura da conjuntura’


(Sahlins, 1990), que implica pensar, ao mesmo tempo, nas persistências e em suas
atualizações. (Schwarcz, 1995).
Nessa perspectiva, o objetivo da antropóloga é, a partir de momentos-chave de nossa
história intelectual, perceber as relações da mestiçagem vinculada à identidade nacional. Nesse
sentido, o principal momento, e o estopim foi a independência em 1822. A partir dela várias
1415

medidas seriam tomadas, a fim de formalizar e dar estrutura ao país recém emancipado. Destaca-
se nessa linha, a fundação das faculdades de medicina e direito, já alguns anos após o ocorrido, para
deixar a nação saudável, e com leis próprias, formalizando sua soberania, e construindo uma
inteligência local. No entanto, a mais inesperada das instituições criadas, foi o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, em 1839. O primeiro concurso promovido pela organização em 1844, já
dizia muito do intuito de sua criação, com o título ‘‘Como escrever a história do Brasil’’. A tese do
vencedor, o naturalista alemão Karl von Martius, era que a nossa história tinha como pilar a
miscigenação. (Schwarcz, 1995)

Por outro lado, havia também, entre os cientistas estrangeiros, o consenso de um Brasil
descrito como um ‘’laboratório de raças’’, onde a miscigenação ocupava o papel de principal
culpada desse espetáculo. Nesse momento então, coexistiam duas singularidades, uma positiva,
constituindo nossa esperança – postura encontrada, por exemplo, nas obras de Sílvio Romero-, e
outra negativa, nossa sentença de degeneração – vide Nina Rodrigues. Além disso, propagavam-se
outros modelos como os ideais segregacionistas das escolas de medicina, ou as teorias de
branqueamento, e na esperança de um Brasil branco, insurgiram nos mais diversos locais, o apoio
à vinda de mão-de-obra branca e europeia. (Schwarcz, 1995) Contudo, a partir desse momento, de
acordo com a autora, algumas coisas começam a mudar:

Sobretudo a partir do final dos anos 20, os modelos raciais de análise começam
a passar por uma severa crítica [...] As diferenças entre os grupos deveriam ser
explicadas a partir de argumentos de ordem social, econômica e cultural, não se
levando mais em conta as supostas diferenças biológicas e somáticas. Raça, nesse
contexto, aparece quase como um ‘slogan de época’, uma noção em desuso que
deveria ser rapidamente extirpada do vocabulário local. [...] Intelectuais ligados
ao poder público passavam a pensar em políticas culturais que viabilizassem ‘uma
autêntica identidade brasileira’. Com esse fim é que foram criadas e aprimoradas
instituições culturais que visavam ‘resgatar’ nosso folclore, nossa arte e nossa
história. (Schwarcz, 1995).

Nesse contexto, a antropóloga destaca Gilberto Freyre, com o livro Casagrande & senzala
(1933), apresentando às pessoas um novo sentido a fábula das ‘’três raças’’, e uma nova maneira de
pensar a diversidade racial brasileira. Para ele, mesmo mista, a cultura brasileira era homogênea, e
original, com negros, índios e brancos vivendo em consonância. Além dele, a autora aponta
também Mário de Andrade, com a obra Macunaíma (1928), um dos grandes exemplos dos romances
vinculados ao pensamento social do período. Nessa perspectiva, segundo Schwarcz:

num momento em que mais uma vez se inventava a nacionalidade, a identidade


e as singularidades nacionais se transformavam rapidamente em ‘questões de
Estado’. [...]. A partir desse momento, o ‘mestiço vira nacional’, paralelamente a
um processo crescente de desafricanização de vários elementos culturais [...]
1416

Evidencia-se, portanto, uma aproximação positiva entre as noções de


nacionalidade e de mestiçagem, que constituirá matéria-prima para a elaboração
de símbolos nacionais (Schwarcz, 1995)

Desse modo, na elaboração de uma cultura nacional popular e mestiça elementos como a
feijoada, a capoeira e o samba, emergem como símbolos da pátria, deixando de lado todo o estigma
e a repressão neles existentes. Concretizava-se assim, o país de Gilberto Freyre, em que imperava
a harmônica convivência racial. Caminhando para a conclusão, a autora retoma a relação de
interdisciplinaridade entre antropologia e história, apontando-a como peça chave na reflexão
elaborada sobre a fábula das três raças. Nela, a estrutura da mestiçagem se manteve, embora
transformando-se de acordo com contextos específicos, passando do romantismo, às teorias
biológicas, e finalmente, á símbolo cultural da nação. Nesse sentido:

talvez seja possível pensar a recorrente história das três raças como uma estrutura
local e singular [...] Nesse jogo, a identidade surge por meio da constatação de
que é a mistura racial que nos particulariza, sendo o mestiço a personificação da
diferença [...] Trata-se, assim, de uma identidade construída a partir da própria
diversidade, que é constantemente acionada e ressignificada. (Schwarcz, 1995)

Ademais, a antropóloga destaca a importância de analisar tais acontecimentos, não como


aleatórios e descoordenados, mas sim, fundamentados em uma comunidade de sentidos,
previamente construídos. Assim, segundo a autora, é na articulação das estruturas sociais e
culturais, antropologia e história, sincronia e diacronia, que se deve buscar a permanência e
reinvenção dos significados.

É nesse sentido que o conceito ‘estrutura da conjuntura’ (Sahlins, op. cit.) - um


conjunto de relações históricas que ao mesmo tempo reproduzem velhas
categorias culturais e lhes dão novos valores retirados do contexto pragmático -
pode nos ser útil, na medida em que explicita como cada sociedade carrega
cosmologias particulares, que implicam apreensões originais de uma mesma
realidade. [...] O esforço estaria não em ‘historicizar a cultura’, mas no intuito de
entender uma certa originalidade, e a própria dinâmica da cultura local, na medida
em que ambas - cultura e história - se apresentam material e simbolicamente
inseparáveis. (Schwarcz, 1995).

A trajetória acadêmica

Assim, após analisar o período e as obras da autora, deve-se olhar em específico, sua
trajetória acadêmica. Nesse sentido, a primeira coisa que vale a pena notar é sua escolha pelo curso
de História, na USP em 1976, em um período, no mínimo, complicado para se estudar e discutir
ciências humanas. A segunda, certamente é seu tema de conclusão de curso, ‘’Escravidão em Vila
Bela’’, possivelmente advindo do impacto que teve a temática, na conjuntura da época, dentro da
1417

historiografia, fazendo com que a história da escravidão, ampliasse-se na história social do negro
no Brasil.

Outro ponto de destaque nessa análise é sua atividade como bolsista da FAPESP (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), tanto na graduação na USP, como no Mestrado
UNICAMP. Como já abordado anteriormente a instituição era acusada de financiar pesquisadores
e projetos de perfil esquerdistas, e também por ter aguçado o olhar dos governantes, na segunda
metade da década de 1970 (quando Schwarcz estava em sua graduação) para temas não comumente
abordados pelos mesmos, como a temática racial, na Universidade de São Paulo.

Ademais, ao invés de continuar na História, Schwarcz opta pela Antropologia Social, para
produzir seu Mestrado, na UNICAMP. A ideia que se tem é que a opção da autora pela troca de
universidade, se deu em prol da ‘’melhor condição’’ existente na Universidade, na época do regime
militar. Pode-se notar, nesse sentido, o encaminhamento que a autora dará a seu estudo a partir
daí. Nessa época, de acordo com Mariza Corrêa (2013), que foi professora do Departamento de
Antropologia da Unicamp, a Antropologia, começou a enfocar estudos mais próximos
culturalmente e socialmente. Assim, apesar do clima de perseguição política, é possível perceber
ainda o surgimento de uma nova esperança, que impulsionou diversos pesquisadores e teses.

Além disso, o espaço escolhido por Lilia Schwarcz para fazer o seu mestrado mostra-se
essencial na formação de uma de suas principais características: a relação de fronteira entre
Antropologia e História. Como destacado por Mariza Corrêa, em artigo posto a sintetizar a história
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP:

É não só, em abstrato, tentar introduzir uma perspectiva histórica na


Antropologia – uma Antropologia que era realmente a-histórica na época,
funcionalista – nem tampouco acrescentar uma espécie de introdução histórica
depois de fazer o típico estudo de caso, mas introduzir a dinâmica histórica
através da análise dos sujeitos e das sujeitas que fazem a história. Então, nesse
momento, o Peter Worsley me disse uma frase que achei ótima, porque resume
muito bem o problema. Ele diz, com toda a razão, que convencionalmente a
História conta eventos, fatos, sem gente. Acontecem batalhas, revoluções etc.,
mas não tem sujeitos – salvo para alguns historiadores como E. P. Thompson,
E. Hobsbawm e os marxistas. Enquanto que a Antropologia tem escrito
interminavelmente sobre gente sem história. Então a questão é juntar a história
com os sujeitos.” Essa perspectiva foi reforçada pela criação, mais tarde, de um
Departamento de História no Instituto e pela influência recíproca das duas
disciplinas no panorama mais geral das pesquisas em Ciências Humanas.
(CORRÊA, M. disponível em
https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pos/antropologia/historia).

Ademais, parando para observar as bibliografias frequentemente usadas pela autora, no


início de sua carreira acadêmica, mais especificamente entre 1982 a 1986, percebe-se uma grande
1418

tendência a referências sobre História, assim como sobre Escravidão. Pode-se notar a presença de
autores como Paula Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Robert Conrad, Sueli Queiroz.
Ademais, com a mudança da autora para a Antropologia Social, no período entre 1987-1994,
bibliográficas clássicas da Antropologia começam a adentrar em suas obras, tais como: Roberto
DaMatta, Clifford Geertz, Claude Lévi-Strauss, Marshall Sahlins.

Além disso, percebe-se uma abrangência internacional nas referências da autora: Louis
Dumont, Oswaldo Cruz, George W. Stocking Jr. Outro ponto importante é o contato de Schwarcz
com alguns autores de “especiais’’ que contaram com grande presença em suas obras: Antônio
Cândido, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues. Vale notar também alguns autores
referências como: Mariza Corrêa, João Batista Lacerda, Jacques Le Goff, Richard M. Morse; Maria
Pereira de Queiroz, Thomas E. Skidmore.

Na última parte da análise do período estudado (1995-1996), percebemos a adesão de mais


alguns clássicos das Ciências Sociais: Franz Boas, Émile Durkheim, Florestan Fernandes, Lewis H.
Morgan, E. B Tylor, Oliveira Vianna. Além disso, é notável também, a adesão de novas referências
dentro da temática do povo negro, assim como da população indígena em autores como Manuela
Carneiro da Cunha, Peter Fry, Carlos A. Hasenbalg, Las Casas, Artur Ramos, Letícia Vidor de Reis.
Por fim, é justificável dar atenção aqueles que permaneceram durante toda sua trajetória (Raimundo
Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior).

É interessante notar a presença de muitos desses autores, no corpo docente das


Universidades frequentadas pela autora, recebendo uma influência direta ou indireta dos mesmos.
Entre eles destacam-se: Paula Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Mariza Corrêa, Manuela
Carneiro Da Cunha, Roberto Da Matta, Florestan Fernandes, Peter Fry, Octávio Ianni, Sergio
Miceli, Emília Viotti Da Costa. Os outros nomes, compõem os grandes referenciais da Sociologia
e da Antropologia, não somente na época, mas até hoje. Desse modo, podemos compreender um
pouco do referencial teórico bibliográfico utilizado por Lilia Schwarcz em suas obras.

Considerações finais

Dessa maneira, pode-se compreender um pouco da maneira com Lilia Moritz Schwarcz
constituiu seu pensamento e interpretação das relações raciais no Brasil. A partir dos textos escritos,
das faculdades frequentadas, e sobretudo do contexto histórico do período em geral, é possível
percorrer a trajetória da autora, e formular hipóteses acerca de suas ações e intenções. Assim, as
conclusões até o momento, decorrentes um levantamento das fontes mobilizadas e dos referenciais
teóricos adotados pela autora, indicam uma fundamentação histórica e antropológica, utilizada e
1419

defendida pela mesma, no sentido de entendimento tanto das estruturas, quanto das continuidades.
Nesse sentido, perpassando o domínio da história das mentalidades, Schwarcz utiliza este esquema
metodológico para interpretar e compreender as relações raciais e o pensamento racial no Brasil.
É nessa perspectiva que a autora defende a originalidade dos intelectuais da época, ao adaptar as
teorias europeias à realidade brasileira, transformando o pensamento racial, e consolidando ‘’a luz
no fim do túnel’’ no espetáculo da miscigenação. Assim, Schwarcz propõe uma reflexão no intuito
de entender uma certa originalidade, e a própria dinâmica da cultura local.

Referências

Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo. 2.ª Ed 2008.

Corrêa, Mariza. O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade


Estadual de Campinas. História do PPGAS in: PPGAS Unicamp
https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pos/antropologia/historia.

Costa, Hilton; Dorigan, Micheli. L. Criando Realidades: jornais e relações raciais segundo Lilia
Schwarcz. Revista NEIAB, 2018. v. 2, p. 1-15.

Durham, Eunice. O controle ideológico na Universidade de São Paulo (1964-1978). 2ª Edição. São Paulo:
Edusp, 2004.

Moehlecke, Sabrina. Ação Afirmativa: história e debates no Brasil. In: Revista Cadernos de Pesquisa, n.
117, novembro/2002.

Motta, Rodrigo Patto Sá. Os olhos do regime militar brasileiro nos campi. As assessorias de segurança e
informações das universidades. Topoi, v. 9, n. 16, jan.-jun. 2008, p. 30-67.

Pocock, John G. A. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Edusp. 2003.

Schwarcz, L. K. M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do
século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. 223p.

_______________ Entre Boas Amigas: História e Antropologia. Revista USP, São Paulo, 1994. v.
21, p. 23-37.

________________Complexo de Zé Carioca: Notas Sobre uma Identidade Mestiça e Malandra.


Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1995.

Toledo, Caio N. de. A Unicamp Não Foi Uma Ilha: Por Uma Comissão Da Verdade E Memória. 2013.
1420

Subsídios para uma História do Audiovisual Autoral


dos Povos Indígenas de Mato Grosso do Sul

Miguel Angelo Corrêa*

Resumo: inúmeros pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm observado com


frequência que boa parte dos povos indígenas de MS encontram-se numa situação bastante
precária, resistindo há séculos a diversos processos de espoliação de suas terras e de seus direitos
neste estado da federação que possui a segunda maior população do país com mais de 70.000
indígenas e ao menos nove etnias. A maioria destes povos encontra-se na extensa faixa de fronteira
e têm problemas em sua representação na mídia de massa nacional e local que, via de regra, os
discriminam e divulgam inverdades a seu respeito sendo que os mesmos figuram, amiúde, no
imaginário contemporâneo em representações que lhes são bastante desfavoráveis. A opinião
pública e o senso comum, outrora alimentados pelos meios de comunicação de massa e,
atualmente, reforçados pelas chamadas ‘redes sociais’, facilmente manifestam conceitos e opiniões
equivocadas ou falaciosas e a pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov-2 só tem feito aumentar o
preconceito e a violência direcionadas aos indígenas em diversas cidades de MS. Apesar disso eles
têm utilizado as chamadas novas Tecnologias de Informação e Comunicação para criar formas
alternativas de se comunicar entre si e com não indígenas, com importante produção audiovisual
apresentando suas visões de mundo, versões dos conflitos e luta por direitos. Vários estudos
apontam que iniciativas similares no país surgiram influenciadas pelo que chamo “modelo Vídeo
nas Aldeias”. Apresento aqui resultados preliminares de investigação em andamento que, embasada
na metodologia desenvolvida por Sebe Bom Meihy verifica se parte de tal produção, principalmente
a das etnias Kaiowá, Guarani e Terena, tem sido desenvolvida nas últimas décadas de forma
diferenciada e crítica a esse modelo, sofrendo influências de cineastas bolivianos. Busco também,
subsídios para uma História do Tempo Presente do audiovisual autoral indígena de MS.

Palavras-chave: Audiovisual, Indígena, História, Cinema, Mato Grosso do Sul.

Introdução

Inúmeros pesquisadores de diversas áreas do conhecimento têm observado com frequência


que boa parte dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul encontram-se numa situação bastante
precária, resistindo há séculos a diversos processos de espoliação de suas terras e de seus direitos614
neste estado da federação que possui a segunda maior população do país com mais de 70.000
indígenas e ao menos nove etnias. A maioria destes povos encontra-se na extensa faixa de fronteira
de MS (quase dez por cento da brasileira: 386 quilômetros com a Bolívia e 1.131 com o Paraguai,

*
Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados
614
Cf.: Brand (1993; 1997); Chamorro e Combès (2015); Ferreira (2007); Martins (2003); Pereira (1999; 2004; 2009;
2013); Pimentel (2012); Eremites de Oliveira (2016).
1421

praticamente metade do território do estado) e têm problemas em sua representação social na mídia
de massa nacional e na local que, via de regra, os discriminam e divulgam inverdades a seu
respeito615 sendo que os mesmos figuram, amiúde, no imaginário616 contemporâneo em
representações que lhes são bastante desfavoráveis. A opinião pública e o senso comum, outrora
alimentados principalmente pelos meios de comunicação de massa e, atualmente, realimentados e
reforçados pelas chamadas ‘redes sociais’, facilmente manifestam conceitos e opiniões equivocadas,
não verdadeiras ou mesmo falaciosas617 sobre os índios618 por todo o país619. As consequências da
pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov-2 só tem feito aumentar o preconceito e a violência
gratuita direcionada aos indígenas em diversas cidades de Mato Grosso do Sul620.

Conforme detalhei em Corrêa (2018), o problema não é recente: Gambini (1988), Garfield
(2000) e Gerbi (1996), por exemplo, ponderam que, desde o contato, ao longo dos séculos, os
diversos povos indígenas do continente foram submetidos a incontáveis situações adversas, e de
várias formas foram estereotipados por conta de relações de poder subjacentes aos discursos
contaminados pelo imaginário eurocêntrico as quais se viram submetidos.

Estes fatos são suficientes para perceber que a situação precária em que os indígenas se
encontram é antiga e complicada. Não obstante a complexidade dessa conjuntura, muitos indígenas
refletem a respeito das representações ameríndias prejudicadas no imaginário contemporâneo
desenvolvidas ao longo dos séculos desde o contato, e buscam alterá-lo e atualizá-lo historicamente
de diversas formas.

Parece-me que um dos interessantes e auspiciosos cenários históricos em que isso acontece
é com a realização, veiculação e divulgação de filmes e outros trabalhos audiovisuais621 para as
sociedades envolventes e internamente em suas comunidades. Muitas etnias têm utilizado no tempo
presente as chamadas novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), individual ou
coletivamente, para criar formas alternativas de se comunicar entre si e com os não indígenas e

615 Cf.: Viudes (2009); Foscaches (2010); Maldonado (2014).


616 Para o conceito de imaginário ver: Bartolomé Ruiz (2004); Maffesoli (2001).
617Exemplo notório em uma das revistas de maior circulação do país disponível em:
<http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/titulo-falso-a-ilusao-de-um-paraiso>. Acesso: 02 nov. 2014.
618 Reação de diversas entidades e organizações esclarecendo equívocos veiculados pela grande imprensa, apontados

na nota anterior, disponível em: < https://ocupa-sampa.milharal.org/2012/11/14/carta-publica-revista-veja-direito-


de-resposta-aos--guarani-kaiowa-ja/ >. Acesso em: 01 dez. 2014.
619 Ver como exemplo, a respeito do mesmo assunto, outra conhecida reportagem da revista Veja disponível em:

<http://veja.abril.com.br/050510/farra-antropologia--oportunista-p-154.shtml>. Acesso em: 02 nov. 2014.


620 Repercussão da xenofobia explicitada na mídia local e internacional em:
<https://www.progresso.com.br/cotidiano/dourados-pandemia-desencadeia-onda-de-odio-contra-indios-na-
internet/372875/>. Acesso em: 18 set. 2020. E em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53541373>. Acesso
em: 18 set. 2020.
621 Uso a definição de Jacques Aumont: “Audiovisual [...] designa as obras que mobilizam, a um só tempo, imagens e

sons, seus meios de produção, e as indústrias ou artesanatos que as produzem. O cinema é, por natureza, ‘audiovisual’;
ele procede de ‘indústrias do audiovisual’[...]” (Aumont; Marie, 2006, p. 25).
1422

procuram, também, disseminar seus conhecimentos e técnicas, com o objetivo de sua replicação e
da formação de novos grupos. Em Mato Grosso do Sul, principalmente as etnias Guarani, Kaiowá
e Terena vêm realizando, ao longo das últimas décadas, através de movimentos, organizações ou
iniciativas autônomas, vasta produção audiovisual autoral622 de maneira a apresentar e publicizar,
dentre outras, suas visões de mundo, suas versões dos conflitos e da luta por direitos.

O Audiovisual Autoral dos Povos Indígenas de MS

Em minha dissertação de mestrado (Corrêa, 2015), dentre outras ações, mapeei e analisei
grande parte destes filmes. Seguindo, porém, a pista deixada por Marc Ferro, também não pensei
os filmes do ponto de vista semiológico ou estético. Eles foram observados não somente como
obra de arte, mas

como um produto, uma imagem-objeto (sic), cuja significações não são somente
cinematográficas. Ele não vale somente por aquilo que testemunha, mas também
pela abordagem sócio-histórica que autoriza. A análise não incide
necessariamente sobre a obra em sua totalidade: ela pode se apoiar sobre estratos,
pesquisar “séries”, compor conjuntos. E a crítica também não se limita ao filme,
ela se integra ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica, necessariamente.
(Ferro, 1992, p. 87).

A partir então de fatos e argumentos que comprovaram a forma equivocada como a questão
indígena é apresentada e assimilada pela mídia de massa e pelo senso comum, baseado numa visão
êmica localizei e entrevistei os videastas indígenas de MS, e busquei informações sobre como
pensam e vivem, como pensaram e viveram e como realizaram suas obras. Dessa forma deixei
irrefutável sua existência e relevância e procurei tornar tais obras mais conhecidas e acessíveis,
evidenciando sua importância acadêmica, social, cultural e política para a região. Além dos perfis
dos videastas e coletivos indígenas, teci considerações sobre alguns de seus filmes, descrevi e
observei aspectos das obras e suas relações com o universo indígena levantado em revisão
bibliográfica, bem como, a forma em que se deu sua produção, baseadas, principalmente, nos
depoimentos obtidos junto a seus realizadores.

Utilizei textos e ideias de diversos pensadores, historiadores, antropólogos, filósofos,


cineastas, poetas, jornalistas, de perspectivas teóricas distintas e, eventualmente, até mesmo
antagônicas, para referenciar as observações e reflexões sobre as obras localizadas e os comentários

622 Via de regra, utilizo os termos “autoral” ou “produção audiovisual autoral” em seu sentido literal, ou seja, para se
referir a filmes cujos autores sejam indígenas, sobre temas correlatos, com estes majoritariamente na produção e no
elenco, realizados e veiculados pelos mesmos (ainda que, eventualmente, em parceria com não indígenas). Não uso
esse termo no sentido de “Cinema Autoral” conforme colocado, dentre outros, por André Bazin (1991), e utilizado,
alhures, para definir, a partir de meados do século passado, dentre outras, produções relacionadas ou identificadas com
a revista “Cahiers du cinéma”, com o movimento “Nouvelle Vague”, e posteriores. Eventuais exceções serão identificadas.
1423

de seus realizadores, em uma abordagem ampla e multidisciplinar, tentando contribuir com a


pesquisa e a discussão “no campo da história, da antropologia visual, da mídia, da comunicação,
entre outras disciplinas [e apontar] para a necessidade e urgência de investigações em torno das
novas subjetividades que emergem do diálogo das populações indígenas com as tecnologias e as
linguagens do audiovisual” (Banducci Júnior, 2017 apud Corrêa, 2017, p. 15).

Durante a pesquisa pude observar que a capacidade dos indígenas no trato e domínio das
tecnologias da informação também não é recente. A rigor, a primeira experiência entre ameríndios
e as tecnologias audiovisuais teria ocorrido muito antes do surgimento da internet, bem próximo
do nascimento da sétima arte, em plena década de 1920, quando Robert Flaherty realizou com
“atores” esquimós o clássico “Nanook of the North”, misto de documentário e ficção, inaugurando
o filme etnográfico (Schuler, 1997). Outro marco importante seria “You Are on Indian Land”
produzido pelo National Film Board of Canada, criação colaborativa do canadense Mort Ransen
com o ativista indígena da etnia Mohawk, MikeMitchell, na década de 1960 (Corrêa, 2017).

Já no Brasil, na década de 1970, como lembrei em Corrêa (2017), uma liderança fez história
quando, cansada das promessas não cumpridas pelos “brancos” em suas negociações, teve uma
ideia: resolveu se apropriar das tecnologias criadas pelos próprios brancos e utilizá-las em benefício
de seu povo. O então cacique - e depois deputado federal - Mário Juruna passou a carregar a tiracolo
um “moderno” gravador de áudio de fita cassete e com ele registrar todos seus contatos e
compromissos, para, posteriormente, usar as gravações como prova nas cobranças dos acordos
não cumpridos (Juruna, 1977).

Alguns anos depois, inspirados noutra boa ideia, desta vez do indigenista Vincent Carelli,
outros indígenas também passaram a se apropriar de tecnologias a que tiveram acesso, viabilizadas
por Vincent a partir de 1986, por meio do então incipiente projeto623 Vídeo nas Aldeias (2014) -
parceria entre a Organização Não Governamental Centro de Trabalho Indigenista (C.T.I.) e a
Faculdade de Antropologia da Universidade de São Paulo - e começaram a produzir cultura
midiática (Corrêa, 2017). O sucesso da empreita de Carelli teve inúmeras consequências. Uma delas
teria sido o surgimento do Vídeo Índio Brasil (2008a), festival que, inicialmente, a partir de Campo
Grande, MS e, posteriormente, em boa parte do país, veiculou, dentre outras coisas, produções de
temática indígena, várias delas autorais. Também ofereceu, temporariamente, treinamento e
equipamento, como câmeras e ilhas de edição a alguns povos indígenas de Mato Grosso do Sul,
possibilitando que gerassem sua própria cultura midiática audiovisual. Ainda em Mato Grosso do
Sul aconteceram, dentre outros: em 2009 a Oficina Itinerante de Vídeo Tela Brasil, em Campo

623
Oficialmente o Vídeo nas Aldeias (VNA) existe desde 1987. Cf.: Araújo (2010, p. 10).
1424

Grande; os festivais de cinema Vídeo Índio Brasil, com quatro edições a partir de 2008, em vários
municípios e terras indígenas no estado de MS e algumas cidades do país (Vídeo Índio Brasil, 2008a;
id., 2009; id., 2010; id. 2014a); e o projeto Avá Marandu – Os Guarani convidam (2010) no período
de janeiro a junho de 2010. Este último, uma “proposta de realização de uma ação cultural ampla
voltada para os Guarani e os não índios” (Ava Marandu, 2010) resultou, dentre outras atividades,
na produção de dez curta metragens por diversos indígenas, em sua maioria Kaiowá e Guarani
(Corrêa, 2015).

Embora me pareça que ainda não exista trabalho historiográfico, acadêmico ou de outra
origem, que, de forma ampla e sistemática, disserte como nasceu e se desenvolveu o audiovisual
realizado pelas centenas de etnias indígenas brasileiras, noto que vários artigos e pesquisas624 com
frequência indicam que muitas das iniciativas surgiram influenciadas pelo que chamarei
provisoriamente de “modelo” disseminado pelo país a partir da década de 1980 principalmente
pelo Vídeo nas Aldeias. Flávia Almeida Imoto (2009), por exemplo, analisou o fenômeno da
produção videográfica dos povos indígenas no contexto do Vídeo nas Aldeias (2014) verificando
as influências das mídias alternativas na cultura indígena e a sua contribuição para a criação de um
espaço de resistência política e cultural. Já a pesquisa da antropóloga Evelyn Schuler (1997) com a
etnia Waiãpi, de língua Tupi-Guarani, na fronteira do Amapá com a Guiana Francesa, dentre outras
questões, narra a experiência da antropóloga Dominique Gallois, uma das pioneiras do Vídeo nas
Aldeias (2014) e Kasiripinã, o primeiro videasta desse povo. A educadora Kelly Russo (2007)
investigou a apropriação e utilização de tecnologias audiovisuais na produção de vídeos como apoio
didático e pedagógico na educação comunitária por indígenas da etnia Xavante, do Território
Indígena Pimentel Barbosa, MT. Zanchi Daher (2007) publicou a análise de dois filmes autorais
realizados por Siã Kaxinawá que abordam a Aliança dos Povos da Floresta, movimento de índios
e seringueiros que aconteceu no Acre na segunda metade da década de 1980 e início de 1990, que
teve a participação, dentre outros, do líder sindicalista, seringueiro e ambientalista Chico Mendes
(Corrêa, 2017).

Não obstante tais pesquisas, observo que, em Mato Grosso do Sul, conforme meu
mapeamento (Corrêa, 2017), existem alguns indícios de grupos e videastas que desenvolvem
trabalhos originados a partir de pressupostos diferenciados, com objetivos e práxis distintas,
aparentemente inspirados por cineastas bolivianos e colombianos, e com posturas algo críticas

624
Cf.: Gallois; Carelli (1995); Caiuby Novaes (2000); Pellegrino (2003); Silva Filho (2008); Ava Marandu (2010); Vídeo
Índio Brasil (2008a); Vídeo Índio Brasil (2009); Vídeo Índio Brasil (2010); Otre (2008); Costa; Galindo (2018); Barros
(2018); Ferreira (2018); Castilho da Silva (2018); Shamash (2019).
1425

àquele “modelo” do Vídeo nas Aldeias. Mormente o professor e cineasta Quéchua Ivan Molina625
me parece exercer forte influência nas estratégias de gestão comunitárias, no posicionamento
teórico e reflexivo, e nas ações e preocupações sociais, artísticas, estéticas e políticas manifestadas
por alguns videastas mato-grossenses-do-sul.

Bill Nichols já previa tais movimentos quando observava que

os estilos utilizado no documentário, assim como os do filme narrativo, mudam.


Eles têm uma história. E mudam em grande parte pelas mesmas razões: os
modos dominantes do discurso expositivo mudam, assim como a arena do
debate ideológico. O realismo confortavelmente aceito por uma geração parece
um artifício para a geração seguinte. Novas estratégias precisam ser
constantemente elaboradas para representar "as coisas como elas são", e outras
para contestar e a representação (Nichols, 1983, p. 17).

Sendo assim, nesta comunicação apresento alguns dados preliminares do trabalho que
realizo no doutoramento, onde fontes apontam que parte da produção audiovisual autoral indígena
de MS tem sido desenvolvida de forma diferenciada do que comumente se observa na grande
maioria das diversas etnias no restante do país. Dessa forma verifico a hipótese de que existe neste
estado da federação uma forma de pensar e praticar o audiovisual autoral indígena diferenciada
daquela “canônica” que se desenvolveu em boa parte das demais etnias no país, buscando
confirmar por meio de pesquisa etno-histórica que alguns coletivos e videastas de MS teriam
amadurecido de maneira distinta e crítica ao “modelo” desenvolvido pelo Vídeo nas Aldeias626.

Avançando, ampliando, e atualizando o mapeamento dos filmes elaborado com sucesso na


dissertação (Corrêa, 2015, apêndice A) e aperfeiçoado em Corrêa (2017), investigo, a partir das
fontes previamente localizadas e contatadas, e sigo buscando por novos indígenas envolvidos com
a realização de audiovisuais autorais, direcionando os trabalhos de maneira que a pesquisa, em
negando ou confirmando a hipótese, apresente como resultado secundário aportes, aproximações,
filosofias e dados concretos e práticos que tornem possível o desenvolvimento futuro de uma
“História do audiovisual autoral indígena de Mato Grosso do Sul”.

A grande maioria das fontes são orais, a saber: os videastas, atores, técnicos, professores,
músicos, artistas, pesquisadores, estudantes e outros indígenas envolvidos com o audiovisual em

625 Juan Iván Molina Velasquez, da etnia Quéchua, formou-se na Escuela Internacional de Cine y TV San Antonio de
Los Baños (EICTV) em Cuba, onde foi aluno do escritor Gabriel Garcia Marques, tem mais de 20 anos de experiência
em cinema e audiovisual foi Director Académico da ECA em La Paz. Disponível em:
<http://www.cinemascine.net/entrevistas/entrevista/Este-trabajo--requera-un-compromiso-social-y-acadmico>; e
em: <http://www.pmcg.ms.gov.br/cgnoticias/noticiaCompleta?id_not=6403>. Acesso em: 05 jun. 2015.
626 Faz-se mister observar que as aspas nesta frase relativizam as colocações pois não é possível afirmar categoricamente

que o VNA criou ou estabeleceu de fato ou de direito um modelo de escola ou técnica de ensinar audiovisual aos
indígenas. Aparentemente o que ele vem fazendo são experiências com vários pontos em comum. Uma definição mais
rigorosa a esse respeito demandaria trabalho específico e diferenciado do proposto aqui.
1426

MS - ainda que em parceria com não indígenas. As principais são as seguintes: Membros atuais e
egressos da Ação de Jovens Indígenas de Dourados (AJI), um dos grupos mais antigos envolvidos
com o audiovisual em Mato Grosso do sul, MS que tem produzido filmes com alguma frequência
e já levou o audiovisual autoral indígena mato-grossense-do-sul até outros países como México e
Argentina; Jovens Indígenas Guarani-Kaiowá em Ação (JIGA): grupo de indígenas envolvido com
o audiovisual em MS, organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) sediada em
Amambai, MS. Seu principal mentor é o professor e atualmente vereador Kaiowá Ismael Morel,
além de graduandos em história, em ciências sociais, e estudantes do ensino médio e fundamental
da aldeia, num total de doze membros na diretoria, e com cerca de setenta adolescentes envolvidos
no trabalho; BRO MC’s e TV GUATEKA: um dos núcleos de criação de audiovisual indígena que
maior repercussão obteve fora dos territórios indígenas e fora do chamado circuito de festivais de
cinema e dos congressos e simpósios acadêmicos, tornando-se relativamente conhecido
nacionalmente - e até fora do país. É articulado pelo grupo BRO MC’s, a TV GUATEKA e a
Central Única das Favelas – núcleo de Dourados, MS, (CUFA-MS); Dionedison Cândido: também
conhecido como Dionedison Terena, o ex-presidente da Associação dos Moradores da Aldeia
Água Bonita, dentre outras atividades, é fotógrafo e, recentemente, tem realizado documentários e
reportagens; Juan Iván Molina Velasquez: da etnia Quéchua, formou-se na Escuela Internacional
de Cine y TV San Antonio de Los Baños (EICTV) em Cuba, onde foi aluno do escritor Gabriel
Garcia Marques, tem mais de 20 anos de experiência em cinema e audiovisual e atualmente é
Director Académico da ECA em La Paz; Sidney Moraes de Albuquerque e o Ponto de Cultura
Indígena Yokone Kopenoti: Indígena Terena urbano campo-grandense envolvido com o
audiovisual, graduou em jornalismo pela UCDB em 2011, e teve formação no audiovisual não
somente através da universidade, mas também por meio de diversas oficinas, seminários, festivais,
etc; Abrísio da Silva Pedro: o apresentador da mais recente mostra Vídeo Índio Brasil (2014) é
originário da Terra Indígena Panambizinho no município de Dourados, MS e teve seu primeiro
contato com o audiovisual nas oficinas que participou durante a preparação para as filmagens do
longa metragem “Terra Vermelha”627, no qual atuou num dos papeis principais; Fórum de
Discussão Sobre Inclusão Digital nas Aldeias (FIDA): A ideia inicial do FIDA era refletir sobre o
empoderamento dos povos indígenas de MS com as novas tecnologias de comunicação e
informação, como elas poderiam contribuir para a luta do movimento indígena, o uso do
audiovisual como interlocutor entre jovens e anciãos da comunidade e do filme como ferramenta
pedagógica, e também questões que afetam o seu cotidiano como, a falta de terras, o preconceito,
a violência, o alcoolismo, as drogas e ainda a necessidade de promoção de ações de revitalização

627
Disponível em <http://www.birdwatchers.pandorafilm.de/der-film.html>. Acesso em: 09 fev. 2015.
1427

cultural para que o conhecimento tradicional continue sendo repassado às futuras gerações, além
de buscar apoio para viabilização financeira das produções; Associação Cultural dos Realizadores
Indígenas (ASCURI): talvez seja um dos mais prolíficos, atuantes e instigantes polos produtores de
audiovisual atualmente em Mato Grosso do Sul; Grupo Jovens Conscientes: da Aldeia Bororó, que
usam o rap e misturam cultura indígena com o hip hop, e já realizaram alguns videoclipes; Banda
de pop rock Kaiowá “Techanga'u”; Ademilson “Kiki” Concianza - músico e videasta (Corrêa, 2017).

A pandemia mora ao lado

Não obstante as assombrosas e desestimulantes dificuldades de toda ordem resultantes do


confinamento a que fomos, pesquisador e fontes, submetidos por conta da pandemia do chamado
“corona-vírus”, com terríveis consequências para ambos - de um lado impossibilitando a utilização
plena da metodologia originalmente planejada, e de outro, causando impressionante revertério na
cena do audiovisual autoral indígena do estado que aparentemente “não sobreviveria” aos ataques
simultâneos da doença e da conjuntura econômica, social e política perversamente adversa
promovida com intensidade inédita pelos agentes, instituições e poderes governamentais e privados
– seguimos, tentando desenvolver a pesquisa com uma abordagem inter e transdisciplinar que
utilize aportes antropológicos e comunicacionais a partir de pesquisa etno-histórica numa
abordagem ‘êmica’ (Cavalcante, 2011) baseada na ampliação e aprofundamento das entrevistas
realizadas na dissertação; enquanto os indígenas, surpreendentemente e a duras penas, tentam se
reinventar e resistem.

Por meio das técnicas de pesquisa desenvolvida por Meihy e Holanda (2011), utilizo fontes
mapeadas na dissertação, bem como novas que localizei desde então. Preliminarmente observo que
várias delas refletem a respeito destes problemas e das representações ameríndias precarizadas no
imaginário contemporâneo ao longo dos séculos, procuram alterá-lo, atualizá-lo e, também,
disseminar seus conhecimentos e técnicas, com o objetivo de sua replicação e da formação de
novos grupos de videomakers. O professor e videasta Kaiowá Eliel Benites enfatiza que

muitos são os efeitos do discurso colonial moderno na perspectiva indígena dos


Kaiowá e Guarani. O modelo de ser não indígena da sociedade ocidentalizada
torna-se o modelo único e desejável, a partir do imaginário representado pelo
discurso colonial. Constrói-se, deste modo, no interior dos Kaiowá e Guarani, a
necessidade de ter outra postura, outras lógicas de pensamento, outras formas de
organização social […] Por outro lado, as gerações mais tradicionais da sociedade
kaiowá e guarani, a partir dos contextos específicos de formação de sua
subjetividade, possibilitam maior grau de resistência ao imaginário colonial do
que as gerações mais recentes. Tal situação possibilita um porto seguro para a
geração atual, tendo em vista produzirem negociações com o mundo externo. A
resistência kaiowá e guarani ao modelo homogeneizador e suas várias formas de
1428

representação, assumidas diante do colonizador ou no mundo externo, refere-se


a formas estratégicas para corresponder ou não ao desejo do outro. […] Os
Kaiowá e Guarani, nesta relação colonial, são inventados ou reinventados no
contexto das experiências e histórias marcadas pela colonialidade. A
colonialidade subalterniza, invade o imaginário do outro, ocidentaliza-o. Assim,
as subjetividades indígenas kaiowá e guarani foram produzidas no embate entre
os seus saberes, considerados legítimos em sua cultura, e as ações colonizadoras
que, no intuito de civilizar, promoveram a imposição de valores, de
conhecimentos, de espiritualidade/ancestralidade, concepções de mundo e do
bem viver, opostos ao jeito de ser e de viver dos povos indígenas (Benites, 2014).

A direção apontada por Eliel passa pela preocupação em ensinar o uso das chamadas novas
tecnologias, mas sem torná-las um objetivo em si, e em não dar prioridade para a criação de obras
para consumo externo. Haveria a ideia de que, grosso modo, ao usar a tecnologia e o audiovisual
para registrar a cultura Kaiowá e Guarani para o “consumo interno” da escola e da comunidade,
aconteceria simultaneamente, de forma espontânea, um fortalecimento dessa cultura, porém ao
mesmo tempo uma ressignificação da mesma, que de alguma forma estaria sendo, paradoxalmente,
atualizada e resgatada (Corrêa, 2017). Um dos exemplos citados por Eliel em entrevista clareia a
postura e atuação do coletivo do qual faz parte:

O que é a natureza para o Kaiowá Guarani? Os elementos da natureza estão


sendo um problema para o Kaiowá hoje, o impacto ambiental etc. Então, o que
fazer? Só mostrar o problema? Tem a solução, mostrar também a solução do
problema, esta é a ideia. [...] É muito interessante: nas entrevistas com a câmera
eles aprendem muito, ou seja, as novas tecnologias, a câmera acaba
potencializando a aprendizagem indígena. Por exemplo, uma coisa que ficou
distante, [a relação entre] o jovem e o mais velho: quando você produz o material,
eles se aproximam, ou seja, a câmera é um elemento que vai retomando [a
relação], é uma ponte. A nova tecnologia, e o que vem com ela, cheio de
máquinas modernas etc. e tal, nada contra ela, mas o conteúdo em volta é
tradicional, é muito interessante isso! Na edição [dos vídeos] o sujeito fica vendo,
vendo, revendo aquilo... os cantos, na reza do Jerosy, por exemplo, muitos cantos
são repetidos até o amanhecer. Então, nas novas tecnologias, na ilha de edição
também acontece isso, e ele acaba gravando [na memória] os cantos. A mídia, se
você trabalhar ela de uma forma consciente, ela tem muita força, para ajudar, mas
se você trabalhar ela de uma forma inconsequente, ela traz muita coisa ruim!
(Entrevista ao autor, 2015).

Outro videasta, o terena Gilmar Galache (2017), também membro da ASCURI, tem uma
visão bastante crítica em relação ao cinema em geral, e nas formas como o audiovisual é usado na
educação, tanto dos não indígenas, quanto dos indígenas (caso do Vídeo nas Aldeias) especialmente
pelo potencial que ele carrega e que em geral não é plenamente realizado. Pode-se observar a
influência forte do cinema boliviano no seu trabalho:

A gente conheceu o Iván Molina, que já tinha 20 anos de cinema naquela época,
que trabalhou com o Evo Morales na construção do partido do MAS, então tem
um cinema político bem forte. A gente se conheceu lá, em 2008, então ele
1429

começou a falar: é possível, vocês têm uma linguagem, vocês tem como passar e
construir, e pouco a pouco, a gente começou...[...]. A ideia começou a ficar clara,
era um cinema como uma ferramenta de luta pelos direitos, então, umas das
ideias, uma das filosofias do grupo, era que o cinema é uma ferramenta que vai
contribuir para a gente fortalecer a nossa cultura, para refletir sobre a nossa
realidade, e mostrar para a sociedade que a gente é importante, mostrar para a
sociedade que nós temos nossos valores, essa é uma das ideias que orienta [o
trabalho]. Mas a gente busca muito a coisa da horizontalidade, não é? [...] a gente
tenta fazer o máximo para o outro aprender; quanto mais o outro aprender,
menos você vai fazer; então, mais gente vai te ajudar a multiplicar e menos
preocupação com uma pessoa só fazendo [...] A gente também busca não fazer
pressão sobre o grupo: ‘você vai ser o da câmera, você vai ser o editor!’. A pessoa
vai se envolvendo naturalmente, que é a maneira tradicional de educação
também, porque, o rezador não diz: ‘você vai ser o futuro rezador!’. Você vai
mostrando quem ele é, o cara vai mostrando a sua potencialidade, e vai
potencializando o que ele tem de bom, o perfil do cara, então cada um tem o seu
perfil, não é? Sai naturalmente, você vai só apoiando aquilo, é a metodologia.
Nossa metodologia também é que tem de respeitar a cultura, respeitar o sistema,
o momento, registrar esse processo sem interferir. Então, por exemplo, o Kiki
[um dos operadores de câmera da ASCURI] que faz mais a filmagem do Jerosy,
ele já espera o momento certo de chegar, ele tem o momento certo de onde que
vai filmar, então, o indígena já sabe sua cultura, não é? Ninguém outro sabe, pode
estudar, pode ser doutor, mas, por exemplo, tem objeto que você não pode
filmar, também, tem que pedir autorização, chegar lá pedir pro liderança ou
rezador, se pode filmar ou não pode. Aí, tem um que não sabe das coisas, chega
a TV filmando tudo, faz tudo, chega lá tirando foto, eu já vi várias cenas
constrangedoras da Globo. O Kiki já sabe tudo, o roteiro na cabeça, qual o
momento mais importante desse evento, então ele vai no momento certo, sem
interferir. Se um gringo chega lá, ele atrapalha tudo. E ai a equipe de televisão
chega lá vai filmando lá, filmando aqui, tá sabendo que tá acontecendo Jerosy,
mas o que vai acontecer exatamente, qual o momento, qual o lugar, qual o ponto
de vista é muito mais importante, ou seja, o olhar indígena, não é? (Entrevista ao
autor, 2015).

Dessa forma, embora não evite a exposição e divulgação de suas produções nos circuitos
de festivais de cinema, nos simpósios e congressos do universo acadêmico, ou no recheio de
currículos para eventos similares do “circuito de projetos e editais”, este não é o objetivo principal.
O foco seria a valorização e a (re)construção das culturas tradicionais usando as ferramentas
midiáticas como ponte para levar os velhos até os jovens, que passam a enxergá-los com outros
olhos, e levar os jovens até os velhos, sugerindo que estes os olhem com outras lentes, e os ouçam
com novos ouvidos, transformar a cultura oral em visual e vice-versa, transformar os microfones
em ouvidos, sem perder a essência de uma cultura, nem as facilidades tecnológicas da outra. Dessa
maneira se disseminaria a semente de uma práxis que deveria interferir e alterar a exposição dos
indígenas nas mídias e como consequência melhorar a representação dos mesmos no imaginário
contemporâneo (Corrêa, 2017).

Tenho buscado aproximar o “tom” da abordagem daquele desenvolvido por Davi


Kopenawa e Bruce Albert e outros pesquisadores da chamada “virada ontológica” - algo que, de
1430

forma intuitiva e rudimentar, experimentei durante a realização da dissertação e sua posterior


publicação. Seguir o “norte” apontado por Kopenawa e Albert (2015), - obviamente com minhas
flagrantes limitações - me parece uma forma orgânica, íntegra e sustentável de trabalhar uma
possível história do audiovisual autoral indígena. A obra “A queda do céu” parece ter recebido um
reconhecimento generalizado em diversas áreas do conhecimento (antropologia, história, filosofia,
direito, geografia ativismo diversos, e outros) não somente da academia, mas, também, em certo
público não especializado, sendo apontado como um trabalho exemplar e modelar no trato de
questão tão delicada, complexa e polêmica.

Óbvio que não possuo, e provavelmente não virei a adquirir a experiência, a capacidade
técnica e teórica, nem os meios práticos e apoios institucionais que possibilitaram à liderança
Yanomani e ao antropólogo francês desenvolverem, ao longo das décadas, os resultados que
obtiveram. Porém, trago em meu favor os resultados obtidos e a prática acumulada a partir de
minha dissertação, que foi possível em função de certo envolvimento prévio que eu possuía com
alguns indígenas e de algumas ações de ativismo que desenvolvia (com grandes limitações, diga-se)
em prol das etnias de Mato Grosso do Sul, eventualmente oferecendo assessoria e/ou ajuda
humanitária, e que se mantiveram ao longo e após o término do mestrado. Como consequência
além da elaboração da dissertação e de sua posterior publicação, algumas atividades interessantes
aconteceram de alguma forma atreladas à mesma.

Como rápidos exemplos, relato que em meados de 2014 consegui “costurar” uma
aproximação e um posterior envolvimento entre o consagrado grupo de teatro campo-grandense
“Teatro Imaginário Maracangalha628” e o coletivo indígena “Associação Cultural dos Realizadores
Indígenas629“ (ASCURI). A troupe capitaneada pelo premiado ator Fernando Cruz tem em seu
repertório “TEKOHA - Ritual de Vida e Morte do Deus Pequeno630”, espetáculo de teatro de rua
que narra a trajetória do líder Guarani Marçal de Souza, assassinado em 1983. Após um longo
período de “namoro” consegui viabilizar a participação do grupo sem custos no evento “Programa
Mosarambihára, semeadores do bem viver Kaiowá e Guarani631” (promovido pela ASCURI em
parceria com outras organizações) apresentando a peça na Terra Indígena Pirakuá, situada no
município de Bela Vista, MS, próximo à fronteira com o Paraguai.

Foi a primeira vez que um grupo de teatro lá se apresentou e videastas da ASCURI filmaram
a reação dos indígenas, vários deles descendentes de Marçal - que nunca tinham visto um espetáculo

628
Disponível em: <http://imaginariomaracangalha.blogspot.com/>. Acesso em: 01 dez. 2018.
629
Disponível em: <http://www.ascuri.org/>. Acesso em: 01 dez. 2018.
630
Disponível em: <http://imaginariomaracangalha.blogspot.com/p/tekoha.html>. Acessoem: 01 dez. 2018.
631
Disponível em: <https://issuu.com/ascuribrasil/docs/publicac__a__o_mosarambiha__ra__fin>. Acesso em: 01
dez. 2018.
1431

teatral na vida – ao presenciarem, extasiados, a performance do “Maraca632” exibindo a história da


liderança que tombou assassinada em 1983 em represália à sua luta pela defesa de Pirakuá. Ou seja:
indígenas filmando não indígenas que contam a história de um indígena para indígenas na terra pela
qual o indígena perdeu a vida ao tentar reconquistá-la para os indígenas que estão assistindo a
filmagem dos não indígenas pelos indígenas... Parece complexo e inédito. E foi.

Em outra ocasião, meados de 2018, intermediei a negociação que viabilizou a participação


de membros do mesmo coletivo, a Associação Cultural dos Realizadores Indígenas, em oficina de
reportagem do programa jornalístico produzido pela Rede Globo de Televisão, apresentado pelo
jornalista Caco Barcelos e equipes de jovens repórteres. Posteriormente à visita dos videomakers aos
estúdios da rede de TV, equipe do programa realizou matéria633 na Reserva de Caarapó, MS, com
a colaboração dos membros da ASCURI.

Considerações finais

Isto posto, creio que com a aproximação mais orgânica e consistente com várias
comunidades indígenas, parte da comunidade acadêmica, incontáveis professores, estudantes e
demais pessoas, indígenas e não indígenas, que, de alguma maneira, participaram dos eventos ou
tiveram contato com a pesquisa será possível superar os gigantescos imprevistos e transtornos
provocados pela pandemia e demais dificuldades materializadas nos últimos anos dentro e fora da
academia.

Pretendo então que, de forma similar ao trabalho realizado com sucesso na dissertação, a
pesquisa em andamento, em negando ou confirmando a hipótese, apresente, como resultado
secundário, aportes, aproximações e dados concretos e práticos que tornem possível o
desenvolvimento futuro de uma “História do audiovisual autoral indígena de MS” dentre outros
eventos que certamente resultarão das relações de troca, cooperação e cumplicidade que pretendo
continuar oferecendo às fontes e aos colegas, agora inspirado pela saga de Kopenawa e Albert
(2015).

Referências

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alunos. Olinda, PE: Vídeo nas Aldeias, 2010.

632
Alcunha pela qual o grupo Maracangalha é conhecido.
633
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conflitos-e-problemas-em-duas-areas-indigenas.ghtml>. Acesso em: 01 Dez. 2018.
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1436

Resultados no Brasil da prática da desobsessão do médico


Adolpho Bezerra de Menezes desde o final do século XIX

Nadia Marcondes Luz*

Resumo: No Brasil de finais do século XIX e primeira metade do século XX, em meio à política
sanitarista, o higienista e o eugenismo, o nascente estudo da psiquiatria voltou-se para a segregação
de indivíduos considerados pela medicina social e legal como anormais, uma vez que estavam fora
do conceito de normalidade. Estigmatizados, os diferentes de modo geral foram retirados das ruas,
das praças públicas e entregues inclusive pelos familiares ao destino do diagnóstico da cronificação
da loucura ou doença mental, em instituições criadas e mantidas pelo Estado brasileiro. Da higiene
pública, de coisas públicas, o conceito passou à ideia de higiene moral. Médicos, funcionários
públicos foram os principais agentes junto à polícia médica. Eram tempos de ordem e progresso,
de civilização e modernidade. Em meio a todo este contexto e da medicina organicista, o médico
Adolpho Bezerra de Menezes, apresentou à Academia de Medicina para seus colegas, a tese
científica de que a loucura deveria ser vista sob um novo prisma, o da obsessão. Orientado pela
teoria doutrinária contida nas obras do professor francês Allan Kardec, a tese de Bezerra de
Menezes resultou na fundação de centenas de hospitais psiquiátricos espíritas espalhados por todo
o território nacional, tendo coo prática terapêutica a desobsessão. Na contramão do organismo, o
pensamento já não seria compreendido como gerado pelo cérebro, mas pela alma, ou espírito.

Palavras-chave: Bezerra de Menezes, desobsessão, Allan Kardec, espiritismo, higiene mental.

Como especialidade médica no Brasil, a psiquiatria, a partir do ano de 1912, passou a ser
estudada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em substituição à cátedra da disciplina
denominada doenças nervosas e mentais, que a princípio, fora ministrada a partir de 1881. No
entanto, no intervalo entre estas datas, desde o ano de 1886, alguns professores já ensinavam, de
certa forma, o ensino regular introdutório de psiquiatria aos médicos generalistas. Este
esclarecimento talvez justifique a razão de alguns autores referirem-se a determinados médicos
generalistas, formados em período anterior, como se tivessem sido especialistas em psiquiatria. A
partir deste esclarecimento inicial, pretendemos justificar o fato de que no Brasil do final do século
XIX, havia, a exemplo de alguns países europeus, uma preocupação com questões pertinentes ao
que chamavam por loucura. No entanto, a bibliografia sobre o tema nos induz a interpretarmos as
diversidades destas razões, as quais culminariam com o maciço encarceramento de pessoas
pejorativamente julgadas como anormais.

* Doutora em História e Cultura pela Unesp/Franca.


1437

Sob este enfoque, ao historicizar a história da psiquiatria citando as principais correntes de


pensamento, bem como os teóricos que mais serviram para influenciar esta prática médica no
Brasil, ainda traremos neste texto, subsídios narrativos extraídos da bibliografia citada no final, que
possibilitem uma reflexão a respeito do período de transição da política imperial à republicana
brasileira, nos estendendo um pouco pelo século XX quando se buscava uma identidade nacional
e a firmação do Brasil como Estado civilizado, higiênico e eugênico.

Neste nosso estudo, não partimos das datas acima referidas, em que o ensino da psiquiatria
no Brasil teve início nas salas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em razão de
compreendermos, não haver sido a partir da criação da disciplina teórica ou da técnica terapêutica
ensinada na academia, o marco zero das busca pelas práticas terapêuticas ou de cura das doenças
da mente. As práticas antecedem o ensino acadêmico. No Brasil, em determinado momento da
história, se pensou no denominado louco, primeiro como alienado e, posteriormente, doente
mental, só aí então, pensou-se em buscar meios de tratamento. Anteriormente, a prática usual era
recolher do meio social, trancafiar, excluir, não para tratar os que ficavam do lado de dentro do
hospital, mas na verdade, proteger os que ficavam do lado de fora, no meio urbano. Verdadeiras
cidadelas de loucos foram criadas, a exemplo do Hospital do Juquery em Franco da Rocha, SP
(Cunha, 1988) ou do Hospital Colônia de Barbacena, MG (Arbex, 2013) e tantos outros
administrados pelo Estado brasileiro.

Escolhemos um caminho de análise que sugere ter havido uma continuidade


epistemológica entre as representações, as categorias e os conceitos de que a ideia de higiene possa
ter provocado no imaginário cultural brasileiro, no período próximo de 1880 até um pouco mais
da metade do século XX, quando a prática da terapêutica da desobsessão, fora introduzida no Brasil
pelos seguidores da doutrina espírita a partir da teoria codificada e organizada pelo professor
francês Allan Kardec, propagada no meio médico acadêmico por Adolpho Bezerra de Menezes.
Desta afirmativa, traremos subsídios a este texto, dos resultados causados no Brasil, surgindo desde
então, por todo território nacional, fundados por seguidores da cultura espírita, dezenas de asilos,
casas de saúde e hospitais para tratamento de doenças mentais a partir inclusive, da terapêutica da
desobsessão.

Entre a concepção do que tenha sido o conceito de higiene pública, no sentido de


saneamento de limpeza da coisa pública, como ruas, praças, água, enfim, o meio urbano, e a
continuidade desta mesma representação e categoria, quando do conceito de higiene mental,
amplamente divulgado a partir de 1923, momento em que se criou a Liga Brasileira de Higiene
Mental (LBHM).
1438

Algumas questões já vamos expondo para nortear um pouco a reflexão que aqui nos
propomos. Até que ponto estaria correto pensarmos que tenha havido mesmo uma continuidade
e apropriação da ideia e da prática em se promover campanhas de higiene pública, aceitando a
grande probabilidade de que tenhamos sido, como cidadãos brasileiros, incorporados no conceito
de coisa pública, diante das campanhas pró-higiene mental? O que haveria de ter representado o
conceito de higiene mental? Como podemos na atualidade, ao revermos os escritos sobre temas e
o período, conviver sem questionarmos o fato de ter havido uma pretensão política por parte da
medicina social, via médicos-funcionários públicos do Estado brasileiro, em atribuir-se a
responsabilidade em promover, nos indivíduos em particular e na sociedade em geral, um estigma
e a ideia de educação para uma limpeza e saneamento mental? Sob este aspecto, considerando a
abertura de arquivos, inclusive com fotos, nos livros de registros de pacientes, o número dos
diagnosticados como “crônicos”, pensamos sobre a extensão e responsabilidade ou mesmo, do
descaso destes diagnósticos, sobre conceitos de normalidade e anormalidade, aptidão para convívio
em público, intenção de parentes ao “esconder" seus entes estigmatizados, enfim, a pergunta que
não cala, ao manusearmos a documentação é: sob os cuidados e responsabilidade de quem teria
ficado o objetivo primeiro da psiquiatria - o doente?

Ao nos referirmos à medicina social, observamos a necessidade de historiar este conceito.


Este conceito foi elaborado e constitui-se precisamente, de início, numa medicina política. Era
necessário ter o Estado como seu aliado e cúmplice para realizar seu projeto de prevenção das
doenças que se acreditava prestes a atingir a população. É conceituada como uma medicina política
tanto como pelo modo como interveio na vida particular dos indivíduos como da sociedade,
penetrando em suas instituições, como pela relação com o Estado. Ao mesmo tempo, é útil ao
Estado por se tratar de um instrumento especializado capaz de assumir com ele e por ele as
questões relativas à saúde, justificando-se como colaboradora científica.

A ideia de que a medicina social constituiu-se em uma medicina política não quer dizer que
objetivava tornar-se um poder paralelo ou mesmo um contra -poder, mas sim que sua tática
consistiu em acompanhar e contribuir com o poder do Estado, lutando por sua hegemonia e
auxiliando-o com a implantação da ideia de centralização política. Mas em troca, desejou e
conquistou, no Brasil da primeira metade do século XX, importantes cargos e funções de chefia,
bem como prefeituras, presidência de câmaras municipais ou de outros órgãos institucionais para
médicos por todo o Brasil. Tal projeto, grandioso demais à primeira vista, consolidou-se no
decorrer dos anos, quando a história registraria a presença maciça de médicos nos mais importantes
cargos políticos brasileiro, inclusive na presidência da República. Exagerando o âmbito do exercício
de suas funções, e mesmo do poder concedido pelo Estado, a medicina social no Brasil almejou
1439

também o embelezamento das cidades, retirando das ruas e das praças públicas, o que considerava
imundície ou significasse ausência de higiene, resumindo nesta fase sanitarista, a urgência em se
retirar o anormal, ou seja, o considerado louco, das ruas. Sujeito malcheiroso, incapaz de cuidar de
sua própria higiene, o louco, o cego, o surdo-mudo, o manco aleijado, os alcoólatras, desordeiros,
vadios, as mulheres que se vestiam com calças compridas ou cortavam os cabelos bem curtos à
moda masculina, enfim, todos os considerados anormais na sociedade eugênico e higiênica do
Brasil do início do século XX, não devem estar expostos no pretenso cenário novo da civilização
e da modernidade; seus aspectos lembravam o reverso do progresso, seus comportamentos, o
inverso da ordem. Aliada à medicina social, a já implantada desde o final do século XIX, polícia
médica.

Se considerarmos a possibilidade de que, no Brasil do século XX, até a década de 60, a


higiene mental tenha sido compreendida como higiene moral - referente à hipótese de ter havido
uma medicina do comportamento -, como conceber a ideia de que, em meio a todas estas questões,
grande parte de psiquiatras e higienistas brasileiros, ocupando cargos públicos, tenham-se lançado
também em campanhas eugênias como alternativa de se constituir uma identidade racial, cultural e
nacional brasileira? Estas são algumas questões que nos conduziram no caminho percorrido, a
princípio para responder uma curiosidade histórica: porque no Brasil a maioria dos hospitais para
tratamento de saúde mental foram fundados, quase que em sua totalidade por seguidores da teoria
de Allan Kardec e justamente após a apresentação da tese acadêmica do médico Adolpho Bezerra
de Menezes, intitulada A loucura Sob Novo Prisma, nos últimos anos do século XIX.

Conforme fomos efetuando as leituras das fontes documentais primárias de hospital


psiquiátrico Allan Kardec, na cidade de Franca, SP, assim como as bibliográficas, desenvolvemos
hipóteses que além de confirmar a possibilidade de ter havido uma continuidade epistemológica e
conceitual de higiene, por determinada parcela de brasileiros, também e, ao mesmo tempo,
observamos ter havido uma outra parcela, os seguidores da teoria doutrinária espírita, que se
dedicou a promover uma ruptura, desenvolvendo meios capazes de socorrer pessoas portadoras
de transtornos e deficiências mentais, caracterizando desta forma, uma descontinuidade na
linearidade pertinente à história da psiquiatria no Brasil.

No decorrer das reflexões, fomos levados a considerar terem sido os primeiros,


denominados preventivas, enquanto os segundos, os espíritas que praticavam como terapêutica a
desobsessão, compostos por grupos filantrópicos, e de iniciativa privada, os denominados
socorristas. Com esta perspectiva interpretativa, cada qual dos componentes de um ou de outro
grupo, individualmente, talvez tenha sido imbuído por suas razões íntimas ou coletivas, conceituais
1440

ou afetivas, compondo na história da saúde e doenças no Brasil, uma marca que merece nosso
estudo.

Na história da psiquiatria, citamos ainda aqueles que defendem a ideia de que a psiquiatria
criou o mito da doença mental, ao fabricar a loucura desenvolvendo a ideia da antipsiquiatria (Szasz,
1980 e 1979), ou o que a psiquiatria já por si só tenha anunciado sua morte, por tratar-se de uma
técnica inoperante e abusiva de poder (Torrey, 1976), ou ainda os que são otimistas e empenham-se em
buscar meios de se humanizar a psiquiatria (Frankl, 2009). Já o psiquiatra Jurandir Freire Costa
diagnosticou que a psiquiatria no Brasil, como instrumento da medicina e, portanto, a serviço da
saúde, tenha adoecido ou transformado, na década de 20, em meio aos propósitos preventivos da
Liga Brasileira de Higiene Mental, quando então, se adentrou na sua fantasia suicida (Costa, 1981, p.
19).

Roberto Machado observa que o projeto de pesquisar as origens da psiquiatria é importante,


na medida em que observamos a dupla relação estabelecida entre a história e o momento atual, isto
é, nossa ida ao passado da psiquiatria é indispensável para que tenhamos uma percepção mais lúcida
do presente. Isto possibilitaria, na visão do autor, uma crítica mais lúcida das origens da psiquiatria
e da medicina como discursos e práticas políticas atuantes, porém, passíveis de intervenção.

O olhar crítico sobre o funcionamento cotidiano de algumas instituições sociais na


atualidade, pode ser capaz de constatar que vivemos no presente comportando-nos de modo a
cumprir um esquema de normalização e normatização da vida social brasileira, proposta, por assim
dizer, a partir do século XIX, e fortalecida sobretudo na primeira metade do século XX. A
medicina, neste contexto, para o autor, no período da passagem do século XIX e as primeiras
décadas do XX, teria sido um mecanismo de nossa sociedade, capaz de introduzir e manter
mudanças culturais pertinentes à técnicas normativas, capazes de impregnar outros saberes e
práticas. Em outras palavras, historicamente, coube ao médico funcionário público do Estado
brasileiro, a função de semear hábitos e estigmas capazes de nortear a conduta de cidadãos com
referência a seus próprios familiares considerados por esta mesma corporação de saúde, como
normais ou anormais, resultando em atitudes eugênias estigmatizantes.

Michel Foucault, diferenciando os propósitos das correntes de despsiquiatrização da


antipsiquiatria, expõe que a primeira iniciou-se com Babinsk e pode ser considerada como
psiquiatria de produção nula, que se resume na articulação contínua e direta entre diagnóstico e
terapêutica, prevalecendo como condição imprescindível, a subordinação à ciência soberana do médico.
Inclui neste contexto a psicanálise como incubadora de uma prática de transferência por meio da
linguagem, interpretada como processo essencial à cura. A despsiquiatrização teria tido, como suas
1441

formas mais notáveis, a psico-cirurgia, ou lobotomia, e a psiquiatria farmacológica, que nada mais
seria que a prática comum do exercício dos atuais psiquiatras: a prescrição de medicamentos
capazes de proporcionar ou uma maior alienação do mundo real e de contato, ou ainda, capazes
de acalmar o processo de aceleração mental, ou inverte-lo, quando se tratar de processos
depressivos. Por outro lado, no cerne da psiquiatria, no entender de Foucault, existiria a luta com,
em e contra a instituição como espaço destinado ao isolamento social do chamado louco. A
antipsiquiatria apontaria a instituição como lugar, forma de distribuição e mecanismo de um poder
que se diz terapêutico, mas que se revela de adestramento e de ortopedia. As relações de poder teriam
constituído o a priori da prática psiquiátrica; teriam fundado o direito absoluto da não loucura sobre
a loucura (Foucault, 2014).

No entanto, antes de introduzirmos neste texto, as práticas de Bezerra de Menezes para o


alivio ou socorro de pacientes com transtornos mentais, precisamos refletir também sobre a
questão do avanço da psicofarmacologia apresentada como solução imediata e bem recebida pela
medicina, para suprir a falta de pessoal qualificado e remunerado no trato com pacientes internados
em hospitais psiquiátricos. Ao produzir medicamentos capazes de dopar os pacientes, dando-lhes
a aparência de tranquilidade, docilidade e equilíbrio, os laboratórios químicos de indústrias
multinacionais, teriam passado, a partir da segunda década do século XX, no período entre as
grandes guerras mundiais, ao gerenciamento à distância, estruturando enfaticamente a técnica
psiquiátrica, ao mesmo tempo em que vinculando a essa técnica, um saber, compreendido na
atualidade, quando se observam os livros de entradas e diagnósticos nos pacientes internados
àquela época em hospitais, sob a crítica de que era uma prática ping pong. O que significaria,
resumidamente, o fato de após o diagnóstico a nível de padronização mundial na classificação do
final do século XIX, a facilidade em se trabalhar por um lado, com uma lista pequena de possíveis
nomes de doenças mentais, e por outro, experimentar como terapêutica, o uso das novidades
lançadas no mercado pela indústria psicofarmacológica.

O jogo de ping pong da psiquiatria, resumir-se-ia, então, na articulação diagnóstico-


terapêutica, com a agravante denunciada por Szasz, que diferencia a psiquiatria de contrato de outra
denominada psiquiatria institucional.

De acordo com a tese de Szasz, a psiquiatria de contrato considera o psiquiatra como um


empresário particular, observando na atualidade, o médico ser membro associado de cooperativas,
- pago pelo cliente pelos seus serviços, formalizando uma relação contratual, cujo vínculo deveria
constituir troca de serviços psiquiátricos por dinheiro. Já a psiquiatria institucional dedicar-se-ia ao
paciente involuntário, identificado por Szasz como vítima da relação psiquiátrica, uma vez que o
psiquiatra institucional é visto como um empregado burocrático, pago pelos seus serviços por uma
1442

organização particular ou oficial, e não pelo seu cliente, cujo internamento na maioria das vezes
fora-lhe imposto (Szasz, 1980).

Apenas para citar, sem nos aprofundarmos, haveríamos de lembrar da importância que foi
para a medicina legal no Brasil, os ensinamentos e o surgimento da Faculdade de Medicina da
Bahia, onde um de seus maiores expoentes fora Nina Rodrigues, discípulo de Cesar Lombroso,
criador da frenologia.

Assim, de certo modo, contextualizada em resumo a história da psiquiatria no Brasil,


retomamos ao Rio de Janeiro, capital do Império nos idos de 1852 quando D. Pedro II criou o
Hospício que levou o seu nome, cuja administração fora confiada às irmãs de caridade da Santa
Casa de Misericórdia, aos moldes de Portugal. Naquele momento histórico, a preocupação da
Academia Imperial de Medicina não era, com a questão do louco. A valorização das campanhas
sanitárias, e consequentemente, do conceito de higiene, talvez tenha sido extraída marcantemente
desde os anos de 1850, quando a epidemia de febre amarela persistiu, acabando por matar milhares
de pessoas. Temendo o reaparecimento da epidemia no verão seguinte, foi fundada a Junta de
Higiene Pública, enfraquecendo o poder das câmaras no que se referia à higiene pública.

No ano de 1876 foi formada uma comissão médica instituída com o objetivo de examinar
algumas medidas sanitárias para o Rio de Janeiro, apontando como uma prioridade, a falta de
higiene nas habitações particulares, podendo ser estas, focos permanentes de infecções. E no ano
de 1886 foi proposta, por meio do Conselho Superior de Saúde Pública, a extinção dos cortiços,
como meio de combater as epidemias. Estas notícias históricas levam-nos a imaginar como haveria
de ser a acomodação humana no meio urbano do Rio de Janeiro, dois anos mais tarde, quando da
abolição da escravatura, agravada com a já iniciada substituição da mão de obra escrava pela do
imigrante, empurrando os libertos da zona rural aos centros urbanos em busca de meios de
sobrevivência.

É justamente neste contexto, em meio ao organismo, que o médico Adolpho Bezerra de


Menezes, apresentou a seus colegas médicos, na Academia Imperial de Medicina, a possibilidade
de se estudar a loucura sob novo prisma, o da obsessão, indicando a prática da desobsessão como
terapêutica. A partir de então, esta prática que já vinha sendo aplicada nos centros espíritas por
todo território brasileiro, será vista pelo seguimento cultural espírita, como uma prática científica,
adotada por médicos, fundadores ou diretores clínicos dos diversos hospitais e instituições
psiquiátricas espíritas que foram surgindo e se espalhando pelo Brasil, marcando a história da saúde
mental no Brasil. A tese do médico, foi disseminada provavelmente por jornais espíritas ou mesmo
pela revista Reformador, órgão da Federação Espírita Brasileira. Havendo sido publicada por esta
1443

mesma Federação, somente na segunda década do século XX. Deste modo, nossa versão
interpretativa, acolhe o corte ou ruptura da narrativa histórica, uma vez que nenhum autor ao tratar
da história da psiquiatria no Brasil, incluiu a importância do nome e das práticas médicas de
Adolpho Bezerra de Menezes.

O método da descontinuidade ou ruptura história, foi apontado e desenvolvido por Michel


Foucault na obra Arqueologia do Saber. A ruptura na linearidade da interpretação e narrativa histórica,
ou seja, no modo como a história vinha sendo narrada, para que se constitua como tal, significa o
esforço ou a possibilidade de provocarmos um corte entre um todo, aparentemente contínuo e
estável. A ruptura dá ideia de quebra ou interrupção de uma trajetória interpretativa ou narrativa,
sendo, por isso mesmo, um método um pouco mais complexo, uma vez que expande as
possibilidades, interrompe o que nossa racionalidade já havia acomodado como contínuo. A
princípio, parece dispersar aquelas ideias que já havíamos introjetado e constituído como parte de
nós mesmos, uma vez integram nossa aprendizagem, garantindo nossa visão de mundo. Porém, a
proposta de descontinuidade ou ruptura histórica, consiste em acrescentar, naquela camada de
conhecimento, uma outra, ampliando os níveis de nossa consciência histórica. A história, sob o
método descontínuo, passa a ser interpretada no plural, aproximando e facilitando a interpretação
cultural (Foucault, 1971).

Nas palavras de Paul Veyne, o esforço de Foucault, ao desenvolver a prática do método


descontínuo, induzindo-nos a desconfiar das outras narrativas históricas que excluíram outros fatos
ou saberes - como no caso de Bezerra de Menezes na história da psiquiatria- interpretados no
singular e de certo modo objetivando manipular a compreensão da história escolhida para se narrar,
consistiu em buscar ver a prática social tal qual realmente é, afirmando que a parte oculta do iceberg
pertence à mesma instância que a parte emersa, apesar daquela estar abaixo da linha da visibilidade
(Veyne, 1992).

Deste modo, exposta a escolha metodológica, passemos a narrar as informações biográficas


do médico cearense radicado no Rio de Janeiro, Adolpho Bezerra de Menezes (1831-1900),
pertinentes a proposta de qualifica-lo como homem de ciência, mas também, como político no
período imperial brasileiro. Cognominado médico dos pobres, Bezerra de Menezes foi no início de
carreira por volta da década de 60 do século XIX, cirurgião urologista muito considerado no Rio
de Janeiro, foi sócio efetivo da Academia Imperial de Medicina, atual Academia Nacional de Medicina,
instituição rigorosa na admissão de seus sócios; foi presidente do Instituto Brasileiro de Medicina, era
sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional; foi membro correspondente da Sociedade
da Geografia de Lisboa; em 1894, fez parte do Instituto Hannemaniano, mostrando-se estudioso da
homeopatia; foi presidente em duas gestões da Federação Espírita Brasileira em 1889 e 1995; em
1444

1889 foi presidente do Centro Espírita do Brasil, instituição federativa; como político, foi deputado
pelo Rio de Janeiro de 1867 a 1872 e de 1881 a 1885; em legislaturas espaçadas e interrompidas,
foi ainda eleito vereador pelo município do Rio de Janeiro pelo período de 1873 a 1881, quando
então, como presidente da câmara municipal, exerceu por um período a função equivalente a
prefeito municipal do Rio de Janeiro. Do ano de 1887 a 1894 foi responsável, sob o pseudônimo
Max, pela coluna semanal intitulada Espiritismo: estudos filosóficos, publicada pelo jornal O Paiz e
tradutor do livro Obras Póstumas de Allan Kardec. No ano de 1889, foi responsável pela
organização do I Congresso Brasileiro de Espiritismo, objetivando a unificação dos estudos teórico-
práticos de Allan Kardec (Klein Filho, 2000). Assim qualificado, como homem de ciência de seu
tempo, investigador e participante ativo da sociedade brasileira, tratava-se a tese da desobsessão
como terapêutica apresentada aos colegas médicos, de um tema sustentado por alguém de renome
e rigor científico. Sua história merece estar registrada nestes Annais da Associação Nacional de
Professores Universitários de História do Distrito Federal brasileiro.

Nos últimos anos da década de 90 do século XIX, Bezerra de Menezes apresentou aos
colegas médicos, sua tese denominada A Loucura Sob Novo Prisma, na qual, naqueles anos em que
predominava o organismo, ou seja, todas as doenças tinham causa no organismo, não sendo
diferente a loucura, cujo órgão doente se acreditava ser o cérebro. Para Bezerra de Menezes,
apoiado na teoria doutrinária de Allan Kardec, contida em cinco volumes denominados por
codificação kardecista, mas que aqui citamos apenas a obra intitulada O Livro dos Espíritos, o
pensamento originava-se da alma ou espírito, sendo este definido como princípio inteligente do
universo (Kardec, 1986), e sendo também imortal, seria, portanto, capaz de influenciar em nossos
pensamentos, induzindo-nos ou não a certos comportamentos, dependendo do livre arbítrio de
cada um. Em outras palavras, sendo a alma ou espírito imortal, este continuaria a pensar, sem
cessar, ocasionando em alguns casos, a denominada obsessão, ou seja, trocando em miúdos,
pensamentos de indivíduos mortos poderiam influenciar indivíduos vivos, vindo a desenvolver
perturbações desdobradas em possíveis doenças mentais. Como terapia, a prática seria a
desobsessão, nos casos diagnosticados por loucura psíquica ou obsessão.

Deste modo, no Brasil, Bezerra de Menezes, de certa forma na contra mão da corrente
científica organicista do período, buscou introduzir o conceito de psiquê, ampliado alguns anos
mais tarde com o inconsciente explorado por Freud; advertia o médico brasileiro aos colegas
médicos em pleno período em que o estudo da psiquiatria estava chegando à cátedra da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro como vimos anteriormente, que o cérebro não era o órgão produtor
e gerador do pensamento, mas apenas órgão transmissor, porém:
1445

Órgão essencial, segundo todos, é evidente que um caso de loucura com lesão
daquele órgão, não pode ser o mesmo que o de loucura sem lesão dele. Se a
variedade das causas pode conformar-se com a unidade da espécie mórbida, o
mesmo não se dá com a variedade de Condições da sede ou órgão essencial.
Assim, havendo casos de naturezas diferentes, é de rigor que constituam espécies
distintas. Estas espécies se determinam pela presença ou não da lesão cerebral. A
alienação que resulta da alteração do órgão do pensamento, não é a mesma coisa
que aquela em que o órgão em questão se acha em seu perfeito estado fisiológico.
Mas, como é isto, se o cérebro é órgão do pensamento? Coincidindo a loucura
ou alienação mental com qualquer estado patológico do cérebro, o fato é da mais
simples compreensão (…) . Sendo assim - e em face da lei: órgão são, função
perfeita - órgão doente, função perturbada, é óbvio que a ciência explica a loucura
com lesão do cérebro, mas não a loucura sem tal lesão (Menezes, 1988, p.12)

A prática da desobsessão sempre fora comum aos simpatizantes ou seguidores da cultura


espírita fundamentados nas obras de Allan Kardec, nas reuniões das casas espíritas. No entanto,
nosso propósito neste texto é destacar o fato de que foi Adolpho Bezerra de Menezes o primeiro
a apresenta-la no meio acadêmico, e defende-la como prática científica a ser propagada.
Fundamentalmente e sem exceção, afirmamos terem sido a partir de então, o surgimento dos
hospitais, sanatórios ou casas de saúde espíritas - fundados no Brasil a partir da segunda década do
século, com a finalidade específica de tratar pacientes com a terapêutica da desobsessão. Ocorrência
comum até os dias atuais em todo o Brasil, a prática de Bezerra de Menezes provocou uma
marcante ruptura na história da psiquiatria no Brasil.

Referências

Arbex, Daniela. Holocausto brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil. SP: Geração
Editorial, 2013

Costa, Jurandir Freire. A história da psiquiatria no brasil. RJ: Graal, 1981.

Cunha, M. Clementina Pereira da. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. 2.ed.SP: Paz e
Terra, 1988

Foucault, Michel. História da loucura. SP: Perspectiva, 2014

____________. Arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1971

Frankl, Victor. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, 2009

Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. 31. ed. Araras: Instituto de Difusão Espírita, 1986

Klein Filho, Luciano(org.) Bezerra de Menezes: fatos e documentos. Niterói: Lachâtre/Capemi, 2000

Menezes, Adolpho Bezerra de. A loucura sob novo prisma: estudo psíquico-fisiológico. 6.ed. RJ:
Federação Espírita Brasileira, 1988
1446

Szasz, Thomas. O mito da doença mental. Argentina: Amorrortu Ed., 1980

_____________. Ideologia e doença mental. RJ: Zahar, 1979

Torrey, E Fuller. A morte da psiquiatria. SP: Paz e Terra, 1976

Veyne, Paul. Foucault revoluciona a história. In: Como se escreve a história. Brasília, DF: UnB, 1992
1447

O neoinstitucionalismo como modelo de análise no estudo


histórico das instituições

Natalie Supeleto*

Resumo: Este texto pretende apresentar e justificar o uso do modelo analítico neoinstitucionalista
no estudo histórico das políticas públicas, pois permite trabalhar com diversas identidades, com os
múltiplos fatores de agregação de interesses e os variados níveis burocráticos.

Palavras-chave: Neoinstitucionalismo, Estado, Burocracia, Políticas Públicas, Path Dependency.

O neoinstitucionalismo é modelo analítico que propõe o estudo das instituições de forma


distinta aos modelos pluralista e marxista (Rocha, 2005) Os principais autores da teoria
neoinstitucionalista são: Theda Skocpol (Skocpol, 1985); Peter Hall e Rosemary Taylor (Hall,
Taylor, 2003), Michael Hill (Hill, 2005), entre outros.

Um dos marcos inaugurais da teoria neoinstitucionalista foi o texto Bringing the State back
in: Strategies of analysis in current research de Theda Skocpol publicado em 1985. Skocpol defende
uma versão denominada state-centered, nesta, o neoinstitucionalismo localiza o Estado no centro
da análise das políticas públicas. Para Skocpol, é a partir do Estado que se pode compreender a
origem das políticas governamentais.

De acordo com Rocha (2005), Skocpol, revisita “[...] a tradição alemã de Max Weber e Otto
Hintze, é uma das primeiras autoras a propor uma reorientação teórica em relação às abordagens
precedentes e a tentar organizar as bases da análise neoinstitucionalista.[...]” (Rocha, 2005, p.13)
Neste caso, as abordagens precedentes são o pluralismo e o marxismo.

Nos anos 1950 e 1960, os modelos analíticos behaviorista e pluralista eram hegemônicos
nos estudos de ciência política nos Estados Unidos. O modelo pluralista também se fez
predominante neste tipo de estudos no Brasil. (Rocha, 2005) De acordo com Rocha (2005)
podemos afirmar que o pluralismo concebe a distribuição do poder como um aspecto mais ou
menos permanente das sociedades, especialmente as de democracia liberal.

Sob esse ponto de vista, as sociedades são entendidas como um conjunto de centros de
poder, que se contrabalanceiam entre si, de forma que nenhum deles se torna predominante. “[...]

*Doutoranda em História PPGHIS-UFES, orientadora: Almerinda da Silva Lopes. Mestra em teoria e crítica de arte
PPGA-UFES. Contato: natalie.supeleto@gmail.com
1448

Esse modelo adota o conceito de grupo de interesse ou grupo de pressão como instrumento
analítico para o processo de decision-making.[...]” (Rocha, 2005, p. 12).

Para Rocha (2005), no pluralismo, o poder não está centralizado em um grupo específico
ou em torno de uma determinada pauta, ele transita, e também, aglutina. E assim, pode formar
coalizões inclusive entre grupos anteriormente rivais em torno de uma determinada questão ou na
busca de um objetivo em comum.

Para o pluralismo, são as agendas da sociedade civil que determinam os inputs, e estes vão
pautar as políticas públicas de acordo com a atuação nas mais variadas formas de pressão exercidas
pelos grupos sociais. Tanto o governo, quanto as políticas públicas são vistos como uma
consequência das demandas da sociedade. (Dahl, 1988) (Rocha, 2005).

No modelo pluralista, o Estado é considerado como um agente neutro, um mero


conciliador dos interesses dos diversos setores da sociedade, isto com a prevalência das lógicas do
mercado. (Dahl, 1988) (Rocha, 2005) Neste modelo, o Estado nunca interfere, nunca gera políticas
por si, a burocracia e os burocratas são desprovidos de poder.

O outro modelo ao qual o neoinstitucionalismo se opõe é o marxista, este foi bastante


adotado nos Estados Unidos por volta dos anos 1970. Autores marxistas e pluralistas travavam
constantes debates nas arenas acadêmicas. De acordo com Rocha (2005) “[...] pode-se dizer que a
análise marxista parte das relações entre economia, classes sociais e Estado. (Rocha, 2005, p. 13).

Como para o marxismo “[...] As relações de classe são essencialmente relações de poder
[...]” (Rocha, 2005, p. 13). Neste modelo, serão as relações de classe que constituirão a base analítica
para a compreensão das mudanças políticas e sociais. As políticas públicas são encaradas como um
desdobramento dos interesses do capital. O Estado é visto como um gestor desses interesses, sua
autonomia é relativa, contudo subordinada aos interesses da burguesia, ou seja, os detentores do
capital. (Rocha, 2005).

O pluralismo e o marxismo propõem perspectivas antagônicas de como o poder se distribui


na sociedade. Contudo, convergem na visão de que a sociedade é quem pauta as ações do Estado
no que diz respeito às políticas públicas. Por sua vez, o Neoinstitucionalismo se opõe a visão de
que a sociedade está no centro da formulação das políticas públicas, e defende que quem está neste
centro é o Estado.

A partir do trabalho de Skocpol (1985), ocorreu de fato um retorno do Estado ao centro


dos debates acadêmicos a respeito de políticas públicas. Skocpol, defende que a sociedade civil
1449

sofre uma influência constante por parte do Estado, e este, deve ser analisado como um agente
empoderado ao invés de apenas um local de mediação de conflitos entre os grupos sociais.

Para a autora, a autonomia do Estado está no centro do debate, e este deve ser visto como
uma organização que tem o poder de reivindicar o controle de territórios e pessoas. O Estado
também tem uma dinâmica própria que lhe permite gerar políticas que não sejam pautadas pelos
interesses dos grupos sociais, mas que visem um melhor funcionamento do Estado em si. (Skocpol,
1985) (Rocha, 2005).

De acordo com Rocha (2005), “[...] Skocpol (1985) critica os pluralistas, apontando que em
suas análises os fatores causais determinantes de decisões concretas de políticas públicas entram,
muitas vezes, em contradição com suas conclusões teóricas[...]” pois “[....]” o conteúdo das decisões
públicas supera, em diversos casos, o caráter das demandas vindas da sociedade. Ou seja, o
conteúdo dos outputs costumam não raro extrapolar o dos inputs. (Rocha, 2005, p.14).

Rocha (2005) entende que Skocpol (1985) defende “[...] que mesmo nos estudos pluralistas
que concedem certa autonomia de decisão ao Estado, os funcionários estatais são tomados como
grupo de interesse sem se considerar a estrutura estatal na qual se inserem.[...]” (Rocha, 2005, p.14)
A autora “[...] critica também os marxistas, ou mais especialmente os chamados neomarxistas, que
concebem o Estado como configurado pela luta de classes, de forma direta ou indireta.[...]” (Rocha,
2005, p. 14).

Para Skocpol (1985) a deficiência dos marxistas e dos neomarxistas está em desconsiderar
que o Estado tem o poder para configurar a luta de classes e as classes. E também, na sua lógica de
desenvolvimento político que raramente pode ser aplicada em estudos de casos que analisam
políticas públicas da realidade real. (Skocpol, 1985) (Rocha, 2005).

Distintamente de marxistas e pluralistas, os neoinstitucionalistas defendem que as ações


do Estado obedecem a uma lógica própria, a “[...] de buscar reproduzir o controle de suas
instituições sobre a sociedade, reforçando sua autoridade, seu poder político e sua capacidade de
ação e controle sobre o ambiente que o circunda. [...]” (Rocha, 2005, p. 14). Portanto, o Estado
tem total autonomia em relação aos interesses da sociedade social, ações do Estado não são de
obediência, mas de controle.

Para Rocha, “[...] A burocracia estatal, especialmente a de carreira, estabelece políticas de


longo prazo diversas das demandadas pelos atores sociais. Suas ações buscam propor visões
abrangentes sobre os problemas com que se defrontam.[...]” (Rocha, 2005, p. 14) Desse modo, ‘[...]
as decisões públicas trazem, portanto, a marca dos interesses e das percepções que a burocracia
tem da realidade. [...]” (Rocha, 2005, p. 14).
1450

A autonomia de ação do Estado é vista por Skocpol (1985) como uma expressão prática
do insulamento da burocracia. Essa capacidade de elaborar e implementar políticas públicas resulta
do controle que a burocracia exerce, contudo, a burocracia não é considerada um agente autônomo
que se sobrepõe seus interesses ao Estado, mas subordinada e dependente do sistema de poder que
é o Estado.

Para Hall e Taylor (2003) grande parte da polêmica que o neoinstitucionalismo gera nos
círculos acadêmicos se deve ao fato de existirem pelo menos 3 métodos de análise diferentes que
reivindicam o nome de neoinstitucionalismo. Os autores consideram que a partir do momento em
é aceito que o neoinstitucionalismo não é uma corrente única fica mais fácil esclarecer do que se
trata e como trabalhar com os modelos. (Hall, Taylor, 2003).

Os três métodos que compõem o neoinstitucionalismo são: o institucionalismo histórico,


o institucionalismo da escolha racional e o institucionalismo sociológico. (Hall, Taylor, 2003, p.
193) Como mencionado anteriormente, essas perspectivas se desenvolveram nos anos 1980, em
reação principalmente aos behavioristas e pluralistas que dominavam a cena dos estudos de
políticas públicas nos anos 1960, 1970. (Hall, Taylor, 2003, p. 193, 194). Neste texto, trabalharei
apenas com o Institucionalismo Histórico, por ser a perspectiva mais adequada ao meu trabalho
de tese. Os outros dois citarei apenas brevemente.

O institucionalismo histórico

Os teóricos do Institucionalismo Histórico conservaram a premissa behaviorista de “[...] de


que o conflito entre grupos rivais pela apropriação de recursos escassos é central à vida política,
mas buscavam melhores explicações, que permitissem dar conta das situações políticas nacionais
e, em particular, da distribuição desigual do poder e dos recursos. (Hall, Taylor, 2003, p. 194).

A elucidação do problema supra, foi encontrada na pesquisa do “[...] no modo como a


organização institucional da comunidade política e das estruturas econômicas entram em conflito,
de tal modo que determinados interesses são privilegiados em detrimento de outros. (Hall, Taylor,
2003, p. 194) Diante disso, o Estado ganhou protagonismo nesses estudos e deixou de ser um
agente neutro como pretendiam os behavioristas, pluralistas e marxistas.

A partir desses estudos, o Estado passou a ser encarado como um agente complexo e
empoderado, não mas uma massa neutra de burocratas e instituições, e sim, um organismo que
opera por lógica própria e tem a capacidade de estruturar as relações sociais entre os grupos em
conflito, determinar agendas, resultados de conflitos, e também, distribuir o poder de forma
assimétrica. (Hall, Taylor, 2003).
1451

A partir de comparações transnacionais e estudos comparados “[...] os teóricos dessa escola


começaram a examinar como outras instituições sociais e políticas, a exemplo daquelas associadas
à organização do capital e do trabalho, podiam estruturar as interações sociais de modo a engendrar
situações políticas e econômicas próprias a cada país. (Hall, Taylor, 2003, p. 195).

O Institucionalismo Histórico tem quatro características próprias que o distinguem do


Institucionalismo da Escolha Racional e do Institucionalismo Sociológico. 1- Conceituam a “[...]
relação entre as instituições e o comportamento individual em termos muito gerais. [...]” 2-
Ressaltam as assimetrias de poder conexas ao funcionamento e ao desenvolvimento das
instituições. 3- Ao analisar o desenvolvimento das instituições privilegiam as trajetórias, as
situações críticas e as consequências imprevistas. 4- Combinam “[...] explicações da contribuição
das instituições à determinação de situações políticas com uma avaliação da contribuição de outros
tipos de fatores, como as ideias, a esses mesmos processos.” (Hall, Taylor, 2003, p. 196).

Os teóricos do institucionalismo histórico associam o conceito de instituição às


organizações e às regras ou convenções editadas pelas organizações formais. (Hall, Taylor, 2003)
E a partir disso, buscam responder as suas questões principais: como as instituições afetam o
comportamento dos indivíduos? Como os atores se comportam, que fazem as instituições, por que
as instituições se mantêm? (Hall, Taylor, 2003).

Se as instituições são feitas de pessoas, “[...] é em última análise por intermédio das ações
de indivíduos que as instituições exercem influência sobre as situações políticas. [...]” (Hall, Taylor,
2003, p. 197) O que para os neoinstitucionalistas pode acontecer a partir da “perspectiva
calculadora” ou da “perspectiva cultural”.

Nas análises à luz da perspectiva calculadora, as instituições têm o poder de afetar os


comportamentos dos agentes em conflito, e assim influenciá-los na tomada de decisão por
sinalizarem que existe uma grande probabilidade de que o comportamento presente e futuro dos
outros agentes seja de acordo com o que a instituição determina. Assim, a opção dos agentes em
adotar um determinado comportamento se faz em confiança estratégica no poder de influência da
instituição. (Hall, Taylor, 2003, p. 197).

Distintamente, a perspectiva cultural frisa que o comportamento humano nunca é


totalmente estratégico, e sim, condicionado pelas cosmologias dos indivíduos. Ainda que, se
reconheça a racionalidade e a orientação objetiva do comportamento humano, é importante
reconhecer “[...] que os indivíduos recorrem com frequência a protocolos estabelecidos ou a
modelos de comportamento já conhecidos para atingir seus objetivos. [...]” (Hall, Taylor, 2003, p.
197).
1452

Os estudos institucionais destinam bastante atenção às relações de poder, principalmente à


assimetria existente nestas. Os teóricos do institucionalismo histórico se focalizam principalmente
na forma como as instituições dividem o poder de forma desigual e até reforçam as assimetrias de
poder pré-existentes entre os grupos sociais.

O institucionalismo histórico não parte da premissa de que os indivíduos seriam livres para
firmar contratos e que todas as partes de uma negociação estão em condições de simetria de poder.
Pelo contrário, partem de um postulado em que “[...] as instituições conferem a certos grupos ou
interesses um acesso desproporcional ao processo de decisão. [...] e ainda deixam claro “[...]que
certos grupos sociais revelam-se perdedores, enquanto outros são ganhadores. (Hall, Taylor, 2003,
p. 200).

Outra particularidade do institucionalismo histórico é a sua concepção de desenvolvimento


histórico. Defendem o conceito path dependency, e rejeitam a premissa de que intervenções iguais
produzem os mesmos resultados, pelo contrário, defendem que as intervenções sofrem
modificações e desvios de acordo com cada contexto, e com a trajetória que já estava em curso
desde o passado. (Hall, Taylor, 2003).

O institucionalismo da escolha racional

O institucionalismo da escolha racional teve sua origem nos estudos comportamental dos
legisladores do Congresso dos Estados Unidos. O seu desafio era compreender o porquê dos
postulados da escola da escolha racional não se aplicarem à aquele caso. De acordo com este
postulado, a aprovação de leis deveria refletir os ciclos de mudanças de maiorias a cada mandato,
contudo, as decisões do Congresso são muito estáveis. (Hall, Taylor, 2003).

Chegou-se à conclusão que o motivo da estabilidade estava na redução dos custos de


transação por meio de trocas e acordos, o que resolve na prática grande parte dos problemas
gerados pela ação coletiva. Os teóricos da escolha racional se apropriaram dos recursos teóricos da
“nova economia da organização”, e compreenderam que a análise desses recursos pode ser de
grande valia no estudo do desenvolvimento e do funcionamento das instituições. (Hall, Taylor,
2003, p. 203)

O institucionalismo sociológico

O institucionalismo sociológico tem a sua origem na teoria das organizações, e teve por
objetivo inicial contestar a dicotomia conceitual que contrapõe instituições e cultura levando-as à
interpenetração. Defende-se que as organização institucionais e as suas regras não se mantem
1453

presas à burocracia pura, mas que são perpassadas pelos comportamentos culturais dos agentes, ou
seja, o seu conjunto de atitudes, de valores e de abordagens comuns face aos problemas. (Hall,
Taylor, 2003).
Desse modo, pretende-se entender a cultura como um sinônimo de instituições em uma
proposta conceitual de “[...] afastar-se de concepções que associam a cultura às normas, às atitudes
afetivas e aos valores, para aproximar-se de uma concepção que considera a cultura como uma rede
de hábitos, de símbolos e de cenários que fornecem modelos de comportamento.[...]” (Hall, Taylor,
2003, p. 209)

A aplicação acadêmica em curso

As características citadas do modelo neoinstitucionalista, mostraram se adequadas para a


realização da minha pesquisa de doutorado cujo o título do projeto é: Políticas Públicas Como
Instrumento De Realização Dos Direitos Culturais Previstos Na Cf/88: Estudo de caso, a trajetória da
desigualdade dos investimentos federais via pronac para o setor museal. (1964-2016)

O objetivo principal deste projeto de pesquisa é jogar luz sobre o momento da escolha
política inicial, e também, sobre os arranjos institucionais que não apenas desencadearam o
processo histórico, mas que mantêm o curso de uma trajetória que atualmente culmina na
desproporção do recebimento dos investimentos federais para o setor museal entre as unidades da
federação.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM 2012A; 2013; 2014B; 2015;
2016) o estado de São Paulo foi beneficiado, em média, com 49% do total dos recursos do
Programa Nacional de Apoio a Cultura - PRONAC - para o setor museal, no período entre 2011
e 2015, enquanto os demais estados dividiram o restante em proporções muito desiguais.

O eixo principal de argumentação será o tema dos direitos culturais estabelecidos na


Constituição Federal (CF/88), art. 23. Por esta via, se pretende abordar o acesso, isto é, as chances
que os cidadãos têm de usufruir desses direitos.

Os direitos culturais incluem os seguintes direitos: à produção cultural, ao acesso à cultura


e à memória. O art. 23 da CF/88 além de institucionaliza-los, também inclui a proteção das obras
de arte e do patrimônio artístico/histórico/cultural, material e imaterial (IBRAM, 2014A, p. 38).

Esses direitos tiveram o seu primeiro delineamento conceitual na Declaração Universal dos
Direitos Humanos (ONU, 1948) e nesta estabelece-se que se deve: ―conjugar o catálogo dos
direitos civis e políticos ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturaisǁ, assim, estes são
considerados Direitos Humanos Fundamentais desde então.
1454

A participação na vida cultural e a democratização do acesso à arte e a memória por meio


dos museus fazem parte do exercício dos direitos culturais e da cidadania (IBRAM, 2014A, p. 39).
Esse direito é usufruído pelo cidadão por meio das coleções e das exposições oportunizadas pelos
museus. No Brasil, o estatuto dos museus (art. 1º Lei n.º 11.904/2009) os define como “[...]
instituições sem fins lucrativos, abertas ao público, a serviço da sociedade e do seu
desenvolvimento. [...]”

O PRONAC entrou em vigor por meio da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, no


governo Fernando Collor de Melo e atravessou os governos de Itamar Franco, Fernando Henrique
Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva, Dilma Vana Rousseff e continuou em vigor no governo de
Michel Temer até o ano de 2018 em que este projeto foi aprovado. Essa lei ainda está em vigor no
presente ano de 2020.

Essa lei reestabeleceu os princípios da Lei n° 7.505, de 02 de julho de 1986, promulgada no


governo de José Sarney que já tratava do uso de recursos provenientes de renúncia fiscal para o
fomento das atividades culturais. Visto que esse desenho de política pública permanece por
períodos distintos da história política do Brasil, é parte da nossa problemática compreender quais
arranjos institucionais não apenas se fizeram presentes desde 1986, e permaneceram com a nova
lei de 1991 a 2015, mas principalmente, quais eram as condições do ambiente institucional para as
políticas públicas culturais provenientes do período militar (1964-84) que causaram a trajetória que
resultou nas atuais configurações.

Com base nas dimensões planificadoras, organizacionais e políticas busca-se comprovar a


seguinte hipótese: que as razões para tal desproporção não são algo atual, mas estão localizadas na
dependência da trajetória (path dependency), isto é, na dificuldade ou até impossibilidade de
reversão das implicações resultantes da escolha política inicial de um determinado modelo para os
processos de implementação das diversas políticas públicas para o setor museal no Brasil.

A partir do modelo de análise Neoinstitucionalista, faremos um estudo comparado do


percurso histórico das políticas públicas para o setor museal, baseado no conceito de path
dependency, este estudo será distribuído em três blocos temporais para fins comparativos, com
vistas a verificar e demonstrar os avanços e retrocessos nas variadas direções e assim compreender
quais foram as escolhas políticas que determinaram a trajetória que resultou no problema em
análise.

Os blocos escolhidos para o recorte são: o Período Militar (1964/84), a Redemocratização


(1985-2002) e o Lulismo (2003/15), deste modo, pretende-se confrontar os dados de relatórios
1455

oficiais do Ministério da Cultura (MinC), do IBRAM e das Nações Unidas, entre outras fontes
históricas.

A escolha do referencial neoinstitucionalista para esta pesquisa se fez a partir da premissa


de que as instituições possuem lógicas internas, as quais se refletem não apenas na produção, mas
também na implementação das políticas públicas (Skocpol, 1985; Hall, Taylor, 2003; Hill, 2005).

Esse marco teórico permite trabalhar com diversas identidades e com os múltiplos fatores
de agregação de interesses, tornando possível realizar estudos das políticas públicas que abrangem
os diversos níveis de burocratas. Neste sentido, permite focar o olhar na dinâmica das instituições
públicas, nos seus funcionários, nos níveis burocráticos, e também, nas arenas de negociação entre
burocratas e sociedade civil. (Rocha, 2005).

Portanto, a partir dessa perspectiva é possível estudar o protagonismo das instituições


políticas e seu alcance sobre os grupos sociais (Rocha, 2005). Além disso, os grupos da sociedade
civil que defendem os seus interesses no âmbito das instituições focalizadas são considerados
componentes do objeto de estudo.

Para essa abordagem, estado e sociedade não são agentes totalmente distintos e/ou
polarizados, mas constituem uma trama de relações de forças que se articulam em torno de
determinados interesses (Rocha, 2005; Hall, Taylor, 2003).

No modelo de análise neoinstitucionalista está presente o conceito de Path Dependency


que utilizaremos para demonstrar a nossa hipótese de que as atuais condições do PRONAC tem a
sua origem em uma escolha política inicial de complexa reversão O Conceito de Path Dependency
é originário do campo da Economia, onde também é chamado de Retornos Crescentes (Pierson,
2000, p. 25).

Esse conceito é muito conhecido em Política Comparada e considera-se que “[...] fatores
em questão num momento histórico particular determinam variações nas sequências sociopolíticas,
ou nos resultados dos países, sociedades e sistemas. Nesse sentido, eventos passados influenciam
a situação presente e a história conta. (Kato, 1996A, p. 1).

Para Levi (1997, p. 28) por sua vez, “[...] Path Dependency não significa simplesmente que
a história conta. Isto é tão verdade como trivial. Path Dependency significa que para um país, ao
iniciar uma trilha, os custos para revertê-la são muito altos. [...]” E mesmo com a existência de
outros pontos de mudança durante a trajetória ou no futuro desta, as configurações institucionais
vigentes impedirão reversões simplificadas da escolha inicial. (Levi, 1997, p. 28).
1456

O conceito de Path Dependency também pode ser explicado como a identificação daqueles
“[...] momentos críticos no desenvolvimento de um país (ou outra unidade de análise), [nos quais]
estabelecem-se trajetórias amplas que são difíceis de reverter, mas dentro das quais existirão novos
pontos de escolha para mudança mais adiante. (Fernandes, 2002, p. 83).

Para Fernandes (2002) a trajetória uma vez iniciada não é linear, mas que existem diversos
momentos em que é possível escolher um novo caminho. Entretanto, as escolhas anteriores não
se apagam, elas se hibridizam com as novas e formam uma outra coisa, o que vai ser hegemônico
dependerá das relações de poder envolvidas.

Como citado anteriormente, na vertente do neoinstitucionalismo histórico, a dependência


da trajetória é muito importante, pois para essa escola, a diferença de resultados de uma mesma
aplicação de forças em locais diferentes se justifica nas condições pré-existentes. Isso é muito
utilizado em estudos que levam em consideração a aplicação de políticas públicas federais, e até
aplicação de modelos de desenvolvimento transnacionais.

No caso, da pesquisa de doutorado apresentada, buscamos saber quais situações pré-


existentes fazem que uma mesma política pública federal brasileira, tenha resultados tão diferentes
entre as unidades da federação.

Referências

Brasil. Constituição da república federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

Brasil. Decreto nº 8.124, de 17 de outubro de 2013. Regulamenta dispositivos da Lei nº 11.904, de 14


de janeiro de 2009, institui o Estatuto de Museus, e a Lei nº 11.906, de 20 de
janeiro de 2009, cria o Instituto Brasileiro de Museus.

Brasil. Lei n° 7.505, de 2 de julho de 1986. Dispõe sobre benefícios fiscais na área do
imposto de renda concedidos a operações de caráter cultural ou artístico.

Brasil. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Restabelece princípios da Lei n° 7.505,


de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC) e dá
outras providências.

Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). (A) Encontros com o futuro:


prospecções do campo museal brasileiro no início do século XXI. Brasília: Instituto Brasileiro
de Museus, 2014.

Instituto Brasileiro de Museus. (B) Investimentos no Campo Museal 2013.


Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2014.

Instituto Brasileiro de Museus. Investimentos no Campo Museal 2014.


Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2015.
1457

Instituto Brasileiro de Museus. Investimentos no Campo Museal 2012.


Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2013.

Instituto Brasileiro de Museus Investimentos no Setor Museal 2015. Brasília:


Instituto Brasileiro de Museus, 2016.

Instituto Brasileiro de Museus Museus em números. Brasília: Instituto


Brasileiro de Museus, 2011; vol. 1 e 2.

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Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2012.

Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral. Declaração universal dos


direitos humanos. 1948. Rio de Janeiro: UNIC/RIO/005, 2009. Disponível em:
<http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.p

Dahl, Robert. Análise política moderna. Brasília: Editora UNB, 1988.

Fernandes, Antonio Sergio Araújo. Path Dependency e os estudos históricos


comparados. São Paulo: BIB, número: 53, pp.79-102.

Hall, P.; Taylor, R. C. (2003). As três versões do neoinstitucionalismo. In: Lua Nova
Nº 58. pgs.193-223

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Limited, 2005.

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APSA, 1996.

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Rocha, Carlos Vasconcelos. Neoinstitucionalismo como modelo de análise para


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Skocpol, Theda. Bringing the State back in: Strategies of analysis in current research. In: Evans,
P.; Rueschmeyer, D.; Scokpol, T. Bringing the State back in. New York: Cambridge University Press,
1985.

Jornal (2005). Dissertação (Mestrado em História), Dourados, MS: UFGD, 2009.


1458

Diálogos com a História do Tempo Presente: possibilidades


teóricas e historiográficas para um campo em construção

Nathália Pereira Cabral *

Resumo: A História do Tempo Presente (HTP) é um campo de discussão, que busca tensionar as
noções de temporalidades e seus possíveis estratos/camadas (Koselleck, 2014). De modo, que se
perceba a ideia de coexistências temporais, recusando singularidades que se apresentem de maneira
soberana e prepotente, como exemplo, a supervalorização do tempo ocidental em detrimento de
outras experiências. Embora esta área esteja vinculada a tradição francesa, principalmente nos
debates levantados após a segunda guerra mundial e as várias “catástrofes” (Rousso, 2016) que
incidem sobre a constituição da área, é importante e necessário pensarmos a partir de outras
realidades. Neste trabalho, teremos como objetivo central, fazer uma reflexão acerca das
possibilidades para se pensar a HTP, considerando seu surgimento no Instituto Histórico do
Tempo presente (França) mas, principalmente, levando em conta nossa realidade social e espacial
brasileira e latino-americana. Serão objetivos também: (1) apresentar alguns teóricos e teóricas que
se dedicam a pensar as possibilidades para o campo, principalmente a respeito das seguintes
questões: temporalidades e suas possíveis reformulações, os “passados que não passam”, memórias
traumáticas, as “balizas moveis” do campo e a história pública; (2) por fim, compreender a
importância da história oral para a consolidação da HTP no Brasil, especialmente após a abertura
democrática na década de 1980. A metodologia, se dará a partir de revisão bibliográfica, entre
autores e autoras que vem se debruçando aos estudos desta área. Deste modo, a principal
problemática desta pesquisa, será (re)pensar a ideia de “marcos” na constituição da História do
Tempo Presente, compreendendo, que o campo se constitui por meio dos processos inacabados e
reformulações acerca das noções de tempo.

Palavras-chave: História do Tempo Presente, Temporalidades, Historiografia.

Introdução

O principal objetivo deste trabalho será pensar as possibilidades para o campo da história
do Tempo Presente, tanto em um contexto global, levando em consideração o seu surgimento no
Instituto Histórico do Tempo Presente na França, mas principalmente, sua inserção nas
experiências latino-americanas e brasileira. Foi objeto também: compreender a importância da
história oral para a consolidação da área no Brasil e discutir as “balizas móveis” presentes no
arcabouço teórico e metodológico da HTP. A principal problemática levantada neste artigo, é a
ideia de que existe um marco, ou marcos históricos para a criação da área, entretanto, a partir das
discussões levantadas pelos(as) autores(as) e teóricos(as) utilizados neste trabalho, é possível

* Doutoranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH/UDESC).


1459

perceber que o que constitui a área são processos inacabados e reformulações acerca da noção de
temporalidade, porém não em uma perspectiva revisionista e “vulgar”.

A motivação de realizar este trabalho, se deu pelo intento de refletir acerca das
problemáticas que envolvem a HTP no Brasil, pensando a partir de obras selecionadas pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina,
especialmente pelo último edital de seleção de discentes do mestrado e doutorado (2020).

Referencial Teórico

Segundo o Cristian Delacroix, em seu artigo A história do tempo presente, uma história (realmente)
como as outras? (2017), na revista Tempo & Argumento: a História do Tempo Presente (HTP) busca
retratar “os passados que são difíceis de se assumir” por parte das comunidades nacionais, na
grande maioria das vezes, tem-se uma proximidade com o campo das memórias traumáticas na
constituição da HTP.

É importante destacar que o campo não se constitui apenas por meio das memórias
traumáticas, mas essas memórias são importantes balizadores para compreender o surgimento da
área e a sua consolidação. Deste modo, ao trabalhar com a história do tempo presente, nós estamos
dialogando com “passados que não passam” (Delacroix, 2017).

Antes de adentrar nas particularidades da HTP nas experiências latino-americanas e


brasileira, é importante comentar o percurso histórico europeu, que tem propostas diferentes
devido à realidade social do seu surgimento, mas que, querendo ou não, influenciam a constituição
do campo em nosso país.

Inicialmente, a denominação surge por meio da criação do Instituto de História do Tempo


presente na França, instituto que é constituído a partir das discussões relacionadas principalmente
a segunda guerra mundial. Seus criadores buscaram suceder o Comitê Francês de História da
Segunda Guerra Mundial.

Um importante meio para delimitar a área e seu recorte temporal é a partir da existência de
testemunhas vivas, entretanto essa definição não significa que o recurso às testemunhas seja
indispensável dentro das pesquisas, mas é uma especificidade apresentada pela HTP, uma vez que,
essa questão irá demarcar de modo direto o quão movediças são as operações nesse campo, já que
o(a) historiador(a) irá escrever sob a vigilância daqueles a qual estuda (Elibio, Schurster, Pinheiro,
2019).
1460

Sua principal característica é o seu trabalho que se desenrola por meio de temporalidades
múltiplas, sendo assim, permeado por instabilidade e inacabamento. Uma das primeiras
“inovações” trazida pelos debates no Instituto de História do Tempo Presente Francês foi colocar
em pauta a discussão acerca da união e da interação do passado e do presente (Elibio, Schurster,
Pinheiro, 2019)

O campo também apresenta seus problemas, como por exemplo: as balizas móveis, onde
há discordâncias em relação ao que pode ser considerado o “marco inicial” da HTP. Para
alguns/algumas historiadores/as, o marco é delimitado a partir da última grande ruptura
vivenciada. Para outros/as, trata-se da época em que vivemos e de que temos lembranças, ou cujas
testemunhas são vivas. Assim, a HTP se reescreve constantemente, sendo constituída de moradas
provisórias, como afirmado por Bedárida. Além de o/a historiador/a estar em constante vigilância
por parte dos atores vivos, há também outra relação que atravessa sua narrativa: o fato de ele
mesmo também ser testemunha do seu próprio tempo (Elibio, Schurster, Pinheiro, 2019).

Pensando no campo dentro da historiografia brasileira, há particularidades em sua


constituição e consolidação. Como mencionado pela autora Marieta de Moraes Ferreira, no artigo
Notas iniciais sobre a história do tempo presente, a autora vai argumentar que, diferente de outros países
e outras experiências, a história oral foi um elemento fundamental para estimular e consolidar a
HTP no país, principalmente por obras como: Usos e abusos da história oral e também, por eventos
que se desenvolveram no campo das discussões sobre história oral no Brasil (Elibio, Schurster,
Pinheiro, 2019).

Na década de 1980, principalmente após a abertura política, eclodiu um grande número de


programas de pesquisas criados em universidades que tinham como objetivo a preservação da
memória. Aliado a essa questão, surgiu também um número considerável de pesquisas que
passaram a usar a metodologia da história oral. Além das instituições universitárias, a sociedade
também passou a demonstrar interesse pela /recuperação da memória coletiva e individual. Essas
ações, tiveram um impacto na ampliação do uso da história oral e do interesse por uma história
recente.

Mas apesar de passar a constar em pesquisas e no interesse da sociedade, foi na década de


1990 que se teve uma maior valorização da história oral, que foi impulsionado principalmente pela
criação da Associação Brasileira de História Oral, em 1994 e também pelos encontros nacionais
organizados pela instituição. Para Marieta, até então se praticava uma história recente, mas não
eram feitas reflexões sobre esse fazer, com a legitimação da história oral nos espaços acadêmicos,
1461

passou-se também, atentar sobre questões referente a memória e as noções de história do tempo
presente no Brasil (Elibio, Schurster, Pinheiro, 2019).

Portanto, a discussão sobre o estatuto da história do tempo presente, diferentemente da


França, entrou no Brasil pela porta da história oral. Contudo, a grande virada que consolidou
definitivamente esse campo foi a discussão dos projetos relativos ao “dever de memória” perante
as vítimas da ditadura militar, e os grupos excluídos e discriminados.

Para Mariana Joffily (2017) em seu artigo Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos,
implicações políticas, na revista Tempo & e Argumento, tão importante quanto pensar o dever de
memória para as vítimas da ditadura, se faz importante voltar o olhar para o período posterior a
esses regimes, talvez até mais do que pensar o próprio sentido de ruptura ditatorial, pois segundo
a autora, a democracia foi vista como um horizonte desejável de mudanças.

Entretanto, esse horizonte de expectativas erguido a partir da democracia, não se


consolidou na construção de uma sociedade amplamente democrática e receptiva aos direitos
humanos, por mais que os “vencidos” aparentemente tenham sido colocados como vitoriosos nas
batalhas de memória sobre a ditadura, principalmente após as instaurações das comissões da
verdade latino americanas.

Convivem assim, uma memória de rechaço à ditadura e ao autoritarismo junto a disparidade


na distribuição de renda, o crescimento da população carcerária, o assassinato de jovens negros e
o preconceito estrutural vivenciado por boa parte da sociedade (Joffily, 2017).

Outro importante ponto de discussão abarcado pela autora, foram as guerras e disputas de
memórias que se instauraram a partir da “descomemoração” dos 50 anos do golpe. Ao mesmo
tempo que foi o ápice de políticas de memória, a data também foi marcada pela polarização dos
setores de esquerda e direita. Além disso, esse momento foi palco também, para um importante
debate a respeito da história pública, já que os ex-militantes políticos deixaram de ocupar apenas
as plateias, como na década anterior, e passaram a compor as mesas de debates, ao lado de
pesquisadores do tema.

A interlocução com um público mais amplo abre espaço para uma inserção dos
historiadores no espaço público, uma das características relacionadas à História do Tempo
Presente. Porém, ao mesmo tempo, pode acarretar em simplificações que corroboram à construção
de mitos, contribuindo com usos e abusos do passado.

Desse modo, somos postos diante de uma difícil interlocução entre: nosso compromisso
com os rigores da pesquisa histórica e sua complexidade, nossa contribuição como historiadores e
1462

cidadãos na construção e difusão de um saber em um espaço altamente conflitivo e a consciência


do estatuto de legitimidade acadêmica e científica socialmente atribuído ao nosso ofício. Questões
as quais, de modo algum desmerecem a História do Tempo Presente, mas que as constituem
(Joffily, 2017).

Para o autor Rafael Araújo (2019) no Livro Tempo Presente: uma História em Debate, a
cronologia da HTP é constituída de forma permeável e móvel, desse modo, apesar da importância
atribuída aos períodos ditatoriais latino americanos como traumas fundadores da HTP, isso não
significa que devemos atribuir esses acontecimentos como recorte cronológico criador do campo.

Assim, ele destaca que eventos como as revoluções boliviana (1952) e cubana (1959), as
quais antecederam as ditaduras e inspiraram diversos grupos posteriores. O autor também
menciona o golpe vivenciado na Guatemala, orquestrado pela CIA, o qual serviu como arquétipo
para os golpes vivenciados a posteriori.

Araújo também defende que, apesar dos traumas coletivos terem importante peso na HTP
latino-americana, eles não devem ser vistos como princípios exclusivos da constituição do campo.
Pois, experiências vivenciadas antes, especialmente na década de 1950, como o protagonismo
popular, foram determinantes para a consolidação de uma cultura política na américa latina. Isto,
porém, não invalida a utilização de outros episódios da história do século XX que carreguem
consigo a “névoa da ruptura”.

Essa revisão de marcos temporais não é um erro, haja vista que essa é uma das principais
características da HTP. O tempo presente, é o período durante o qual se produzem eventos que
pressionam o historiador a revisar a significação que ele dá ao passado e a redefinir as periodizações,
pois essas marcações são sempre provisórias e inconclusivas. Para os autores Karl Schuster e Alana
de Moraes Leite (2017) no mesmo livro mencionado acima, a noção de Tempo Presente,
frequentemente associada a processos “inacabados”, é mais abrangente que a fórmula simplista de
“história do seu próprio tempo”.

A História do tempo presente volta-se aos passados que não passam, a questões que seguem
reverberando no presente. Dentro dessa relação de passados que não passam, há os processos mal
digeridos, como afirmado por Mariana Joffly e Viviane Trindade (2017), processos que seguem
tendo repercussões porque nem todos os setores envolvidos sentiram-se apaziguados, de modo
que há questões que demandam do presente uma solução mais satisfatória.

Por fim, este campo de debate (HTP), busca (re)pensar as possibilidades acerca das noções
de temporalidades e seus possíveis estratos/camadas (Koselleck, 2014). Estratos é um termo em
que Koselleck buscou na área da geologia, visando utilizar como metáfora para os estudos dele a
1463

respeito de uma historiografia sobre as temporalidades históricas. A metáfora tem intuito de fazer
referência a forma como ele vai descrever essas diversas temporalidades, ou seja, a percepção de
várias camadas de tempo que não se opõe, mas que coexistem. Para o autor, o tempo histórico é
carregado de experiências que se misturam e não necessariamente se seguem uma à outra.

A principal preocupação do teórico, é problematizar as experiências do tempo na


historiografia, não vendo o tempo apenas como um pano de fundo para os acontecimentos
históricos, mas sim como protagonistas dessas análises. A partir das discussões feitas por ele, é
possível que pensemos a diversidade de tempos e temporalidades, para além do modelo ocidental
que nos foi colocado há séculos e que ainda segue como modelo para muitos autores(as).

Metodologia

Este trabalho, constitui-se em uma pesquisa de abordagem qualitativa, onde o principal


método foi a pesquisa bibliográfica. Os livros e artigos utilizados na análise, foram baseados em
algumas obras do edital (2020) do processo seletivo para ingresso de discentes do Programa de
Pós-Graduação em História do Tempo Presente da Universidade do Estado de Santa Catarina e
também, textos discutidos nas aulas de teoria e historiografia do Tempo Presente. As principais
obras analisadas foram: O livro História, Memória e Violência de Estado: tempo e justiça (2018) do autor
Berber Bevernage; Tempo Presente: uma História em Debate (2019) organizado pelos autores Antônio
Elibio, Karl Schurster e Rafael Pinheiro e alguns de seus capítulos; Estratos do Tempo estudos sobre a
história (2014) do teórico Reinhart Koselleck; e a Edição Especial do III Seminário Internacional
História do Tempo Presente (2017) publicado na Revista Tempo & Argumento.

Conclusão

Neste trabalho, foi possível observar, a partir do diálogo estabelecido com os autores(as)
nas obras analisadas, que a História do Tempo Presente é um campo constituído por processos
inacabados e por memórias e histórias em disputas. Pois, mesmo não existindo apenas um marco,
há aqueles que são vistos e entendidos como os processos históricos que delimitam o campo,
entretanto, há uma série de possibilidades, mostrando o quão complexo são as relações instituídas
para os historiadores(as) da HTP. Há desse modo, a necessidade de dialogar com as diversas
problemáticas, que perpassam questões como: disputas de memórias, usos do passado, o diálogo
1464

com as fontes “vivas”, os embates públicos que trazem a voga os deveres de memória e a constante
reformulação da noção, ou melhor, noções de temporalidades, as quais são múltiplas.

Referências

Araujo, Rafael. A história do tempo presente na América Latina e no Brasil: recortes


cronológicos e possíveis periodizações. In: Elíbio, Antônio; Schurster, Karl; Pinheiro, Rafael.
Tempo Presente: uma história em debate. Rio de Janeiro: Edupe, 2019. p. 41-62.

Bevernage, Berber. História, memória e violência de Estado: tempo e justiça. Tradução de André
Ramos, Guilherme Bianchi. Serra: Editora Milfontes – Mariana: SBTHH, 2018.

Delacroix, C. L’histoire du temps présent, une histoire (vraiment) comme les autres ?. Revista
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Elibio, Antônio; Schurster, Karl; Pinheiro, Rafael (Org.). Tempo presente: uma História em debate.
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1465

O Genocídio Indígena na Ditadura Civil-Militar: caso do povo


Waimiri-Atroari (1964-1985)

Nathanael Martins Pereira

Resumo: a ditadura civil-militar (1964-1985) perpetrou um genocídio que matou mais de 8.300
indígenas, dentre eles pelo menos 2.650 do povo Waimiri-Atroari, o que representou uma queda
de 85% de sua população. Um genocídio movido pelas políticas imperialistas e etnocêntricas de
um Estado que desde sua origem mata e dizima populações indígenas, ações potencializadas por
um momento de cessação das liberdades e da impossibilidade de denunciar de modo que a maior
parte dessas ações contra os Waimiri-Atroari ocorreram na construção da BR-174. Nesse artigo
propõe-se o estudo dos processos da construção da rodovia e as demais questões envoltas no
genocídio do povo Waimiri-Atroari.

Palvras-chave: Waimiri-Atroari. Genocídio. Ditadura civil-militar. BR-174.

Genocídio – geno-cídio: O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte,


injuria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento),
calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir
a língua, a religião ou a cultura de um grupo.
Webster’s Third New International Dictionary of the English Language, Springfield:
G&C Merriam, 1967.
Genocídio – geno-cídio Genocídio s.m. (neol.). Recusa do direito de existência a
grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas
instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e
religiosos. Ex.: perseguição hitlerista aos judeus, segregação racial etc.
Dicionário Escolar do Professor, organizado por Francisco da Silveira Bueno.
Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1963, p. 580.

Introdução

A presente pesquisa de iniciação científica tem por objetivo apresentar e discutir o


genocídio indígena executado pelo Estado nacional durante a ditadura civil-militar de 1964-1985.
Nosso recorte de tempo são os anos 70, auge da violência ditatorial e das forças de repressão.
Jornais contra o governo eram silenciados, como todas as vozes que se colocavam contra o regime
ditatorial.

A proposta original desse artigo partia da intenção de por meio da análise de jornais, como
o Jornal do Brasil, desenvolver um projeto que buscasse analisar as reportagens e matérias que
tratassem da causa indígena durante a ditadura civil-militar, no entanto, no decorrer da pesquisa
houve nascimento de novas questões quanto a este momento tão violento de nossa história. Desse
1466

modo, a pesquisa acabou por tomar outro rumo e assim surgiu a pesquisa específica que tratasse
sobre o povo Waimiri-Atroari e o genocídio exercido pelo Estado brasileiro. Um Estado com
histórico genocida e violento que manteve a escravidão por mais de 300 anos, com as populações
indígenas não seria diferente. Um Estado que matou, sequestrou, escravizou e tomou terras nos
últimos 500 anos, sempre tratando os povos originários como empecilho, assim que tiveram a
oportunidade de matar, o fizeram. A BR-174 é uma grande prova dessas ações. Podemos entender
as violências e violações exercidas como “[...] não esporádicas nem acidentais [...]”, uma vez que
foram o resultado direto de políticas estruturais que tinham todo um sistema por trás de sua
execução e como é apontado pela Comissão Nacional da Verdade, partiram tanto de ações diretas,
quanto de omissões. Um genocídio anunciado e potencializado (CNV, 2014: 204).

Diversos foram os povos indígenas mortos e afetados, pois há registro de mais de 8.300
indígenas mortos durante os 21 anos de ditadura, mas para uma pesquisa mais específica, que visa
tratar com mais atenção um tema tão relevante, vamos nos aprofundar na história do povo Waimiri-
Atroari, localizado na parte sudeste do estado brasileiro de Roraima e o nordeste do estado
brasileiro do Amazonas. Um povo que historicamente vem resistindo a diversos ataques, datados
de antes de 1856 (CNV, 2014: 205), (Carvalho, 1982: 5).

Desse modo, para desenvolver um trabalho de pesquisa que trata da vida e história das
populações indígenas no Brasil, precisamos entender como as dinâmicas sociais e relações estatais
foram feitas e direcionadas aos povos originários.

Genocídio indígena no Brasil

De modo breve, porém essencial, podemos traçar algumas conexões quanto a história
indígena no Brasil. Durante toda a História nacional nunca se deixou de matar as populações
indígenas, um genocídio ininterrupto que acontece desde o achamento em 1500. Em diversos
momentos a narrativa mudava, mas a matança nunca cessou, as violências tinham diversas faces
como: os aldeamentos, os sistemas de tutela e as políticas desenvolvimentistas. Só nos primeiros
70 anos após o achamento, 1.800.000 indígenas foram mortos no território que hoje entendemos
como Brasil. Uma polução que incialmente, em 1500, era de 3.000.000, em seu momento mais
crítico chegou a 150.000 no ano de 1957. Os dados são revoltantes, inúmeras foram as expedições,
construções, missões religiosas dentre outras várias violências que nos últimos 520 anos dizimou,
extinguiu e matou populações indígenas.634 Com o povo Waimiri-Atroari não foi diferente, existem

634 Dados do site da FUNAI. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-


sao?limitstart=0#. Acessado no dia 07 de setembro de 2020.
1467

registro de ataques contra eles há mais de 150 anos, ataques que se intensificaram na ditadura militar
com genocídio de 85% de sua população que até hoje ainda é cruelmente atacada por garimpeiros
(Carvalho, 2001: 2).

O genocídio indígena executado no período da ditadura militar foi sangrento e covarde,


pesquisas da Comissão Nacional da Verdade apresentam o número assustador de ao menos 8.350
indígenas mortos, dentre eles 2.650 eram Waimiri-Atroari. Mortes que ocorreram pela ação direta
de agentes governamentais ou da sua omissão (CNV, 2014: 205). Quanto a isso, é importante
continuar as pesquisas e investigações, uma vez que:

Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi
possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos no período
deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita
dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade
de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas” (CNV, 2014: 205).

Essa citação da Comissão Nacional da Verdade reforça que o genocídio indígena foi muito
pior do que temos registrado, uma vez que as expedições e ações eram muito acobertadas e
sangrentas. Como mais à frente no trabalho será apresentado, houve vezes em que a violência foi
utilizada como um aviso ou mensagem, tendo registro de militares encorajando o uso da violência,
como rajadas de metralhadora para demonstração de força (CNV, 2014: 234).

Waimiri Atroari

Para o povo kinja ou kiña (ambas autodenominações Waimiri Atroari), no passado, todos
os seres e animais eram gente e viviam no meio de kinja, foi quando choveram muitas pedras e
todos estavam com medo do mundo acabar, então foram se proteger em uma maloca e a partir daí,
das famílias que se protegeram nessa maloca, surgiram os ascendentes do atuais Waimiri Atroari.634
Segundo Jose Porfirio, em seu livro Waimiri Atroari: a história que ainda não foi contada, os primeiros
registros de um povo que vivia as margens do Rio Negro, compreendendo a área do rio Jatapu ao
Rio Branco, datam do século XVII, outros registros abordam encontros na segunda metade dos
oitocentos. Um povo que até então vivia isolado em suas Mydy taha635, passou a ser atacado
constantemente pelas noções e desejos imperialistas colonizadores, os ataques se sucederam e um
povo que há séculos demonstra sua resistência seguiram firmes (Carvalho, 1982: 4).

634 Tahkome e Nysakome, os ancestrais Waimiri Atroari e os domínios da terra, do ar e da água. Disponível em:
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Waimiri_Atroari. Acessado em 07 de setembro de 2020.
635 “Mydy taha ("grande casa") é a denominação dada ao espaço que constitui a aldeia, a moradia e todo seu entorno,

inclusive o roçado. Mydy taha é também a denominação da maloca comunal em formato circular, onde habita a maioria
das pessoas da aldeia. A Mydy taha é um espaço importante para os Waimiri Atroari, porque, além de moradia, serve
como espaço ritual durante suas festividades”.
1468

“Por que Kamña matou Kiña?”636 com essa pergunta o 1º Relatório do Comitê Estadual da
Verdade, “O GENOCÍDIO DO POVO WAIMIRI-ATROARI”, se inicia e nele é citado a
frequência em que essa pergunta era feita pelos Waimiri-Atroari para os professores Egydio e
Doroti Schwade que desenvolveram o primeiro processo de alfabetização em sua língua materna
na aldeia Yawará – Sul de Roraima – entre fevereiro de 1985 e dezembro de 1986 (1º RCEV, 2012:
2).

A pergunta exige uma resposta da sociedade nacional. Mas como chegar à


verdade sobre este crime cometido durante a construção da BR174 pela Ditadura
Militar e em períodos posteriores se uma das empresas que participaram
diretamente do desaparecimento dos índios comanda hoje a política indigenista
na área? (1º RCEV, 2012: 2)

A queda no número da população Waimiri-Atroari é algo assustador, pois “em 1905 os


pesquisadores alemães Georg Hübner e Theodor KochGrünberg percorreram o baixo rio Jauapery
e estimaram os Waimiri-Atroari em 6.000 pessoas.”. Já em 1968, com o primeiro levantamento a
serviço da FUNAI, feito pelo padre João Giovanni Calleri, sobrevoando os rios Uatumã, Abonari
e Alalaú os estimou em 3.000, número que se repetiu em pesquisa mais minuciosa de funcionários
do mesmo órgão em 1972. Menos de dois anos após, sem notícias sobre alguma grave epidemia, a
FUNAI já os estimava em menos de 1.000. Em 1983 o pesquisador da UnB Stephen Grant Baines
percorrendo todas as aldeias, contabilizou apenas 332 pessoas sobreviventes, das quais 216 eram
crianças ou jovens com menos de 20 anos. Foi o primeiro censo dos Waimiri-Atroari (1º RCEV,
2012: 4).

Ao longo do tempo, as políticas de tratamento do Estado nacional com os povos


originários tiveram várias faces, no entanto com uma característica em comum, o controle e o
silenciamento. Dados da Comissão Nacional da Verdade de 2014 nos mostram que o massacre
Waimiri-Atroari realizado pela ditadura militar tem data entre os anos 1960 e 1980. É importante
ressaltar que esse corte de tempo contempla apenas as ações que tinham conexão com a ditadura,
pois há registros de que essa não foi a primeira vez em que o povo Waimiri Atroari sofreu ataques
genocidas. Os massacres tinham como motivação abrir espaço em suas terras para a abertura da
BR-174, a construção da hidrelétrica de Balbina e a atuação de mineradoras e garimpeiros
interessados em explorar as jazidas que existiam em seu território. Com o censo feito pela Funai
em 1987, a população que em 1972 chegava a cerca de 3 mil pessoas, eram somente 420, tendo

636A palavra “Kamña” é utilizada para identificar os não indígenas e “Kiña” quer dizer “a gente”, “a nossa gente”,
ou seja, o povo Waimiri-Atroari.
1469

chegado a 350 em 1983. (CNV, 2014: 234). Diversas foram as violências exercidas pelo Estado, um
trecho da comissão da verdade de Manaus, traduz esse momento:

Pais, mães e filhos mortos, aldeias destruídas pelo fogo e por bombas. Gente
resistindo e famílias correndo pelos varadouros à procura de refúgio em aldeia
amiga. A floresta rasgada e os rios ocupados por gente agressiva e inimiga. Esta
foi a geografia política e social vivenciada pelo povo Kiña desde o início da
construção da BR-174 em 1967 até sua inauguração em 1977 (1º RCEV, 2012:
10).

O genocídio Waimiri assusta, pois esse povo por pouco não foi morto por completo.
Quanto a isso, testemunhas já denunciavam o desaparecimento de mais de 2.000 Waimiri-Atroari
em apenas 10 anos, (de um povo de pouco mais de 3.000 a época anterior a construção da BR 174),
com o passar do tempo e as investigações, “eles revelaram o método e as armas que os kamña637
usaram para dizimá-los: aviões, helicópteros, bombas, metralhadoras, fios elétricos e estranhas
doenças. Comunidades inteiras desapareceram depois que helicópteros de soldados sobrevoaram
ou pousaram em suas aldeias” (1º RCEV, 2012: 9).

O genocídio levou aldeias por inteiro, entre os anos de 1972 e 1975, desapareceram pelo
menos seis aldeias no Vale do Igarapé Santo Antônio do Abonari. Outra na margem direita do
Baixo Alalaú e três na margem direita do Médio rio Alalaú (1º RCEV, 2012:11).

Os Waimiri-Atroari tiveram seu território atravessado pela BR-174 que liga Manaus a Boa
Vista. Uma vez que a construção da rodovia não foi o único ataque contra a vida e território deles,
outros ataques foram feitos como a abertura da área para a construção da rodovia, garimpeiros,
mineradoras e a hidrelétrica de Balbina. Para entender a estrutura que favorecia e apoiava esses
ataques contra o povo Waimiri, precisamos apresentar as instituições que existiam para proteger os
indígenas, no entanto favoreciam e facilitavam os ataques.

SPI

O inicialmente chamado Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores


Nacionais – SPILTN foi criado em 20 de junho 1910 e partir de 1918 pelo Decreto nº 8.072, tendo
por objetivo prestar assistência a todos os índios do território nacional, passou a ser SPI, Serviço
de Proteção aos Índios. O projeto do SPI, partia da intenção de afastar a Igreja Católica da
catequese indígena, seguindo o ideal republicano de separação Igreja-Estado. E esse projeto se

637 Definição de não indígena para o povo Waimiri Atroari.


1470

orientava do desejo de que “a política indigenista adotada iria civilizá-lo, transformaria o índio num
trabalhador nacional”.638

No momento posterior a este, data de 1967, houve a dissolução do SPI, extinguida pelo
então ditador general Costa e Silva, devido ao contexto de escândalos envolvendo os funcionários
em sistemas de corrupção e na participação de crimes contra as populações indígenas. É importante
ressaltar que o momento destas denúncias feitas pela imprensa nacional é do período anterior ao
AI-5. Com essa dissolução, surge a Funai (ARAUJO, 2018).

O órgão que “tutelava” os indígenas, encarregado de defender seus direitos, apresentava


subordinações que contrariava os interesses e proteção dos indígenas, uma vez que o “Serviço de
Proteção aos Índios (SPI) era órgão do Ministério da Agricultura e que a Fundação Nacional do
Índio (Funai), que substituiu o SPI em 1967, foi criada como órgão do Ministério do Interior, o
mesmo ministério a cargo do qual estavam a abertura de estradas e a política desenvolvimentista
em geral” (CNV, 2014: 205). Quanto à estrutura dos órgãos de proteção, é importante citar o
seguinte trecho da Comissão Nacional da Verdade:
Acrescente-se a esse quadro a anomalia jurídica de não haver um órgão curador a quem
o órgão tutor dos índios devesse prestar contas de suas ações. Assim, é estrutural o fato
de os órgãos governamentais explicitamente encarregados da proteção aos índios, o SPI
e posteriormente a Funai, não desempenharem suas funções e se submeterem ou até se
colocarem a serviço de políticas estatais, quando não de interesses de grupos particulares
e de seus próprios dirigentes (CNV, 2014: 205).
Uma estrutura infelizmente ainda muito presente que possibilita a existência de órgãos de
proteção dentro de uma pasta que de forma alguma se importa ou deseja desenvolver políticas de
proteção para as populações indígenas.

FUNAI

Como citado, a FUNAI surge para substituir o SPI639, no entanto, as ações etnocêntricas
de caráter “civilizatório” foram mantidas, pois o novo órgão de proteção mantinha parcerias com
missionários religiosos. E essa relação, entre o governo brasileiro e essas missões sempre foi
bastante ambígua, uma vez que existiam suspeitas de espionagem por terem estrangeiros nas
missões, o Estado nacional abraçava essas missões por considerá-las um apoio no processo

638 Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/servico-de-protecao-


aos-indios-spi. Acessado no dia 07 de setembro de 2020.
639
“Em 1967, houve uma CPI na Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul e, no mesmo ano, uma
comissão de investigação do Ministério do Interior produziu o Relatório Figueiredo, motivo da extinção do SPI e
criação da Funai. Três missões internacionais foram realizadas no Brasil entre 1970 e 1971, sendo uma delas da
Cruz Vermelha Internacional. Denúncias de violações de direitos humanos contra indígenas foram enviadas ao
Tribunal Russell II,17 realizado entre 1974-1976, e também à quarta sessão desse tribunal internacional, realizado
em 1980 em Roterdã. Nessa sessão foram julgados os casos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikwara e Kaingang
de Manguerinha, tendo o Brasil sido condenado” (CNV, 2014: 208).
1471

“civilizatório”. Os missionários respondiam às expectativas da Funai e, por consequência, dos


militares (Valente, 2017: 55, 56).

Fica nítida a influência do Exército na Funai pois existe um oficio no 42-E2-CONF


assinado em 1974, pelo general de brigada Gentil Paes que consta a seguintes ordens: “Esse Cmdo.,
caso haja visitas dos índios, realiza pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os
efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de
dinamite”. Uma orientação direta com o objetivo de aterrorizar e criar um ambiente de medo que
foi alimentado por vários ataques que visavam que as populações indígenas aceitassem a invasão e
construção. Como será apresentado no trabalho, o exército tanto ameaçou como também cumpriu
suas ameaças (CNV, 2014: 234).

Ditadura civil-militar

A ditadura civil-militar se iniciou em 1964 com golpe executado pelo comando do general
Olympio Mourão Filho contra João Goulart, então presidente do Brasil. A partir desse momento,
a relação que já era extremamente violenta e agressiva do Estado com a população indígena foi
potencializada, vide os números de mortos e os dados apresentados nesse artigo (Moreira, 2005).

A partir de 1968, ano da implementação do AI-5, foi criado um plano de invasão do


território Waimiri-Atroari para possibilitar os projetos econômicos do governo militar, os órgãos
envolvidos nesse plano eram: Funai, Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER),
o Instituto de Terras (ITERAM), o Ministério da Aeronáutica e o Grupamento Especial de
Fronteiras do Exército. Desse modo, o fato que se sucedeu a criação desse plano, foi a criação dos
Postos Indígenas de Atração (PIA) nos rios Camanaú em 1969, Alalaú em 1970 e Santo Antônio
do Abanari em 1972. O plano da implantação desses postos era a retirada e expulsão dos indígenas
e suas malocas do traçado da rodovia. Quanto a isso, no relatório da Frente de Atração Waimiri-
Atroari lê-se que o PIA tem como principal objetivo realizar a atração dos grupos indígenas
Waimiri-Atroari acelerando seu processo de integração na sociedade nacional, assim como realizar
trabalhos de apoio aos serviços da estrada BR-174 (CNV, 2014: 234).

BR-174
A BR-174 é uma rodovia com extensão de 1.902 km, comumente chamada de “Manaus –
Boa Vista” que interliga os estados brasileiros Mato Grosso, Rondônia, Amazonas e Roraima à
Venezuela. A rodovia foi concluída em partes em 1979, mas concluída completamente em 1998
pois teve trechos adicionados pós ditadura militar. Sua construção tem data no início do ano de
1472

1968, com sua inauguração em 1977, momento em que ainda não estava concluída, por isso
entendemos esse período de ataques, do ano de 1967 até 1983, uma vez que, tanto em momentos
anteriores ao início oficial, quanto após o fim da construção, as violências não cessaram (CNV,
2014: 235).

O plano da construção era integrar a Amazônia ao restante do país. Sobre a construção da


rodovia temos declarações como a do Coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia
e Construção que afirmava que a rodovia devia ser construída “custe o que custar”, “Não vamos
mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios
[...] Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios”. Essa
afirmação mostra que a posição do exército quanto à invasão e construção da rodovia era de total
ataque, sem nem pensar numa outra opção que não fosse o ataque direto atravessando a TI640
(CNV, 2014: 235). No ano de 1981, a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina foi iniciada pelo
então ditador general Figueiredo e para isso desmembrou a parte leste da TI Waimiri Atroari640. A
construção da usina gerou até o início da década de 1970 a inundação de cerca de 311 km² de área
que faziam parte do território Waimiri. “Todos os afluentes dos rios Uatumã e Abonari tornaram-
se inabitáveis, com a putrefação da floresta submersa”, tirando qualquer possibilidade de
permanecia nessas regiões (CNV, 2014: 235), (Baines, 1994: 03).

Genocídio

Luísa Pontes Molina em seu texto “As encruzilhadas das demarcações de TIs: “interesse
nacional”, etnocídio e genocídio” apresenta a relação entre os termos genocídio e etnocídio, ambos
são termos que explicam o que o Estado vem fazendo com as populações indígenas nos últimos
520 anos (Molina, 2018, 391). De modo breve, podemos apresentar a definição que Molina traz de
Pierre Clastres:

O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e


pensamento de povos diferentes daqueles que empreenderam essa destruição.
Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em
seu espírito. Em ambos os casos, trata-se sempre da morte, mas de uma morte
diferente: a supressão física e imediata não é a opressão cultural com efeitos
longamente adiados, segundo a capacidade de resistência da minoria oprimida.
(Clastres, 2011, p. 78-79. Ênfases acrescentadas), (Molina, 2018, 398).

As violências exercidas contra os Waimiri Atroari na construção da rodovia e da hidrelétrica


têm várias características, uma vez que o genocídio pode ser lido como o ato de matá-los no intuito

640Terra Indígena
640Esse processo está bem documentado e teve ampla repercussão internacional, tendo sido denunciado ao IV
Tribunal Russell (1982).
1473

de amedrontar os que resistiam ou no intuito de ceifar suas vidas, colocando suas intenções acima
de tudo. No entanto, devemos entender outras violências, a violências com os que continuam vivos,
a violência de ter seu território tomado, terem suas vidas retiradas de seu local sagrado, que para
muitos indígenas, se compara à morte. Em uma passagem do “1º Relatório do Comitê Estadual da
Verdade: O Genocídio do Povo Waimiri-Atroari” temos a denúncia de Viana Womé Atroari feita
em entrevista para a TV Brasil na qual relata como foi o ataque aéreo a aldeia Kramna Mudî, que
se localizava na margem Oeste da BR-174, no Baixo rio Alalaú. Na segunda metade do ano de
1974, a Kramna Mudî acolhia o povo Kiña (Waimiri-Atroari) para uma festa tradicional que
contava com os visitantes do Camanaú e do Baixo Alalaú. A festa já tinha muitas pessoas quando
eles foram surpreendidos pelo barulho de algo que poderia ser um avião ou helicóptero, saíram da
maloca para ver de onde vinha o barulho, no momento em que foi despejado um pó do avião. “O
tuxaua Comprido, com a sua gente vinha do Norte e ainda não chegara. Quando se aproximaram
estranharam o silêncio. Aldeia em festa sempre está cheia de algazarra. Ao entrarem no pátio
encontraram todos mortos, menos um” (1º RCEV, 2012: 16). Os alunos da aldeia Yawará
apresentaram uma relação de 33 parentes mortos neste massacre. Uma parte do relato de Viana
Womé Atroari:

Foi assim tipo bomba, lá na aldeia. O índio que estava na aldeia não escapou
ninguém. Ele veio no avião e de repente esquentou tudinho, aí morreu muita
gente. Foi muita maldade na construção da BR-174. Aí veio muita gente e pessoal
armado, assim, pessoal do Exército, isso eu vi. Eu sei que me lembro bem assim,
tinha um avião assim um pouco de folha, assim, desenho de folha, assim, um
pouco vermelho por baixo, só isso. Passou isso aí, morria rapidinho pessoa.
Desse aí que nós via (17:47 – 18:37)641, (1º RCEV, 2012: 16).

Já a aldeia Yawara tinha apenas 31 pessoas na época em que ali foi desenvolvido o primeiro
projeto de alfabetização (1985-1986), esses 31 indígenas:

Eram sobreviventes de quatro aldeias localizadas à margem direita do rio Alalaú,


desaparecidas durante a abertura da rodovia BR-174. A pessoa mais velha não
passava dos 40 anos. Todas as demais, acima de dez anos, eram órfãs, exceto
duas irmãs, cuja mãe ainda vivia. Seus pais morreram na guerra genocida, durante
a construção da rodovia. E as crianças de quatro a dez anos também eram órfãs
de pai e mãe. Seus pais morreram de sarampo em 1981, abandonados pela
FUNAI à beira da BR-174, no Km 285 (1º RCEV, 2012: 9).

As populações Waimiri Atroari foram fortemente atacadas e o processo desse povo se


restabelecer é cheio de cicatrizes como o massacre de aldeias por completo, a quantidade de
crianças sem pais, todas essas foram e são a realidade que a invasão aos seus territórios trouxera.

641TV Brasil. Amazônia Adentro. Primeiro Episódio: Waimiri-Atroari. Disponível em:


http://www.youtube.com/watch?v=lbDkac9Nz9k. Acessado em 07 de setembro de 2020. (17:47 – 18:37 min.)
1474

Resistência

Utilizando todo o material de fonte dessa pesquisa, podemos perceber a vasta resistência o
povo Waimiri Atroari que vem lutando e enfrentando bravamente todas as investidas feitas contra
eles. E como foi dito por Egydio Schwade “os índios Waimiri-Atroari são desaparecidos políticos,
como os demais que desapareceram no rio Araguaia” e que o processo de construção da BR-174
os dizimou (CNV, 2014: 163).

Um líder muito importante para a resistência Waimiri foi o pagé Maiká da região do Rio
Urubu. Sua aldeia foi uma das primeiras a ser atropelada pela BR-174. No momento em que sua
floresta era atravessada pelas máquinas, Maiká resolveu resistir. Sem saber qual era a intenção
daqueles homens, uma vez que não foi informado sobre a construção da BR-174, resistia dia após
dia, reconstruindo sua aldeia. Nas anotações de Egydio Schwade, ele escreve que Maiká construiu
uma nova Mudî642 no Axya, igarapé Santo Antônio do Abonari, onde morava em outubro de 1968.
E que foi contado para ele na aldeia que “Quando os kamña chegaram no Axia matou eles,
deixando escapar apenas um, que os kiña acompanharam um tempo enquanto descia o rio sentado
numa canoa, ao lado do seu cachorro”. Provavelmente seja uma referência à expedição do padre
Calleri, na qual se salvou apenas Álvaro Paulo da Silva. Quando os militares foram resgatar os
corpos da missão Calleri, afugentaram novamente Maiká. Ele então mais uma vez recuava com sua
gente rumo ao Norte, sempre seguindo o traçado da estrada, erguendo sua maloca no Igarapé
Monawa, afluente da margem esquerda do Alalaú. Seguindo sempre no roteiro que a estrada seria
construída (1º RCEV, 2012: 17,18).

Mînawa sunaka Maika mîdî nakî yakîpa kamña. Wîpanakî. [Maiká morava na sua
maloca no igarapé Monawa quando civilizado chegou lá. Matou ele. ] Ele morreu
por volta de 1972 depois que um helicóptero dos kamña sobrevoou a sua aldeia
e “Maiká pegou doença”. “Quando Maiká morreu, kamña (civilizado) veio
invadindo a região – contaram (1º RCEV, 2012: 17,18).

A resistência do pagé Maiká fez com que a construção da estrada fosse parada por dois
anos, entre dezembro de 1968 e 1971 (1º RCEV, 2012: 17,18).

Conclusão

A Comissão Nacional da Verdade e o 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade foram


fundamentais para a realização dessa pesquisa, os materiais produzidos apresentam uma vasta
importância, vide a apuração dos fatos e aprofundamento no assunto. O genocídio indígena nunca

642 Aldeia ou Casa


1475

teve um fim, sempre esteve em curso, pois quando analisamos todos os eventos históricos no
Brasil, podemos perceber projetos genocidas que constantemente são exercidos contra as
populações indígenas, em várias camadas. A ineficiência do Estado em proteger e fazer com que
as determinações das TIs sejam mantidas e constantemente fiscalizadas é parte desse genocídio. As
políticas governamentais pré, durante e pós ditadura militar, são políticas desenvolvimentistas
totalmente etnocêntricas. Políticas essas que de forma alguma respeitam as populações indígenas e
seus territórios.

Como é apresentado no decorrer desse artigo, baseado nos diversos relatos, autores e
relatórios apresentados, vivemos no Brasil um genocídio indígena ininterrupto, que é
potencializado em momentos que as liberdades são cerceadas como na ditadura civil-militar.

Quando analisamos de forma minuciosa o que ocorreu no Brasil, entre os anos de 1964 e
1985 podemos perceber toda uma estrutura feita para matar, um projeto autoritário e explicito
repleto de estratégias e ações sistemáticas que visavam assassinar e amedrontar as populações
indígenas, sendo todo tempo geridas e gerenciadas pelo Estado. Ações essas que culminaram e
potencializaram o genocídio contra os povos indígenas.

A necessidade de um projeto de país que vá proteger e trazer justiça para essas populações
que foram criminosamente assassinadas e tiveram seus territórios invadidos e destruídos é urgente.
Associado também a necessidade de políticas públicas que vissem a maior presença de lideranças
indígenas no legislativo, para que cada vez mais suas pautas possam ser postas e protegidas.

Esse texto foi escrito entre os anos 2019 e 2020, sendo concluído e revisado no ano de
2020 durante a pandemia de COVID-19, momento que as populações indígenas mais uma vez
foram e estão sendo atacadas massivamente, demonstrando que o genocídio indígena continua
mesmo em períodos democráticos. Até o momento dessa conclusão 787 indígenas foram mortos
pela pandemia de COVID-19643, mortes que foram potencializadas pelo alto índice de invasão nos
territórios indígenas e o total descaso estatal com os povos originários, mais uma vez demonstrando
o projeto genocida vigente. Os indígenas estão lidando com a omissão do Estado em vários pontos,
como o desmatamento que mesmo com a pandemia segue fortemente atacando-os644, ou a recusa

643 Indígenas mortos pela COVID-19. Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/. Acessado em 07 de


setembro de 2020.
644 Com mais de 1.600 casos de covid-19, indígenas enfrentam uma pandemia, o desmatamento e o governo federal.

https://acervo.socioambiental.org/acervo/noticias/com-mais-de-1600-casos-de-covid-19-indigenas-enfrentam-uma-
pandemia-o-desmatamento. Acessado em 07 de setembro de 2020.
1476

de dar o apoio e proteção necessária645, precisando fechar as fronteiras de seus territórios para se
manterem protegidos da pandemia.646

Referências

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Brasil. 1º Relatório do Comitê Estadual da Verdade. Comitê da Verdade do Amazonas. O


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Companhia das Letras, 2017. 518pp. 2017.

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indigenas/. Acessado em 07 de setembro de 2020.
646 Indígenas fecham fronteiras para evitar chegada do covid-19. https://oestadoonline.com.br/2020/04/18/xingu-

fecha-fronteiras-para-evitar-chegada-do-coronavirus/. Acessado em 07 de setembro de 2020.


1477

“O Leão de Sete Cabeças”, de Glauber Rocha: Intersecções entre


Teatro Político, História e Cinema

Nicolas Alexandria

Resumo: trataremos neste trabalho, dentro da obra de Glauber Rocha, do filme: “O Leão de Sete
Cabeças”, tomando como ponto de diálogo as questões políticas, que envolveram a sua produção
e seu tema principal: o processo de colonização tardia da África. Filmada no Congo Belga, atual
República Democrática do Congo, esta narrativa fílmica é um ponto de intersecção para pensarmos
sobre teatro político, história e cinema. Temos, como horizonte de análise, a utilização da
linguagem simbólica e algumas aproximações possíveis que fazem desse filme um ponto de inflexão
importante na história do cinema brasileiro em sua relação direta com o teatro político. É o único
filme brasileiro com locações documentais diretas na África, na década de 1960, aproveitando um
acontecimento político fundamental da história africana: o assassinato de Patrice Lumumba. Do
ponto de vista da linguagem artística, O leão de sete cabeças aproxima-se das questões políticas
preconizadas pelo teatro de Brecht (1967), apresentando possibilidades interessantes para
tratarmos pedagogicamente a questão do “estranhamento” a partir de pontos referenciais da
História da África se evidenciamos, por exemplo, a peça Mãe Coragem, dentro da sua estrutura épico-
dramática, para problematizarmos algumas questões que envolvem a África como uma invenção
epistemológica de europeus, nos termos do pensamento crítico de Mudimbe (2013). Para além de
privilegiar sujeitos, estamos tomando o cinema de Glauber Rocha, ao declarado influenciado pelo
teatro dialético de Brecht, como possibilidade de materialização de perspectivas africanas próprias,
sob as lentes do Cinema Novo. Isto significa uma ação de ruptura com o olhar que se nega a ver a
invenção de concepções próprias do Ser africano, como quis Mudimbe, estudado por Motta (2018:
89). Portanto, o cinema aqui pode ser visto como uma prática artística africana em diálogo com o
não- africano prenhe de “translocalidade”, potencializado pela linguagem teatral como ação política
de compreensão e intervenção sobre uma realidade social.

Palavras-chave: Teatro Político, Bertolt Brecht, Cinema, Glauber Rocha, História da África

(I) Introdução

O objetivo deste breve texto é tratar, dentro da obra de Glauber Rocha, do filme: “O Leão
de Sete Cabeças”, tomando como ponto de diálogo as questões políticas, que envolveram a sua
produção, bem como seu tema principal: o processo de colonização tardia da África e sua, digamos,
“semente”. Filmado no Congo Belga, Brazaville para Glauber Rocha, atual República Democrática
do Congo, esta narrativa fílmica é um ponto de intersecção para pensarmos sobre teatro político,
história e cinema.

Temos como horizonte de análise a utilização da linguagem simbólica, e algumas


aproximações possíveis que faz desse filme um ponto de inflexão importante na história do cinema
brasileiro em sua relação com o teatro político, sendo ele o único filme nacional, com locações
1478

documentais na África, na década de 1960, que parte de um acontecimento político fundamental


da história africana: o aprisionamento e morte do líder de esquerda Patrice Lumumba, em termos
políticos, seu assassinato.

Do ponto de vista da linguagem artística, “O Leão de Sete Cabeças” aproxima-se das


questões políticas preconizadas pela pedagogia teatral de Bertolt Brecht, apresentando
possibilidades interessantes para tratarmos pedagogicamente a questão do estranhamento a partir de
pontos históricos referenciais da História da África se evidenciamos, por exemplo, a Peça Mãe
Coragem, dentro da sua estrutura épico-dramática, para problematizarmos algumas questões que
envolvem a África como uma invenção epistemológica de europeus, nos termos de Mudimbe (2013
apud Motta, 2018). Vejamos:

Mudimbe apresenta a ideia de África como uma invenção epistemológica na área


de ciências sociais, defendendo que o conhecimento sobre o continente seria um
conhecimento estritamente controlado por procedimentos específicos
elaborados por europeus, que ele denomina gnose. (Motta, 2018: 81).

Nesse sentido, estamos, através da nossa prática artística, consagrando assim um encontro
entre formação de diretores de teatro e perspectivas críticas, de referencial africano, para
construção e reelaboração da consciência histórica de encenadores em formação inicial, levando em
consideração o afrocentrismo e o conceito de translocalidade como “fenômenos que resultam de
múltiplas circulações e transferências com o movimento de pessoas, produtos e ideias, que cruzam
fronteiras geográficas, culturais ou políticas” (Motta, Ibidem: 73).

Todavia, para além de privilegiar sujeitos estamos tomando o cinema de Glauber Rocha,
influenciado pelo teatro dialético de Brecht, como possibilidade de materialização histórica de
perspectivas africanas próprias, sob as lentes do Cinema Novo, como ação de ruptura e de rejeição
e de possibilidade de vermos a invenção de concepções próprias do Ser africano, como quis
Mudimbe, estudado por Motta (Idem: 89).

Portanto, o cinema aqui pode ser visto como uma prática artística africana em diálogo com
o não africano prenhe de translocalidade, mas em contiguidade com a linguagem teatral mesmo que
as especificidades tanto do teatro como o cinema não rompam com suas especificidades como
linguagem já discutido por Eisenstein (2002). Contudo, não podemos deixar de apontar que estas
especificidades não se anulam uma à outra, mas estabelecem tensões importantes para nossas
análises sobre teatro político, embora uma tome de empréstimo aspectos da outra, sendo possível
também irredutibilidades.
1479

(II) Brecht e a questão do estranhamento

Tradicionalmente Brecht acompanha a expansão da ideia de teatro, que se desloca da


literatura dramática numa ampliação que dá especificidade à encenação. Portanto, ele faz parte do
acúmulo do debate da teoria teatral vinda desde Stanislavski. Dentro deste processo de instituição
do teatro dialético a peça Mãe Coragem tem um destaque em relação à manutenção de uma estrutura
clássica numa perspectiva épica.

Uma das questões principais no teatro de Brecht, como nos diz Mota (2015), é tornar
explícitos os mecanismos de funcionamento do espetáculo ilusionista. Para nós em termos
didáticos compreende dar historicidade a uma cena em ações épicas narrativas. Do ponto de vista
teórico temos um suposto de partir de uma realidade prévia, que não pode dissociar forma e
conteúdo, sendo que a materialidade dos meios reivindica um materialismo das referências.

Nesta discussão a proposta é romper com as abordagens intelectualistas, filosoficamente


podemos dizer idealistas no termo forte atribuído por Karl Marx, em direção de uma perspectiva
materialista histórica para propor a compreensão da cena para além de uma definição dramática.
Mãe Coragem regasta um princípio de continuidade da vida, dentro de condições de reprodução
social onde resta somente o esforço de atendimento das necessidades elementares de reprodução
física e biológica. Não deixando de antever que a economia e a política são as condições e os meios
para que essas produções e reproduções de vida floresçam. “Vida”, ganha, então um sentido que
atravessa e ultrapassa as modalidades citadas, alcançando a ética e a experiência subjetiva.

Escrita em 1938, às vésperas da segunda guerra mundial, Mãe Coragem tematiza dialeticamente
as agruras da guerra e a perda filial, demonstrando criticamente uma perspectiva negativa, não
edificante, da procura da sobrevivência com o comércio para os regimentos em marcha. Vemos
aqui um processo fundamental da escrita dialética de não separar vida pessoal e privada da vida
pública.

A estratégia de evidenciar a contradição, para provocar o distanciamento, deslocar a


compreensão possível de uma leitura dramática a favor de uma percepção racional e consciente
estão presente na construção da personagem Mãe Coragem à medida que as mazelas que tomam a
personagem são produtos das relações sociais nas quais está imersa e não por responsabilidade
exclusiva das suas ações. O problema está justamente em confrontar os contrários, ou seja: vida
pessoal, vida pública e vida política.

Nesse sentido, o que guia a nossa leitura não são as características morais da Mãe Coragem
1480

ou seu comportamento psíquico, mas a procura do vínculo social da personagem; ver o circuito de
relações em que a personagem está inserida e as suas questões ideológicas. O que não elimina o
aspecto ético, que não coincide com a moral, vale não esquecermos.

Chamo atenção para o fato de Brecht também ser um autor que sofreu influência, sobretudo
do teatro político de Erwin Piscator. Este encenador alemão foi um dos principais colaboradores
de Brecht incluindo na cena, já na década de 1920, outras linguagens como o cinema e a exploração
de imagens. O que aparece como novidade foi experimentada no passado com muita eficiência.
Mas Brecht justamente deu novas dimensões ao cinema inserido-o na cena teatral. Inclusive porque
aspectos de narrativa propriamente teatral dialogam com estruturas ligadas à montagem
cinematográfica. Talvez, em Piscator, a presença do cinema tenha-se limitado a ilustrar e
complementar o palco, sem problematizá-lo tanto quanto fez Brecht. Uma hipótese para
retomarmos em outra oportunidade.

O teatro documentário que volta com muito fôlego aos palcos do Rio de Janeiro e de São
Paulo, hoje, foi uma criação de Piscator e tem influência de Brecht, numa linhagem de teatro
político no Brasil, que teve muita repercussão e ainda mostra vitalidade como o Teatro do
Oprimido de Augusto Boal.

Temos no texto de Zuolin (2008) questionamentos interessantes para refletirmos sobre a


grande contribuição de Brecht ao teatro contemporâneo, através do efeito de estranhamento, que
como sabemos busca evidenciar os efeitos de ilusão e o mecanismo de construção da linguagem
teatral. A percepção do efeito de estranhamento chegou até Brecht, segundo este texto, através do
Teatro Chinês. Procedimento que encontramos explicitamente utilizado por Glauber Rocha no
filme O leão de sete cabeças. Preferimos utilizar aqui “estranhamento” no lugar de “distanciamento”
para darmos a dimensão de colocar-nos no lugar que quebra das possibilidades dramáticas de
fruirmos uma cena de teatro ou fílmica.

A correção de algumas imprecisões culturais é um mérito do texto de Zuolin (Idem). Este


autor nos dá uma boa perspectiva sobre o debate da relação com as emoções num espetáculo,
chamando atenção para o fato do teatro de matriz oriental chinesa utilizá-las de forma reflexiva.
Temos nesta expressão a extinção da quarta parede, sendo a performance dirigida ao espectador.

A grande diferença é o banimento da ilusão na produção teatral. A absoluta centralidade do


ator também é uma referência importante aliada à plena utilização da ideia de arte integrada para o
teatro onde comparece com bastante ênfase também a imagem em movimento própria ao cinema
subordinada, como estranhamento, à cena.

É importante chamarmos atenção aqui para um diálogo já posto, na década de 1920, na


1481

relação entre teatro e cinema, por Eisenstein (op. cit.), quando nos propõe o relevo da montagem
como uma ação que já estava no teatro, desfazendo um equívoco de pensarmos o cinema como
novidade, e capaz de tomar o lugar do teatro como linguagem específica, pois o cinema é um
montagem da montagem, sendo o próprio pensamento como raciocínio artístico uma também
montagem. Portanto, a reflexão sem dissociar teatro e cinema, como linguagens que não se
excluem, pode ser compreendida pela característica do movimento no cinema que adquire uma
forma e um sentido específicos, sem, contudo, ser substituto do teatro.

O conceito de euritmia é tratado como uma novidade na leitura do texto de Zoulin (Idem),
sobretudo, a possibilidade do espectador saber identificar um vocabulário fixo de gestos e suas
relações simbólicas. O “selo do treinamento longo” e da “longa preparação” definidas por Brecht
são tributárias desta aproximação com o teatro chinês. Numa aproximação a Eisenstein (Idem)
percebermos na dialética entre forma e sentido as especificidades do movimento.

A descrição da Yaofa e o Bianlian, gestos eurítmicos, é primorosa para compreendermos


contribuições importantes de Brecht como, por exemplo, o conceito de gestus, que permite a
identificação ideológica e social das personagens no teatro dialético respeitando um procedimento
metonímico em que retomar-se uma certa totalidade por uma parte, mas também operações em
sinédoque, que toma a parte pelo todo num permanente trânsito entre ambas.

A auto-observação também é explorada como forma de autoestranhamento do ator, que não


permite a entrega total do espectador nem do próprio ator às emoções. Do ponto de vista do
treinamento do ator este suposto permite precisão absoluta dos gestos e um estado permanente de
consciência entre gesto e intenção.

Vejamos uma citação sobre a relação entre literatura dramática e performance teatral, nó
górdio até hoje no teatro ocidental:

Outro fator a ser considerado é contribuição da narrativa dramática escrita à


narrativa da performance teatral. Tudo o que pode ser apresentado na literatura
em forma escrita numa forma narrativa, pode também ser apresentado no palco
chinês. Isto deve-se a dois fatores: Primeiro, o teatro chinês tem gestos
simbólicos e estilizados que superam o limite da noção de tempo e espaço do
palco. Segundo, a escrita dramática chinesa tem um modelo estrutural articular.
No teatro chinês há partes bem determinadas; a auto- introdução, o aparte e o
bangchan, ou canto coral. Eles são incorporados na estrutura geral e introduzem
o espectador na história da peça de uma forma direta. (Zuolin, Ibidem: 17)

Há aqui uma contiguidade absoluta e uma abertura a narrativa permitindo ao ator uma
relação direta com a plateia. A procura do texto é demonstrar detalhadamente, com exemplos, o
funcionamento do teatro chinês se sua aproximação com a proposta de Brecht. No entanto não
1482

podemos chamar as narrativas chinesas de cena propriamente teatral. Brecht utilizou-se delas para
os propósitos do seu teatro, sendo a cena chinesa muito ligada a rituais religiosos. Os encenadores
modernos foram buscar no Oriente em e sociedades ditas “primitivas” uma espécie de cena das
origens. É o caso do próprio Brecht, Gordon Craig, Antonin Artaud entre outros.

O efeito de estranhamento aproxima estas duas perspectivas de trabalho teatral, mas há uma
especificidade que deve ser respeitada segundo o autor. Nesse sentido, o teatro chinês e o teatro
dialético de Brecht têm estéticas próprias, e tanto um como outro continuam ancorados, numa
compreensão interessada, em determinações históricas do oriente no primeiro caso e do ocidente
no segundo.

Seguindo a perspectiva de definirmos as propostas de um encenador como produto do seu


tempo e das questões históricas que enfrentou, recorto três grandes momentos que influenciaram
definitivamente o trabalho de Bertolt Brecht:

. O auge e a derrocada do II Reich, período da infância e juventude de Brecht;

. A República de Weimar e a ascensão de Hiltler ao poder;

. O nazismo e o exílio;

. A queda do III Reich, a Guerra Fria, o retorna à Alemanha e sua morte precoce.

Tendo estes marcos como referência, temos como material sócio-histórico para o trabalho
de Brecht vários paradoxos desse período de grandes conflitos e manutenção do estado de guerra
durante um largo período de tempo do século XX. Mas também é possível destacarmos a
multiplicidade de linguagens artísticas que estão circulando agora sob uma captura da indústria
cultural.

Nesse sentido, a experiência da morte, da miséria, o espetáculo da hipocrisia da sociedade


burguesa, a ostentação da riqueza, as demonstrações de poder bélico, a desordem social, a derrota
na guerra, a queda da Alemanha, a vergonha das atrocidades da guerra etc são os pontos de reflexão
para a produção do teatro dialético. Além de tudo isso, há a ideia de uma contribuição
revolucionária do teatro com vistas a uma sociedade socialista. Qualquer semelhança com a nova
fase do capitalismo, da qual somos sujeitos históricos, não é mera coincidência.

O Pequeno órganon para o teatro é uma espécie de síntese das propostas da estética do teatro
dialético. Composto por 77 comentários que dão conta da não-separação entre teatro e política e
tampouco distância alguma entre uma perspectiva e outra.

Ambas devem ser compreendidas na dialética entre rivalidades e aproximações em busca de


1483

possibilidades de por o espetáculo à crítica imediata do público, que não são tomados a priori e sim
numa construção permanente entre proposta teatral e recepção.

Converter e rejeitar ao próprio uso as convenções teatrais numa caminho contrário ao


aristotélico, ou seja, tratar a emoção de outra perspectiva incluindo-a como ponto de referência
reflexiva, crítica e dialética e a atualização da tradição inaugurada pela poética brechtiana.

Vejamos um excerto:

A estética, este legado de uma classe então depravada e parasitária, encontrava-


se em estado tão lamentável que um teatro que escolhesse livrar-se do thaëter
logo lucrava, tanto em reputação como em liberdade de ação. (Brecht, ibidem p.
182).

O comentário 35 é primoroso:

Necessitamos de uma teatro que não nos proporcione somente as sensações, as


ideias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico
das relações humanas ( em que ações se realizam), mas também que empregue e
suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação deste mesmo
contexto. (Brecht, ibidem, p. 142).

Notemos que o não aristotelismo diz respeito a um desmonte da estrutura da ação


encadeada e tomada como um todo coeso em torno da lógica de causa e efeito, além do tempo
cronológico e uma teleologia não utilizada e mesmo duramente criticada por Brecht.

Nesse sentido, o teatro proposto por Brecht não encerra-se em si mesmo - é um mecanismo
de conscientização e de propor mudanças e transformações na sociedade capitalista e a leitura da
peça Mãe Coragem não é a crônica de uma guerra comum, mas um cenário que destaca a nobreza
humana imerso na adversidade e admiravelmente entrosa elementos probantes das condições
sociais e os meios artísticos. (Magaldi, 2008: 295).

Diante disto, o efeito de estranhamento é indicado pela distância no tempo e no espaço.


Acompanhando ainda Magaldi (Ibidem), a dimensão temporal da peça transcorre em anos de quadro
a quadro e a narrativa é mantida no passado. A norma tradicional, dentro de uma estrutura
tradicional de escrita, da unidade de cenário é quebrada e acompanha-se indicações didáticas para
sobrepor a suspensão de tempo, sendo que Brecht concluí abruptamente a cena.

Enfim, pela leitura de Mãe Coragem compreendemos que a vida, nas suas contradições
relacionais é muito mais atípica do que propõe uma leitura dramática que procura tipicidades
deixando claro que a nossa função/existência social coloca-se definitivamente em contradição as
nossas subjetividades individuais.
1484

Nosso interesse é dialogarmos com a perspectiva acima em aproximação à proposta de


Glauber Rocha, em O leão de sete cabeças, para percebermos vinculações entre teatro político,
historicidade africana e escrita da História da África a partir de estruturas epistemológicas europeias
e periféricas e a da própria dinâmica cultural africana sob o domínio da Guerra. Portanto, um
diálogo interessado entre teatro político, história e cinema em aproximações já teorizadas por
Brecht, por Eisenstein e por Glauber Rocha.

(III) Leão de Sete Cabeças

Já partimos de referências singulares, uma vez que “O Leão de Sete Cabeças” não teve
um lançamento comercial de grande escala, mas exibições esporádicas sem, no entanto, alcançar
repercussão, guardando até hoje sua potência de ser uma chave interpretativa de posicionamentos
políticos anti-imperialistas e registro de memória de uma situação de opressão popular absoluta em
território africano. Portanto, ainda resguarda o caráter de linguagem artística indomável do teatro
pela indústria cultural e do cinema como uma desagregador da lógica da indústria se tomado com
revelador de forma e sentido, nos termos de Eisenstein (2002), na sua composição.

Outra novidade é a retomada, já feita em Deus e o Diabo na Terra do Sol, da utilização da


população local como recurso narrativo de composição fílmica, dando relevo à força brutal da
colonização, da empresa capitalista, da alienação do povo e do início de um processo revolucionário
em relação direta com a ação eclesiástica no continente africano. O que aproxima esta produção
fílmica dos elementos de formação de Valentim Mubimbe como intelectual entre o singular e o
universal, definindo em África “modelos” próprios de ser africano conforme estudado por Motta
(Idem).

Há referências de que Glauber fez diversos pronunciamentos revelando influência de


Bertolt Brecht e Sergei Eisenstein para realização deste filme, por exemplo, em Xavier (2004).
Nesse sentido, “O Leão de Sete Cabeças” faz parte de um projeto de vocação revolucionária, que
pretende mostrar o confronto geopolítico do capitalismo que envolve conflitos étnicos, de classe
e transnacionais.

Mas também orienta possibilidades de fugirmos ao aprisionamento à indústria cultural das


nossas produções artísticas. No teatro revelando o ilusionismo das formas e reinventando o
conteúdo em conjunto com o espectador, no cinema implodindo o movimento ao passo da
reestruturação da montagem com materiais ao mesmo tempo ficcionais e documentais no interior
e nas junções dos planos no filme.
1485

Por outro lado, não temos no filme uma visão fragmentária do conceito de etnia, conforme
problematizado por alguns autores. Num mapeamento interessante da noção de etnia temos:

Poder-se-ia afirmar, com facilidade, que o denominador comum de todas essas


definições da etnia corresponde, em última instância, a um Estado-Nação de
caráter territorial subvalorizado. A distinção com base na depreciação era, de
facto, uma preocupação do pensamento colonial e assim como urgia
<<encontrar o chefe>>, era igualmente necessário identificar entidades
específicas no seio do magma de populações que habitavam os países
conquistados. (Amselle, 2014: 30)

Podemos seguir um caminho de leitura fílmica que dá relevo as formas coloniais de


classificação não caindo em formas vazias, mas resguardando, no contexto da guerra, sua função
social e as situações sociais relacionais entre europeus e africanos. Portanto, este filme Glauber
Rocha nos faz mergulhar numa dimensão política de enfrentamento de problemas sociais que traz
no seu lastro o compromisso de intervenção do poético como invenção e mergulho no imprevisto
como experiência instauradora, ruptura com o senso comum, com os limites e convenções do
cinema “velho” e da própria invenção de África.

Temos a primeira obra fílmica tricontinental composta nesse trabalho, montado de forma
emblemática, que retoma os investimentos experimentados em “O dragão da Maldade” e “Terra
em Transe”. Diz Glauber: “Planejo filmar O Leão de Sete Cabeças e A morte de D. Quixote na Espanha.
Penso em abandonar esses projetos para filmar América (…) (Rocha, 2004: 162).

Felizmente o filme foi roteirizado e o projeto não foi abandonado. Conta-nos Glauber:

sentado numa latrina, escrevia planos de O leão de sete cabeças e descobri que
escrevia os planos como um compositor escrevendo uma partitura. (…) A
montagem é uma dialética de estrutura comparada à poesia. Não é o clima, mas
a montagem das palavras que são a superestrutura do clima. (Ibidem, 2004,
p.164).

As análises especializadas chamam atenção para o fato da interpretação de “O Leão de Sete


Cabeças” ser guiada por uma proposta do teatro dialético de Brecht, e a sua mise-en-scene explorar
a linguagem teatral, sobretudo composições do teatro de bonecos. (Silva, S/D). No entanto, nos
falta uma familiaridade com essa literatura e tempo para propor alguma interpretação nessa direção
agora, neste breve texto indicativo de problemas.

Como síntese: “O Leão de Sete Cabeças” narra a desorientação de um padre jesuíta que vagueia
pelo Congo Belga, recém libertado do jugo colonial. Recitando o Evangelho captura um
guerrilheiro comunista chamado Pablo. O religioso entrega o refém aos representantes de potências
do exterior, que dominam os nativos. O grupo é formado por um comerciante português, um
1486

agente americano e um mercenário alemão. Os três servem à misteriosa mulher Marlene, apelidada
pelo padre de "besta da violência". O trio coloca um presidente fantoche para continuar a explorar
o país, mas Pablo é libertado pelo líder nativo Zumbi e retorna à luta armada ao mesmo tempo,
que o padre captura e crucifica Marlene.

Do ponto de vista do espectador e interessado numa visão crítica do cinema, pude ver
questões políticas abordadas de forma transgressiva, uma poética que indica uma ação contra o
capitalismo e suas diversas fases de desenvolvimento, portanto o que é tratado na África pode ser
transposto sem dificuldade para o Brasil em intertextualidade com outros filmes de Glauber Rocha
e num sentido mais estrutural com questões que envolvem capitalismo, exploração e guerra como
tematizados por Brecht.

O filme nos faz pensar também num inconsciente político, que teima em reproduzir
condições sociais a serem superadas, mas que ainda se sustentam em perspectivas epistemológicas,
neste caso, também políticas, próprias de contextos europeus. Nesse sentido, trajetórias que
demonstram os comprometimentos históricos e ideológicos com a reprodução de um lugar unitário
de discutir os processos de autodefinição identitária em África, como a do intelectual Valentin
Mundimbe, intelectual fortemente ligado às artes e propositor de uma compreensão de África para
além de uma perspectiva mitificada, que encontrava-se na Europa no momento das filmagens de
O Leão de Sete Cabeças, são interessantes para reavaliarmos na construção do saber histórico novas
formas poéticas da política.

Por outro lado, ao recorre-se de uma proposta de estranhamento, de problematização da


composição narrativa em planos não harmônicos e de fundir ficcional e documental num mesmo
tratamento artístico o recorte político está sobremaneira assinalado em “O Leão de Sete
Cabeças”, que nos provoca a não esquecermos com compromissos críticos e mudança social
reivindicada pelo teatro político de Brecht.

Mas a única formulação mais diretiva só pode ser feita pela fala de Glauber: “O Leão de
Sete Cabeças” é sobre as lutas de libertação da África contra o colonialismo imperialista,
sobretudo o português, o francês e o inglês.” (Ibidem, 2014: 371).

Nesse sentido, podemos também nos espelharmos nessa historicidade capturada por esse
filme, que faz ainda pulsar dentro de nós indignação com a geopolítica do capital - ainda hoje.
Contudo, nos instiga a discutirmos de forma problemática e translocal pedagogia do teatro,
produção cinematográfica e história da África numa chave variada de referências.
1487

(IV) Considerações finais

Certamente seria possível novas sínteses de “O Leão de Sete Cabeças”, numa inspiração
do cinema novo, diante da continuidade da atrocidade capitalista na República do Congo, que nos
últimos anos atualizou assassinatos de presidentes, guerras étnicas e mantém sua população
mergulhada em extrema exploração do trabalho e na pobreza absoluta. Só que diferente de 1969
não temos boas ideias na cabeça, apesar de muitas câmeras na mão. Tampouco um reatualização
do pequeno Órganon em novas chaves de diálogo com a lógica contemporânea no século XXI do
capitalismo.

Porém, Serguei Eisenstein, Bertolt Brecht e Glauber Rocha são intelectuais e artistas
interessantes para oportunidade de inserção de temáticas africanas, portanto de exploração
absolutas, em chaves translocais, nos termos de Mundimbe, na formação de novos encenadores e
cineastas em exercício de cena no cinema alimentado pelo teatro e no teatro alimentado pelo
cinema, em busca da construção de um olhar comprometido com a África em termos não
eurocêntricos, mas translocais, portando ao nosso lado, numa aposta de construção de
conhecimentos com e a partir de africanos.

Filmografia

O Leão de Sete Cabeças [Der Leone Have Sept Cabeças] (Brasil/Itália/França, 1969)
Direção: Glauber Rocha
Roteiro: Gianni Amico e Glauber Rocha
Elenco transnacional: Rada Rassimov, Giulio Brogi, Gabriele Tinti, Jean-Pierre Léaud, Aldo
Bixio, Baiack, Reinhard Kolldehoff, Hugo Carvana, Segolo Dia Manungu.
Duração: 95 minutos

Referências Bibliográficas:

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e M´Bokolo, Elikia. Pelos meandros da etnia: Etnias, tribalismo e Estado em África. Lisboa: Edições
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1488

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Carvalho Filho, Silvio de Almeida e Nascimento. Washington Santos. Intelectuais das Áfricas.
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Santeiro, Sérgio. Anotações de Aula. Disciplina (Laboratório de Dramaturgia em Artes Cênicas).


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Xavier, Ismail. Prefácio. In: Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naify,
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Zuolin, Huang. Um acréscimo ao texto de Brecht: o efeito de estranhamento na interpretação do Teatro


Chinês. Curso de Direção Teatral: UFG, 2008.
1489

“Amor às instituições livres”: Atuação do magistrado José Antônio


de Pereira Ibiapina em Campo Maior (Ceará, 1834-1835)

Noemia Dayana de Oliveira*

Resumo: o objetivo deste estudo647 é analisar a atuação do primeiro Juiz de Direito de Campo
Maior, atual município de Quixeramobim/CE, questionando o avanço das instituições modernas
no Brasil baseadas na dominação legal-racional - uma das classificações de dominação legítima de
Max Weber (2014) -, cuja validade estava pautada na legislação constitucional de 1824. A criação
desta comarca em 6 de março de 1833 coincidiu com a nomeação de José Antônio Pereira Ibiapina
para primeiro magistrado, recém-formado pela Faculdade de Direito de Olinda, professor de
Direito Natural pela mesma instituição, em que as influências intelectuais do jusnaturalismo de
John Locke e o liberalismo político de John Stuart Mill eram evidentes. Partindo disso, analisaremos
as correspondências trocadas entre ele e o presidente da província na época, José Martiniano de
Alencar, com base nos pressupostos teórico-metodológicos da história conceitual do político,
oferecidos por Pierre Rosanvallon (1995). Esta, por sua vez, é uma história política porque busca
os “nós históricos” em que as racionalidades políticas e sociais se debruçaram para solucionar
questões (institucionais ou não), revelando que a esfera do político é o lugar da articulação entre o
social e as suas representações. Além de que é uma história conceitual, porque tais racionalidades
se amarram e se organizam em torno de conceitos para legitimar determinadas situações sociais.
Para tanto, discutiremos conceitos como instituição, constitucionalismo e mandonismo local, que
norteiam o diálogo entre o magistrado e o chefe do executivo na província cearense.

Palavras-chave: Ibiapina, magistrado, Ceará provincial, institucionalismo, mandonismo local.

Considerações iniciais

A década de 1830 no Brasil comportou diferentes episódios que incidiram na maneira de


agir política e judicialmente. Menos resultante da separação entre Brasil e Portugal, essas
transformações foram operadas mais expressamente após a abdicação de D. Pedro I e a alteração
da Constituição de 1824, cuja Lei era a de nº 16 de 12 de agosto de 1834. Nesta última, a saga pela
autonomia das províncias frente a centralização monárquica, revelou conflitos entre os poderes
locais, bem como a fragilidade político-administrativa do Antigo Regime. Para tanto, as reformas
operadas nesse momento se tornaram substanciais para manter a ordem estabelecida sobre o
trabalho escravo, a exclusividade na vida política e a unidade territorial do país.

* Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Bolsista CAPES. E-mail: noemia.hist@gmail.com
647 Uma versão parcial desse artigo foi apresentada no I Seminário Nacional de História dos Sertões, realizado em 2018,

pela Universidade Regional do Cariri campus Crato/CE.


1490

Não é à toa que a efetivação dos cursos de Direito no Brasil também é desta época.
Localizados em São Paulo (no Largo de São Francisco) e Olinda (no Mosteiro de São Bento, tendo
a sede própria somente na segunda metade do XIX), as elites envolvidas nesse projeto, apesar de
interesses divergentes, pretendiam costurar as linhas institucionais e administrativas num modelo
de Estado moderno, cuja centralização do poder assumia características diferentes em cada
localidade. Diante disso, nada melhor que as Faculdades de Ciências Jurídicas e Sociais para formar
mão-de-obra especializada e pronta a colaborar com tal empreitada. O que não aventava entre esses
jovens – maioria filhos (ou algum grau de parentesco) de donos de terra – era a discrepância entre
os manuais e a prática social.

Dito isto, o nosso objetivo nesse estudo é analisar a atuação do primeiro juiz de direito de
Quixeramobim, José Antônio de Pereira Ibiapina, frisando os limites institucionais modernos no
Brasil, a partir de conceitos como instituição, constitucionalismo e mandonismo local. Para isso,
tratamos os conceitos a partir das contribuições de Nadir Mendonça (1988) e de Pierre Rosanvallon
(1995), que serão apresentados na primeira sessão desse estudo. Posteriormente, intercalamos os
significados dos conceitos com a experiência do Ceará oitocentista, e por fim, avaliamos como o
magistrado respondeu as questões judiciais e policiais suscitadas durante a sua atuação na vila.

Como pensamos o conceito?

O estudo está centrado no uso dos conceitos pelo historiador, a partir da significação, da
classificação e dos perigos de distorções. Para tanto, entendemos que “os conceitos são construções
lógicas, estabelecidas de acordo com um quadro de referências. Adquirem seu significado dentro
do esquema de pensamento no qual são colocados” (Mendonça, 1988, p. 17).

Nesse sentido, aqui o sistema teórico aparece com um sistema conceitual, que é entendido
como uma representação resumida de um conjunto de fatos. Nesse sentido, a maioria dos conceitos
utilizados em História são construções conceituais (elaborados a partir de conceitos menores), isto
é, um conjunto de fatos que se encontram e constituem um fato complexo. Por esse motivo,
devemos pensar o conceito a partir da sua compreensão e da sua extensão: o primeiro porque
possui propriedades e relações que definem o conceito; já o segundo, se refere a objetos ou seres
aos quais se pode aplicar o conceito. Diante disso, quanto menos compreensivo o conceito, maior
a sua extensão e vice-versa.

Com isso, não pretendemos reduzir a história a enumeração de conceitos como construções
intelectuais capazes de refazer os fatos históricos. Ao contrário, preocupada em estabelecer a
relação entre os fatos, temos a pretensão de chegar às generalizações a partir das particularidades
1491

políticas. Por isso, em diálogo com Rosanvallon (1995) entendemos que a história política é o lugar
de articulação entre o social e sua representação, e mais, que a história conceitual é aquela que ao
redor dos conceitos se busca entender determinadas situações e seus ativadores. Essa proposta é,
portanto,

O objetivo da história conceitual do político é a compreensão da formação e


evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos sistemas de representações que
comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais conduzem
sua ação encaram seu futuro (Rosanvallon, 1995, p. 16).

Partindo disso e buscando entender o estabelecimento das instituições modernas no Brasil,


ou mais especificamente, o estabelecimento das instituições jurídicas nas mais distantes localidades
do país, evidenciamos a trajetória de uma racionalidade política – o primeiro juiz de direito de
Quixeramobim – e como ela conduziu a sua ação política em resposta as condições do presente
vivido, com vistas a encarar o futuro de um país recém-independente. Para isso, selecionamos sete
correspondências oficiais trocadas entre o magistrado José Antônio de Pereira Ibiapina e o
presidente da província do Ceará, José Martiniano de Alencar, que foram questionadas a partir de
do método compreensivo – “que se esforça por compreender uma questão re-situando-a em suas
condições efetivas de emergência” (p. 17) – proposto por Rosanvallon (1995), que são:
1. Como os atores elaboram a compreensão da situação? Aceita ou recusa?
2. Quais eram os impasses e as possibilidades vivenciadas?
3. Quais as respostas oferecidas?

Discutindo os conceitos
a) Mandonismo Local

O conceito de mandonismo local aparece implícita ou explicitamente em diversos estudos


da sociologia brasileira, em especial no estudo O mandonismo local na vida política brasileira de Maria
Isaura Pereira de Queiroz (1969). Mais amplo e mais complexo que o coronelismo, que foi
associado e/ou confundido com o mandonismo, essa característica que advém da dominação
tradicional durante a colonização e permanece até os dias de hoje se confunde com o próprio
movimento de formação da cidadania (Carvalho, 1997). Nesse sentido, “o Ceará tem sido apontado
como um Estado paradigmático para se entender o fenômeno do mandonismo local ou do domínio
oligárquico na vida política brasileira” (Barreira, 1999, p. 37).

Isso porque a posição periférica do Ceará em relação aos interesses econômicos e


geopolíticos dos portugueses refletiu na condição de capitania anexa à Pernambuco até 1799. Tal
1492

fato incidiu diretamente sobre a organização administrativa, isto é, a “colonização tardia” e a


fundação de vilas em um curto espaço de tempo se comparado a realidade de outras localidades.
Só com o avanço expressivo da atividade da pecuária que essa capitania passou a vivenciar o efetivo
estabelecimento da autoridade e da soberania lusitana, através das vilas, que se tornaram um
verdadeiro elo de comunicação entre a colônia e a metrópole (Jucá Neto, 2012).

Essas criações além de efetuarem a centralização administrativa do Estado português,


promoveram o reordenamento espacial do Ceará, delimitando os núcleos e os termos/distritos.
Por isso, as vilas foram fundadas em pontos estratégicos, nos quais se pretendia fortalecer a
produção, a reprodução e a circulação da pecuária, revelando a lógica do cruzamento das estradas
coloniais, bem como a localização próxima da foz dos principais rios.

A vila que nos interessa (Quixeramobim), por exemplo, “[...] estabeleceu-se no cruzamento
das estradas que vinha de Granja, Sobral, Crateús, de Santa Quitéria, e da Paraíba” (ibid., p. 143).
Apesar da inauguração desta só ocorrer em 1789, ela já havia sido matéria de preocupação em Carta
Régia de 22 de junho de 1766, no que diz respeito aos “homens que nos sertões da capitania de
Pernambuco se achassem vagabundos ou em sítios volantes fossem obrigados, sob penas severas,
a escolher lugares acomodados para viverem juntos em povoações civis” (Oliveira, 1890, p. 274).

Por esse motivo, a criação das vilas no Ceará, não pode ser entendida tão-somente pelo
espectro do fortalecimento administrativo do Estado português na colônia, bem como do processo
produtivo da pecuária nos sertões. Mas, em conjunto com essas afirmações, deve-se apontar a
solução para combater a violência, característica que se tornou comumente relatada por
autoridades, viajantes, entre outros, que associavam o baixo desenvolvimento da capitania com
esse e outros aspectos (ignorância, estupidez, ociosidade e vícios) (Vieira Júnior, 2002).

Para tanto, o comportamento violento entre os cearenses recebia justificativa pelas


autoridades como resultante da aridez do solo e das estruturas judiciais, incapazes de punir. Além
disso, a geografia facilitava a fuga e a dispersão dos criminosos, que viviam em conivência com a
população local. Essas fragilidades institucionais atravessaram o processo de independência e
chegaram no funcionalismo público, especificamente nos postos administrativos, em formato de
troca de favores, que caracterizam as relações sociais na vida política do recém-fundado país. Desse
modo, entendemos o mandonismo local como

Refere-se à existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder.


O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele
que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da
terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de
1493

ter livre acesso ao mercado e à sociedade política. O mandonismo não é um


sistema, é uma característica da política tradicional (Carvalho, 1997, s./p.).

Longe de ser um movimento datado, o mandonismo local é o que dá a tônica da política


no Brasil desde a dominação portuguesa. Nesse sentido, a colonização no Ceará é expressiva, pois
que só encontrou subsídio no sistema de sesmarias – lotes de terra concedido pelo Estado
português à um beneficiário para cultivo da terra e/ou criação de gado –, possibilitando aos
sesmeiros não só o recurso estratégico e exclusivo da terra, como também tornando-os pioneiros
em ocupar “postos militares e funções de ordenanças nas câmaras das vilas fundadas” (Jucá Neto,
op. cit., p. 135).

Tal conceito tomado como representação de vários fatos políticos e, consequentemente, a


reflexão dos sujeitos acerca do presente vivido e a elaboração de respostas num horizonte de
expectativa (Koselleck, 2006), possibilita que percebamos que este perpassou a história político-
administrativa da colônia, sobressaindo ao processo de independência, que como veremos nos
tópicos seguintes, esteve assegurado do “perigo da representação popular”. Por isso, a longevidade
aos favores políticos prestados por determinado mandão local, típico da dominação tradicional,
que descreveu o magistrado da vila de Campo Maior nas correspondências oficiais endereçadas ao
presidente da província.

b) Instituição

A construção dos Estados nacionais durante o século XIX exigiu que as elites internas, em
grandes ações conjuntas, operassem em maior ou menor grau, uma nova ordem social, jurídica e
política. No Brasil, esse processo envolveu uma representação de como a sociedade deveria ser
organizada e uma justificativa para práticas recorrentes, que teve como pano de fundo aquilo que
Lopes (2003) denomina como movimentos culturais que empolgaram os juristas da primeira
metade do século XIX – o constitucionalismo, a ilustração e o direito natural moderno. O primeiro
é o que nos deteremos nesse estudo, embora não consigamos pensá-lo sem que exista uma reflexão
conjunta com os demais. Para descrevê-lo, primeiro é preciso entendermos o quê e como ele se
tornou possível.

Para a viabilização do Estado nacional do Brasil foi preciso a ação em conjunto de vários
sujeitos com intenções conflitantes, que ao serem compartilhadas criaram para além dos objetos
discutidos, instituições, que é algo que só existe por meio de regras, admitindo uma
intencionalidade compartilhada, que se objetiva e se constitui em normas (ibid.). Para tanto,
entendemos que as
1494

Instituições são restrições humanamente concebidas que estruturam as


interações políticas, econômicas e sociais. Elas constituem tanto em restrições
informais (sanções, tabus, costumes, tradições, e códigos de conduta), quanto em
restrições formais (constituições, leis, direitos de propriedade) (North apud
Cavalcante, 2014, p. 380).

Afirmando o caráter objetivo, real e efetivo das instituições, essa discussão que estamos
enfatizando tem origem mais contemporaneamente nas discussões da filosofia do discurso e da
linguagem empreendida por Wittgenstein. Na esteira dessa compreensão, entendemos que as
instituições forjadas com a independência e, reformadas a partir da Regência, com o Ato Adicional
(Lei nº 16 de 12 de agosto de 1834), não são apenas intenções ou estados subjetivos. Ao contrário
disso, a realidade constituída após 1822 foi constituída por interesses conflitantes, cujos juristas e
magistrados desempenharam papel central (Lopes, op. cit.).

O problema é que as “instituições livres” do Brasil enfrentariam os resquícios da dominação


tradicional não só nas relações sociais, através da troca de favores própria do mandonismo local,
mas principalmente na elaboração de um direito nacional. Isso porque, no Brasil o direito não
poderia ser especificamente nacional, já que até a independência não existiam escolas de direito
aqui, o que levou o país a adotar o direito comum as ordenações do reino até a segunda metade do
século XIX. Apesar disso, o início da vida independente contou com elementos modernos, como:
reconhecer que o direito é um conjunto de normas; esse direito, portanto, é um todo integrado e
hierarquizado, cujos princípios devem ser tomados como universais; e, por fim, a legislação deve
estar acima dos costumes.

E “como não se fazem as coisas do cotidiano do dia para a noite, os primeiros anos de vida
independente foram de convivência com um ordenamento complexo, que guardava dispositivos
estrangeiros (portugueses) e coloniais (ou seja, pré-liberais)” (Lopes, 2003, p. 200). Ou seja, em
perfeita comunhão com esse ordenamento complexo, o Estado nacional foi ainda sustentado
através de um equilíbrio de interessantes conflitantes, que desenharam interesses e necessidades
gerais do país a partir das garantias de privilégios e manutenção de status quo dos grupos dominantes.

Segundo Assis (2018), as instituições que estamos chamando aqui de “livres” são na verdade
espaços criados (leia-se conjunto de normas) para manter e fazer crer a concepção de uma ordem
nacional, operacionalizando e produzindo leis que atendem somente a determinados interesses,
que disputam o monopólio do poder sobre determinado território e conjunto da população. Mais
do que nos primeiros anos de vida independente, foi nas Regências que a disputa entre as diversas
províncias se intensificou. Nesse momento, voltava à tona o problema mal resolvido da
Constituição. Veremos a seguir.
1495

c) Constitucionalismo
Antes de discutirmos a efetivação de uma instituição moderna no Ceará, como a criação da
comarca a partir da atuação do seu primeiro juiz, decidimos entender como foi o processo de
elaboração de um conjunto de leis (a Constituição de 1824) até a efetivação delas. Por esse motivo,
optamos por desenvolver a discussão a partir do conceito de constitucionalismo, que é encarado
aqui como um processo contrarrevolucionário popular. Isso porque ele foi delineado a partir da
garantia de direitos individuais, um corpo legislativo (Assembleia Geral) e um poder judicial, que
afastou de si a soberania popular.

Nesse sentido, “trata-se do constitucionalismo que propõe formas limitadas de


representação política, o liberalismo – se se pode dizer assim – de Kant e Benjamim Constant”
(Lopes, 2003, p. 202). Ou seja, a representação popular que é entendida aqui como a Assembleia
Geral, estaria limitada por estar ao lado de um corpo conservador (o senado vitalício), além da
representação nacional encarnada em Poder Moderador que tudo limitava e/ou normatizada
através das ações do imperador.

Diante disso, as alternativas constitucionais limitadas pelas ações pessoalizadas da estrutura


política, como também pelos resquícios institucionais do período colonial, acabaram reverberando
na adoção de um constitucionalismo próximo ao francês, isto é, que ao invés de instituir um novo
Estado (como o fez os Estados Unidos, solapando resquícios do período precedente), o
constitucionalismo brasileiro deu continuidade a um sistema cujo arranjo administrativo e jurídico
já existia anteriormente. O resultado disso foi o direito constitucional apesar de ter sido
influenciado pelo direito natural, este não implicou em democracia – liberdades individuais
garantidas pelo poder soberano da representação popular –, mas uma Constituição com tons de
“tutela” sobre a nação.

Isso quer dizer que as reformas administrativas (e não as rupturas como se observou em
outros países) empreendidas no Brasil além de terem sido operadas de cima para baixo, limitou o
sistema de poder à Assembleia Geral e ao Poder Moderador, que em nome da prudência entregou-
se ao conformismo e a conservação (Lopes, 2003). O resultado foi os magistrados obedecendo à
vontade (da Assembleia Geral e do Poder Moderador), de modo a aplicar a lei, que “não pode ser
a simples expressão dos interesses, como diziam os constitucionalistas do início do século XIX.
Deveria ser a expressão do universal, do ponto de vista de qualquer um” (ibid., p. 215). Eis aí o nó
górdio enfrentado por Ibiapina, o qual passaremos a examinar agora.
1496

“Só a lei pertence punir o crime”

Baseado nos conceitos que norteiam esse estudo, apresentados acima, passaremos agora a
analisar a ação do magistrado em questão.

José Antônio de Pereira Ibiapina (1806-1883) era filho de cearenses, bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Olinda e atuou como deputado geral pela província
de nascimento na terceira legislatura do império, ou mais especificamente, nos anos de 1834 a 1837.
Nesse mesmo período, e acumulando os cargos político e jurídico, ele foi nomeado o primeiro Juiz
da Comarca de Santo Antônio de Quixeramobim (ou ainda Vila de Campo Maior). Para tanto, a
carta imperial que o nomeou é de 13 de dezembro de 1833, embora só tenha tomado posse um
ano depois.

Na chegada, logo avisou ao presidente da província que “no dia 10 deste corrente mês
tomei posse da vara de Juiz de Direito desta comarca. Pronto, portanto, estou para obedecer às
ordens de V. Exa. e executar as leis na parte que me toca” (Ibiapina, 14 de dezembro de 1834).
Para melhor entendermos essa comarca e, consequentemente a atuação do seu primeiro
magistrado, é preciso pontuarmos a extensão territorial dela, que compreendia além da sede, os
julgados das vilas de Maria Pereira (hoje Mombaça) e São João do Príncipe (hoje Tauá), além das
povoações de Quixadá e Boa Viagem (Araújo, 1995).

É importante ressaltarmos também que o presidente de província quando da nomeação do


magistrado era José Martiniano de Alencar, padre e senador pelo Partido Liberal. Sua trajetória
política remonta da Revolução dos Padres, passando pela Confederação do Equador, onde lutou
ao lado do pai e do irmão do magistrado – Francisco Miguel e Alexandre Raimundo Ibiapina,
respectivamente. Apesar disso, as ações como chefe do executivo na província pouco ou nada se
relacionam com o passado de Martiniano. Não é à toa que como presidente ele optou pela
conciliação de interesses, amenizando o discurso combativo experimentado outrora648.

Num primeiro instante, o contexto intelectual e pessoal em comum de Ibiapina e


Martiniano poderia aproximá-los na representação – reflexão que a sociedade faz de si mesma
(Rosanvallon, 1995) –, isto é, construindo respostas iguais para situações-problema
compartilhados. Ao contrário disso, verifica-se respostas diferentes para os problemas jurídicos e
policiais relatados pelo magistrado sobre a comarca de Quixeramobim. Esta, por sua vez, era
marcada pelas relações pessoais entre um mandão (que se alternava entre as famílias Araújo, Maciel
e Mourões) e o resto da população subordinada pela violência física e simbólica.

648 Sobre isso ver a dissertação de mestrado de Alencar (2014), especialmente o capítulo 3.
1497

Voltando a chegada do magistrado na comarca, ele estava imbuído pela representação de


que a lei está acima dos costumes, podendo sobrepor-se a eles e revogá-los (Lopes, 2003), por isso
se apresentava convicto de que só um conjunto de normas, expressão do universal, poderia punir
a violência dessa comarca. Porém, os impasses da estrutura o limitam e ele elabora a sua primeira
compreensão acerca da comarca:

[...] De novo faço ver à V. Exc. que o estado atual daquela parte desta comarca é
deplorável. Por cartas particulares sei que de Outubro para cá se tem perpetrado
oito assassinos, e que o último, de que faz menção o ofício do Juiz de Paz, deixa
temer resultados gravosos a não empregarem-se quanto antes meios enérgicos,
para que todos os homens daquele termo conheçam que há um poder superior
aos caprichos, e que só a lei pertence punir o crime. Convencido que é do meu
dever remover a triste posição em que se acham os povos daquele termo ou
município, tenho resolvido partir já para Maria Pereira, e logo depois para S. João
do Príncipe (Ibiapina, 30 de dezembro de 1834).

Entre os meses de outubro e dezembro, segundo o magistrado, já haviam ocorrido oito


assassinatos, cuja violência “que a cultura deprecia e/ou aceita é marcada por uma historicidade,
tornando-a dependente dos tempos e das circunstâncias, dos próprios hábitos sociais de rebeldia
ou conformidade” (Vieira Jr., 2002, p. 13). Por isso, percebemos que as relações sociais e as
condições materiais que tornavam essa violência possível são àquelas relacionadas a disputas pelo
poder das famílias Araújo, Maciel e Mourão, que possuíam o recurso estratégico – o latifúndio – e
consequentemente submetiam os despossuídos aos seus jogos de disputa. A solução seria o
institucional empregando meios enérgicos para desconstruir os “caprichos”, isto é, a aplicação das
leis – que teria o princípio “universal” e, portanto, acima de interesses particulares e capaz de
possibilitar outra realidade para a comarca.

Na esteira disso, o mesmo magistrado vai até o julgado de Maria Pereira e relata os limites
estruturais para efetivar o júri popular:

[...] O que tenta perpetrar o crime diz com todo o atrevimento: Zombo das leis
e das autoridades, porque tenho em meu favor em tal parte o Capitão F.
Convencido disto mata a seu semelhante, procura a casa do Capitão F., que é em
outro termo; este recebe o assassino em sua casa, e diz para todos o ouvirem:
Venham cá tira-lo!!! O Capitão F. é um rei do lugar, ligado por parentesco com
as pessoas mais ricas e de representação, etc. E vão tirar o criminoso das mãos
do Capitão F. Os Juízes de Paz que, ou são parentes, dependentes do Capitão F.,
ou se não querem comprometer, dormem profundo sono sobre as lágrimas da
infeliz viúva, que pede a punição do que matou o seu esposo, o qual vive
publicamente na casa do Capitão F. Irritam-se os ânimos contra estes desprezos,
não se confia mais nada da lei, e nem das autoridades, armam-se uns poucos, e
aqui temos novos assassinos! Veja V. Exc. que remédio a isso se pode dar! A
imoralidade, a ignorância, causas fatais de todos esses males, só podem ser
curadas por longos anos. O meio que nos resta é em todo o sentido improfícuo;
porque está de todo dependendo da rigorosa execução das leis: que gente temos
1498

para isto? O mal tem contaminado tudo; e como para executar as leis se necessita
de lançar mão de gente do país, eis aqui aonde está o nó-gordio! Corsário não atira
em corsário (Ibiapina, 30 de janeiro de 1835).

A experiência do júri popular – uma saída institucionalizada para julgar os crimes – em


Maria Pereira (atual município de Mombaça), onde Ibiapina apresentou o Código do Processo
Criminal aos participantes. Essa participação exigia a alfabetização e uma certa condição financeira,
embora não estivesse diretamente relacionada as intenções da lei, uma vez ao passo que o
magistrado apresentou os dispositivos legais, associava-os as limitações da estrutura. O fato é que
os júris, de uma forma ou de outra, adquiriam alguma noção do papel da lei (Carvalho, 2018).
Entretanto, as soluções institucionais e legalistas apresentadas para julgar os crimes e punir os
assassinos, esbarravam na dominação tradicional, que ligava os mais ricos aos mais pobres em
relações de parentesco. A execução da lei, portanto, estava condenada aos interesses dessas pessoas.

A partir daí as concepções institucionais de Ibiapina e do presidente da província resultam


em tensões. Apesar de ter passado apenas três meses no exercício da magistratura, as ações
empreendidas por ele esbarraram, como se vê na elaboração anterior, nos limites estruturais
caracterizado pelo mandonismo. A tentativa de criar um júri em Maria Pereira foi exitosa, porém
no termo de Tauá (ou São João do Príncipe) não foi possível. E sendo Martiniano o chefe do
executivo, o qual optou pela conciliação de interesses em vista da manutenção do status quo, a
resposta foi a contraofensiva.

Ilmo. e Exmo. Snr. Recebi o ofício de V. Exc. em resposta ao que lhe dirigi de
Maria Pereira, e fico de tudo inteirado. Parti como comuniquei a V. Exc., para o
Tauá, e apenas lá cheguei quis fazer trabalhar a Junta de Jurados. Não é porém
fácil, com peças antigas e enferrujadas, mover máquina nova. Achei resistência
as minhas vistas desde o escrivão até o último potentado do lugar. Persuada-se
V. Exc. que as ideias do século 19 não penetraram ainda a primeira camada dos
homens daquele lugar; e como ali nada se faz contra a sua vontade, e a execução
das leis importa o mesmo que a queda do seu poder, não querem; e como
ninguém os pode mudar de vontade, porque ali regula a lei do mais forte, segue-
se disso que só se faz o que se quer, e infelizmente o que se quer é quase sempre
a execução de antigos prejuízos, que não podem casar com o nosso sistema
liberal. Todavia, depois de me terem resistido desde 6 de Fevereiro, instalei custo
de todo o sacrifício os Jurados no dia 18. Achei-me só contra todos: e como a
negativa da força, que pedi a V. Exc., lhes pareceu desunião entre mim e V. Exc.
mesmo, e a isto acresceu a declaração, que fiz, de resistir também a qualquer
ordem ilegal, e nesse caso estava uma de V. Exc. contra João Rodrigues do
Nascimento, aproveitaram-se disso e de minha falta de tropa, para só fazerem o
que quisessem. Assim mesmo trabalhei todo o tempo, que ali estive, contra as
ideias gastas, e só por me faltar o tempo deixei de concluir a tarefa, que tinha
começado. Remeto a V. Exc. a Ata da Junto Policial e pela resposta que deu o
Juiz Municipal daquele termo avaliará melhor V. Exc. da razão, por que ali se tem
perpetrado tanto crime. No dia 25 de Fevereiro parti para me aprontar e seguir
viagem para o Rio de Janeiro. Tanta coisa tenho encontrado a fazer que, a não
1499

terem ocorrido certas circunstâncias, deixaria de todo a viagem para ocupar-me


de minha Comarca. Esqueceu-me no ofício antecedente, que dirigi a V. Exc.,
requisitar que mandasse publicar pela imprensa os nomes dos jurados de Maria
Pereira, e que V. Exc. fizesse recomendação de todos aqueles que ainda não estão
presos as diferentes autoridades judiciárias desta Província e de todas as outras.
Acabo de dar direção a queixa contra o Juiz de Paz do Quixadá e seu suplente; já
começou o processo, e tenho toda a pressa. Fica também a ser processado o Juiz
Municipal deste termo, para o que tenho dado os passos necessários. De
passagem direi a V. Exc. que a restrita observância da lei no sertão é coisa que
mal entende, e apenas nisto se fala todos querem abandonar o país (Ibiapina, 8
de março de 1835).

Além das dificuldades de infraestrutura (poucas cadeias públicas), de pessoal especializado


(policiais, funcionários judiciais etc.) e de educação, o magistrado pontua a negativa do presidente
em oferecer mais policiais ao termo. Ora, como funcionário “estranho” a comarca, Ibiapina só
conseguiu efetivar as suas ações com a explícita confirmação do presidente, dada por
correspondência. Mas até nisso Martiniano foi categórico, mostrando qual era a sua compreensão
institucional: “[...] além de atacarem minha pessoa, são em extremo ofensivas do decoro devido a
autoridade de que me acho revestido” (Martiniano, 21 de fevereiro de 1835).

De acordo com o movimento do constitucionalismo, ressaltado como movimento que


influenciou os juristas da primeira metade do século XIX, caracterizando ainda a
formulação/promulgação da Carta Constitucional, a qual Martiniano participou ativamente, a
compreensão dele que sobressaiu ao acontecido em Tauá foi a de arbitrário cultural649, isto é, a
naturalização de um conjunto de normas, revestida de características universais, que forjavam um
todo integrado e hierarquizado, cabendo, portanto, aos juristas e/ou magistrados apenas aplicar as
leis e respeitar a hierarquia institucional e a população conhecer e acatar.

Ibiapina, portanto, foi limitado na comarca a receber ordens do presidente, aplicando as


leis que conviesse, sem a proposição de “criar um júri popular” ou “construir escolas, cadeias”, ou
ainda, “reativar a secretaria da fazenda para fiscalizar os gastos públicos” (Ibiapina, 30 de dezembro
de 1834). As propostas do magistrado, como ele bem ressaltou não eram contrárias ao executivo:
“[...] Aqui não é o poder executivo que antipatiza com o judiciário; porque este nada tem obrado
em contrário aquele; são indisposições de homem a homem, que só me podem ofender” (ibid.),
mas expressamente contrárias aos mandões do local. Estes, que por sua vez, estavam ligadas ao
governo de José Martiniano de Alencar, como se vê expresso no ofício enviado por Ibiapina,
relatando o desmonte da sua autoridade frente ao caso João Rodrigues do Nascimento650.

649Concepção cultural, institucional e econômica da classe dominante imposto a toda sociedade (Bourdieu, 1996).
Poucos dias antes de tomar posse na comarca de Quixeramobim, ou mais precisamente, no julgado de Tauá,
650 6.

ocorreu o seguinte crime: Pedro Vieira de Souza Caldas assassinou o jovem José Rodrigues do Nascimento, filho de
João Rodrigues do Nascimento. Preso o assassino, o pai da vítima retira-o da cadeia e em praça pública mutila o corpo
1500

A resposta do presidente não poderia ser outra. Discursou na Assembleia Provincial pouco
menos de um mês depois da ida do juiz:

O juiz de direito da comarca de Quixeramobim no pouco tempo que nela esteve


causou males irreparáveis pelas doutrinas anárquicas que pregou e a oposição que
fez às ordens do governo, dirigidas contra assassinos prepotentes, taxando-as de
ilegais e insinuando contra elas o direito de resistência. Eu deixo ao vosso
prudente discernimento avaliar como será perigosa a doutrina da resistência,
pregada pelo próprio magistrado do lugar a um povo ignorante que mal pode
conhecer a legalidade ou ilegalidade de uma ordem, e isto em circunstâncias em
que nos achamos, especialmente nos sertões dos Inhamuns, que o mesmo
magistrado em seus ofícios reconhece estar presentemente aterrado pela
prepotência dos assassinos, a quem só faziam barreira as ordens da primeira
autoridade da província, as quais agora perderam muito prestígio da sua força
moral pela doutrina pregada por aquele magistrado, de modo que se ele voltar ao
seu lugar, indispensável será proceder contra ele, e até vós senhores, talvez vos
vejais na necessidade de lançar mão da faculdade que vos concede o § 7º do art.
11 da lei de 12 de agosto de 1834 (Martiniano, 07 de abril de 1835).

Ao ratificar a decisão do júri popular acerca do assassinato de Pedro Vieira de Souza Caldas
(ver nota 5), Ibiapina estava buscando efetivar as decisões institucionais aos novos moldes
“liberais”. Ou seja, contrariando a interferência do executivo nas decisões judiciais do termo,
provavelmente motivado pela manutenção dos interesses locais, o magistrado agiu de acordo com
as leituras que empolgaram os juristas na primeira metade do século XIX – a separação de poderes
e o sistema representativo popular. Apesar disso, não partilhou das mesmas intenções que o
presidente, que ao ser utilitário do discurso liberal, não deixava de agir com a conciliação de
interesses para governar a província. Para tanto, Martiniano deslocou o problema para o “povo
ignorante que mal pode conhecer a legalidade ou ilegalidade de uma ordem” (ibid.).

A desonestidade do presidente não parou por aí. Os julgamentos feitos acerca das ações do
magistrado na Assembleia Provincial, além de inconsistentes – “causou males irreparáveis pelas
doutrinas anárquicas que pregou”, uma vez que, tudo o que ele buscou fazer esteve pautado e
registrado de acordo com as leis – foram articuladas para recaírem sobre Ibiapina a culpa (leia-se
mortes) da situação na vila. Caso não tivéssemos o acesso aos ofícios endereçados pelo magistrado
ao executivo, cairíamos na explicação dada por Martiniano, que a “doutrina pregada” por Ibiapina
era contrária as ordens do executivo, dando margem a “resistência” dos assassinos. Porém, a
solução encontrada pelo presidente foi também institucional, leia-se restrições legais do Ato

de Pedro. Após isso, o pai da vítima fugiu do estado e José Martiniano de Alencar mobiliza-se para prendê-lo e reabrir
o processo de julgamento. O problema é que em desacordo com as normas do Processo Criminal, bem como a
hierarquia (diga-se de passagem, sempre mencionada pelo presidente) das instituições do país recém-independente, o
magistrado Ibiapina teve acesso ao caso, decidindo abrir um júri popular para realizar o processo de julgamento. Nesse
ato, o réu João Rodrigues do Nascimento foi absolvido. Ibiapina ratificou o resultado, porém Martiniano contrário a
sentença, solicitou ao promotor de justiça de Tauá que reabrisse o caso. O rompimento entre o magistrado e o
presidente se deu mediante a intervenção do executivo em decisões explicitamente judiciais (Araújo, 1995).
1501

Adicional, que previa “decretar a suspensão, e ainda mesmo a demissão do Magistrado, contra
quem houver queixa de responsabilidade, sendo ele ouvido, e dando-se lhe lugar a defesa” (Brasil,
1834).

As ações de Ibiapina repercutiram até mesmo na Assembleia Nacional, quando em junho


de 1835 o deputado liberal Antônio Pinto de Mendonça651 se pronunciou a favor do magistrado.
Na ocasião, ele e Jerônimo Martiniano Figueira de Melo652 se colocaram contrários ao presidente
da província, revelando publicamente as divergências existentes entre os deputados do Ceará. O
resultado foi o pedido de exoneração feito por Ibiapina em 14 de novembro de 1835, o que não
solucionou os problemas nem da comarca de Quixeramobim, nem tão pouco entre os liberais
moderados e suas concepções constitucionais. Dito isto, concordamos que longe de efetivar-se
como Estado moderno, a nova ordem social no Brasil afastou-se do teor revolucionário e laico,
optando por um processo constitucional (e aqui está intrínseca a concepção de instituição) em que
a continuidade do modelo de Estado foi o que vigorou.

Considerações finais

As ações do primeiro Juiz de Direito da comarca Campo Maior (atual município de


Quixeramobim, Ceará) foram expressivas no que diz respeito aos novos arranjos institucionais que
se pretendia após a independência de Portugal. No entanto, esse processo assim como a abdicação
de D. Pedro I, acabaram conduzindo o país às opções pouco ou nada revolucionárias das condições
anteriormente vivenciadas. Para tanto, bacharéis como José Antônio de Pereira Ibiapina foram
limitados a agir numa estrutura político-jurídica marcada pelo mandonismo local, que não
reconhecia a divisão de poderes, os direitos individuais (com restrições) e a representação popular.

Tais impedimentos não são apenas uma característica da política e da justiça imperial no
Brasil. Ao contrário disso, vimos que as trocas de favores e a submissão aos donos de terras é um
aspecto intrínseco a dominação tradicional, a qual foi garantia a permanência mesmo após o
rompimento entre Brasil e Portugal. Isso porque as relações sociais que prevaleceram em
momentos como a criação de leis, a instituição de comarcas, entre outros, não poderiam
menosprezar o aparato legal precedente (pré-liberais), nem tão pouco tornar-se direito nacional,
haja vista a condição colonial do país e o que isso implicou na ausência de escolas de Direito e de
órgãos representativos e deliberativos.

651
Cearense (1803-1872), foi deputado geral pelo Partido Liberal Moderado, foi ainda primeiro vice-presidente do
Ceará.
652
Cearense (1809-1878), foi deputado geral pelo Partido Liberal Moderado, foi ainda Ministro do Supremo Tribunal
de Justiça e senador do império.
1502

Ao final, compreender esses movimentos institucionais a partir da experiência de Ibiapina


– isto é, particularidades que compõe as generalizações – que foi observada aqui a partir de
conceitos como mandonismo local, instituições e constitucionalismo nos permite verificar as
representações sociais (leia-se respostas) que comportam um conjunto de fatos, nos quais os
sujeitos refletem àquilo que percebem mais ou menos como um problema. Feito isso, concordamos
que estudar a história das “instituições livres” no Brasil coincide com a necessidade de
restabelecermos as ligações com o modelo de Estado colonial, ou melhor, com as relações sociais
pessoalizadas.

Fontes
Alencar, José Martiniano de. [Correspondência]. Destinatário: José Antônio de Pereira Ibiapina. 21
fev. 1835. 1 Carta oficial.

Brasil, Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834, Art. 11, § 7º. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/leimp/1824-1899/lei-16-12-agosto-1834-532609-
publicacaooriginal-14881-pl.html. Acesso em 30 nov. 2020.

Ibiapina, José Antônio de Pereira. [Correspondência]. Destinatário: José Martiniano de Alencar. Dez.
1834/Mar. 1835. 5 Cartas oficiais.

Pronunciamento do presidente provincial José Martiniano de Alencar na Assembleia Provincial em


Fortaleza/CE. In: Correio do Ceará, 20 de março de 1960.

Referências

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moderado na província do Ceará (1830-1837). Dissertação de mestrado, História, UFC, 2014.

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1503

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Weber, Max. Economia e Sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Barbosa, vol. 2, 4ª ed. Brasília: Ed.
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1504

As recomendações gerais das comissões estaduais da verdade:


uma análise de suas aproximações e distanciamentos (2012-2017)

Pâmela Minuzi*

Resumo: A proposta deste trabalho consiste em discutir sobre as principais aproximações e


distanciamentos encontrados nos temas expostos nas recomendações gerais produzidas por oito
comissões estaduais da verdade no Brasil, estabelecidas entre os anos de 2012 e 2017. Parte
integrante das medidas de justiça de transição, as comissões da verdade podem ser entendidas como
um componente importante em sociedades que passaram por governos autoritários. Após a
instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV), no ano de 2011, múltiplas comissões da
verdade se desenvolveram ao longo do Brasil visando debater sobre as graves violações de direitos
humanos cometidas durante a ditadura militar, um episódio relativamente recente na história do
país e que ainda possui reverberações no presente. Para tanto, foram examinadas as recomendações
gerais que constam nos relatórios finais das comissões estaduais da verdade dos estados do Amapá,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Paraíba, Paraná e Pernambuco, instituídas
por meio de decretos e leis estabelecidos pelos governos estaduais ou por suas respectivas
Assembleias Legislativas. Buscou-se assim identificar quais foram os principais temas em que as
comissões convergiram, e quais foram aqueles que se apresentaram de forma particular. Dessa
maneira, constatou-se que os temas em comum entre a maior parcela das comissões, localizam-se,
por exemplo, nas áreas de segurança pública, do sistema de leis, dos arquivos e da educação; já os
temas mais específicos concentraram-se em campos como da imprensa, economia e da saúde.
Como se trata de uma proposta que visa analisar um episódio referente ao passado recente da
história do Brasil, este trabalho ampara-se nas discussões elaboradas no campo da História do
Tempo Presente, na intenção de averiguar as possíveis transformações projetadas pelas comissões
estaduais da verdade através de suas recomendações gerais aos estados.

Palavras-chave: Comissão Estadual da Verdade, Transição Democrática, Ditadura Militar

1. Introdução

No decorrer da década de 2010, estabeleceu-se no país um movimento considerado


completamente novo nas experiências de comissões da verdade no mundo. Após a instauração da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), no ano de 2011, uma “rede de comissões” – ou
“comissionismo”7 – propagou-se pelo Brasil a fim de apurar as graves violações de direitos
humanos cometidas durante a ditadura militar em diversas localidades (Seixas; Souza, 2012, p. 351).

* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e
bolsista PROMOP/UDESC.
Este texto integra os resultados apresentados em meu trabalho de conclusão de curso, defendido em agosto de 2020.
7 Termo designado pela cientista política Cristina Buarque de Hollanda para se referir ao movimento de difusão de

diferentes e diversas comissões da verdade existentes no Brasil. Ver mais em: HOLLANDA, Cristina Buarque De.
Direitos humanos e democracia: a experiência das comissões da verdade no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.
33, n. 96, p. 1–18, 2018.
1505

Essas comissões da verdade brasileiras estabeleceram-se de maneira heterogênea: houve as criadas


a partir de leis e decretos estaduais, as municipais, um número expressivo emergiu nas instituições
de ensino superior, incluindo as elaboradas a partir de setores da sociedade civil, como as
organizadas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pela Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB). (Seixas; Souza, 2012, p. 351).

Das múltiplas comissões da verdade que se desenvolveram ao longo do país, este trabalho
procurou analisar as recomendações gerais daquelas criadas por meio de decretos e leis
estabelecidas pelos governos estaduais e/ou Assembleias Legislativas. Dessa maneira, foram
verificadas as propostas desenvolvidas pelas seguintes comissões da verdade: Comissão Estadual
da Verdade do Amapá – Francisco das Chagas Bezerra (CEV-AP), Comissão da Verdade de Minas
Gerais (Covemg), Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio), Comissão Estadual da Verdade Paulo
Stuart Wright (CEV-SC), Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva (CEV-SP),
Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba (CEVPM-PB),
Comissão Estadual da Verdade - Teresa Urban (CEV-PR), Comissão Estadual da Memória e
Verdade Dom Helder Câmara (CEV-PE). O marco temporal adotado refere-se ao período de
exercício das mesmas, uma vez que cada comissão estipulou o seu funcionamento e andamento de
suas investigações.

Verificou-se através da leitura das recomendações, que constam nos relatórios finais das
comissões, que as mesmas podem ser elaboradas a partir de dois aspectos: as chamadas
específicas, que se referem às particularidades dos casos e eventos ocorridos em cada região; e as
gerais, ligadas a circunstâncias mais abrangentes, tanto da localidade em questão, quanto do próprio
país. Visto a heterogeneidade dessas comissões estaduais – seja na maneira com que se estruturaram
ou nos temas abordados – as recomendações gerais propostas pelas mesmas também refletiram
esses díspares processos. Optou-se por trabalhar com as recomendações gerais das comissões e
não com as recomendações específicas, por considerar que aquelas tratam de temas que apontam
para uma amplitude nas investigações e discussões relativas à ditadura militar, mesmo quando
abordam assuntos relativos às suas regiões. Dessa forma, a partir da identificação e análise das
recomendações gerais elaboradas por essas comissões estaduais, a intenção deste trabalho visou
responder o seguinte questionamento: quais foram suas principais aproximações e distanciamentos
na abordagem de temas ligados ao período ditatorial brasileiro? Buscou-se assim detectar se houve
diferenças – ou não – na discussão de temas entre as comissões, observando se as mesmas
realizaram a produção dessas recomendações gerais a partir de demandas e experiências locais ou
se existiram propostas em comum nesse processo que de certa maneira as aproximaram. Como se
1506

tratou de um número elevado de recomendações gerais653, no decorrer do trabalho e da análise das


fontes foi indispensável pensar em grandes temas para agrupá-las, já que determinadas
recomendações gerais pareciam ter o mesmo fio condutor, além de, por vezes, destinarem-se a uma
área específica em comum. Portanto, dada as limitações deste trabalho, optou-se por analisar os
temas discutidos pela maior parte das comissões estaduais, como o de segurança pública, do sistema
de leis, dos arquivos e da educação; ou então aqueles temas desenvolvidos por uma parcela menor
de comissões como o de imprensa, da saúde e de economia.

Para a efetivação teórico-metodológico deste trabalho, utilizei-me de diálogos com


historiadoras e historiadores que debruçam suas análises a partir da perspectiva de fazer do passado
recente objeto de estudo como Marieta de Moraes Ferreira, Henry Rousso e Christian Delacroix.
O historiador francês Henry Rousso (2016, p. 196) destaca que a expansão da História do Tempo
Presente “resulta de uma evolução própria à historiografia e ao universo científico”, mas não
somente desse processo; o autor argumenta que o desenvolvimento desse campo historiográfico
provém também de uma demanda social que aflora na sociedade a fim debater acerca dos possíveis
“passados que não passam” (Rousso, 2016, p. 196). Indo ao encontro dessas argumentações,
Christian Delacroix (2018, p. 44) aponta que a História do Tempo Presente irá emergir no campo
das discussões nos países latino-americanos na virada dos anos de 1990, momento em que diversos
países latino-americanos desvencilhavam-se oficialmente de seus regimes ditatoriais. Delacroix
indica que esse movimento potencializou-se com a “mundialização da memória” e a consequente
demanda social acerca do “reconhecimento e verdade sobre os ‘passados que não querem passar’”
(Delacroix, 2018, p. 48). A análise das recomendações das comissões de verdade estaduais insere-
se de forma muito evidente neste campo, porque elas dizem respeito tanto a questões envolvendo
o passado - o que "resta" da ditadura -, quanto apontam para soluções que propõem um futuro
livre de novos períodos autoritários - o "nunca mais".

A partir desse entendimento, o tempo presente – tempo da escrita das comissões – pode
ser composto por camadas temporais distintas e apreendido enquanto um tempo “feito de
surgimentos, de reapropriações, de retomadas do passado – de ‘pós-golpes’ – e ressoa ‘passados
que não passam’[...]” (Delacroix, 2018, p. 71). Essa proposta de abordagem teórica – empregada
neste trabalho – ocorre na intenção de compreender, a partir das recomendações gerais, como as
comissões operacionalizaram esse passado recente traumático, entendendo que a sua escrita partiu

Percebeu-se ao longo da análise que não houve um padrão adotado pelas comissões estaduais: enquanto algumas
653

comissões realizaram quatro recomendações gerais, outras produziram em torno de quarenta recomendações gerais.
1507

de um momento específico na história brasileira, momento no qual expectativas e anseios eram


concebidos acerca do futuro próximo.

2. As recomendações gerais das comissões da verdade.

O processo de justiça de transição orienta-se por quatro elementos básicos: as reformas


institucionais, as reparações simbólicas e financeiras, a responsabilização por atos praticados no
período autoritário e o direito à memória e à verdade. Neste último pilar se encontram e sustentam
as comissões da verdade, objetivando a reconciliação, o fortalecimento do Estado democrático e a
garantia de não-recorrência (Weichert, 2014, p. 87). As apurações e análises realizadas pelas
comissões da verdade comumente constam nos relatórios finais produzidos pelas mesmas e podem
conter informações como o levantamento de locais onde possam ter sido cometidas as graves
violações de direitos humanos, as metodologias utilizadas nas investigações, trechos de
depoimentos das vítimas, fontes documentais utilizadas, além de suas conclusões e recomendações
ao Estado (González; Varney, 2013, p. 65).

Bevernage (2018) ressalta que a instauração de comissões da verdade pode ser entendida
como uma resposta para o impasse encontrado pela justiça de transição a respeito dos dois pólos
que passam a emergir nesse decurso: encontrar uma forma “menos provocativa” que lidar com
uma judicialização aos perpetradores dos crimes, e ao mesmo tempo enfrentar a impossibilidade
de ignorar o sofrimento das vítimas e de suas demandas por memória e justiça (Bevernage, 2018,
p. 43). O movimento de fazer do passado recente objeto de estudo, em sua grande parte, está
vinculado à reivindicação de demandas sociais relativas ao reconhecimento e justiça a respeito
desses passados traumáticos e espinhosos de assumir (Ferreira, 2018, p. 96). Com a emergência das
discussões nos países latino-americanos na virada dos anos de 1990654 sobre os crimes cometidos
nas diferentes ditaduras militares, indica-se que esse movimento potencializou-se com a
“mundialização da memória” e as consequentes demandas sociais acerca da elucidação e discussão
das violências de Estado cometidas durante esse período (Delacroix, 2018, p. 44). Pois é nesse
cenário que passam a aflorar as diferentes e diversas comissões da verdade do continente latino-
americano655.

654
Até o fim da década de 1980, diferentes países da América do Sul desvencilharam-se oficialmente de seus regimes
ditatoriais que vigoraram em países como a Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai.
655
A comissão da verdade da Bolívia (1982) foi a primeira da América Latina, posteriormente foi seguida por diversas
comissões como, por exemplo, a da Argentina (1983), do Uruguai (1985), do Chile (1990), do Equador (1996) e do
Peru (2001). Ver mais: Pinto, Simone Rodrigues. Direito à Memória e à Verdade: Comissões De Verdade Na América
Latina. Revista Debates, v. 4, n. 1, p. 128–143, 2010.
1508

A experiência de comissão da verdade no Brasil diferenciou-se da maior parte das que


ocorreram em contexto global. Após a instituição da CNV, “o Brasil conheceu um fenômeno sui
generis de proliferação de comissões da verdade em municípios, estados e instâncias extra-estatais”
(Hollanda; Israel, 2019, p. 04). Levando em consideração as dimensões territoriais do Brasil,
considerou-se que essa teia de comissões desenvolvida foi de substancial importância na
complementaridade dos trabalhos da CNV (Brasil, 2014, p. 33), já que esta centrou sua análise em
determinadas regiões do país, enquanto aquelas propuseram uma discussão a partir de suas
especificidades regionais, permitindo que as discussões relativas à verdade, memória e justiça
pudessem ser apropriadas em cada um desses estados de maneira a não ser um debate proposto
de forma centralizada e de cima para baixo.

A despeito de seus distanciamentos e aproximações, as oito comissões estaduais da verdade


aqui analisadas, apresentaram recomendações gerais aos seus respectivos estados. Ao longo do
processo de pesquisa acerca do conteúdo dessas recomendações, percebeu-se que a abordagem a
respeito de determinados temas refletiram a heterogeneidade do evento que as originou. Isto é,
verificou-se que as comissões apresentaram temas distintos em suas recomendações gerais e nem
sempre convergiram, demonstrando que não houve um padrão adotado na forma de distribuição
dessas recomendações gerais nos relatórios, nem nos temas abordados por elas.

No campo das principais aproximações encontradas nos temas das recomendações gerais
estão os debates que englobam o tema da segurança pública no Brasil: as oito comissões estaduais
aqui verificadas elaboraram recomendações cujo teor está ligado diretamente essa área, além de ter
sido um dos temas em que mais se percebeu o esforço das comissões estaduais em exemplificar as
reminiscências do passado no presente. No teor das recomendações propostas nesta área verifica-
se que, no entendimento das comissões, a gestão e atuação tanto da polícia militar, quanto da noção
de segurança pública no Brasil não foram totalmente transformadas após o fim da ditadura militar.
A violência policial perpetrada no contexto democrático frente a uma cultura de impunidade, da
inércia do Estado e de uma parte das instituições656, parece ser apreendida pelas comissões “como
estruturas que permanecem em democracia, tendo como alvo principal a população pobre da
periferia” (Teles, 2018, p. 55). Entendendo as particularidades encontradas, cabe mencionar que a
maior parte das comissões657 elencou recomendações gerais ligadas diretamente à necessidade de
desmilitarização da polícia militar no país. Ademais, outros assuntos relacionados ao campo e

656
Segundo o site do Senado Federal, uma proposta de Emenda à Constituição elaborada em setembro de 2013, a qual
tratava sobre a desmilitarização da polícia e da reestruturação da segurança publica no país, encontra-se atualmente
arquivada. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/114516>. Acesso em:
17/12/20.
657
Comissões dos estados da Paraíba, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.
1509

abordados pelas comissões giraram em torno da consolidação da formação de agentes ligados à


Segurança Pública em direitos humanos, da necessidade de reforma no sistema prisional dos
estados e do país, além do estabelecimento uma nova perspectiva de segurança pública que vise os
direitos fundamentais.

A área referente à criação, revisão ou revogação de leis ligadas ao período autoritário foi
outro tema que apresentou um número considerável de recomendações gerais e de comissões que
as realizaram. Como cada comissão estadual identificou e elaborou recomendações conforme seus
entendimentos sobre as necessidades de mudanças, o número de propostas no campo das
legislações foi expressivo. Ainda que existam distinções, averiguou-se que as discussões sobre a
revisão ou revogação de duas leis em específico foram demandas em comum entre uma parcela das
comissões658: a Lei da Anistia e a Lei de Segurança Nacional.

A constituição e aplicabilidade da Lei da Anistia de 1979 no país é uma discussão densa e


demanda aprofundamento sobre os diversos temas que a englobam como: os debates legislativos
que a conceberam, a atuação de familiares de presos políticos da ditadura militar e de suas
reivindicações a respeito da volta dos exilados, ou das repercussões que a lei ainda incita em nosso
presente, entre as quais as diferentes interpretações que se originam a partir do texto659. Em linhas
gerais, o projeto de lei de criação do ato normativo foi enviado – pelo governo militar – a um
legislativo composto não mais por representantes eleitos, mas sim por representantes “biônicos”
(Teles, 2018, p. 28). Apesar de ter representado a volta de alguns exilados e a soltura de alguns
presos políticos, o teor do texto da lei ao tratar de “crimes conexos”660 suscitava uma suposta
dualidade na compreensão e aplicação da mesma. A partir de uma narrativa militar que pressupunha
igualar a atuação da esquerda armada ao alcance e potência do aparato repressivo arquitetado pelo
regime autoritário, a noção de “dois lados radicalizados em guerra” (Teles, 2018, p. 28) perdura até
hoje em discursos e imaginários. Percebe-se, no conteúdo de algumas das recomendações, que a
Lei da Anistia parece representar um possível elo entre as práticas violentas do Estado autoritário
com as cometidas no presente pelo Estado democrático. E isso se caracteriza a partir de uma leitura
atual da lei na qual a relação entre o não julgamento dos crimes cometidos no passado, enseja uma
possível cultura de impunidade no presente.

658 Comissões dos estados de Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.
659 Em 2010 o Superior Tribunal Federal (STF) julgou improcedente a ação movida pela Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) que solicitava a revisão da Lei da Anistia. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=125515>. Acesso 18/12/20.
660 Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm>.

Acesso em: 18/12/20.


1510

No processo de aprofundamento do autoritarismo no país durante a ditadura militar,


mecanismos institucionais foram criados a fim de concentrar cada vez mais o poder na figura do
Executivo. Para isso, logo após o golpe civil-militar, “uma nova arquitetura de leis de caráter
autoritário foi progressivamente erigida” (Joffily, 2013, p. 27). No decorrer dos vinte e um anos em
que generais assumiram o controle do Estado brasileiro, produziu-se uma nova constituição,
inúmeros decretos, atos complementares, emendas e leis construindo um sólido entulho autoritário
(Pinheiro, 1991, p. 47). No ano de 1967, além de uma nova constituição que deslocaria a concepção
de segurança nacional (Joffily, 2013, p. 28), editou-se um decreto-lei que outorgou a criação da Lei
de Segurança Nacional (LSN) por meio do decreto-lei nº 314, peça-chave aos órgãos da repressão
instituindo a noção de guerra interna. Entre os meses de março e setembro de 1969, a mesma foi
substituída por duas novas Leis de Segurança Nacional, nas quais se classificava crimes comuns
como políticos, adicionando penas e instaurando a pena de morte e a prisão perpétua no país
(Joffily, 2013, p. 29).

Em dezembro de 1983, decretou-se uma nova Lei de Segurança Nacional na qual foram
definidos quais eram os crimes considerados contra a segurança nacional e a ordem pública no
país661. Constatou-se que, para as comissões estaduais, a manutenção da LSN pode ser considerada
como uma herança autoritária que não coaduna com os princípios de um Estado que se proclama
democrático. Assim, a revogação da LSN se faz urgentemente necessária, pois ainda se utiliza de
dispositivos construídos a partir de uma lógica de exceção na atual democracia. Vigente nos dias
atuais, vale mencionar que ao longo das últimas décadas, a LSN continua a ser aplicada pelo Estado
brasileiro, seja nas chamadas “Jornadas de Junho de 2013”, quando alguns manifestantes foram
detidos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional662 (Teles, 2018, p. 28), seja nos pedidos de
investigações contra jornalistas663, o que reforça o caráter presente da questão.

A educação foi outra área amplamente abordada pelas comissões estaduais em suas
recomendações gerais. Houve uma confluência no que diz respeito ao entendimento acerca da
importância das discussões, no âmbito de escolas e universidades, sobre a ditadura militar e seus
desdobramentos na sociedade brasileira. Sete das comissões estaduais664 aqui verificadas elaboraram

661 Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>.

Acesso em: 18/12/2020.


662 A ONG ARTIGO 19 produziu um relatório elaborado a partir do monitoramento dos protestos, no qual a mesma

trouxe dados e elaborou discussões amplas acerca da repressão do Estado brasileiro nas manifestações civis que se
iniciaram em junho de 2013 no estado de São Paulo e estenderam-se ao longo dos anos de 2014 e 2015, com diferentes
pautas e demandas. Ver mais em: 19, Article. As ruas sob ataque: protestos 2014 e 2015. 2015. P. 1-148. Disponível em:
<https://artigo19.org/blog/2015/09/10/as-ruas-sob-ataque-protestos-2014-e-2015/>. Acesso em: 18/12/2020.
663 Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo, a LSN voltou a ser pauta no debate público. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/entenda-o-ressurgimento-da-lei-de-seguranca-nacional-usada-
pelo-governo-bolsonaro.shtml >. Acesso em: 18/12/20.
664 Comissões dos estados do Amapá, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.
1511

recomendações gerais sobre esse tema, num aceno sobre a relevância e necessidade do debate a
respeito das violações praticadas pelo Estado durante a ditadura militar. De maneira geral, o
conteúdo dessas recomendações versou sobre as discussões acerca de reformulações dos currículos
mínimos nas escolas, da efetivação de cursos referentes à formação inicial e continuada sobre o
período para professoras/es, além da divulgação e uso em sala de aula dos relatórios produzidos
pelas comissões da verdade. Identificou-se que para essas comissões estaduais, o conhecimento e
discussão sobre o período e sobre as graves violações de direitos humanos cometidas, podem
também auxiliar na compreensão sobre o que são direitos humanos e como foram construídos
historicamente os direitos de cidadãs e cidadãos na atual democracia brasileira.

No decorrer da sistematização das recomendações, percebeu-se também a atenção das


comissões665 com as questões que envolvem a “abertura” de arquivos relacionados ao período
ditatorial. Neste tema, verifica-se uma grande preocupação das comissões estaduais no que tange
o acesso mais amplo aos arquivos que dizem respeito aos anos de repressão no país. Portanto, no
teor das recomendações, há, em geral, um entendimento acerca dos arquivos que demonstra a
necessidade de que se tenha “continuidade e fortalecimento das buscas e abertura dos acervos que
ainda se encontram indisponíveis [...]” (Bauer, 2017, p. 214), em um processo de conhecimento e
aprofundamento das discussões sobre os episódios que compuseram esse período. Através do
conjunto desses temas – educação e arquivos – percebe-se que tanto o ensino da história (inclusão
e aprofundamento dos debates acerca do período nos currículos escolares), quanto à possibilidade
de se ter acesso aos instrumentos necessários para escrevê-la e suscitar novas pesquisas (acesso aos
arquivos), são reivindicados pelas comissões como ferramentas importantes no processo de
aprofundamento democrático.

Formadas a partir de suas experiências e demandas locais, as oito comissões da verdade


tratadas por este trabalho convergiram em diferentes temas abordados em suas recomendações
gerais conforme visto acima. Entretanto, particularidades também foram observadas nas propostas
elaboradas, haja vista as proporções continentais do Brasil e a consequente forma heterogênea em
que a repressão atingiu esses locais, além das próprias percepções das comissões a respeito do
período. Essas diferenças puderam ser averiguadas em determinadas recomendações gerais
elaboradas por um grupo menor de comissões e serão abordadas com o objetivo de compreender
quais foram as particularidades apresentadas por este conjunto de comissões estaduais da verdade.

665 Comissões dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.
1512

No campo das principais particularidades abordadas nos temas das recomendações gerais
encontra-se a relação de uma parte da imprensa brasileira com a ditadura militar. Três comissões666
efetuaram recomendações fazendo referência direta a determinados setores da grande imprensa
que apoiaram e legitimaram o golpe civil-militar de 1964 perante a sociedade brasileira667.
Amparadas em um arraigado anticomunismo, uma parte da imprensa brasileira via na figura do
então presidente João Goulart e no seu discurso acerca das Reformas de Base um risco à suposta
ordem política, social e econômica vigente à época (Napolitano, 2014, p. 45). Em uma teia de
eventos plurais, segundo Napolitano (2014, p. 48), já no final dos anos de 1963 a grande imprensa
inflava e disseminava o discurso contra as reformas e contra o governo, servindo de alicerce para
narrativas anticomunistas e conservadoras que atingiriam seu ponto alto no final de março de 1964.
Mesmo com uma trajetória considerada ambígua e não uniforme – já que a censura, por exemplo,
alcançou até mesmo aqueles que inicialmente apoiaram a ditadura militar – parte da grande
imprensa do eixo Rio-São Paulo encampou o discurso autoritário e apoiou “a ‘revolução’
decididamente, por sua repulsa aos rumos que parecia tomar o governo Goulart” (Motta, 2013, p.
67).

A partir das recomendações elaboradas por estas três comissões estaduais668, identificou-se
que o papel desempenhado pela grande imprensa nesse episódio da história recente brasileira foi
imprescindível para a construção de uma narrativa onde fossem criadas possíveis versões que não
coadunavam com os fatos acerca dos crimes cometidos pelo Estado autoritário – e não somente
para a tomada do poder pelos militares. O teor de algumas das recomendações dialoga diretamente
com a bandeira da democratização das comunicações no Brasil, a qual relaciona o direito a ser bem
informado, com pluralidade e transparência, abordando a multifacetada discussão sobre o
monopólio de determinados meios de comunicação – erigido e mantido pela grande imprensa669 –
e a necessidade de democratizar os meios de comunicação, na intenção de fomentar conteúdos e
formatos plurais que coadunem com os preceitos democráticos. Houve ainda uma recomendação
abordando algo mais específico desta relação: o fato de parte da grande imprensa – notadamente a
Folha da Tarde – ter publicado falsas versões divulgadas pelos órgãos repressivos sobre as vítimas
da repressão política (Kushnir, 2001). A partir das recomendações propostas por essas comissões,

666 Comissões dos estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.


667 Em agosto de 2013, o editorial do jornal O Globo reconheceu oficialmente que havia sido um erro o apoio ao golpe
civil-militar de 1964. O apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo, Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2013.
Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604>. Acesso
em 17/12/20.
668 Comissões dos estados do Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo.
669 Para uma discussão sobre a relação entre grande imprensa televisiva durante e a ditadura militar ver: FILHO,

Laurindo Leal. Quarenta anos depois, a TV brasileira ainda guarda as marcas da ditadura. Revista USP, n. 61, p. 40–47,
2004.
1513

observa-se que se trata de dois movimentos completamente diferentes, pois um volta-se ao


passado, e outro se direciona ao futuro.

Ademais, ainda no campo das particularidades referentes às recomendações gerais


elaboradas pelas oito comissões aqui tratadas, houve dois temas abordados pelas comissões paulista
e fluminense. A CEV-Rio construiu uma recomendação geral ligada ao campo da “economia”, na
qual, para a mesma, o ciclo de endividamento do Estado brasileiro iniciou-se e agravou-se durante
a ditadura militar. Portanto, em cumprimento ao art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT)670, a auditoria da dívida pública é de primordial interesse tanto nas esferas
estaduais quanto na nacional. Já a CEV-SP realizou recomendações ligadas ao campo da “saúde”
que versam, no geral, sobre as diversas questões ligadas ao campo da saúde mental, incluindo a
necessidade de investigações relativas à atuação de profissionais e instituições da área em violações
de direitos humanos ocorridas ao longo do período.

Considerações finais

Como este trabalho se propôs a examinar somente as recomendações gerais, constata-se


que o estudo acerca das específicas pode ser considerado como um campo aberto para um
aprofundamento das análises. Vislumbra-se que tal análise poderia contribuir para reflexão sobre
como as comissões estaduais estiveram comprometidas com a inclusão de cenários não previstos
pela CNV - que atuou com olhos mais voltados a algumas regiões do país. Ademais, a análise
também poderia abrir espaço para explorar mais profundamente a “atuação” da ditadura em cada
território, o que se percebe de ação centralizada e o que se percebe de “adequação" da lógica
repressiva em cada local.

Pode ser averiguado que por se tratarem de diferentes locais e, portanto, de diferentes
experiências ligadas ao período ditatorial brasileiro, essas comissões estaduais apresentaram em
suas recomendações gerais temas e abordagens distintas e nem sempre foram convergentes. Além
disso, pode se observar que não houve um modelo reproduzido pelas comissões no que tange a
forma de apresentação das recomendações gerais. Alguns temas apresentaram-se de maneira
considerável nas discussões das comissões, como foi o caso do sistema de leis, da segurança pública
e da educação, enquanto outros assuntos – como as áreas ligadas à saúde, a economia e a imprensa
– foram abordados por uma parcela menor de comissões.

670
Art. 26. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Disponível em: <
http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/ADC1988_08.09.2016/art_26_.asp#:~:text=26%20(ADCT)&
text=26%20(ADCT)-,Art.,geradores%20do%20endividamento%20externo%20brasileiro.>. Acesso em: 17/12/20.
1514

Ao longo do processo de sistematização das recomendações gerais, seja referindo-se a


assuntos distintos ou convergentes, compreendeu-se que as oito comissões estaduais aqui
analisadas, realizaram recomendações nas áreas em que as mesmas identificaram como urgentes e
passíveis de mudanças, tanto na esfera estadual quanto nacional. Isto é, para este trabalho, as
recomendações gerais foram apreendidas enquanto uma inquietação acerca de como se
caracterizam os diferentes estratos que compõe a sociedade brasileira – como a educação, a
segurança pública, o sistema judiciário, a economia – acerca dos episódios que compuseram essa
triste página da história do Brasil.

Mas as recomendações gerais também podem ser lidas enquanto ferramentas que
identificaram aquilo que permaneceu nas estruturas do Estado democrático, que datam do período
autoritário, e que, portanto, necessitam de mudanças, pois não coadunam com o regime vigente.
Verifica-se no teor de algumas recomendações um esforço das comissões em exemplificar e
relacionar o passado e o presente, demonstrando que ainda ocorrem práticas ligadas à ditadura
militar no presente democrático. Essas reminiscências do passado no presente, sentidas e expostas
pelas comissões nas recomendações, podem ser lidas a partir do conceito de “passado irrevogável”
discutido por Bevernage (2018), no qual o passado se configuraria enquanto “um depósito
persistente e massivo que se adere ao presente” (Bevernage, 2018, p. 33).

Os conteúdos das recomendações gerais aqui investigadas demonstraram que, para além
das permanências detectadas pelas comissões estaduais, houve também uma preocupação relativa
ao futuro. Isso pode ser visto na atenção depositada na área da educação, seja nos ensinos
fundamental, médio e superior ou no campo ligado ao aprofundamento no acesso de arquivos para
pesquisa – em uma visível alusão ao Estado e as Forças Armadas –, além da preocupação com a
difusão dos seus levantamentos, de suas conclusões e de suas recomendações para a sociedade de
forma ampla. Isto é, embora seja perceptível a preocupação – e o tratamento – das comissões
estaduais a respeito de um passado (presente), as mesmas protejam-se para o futuro em suas
recomendações, na intenção de construir de uma sociedade cada vez mais democrática. As
aspirações futuras percebidas nas recomendações gerais demonstram o longo caminho a ser
trilhado para que se possa cada vez mais afastar-se do passado autoritário. Contudo, compreende-
se que é a partir do presente – tempo das recomendações – que se pode percorrer com passos
firmes esse extenso e intrincado caminho.

Referências

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1515

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Weichert, Marlon Alberto. O Relatório Da Comissão Nacional Da Verdade: conquistas e


desafios. Projeto História, São Paulo-SP, 2014, p. 86–137.
1517

Que Horas Ela Volta? E Casa Grande: A classe média brasileira e o


medo diante das conquistas sociais dos empregados domésticos

Onesino Elias Miranda Neto*

Resumo: este trabalho aborda como a legislação trabalhista específica para os empregados
domésticos e as conquistas sociais que isto possibilita até os dias de hoje são impactadas no
medo da classe média brasileira dependente desta prestação de serviços e herdeira de
fortes laços escravistas, latifundiários e coloniais presentes em nosso país. A abordagem
preconisa uma breve cronologia da formação da Lei Complementar Nº 150, sendo o elo
para os debates que cercam as narrativas fílmicas de Anna Muylaert em Que Horas Ela
Volta? e Casa Grande de Fellipe Gamarano Barbosa.

Palavras-chaves Escravista, Que Horas Ela Volta?, Casa Grande e empregados domésticos.

Introdução

As paixões que envolvem o resgate histórico dos fatos e a construção da identidade


humana contemporânea sempre foi um dos diversos pilares que motivaram historiadores a
ingressarem nesta ciência humana. Identifico-me bastante com a historiografia francesa,
principalmente a Escola de Annales (Barros, 2012), por esta possibilitar no universo acadêmico a
interação de novas perspectivas históricas, novos objetos de estudos e principalmente novas fontes
de pesquisa. Mas, para além do cientificismo, a História nos diverte, nos encanta, mantém seu papel
também de entretenimento. Quem nunca indagou-se sobre a origem de algo, de algum termo ou
palavra, ou até mesmo, da origem de sua própria família? Esta proposição possibilita termos tantos
amantes de Clio (deusa da história). Essa dualidade entre paixão pelo objeto de estudo e
metodologia científica auxilia na legitimidade da história.

Papai, então me explica para que serve a história.” Assim um garoto, de quem gosto
muito, interrogava há poucos anos um pai historiador. Sobre o livro que se vai ler,
gostaria de dizer que é minha resposta. Pois não imagino, para um escritor, elogio mais
belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Mas simplicidade
tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos. Pelo menos conservarei aqui de bom
grado essa pergunta como epígrafe, pergunta de uma criança cuja sede de saber eu

*
Aluno mestrando do PPGCINE – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema da UFS – Universidade
Federal de Sergipe.
1518

talvez não tenha, naquele momento conseguido satisfazer muito bem. Alguns,
provavelmente, julgarão sua formulação ingênua. Parece-me ao contrário, mais que
pertinente. O problema que ela coloca, com a incisiva objetividade dessa idade
implacável, não é nada menos do que o da legitimidade da história. (Bloch, 2001, p. 81).

O Cinema também é outro campo que desperta diversas paixões e encantamentos


similares ao que imprimi em relação à história. A junção de ambas coloca em questionamento a
ideia de veracidade científica, tendo como referência a sétima arte ser uma representação do real
humano, o que não exclui, de termos na arte fílmica uma forte relação com a historicidade.

Ora, a imagem cinematográfica também nos mostra as coisas em perspectiva e


por isso ela corresponderia à percepção natural do homem. A reprodução da
percepção natural apresentar-nos-ia a reprodução da realidade, tudo isso graças
à máquina que dispensaria maior intervenção humana. [..] Por exemplo, a
imagem cinematográfica não reproduz realmente a visão humana. Nosso
campo de visão é maior do que o espaço da tela, o nosso olhar abrange também
as partes laterais, superior e inferior. (Bernardet, 2000, p.17).

Busca-se neste trabalho permear pelo debate dos cineastas/historiadores, analisando


duas obras fílmicas do cinema contemporâneo brasileiro, Que horas ela volta? de Anna Muylaert e Casa
Grande de Fellipe Gamarano Barbosa e como estes filmes abordam a conturbada relação entre a
conquista do direito trabalhista dos empregados domésticos ao longo dos governos do PT –
Partido dos Trabalhadores e a reação da classe média brasileira diante destes direitos adquiridos.
Para isto, serve-se de grande valia duas compreensões básicas neste pequeno esboço, a primeira a
escolha da análise fílmica apropriada para a interpretação destas obras cinematográficas, a segunda
o conceito de cineasta/historiador. Sendo assim, o objetivo geral do trabalho é entender a
abordagem das narrativas destes filmes sobre o impacto na classe média brasileira diante da
legislação específica para os empregados domésticos. Diante disso, identificar as mudanças nas
relações de trabalho nas residências do país, além de compreender como os legados escravistas
e coloniais permanecem no dia a dia entre empregados domésticos e empregadores.

Como citado anteriormente, uma importante compreensão arquitetada para a produção


deste artigo é a ideia de diretores que se encaixam no contexto de historiadores. Diversos diálogos
entre o cinema e a história são possíveis, a própria película de filme já é uma fonte de estudo para
a história671, o próprio filme, por ter sido feito em um determinado período, também já enriquece

671 “As fontes audiovisuais e musicais ganham crescentemente espaço na pesquisa histórica. Do ponto de vista
metodológico, são vistas pelos historiadores como fontes primárias novas, desafiadoras, mas seu estatuto é paradoxal.
Por um lado, as fontes audiovisuais (cinema, televisão e registros sonoros em geral) são consideradas por alguns,
tradicional e erroneamente, testemunhos quase diretos e objetivos da história, de alto poder ilustrativo, sobretudo
quando possuem um caráter estritamente documental, qual seja, o registro direto de eventos e personagens históricos.
Por outro lado, as fontes audiovisuais de natureza assumidamente artística (filmes de ficção, teledramaturgia, canções
e peças musicais) são percebidas muitas vezes sob o estigma da subjetividade absoluta, impressões estéticas de fatos
sociais objetivos que lhes são exteriores. A questão, no entanto, é perceber as fontes audiovisuais e musicais em suas
estruturas internas de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos internos.
1519

a historiografia por ser um vestígio para os estudos. Porém, faz-se de grande valor os três termos
de Robert A. Rosenstone que corroboram para a formação do cineasta/historiador: visualizar,
contestar e revisar.

Visualizar a história é pôr a carne e osso no passado; mostrar-nos indivíduos em


situações que parecem reais, dramatizar acontecimentos, apresentar-nos pessoas
com as quais nos identificar, faze-nos sentir como se tivéssemos vivido
momentos e questões há muito extintos. É nos proporcionar a experiência e as
emoções do passado – e, nesse sentido, é algo muito diferente do
distanciamento e da análise de um texto escrito. Contestar a história é fornecer
interpretações que contradizem o conhecimento tradicional, desafiar visões
geralmente aceitas de pessoas, acontecimentos, questões ou temas específicos - de
caráter pessoal, nacional ou internacional. Revisar a história é nos mostrar o
passado de uma maneira nova e inesperada, utilizar uma estética que viola os
modos realistas tradicionais de contar o passado, que não segue uma estrutura
dramática normal ou que mistura gêneros e modos – tudo isso com a finalidade
de transformar o usual em inusual e fazer com que a platéia repense o que acha
que já conhece. (Rosenstone, 2015, p. 175).

Para a interpretação das obras cinematográficas e de suas narrativas a análise fílmica é


imprescindível nesta proposta textual, onde a coleta de informações passará pela desconstrução
da obra enquanto objeto de contextualização.

Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico


do termo, assim como se analisa, por exemplo a composição química da água,
decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar,
desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem
isoladamente “a olho nu”, uma vez que o filme é tomado pela totalidade. Parte-
se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de
elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire
um certo distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser
mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da
análise. (Vanoye; Goliot-Lété, 2012, p. 14, 15).

Neste trabalho fez-se a escolha pela análise do espaço cinematográfico, no qual se


permite entender a mensagem a ser transmitida ao espectador, fazendo-se valer de diversos
termos caros para a gramática do cinema, tais como utopia/distopia, campo diegético, entre
outros.

É importante, então, distinguir vários tipos de espaço e conseguir dar-lhes


nomes. O espaço diegético é ora representado, ora não representado visualmente. No
segundo caso, é “pensado” pelo espectador a partir da dedução, da recosntituição
imaginária. Quanto ao espaço representado na imagem (“conteúdo” da
imagem), é inseparável do espaço “representante” (ou “significante”), matéria da
expressão fílmica, resultante de escolhas estéticas e formais. A fusão do

Tanto a visão “objetivista” quanto o estigma “subjetivista” falham em perceber tais problemas.” (Napolitano, 2019, p.
236-237).
1520

“representado” e do “representante” dá origem ao espaço narrativo. Esse espaço


narrativo alia, assim, o conteúdo a expressão: é descritível em termos de
elementos de cenário, de arquitetura, mas simultaneamente em termos de
movimento do aparelho, da profundidade de campo, de iluminações, de
enquadramento, de montagem... (Vanoye; Goliot-Lété, 2012, p. 125)

Portanto, fragmenta-se aqui, em três capítulos, tendo no primeiro um breve desenrolar da


legislação dos empregados domésticos, logo após, a análise do filme da Anna Muylaert e depois,
a análise da obra de Fellipe Gamarano Barbosa.

Empregadores domésticos e a legislação trabalhista brasileira

O caminho histórico entre as conquistas trabalhistas e o equilíbrio da sociedade em


respeitar os direitos humanos sempre foi tortuoso. A facilidade em ter um operário na residência
demonstra a herança de servidão tanto medieval como colonial, no caso do Brasil. As legislações
trabalhistas sempre vieram no contexto de conquistas das classes que lutaram por seus direitos.
Desde revoluções modernas, exemplo, Industrial e Francesa, que a premissa proletária é a garantia
de melhores condições de trabalhos. Por isso a importância desta relação entre a organização
institucional do operariado e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para o respeito
ao indivíduo.

Os novos direitos humanos do tipo “Direitos do Homem” eram inovadores e


peculiares em três maneiras. Primeiro, estes direitos pertencem a indivíduos,
concebidos como tais de formas abstratas, e não da maneira tradicional, como
pessoas inseparáveis de sua comunidade ou de outro contexto social. [..] Em
segundo lugar, e como consequência, estes direitos são teoricamente universais
e iguais, visto que indivíduos considerados isoladamente somente podem ter
prerrogativas iguais, muito embora como pessoas possam ser completamente
diferentes. [..] Em terceiro lugar, e também como consequência do que foi dito
acima, estes direitos eram essencialmente de natureza política ou jurídico-
política, pois o objetivo de proclamá-los era fornecer garantias institucionais a
seres humanos e cidadãos. (Hobsbawn, 2015, p. 494-496).

Deste modo, a jurisprudência dos empregadores domésticos no Brasil vinha sem uma
regulamentação específica desde o nascimento da CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas no
Brasil a partir do ano de 1943 durante o governo de Getúlio Vargas até o ano de 1972, onde a lei
nº 5859 dispõe sobre a profissão de empregado doméstico. Nesta lei vê-se pela primeira vez a
garantia de férias remuneradas ao operário doméstico de 20 dias após 12 meses de trabalho,
porém, percebem-se também, poucas conquistas sociais, se compararmos a atual legislação.
1521

Art. 1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta


serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família
no âmbito residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei. Art. 2º Para
admissão ao emprego deverá o empregado doméstico apresentar: I - Carteira
de Trabalho e Previdência Social; II - Atestado de boa conduta; III - Atestado
de saúde, a critério do empregador. Art. 3º O empregado doméstico terá direito
a férias anuais remuneradas de 20 (vinte) dias úteis, após cada período de 12
(doze) meses de trabalho, prestado à mesma pessoa ou família. Art. 4º Aos
empregados domésticos são assegurados os benefícios e serviços da Lei
Orgânica da Previdência Social, na qualidade de segurados obrigatórios. Art. 5º
Os recursos para o custeio do plano de prestações provirão das contribuições
abaixo, a serem recolhidas pelo empregador até o último dia do mês seguinte
àquele a que se referirem e incidentes sobre o valor do salário-mínimo da
região: I - 8% (oito por cento) do empregador; II - 8% (oito por cento) do
empregado doméstico.
Parágrafo único. A falta do recolhimento, na época própria das contribuições
previstas neste artigo, sujeitará o responsável ao pagamento do juro moratório
de 1% (um por cento) ao mês, além da multa variável de 10% (dez por cento) a
50% (cinquenta por cento) do valor do débito. Art. 6º Não serão devidas
quaisquer das contribuições discriminadas nos itens II a VII da Tabela constante
do artigo 3º do Decreto nº 60.466, de 14 de março de 1967. Art. 7º Esta Lei
será regulamentada no prazo de 90 (noventa) dias vigorando 30 (trinta) dias após
a publicação do seu regulamento. Art. 8º Revogam-se as disposições em
contrário.672

A primeira modificação relevante na legislação destinada ao trabalhador doméstico,


deixando aqui em segundo plano a questão tributária e focando a questão social e de labor,
aconteceu em 1991, onde o presidente da república Fernando Collor de Melo sancionou a lei 8212
de 24 de julho de 1991, declarando como empregado doméstico a função do cidadão exercida em
lar sem remuneração, popularmente identificado no Brasil como “empregada do lar”673

Por fim, em 2015, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, foi sancionada a lei
decretada pelo Congresso Nacional identificada como Lei Complementar nº 150 que possibilitou as
grandes conquistas trabalhistas dos empregados domésticos serem agora respaldadas
juridicamente. Diversas modificações nas relações de trabalho desta categoria são percebidas nesta
legislação: a proibição de menores de 18 anos de exercerem a função de domésticos/domésticas,
a delimitação explícita da carga horária de trabalho, as novas remunerações que englobam

672 Ver em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5859-11-dezembro-1972-358025-


publicacaooriginal-1-pl.html acessado em: 13/08/2020.
673 Art. 15. Considera-se: I - empresa - a firma individual ou sociedade que assume o risco de atividade econômica

urbana ou rural, com fins lucrativos ou não, bem como os órgãos e entidades da administração pública direta, indireta
e fundacional; II - empregador doméstico - a pessoa ou família que admite a seu serviço, sem finalidade lucrativa,
empregado doméstico. Parágrafo único. Equiparam-se a empresa, para os efeitos desta Lei, o contribuinte individual e
a pessoa física na condição de proprietário ou dono de obra de construção civil, em relação a segurado que lhe presta
serviço, bem como a cooperativa, a associação ou a entidade de qualquer natureza ou finalidade, a missão diplomática
e a repartição consular de carreira estrangeiras. (Parágrafo único com redação dada pela Lei nº 13.202, de 8/12/2015). Ver
em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1991/lei- 8212-24-julho-1991-363647-normaatualizada-pl.html
Acessado em: 13/08/2020.
1522

horas/extras e outros adicionais, e principalmente, o trabalhador que tem sua moradia no local de
trabalho não o classifica como direito de posse do empregador.674

São estas modificações que servem de escopo para as narrativas destas obras citadas neste
ensaio, pois, o impacto de uma nova legislação que garante conquistas trabalhistas nunca antes
vistas em nosso país em uma sociedade enraizada pela herança escravocrata, latifundiária e colonial
que mantinha o empregador doméstico como um apêndice familiar da classe média de forma a
camuflar a servidão contemporânea.

Que Horas Ela Volta? – Os ambientes da compondo a senzala do século XXI

A cineasta Anna Muylaert, diretora de uma relevante filmografia, de obras como Durval
Discos, É Proibido Fumar, Chamada a Cobrar, E Além de Tudo Me Deixou Mudo o Violão, Mãe Só Uma e Preamar,
em seu quinto filme Que Horas Ela Volta? de 2015 deixou uma forte mensagem para a polêmica que
circundava o país diante dos debates acerca da nova legislação de trabalho doméstico. Não
somente pelo caminho jurídico que esta nova lei traria, mas, principalmente, pelos conflitos
sociais entre a classe média burguesa brasileira e o proletariado urbano, entre um vício social de
exploração do ofício doméstico e a necessidade de expurgar do Brasil suas raízes coloniais.

Em diversos contextos sociais percebe-se o forte domínio da elite brasileira e os


prestadores de serviços, atualmente no capitalismo, a necessidade de sobrevivência despertou um
forte crescimento do trabalho informal, destacando os “camelôs”, os serviços de manutenção do
cotidiano das pessoas e os servidores de aplicativos de celulares, transfigurado pela alcunha de
“empreendedores”, uma triste realidade que se fortalece diante das crises financeiras.

Em Que Horas que Ela Volta? têm-se muito mais que apenas a Lei complementar de 2015,
mas também o que as conquistas trabalhistas poderiam proporcionar de conquistas sociais, a filha
de uma empregada doméstica ingressar uma universidade pública (como exemplo do filme a FAU -
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP – Universidade de São Paulo)675.

O ponto inicial identificado na narrativa fílmica de Anna Muylaert neste trabalho foram as
relações intrínsecas entre os membros da família empregadora e a empregada Val, uma das

674
Ver legislaçã em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm acessado em: 13/08/2020.
675
Um dos maiores legados dos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff foi o aumento no
acesso ao ensino público superior em relação a governos
anteriores. Ver em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/acesso-de-jovens-de-baixa-renda-universidades-publicas-no- pais-
4-vezes-maior-que-em-2004-14851674> Acessado em: 13/08/2020.
1523

protagonistas do filme, nelas percebe-se o contexto burguês da classe média brasileira diante das
classes menos favorecidas, a antiga ideia de tratamento profissional com uma máscara hipócrita de
“ser quase da família”. Algumas cenas corroboram para esta afirmação, a cena inicial em que
remonta-se um passado próximo onde a Val tem carinho maternal pelo filho do casal, além disso,
esta mesma empregada sofre com o distanciamento em físico e sentimental de sua filha. Para
Almeida (2017, p. 10), “essa questão do afeto transferido pela babá de seus próprios filhos aos
filhos dos patrões nos remete forçosamente a triste lembrança dos tempos escravocratas das
mães pretas, que deixavam seus bebês nas senzalas para cuidar e amamentar os bebês das sinhás”.

A gratidão expressa por esta mesma personagem principal em presentear a patroa com
um conjunto de xícaras para café caracterizando-se aí uma gratidão subserviente. Este mesmo
presente gera um desconforto social quando a “falsidade” elitista é confirmada em das festas
proposta pela família. Contudo, as necessidades provenientes do estilo de vida contemporâneo
no país, onde a mãe sai para trabalhar, e os afazeres domésticos são deixados para os empregados
residenciais, possibilita a dependência social de classes distantes financeiramente, o que não
impede da exploração velada, morando aí um dos maiores receios dos opositores das conquistas
trabalhistas relacionadas aos empregados domésticos.

Outra questão que cabe ser colocada nesse contexto é a da discussão do


trabalho doméstico que deixa de ser feito por uma mulher que trabalha fora de
casa para ser feito por outra mulher. O filme questiona a transferência das
responsabilidades com as tarefas do lar de uma mulher para outra e não de uma
mulher para um homem ou para uma divisão entre os sexos, na medida em que
apresenta uma personagem masculina (Carlos) que não realiza trabalho fora de
casa e nem por isso assume qualquer afazer doméstico, nem sequer levantar-
se da mesa de jantar para pegar um copo d´água ou levar os pratos sujos para
a cozinha. (Almeida, 2017, p. 10).

A cultura fútil da sociedade brasileira também é destacada como um debate crucial na


formação das heranças escravocratas, a empregada doméstica entra através de uma conjuntura de
servidão, assim como no período colonial existiam específicas escravas que eram selecionadas
pelos proprietários para fazerem os serviços na Casa Grande, a festa ao som de Tom Jobim
mostra que o processo de interação entre a família e prestadora de serviços do lar não podem
ultrapassar conceitos burgueses, como a forma de servir, o talher a ser utilizado, novamente a
recusa da coleção de xícaras para café, por não ser do padrão estipulado pela patroa e a limitação
do espaço físico à cozinha, podendo sair apenas aos interesses da família. Outro ponto forte
desta cultura contemporânea é a entrevista que a Dona Bárbara concede a um colunista social, de
grande audiência no Brasil, os programas de entretenimento onde entrevistadores exibem as vidas
luxuosas de famosos e ricos, no filme, esta cena entra como uma metonímia deste tipo de produto
burguês consumido no país, além da referência da vida cotidiana durante a escravidão, onde os
1524

escravos para satisfazerem as necessidades dos proprietários podiam frequentar os ambientes da


Casa Grande, produzindo assim a clivagem.

Aqui, o ponto fundamental: a escravidão como relação social dominante


(embora não exclusiva) repercute na esfera do cotidiano e da intimidade de
maneira decisiva; delineiam-se três tipos básicos no sistema de relações
primárias (cotidianidade, intimidade, individualidade, vida familiar etc.) – as
relações intraclasse senhorial, as relações internas ao universo de vida dos
escravos, as relações intermediárias entre senhores e escravos. No curso dos
acontecimentos cotidianos, essas esferas, permanente e recorrentemente,
interpenetravam-se criando situações e momentos de aproximação,
distanciamento e conflito. Mas a clivagem, básica, permanecia irredutível. É,
evidentemente, difícil determinar na reconstituição desta história os dois
momentos de interpenetração e de manutenção das distâncias. Para da um
exemplo: a atitude em face do trabalho, decisiva em qualquer formação social,
fica marcada pelo estigma insuperável que identifica trabalho com servidão,
lazer com dominação. Por mais que os espaços de “amaciamento” e os
momentos de aproximação possam atenuar os pólos dessa clivagem, ela
remanesce irredutível. (Novais, 2018, p. 23).

As três zonas de exclusão social, simbolizadas em Que Horas Ela Volta?, são: a cozinha, o
“quartinho dos fundos” (dependência de empregada) e a piscina. Nestes dois ambientes a força
do legado separatista entre Casa Grande e a Senzala fica explicito. A área de maior concentração de
trabalho de Val fica sendo a cozinha, lá demonstra-se a divisão de acessos entre patrão e
empregado, incluindo o incômodo de “pseudoaceitação” de Dona Bárbara em relação ao
convívio de pessoas de diferentes nichos sociais. A determinada separação de alimentos, quando
percebe-se a celeuma que envolve o sorvete de Fabinho e a geléia da proprietária da casa. No
período escravista, a alimentação do trabalhador em estado compulsório, tinha por objetivo
apenas o fortalecimento do indivíduo para o labor. Lógico, que a situação de Val não é a mesma de
uma escrava nos séculos passados, porém, a consciência gerada por um estatuto imagético e não
jurídico entre a empregada doméstica e os patrões é contestado por Jéssica, quando ela questiona
a mãe como ela aprendeu as regras de que não se deve usar a piscina, comer o mesmo alimento
dos demais e sentar-se a mesma mesa que todos. Este acordo social é muito próximo da postura
que se criou ao escravo durante a colonização.

O almoço era servido lá pelas dez horas da manhã. O cardápio constava de


feijão, angu de milho, abóbora, farinha de mandioca, eventualmente toucinho ou
partes desprezadas do porco – rabo, orelha, pé etc. – e frutas da estação como
bananas, laranjas e goiabas. Embora houvesse interesse em se manter o negro
saudável e apto para o trabalho, não havia a preocupação com sua longevidade.
Em fazendas mais pobres, a comida com freqüência se resumia ao feijão com
gordura e um pouco de farinha de mandioca, o que acabava provocando seu
definhamento precoce. (Pinsky, 2018, p. 48).
1525

O pedaço de mar burguês em metrópoles como São Paulo, principalmente em bairros


da elite, no caso do filme, o Morumbi, sinônimo de riqueza e de disparidade social, já que favelas
cercam ruas e condomínios de luxo, é a piscina. Anna Muylaert coloca o paradigma da presença
insatisfatória de Jéssica na casa explodindo nos conflitos diante dos arredores desta área de lazer. Já
citado o imagético contrato social, inclui a proibição de empregados adentrarem na água, em uma
cena noturna o brilho da iluminação que ornamenta a piscina é um troféu de sucesso e de
pedantismo burguês, em outra as brincadeiras de adolescentes passam se transformarem em
problemas quando Pedrinho e Caveira incluem Jéssica. A Dona Barbara acidentada não aceita
esta “invasão” e manda desativar a piscina com a desculpa de que encontrou um rato no local.
Após um conflito entre mãe e filha (Val e Jéssica), justamente em torno do contrato social
imaginário, a filha reconhece ao Pedrinho que este “rato” era ela. Uma nova espécie de “roedor”,
uma filha de empregada doméstica que não teve a mesma criação da mãe, que reconhece seu
lugar na sociedade, imponderada, com consciência social, que choca a classe média por ter se
preparado para o vestibular da USP – Universidade de São Paulo, sendo a glória social a
aprovação neste processo seletivo e a comemoração de Val molhando seus pés em uma piscina
com pouca água. Esta é a forma de resistência contemporânea alinhada às lutas pela conquista de
direitos assim como as conquistas proporcionadas pelas revoltas escravistas.

A presença do negro na História do Brasil, não se resume ao trabalho pesado


baseado na submissão total. Como já vimos, os escravos fugiam, se matavam e
atentavam contra a vida de seus senhores. Isso nas condições de existência a que
eram submetidos, o que não era pouca coisa. Que dizer então das revoltas dos
negros? Não de um ou de dois, mas de grupos de negros que se levantavam
contra sua condição? (Pinsky, 2018, p. 92).

Outra zona determinante para o assombro social que a classe média brasileira tem das
conquistas trabalhistas e sociais dos trabalhadores domésticos e que expressam nosso passado
colonial está identificado no filme pelo “quartinho dos fundos”, em plantas habitacionais do país é
denominado de dependência de empregadas. Entra aí a nossa Senzala do século XXI. Os projetos
arquitetônicos habitacionais de luxo no Brasil firmam com veemência a necessidade das
dependências de empregadas, um local para a exclusão do servidor doméstico do convívio com a
família burguesa. Na obra Que Horas Ela Volta?, Jéssica almeja ser aprovada na prova de seleção para
a FAU – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP, sendo este um agente de transformação
social, demonstrado por ela ao dialogar com Dona Bárbara sobre os motivos de escolher este
curso. O marido da matriarca da família, Carlos, identifica-se com o lado artístico da menina, porém,
demonstra interesses além do profissional pela Jéssica, dando a ela, o que para a mãe são
“privilégios”, tais como jantar a mesma mesa, tomar o sorvete preferido de Fabinho entre outros.
1526

Na relação escravista no Brasil a vivência entre os proprietários e os escravos causava este


entrelaço de interesses, onde o abuso sexual e erotização da escrava eram corriqueiros.

Entrelaces entre senhores e escravas, utilização homossexual de cativos, paixões


ou violências que pontuavam, no mundo sexual, as relações entre o mundo dos
senhores e o da senzala, nada disso faltava a documentação judiciária relacionada
a Colônia, seja a das visitas diocesanas, seja a inquisitorial. Isso sem falar, uma
vez mais, no queixume dos religiosos, sobretudo jesuítas – sempre eles -,
incansáveis em denunciar abusos sexuais da escravidão – usos e abusos
heterossexuais, vale frisar, porque do “pecado nefando” jamais falaram, porque
deles não se podia mesmo falar. (Vainfas, 2018, p. 187).

Casa Grande: aproximação da prole burguesa e os prestadores de serviços domésticos

O filme Casa Grande de Fellipe Gamarano Barbosa expressa já em seu título uma
metáfora entre o tamanho da residência da família protagonista e um passado insipiente no país
que foi a estrutura latifundiária e escravista que tinha na centralização do poder dos engenhos de
açúcar a Casa Grande como moradia dos grandes proprietários de terras e de escravos. Ainda
nesse contexto, a grandiosidade da moradia demonstra a metonímia social do poder burguês
exposta na classe média brasileira, onde os seus servidores domésticos servem de ameaças a
estabilidade familiar, assim como as antigas revoltas escravistas ameaçavam o poderio destes
latifundiários. Uma ligação interessante entre o passado e presente tão próximos nas
características urbanas contemporâneas das grandes cidades e os engenhos açucareiros dar-se
inclusive no termo “sobrado”, na história escravista do país a moradia de grande porte da elite
colonial e na atualidade das metrópoles brasileiras, tais como, São Paulo e o Rio de Janeiro
identificado na obra fílmica como uma residência grande, de luxo, segura e em regiões nobres da
cidade.

Quanto aos “sobrados”, cujo significado referia-se ao espaço sobrado ou ganho


em virtude de um soalho suspenso, o que, portanto, podia indicar que estava
acima – forros assoalhados – ou embaixo do piso, chegavam a ter dois ou mais
andares. No interior dos sobrados maiores, a exemplo das vivendas do campo
várias atividades se desenvolviam, evitando o deslocamento de seus moradores.
A loja, ou escritório, instalada no primeiro pavimento, evitava que os estranhos
se introduzissem nos espaços de convívio da família. Tais cômodos tinham
função semelhante ao alpendre e varandas das casas de sítios ou casas térreas,
embora esses últimos servissem também de área de circulação. No segundo
andar, instalavam-se a sala e os quartos de tamanhos geralmente reduzidos. Os
escravos poderiam estar no sótão, ou no porão junto às cavalariças. (Algranti,
2018, p. 74).

A dependência de empregada, já identificada neste trabalho como a “senzala do século


XXI”, continua sendo o cerne do receio da classe média em relação às conquistas sociais dos
1527

servidores domésticos, destacado também nesta obra cinematográfica. Porém, agora a


aproximação do filho primogênito com estes trabalhadores é que remonta esta afirmativa. O
menino cria laços de afeto tanto pelo motorista da família (Severino) como pela empregada
doméstica. Ligações diferentes, mas que permeiam pela construção de uma interação cultural, o pai
falido, com dívidas, porém, com a “pompa” e fleuma diante dos problemas financeiros e uma mãe
de formação familiar burguesa (dar aulas de francês, preza pelos valores da família tradicional) e
os trabalhadores domésticos que preenchem o vazio sentimental do garoto, seja na companhia para
conversar, no ato de levar o menino a um prostíbulo (de nome, Mimosa), seja nas carícias intimas
que este recebe no quarto da empregada.

Outro elemento de forte identidade escravista colonial está em outro relacionamento de


Jean, o encontro no ambiente fora dos costumes dele, o ônibus, no qual o garoto apaixona-se pela
Luiza, uma menina de descendência nipônica e afro descendente, que problematiza mais uma
conquista social e jurídica que norteia as relações de pavor burguês da classe média e o
operariado brasileiro, a questão de cotas. Em dois momentos do filme esta garantia de direito é
exposta, o primeiro um debate em sala de aula onde a professora dialoga com a turma sobre a
opinião dos alunos e o segundo a Luiza expõe durante o churrasco da família de Jean, sendo o
ápice que culminará na briga familiar e na busca do garoto pelo suporte sentimental que ele tinha
com os empregados da casa. A ida de Jean ao encontro de Severino676 e de Rita mostra a rica e
latente integração cultural e social que os filhos da burguesia têm com os proletários residenciais,
assim, a transição Casa Grande e Senzala para a residência grande e a dependência de empregada é
um forte legado do fim do período escravista brasileiro677.

Conclusão

É imprescindível ressaltar que as relações sociais entre a classe média brasileira e as


conquistas trabalhistas dos empregados domésticos são conflituosas devido ao passado escravista,
latifundiário colonial que contribuiu com este legado nos dias atuais. Os avanços sociais que o
país teve durante os anos 2000 até a Lei complementar 150 de 2015 possibilitaram maiores
garantias de estabilidade trabalhista, mas juntamente com isto, maior força desta camada de

676
Uma fala importante que envolve o motorista da família Severino, está presente nos diálogos entre a matriarca
da família Sônia e o pai de Jean, quando após a demissão deste empregado da residência um oficial de justiça
notifica a família devido a irregularidades no pagamento da demissão de Severino. Hugo então, afirma que nesse
país, o Brasil, patrão não ganha na justiça, remontando um dos medos da classe média em relação aos avanços
sociais.
677
Busca-se aqui um forte comparativo entre a transição do fim da escravidão para o início do século XX, porém,
deixando claro, os legados enraizados até os dias de hoje na sociedade brasileira. (Mello, 2019).
1528

trabalhadores que puderam lutar por seus direitos com mais ênfase e representatividade, se
compararmos com anos anteriores.

Juntamente com os avanços na legislação trabalhista encontram-se as conquistas sociais


que estes trabalhadores passaram a ter, tais como acesso ao ensino superior (sistemas de cotas,
por exemplo), garantias jurídicas diante de processos trabalhistas, entre outros que possibilitam um
medo inerente a classe média burguesa brasileira que seria o de perder seu status quo. Nesse contexto,
as obras Que Horas Ela Volta e Casa Grande nos possibilita ao menos atentarmos a este debate,
ganhando relevância de grandes objetos para o estudo da história recente do país, seja como uma
fonte de pesquisa (Napolitano, 2019) ou como um olhar de cineassta/historiador (Rosenstone,
2010, p. 165-195).

Referências

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Gullane Filmes; Globo Filmes, 2015, 108 min. Color.

Casa Grande. Direção: Fellipe Gamarano Barbosa. Elenco: Marcelo Novaes, Suzana Pires, Clarissa
Pinheiro, Thales Cavalcanti, entre outros. Rio de Janeiro: Migdal Filmes, 2014, 115 min. Color.

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1530

A reflexão político-educacional de Mário de Andrade em torno da


modernização do cidadão brasileiro, nas décadas de 1920-1930

Paulo Henrique da Silva*

Resumo: Este Relatório Final objetiva contribuir à elucidação crítica do pensamento


mariodeandradeano nasdécadas de 1920 e 1930, no que concerne à educação e à cultura para a
formação humanizadora docidadão brasileiro. Nosso propósito é evidenciar a singularidade deste
pensamento diante das propostas tradicionais e autoritárias das décadas anteriormente referidas.
Demonstraremos o apreço valoroso atribuído por Mário de Andrade aos elementos educacionais
e culturais e as capacidades transformadoras destes quando manejados pelo Estado e por
instituições culturais capazes. Trabalharemos com o que consideramos ser o maior engajamento
de Mário de Andrade: a democratização da cultura. Para compreender a identidade nacional e
reorientar o desenvolvimento da nação, reflexão prioritária da época, Mário defendia uma
integração entre passado e presente do Brasil, um projeto de reinterpretação do país pela óptica
cultural, de outra interpretação da formação do povo brasileiro. Sob a perspectiva da Nova História
Política e da categoria Cultura Política, construímos o trabalho, articulando a historiografia sobre
o tema às fontes de pesquisa, constituídas pelos textos produzidos por Mário, presentes em
discursos, artigos e em cartas endereçadas aos seus amigos intelectuais. Nesta documentação
coletada e publicada pela Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (RAM) pudemos acessar o
intenso diálogo intelectual, educacional e cultural acerca da modernização do Brasil nas décadas de
1920 e 1930, do qual Mário participou ativamente.

Palavras-chave: Mário de Andrade, Modernização do Brasil, Educação, Cultura, Política Cultural.

Nome fundamental da literatura brasileira, além de escritor, Mário Raul de Morais


Andrade (1893-1945, São Paulo) foi crítico de arte, musicista e pesquisador da cultura e da tradição
popular brasileira. Após participar da organização da Semana de Arte Moderna de 1922, em São
Paulo, muito além da arte e da estética, Mário de Andrade abriu-se a uma produção de grande
engajamento político-cultural nas décadas de 1920-30. Sua atuação visava à renovação cultural do
país, à valorização da identidade e da cultura brasileiras e à reflexão do projeto modernizador da
nação, que privilegiasse a ótica da cultura.

A década de 1920 no Brasil foi momento de grande agitação política e intelectual. Na última
década do século XIX e na primeira do XX, o projeto modernizador republicano partia da
necessidade de conhecer e definir a identidade nacional, pois, segundo o pensamento racista e
pseudocientífico da época, compreender a identidade do povo brasileiro e solucionar o problema

* Graduando em História pela Universidade de Brasília.


1531

da mestiçagem, à época percebida como característica muito negativa, seria essencial para planejar
o desenvolvimento do país e retirá-lo da posição de "atraso" civilizacional. Com o fim da I Guerra
Mundial, a posição da Europa como centro civilizacional, emanador da visão de mundo e das
ciências mais avançadas da época, ficou muito abalada. Abriu-se brechas nas nações periféricas do
ocidente a pensarem a si mesmas e por si mesmas.

Foi neste contexto, na década de 1920, que se intensificou no Brasil o debate político-
intelectual no que se refere às formas de solucionar o “atraso” civilizacional brasileiro. Ao longo
da década, a lógica da raça foi cada vez mais sendo superada pela lógica da cultura. A educação
passou a ser vista como principal estratégia de modernização nacional. A efervescência política e
renovadora da década expressou-se na fundação de muitas Ligas Civis pelo país; na criação da
Associação Brasileira de Educação, em 1924, que conduziu o debate modernizador educacional no
Brasil, por meio de seus congressos nacionais;678 nas várias reformas educacionais implementadas
pelos estados, todos estes tomando a educação como política salvacionista para os problemas
sociais brasileiros.679

Neste contexto e no âmbito do movimento modernista é que Mário de Andrade e o grupo


de intelectuais ao qual pertencia se destacaram por defenderem um projeto de educação
modernizador da nacionalidade brasileira sob uma perspectiva diferenciada. Ao reivindicarem a
renovação da reflexão sobre o Brasil, parte dos modernistas encararam a arte e a cultura não só
como inspiração de valor estético, mas também como campo de reflexão para a problematização
das condições sociais do Brasil. Idearam a solução modernizadora pela articulação cultura-
educação.

Assim, nos anos 1920, apresentaram-se diversos projetos educacionais para solucionar a
questão do “atraso” brasileiro, e mesmo dentro do modernismo, um dentre aqueles, existiram
diferentes visões/soluções para o país. Por exemplo, o grupo modernista paulista denominado
"Verde-Amarelo", composto por personalidades como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti
del Picchia apresentava perfil conservador, ufanista e autoritário.

Na contramão do projeto de Brasil dos Verde-Amarelos, estava Mário de Andrade e seu


grupo de amigos, localizados também em São Paulo, como Paulo Duarte, Sérgio Milliet, Rubens
Borba de Morais, Paulo Magalhães, Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral e Guilherme Figueiredo.
Predominava neste grupo a preocupação com a democratização da cultura ou, a cultura "para

678 Ver as edições anteriores dos Projetos PIBIC inseridos na perspectiva mais ampla da pesquisa da professora
coordenadora.
679 Como em São Paulo, em 1920, com Sampaio Dória, no Rio de Janeiro – Distrito Federal, em 1925, com Fernando

Azevedo, na Bahia, com 1925, com Anísio Teixeira, em Minas Gerais, entre 1925 e 1928, com Francisco Campos.
1532

todos", que pensava na inclusão da classe trabalhadora brasileira por meio de uma educação integral
e humanizadora.680 Para este grupo, cultura e educação eram percebidas como imprescindíveis e
inseparáveis para a transformação social brasileira. Liderando este grupo, Mário de Andrade se
destacou no debate intelectual acerca da formulação de uma educação crítica e da valorização da
cultura brasileira.

Com a "Revolução" de 1930 e o redirecionamento do regime político no país, Getúlio


Vargas assumiu a presidência na forma de Governo Provisório, propondo conduzir a instauração
de um tempo novo e de uma nova forma de fazer política. Convidou e/ou assimilou aos quadros
governistas intelectuais de diferentes correntes de pensamento, positivistas, integralistas, católicos,
socialistas e modernistas.

Nesse momento "pós-revolucionário" também se inseriu Mário de Andrade, como


intelectual convidado a contribuir com os "novos tempos".681 Teve então a oportunidade de
transformar suas reflexões em prática, de explicitar sua visão do papel do Estado na solução de
problemas sociais e na realização de políticas cultural-educacionais.

O papel da cultura na formação do cidadão brasileiro, segundo Mário de Andrade

Uma vez desbancada da posição hegemônica na política nacional após a Revolução de


1930,e ainda derrotada na Revolução Constitucionalista de 1932, a burguesia paulista ideou um
caminhode retorno à centralidade política dentro da federação brasileira. Para tanto, engajou-se na
realização de projetos cultural-educacionais em São Paulo para o cidadão paulista, que
projetassem o estado como vitrine, como vanguarda da modernização brasileira.

Dentre essa burguesia preocupada com a recuperação hegemônica de São Paulo


destacou-se Fábio Prado e seus companheiros de classe política econômica ̶ "os ilustrados",
como os chamou Elizabeth Abdanur (1992).

680 As trocas, contribuições, críticas e amadurecimento do pensamento conjunto desse grupo aconteceram entre 1926
e 1931, no apartamento de Paulo Magalhães, como este mesmo menciona em seu livro “Mário de Andrade por ele
mesmo” (1985).
681 Mário foi professor de História da Música e de Estética Musical no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo

(professor em 1922, catedrático a partir de 1924); colaborou na reforma curricular do Instituto Nacional de Música,
em parceria com Luciano Gallet e Antônio de Sá Pereira (1931); foi diretor do Departamento de Cultura do Município
de São Paulo, chefiando, também, a Divisão de Expansão Cultural do mesmo instituto (1935-1938); foi um dos
fundadores da Sociedade de Etnografia e Folclore (1936); organizou a Missão de Pesquisas Folclóricas (1938); foi
diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal, e nesse lecionava Filosofia e História da Arte (1938-
1940).
1533

Integrante da alta e tradicional elite paulista, Fábio Prado682 entrou em confluência com
a posição de Mário de Andrade, que defendia ardorosamente a necessidade de investimento na
cultura para o desenvolvimento social. Prado chegou a usar a expressão "situação de mazela
espiritual" para referir-se ao desprezo pelos meios culturais por partes dos governos e dos
homensricos paulistas. (Abdanur, 1992).

Nomeado prefeito da capital paulista em 1934, durante a interventoria de Armando


Sales,Fábio Prado convidou outro grande defensor da cultura, o jornalista Paulo Duarte, para
a chefiado seu gabinete, e este convidou Mário de Andrade para o governo paulista. Juntos, Paulo
e Márioconceberam o Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, criado em
1935, órgãoque exerceria larga influência na democratização da cultura e do qual Mário foi o
primeiro diretor.Entretanto, ainda que defensores da cultura, os posicionamentos do prefeito e
de Mário de Andrade não partilhavam exatamente os mesmos valores. Para Prado, a construção
de instituiçõesde cultura e de ciências – como a USP, a Escola Livre de Sociologia e Política e o
Departamentode Cultura – deveriam conduzir o país, necessariamente guiado pelo estado de
São Paulo, rumo à “verdadeira nacionalidade”, significando harmonia social e estabilidade
política. Em outraspalavras: controle das massas, precisamente imobilização política, combate
às ideias e militâncias socialistas e comunistas, direitos mínimos aos trabalhadores e educação
como fonte de disciplina do cidadão-trabalhador (Abdanur, 1992).

Enquanto Prado enxergava no projeto cultural paulista a oportunidade de realocar o


estadona simbólica e prestigiosa posição de "locomotiva condutora da nação", Mário reclamava
políticas cultural-educacionais capazes de "elevar o espírito"683 do cidadão comum, porque
acreditava que para modernizar o país, os trabalhadores deveriam modernizar-se.

Iniciemos a análise dos argumentos defendidos por Mário por meio do seu discurso na
formatura dos alunos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em 1935: “porque
nãoé apenas a cultura que anda desnorteada por cá, antes, a reação moral diante dos problemas
da cultura é que ainda não se elevou nada; anda réptil, viscosa, preguicenta, envenenando
tudo”.684

Quando teceu esta crítica, Mário referiu-se à burguesia brasileira que, para ele, era
demasiado preocupada e limitada a apenas certos aspectos dos problemas nacionais. Era a

682
Prefeito da cidade de São Paulo entre setembro/1934 a abril/1938.
683 Por "elevação do espírito" entenda-se a elevação do nível cultural dos trabalhadores, do processo de conferir a essas
ferramentas intelectivas capazes de os fazerem gozar do acesso aos bens culturais.
684
Revista do Arquivo Municipal - RAM-26, 1936: 77.
1534

"reação moral preguicenta”685 da burguesia que dificultava os avanços em torno da


democratização cultural,o que, justamente, ia de encontro ao “espírito da época”, que demandava
avanços intelectuais e político-institucionais. Por “espírito da época” entenda-se os esforços de
formulação e popularização da brasilidade, algo para o qual, segundo o escritor, a burguesia
brasileira não demonstrava empenho.

Na ocasião da formatura, disse ele que no Brasil não havia mecenas, pois, "os ricos, mesmo
inculturados, pensavam ser culturados, já os pobres, em outra mão, mesmo inculturados, não se
pretendiam culturados".686 Também aqui Mário criticou diretamente a elite econômica brasileira.
Chamando-a de inculturada, indicava sua deficiência intelectual e denunciava o desinteresse dela
pelo fomento das coisas culturais.

Para ele, a classe burguesa, informada pelo catolicismo, fazia caridades apenas às Santas-
Casas, doava, apenas, aos pobres, aos doentes, aos idosos e às crianças.687 Não que criticasse a
açãode doar em si, mas a limitação e a intenção que a regia. Para ele, se tratava de uma espécie
de caridade cuja ação visava um retorno: a salvação de si. O que pode ser visto como uma crítica
à filantropia de “manutenção à pobreza”. Tanto para ele quanto para Fábio Prado, se tratava de
um arcaísmo a filantropia de “assistência à pobreza” e o desprezo, seja oficial ou de ordem
privada, pelo fenômeno cultural (Abdanur, 1992).

Para o modernista, era necessário ir além, e, para isso, era imprescindível trabalhar na raiz
do problema, fomentando, assim, o ensino de cultura a todos,688 enfatizada por ele como uma
responsabilidade do Estado. Aqui fica bem explícito a defesa da democratização cultural pelo
modernista. Na sua visão, era o encadeamento cultura-educação que levaria à humanização, por
direito, do povo brasileiro, e isso seria a solução civilizacional do Brasil. Observemos que, em
sua visão, a humanização é direito de cada cidadão brasileiro. Para alcançá-la, a
formação/educação do ser tem que ser ampla, deve atender às necessidades de cultura, de
estética, de arte, para desenvolvimento completo do ser e não apenas para desenvolvimento dos
conhecimentos e das habilidades do indivíduo que o adéque às demandas das instituições
capitalistas. Ainda no mesmodiscurso, Mário de Andrade afirma:

De uma proteção á cultura todos desconfiam porque ainda não se percebeu


em nossa terra que a cultura é tão necessária como o pão, e que uma fome

685 Com "reação moral da burguesia brasileira" Mário referia-se ao desinteresse e à falta de atitude para a produção de
modernização para a maioria. A burguesia brasileira, segundo percepções de Mário, era apática e não se sensibilizava
com a popularização da cultura.
686
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consoladajamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou a qualquer país.


[...] Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos
trago o conviteda luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém
não será talvez tãovulgar, pois que não vos convido á luta pela vossa vida, nem
á caridosa dedicaçãopela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por
uma realidade mais cultae mais de todos.689

No trecho acima, o intelectual elevou a importância da popularização da cultura ao


mesmopatamar do “pão”, para expressar a essencialidade da cultura para a sobrevivência do
"humano". Diante do descrédito sofrido pela cultura no país e diante do tipo de "benevolência"
oferecido pelanossa burguesia, Mário insistiu que a "fome consolada", ou seja, a caridade, nunca
foi suficiente para felicitar país algum, e que o desenvolvimento do país estava exatamente na
"realidade maisculta e mais de todos".

A popularização da cultura para a humanização da maioria

Em carta publicada em 1937, endereçada a Paulo Duarte, Mário apontava uma das
formas de concretizar a popularização da cultura: “cumpre organizar os serviços, forçar a
vitalidade dosmuseus e a criação de institutos culturais que ajam pelos processos educativos
extrapedagógicosque cada vez mais estão se tornando os mais capazes de ensinar”.690 Mário e seu
grupo acreditavamna eficiência que os institutos culturais poderiam desempenhar no cenário
sociocultural brasileiro. Ao afirmar a capacidade promissora dos “processos educativos
extrapedagógicos”, duas propostas são destaque nos escritos e nas realizações do intelectual: a
atitude estética e os parques infantis.

Dentre os institutos culturais que realizariam os processos educativos extrapedagógicos,


osmuseus ocupavam posição de relevância na proposta de Mário, justamente pela importância
que ele dava à atitude estética. Dentre o amplo escopo de sugestões educativo-culturais, Mário
definia "atitude estética" como um gozo pelo prazer desinteressado na contemplação reflexiva
das várias formas de manifestação artística (Coutinho, 2017).

Este “prazer desinteressado na contemplação reflexiva” dizia respeito à percepção crítica


fundamentada do sujeito que observa uma pintura, por exemplo. Ou melhor, não se tratava de
desinteresse propriamente dito, todavia, de uma relação cujo objetivo era “elevar o espírito” do

689
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observador. Por isso, para o modernista, a arte deveria ter propósito, não devendo ser arte pela
arte.

Ao falar sobre vulgarização ou popularização da inteligência, Mário acreditava que o


conhecimento científico, feito dentro de organizações responsáveis, ao contrário do que era
costume, sendo mantido e compartilhado apenas entre a elite intelectual, deveria ser difundido
parao povo, no entanto, não em situação de tutela, mas de irradiadores. Assim Mário concebia
os museus:

Outra cousa que me parece de enorme e imediata necessidade é a organização


demuseus. Mas, pelo amor de Deus! museus à moderna, museus vivos, que
sejam um ensinamento ativo, que ponham realmente toda a população do
Estado de sobressaio contra o vandalismo e o extermínio. [...] Os museus
municipais devem ter outra constituição, que será regulamentada pelos
governos centrais. Devem conter de tudo. Devem ser museus arqueológicos,
folclóricos, históricos, artísticos e também de ar livre e indústria691.

Para o intelectual, se os museus fossem espaços vivos, de “ensinamento ativo”, haveria a


presença do povo nesses lugares, e o próprio povo protegeria esses lugares contra o vandalismo
eo extermínio. O assunto vandalismo era debatido naquele momento. Inclusive foi fruto de uma
campanha de 1937, denominada “Contra o Vandalismo e o Extermínio”, desencadeada por
PauloDuarte, no jornal O Estado de S. Paulo. Ainda sobre os museus, continua Mário:

Mas não se esqueça, Paulo Duarte, de legislar que nesses museus municipais,
como em quaisquer outros, haverá visitas obrigatórias, um dia de trabalho, de
operários, estudantes, crianças etc. Visitas vivas, sem conferência de hora, mas
acompanhadas de explicador inteligente. Sem isso não haverá museu, mas
cemitério. Sem isso, sem o auxílio do povo esclarecido, jamais conseguiremos
nada de permanentemente eficaz contra vandalismos e extermínios692.

Ao explicitar que estudantes, crianças e operários deveriam frequentar esses espaços


Máriodeixou claro quem era o alvo da democratização cultural. Ao reivindicar a presença de um
guia nasvisitas, ou, um “explicador inteligente”, o intelectual insiste na a necessidade de se fazer
a ponte entre o conhecimento disponível no espaço museológico e os visitantes, o que para ele
era de sumaimportância.

Além dos museus, Mário defendeu a criação da "Coleção de livros populares", que eram
“pensadas como soluções para tornar a arte mais acessível às camadas mais pobres da sociedade”
(Schneider, 2002, p. 82). Dentro dos museus deveriam ser disponibilizadas coleções de grandes

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obras, de todas as escolas de arte, reproduzidas por meios mecânicos. Os livros popularesseriam
feitos por Mário e trariam registros sobre pintores e escultores (Schneider, 2002).

Quanto ao outro grande projeto de Mário, a criação dos parques infantis, se integrava às
propostas da Divisão de Educação e Recreio693 do Departamento de Cultura. Tratava-se de um
projeto pioneiro em São Paulo e liderado pelo escritor, direcionado inicialmente para crianças
entre 3 e 12 anos, filhas da classe trabalhadora. Tendo em vista os princípios de educar, assistir e
recrear,esses parques buscavam resgatar e construir a identidade cultural brasileira, conhecer os
hábitos culturais das crianças, ensinar a cultura nacional e despertar a consciência nacional e a
solidariedadehumana (Faria, 1999).

Dentre os usos metodológicos de ensino-aprendizagem estavam os jogos lúdicos, que


atendiam aos propósitos de estimular a criatividade, a arbitrariedade e de ensinar regras. Os parques
infantis se valiam de pesquisas nas comunidades em que estavam inseridos a fim de saberem sobre
a situação social. Segundo Faria (1999), não era uma instituição assistencial, mas educativa, focada
na cultura, não compartilhando da pedagogia tradicional, da qual Mário era crítico. De início
foram criados três unidades: D. Pedro II, Lapa e Ipiranga; posteriormente, foram instituídos o
da Mocca e o de Santo Amaro. Mário empenhou-se bastante na defesa dos parques. Vejamos
esse seu empenho ao escrever ao chefe de gabinete do prefeito de São Paulo:

Sim, temos enorme necessidade de escolas primárias e de alfabetização. Mas a


organização intelectual de um povo não se processa cronologicamente,
primeiro isto e depois aquilo. [...] Não entreparemos portanto no sofisma
sentimental do ensino primário. Ele é imprescindível, mas são imprescindíveis
igualmente os institutos culturais em que a pesquisa vá de mãos dadas com a
vulgarização, coma popularização da inteligência694.

Vemos que o modernista reconhece que o ensino primário é imprescindível, reconhece


a necessidade da alfabetização em um país com tantos analfabetos à época. Contudo, ele alerta
para a complexidade do processo educativo e da aprendizagem. Tal como entendida a escola
primária àépoca, de forma apegada e tradicional, ela não seria capaz de realizar a tarefa necessária
de a criançaexpressar-se artisticamente, o que integra o processo de constituição de cada sujeito.
Em razão dessa incapacidade das escolas primárias no Brasil, Mário depositava seus votos nas
instituições culturais, que dariam às crianças brasileiras a oportunidade de expressarem-se através
da produçãoartística” (Schneider, 2002, p. 79).

693 A Divisão de Educação e Recreio era dirigida por Nikanor Miranda.


694
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Outros problemas civilizadores: a questão do teatro e do canto brasileiros

Em 1937, o Departamento de Cultura de São Paulo, ainda dirigido por Mário de


Andrade, organizou o primeiro "Congresso da Língua Nacional Cantada no Brasil", em São
Paulo. Para anunciar a ocasião, Mário publicou no jornal O Estado de S. Paulo um texto intitulado
“A língua nacional”, expondo os objetivos do Congresso. Esses, segundo ele, tratavam da “[...]
escolha dumalíngua-padrão a ser usada em nosso teatro erudito e o acondicionamento dessa
língua-padrão às exigências do canto”.695 Ou seja, a finalidade do Congresso era tratar dos
problemas brasileiros de fonética, da dicção cantada e da declamação feita no teatro.

O intelectual, encabeçando a organização daquele evento, engajou-se em tal empreitada,


porque, para ele, tratava-se de problemas de ordem civilizadora, a qual o Brasil deveria
necessariamente atender. Ele dizia: “[...] por certo, a intenção de pôr em marcha problemas
civilizadores de tamanha importância, que outro não foi o propósito do Departamento de
Cultura,é que dá razão ao interesse que o Congresso está despertando nos meios que se dedicam
à filologia e à música”.696 Logo de início, no artigo “A língua nacional”, Mário apresentou a
seguinte ressalva:

Não se tratará, pois, de desrespeitar a língua dos Portugueses, mas


exclusivamente de respeitar um bocado mais a nossa e defendê-la dos crimes
e dos perigos que está sofrendo no teatro e no canto do Brasil. [..] A fala
nacional,perturbada por fortes diferenciações regionais, ainda não se definiu
em suas manifestações artísticas nem no teatro, nem na declamação, nem na
arte.697

Anunciando o evento e já preocupando-se com as críticas que poderia vir a sofrer por
partedo Congresso, quanto às intenções de tal proposta, esclareceu Mário:

Quem quer que frequente o teatro nacional ficará desagradavelmente ferido,


não pela má dicção de cada artista em particular, mas pela diversidade de
pronúnciasque se entrechocam no ar. Pronúncias e sutaques vários, acusando
o Nordestino,o Paulista, o Gaúcho, e o que é pior, o descendente de Italianos
e Portugueses. [...] E a obra de arte assim apresentada se torna uma babel
malsoante, irregular de estilo e de sonoridade e, muitas vezes, por isso, de
penosa compreensão parao ouvinte698.

Ao fazer essas afirmações, Mário, mais uma vez, demonstra sua preocupação com os
apreciadores das diversas manifestações artísticas. Se, para ele, todos deveriam ter acesso aos

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bensculturais, deveriam, necessariamente, ser capazes de compreender a mensagem transmitida.


Nessapassagem e em outras transcritas, pode-se interpretar que Mário pretendesse defender a
homogeneização da língua brasileira. Mas ele mesmo, ao convocar o Congresso, explicou que
nãohavia feito parte das cogitações do Departamento de Cultura se contrapor às diferenciações
fonéticas de uma região a outra do país:

[...] o que a gente brasileira não pode mais deixar à tonta e sem nenhum critério
civilizador são as manifestações eruditas da arte de falar, que em todos os
paísescivilizados são fixadas, ou pelo consenso duma tradição feliz ou pela
determinação de quaisquer organismos competentes699.

Ele exemplifica tal realidade nos países considerados civilizados com a Itália, Alemanha
e França, onde havia padronização da língua nas expressões artísticas – dentre as quais ele mais
ressaltou, o teatro.

Para ratificar esse ponto trazemos a contribuição exímia de Botelho e Hoelz (2018, p.
349-350), que consegue complexificar essa questão:

A proposta do Congresso de fixar normas – e não leis, como se faz questão


de advertir – de pronúncia para a língua cantada implicaria unificação apenas
no sentido de permitir comunicação entre a linguagem do canto erudito e a
diversidade da língua popular, ao codificar essas diferenças em uma tradição –
flexível, como diz o convite – que fecundasse o desenvolvimento artístico
daquele, até então penalizado pelas “soluções improvisadas” e individualistas,
e que servisse de alternativa ao modelo eurocêntrico do bel canto. Mas não
unificação no sentido de homogeneização, isto é, de apagamento dessas
diferenças, que constituem “uma força que nenhuma pessoa nem nenhuma
entidade coletiva conseguirá destruir [...]”. Nesse sentido, a proposta de
adoção de uma língua-padrão para o canto erudito, ainda que pudesse atuar
como fator de solidariedade nacional, era convergente sobre o sentido
utilitário e “desprovincianizante” das ideias do autor – menos cantar em
uníssono a músicabrasileira do que dotá-la de instrumentos próprios para se
inscrever no concertopolifônico da música ocidental.

Podemos entender a defesa de Mário no contexto da época, em que compreender ou


definir a cultura nacional era preocupação identitária fundamental. Como se entendia que a
cultura nacional estava em fase de formação, portanto, ainda sem padronização, o intelectual
queira protegê-la de uma europeização no canto e na fala, de proteger a autenticidade do falar
brasileiro, para que o país pudesse ser incluído no concerto polifônico da música ocidental.
Tratava-se, portanto, de uma postura “desprovincianizante” e de defesa da brasilidade.

Finalizando a correspondência com Paulo Duarte, Mário conclui:

699
RAM-206, 2015: 64 e 67.
1540

Para terminar quero aplaudir sem reservas o trabalho de defesa do nosso


patrimônio cultural a que agora você está se dando com tanta atividade. Num
país como o nosso em que a cultura infelizmente ainda não é uma necessidade
quotidiana de ser, está se aguçando com violência dolorosa o contraste entre
umaelite que realmente se cultiva e um povo abichornado em seu rude corpo.
Há queforçar um maior entendimento mútuo, um maior nivelamento geral de
cultura que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos e em
consequência lhe dêuma validade verdadeiramente funcional. Está claro, pois,
que o nivelamento nãopoderá consistir em cortar o tope ensolarado das elites,
mas em provocar com atividade o erguimento das partes que estão na sombra,
pondo-as em condição de receber mais luz. Tarefa que compete aos
governos700.

Observamos então que o intelectual atribuía à elite a falta de engajamento para tornar a
cultura rotineira entre a população. Para Antônio Cândido (Duarte, 1985, p. XIV), no que tangeà
parceria entre Mário de Andrade e Paulo Duarte, não se tratava apenas da defesa de rotinização
da cultura, mas da “tentativa consciente de arrancá-la dos grupos privilegiados para transformá-la
em fator de humanização da maioria, através de instituições planejadas”. Botelho e Hoelz (2018),
chamam nossa atenção para o contraste que Mário fez entre "uma elite que realmente se cultiva e
um povo abichornado em seu rude corpo”, evidenciando que a hierarquia social também é
traduzida na diferença de acesso à cultura. Sabemos que o sistema capitalista não rege a economia
de forma mecânica, pura, ele é operado de maneira a estabelecer relações nessa estrutura que
possam organizar a sociedade de forma a adequar-se a ele, e/ou a legitimá-lo.

Por isso, caberia crítica a Mário de Andrade ao não considerar o status quo e a correlação de
forças socioeconômico-políticas. A princípio, se pode cogitar a possibilidade de ingenuidade do
intelectual ao atribuir uma nova função à burguesia brasileira, a de elevar as classes populares até o
patamar de acesso à cultura que só a elite tinha; ou que Mário tivesse um pensamento enviesado
por certos condicionantes teóricos – incapazes de abarcar a complexidade social – por depositar
votos nessa proposição.

Conclusão

Diante da pesquisa realizada, evidenciamos a complexidade e a originalidade do


pensamento político, cultural e educacional de Mário de Andrade. Educação e cultura para ele eram
encadeados e necessariamente inseparáveis. Suas proposições de modernização da classe
trabalhadora brasileira passavam por um projeto cultural-educacional complexo e interligado em
diversos níveis de empreitadas políticas, culturais, educacionais e institucionais, que transformaria

700
RAM-206, 2015: 74.
1541

os sujeitos, humanizando-os, “elevando seus espíritos”. Por meio desse processo, ele defendia que
a sociedade brasileira poderia efetivamente ser transformada, uma vez que a oportunidade de
acesso aos bens culturais não seria mais restrita à elite econômica.

Vimos que, no contexto de um amplo projeto para retomar a hegemonia de São Paulo no
quadro da federação brasileira, um grupo da burguesia paulista investiu em um grande projeto
cultural. Ainda que não compartilhasse exatamente dos mesmos intentos desse grupo mais amplo,
Mário de Andrade e o grupo de amigos intelectuais afins com seu pensamento se articularam nessa
oportunidade, comunicando suas visões de educação, de cultura, de formação do cidadão brasileiro,
que desencadeassem a modernização efetiva da nação brasileira.

Quanto à visão de educação do cidadão brasileiro, mediante a educação cultural, era


fundamentada pelo intelectual por meio de atividades extra pedagógicas, que seriam planejadas e
promovidas por instituições culturais, particularmente os museus, os parques infantis e as coleções
de livros populares. A democratização da cultura, a popularização da arte, o acesso de todos aos
bens culturais, pensados e propostos por ele, visavam uma nação civilizada para um povo civilizado.
Civilizar o povo brasileiro significava elevá-lo culturalmente, desenvolvê-lo, integrá-lo a um projeto,
e não subjugá-lo a um.

Fontes

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https://bit.ly/3jEmGUF. Acesso em: 27 jul. 20.
Revista do Arquivo Municipal – RAM, n. 206, “A língua nacional”, p. 63-69, 2015. Disponível em:
https://bit.ly/3jEmGUF. Acesso em: 27 jul. 20.
Revista do Arquivo Municipal – RAM, n. 206, “Carta a Paulo Duarte”, p. 71-75, 2015.
Disponívelem: https://bit.ly/3jEmGUF. Acesso em: 27 jul. 20.

Referências

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de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual deCampinas.
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Botelho, André; Hoelz, Maurício. Macunaíma contra o Estado Novo: Mário de Andrade ea
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Cardoso, Rafael. O intelectual conformista: arte, autonomia e política no modernismobrasileiro.


O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 26, n. 40, p. 179-201, jan.-jun. 2017.
1542

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Faria, Ana Lúcia Goulart de. A contribuição dos parques infantis de Mário de Andrade para a
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Iamashita, Léa Maria Carrer. Os projetos de educação e de nação no debate intelectual sobrea modernização
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Schneider, Marta Inês. “A arte é feita com sangue, espírito e tumulto de amor”: um estudo das
reflexões de Mário de Andrade sobre arte e educação. Dissertação de Mestrado – Faculdade
de Educação, Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, p. 103, 2002.
1543

A Construção do Modelo de Segurança Pública no Brasil


em meio a transição do Estado de Segurança Nacional para o
regime democrático

Paulo Henrique Matos de Jesus*

Resumo: Visto que o processo de transição do Estado de Segurança Nacional para o regime
democrático não se deu de maneira plena e completa, ele acabou permitindo a presença de diversos
traços característicos da estrutura autoritária ditatorial que se espalharam por todos os níveis da
sociedade brasileira, sobretudo no tocante ao âmbito da Segurança Pública e principalmente no
que se refere à manutenção do controle jurídico-institucional da Polícia Militar pelo Exército e das
práticas repressivas de preservação da “segurança interna” e combate ao “inimigo interno”. Além
da preservação da relação entre civis e militares. Nesse sentido, a pretensão deste trabalho é
investigar como se deu o processo de transição do Estado de Segurança Nacional para o regime
democrático no que se refere ao processo de inclusão dos princípios básicos da Segurança Pública
na Constituição Federal de 1988 e qual o tratamento dado tanto à Polícia quanto ao Corpo de
Bombeiros Militar. Sabendo que a transição se processou a partir de um grande acordo que reuniu
tanto os próprios militares quanto setores políticos e da própria sociedade civil que sustentava ou
se opunha à ditadura, considera-se que em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Carta
Constitucional que, entre suas novidades, descentralizou poderes, ampliou direitos civis e sociais,
reforçou as instituições democráticas e substituiu o modelo de Segurança Nacional pelo de
Segurança Pública. Assim, a Constituição de 1988 limita e consagra as discussões sobre Segurança
Pública ao espaço exclusivo do campo político e meramente policial, ou seja, exclui, minimiza e
menospreza a importância da participação da sociedade e dos demais segmentos das Ciências
Humanas e Sociais. Além disso, essa visão essencialmente jurídica e policialesca acaba
possibilitando, vez por outra, a emergência de uma série de medidas extremas de supressão de
direitos com vistas a atender ao clamor popular diante de eventos criminosos de grande repercussão
midiática.

Palavras-chave: Segurança Pública, Polícia Militar, Ditadura civil-militar.

Visto que o processo de transição do Estado de Segurança Nacional para o regime


democrático não se deu de maneira plena e completa, ele acabou permitindo a presença de diversos
traços característicos da estrutura autoritária ditatorial que se espalharam por todos os níveis da
sociedade brasileira, sobretudo no tocante ao âmbito da Segurança Pública e principalmente no
que se refere à manutenção do controle jurídico-institucional da Polícia Militar pelo Exército e das
práticas repressivas de preservação da “segurança interna” e combate ao “inimigo interno”, além
da preservação da relação entre civis e militares. Nesse sentido, a pretensão deste trabalho é
investigar de que maneira se deu o processo de transição do Estado de Segurança Nacional para o

*Mestre em História pelo Programa de Pós-graduação em História e Conexões Atlânticas da Universidade Federal do
Maranhão (PPGHis-UFMA); integrante do Grupo de Pesquisa CNPq em Poderes e Instituições, Mundos do Trabalho
e Ideias políticas-POLIMT/PPGHis-UFMA.
1544

regime democrático no que se refere especificamente ao processo de inclusão dos princípios


básicos da Segurança Pública na Constituição Federal de 1988 e qual o tratamento dado tanto à
Polícia quanto ao Corpo de Bombeiros Militar.

Sabendo que a transição se processou a partir de um grande acordo que reuniu tanto os
próprios militares quanto setores políticos e da própria sociedade civil que sustentava ou se opunha
à ditadura, considera-se que em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Carta Constitucional
que, entre suas novidades, descentralizou poderes, ampliou direitos civis e sociais, reforçou as
instituições democráticas e substituiu o modelo de Segurança Nacional pelo de Segurança Pública.
Porém, para Jorge Zaverucha (2005), apesar desses avanços, diversos aspectos marcantes do
Estado de Segurança Nacional continuavam presentes porque foram mantidas as “cláusulas
relacionadas com as forças armadas, policiais e bombeiros militares, sistema judiciário militar, e de
segurança pública em geral” (Zaverucha, 2005, p. 59).

Fazendo um balanço da trajetória constitucional do termo Segurança Pública é perceptível


que até a Constituição de 1934 se utilizava a terminologia “Segurança Interna” com o propósito de
cuidar da manutenção da “ordem pública”. Somente com a Constituição de 1937 é que ocorre a
mudança para Segurança Pública, entretanto, segue com a mesma conotação e sem atribuir a
nenhuma força policial específica o desempenho das funções de Segurança Pública. Seguidamente
teremos na Constituição de 1967 a definição e as atribuições específicas da polícia regulamentadas,
mas retoma o conceito de “Segurança Interna”. É na Constituição de 1988 que a terminologia
Segurança Pública volta a ser utilizada e desta vez em um capítulo próprio (Capítulo III), contendo
a definição, subordinação e as atribuições das Polícias Civis, Militares e do Corpo de Bombeiros
Militar. Todavia, a Constituição de 1988 apenas apresenta quais instituições compõem o aparato
de Segurança Pública, sem propor um conceito para Segurança Pública (Lima, 2011), preocupa-se
em afastar o país da Doutrina de Segurança Nacional e sua ideia de “Segurança Interna”. Por outro
lado, preserva princípios seus basilares: a narrativa da “guerra” e a repressão ao “inimigo interno”.
Isto permite afirmar que o conceito de Segurança Pública ainda está em construção no Brasil, pois
o país ainda não conseguiu se libertar até os dias de hoje dos velhos modelos de Segurança que
vêm sendo pensados e praticados há décadas, apesar de alguns esforços pontuais.

Com o início dos trabalhos do Congresso Constituinte, os militares perceberam o quanto


seria importante garantir a preservação dos seus interesses e logo “infiltraram” alguns oficiais nas
comissões e subcomissões com o intuito de “fazer pressão” junto aos constituintes. Conforme
Jorge Zaverucha (2005), a elaboração da Carta Constitucional foi feita por
1545

[...] oito grandes comissões e várias subcomissões, além da Comissão de


Sistematização, criada para organizar os relatórios finais das oito comissões. O
presidente desta comissão foi o deputado Bernardo Cabral, conhecido por seu
trânsito nas hostes militares, e que viria a ser o ministro da Justiça do governo
Collor. A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das
Instituições se encarregou dos capítulos ligados às Forças Armadas e à segurança
pública. Era presidida pelo senador Jarbas Passarinho, coronel da reserva, que
serviu como ministro nos governos dos generais Costa e Silva, Médici e
Figueiredo. Foi um dos signatários, em 1968, do Ato Institucional no 5 que
fechou o Congresso, inaugurando um dos períodos mais autoritários da história
brasileira (Zaverucha, 2005, p. 59).

Ricardo Fiuza, então deputado federal pelo Partido da Frente Liberal pelo estado do Ceará,
teve sua trajetória política ligada ao Estado de Segurança Nacional e foi o relator e grande
articulador da manutenção do controle do Exército sobre as Polícias e Corpo de Bombeiros
Militares na Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança (Subcomissão
IVb), ligada à Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições (Comissão
IV). Todos os seus esforços foram no intuito de preservar, conforme os princípios legais vigentes
desde 1967, a possibilidade de atuação das Polícias e Corpo de Bombeiros militares como
instrumentos que poderiam ser utilizados na preservação da “segurança interna” e na “segurança
externa”, sempre com a alegação de que a criminalidade e as contestações à ordem social, além de
continuarem presentes e se constituíssem em ameaças constantes, ainda cresciam em níveis
alarmantes. Além dos enormes custos que a criação de outra força militarizada com as atribuições
acima citadas causaria ao erário público (Brasil, 1987, p. 29).

Ademais, as pressões sobre a Subcomissão IVb não eram exercidas somente pelo Exército,
mas também pelos “policiais militares e delegados de polícia. Estas três corporações atuaram de
maneira muito ativa na Constituinte no sentido de preservarem suas atribuições e garantias”
(Fontoura et al., 2009, p. 141). Com o propósito de dar aos trabalhos da Subcomissão IVb ares de
aparente debate democrático houve a realização de 8 audiências públicas que contaram com a
participação de:

22 convidados, 4 dos quais policiais militares; 4 da Escola Superior de Guerra


(ESG); 5 oficiais das Forças Armadas; 3 profissionais da Polícia Federal; 1
delegado de polícia; 1 oficial do Corpo de Bombeiros; 2 integrantes do CSN, 1
professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) (Fontoura et al., 2009, p. 141).

É importante notar que desses 22 convidados apenas três foram contrários à manutenção
da Polícia Militar sob o controle do Exército chegando a propor iniciativas embrionárias de
1546

desmilitarização da polícia701, enquanto a maioria esmagadora representava interesses


corporativistas, sobretudo dos segmentos que durante a vigência do Estado de Segurança Nacional
mantiveram relações mais estreitas com os pressupostos da Doutrina de Segurança Nacional. Se os
setores mais conservadores do Congresso Constituinte não se furtavam de discutir sobre a
Segurança Pública, esse mesmo ímpeto não era percebido entre os intelectuais, tampouco entre os
constituintes (1986-1987) mais progressistas. Para estes setores progressistas o tema se revelava
ainda bastante indigesto e se limitava ao campo das propostas meramente formais como a
concepção de um modelo de Segurança Pública desvinculado ou avesso ao de Segurança Nacional,
cujo principal propósito era a “tentativa instrumental de fornecer ao Estado condições e requisitos
democráticos de acesso à justiça e garantia de direitos. Na prática, pouco [alterava] a estrutura
normativa e burocrática responsável por mediar e solucionar conflitos” (Lima, 2011, p. 29, grifo
do autor).

Portanto, ao término dos trabalhos do Congresso Constituinte e promulgada a Constituição


de 1988, a conclusão que pode ser feita é a de que, em linhas mais amplas e apesar da introdução
do conceito de Segurança Pública, permanecia a vigência de práticas fundamentadas nos princípios
da “segurança interna”, de uma guerra constante, no combate e extermínio ao “inimigo interno”,
consagrados pela Doutrina de Segurança Nacional presentes na Constituição de 1967.

Assim, a Constituição de 1988 limita e consagra as discussões sobre Segurança Pública ao


espaço exclusivo do campo jurídico e meramente policial, ou seja, exclui, minimiza e menospreza
a importância da participação da sociedade e dos demais segmentos das Ciências Humanas e
Sociais. Além disso, essa visão essencialmente jurídica e policialesca acaba possibilitando, vez por
outra, a emergência de uma série de medidas extremas de supressão de direitos com vistas a atender
ao clamor popular diante de eventos criminosos de grande repercussão midiática. Tais medidas
extremas são chamadas de “legislação do pânico” (Lima, 2011, p. 30). Sob o ponto de vista dos
interesses mais especificamente voltados para esse trabalho, a atenção agora será voltada para a
análise da vinculação da Polícia e do Corpo de Bombeiros Militar ao Exército no cenário da
Constituição de 1988 e que ainda hoje é objeto de intensos debates por parte de diversos
pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais.

A primeira vinculação constitucional da Polícia Militar ao Exército ocorre ainda em 1934,


durante a Era Vargas. A mencionada vinculação estava prevista no Título VI da referida

701Já àquela época houve interpretações equivocadas do conceito de “polícia desmilitarizada”. Tanto segmentos
conservadores quanto progressistas associavam a desmilitarização da polícia à sua pura e simples extinção. Entretanto,
desmilitarizar significa basicamente dar fim à formação dos policiais militares com base na narrativa da guerra e do
combate e extermínio ao “inimigo interno”.
1547

Constituição, nomeado “Da Segurança Nacional”, no art. 167, cujo dispositivo afirmava que as
“Polícias Militares são consideradas reservas do Exército, e gozarão das mesmas vantagens a este
atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União” (Brasil, 1934, online). Como justificativa
para promover a vinculação pela Constituição de 1934 da Polícia Militar ao Exército foi utilizada a
necessidade de proteger a União dos ímpetos rebeldes dos estados brasileiros devido a seu enorme
aparato bélico (especialmente os mais ricos). Ímpetos estes que tanto incomodaram o Governo
Federal durante a República Velha (Brasil, 1987). Daí a necessidade, segundo argumentos mais
conservadores, de preservar o direito do Governo Federal de prescrever e deliberar sobre a
estrutura e o funcionamento da Polícia Militar e garantir a prerrogativa da União de mobilizá-la e
convocá-la contingentemente.

A partir de então, este vínculo esteve presente em todas as cartas constitucionais, porém,
com a Constituição de 1967 tal vínculo se consagra e, em 1988, quando muitos acreditavam que
ele se extinguiria em virtude do clima de otimismo democrático que pairava no horizonte brasileiro,
eis que a nova Constituição preserva o controle do Exército sobre a Polícia e do Corpo de
Bombeiros Militar, consagrando constitucionalmente a intenção continuísta, pelo menos no campo
da Segurança, do processo de transição do autoritarismo para a democracia e consagrando em seu
art. 144, § 6º que: “As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva
do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do
Distrito Federal e dos Territórios” (Brasil, 2016, p. 91).

Da mesma maneira que intelectuais e constituintes (1986-1987) mais progressistas se


furtavam a ver a Segurança Pública a partir de iniciativas voltadas para a ampla discussão entre o
Estado e os mais diversos segmentos da sociedade (entidades civis e de classe, pesquisadores das
Ciências Humanas e Sociais e população em geral), permitindo olhares apenas de cunho jurídico e
policial que se estendem até hoje, o vínculo entre a Polícia e o Corpo de Bombeiros Militar também
passou ao largo das discussões desses mesmos sujeitos, possibilitando aos segmentos mais
conservadores do Congresso Constituinte atuarem praticamente sem sofrerem resistência.

Ricardo Fiuza, relator da Subcomissão IVb, além de defender a necessidade de manutenção


da estrutura militarizada da Polícia em virtude da “tradição” e como forma de economizar recursos
(como já foi dito anteriormente), também defendia que a militarização seria fundamental para o
próprio exercício das funções desempenhadas por policiais e bombeiros militares.

Para manter a operacionalidade de serviços executados normalmente em


situações adversas e de grande risco, exige-se dos integrantes das Forças Policiais
e Corpos de Bombeiros, disciplina rígida, hierarquia forte, além de
condicionamento físico e psicológico, que somente o estatuto administrativo
1548

militar pode proporcionar, sendo perigoso e insensato manter seus integrantes


ao estatuto comum do funcionário público civil (Brasil, 1987, p. 30).

Por outro lado, a estrutura militarizada da Polícia e seu controle por parte do Exército são
hoje objetos de crítica por parte de diversos intelectuais, como Jorge Zaverucha, por exemplo, para
quem a Polícia militar é estranha ao ambiente democrático. Nas palavras do mencionado autor:

O fato de forças policiais serem auxiliares do Exército é algo comum em regimes


autoritários. Nas democracias [...] somente em período de guerra é que as forças
policiais tornam-se forças auxiliares do Exército. Em tempo de paz, o Exército é
que se torna reserva da polícia, indo em sua ajuda quando esta não consegue
debelar gigantescos distúrbios sociais. As democracias passam uma linha clara
separando as funções da polícia das funções das Forças Armadas (Zaverucha,
2005, p. 69).

Zaverucha confirma a incapacidade dos constituintes (1986-1987) em enfrentar a


permanência da vinculação da Polícia e do Corpo de Bombeiros Militar ao Exército:

[...] nossos constituintes não conseguiram se desprender do regime autoritário


recém findo e terminaram por constitucionalizar a atuação de organizações
militares em atividades de polícia – Polícia Militar – e defesa civil – Corpo de
Bombeiros –, ao lado das Polícias Civis. As polícias continuaram
constitucionalmente, mesmo em menor grau, a defender mais o Estado que o
cidadão (Zaverucha, 2005, p. 72-73).

Com a promulgação da Constituição de 1988, saltou aos olhos a duplicidade de comando


das forças policiais e dos bombeiros militares presentes no art. 22, XXI, segundo o qual é
competência exclusiva do Governo Federal decidir sobre as “normas gerais de organização,
efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de
bombeiros militares” (Brasil, 2016, p. 28) e no art. 144, § 6º, que além de subordinar a Polícia e o
Corpo de Bombeiros Militar ao Exército também determina que “subordinam-se, juntamente com
as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios” (Brasil,
2016, p. 91). O que é possível perceber ao se observarem os referidos artigos é que a Constituição
de 1988 “dá com uma mão e toma com a outra”, porque insinua certo controle civil sobre polícias
militares e bombeiros militares, mas ao mesmo tempo, limita esse controle apenas a alguns itens.
O artigo 144, § 6º subordina a Polícia militar e o Corpo de Bombeiros Militares ao controle dos
Governadores dos Estados, dando-lhes a incumbência do pagamento do salário e nomeação da
tropa e do comandante da corporação, mas deixando claro sempre a condição de vínculo com o
Exército (Força Militar Federal). O art. 22, XXI, é claro ao afirmar a exclusividade da União de
decidir como, quando e sob que circunstâncias a Polícia e o Corpo de Bombeiros militares serão
convocados para atuar como forças auxiliares do Exército, além de definir qual a organização do
efetivo e o tipo de armamento a ser utilizado.
1549

Jorge Zaverucha (2005, p. 69-70) observa que essa contradição presente na Constituição
de1988 provoca um desequilíbrio em favor da União:

Ambos os artigos terminam por estabelecer um duplo comando: federal e


estadual. Os governadores ficam com o ônus de pagar os salários, sem, todavia,
poderem decidir qual tipo de armamento deve ser comprado, como as tropas
devem ser alinhadas, ou onde devem ser construídos novos quartéis. [...]
O tipo de armamento, a localização dos quartéis, o adestramento das tropas e a
coordenação das PMs continuam sob o controle da IGPM que, a partir da
Constituição de 1988, perdeu o controle sobre a instrução das PMs. Emenda
Constitucional apresentada, em setembro de 1997, logo após as greves das PMs,
por FHC ao Congresso sugeriu a volta deste controle para as mãos do Exército
(Zaverucha, 2005, p. 69-70).

Outro aspecto importante e emblemático a ser destacado na Constituição de 1988 foi a


inclusão das Forças Armadas (Capítulo II; Das Forças Armadas) e a Segurança Pública (Capítulo
II; Da Segurança Pública) no mesmo item (Título V; Da Defesa do Estado e das Instituições). Fica
claro que a Constituição entende o aparato policial, sobretudo a Polícia Militar, não por equívoco
ou “inocência”, mas por convicção, como um organismo cuja função primordial é a preservação
da segurança do Estado e não a defesa da garantia dos direitos dos cidadãos (Zaverucha, 2005).

Dessa maneira, a permanência na Constituição de 1988 das estruturas essenciais do período


anterior possibilitou no âmbito da Segurança Pública, em geral, e da Polícia Militar em especial, a
utilização de práticas completamente contrárias aos princípios mais essenciais do Estado
Democrático de Direito. Entre elas, a manutenção de uma “cultura policial militar702” muito mais
preocupada com “a guerra” e o combate ao “inimigo interno” que com a preservação e garantia
dos direitos individuais dos cidadãos e coletivos da sociedade (Fontoura et al., 2009, p. 156). A
naturalização dessa perspectiva de policiamento permaneceu intacta praticamente ao longo de toda
primeira década logo após a promulgação da Constituição de 1988. Ao passo que as taxas de
violência de criminalidade cresciam cada vez mais e isso era usado como argumento para a
intensificação das medidas penais mais violentas por parte do Estado (Lima et al., 2016, p. 58).

Entretanto, e até paradoxalmente, a Constituição de 1988 mesmo mantendo elementos


policiais caracteristicamente autoritários e apesar das pressões populares por medidas mais
violentas por parte do Estado, possibilitou a ampliação das discussões sobre os direitos humanos
e o crime passou ser visto em uma nova dimensão: de cunho social. Não havia mais espaços para
análises positivistas que viam um criminoso como portador de uma patologia, toda e qualquer

702Uma análise sobre esta temática foi realizada no segundo capítulo da dissertação “OH, A POLÍCIA PAROU!!! A
POLÍCIA PAROU!!!: o movimento reivindicatório realizado pelos militares estaduais do Maranhão no ano de 2011
de autoria de Paulo Henrique Matos de Jesus.
1550

discussão sobre a criminalidade deveria vir acompanhada de preocupações relacionadas a suas


raízes sociológicas (Pedroso, 2005).

Deste modo, as políticas públicas de Segurança Pública precisavam se adequar a essas


discussões e a Polícia Militar, que atua(va) diretamente no combate à criminalidade, precisava aderir
de alguma maneira a esse novo cenário de observação da criminalidade por uma perspectiva mais
social. O policiamento militar, além de repressivo deveria ser preventivo.

Nesse sentido, ainda que de forma bastante tímida e sob as pressões advindas da grande
comoção popular decorrente do “sequestro do ônibus 174703”, houve a divulgação do Plano
Nacional de Segurança Pública (2001), pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Entretanto, o Plano Nacional de Segurança Pública, bem como os demais programas elaborados
posteriormente, esbarrava na falta de clareza quanto aos procedimentos a serem adotados no
sentido de reduzir a violência e a criminalidade, na falta de apoio político até mesmo por parte dos
partidos da base governamental e nos interesses corporativos das instituições policiais civis e
militares.

Perpassa, portanto, por este trabalho, o tema da desmilitarização da polícia, que sempre
estará em voga e divide pontos de vista. Para a maioria dos estudiosos do campo mais progressista,
a desmilitarização é algo urgente para maior eficiência das políticas públicas de segurança. De tal
modo, considera-se relevante, ainda que de forma breve e até introdutória, algumas observações
sobre este assunto.

Primeiro é necessário compreender que o problema não é necessariamente a existência de


uma polícia militarizada – mesmo porque o Brasil não é o único país no mundo com uma polícia
militarizada –, mas de todo um modelo de segurança pública pensado, gestado e aplicado a partir
de princípios militarizados. Tomando como fundamento esse olhar, considera-se de forma bastante
assertiva que em primeiro lugar é fundamental compreender que é de suma prioridade retirar do
Exército o controle sobre as polícias militares. O treinamento e o aprendizado de táticas de
combate voltadas para a guerra, a utilização de estratégias de espionagem e contraespionagem, de
informação e contrainformação e a busca constante por um “inimigo interno” fazem do modelo
de policiamento militarizado brasileiro um redundante fracasso.

Deste modo, a Polícia Militar é uma instituição híbrida que, mesmo tendo formação e
instrução militarizada, não é militar. E, portanto, não é dotada do “ethos militar” propriamente dito,
mas tendo desempenhado atividade civil ainda que sem receber formação e instrução civil,

703Em 12 de junho de 2001, passageiros de um ônibus foram feitos reféns por 5 horas. Uma mulher grávida foi morta
pela Polícia e o sequestrador, também. Tudo foi transmitido ao vivo para todo o Brasil.
1551

desenvolveu um “ethos policial militar” (Diógenes, 2011, p. 99, grifo nosso). Desta forma,
compreende-se que a polícia não deveria receber treinamento nem instrução para a guerra, mas
para a garantia dos direitos individuais dos cidadãos e coletivos da sociedade.

E a crítica a esse modelo de polícia militarizada segue com Fontoura (et al., 2009, p. 152):

[...] a atividade policial, em uma sociedade democrática, deveria ter caráter civil.
Não somente porque não se deve imiscuir defesa do Estado e proteção do
cidadão, mas devido à própria lógica militar, inadequada para atividades
relacionadas à prevenção da violência e da criminalidade. O policial que age na
rua deve ter consciência de sua função preventiva e deve ter iniciativa, e não
somente dever disciplina e obediência a um superior. A sua atuação não deve
estar fundamentada em princípios bélicos, ligados à lógica de guerra e de combate
ao inimigo, mas na proteção aos cidadãos de maneira democrática e equitativa. A
atividade de policiamento seria, portanto, eminentemente civil, porque a polícia
tem que prestar serviço público para o cidadão. O foco de sua atuação deve ser
a proteção do cidadão, e não o combate ao inimigo.

Assim, desmilitarizar não significa acabar com a polícia, mas dotá-la de uma formação que
a torne de fato um instrumento democrático de defesa dos cidadãos e da cidadania. Ao mesmo
tempo seu efetivo será composto por homens e mulheres com todas as garantias e direitos que os
demais cidadãos possuem em uma ordem verdadeiramente democrática.

Desta forma, as corporações militares estaduais são instituições que ao mesmo tempo são
campos de intensas disputas de poder internas pelo seu controle e de atribuições explicitamente
políticas. Não no sentido restrito da luta partidária, mas ao exercer a atividade de manutenção da
ordem pública e controle social elas assumem papel político. Tais atribuições são sempre
apropriadas pelos discursos conservadores como forma de adotar práticas de policiamento cada
vez mais repressivas e violentas.

Por sua vez, estudiosos mais progressistas buscam a elaboração de filosofias de


policiamento mais próximas da sociedade e com um perfil mais cidadão e democrático (Reiner,
2004). E pelos militares estaduais que se enxergam e buscam ser vistos muito mais que parte do
aparelho repressor do Estado, mas como trabalhadores dotados de direitos que possuem suas
idiossincrasias, dramas, angústias, frustrações, cultura e “ethos” histórica e sociologicamente
construídos e localizados na fronteira entre o estrito cumprimento do dever legal estabelecido em
uma ordem democrática e as formas discriminatórias e preconceituosas com que eles e elas
enxergam a sociedade civil.
1552

Referências

Brasil. [Constituição (1934)]. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Rio de
Janeiro, 1934. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1930-
1939/constituicao-1934-16-julho-1934-365196-publicacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 25 jul.
2019.

Brasil. Comissão de Organização Eleitoral e Partidária e Garantia das Instituições, Subcomissão de Defesa do
Estado. Relatório. Brasília-DF: Senado Federal, maio, 1987. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-132.pdf.
Acesso em: 24 jul. 2019.

Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília-DF:


Senado Federal, 2016. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf.
Acesso em: 2 fev. 2019.

Diógenes, JLS. Ethos policial militar: entre a estrutura da PM e a ação de seus agentes. 99 f.
Dissertação. Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – Universidade Estadual do
Ceará. Fortaleza-CE, 2011. Disponível em:
http://www.uece.br/politicasuece/dmdocuments/jose_lenho_silva.pdf. Acesso em: 12 mar.
2017.

Fontoura, Natália de Oliveira; Rivero, Patricia Silveira; Rodrigues, Rute Imanishi. Segurança
pública na Constituição Federal de 1988: continuidades e perspectivas. In.: Ipea. Políticas Sociais:
acompanhamento e análise. Brasília-DF: IPEA, v. 3, n. 17, 2009, pp. 135-196. Disponível em:
https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps_17_vol003_compl
eto.pdf. Acesso em: 25 jul. 2019.

Lima, Renato Sérgio de. Entre Palavras e Números: violência, Democracia e Segurança Pública no
Brasil. São Paulo: Alameda, 2011.

Lima, R. S.; Bueno, S.; Mingardi, G. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito
GV, v. 12, n. 1, 2016, pp. 49-85. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rdgv/v12n1/1808-
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Pedroso, Regina Célia. Estado autoritário e ideologia policial. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas: Fapesp/LEI, 2005. (Coleção Histórias da Intolerância - Intolerância Étnica &
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Reiner, Robert. A política da Polícia. São Paulo: Edusp, 2004.

Zaverucha, Jorge. FHC, forças armadas e polícia: entre o autoritarismo e a democracia (1999-2002).
Rio de Janeiro: Record, 2005.
1553

A Ditadura do Estado Novo no Amazonas: interventoria,


sindicatos e trabalhadores na Manaus da era Vargas

Pedro Marcos Mansour Andes8*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo central identificar e analisar as principais ações do
governo varguista no Amazonas durante a instalação no país da ditadura do Estado Novo ocorrida
em novembro de 1937, principalmente, no que se refere a política corporativista adotada no Estado
para consolidação do projeto de “paz social”, que tinha como ponto primordial o controle das
associações e sindicatos, principalmente, dos trabalhadores urbanos com o intuito de limitar suas
ações reivindicatórias.

Palavras-chave: Estado Novo, Interventoria Federal, Sindicatos, Trabalhadores.

O golpe de 1937 no Amazonas

No Amazonas, após o golpe do dia 10 de novembro de 1937, a ditadura estadonovista se


consolidou com a permanência na Interventoria Federal de Álvaro Botelho Maia, então governador
Constitucional eleito pela Assembleia Constituinte em fevereiro de 1935. A permanência de Maia
na administração do estado além de atender aos pedidos da elite local, serviu também para
continuar o projeto de controle dos trabalhadores e de suas instituições elaborado pelo Varguismo.

Em artigo publicado na revista A Selva, Bezerra de Freitas, destaca o compromisso do


governo de Getúlio Vargas com a classe trabalhadora desde a vitória do movimento de outubro de
1930 e a consolidação deste compromisso com o golpe de 1937. O autor indica em seu texto que
a ditadura estadonovista buscava a harmonia entre patrões e empregados sendo o governo o
mantenedor da paz social.

As garantias asseguradas aos empregados, após a revolução de outubro, mais se


accentuaram na carta constitucional de 10 de novembro, onde novas perspectivas
se apresentam a quantos desejam trabalhar e crear em benefício da collectividade.
Nas linhas básicas daquelle estatuto, no regimem anti-individualista ali
estabelecido, não há logar para conflictos de classes nem se estimulam debates
de qualquer natureza; ao revés, harmonizam-se os interesses dos empregadores

*
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará – UFPA. Mestre e
Especialista em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM, professor de História
da Rede Pública Estadual de Ensino (SEDUC/AM) e Historiador da Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas
(SEC/AM).
Este artigo é parte componente do primeiro capítulo de minha tese de doutorado intitulada “Negociação e conflito: o
movimento operário em Manaus da ditadura do Estado Novo (1937-1945)”, orientada pela Professora Dra. Edilza
Joana Fontes no Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará –
UFPA.
1554

e empregados com o sentido realista meramente alcançando por qualquer outro


estatuto americano. (Revista A Selva. Ano I, n.º: 8, Manaus, 28 de fevereiro de
1938, p. 5).

O golpe do Estado Novo foi saudado pela imprensa amazonense como a redenção do país,
aliás essa euforia da mídia foi vista em praticamente todos os órgãos da imprensa nacional. N revista
A Selva704, que iniciou sua circulação em setembro de 1937, realizou a cobertura jornalística do
golpe impetrado pelo governo Vargas no dia 10 de novembro. Era a terceira edição na revista, que
tinha como diretor responsável Clóvis Barbosa, o intelectual e jornalista paraibano erradicado em
Manaus. Em sua página inicial a revista traz a troca de telegramas entre o poder central na figura
do Ministro da Justiça Francisco Campos e o governador do Amazonas Álvaro Botelho Maia. A
pequena matéria intitulada “A confirmação a solidariedade do governo amazonense ao golpe de Estado”, traz
na integra o teor das correspondências. Vejamos o que diziam os telegramas,

RIO, 10 – Urgentissimo ao senhor doutor Alvaro B. Maia – N.º de 10/937 –


Communico vossencia que o governo, com o apoio das forças armadas, acaba de
promulgar a nova Constituição, dissolvendo a câmara e o senado. O paiz entre
assim em regimen novo em que são devidamente assegurados os interesses da
nação. Communicando a vossencia o importante acontecimento, espero que
vossencia sobre elles se manifeste com a necessária urgência. Cordeaes
saudações. – (a) FRANCISCO CAMPOS, Ministro da Justiça. (Revista A Selva.
Manaus, novembro de 1937, Ano I, n.º: 3, p. 1.)

O telegrama do ministro da Justiça enviado para o governador é bem claro, comunica o


fechamento do Congresso Nacional e a criação de uma nova Constituição, apesar de usar o verbo
promulgar, o que o governo Vargas fez foi outorgar uma nova Constituição Federal com o apoio
das forças armadas. O telegrama reforça que espera com urgência a manifestação do governo
amazonense. Manifestação que foi feita prontamente como podemos verificar no telegrama de
resposta enviado pelo governador Álvaro Maia ao ministro Francisco Campos.

MANÁOS, 10 de novembro de 1937 – Urgentíssimo – Presidente Getúlio


Vargas – Palácio do Catete – Rio – G. 1.297 – Tenho a honra communicar
Estado Amazonas por seu governo e seu povo, hypotheca integral solidariedade
a vossa excellencia e das gloriosas classes armadas pela solução patriótica e
elevada, que proporciona ao paiz medidas enérgicas salvação pública, necessárias
realizações seus destinos e accordo momento e aspirações nacionais. Saudações
cordiaes. – (a) ÁLVARO MAIA. (Revista A Selva. Manaus, novembro de 1937,
Ano I, n.º: 3, p. 1.)

704Conforme o professor e pesquisador Narciso Júlio Freire Lobo, A Selva, mensário em formato tablóide (42,5x 31,5)
destinado a veicular “Atualidades, Política, Letras, Problemas Sociais”, que circulou entre setembro de 1937 até final
de 1938, transitando, por suas páginas, intelectuais como Mário de Andrade, Gastão Cruls, Jorge Amado, Gilberto
Osório de Andrade, Francisco Galvão, Jorge Andrade, Tristão de Athayde, Cândido Mendes de Almeida, Viana Moog,
Dalcídio Jurandir, Nunes Pereira, Mauro Mota, Raul Bopp e Abguar Bastos, além de intelectuais da região que se
tornaram conhecidos posteriormente, como Francisco Pereira da Silva, Alvaro Maia, Raymundo Moraes, Agnelo
Bittencourt, Violeta Branca, Ramayana de Chevallier, André Araújo, Araújo Lima, Benjamin Lima, dentre outros.
1555

A resposta imediata de Álvaro Maia indica como “solução patriótica”, o golpe do Estado
Novo, que foi justificado pela descoberta do Plano Cohen, o projeto comunista de tomada do
poder no Brasil. Como sempre os comunistas usados como bode expiatório para as ações das elites
conservadoras do país. É importante aqui se destacar, que o projeto de combate a democracia
liderado por Vargas começou a ser desenhado em 1935, logo após a rebelião da ANL, que foi
denominado erroneamente de Intentona Comunista. Durante a repressão do movimento as
principais lideranças do PCB foram presas e torturadas e outros opositores ao governo também
foram presos. Conforme a historiadora Maria Celina D`Araújo (1997),

Em 10 de novembro de 1937 Getúlio comparecia a uma estação de rádio e


anunciava que o país ganhara uma nova constituição, que o Congresso estava
sendo novamente fechado e que a partir desse momento ele se transformava no
chefe absoluto da nação. Fez esse pronunciamento e foi cumprir sua agenda
social: um jantar com o embaixador da Argentina. (D’Araújo, 1997, p. 27)

Toda essa tranquilidade de Vargas tem uma explicação na própria resposta imediata enviada
por Maia ao presidente. Todos os opositores ao governo estavam presos ou com medo pedindo
exilio em embaixadas estrangeiras. No Amazonas o golpe estadonovista foi celebrado por várias
entidades, inclusive, por sindicatos e associações que representavam as mais diversas categorias de
trabalhadores urbanos de Manaus.

Nesse sentido, quais foram as principais ações da ditadura do estado novo no Amazonas,
que tinham como público alvo os trabalhadores? Para identificar essas ações as fontes oficiais
produzidas pela interventoria federal do Amazonas são fundamentais. Aqui destaco as mensagens,
exposições e relatórios apresentados pelo Interventor Federal Álvaro Botelho Maia e seus
assessores, que eram publicadas no Diário Oficial do Amazonas ou pela Imprensa Pública. Vale
aqui lembrar, que o “príncipe dos poetas amazonenses” foi o interventor federal no estado durante
toda a ditadura estadonovista, deixando o cargo apenas nas viagens oficiais, quando se dirigia para
a Capital Federal ou quando ia para os municípios do interior do estado.

As ações do Governo Vargas para os trabalhadores no Amazonas

Um destes documentos foi publicado para celebrar os três anos do golpe de 1937,
produzido pelo escritor Hemetério Cabrinha, um livreto falando sobre a relação entre o governo
autoritário de Vargas e a classe trabalhadora. Segundo o escritor antes da implantação do Estado
Novo o trabalhador brasileiro era,
1556

[...] Massa inexpressiva e abandonada, cheia de revoltas e queixas, exposta a todos


os maltratos, a todos as ignominias, a todos as misérias. Sem justiça, sem leis, sem
amparo, apenas com o direito ao chanfalho, à deportação para os confins de
Clevelandia.
É verdade que alguma cousa conquistamos, mas sabe Deus o que sofremos e
sabemos nós o que sofremos e sabemos nós o que sofreram os nossos filhos,
nossas esposas, nossas famílias! Nas greves, o que passamos; quanto suportamos
de martírio e de dor! Quantos dos nossos companheiros sucumbiram deixando
a prole na mendicância! Heróis anônimos, esquecidos, menosprezados, e muitas
vezes caluniada a sua memória, vivendo em choupanas esburacadas; dormindo
em esteiras de piri-piri, sem pão para si e para os seus; mal indumentado;
vergastado pelos poderes públicos e pelos patrões, com a alma aberta em chagas
e coração sangrando; sem higiene e instrução e, acima de tudo, insultado, nas
épocas de eleição, pelo oferecimento nunca cumprido dos que queriam subir para
chicoteá-los. (Cabrinha, 1940, p. 8)

No texto do escritor Cabrinha é destacado a situação que vivia os trabalhadores


amazonenses antes do advento do Estado Novo, exaltado pelo autor como o momento de
redenção da classe trabalhadora nacional, que era humilhada e esquecida pelos antigos donos do
poder. Mas o que chama atenção na fala do escritor é o reconhecimento da luta do operariado
local, que usava as a greves como instrumento de luta por direitos.

Em 1937 na mensagem que apresentou a Assembleia Legislativa do Amazonas, ainda se


refere a gestão de 1936, o governador constitucional do Amazonas, Álvaro Maia, destaca a relação
que a sua administração tinha com os trabalhadores do estado. Na fala do governador percebemos
a influência da política corporativista adotada pelo governo Varguista na tentativa da tão almejada
paz social entre patrões e trabalhadores. Conforme Álvaro Maia,

Ao seu influxo sadio, e sob desvelo das autoridades, a vida do Amazonas


processa-se normalmente, em escalas progressivas de paz, mediante a cooperação
de todas as camadas trabalhadoras e o apoio do povo, cujas aspirações
interpretais [...].705

A fala do governador é clara quanto a tentativa de destacar o apoio popular a sua


administração e a cooperação das categorias de trabalhadores com o seu governo na busca da
harmonia social no Amazonas. Um exemplo desta política é o crédito concedido de Rs 2:000$000
(dois contos de réis) para União Operária Amazonense através da Lei n.º 97706 do dia 8 de agosto
de 1936. Entre as obras públicas deste ano anunciadas pelo governo destaca-se a construção de
“um pavilhão de bombeamento para residência de operários.”707 Uma das preocupações que
identificamos nas ações do governo Vargas no Amazonas foi a construção de moradias para os

705 Estado do Amazonas. Mensagem do Governador do Amazonas, Álvaro Botelho Maia à Assembleia Legislativa na
abertura da sessão ordinária, em 3 de maio de 1937. Manaus: Imprensa Oficial, 1937, p. 6.
706 Ibidem. p. 64.
707 Estado do Amazonas. Mensagem do Governador do Amazonas, Álvaro Botelho Maia à Assembleia Legislativa na

abertura da sessão ordinária, em 3 de maio de 1937. Manaus: Imprensa Oficial, 1937, p. 126.
1557

trabalhadores urbanos. Em um oficio enviado pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio


(MTIC), no dia 7 de dezembro de 1942, para o Interventor Álvaro Maia, o ministro Alexandre
Marcondes Filho apresenta a preocupação do presidente com o problema do teto operário. De
acordo com o ministro do Trabalho,

[...] encontra-se o Exmo. Sr. Presidente da República altamente interessado em


desenvolver um largo problema de construção de casas econômicas para as
classes trabalhadoras, no sentido de melhorar as suas condições de vida, pela
diminuição das despesas de moradia dos seus orçamentos, quasi sempre baixos.
Nesse sentido, [...] a necessidade da intima colaboração de todas as autoridades
publicas para solução racional e econômica do angustiante problema do teto
operário, que constitue um dos pontos fundamentais da política social do
Governo. Pela sua repercussão no bem estar coletivo, o assunto não pode deixar
de ser considerado no plano do Estado Moderno, como uma das suas principais
funções no campo social. [...]708

A questão da moradia popular, principalmente, para os trabalhadores se configurava neste


momento um ponto essencial na elaboração das políticas sociais que o Varguismo estava
implementando para todo país. Em Manaus, devido à crise econômica que assolava a região desde
meados da segunda década do século passado, essa questão configurou-se como um dos principais
problemas enfrentados pelas camadas populares que habitavam na cidade. Sendo assim, as várias
categorias de trabalhadores e suas famílias sofriam com a falta de moradia com a mínima estrutura.

Este era o cenário de crise habitacional em Manaus que assolava os trabalhadores e


populares, que viviam em bairros em condições precárias, sem a mínima estrutura básica para sua
moradia. Em 1937, o prefeito Antônio Maia em mensagem enviada para Câmara Municipal,
apontava as causas deste problema. O prefeito afirmou que apesar de não ter os inúmeros
problemas enfrentados pelos grandes centros urbanos, o poder público local tinha questões para
resolver com relação a moradia popular. Isso era consequência, segundo com o prefeito,

[...] da longa syncope de mais de mais de duas décadas que dessorou


gradativamente o apparelhameento econômico do Amazonas, a população
augmentou de modo considerável, enquanto se verificou phenomeno inverso no
movimento de construções urbanas, que quasi paralysou.709

Essa situação levou ao aumento exorbitantes dos valores dos alugueis na cidade, apesar das
medidas de controle dos preços tomadas logo após a vitória do movimento de 1930. No decorrer
da década o preço do aluguel continuava alto para realidade local, pois a procura era muito maior
que a oferta de imóveis. Nesse cenário, eram os trabalhadores que sentiam a maior pressão nos

708
Estado do Amazonas. Diário Oficial do Amazonas. Manaus, quinta-feira, 18 de fevereiro de 1943, p. 1.
709
Prefeitura Municipal de Manaus. Mensagem do Prefeito de Manaus o Agrônomo Antônio Botelho Maia apresentada
à Câmara Municipal de Manaus em 15 de abril de 1937, p. 34.
1558

seus baixos salários. Na tentativa de solucionar essa questão o prefeito propôs para Câmara um
projeto para isentar por cinco anos as empresas que construíssem sete casas na área urbana, dez na
suburbana e vinte na avenida 13 de maio, atual avenida Getúlio Vargas. Essa pequena medida levou
a construção de 47 novos imóveis que foram sorteados entre os funcionários municipais. Para
atender a demandar dos outros trabalhadores urbanos foi elaborado um projeto para a construção
de dez casas,

[...] modestas, cujo valor não excederá de dez contos por unidade, mas que
offerecerão todo conforto, de acordo com os preceitos da hygiene e da technica.
Para que se tenha compreensão o do que virão a ser estas residências,
apresentamos o respectivo projecto, o qual temos a satisfação de declarar que foi
trabalho do engenheiro amazonense Deodoro de Alcantara Freire, que o offertou
à Prefeitura.710

Voltando ao oficio do MTIC, o ministro Marcondes Filho destaca que a principal fonte
financeira para execução do projeto de construção de conjuntos residenciais para os trabalhadores
brasileiros seriam as instituições de Previdência Social subordinadas aquele ministério. Pois, essas
instituições de Seguridade Social, Aposentadorias e Pensões possuíam reservas financeiras oriundas
das contribuições obrigatórias do trabalhador, dos empregadores e do próprio Estado. Com os
recursos financeiros das instituições de seguridade social esses conjuntos habitacionais seriam
construído,

[...] dentro dos princípios modernos de urbanismo, com o aproveitamento


racional de áreas e máximas economia constitue uma das formas mais delicadas,
representando um grande benefício de caráter social e também um incentivo às
atividades industriais mais intimamente ligadas à construção civil. Apesar de não
constituir a finalidade dessas instituições, que em ultima análise se destinam a
cobrir pelo desenvolvimento do programa de grandes inversões de reservas, no
campo social é justificável e já constitue preocupação máxima, sem prejuízo,
entretanto, da segurança e da rendabilidade que as aplicações de reservas do
Seguro Social devem apresentar.711

O ministro destaca a importância dos investimentos dos órgãos previdenciários para a


solução do problema de moradia dos operários. Segundo ele este projeto era defendido pelo
próprio presidente Getúlio Vargas. Nesse sentido, por não serem instituições com fins financeiros
se fazia necessário a criação por parte dos estados brasileiros de condições especiais para que as
mesmas pudessem atuar na realização do “grandioso programa de construção proletária a que o
Governo está decidido a dar maior expansão”.712

710
Prefeitura Municipal de Manaus. Mensagem do Prefeito de Manaus o Agrônomo Antônio Botelho Maia apresentada
à Câmara Municipal de Manaus em 15 de abril de 1937, p. 38.
711
Estado do Amazonas. Diário Oficial do Amazonas. Manaus, quinta-feira, 18 de fevereiro de 1943, p. 1.
712 Estado do Amazonas. Diário Oficial do Amazonas. Manaus, quinta-feira, 18 de fevereiro de 1943, p. 1.
1559

Marcondes Filho entendia que era difícil serem respeitadas pelos estados as normas rígidas
que estavam sendo imposta pelo governo para a realização do programa, portanto, o governo
entendia a realidade de cada região do país e os diferentes estilos de vida dos trabalhadores urbanos
nacionais. Para tentar solucionar essas questões regionais o governo criou normas gerais para serem
estudadas pelos órgãos estaduais competentes para depois serem aplicadas. Eram ao todo sete
regras que deferiam ser observadas por essas instituições competentes,

[...] a) reconhecer o caráter dos Institutos de Previdência Social, e, portanto, as


altas finalidades sociais dos empreendimentos que realizam no setor da habitação
econômica, sem qualquer espírito lucrativo e tão somente visando o benefício da
coletividade; b) encarar o problema da casa operária dentro das realidades
nacionais, onde o imperativo de um custo mínimo é fundamental em face
ao pequeno salário das classes trabalhadoras; c) reduzir ao mínimo as
exigências de ordem técnica quanto aos elementos construtivos, sem sacrifício
de condições de conforto e higiene indispensáveis à vida; d) permitir a execução
de grandes conjuntos em que, pela sua concessão, o todo prepondere sobre os
pormenores da unidade residencial; e) facilitar o andamento dos projetos
relativos à construção de conjuntos residenciais populares; f) permitir o
exame e a aprovação do plano em conjuntos, e não por unidade, pois,
geralmente, as vantagens de ordem social, sanitária e econômica que o
plano de conjunto apresenta cobrem amplamente as pequenas
deficiências que a unidade residencial possa apresentar; g) facilitar a
instalação de serviços de caráter coletivo (água, luz, esgoto, transporte),
tendo em vista os benefícios de ordem educativa e sanitária do número a
ser formado; h) simplificar as normas burocráticas para concessão das licenças
de construção, que devem ser dadas para o conjunto residencial, e não para cada
unidade, concedida prioridade absoluta para o exame dos projetos das
instituições de Seguro Social, no setor na habitação popular. [...]713

Das regras gerais proposta pelo governo varguista para a construção de conjuntos
residências para trabalhadores urbanos em todo país, destaco em negrito as quatro que mais me
chamaram atenção. Elas dão ênfase a preocupação do governo em encarar o problema da moradia
para as camadas populares dentro da realidade de cada região, buscando um valor de venda que
atendesse a condição salarial real do trabalhador brasileiro, que os interventores federais nos
estados facilitassem a execução destes projetos habitacionais e que nesses conjuntos residenciais
tivessem toda a estrutura dos serviços públicos essenciais. Como podemos verificar a preocupação
do prefeito de Manaus Antônio Maia com a construção de casas populares, destacada em sua
mensagem para Câmara Municipal em 1937, passou a ser durante a ditadura estadonovista parte
essencial da política social adotada pelo Varguismo.

713 Ibidem. p. 1-2.


1560

O governo Vargas e os Sindicatos no Amazonas

Já sob as diretrizes da ditadura do Estado Novo, em setembro de 1938, o Interventor


Federal do Amazonas em mensagem apresentada para o presidente Getúlio Vargas, destaca a
importância da Associação Beneficente dos Funcionários Públicos do Amazonas que “muito antes
dos efeitos recentes das leis sociais, que efetivam, em rigorosas providencias, toda sorte e proteção
às classes produtoras”714 os funcionários públicos já contavam com seu órgão representativo, que
em 1937 alcançou um patrimônio de Rs 181:967$900 (cento e oitenta e um conto, novecentos e
sessenta e sete mil e novecentos réis) e estava cumprindo o que tinha prometido em seu estatuto.
Conforme o Interventor Federal,

[...] concretizados, em empréstimos a juros módicos, o que liberta a classe da


usura deshumana e inexorável, como em concessões de pecúlios às famílias dos
sócios falecidos, providencia até hoje efetivada sem protelação de qualquer
natureza, dentro de vinte e quadro horas após os óbitos.715

Além disso, a Associação dos Funcionários já estava providenciando a construção de casas


para serem sorteadas para seus associados e havia recebido da Interventoria Federal no ano de 1937
o auxílio no valor de Rs 3:000$000 (Três contos de réis). Observamos que dentro da política que
tinha como objetivo central tentar controlar as instituições representativas e as ações dos
trabalhadores urbanos, essa ajuda financeira é um claro exemplo desta intenção governamental.

Dentro desta modesta política habitacional adotada no Amazonas pela interventoria


federal, em 1939, “a Associação Beneficente dos Funcionários Públicos do Amazonas, auxiliando
aos seus associados na solução de sério e grande problema da casa própria, deu princípio à
construção, em terreno cedido pelo Estado, de dois prédios para sorteio.”716

Outras duas associações de trabalhadores do Amazonas foram destacadas nas exposições


do Interventor Federal para o presidente. Eram a Sociedade Amazonense dos Professores e a
Associação Amazonense de Imprensa. A Associação dos Professores concedia aos seus associados
benefícios hospitalares e de outra natureza, possuía um posto de assistência e ainda matinha uma
escolar elementar. As organizações dos trabalhadores urbanos de Manaus também foram
destacadas por Álvaro Maia.

714
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal em 17 de setembro de 1938. Manaus: Imprensa Pública, 1938, p.16.
715
Ibidem. p.17.
716
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de outubro de 1939 a maio de 1940. Manaus:
Imprensa Pública, 1940, p. 57.
1561

A União Operária do Amazonas (UOA) e o Círculo Operário de Manaus (COM) receberam


atenção especial da administração varguista, pois elas se enquadravam dentro da política da ditadura
estadonovista de controle dos trabalhadores pelo governo através da atuação do MTIC dentro dos
órgãos representativos destes operários. Receberam prédios do governo para instalação de creches
e iriam receber auxílio para construção de casas. Aqui destaco o apoio recebido pelo Círculo
Operário de Manaus dos agentes do Varguismo no Amazonas,

Já comecei a concretizar essa ideia na recente solenidade comemorativa da


fundação desse Círculo, concedendo-lhe, por decreto, Cr$ 50. 000,00 para
auxiliar a construção da “Vila Getúlio Vargas”, destinada à habitação de
operários, contribuindo assim o Estado para a solução do angustioso problema
do lar do trabalhador. Acompanhando o gesto da Interventoria, a Prefeitura de
Manáus subcreverá Cr$ 20.000,00 para o mesmo fim, fazendo também uma
dádiva de .... Cr$ 10.000,00 a benemérita Legião Brasileira de Assistência.717

Em 1944, em sua exposição ao presidente Vargas, o Interventor Maia voltou a destacar em


sua fala o Círculo Operário de Manaus, que segundo ele já contava com 3.000 sócios e havia
recebido da interventoria o prédio para instalação de sua sede para iniciar a organização e a
sindicalização dos operários dentro do projeto elaborado pelo MTIC. As ações da referida
organização operária neste ano foram,

São assistidos por médicos, dentistas, advogados, e gozam de proteção eficaz em


todos os sentidos, orientados pelo próprio Juiz de Menores. Pretende instalar a
Vila Operária Getúlio Vargas, com auxílio da Interventoria e a Legião Brasileira
de Assistência, em terreno doado pela prefeitura.718

A relação entre a interventoria do Amazonas e o Círculo Operário de Manaus é um bom


exemplo da política de controle dos sindicatos proposta pelo Varguismo. O Juiz de Menores André
Araújo, indicado pela interventoria federal para o cargo, era o presidente do Círculo Operário, que
seguia ideologicamente as orientações do corporativismo na busca pela paz social. Além da sede
para sua instalação o Círculo também recebeu do governo, após orientação da Delegacia do
Ministério do Trabalho, outro prédio localizado no centro de Manaus na Avenida Sete de
Setembro, para instalação da Creche Circulista Menino Jesus, que iria receber crianças de até 6 anos
filhos de operárias.

717
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1943 a maio de 1943. Manaus:
DEIP, 1943, p. 75.
718
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1943 a junho de 1944. Manaus:
DEIP, 1944, p. 102.
1562

O projeto varguista de controle dos sindicatos na capital amazonense também incluía a


compra de um prédio para instalação da Casa do Trabalhador do Amazonas (CTA). Esse projeto
recebeu a doação de Cr$ 200.000,00 (duzentos mil cruzeiros) para a aquisição do prédio. Essa
instituição sediaria vários sindicatos e associações que não tinham sede própria. Esse projeto só
seria consolidado em 1947, após o fim da era Vargas com a doação em definitivo pelo governo de
Leopoldo Neves da sede para a CTA, que até os dias de hoje segue concentrando algumas sedes
de sindicatos amazonenses. Vale destacar que nos anos 50 e 60 do século passado a CTA foi o local
de reunião e organização de várias greves dos trabalhadores urbanos de Manaus.

De acordo com Aviz Valente (2005), o título definitivo do prédio foi concedido pelo então
Governador do Estado Dr. Leopoldo Neves pela Lei n.º 406, de 26 de agosto de 1949. Em 11 de
junho de 1947, foi fundada a sociedade civil com a finalidade exclusiva de “servir de sede às
entidades sindicais existentes ou que viessem a ser organizadas, sendo administrada incialmente
por uma junta governativa.” (Valente, 2005, p. 124).

Apesar da tentativa de controle por parte do poder público, a CTA se tornou um palco da
liberdade de opiniões de inúmeros sindicatos e associações que faziam parte do cotidiano de
inúmeras categorias de trabalhadores da cidade. Sua fundação foi de fundamental importância para
que houvesse um local para concentração dos debates políticos e econômicos, que ocorreram no
Amazonas em meados do século XX.

Entre os anos de 1942 e 1944 foram reconhecidos pelo MTIC 16 sindicatos no Amazonas
e foram abertos 8 processos de autorização, aumentou expressivamente a sindicalização dos
trabalhadores amazonenses e foi solicitada a transformação de 4 associações em sindicatos com a
filiação de 1.200 operários. A CTA tinha um projeto de criar uma “Cooperativa de Consumo dos
Sindicatos, assistência judiciária gratuita em forma cooperativa, assistência médica, orientação à
Maternidade, assistência dentária e recreação operária .”719

Com relação a situação dos trabalhadores interioranos e dos munícipios do Amazonas, o


Interventor Álvaro Maia informa, que o desenvolvimento de todos os setores estava ocorrendo
devido a relação harmoniosa entre o poder público e a população do interior. “Um novo ambiente
social nas selvas em bases mais seguras, por entendimento crescente entre patrões e agregados.”720

719
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1943 a junho de 1944. Manaus:
DEIP, 1944, p. 124.
720
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de outubro de 1939 a maio de 1940. Manaus:
Imprensa Pública, 1940, p. 78.
1563

Conforme o interventor federal, “as leis trabalhistas, os benefícios das caixas de aposentadorias
penetram a hinterlândia.”721

Essa informação dada por Álvaro Maia em sua mensagem ao presidente Vargas, sobre a
chegada das leis sociais e trabalhistas aos mundos do trabalho no interior da Amazônia, é um claro
exemplo da tentativa de criar uma imagem harmoniosa da relação entre patrões e trabalhadores no
interior das florestas. As condições e as relações de trabalho nos seringais, castanhais e em outros
locais de extração dos produtos da floresta sempre foram precárias e tensas é só lembrarmos a
situação dos soldados da borracha, que chegaram na Amazônia para trabalharem no esforço de guerra.

Apesar de todas as promessas feitas pelo Estado brasileiro aos soldados da borracha, que
não seriam desamparados a própria sorte nas mãos dos seringalistas, pois seriam estabelecidas
regras mínimas a serem observadas nos contratos de trabalho, a realidade nos seringais foi outra.
Conforme o pesquisador Frederico Alexandre de Oliveira Lima (2014), os soldados da borracha
foram submetidos a condições de trabalho desumanas, pois,

Verificou-se que os contratos jamais foram cumpridos nos termos das previsões
contidas na legislação da época. Os seringalistas, em alguns casos, continuaram a
tratar os Soldados da Borracha como se escravos fossem e a Justiça do Trabalho e
o Governo brasileiro jamais se interessaram efetivamente pela causa dos
seringueiros. (Lima, 2014, p. 148).

É importante ser salientado, que em contraposição a fala do Interventor Federal do


Amazonas a realidade das relações e condições de trabalho nas florestas da Amazônia não estavam
sendo fiscalizadas pelo poder público. A legislação social e trabalhista apesar das promessas não
chegou nas estradas dos seringais e castanhais amazonenses.

O deslocamento destes trabalhadores para os seringais da Amazônia era feito pelos


programas do governo federal. Essas “levas de trabalhadores nordestinos, que procuravam o
Amazonas e o Acre para o repovoamento dos seringais, foram hospedados com maior carinho em
Manaus, enquanto aguardavam as embarcações para os respectivos destinos.”723 A viagem para os
seringais localizados nas calhas dos rios Madeira, Purus e Juruá era viabilizada pela Interventoria
Federal, pela ACA e pelos órgãos federais. Conforme a exposição do Interventor Federal Álvaro
Maia de 1944,

721
Ibidem, p. 78.
723
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1941 a maio de 1942. Manaus:
Imprensa Pública, 1942, p. 71.
1564

[...] As levas migratórias, organizadas e encaminhadas sob a orientação do


Coordenador da Mobilização Econômica, antes mesmo de penetrarem a selva
para as lidas extrativistas, já sentem os efeitos salutares da assistência moral, social
e econômica que se lhes dá; e longe ou distante dos centros urbanos, a ambiência
que respiram esses conscritos dum novo front – o front da borracha, vale dizer
o front da vitória – é de conforto e confiança. Velam por eles os múltiplos órgãos
brasileiros criados pelos imperativos dos Acordos de Washington, em franca e
leal cooperação com as entidades norte-americanas, providas por igual de
cláusulas estatuídas nesses convênios de elevada significação econômica e valiosa
aproximação cultural.724

Apesar da fala de Álvaro Maia destacar a preocupação do governo com a situação dos
soldados da borracha, afirmando que eles estão no front de guerra pela borracha, não esconde a
exploração vivida por esses trabalhadores. Segundo Lima (2014), essa exploração pode ser
verificada nos,

[...] abusos dos seringalistas não se tornaram exceção, em muitos casos


utilizando-se dos benefícios concedidos pelo Governo brasileiro. Exemplo disso
era o medicamento Atebrina, utilizado para combater a malária doença que
grassava pela região e provocada diversas mortes ou incapacidade para o
trabalho. Esse medicamento, que tinha origem dos Estados Unidos, deveria ser
fornecido gratuitamente aos seringueiros em substituição ao Quinino. Porém isso
não ocorria, sendo o medicamento, na maioria das vezes, vendido a preços nada
módicos. (Lima, 2014, p. 119).

Sendo assim, a situação dos seringueiros, agora soldados do front da Amazônia, não era
muito diferentes dos seus antecessores do final do século XIX e início do século XX. O
endividamento perpétuo, que prendia o seringueiro ao seu patrão, marca do apogeu da economia
gomífera, ainda fazia parte das relações de trabalho nos seringais amazônicos.

De acordo com o Interventor federal Álvaro Maia, a manutenção destes trabalhadores nos
seringais fazia parte da política de esforço de guerra na Amazônia adotada pelo governo federal,
após a entrada do país na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados e a assinatura dos Acordos
de Washington com os Estados Unidos da América (EUA). Conforme o Interventor Maia, “por
decreto-lei nacional os seringueiros jovens são reservistas mobilizados; há, portanto, um exército
de trabalhadores da selva, cooperando com o Brasil e a América, porque a borracha produzida irá
fortificar a aviação e moto-mecanização.”725

724
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1942 a maio de 1943. Manaus:
DEIP, 1943, p. 6-7.
725
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1942 a maio de 1943. Manaus:
DEIP, 1943, p. 98.
1565

Outra medida da política de esforço de guerra no Amazonas para solucionar o problema


da falta de mão de obra foi a utilização do trabalho obrigatório para atender a demanda do
extrativismo do látex. Segundo Álvaro Maia, “nos subúrbios da capital, nos arredores das pequenas
cidades do interior, há inúmeros homens, que precisam ser encaminhados para os seringais, visto
que invertem suas forças em atividades proteláveis, que devem ser substituídas pela campanha da
borracha.”726 Para atender o trabalho agrícola a Interventoria Federal indicou para as Prefeituras
aconselharem os proprietários de terras do estado a usarem o trabalho feminino nas atividades
leves para atender o abastecimento dos seringais.

Entretanto, a falta de mão de obra não afligia só os seringais do estado. Os departamentos


públicos e as empresas privadas da capital amazonense precisavam de mão de obra, pois os
trabalhadores estavam preferindo o trabalho na extração de produtos da floresta ou em outras
atividades econômicas devido os investimentos de capitais no vale amazônico. O Interventor Maia
afirmou em sua exposição,

Não há trabalhadores suficientes para extração de lenha e limpeza de ruas, nem


operários para construções, mesmo com a majoração de salários. Médicos,
engenheiros, mecânicos ingressam em comissões, em autarquias, onde os
vencimentos são maiores. Pode-se dizer que, encarecidos os artigos essenciais à
alimentação, ao vestuário, ao tratamento da saúde, entre quarenta e sessenta por
cento, se mantêm certas classes com os mesmos ordenados antigos, o que
representa um sacrifício compreendido pelo estado de guerra.727

A falta de trabalhadores para os serviços básicos em Manaus, a opção pelo emprego público
de profissionais qualificados devido a garantia de salários melhores e o alto custo de vida na capital
amazonense eram alguns dos problemas enfrentados pela interventoria. Na tentativa de amenizar
essa situação o Estado procurou garantir através de algumas medidas o acesso de certos serviços
públicos para a população como,

[...] instrução gratuita, assistência social em alto grau, amparo a estudantes e a


famílias pobres, passagens aéreas e auxilio a funcionários enfermos, necessitados
de cirurgias delicadas, não realizáveis em Manaus, pela carência de material
especializado. A ação administrativa não se circunscreve aos seus exclusivos
departamentos: abrange associações, escolas, hospitais, missões que subvenciona
para maior irradiação de assistência.728

Essas ações da interventoria amazonense neste momento de crise mundial tinham como
objetivo central manter a sessão de normalidade na cidade evitando assim possíveis distúrbios

726
Ibidem. p. 111.
727
Ibidem. p. 120.
728
Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1942 a maio de 1943. Manaus:
DEIP, 1943, p. 120-121.
1566

sociais mais graves, que prejudicassem a administração pública e se enquadrava dentro das políticas
sociais adotadas pela ditadura varguista.

Dentro deste cenário de esforço nacional, Álvaro Maia afirmou que, “os homens da
Amazônia, desde os mais humildes seringueiros aos proprietários, compreendem a sua
responsabilidade enorme para com o momento e o Brasil. Trabalham com alegria e devotamento,
como soldados que defendem uma causa sagrada.”729

O discurso estadonovista de apoio as camadas trabalhadoras, é reforçado no Amazonas


pela interventoria federal em suas mensagens anuais, afirmando que os trabalhadores de toda a
hinterlândia sabem que estão protegidos pela legislação social criada pelo governo varguista.
Dentro da política corporativista adotada pela ditadura do Estado Novo a administração
amazonense ratifica em sua exposição ao presidente, que estão seguindo as propostas do poder
central, pois “as atividades produtoras nos tempos que correm devem subordinar-se aos interesses
da coletividade e não à preocupação absorvente de lucros, a voracidade de intermediários e
parasitas, tanto do capital como do trabalho.”730

Em outubro de 1940 o presidente Getúlio Vargas e sua comitiva visitaram o Amazonas.


Foi durante essa visita, no dia 10 de outubro, que Vargas pronunciou na sede do Ideal Club o
famoso “Discurso do Rio Amazonas”, onde o presidente exaltou as belezas naturais da região
Amazônica e destacou os problemas enfrentados pela população que ocupa a região. Vargas
afirmou que os problemas da região também eram problemas do Brasil, pontuando o vazio
demográfico, o pouco desenvolvimento agrícola da região e a questão do transporte como os
grandes obstáculos que dificultam o desenvolvimento econômico de toda a região. Neste
pronunciamento o presidente questiona o pensamento determinista, que afirmava que as regiões
tropicais são improprias para o desenvolvimento da “civilização”. De acordo com Vargas,

[...] Vulgarizou-se a noção, hoje desatualizada, de que as terras equatoriais, são


impróprias à civilização. Os fatos e as conquistas da técnica provam o contrário
e mostram, com o nosso próprio exemplo, como é possível, às margens do
grande rio, implantar uma civilização única e peculiar, rica de elementos vitais e
apta a crescer e prosperar. Apenas – é necessário dizê-lo corajosamente – tudo
quanto tem se feito – seja na agricultura ou indústria extrativista – constitúe
realização empírica e precisar transformar-se em exploração racional. O que a
natureza oferece é uma dádiva magnifica a exigir o trato e o cultivo da mão do
homem.731

729 Ibidem. p. 137.


730 Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da República, por Álvaro
Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses de maio de 1943 a julho de 1944. Manaus:
DEIP, 1944, p. 4-5.
731
Estado do Amazonas. A visita do Presidente Vargas e as esperanças de ressurgimento do Amazonas. Manaus:
Imprensa Pública/DEIP, 1940, p. 12.
1567

No seu discurso o presidente identifica alguns dos problemas enfrentados pelos povos que
habitam na Amazônia, destacando a luta destas populações para manter sua subsistência e aponta
como uma das soluções para região, o uso do conhecimento racional para a exploração das riquezas
amazônicas. Afirmando que o novo regime fundado no dia 10 de novembro não poderia abandonar
a região, que se constituía como a “terra do futuro, o vale da promissão na vida do Brasil de
amanhã.”732
Uma grande homenagem foi feita ao presidente na sua chegada à capital amazonense,
delegações de estudantes, trabalhadores e autoridades locais aguardavam o hidroavião da Panair no
Roadway do Porto da cidade para recepciona-lo. Segundo os jornais da época a multidão que
aguardava o presidente era aproximadamente 50 mil pessoas, que se distribuíram nas Avenidas
Eduardo Ribeiro e Sete de Setembro, levando em consideração que o censo demográfico de 1940
informou que Manaus possuía uma população de aproximadamente cem mil habitantes,
praticamente a metade da população manauara aguardou a chegada de Vargas.

“Verdadeira consagração popular ao chefe da nação” foi assim que o Jornal do Commercio
noticiou a recepção feita pelos habitantes de Manaus para Getúlio Vargas. Conforme a reportagem
do periódico,

A chegada do presidente Getúlio Vargas a Manáos pode-se registrar como um


acontecimento de grande valor. O povo movimentou-se, com a mais viva alegria,
e encheu todo o espaço que fica fronteiro ao gradil da “Manáos Harbour”,
avenida Eduardo Ribeiro e avenida Sete de Setembro, ávido de demonstrar
expressivamente o seu apreço ao mais alto magistrado da nação. (Jornal do
Commercio, Manaus, quarta-feira, 10 de outubro de 1940, p. 1).

Durante a estadia de Getúlio Vargas em Manaus foi organizado um grande comício para
homenageá-lo, o local escolhido foi a Praça General Osório onde a população se concentrou para
prestar as honras ao líder da nação. Depois de uma recepção no Palácio Rio Negro com lideranças
políticas e empresariais e a visitação de alguns órgãos públicos o presidente se dirigiu ao local. Entre
os discursos feitos em sua homenagem, a reportagem do Jornal do Commercio destacou a fala do
escritor Hemetério Cabrinha, que proferiu um discurso cheio de emoção,

Disse que a satisfação daquella massa operária, alli presente era incomparável,
pois ella sabia comprehender que, dessa visita, resultaria a real entrada do Estado
Novo dentro do Amazonas.
Terminou, rogando aos céus uma longa vida ao chefe da nação, pois elle, somente
elle, poderá conduzir o Brasil ao destino histórico dos grandes países. (Jornal do
Commercio, Manaus, quarta-feira, 10 de outubro de 1940, p. 1)

732
Ibidem. p. 13.
1568

O escritor Cabrinha procurou destacar em seu discurso a relação de confiança e gratidão


entre o operariado amazonense e o presidente Vargas. Em resposta a homenagem o presidente
afirmou que “os outros poderiam esquecel-o, menos o operario, porque trazia sempre lembrança
no coração” (Jornal do Commercio, Manaus, quarta-feira, 10 de outubro de 1940, p. 1), apresentou aos
trabalhadores urbanos amazonenses o projeto de construção de casas populares através de recursos
oriundos do Instituto de Aposentadoria e Pensões e para o trabalhador interiorano prometeu a
divisão de pequenos lotes na tentativa de reparar injustiças históricas e terminou dizendo,

Vim a Amazônia, não por passeio. Vim para ver, para sentir, para compreender.
Por isso mesmo, desejo contar com o apoio do operariado esse apoio que nunca
me faltou para com elle realizar o engrandecimento da Amazônia e do Brasil.
(Jornal do Commercio, Manaus, quarta-feira, 10 de outubro de 1940, p. 1)

Na fala do presidente podemos identificar a reafirmação do projeto da ditadura


estadonovista de controlar as camadas trabalhadoras. Ao destacar que o operariado nacional não
pode esquece-lo, verifico aí uma clara alusão as leis trabalhistas e sociais, que foram implementadas
durante seus 10 anos de governo e atenderam muitas das demandas exigidas nas lutas operárias das
duas primeiras décadas do século passado. E conclui seu discurso prometendo a criação de um
projeto para a construção de casas operárias nas cidades e distribuição de pequenos lotes de terra
para o trabalhador rural. O comício foi encerrado com um desfile dos sindicatos e associações das
diversas categorias de trabalhadores, dos grupos escolares e dos grupos esportivos do Amazonas.

Em suma, a ditadura estadonovista no Amazonas através das ações da Interventoria Federal


tentou colocar em prática o projeto Varguista de controle dos trabalhadores através de suas
políticas de concessão de benefícios aos sindicatos e associação reconhecidos e autorizados pelo
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, entretanto, vale aqui apontar que essa relação foi
tensa e conflituosa e pode ser verificada nas inúmeras queixas trabalhistas encaminhadas a 1ª Junta
de Conciliação e Julgamento de Manaus e nas correspondências de populares e trabalhadores do
Amazonas para Getúlio Vargas temas para um outro artigo.

Referências

Fontes Documentais
Estado do Amazonas. A visita do Presidente Vargas e as esperanças de resurgimento do Amazonas.
Manaus: Imprensa Pública/DEIP, 1940.
1569

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Estado do Amazonas. Exposição apresentada ao Exmo. Sr. Dr. Getúlio Vargas, Presidente da
República, por Álvaro Maia, Interventor Federal referente ao período que compreende os meses
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de maio de 1943 a julho de 1944. Manaus: DEIP, 1944.

Estado do Amazonas. Mensagem do Governador do Amazonas, Álvaro Botelho Maia à


Assembleia Legislativa na abertura da sessão ordinária, em 3 de maio de 1936. Manaus: Imprensa
Oficial, 1936.

Estado do Amazonas. Mensagem do Governador do Amazonas, Álvaro Botelho Maia à


Assembleia Legislativa na abertura da sessão ordinária, em 3 de maio de 1937. Manaus: Imprensa
Oficial, 1937.

Cabrinha, Hemetério. O Trabalhador e o Estado Novo. Manaus: DEIP, 1940.

Prefeitura Municipal de Manaus. Mensagem do Prefeito de Manaus o Agrônomo Antônio Botelho


Maia apresentada à Câmara Municipal de Manaus em 15 de abril de 1937.

Jornal do Commercio das décadas de 1930 e 1940.

Jornal A Tarde de 1937.

Revista A Selva. Manaus, novembro de 1937, ano I, n.º: 3.

Revista A Selva. Manaus, 28 de fevereiro de 1938, ano I, n.º: 8.

Revista Rionegrino. Manaus: 25 de janeiro de 1930, ano:7, n.º: 15.

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Manaus: Editora Travessia, 2005.
1571

Os quilombos contemporâneos e a construção da territorialidade


negra: um retrato de Helvécia Bahia e a luta pela preservação de
suas terras (1970 – 2018)

Ramom Pereira de Jesus Moreira*

Resumo: o texto busca discutir as ações empreendidas por moradores e moradoras da comunidade
negra rural de Helvécia, situada no Extremo Sul da Bahia com a intencionalidade de preservarem
os espaços que vinham sendo ocupados por eles de forma ancestral, isso se deu a partir do fato
que a localidade foi primariamente organizada por trabalhadores escravizados egressos da antiga
colônia Leopoldina em decorrência do fim da escravidão em 1888, sendo os moradores de Helvécia
descendentes diretos destes. Esses elementos possibilitaram que os moradores da referida
localidade iniciassem um processo de busca por reconhecimento quilombola seguido de titulação
e demarcação de suas terras junto a Fundação Cultural Palmares em 2002. A luta pôde ser
empreendida tendo em vista o artigo 68 da Constituição Federal de 1988, que possibilitou que
comunidades negras rurais constituídas no pós-abolição requeressem do Estado a regularização de
suas terras, para que pudessem manter suas culturas e tradições. A necessidade de iniciar uma luta
judicial para a preservação das terras de Helvécia-Ba surgiu como uma necessidade, uma vez que a
partir da década de 1980 os moradores sofreram um processo de desmonte local, ação empreendida
por grileiros e empresários do ramo de celulose que empreendiam no monocultivo do eucalipto. A
partir das perspectivas da História social é possível discutir os desdobramentos da caminhada em
prol do reconhecimento quilombola e da construção da territorialidade negra em Helvécia entre
1970-2018, para tanto além da bibliografia pertinente ao tema, faremos uso de fontes orais para
analisarmos os processos que se desenvolveram nesta localidade.

Palavras-Chave: Comunidades negras, territorialidade, quilombos.

Introdução

A constituição Federal brasileira de 1988 no artigo 68 do ADCT buscou regularizar antigos


problemas que tangenciavam a posse de terras ocupadas pelas comunidades negras, tanto nos
meios urbanos como rurais. Em decorrência das movimentações empreendidas principalmente
pelo movimento negro, os assuntos referentes as terras dos antigos quilombos, retornaram a
centralidade das discussões na intencionalidade de sanarem fissuras abertas ao longo do pós-
abolição.
Os quilombos brasileiros surgem a princípio definidos pelo rei de Portugal em resposta ao
conselho ultramarino em 1740 como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em
parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (Moura,
1987, p. 11). Não demoraria muito para que este, se configurasse como o maior símbolo de rebeldia

*Graduado em História pela Universidade do Estado da Bahia e Mestre em Memória: Linguagem e sociedade pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. ramom.moreira@hotmail.com.
1572

escrava, não só no Brasil como nas demais partes da América que constituíram suas bases
econômica a partir da exploração da força de trabalho de africanos e seus descendentes em estado
de escravidão.

Na língua Bantum os Kilombos podiam ser compreendidos de duas maneiras: A primeira


delas fazia alusão a tipos de acampamento guerreiro, que normalmente eram formados em épocas
de guerra. A segunda forma que os Kilombos podiam ser referenciados, diz respeito aos rituais de
passagem em sociedades guerreiras. Já no Brasil Quilombo, passou a designar não apenas uma
forma de rebeldia escrava, como também a construção de um projeto social de liberdade.

Muito se discutiu, e ainda é discutido pela historiografia brasileira sobre as concepções


sociais da formação dos quilombos. Uma das discussões, dizem respeito a ideia do caráter
isolacionista dos quilombos, ideia essa que vigorou em diversos trabalhos principalmente entre as
decas de 1930 e 1960. O pensamento estático dos quilombos, perdem folego principalmente, a
partir do momento que é desnudado as redes de solidariedade que foram formadas e mantidas
pelas comunidades aquilombadas e a sociedade circunvizinha.

Evidenciar o dinamismo das sublevações empreendidas pelos indivíduos em estado de


escravidão ampliaram sistematicamente as fronteiras das análises a respeito das comunidades de
quilombos. João José Reis (1996) e Flavio do Santos Gomes (1995 e 2005), apresenta-nos os
quilombos brasileiros como espaços de construção social, possuidores de organização política e
econômica. “Nas áreas rurais e nas cidades, escravos africanos e seus descendentes politizaram o
cotidiano, organizando suas famílias e comunidades” (Gomes, 2005, p. 448).

Se em um primeiro momento, a fuga e a formação dos quilombos podiam ser lidas como
um projeto de reiteração de liberdade ao longo de todo o período colonial brasileiro, nos períodos
sequenciais ao fim do trabalho escravo no Brasil constituíram-se como um espaço de luta por
inserção social e direito a construção/legalização de uma territorialidade negra.

É sabido de todos, que a Lei Áurea, assinada em 1888 como fruto das movimentações
empreendidas principalmente por escravos e seus descendentes, não colocou fim ao processo de
exclusão social da população negra, muito pelo contrário, ao decorrer desse período (1888-1988),
o Estado, isentou-se ou omitiu-se na elaboração de políticas de cunho reparativo. Isso só passou
ser uma realidade nas discussões que antecederam a elaboração da Constituição Federal de 1988.

Os quilombos deixam de existir enquanto categoria jurídica ao fim do sistema escravista,


contudo, não deixaram de permanecer no meio social. A ideia que se criou é que, se não existiam
trabalhadores escravizados, também não mais existiam os quilombos, no entanto, as populações
egressas dos cativeiro, permaneciam agrupando conjuntamente nas localidades dos antigos
1573

quilombos, ou na formação de outros agrupamentos em diferentes partes, como resposta a


sistemática tentativa de os colocar a margem das demandas sociais (Moreira, 2019).

Em decorrência das constantes expulsões das população negra das terras que ocupavam,
bem como os entraves gerados pelo governo de possibilitar o acesso dos mesmos aos meios
formais de trabalho, uma vez que a se voltava para a política de imigração do branco europeu,
relegando ao negro brasileiro uma posição de exclusão social, exclusão essa que fez emergir nas
primeiras décadas do século XX, diversas organizações de movimentos negros, como a Frente
Negra Brasileira (FNB) contando com a influência da imprensa negra, Teatro Experimental do Negro
(TEM) e ao final da década de 1970 a criação do Movimento Negro Unificado (MNU) (Oliveira,
2005).

As movimentações empreendida pelo MNU contribuíram para o destino da população


negra brasileira na segunda metade do século XX, principalmente nos anos que antecederam a
elaboração da Constituição Federal promulgada em 1988. A CF/88 trouxe em seu bojo algumas
reivindicações massificadas pelo MNU juntamente com autoridades políticas que representavam a
bancada negra no Congresso Nacional.

Das muitas reivindicações, destacamos o artigo 68 do ADCT CF/88, que faz alusão ao
direito de reconhecimento, demarcação e titulação das terras quilombolas. O artigo 68, inaugurou
ainda o surgimento de uma nova categoria de luta, os “remanescentes quilombolas”, incluindo a
partir disso as muitas comunidades negras rurais constituídas no pós-abolição, dando a estas
também o direito de preservação física e cultural de suas terras, uma vez que essas comunidades
continuavam, no decorrer de cem anos após o fim da escravidão, tendo suas áreas expropriadas
pelas ações de grileiros, fazendeiros e grandes empreendimentos” (Oliveira, 2005, p. 29).

A população negra em Helvécia e a construção da territorialidade quilombola no extremo


sul da Bahia

A comunidade negra rural de Helvécia, está localizada no extremo Sul da Bahia, sendo
pertencente ao município de Nova Viçosa, encontra-se a 958 km de Salvador tendo a BR 418 e a
BR 101 como suas principais vias de acesso. Segundo dados preliminares do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), referentes à elaboração do censo de 2010 a população total do
distrito de Helvécia era de 3.741 habitantes.
O município de Nova Viçosa originou-se da antiga Vila Viçosa, criada em 1768 como
consequência dos projetos da política joanina que destinava-se a expansão e ocupação das extensas
terras na colônia, e executada durante o período pombalino, na antiga capitania de Porto Seguro,
nas proximidades do rio Peruípe, tendo originado-se do então arraial de Campinhos.
1574

Antes de se constituir como um movimento efetivo de povoamento, a criação


das novas vilas na capitania de Porto Seguro se instituiu, na verdade, como uma
política de consolidação e institucionalização da ocupação territorial pré-
existente. (Cancela, 2012, p. 162).

Na atualidade Helvécia encontra-se localizada na região que durante o século XIX integrou
as faixas de terras pertencentes a Colônia Leopoldina. Foi a partir das margens do rio Peruípe,
localizado a doze léguas acima da antiga Vila Viçosa, na então comarca de Caravelas, no Sul da
Província da Bahia, que se formou a Colônia Leopoldina, constituída a partir da doação de cinco
sesmarias de mata Atlântica a colonos europeus de outras nacionalidades que não portuguesa. “Em
1938, a localidade passou a denominar-se Distrito de Helvécia, no atual município de Viçosa, onde
ainda existem descendentes e remanescentes destes imigrantes pioneiros” (Müller, 2010, p. 1).

A história da comunidade remanescente quilombola de Helvécia é construída


principalmente através da oralidade, amparados principalmente pela memória. Através desta,
tradições, práticas, fazeres culturais foram mantidos e reformulados ao longo do tempo. No que
diz respeito a memória, Bergson (1999, p 32) diz que ela [a memória] tem por finalidade primeira
chamar todas as percepções passadas equivalentes a uma percepção do/no presente, rememorar o
que antecedeu e o que seguiu, indicando assim a decisão mais coerente ao momento.

As memórias tecidas por moradores de Helvécia, direcionaram o andamento da pesquisa,


uma vez que foi por meio desta, enquanto objeto de análise que foi possível uma maior interação
dentro da comunidade a fim de buscar uma compreensão do processo de organização do distrito
de Helvécia como comunidade remanescente quilombola.

Assim sendo, através do ato de lembrar e rememorar é que foi possível tecer as teias de
informações a respeito da comunidade negra rural de Helvécia, sendo dessa maneira possível
vislumbrar qual a Helvécia que permeia na memória dos seus moradores. Neste sentido, Oliveira
(2005), aponta que nestas comunidades tradicionais, a memória é sempre acionada como uma
espécie de alerta, ou como ferramenta eficaz na manutenção da unidade do grupo.

As narrativas orais servem, dentre outros empregos fundamentais, para


armazenar e transmitir informações acerca da realidade circundante, bem como
contribui para o conhecimento da experiência humana e a apreensão do
cotidiano. São veículos de sociabilidade das experiências individuais
compartilhadas e socialmente admitidas (Abreu, 2014, p. 22).

Os relatos orais, constituem-se neste sentido como importantes fontes históricas,


contribuindo para uma (re)constituição do passado no tempo presente, ou como aponta Abreu
(2014, p. 22) “a memória transmitida oralmente traduz-se em presença real”. Assim sendo, os
1575

relatos orais, sob o prisma de fonte histórica, requerem os mesmos cuidados exigidos no trato com
as fontes documentais. Neste sentido, os temas que discutem a História do Tempo Presente
promovem uma recuperação da memória coletiva e individual, uma vez que é servida pela presença
das testemunhas vivas.

Isso fica evidenciado na narrativa do senhor Manoel Peixoto morador e comerciante em


Helvécia, quando buscou em sua memória todas as informações que lhe parecia importante a
respeito da comunidade negra de Helvécia.

Eles começaram por Nova Viçosa, tirar uma faixa de terra por aqui, que depois
fizesse sesmarias, e doasse aquelas sesmarias aos europeus, que viesse para aqui
[...], naquela época naturalmente teve alguma escritura, alguma coisa, mas isso
tudo desapareceu e ficou meio obscuro, cada um tem uma interpretação, mas o
que eu sei é que de fato aconteceu essas sesmarias, ela tirando uma faixa de terra
lá entrando por Nova Viçosa e subindo o rio Peruípe. Então ela fez uma faixa de
terra já acompanhando o Rio Peruípe, o rio Peruípe, a foz do rio Peruípe
desemboca lá em Viçosa, então por ali entrando no rio Peruípe eles subiu, e pelo
que eu pude constatar, é que eles subiu até aqui no Rio do Sul.733

O entrevistado descreveu como se realizou a divisão das terras ainda no século XIX, ele
destaca o papel do rio Peruípe no contorno destas terras, sendo bem preciso em sua fala ao sinalizar
por onde iniciou e onde terminou a divisão destas terras. Essas informações dialogam com aquilo
que é afirmado por Gomes (2009) ao registrar que foi a partir das margens do rio Peruípe,
localizado a doze léguas acima de Nova Viçosa, na então comarca de Caravelas, no Extremo Sul
da Província da Bahia, que se formou a Colônia Leopoldina, originando-se a partir da doação de
cinco sesmarias de mata Atlântica.

Para a colônia Leopoldina vieram colonos alemães e suíços, as terras da colônia destacaram-
se pela grande produção de café, o que lhes conferiram maior notoriedade dentre as demais
colônias, instituídas a partir de 1808 “e a decorrente maior referência nas fontes administrativas”
(Carmo, 2010, p. 15).

Da agricultura familiar a colônia Leopoldina transformou-se em uma grande produtora de


café, fato este que a tornou distinta das outras colônias, e aqui especificamente ocorreu uma série
de descumprimentos daquilo que havia sido estabelecido com o decreto de 1808.

Em contraposição a esta proibição, a Colônia Leopoldina, ao invés de ter


desempenhado, unicamente, a função agrícola de subsistência, utilizando mão-
de-obra familiar e livre, acabou por se destacar no cenário regional como colônia
de produção cafeeira para exportação (Gomes, 2009, p, 40).

733 Entrevista concedida ao autor pelo Sr. Manoel Peixoto em 13 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
1576

A colônia Leopoldina conseguiu por algum tempo amoldar-se as exigências estabelecidas


no decreto de 1808, no entanto, a agricultura familiar começou a enfraquecer, descaracterizando
assim aquilo que foi idealizado para as terras cedidas aos colonos europeus. A isso se somava as
dificuldades que se tinha em desenvolver nestes espaços empreendimentos de grande escala e
rentabilidade utilizando-se unicamente os trabalhadores livres, estes e algumas outras insatisfações
motivaram os colonos europeus a introduzir mão de obra de cativos em suas terras.

No tempo presente essas informações aparecem sempre na intencionalidade de justificarem


os motivos pelos quais a comunidade de Helvécia ser constituída em sua maioria por pessoas
negras, que posteriormente abririam um processo jurídico que buscava a construção de uma
territorialidade negra no Extremo Sul do Estado da Bahia, como é possível perceber na narrativa a
seguir.

E essa sesmarias de europeus, cada senhor dono da terra importavam muito


escravos, é ai [...] pelo tipo de comercio da época [o narrador refere-se ao cultivo
e importação do café], eles comercializavam, vinham navios negreiros e tudo
mais, então eu sei que eles cada um trazia bastante escravos para trabalhar para
eles, eles eram os senhores das terras e cada sesmaria [...], não sei quantos famílias
dentro de cada sesmaria, mas dentro de cada sesmaria tinha muitos escravos, ai
cada qual tinha mais escravos, tudo mais. Daí eu sei que ai ficou essa colônia
Leopoldina com muitos escravos, muitos escravos, muito mesmo, ai vinham
escravos, pelo que eu pude constatar, vinham da Angola e da região... Bom isso
ai, vinha... Isso ai, é muito complexo isso ai. Vinha muitos escravos, vinham da
África mesmo, bom, agora ficou, eles cultivavam até aqui [...] a maior cultura
deles aqui, era o café.734

A narrativa tecida pelo senhor Manoel Peixoto traz elementos que reforçam o uso de
cativos africanos ou seus descendentes em toda a colônia, fator que acarretaria um impulso
econômico, ao mesmo tempo em que provocou intensas modificações principalmente no que dizia
respeito ao uso e posse das terras.

Essa utilização de mão de obra escrava descaracterizava as terras da condição de colônia


enquanto tal, isso implicava também na perda de alguns benefícios concedidos a este tipo de
empreendimento, como já fora mencionado anteriormente.

Carmo (2009) afirma que a colônia Leopoldina começou a entrar em colapso ainda durante
as décadas finais do XIX nos anos que antecederam a abolição da escravidão, pois as fazendas da
referida colônia se valiam principalmente do trabalho escravo como o principal meio para o seu

734 Entrevista concedida ao autor pelo sr. Manoel Peixoto em 13 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
1577

desenvolvimento, desta maneira o fim do sistema escravista colocaria a economia da então referida
Colônia Leopoldina em crise.

Helvécia está localizada na região onde se estabeleceu a colônia Leopoldina, é um distrito


pertencente ao município de Nova Viçosa, que se situa na região extremo sul do Estado da Bahia.

[...], essa faixa de terra, logo primeira, ele era português, depois, logo a segunda doado
para alemães, depois pelo que a gente pode constatar para francês, depois pegou uma
faixa para suíços, entendeu? Essa cada uma faixa que eu falo é uma sesmaria, suíços, e
essa faixa de terra suíça, é justamente a que pegou essa faixa aqui que é Helvécia. Helvécia
ficou aqui dentro dessa faixa.735

Ao narrar sobre a composição étnica dos ocupantes das sesmarias doadas pelo governo
português aos estrangeiros europeus, o senhor Manoel Peixoto evidencia que o distrito de Helvécia
está situado na gleba de terras que fora doada aos suíços, e essa afirmativa se fazia repetidas vezes
durante a sua narrativa, revelando assim um nítido desejo de informar a importância histórica do
espaço no qual reside. “Então Helvécia faz parte da Colônia Leopoldina, e toda essa faixa, a faixa
toda ficou chamando Leopoldina”.736
Para o entrevistado essa memória é importante, pois a Helvécia que permeia suas
lembranças é aquela que teria fortes ligações com grupos europeus, segundo ele dignos de serem
mencionados. Ao analisar esta narrativa é possível inferir que para ele está memória seja mais fácil
de ser construída, pois o mesmo reconhece proximidades com os grupos que seriam os donos da
terra, portanto os brancos europeus. Vê-se aqui aquilo que Lucena (1999) indica serem o uso
político do passado.
Devido a toda esta importância para o cenário histórico da região, é que Helvécia passou a
ganhar maior notoriedade em vários espaços, inclusive nos meios educacionais. Passou-se então a
discutir as questões relacionadas à riqueza cultural, como também a relevância que esta teve para a
região do Extremo Sul da Bahia, tanto como espaço de resistência, como a sua relevância para a
economia local durante o período da colônia Leopoldina, bem como no período da estrada de ferro
Bahia-Minas.

Helvécia passou a ser apresentada em sala de aula pelos discentes, como um lugar
de referência da cultura afro-brasileira, falada como sendo um espaço de
resistência, um lugar onde as pessoas tinham suas tradições associadas aos
tempos da escravidão, vivenciados na antiga Colônia Leopoldina, fundada por
colonos europeus ainda no início do século XIX (Gomes, 2009, p, 15).

É em consonância com este entendimento, do seu valor cultural e do desejo de que se


pudesse trazer ao cenário das discussões a importância da conservação dos valores culturais, que

735
Entrevista concedida ao autor pelo sr. Manoel Peixoto em 13 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
736
Entrevista concedida ao autor pelo Sr. Manoel Peixoto em 13 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
1578

um grupo de moradores, incentivados por agentes externos, iniciaram um processo que visava
reconhecimento, titulação e demarcação das terras de Helvécia, como previsto no artigo 68 da
Constituição Federal de 1988, como área remanescente quilombola. Com efeito, podemos analisar
as narrativas dos moradores e moradoras de Helvécia, entendendo que a memória é antes de tudo
construída através da coletividade do grupo, e como tal é também sujeita a flutuações, uma vez que
estamos lidando diretamente com pessoas que embora elenquem pontos comuns neste construto
social, são pessoas que por vezes divergem quanto aquilo que “deve ser relembrado”, “a memória
é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução,
aberta a dialética da lembrança e do esquecimento” (Nora, 1993, p. 9).

Autodefinição e reconhecimento quilombola: o processo de construção identitária

Dialogar acerca da temática dos quilombos na contemporaneidade, leva-nos a rediscutir as


mudanças empregadas na conceituação e compreensão das expressões “quilombo” e
“quilombola”. Caso o leitor retome apenas a conceituação dada por intermédio do Conselho
Ultramarino para a definição do que seriam os quilombos, de certo se apropriaria de uma forma
muito estática de perceber o surgimento ou recriação deste movimento que se constituiu como o
maior símbolo de resistência contra a escravidão.

Rediscutir o conceito de quilombo é também abrir um leque de possibilidades para a


compreensão dos elementos que oportunizam no tempo presente, comunidades negras se
autoafirmarem como sendo remanescentes de quilombo.

Sobre esse termo Arruti (2006) diz que no At. 68 da CF de 1988 a expressão
“remanescentes” surge com a intenção de resolver as questões de continuidade ou descontinuidade
com o passado histórico, como se as relações de parentesco com os antepassados dos quais estes
são descendentes não fossem suficientes, surge então como um desejo de encontrar traços do
passado no presente destas comunidades.

É neste contexto que o distrito de Helvécia, localizado nas terras que um dia foram
pertencentes à Colônia Leopoldina, cuja composição étnica foi constituída em sua maioria por
mulheres e homens negros ganharam destaque e visibilidade em diversos espaços do meio social.
Neste local seria iniciado um processo que culminaria posteriormente com o reconhecimento de
comunidade remanescente quilombola.

O comerciante Manoel Peixoto destaca que:

E depois com a abolição da escravatura, eles até seguiram um pouco para frente,
acompanhando o Rio do Norte, não sei o que... Certo, essa região toda. E como aqui era
o principal comércio, então [...] eles vinham muito para aqui. Toda região aqui, desde
1579

Teixeira, para lá do Teixeira, para lá de Posto da Mata, ai o Rancho Alegre, e todas essas
regiões ai abastecia aqui, então aqui se tornou um comercio principal, entendeu? Então
aqui era o ponto convergente deles, dos pretos, porque também o povo que ficou foi
eles, os brancos foram embora e ficaram os pretos, então aqui ficaram muitos pretos.737

Na afirmativa do senhor Manoel Peixoto ficam evidentes três elementos importantes a


saber: “E depois com a abolição da escravatura [...]” dando a entender que a abolição foi algo
episódico, não processual; “os brancos foram embora”, o narrador se refere aos colonos
proprietários de terras e grandes produtores de café que com a perda da força escrava trabalhando
em suas lavouras não viram mais motivos para permanecerem na região; “então aqui ficaram muitos
pretos” é o terceiro elemento evidenciado na fala e indica que os que ficaram o fizeram não por
motivo de resistência e vitória mas sim porque não tinham para onde ir, revela também o fato de
Helvécia na atualidade ser composta em sua maioria por negros.

[...] os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de


quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que
incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas
também as heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de
serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e
cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras,
tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias
destes grupos, uma denominação também possível para estes agrupamentos
identificados como remanescentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou
“território negro” [...], que enfatizam a sua condição de coletividades camponesa,
definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade (Carvalho,
Schmitt, Turatti, 2002, p, 3).

Em soma com a fala do senhor Manoel a citação anterior ao trazer os elementos “terras de
preto” e “território negro” revela como estes espaços constituídos etnicamente por negros em sua
maioria apresentam ligações com os espaços que são ocupados por eles, sejam estas ligações
mantidas por ancestralidade direta ou por questões de apropriação cultural. Isso fica evidente na
fala da senhora Tidinha moradora de Helvécia, comerciante na localidade, ex-diretora da escola
municipal e que atualmente atua como diretora do museu738 em Helvécia, quando narra que “um
dos objetivos dela é trazer este resgate de preservação da cultura, e todo pelo seu contexto
histórico”.739

Na narrativa da senhora Tidinha evidencia-se a partir do seu olhar enquanto educadora a


importância do reconhecimento de Helvécia como comunidade remanescente quilombola
associado à importância de se conhecer a história do local e a valorização cultural. Salienta-se aqui

737
Entrevista concedida ao autor pelo Sr. Manoel Peixoto em 13 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
738
O museu de Helvécia funciona no prédio da antiga estação ferroviária da Bahia e Minas, erguido em 1897.
739
Entrevista concedida ao autor pela senhora Tidinha em 14 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
1580

que esta entrevistada integra a Associação Quilombola de Helvécia, responsável pelo pedido de
reconhecimento da comunidade como remanescente quilombola como será visto adiante.

Quanto à questão de titulação de terras para remanescentes quilombolas Ilka Leite (2008)
faz menção da vinda maciça de imigrantes europeus no início do século XX, o que caracterizou a
intensificação da exclusão de homens e mulheres negros, que permaneceram na invisibilidade, e
excluídos de direitos constitucionais, e só em 1988 estes grupos receberam visibilidade, foram
criadas inúmeras redes de administração com a finalidade de desenvolver projetos de políticas
públicas nestas comunidades remanescentes quilombolas.

Levando em conta todas estas prerrogativas, buscou-se compreender quais elementos


fizeram do distrito de Helvécia, comunidade constituída após o fim do trabalho escravo no Brasil,
receber da Fundação Cultural Palmares a titulação de comunidade remanescente quilombola.
Segundo Leite (2003) falar de quilombos e dos quilombolas é também nos dias de hoje, falar de
uma luta política, por um lado, e de uma reflexão científica em processo de construção, por outro.
E isso deixa claro que buscar reconhecimento para uma comunidade majoritariamente negra faz
parte do campo de resistência política e cultural, embora os agentes opressores sejam outros, eles
não deixaram de existir no pós-abolição. Neste processo o uso político da memória constitui-se
um instrumento fundamental (Lucena, 1999).

Para Leite (2008) pode-se compreender os quilombos como unidades de apoio mútuo, uma
vez que durante todo o período colonial e imperial, as fugas e formações de agrupamentos
constituía uma forte oposição ao sistema escravista, retomando a ideia do escravo negro como
sujeito e protagonista de sua história e não como objeto como eram entendidos pelos seus
“dominadores”, desta maneira o movimento quilombola é também percebido como símbolo de
movimentos sociais, “os quilombos passaram a integrar a ordem pós-abolicionista relacionando-
se, não sem conflitos, com as estruturas pós-coloniais” (Leite, 2008, p. 966).

Luta essa que fica evidenciada na narrativa tecida pela senhora Tidinha membro da
Associação Quilombola de Helvécia (AQH) ela afirma que:

[...] o porquê do reconhecimento à gente sabe que é por esta grande extensão da
monocultura do eucalipto existe um deputado chamado Luís Alberto que ele tem
um trabalho exclusivo com estas comunidades tradicionais, e o que diante disso
afeta estas comunidades, e assim ele não tinha um conhecimento muito profundo
da nossa comunidade, mas ao ele vim para fazer um passeio aqui ele percebeu
essa grande extensão da monocultura do eucalipto, a gente sabe que todo quanto
é tipo de monocultura ela traz malefícios para o meio ambiente, então a gente
precisaria dar um freio nisso, dar um basta ou pelo menos amenizar a questão
dessa monocultura. E ai por Helvécia ser uma comunidade que tem várias
características e que dá a ela esse direito de ser reconhecido como remanescente
1581

de quilombo, então a gente começou a estudar essa possibilidade juntamente com


esse deputado, então ele começou vim na comunidade, fazer reunião e mostrar
para a comunidade as vantagens, o que a comunidade teria ao ter este
reconhecimento. A gente sabe assim que o reconhecimento de uma comunidade
como Helvécia um dos pontos positivos seria a questão do resgate da cultura, a
preservação da cultura, né?740

A senhora Tidinha destaca contra qual opressão a comunidade estava disposta a lutar, visto
que a comunidade estava cercada pela monocultura do eucalipto, que a cada dia avançava mais
contra a comunidade, então segundo ela “a gente precisaria dar um freio nisso”. Esse dar “freio”
significava para uma grande parte da população uma forma de dizer não a uma imposição feita
“pelo homem branco” aos moldes das antigas relações senhoriais tecidas ao longo de todo período
colonial.
Compreendemos que é a partir da atualização e compreensão das novas dimensões do
conceito de quilombo, que podemos entender os motivos pelos quais a comunidade de Helvécia
recebeu o seu reconhecimento como comunidade remanescente de quilombos.

Em atenção ao oficio PRM/IOS/BA nº 702/2000, informo a vossa Senhoria,


que foi aberto no âmbito desta Fundação processo administrativo, referente ao
reconhecimento da Comunidade Negra Rural de Helvécia, localizada no
município de Nova Viçosa/BA, nos termos do Art. 68 do ADCT e Arts. 2015 e
2016 da CF/88.741

Como ressaltam Gomes e Marques (2013) os remanescentes quilombolas não precisam


necessariamente moldar-se àquilo que foi estabelecido em um primeiro momento pela
historiografia sobre quilombos. Arruti (2005) ressalta que seria impossível atribuir uma única
caracterização aos quilombos, pois podiam variar em tamanho, formas de se obter renda e
diferentes formas de organização social.

Então, é difícil encontrarmos uma comunidade que diga ‘eu sou quilombola’. Só
quando há autoconhecimento, autodiscussão com o movimento negro, quando
há um trabalho de base - aí sim você vai encontrar. Mas numa comunidade que
nunca foi visitada, que seja pouco acessível ou pouco conhecida, jamais vai dizer
que lá é um quilombo. [...] Eu digo que sou quilombola porque é resultado de
um trabalho do movimento negro, com pesquisas e documentos. Conseguimos
documentos desde 1792 e eles explicam para agente que naquela época existiam
quilombos naquelas localidades. Vimos, então, que ali existiu um quilombo,
porque eu não acredito que naquela época todos nós fossemos do fazendeiro,
alguém era revolucionário e a minha família era revolucionária porque eu sou
revolucionário, então por isso eu sou um quilombola.742

740 Entrevista concedida ao autor pela senhora Tidinha em 14 março 2016, no distrito de Helvécia Bahia.
741 Oficio N.º 1104/2000 – PRES/GAB /FCP/MinC. Datado de 11 de outubro de 2000. O oficio é parte integrante
da documentação cedida em forma de cópia pela Fundação Cultual Palmares, de todo o processo para o
reconhecimento de \Helvécia como Comunidade Remanescente Quilombola.
742
Ivo Fonseca no “Seminário Técnico de Mapeamento...” da FCP (Revista Palmares, 2000: 77-8).
1582

Na atualidade declarar-se como quilombola é um processo de autoafirmação no qual as


comunidades negras passam, por perceberem nos fazeres culturais dos espaços em que estão
inseridos, fortes traços com a cultura negra africana.

O distrito de Helvécia constituiu-se como comunidade remanescente quilombola a partir


da abrangência conceitual que o termo recebeu, isso sem dúvidas como soma de um conjunto de
entraves e lutas encabeçados por diversos grupos que militavam em prol da discussão a respeito
do negro brasileiro e quais espaços foram destinados a estes no pós abolição, com o intuído de
diluir as disparidades sociais historicamente conservadas no Brasil relacionadas as questões de raça
e racialidade, dentre estes grupos destacamos o papel do Movimento Negro Unificado (MNU) e
da influência destas frentes de luta que resultaram na promulgação do artigo 68 ADCT da
Constituição Federal de 1988 (Moreira, 2016; Oliveira, 2005).

Podemos entender então, que nesse processo de luta por parte dos movimentos negros, é
também a luta por construção de uma identidade do negro brasileiro. No entanto, no tocante a luta
travada pelas comunidades quilombolas da contemporaneidade, a busca por reconhecimento,
demarcação e titulação das terras não pode ser entendida como um acontecimento consensual no
qual toda a comunidade se esforçou pelo mesmo objetivo, que dizia respeito a construção de uma
identidade quilombola coletiva, na qual todos os membros se sentissem pertencentes ao processo,
para que assim o requerimento aos órgãos responsáveis pelo reconhecimento como comunidade
remanescente quilombola, como previsto no at. 68 ADCT da CF. 1988, obtivesse maior força.

Considerações finais

Como evidenciado pela pesquisa, a história do negro pós-abolição, continuou sendo


marcada por uma sucessiva exclusão dos seus direitos civis. A ausência de projetos de cunho
reparatório, fizeram com que boa parte da população negra brasileira, pós-abolição, assumisse um
papel de marginalização social. Essas questões, só seriam melhores debatidas nas primeiras décadas
do século XX, quando foram reunidos em torno de movimentos políticos, que traziam à tona a
necessidade de se pensar o papel do negro na sociedade brasileira

Neste contexto, temos a importante atuação do Movimento Negro Unificado (MNU) na


tentativa de levar as demandas da população negra ao congresso Nacional em parceria com
personalidades políticas que representavam essa demanda. Mas foi no contexto de
redemocratização brasileira, e na elaboração da nova carta constitucional durante a década de 1980,
que as questões que diziam respeito a direitos civis, cultura e territorialidade da população negra
ganharam força e atenção.
1583

Foi com a promulgação da Constituição Federal em 1988 em especial a partir do artigo 68


do ADCT, que antigas questões que diziam respeito a posse legal da terra pela população negra em
diversos espaços, puderam vir à tona.

Problematizar a questão dos quilombos e dos quilombolas, leva-nos a uma sistemática


análise dos quilombos desde as primeiras concepções sobre esse movimento insurrecional, de
maior destaque durante todo o período escravista. Fuga e formação de quilombos não foram a
única maneira na qual trabalhadores escravizados buscaram reinventar sua liberdade. De diversas
formas e em diversos locais, africanos e afro-brasileiros criaram meios de contestação ao trabalho
escravo.

Discutir a questão dos quilombos no Brasil, tomando a comunidade negra rural de Helvécia
como o locus da pesquisa, levou-nos a um campo de reinterpretação deste movimento. Para isso foi
importante compreender a ressignificação que o termo teve após a promulgação da Constituição
Federal de 1988 em especial o artigo 68 do ADCT.

Foi a partir dessa prerrogativa, que moradores da comunidade negra rural de Helvécia
buscaram junto a Fundação Cultural Palmares a certidão de reconhecimento quilombola bem como
a demarcação e titulação de suas terras, e como visto, esse pedido era movido pelo desejo de
preservarem sua cultura material e imaterial, bem como estabelecer limites quanto ao avanço do
monocultivo do eucalipto na região, o que limitava as atividades costumeiras dos moradores da
referida comunidade.

A busca pelo reconhecimento gerou conflitos internos dentro de Helvécia, conflitos estes,
que se intensificaram no pós-reconhecimento, “impedindo” inclusive que o processo fosse
efetivado em sua totalidade. Helvécia foi reconhecida como comunidade remanescente quilombola
em 2005, porém as terras ainda não foram tituladas. Posto que, a questão da terra gerou desconforto
entre os membros da Associação Quilombola de Helvécia (AQH) e a comunidade em geral.

Referências

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Universidade Estadual de Santa Cruz, 2914. 172 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
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1585

Reis, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo (28): 14 - 39,
dezembro/fevereiro 95 / 96.
1586

Fernando VII: O rei que perdeu as Américas

Rebeka Leite Costa*

Resumo: Fernando VII reinou no início do século XIX, durante as invasões napoleônicas, sendo
destronado e substituído por José Bonaparte. Retornou em 11 de dezembro de 1813, quando as
Américas Hispânicas estavam em guerras. Fernando VII toma como prioridade interna e externa
a reconquista dos territórios da América Espanhola. O objetivo dessa pesquisa é analisar e
apresentar a rede fatorial circunstancial do personagem histórico e da sua decisão da reconquista.

Palavras-chave: Fernando VII, reconquista, América Hispânica

Fernando VII reigned at the beginning of the 19th century, during the Napoleonic invasions, being
dethroned and replaced by José Bonaparte. He returned on December 11, 1813, when the Hispanic
Americas were at war. Fernando VII takes the reconquest of the territories of Spanish America as
an internal and external priority. The aim of this research is to analyze and present the
circumstantial factorial network of the historical character and his decision to reconquer.

Keywords: Fernando VII, reconquest, Hispanic America

Fernando VII

Após a Grande Guerra de Sucessão no século XVIII (Anderson, 2009) os Habsburgos


perdem o poder na Espanha dando lugar a uma casa que já vindo ocupando o trono em vários
territórios estratégicos na Europa: os Burbons. A história dessa aristocracia por si só conta de
forma difusa parte da política moderna europeia. Tornaram-se extremamente influentes entre XVII
ao XIX, transcendendo nações como foi a insígnia dos grandes brasões aristocráticos. Como a
própria historiografia clássica ilustra de forma paradigmática, a aristocracia não obedece aos limites
nacionais, necessitando “viajar para tomar posse,” ainda, que, paradoxalmente, a posse seja de um
Estado Nacional.

Os Burbons se tornam lendários em toda a Europa aproveitando-se da sua rede familiar e,


no ápice de seu poder, expandiram a sua influência, sem deixar, necessariamente que isso
comprometesse os interesses do núcleo familiar ou mesmo de algum individuo coroado ou do país
que ele representava. Era um arranjo de poder no qual seu um fluxo era delicado e somente os
mais habilitados eram capazes de perceber. Somente um virtuosamente versado era habilitado para
manejá-lo à sua mercê.

* Doutoranda de história do PPGHIS da UnB. Orientanda do professor Dr. Francisco Doratioto. Bolsista do CNPQ.
1587

Foram várias as reformas empreendidas pelos Burbons ao logo dos séculos XVIII na
Europa, a reforma Bourbônicas na Espanha foi um exemplo dessas percepções de tempo de alguns
monarcas, que perceberam a necessidade de mudança. Carlos II, Felipe V iniciaram as mudanças,
mas foi com Carlos III que as alterações anteriores que pareciam não surtir qualquer efeito prático
que mudaram aceleram a percepção de tempo (Koselleck, 2006, p. 191-231) e o curso dos efeitos
das políticas econômicas, especialmente no tangente a América Latina, que ordenou a criação da
abertura comercial, como novos portos e restruturação da Administração Colonial que deu um
novo respiro aos dividendos da Coroa.

No final da XVIII, a avalanche da Revolução Francesa atingiu não apenas os Burbons da


França, mas de toda a Europa, afetando todas as casas monárquicas e provocando um efeito
inimaginado por seus intelectuais, conspiradores, autores ou agentes: a união casas monárquicas.
As famílias aristocratas tinham verdadeiras rixas homéricas, sendo algumas inimizades seculares,
independentemente de serem elas familiares ou imperiais.

Em meio a esse cenário Fernando VII


nasceu, cresceu, se formou e começou o seu
reinado. Nasceu, em 14 de outubro de 1784, não
sobre o manto da primogenitura,743 pois
Francisco de Paula e Carlos Francisco ― seus
irmãos gêmeos eram mais velhos (Zalava, 2013, p.
106) e, portanto, tinham o direito à Coroa.
Contudo, quando tinha com pouco mais de um
ano de idade a sua vida tomou um novo rumo
com a morte prematura de seus irmãos.Os
Burbons estavam habituados a esse tipo de
fatalidades em sua família. O que ficou conhecido
como a maldição dos Burbons,744 tinha pouca
relação com o acaso histórico ou o destino. Longe
disso. Essa “madição” estava relacionada aos
vários casamentos consanguíneos feitos ao longo
de gerações com o intuito de preservar o poder na
Figura 3 - Fernando VII por Francisco Goya
família ― um costume habitual entre as casas

743 Disponível no Museu do Prado. Online em:


https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fernando_VII_en_un_campamento,_por_Goya.jpg
744 Ibid., p. 17- 40
1588

aristocráticas europeias, que acarretava numa probabilidade maior de doenças genéticas que
cresciam de em proporções geométricas, em vez de aritméticas, já que se tratava dos dois troncos
da família carregando a mesma carga genética, impossibilitando a variação genética745.

Do ponto de vista psicológico, há relatos de que Fernando podia ser sádico estado que
pode ser relevante no tocante às suas decisões políticas.

A “maldição” parecia perseguir Fernando como poucos em sua família, na idade adulta,
teve quatro casamentos, marcados com uma sucessão de mortes trágicas de suas esposas. Além da
incapacidade de prover uma descendência, pois as crianças morriam no parto, poucos dias depois
do parto ou rainhas sofriam abortos. As esposas foram Maria Antônia de Nápoles, Maria Isabel de
Bragança, Maria Josefa Amália de Saxônia, Maria Cristina das duas Sicílias.

Das quatro esposas escolhidas, apenas Maria Josefa Amália de Saxônia não era parente de
segundo grau da linha colateral. Considerando que a primeira esposa era prima de Fernando,
enquanto a segunda e quarta esposa eram sobrinhas do rei, não se pode dizer que se travava
propriamente de uma maldição ou que as rainhas não pudessem engravidar, ou que tenham ficado
com o seu corpo comprometido após sucessivas gravidezes, e em alguns casos cesárias (Zavala,
2013) feitas as pressas e ou tenham contraído tuberculose como o caso de Maria Antônia de
Nápoles, ou morta em decorrência do parto, como foi o caso de Maria Isabel de Bragança.

Na sua vida pública, Fernando VII parecia que a fortuna lhe era diferente. Carlos IV, seu
pai, em 1808 caiu em desgraça ao ser revelado, publicamente, a relação extra conjugal de sua
mulher, a rainha Maria Luísa de Parma com Manuel Godoy, que além de
ser o primeiro ministro do rei fora, durante a infância de Fernando, o seu
preceptor (Zavala, 2013, p. 100). Fernando aproveitou então da comoção
popular e articulou (Canal, 2017, p. 49-54) a sua ascensão ao trono. O
partido Fernandino tomou as ruas em sua defesa em 17 e 18 de março
no Motim de Aranjuez ― datas que são marcadas até o presente na
Espanha. Finalmente, Carlos IV abdica de sua coroa e Fernando ascende
ao trono de um dos maiores impérios do mudo, ficando conhecido como
o rei desejado.
Figura 4 - Fernando VII
charge: Felón, el Traídor

745International Society of Genetic Genealogy disponível em: https://isogg.org/wiki/Autosomal_DNA_statistics e


https://customercare.23andme.com/hc/en-us/articles/212170668-Average-Percent-DNA-Shared-Between-
Relatives
1589

Como foi possível um monarca conclamado pelas massas, não apenas elevado pelo poder
tradicional,746 mas também pelo seu carisma, cair em desgraça ante a seus súditos e ganhar uma das
piores ofensas públicas possíveis, a alcunha de El Félon, O Traidor, como ficou popularmente
conhecido no XIX.

Primeiro temos que observar a maneira como Fernando às quais chegou ao poder. A
manobra política de derrubada de seu pai, alguns historiadores dizem que inclusive que com o
apoio do próprio Godoy (Canal, 2020, p. 49-52) foi muito inteligente. Uma das partes brilhantes
da estratégia foi encurralar o rei Carlos IV a ponto que ele deveria abdicar para não dividir a
Espanha e causar uma guerra civil. Abdicando em favor de seu filho, lhe dando a sua bênção, ele
evitava dividir o seu reino.

A despeito da maneira como chegara ao trono, o fato é que ele tinha uma base de apoio, o
partido Fernandino, muito grande, muito mobilizado. Inclusive, e se preciso fosse, como
demostrado no Motim de Aranjuez, estavam dispostos a tomarem as ruas, algo que não era comum
para uma sociedade coorporativa. O Motim tem fortes marcas das acelerações dos tempos
modernos, do povo, com a consciência que estavam fazendo história, além de questões anticlericais
(Koselleck, 2006, p. 191-231).

Talvez, o primeiro erro de Fernando fora este, q maneira como ascendeu ao trono aclamado
pelo povo, subestimando esse impulso que o permitira chegar ao poder, pois ele também podia se
voltar contra ele em algum momento, caso a sociedade mudasse de opinião ― na prática, ele havia
colocado no trilho uma correte de eventos que não poderia mais deter.

Após a coroação, o cenário não foi as mais favoráveis, pois as suas ações não favoreceram
sua popularidade, nem estavam perto daquilo que era esperado com sua ascensão ao trono, o que
também esteve associado à sua incapacidade748 de prover um herdeiro para o trono ― a primeira
seria nasceria apenas em 1829, Elisabete de Bourbon.

Em maio de 1808 Napoleão marcha sobre Madrid e, tecnicamente, Fernando, ficara recluso
em Valençay, gerando, em dois pontos fulcrais, uma serie de cadeias de eventos para a Espanha e
para a América Latina.

Primeiro, do ponto de vista do aspecto privado, segundo relatos de diplomatas que


visitaram (Zavala, 2013, p. 52-70) o rei espanhol ele vivia uma vida boemia de bailes. Tais reportes

746 Categoria encontradas em Weber, Max. Três tipos puros de poder legítimo. Tradução: Artur Morão. In: www. lusofia.
net, 2005.
748 Por anos ficou sendo cobrado por um herdeiro como dito anteriormente e apenas a sua última esposa teve

Elisabete e Carlos
1590

foram recebidos na península de forma muito negativa. Foi interpretado que o povo estava sob o
julgo francês e o rei dançando. Outra interpretação possível é que ele tinha obrigações diplomáticas
e para tanto deveria manter certos padrões esperados da aristocracia.

Enquanto Fernando estava cativo em Valençay, José Bonaparte era rei da Espanha, o que
gerou revoltas na península e nas Américas.

O primeiro motivo das revoltas no império espanhol era o questionamento da legitimidade


de José Bonaparte, isso, ou se ele era um rei tirânico. Ademais ele carregava consigo o peso da
figura de Napoleão que era uma representação perfeita de um poder “ilegítimo” e, em razão desta
condição, tornou-se incontrolável. Afinal, o modelo corporativo do Antigo Regime não permitia
ao rei fazer tudo quanto lhe convinha, precisava antes negociar com os poderes (Hespanha, 19940.

A economia era uma problemática, considerando o bloquei marítimo, o qual a Inglaterra


efetivamente aproveitou da janela de oportunidade para romper com a então conturbada relação
com a metrópole para romper com o pacto colonial. Não foi o único império que tentou aproveitar
do enfraquecimento espanhol. As próprias elites locais defenderam os portos contra os ataques e
as tentativas de excussão dos corsários. A aparente prova de fidelidade à coroa espanhola, na
verdade, se demostrou contraproducente, porque provou as elites locais a sua capacidade de
organização e autodeterminação como foi o caso da defesa da elite portenha ao expulsa a Inglaterra
do Rio da Prata (Doratioto, 1994). A motivação para as revoltas conta a Espanha napoleônica já se
tinha tanto política, o rei ilegítimo, quanto econômica, o bloqueio marítimo. As batalhas lhe tinham
demostrado a capacidade de autodeterminação e suscitado caudilhos, iniciando os processos de
independência.

A restituição de Fernando VII, em dezembro de 1813, ao trono espanhol, trouxe consigo


o peso da monarquia bourbônica, acalmando os ânimos na península, e trazendo a esperança de
que a ordem seria restaurada. Contudo, já não gozava de um alto prestígio entre as elites coloniais
que, a princípio, fizeram levantes em nome de Fernando, como em 1814, pouco depois de seu
retorno ao trono, o que não impediu que continuasse clamando por independência.

A partir desse momento Fernando VII inicia um novo capítulo em sua vida pública,
dedicando-se obstinadamente a impedir a independência das Américas, seja por meios bélicos ou
diplomáticos. Para tanto, faz uso da sua rede de poder familiar, da sua rede constituída através de
seus casamentos e da sua influência junto a Santa Sé.

No próprio ano de 1814 o diplomata adjunto a Santa Sé negocia uma manobra eclesiástica
a Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, na qual não se condena frontalmente as independências, mas
restaura os jesuítas, a fim de “instruir a la juventud en las nociones de la religión católica y para adiestrarla en
1591

las buenas costumbres”749 , como forma restaurar a ordem, uma vez que os jesuítas eram a ordem mais
influente na educação na América Hispânica.

No Congresso de Viena Fernando articula com aliados inimagináveis: Portugal, Rússia,


Inglaterra, Império Austríaco, além da Santa Sé para bloquear o reconhecimento das
independências. A articulação de Fernando VII foi extremamente eficiente, considerando que
belicamente naquele ponto já era uma guerra perdida na maioria dos territórios. Destaca-se,
sobretudo, os países da Santa Aliança que fizeram uma espécie de pacto de não reconhecimento.

A última linha de batalha importante a ser defendida era a Santa Sé. Roma foi pendular
entre Madrid e a América. Na correspondência diplomática, houve decisões plurais. Todavia, os
documentos oficiais publicados demostram pouco a pouco o papado foi cedendo. Foram três
cartas: Etsi Longissimo Terrarum, do Papa Pio VII (1816), Etsi Iam Diu, do Papa Leão XII (1824), e,
por fim, a Constituição Sollicitudo Ecclesiarum, de Gregório XVI (1831).

A constituição Sollicitudo Ecclesiarum, reconhece os poderes de fato, estabelecendo assim a


possibilidade eclesiológica do reconhecimento tácito da Santa Sé reconhecer as independências por
seu poder pastoral e não político. Pouco tempo depois, surgiram as primeiras nunciaturas
apostólicas. (Leturia, 1959, p. 397-407).

Pela documentação diplomática, sabe-se que Fernando VII adoece em meados de 1832 e
morre em setembro de 1833, enterrando consigo qualquer reclamação espanhola sobre os
territórios americanos, visto que deixa para governar uma rainha infanta de 2 anos e 11 meses.
Elisabete II tinha uma crise de legitimidade em suas pequenas mãos contra seu irmão caçula Carlos.
Sendo assim, incapaz de litigar no cenário internacional pelas Américas.

Referências

Fontes Primárias
• Encíclica Sollicitudo Omnium Ecclesiarum - Papa Pio VII (1814)
• Encíclica Etsi Longissimo Terrarum - Papa Pio VII (1816)
• Encíclica Etsi Iam Diu – Papa Leão XII (1824)

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749 Sollicitudo Omnium Ecclesiarum - Paragrafo 8º


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https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Fernando_VII_en_un_campamento,_por_Goya.jpg
1593

Mulheres Negras no Filme Rio 40 Graus: Subjetividades e


representações na interseccionalidade

Renata Melo Barbosa do Nascimento*

Resumo: Subjetividades e representações das mulheres negras difundidas no filme Rio, 40 Graus
(1955) de Nelson Pereira dos Santos; através dos estudos feministas/feminismos negros
interseccionais.

Palavras-chave: representações, mulheres negras, cinema, subjetividades, interseccionalidade.

O filme Rio, 40 Graus, lançado em 1955 pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos750, apesar
de amplamente discutido e analisado nos meios acadêmicos, permanece pouco explorado numa
perspectiva histórica. Além disso, observo que boa parte desta produção acadêmica não analisou
com profundidade as questões de gênero e raça retratadas no filme. Por se tratar de um cinema de
vanguarda, que buscava se libertar dos valores e interferências do colonialismo estrangeiro; busco
também investigar as permanências e rupturas de valores e concepções colonialistas que marcaram
as representações das subjetividades das mulheres negras no Brasil.

As representações veiculadas nos discursos, palavras, mensagens e imagens


cinematográficas podem servir de guias para a interpretação e construção da realidade (Jodelet,
2001, p. 17). Enquanto fenômenos complexos e dinâmicos em ação na vida social, carregados de
crenças, valores, opiniões e normas, as representações se ligam “tanto a sistemas de pensamento
mais amplos, ideológicos ou culturais, a um estado de conhecimentos científicos, quanto as
condições sociais e à esfera da experiência privada e afetiva dos indivíduos” (Ibidem, p. 21). Nesta
perspectiva, destaco a importância do estudo sobre as representações, pois importa descrevê-las,
analisá-las e explicá-las em suas dimensões, formas, processos e funcionamento. Nesta tarefa,
procuro detectar as representações que constroem as subjetividades das mulheres negras, em
imagens e diálogos (palavras e frases) que aparecem no filme.

Uso o conceito de subjetividade, com base nos estudos de Foucault, porque nos ajuda a
compreender melhor a dinâmica que envolve os processos de construção dos sujeitos. Nesta
perspectiva, entendo que as identidades não são fixas e imutáveis, elas constituem processos de

*Doutoranda em História pela UnB – Universidade de Brasília.


750
Este cineasta brasileiro é considerado um dos precursores do chamado Cinema Novo, um movimento
cinematográfico que se desenvolveu no Brasil, especialmente, nas décadas de 1950 e 1960.
1594

construções permanentes que acontecem nas interações dos sujeitos na vida social. De acordo com
Foucault, esses processos de subjetivação são construções sociais e históricas que determinam
modos de pensar, agir, ser e estar no mundo (Oliveira, 2012, p. 17). Assim, compreendo as
subjetividades das mulheres negras como efeitos de diversas práticas e tecnologias sociais, dentre
elas, o cinema.

Considerando o cinema como um dos dispositivos que participam dessa construção dos
sujeitos, por meio de suas imagens (Lauretis, 1994). As representações, enquanto produtos e
processos das relações de poder, são forjadas e veiculadas também pelo cinema. Enquanto
“tecnologia do gênero” (Ibidem, 1994), o cinema também participa da construção e proliferação
de representações sociais que constroem os corpos masculinos e femininos, que ditam modos de
ser e estar na sociedade, classificando e dividindo a humanidade entre homens e mulheres, negros
e brancos, ricos e pobres. Neste estudo compreendo o gênero (Scott, 2011; Butler, 2016) e a raça751
como construções históricas e culturais que também participam dos processos de construção das
subjetividades.

As imagens veiculadas no cinema são capazes de incidir na formação dos imaginários,


subjetividades e práticas sociais. A reiteração constante das diferenças e desigualdades, por meio
das imagens cinematográficas, acaba por naturalizar os processos de exclusão, violência e
marginalização que sofrem as mulheres negras no Brasil. Deste modo, o cinema, merece atenção,
enquanto historiadora feminista negra, estou interessada na desnaturalização/historicização das
representações que constroem as desigualdades de gênero e raça no Brasil. Permitindo a
compreensão de que as mulheres negras são sujeitos com subjetividades plurais e múltiplas, que
não são fixas ou permanentes, e que, portanto, se transformam e se relacionam com vários outros
aspectos da vida social.

Rio, 40 Graus tem a duração de 100 minutos e suas imagens são exibidas em preto e branco.
Seu elenco é composto por aproximadamente 30 personagens, dentre elas se destacam a atuação
de três personagens negras: Ana, Elvira e Alice. Elvira é uma trabalhadora doméstica, de meia
idade, que está doente e impossibilitada de trabalhar. É mãe de Jorge, um dos garotos vendedores
de amendoim. É viúva e cria seu filho adolescente sozinha, em condições precárias. Ela conta ainda
com a solidariedade de Ana, uma mulher negra, também de meia idade e trabalhadora doméstica,
que sustenta a casa independente do marido, que também é negro e desempregado. Já Alice, filha

751
Ver: Carneiro, Sueli. Mulher Negra: Política governamental e a mulher. Santos, Thereza; Costa, Albertina Gordo
de Oliveira; Carneiro, Sueli, São Paulo: Nobel: Conselho Estadual da Condição Feminina, 1985; Guillaumin, Colette.
Enquanto tivermos mulheres para nos darem filhos: A respeito da raça e do sexo. In. Revista Feminista, vol. 2, n.
especial, 1994; CARBY, Hazel V. Mujeres blacas, jescuchad! El feminismo negro y los limites de la hermandad
feminina. In. Feminismos negros - Uma antologia. Jabardo, Mercedes (Ed.), 2012.
1595

de Ana, é operária em uma fábrica e sonha em se casar e ter uma vida feliz, com uma moradia
melhor. Ela é extremamente preocupada com o destino de seus pais e almeja condições econômicas
melhores. Ao final da trama Alice aparece como rainha da Escola de Samba Unidos do Cabuçu.
Estas mulheres atuam predominantemente no morro, e se relacionam com as pessoas de sua
comunidade. A trama que envolve estas mulheres faz referência à solidariedade e amizade entre
mulheres, ao trabalho doméstico e fabril, à maternidade, à família, à pobreza, ao casamento, à
sexualidade e às questões de gênero, raça, geração e classe que envolvem a constituição de suas
subjetividades.

As imagens de Ana, Elvira e Alice permitem discutir e analisar o modo como as


representações das subjetividades das mulheres negras foram construídas e mantidas até a década
de 1950 no Brasil. Estas mulheres são aqui identificadas como negras, não só pela observação das
diferenças de seus corpos (com base na cor da pele), mas também pelas diferenças de classe e raça
(baseada na origem/ascendência afro-brasileira) que marcam a constituição de suas subjetividades.
Neste sentido, entendemos que a expressão “mulheres negras”752 é bastante subjetiva, e que
comporta, aqui, uma carga política em favor de um conhecimento histórico que dê visibilidade à
história das representações destas mulheres no Brasil.

1. Trabalhadoras: domésticas e operárias

No filme Rio 40 Graus é possível observar as relações das mulheres negras com o trabalho
e as imagens que revelam estas relações chamam atenção para os processos de inclusão/exclusão
que muitas mulheres negras vêm enfrentando no mercado de trabalho no Brasil. Representadas
como domésticas ou operárias de fábricas, em trabalhos normalmente mal remunerados, tais
mulheres, como também foi retratado no filme, foram vistas e tratadas de forma desigual, como
seres menos privilegiados e subalternos desde os tempos da colonização do Brasil. A observação
das imagens das funções ou trabalhos desempenhados por estas mulheres, permite uma reflexão
histórica sobre os modos de inserção das mulheres no mercado de trabalho, bem como sobre a
construção de suas subjetividades.

Das três mulheres negras que aparecem no filme, destaco primeiramente a atuação da
personagem Ana, mulher negra e trabalhadora doméstica que aparece cuidando de sua amiga
adoentada, Elvira, que também é negra e trabalhadora doméstica. Ana é casada com Joaquim, um

A expressão "mulheres negras", aqui se refere às mulheres pretas e pardas, ou seja, mulheres negras de tez escura e
752

mulheres negras de tez clara.


1596

homem negro desempregado que passa boa parte de seu tempo alcoolizado. Seu marido é
saudosista dos tempos áureos de sua juventude, onde gozava de boa saúde e disposição, apostando
na sorte do jogo de bicho e nas brigas de galo, para conseguir algum dinheiro.

A situação de Ana e seu marido, reflete a de muitas famílias negras e pobres no Brasil, após
a abolição da escravidão. Sem instrução escolar adequada, boa parte dos homens negros
encontravam dificuldades para se inserir no mercado de trabalho e procuravam alternativas para o
sustento financeiro de suas famílias. Durante a escravidão, a maioria dos homens negros foi
obrigada a trabalhos forçados nos campos, tanto na agricultura como na mineração (Figueiredo,
1993). Na primeira metade do século XX a sociedade brasileira passava por um processo de
urbanização e industrialização, exigindo trabalhadores com certo grau de instrução, para assumir
os novos postos de trabalho, o que gerou os altos índices de desemprego dos homens negros. Estes
homens, boa parte analfabetos, acabaram marginalizados nesse processo, o que contribuiu para a
manutenção de sua desigualdade econômica e social (Carby, 2012, p. 2015). Neste sentido, tantos
os homens, quanto as mulheres negras, sofreram exclusões sociais como resultado da persistência
de práticas racistas. Como bem analisou Hazel Carby (Ibidem, p. 211), “el racismo determina que
los hombres negros no tengan las mismas relaciones con las jerarquías patriarcales y capitalistas
que los hombres blancos”.

Como os homens negros tinham dificuldades para conseguirem emprego, boa parte das
famílias eram sustentadas pelas mulheres. Ana representa uma destas mulheres negras que é capaz
de sustentar a família, independente da ajuda financeira que o marido possa oferecer. Esta situação
é bem diferente daquela enfrentada pelas mulheres brancas de classe média. Já que as mulheres
negras, atuando como “chefes de família”, mantenedoras de seu próprio lar, são mais
independentes e não se encaixam nas representações generalizadas das mulheres como seres frágeis
e dependentes economicamente dos homens (Carby, 2012, p. 213).

Ana também é retratada como mãe de dois filhos, Alice e Zeca. Sua imagem no filme é a
de uma mulher adulta, de meia idade, com vestimentas simples, típicas de uma dona de casa pobre,
com vestido surrado, avental na cintura e um lenço na cabeça. Ana parece não ter nenhuma vaidade,
mora em local precário no morro, numa casa rústica e pobre de alvenaria. No entanto bem
organizada internamente, parece evocar as mesmas imagens de trabalhadoras domésticas
construídas nas telenovelas, na literatura, no cinema e nos livros didáticos escolares ao longo do
século XX. Estas imagens lembram ainda as da personagem Tia Anastácia do autor Monteiro
Lobato, na obra Sítio do Picapau Amarelo, escrita entre 1920 e 1945, que teve ampla difusão na
sociedade brasileira, representando as mulheres negras de forma boçal e muitas vezes infantilizadas.
1597

Ana luta pela sobrevivência de sua família de maneira incansável, dividindo-se entre os
ofícios de lavadeira, doméstica e “dona de casa”. Seu vocabulário e linguagem escapam ao
português gramaticalmente correto, denotando falta de instrução. A proliferação destas imagens
parece reforçar sua inferioridade e desigualdade socioeconômica e intelectual. Seu modo de falar é
característico de pessoas que não tiveram oportunidade de frequentar uma escola e passar pelo
processo de alfabetização. O linguajar das mulheres negras, retratadas no filme, sugere uma
fragilidade na formação escolar das mesmas, situação observada também por Nepomuceno,

A análise dos Censos de 1940 e 1950, que incluíram o quesito cor da pele, mostra
que a exclusão do sistema educacional recaía mais fortemente sobre as mulheres
negras, com um índice de alfabetização de 15,29%, o menor dentre a população
daquele período (Nepomuceno, 212, p. 392).

Não por acaso, o trabalho doméstico, como forma de trabalho mal remunerado, sem
legislação que regulamentasse os direitos trabalhistas, acabou perpetuando alguns princípios da
escravidão. Mesmo com o fim da escravidão e da colonização formal, muitas mulheres negras
permaneceram em parte submetidas às antigas relações trabalhistas, injustas e desiguais que
caracterizam o trabalho doméstico. As imagens das mulheres negras, veiculadas no filme,
comportam também as marcas dessa experiência do colonialismo e escravidão no Brasil. Neste
sentido, as imagens destas mulheres carecem de uma historicização, tendo em vista a sua
desnaturalização. Sua desigualdade social, econômica e de gênero que foi construída por meio de
discursos e práticas de poder. Deste modo, não pode ser vista ou tratada como resultado natural
de uma inferioridade biológica baseada na raça ou na diferença sexual de seus corpos, ou como
uma propensão natural dos/as negros/as à submissão e servidão.

No filme, as personagens Elvira, Ana e Alice não são as únicas mulheres negras que
aparecem no morro, pois temos também as presenças coadjuvantes de Vanda, amiga de Alice, e de
uma mulher alcoolizada numa cena de um bar, representando apenas tantas mulheres negras
invisibilisadas, cujo papel na vida é de ser apenas coadjuvante. A presença desta mulher alcoolizada
sugere também a existência de outras subjetividades para as mulheres negras, não atreladas apenas
à maternidade, à família e ao trabalho, e provavelmente, a possibilidade de que as mulheres negras,
assim como os homens, também compartilhassem dos mesmos espaços de lazer e vida social. No
entanto, trata-se de uma imagem que passa quase que despercebida nas lentes do filme, revelando
um silêncio sobre a subjetividade desta mulher que frequenta, descontraidamente, um local que
pode ser considerado, para a época, como de lazer e socialização exclusivo aos homens, neste caso,
proibidos para as mulheres em geral.
1598

As patroas, das ditas “casas de família”, após a abolição da escravatura, no processo de


introdução da mão-de-obra assalariada e imigrante, passaram a contratar também para o trabalho
doméstico em seus lares, mulheres brancas que representavam um melhor status social e
branqueamento de seus lares. Só que essas encontravam dificuldades, pois acostumadas com os
resquícios do regime escravocrata, assujeitavam as mulheres brancas e estrangeiras a jornadas de
trabalho excessivas, sem direitos trabalhistas e com baixa remuneração. Tais mulheres estavam
propensas também a todo tipo de humilhações, violências e abusos sexuais. Neste sentido, boa
parte delas não se sentiam atraídas para o trabalho doméstico, já que representava um status social
inferior, herdeiro das práticas escravistas voltadas aos negros/as no Brasil (Nepomuceno 2012, p.
385). Segundo Rosana dos Santos, as domésticas se constituíram,

[...] ao longo da História, como identidade referente a um sujeito inferiorizado,


cujo corpo e trabalho poderiam ser apropriados pelos (as) patrões (as), produzido
como feminino, engendrado pelas funções desempenhadas e pelas
representações depreciativas destas. Percebemos, assim, que a desigualdade e a
violência presentes no cotidiano das domésticas são construídas e reconstruídas
de forma contínua através das tecnologias de gênero (2009, p. 15).

As considerações de Rosana Santos, nos levam a uma reflexão sobre o cinema também
enquanto “tecnologia do gênero” na medida em que participa da reprodução e proliferação de
imagens que perpetuam essa exclusão das mulheres negras trabalhadoras domésticas. O filme Rio,
40 Graus, ao mesmo tempo em que parece exercer um papel importante na denúncia das condições
de vida subalterna das mulheres negras que atuam como empregadas domésticas, algo que ainda
não havia sido mostrado nas telas do cinema, ao prezar pelo realismo, acaba também por reforçar
a naturalização destas mesmas imagens depreciativas que circulavam na sociedade de então.

O filme também não revela outras possibilidades para as mulheres negras domésticas ao
exibir imagens destas mulheres em corpos doentios, mal vestidos, sem instrução escolar refinada e
de famílias ditas degeneradas (que fogem aos padrões da época para uma família bem estruturada,
já que Ana se apresenta como esposa de um homem alcoólatra e Elvira como viúva, portanto,
como independentes dos homens). De acordo com Santos, na passagem para o século XX, estas
características, somadas à pobreza, eram vistas como “indicadores de degenerescência social e
indícios de patologia mental” (Santos, 2009, p. 121).

Elvira também figura no filme como trabalhadora doméstica. Trata-se de uma mulher viúva
que criou seu filho Jorge, um adolescente, sozinha e em condições muito precárias, morando num
barraco de madeira bem simples. No filme, ela aparece deitada numa cama, doente e impossibilitada
de trabalhar, mas conta com a ajuda e solidariedade de sua amiga Ana para se alimentar. Assim
1599

como Ana, através de seu vocabulário simples, Elvira revela-se uma mulher de pouca instrução
formal. A relação com seu filho representa uma relação de amor, carinho e muita cumplicidade
entre ambos. Sua personagem é emblemática em Rio, 40 Graus, pois através dela percebemos o
abandono, o descaso social, a penúria de uma mulher negra, independente e trabalhadora
doméstica. O sofrimento, a angústia e a exclusão social que marcam sua vida são características
também de muitas mulheres negras e pobres no Brasil.

Os diálogos de Ana e Elvira revelam a relação destas mulheres com os conhecimentos


tradicionais, de matrizes africanas e indígenas, e, especialmente, a continuidade e importância destes
saberes no cotidiano e na vida destas mulheres. Para elas, os remédios, provenientes da medicina
científica são estranhos e duvidosos, e por isso preferem se curar com as ervas. Deste modo, o
trabalho de mulheres curandeiras é também valorizado e reconhecido por estas mulheres. O filme
acaba por reconstruir uma subjetividade das mulheres negras ligada também à manutenção e
persistência das antigas crenças e conhecimentos indígenas e africanos. Os tratamentos em
hospitais particulares e os remédios alopáticos, de alto custo financeiro, eram inacessíveis para as
trabalhadoras domésticas, restando como saída o tratamento com ervas naturais que poderiam ser
coletadas na própria natureza.

Os laços de solidariedade e amizade entre as mulheres negras e pobres foram invisibilizados


na literatura, no cinema e na historiografia, Nelson Pereira dos Santos chama atenção para esta
relação entre as mulheres negras, explorando imagens que tiveram pouco espaço para se manifestar.
No imaginário ocidental, herdeiro de concepções filosóficas greco-romanas da antiguidade, as
mulheres foram vistas como incapazes de amizade, como seres mais desleais e competitivos entre
si (Ionta, 2004, p. 10). Entretanto, o filme nos mostra o contrário, pois Ana e Elvira sustentam
uma relação sólida de amizade, baseada na confiança e solidariedade, colocando em questão o que
normalmente se afirma sobre as mulheres e a amizade, permitindo ainda a construção e proliferação
de imagens que desnaturalizam concepções preconceituosas, fortemente arraigadas no imaginário
ocidental.

Já a personagem Alice, filha de Ana, aparece como uma mulher jovem, que trabalha como
operária de fábrica. Alice é retratada pelo cineasta como uma mulher bela e forte, que sabe o que
quer. Sempre bem vestida e arrumada, luta para demonstrar dignidade e respeito. Não demonstra
submissão às vontades de quem quer que seja. Seu vocabulário é mais refinado, mas não aparenta
ter frequentado por muito tempo a educação formal. Como operária de uma fábrica, parece
associada às novas oportunidades de emprego e de ascensão socioeconômicas para as mulheres
negras na primeira metade do século XX. As representações das mulheres operárias, diferente
daquelas das trabalhadoras domésticas, é parte das novas perspectivas de trabalho abertas com o
1600

processo de industrialização e urbanização do Brasil na primeira metade do século. As operárias


parecem relacionadas com este processo de modernização da sociedade, neste sentido, a sua
imagem se alia a modernidade. Alice representa bem esta mulher operária, vaidosa, bem vestida e
penteada, exibindo uma postura mais orgulhosa, fala o que pensa, e desce o morro de cabeça
erguida, sonhando com uma vida melhor. Entretanto, como bem observou Pinsky,

No início do século XX, a participação feminina no trabalho fabril era


significativa. Porém, embora a operária fosse tida como mais respeitável que a
prostituta, não merecia a mesma consideração que a mulher “do lar”. Com
relação ao trabalhador do sexo masculino, também estava em desvantagem,
sendo considerada força de trabalho menos capacitada, recebendo um
pagamento menor pelas mesmas atividades e perdendo o emprego ao casar-se ou
engravidar (2012, p. 503).

Os parcos salários oferecidos não possibilitariam a realização de melhores condições


socioeconômicas e de moradia. O morro do Cabuçu se mostra precário, sem saneamento básico,
luz elétrica, água encanada ou urbanização adequada. Alice tinha a visão de que o morro não era
um “lugar bom” para se viver. Esta imagem refletia as condições de pobreza e miséria de muitas
favelas do Rio de Janeiro na década de 1950, pois com o advento da modernização, percebemos
um grande êxodo do campo para as cidades, sob o prisma da modernização/industrialização,
vemos o aumento populacional nas grandes capitais, com a esperança de melhores condições de
vida. Este processo transformou as feições dos centros urbanos, aumentando os números de
favelas e de moradias coletivas, ou seja, os cortiços.

Na mesma proporção aumentava a classe média e seu consumismo, um cenário de


desigualdades socioeconômicas. Historicamente, podemos entender a fixação da população negra
nos morros como parte das reformas urbanas conduzidas pelo prefeito Pereira Passos, no início
do século XX, no Rio de Janeiro, que obrigaram a população pobre e negra a se deslocar do centro
da cidade para as comunidades formadas ao longo das linhas ferroviárias da Central do Brasil e
Leopoldina, que ligavam o porto aos centros de produção do interior. Tais reformas pretendiam
conferir ao Rio de Janeiro uma aparência europeia, com luxuosos prédios públicos, politicamente
orientadas para eliminar a pobreza que caracterizavam os cortiços e favelas (D’Ávila, 2006, p. 128-
129).

2. Rainha da escola de samba e “neguinha desaforada”

Alice também aparece como objeto de desejo de Miro, personagem de Jece Valadão,
homem machista, metido a valente, temido pelos moradores do morro. Em seu bairro, Alice foi
1601

coroada como rainha da Escola de Samba Unidos do Cabuçu, denotando a sua notoriedade e
prestígio na comunidade. No entanto, percebemos que a figura de Alice está muito próxima da
imagem da “mulata”753 apregoada em nossa literatura, pois o fato de que não se submete à vontade
masculina, embora positivo, também se associa à figura da “mulata” como uma mulher, que ao
contrário da branca, parece incontrolável e livre em sua sexualidade (Brah, 2006, pp. 329-376). Em
Rio, 40 Graus, nenhuma outra mulher negra apareceu como objeto de desejo sexual dos homens.
Alice, por sua juventude e beleza, parece se encaixar neste modelo.

A escolha de Alice como “rainha da escola de samba” local, que foi influenciada por Miro,
revela uma escolha pautada na observação da beleza e do desejo sexual que este corpo suscita nos
homens que detém poder na comunidade. As imagens de seus corpos constituem modelos de
padrão de beleza das mulheres e conquistam o imaginário fetichista dos homens. A rainha parece
inacessível, um fetiche, e não se curva aos desejos de Miro, mesmo diante do poder que ele exerce
na comunidade. Devemos notar que a “rainha da escola de samba” representa a beleza física, uma
subjetividade feminina marcada pelo corpo. Trata-se de uma beleza que é exaltada e exposta, por
meio da dança, enquanto soa o samba. Deste modo, o samba também participa da construção das
representações das mulheres negras como corpos de desejo, que em Rio, 40 Graus, marca um
contexto de congraçamento não sexualizado, pois Alice revela outras qualidades, sendo também
trabalhadora operária, que se preocupa com o sustento de sua família e não se rende aos assédios
dos homens de sua comunidade.

A personalidade forte e altiva de Alice foge dos estereótipos já conhecidos acerca das
subjetividades das mulheres negras, que as definem como seres mais eróticos e corpos de prazeres
sexuais. As chamadas “mulatas”, negras de tez clara, foram vistas e tratadas a partir desta
representação estereotipada amplamente reiterada nas produções cinematográficas e na literatura
nacional754. No entanto, a sua subjetividade não parece apenas presa a esta representação, já que o
filme revela outros aspectos de seu comportamento e atuação social.

O fato de Alice ser trabalhadora e de garantir o próprio sustento financeiro, a coloca numa
posição de independência em relação aos homens, o que lhe permite questionar o domínio deles
sobre ela. Esta independência de Alice é resultado de sua posição enquanto mulher trabalhadora.
A dependência econômica das mulheres em relação aos seus maridos foi considerada por muitas
feministas como fator de inferiorização, opressão e marginalização das mulheres na sociedade.
Neste sentido, os movimentos feministas dos anos 1960 atuaram fortemente na reivindicação de

753 Para uma perspectiva da construção social da mulata no Brasil, ver Gilliam, Angela; Gilliam, Onik'a. Negociando a
subjetividade da mulata no Brasil. Estudos Feministas (Dossiê Mulheres Negras), ano 3, n. 2, 1995.
754 Ver as obras de Jorge Amado, como Gabriela, Cravo e Canela.
1602

educação, emprego e salários mais igualitários aos dos homens, portanto, o filme revela uma
imagem positiva das mulheres negras, diferente daquela que inferiorizou tais mulheres como seres
mais submissos, conformados e incapazes de resistência.

A expressão “neguinha desaforada” comporta o sentido de mulher negra, atrevida,


insolente e desrespeitosa, termo utilizado por um feirante, que duvidando que Alice o tivesse pago,
a insultando mesmo de posse do pagamento, a vendo como desaforada porque se incomoda e se
irrita com sua independência, altivez e confronto com os homens. No Brasil, esse imaginário sexista
e machista sobre uma mulher que age com independência e que não se submete aos desígnios dos
homens, é visto de forma negativa, desprezível e misógina. Além disso, trata-se de uma mulher
negra, o que lhe impõe uma dupla inferiorização, sendo assim, a expressão usada pelo feirante
português revela também um sentimento de racismo e sexismo, pois no Brasil o termo
“neguinho/a” foi, e ainda é usado de maneira pejorativa, constituindo-se em uma forma de
xingamento. Neste caso, afirmar-se como “negro/a” no Brasil ainda é motivo de vergonha, pois
muitos/as ainda preferem se auto definirem como “morenos/as”. Não por acaso, os movimentos
negros, vem lutando por ações afirmativas, desde a abolição da escravatura, que contribuam na
ressignificação das experiências históricas e subjetividades dos/as negros/as no Brasil755.

Alice enquanto rainha da escola de samba encarna a representação da mulher negra,


"mulata", bonita e sensual, associada ao samba e à festa afro-brasileira. No entanto, sua
representação não se encerra nesta possibilidade, já que também é retratada como mulher
trabalhadora, independente financeiramente e que escapa ao controle dos homens. As
representações como rainha da escola de samba, trabalhadora operária e “neguinha desaforada”,
constituem uma subjetividade plural, marcada pelas experiências de gênero, classe, geração e raça.
A personagem de Alice é confrontada com os estereótipos que excluem e inferiorizam as mulheres
negras, mas a sua atuação revela uma resistência e contraposição a estes estereótipos, permitindo a
visualização de outras possibilidades de atuação que não seja ligada à sujeição masculina e ao corpo
como objeto de prazer sexual.

Conclusão

As mulheres negras retratadas por Nelson Pereira dos Santos em Rio, 40 Graus, são todas
mulheres fortes, pois Elvira, Ana e Alice representam mulheres lutadoras e independentes, já que
não vivem do controle e ajuda financeira dos homens. Trata-se de mulheres que lutam por suas

755Para uma perspectiva mais aprofundada sobre os movimentos negros no Brasil, ver Gomes, Flávio; Domingues,
Petrônio (orgs). Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980) -
São Paulo: Selo Negro, 2011.
1603

famílias, fugindo à imagem de mulheres relapsas, conformadas, dependentes ou inconsequentes,


merecendo dessa forma, o respeito do espectador.

No filme Rio, 40 Graus, as personagens negras, – Ana, Elvira e Alice – que atuam como
protagonistas estão ao mesmo tempo dentro e fora das representações de gênero binárias,
hierárquicas e androcêntricas. As famílias destas mulheres também escapam à lógica patriarcal, já
que estas mulheres são vistas como chefes de família, mantenedoras financeiras de seus lares,
trabalhadoras, independentes do controle dos homens, determinadas, companheiras e solidárias.
Por outro lado, vemos nestas representações a naturalização da atuação e protagonismos das
mulheres negras como restrita ao espaço da favela, do morro do Cabuçu, como se em outros
espaços da cidade, elas não pudessem se constituir como sujeitos de ação independente.

As imagens das mulheres negras veiculadas no filme Rio, 40 Graus haviam sido pouco
exploradas até o cinema dos anos de 1950. Nesse sentido, o filme parece romper com o silêncio
histórico e cinematográfico sobre a vida profissional, familiar e pessoal destas mulheres,
valorizando suas experiências, dando visibilidade aos seus protagonismos. Bem diferente, do modo
como até então a cidade do Rio de Janeiro vinha sendo retratada nas produções cinematográficas
nacionais, o filme Rio, 40 Graus revela a cidade em suas contradições sociais e culturais,
apresentando questões que remetem à migração nordestina, ao casamento, à sexualidade, à infância,
à pobreza, ao trabalho, ao futebol, às relações econômicas e sociais da população, ao preconceito
e discriminação racial, às diferenças e desigualdades de gênero, raça e classe, às tradições culturais
do morro e da Zona Sul do Rio de Janeiro e às questões políticas que envolviam o Brasil nos anos
1950. Deste modo, o filme apresenta em seu enredo questões fundamentais relacionadas às
subjetividades e relações sociais experimentadas pelo povo brasileiro nos anos de 1950 no Rio de
Janeiro.

Referências

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Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida. O Avesso da Memória: cotidiano e trabalho da mulher em


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Gomes, Flávio; Domingues, Petrôniob (orgs). Experiências da emancipação: biografias, instituições e


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Ionta, Marilda Aparecida. As cores da Amizade na escrita Epistolar de Anita Malfati, Oneyde Alvarenga,
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História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas,
2004

Jodelet, Denise. A alteridade como produto e processo psicossocial. In. Arruda, Angela. (org.)
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Pinsky, Carla Bassanezi. E outras. Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012

Santos, Rosana de Jesus dos. Corpos domesticados: a violência de gênero no cotidiano das
domésticas em Montes Claros – 1959 a 1983. Dissertação de Mestrado: Universidade Federal de
Uberlândia, 2009.
1605

A Amazônia e a experiência de Mário de Andrade: reflexões


sobre o diário “O Turista Aprendiz” (1927-1928)

Robert Madeiro Dias*

Resumo: Em viagem pelo rio Amazonas Mário de Andrade narra: “O rio vira de caminho no fim
do estirão, a massa indiferente dos verdes barra o horizonte, e tudo se enche de mistérios vivos
que se escondem lá detrás. A cada instante sinto que a revelação vai se dar, grandiosa, (...) lá da
volta do rio.” Noutro instante “Caí no chão da lanchinha. (...) caí no chão! O estado emotivo foi
tão grande que me faltaram as pernas, caí no chão. (...) A beleza de Marajó com sua passarada me
derrubou no chão.” Assim, este texto trata de Mário de Andrade e sua viagem a Amazônia. Visa as
suas sensações, o seu olhar, enfim a sua experiência na Amazônia narradas na primeira parte de seu
livro O Turista Aprendiz escrito em 1927, mas somente organizado e publicado em 1976 por Tele
Porto Ancona. Trata-se de um diário de viagem uma fonte reveladora de uma teia de experiências
e fortes significados. Tal viagem fora a oportunidade para o intelectual paulista de conhecer a
grande floresta amazônica. Este trabalho que é fruto de reflexões já presentes na minha dissertação
de mestrado, de certa forma, é um convite ao leitor para ler ou reler este livro do rapsodo paulista
não mais com aquele olhar que somente enxerga as reclamações do intelectual frente a longa viagem
de São Paulo à Amazônia, mas perceber e se entusiasmar com o seu entusiasmo na sua expectativa
de chegar “frente ao grande rio”, na água barrenta, ou no banho “em quase pleno mar”, no tombo
frente a gigante natureza. O modernista narrou suas experiências, suas sensações, suas emoções e
sua utopia: o desejo de estar no meio do mato virgem na busca da brasilidade, de vivenciar a
Amazônia, não como um horizonte distante, não somente como um leitor, mas como um espaço
vivido, experimentado, narrado por alguém que vem de longe.

Palavras-chave: Modernismo, Mário de Andrade, Amazônia, diário.

Comumente se discute em teoria da História que as perguntas que os historiadores fazem


ao iniciar suas pesquisas partem do seu momento presente; nós, historiadores, interrogamos o
passado a partir de inquietações contemporâneas. São muitos os debates atuais sobre a Amazônia,
normalmente associados a temática das queimadas, da grilagem, do desmatamento, do desrespeito
as demarcações das terras indígenas (infelizmente), mas o nosso foco aqui ainda não será essa
Amazônia que nas palavras dos franceses “brûlent maintenant”. Pesquisamos a Amazônia da época
modernista, naquele momento, em nossa dissertação de mestrado, querendo perceber como o lugar
amazônico estava presente nos trabalhos artísticos tanto de Mário de Andrade, quanto do músico
Waldemar Henrique. A ideia era perceber semelhanças e diferenças em suas abordagens sobre a

*
Mestre em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Vinculação institucional atual: Secretaria de Educação
do Distrito Federal (SEEDF).
1606

região. O texto que segue é um conjunto de reflexões já presentes naquela oportunidade sobre a
viagem de Mário de Andrade e as suas experiências.

Existe uma interpretação comum dentro dos estudos sobre a presença de Mário de Andrade
na Amazônia a partir do seu diário. Maria Cavalcanti, por exemplo, estudando as danças dramáticas,
assinala um relato “propriamente literário” no primeiro diário de viagem do rapsodo (Cavalcanti,
2004. p. 62). Interpretado por Jose Tavares Lira como um momento de “preguiça criativa na viagem
pela Amazônia em 1927,” um contraponto, para enfatizar um “trabalho infatigável” no tour de
Mário de Andrade pelo Nordeste (Lira, 2005, p. 143). Interpretação constante, que aparece pelo
menos em dois momentos nos textos de Tele Porto Ancona: nos quatro pequenos textos que
prefaciam a obra O Turista Aprendiz (Lopes, 1976) e num artigo publicado quase três décadas depois,
confirmando, ainda a mesma interpretação (Lopes, 2005). Entretanto, este trabalho busca atentar
ao particular do contato do rapsodo com a Amazônia. Nesta região um intelectual mais livre dos
compromissos da produção de textos jornalísticos, muito mais apto a produzir na intimidade das
páginas de seu diário o registro da viagem em um significado mais pessoal, subjetivo, mais próximo
de sua experiência com o lugar e o habitante da região, com a natureza e as sensações ante a fauna
e a flora.

Telê Porto Ancona talvez seja o nome mais importantes neste instante devido aos estudos
que publicou sobre o poeta paulista. Ela é autora não somente de Mário de Andrade: Ramais e
Caminhos, de 1972, mas também de Mário de Andrade — Táxi e crônicas no Diário Nacional, de 1976.
Foi ainda organizadora de outras duas importantes obras acerca do poeta modernista: uma edição
de Macunaíma de 1988 e de “O Turista Aprendiz”, de 1976, livro ao qual nos debruçamos. Com
esta publicação a autora propõe não deixar no esquecimento uma “obra menor” do autor de
Macunaíma e se não o faz, justifica, sobretudo afirmando um determinado humor no modernista,
e determinados subsídios presentes na obra que possam oferecer para compreensão global de seu
trabalho. Ao analisar a viagem de Mário de Andrade à Amazônia a partir de O Turista Aprendiz,
observamos o contato e a emoção do poeta chegando à Amazônia, as águas barrentas e a floresta,
a riqueza e a variedade da fauna e da flora, a experiência e as lembranças, registradas e mantidas em
diário, dando subsídios para se perceber outros significados da Amazônia no artista paulista. O
verde das matas e o colorido das aves desprendem-se de seus papéis, os passeios, que tantas fotos
sugerem, dão lhe fibra num real geográfico infinito de experiências. O diário é revestido de um
caráter pessoal, cotidiano em emoções, em descrições de lugares, de paisagens e encontros. É um
texto, um documento que mostra o envolvimento, uma fonte reveladora de uma teia de
experiências, de situações e significados na vivência de quem o narra. Tomamos o diário de Mário
de Andrade como o crivo revelador e instigante das breves experiências que o seu autor pôde, de
1607

fato, viver, ter como contato. Dessa forma, vamos analisar neste trabalho não o elemento ficcional
que de fato há no diário, mas afirmar e justificar em Mário de Andrade, tal viagem como a busca
da experiência de viver a Amazônia e relatar-lhe, não o insólito, mas o sentido profundo de uma
nova experiência, de um novo horizonte.

Mário de Andrade viaja à Amazônia e nos entusiasma com o seu entusiasmo e expectativa
frente ao rio, que pela primeira vez navega. Passeamos ao diário, suas palavras promovem ao leitor
a sensação do som do grande rio, do vento ao rosto.

Banza banza namora come cana enquanto a gente está impaciente pra ver a foz
do Amazonas amanhã. Foz do Amazonas... Estávamos todos trêmulos
contemplando a torre-de-comando o monumento mais famanado da natureza. E
vos juro que não tem nada no mundo mais sublime. Sete quilômetros antes da
entrada já o mar estava barreado de pardo por causa do avanço das águas fluviais.
Era uma largueza imensa gigantesca rendilhada por anfiteatro de ilhas florestais
tão grandes que a menorzinha era maior que Portugal. O avanço do rio e o
embate das águas formavam rebojos e repiquetas tremendos cujas ondas
rebentavam na altura de sete metros chovendo espumas espumas espumas
roseadas pela manhã do Sol. Por isso o Pedro I avançava numa chuva em flor.
Avançava difícil, corcoveando aos saltos, rolando pelo costado dos baleotes e das
sucurijus do mato amazônico aventuradas até ali pela miragem da água-doce.
(Andrade, 1976, p. 60).

No dia 18 de maio de 1927, adentrando o grande rio, Mário de Andrade teve a oportunidade
de, como muitos personagens históricos, singrar as águas barrentas da Amazônia. O limite entre
um rio e outro, o mar barreando no “avanço das águas fluviais”; a sensação do contato inicial, do
movimento das águas de ondas e repiquetas e o corajoso navio “corcoveando aos saltos”, revelando
cada vez mais o lugar. Uma paisagem inicial que se forma pela narrativa e a experiência revela um
sentido forte da Amazônia, perante o gigantismo de suas proporções. Continuando, o poeta passa
a deter-se na fauna e a flora local.

À medida que a gente se aproximava as ilhas catalogavam sob as cortinas de


garças e mauaris que o vento repuxava, todas as espécies vegetais e na barafunda
fantástica dos jequitibás perobas, pinheiros platanos assoberbada pelo vulto
enorme do baobá a gente enxergava dominando a ramada as seringueiras
sonhadas em cujas pontas mais audazes os colonos suspensos em cordas de
couro cru apanhavam as frutinhas de borracha. O aroma do pau-rosa e da
macacaporanga desprendido da resina de todos os troncos era tão inebriante que
a gente oscilava com perigo de cair naquele mundo de águas brabas. Que
eloqüência! Os pássaros cantavam no vôo e as bulhas das iererês dos flamingos
das araras das aves-do-paraíso nem me deixou escutar a sineta de bordo
chamando pro jantar. A Senhora me tocou no braço e assustei. Fui com os outros
deixando o pensamento chorado na magnificência daquela paisagem feita às
pressas em cujo centro relumeava talqualmente olho de vidro a rodela guaçu de
Marajó inundada. (Andrade, 1976, p. 60)
1608

É o primeiro grande momento de sua viagem, de expressiva emoção, absorto rente à


paisagem amazônica, Mário de Andrade registra em texto a experiência que o retira simplesmente
da condição de leitor da Amazônia: passa também a vivê-la, a tê-la como experiência, a observar
suas cidades e os aspectos de vida das cidades de cotidiano mais próximo ao rio. Contudo, “homem
de gabinete”, não poderia por isso deixar de manifestar os conflitos que a experiência de campo de
fato oferece ao modernista paulista, poeta de vida urbana, com valores urbanos que leem a
Amazônia. Manifesta encanto e ao mesmo tempo incompreensão.

Que posso falar dessa foz tão literária e que comove tanto quando assuntada no
mapa?... A imensidão das águas é tão vasta, as ilhas imensas por demais ficam no
longe fraco que a gente não encontra nada que encante. A foz do Amazonas é
uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas
do homem. Nós só podemos monumentalizá-la na inteligência. (Andrade, 1976,
p. 61)

Ou seja, só podemos monumentalizá-la em leituras, pois suas dimensões se perdem no


horizonte inatingível da capacidade humana. E o horizonte lhe aporta como reflexão, lá adiante,
após o rio, na floresta minúscula por estar distante de sua vista.

Foz do Amazonas. E é de-manhã, manhã sublime. Algumas velas coloridas, água


terrosa, uns verdes de horizonte. Não se vê nada! A foz do Amazonas só é
grandiosa no mapa; vendo tudo é tamanho que não se pode ver. Algumas velas,
água terrosa e uns verdes ralos de horizonte. Só. (Andrade, 1976, p. 62).

Eis os primeiros significados da Amazônia em Mário de Andrade expressando cada vez


mais uma expectativa frente ao que tudo sabia por meio dos livros. Seu registro fotográfico revela
esta percepção que está no texto, a vontade de ver o desconhecido, não o urbano, mas as grandes
e fechadas florestas, a natureza não como um horizonte, mas da experiência e do contato, dos
costumes, da fauna e da flora, do caboclo e do indígena. Talvez os momentos mais emocionantes,
nesse sentido, para o poeta paulista nestes primeiros contatos com a capital do Pará tenham sido
os passeios, como o de lancha à praia do Chapéu Virado, em Mosqueiro, tomando “banho de água
doce em quase pleno mar”, assustando-se com os “enxames de ilhas, cardumes de ilhotas que vão
e vem, desaparecem. Esta variedade infinita de calotas amazônicas.” (Andrade, 1976, p. 64)

Pato no tucupi, Munguzá756, carne de tracajá não estão ausentes dos aperitivos que pôde
degustar na capital; em seu diário, não deixou de anotar sobre as manhãs que foi ao mercado.
Visitou ao Museu Goeldi, pelo menos duas vezes, conhecendo a cerâmica do Marajó. Assim
entregou-se aos passeios pela cidade até o momento de sua partida – Amazônia adentro – oito dias

756 Munguzá: mingau de milho branco feito com leite de castanha ou de coco. (Moraes, 1931, p. 126.)
1609

após sua chegada no Porto de Belém, agora num “vaticano”757 chamado São Salvador. Afastando-
se da cidade e caminhando de modo mais profundo à realidade constituinte e os elementos da
Amazônia, enfim, passa a sentir e a identificar cada vez mais os ares de uma vida de outra ordem
de realidade.

Um bando de papagaios nos recebe (...). De vez em longe uma garça. Estreitos
de Breves. Vida de bordo. Essas coisas bobas que fazem sublime a viagem, por
exemplo: um boto brincando n‘água. Um boto brincando n‘água! que maravilha!
Paisagens lindas. Noite sublime de estrelas. (Andrade, 1976, p. 71).

No dia seguinte, 29 de maio:

Amanhecemos num porto-de-lenha. Ainda os estreitos. Cemitério a beira-rio.


Enfim pleno Amazonas. Paramos em Itamarati, posto lindo, onde mora o
primeiro guará realmente integralmente rubro que já vi. Jiraus de florzinhas,
‘jardins suspensos’ destas paragens onde jamais se sabe até onde irá a cheia do
ano que vem. (...) Vogamos rastejando a margem. Os meninos de moradias quase
sempre invisíveis, vêm nas suas barquinhas, cada qual tem uma, aproveitar a
esteira do vaticino (...). As ciganas se denunciam de passagem, com um vôo
honesto, e pousam pesadas, parecem pesadíssimas, erguendo o rabo. (...) Toda a
gente se vê na obrigação de nos ‘contar’ como é que é, que desespero! Já me
mostraram mil vezes a palmeirinha do açaí, já contaram cem vezes que aquele
pássaro é cigana, e aquilo é boto brincando, pinhões! Pela tardinha deixamos o
Xingu a bombordo. A bóia de bordo (a nossa, que é especial) é sempre uma
delícia. Dança-se demais, pra tanto calor e tanto jejum de amor, isto vai ficando
pau. (Andrade, 1976, p. 71)

757
Segundo Raymundo Moraes Vaticanos são – “Gaiolas” de 900 a 1000 toneladas, construídos na Hollanda, que ao
presente trafegam na Amazônia. São os maiores navios fluviais do momento. Confortáveis, camarotes e camarinhas
telados, machinas sobre o convés, três toldas, bôa mesa, elles representam a projecção sempre ascendente da grande
empresa de navegação chamada Companhia do Amazonas. Movidos por duas hélices, embora de pouca marcha – oito
a nove milhas – poucas embarcações offerecem comodidades iguaes, tão amplos, arejados, limpos se mostram em
todos os departamentos. De noite, illuminados à luz electrica, parecem palácios flutuantes, advindo-lhes certamente
dessa impressão, que deixam, o nome de Vaticanos. Companhia estrangeira, sua modelar administração na Amazônia
está sendo feita por brasileiros. Seu director, em Belém, é o engenheiro Guilherme Paiva; seu superintendente, o
commandante Alberto Autran. (Moraes, 1931. p. 162-163.)
1610

Mário de Andrade na Ilha de Mosqueiro, Praia do Chapéu Virado, maio de 1927.

Vida de viajante a observar e a descrever o que vê e nos deixar sua impressão pelo voo de
um pássaro que observa, pelo contato com os moradores locais, pelo ritmo das águas, pelo cansaço
e ausências provenientes da viagem. No seio profundo da Amazônia, três tipos de cenários são
fundamentais no domínio paisagístico da região: o de várzea, o de igapó e o de terra firme. Na
região de várzea é característica a predominância do volume de água elevado em grande parte do
ano, consequentemente a população leva um ritmo de vida muito próximo ao rio. Está constatada
a riqueza e biodiversidade distinta dessas áreas, tipicamente mais centralizada na área da Amazônia
Central, “uma área única, com elevado valor de conservação devido à íntima justaposição de
florestas de terra firme, várzea e igapó.” (Haugaasen; Peres, 2006, p.25). Já com uma sensação
diferente do momento inicial quando tudo era apenas horizonte, o viajante paulista continua:

31 de maio – Vida de bordo. É uma delícia, estirar o corpo nestas cadeiras


confortáveis da proa, e se deixar viver só quase pelo sentido da vista, sem
pensamentear, olhando o mato próximo, que muitas vezes bate no navio. Visto
o primeiro jacaré, fez furor. Garças. Pelo anúncio da tarde, chegamos a Santarém.
(Andrade, 1976, p. 72).

Na narrativa de viagem, a Amazônia vai se revelando cada vez mais vívida, experimentada
ao sabor do mato virgem, da “água barrenta do rio”, ali avizinhado o Xingu. Segue viagem
conhecendo lugares, observando costumes, (como o das crianças em suas pequenas canoas ao
entorno do vaticano) experimentando sabores. Contudo, o horizonte nele é algo especial e
proporciona em sua alma de artista cada vez mais a manutenção do mistério.

Vogando no rio, treze horas – Eu gosto desta solidão abundante do rio. Nada
me agrada mais do que, sozinho, olhar o rio em pleno dia deserto. É
extraordinário como tudo se enche de entes, de deuses, de seres indescritíveis
1611

por detrás, sobretudo se tenho no longe em frente uma volta do rio. Isto não
apenas neste Amazonas, mais sobretudo em rios menores, como no Tietê, no
Moji. É fulminante. O rio vira de caminho no fim do estirão, a massa indiferente
dos verdes barra o horizonte, e tudo se enche de mistérios vivos que se escondem
lá detrás. A cada instante sinto que a revelação vai se dar, grandiosa, terrável, lá
da volta do rio. (Andrade, 1976, p. 76)

Esse rio se torna misterioso exatamente por não ser percebido na plenitude de sua extensão,
a fragilidade fisiológica, referida pelo intelectual logo que chegou a Belém, como uma preliminar
queixa da fragilidade humana perante a natureza de largas proporções. Mário de Andrade permite
a dinâmica e a manutenção do mistério perante o desconhecido, pois os deuses, os seres
indescritíveis estão sempre um pouco além, mais à frente, revelando novos e infinitos mistérios.
Cada entrada de rio se revela primeiro como expectativa, para depois deitar-se como experiência,
vivenciada e fortalecida para novos mistérios e experiências em um novo braço de rio mais à frente.
Mistério, por sua vez, que se renova em se manter mistério, que guarda no artista não menos a
revelação que ainda vai se dar, nele cheia de receios, “reais, vagos”, mas também “completos e
indiscutíveis, legítimos, deste perigo brutal de viver (de existir). Sentido poético e dotado de um
significante filosófico que no absorto Mário “basta que chegue alguém, (...) que a fascinação se
esvai”, vai embora. Nisso, logo a seguir, nas suas anotações do dia primeiro de junho de 1927,
distingue esta necessidade de solidões no artista, para escutar a sua própria voz, os seus próprios
personagens, e distante de sua cidade, pôde aprofundar uma reflexão: “É indiscutível: eu gosto
muito mais dos meus amigos quando eles estão longe de mim.” (Andrade, 1976, p. 77)

A Amazônia assume um sentido profundo em Mário de Andrade, próprio ao artista de


reflexão, de silêncio, de refinamento interno. De sutileza, de natureza. Como experiência
desbravadora da Amazônia e de si mesmo. Nesse sentido, sua experiência é tão forte e em
proporções semelhantes à profundidade que Raul Bopp sempre nos transparece quando se refere
à sua estada no Norte brasileiro. Se há importância em seu aspecto fotográfico, como salienta Telê
Porto, isto ocorre, exatamente pelo vínculo da experiência do modernista paulista com o lugar,
com o rio, com o horizonte, com a natureza que resplandece em seu texto e também em suas
imagens. O conteúdo de suas fotos é amazônico. Este conteúdo, para além de tudo, sobre
fotografias e o artista é o que justifica Mário “fotar”, como diz constantemente. “Fotar” o que é
curioso, estranho, fotar o que é aos seus olhos peculiar, belo, fascinante. Como Telê Porto mesmo
salientou “o que ele produz com sua câmera é sempre construção que recorta, enquadra, valoriza
ou diminui aspectos representados no mundo”, citando Jorge Coli. (Lopes, 2005, p. 140).

Assim, por meio da descrição determinados elementos vão assumindo um especial destaque
na narrativa de viagem do rapsodo. Ele descreve a vitória-régia, descreve os costumes e as práticas
1612

da tribo aparentemente fictícia dos Pacaás Novos. Descreve itinerários, percursos diários de águas
e rios. E de comunidade a comunidade, a comitiva chega ao objetivo inicial de seus tripulantes, já
em área pertencente ao Peru. “Chegada a Esperança, posto fiscal brasileiro. Em frente à margem
do Peru. Entrada pelo Javari buscando Remate de Males.” Lugar a que chegaram às treze e trinta,
de uma tarde de sol de 18 de junho de 1927 e em “19 de junho – Às cinco da madrugada, Tabatinga,
último Brasil (...). Às seis, primeiro Peru, (a cidade de) Letícia, apenas entrevista,” (Andrade, 1976,
p. 103-113) chegando ao Iquitos três dias depois. Seu retorno ao Brasil se deu a vinte e seis de
junho daquele ano. Sobre sua estada no país peruano, no registro diário de Turista Aprendiz, o
diálogo transcrito do dia 24 de junho com o huitôta foi extremamente emblemático, porém não
receberá aqui a devida atenção. Na Amazônia peruana, seu diário ocupou mais espaço quanto à
visita à comunidade dos índios Huitôtas, num lugar chamado Nanay:

Vamos a terra visitar um pueblo de índios Huitôtas que é perto daqui. (...) E lá
seguimos, com o guia de dentes pretos, de mascar coca. O caminho de índio no
campo. O guia, se vê algum companheiro da maloca, solta uns gritos curiosos,
meio parecidos com certos gritos de cowboys. O aldeamento é já um pueblo de
índios se vestindo como nós, isto é calça e paletó, ou calça e camisa, e hablando
uns farrapos de espanhol. Casinhas de taquara com coberta de folhas de
coqueiro, admiravelmente bem traçadas. Em geral dois compartimentos, um ao
ar-livre, outro fechado. Só a casa do centro, grandona, era mais característica um
casarão enorme, muito alto, duma sala só, toda de folha de coqueiro, paredes e
tudo, com a coberturinha no alto pra fumaça ir tomar ar. Dentro desse
mocambão tinha, dos lados, armações de madeira, em cada uma morando uma
família, em legítimo segundo andar. O centro é alisado, para trabalhos, onde num
lado tinha um cocho com macaxeira fermentando pra fazer bebida, e em de mais
longe uma índia moça, que fora depilada já os pêlos curtos eriçados na cabeça,
pintada de jenipapo, fazendo farinha. Duas outras estavam depenando um
papagaio, carne dura, pra comer. Pote lindíssimo, fiz o diabo pra comprar, mas
só consegui comprar outro, de muito menor interesse. O tuxuaua estava
regiamente em pêlo, cismado numa rede, quando entramos em casa. Meteu uma
calça e veio nos receber. Gente em geral bonita. (...) O governo peruano cede
este lugar aos huitôtas (...) Mascam coca e vivem. Fiz de tudo, insisti, ofereci
bastante dinheiro pra me darem um pouco de coca, não houve meios. E voltamos
pra bordo. (Andrade, 1976, p. 114-115)758

Meio etnólogo, meio turista aprendiz, Mário de Andrade, vai tecendo sua narrativa de
viagem numa realidade até então conhecida por ele somente em livros. Curioso, no dia seguinte,
ainda tentou conseguir com o índio tuxuaua um pouco de coca. A excursão seguiu também à
Bolívia e este sentido aventureiro foi se estendendo e ficando mais forte. Em Três Casas, lugarejo

758Sobre o povo indígena citado por Mário de Andrade “Los uitoto, witoto, güitoto o murui-muinane son una etnia o
pueblo indígena de la Amazonía colombiana y peruana, cuyo territorio originario se encontraba en la parte media
del río Caquetá y sus afluentes, y la zona selvática que va hasta el río Putumayo. Hablan una lengua de la familia bora-
witoto. Se encuentran dispersos en varias regiones del Amazonas, habitando la región conocida como el
Medio Amazonas colombiano así como un importante sector peruano en la frontera con Colombia. Cf. em
https://es.wikipedia.org/wiki/Uitoto
1613

da Bolívia então reclamava o fato de ainda não conhecer um seringal, e assim como para conhecer
a tribo huitôtas precisou embrenhar-se no mato.

Vamos seguindo o caminho de um seringueiro, ziguezagueando pelo mato, de


uma seringueira para outra. Torneamos também castanheiras gigantescas, enfim,
verdadeira, floresta “civilizada” amazônica. O trilho do seringueiro está
desimpedido do cipoal e da serrapilheira intransponível para nós. Acabamos nos
encontrando com o homem cuja viagem diária estávamos seguindo. O
observamos na faina, fazendo os lapos na árvore, botando as tigelinhas, partindo
em busca da seringueira de em seguida. Feito o caminho todo, ele voltará no
mesmo ziguezague, recolhendo as tigelinhas cheias. Mais de hora de marcha, e
topamos com um laguinho fundo. Ninguém não pode imaginar a sensação de paz, de
silêncio quase absurdo que se tem nestes lagos pequenos cercados de árvores colossais. (...)
Resolvemos voltar, mas a caminhada custa a se alegrar; só um quarto de hora
depois estamos felizes outra vez, rindo conversando alto. (...) Este, é o pedaço
mais bonito de floresta amazônica que vimos. Descemos. (...) Tomamos todas a
disposições intelectuais de referência entramos no mato. Nenhuma originalidade
nos escapa, troncos caídos, uma parasita, isto, aquilo. Nem bem andamos uns
dez minutos e decidimos voltar, a confusão se estabelece. Que-de tronco? flor?
Pra que lado está o rio? Só com a ajuda do sol nos endireitamos para a margem
do rio, chegamos ao rio. Onde está o Vitória? rio acima? rio abaixo? ... Obrigado
tapuio. Vida de bordo, paradinhas. Tarde sublime. Noite fresca. (Andrade, 1976,
p. 160-161)

Situação que, não fosse a ajuda de um índio tapuio, poderia ter se desencadeado no grupo
perdido em meio à floresta; situação, que logo depois, pôde relatar como ficção, com o título
Perdidos nas páginas 172, 173, 174, 175 e parte da 176. O retorno é marcado por descrições de
breves anotações quanto às providências de práxis de qualquer embarcação. Nele, transparece uma
vontade de manter-se em silêncio, com poucos contatos. A narrativa de seu diário toma um teor
diferente do momento de chegada à Amazônia, em que o seu olhar parecia querer nada deixar de
captar. Preenche, dessa forma, muito de seu diário, ao longo do percurso do Peru a Belém, com
textos de histórias, algumas de fundo lendário, que ouvira contar: uma com o nome “Em busca da
Infelicidade”, outra “O Rato das Sabinas”, ainda “A Iara”, criando a posterior a sua história, a dos
“Índios Do-Mi-Sol”. Estas histórias foram ocupando espaço em meio aos fatos da viagem, como
a quebra da palheta da hélice do Vitória, devido aos bancos de areias, porém não menos caloroso
pela oportunidade das “Brincadeiras deliciosas de praia”, no momento em que os marinheiros estão
trabalhando no conserto da palheta partida.

Assim, a Amazônia transparece como um lugar de histórias, de caráter lendário e de


narrativas. Os habitantes, de modo geral, veem Mário de Andrade como o intelectual que poderia
ser esse contador de suas histórias, de suas lendas. Se procuram Mário de Andrade é querendo lhe
falar algo, esperando que estes relatos possa o intelectual narrar. Dessa maneira, o turista aprendiz
foi apreendendo cotidianamente os traços culturais de outros povos, de outros lugares, de uma
outra vida. De um cotidiano distinto da realidade de fábrica, de veículos e das multidões, mas de
1614

um ritmo que tem o rio como notável agente, como o lugar do comércio, de vivência, de
subsistência e de lazer. Rio que guarda segredos reais e imaginários. Na Amazônia, o seu diário
revela a vontade de entrar em contato, de viver, de saber e narrar histórias. Pontuá-las no caderno
de diários já revela à vontade para, de algum modo, utilizar o material num momento futuro.759
Quando lemos o momento de retorno do Peru e toda a extensão da Amazônia brasileira até Belém,
percebermos que a narrativa do diário não expressa, de fato, o teor elevado de expectativas que a
chegada naturalmente proporciona. É quando o poeta se dedica, de maneira clara, mais a anotar as
narrativas, estas histórias, que passa a conhecer. Longe necessariamente de ser um texto de ficção
como observa Telê Porto, o manuscrito de “O Turista Aprendiz” é profundo de vivência e
experiência de seu autor na Amazônia. Ali temos características do cotidiano amazônico: um banho
de chuva, a travessia de pequenos rios em pequenas embarcações, no tempo da natureza, ao contato
com comunidades indígenas, da subsistência, do contato com a natureza, de se perder de fato no
meio da mata, de conhecer um seringal, das dificuldades e das virtudes de uma viagem a um lugar
distante. Descrições da natureza, dos hábitos populares locais, das comidas e dos aspectos exóticos
são as temáticas do seu diário e dão o tom da interpretação que estipula sobre a Amazônia: a
Amazônia profunda de sua realidade mais genuína.

Devemos estar atentos a uma particularidade, a uma temática que apresenta continuidade
na obra de Mário de Andrade: Paulicéia Desvairada, seu amor e crítica de São Paulo. Bairrista
exaltado o texto de Mário de Andrade bem se enquadra ao contexto modernista. São Paulo, vanguarda
das cidades nacionais, tema exaltado de grandes falas, progressista e febril, raio de luz do tempo
vintista, dona de um passado glorioso. É desvairada porque cresceu num ritmo vertiginoso, porque
é progresso e ao mesmo tempo não é. Por que mistura e se mistura entre elementos variados e
contrastantes. “Amo-te de pesadelos taciturnos”. “Pura neblina da manhã”. De asfalto e de várzea,
cidade “meio fidalga, meio barregã”.

Entre as cidades brasileiras torna-se peculiar não pela ausência de conflitos e diferenças
sociais, o que lhe havia naturalmente, mas por apresentar uma realidade que lhe aproxima da
Europa, em seu clima de vida agitada, cosmopolita, pautada pela diferença de pessoas e
mercadorias, pelo progresso que chega e proporciona transformações. Cidade que mistura nobreza
e barreguice, asfalto e várzea, em caminho ao progresso, em uma fase como busca confirmar o
poema: de transição. Em São Paulo, passado e presente em analogia lhe conferem liberdade e
iniciativa, pioneirismo no conhecimento vanguardista. Saliente-se a postura intelectual de Mário de

759
Em seu retorno a São Paulo trabalha no recém-fundado Diário Nacional, onde publica material proveniente de sua
viagem ao Norte: “diários e notas de pesquisas,” com títulos como “A Ciranda”, em dezembro de 1927 e “O Turista
Aprendiz”, trecho 21 e 22 de maio (1927), em janeiro de 1928. (Lopes, 1976. p. 19).
1615

Andrade em relação a regiões outras que não São Paulo para enfatizar a constância da leitura que
encaminha a um determinado lugar terminando sempre por enfatizar sua desvairada capital. Ao
tempo em que ama o Brasil, seu afã bairrista floresce. Por seus poemas, Mário de Andrade edifica
uma imagem, carrega um discurso, eterniza uma memória, constrói uma história. (Pechman, 1997,
p. 101-107)760 E no frenesi de sua cidade e seus arranha-céus, no contínuo retorno a São Paulo de
um sentimento à poética do espaço.

Fazer parte de uma potência não é algo inerte, menos ainda a maneira particular como ler
o todo nacional, a cidade ou o campo como criações artísticas. Em Mário de Andrade um Brasil
em função de São Paulo, ler a brasilidade sem esse véu de transformações urbanas é bastante
improvável. E o Turista Aprendiz também ganha esta conotação quando passa a ser o lugar da
utopia, o lugar em que o rapsodo imagina poder tocar o genuíno. A Amazônia também é uma
grande potência dentro de sua realidade constituinte com suas florestas e rios de grandes
proporções. Não à toa problemas ambientais na região na atualidade chamam a atenção do mundo.
É significativo e compreensível que vindo de uma grande cidade vivenciasse numa grande floresta
um gosto tão profundo pela natureza. Mário de Andrade é da cidade, mas sua estada na Amazônia
toca-lhe áreas de sensibilidade improváveis ao biógrafo alcançar. Prestes a finalizar a primeira parte
de seu diário, visita a ilha do Marajó, seu olhar revela-se tomado por uma natureza viva, que
escreveu sobre uns Araris, uns igarapezóides, umas ingazeiras, “que cobrem inteiramente as
margens, folhudas, rechonchudas, lavando os galhos n‘água”.

Mário de Andrade na Ilha de Mosqueiro, Praia do Chapéu Virado, maio de 1927.

760
Pechman atenta que para que uma cidade seja mais do que as pedras que lhe sustentam (“um amontoado de casas,
templos, monumentos, fortalezas”) é preciso “dar-lhe um sentido”, evocar símbolos por meio do discurso, sendo o
intelectual ao que parece o artífice desta construção.
1616

Conhecendo o Brasil do Norte, de fato, estando em contato com a natureza, o intelectual


modernista pôde viver um outro Brasil. Mário de Andrade é da cidade, mas sua estada na
Amazônia, repetimos, toca-lhe áreas de sensibilidade improváveis ao biógrafo alcançar.761 A
Amazônia é o espaço que pode proporcionar o genuíno, pode revelar a sua utopia de busca da
originalidade.

Uns macaquinhos voam de galho em galho. As aningas floridas. De vez em


quando o vôo baixo das ciganas, parecem pesar toneladas. E uma abundância de
trepadeira lilá (...). E a vista se abre em novos horizontes. São campos imensos,
de um verde claro, intenso, com ilhas de mato ao longe, nítidas, de verde escuro
que recorta céu e campo. (...) É Marajó, gente! (...) E enfim passamos num primeiro
pouso de pássaros que me destrói de comoção. Não se descreve, não se pode
imaginar. São milhares de guarás encarnados, de colhereiras cor-de-rosa, de
garças brancas, de tuiuiús, de mauaris, branco, negro, cinza, nas árvores altas, no
chão de relva verde claro. E quando a gente faz um barulho de propósito, um
tiro no ar, tudo voa em revoadas doidas, sem fuga, voa, baila no ar, vermelhas,
rosas, brancas mescladas, batidos de sol nítido. Caí no chão da lanchinha. Foram
ver, era simplesmente isso, caí no chão! O estado emotivo foi tão grande que me
faltaram as pernas, caí no chão. (...) A beleza de Marajó com sua passarada me
derrubou no chão. (Andrade, 1976, p. 176-177).

“Éramos um grupo de amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, viajando cada
qual por conta própria, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas.” (Andrade, 1976, p. 150) A
intenção que há no autor de O Turista Aprendiz é a sua vontade de viver, “pela vaidade ou
ventura”, de possuir experiências de outros brasis na busca pela brasilidade. Com um turbilhão de
sentimentos e sensações, o autor de Macunaíma partiu de Belém no dia primeiro de agosto de 1927.
A narrativa do livro segue pontuando as cidades do litoral brasileiro até sua casa em São Paulo.
Uma viagem posterior exclusivamente ao Nordeste tornou possível uma segunda etapa de seu
diário de viagem de título O Turista Aprendiz. Centrado na Amazônia, esta primeira caminhada
pelo Brasil expõe um mosaico de novas possibilidades para a arte de Mário de Andrade. Foi um
intelectual preocupado com o folclore brasileiro. Rodolfo Vilhena salienta a importância que o
modernista paulista assume na cronologia de Edison Carneiro, quanto aos estudos de folclore no
Brasil, fundamentalmente na década de 30. Das leituras de Brasil por meio da Amazônia, Mário de
Andrade é um enfoque especial. O livro “Turista Aprendiz: viagens pelo Amazonas até o Peru,
pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega”. Descrições da natureza, dos hábitos
populares locais, das comidas e do que pôde degustar, da fauna e da flora são as temáticas do seu
diário e dão o tom da interpretação que estipula sobre a Amazônia: a Amazônia profunda de sua

761
Nas palavras de Thompson: “As crises internas de um poeta podem se dar em regiões reclusas que os biógrafos
não podem atingir.” (Thompson, 2002. p. 117).
1617

realidade mais genuína. Uma viagem de um turista aprendendo de uma nova realidade, que é a
impressão e o olhar de alguém que vem de longe. Um olhar pouco caloroso, por sua vez, frente à
intelectualidade local, absorvendo o que de fato quer alcançar, outros brasis.

Conclusão

A viagem de 1927 nos esclarece em seu autor um entusiasmo, constatado em seu contato
inicial com a Amazônia. O peso dessa experiência torna-se fundamental para o intelectual que lera
outros viajantes em seu gabinete, na rua Lopes Chaves, na grande São Paulo. Lugar onde lera Koch-
Grünberg, filólogo alemão, que realizou diversas viagens pela América do Sul e produziu em seis
volumes sua obra mais conhecida no Brasil, o Vom Roraima zum Orinoco que contêm um número
expressivo de saberes de povos indígenas, lendas, mitos, crenças locais. Material vasto recolhido
numa perspectiva metodológica afiada à Antropologia Comparativa alemã, do século XIX, que
buscava tornar dizível o indizível, comparando ações, ideias e produções sociais, exigindo uma
maior dedicação à documentação. Esta documentação etnográfica, recolhida a partir do uso do
fonograma, da fotografia, da filmadora, tomou uma função literária na pena de Mário de Andrade
quando este escreveu Macunaíma e tomou uma conotação mais etnográfica quando desenvolveu o
diário analisado nessa pesquisa. Na frenética busca pela brasilidade Mário de Andrade chegou à
Amazônia, arguindo o desejo de encontrar outros brasis.

Mario de Andrade era um aprendiz em viagem e etnografia e imbuído das reflexões


nacionais veio à Amazônia e este trabalho direcionou a leitura de O Turista Aprendiz, enfocando
não as reclamações, um pretenso texto de ficção ou as tantas queixas de um Mário, que afirmava
não gostar de viajar, tema comum em uma vasta bibliografia, como a querer justificar um trabalho
que entendem de menor qualidade. Nosso enfoque se estende nas páginas de O Turista Aprendiz
buscando no peso de sua experiência os traços de sua passagem, como viajante, a ter algo a nos
contar; e o desejo, a sua utopia, de querer estar no meio da floresta, foi o que sobressaiu. Uma
floresta que no princípio era apenas horizonte, passa a ser ao atravessar “pelo rio Amazonas
adentro” fonte de significados intensos, a despertar sensações tantas. Do deleite de compartilhar o
fato de estar situado em meio à floresta, estira o corpo na cadeira confortável da proa e vive o
momento. Na Amazônia, Mário de Andrade era um intelectual mais livre dos compromissos de
textos jornalísticos, muito mais apto a produzir na intimidade das páginas de seu diário o registro
da viagem em um significado mais pessoal, mas próprio de sua experiência com o lugar e o seu
habitante, com a natureza e suas próprias sensações ante a fauna e a flora. Certa vez escreveu:

meu sonho me puxa, não sei explicar, sei é que minha vista vê com fome de tal
largo de Belém, a praia de Tambaú, as rochas de Areia Preta, a largueza largada
1618

da avenida Jundiaí, tal igarapé do rio Madeira. (...) o Norte faz de tal forma
coincidir meu corpo com minha alma que só aí eu poderia ter a verdadeira paz
dentro de mim que eu carecia e genuinamente penso que mereço. Essa é a
verdade. Aliás minha obra si eu a construir mostrará esse fato do Norte. (Neves,
1998, p. 274-275).

Um norte como um rumo, um Norte, como uma região geográfica e, no caso do Brasil, o
norte revestido da floresta e do rio de água doce de maiores proporções do mundo. Lugar de
dificuldades e sensibilidades, de uma Amazônia profunda. Mário de Andrade nos faz refletir e
querer viajar, conhecer como ele, outros lugares, ter novas experiências, outros contatos, sorrir e
tombar de emoção, ver, andar, sentir outros cheiros e degustar outros sabores.

“Há muito que conhecer, que visitar... que apregoar, mas, acabaram-se as terras por
descobrir, por desvendar ao nível de um real geográfico quase esgotado pela descrição e pela
fotografia.” (Lopes, 1976, p. 40) Arguiu Tele Porto Ancona Lopes, justificando, dessa forma a
ausência de crônicas no diário de 1927. A viagem é uma descoberta e o desbravar de um lugar
distante de alguém que vem de longe. Um mais distante revestido em natureza, que nas lembranças
de Lévi-Strauss, proporcionou a reflexão, um infinito geográfico de experiências que no verdadeiro
viajante desperta a real impressão de que muito ainda se pode desbravar.

Por que é triste o olhar do verdadeiro viajante? Como ninguém, ele sabe que ‘o
mundo começou sem o homem e se acabará sem ele’. (...) Sente que sua viagem
não terá propriamente um retorno, sua exploração ficará sempre inconclusa.
(Lévi-Strauss, 1996)

Referências

Andrade, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.

Ávila, Affonso (org.). O Modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1972.

Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

Cavalcanti, Maria L.V. de Castro. Cultura popular e sensibilidade romântica: as danças dramáticas
de Mário de Andrade. Rev. Bras. de Ciências Sociais, Vol. 19, n. 54. 2004.

Chalhoub, S. e Pereira, Leonardo Affonso de Miranda. A História Contada: capítulos de história


social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

Figueiredo, Aldrin Moura de. Eternos Modernos: uma história social da arte e a literatura na
Amazônia, 1908- 1929. Tese de doutorado, IFCH-UNICAMP, 2001.
1619

Haugaasen, Torbjørn; Peres, Carlos Augusto. Características florísticas, edáficas e estruturais das
florestas inundadas e de terra firme na região do baixo Rio Purús, Amazônia central, Brasil. Acta
Amaz, [online]. 2006, vol.36, n.1, pp.25-35.

Lévi-Strauss, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Lira, José Tavares Correia de. Naufrágio e galanteio: viagem, cultura e cidades em Mário de
Andrade e Gilberto Freyre. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 20 n° 57, fev/ 2005.

Lopes, Ancona Telê. O Turista Aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na imagem. Anais
do Museu Paulista, São Paulo. N. Sér. v. 13. n.2. p.135-164. jul.-dez. 2005.

Moraes, R. O meu dicionário de cousas de Amazônia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Alba, Officinas Gráfhicas.
1931.

Pechman, R. M. Pedra e discurso: cidade, história e literatura. In: Flávio Aguiar; José Carlos s. b.
Meihy; Sandra g. t. Vasconcelos. (org.). Gêneros de fronteira. cruzamentos entre o histórico e o
literário. 1ed. São Paulo: Xamã VM Editora, 199, pp. 101-107.

Said, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Thompson, E. P. Os Românticos: A Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro – Civilização


Brasileira. 2002.

Vilhena, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro 1947 – 1964. Rio de
Janeiro: Funarte/Fundação Getúlio Vargas, 1997.
1620

As Outras ‘Brasílias’ de Brasília*

Sabrina Soares

PARTE I

v NOME E TEMA: As Outras “Brasílias” de Brasília.


v DESCRIÇÃO DA OFICINA: A oficina consiste em produzir um trabalho que desenvolva o
pensamento crítico a respeito de sujeitos coletivos no DF. O propósito é despertar nos estudantes
a percepção da existência desses sujeitos em Brasília, bem como sua participação na construção
histórica da cultura brasiliense.
O trabalho é desenvolvido a partir de dois eixos de pesquisa:

1. Reconhecimento da territorialidade e da habitação desses povos antes da construção de Brasília.


2. Reconhecimento da contribuição desses povos na construção da nova Capital.

Entendemos que, ao selecionarmos esse ponto de partida na pesquisa sobre o DF, é


possível construir uma base de conhecimento nos estudantes capaz de contribuir para o
aprimoramento de seu conhecimento a respeito da história local, em uma perspectiva contra-
hegemônica.
Nesse contexto, a escolha pelas fontes documentais (entrevista e fotografias) auxiliam o
estudante a perceber a história por meio de relatos pessoais e registros visuais do cotidiano social.
v OBJETIVO: Desenvolver o conhecimento histórico da presença desses de diversos
sujeitos coletivos no DF, bem como suas lutas por existência e resistência no território do DF
v CONTEÚDO: A atividade tem por objetivo ser desenvolvida para o público do 9º ano
do ensino fundamental. Portanto, o conteúdo trabalhado envolve o período republicano do Brasil,
no contexto do governo JK (1956-1961), envolvendo a construção social da sociedade brasileira
(diversidade social e cultual no Brasil).
v ESTRATÉGIA E AVALIAÇÃO: A oficina será produzida em grupo, pois o objetivo é
construir um conhecimento conjunto a respeito dos sujeitos coletivos do DF. As atividades serão
desenvolvidas em três partes:
I. Reconhecimento espacial da presença desses sujeitos no DF, por meio da identificação no
mapa do DF de locais de habitação e representatividades desses sujeitos;

*Atividade desenvolvida a partir do Curso Outras Brasílias – UnB, voltada para o público do 9º ano do Ensino
Fundamental.
1621

II. Desenvolver a percepção cronológica da trajetória de luta por existência e resistência desses
sujeitos no território do DF, por meio da pesquisa e compilação de uma linha do tempo que
possibilite aos estudantes visualizar e desenvolver uma narrativa histórica de Brasília utilizando uma
perspectiva contra-hegemônica;
III. Analisar e compreender as narrativas de experiências sociais desses sujeitos coletivos por
meio da fala de pessoas que pertencem as essas comunidades. A transcrição de parte da entrevista
tem como objetivo desenvolver nos estudantes a capacidade de produzir narrativas históricas por
meio da história oral. O que se propõe é criar um conhecimento histórico utilizando como base
uma narrativa de um ponto de vista interno da vivência desses sujeitos coletivos.

As Outras “Brasílias” de Brasília: O caso

Brasília é considerada um dos Patrimônios da Humanidade. Possui diversos


marcos históricos referentes a sua construção e sua arquitetura tem sido inspiração para diversas
cidades no mundo. Foi inaugurada em 21 de abril de 1960, evento que reuniu políticos, celebridades
e os construtores da cidade.

Figura 1: Multidão se aglomera nas solenidades da inauguração de Brasília, em


1960. (Foto: F. Fadul/Arquivo Público do DF)

A ideia de construir a capital do país no interior do Brasil é antiga. Em junho de 1892, um


grupo de cientistas foi enviado para explorar o Planalto Central e demarcar a área. A expedição
ficou conhecida como “Missão Cruls”, e foi composta por médicos, geólogos e botânicos. Eles
deveriam fazer um levantamento sobre o clima, a geologia, a flora, a fauna e os recursos materiais
da região.
1622

Figura 2: Comitiva de trabalhadores chega a Brasília para assistir à


inauguração. (Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF)

Em 1956, o então presidente da República, Juscelino Kubitscheck, deu início de fato à


realização do projeto de construção da nova capital. Com os projetos urbanístico de Lúcio Costa e
o arquitetônico de Oscar Niemeyer, surgia uma cidade sob formas inovadoras, diferente de tudo já
feito até então. Além da dupla Costa e Niemeyer, completavam o time que fez desta cidade um
museu a céu aberto figuras como Burle Marx, com jardins e praças, e Athos Bulcão, com os painéis
de azulejos que são marca registrada da capital.

Figura 3: Estudantes desfilam na solenidade de inauguração da nova capital


do país. (Foto: Arquivo Público do DF)

Conforme a construção de Brasília seguia em frente, foram surgindo pequenos


acampamentos ao redor do Plano Piloto para abrigar os trabalhadores que vieram para construir a
nova capital. O primeiro acampamento foi chamado de Cidade Livre, que hoje é o Núcleo
1623

Bandeirante. Os demais agrupamentos mais tarde tornaram-se inicialmente as cidades satélites, que
agora são as 33 regiões administrativas que compõem o Distrito Federal.

Figura 4: Presidente JK saúda os presentes à


festa de inauguração de Brasília. (Foto:
Gervásio Batista/Arquivo Público do DF)

O problema

Quando falamos da construção de Brasília, a maioria dos brasilienses conhece os nomes de


personalidades históricas como JK, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa. Do mesmo modo, a palavra
candangos é disseminada no senso comum entre os nascidos na capita da república. Mas será que
essas são as únicas pessoas que devemos lembrar e considerar quando falamos de Brasília? A
história que ouvimos nos faz entender que eles acharam um lugar sem nenhum habitante para
construir a nova capital. Será que na região central do Brasil não havia povos que já habitavam o
local?

Nesse trabalho vamos investigar a história da construção de Brasília e do Distrito Federal


por meio do olhar de povos que também estão presentes nessa história, mas não são vistos nos
registros oficiais. Esses sujeitos coletivos, ou seja, quilombolas, ciganos, indígenas fazem parte da
história e da cultura de Brasília.

O Brasil é composto por diversos povos: temos em nossa cultura traços de povos indígenas,
africanos, ciganos, asiáticos, árabes e europeus. As ocupações desses diversos povos fazem parte
da nação brasileira, por isso devemos valorizar, ouvir e aprender sobre todas as histórias que
1624

formam a história do nosso país. O território do Planalto Central possui o registro da presença de
povos que ocuparam a região e criaram raízes e desenvolveram sua cultura no mesmo lugar em que
hoje chamamos de Distrito Federal. Brasília e suas cidades satélites registram a presença e a cultura
de povos que habitavam a região muitos antes de a capital existir.

Nosso trabalho tem o objetivo de desenvolver conhecimentos sobre a presença


INDÍGENA e QUILOMBOLA no DF em dois eixos de estudo: 1. Reconhecimento da
territorialidade e habitação desses povos antes da construção de Brasília; 2. Reconhecimento da
contribuição desses povos na construção da nova Capital.

Vamos investigar os registros históricos e buscar entender essas narrativas que constroem
a história e a cultura de Brasília.

As Pistas

Povos Indígenas

Entrevista com o indígena do Santuário dos Pajés


Kamuu Dan.

https://www.youtube.com/watch?v=12yTAnpxGxs&feature=youtu.be
1625

O Capitão Aviador
Henrique Peçanha Tomás
(farda escura) posa ao lado de
indígenas diante de um
helicóptero da Força Aérea
no aeroporto de Brasília.
Brasília - DF, 09/12/1958.
BR DFARPDF NOV.C.4

Foto:
02.3367_NOV_C_4_Aeroporto_Cap_Henrique_Pecanha_Thomas_Brasilia_DF_09_12_1958

Povos Quilombolas

Entrevista Walisson Braga do Quilombo do


Mesquita

https://www.youtube.com/watch?v=XRpDsgr5f5U&feature=youtu.be
1626

Construtores da construção do Catetinho na Fazenda do Gama. Gama -DF, [1957].


BR DFARPDF NOV.A.02.
Fonte: ArPDF. 0040_NOV_A_02_Fazenda_do_Gama_DF

Roteiro de Investigação
• Passo A

A territorialidade indígena e quilombola no DF é uma pauta de luta desses povos. O


Quilombo do Mesquita luta contra especulação de empreendedores que tenta desapropriar o local
para a construção de condomínios. O Santuário dos Pajés lutou por anos por reconhecimento,
principalmente contra empreendedores da construção civil.
1627

Como primeira parte do processo de reconhecimento do eixo de territorialidade, marque


no mapa do DF locais que indicam a presença quilombola e indígena no DF.

Encontre: locais de habitação desses povos e locais que guardam a memória da existência
desses povos. Marque os locais diferenciando indígenas e quilombolas, inclua legenda e o nome
dos referidos locais. Encontre pelo menos 4 lugares para cada povo.

Locais Indígenas Locais Quilombolas


1628

- Para localizar auxiliar no exercício de encontrar as atualiza localidades com representatividade


indígena e quilombola no DF, segue o mapa da Cidade Digital para comparar com o mapa da nossa
atividade.
https://www.geoservicos.segeth.df.gov.br/portal/apps/3DScene/index.html?appid=cf0e2bb073
dd4730886592e4b0bfe0e8

• Passo B.

Os povos indígenas e quilombolas que estão no DF possuem uma trajetória pelo


reconhecimento de sua territorialidade na região. Como exemplo temos o Quilombo do Mesquita
e o Santuário dos Pajés. Nesse contexto, faça a LINHA DO TEMPO dos marcos de resistência
desses povos na luta por reconhecimento de seu território no DF.

• Passo C.

Os povos indígenas e quilombolas que estão no DF lutam por reconhecimento de sua


participação na construção de Brasília. A história do DF menciona a participação dos candangos
na construção da cidade, atribuindo uma terminologia generalizada aos trabalhadores e
trabalhadoras que abandoaram sua terra natal para contribuir no processo de interiorização da
capital.

Contudo, a existência dos povos indígenas e quilombolas nesse período não aparece na
maioria das narrativas dessa história. Nesse contexto, faça a transcrição das entrevistas das Pistas 1
e 3 selecionando as falas em que os entrevistados relatam a participação de seu povo na construção
de Brasília.

Referências

Brasília: A Cidade-Sonho. Governo do Distrito Federal. Disponível em:


<http://www.df.gov.br/historia/>. Acesso em: 17 de outubro de 2020;

Comunidade Quilombola de Mesquita recebe visita de alunos da Escola Municipal do Lago


Azul. Palmares - Fundação Cultural. Disponível
em:<http://www.palmares.gov.br/?p=53460>. Acesso em: 17 de outubro de 2020;

A Inauguração. Memorial da Democracia. Disponível em:


<http://memorialdademocracia.com.br/card/construcao-de-brasilia/9>. Acesso em: 17 de
outubro de 2020.
1629

Santuário dos Pajés no Setor Noroeste de Brasília. Agencia Brasília. Disponível em:
<https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/galeria/2011-08-16/santuario-dos-pajes-no-
setor-noroeste-de-brasilia#>. Acesso em: 17 de outubro de 2020.

Soares, Sabrina; Corréia, Valéria. Curso Outras Brasília/ Entrevista com Kamuu Dan (Santuário
dos Pajés). Entrevista, curso Outras Brasília, 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=12yTAnpxGxs&feature=youtu.be. Acesso em 17 de
outubro de 2020.

Soares, Sabrina; Corréia, Valéria. Curso Outras Brasília/ Entrevista Walisson Braga (Quilombo
do Mesquita). Entrevista, curso Outras Brasília, 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=XRpDsgr5f5U&feature=youtu.be. Acesso em 17 de
outubro de 2020.

Figura 1. Memorial da Democracia. Multidão se aglomera nas solenidades da inauguração de


Brasília, em 1960 in A inauguração. (Foto: F. Fadul/Arquivo Público do DF). Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/construcao-de-brasilia/9. Acesso em 17 de
outubro de 2020.

Figura 2. Memorial da Democracia. Comitiva de trabalhadores chega a Brasília para assistir à


inauguração in A inauguração. (Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF). Disponível
em: http://memorialdademocracia.com.br/card/construcao-de-brasilia/9. Acesso em 17 de
outubro de 2020.

Figura 3. Memorial da Democracia. Estudantes desfilam na solenidade de inauguração da nova


capital do país in A inauguração. (Foto: Arquivo Público do DF). Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/construcao-de-brasilia/9. Acesso em 17 de
outubro de 2020.

Figura 4. Memorial da Democracia. Presidente JK saúda os presentes à festa de inauguração de


Brasília in A inauguração. (Foto: Gervásio Batista/Arquivo Público do DF). Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/construcao-de-brasilia/9. Acesso em 17 de
outubro de 2020.
1630

Entre a defesa dos Direitos Humanos e a Segurança Nacional:


uma análise da política migratória brasileira nos discursos
presidenciais entre os anos 2016 e 2020

Tálita Cristina Reis de Mello*

Resumo: ao tomar posse da presidência da república em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro emitira o
que seria a primeira determinação em termos de política migratória de seu governo: a saída do
Brasil do Pacto Global para a Migração. A decisão, recebida sob muitas críticas pela Organização
das Nações Unidas e Organizações Não-Governamentais, indicava um direcionamento distinto do
adotado pelas gestões anteriores no tratamento das questões migratórias. A assinatura do Pacto
pelo antecessor Michel Temer, em dezembro de 2018, inseria-se em um continuum de evolução da
política migratória brasileira, tanto no que diz respeito à política interna, com a atualização das
legislações que orientavam o tema, quanto ao posicionamento brasileiro perante a comunidade
internacional. Desde a redemocratização, a orientação brasileira fora a de primazia da agenda dos
direitos humanos, em um esforço de afastar-se da predominância do paradigma de segurança
nacional dos tempos autoritários. Nos fóruns internacionais a retórica brasileira ganhara forma nas
últimas décadas ao defender a cooperação entre os países para o enfrentamento das crises
migratórias que o mundo vem enfrentando no século XXI. Os pronunciamentos de Jair Bolsonaro,
no entanto, apontam para outra direção e passam a indicar a disposição pelo retorno da política
migratória securitizadora, quando o contexto mundial é de exigência de respostas para os milhões
de refugiados na maior crise de deslocamentos forçados desde a Segunda Guerra Mundial.

Palavras-chave: Migração; Política Migratória; Direitos Humanos; Segurança Nacional; Análise


de Discurso.

Introdução

Em março de 2019, em entrevista à rede de notícias FoxNews, o presidente brasileiro Jair


Bolsonaro expressou sua opinião a respeito da decisão do presidente americano, Donald Trump,
de construir um muro na fronteira com o México:

Eu acho que aqui os americanos que pensam no socialismo deveriam olhar o que
está acontecendo com a França, onde as fronteiras se abriram para refugiados,
sem qualquer filtro e essas questões de país de fronteira aberta, é péssimo, no
meu entender. Então, essa política do Trump no tocante ao muro, nós apoiamos.
A mesma coisa sobre estrangeiros ilegais aqui. Na nossa casa só entra quem nós
queremos. [...] O governo americano está certo nas suas políticas protecionistas
no tocante à migração. (Brasil, 2019).

* Mestranda em História, Relações Internacionais e Cooperação pela Universidade do Porto.


1631

A fala do atual presidente faz parte de um conjunto de declarações antimigracionistas


pronunciadas por Bolsonaro nos dois primeiros anos de seu mandato e traz ao debate a ascensão
do neoconservadorismo e o possível retorno do paradigma da segurança nacional, em um
movimento distinto às gestões anteriores.

Essa possível descontinuidade também pôde ser observada na sua primeira decisão em
termos de política migratória: a determinação da saída do Brasil do Pacto Global para a Migração762.
Ainda que o pacto, como os demais acordos internacionais que abordam as questões migratórias,
não tenha cariz vinculativo, a adesão brasileira indicava o comprometimento do país com a atuação
cooperativa e de compartilhamento de responsabilidades no tratamento do crescente fluxo
migratório da atualidade.

O pacto havia sido assinado pelo então presidente Michel Temer, antecessor de Bolsonaro,
e subscrevia-se na agenda dos direitos humanos e de descriminalização da migração.

Contam-se mais de 250 milhões de migrantes em todo o mundo. Trata-se de


homens, mulheres e crianças que, ameaçados por crises que se prolongam, são
levados a tomar a difícil e arriscada decisão de deixar seus países. É nosso dever
protegê-los, e é esse o propósito do Pacto Global sobre Migração763. (Brasil,
2016).

Foi também sob a gestão de Temer que a Nova Lei de Migração764 fora aprovada,
completando o ciclo legislativo de superação do modelo de segurança nacional ao explicitar que os
princípios constitucionais devem fundamentar a política migratória brasileira (Mendes e Menezes,
2019). Essa nova legislação passou a regulamentar o tratamento do tema de forma mais
humanitária.

Tanto a adesão ao Pacto Global de Migração quanto a aprovação da nova Lei de Migração
indicavam uma certa continuidade na trajetória brasileira no que diz respeito à abordagem da
matéria migratória e sua coerência com os pronunciamentos presidenciais nos fóruns
internacionais.

Os discursos carregam consigo os valores orientadores do agir político, que legitimam as


ações coletivas/institucionais, e constituem-se como elementos importantes de análise política. A
utilização do discurso como categoria de análise se mostra importante quando se trata de

762 O Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular (GCM) é um acordo intergovernamental
promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para tornar as migrações mais seguras e dignas para todos
(Nogueira, 2019).
763 Discurso na abertura do debate geral da 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas.
764 Lei nº 13.445 de 24.05.2017.
1632

identificação de relações de poder permeadas por mecanismos de dominação escondidos sob a


linguagem (Frizzera, 2013).

A política migratória brasileira a partir da promulgação da Constituição Cidadã

Até o final do século XX o tratamento da questão migratória no Brasil orbitou nas


necessidades de mão de obra para o mercado de trabalho (Oliveira, 2017, p.171) e oscilava entre
maior ou menor abertura para imigrantes, verificando-se nos governos autoritários do Estado
Novo (1937 – 1945) e do Regime Militar (1984 – 1985) a predominância da política migratória
restritiva.

O Estatuto do Estrangeiro765 fora o instituto legal que ordenara a política migratória de 1980
até 2017. Tal dispositivo, sancionado ainda durante a ditadura militar, orientava-se pelo paradigma
da segurança nacional. Segundo Reis (2011) o Estatuto foi elaborado como forma de facilitar a
expulsão de estrangeiros envolvidos em atividades políticas no país que o regime militar julgava
interferir em assuntos considerados de foro interno. Nesse grupo inseriam-se, por exemplo, as
entidades religiosas que protegiam os direitos dos imigrantes, sobretudo os refugiados.

Com o fim da ditadura militar na década de 1980 o país passou a trilhar por um processo de
transformação no tratamento às questões migratórias. A Constituição Federal de 1988 trouxe a
predominância dos direitos e garantias fundamentais e influenciou a política migratória.

O Estatuto do Estrangeiro, no entanto, só foi inteiramente substituído em 2017, com a


sanção de Lei nº 13.445/2017, a Nova Lei de Migração, que viria a completar a superação do modelo
de segurança nacional. É importante ressaltar, contudo, que antes mesmo da aprovação da nova
lei, tanto o posicionamento brasileiro nos fóruns internacionais, como em dispositivos infralegais,
evidenciavam a defesa pelo tratamento mais humanitário no tratamento das questões migratórias.
Assim, desde a redemocratização o Brasil caminhava por um caminho de mudanças garantidoras
dos direitos dos migrantes, afastando-se gradativamente do paradigma da segurança nacional. Os
líderes que vieram a assumir a presidência no início do século XXI traziam em seus discursos tal
posição brasileira, sobretudo nos fóruns internacionais.

Com a chegada de Bolsonaro ao poder, esses avanços são colocados em xeque: não apenas
a decisão de sair do Pacto Global para a Migração, como a edição da Portaria nº 666/19, que
estabeleceu condições para a deportação sumária, marcariam sua atuação na matéria migratória.
Somados a seu discurso antimigracionista indicam rupturas com a tradição brasileira de

765 Lei nº 6.815/1980


1633

acolhimento e atuação pela defesa dos direitos humanos dos migrantes, trazendo incertezas ao
posicionamento brasileiro em âmbito internacional e na política interna.

O aumento dos deslocamentos humanos no século XXI protagoniza os debates na


comunidade internacional e figura entre os temas com maior dificuldade de decisões uníssonas
entre os Estados. O fortalecimento de um regime internacional de direitos humanos indica a
transferência de direitos do cidadão para o indivíduo e faz surgir uma espécie de cidadania pós-
nacional ou transnacional (Reis, 2004).

O direito fundamental de migrar e sua relação com as políticas migratórias

A liberdade de locomoção é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos


Humanos1 e, segundo Piovesan (2010, p.40 apud Botelho, 2020, p.152), “combina o discurso
liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade”.

As tragédias humanitárias do século XX colocaram os Direitos Humanos na agenda como


instrumento importante para a paz. Reuniu um conjunto de valores da cultura política ocidental
que viabilizaria o entendimento das nações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, convergiria com os fundamentos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), acrescentando a associação definitiva entre Direitos Humanos e democracia (Manduca,
2011, p.928).

No entanto, tais valores não parecem sustentar um interesse legítimo dos Estados em abrir
mão do controle de suas fronteiras ou da discricionariedade na seleção daqueles que serão aceitos
ou não em seus territórios (Botelho, 2020, p.154).

A relação entre soberania e imigração é complexa: diante do fortalecimento do regime


internacional de direitos humanos os Estados têm sido impelidos a redefinirem suas fronteiras,
levando à interpretação de que ocorra a redução de autonomia desses Estados (Reis, 2004, 157).
Para que seja atribuído reconhecimento aos direitos humanos é necessário “aduzir motivos para
justificar a escolha que fizemos e que gostaríamos que fosse feita também pelos outros” (Bobbio,
2004, p.12).

Na análise da política migratória brasileira, Rossana Rocha Reis contribuiu com um estudo
no qual traçou o posicionamento brasileiro até 2011, ressaltando a estreita relação que prevaleceu
entre política migratória e a política externa (Reis, 2011). À época que a autora escreve o artigo a
nova Lei de Migração ainda não havia sido aprovada, viria a ser sancionada apenas seis anos depois,
mas o projeto já tramitava no Legislativo e Reis evidenciara a importância do projeto e a
necessidade de substituição do Estatuto, então vigente, por uma legislação atual e mais coerente
1634

não apenas com o posicionamento brasileiro nos últimos anos, como com a própria Constituição
Federal.

Outra contribuição importante foi a dissertação de mestrado de André Luiz Siciliano (2013)
que buscou identificar os parâmetros que orientam a Política Migratória brasileira. Seu trabalho
divide-se em duas partes: a primeira é aborda-se os conceitos de Política Migratória, as perspectivas
do tema e a compilação de alguns estudos de casos, confrontando as teorias propostas com as
análises empíricas observadas, fornecendo, ao final, os parâmetros definidos para a análise da
Política Migratória brasileira. A segunda parte trata especificamente do caso brasileiro e os textos
normativos que o definem.

A perspectiva adotada por Siciliano é a que o autor define com perspectiva humanista, com
o principal referencial adotado o de garantias individuais da pessoa humana. Em última instância
isso significa que a premissa de que uma Política Migratória deva “se ocupar de garantir os direitos
àqueles que estão deslocados de sua jurisdição original, sejam os dos imigrantes que chegam ao
estado nacional, seja dos nacionais emigrados submetidos a outras jurisdições” (Siciliano, 2013,
p.11).

Assim como Reis (2011) Siciliano (2013) também escreve antes da Nova Lei da Migração ter
sido aprovada, mas sinala que a política migratória instaurada pelo Estatuto do Estrangeiro (1980)
foi essencialmente modificada tanto pelos Acordos Regionais e Bilaterais de livre circulação de
pessoas, como as resoluções do Conselho Nacional da Imigração e pelos numerosos diplomas
editados após o Estatuto. No entanto, para o autor “não existe uma política migratória que
apresente um propósito claro e objetivo a fim de coordenar as múltiplas e diversas ações que
envolvem a questão migratória no Brasil” (Siciliano, 2013, p.62).

A política migratória brasileira

Segundo o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), o


Brasil registrou 774,2 mil imigrantes e refugiados entre 2010 e 2018, considerando todos os
amparos legais.

Entre o final dos anos 1990 e a promulgação da Lei de Migração, em 2017, o ordenamento
jurídico para o tratamento das migrações era como uma colcha de retalhos. Como sinaliza Oliveira
(2017), o que se verificava era o paradoxo de conviver com o dispositivo legal que se baseava na
segurança nacional em plena ordem democrática.

A política migratória brasileira é atualmente regulamentada pela Lei nº 13.445/2017,


conhecida como Nova Lei da Migração, sancionada pelo então presidente Michel Temer mas
1635

elaborada ainda durante a gestão de Dilma Rousseff (2011-2016). O dispositivo significou uma
contribuição na superação dos paradoxos que o país vivia até então: a coexistência da Constituição
democrática – promulgada após a ditadura militar e orientada pelo princípio dos direitos humanos
– com o Estatuto do Estrangeiro, sancionado ainda durante a ditadura militar, formulado, sob os
preceitos da segurança nacional e que, segundo Oliveira (2017), via no imigrante uma ameaça à
“estabilidade e à coesão social”.

A partir da década de 1980, setores da sociedade organizaram-se e passaram a reivindicar


mais enfaticamente a proteção dos direitos dos migrantes (Mendes e Menezes, 2019). O Estatuto
passou a ter muitos dos seus dispositivos revogados por estarem em desacordo com a Constituição
Federal e acredita Siciliano (2013) que os Acordos Regionais e Bilaterais de livre circulação de
pessoas subscritos pelo Brasil também modificaram a essência do Estatuto. A abertura do Conselho
Nacional de Imigração (CNIg) à representação social e a criação do Conselho Nacional para os
Refugiados (Conare) materializaram tais transformações. Ainda assim, a substituição do Estatuto
se mostrou urgente devido tanto ao aumento dos fluxos imigratórios como a intensificação das
emigrações internacionais (Oliveira, 2017), culminando na sanção da Nova Lei de Migração em
2017, que logo em seu artigo 3º elege como um dos princípios basilares o dos direitos humanos:

“Art. 3º: A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

I – Universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”.


Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, esses avanços em termos de política migratória
são colocados em xeque: não apenas a decisão de sair do Pacto Global para a Migração, como a
edição da Portaria nº 666/19 que estabelece condições para a deportação sumária, somados à sua
fala antimigracionista e saudosista do tempo em que prevalecia o paradigma da segurança nacional,
indicam rupturas com as posturas adotadas em gestões anteriores, tolhendo o direito fundamental
de migrar.

Discurso e agir político: os governos de Temer e Bolsonaro

A primeira participação de Temer na Assembleia Geral das Nações Unidas foi em setembro
de 2016 e em seu discurso menciona a tramitação da Nova Lei de Migrações (Lei nº 13.445/2017)
no Congresso brasileiro, onde afirmou:

Nosso objetivo é garantir direitos, facilitar a inclusão e não criminalizar a


migração. Nossa lei disporá sobre o visto humanitário - instrumento já utilizado
em favor de quase 85 mil cidadãos haitianos, após o terremoto de 2010, e 2.300
1636

pessoas afetadas pelo conflito na Síria. No centro de nossas políticas, está o


reconhecimento inescapável da dignidade de todos os migrantes766. (Brasil, 2016).

Na mesma ocasião, Temer ressaltou que “refugiados e migrantes são [...] as mais das vezes,
vítimas de violações de direitos humanos. São vítimas da pobreza, da guerra, da repressão política”
(Brasil, 2016).

Três anos depois, na estreia de Bolsonaro na Assembleia, a ênfase de seu discurso incidiu no
temor ao socialismo, à crítica ao governo venezuelano e aos governos anteriores de Dilma Rousseff
e Lula, do Partido dos Trabalhadores, acusando-os de aproximação ao regime cubano e
venezuelano e por instalar o que o presidente brasileiro denomina de poder absoluto por um
sistema ideológico que estaria a atentar contra “a célula mater de qualquer sociedade saudável, a
família” e tenta destruir a inocência das crianças “pervertendo até mesmo identidade mais básica e
elementar, a biológica”. Seu discurso orbita no temor do suposto avanço do socialismo e na crítica
aos governos brasileiros anteriores. A temática imigrantes ou refugiados aparecem de forma tácita: a
respeito da migração venezuelana apenas se referiu como uma fuga da fome e da violência, como
forma de sustentar a crítica ao governo de Maduro. O termo refúgio aparece apenas uma única vez
no discurso em questão, criminalizando os asilados políticos: “três paraguaios e um chileno, que
viviam no Brasil como refugiados políticos, também foram devolvidos a seus respectivos países.
Terroristas sob o disfarce de perseguidos políticos, não mais encontrarão refúgio no Brasil” (Brasil,-
2019).

Comparando as estreias de ambos os líderes na Assembleia Geral das Nações Unidas é


possível identificar a diferença do tom, sobretudo no que se refere ao tratamento no que diz
respeito às migrações, à caracterização do imigrante e a importância dada às crises de refugiados.

Ao analisar os atos de fala presidenciais entre 2016 e 2020.

A questão síria, a maior crise migratória das últimas décadas, não foi mencionada em nenhum
dos 25 discursos analisados de Bolsonaro, enquanto Temer referiu-se aos sírios em 4 de seus 23
discursos analisados.

Em março de 2019, em entrevista à Rede Fox News em Washington, quando questionado a


respeito da decisão de Trump de construir o muro na fronteira com México, Bolsonaro expressou
seu apoio ao presidente americano:

Eu acho que aqui os americanos que pensam no socialismo deveriam olhar o que está
acontecendo com a França, onde as fronteiras se abriram para refugiados, sem qualquer filtro e

766 Pronunciamento durante abertura do Debate Geral da 71ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20/09/16.
1637

essas questões de país de fronteira aberta, é péssimo, no meu entender. Então, essa política do
Trump no tocante ao muro, nós apoiamos. A mesma coisa sobre estrangeiros ilegais aqui. Na nossa
casa só entra quem nós queremos. [...] O governo americano está certo nas suas políticas
protecionistas no tocante à migração.

Nos atos de fala de Jair Bolsonaro é possível identificar sua adesão a uma política
conservadora, na esteira da tendência mundial de crescimento dos movimentos reacionários que
pregam o robustecimento das fronteiras e evocam a supremacia da soberania nacional. As falas
conservadoras vêm se tornando mais recorrentes nos debates políticos, legitimando-se em
legislações mais desfavoráveis aos imigrantes, em nome da soberania dos países (Brito, 2011) mas
essa certa polarização entre Direitos Humanos e Soberania Nacional não é uma novidade: ocorreu
em diferentes graus em outros períodos da História, desde dos últimos 50 anos do Século XIX,
com imperialismo e as grandes guerras (Brito, 2011).

Ao analisar os pronunciamentos no espaço temporal delineado nesta pesquisa adotou-se a


análise temática categorial, segundo a qual é calculado “as frequências de certas características [...]
previamente agrupadas em categorias significativas. Baseia-se na hipótese segundo a qual uma
característica é tanto mais frequente citada quanto mais importante é para o locutor” (Quivy e
Campenhoudt, 2008: 228). Desta forma, foram identificados os termos com maior ocorrência nas
falas de ambos os líderes:

Michel Temer Jair Bolsonaro


Termos Ocorrências Termos Ocorrências
Democracia Deus 37 37
Fronteiras 25 Venezuela 25
Paz 22 Forças Armadas 22
Refugiados 19 Esquerda 19
Direitos Humanos 18 Socialismo 18
Democracia e liberdade 16
Cooperação 16
Tabela 1 e 2 Mello, 2020 767

A partir desta análise é possível perceber o sistema de valores em cada um dos interlocutores.
O termo com maior frequência nos discursos de Michel Temer foi democracia e de Jair Bolsonaro
foi Deus – o atual presidente brasileiro foi eleito, dentre outros fatores, devido ao apoio da classe
religiosa brasileira e o viés religioso está presente na grande maioria dos seus pronunciamentos.
Também pôde observar a ênfase nos discursos de Temer na importância da cooperação para a paz

767 Dados coletados em: www.planalto.gov.br e www.itamaraty.gov.br


1638

entre as nações. Por outro lado, na retórica de Bolsonaro se sobressai a valorização das Forças
Armadas e as duras críticas ao governo venezuelano.

Temer, por outro lado, evidencia no trecho a seguir que as soluções militares não comportam
respostas suficientes para as crises humanitárias:

Também o encaminhamento das graves crises humanitárias requer permanente


esforço de concertação. Os mais de cinco anos de guerra civil na Síria nos
mostram que conflitos dessa complexidade não comportam solução
exclusivamente militar. O caminho do diálogo é essencial para a paz duradoura.
(Brasil, 2016)

A análise também se seguiu no mapeamento de três termos que se acredita ser importante
para o tema de Política Migratória, a saber: direitos humanos, refugiado e imigração/imigrante, o que foi
constatado conforme gráfico abaixo:

Gráfico 1 Mello, 2020768.

A palavra acolhimento, quando referida ao recebimento de imigrantes, aparece em 4 dos 23


discursos analisados de Temer, enquanto nos discursos de Bolsonaro não é dito nenhuma vez. Já
o termo direitos humanos aparece 18 vezes em 8 discursos diferentes de Temer, e 6 vezes em 2 dos
de Bolsonaro, sendo 5 delas no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. Destas
ocorrências na fala de Bolsonaro tem-se:

768 Dados coletados em: www.planalto.gov.br e www.itamaraty.gov.br


1639

Trecho Fonte

“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do Recebimento da faixa


desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento presidencial, no dia 01 de
dos direitos humanos e da desconstrução da família” janeiro de 2019

“Em 2013, um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Discurso na Assembleia
Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional. Foram Geral das Nações Unidas, no
impedidos de trazer cônjuges e filhos, tiveram 75% de seus salários confiscados dia 24 de setembro de 2019
pelo regime e foram impedidos de usufruir de direitos fundamentais, como o de
ir e vir. Um verdadeiro trabalho escravo, acreditem... Respaldado por entidades
de direitos humanos do Brasil e da ONU”

“O Brasil reafirma seu compromisso, intransigente com os mais altos padrões Discurso na Assembleia
de direitos humanos, com a defesa da democracia e da liberdade, de expressão, Geral das Nações Unidas, no
religiosa e de imprensa. É um compromisso que caminha junto com o combate dia 24 de setembro de 2019
à corrupção e à criminalidade, demandas urgentes da sociedade brasileira”

“Em meu país, tínhamos que fazer algo a respeito dos quase 70 mil homicídios Discurso na Assembleia
e dos incontáveis crimes violentos que, anualmente, massacravam a população Geral das Nações Unidas, no
brasileira. A vida é o mais básico dos direitos humanos dia 24 de setembro de 2019

“Das circunstâncias mais variadas – no Haiti, no Líbano, na República Discurso na Assembleia


Democrática do Congo –, os contingentes brasileiros são reconhecidos pela Geral das Nações Unidas, no
qualidade de seu trabalho e pelo respeito à população, aos direitos humanos e dia 24 de setembro de 2019
aos princípios que norteiam as operações de manutenção de paz.”

“Nas questões do clima, da democracia, dos direitos humanos, da igualdade de Discurso na Assembleia
direitos e deveres entre homens e mulheres, e em tantas outras, tudo o que Geral das Nações Unidas, no
precisamos é isto: contemplar a verdade, seguindo João 8:32: - ‘E conhecereis a dia 24 de setembro de 2019
verdade, e a verdade vos libertarás’”

Tabela 2769

A mudança da retórica, no entanto, não parece ter influenciado concretamente na concessão


de autorizações de residências à imigrantes. Após a análise dos dados dos relatórios do

769 Tabela 2: Desenvolvida a partir dos discursos analisados no artigo.


1640

Observatório das Migrações Internacionais, no que diz respeito ao contingente total de aprovações
de autorizações, a taxa parece manter-se, segundo tabela abaixo:

Autorizações concedidas entre 2016 e 2019


2016 2017 2018 2019
30.3 25.93
Autorizações concedidas 27 7 30.619 31.298
3.32
Solicitações indeferidas 3 603 3.112 2.947
5.87
Solicitações canceladas 5 2.289 7.009 7.908
Indeferido de prorrogação 113 - 64 -
2.92
Deferido de prorrogação 7 - 50 -
42.5 28.82
Total 65 9 40.854 42.153
Tabela 3770

Neste sentido, a partir da análise dos relatórios anuais do Observatório das Migrações
Internacionais verificou-se que ainda que haja uma movimentação de resgate do paradigma da
segurança nacional e uma tentativa de mitigar a relevância dos direitos humanos na recepção de
imigrantes, sejam eles em fuga de crises humanitárias ou em busca de melhores condições de vida,
refugiados ou não, a solidez dos alicerces que sustentam o Estado brasileiro, construídos desde a
promulgação da Constituição Cidadã e fortalecidos pelos dispositivos infralegais e institucionais,
não permitiu (ou ao menos dificultou) mudanças efetivas no acolhimento de imigrantes.

Conclusão

As declarações dos líderes manifestam os parâmetros que orientam seus respectivos


governos no tratamento das migrações mundiais. A retórica de Temer seguiu a agenda dos direitos
humanos e descriminalização da migração. Em termos práticos, no que diz respeito
especificamente à política migratória brasileira, seu governo foi uma continuidade das gestões
anteriores.

O governo conservador de Bolsonaro, muda o tom e mostra a disposição de retorno ao


paradigma da segurança nacional. Os direitos humanos deixam de ter lugar de destaque nos
discursos e é mesmo reduzido de significado.

770 Tabela desenvolvida a partir dos relatórios anuais do OBMigra, dos anos 2016, 2017, 2018 e 2019.
1641

A análise de conteúdo é também o estudo do não dito. É também no silêncio que muitas
coisas são ditas. A omissão do termo refugiado, da expressão direitos humanos e até e imigração na
maioria das falas de Bolsonaro, mostra o descaso com o tema.

No entanto, o estudo também indicou que até o ano em que se escreve este artigo, ou seja,
metade do mandato de Bolsonaro, em termos práticos o discurso ainda não influenciou na recepção
de imigrantes, em termos quantitativos. Aponta que ainda que a nova gestão que alicerce em uma
postura antimigracionista e securitizadora, as instituições que desde a década de 1980 foram
fortalecidas e implementadas para a proteção dos direitos humanos e acolhimento a imigrantes,
não foram esfaceladas e ainda desempenham seu papel.

É importante ressaltar, no entanto, que esta constituiu-se em uma análise preliminar. Não foi
aprofundado, por exemplo, na análise dos impactos da nova gestão no quantitativo entre diferentes
nacionalidades. Sabe-se que em 2019, contrariando o princípio da reciprocidade, o Brasil dispensou
visto para americanos, japoneses, canadenses e australianos, ao mesmo tempo que a administração
de Trump passou a adotar regras mais restritivas para conceder vistos a brasileiros.

Tabela de Fontes
Michel Temer
Título Data
Discurso durante posse dos novos ministros de Estado 12/05/16
Discurso durante reunião de líderes do BRICS 04/09/16
Discurso durante Reunião sobre grandes movimentos de refugiados e migrantes 19/09/16
Pronunciamento durante abertura do Debate Geral da 71ª Assembleia Geral das Nações
20/09/16
Unidas
Discurso na Cúpula ampliada dos chefes de Estado e de governo do BRICS e do
16/10/16
BIMSTEC
Discurso durante encontro privados dos chefes de Estado e de Governo do BRICS 16/10/16
Discurso durante reunião Ministerial do Cone Sul sobre Segurança nas Fronteiras 16/11/16
Discurso durante cerimônia de abertura do Congresso da Diáspora Libanesa da América
27/11/16
Latina
Discurso durante cerimônia do Dia Internacional em Memória das vítimas do Holocausto 29/01/17
Discurso durante cerimônia de posse dos ministros da Justiça e Segurança Pública e MRE 07/03/17
Discurso durante cerimônia de formatura de duas turmas do Instituto Rio Branco 20/04/17
Discurso durante abertura oficial do Fórum de Investimentos Brasil 2017 30/05/17
1642

Discurso na abertura do debate geral da 72ª Assembleia Geral das Nações Unidas 19/09/17
Brinde durante almoço em homenagem a Evo Morales, presidente da Bolívia 05/12/17
Discurso na abertura da LI Cúpula de Chefes de Estado do MERCOSUL E Estados
21/12/17
Associados
Discurso no encerramento da LI Cúpula de Chefes de Estado do MERCOSUL E Estados
21/12/17
Associados
Discurso durante jantar oferecido pela organização do Fórum Econômico Mundial - Davos 24/01/18
Discurso em sessão plenária da VIII Cúpula das Américas 14/04/18
Discurso durante a formatura Marielle Franco por ocasião do dia do diplomata 20/04/18
Discurso durante a sessão plenária dos presidentes dos Estados partes do MERCOSUL 18/06/18
Artigo: Dois destinos, um só objetivo (O Estado de S. Paulo, 23.07.18) 23/07/18
Discurso na abertura do debate geral da 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas 25/09/18
Discurso na I sessão plenária da reunião de líderes do G20 30/11/18

Jair Bolsonaro
Título Data

Discurso durante cerimônia de Posse no Congresso Nacional 01/01/19


Discurso durante cerimônia de recebimento da faixa presidencial 01/01/19
Declaração à imprensa após cerimônia de assinatura de Atos entre Brasil e Argentina 16/01/19
Entrevista coletiva no Hotel Seehof - Davos, Suiça 21/01/19
Entrevista exclusiva concedida à TV Record - Davos, Suiça 28/01/19
Discurso após se reunir com o presidente da Venezuela, Juan Guaidó 28/02/19
Declaração à imprensa durante conferência de imprensa com o presidente dos Estados
19/03/19
Unidos, Donald Trump
Entrevista coletiva após almoço em homenagem aos formandos do Instituto Rio
03/05/19
Branco
Entrevista para a Rede Fox News, em Washington - EUA 31/07/19
Discurso durante abertura do debate geral da 74ª sessão da Assembleia Geral das
24/09/19
Nações Unidas
Discurso durante reunião com o presidente da República Popular da China, Xi Jinping 13/11/19
Discurso durante cerimônia de encerramento do Fórum Empresarial do BRICS 13/11/19
1643

Palestra na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército 23/11/19


Discurso durante a cerimônia de declaração de aspirantes a oficial da turma "70 anos da
30/11/19
vitória da FEB"
Discurso durante a abertura da reuinão plenária da LV Cúpula de Chefes de Estado do
05/12/19
MERCOSUL e Estados asociados
Discurso durante solenidade de passagem de comando da Operação Acolhida 16/01/20
Discurso durante café da manhã de trabalho com empresários indianos - Nova Delhi,
27/01/20
Índia
Discurso durante almoço oferecido pelo presidente da FIESP 03/02/20
Discurso durante solenidade alusiva aos 400 dias de governo 05/02/20
Discurso durante inauguração da Alça de ligação da ponte Rio-Niterói à Linha
15/02/20
Vermelha
Discurso durante solenidade de inauguração do trecho de pavimentação da BR-163 -
17/02/20
Altamira, Pará
Discurso durante Encontro Comunitário - Miami, Flórida 09/03/20
Discurso durante a sessão de abertura de seminário empresarial Brasil-Estados Unidos 09/03/20
Discurso durante sessão de abertura da Conferência Internacional Brasil-EUA: um
10/03/20
novo prisma nas relações de parceria e investimentos

Referências

Angelico, Gabriela Garcia. O Brasil e o regime internacional para refugiados: uma análise a partir da teoria
crítica de Jürgen Habermas do período entre 1997 a 2018. Tese de doutorado, Ciências Sociais,
Universidade Estadual Paulista, 2019.

Bauman, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2017.

Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

Brito, Fausto. A politização das migrações internacionais: direitos humanos e soberania nacional.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.30, n.1, São Paulo, 2013, p. 77-97.

Frizzera, Guilherme. Análise de discurso como ferramenta fundamental dos estudos de


Segurança – Uma abordagem Construtivista, Conjuntura Global, v.2, n.2, Curitiba, 2013, p.59-63.

Mendes, Pedro Emanuel. A (re)invenção das relações internacionais na viragem do século: O


desafio do construtivismo. Relações Internacionais, n.36, Lisboa, 2012, p.105–118.

Mendes, José Aurivaldo Sacchetta Ramos; Menezes, Fábio Bensabath Bezerra de. Política
Migratória no Brasil de Jair Bolsonaro: “Perigo estrangeiro” e retorno à ideologia de segurança
nacional. Cadernos do CEAS: Revista crítica de humanidades, n.247, Salvador, 2019, p. 302–321.
1644

Oliveira, Antônio Tadeu Ribeiro de. Nova lei brasileira de migração: avanços, desafios e ameaças.
Revista Brasileira de Estudos de População, v.34, n.1, São Paulo, 2017, p.171–179.

Pioversan, Flavia. Tema de Direitos Humanos. 5ª ed., São Paulo: Saraiva. 2012.

Reis, Rossana Rocha. A política do Brasil para as migrações internacionais. Contexto Internacional,
vol.33, n.1, Rio de Janeiro, 2011, p. 47–69.

_________________. Soberania, Direitos Humanos e Migrações Internacionais. Revista Brasileira


de Ciências Sociais, v.19, n. 55, São Paulo, 2004, p. 149-163.

Siciliano, André Luiz. A política migratória brasileira: limites e desafios. Dissertação de mestrado,
Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, 2013.

Quivy, Raymond, e Luc van Campenhoudt. Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa:
Gradiva, 2008.
1645

Uma nova História da África para uma nova sala de aula: estudos
africanos como possibilidades para uma educação antirracista

Tamires Celi da Silva*

Resumo: A lei 10.639/03 que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e cultura africana
e afro-brasileira nas escolas é um significativo instrumento, capaz de gerar frutos que reverberam
na formação de nossa sociedade e consequentemente em suas relações. Entretanto, neste trabalho,
objetivamos refletir sobre os impactos de trabalhar com o conteúdo para além da sua
obrigatoriedade, analisando como o ensino de História da África pode contribuir para uma
renovação epistemológica tanto nos conteúdos quanto nas metodologias de ensino. Partindo da
compreensão que o ensino de história tem como função social a construção de identidades,
entendemos que a renovação epistemológica trazida nos atuais estudos africanos e africanistas que
visam enfatizar a agência história dos sujeitos africanos ao longo do tempo, explorando temas
plurais do continente, se mostram um caminho aberto para desconstrução de estereótipos presente
tanto no ambiente escolar quanto nos diversos meios de comunicação. Além disto, tais trabalhos
ao apontarem o eurocentrismo das narrativas e posturas teórico-metodológica, nos convidam para
a reflexão sobre as práticas de ensino, uma vez que permite problematizar em que medida nossa
atuação enquanto professores são reprodutoras de lógicas eurocentradas e tradicionais, regidas por
lógicas que tendem a marginalizar temas e até mesmo estudantes, produzindo apagamentos e
silenciamentos. Assim, partindo das velhas certezas sobre a história africana, buscamos, ao longo
do trabalho apontar novas questões que permitam pensar o porquê de se renovar a perspectiva
sobre África e tendo em vista que, quando falamos em mudanças metodológicas para o ensino,
falamos também sobre mudanças na prática pedagógica e, portanto, em suas concepções, e com
isso, discutiremos a partir de obras de pesquisadores do chamado sul global, caminhos para
construir uma formação pedagógica com repertório plural, valorizando outros saberes e rumo a
uma educação antirracista.

Palavras-chaves: África, História, Pedagogia.

Muitos trabalhos vêm discutindo sobre a importância do ensino e história da África,


principalmente sobre a ótica da implementação da lei 10.639/03 que garantem a obrigatoriedade
do ensino de História da África e cultura afro-brasileira, sendo um significativo instrumento, capaz
de gerar frutos que reverberam na formação de nossa sociedade e consequentemente em suas
relações, reconhecendo seu papel na formação de cidadãos capazes de conviver num espaço
multiétnico como o Brasil.

Essas pesquisas ofereceram bases para pensar a implementação do ensino dentro do espaço
escolar, suas implicações no que tange currículos, metodologias e ainda o seu potencial na

*Pós-graduanda em Metodologia do Ensino de História no Centro Universitário Internacional (UNINTER), graduada


em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH)
1646

construção de uma sociedade mais equânime. Entretanto, neste trabalho, objetivamos refletir sobre
os impactos de trabalhar com o conteúdo para além da sua obrigatoriedade, analisando como o
ensino de História da África pode contribuir para uma renovação epistemológica tanto nos
conteúdos quanto nas metodologias de ensino.

Nosso empenho neste trabalho, descende da necessidade de analisar para além do com
ensinar, quais as motivações sociais para o ensino de história da África, como o conhecimento
histórico, em especial as abordagens teóricas, influenciam na didática da história, aqui
compreendida como uma teoria geral do aprendizado histórico (Cerri, 2011, p.1), uma vez que em
diálogo com as atuais propostas curriculares para o ensino de história que buscam aproximar o
ensino de história da experiência vivida dos estudantes, faz-se significativo um olhar pedagógico
para a especificidade do ensino de história e de seus processos de aprendizagem.

Objetivando atingir esse olhar, servimo-nos das considerações sobre a “consciência


histórica”, proposta por John Russen, que diz respeito às operações humanas de atribuição de
sentido ao tempo. Entendendo que essa competência não é exclusiva e alguns povos, mas algo
inerente à experiência humana, o autor propõe que o conhecimento histórico está diretamente
ligado às experiências cotidianas, individuais e coletivas, não sendo, portanto, um conhecimento
exclusivo da academia. Significativo ressaltar, de acordo com Cerri:

Da reflexão sobre a história, inerente à vida prática de todo ser humano, à


História como ciência, há uma distância qualitativa e quantitativa, referente a
recursos sofisticados como fontes, métodos e discussão intersubjetiva, mas a
essência da atividade é a mesma: conhecer a si e aos outros no tempo, de modo
a buscar elementos de explicação do mundo para orientar (se) no tempo (Cerri,
2011, p.2)

Nesse sentido, promover a aproximação entre a história escolar e as operações


historiográficas visando a prática pedagógica levanta algumas problemáticas sobre as
especificidades de cada campo. Sendo oportuno destacar o papel da teoria da história na formação
de concepções e visões acerca da história uma vez que através da teoria o historiador expresso
visões de mundo, e de acordo com Barros, quando optamos por um determinado modelo teórico,
passamos a contar com uma série de “mediadores” que nos auxiliam na compreensão da realidade
analisada (Barros. 2011, p.51).

Quais são os conceitos, a linguagem, quais são as hipóteses possíveis a partir daquela
perspectiva, os procedimentos argumentativos e quais os métodos utilizados. Cada teoria traz algo
para o centro do seu debate, e não à toa, esse processo, assim como os assuntos tratados nos
1647

trabalhos historiográficos, não compõem uma totalidade sobre o objeto analisado, mas um recorte,
permeado por escolhas. Ainda sobre a teoria, Bell Hooks pontua que

Tudo o que fazemos na vida está fundamentado em teoria. Seja quando


conscientemente exploramos as razões para termos uma perspectiva específica,
seja quando tomamos uma ação específica, há um sistema implícito molhando
nossas ações e práticas (Hooks, 2019, p. 41).

Nossas posturas pedagógicas também são pautadas em teorias e epistemologias, portanto,


tendo em vista tais ponderações, percebemos que se faz necessário um olhar atento às quais teorias
estão fornecendo as estruturas para os conteúdos trabalhados em sala de aula e ainda o quanto
nossa visão de mundo molda de forma explícita ou não nossas metodologias de ensino.

Partindo das considerações que vêm sendo feitas por estudiosos do chamado sul global,
em especial pesquisadores africanos, nossa pesquisa, de caráter inicial e teórico, buscou analisar o
panorama historiográfico sobre a história da África, recorrendo a bibliografia diversas como teses,
dissertações e artigos que versam sobre o tema, em especial aqueles mais recorrentes nos currículos
escolares atuais. Tendo como base BNCC e as Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das
relações étnico-raciais e suas propostas de ensino, buscamos compreender as representações dos
sujeitos africanos ao longo da historiografia.

No segundo momento, discutimos como a abordagens atuais sobre a História da África


podem contribuir para uma nova construção epistemológica das práticas de ensino alicerçados
numa abordagem antirracista. Por epistemologia entendemos

“toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como
conhecimento válido, e é por via do conhecimento válido que uma dada
experiência social se torna intencional ou inteligível.” (Gomes, 2017, p. 28).

Novas questões para velhas certezas

O conhecimento histórico sobre África vem ganhando novos contornos, não obstante,
tendo em vista que ainda persistem no imaginário social e por vezes acadêmico, estereótipos sobre
o continente, se torna relevante analisar o panorama historiográfico sobre a história africana. Válido
lembrar que a cerca de 50 anos atrás, pensar em uma história da África, era tido como algo
improvável, uma vez que para muitos pesquisadores, o continente não possuía vestígios de um
passado.
1648

De acordo com o sociólogo guineense, Carlos Lopes (1995), podemos demarcar pelo
menos 3 momentos da produção histórica sobre África. O autor organizou essas correntes, naquilo
que definiu como a “pirâmide invertida”.

A primeira corrente, a da “Inferioridade Africana” (1840-1950) pode ser caracterizada


como a tendência a negação da história africana. Essa tendência, surgida num contexto onde as
relações África-Europa estavam marcadas pelo interesse europeu na partilha do continente,
iniciado em finais do século XIX, tendo como marco a conferência de Berlim.

Profundamente marcada por ideias racialistas, a abordagem sobre a história do continente


fora bastante influenciada pelo Darwinismo social, determinismo social e o evolucionismo social.
Importante destacar que nesse período há uma busca de aproximação das ciências humanas com
as ciências da natureza. Essa corrente afirmava que os sujeitos e sujeitas africanas eram
impossibilitados de fazer e narrar sua própria história, e com isso os africanos foram colocados no
primeiro degrau da evolução humana.

As narrativas históricas produzidas nessa perspectiva tendiam a representar os sujeitos


africanos como submissos, incapazes de raciocinar e, portanto, de experiência por exemplo,
organizações políticas, atividades econômicas ou mesmo a existência de instituições sociais
complexas. Tais narrativas, muito influenciados por documentações europeias produzidas sobre os
africanos em contexto de dominação colonial.

A segunda corrente é a da chamada “Superioridade Africana” (1940-1970), surgida no


contexto das independências dos países africanos e do mundo pós segunda guerra, onde o papel
civilizador do Ocidente passou a ser questionado. É um período também de mudanças de
paradigmas do próprio saber histórico, na qual marcamos em especial o alargamento das
possibilidades de fontes para estudos históricos. Nessa esteira, utilizando-se de fontes diversas
como as “tradições orais”, linguísticas, arqueológicas e escritas uma outra narrativa sobre a história
africana passou a ser objeto possível nos horizontes das pesquisas.

Essa corrente é composta majoritariamente por intelectuais africanos e afro diaspóricos, e


tinham como objetivo responder ao eurocentrismo presente nas narrativas sobre África, buscando
provar a existência de uma história do continente. Essa abordagem procurava ressaltar as
qualidades dos povos africanos, além de compreender África como elemento central para história
da humanidade. Essas narrativas buscavam atender a necessidades de histórias nacionais para as
novas nações independentes do continente africano.

É nesse cenário que surgem as ideologias como pan-africanismo e o negritude, que apesar
dos objetivos díspares, tais movimentos buscavam enfatizar uma identidade comum africana.
1649

Apesar dos esforços em superar a narrativa eurocêntrica, essa vertente acabou por incorrer em
erros muitos similares a vertente anterior, o mais evidente foi a exacerbação no enaltecimento da
história africana numa perspectiva afrocêntrica. Além disso, os africanos passaram a ser vistos
como vítimas das ações europeias, dando pouco margem para pensar as agências históricas dos
sujeitos africanos.

Valentin Mudimbe, filósofo congolês, dedica pesquisas no campo epistemológico, que


problematizam as abordagens sobre África. Seus estudos contribuem para uma avaliação dos
elementos e condicionantes externos nas obras que se dedicaram ao tema, apontando os diferentes
regimes enunciativos que sustentam o discurso sobre África.

De acordo com Mudimbe, o que entendemos hoje por África, é resultado de uma série de
construções discursivas do ocidente, sendo as representações sobre África, resultado de um
pensamento etnocêntrico que interferiram na compreensão da realidade concreta. Essas
concepções moldam não só a prática dos agentes externos como também dos sujeitos africanos.
Percebemos que há um potencial de alienação dos sujeitos que são submetidos a essas narrativas e
ao hierarquizar as culturas e saberes, caímos na armadilha da “razão etnológica”, que é uma razão
branca, masculina, amplamente legitimada, mas pouco questionada.

Mudimbe define a episteme ocidental ou etnocentrismo como uma filiação epistemológica


e uma ligação ideológica. Se no ambiente escolar prevalece a filiação epistemológica que afirma que
a única racionalidade cientifica possível tem como suporte teórico exclusivo a perspectiva europeia,
a ligação ideológica ocorre quando a escola reforça uma ideologia, que normalmente tente a ser a
de superioridade ocidental em relação a outros povos.

Ainda, dialogando com Mudimbe, nesse cenário, para além de uma postura crítica, temos
um quadro que resulta da necessidade de emancipação dos sujeitos e suas narrativas para o
exercício da descolonização de saberes e da academia, legitimando também, aquilo que não está
enfocado dentro da “geografia da razão”.

Em uma conferência, realizada na plataforma TEDX, a escritora nigeriana, Chimamanda


Adichie, nos convida a refletir sobre os perigos de uma história única, destacamos um trecho da
palestra

Eu tinha 19 anos. Minha colega de quarto americana ficou chocada comigo. Ela
perguntou onde eu tinha aprendido a falar inglês tão bem e ficou confusa quando
eu disse que, por acaso, a Nigéria tinha o inglês como sua língua oficial. Ela
perguntou se podia ouvir o que ela chamou de minha "música tribal" e,
consequentemente, ficou muito desapontada quando eu toquei minha fita da
Mariah Carey! (Adichie, 2009, 4min, 04s).
1650

Esse trecho ilustra bem, como as narrativas sobre África operam no cotidiano das pessoas,
um conhecimento ligado ao saber colonial, reconhece sujeito africanos como corpos
desconectados do cenário global, engessados no tempo e espaço.

O que me impressionou foi que: ela sentiu pena de mim, antes mesmo de ter me
visto. Sua posição padrão para comigo, como uma africana, era um tipo de
arrogância bem intencionada, piedade. Minha colega de quarto tinha uma única
história sobre a África. Uma única história de catástrofe. Nessa única história não
havia possibilidade de os africanos serem iguais a ela, de jeito nenhum. Nenhuma
possibilidade de sentimentos mais complexos do que piedade. Nenhuma
possibilidade de uma conexão como humanos iguais. (Adichie, 2009, 4min, 41s)

Falar sobre história da África em salas de aula, passa por um caminho epistemológico,
reflexão teórica e prática para se superar a filiação ideológica e epistemológica ocidental, que é
fundamentada na diferença entre o eu e o outro, sendo o outro sempre o representante daquilo
que eu nego em mim na condição de inferioridade. Portanto, é preciso trazer à cena novos temas
de ensino, novos atores sociais, buscando superar a história única africana. É o que tem sido
proposto pelos atuais estudos africanos, nossa última corrente analisada.

A última corrente e mais atual, corresponde aos novos estudos africanos a partir da década
de 1980. Após 2 gerações de estudos africanos, a crítica ao eurocentrismo continua presente nos
trabalhos, mas agora buscando se construir uma análise baseadas em novas epistemologias. Além
disso, novos temas passaram a aparecer os horizontes de pesquisa, marcando a pluralidade do
continente.

A partir das novas interpretações relativas à história africana, novos problemas foram
traçados dentro da disciplina histórica, impactando diretamente nos objetos e temáticas possíveis
de estudo, ampliando teorias, metodologias, abordagens e os discursos, a incorporação de novas
fontes que permitem um olhar multifacetado para África.

Os novos estudos também, visam explorar o continente em sua relação com os demais para
além de mero fornecedor de escravizados, demonstrando que tal qual os demais, o continente
africano contribui na construção do mundo circulando ideias, cultura, tecnologia. A história da
África renovada, surge como expressão da necessidade de novos modelos e posturas dentro da
academia, trazendo questões pertinentes que visam fornecer conhecimentos que contribuam para
a valorização da pluralidade.

O potencial da História Africana é rico ao nos permitir repensar epistemes, os paradigmas


sociais, as relações entre local e global, além de fomentar uma reflexão sobre a prática e a prática
reflexiva. Esse processo nos permite a projetar um olhar humanizado para a educação, uma vez
1651

que a educação pode tanto humanizar quanto desumanizar os sujeitos, se sua prática não se dá em
dialogo com os contextos e processos históricos, sociais e políticos.

Se como percebemos nesse breve panorama, a trajetória historiográfica sobre África é


marcada pelo eurocentrismo das narrativas, ao menos em suas 2 primeiras gerações, nos dias atuais,
vários pesquisadores têm buscado incorporar em suas fundamentações teóricas, estudos de
intelectuais africanos, propondo efetivar uma mudança na geografia da razão, ampliando os
saberes.

Essa reflexão se mostra potente ao analisar a luz das Diretrizes curriculares nacionais para
educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira que visam
atender a demanda da lei 10.639/03 que tem como objetivo “superar as desigualdades raciais
construídas na sociedade brasileira” (Brasil, 2004, p. 12).

Reconhecendo que nosso sistema de ensino, de modo geral, ainda se filiam às


epistemologias eurocêntricas, as considerações oriundas das trajetória da história da África e de
estudiosos africanos, nos ajudam a caminhar em direção a valorização da história e cultura africana,
servindo de base para a construção de projetos, seleção de conteúdo, metodologias que vão em
caminho contrário.

No que diz respeito a aplicabilidade teórica desse conhecimento, propomos um esboço a


partir das competências gerais do ensino de história para o ensino fundamental

1) Identificação - Identificar o objeto de estudo, buscar quebrar a narrativa de


uma história geral africana, como foi feito pelas gerações anteriores, identificando temas
diversos. Importante destacar que nesse momento, torna-se significativo buscar trazer para
sala de aula as especificidades locais pluralizando as histórias sobre formas de pensar e
maneira de viver para além da experiência ocidental.
2) Comparação- Nessa competência é preciso o olhar atento para não criar
situações comparativas entre África e os demais continentes sob o prisma evolutivo, mas
buscar trabalhar através de noções de alteridade as relações entre eu e o outro em suas
aproximações e diferenças, valorizando a diversidade.
3) Contextualização- Localizar temporalmente e espacialmente os lugares
onde ocorrem os eventos analisados. Um exemplo diz sobre as religiões que pode vezes é
tratada num olhar único para todo o continente, deixado de fora a experiências por exemplo
de cristianização, judaísmo, islamismo em prol de se trabalhar na chave de “religião tribais”,
conceito europeu que denota inferioridade.
1652

4) Interpretação- Essa competência pode ser servir bem das ampliações das
fontes e metodologias de análises pois permite levar para a sala de aula além de documentos,
iconográficos, objetos da cultura material, explorar a linguística, demonstrando que a
história não se restringe aos documentos oficiais.
5) Análise - Em se tratando de história, a história problema proposta pela
Escola dos Annales contribui para pautar o ensino em questões do nosso tempo. Interrogar
as fontes e as narrativas se torna um caminho interessante para descortinar preconceitos e
propor reflexões. Essa competência pode ser a mais cara pois requer um instrumental
teórico-conceitual, tornando relevante problematizar a escrita da história, demonstrando
aos estudantes a temporalidade da própria ciência histórica, algo que os estudos africanos
atuais vêm demonstrando empiricamente.

De acordo com a BNCC ‘Todo conhecimento sobre o passado é também um


conhecimento do presente elaborado por distintos sujeitos.’ (BRASIL 2018, p.397) Olhar para o
passado buscando evidenciar a participação ativa de pessoas tidas como submissas na história,
reconhecendo que suas experiências de vida também construíram o mundo em que viveram, por
vezes deslocando a pretensa autoridade colonial, implica em reconhecermos, enquanto professores
que nossas estudantes, no tempo presente, também fazem parte da construção ativa da história e
da sociedade em que vivem.

A luz da história da África, percebemos que são várias as marcas do eurocentrismo racista
em nosso cotidiano, e na escola não seria diferente, a escola enquanto espaço sócio-cultural, imersa
na sociedade moldando-a a sendo moldada por ela, se encontra no cruzamento entre o seu
potencial transformador e seu potencial reprodutor. É preciso assumir uma postura antirracista,
mas essa postura precisa ir além de se levar os conteúdos de África para a sala de aula.

É preciso superar a condição que coloca corpos africanos e afro diaspóricos na margem do
processo educativo. Bell Hooks (2013) aponta para a pedagogia engajada como forma de superar
tais dilemas educativos. Tal concepção entende a educação como prática de liberdade, sendo um
modo de ensinar onde todos podem aprender.

As vozes dos alunos nem sempre são ouvidas para isso, a consciência crítica ajuda
bastante. A educação libertária quando todos tomam a posse do conhecimento
como se fosse este uma plantação em que todos temos de trabalhar (...,) (Hooks,
2013, p. 26)

Para Hooks, o professor não é aquele que transmite conhecimento, mas sim, aquele que
participa do crescimento intelectual e espiritual de seus estudantes. A pedagogia engajada de Hooks,
1653

propõe agir e refletir sobre o mundo com o objetivo de modificá-lo. Questionar os próprios valores
do espaço escolar e promover uma mudança de valores. Ao trabalhar com o termo valores Bell
Hooks demonstra a dimensão humana do espaço escolar e o intuito de uma educação que olhe
para além dos conteúdos.

Tal qual posto pelas diretrizes curriculares para educação étnico-raciais, a função social da
escola em seu projeto antirracista é transformar a sociedade. A existência desses estudantes passa
por transformações significativas que tocam a sua essência.

Ao abrir espaço para uma educação que busque se construir em perspectiva multicultural,
exige-se, no entanto, uma postura crítica, pois não se trata de colocar as diversas culturas em regime
de igualdade apenas, é preciso ir além, demostrando como se constrói as hierarquizações e
problematizar não penas o lugar das minorias como também daqueles que são entendidos coo
norma, demonstrando que estes também são fruto de construções.

O projeto de uma educação antirracista, precisa se comprometer com um processo de


descentramento da geografia da razão.

Quem está autorizado a falar no discurso pedagógico? E por quê? A quem é


direcionado a prática pedagógica empregada em sala de aula? Qual a sua
finalidade? Tais questões nos ajuda a identificar quais são as vozes ouvidas dentro
da ciência pedagógica e do espaço escolar. E se tratando da tradição brasileira, é
possível perceber que nossa prática se baseia em padrões eurocêntricos, o que
reflete no currículo escolar e nos conteúdos selecionados para o ensino e até
mesmo no tempo dedicado a cada um deles. (Silva, 2020, p. 335).

Linda Alcoff traz uma simples e necessária reflexão em seu artigo “Uma epistemologia para
a próxima revolução”, sobre a dominação de uma epstemologia, questiona a autora como “uma
simples epistemologia mestre possa julgar todo tipo de conhecimento originado de diversas
localizações culturais e sociais?” (Alcoff, 2011, p. 131).

Se quisermos promover uma educação antirracista, se faz necessários recorrer a outros


paradigmas que permitam com que ocorra o descentramento e deslocamento da geografia da razão,
pois dentro dos padrões podemos acabar reproduzindo a norma.

A educação antirracista, é por necessidade uma educação contra hegemônica, pois não
emerge dos centros e precisa ir contra a manutenção dos centros. Gomes nos fala da pedagogia
das emergências, que são aquelas que se originam das ausências provocadas propositalmente pelas
estruturas. Elas podem emergir daqueles que foram silenciados, dos saberes da comunidade escolar,
dos sujeitos envolvidos no processo. Emergem da vontade de mudança evidenciando aqueles e
aquelas que foram esquecidos ou subjugados no processo escolar. (Gomes, 2017, p.42)
1654

Considerações finais

Ao longo da exposição, propusemos refletir sobre como a História da África pode ser uma
aliada na elaboração de um projeto de educação antirracista. No entanto, para que isso ocorra,
percebemos a necessidade de se questionar “qual África estou levando para sala de aula?”, uma vez
que a história do continente é marcada por narrativas eurocêntricas.

Percebemos também que as questões levantadas pela disciplina História, no que diz respeito
a produção de saberes sobre África, podem ser questões uteis para pensar além da disciplina pois,
são questões frutos da demanda do nosso presente. Questionar narrativas, paradigmas e normas
são um processo significativo para uma renovação historiográfica tanto quanto para quaisquer
saberes.

Dialogar com o trabalho histórico com a sala de aula potencializa o ensino, oferecendo um
leque de possibilidade para o educador. No caso da história da África, percebemos um alargamento
do potencial das fontes a serem utilizadas e leituras possíveis, construindo com os estudantes a e
partir dos estudantes e suas inquietações. Nesse sentido, a educação engajada de hooks, se mostra
um caminho profícuo para pensar a educação de forma a contemplar saberes fora dos currículos e
que dialogue com os estudantes de forma a contribuir para a formação que caminhe em direção ao
exercício da cidadania, tal como proposto nos atuais documentos educacionais.

O ensino de história, nesse caminho, deixa de ser aquele velho ensino ancorado em decorar
datas, fatos ou nomes que não possuem familiaridade ou sequer vinculo com os estudantes, pois
coloca no centro do processo questões atuais. O saber vem através de problemas que podem
contribuir para o engajamento da turma.

A educação antirracista é para todo mundo! Para a branquidade, é uma forma de se


enxergar enquanto um grupo que também é construído, e analisar o quanto esse local de produtora
de regras é fruto de processos históricos que influenciam até hoje as relações sociais.

Para as minorias, é uma oportunidade de se olhar com novos olhos, descontruindo noções
de inferioridade e olhando para o futuro com perspectivas de mudança, se colocando em cena e
recuperando sua historicidade.

Para os estudantes negras e negros, a educação antirracista é a porta de entrada para uma
sociedade mais equânime, onde seus traços físicos e de sua história são ressignificados, suas cores,
intelecto e saberes são incorporados com valor no mosaico que compõe o espaço escolar
1655

respeitando suas diferenças e permitindo refazer as pazes com o passado construir um novo futuro,
fora das determinações estabelecidas.

África deixa de remeter apenas ao passado, tornando-se referência para o novo.

Referências

Alcoff, Linda M. Uma epistemologia para a próxima revolução. Sociedade e Estado. Brasília, n. 1, v.
31, p. 129-143, jan/abr, 2016

Barros, José D'Assunção. Teoria da História, volume I. Princípios e Conceitos Fundamentais. 1. ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 2011. v. 4. 319p

Brasil. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília,


MEC/CONSED/UNDIME, 2017

Brasil. Ministério da Educação/Secad. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das


relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação
básica, 2004.

Cerri, L. F. A Didática da História para Jörn Rüsen: uma ampliação do campo de pesquisa.
XXIII Simpósio Nacional de História. 2005. (Simpósio).

Adichie, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma História Única. 2009.(18 min, 34s). Disponível
em
<https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?langua
ge=pt-br> Acesso em 27 de Novembro de 2020.

Gomes, Nilma L. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis,
RJ: Editora Vozes, 2017.

Hooks, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Martins Fontes. São Paulo,
2013 [1994]

Hooks, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 3º ed. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019

Lopes, Carlos. A Pirâmide Invertida – Historiografia Africana Feita por Africanos. In: Actas do
Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa: Linopazes, 1995 pp. 21-30.

Mudimbe, Valentin-Yves. Discurso de poder e o conhecimento da alteridade. In: A invenção de


África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Luanda/Mangualde (Portugal): Edições
Mulemba/Edições Pedago, 2013, pp. 15-41.

Silva, Tamires Celi da. Ensino de história da África: rumo a uma educação antirracista. In: Bueno,
André; Kelli, Marcus Vinicius; Veloso, Wendell dos Reis (org.) Diálogos na Rede: História, Educação,
Ensino e Pesquisa. 1a Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UERJ, 2020, pp.333-339.
1656

As Práticas Escolares na Formação da Juventude para a Igreja e para a


Pátria: Cultura Escolar, Civismo e Eugenia no Estado Novo

Tatiane Fátima de Rezende*

Resumo: o presente trabalho busca refletir acerca da formação ideológica da juventude durante
Estado Novo, tendo como foco de análise os discursos cívicos que permearam a cultura escolar
desse período. Partimos do estudo de caso de duas instituições confessionais da cidade mineira de
São João del-Rei: a instituição vicentina Colégio Nossa Senhora das Dores, que formavam mulheres
e o colégio franciscano Ginásio Santo Antônio, para a formação masculina, tomando como central
a análise das construções simbólicas arquitetadas pelo discurso oficial e os significados que tais
discursos tomaram na cultura e nas práticas escolares das instituições. Assim, considera-se o peso
dos discursos ideológicos veiculados na educação, norteados, em certa medida, na pretensão da
construção de uma identidade nacional coletiva em um contexto de amplificação significativa de
políticas nacionalistas. Para isso, utilizamos uma diversidade de fontes escolares, buscando
abranger diferentes possibilidades. Deste modo, jornais estudantis, fotografias escolares,
documentos administrativos e entrevistas com ex-alunos(as) descortinaram as vivências escolares
e deram sentido, a partir de seus diálogos constantes, às experiências que marcaram as vivências de
alunos e professores há quase 100 anos atrás. Percebemos, por meio da análise das fontes, que, se
por um lado a educação é apresentada pelo Estado como o meio estratégico para a disciplinarização
de corpos e mentes, que atuaria no sentido da formação dos cidadãos para a Pátria e dos cristãos
para a Igreja Católica, por outro, os agentes escolares subverteram o sentido cívico e criaram seus
próprios significados às práticas vivenciadas nos colégios.

Palavras-chave: Educação Cívica; Estado Novo; Cultura Escolar; Práticas Escolares.

Em 1993, Dominique Julia influenciou o campo da História da Educação com o artigo “La
culture scolaire comme objet historique”771, derivado da conferência de encerramento que realizou no XV
ISCHE (International Standing Conference for History of Education), ocorrido em Lisboa. Nessa
conferência o autor destacou as possibilidades de aplicação do conceito de cultura escolar na
perspectiva de pesquisas historiográficas, agindo no sentido de ir além dos trabalhos que buscavam
pensar a escola a partir das orientações políticas e pedagógicas externas, não considerando as
negociações e adaptações dessas normas que ocorrem na rotina escolar. Essa crítica do autor abriu
caminhos para se ponderar sobre a construção cultural da escola a partir de suas especificidades e
das relações que possui com as culturas contemporâneas externas (Julia, 2001, p. 9). A partir dessa

*
Graduada e Mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei e doutoranda em Educação pela
Universidade Federal de Juiz de Fora, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Cavalcanti de Albuquerque Lemos.
771
O artigo de Dominique Julia foi publicado em português apenas em 2001 pela Revista Brasileira de História da
Educação com o título “A Cultura Escolar como objeto histórico”, influenciando fortemente as pesquisas sobre
História da Educação no Brasil.
1657

visão, a cultura escolar é pensada como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a
ensinar e condutas a inculcar”, além de ser “um conjunto de práticas que permitem a transmissão
desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (Julia, 2001, p. 9). A perspectiva
apresentada por Dominique Julia inova no sentido em que acrescenta ao recorrente estudo das
normas escolares a preocupação com a análise das práticas escolares772, extrapolando as análises
que viam na escola apenas um meio de reprodução social e as perspectivas que “percebiam a
instituição escolar como triunfo técnico e cívico”, Dominique Julia apontava, assim, aos
historiadores da educação a interrogação sobre “as práticas cotidianas e sobre o funcionamento
interno da escola”. (Faria Filho et al., 2004, p. 144, grifos nossos).

Desse modo, consideramos no presente trabalho a importância de voltar os olhares a essas


práticas que ocorriam dentro dos muros das instituições escolares, considerando que eram nelas
que se materializavam os processos formativos, que não se limitavam a uma simples aprendizagem
de conteúdos curriculares, mas atuavam no sentido da formação moral, religiosa e ideológica dos
sujeitos.

Integrando esse quadro das práticas escolares, as atividades extraclasse, denominadas por
Peixoto (2003) como atividades de socialização (tais como grêmios estudantis, redação de
jornais escolares, excursões, solenidades cívicas e religiosas, campeonatos esportivos, apresentações
de peças teatrais, etc.) são recorrentemente citadas pela historiografia educacional como lugar de
formação ideologicamente orientada. Segundo a autora, tais atividades foram introduzidas no
currículo por Francisco Campos, sendo vistas “como a melhor maneira de se combinar a energia
espontânea da criança e do adolescente, com a necessidade da formação do sentimento social e
religioso” (Peixoto, 2003, p. 112-113). Neste sentido, a autora destaca a necessidade de considerar
tais atividades sob o cenário de uma nova postura de orientação escolar, que envolveu novos
métodos e processos de ensino, fortemente delineada por seu caráter ideológico.

Assim, há de se considerar, a partir de ponderações feitas em trabalhos anteriores, o peso


significativo dos discursos ideológicos veiculados na educação, principalmente no que se refere ao
período do Estado Novo, norteados, em certo sentido, na pretensão da construção de uma
identidade nacional em um contexto de amplificação significativa de políticas nacionalistas por
parte do Estado.

772
O artigo Cultura Escolar como categoria de análise e campo de investigação na história da educação brasileira, dos autores Faria
Filho, Vidal, Gonçalves, Paulilo (2004) aborda exatamente como as pesquisas de cultura escolar na historiografia
educacional brasileira ganhou fôlego e o papel que Dominique Julia, juntamente com outros autores tem nessas novas
abordagens.
1658

Tendo em vista as considerações apontadas acima, ressaltamos que este artigo é fruto de
uma pesquisa que busca a compreensão do tipo de formação educacional que ocorreu durante o
Estado Novo, centrando as análises em duas instituições confessionais da cidade mineira de São
João del-Rei: o Colégio Nossa Senhora das Dores, fundado em 1898 pelas vicentinas (voltado para
a formação feminina de jovens professoras) e o Colégio Santo Antônio, fundado em 1909 pelos
franciscanos (com foco na formação de rapazes pertencentes às elites econômicas de Minas e de
outras regiões do Brasil), por meio da análise das práticas escolares vivenciadas pelos estudantes
que tomam forma na materialidade das fontes (documentos administrativos, fotografias e jornais
escolares) e nas memórias de sujeitos participantes do processo (desvendadas por meio de
entrevistas com ex-alunos).

Neste sentido, foi data a ênfase na análise da aplicação de certas atividades (como os
grêmios, competições esportivas, desfiles cívicos, etc.) como meio para a formação de
determinados saberes e habilidades nos alunos e alunas, considerando as adaptações pedagógicas
das instituições religiosas e das formas como foram vivenciadas nas relações escolares ao longo do
tempo.

Podemos dizer que um dos elementos mais marcantes quando consideramos a cultura
escolar durante o Estado Novo refere-se ao “conteúdo nacional”, trabalhado por Schwartzman,
Bomeny, Costa (1984), e sua figuração importante nas práticas educativas. Sobre este aspecto,
ressaltamos, em um primeiro momento, que a temática tornou-se objeto de uma quantidade
significativa de trabalhos. A partir de diferentes lugares de formação (clubes esportivos, grêmios
escolares, jornais escolares, solenidades cívicas e religiosas, etc.), nos quais percebemos análises que
buscaram compreender não apenas as determinações do governo na implantação dessas práticas,
mas também nas formas pelas quais elas ocorreram de fato nas vivências dos sujeitos escolares,
atentando, em grande medida, para a recriação de sentidos a partir das diversas apropriações dos
grupos sociais.

Tal conteúdo nacional foi introduzido nos Colégios aqui analisados por meio da
implantação de diferentes práticas escolares, em especial, nas atividades de socialização. Segundo
Peixoto (2003), essas atividades foram integradas no currículo das instituições educativas mineiras
na reforma realizada por Francisco Campos, em 1927, sendo tomadas como meio propício para a
formação de princípios e valores patrióticos na juventude. Com a centralização do sistema de
ensino em 1930 e, em especial, com a implantação do Estado Novo, em 1937, o uso de tais
atividades foi ampliado e ganhou maior força dentro das instituições escolares, contando com as
orientações e fiscalização das instâncias administrativas educacionais. Ainda com a autora, tais
atividades integraram um cenário de amplas mudanças e a adoção de uma nova postura de
1659

orientação escolar, que envolveu diferentes métodos e processos de ensino, fortemente delineada
por discursos ideológicos. Desse modo, “a socialização não se limitava à fundação de grêmios e
clubes, à organização de auditórios e reuniões sociais, de jornais escolares ou excursões” (Peixoto,
2003, p. 113), elas integravam “toda a vida escolar, tendo por objetivo dar ao aluno qualidades e
hábitos que lhe pudessem assegurar a convivência harmoniosa com seus semelhantes, tornando-o
capaz de agir sobre estes no sentido de uma perfeição maior” (Paiva apud Peixoto, 2003, p. 113).
Neste sentido, Peixoto (2003, p. 113) lembra que, “grande parte da importância atribuída à
socialização deveu-se, portanto, ao seu potencial ideológico”, o que justifica a seriedade com que
foram orientadas nas instituições de ensino. Desse modo, chamamos a atenção para um discurso
do governador Benedito Valadares de Minas Gerais, publicado no impresso oficial “O Minas
Gerais” em 1942 e citado por Peixoto (2000, p. 99), no qual o governador faz um balanço sobre as
ações do governo na educação, abordando, especificamente, as atividades de socialização:

As atividades extraclasses e as instituições educativas e de assistência escolar são


hoje parte integrante da organização do Ensino Primário. A quase totalidade dos
grupos escolares do Estado tem biblioteca, museu, periódico infantil, cantina e
caixa escolar como fatores de maior frequência da escola e de melhor rendimento
nos resultados da escolaridade (O “Minas Gerais” apud Peixoto, 2000, p. 99).

O trecho é significativo no sentido em que assinala a preocupação e importância conferida


pelas instâncias da administração escolar no processo formativo da juventude, atribuindo especial
atenção às atividades marcadas por norteamentos ideológicos, traço importante da educação
estadonovista. Sobre esse aspecto, observa-se a recorrência de correspondência e orientações dos
fiscais de ensino (registradas nas atas das instituições escolares estudadas), norteando a execução
de atividades específicas nas datas cívicas ou em outros momentos do calendário escolar, muitas
vezes apresentando o programa exato a ser executado. Obviamente, há limites para se confirmar
se a execução das práticas ocorria segundo as programações pré-determinadas, sendo provável o
descumprimento e a reconstrução de sentidos na vivência diferenciados à intenção inicial. Porém,
registra-se nas fontes escolares do período estadonovista, a intensa preocupação com essas práticas
específicas e recorrente interferência dos fiscais de ensino na sua orientação e execução, como
demonstra a fonte a seguir:

Irmã Jardim
Colégio Nossa Senhora das Dores
Recebi satisfação notícia expressiva solenidade cívica em que esse educandário
festejou aniversário presidente e dia juventude brasileira.
1660

Gustavo Capanema – Ministro da Educação e Saúde.773

O trecho atesta ainda a comunicação entre a fiscalização e os órgãos de administração


educacional, abordando um tema considerado importante o suficiente para ser emitida a
correspondência apresentada.

As atividades de socialização, caracterizadas fundamentalmente por serem vivenciadas nos


espaços extraclasse, são as práticas mais registradas nas fontes escolares e recorrentemente
lembradas nas entrevistas de ex-alunos(as), consistindo em momentos diferenciados de formação,
e, exatamente por isso, passíveis de serem registrados em fotografias, citadas nas páginas dos jornais
escolares, discutidas nas reuniões de fiscais e professores e marcadas nas memórias dos(as)
antigos(as) alunos(as) das instituições. As atividades mais comuns aplicadas nos Colégios estudados
foram os jornais escolares774, os grêmios e clubes estudantis (em especial, os religiosos, os
esportivos e os literários), os grupos musicais, as festas cívicas e religiosas, as sessões de auditório
(com palestras e exibição de filmes), as competições esportivas, os passeios e excursões, as
apresentações teatrais, entre outras.

Dentre todas as atividades vivenciadas nas instituições escolares, as solenidades cívicas


são as que mais foram utilizadas como estratégias775 de veiculação do conteúdo nacional na educação
estadonovista, tendo na aplicação desse discurso cívico a sua maior finalidade. No tocante às fontes,
essas atividades são recorrentemente abordadas nas diferentes fontes e tem como principais temas
as comemorações vinculadas a datas do calendário cívico, em especial o 21 de Abril (dia de
Tiradentes), o 19 de Abril (dia da Juventude Brasileira e aniversário de Vargas), o 7 de Setembro
(Independência do Brasil) e textos abordando o 11º Regimento de Infantaria de São João del-Rei
e a sua participação na Segunda Guerra Mundial776.

Além de abordar diretamente o conteúdo cívico da educação, as solenidades cívicas


consistiam em práticas marcadas fortemente por um caráter militarizado, que exigia disciplina,
compenetração e treinamento. Essa militarização das práticas educativas integrou as medidas do

773 Esse telegrama foi enviado pelo Ministro da Educação e Saúde Pública Gustavo Capanema ao Colégio Nossa
Senhora das Dores, tratando diretamente das solenidades de 19 de abril, na qual se comemorava o aniversário de
Vargas e dia da Juventude Brasileira. O telegrama encontra-se anexado no livro de Registro de Ofícios e Outras
Correspondência e é datado de 29 de Abril de 1941 (p.13-verso), sendo também publicado no jornal Stella Maris,
acompanhando os artigos e fotografias sobre a citada solenidade (Stella Maris, ano XII, Abril de 1941, n.2, p.1).
774 Stella Maris do Colégio Nossa Senhora das Dores e O Porvir do Colégio Santo Antônio.
775 Baseamos nossas análises a partir dos conceitos de “estratégias” e “táticas” trabalhadas por Michel de Certeau, em “A

Invenção do cotidiano 1 – a arte do fazer”.


776 O registro das solenidades cívicas ocorre nas diferentes fontes escolares, como documentos oficiais, fotografias e

jornais escolares. Nestes, aparecem registros nas edições de 1940, nº 2 e 7; em 1941, nas edições nº 2, 4 e 7; em 1942,
nas edições nº 2,6, 7, 8 e 9; em 1943 nas edições nº 1 e 6; em 1944, nas edições 1 e 6; e em 1945, nas edições 1, 2 e 6.
1661

governo Vargas na educação, especialmente após a criação da Juventude Brasileira. O trecho a


seguir, da entrevista com a ex-aluna do Colégio Nossa Senhora das Dores, Nelly Guedes,
demonstra características importante dessa tendência, tratando diretamente as comemorações da
Independência do Brasil e da Proclamação da República:

Tinham os desfiles cívicos, de todas essas datas: 7 de Setembro, 15 de Novembro,


toda parada que tivesse, a gente ia. Então, antes do tempo, a gente treinava a
marcha. Já começava nas aulas de Educação Física, nós marchávamos também,
e antes... Algumas semanas antes do desfile, a gente ia para a rua, para treinar a
marcha (...). E o Colégio sempre se destacava nesses desfiles, era muito bem
treinado, muito bem elogiado. Os nossos professores de Educação Física eram
militares, e quem acompanhou mais durante o meu tempo foi o Tenente Mário
Cezar777

As aulas de Educação Física eram regidas por militares, que se responsabilizavam pela
formação física dos alunos e alunas e pelo treinamento e preparação dos desfiles, que ocorria de
forma semelhante no Colégio Santo Antônio. Os dois tipos de atividades escolares possuíam uma
marcante preocupação com a formação ideológica, aliando discursos que envolvessem conteúdo
patriótico, eugênico e de formação moral. Segundo Vaz (2006), esse “formato militarizado”
vivenciado em especial nas solenidades cívicas atuavam no sentido da “formação de uma juventude
nova”, que se intensificou com o contexto da Segunda Guerra Mundial, exprimindo a formação de
“uma juventude destemida e moralizadora, exemplo a ser seguido pelo país como modelo
educativo e do futuro” (Vaz, 2000, p. 49). As fotografias apresentadas abaixo corroboram essas
prerrogativas da educação cívica e são elucidativas do tipo de prática que se orientava nas
instituições escolares estudadas no presente trabalho.

A fotografia apresentada a seguir exibe características fundamentais desse tipo de prática,


que se mostra recorrente em outras imagens que abordam a mesma temática. Desse modo, ela
destaca, em primeira observação, a uniformização dos alunos, apresentada não apenas no
uniforme do Batalhão Colegial778, específico para as solenidades cívicas, mas também na sua postura
disciplinada, com braços estendidos na lateral do corpo, na disposição ordenada dos corpos, com
a distribuição dos alunos em pequenos pelotões liderados cada qual por um estudante que, por sua
vez, tem à frente alunos portando a bandeira e representando as Forças Armadas do Brasil.

777 Entrevista com Nelly Guedes, realizada em 12 de Agosto de 2016, na cidade de São João del-Rei.
778 Nome dado aos alunos organizados para as solenidades cívicas, sendo recorrentemente usado nas fontes escolares.
1662

Fotografia 01: Alunos do Colégio Santo Antônio em concentração no pátio da instituição, na solenidade cívica de 7 de Setembro de
1945. Fonte: Acervo Pessoal Luís Antônio Ferreira, fotografia nº 460.

Além disso, os alunos são classificados segundo sua altura, alternando pelotões de alunos
maiores e alunos menores, construindo uma imagem portadora de regularidade. Tais
características, aliadas às ideias de homogeneidade, ordem, disciplina e hierarquia que
permeiam o conteúdo da imagem, demonstram uma perspectiva militarizada da prática educativa,
como nos indicam Schwartzman, Bomeny e Costa (1984), aproximando os alunos da figura de
soldados dispostos aos esforços em prol da Pátria. A construção dessa representação é corroborada
pelo apagamento da individualidade, que evita posicionamentos dissonantes e posturas irregulares,
dando atenção à representação da coletividade organizada e empenhada em uma finalidade em
comum. O que destoa dessa construção homogênea da imagem causa uma quebra na regularidade
e ressalta a individualidade em detrimento do coletivo, como ocorre com o primeiro aluno da quarta
fileira (no segundo pelotão), que posicionando os braços na frente de seu corpo (e não nas laterais
como os demais) e olhando para um lado diferente do conjunto dos estudantes, se sobressai em
relação aos demais e destaca a sua individualidade. Obviamente, a dissonância causada pelo aluno
não compromete o conteúdo da fotografia, que mantém a predominância das características
citadas, como homogeneidade, disciplina, hierarquia, etc., porém causa uma rápida quebra na
regularidade, retomada quando se passa a observar a fotografia como um todo.
1663

A fotografia causa um impacto no observador, demonstrando a força que decorre da


organização coletiva e ordenada dos estudantes. Soma-se a isso a visão panorâmica da arquitetura
do Colégio Santo Antônio, que compõe o segundo plano da imagem e corrobora, com a sua
imponência característica, as perspectivas de força e coletividade da imagem. Além disso, a
arquitetura da instituição ressalta o pertencimento dos alunos, deixando claro que eles representam
a instituição na solenidade cívica em questão, consistindo em momento não apenas de elogio e
rememoração à data cívica (nesse caso, o 7 de Setembro), mas de valorização e destaque do próprio
Colégio e da formação que ocorre na instituição, que, segundo a imagem, seria ordenada,
disciplinada, equilibrada e eficiente.

A fotografia apresentada na página seguinte, referente à solenidade cívica do Colégio


Nossa Senhora das Dores, possui aproximações significativas com a imagem do Colégio Santo
Antônio, demonstrando certa predominância nas características das fotografias desse tipo
específico de prática escolar. Ela retrata as alunas do Colégio Nossa Senhora das Dores no desfile
cívico realizado no dia 19 de Abril de 1943, em comemoração ao aniversário do presidente Getúlio
Vargas e ao Dia da Juventude Brasileira, data que fez parte do calendário cívico nacional no período
entre 1940 e 1945.

O primeiro elemento que se destaca ao observar a fotografia refere-se ao caráter


disciplinar e da ordem tomado pelas alunas, todas em fileiras linearmente disposta, com uniforme
de gala e portando-se igualmente entre si. Esses elementos das alunas no desfile cívico também
podem ser considerados a partir da perspectiva da militarização das práticas educacionais, por meio
da ênfase conferida aos discursos da disciplinarização, da manutenção da ordem, do apagamento
da individualidade e dos discursos de valorização da Pátria representadas na imagem. Além disso,
ressalta-se ser comum as solenidades cívicas no Colégio Nossa Senhora das Dores abordarem, além
do discurso de valorização ufanista da Pátria, a valorização da Igreja Católica, associando temas
cívicos e religiosos, e a própria exaltação da instituição, apresentando as alunas enquanto
representantes do Colégio Nossa Senhora das Dores (cuja fachada se ergue de forma imponente
ao fundo da imagem), expondo à comunidade externa os valores e eficiência da formação oferecida
pela instituição.
1664

Fotografia 02: Alunas do Colégio Nossa Senhora das Dores em desfile cívico em frente à instituição, nas comemorações do aniversário
de Vargas e Dia da Juventude Brasileira, em 1943. Fonte: Stella Maris, ano XIV, n. 3, Maio de 1943, p.3.

Abordando esta mesma característica das solenidades cívicas, Corrêa (2009, p. 132) aponta
que “o ‘Desfile da Juventude’, de forte apelo nacionalista se consagrava como o momento de
divulgar os princípios da disciplina e da ordem – bem como de culto aos símbolos nacionais – que
emanavam dos jovens em marcha empunhando a bandeira do Brasil, seguidos pelos demais
estudantes simetricamente posicionados que vinham logo atrás”.

Assim, os desfiles cívicos congregam tanto a propaganda política do governo Estadonovista


quanto a divulgação do ensino executado nas duas instituições escolares, veiculando sempre noções
de ordem, disciplina e de uma formação alinhada às exigência contextuais. Assim, a estratégia
governamental mescla-se a tática institucional, veiculando diferentes significados em uma mesma
prática escolar.

O jornal Stella Maris publicou nas edições do mês de Abril entre 1941 e 1945 uma série de
textos explorando as citadas solenidades do dia 19. Destacamos um artigo presente na primeira
página da edição nº 2 de 1941. O artigo, denominado “As comemorações do dia 19 de Abril”,
enfatiza a adesão do Colégio Nossa Senhora das Dores “às justas homenagens que o povo brasileiro
tributou ao grande presidente Vargas, ao ensejo da comemoração de mais um ano de sua preciosa
1665

existência” e destaca que, “naquela data, consagrada à juventude brasileira, fez inaugurar no seu
salão nobre o retrato deste grande patriota, que tão alto tem elevado nossa Pátria, e cujos destinos
tão sabiamente dirige” (Torres, 1941, p. 1). No próximo trecho, referente ao mesmo texto, a aluna
fala sobre o governo durante o Estado Novo:

Em 10 de Novembro de 1937, criou o Estado Novo, traçando um programa, em


cuja execução tem empregado o máximo de seus esforços e cujas finalidades são:
o bem estar do povo e o desenvolvimento de nossa Pátria. Sua Excia no poder
tem sido um sábio. Governar sem ódios, sem vinganças, com o coração
cheio de bondade e tolerância, virtudes que possui no mais alto grau. Em
defesa porém de nossos direitos, Sua Excia. tem demonstrado, que possui um
braço forte que não se verga e nem se intimida, seja qual for a ameaça e venha
donde vier. Está sempre na arena, pronto a defender nossa Pátria e nossa honra,
contra qualquer agressão. (Torres, 1941, p. 1).

Como já indicamos anteriormente, o 19 de Abril referia-se a duas comemorações


importantes para a propaganda do Estado Novo: o aniversário de Vargas e o dia da Juventude
Brasileira. Porém, como se percebe no trecho destacado, a segunda comemoração é rapidamente
citada, sendo o tema central as comemorações ao aniversário natalício do presidente. Esse
apagamento do dia da Juventude Brasileira é percebido em outros textos abordando o mesmo
tema, sendo enfatizadas as comemorações do aniversário de Vargas, cujos valores e qualidades o
colocaria como “o primeiro brasileiro da nação”, qualificando o presidente como um homem sábio,
bondoso, tolerante, honrado e firme no seu papel, responsável em guiar o Brasil a um futuro
glorioso. Esse tipo de caracterização aparece em todas as publicações do Stella Maris que citam o
presidente, construindo um discurso idealista, de modo a personificar na figura de Vargas as
qualidades e méritos a serem tomados como exemplo pelas alunas do Colégio. O texto a seguir,
publicado em Abril de 1943, reforça essa visão que, por um lado, estabelece qualidades a serem
seguidas e, por outro, cria uma representação que distância Vargas dos homens comuns, excluindo
qualquer traço que possa ser considerado um defeito ou desvio na personalidade do presidente:

Essa figura que empolga a nação brasileira, e todo o continente americano,


representa para nós, que amamos a nossa Pátria, o marco simbólico pelo qual
todos nós devemos nos guiar. O Dr. Getúlio Vargas que, desde os primórdios
de sua vida, sempre teve clara visão patriótica, soube norteá-la para a grandeza
de sua Pátria.
(...) Fadado a um alto destino e guiado pela mão de Deus, veio desempenha-lo
como chefe da grande nação brasileira, à qual vem dando o melhor de sua
inteligência com grande proveito para o Brasil.
Tomando as rédeas do governo, com seu coração grande e bondoso nunca
procurou valer-se de seu alto posto para vingar-se de seus inimigos. Pelo
contrário, sempre os tratou com carinho de pai. A sua figura empolgante e
simpática tem atraído para o Brasil a admiração dos povos. Getúlio Vargas,
1666

pulso de ferro, inteligência lúcida, coração magnânimo, vem guiando os


destinos da nação desde a vitória revolucionária de 1930.
Não podíamos deixar de cantar aqui a glória da grande data que se comemora a
19 de Abril. Juntamo-nos, portanto, aos sentimentos de todos os bons brasileiros
para dizer num arrombo de entusiasmo patriótico: ‘Viva o nosso Presidente!’
(Hanas, 1942, p. 2).

A representação construída sobre o presidente centra-se em dois elementos: por um lado,


o carisma, a simpatia, a sabedoria, o “coração magnânimo”, o caráter compreensivo, que
demonstraria características adequadas para serem tomadas como exemplo à formação das alunas,
considerando-o “o marco simbólico pelo qual todos nós devemos nos guiar” (Hanas, 1942, p. 2).
Por outro, é ressaltado o seu “pulso de ferro” ou “braço forte”, que remete ao poder que possui e
à forte intervenção de seu governo nos diversos setores da sociedade, sendo essa postura justificada
em nome da defesa da Pátria e da honra dos brasileiros (Torres, 1941, p. 1).

Neste mesmo sentido, Lacerda (1994) ressalta que, o conteúdo nacionalista característico
do Estado Novo, veiculado fortemente na propaganda política e na educação, teve como fator
importante a construção de representações que personificavam o “Estado na figura do presidente
Getúlio Vargas”, levando a uma “construção mítica da figura do chefe da nação como condutor e
centro das decisões. Um homem que representava a própria nação de desenvolvimento harmonia
social” (Lacerda, 1994, p. 247). Para a autora, Vargas recorrentemente aparece na propaganda
política como o gerente, o construtor, o defensor da Nação, que orienta o progresso e que regulava
os conflitos, em nome do estabelecimento da ordem e unidade nacional.

A formação do sentimento nacionalista e do civismo às meninas do Colégio Nossa Senhora


das Dores buscou enfatizar a exaltação à imagem da pátria, como bela, forte, unida e de homens
dessa pátria, representados como àqueles responsáveis pela sua prosperidade. Neste sentido, é
atribuída aos homens (e nunca às mulheres) a função de engrandecer o país, enquanto às mulheres
cabe apoiá-los a partir de sua atuação como esposas, mães e, no máximo, professoras formadoras
das futuras gerações. Neste sentido, as práticas e discursos cívicos direcionados para as jovens
estiveram relacionados ao papel social atribuído às mulheres no contexto histórico, cujas melhores
possibilidades profissionais era diretamente relacionadas à vida no lar ou à maternidade.

Por outro, os discursos sobre o presidente localizados nas fontes do Colégio Santo Antônio
acrescentam a essas representações outra qualidade considerada fundamental: a liderança. Vargas é
descrito, acima de qualquer outra característica, como um homem de ação, que “assume as
responsabilidades” e lidera o país por meio de decisões e atitudes. O texto a seguir, de 1943,
denominado “Estado Novo” e assinado pelo aluno Saulo Leite do 1º ano Colegial, é significativo
nesse sentido.
1667

‘Meus amigos, os acontecimentos revelam os homens e experimentam os povos’.


O povo cujo chefe não assume as responsabilidades do governo, está
incapacitado de vencer a adversidade.
Os brasileiros vemos, em o Presidente Vargas, o chefe de visão panorâmica e
inteligência percursora, capaz de grandes realizações ao Brasil e à causa
pública que é de seu particular interesse.
O operário, no Brasil, já tem melhores condições que em outros povos, tem
deveres, mas a estes correspondem direitos. Getúlio Vargas louvou o operariado
nacional pela lealdade e inteligência de sua cooperação com o governo, que lhe
soube interpretar as legítimas aspirações e defender-lhes os justos interesses.
O Brasil, desde 1930 marcha para o progresso não apenas glorificando homens,
mas demonstrando a adesão das suas novas gerações.
Do povo, pelo povo, para o povo, eis as bases sólidas da perfeita democracia que
imortaliza para sempre o nome de S. Excia o Presidente Getúlio Vargas.
Unidos debaixo dessa bandeira, que é a imagem viva de nossa Pátria, alusão a
nossos heróis, esperamos a voz de comando para repelir o inimigo que arruína
povos e destrói civilizações.
O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever; trabalhemos portanto,
pautemos nossa conduta para sermos protegidos de Deus e respeitados pelos
vândalos que visam, além de seus horizontes. Que seria de nós se víssemos nossa
Pátria, que, à custa de suor e sangue nos foi entregue gloriosa, manchada pelo
desonra e derrota, nosso lar em ruinas e nossos pais e irmãos tiranizados pelos
ismos do inimigo?
Ó jovens do Brasil,somos responsáveis pelo Brasil de nossos pais no dia de
hoje e pela sua grandeza no dia de amanhã (Leite, 1943, p. 7).

Desse modo percebemos que, as práticas de conteúdo nacionalista aplicadas nas


instituições e os discursos que as permeiam sofreram adaptações na sua aplicação, enfatizando os
elementos que canalizam qualidades intelectuais e morais consideradas pertinentes à formação dos
alunos e das alunas. Assim, enquanto as solenidades do 19 de Abril no Colégio Nossa Senhora das
Dores enfatizam os louvores ao Vargas bondoso, gentil, inteligente, caridoso e sempre disposto à
perdoar seus inimigos (Hana, 1942, p. 2), o elogio ao presidente nas comemorações do Colégio
Santo Antônio soma à essas características o seu dinamismo, liderança e força, tornando-o capaz,
com “a sua voz de comando”, de liderar o Brasil no caminho do futuro glorioso. Para isso, seria
necessário que “cada um cumpra o seu dever”, congregando forças a essa liderança, de modo que
se ressalta a importância da adesão da sociedade brasileira, especialmente os trabalhadores e a
juventude.

Dessa forma, o sentido do verdadeiro patriotismo estaria nos homens que lutam, trabalham,
produzem, agindo para o crescimento do país e demonstrando esse patriotismo “em atos mais do
que em palavras, em ação mais do que em contemplação”. Desse modo, apresentam-se
características e qualidades consideradas importantes para a formação dos alunos, orientando-se
para que se tornem adultos dinâmicos, qualificados e moralmente “corretos” para a sua atuação
profissional futura. Neste ponto, aparece novamente a especificidade da formação nas duas
instituições escolares, considerando que o discurso nacionalista do Colégio Nossa Senhora das
1668

Dores centrou-se no sentimentalismo distanciado dessa ação prática, tributando às alunas as


funções amar e reverenciar e, especialmente, ensinar às crianças e aos seus futuros filhos esse
sentimento patriótico, enquanto lutar pelo país estaria nas mãos de figuras masculinas, como
Vargas, os Expedicionários, entre outros citados em vários momentos nos textos sobre o tema.
Essa distinção na orientação formativa dos gêneros aparece também no decreto de Criação da
Juventude Brasileira, estipulando que aos jovens alunos deve ser ensinado o “amor ao dever
militar,a consciência das responsabilidades do soldado e o conhecimento elementar dos assuntos
militares”, enquanto na formação feminina orientava-se “o aprendizado das matérias que (...) as
habilitam a cooperar, quando necessário, na defesa nacional”779. Enquanto aos jovens alunos cabem
a preparação para lutar na defesa e progresso da Pátria, às alunas, futuras professoras e,
especialmente, mães de família atribui-se a função de apoiá-los.

Além disso, ressalta-se ser comum nas solenidades cívicas nesse período a aproximação
entre o conteúdo nacional veiculado nessas práticas e o discurso religioso próprio das instituições
confessionais. Autores como Schwartzman, Bomeny e Costa (1984) e Vaz (2006, 2012), nos entrava
em choque com as orientações militarizantes da educação, auxiliando na consolidação de tais
premissas. Assim, a utilização estratégica de valores como ordem, disciplina, submissão, respeito às
hierarquias, etc. veiculados nas práticas escolares orientadas pelo Estado, encontraram nos
discursos religiosos das instituições confessionais o apoio necessário para a sua consolidação e sua
ampla aplicação. Assim, Vaz (2006, p. 45) indica que essa aproximação entre o discurso
“salvacionista e religioso das festas cívicas” se integraram ao universo cultural do período e geraram
adesão de diferentes grupos sociais, buscando enfraquecer conflitos e dissonâncias à essa visão de
mundo.

A recorrência do conteúdo religioso nas atividades cívicas foi localizada nas fontes das duas
instituições, integrando os programas aplicados nas datas cívicas, iniciados geralmente com uma
celebração religiosa (que já ocorriam diariamente nos dois colégios). Do mesmo modo, a própria
aproximação das personalidades políticas e históricas ovacionadas nas datas cívicas aos valores
cristãos foi bastante recorrente, ressaltando sempre o papel da fé como guia na ação de tais
personagens, além da associação direta entre a grandeza do Brasil como decorrente da religião
predominante de seu povo.

Além das práticas religiosas, as atividades esportivas também foram amplamente aplicadas
durante as comemorações cívicas, por meio de competições (especialmente, vôlei, futebol e
basquete), demonstrações de ginásticas, além do próprio desfile, organizado e ensaiado durante as

779
“Criada a Juventude Brasileira”, localizado anexado ao Relatório de 1940, sem registro de página.
1669

aulas de Educação Física, com a orientação do professor a cargo de tal disciplina. Essa abordagem
da educação física escolar foi decorrente do estabelecimento de uma nova relação entre política e
esporte, passando o Estado a enfatizar a preocupação com a formação física da juventude e a
associar diretamente a prática de esportes e a constituição do sentimento cívico (Parada, 2006, p.
155).

Neste sentido, essas atividades, vivenciadas de diferentes modos no universo escolar, foram
tomadas como práticas pautadas pela orientação desse conteúdo, na aproximação entre a ideia de
formação física e formação moral. Segundo Parada (2006, p. 174), “nas cerimônias cívicas, a
educação física torna-se uma disciplina moral fornecendo subsídios para a construção de valores
públicos e coletivos, como as ideias de disciplina, solidariedade com a comunidade nacional, ordem,
saúde e modernidade”. A partir de uma vinculação direta entre educação do corpo e formação
cívica, religiosa, moral e intelectual, a educação escolar foi fortemente orientada durante o Estado
Novo no sentido da formação do caráter da juventude, a fim de evitar desvios morais, a “anomalia”
social e a fraqueza física.

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Seminário Nacional de Pesquisas 'História, Sociedade e Educação no Brasil' - PPGH-UFPB, 2012.
Acesso em Fevereiro de 2013. In: www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/.../3.49.pdf
1671

Comando Vermelho e Ditadura: De que forma a ditadura civil-


militar brasileira influenciou na criação do Comando Vermelho de
1979-1985?

Valentina de Carvalho Calderon*

Resumo: o presente trabalho busca compreender como a ditadura civil-militar brasileira


influenciou a criação da facção Comando Vermelho de 1979 a 1985. Por meio da análise da fonte
“400x1”, livro escrito por William da Silva Lima, e outros materiais que serviram de apoio, concluí
que a sistematização da violência praticada pelo regime militar (1964-1985) teve efeitos no
comportamento dos encarcerados do Presídio Cândido Mendes de tal forma que o Comando
Vermelho nasceu como uma necessidade de sobrevivência.

Palavras-chave: Ditadura militar, comando vermelho.

Abstract
The present work seeks to understand how de Brazilian civil-military dictatorship influenced the
creation of the Comando Vermelho faction from 1979 to 1985. By analyzing the font “400x1”
written by Willian da Silva Lima and other materials that served as support, I concluded that the
systematization of the violence practiced by the military regime (1964-1985) had such an effect on
the behavior of the prisioners at the Cândido Mendes prison that the Comando Vermelho was
born as a necessity to survive.

Keywords: military dictatorship, red command.

Introdução

Busco por meio desta pesquisa compreender de quais formas a Ditadura Militar do Brasil
de 1964-1984 foi responsável, direta e/ou indiretamente pela criação da facção criminosa Comando
Vermelho, fundada em 1979 na unidade prisional Cândido Mendes (Ilha Grande, Rio de Janeiro).
As principais obras que guiam toda a narrativa deste trabalho é a produção científica de Maria
Helena Alves Moreira (2005): “Estado e oposição no brasil (1964-1984)”, o livro que será utilizado
como fonte: “400x1” de William da Silva Lima (1991), a obra “Vigiar e punir” de Michel Foucault
(1987), “Topologia da violência, do Buyng Chul Han (2017), “No centro da engrenagem”, de
Mariana Joffil (2008), “Segurança pública para virar o jogo”, das autoras Ilona Szabó e Melina
Risso, o podcast “Lado B do Rio” e a análise de leis a serem citadas ao longo deste trabalho.

* Graduanda em História UnB – Campus Darcy Ribeiro.


1672

Considerando as limitações imposta pela pandemia do covid-19, este trabalho se viu


empobrecido de fontes e obras que complementassem minha análise.

É preciso compreender que a ditadura militar brasileira, sob o contexto de Guerra Fria,
adotou uma postura vigilante diante do comunismo. Esse inimigo do capitalismo foi alvo de
propagandas de guerra, impulsionadas pelos EUA em busca de aliados que combatessem
ativamente os possíveis focos comunistas dentro de seus territórios (Alves, 2005). O uso da
violência por meio de órgãos estatais da repressão partia da mentalidade de que o inimigo era aquele
que exercia atividades nocivas ao interesse nacional; consta no caput do Ato Institucional 1 de 1º
de abril de 1964: “a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem
econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista”.780

Além dessa mentalidade bélica de combate, uma implementação fundamental feita já em


1964 por meio de um decreto-lei, foi a dos Inquéritos Policial-Militares (IPM’s) já previstos no AI-
1. Este seria o primeiro núcleo do aparato repressivo, coordenado pelas polícias (das esferas
federais e estaduais) em que o simples testemunho da opinião pública já bastava para perseguição
e tortura do acusado. De acordo com o artigo 5 do AI-5 de 13 de dezembro de 1968: Art. 5º - A
suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: (...) IV -
aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; (...) § 2º -
As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado
da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário. (Brasil, 1968)

Legislações de suspensão de direitos

A evolução da repressão da “Revolução” (como foi chamada no preâmbulo do AI -5) foi


progressiva. Os atos institucionais e Constituição Federal foram se enrijecendo com o passar dos
anos. Trago aqui trechos da constituição de 1969 que evidenciam pontos centrais para a
compreensão desse processo:

Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e
à propriedade, nos têrmos seguintes:
(...)
§ 11. Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco,
salvo nos casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou
subversiva, no têrmos que a lei determinar. Esta disporá, também, sobre o
perdimento de bens por danos causados ao erário, ou no caso de enriquecimento
ilícito no exercício do cargo, função ou emprêgo na Administração Pública, direta
ou indireta (Brasil,1969)

780
Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-
64.htm.> Acesso em: 25 out. 2020.
1673

A Política de Segurança Nacional trazia consigo estratégias políticas, econômicas, militares


e psicossociais para estruturação do combate à oposição. Da forma que fora estruturado, o inciso
11 do artigo 153 lista as medidas que não serão tomadas caso o Estado esteja em sua “normalidade”;
porém, todas as precauções legais, atos institucionais, reforma constitucional nos evidenciam que
o Estado brasileiro encarava esse momento como um período de guerra interna, enquadrada nos
termos do mesmo inciso (psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva), tornando então o
inciso 11 uma lista de punições legítimas ao Estado amparadas pela lei (Alves, 2005).

Além deste trecho, destaco o artigo 86 da Constituição de 69 e 1º da Lei de Segurança


Nacional: “Tôda pessoa, natural ou jurídica, é responsável pela segurança nacional, nos limites
definidos em lei” (Brasil, 1969). Este artigo transfere a todo cidadão um dever de se manter
alinhado ao regime por meio de uma postura combativa. Aqueles que não exercerem esta demanda
constitucional, podem se enquadrar como indivíduos em conflito com os interesses nacionais e
sofrerem as sanções legais.

Através dos trechos acima, compreendemos a amplitude das leis e como esta guerra interna
contra um inimigo interno, não possuíam uma delimitação definida a ser combatida nem formas
procedimentais de como fazê-la. É possível compreender apenas que há algum grupo pernicioso a
ser enfrentado e que esse deve ser o interesse de todos que busquem o desenvolvimento do Brasil
neste período.

Estes 2 itens da constituição de 1969, alinhados com a suspensão do habeas corpus, vigente
a partir do AI-5781 evidenciavam uma disparidade entre os 3 poderes e a centralização do comando
governamental no presidente da República e forças armadas.

Essas leis de diminuição das liberdades individuais tornavam uma acusação sem
comprovações de sua veracidade, uma declaração definitiva e incriminatória. As investigações e
apurações de tais acusações eram negligenciadas, buscando uma apuração rápida e articulada entre
DOPS e DOI-CODI para encaminhar os presos políticos o quanto antes para as prisões.

“O que se fazia no DOPS resumia-se a um procedimento burocrático,


dado que as informações eram de fato colhidas no DOI (...) (o DOI)
Constituía o primeiro elo de uma cadeira repressiva que se iniciava no
momento da detenção e terminava na cela de um presídio- a menos que
fosse encurtada pela absolvição ou, pelo contrário, pelo assassinato sem
julgamento.” (Joffily, 2008)

781
Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a
ordem econômica e social e a economia popular. (Brasil, 1968)
1674

Esses procedimentos de burocracia agilizada entre os órgãos repressivos, atrelados à


suspensão do direito de habeas corpus782, evidenciavam a soberania do poder executivo e a
dificuldade de controlar e fiscalizar as práticas de apreensão, interrogatório e encarceramento de
um cidadão.

Durante os anos que antecederam a publicação do AI-5, algumas partes da sociedade civil
que no começo apoiaram o golpe, já haviam se posicionado contrariamente e as ideologias do
Estado se distanciavam cada vez mais da sociedade, a exemplo disso, a mudança de apoio para
repúdio da imprensa.783 Após a publicação deste decreto, o governo escancarou que a crescente
oposição de nada o ameaçava, apenas interessava seu fim e que para isso havia todo um aparato
repressivo coordenado para efetivas perseguição e punição.

O não esclarecimento legal de quais eram os comportamentos subversivos passíveis de


punição judicial contribuíam para uma abrangência e desconfiança maior da população, então a
criação de órgãos que diminuíssem as burocracias de investigação culminou numa mudança
drástica sob o sistema prisional e de segurança pública no Brasil. Novos indivíduos agora ocupavam
os locais de privação de liberdade.

De acordo com Byung Chul Han, a violência pela força bruta, a violência visível e manifesta
convence a sociedade de um poder e domínio do governo. Em uma sociedade arcaica, muitas vezes
a resposta para a violência se dava por meio da violência: matar para não ser morto. A partir de
transformações topológicas da representação social da violência, transformaram o sistema de
punição em uma ação dirigida a uma pessoa, não mais em um exercício de poder governamental
brutal e sangrento, mas de culpar os atos a partir de códigos. A punição não é uma vingança do
Estado, mas um endereçamento de culpa para que não surja uma espiral da violência (Han, 2017).

Essa análise sistêmica da violência trazida pelo filósofo Han é interessante porque conversa
com parte da leitura do livro de William da Silva, 400x1, sobre a criação do Comando Vermelho, e
sua trajetória do sistema carcerário. William da Silva Lima foi um dos fundadores das mudanças de
comportamento no Presídio Cândido Mendes em 1979 por parte dos presos comuns. Ele morreu
em 2019, com uma soma de 95 anos e seis meses de condenações, sendo essas condenações por
crimes de extorsão, sequestro e assaltos a bancos. Não encontrei muitas mais informações do autor,

782
Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional,
a ordem econômica e social e a economia popular. (BRASIL, 1968)
783 Grande imprensa apoiou o golpe civil militar e a ditadura até 1968, revela pesquisa da FFLCH, disponível em:

<https://www5.usp.br/noticias/sociedade/grande-imprensa-apoiou-golpe-militar-e-a-ditadura-ate-1968/.> Acesso
em 18 out. 2020
1675

senão as contidas no livro e em notícias sobre seu falecimento, que restringem sua vida a “um dos
fundadores do Comando Vermelho.”

Sendo assim, o autor constrói seu livro como uma autobiografia que fundem sua história à
história do sistema penitenciário, especificamente dos presídios em que esteve preso e sua trajetória
nesses ambientes. A narrativa do livro tem uma condição de continuidade entre os abusos sofridos
dentro dos vários presídios, trazendo poucas distinções temporais e, não fossem as delimitações
que o autor coloca de locais, transferências e novos presídios, não tem traços que os tornam
diferentes dos demais.

Além disso, começa nos apresentando o cenário principal, onde esteve mais tempo, tivera
suas principais histórias e claro, fundou o Comando Vermelho. O Presídio da Ilha Grande é
introduzido da seguinte forma: “Há muito tempo o destino do belo lugar estava associado ao
sofrimento dos homens” (Lima,1991). Um lugar, segundo o autor, que desembarcavam escravos
clandestinamente e que, após uma epidemia de cólera em 1880, o governo brasileiro construiu na
ilha instalações de quarentena de doentes e após esse episódio, o governo brasileiro enviou à ilha
os sobreviventes da Revolta Armada de 1892, feitos ali prisioneiros. “E, em 1903, formalizou-se
no lugar a existência e uma colônia correcional, mais tarde – em pleno Estado Novo – denominada
Cândido Mendes” (Lima,1995). Descrevendo sua experiência de chegada ao lugar pela primeira
vez, em 1971, diz:

tratam os presos de forma completamente opaca, como se por trás de cada rosto
existisse apenas um número de matrícula e um prontuário, não uma história de
vida (...) O ato criminoso define tudo o que somos (...). Desarticular a
personalidade do preso é o primeiro – e talvez o mais importante- papel do
sistema.

Outra observação a ser levada em conta sobre o ambiente que o autor é: “piores que os
guardas, esses presos violentos eram estrategicamente colocados ali por uma administração que
tinha todo interesse em cultivar o terror (...) Quem não se dispunha a brigar, não sobreviveria com
integridade” (Lima, 1991).
Destaco também o seguinte trecho a respeito da conduta administrativa de outro presídio
que William passou grande parte de sua vida, Bangu (Complexo do Gerincinó, RJ):

O tratamento dado ao preso em Bangu I é inconstitucional, é uma forma de


vingança contra o preso que reage contra o processo de despersonalização e
desrespeito; é um castigo (...) A sociedade está mergulhada na violência, na
vingança, na omissão. Ela cria mitos de acordo com seu interesses políticos,
mitos esses que ficam marcados, sem direito à vida. (Lima,1991).
1676

Apesar do Complexo Penitenciário Gerincinó (Bangu) ter sido fundado apenas em 1987 e
o trecho acima se tratar portanto de um período póstumo aos anos de ditadura, esse tratamento
pouco se distingue do apresentado pelo autor ao chegar no Cândido Mendes em 1971. Os trechos
anteriores e a seguinte passagem não nos deixam negar: “Estávamos em 1974, e nossas principais
lutas eram contra os espancamentos, pela abertura dos cubículos ao longo do dia e pelo respeito
aos nossos visitantes” (Lima,1991). Dessa forma, foram se encaminhando processos de conciliação
da massa carcerária através de medidas como a proibição de qualquer ato de violência entre os
presos buscando um ambiente tranquilo que os fortalecesse diante da repressão. “Assalto, estupro
ou qualquer forma de atentado estavam banidos” (Lima, 1991).

No obra, o autor diz que eram 90 presos proletários e 30 presos políticos na Ilha Grande.
Os presos se diferenciavam entre eles, pois:

buscando garantir sua visibilidade para a opinião pública e internacional, os


membros das organizações armadas dos anos 70 lutavam para isolar-se da massa
(...) o desejo de isolamento indicava, entre eles, a hegemonia da classe média, cujos
espaços de reintegração no sistema voltavam a se abrir, no contexto da política de
distensão do regime. Nós não tínhamos essa perspectiva nem nos seria dada essa
chance. Nosso caminho só podia ser o oposto, a integração na massa carcerária e
luta pela liberdade, contando com nossos próprios meios. (Lima,1991).

Após tentativas de reaproximação sem êxito, “terminara o período de cooperação entre os


dois coletivos. “Existem trinta presos políticos na Ilha Grande”, escreviam em seus documentos.
“somos noventa presos proletários”, respondíamos com uma ponta de mágoa e provocação”
(Lima,1991).

O autor nos diz que os presos oriundos de organizações armadas dos anos 70, por mais
que tivessem ingressado à Ilha Grande também inclusos pela LSN, foram divididos fisicamente
dos demais “presos comuns” da penitenciária pela administração do presídio.784 A própria
administração do presídio diferenciava os presos por tipos de ameaça ao regime (os pertencentes
as organizações políticas e os presos comuns), porém, eram aplicadas as mesmas leis, as mesmas
punições, por mais que entre eles, houvessem barreiras físicas e ideológicas. Essa separação, tal
como mencionada anteriormente, se deu pois:

depois de permanecer algum tempo em quartéis militares, a maioria dos presos


oriundos das organizações armadas dos anos 70 também tinha regressado à Ilha
Grande. Alegando incompatibilidade de hábitos e de ideologias, eles pediram que
a galeria fosse divida, o que foi feito, cabendo a nós a parte conhecida como
fundão. (...) Quase noventa homens assim permaneciam, isolados duplamente – da
comunidade geral e dos demais presos- e com identidade social e jurídica pouco

“Apesar de submetidos a tribunais de exceção e combatidos pela máquina repressiva do regime, não éramos
784

considerados presos políticos.” (Lima,1991)


1677

definida: apesar de submetidos a tribunais de exceção e combatidos pela máquina


repressiva do regime, não éramos considerados presos políticos. (Lima,1991)

Essa luta se distinguia da luta dos presos comuns pois estes batalhavam de forma oposta,
buscando integração da massa carcerária na luta pela liberdade e oportunidade de fuga, visto que
não havia outra forma senão uma conquista própria de ocupar um espaço fora do sistema e retomar
a vida. A estes tidos como “presos comuns”, a pena os definia. A condição de detento era
permanente, não eram enquadrados ali por uma doutrina de guerra interna específica daqueles anos
como os presos políticos; eram encarcerados por crimes como assaltos, roubos a bancos; atos que
infringiam o sistema financeiro em si. Esses crimes citados eram cometidos tanto por presos
comuns, quanto por presos políticos, a diferença está na motivação de cada grupo.

Todo o procedimento legal que os levou até o presídio foi traçado pelas diretrizes da Lei
de Segurança Nacional, tal como visto no “nome original” do grupo, “Falange da LSN”, logo
transformada pela imprensa em Comando Vermelho (Lima,1991). “Que eu saiba, essa
denominação apareceu pela primeira vez num relatório em fins de 1979 dirigido ao Desipe
(Departamento Sistema Penal) pelo capitão da PM Nelson Bastos Salmon, então diretor do
presídio da Ilha Grande.” O nome se deu pois falange é um grupo de presos unidos por um
interesse comum e a Lei de Segurança Nacional (LSN), era a Lei pela qual os enquadrou e os levou
a estarem presos ali. Como diz William da Silva “Estava aberta a temporada de caça contra nós. As
palavras não eram inocentes: éramos um comando, o que em linguagem militar denomina centro
ativo, cuja destruição paralisa o inimigo; como se isso não bastasse, éramos também vermelhos,
adjetivo que desperta velhos e mortais reflexos em policiais e militares.” Não nos é explicado pelo
autor o que seriam esses “reflexos mortais”, se por ódio aos comunistas por parte dos militares que
associavam-nos à cor vermelha, ou se pelo fato do vermelho ser a cor das fichas dos enquadrados
pela LSN e portanto, serem alvos de atenção dos militares. Não fica clara essa relação, mas a cor
vermelha é levada em conta por William, que nos afirma ter sua importância também para os
guardas.

Por mais que a Lei de Segurança Nacional trate dos crimes de cunho político, que de alguma
forma ameacem ou atentem contra o Estado, a partir do relato de William, percebemos que fora
usada também para prender e perseguir os que se opunham ao regime, independente de
participarem de uma guerrilha armada ou quaisquer organizações de oposição. Essa lei também
enquadrava por exemplo operários que protestavam por melhores condições, estudantes que
lutavam por direitos democráticos e mesmo a presos comuns que não estavam relacionados a lutas
contra o sistema ou associados a quaisquer organizações políticas.
1678

O que eu quero trazer com isso é que o público que passou a entrar no regime de privação
de liberdade após 1968, eram pessoas que antes não eram alvo do olhares vigilantes do Estado e
passam a ser a partir do momento em que a luta política se volta contra um inimigo interno tão
abrangente. Essas pessoas entraram em contato com encarcerados anteriores à ditadura e
precisaram adequar-se ou repensar maneiras de conviver nessa nova “sociedade” que possuía seu
próprio regimento interno. A esses “sujeitos comuns” eram dados os mesmos tratamentos de
combatentes ativos ao regime, a mesma violência, os mesmos métodos de tortura e processos
investigativos. Porém havia uma diferenciação na forma na qual a violência do regime era sentida
por cada grupo dos presos.

A natureza da busca por capital dos presos comuns era sobrevivência e este também era o
objetivo ao se unirem em uma organização que zelasse pela luta pela liberdade. Como diz Foucalt
em Vigiar e Punir, os sistemas punitivos estão relacionados a uma economia política do corpo; os
trabalhadores em greve, os estudantes em luta, são, para além das ideologias da ditadura, uma
ameaça ao sistema capitalista. “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo
e corpo submisso” (Foucalt, 1989).

Através da narrativa de William, essa distinção dos presos se dava também por pertencerem
a uma classe social diferente. O ingresso dessa classe ao sistema carcerário era temporário pois
ameaçava aquele governo específico, não a sociedade como um todo, como os presos comuns. A
diferença trazida pela ditadura aos bandidos comuns, foi sentida pela militarização das polícias e,
temporariamente, legitimação legal da tortura e tratamentos violentos aos presos. A mentalidade
de guerra foi instaurada como forma de combater o crime e, através da narrativa de William, essa
mentalidade foi continuada nos anos após ditadura, além dos tratamentos hostis aos internos nas
penitenciárias e da continuidade da falta de perspectivas dadas aos presos ou recém libertos.

Projeto Econômico

Outro campo que podemos analisar brevemente para maior compreensão do cenário
penitenciário que presenciou no nascimento do Comando Vermelho, é a parte econômica da
sociedade brasileira na época. O período do “milagre econômico” (1969-1973) nos mostra quais
eram as prioridades do governo ao se referir aos anos de regime como anos de desenvolvimento
econômico e quais frutos estes buscavam colher com este planejamento. Uma frase emblemática
1679

que sintetiza tudo isso, foi dita por Médici e estampo a capa do Jornal do Brasil em 1970: “A
economia vai bem mas o povo vai mal.”785

Foram agravados durante os anos do “milagre econômico” problemas de desigualdade


social, concentração de renda, falta de investimento em serviços básicos como saúde e educação e
aumento do orçamento das forças armadas. Esse projeto econômico serviu para continuar a mesma
estrutura econômica política e social do brasil de empobrecimento das massas e concentração de
rendas às elites empresariais. (Alves, 2005).

Essa pequena elite se beneficiou sob uma condição de trabalho similares a servidão, em que
trabalhadores mais pobres precisaram mais do que duplicar sua jornada de trabalho e que, diante
as leis de proibição de lutas políticas, eram proibidas greves, haviam intervenções do Estado em
sindicatos e a devido políticas de arrocho salarial, o salário mínimo perdeu seu poder de compra
consideravelmente nos 10 primeiros anos de golpe.786

Todas essas condições econômicas também influenciaram nas mudanças do sistema


carcerário visto que os grandes empresários financiavam a Operação Bandeirantes (OBAN)787; o
abismo entre os mais ricos e os mais pobres se aprofundava nessa guerra aos subversivos. Através
dessas medidas econômicas, o crescimento econômico que existia no Brasil veio desacompanhado
de uma distribuição de renda, contando com um aumento da desigualdade social.788

Se tornava evidente um Estado que tinha como parte do projeto de nação e


desenvolvimento: levar os mais pobres à miséria, retirar direitos e garantias dos trabalhadores e
direitos individuais, negligenciar a educação pública, reprimir quaisquer mobilizações políticas que
fizessem oposição ideológica ao sistema, perseguir e torturar quaisquer pessoas que atrapalhassem
a ordem do desenvolvimento e impedir que essas pessoas saíssem das prisões por meio da cassação
dos direitos à liberdade.789

785 Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1891-. Capa do dia 11 de março de 1970, ed. Número 285.
786 Lado B do Rio, episódio 73: Economia na Ditadura Militar. Entrevistadores: Alcysio Canette, Caio Bellandi, Fagner
Torres, Entrevistado: Pedro Henrique Campos e Rafael Brandão. Central 3, 17 ago. 2018. Podcast. Disponível em:
http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-73-economia-na-ditadura-militar/. Acesso em: 10 Ago. 2020.
787 Comissão da Verdade de São Paulo. Relatório - Tomo I - Parte I - O Financiamento da Repressão. Disponível em:

<http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_1_O-financiamento-da-
repressao.pdf> Acesso em: 06 ago.2020
788 Lado B do Rio, episódio 73: Economia na Ditadura Militar. Entrevistadores: Alcysio Canette, Caio Bellandi, Fagner

Torres, Entrevistado: Pedro Henrique Campos e Rafael Brandão. Central 3, 17 ago. 2018. Podcast. Disponível em:
http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-73-economia-na-ditadura-militar/. Acesso em: 10 Ago. 2020.
789 Lado B do Rio, episódio 73: Economia na Ditadura Militar. Entrevistadores: Alcysio Canette, Caio Bellandi, Fagner

Torres, Entrevistado: Pedro Henrique Campos e Rafael Brandão. Central 3, 17 ago. 2018. Podcast. Disponível em:
http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-73-economia-na-ditadura-militar/. Acesso em: 10 Ago. 2020.
1680

Considerações Finais

O que me leva a crer que a ditadura influenciou na criação do comando vermelho foi que, de
acordo com Maria Helena:

A tortura foi institucionalizada como método de interrogatório e controle


político (...) Histórias de violência institucional tornaram-se parte da cultura
política quotidiana. A lei de segurança nacional autorizava prisão preventiva por
20 dias. Preso sem acusação formal, o indivíduo era mantido incomunicável. A
tortura era aplicada durante os primeiros dias ou mesmo horas.

Essa institucionalização da tortura e mesmo a diferenciação interna dos presos, trouxe aos
presos comuns uma necessidade de se agrupar de forma consolidada formal na busca por direitos
básicos: à vida, a dignidade e a busca por liberdade790. Não era de interesse do Estado garantir
segurança alguma aos presos, através de tortura e tratamentos degradantes, estes ficavam a mercê
da sorte. Com uma lei tão severa como a Lei de Segurança Nacional, William da Silva nos faz crer
que presos comuns só conquistariam a liberdade através da fuga, que precisava ser arquitetada e
efetivada por um grupo ordenado. A sociedade tardaria, se houvesse a chance, em ceder
oportunidades de reinserção aos seus presos (tanto políticos quanto comuns), visto que a
mentalidade vigente era de que o inimigo do Estado deveria ser combatido com guerras, sendo a
guerra a busca por extermínio deste grupo nocivo: ou pela retirada vida ou pelo fim da liberdade
de escolha por meio do isolamento social.

A análise complementar que trago é a do coronel aposentado da PM do Rio de Janeiro, Íbis


Pereira, que diz que a ditadura criou uma mentalidade no Brasil de que o crime se enfrenta com
guerra, não com políticas públicas.791 De acordo com suas observações empíricas na área de
segurança pública do estado do Rio de Janeiro, quem cria as facções, é o horror da política
pública.792 Esta análise dialoga diretamente com a visão do advogado Fábio Cascardo, membro do
mecanismo estadual de combate e prevenção à tortura do estado do Rio de Janeiro, que diz: “O
sistema prisional é um laboratório importante de se conhecer para entender o cenário da segurança
ou da insegurança pública” (Cascardo, 2018).

William da Silva Lima, diz: “A sociedade, por meio da exclusão, nos obriga a organizar
nossas vidas baseados em valores diferentes. Nos mostra o belo e nos oferece o feio, nos mostra a

790 Lema do Comando Vermelho: Paz, Justiça e Liberdade.


791 Lado B do Rio, episódio 125: Segurança Pública. Entrevistadores: Alcysio canette, Fagner Torres, Entrevistado:
Íbis Pereira. Central 3, 31 jan. 2013. Podcast. Disponível em: http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-125-
seguranca-publica-com-ibis-pereira/. Acesso em: 10 Ago. 2020.
792 Lado B do Rio, episódio 125: Segurança Pública. Entrevistadores: Alcysio canette, Fagner Torres, Entrevistado:

Íbis Pereira. Central 3, 31 jan. 2013. Podcast. Disponível em: http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-125-


seguranca-publica-com-ibis-pereira/. Acesso em: 10 Ago. 2020.
1681

alta tecnologia e nos oferece a fome, nos mostra vitórias e nos oferece a pedra fria dos cemitérios.
A prisão é uma péssima escola, venho através de 5 décadas (60,70,80,90,00) observando o
desperdício de verbas públicas em penitenciárias construídas para a tortura” (Lima, 1991).

Esse trabalho me foi penoso. É doloroso ler que um sistema de governo institucionalizou
a devastação, a perseguição e a tortura de seu próprio povo. É difícil compreender que para
sobreviver, um grupo de pessoas precisou se juntar para garantir o mínimo, mínimo esse que o
Estado não era capaz de prover. E o pior foram os resquícios na mentalidade que até hoje
influenciam a cultura geral de lidar com seus encarcerados e as pessoas em condições de
vulnerabilidade e poucas oportunidades socioeconômicas. A análise do sistema penal nos dá uma
das dimensões dos problemas de segurança pública que enfrentamos, especialmente nesse trabalho,
a formação de uma facção que até hoje exerce tanta força em território nacional.

Buscar essas origens é compreender o que mantém o Comando Vermelho pujante dentro
das várias prisões brasileiras até hoje e influente nas ruas de norte a sul do país. Atentar o olhar
para o que faz essas instituições do crime funcionarem, é chegar o denominador comum de quais
sujeitos o Estado brasileiro há muito finge não enxergar. O abandono dos encarcerados causou
diversos eventos catastróficos na história do nosso país que, se não forem analisados com
sabedoria, continuarão a acontecer e tenderemos a nos distanciar cada vez mais daquilo que pode
nos ajudar a virar o jogo político da segurança pública.

Referências

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economia-na-ditadura-militar/. Acesso em: 10 Ago. 2020.

Lado B do Rio, episódio 54: Sistema Prisional. Entrevistadores: Alcysio canette, Fagner Torres,
Daniel Soares, Caio Bellandi. Entrevistado: Fábio Cascardo. Central 3, 23 mar. 2018. Podcast.
Disponível em: http://www.central3.com.br/lado-b-do-rio-54-sistema-prisional/Acesso em: 10
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Entrevistado: Rafael Brandão, Pedro Henrique Campos . Central 3, 1 nov. 2019. Podcast.
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1683

Disputas de terra e o consenso: Conflitos Cíveis de terra em


Santo Antônio Da Patrulha (Continente do Rio Grande de São
Pedro c. 1804-1822)

Vanessa Ames Schommer*

Resumo: segundo Stuart Schwartz (2011), a administração da justiça é uma chave para o
entendimento dos Impérios de Espanha e Portugal nos séculos XVI e XVII. Nesse sentido,
buscando entender a relação dos súditos de Portugal com o direito, no que tange a terra, e a
aplicação da justiça civil sobre essas querelas propomos esse ensaio. Esse trabalho tem como base
as noções de direito, e especificamente a legislação sesmarial ancorado nos trabalhos de António
Manuel Hespanha, Paolo Grossi, Rosa Congost, Laura Varela, Márcia Motta e Helen Osório.
Buscamos tecer algumas considerações sobre a aplicação da justiça civil no sul do império
português, no que diz respeito ao direito sobre posse e propriedade da terra. Para tanto separamos
a presente comunicação em quatro sessões, são elas: 1. Breves considerações sobre o direito do
Império Ultramarino Português 2. Considerações sobre a legislação sesmarial e as formas de acesso
à terra. 3. Conflitos de terra e a aplicação da justiça na prática. 4. Processos cíveis de disputa de
terras em Santo Antônio da Patrulha, suas características e diferenças em relação ao Continente de
São Pedro.

Palavras chave: Conflitos de terra, Brasil Colonial, América Portuguesa, Conflitos cíveis.

No presente artigo procuramos fazer alguns apontamentos de pesquisa sobre a aplicação


da justiça civil no sul do império português, no que diz respeito ao direito sobre posse e propriedade
da terra. Esse trabalho é parte de um momento de revisitar escritas passadas, no caso, minha
monografia de conclusão de curso em Licenciatura em História, trazendo novas reflexões surgidas
com o ingresso no programa de pós-graduação em história. Procuramos, aqui, entender como eram
as disputas cíveis de terras em Santo Antônio da Patrulha nas primeiras décadas do século XIX. E,
consequentemente, quem eram os sujeitos que acionavam ou acionaram a justiça para resolver suas
querelas. Para isso, utilizamos como fontes os processos cíveis de disputa de terras e inventários
post mortem.

Breves considerações sobre o Direito do Império Ultramarino Português

*
Mestranda pelo programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e bolsista CAPES.
1684

É em meados do século XV, durante a dinastia de Avis, que foi identificada a necessidade
de organizar um código para que melhor se administrasse a justiça no reino de Portugal, foi ele o
Código Afonsino ou Ordenações Afonsinas. Dividem-se em 5 tomos, cada qual versando sobre
uma das facetas da administração da justiça. Posteriormente foram substituídos pelas Ordenações
Manuelinas, no início do século XVI, sendo dessa vez reproduzidas de forma impressa. Por fim,
foram reordenados e atualizados os textos que regiam a aplicação da justiça e formaram as
Ordenações Filipinas (fins do século XVI, início XVII), que sofreram diversas alterações ao longo
dos anos, porém permaneceram como base do direito português até o Código Civil de 1906.

Segundo Massuchetto (2016, p. 8.), o direito colonial foi, durante muito tempo, visto pela
historiografia como “um regime jurídico despótico, sustentado em um neofeudalismo luso-
brasileiro, com pequenos senhores, independentes entre si, e que, distantes do poder da coroa,
possuíam um ilimitado poder de julgar e administrar os seus interesses”. Essa afirmação tem sido
questionada principalmente, pelos trabalhos do historiador português Antônio Manuel Hespanha.

Hespanha afirma que, quando o direito português cruzou o oceano atlântico se expandindo
para as américas e ultramar, segundo as Ordenações Filipinas, deveria ser aplicado aos naturais a
fim de governar estes pelos seus direitos específicos. Sendo assim: “mais do que uma versão escrita
do direito nativo, o que tendia a então a vigorar na prática, era uma espécie de ‘justiça criola’. De
qualquer jeito, criava-se uma prática de direito autônomo e não oficial (Hespanha, 2011, p. 173.) ”.

Segundo ele, no mundo ibérico, entre os séculos XV e XVII predominou a influência do


direito régio e o direito comum na administração da justiça. O direito comum era de origem
doutrinal, feito não de regras, mas sim de problemas. A base da teoria do direito no Antigo Regime,
era concebida como uma teoria argumentativa; a verdade jurídica seria uma verdade “aberta” e
“provisória”, e a legitimidade das decisões se encontrava no conhecimento particular das situações
(Hespanha, 2006, p. 100).

O direito é, então, compreendido como um conjunto de signos e representações


normativas que surgem do saber local, que pretende captar no interior da conceituação da cultura
jurídica os regramentos gerais da escala macro, para serem incorporados aos costumes do micro,
sendo reproduzidos e partilhados de modos peculiares pelos componentes de uma comunidade.
Esse movimento, produz o que foi conceituado por Paolo Grossi, como experiência jurídica, que
está presente como essência na estrutura de organização própria das comunidades locais (Grossi,
2014, p 29)

Ainda sobre esse direito, Hespanha descreve essa convivência de diversas ordens jurídicas
como um pluralismo jurídico, ou seja
1685

[...] a coexistência de distintos complexos de normas, com legitimidades e


conteúdos distintos, no mesmo espaço social, sem que exista uma regra de
conflitos fixa e inequívoca que delimite, de uma forma previsível e de antemão,
o âmbito da vigência de cada ordem jurídica (Hespanha, 2006b, p. 61).

Além do pluralismo jurídico outra característica era marcante nesse direito colonial
brasileiro para Hespanha. Esse direito era voltado para a conciliação, marcado pela “violência doce
do consenso” que buscava favorecer a ligação das decisões judiciais com outras instancias da vida
social, como a ética e a religião, reforçando o caráter indispensável do social na obtenção de um
acordo (Hespanha, 2005, p. 54).

Stuart Schwartz, ao estudar o Tribunal Superior da Bahia entre os séculos XVII e XVIII,
aponta que os portugueses viam a justiça como a primeira responsabilidade do rei, assim como
entendiam a proximidade entre um rei e sua lei. Segundo Schwartz, no ultramar as colônias
legatárias de Espanha e Portugal não eram menos ciosas do valor da justiça e da lei, e que para
entender a organização da estrutura judicial portuguesa é necessário entender sua conformidade
em 1580, uma vez que esta tornou-se modelo do arcabouço da burocracia colonial (Schwartz, 2011,
p. 28.).

Para tanto a base da estrutura administrativa e judicial portuguesa era o conselho:

Cada conselho mantinha um determinado número de funcionários que exerciam


as funções administrativas e judiciais necessárias à vida urbana. Esses servidores
incluíam o almotacel, o alcaide, o meirinho e o tabelião, mas o mais importante
funcionário judiciário local era o juiz ordinário, às vezes chamado de juiz da terra.
Cada conselho incluía dois desses magistrados municipais eleitos. Nem sempre
formados em direito, eram cidadão comuns desejosos de servir a comunidade
pelo período de um ano (Schwartz, 2011, p. 28-29).

Havia, também, dentro dessa estrutura o cargo de Juiz de Fora, que era literalmente um juiz
que vinha de fora, ou seja, de outra localidade. Esses eram nomeados pelo rei e teoricamente
sofreriam menos pressões locais, assim como serviam como uma tentativa política da Coroa de
limitar o controle de elementos locais de poder (Schwartz, 2011, p. 29). Além disso, até as reformas
judiciárias do século XIX, os únicos juízes obrigados a ter formação jurídica universitária – desde
1539 – eram os juízes de fora, e estes não iam além de um décimo do total de juízes do conselho
(Hespanha, 2005, p. 48). Não trataremos aqui das demais instancias de administração da justiça
portuguesa como a Casa da Suplicação, a Ouvidoria, etc.

Sobre a forma de administrar a justiça nas possessões ultramarinas portuguesas, Schwartz


concorda com Hespanha ao entender que a lei portuguesa tornou-se a lei dos territórios incluídos
1686

em seus domínios, entretanto, as condições locais e as relações particulares das colônias com a
Coroa determinavam a natureza da administração judicial.

Em terras de ultramar, o representante da justiça não era o rei em sua pessoa, mas seus
representantes, os Governadores Gerais. A eles era atribuída a prerrogativa de governar em nome
do monarca. Sendo, uma forma pulverizada de colonização, que se baseava em instituições locais,
cada qual constituída por vários conselhos, dentre eles o referente a aplicação da justiça, sob a
direção de uma Câmara Municipal (Massuchetto, 2016, p. 82).

Segundo Massuchetto, os Juízes Ordinários administravam a “justiça dos povos” com base
no direito costumeiro, nas Ordenações Filipinas, nos preceitos do direito e da justiça régios cujo
manejo ocorria segundo seu arbítrio e de acordo com elementos casuísticos (Massuchetto, 2016, p.
86.). Aponta ainda que é no período pombalino, que se amplia a burocracia e há uma maior
especialização e sofisticação das justiças. Sobre a dinâmica entre poder e jurisdição administrativa
na colônia, Laura de Melo e Souza considera que essa expressava a dimensão que o império
português definia em relação às suas leis e diretrizes, que imprimiram uma complexidade notável
ao poder exercido pela justiça e administração (Souza, 2006, p. 3.). Nesse sentido, é importante
demarcar que houveram duas fases com características distintas na administração da justiça
portuguesa, antes e após as reformas. Essas reformas marcam a distribuição de atribuições que
anteriormente eram acumuladas pelo juiz ordinário sendo, então, transferidas aos juízes
especializados como, por exemplo, a criação do cargo de juiz dos órfãos (Massuchetto, 2016, p.
87).

Considerações sobre a Legislação Sesmarial e as formas de acesso à terra

Passamos agora a descrever o plano de fundo jurídico do nosso objeto de análise, a


legislação referente ao objeto terra nas ordenações filipinas, também chamada de legislação
sesmarial. A lei das sesmarias é, ainda, anterior às ordenações – afonsinas, manuelinas e filipinas –
sendo atribuída sua criação a D. Fernando em 1375, foram somadas a ela uma série de ordenações
régias, e uma profusão de avisos, alvarás e cartas régias que procuraram disciplinar a questão da
terra através das sesmarias, na América Portuguesa (Varela, 2005, p. 6).

A Lei de Sesmarias de D. Fernando I, trazia em comum com o formato das antigas


sesmarias um único ponto: a obrigatoriedade do cultivo como condição de posse da terra e a
expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse inculta. Essa lei surge – em Portugal – com o
objetivo de combater uma aguda crise de abastecimento, e uma queda demográfica, que causou
1687

consequentemente escassez de mão de obra, que foi ainda acentuada por uma grande peste em
1348 (Varela, 2005, p. 20-21).

Mas o que era a sesmaria propriamente dita? A sesmaria consistia na atribuição de bens
incultos – no caso uma porção de terra – à uma determinada pessoa, com o encargo de ela os
aproveitar, ou seja, cultivar, dentro de um prazo fixado na lei ou na carta de adjudicação. Esse
princípio de cultivo era uma resposta jurídica a uma crise demográfica e agrícola, mediante a
imposição de cultivar as terras doadas (Varela, 2005, p. 23.).

Trata-se, portanto, de uma medida de colonização interna, visando a fixação do povoador


e o aproveitamento agrícola do território. É importante ressaltar que o cultivo não se referia à
qualquer plantação ou aproveitamento, a lei determinava que a cultura a ser estabelecida fosse a de
gêneros alimentícios, como trigo, cevada e posteriormente milho, cereais que haveriam de prover
a população num contexto de carestia, nesse sentido, impondo inclusive restrições à criação de
gado (Varela, 2005, p. 34 – 35.).

Entretanto, a Lei das Sesmarias não obteve êxito em disciplinar a população rural, e durante
a dinastia Avis sofre significativas transformações, que acabaram sendo incorporadas as ordenações
afonsinas de 1446/47. Dentre essas alterações destaca-se o prazo de 5 anos após a concessão da
sesmaria para que as mesmas sejam cultivadas, permanece, entretanto, a essência de uma
propriedade condicionada, e não absoluta, a mercê da política régia (Varela, 2005, p. 54-55).

O traço comum que permaneceu entre as sesmarias fernandinas, afonsinas, manuelinas e


filipinas foi, dessa forma, a caracterização de uma propriedade não absoluta, cuja razão de ser
residia no imperativo de cultivar. O fundamento ou obrigação do cultivo perpetua, no texto das
Ordenações Filipinas, uma forma de propriedade essencialmente condicionada (Varela, 2005, p.69).
Essa característica é muito importante para entender e estudar a propriedade no Antigo Regime e,
posteriormente na América Portuguesa.

Para a América Portuguesa, o ponto de partida é uma “propriedade pública” integrante do


patrimônio da Coroa, e que dará origem a propriedade privada moderna. As Ordenações
regimentavam a doação de terras a um tipo de proprietários específico. As terras deveriam ser
concedidas a quem as pudesse aproveitar, entretanto, essa condição é expressa de forma bastante
genérica na letra da lei ofereceu respaldo a esses novos elementos característicos da monocultura
de exportação baseada no trabalho escravo.

Segundo Hebe Mattos de Castro a obtenção legal de sesmarias era relativamente fácil para
quem tinha “cabedais e escravos”. As necessidades de terra dos fazendeiros da monocultura de
exportação iam muito além das áreas efetivamente cultivadas, dado o caráter itinerante dos sistemas
1688

agrários adotados (Castro, 2009, p. 89). A apropriação de terras em extensão, muito maiores do
que as necessidades imediatas da lavoura, consistia em condição indispensável à possibilidade de
reprodução ampliada da fazendo agroexportadora. Sem a compreensão do funcionamento do
sistema agrário da agricultura de exportação não é possível entender a necessidade da apreensão
das terras incultas, uma vez que estas faziam parte da fazenda e era indispensáveis para a sua
reprodução, assim sendo, o significado econômico do monopólio da terra está intimamente ligado
a possibilidade de expansão e de terras não cultivadas (Castro, 2009, p. 94).

Esse conjunto de lavoura e terras incultas é posteriormente denominado de latifúndio e foi


facilitado pela legislação sesmarial, mas é fruto da dinâmica do sistema colonial. Osório em sua
dissertação pondera que a monopolização das terras e a formação do latifúndio foi traço comum
para todo o espaço platino, mesmo com as diferenças nos ordenamentos jurídicos de cada um dos
impérios ibéricos. Isso se fez possível, pois, a dinâmica da apropriação de terras na colônia não
pode ser devidamente compreendida pelo simples exame das regras jurídicas existentes, mas sim
pelos embates de forças sociais em conflito (Osório, 2017, p. 60).

Sendo assim, a propriedade sesmarial na América Portuguesa teve um caráter expresso sob
a forma de deveres jurídicos diversos, que variaram conforme as exigências econômicas das
conjunturas coloniais, e revelaram uma pluralidade de formas proprietárias, sesmariais e de outro
carácter – o qual exploraremos adiante – cujo ponto de conexão era o ato originário da concessão
régia (Varela, 2005, p. 73). Além das sesmarias, outra via legal de acesso à terra em terras lusas na
américa foram as Datas de terra. Originalmente pensadas para serem concedidas aos colonos
açorianos que fizessem parte do alvará de migração, eram concessões feitas pelos comandantes
militares, que normalmente não excediam ¼ de légua em quadram sendo assim, sensivelmente
menores que as sesmarias (Varela, 2005, p. 74). Conformavam outro projeto político de
colonização e de uso agrário e produtivo do solo.

A burocracia para a concessão das sesmarias era a seguinte, o requerente encaminhava o


pedido para o Governador da Província, o qual solicitava informações ao provedor da Real Fazenda
e à Câmara Municipal. Após isso o governador – e a partir de 1765, o Vice-Rei – expedia a carta
de sesmaria em duas vias, devendo ser feito o registro nos livros da Provedoria, para o controle, e
o encaminhamento de carta para o Conselho Ultramarino, a quem competia a sua confirmação.
Para a confirmação eram requeridas outras informações, entre elas sobre o efetivo cultivo, que
deveriam ser prestadas pelos procuradores da Fazenda e da Coroa. O prazo de confirmação era de
três anos, passando a ser dois após 1750. A partir de 1697, as cartas régias de 07/12/1697 e
22/03/1698, assim como as provisões de 20/01/1699 e 19/05/1729, limitaram a extensão das
concessões de sesmaria à três léguas de fundo e uma de testada (Varela, 2005, p. 92-93).
1689

As sesmarias deveriam ser medidas e registradas às custas de quem as receberia, assim como
estava estabelecido um limite de terras que um mesmo indivíduo poderia receber. Entretanto, a
letra da lei não necessariamente corresponde as práticas sociais, e esses critérios nem sempre foram
cumpridos. As obrigações de cultivo e registro também eram aplicadas as concessões em forma de
Data de Terra.

Além do acesso à terra por sesmaria e data de terra, ainda era possível acessa-la por posse
simples. Para James Holston (1993, s/p.), durante o período colonial, o acesso à terra sem títulos
possuía status jurídico ambíguo. Apesar dessa modalidade não estar prevista nas Ordenações, ela
era, por força do costuma, reconhecida como legítima se tivesse sido cultivada e ocupada por um
período suficientemente longo de tempo. O que corrobora com as teses de Hespanha, sobre o
direito exercido na colônia, ser um misto de letras expressas na lei, e práticas costumeiras.

Para o Rio Grande de São Pedro, outra prática de acesso à terra que não estava prevista nas
ordenações, mas que na prática foi reconhecida como legítima foi descrito por seus
contemporâneos como “despachos do governador”. Osório, em sua dissertação de mestrado,
descreveu essas concessões feitas por Marcelino de Figueiredo em seu último ano de administração
(1780). Essas concessões se efetivaram a partir de um edital com o objetivo de regularizar as posses,
os interessados requeriam as terras e os Comandantes das Fronteiras informavam sobre a
dimensão, limites e existência de outros ocupantes ou pretendentes (Osório, 2017, p. 115).

Por fim, sob a administração Pombalina há uma das várias tentativas de regulamentar a
propriedade sesmarial na América Portuguesa e disciplinar a questão fundiária, uma das exigências
foi tentar invocar a obrigatoriedade do cultivo, mas carecem de trabalhos que nos deem detalhes
sobre o fracasso ou sucesso dessa tentativa. Ainda, concluindo essa sessão, gostaríamos de ressaltar
que as formas de “propriedade” aqui descritas possuíam características muito distintas da
formulação unitária de propriedade privada contemporânea. A historiadora catalã Rosa Congost
propõe que devemos encarar a propriedade como relação social e não como uma coisa imutável.

Helen Osório ao estudar a posse e apropriação da terra no Continente do Rio Grande de


São Pedro pode observar que a propriedade, ou posse de terra, como já discutido, possuía
características distintas da formulação unitária de propriedade privada no direito atual. Pode-se
generalizar para toda a América Portuguesa algumas características em comum, como a não
demarcação de seus limites territoriais, sendo comum que a sinalização das divisas fosse feita por
acidentes geográficos ou córregos e rios. Concretamente a propriedade não era plena e absoluta,
era instável, incerta e indivisa; abrindo margem para que os atos de força demarcassem seus limites
1690

(Osório, 2007, p. 60). Por esses motivos que pretendemos analisar um dos modos desses atos de
força, os momentos em que se recorreu à justiça civil para resolver a disputa da propriedade.

Conflitos de terra e a aplicação da justiça na prática.

António Manuel Hespanha introduz seu artigo “As fronteiras do poder: o mundo dos rústicos”
fazendo uma advertência aos historiadores, de que

[...] as fontes não foram escritas pura e simplesmente a pensar em nós, nunca
pretendem satisfazer nossas curiosidades. Mesmo quando intencionalmente
produzidas para falar ao futuro, encriptam suas mensagens numa linguagem que,
sendo a delas, não é a nossa.
[...] quando se estuda história, ainda é preciso ultrapassar o discurso explícito das
fontes. Sobretudo, quando se torna patente a não coincidência entre os modelos
jurídicos das fontes legais – os doutrinais mais ainda – e a generalidade das
situações vividas (Hespanha, 2005, p. 48).

Ao analisar as fontes produzidas pela justiça, no nosso caso, as fontes da justiça civil, nos
deparamos com uma realidade não descrita por muitos historiadores do direito. Assim como
apontou Hespanha, os juízes – exceto os de fora – quando muito sabiam ler e escrever o que é
evidenciado pelas fontes, pela forma da caligrafia – muito sofrida - que encontramos nas sentenças.
O autor menciona que:

Com isso, rapidamente se compreende que todo o discurso dos juristas eruditos
sobre a organização judicial – baseada na aplicação do direito letrado, romano ou
canónico, e, depois, na lei escrita do reino – assentava-se numa ficção ou mesmo
numa deliberada recusa da realidade.
[...] a ideia vulgarmente transmitida pela historiografia das fontes do direito –
totalmente voltada à descrição das fontes dos tribunais centrais e aos problemas
doutrinais levantados à esse propósito pelos juristas eruditos – é a de que, a partir
do século XV, os costumes gerais e locais tinham passado à categoria de fontes
de direito francamente secundárias (Hespanha, 2005. p. 48-49).

Nesse sentido, ao interpretar as fontes, Márcia Motta aponta para a importância da


construção da origem histórica de uma ocupação, usando como “comprovação da verdade” dossiês
de documentos como escrituras de doação e venda de terras, cartas de sesmarias, ou mesmo
testemunhos. Nesse processo de reconstrução, ou reinvenção da origem histórica, alguns aspectos
são ressaltados ou “apagados” (Motta, 1998, p. 95). Outra autora que discutiu essa proposta foi
Carmen Margarida Alveal (2002), que em sua dissertação trabalhou com os processos cíveis de
disputa de terra que chegaram à Corte da Apelação no Rio de Janeiro, e entre eles a disputa de
Pedro Alexandre Galvão e um aldeamento de índios no espaço extramuros da Freguesia do Rio de
Janeiro.
1691

Alveal aponta em sua conclusão que o problema da administração das sesmarias também é
o problema da administração colonial como um todo. Tanto pela falta de pessoas que trabalhassem
na administração da justiça, em todas as instâncias, como as dificuldades inerentes ao território de
proporções continentais, como a dificuldade de locomoção e a falta de informações precisas. Esses
são alguns dos motivos elencados para a dificuldade na resolução destes processos (Alveal, 2002,
p. 193).

Portanto, ao passo que as imprecisões de limites internos e as “brigas entre colonos”


reforçavam o poder político da Coroa em sua maior colônia, essas divisas também eram
apropriadas pelos fazendeiros como forma de expansão das suas posses sobre outras; esses, assim,
evitavam proceder à demarcação de suas terras. Motta afirma que: “medir e demarcar, seguindo as
exigências da legislação sobre as sesmarias, significava, para os sesmeiros, submeter-se à imposição
de um limite para sua expansão territorial, subjugar-se aos interesses de uma coroa tão distante
(Motta, 1998, p. 38.)”.

Processos cíveis de disputa de terras em Santo Antônio da Patrulha

A partir dessas considerações, iremos apresentar algumas características dos processos


cíveis de disputa de terra encontrados para o Rio Grande durante o período colonial. É importante
ressaltar que ao trabalhar com processos cíveis, estamos lidando com danos de ordem pessoal à
alguém ou seja, no âmbito privado de administração da justiça, diferente dos crimes, que via de
regra são violações da ordem social ou seja no campo do público.

Os processos que aqui trabalharemos foram transcritos e fichados ao longo da execução


do projeto de pesquisa: “Avançando sobre os campos: ocupação e expansão da fronteira imperial
portuguesa na América meridional (1737-1822)”793, foram levantados 31 processos cíveis que
tinham como objeto a disputa de terras (sejam limites, usos e frutos ou benfeitorias), sendo o mais
antigo aberto no ano de 1791, e o mais recente em 1822. Esses processos estão classificados
enquanto: esbulho, força nova, embargos, notificação, despejo e possessória; localizados e
salvaguardados pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).

Para a realização de nosso trabalho, selecionamos os processos adstritos dentro das então
vilas de Santo Antônio da Patrulha (1809), sendo estas 13 ações judiciais – 42% do total - que

793
Trata-se de um projeto de pesquisa, no qual trabalhei como bolsista de iniciação científica entre os anos de 2015-
2018, que pretende estudar a dinâmica, o ritmo e a espacialidade da ocupação territorial portuguesa desde a fundação
do presídio de Rio Grande até a independência através do confronto e do relacionamento do processo concreto de
apropriação da terra (apossamento, sesmaria, concessão de datas e compra, entre outras) com a instalação e expansão
da malha administrativa (estabelecimento de freguesias e vilas) e militar (guardas, fortins e armazéns). Sob coordenação
da Profª Drª Helen Osório.
1692

buscam resolver conflitos de terra. Esses litígios se concentraram entre os anos de 1804-1818.

Segundo Christillino: “as ações de esbulho consistiam na tomada arbitrária da posse ao seu
possuidor que era impedido do exercício pleno da propriedade, poderia ser efetuado pela coação
ou pela clandestinidade. Neste caso, então, era aberta a ação de esbulho (Christilino, 2011. p. 88.)
”. As ações de esbulho poderiam ser encaminhadas enquanto “obra nova” / “força nova” quando
o esbulho havia ocorrido a menos de um ano e um dia, ou, quando ultrapassado esse tempo, eram
nomeadas “força velha”. O autor afirma que as “obras novas” foram o tipo mais comum de litígio
em torno da propriedade da terra, estando frequentemente relacionada à abertura de novas roças
e/ou construção de arranchamentos. Também foi aplicada em casos de transposições de divisas e
de usos e frutos da terra alheia (pastagens, retiradas de madeiras, erva mate, etc). Os processos de
esbulho não permitiam a formalização da propriedade, eram utilizados como recurso para defender
a posse da terra frente à invasão de terceiros, entretanto a reconhecia judicialmente (Christilino,
2011, p. 87).

Já as ações de embargos eram empregadas nos casos que fossem constatadas alterações no
patrimônio, sendo ele semovente ou imóvel. As partes deveriam comprovam seus direitos de
propriedade através da apresentação de títulos ou documentos legais, ou pelo depoimento de
testemunhas. O autor afirma que, para o sul do Brasil, este tipo de ação foi largamente utilizada em
casos de disputas envolvendo ervais (Christilino, 2011 p. 115)

Os processos nomeados Possessória não foram descritos pela literatura. Essa denominação
(Possessória) – para o Continente – foi empregada para a classificação arquivística como um
“guarda-chuva” de ações que dizem respeito à posse de terras, sendo encontrado apenas nas capas
dos processos e não nos seus termos de abertura originais (Schommer, 2018, p. 32). As ações de
Notificações, como dizem seus nomes, eram ações que não visavam judicialmente à defesa da
propriedade, mas também eram utilizadas para defender os usos e frutos das mesmas. Por exemplo,
o objetivo da ação era “notificar” o réu para não mais fazer roças nos terrenos que o autor alegava
serem seus. Por fim, os Despejos eram ações que visavam à retomada da terra alugada ou arrendada
por terceiros. Seus motivos podiam ser diversos, como a falta de pagamentos dos alugueis ou ainda
a “má utilização do terreno”. Falaremos desse caso mais adiante.

Os processos cíveis de disputa de terra são um emaranhado de documentos, que iniciam


com uma ata de abertura, e seguem com um requerimento inicial, onde o autor, que se entende
enquanto lesado, reivindica via judicial o despejo, a notificação ou ainda a prisão do sujeito que o
lesou. Nesses processos são anexadas procurações dos réus e autores onde autorizam um terceiro
a arguir pelos seus direitos, também podem vir a serem anexas copias de documentos como cartas
1693

de doação de sesmaria, registros de compra e vendas e, se for necessário, inquirições de


testemunhas.

Tendo em vista esses fatores, e pensando em uma leitura qualitativa, e uma visão geral sobre
o teor das petições iniciais, ao iniciar a análise desses documentos na ocasião da escrita da
monografia de conclusão de curso, propus uma classificação dos processos de disputa terra em
Santo Antônio da Patrulha pelos motivos alegados na petição, assim temos:

Tabela 1: Motivações dos Litígios em Santo Antônio – 1804 a 1818.


Disputa pela Posse 30,76% 6
Conflitos de Divisas 38,46% 5
Contrato de Aluguel 7,7% 1
“Invasão para recuperar animais” 7,6% 1
Total 100% 13
Fonte: Schommer, 2018, p. 33.

Na ocasião da elaboração da tabela, consideramos “Disputa pela posse” todos os processos


em que o objeto da ação era a posse do território de forma inteira, sendo o requerido pelo autor
na sua petição inicial, ainda que no decorrer do processo esse pedido fosse alterado. O único caso
em que houve essa mutação foi o processo de Esbulho e Força Nova794 do ano de 1812, cujo
processo era continuação de uma querela anterior, em que já haviam gerado dois outros processos
cíveis. O Autor, João Cipriano, anteriormente acionado duas vezes como réu, agora mobilizava o
Padre José Inácio de Rezende Novais (como réu), alegando ser senhor e possuidor de uma porção
de terras de mato que teriam sido queimadas a mando do dito padre.

O segundo tipo que nomeamos para classificação dessas ações é “Disputa de Divisas”.
Classificamos assim os conflitos que ocorreram entre vizinhos e cujas alegações se centravam em
avanços indevidos de um dos confinantes aos terrenos de outro, seja para seu uso enquanto
estabelecimento de roçados, seja nas lidas com gado vacum, cavalar ou ovino. Haja vista que, como
as terras não eram cercadas, era comum o trânsito de animais entre os terrenos dos vizinhos,
podendo no movimento de reuni-los, passar pelas terras de seus confinantes e acabar misturando-
os. Essa classificação, entretanto, não inclui o caso que nomeamos “Invasão para recuperar gado”,
pois este não se passou entre confinantes, e, tanto o réu, como o autor, alegam que suas

794
APERS. Ação nº 312. Ano: 1812.
1694

propriedades se encontravam distantes mais de 10 léguas795.

O último tipo faz referência a contratos de aluguel, e, novamente, nele vemos como autor
o padre Rezende, desta vez requerendo o despejo de seu inquilino por alegar que o terreno que
alugava não comportava a quantidade de animais que o réu mantinha. Descreve o padre em seu
requerimento que:

[...] reclama posse de um pequeno circuito de terra o Tenente Policarpo de Freitas


Noronha que (?)endo da sua detenção com dificuldade poderão sustentar de
pasto a um vivo animal cavalara soga: assim mesmo o suplicado e um seu
agregado de nome Antonio Rodrigues da Rosa estão conservando naquele lugar
de pequena extensão do terreno diversos animais assim vacum como cavalares
ainda mesmo burros exores, utilizando-se assim do terreno do Reverendo
Suplicante que outra sorte jamais poderão a si (?) os ditos animais [...].

Isso demonstra também que os “direitos de propriedade” poderiam inclusive determinar


os modos pelos quais um terreno viria a ser utilizado, não podendo esgotar seus recursos de água
nem esgotar seu solo. Ao fim do processo, isso se entende como “certo”, pois a sentença é
favorável ao padre796.
Dessa forma, encontramos como tipos mais comuns de contendas que disputavam a posse
de determinado território na Vila de Santo Antônio da Patrulha, os referentes a divisas. Nestas,
exemplifica situações apontadas como decorrentes da prática de não delimitar as concessões e
propriedades de forma absoluta. Encontramos nesses processos referências a acidentes geográficos
como serras e encostas, assim como a margens de rios, confirmando o que foi apontado por Osório
(Osório, 2017, p. 61.) como motivadores para que, muitas vezes, os atos de força demarcassem os
reais limites. Ainda, podemos acrescentar aqui que ações judiciais também foram responsáveis por
talhar balizas em um universo de terras que possuíam como peculiaridade não serem demarcadas
e não possuírem divisas claras.
Outra característica, já descrita para o período colonial brasileiro, que também encontramos
para as contendas analisadas é a concessão de títulos de propriedade sobre terras que na prática já
estavam ocupadas. Como no caso do processo entre o Capitão Custódio de Souza Oliveira e
Francisco Gil797, em que, no ano de 1805, o primeiro abre uma ação de notificação contra o
segundo, reclamando que o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, na posição de Comandante da
Fronteira, havia concedido “uma sobra de terras sem prejuízo de terceiros” a Francisco. Entretanto,
o Capitão alegava ser o “terceiro prejudicado”, uma vez que diziam que aquelas paragens eram de

795
APERS. Ação nº 303. Ano: 1804.
796
APERS. Ação nº 313. Ano: 1813.
797
APERS. Ação nº 304. Ano: 1805.
1695

“seu antigo domínio”. Contudo, esse é mais um dos processos que não possui sentença final, mas
que no decorrer dos seus trâmites se percebe que as concessões iniciais remontam a 1791, e são de
imensa divergência quanto a seus tamanhos e localizações.

Nesses documentos, portanto, para dar força a seus requerimentos, foi comum que as
partes traçassem um breve histórico de suas terras. Não é possível avaliar se esse recurso foi uma
forma efetiva de se manter nas terras, uma vez que em metade dos processos – justamente nos que
se alegavam antiguidade de posse como argumento para sua disputa – não há sentença final. Nas
páginas finais desses processos tanto encontramos desistências (dois dos 13 casos), como ausência
de mais trâmites. Dentre os processos que tiveram desfecho judicial (quatro), três deles são entre
os mesmos atores: a querela entre o Padre Rezende e João Cipriano798.

Hespanha aponta uma possível resposta para a ausência de sentenças, segundo o


autor, parte delas não foi sequer reduzida a escrito, dado que as Ordenações
promoviam a simplicidade e a oralidade do processo nos tribunais locais,
satisfazendo-se frequentemente com a mera redação do assento final, ou
protocolo, pelo escrivão (Hespanha, 2005, p. 50). O que se constata em alguns
dos processos cíveis analisados, já que poucos (quatro) são os casos que tem a
sentença escrita.

Já as que apresentam sentença, essas raramente dão uma descrição apropriada das suas
motivações, como por exemplo: “julgo os embargos opostos ao lançamento”799 ou “julga a
notificação feita ao réu no manifesto do dia 23/09/1813 – que pedia o despejo”800

Portanto, a partir disso, se faz necessário adentrar as fontes e entender os sujeitos em seus
lugares sociais para identificar quem possivelmente tinha mais chances de ser beneficiado pela
decisão judicial. E ao procurarmos nominalmente esses sujeitos, encontramos os inventários de
30% daqueles que acionaram ou foram acionados pela justiça para resolver suas querelas801.

O que por si só nos dá o indicativo se que a maior parte desses sujeitos encontrava-se no
mesmo estrato social, uma vez que o processo inventarial só era aberto por aqueles que tinham
bens a legar. E, dentre os 30% que encontramos os inventários, todos possuíam bens de
magnitudes parecidas, e a maioria aberta após 20 anos das suas disputas serem levadas a câmara
configurando-se – no fim de suas vidas - como médios produtores. Assim, ao retomar a ideia de
Hespanha de um mundo jurídico colonial voltado para o consenso, e da violência implícita a esse
processo, podemos perceber que os sujeitos que acessavam esse meio para resolver seus problemas,

798 APERS. Ações nº 307; 311; 314. Anos: 1811; 1812 e 1812.
799 APERS. Processo nº 311. Anos 1812.
800 APERS. Processo nº 313. Anos: 1813.
801 7 de um universo de 22 sujeitos elencados como autores ou réus nos processos cíveis trabalhados. Conforme

Schommer, 2018, p. 42.


1696

quanto a terra, eram os sujeitos que se encontravam nos mesmos lugares sociais, ou seja, não
tinham suas disputas silenciadas pela preponderância social e econômica, como no caso de uma
disputa entre um grande e um pequeno proprietário.

Por fim, é importante lembrar que essas fontes foram produzidas por pessoas pouco ou
não alfabetizadas instruídas e auxiliadas por um escriba a contar com suas palavras seus
acontecimentos e seus entendimentos dos fatos transcorridos, das noções de justiça e direito no
acesso e permanência nas terras. Assim sendo, é possível concordar com as prerrogativas expostas
anteriormente de que o direito no Antigo Regime em terras americanas foi uma mistura de letra de
lei, expostas nas Ordenações e direitos costumeiros, ou entendidos enquanto tal, sendo um dos
mais importantes a noção de que a terra é de quem a cultiva, expressa pelo princípio do cultivo, e
pela argumentação mais comum nos requerimentos.

Referências

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul:


Fundo: Comarca de Santo Antônio da Patrulha. Ações cíveis.
Nº 303 – Ação Esbulho e Força Nova. Ano: 1804.
Nº 304 – Ação de Notificação. Ano: 1805.
Nº 306 – Ação Esbulho e Força Nova. Ano: 1814
Nº 307 – Ação de Força Nova. Ano: 1811.
Nº 308 – Ação de Notificação. Ano: 1811.
Nº 309 – Ação de Força Nova. Ano: 1809.
Nº 310 – Ação de Força Nova. Ano 1812.
Nº 311 – Ação de Embargos. Ano: 1812.
Nº 312 – Ação de Força Nova e Embargos. Ano: 1812.
Nº 313 – Ação de Despejo. Ano: 1813.
Nº 314 – Ação de Embargos. Ano: 1814.
Nº 315 – Ação de Embargos. Ano: 1814.
Nº 316 – Ação de Embargos de medição. Ano: 1814.
Inventário de Manuel Pereira Nunes. Ano 1826. Porto Alegre. Nº 906. Maço 37.
Inventário de Francisco Ferreira Ramos. Ano 1842. Santo Antônio da Patrulha. Nº 20. Maço 1.
Inventário de Policarpo de Freitas Noronha. Ano 1842. Encruzilhada. Nº 92. Maço 4.
Inventário de Francisco Antonio Gil. Ano 1844. Santo Antônio da Patrulha. Nº 41. Maço 2.
Inventário de Padre José de Rezende Novais. Ano 1848. Porto Alegre. Nº 91. Maço 3.
Inventário de Manoel Francisco dos Santos e sua Mulher. Ano 1856. Santo Antônio da Patrulha.
Nº 195. Maço 7.
Inventário de Victorino José Ribeiro. Ano 1863. Estrela. Nº 4. Maço 1.

Referência

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Freguesias Extramuros do Rio de Janeiro (Século XVIII). Dissertação de Mestrado. História.
Universidade do Rio de Janeiro, 2002.
1697

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. Rio de
Janeiro: Editora FGV, Faperj, 2009.

Christilino, Cristiano Luis. Ação de Esbulho. In: Motta, Márcia; Guimarães, Elione (orgs.).
Propriedades e disputas: Fontes para a história do oitocentos. Niterói, EDUFF, 2011

Congost, Rosa. Tierras, Leyes, Historia. Estudios sobre "la gran obra de la propriedad". Barcelona: Crítica,
2007.

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Hespanha b, António Manuel. Porque é que existe e no que consiste um direito colonial brasileiro.
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Massuchetto, Vanessa Carolina. Os autos de livramento crime e a Vila de Curitiba: apontamentos


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Motta, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito e direito a terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
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Osório, Helen. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. São
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1698

Souza, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa. São Paulo: Cia.
das Letras, 2006

Varela, Laura Beck. Das Sesmarias à propriedade moderna: Um estudo de história do direito brasileiro. Rio de
Janeiro: Renvoar, 2005.
1699

O Corpo Feminino em discurso: uma história das disputas de


poder nos periódicos médicos e na imprensa feminina no Rio de
Janeiro e em Salvador (1850-1899)

Victoria Carvalho Junqueira*

Resumo: essa apresentação trata da proposta de uma investigação de longa duração a respeito da
invenção, consolidação e consequências da ideia de “natureza feminina”, tal como legitimada pelo
conhecimento médico brasileiro desde a segunda metade do século XIX. Enfoca-se aqui as relações
de poder de gênero e de raça trabalhadas na construção de tal discurso de poder, embasado na
eugenia e no darwinismo social. Identificando os argumentos usados na bibliografia especializada
e nos periódicos médicos disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, como os
Annaes de Brasilienses de Medicina (1850-1889). Busca-se um cotejamento posterior em periódicos
já catalogados na obra de Constância Lima Duarte (2017), Imprensa feminina e feminista no Brasil
(Século XIX), alguns dos quais também estão disponíveis na Hemeroteca Digital.

Palavras-chave: Feminismos, História das Mulheres, História da Ginecologia e Obstetrícia.

Em O espetáculo das raças (1993), Lilia Schwarcz categorizou a Imprensa Médica Brasileira,
especificamente no Rio de Janeiro e em Salvador, como periódicos surgidos em meados do século
XIX como uma alternativa de jornalismo científico feita pelos profissionais de medicina, visando
um público especializado composto por esses profissionais. A proposta dessas revistas era a
imparcialidade com relação aos seus objetos e distância dos acontecimentos políticos marcantes do
período como a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. No
entanto, apesar de clamarem-se distanciados da política, colocavam-se como intérpretes e agentes
transformadores da sociedade brasileira, cuja função era sanar os males de uma sociedade doente
(Schwarcz, 1993: 147). Numa edição de 1867 da Gazeta Médica da Bahia, impressa em Salvador,
havia também a crítica ao vazio de originalidade da ciência brasileira, que meramente importava a
ciência estrangeira.
Ainda de acordo com Schwarcz, as duas tradições mais antigas da medicina no Brasil
diferenciavam-se no seguinte aspecto: a medicina baiana encaminhou-se para o aprofundamento
na medicina legal, enquanto o Rio de Janeiro especializava-se na “higiene pública”, buscando o
combate de grandes epidemais da época, como a notável epidemia de febre amarela, ocorrida em
1850 (Kodama, 2009).

*
Mestre em História pela Universidade de Brasília.
1700

No esteio do desenvolvimento desses estudos nas faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia,


surge a articulação desse discurso médico com função social para as práticas de cuidado (e
consequente controle) do corpo feminino. Segundo Elisabeth Vieira (2004), os discursos médicos
do último quartel do século XIX, embasados na noção de “diferença sexual”, exaltavam a
maternidade, patologizavam a existência feminina que nega o modelo maternal e estabeleciam uma
relação necessária entre a condição feminina e a loucura ou a doença. Essa apropriação do corpo
feminino pelo discurso médico verifica-se em periódicos médicos disponibilizados pela
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Um desses periódicos chamado Os Annaes
Brasilienses de Mecidina (1845-1889) era vinculado à Academia Imperial de Medicina, que era
situada no Rio de Janeiro. Os Annaes tratavam de assuntos de saúde pública que afetavam a
sociedade carioca como um todo, desde epidemias de febre amarela como a notável ocorrida em
1850, no Rio de Janeiro (Kodama, 2009), até as dificuldades com a contenção de doenças venéreas
como a sífilis.

Os Annaes apresentam, por exemplo, o debate acerca da prostituição enquanto uma


questão sanitária. Ou seja, esses profissionais da saúde enxergavam o uso sexual do corpo feminino
para o prazer sexual masculino enquanto relevante tema de interesse público. Segundo Engel
(2004), a publicação “[tratava de] tudo quanto pode interessar à saúde pública, e principalmente
sobre as epidemias, moléstias particulares de certos países”. As publicações da Academia, previstas
nos estatutos de 1830, passaram a circular na comunidade médica do Rio de Janeiro desde 1831 e
permaneceriam, ao longo da segunda metade do século XIX, como um expressivo meio de
circulação do conhecimento médico.

A mulher e a criança figuravam como as personagens centrais no tratamento das questões


de ordem higiênica, o que pode ser observado na recorrência de temas como a gravidez, o aborto,
o aleitamento, a mortalidade infantil, a educação da mulher e da criança. Transformada em mãe
higiênica, a mulher tornava-se aliada do médico na viabilização do projeto de higienização das
relações familiares (Engel, 2004: 43-44).

A quarta edição de 1852 dos Annaes trazem um discurso proferido pelo “sr. Dr. Costa”
acerca da prostituição:

conviria, a bem da saúde da população, que se instituíssem casas ou colégios em


que a prostituição fosse exercida de baixo de certos regulamentos e inspeções
policiais e sanitárias, como há em Paris e em outras grandes cidades; e
principalmente que se estabelecessem lugares em que as prostitutas fossem
periodicamente revistadas, e no caso de moléstia remetidas para os hospitais ou
proibidas de exercer [sua profissão], do que resultaria grande benefício para a
população; pois tornar-se-ia então a sífilis menos frequente e menos geral do que
1701

é, em consequência da plena liberdade que há de exercer a prostituição em


qualquer estado de saúde em que se acha quem a pratica, e não veríamos, como
infelizmente vemos, uma grande parte da nossa mocidade já estragada na flor de
sua idade.

Na mesma edição, o sr. Dr. Rego corrobora com o que o médico anterior havia afirmado,
acrescentando que considera a prostituição um mal necessário às sociedades humanas. Na opinião
do doutor, o papel do médico ao discuti-la era propiciar que tal atividade fosse realizada com os
devidos cuidados profiláticos:

ele a considera como uma consequência da natureza do homem, e dos instintos


e necessidades inerentes à sua organização e desenvolvimento intelectual,
favorecida sim pelas circunstâncias que oferece à sociedade e sobretudo pela
miséria, mas não criada unicamente por elas: é segundo ele um mal moral e físico
para a sociedade, mas ao mesmo tempo inevitável e até necessário para a
prevenção de outros maiores, que seriam sentidos pelas famílias. E por isso digno
de merecer a atenção das autoridades, afim de que possa ser contido nos limites
necessários, para que, longe de prejudicar altamente a sociedade, sirva até certo
ponto de corretivo e diversório de outros grandes males.

O doutor faz, portanto, uma defesa do controle da prostituição dentro dos limites
institucionais. Revelador nesse sentido é o estudo de Magali Engel (2004) acerca da higienização
da prostituição. Dentro do discurso médico, Engel mostra a visão dessa elite médica carioca de que
essas mulheres, apesar de “erradas”, pois praticavam sexo não em função da reprodução,
desempenhavam um papel presente em todas as sociedades e, portanto, necessário à realização da
“natureza masculina”.

Na 6ª edição dos Annaes de 1852, discute-se “a disposição habitual ao aborto e seu


tratamento pelo Dr. Metsch”, um artigo estrangeiro. A partir do excerto, é demonstrada a diferença
de tratamento dada a mulheres de distintas classes – o que correspondia, naquela época, portanto,
a uma separação também racial. Mais que isso, também podemos perceber a relação entre excitação
genital e perda de um bebê:

O autor previne que não tem em vista relatar todas as causas do aborto; lembra só que esta
predisposição se observa nas pessoas delicadas, sensíveis, irritáveis, das classes abastadas, e que é
favorecida por prenhezas aproximadas e mui frequentes excitações genitais.

O periódico dá indícios de que, embora houvesse, em tese, para tais profissionais da saúde
– e para a elite carioca da época como um todo – um ideal de mulher que seguia sua programação
biólogica, havia também as perturbações na regra em forma de mulheres caídas (prostitutas) e
mulheres pobres, as não irritáveis e sensíveis, que não estavam tão propensas ao aborto e às
excitações genitais quanto as abastadas.
1702

Outro periódico médico que traz ideias similares é O ATHENEO: Periódico Scientifico e
Literário dos Estudantes da Eschola de Medicina Bahia (BA) – 1849 a 1850. O periódico conta
com apenas 9 edições para o ano de 1849 e mais 3 edições no ano de 1850. Sua primeira edição
traz uma narrativa a respeito de uma mulher escravizada que visita um médico intinerante a respeito
de um tumor. O Dr. Francisco Bonifácio Andrade de Abreu, intrigado pelo mistério do tumor,
convence o senhor a operá-la, com base na sua importância científica:

O senhor afirmou que a doença da escrava era antiga e vários outros médicos já haviam
dito que não era possível retirar o tumor. [...] “Mas eu não pude descer do meu pressuposto: cheguei
até a dizer a mim mesmo – quero pesar aquele tumor, separado do organismo, seja o resultado qual
for – mas em abono da verdade e humanidade – eu contava com ele favorável”.

Observando a mulher escravizada, o médico relata que ela resistiu bravamente à cirurgia:

não sem grande perda de sangue da parte da operada, que aliás de uma coragem
exemplar durante a operação, teve dois desmaios no espaço intermédio à ablação
do tumor e à ligadura dos vasos. [...] antes da minha saída já a preta se ensaiava
em suas tarefas caseiras, e escaldaza com uma lágrima de gratidão a mão que a
desquitara de um mal encarnecido nos órgãos e com os órgãos.

Comparando os relatos do Atheneo acerca da operação da mulher escravizada com o que


dizem Os Annaes sobre a fragilidade e sensibilidade das mulheres abastadas (no período, as
brancas), há indícios do que Cooper-Owens (2017) aponta com relação à crença da existência de
um “supercorpo negro”, mais resistente à dor e, nesse caso, à tortura, do que o corpo dos brancos.

A 3ª edição d’O Atheneo, do ano de 1849, descreve as doenças mais comuns entre a
população baiana por classe e gênero. Dentre as doenças mais comuns entre as mulheres de
Salvador à época, estão os “cancros uterinos, as ulcerações do colo e os pólipos”. A causa
apresentada para a difusão de tais enfermidades, segundo o escritor, seria que: as nossas patrícias
por um pudor mal entendido sentem-se adoecer e ocultam o seu padecimento, muitas vezes até do
próprio marido, mais tarde mandam chamar uma comadre, que ordinariamente lhes agrava o mal.
Enfim, quando a doença tem estragado grandemente o organismo, quando talvez já não é curável,
pedem um Médico, para carregar com o anátema delas e de suas famílias, porque não curou uma
moléstia já incurável, e sobre a qual por muito tempo especulou a indigna comadre.
Indubitavelmente as afecções do útero na Bahia são causadas pela vida sedentária, que leva o sexo
das graças entre nós.

A partir desse trecho surgem indícios da relação de poder cruzada entre homens e mulheres
brancas e também mulheres negras. O primeiro indício é o médico queixando-se de não ter o
1703

acesso ao corpo feminino em vista das normas de conduta moral da época. O segundo revela-se
quando o doutor se queixa da relação das mulheres com as comadres, curandeiras informais às
quais mulheres abastadas têm acesso e preferem antes de submeterem-se à visita do representante
oficial das profissões da saúde.

O autor também elenca outras doenças da psiquê que afetavam tais mulheres: “A histeria,
os ataques epileptiformes, as palpitações, a melancolia, os faniquitos, muita vez fingidos e algumas
outras nervosas ainda são doenças não raras entre as bahianas.” Além das moléstias cancerígenas,
sofriam também as baianas de ataques de nervos.

A imprensa feminina e feminista do século XIX, expressão cunhada e defendida por


Constância Lima Duarte (2017), oferece-nos um contraponto com relação à visão da natureza
feminina trabalhada nos periódicos médicos. Segundo a autora, enquanto a imprensa feminina é
aquela pensada e dirigida para as mulheres, a feminista é a que combate a opressão e a discriminação
dirigida às mulheres, exigindo ampliação de direitos civis e políticos (Duarte, 2017, p. 14). Foram
143 títulos reunidos pela autora, que circularam pelo Brasil ao longo do século XIX. Dentre os
mais questionadores, destacam-se a República das Moças (1879), O Sexo Feminino (1873-1899),
A Mulher (1881-1883), A Mensageira (1897-1900), e O Escrinio (1898-1910).

Ehrenreich e English (2003) analisaram o processo de patologização do comportamento


feminino, ao final do século XIX, a partir dos discursos de especialistas homens, em grande parte
médicos. Segundo as autoras, tais discursos visavam tolher as atividades intelectuais de mulheres
como Gilman, que não se identificavam com a maternidade, identificada com a “natureza” e o uso
do corpo da maneira que foi ditada às mulheres. Como afirmou Elizabeth Grosz (2000: 49), o
modo de pensar o corpo no Ocidente baseia-se na oposição mente/corpo, e sua associação entre
a dicotômia macho (mente, razão) / fêmea (corpo, natureza). Gilman, na verdade, por sua própria
atividade intelectual e o estatuto enquanto mãe contraria essa noção dicotômica.

Esse modo de pensar pode ser associado ao que se formulou quando da criação das
primeiras cadeiras de Ginecologia e Obstetrícia no Ocidente que analisaram as consequências
sociais da anatomia feminina e a ditavam preceitos para uma vida ‘natural’ para as mulheres
(Ehrenreich, English: 2003, 18-19). A “Questão da Mulher” foi como as autoras denominaram
esse estudo da diferença no corpo feminino e a imposição de normas para sanar os
comportamentos que fossem considerados como desviantes da norma.

Problematizar tais questões traz como efeito imediato o questionamento do “triunfo das
ciências modernas”, fundado no seio do patriarcado para legitimar a ideia de que a “natureza
feminina” seria um arcabouço composto por atributos femininos ideais: o destino último da Mulher
1704

enquanto mãe, ou seja, a sexualidade feminina, a menstruação, a reprodução e a maternidade de


acordo com parâmetros específicos delimitados pela ciência masculinista e masculina em sua
origem.

Tatlock (1992) aponta para dois aspectos problemáticos do embate entre parteria e o campo
médico da ginecologia e obstetrícia. Se, por um lado, a prática médica de fato construiu um
conhecimento a respeito dos corpos femininos que é alheio às próprias mulheres e que negligencia
o seu cuidado, há também um campo dos estudos feministas que idealiza um passado em que as
mulheres estavam sob o cuidado das parteiras, o período aproximado entre 1450 e 1750. É notável
que a parteria tinha seus problemas e que não representava um éden matriarcal, como apontado
por Gowing (2003) e Pollock (1997). Na era pré-moderna, como no século XVII europeu, não
havia alianças naturais entre mulheres embasadas num conceito artificial como o de solidariedade
de gênero: fatores familiares e morais faziam muitas vezes com que as parteiras agissem a favor do
patriarcado, inspecionando os corpos de mulheres não casadas que engravidavam, em vez de
fornecer-lhes amparo.

No Brasil, em período semelhante, Del Priore (1993) localizou a difusão de discursos a


favor do povoamento da colônia que orientariam como as mulheres brancas deviam se portar.
Nesse período, fortaleceu-se a imagem da “santa-mãezinha” piedosa, provedora e assexuada, um
arquétipo de longa duração que permanece até os dias de hoje na sociedade brasileira. Esse papel
era uma forma de realização para o gênero feminino – a única socialmente respaldada e encorajada.
Nesse contexto, afirma a autora que ainda nos dias de hoje “o útero segue sendo o critério principal
de saúde para o corpo feminino” (Del Priore, 1993, p. 17), mas que práticas femininas tradicionais
ainda resistem frente ao saber oficial e masculino acerca da reprodução e do parto.

Del Priore (1993, p. 22) lembra-nos das distintas vivências maternas do Brasil colônia: a
mulher negra escravizada, a mulher branca e a mulher indígena.802 Os conflitos de raça, credo e
segmento econômico por vezes suplantavam alguma espécie de solidariedade de gênero, mas a
maternidade articulava possibilidade de acolhimento ou recusa. As diferenciações por segmento de
raça também são uma continuidade no Brasil contemporâneo quando pensamos na preponderância
de mulheres que sofrem violência obstétrica, a na desvalorização da vida da juventude negra e dos
povos indígenas.

Nesse contexto, a domesticação da “santa-mãezinha” foi impulsionada pelo discurso


normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino, que reforçava a função do corpo

802Embora estudos como os de Graham (2002) demonstrem possibilidades para a agência de mulheres escravizadas
no período, não é possível generalizar Caetanas para o período. O campo da saúde das mulheres escravizadas, de fato,
é diferente do que seria disponibilizado às brancas da elite.
1705

feminino para a procriação. Conforme os estudos de Carula (2012) acerca dos cursos públicos do
Museu Nacional no último quartel do XIX, a hierarquização racial da sociedade e a criação de uma
boa mãe de família burguesa estavam no centro do “projeto modernizador da sociedade” dos
discursos científicos da época.

Como lembra Porto (2006), a medicina institucionalizada da época tinha pouco a dizer
sobre a saúde de pessoas escravizadas, uma vez que “na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
apenas três teses elegendo essa temática foram defendidas (Duarte, 1849; Jardim, 1847; Souza,
1851) e o tema está praticamente ausente nas publicações da Sociedade de Medicina, entre 1831 e
1890”. Ainda segundo a autora, era mais comum que a saúde do escravo fosse tratada em relação
a outrem. Eram temas de interesse a saúde da escrava ama-de-leite que amamentavam a criança do
senhor e o escravo enquanto corpo transmissor de doenças, um risco para o meio privado e para
a sociedade como um todo (Porto, 2006, p. 1021).

A saúde das pessoas escravizadas, portanto variava de acordo com o contexto no qual
estavam inseridas. Porto (2006, p. 1022) afirma que:

Curandeiros, quimbandeiros, feiticeiros eram chamados na ausência dos médicos


itinerantes, que só percorriam de tempos em tempos as fazendas [...]. A
concepção de que a origem das doenças tinha uma natureza sobre-humana
explica melhor tal atitude e justifica também o uso de amuletos para se proteger.

Além disso, é importante adicionar que, em se tratando de um contexto urbano com o do


Rio de Janeiro nos fins do século XIX, somente quando já moribundas, as pessoas escravizadas
eram enviadas pelos senhores e senhoras aos hospitais. (Karasch, 2000, p. 194-195). Nos periódicos
que pretendo analisar na proposta de pesquisa, percebemos a presença de pessoas negras
escravizadas e de mulheres abastadas e sensíveis atendidas em casa pelos profissionais da saúde.

É necessário ressaltar que as questões relativas à saúde e previdência das mulheres não
faziam parte da pauta do Parlamento durante o Império. Elas estavam inseridas no domínio da
caridade e, nesse ponto, o Estado imperial revelou clara continuidade com a tradição colonial. No
período colonial, o Estado isentou-se de interferir neste domínio, atribuindo a administração da
caridade às irmandades e confrarias, sobretudo às Misericórdias (Senado Federal, 2006). É apenas
em 1879 que se institui uma reforma das Faculdades de Medicina que adiciona a obrigatoriedade
das cadeiras de ginecologia e obstetrícia no curso.

Ademais, é necessário ressaltar que o cuidado à saúde da mulher escrava não era totalmente
negligenciado se consideramos que tratava-se de uma mercadoria e, além disso, uma geradora de
novos escravos. Portanto, a saúde reprodutiva das escravas era de interesse para os seus donos.
1706

Dessa forma, a ginecologia e a obstetrícia têm em seu seio fundacional também a marca da
escravidão.

O primeiro hospital de mulheres dos EUA, fundado na Nova Iorque de 1855, foi idealizado
por James Marion Sims, e construído pelos escravos que Sims possuía. Nos EUA, o nascimento
da ginecologia andou lado a lado com o estudo da reprodução escrava e a experimentação nos
corpos dessas mulheres negras, compradas por Sims e cruelmente operadas sob o pretexto da busca
pela cura da fístula vesico-vaginal, “uma doença obstétrica comum que causava incontinência,
ocasionada pelo trauma e pela ruptura vaginal e anal que as mulheres sofriam durante o parto”
(Owens, 2017).

Segundo Deirdre Cooper Owens (2017), cada escrava vendida era examinada por um
médico para que seu valor fosse determinado, investigando se aquela mulher seria um investimento
seguro. O próprio Dr. Sims só foi içado à glória do reconhecimento pela cura da fístula vesico-
vaginal experimentando em mulheres negras escravizadas. Sua técnica foi inclusive elogiada e
descrita nos Annaes Brasilienses de Medicina na 2ª edição de 1863. Mais uma vez, a documentação
mostra o silenciamento a respeito dos corpos de mulheres negras utilizados para o “progresso” da
Ginecologia, quando os médicos descrevem o procedimento.

Esses médicos operavam sob completa desconsideração do estatuto dessas mulheres negras
enquanto pessoas, o que é pertinente à ideologia eugênica da época. Owens postulou um
“supercorpo negro” (2017: 7) a partir dos escritos médicos do período, que era mais insensível à
dor, dessa forma não pertencendo ao “sexo frágil” designado às mulheres brancas. Owens (2017:
7) aprimora esse conceito de tal forma: “Uma das mais importantes funções do ‘supercorpo’ negro
objetificado pelos médicos, era que para eles as mulheres negras não eram só usadas para a cura e
para a pesquisa, mas largamente em benefício da saúde reprodutiva de mulheres brancas”.

Ainda que se veiculasse em periódicos médicos um ideário acerca do corpo da mulher negra
como insensível como se fosse fato biológico, havia uma incoerência na própria narrativa:
tratavam-se de descrições de que essas pacientes escravizadas tinham que ser imobilizadas durante
o parto e a cirurgia indicam que essas mulheres sentiam dor. Owens questiona: “Porque essa prática
seria necessária se mulheres negras eram insensíveis à dor?” (2017, p. 10). Além disso, Machado
(2018: 337) acrescenta que não são raros os documentos que relatam “mulheres escravizadas
realizando trabalhos pesados às vésperas do parto, ou relatos que explicam como mulheres deram
à luz na roça enquanto carregavam pesos desproporcionais”.

Devemos, também, tomar cuidado com a noção unilateral de que o Estado e a ciência
patriarcal construíram um imaginário unívoco a respeito do corpo feminino. Embora hoje em dia
1707

seja corrente referir-se a seu próprio corpo com vocabulário médico, o que permite que nós nos
afastemos dele e nos tornemos alheias a seu funcionamento, sabe-se que a ciência médica se elabora
no seio da sociedade e em meio a disputas de poder políticas, e não num universo subtraído à
realidade, como observa Olivier Faure (2012, p. 13-15).

Referências

Fontes: O Atheneo (BA, Salvador, 1849-1850), Gazeta Médica da Bahia (BA, Salvador, 1860-1899),
Annaes Brasilienses de Medicina (RJ, 1850-1899).

Legislação: Proposições legislativas sobre questões femininas no Parlamento do Brasil, 1826- 2004.
Brasília: Senado Federal, Comissão Temporária do Ano da Mulher: Senado Federal, Subsecretaria
de Arquivo, 2004. 729p.

Bibliografia:

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Duarte, Constância Lima. Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX. Autêntica Editora, 2018,
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Ehrenreich, Barbara; English, Deirdre. Para seu próprio bem: 150 anos de conselhos de especialistas para as
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Faure, Olivier. “O Olhar dos médicos”. In: Corbin, Alain; Vigarello, Georges; Courtine, Jean-
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Gowing, Laura. Common Bodies: Women, Touch and Power in Seventeenth-Century England. New
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Graham, Sandra Lauderdale. Caetana diz não: Histórias de mulheres da sociedade escravista
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Grosz, Elizabeth. “Corpos reconfigurados”, em cadernos pagu (14) 2000: pp.45-86.

Karasch, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
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Kodama, Kaori. Antiescravismo e epidemia: ‘O tráfico dos negros considerado como a causa da
febre amarela’, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. História,
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1708

Machado, Maria Helena de Toledo. “Mulher, corpo e maternidade”, Dicionário Crítico da Escravidão
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Machado, Maria Helena de Toledo. “Corpo, gênero e identidade no limiar da abolição:” Afro-Ásia,
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Porto, Angela; Sanglard, Gisele; Fonseca, M. R. F.; Costa, R. G. R (orgs). História da saúde no Rio de
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Vieira, Elisabeth M. A Medicalizacao Do Corpo Feminino. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, 84p.
1709

Escritos em Pólvora: Narrativa e representação nos periódicos e a


Primeira Revolta de Boa Vista (1891-1894)

Vinícius Victor do Prado Pereira*

Resumo: esse artigo tem como objetivo analisar parte da cultura política da República Brasileira
em seus primeiros anos (1889-1894). Para tanto o objeto de análise aqui apresentado é o conflito
conhecido pela historiografia como “Primeira Revolta da Boa-Vista”. Ocorrido no norte do estado
de Goiás sob forte influência do coronelismo, da descentralização política e de um executivo
federal interventor a revolta atua como um estudo de caso amplamente relatado pelos periódicos.
Sendo assim, a Primeira Revolta da Boa-Vista é aqui entendida como um estudo no qual –
mantendo sua particularidade regional – chama atenção à necessidade de novos objetos de estudos
que auxilie a compreensão de parte do imaginário do que foi a sociedade brasileira e sua cultura
política nesse recorte de tempo e espaço.

Palavras chave: república, coronelismo, imprensa, politica, goiás.

O saber historiográfico e seu modo de apresentação são ferramentas utilizadas pelo


historiador para análise do seu objeto, as diferentes fontes se apresentam como a principal matéria
a ser moldada por esses instrumentos. Nesse contexto a narrativa atua como uma tentativa de
vasculhar o passado em busca da análise do evento histórico; deixar fluir a mente por um oceano
de alternativas historiográficas que emergem da fonte proporciona adotar critérios de análises que
se apresentam no campo das ideias, a construção narrativa do passado é criteriosa e respeita o
tempo histórico dos seus sujeitos e suas formas de organização da vida pública e privada. Nesse
trabalho há a tentativa de construir uma espécie de “rede de informações” entre as fontes, que se
ligam aos diversos eventos para a construção do texto final: o viver social e político no contexto
da Primeira Revolta da Boa Vista. As alterações, em diferentes escalas, que influenciaram a vida
cotidiana em Boa Vista e o conflito em si fazem que uma localidade tão distante dos tradicionais
centros decisórios se apresente como uma espécie de estudo de caso da experiência social e política
dos primeiros anos da chamada República da Espada (1889-1894).

Pobres e agrárias as cidades do norte de Goiás cresciam ao longo dos afluentes do rio
Tocantins, suas influências políticas e sociais acompanhavam o curso de seu desague: Goiás, Pará
e Maranhão; as divisões artificiais nem sempre se sobrepuseram as divisões geográficas e naturais

* Graduando em História pela Universidade de Brasília no Departamento de História do Instituto de Ciências


Humanas. É bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ através do
Programa de Iniciação Científica da Universidade de Brasília. E-mail: viniciuspradop@live.com
1710

que o relevo natural impõe ao homem. Essas relações ribeirinhas influenciavam e eram
influenciadas pelos acontecimentos em Boa Vista, principal assentamento em um norte distante da
capital de Goiás; essas vilas e aldeias possuíam uma relação mútua de proximidade e dependência,
ignoravam muitas vezes o conceito de fronteira do estado. “m comunicação constante de interesses
e famílias com as cidades do sul e centro de Maranhão, Carolina, Grajaú, Barra do Corda etc., Boa
Vista foi agitada durante todo o século XIX pelas rivalidades políticas que dilaceravam o interior
maranhense”, (Palacín, 1990, p. 35), assim o norte do Goiás será ao longo dos anos povoado por
migrantes, muitos deles procurando refúgio político. O relatório produzido por Cândido Mendes
em 1852 chamado: “A Carolina ou, a definitiva fixação de limites entre as províncias do Maranhão
e de Goyaz: questão submetida a decisão da Câmara dos srs. Deputados desde 15 de junho de
1835” auxilia a Câmara dos Deputados na resolução do conflito limítrofe e decide pela
incorporação da cidade de Carolina pelo Maranhão reavaliando os tratados de fronteira entre as
duas províncias. Em 1858 Boa Vista é elevada à categoria de cidade e no relatório supracitado há
um subtópico com o seguinte título: “A que Provincia deverá pertencer o território da Carolina?”,
esse trecho pondera sobre a mudança de Carolina para o Maranhão e sobre as consequências para
Goiás, assim descreve o autor:

[...] estabelecendo Goyaz do outro lado do Tocantins, o seu porto de escala; e o


tem muito bom e em via de prosperidade na aldêa da Boa Vista, a qual segundo
nos affirmão, já é superior em importância á propria Carolina. [...] Boa vista é uma
aldêa da Comarca da Carolina, situada na margem esquerda do rio tocantins, e um
pouco abaixo da villa. Esta aldêa cuja população é em geral maranhense, tem
consideravelmente augmento sob a direcçao do missionário Fr. Francisco do
Monte de S. Yito, que ah com esmolas dos fieis construiu uma boa igreja. (1852,
p. 60)

Portanto, desde o começo do século XIX percebe-se a herança conflituosa que essa região
possuí. Presente nas organizações políticas e sociais, tais relações – ora amistosa ora conflituosa,
mas indiscutivelmente íntimas – auxiliarão as elites locais a colocarem em xeque a própria
concepção dessa tríplice fronteira e se utilizarão do aparato republicano para manter suas
influências sob a sociedade. Estabelecendo essa forma de poder, – um poder local, estadual e
municipal – que teria agora através das bases republicanas um atributo político e decisório de maior
relevância. Tal fenômeno não pode ser entendido como novo na história do brasil, a lógica de
dependência de uma população rural sob a influência de um latifundiário mandatário é fruto de um
processo de acumulação gradual de poder. Se fundindo com os interesses de um Estado no qual
poderiam atuar de forma mais relevante na política, a presença desses “senhores” já pode ser vista
nas primeiras décadas do século XIX:
1711

O arranjo institucional consagrado pelas reformas da década de 1830 e pela


revisão dos anos 1840 foi resultado de um processo no interior do qual as elites
provinciais se constituíram como elites políticas comprometidas com o novo
Estado, evitando assim a fragmentação [...] o problema de não considerar a
efetiva participação das elites provinciais na construção do Estado está no perigo
de entendê-las como elemento a ele externo e que em determinado momento, na
República, o teriam tomado de assalto (Dolhnijoff, p. 19)

Conforme disserta Dolhnijoff (2005) os arranjos políticos que permitiram a unidade do


território brasileiro nos anos posteriores à independência, serão, no período republicano, heranças
sociais perpetuadas pelas elites locais. Em síntese Boa Vista vai se situar em um período de
experimentação de uma maior autonomia dessas elites em um estado descentralizado, permitindo
que essa autonomia dilua o poder político entre vários grupos causando tensões permanentes. Em
diálogo com as relações de poder as características apresentadas apontam o chamado
“coronelismo” como parte essencial para a compreensão dos agentes presentes nesse trabalho.
Diversos debates na historiografia se atentam para a discussão do coronelismo e a sua relação com
a vida política e social na Primeira República. Grande parte da argumentação clássica de Leal (1975)
na qual trata da origem do poder dos coronéis é a relação direta com o poder privado dos coronéis
com o poder político que poderia ser alcançado pelos votos, o que Palacín concorda e endossa em
seu trabalho levando em conta as falas de Leal, de Carone e Pang, porém, escândalos de apuração
de votos eram normais e parte da narrativa de vencedores e vencidos era pautada nessas denúncias,
em 12 de janeiro de 1892 o jornal Estado de Goyaz estampa em sua primeira página:

O que se deu em outros Estados, aqui reproduziu-se de modo que todos sabem
[...] Em 31 de janeiro de 1891, ao passa que as oligarchias coligadas faziam somente
cinco mil e novecentos votos, o partido catholico era representado por quatro mil
votos [...]ficando aprovado q mais de dous mil votos do governo eram fictícios,
como se verificou nas eleções de Catalão, Rio Bonito, Palma, Posse, S. José do
Tocantins, Boa Vista e etc. (p.1 edição 00032)

Frente a essa afirmação a alcunha de cidadão garantiria um status na sociedade, mas o voto
será ao longo dos anos um instrumento de afirmação política, como uma espécie de validação
perante a sociedade. Não é do interesse desse trabalho trazer essas afirmações como forma de
retirar a autoridade do coronel, mas dilui a ideia de um poder soberano dos coronéis em um feudo
à brasileira. A sobrevivência do poder político do coronel se baseava sim no controle do voto,
termo apresentado por Cammack (1979) e explicado por Carvalho (1989), mas a ideia apresentada
por Carvalho se estrutura de uma forma diferente:

O coronel podia controlar os votantes e manipular atas eleitorais, mas quem definia
a apuração dos votos e reconhecia os deputados era próprio congresso em acordo
com o presidente da República [...] uma testemunha ocular o processo de
1712

reconhecimento na Câmara em 1909 observa: “os reconhecimentos de Goiás, Rio


de Janeiro e Distrito Federal só se farão quando os chefes chegarem a um acordo.
Para o caso as eleições nada estão valendo.” (1989, p. 136, apud Vieira, 1980, p.
99)

Assim segundo os autores o poder dos coronéis redigiria em uma espécie de “união” dos
poderes locais em torno de um partido que permitisse a ordem do estado. Carvalho (1989) cita que
um conflito em larga escala entre os coronéis colocaria os governadores em situações por vezes
insustentáveis e faria com que fossem depostos, o caso de Boa Vista não ocasionou a troca do
governador diretamente mas houve intervenção federal visto que as alianças dos então mandatários
de Boa Vista o colocavam em posição privilegiada, tal queda pode ser explicada a essa rede de
interesses e ao que Soo Pang (1979) classifica como Coronelismo Interestadual:

Existiam laços econômicos, sociais e políticos entre os coronéis de seis estados:


Bahia, Minas, Goiás, Pernambuco, Piauí e Maranhão [...] Muitas das principais
famílias coronelistas da Bahia casaram seus filhos com filhos de famílias
associadas no sul Piauí, leste Goiás, sul do Maranhão, oeste de Pernambuco e
norte de Minas. Laços econômicos e uma rede de parentesco reforçaram as
alianças políticas desses coronéis como grupos de ajuda mútua (Pang, p. 52-53).

Dolhnijof esclarece que a estabilidade política dependeu de uma aliança entre as elites
provinciais com o governo central, mas como citado em Pang os laços entre as elites locais de
diversos estados eram muito mais estreitos que o que se assumia. Logo, os arranjos institucionais
com a nova forma de organização política do território brasileiro se alterarão de tal forma que a
federalização da vida pública – que na prática já existe nessas localidades no qual os laços familiares
sobrepõe a identidade regional – agora se institucionalize de uma forma prática: diminui-se os
intermediários entre os mandatários regionais e o poder da união, necessitando de um rearranjo
entre a organização política e a organização social.

A centralização imperial permitia uma unidade pautada em uma representação distante das
províncias na figura do Imperador, por sua vez, a República irá permitir que a representação local
seja a partir do próprio município, dessa forma a Constituição de 1891 assegura:

[...] Constituição Federal de 1891, que atribui aos estados a organização dos
municípios, desde que garantida aos mesmos, autonomia no que se refere aos
seus interesses peculiares (art. 68 - Os Estados organizar-se-ão de forma que fique
assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse).
Essa decisão, ambígua, resulta da pressão de uma corrente municipalista que na
constituinte federal de 1891 concentra na liberdade do município a polêmica do
federalismo (Trindade, 2003).

A descentralização do governo federal, não como fenômeno novo, mas sim como uma
troca de protagonismos na política brasileira veio a permitir a emersão mais contundente do
1713

coronelismo na nova política republicana. Com novos dados na mesa há a necessidade de expandir
os interesses, rapidamente a ferramenta mais utilizada para propaganda política serão os jornais.

Sodré (1998, p.323) sobre a produção de periódicos diz: “a grande imprensa fez do tema
político a tônica de sua matéria – tal como a política era entendida e praticada na velha república
oligárquica”. Haverá a politização de grande parte da vida social e os jornais em circulação se
utilizaram desse embate para fortalecer as posições políticas, muitas vezes do próprio dono ou
editor do jornal, estabelecendo a imprensa personalista que ganharia força no período. Longe de
São Paulo e dos grandes jornais da Rua do Ouvidor no Rio a imprensa se desenvolvia nas pequenas
cidades no brasil agrário “ a imprensa estava também consolidada, [...] nas pequenas cidades, nas
folhas semanais feitas em tipografias, pelos velhos processos e servindo às lutas locais” (Sodré,
1998, p. 275). No livro “Imprensa e História do Brasil” a historiadora Maria Capelato (1988)
apresenta pontos sobre o uso dos periódicos como fonte pelo historiador, sobre o episódio da
proclamação da república participa do debate acrescentando:

[...] a República desponta como um novo marco da história do Brasil, como


observa Maaria Stella Brescianne, expressa um ajuste de contas com o tempo
anterior, cujas possibilidades foram consideradas esgotadas. Expressa também o
desejo de romper com vínculos do passado e através de um discurso
homogenizador (Capelato, p. 46)

A tentativa de romper com o passado surge de uma mesma necessidade de um uso mais
abrangente dos jornais, com sua expansão em todo país novas narrativas se apresentam enquanto
antigas se reinventam através do discurso republicano. A imprensa em Goiás já possuía certa
relevância nas décadas finais do século XIX com a formação do primeiro partido político nos anos
70, o uso da imprensa como arma política permitiu que Goiás tivesse um número razoável de
periódicos:

Em uma província retratada pela historiografia sob o estigma de decadente,


pobre e distante, chama-nos a atenção a quantidade de periódicos que circularam
durante o século XIX. É possível perceber a variedade dos locais de origem de
cada folha, assim como a diversidade dos nomes à frente dessas iniciativas. Não
se tinha em Goiás uma imprensa unicamente oficial, a cargo das publicações
governamentais. Pelo contrário, vemos, em todo o século XIX, a tentativa de
homens públicos em ganhar espaço pelo instrumento da imprensa.
(Ribeiro,2016, p. 33)

Consolidado o mercado tipográfico por essas elites a burguesia liberal nas cidades fomenta
esse grande número de periódicos permitindo uma heterogeneidade de jornais, relatando uma
maior disputa política entre diversos blocos que nesses primeiros anos da República não hesitarão
de se utilizar desses espaços para o embate político. Porém, no caso de Goiás veremos no período
1714

uma limitação das narrativas dos jornais, sendo os mais atuantes em defesa de a Leopoldo de
Bulhões803, Fleury Curado804 e aqueles ligados ao Partido Católico e do Republicano Federal. As
principais fontes utilizadas para se compreender a revolta atribuem a essa um caráter de conflito
que teve repercussão regional, sendo estampado em jornais do Maranhão, Pará, Bahia, Paraíba,
além de periódicos no estado onde acontece o conflito, o próprio Goiás. Nesse contexto, somente
alguns trabalhados foram produzidos nas primeiras décadas do século XX, sem relevância fora do
âmbito estadual e de difícil acesso ao público em geral. O principal autor sobre o tema e que trata
de maneira mais elucidativa é o historiador Luís G. Palacín. Em sua obra “Coronelismo no
Extremo Norte de Goiás, o Padre João e as Três Revoluções de Boa Vista” Palacín faz uso das
fontes impressas, em especial os periódicos. Para tratar da Revolta e seus desdobramentos os
recortes dados pelo autor quanto crítica às fontes e o próprio modo de produção historiográfica é
direta e concisa, a contextualização histórica com o evento elucida o grande conhecimento sobre
o tema. Dentre os mais diversos assuntos o autor procura destrinchar através desses jornais um
ponto principal, que aqui nesse trabalho será questionado:

A hipótese aqui levantada se refere diretamente às relações entre o poder local –


municipal – e o governo central do Estado sob o regime coronelístico em Goiás
[...], a hipótese por nós proposta, e ao parecer confirmada por este caso, é que
em Goiás o partido significava uma mediação obrigatória entre o poder local dos
coronéis e a ordem mais ampla representada pelo a ordem mais ampla
representadas pelo Estado. (Palacin, 1990, p. 6).

A crítica ao autor é a ideia de que o evento não se restringe somente à dinâmica interna do
município e que esse recorte de eventos ocorridos em Boa Vista é marca a desse coronelismo
interestadual que se justifica e se apresenta através das diversas visões presentes nos periódicos.
Abrindo o leque de perspectivas a Primeira Revolta da Boa Vista condensará uma série de
elementos que se farão presentes: a questão das fronteiras, a acumulação de poder local por meio
de cargos e o modo de governar de Floriano Peixoto amparado pela estrutura republicana, o último
sendo essencial para o decorrer do levante.

Porém, mais do os aspectos políticos do conflito há a presença de um elemento de


desequilíbrio: a Igreja Católica. Com a presença de representantes da Igreja o discurso nacionalista
católico sob a figura de Frei Gil de Villanova dá novos contornos ao conflito e o debate religioso

803 José Leopoldo de Bulhões (1856-1918), principal político goiano ao fim do Império e início da República, eleito
presidente do Estado de Goiás em 1892 abdica para ocupar a cadeira de Deputado Federal também pelo Goiás.
Crítico de Deodoro da Fonseca e aliado de Floriano Peixoto atua ativamente nos debates na Câmara dos Deputados
acerca da Primeira Revolta da Boa Vista.
804 Sebastião Fleury Curado (1864-1944), deputado Federal pelo Goiás entre 1891 a 1893 e principal opositor de

Leopoldo de Bulhões na década de 1890. Atuante na imprensa goiana foi colaborador do Publicador Goiano e Goiás e
fundador do jornal O Goiano.
1715

também se fará presente nos periódicos. Em meio a uma constante tensão entre os chefes locais a
Primeira Revolta da Boa Vista seria o último fósforo usado para o estopim desse barril de pólvora,
o evento que acarretaria sua explosão: a disputada pela Fazenda Cordilheira e o Processo Gouveia
em fevereiro de 1892.

Cláudio Gouveia fora preso como suposto assassino de sua esposa [...] Vaqueiro,
casado com a viúva do patrão, tornara-se com os bens da mulher um próspero
fazendeiro. Tempos depois, alta noite, a mulher foi esfaqueada na cama, quando
Gouveia se encontrava fora em viagem de negócios [...] foi preso e esperava
julgamento [..] Gouveia arbitrariamente excluído da partilha dos bens na metade
[...] Leitão soube aproveitar-se da situação, pois ao serem leiloados os bens da
esposa de Gouveia, arrematou a fazenda Cordilheira, uma das maiores da comarca,
pela ínfima quantia de oitocentos mil réis – o preço aproximado de 30 cabeças de
gado. (Palacin, 1990, p. 52).

Palacín destrincha o caso e coloca como antagonistas Leitão – chefe local ligado a Bulhões
e um dos principais envolvidos no evento sedicioso – em contraposição ao Frei Gil de Villanova e
ao Tenente-Coronel Perna, dividindo as facções em torno dos adeptos dos dois grupos. A grande
discussão que permeia a questão Fazenda Cordilheira perpassa também pela ideia de que o controle
dos poderes locais – executivo, legislativo e judiciário – serve aos interesses do mandatário político
do período. Leitão possuía vida política ativa no Goiás, no Império era ligado ao Partido Liberal e
participou como Constituinte Estadual em 1891 e como deputado estadual entre 1892-
1894805.Como nenhum evento histórico pode ser isolado de um contexto mais abrangente a revolta
se localiza em um período em que Goiás passava por uma instabilidade política que resultara de
inúmeras trocas de presidente e de conflito armados no interior. Meses antes as cidades de Catalão
e Santa Luzia foram palcos de conflitos relatados pelo Estado de Goyaz: “Consta que em Catalão
um pequeno grupo de homens declarou ao dr.juiz de direito, ao promotor publico e á intendencia
que estavam depostos, continuando porem todos no legitimo exercicio de suas funções”806, a
tentativa de pacificação do estado segundo a visão do governo federal passava pelo estabelecimento
dos Bulhões como líderes regionais.

O início dos conflitos se inicia efetivamente pela reabertura do caso Gouveia pelo juiz de
direito Hermeto Martins marcando a sessão do júri para 29 de fevereiro de 1892. Palacín esclarece
que a maioria dos movimentos ocorridos eram extremamente políticos, Leitão estaria em desgraça
política visto que seus aliados estavam fora do governo estadual. Ainda em 1891 o movimento de

805 Informações coletadas no site da Assembleia Legislativa de Goiás, link de acesso: https://portal-
legado.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1964
806 Estado de Goyaz: Orgam do Partido Republicano Federal, edição 32 de 12 de janeiro de 1892, página 03.

Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/244457/125


1716

23 novembro807 fez suas aspirações chegarem a Goiás ocasionando a queda do então presidente
Rodolfo da Paixão. Em um contato íntimo entre Bulhões e Leitão surge a solução para dois
problemas: o da Fazenda Cordilheira e da substituição de Rodolfo Paixão na presidência do Estado:
“Manobrava junto a Floriano, pedindo uma intervenção em Goiás, Floriano, hesitante resistia pois
em Goiás acabava de ser eleito legalmente Rodolfo Paixão [...]” (Palacín, 1991, p. 52), essa
intervenção se justificaria com o levante em Boa Vista, em correspondência entre Bulhões e Leitão
se lê:

Comece por lá o barulho: deponha logo a intendência inclusive o Hermeto


Martins que deve ser enxotado: aclame uma Intendência e autoridades policiais,
aclamando outras e passando depois a aclamar Governador, depondo, não
reconhecendo o que governava (Palacín, 2001, p. 53).

Essa correspondência leva a crer que os interesses políticos que rondavam a Boa Vista se
mostram maiores que somente a deposição de um inimigo político local, a construção de um
projeto de poder vindo de Bulhões e do próprio Floriano Peixoto adicionam mais elementos ao
evento. A revolta serve como estopim desse arranjo político, os periódicos ao relatarem o conflito
apoiam os diferentes grupos presentes através de sua própria orientação política, rapidamente as
questões internas do conflito são deixadas em segundo plano, o “Estado de Goyaz” ligado ao frei
Gil de Villanova e ao Tenente-Coronel Perna em 22 de maio de 1892 sob o titulo “Os Factos de
Bôa Vista” atacam a posição de Leitão:

E afinal de conas quem procura immiscuil-o francamente n’estes negócios não é


o coronel Leitão, que se diz deputado estadal, e andava no norte de nosso Estado
fazendo propaganda separatista [...] tentando anexar parcelas de nosso Estado ao
do Maranhão e fomentando esta tendência exagerada que em toda a parte hoje
se nota ao fraccionamento dos Estados entre si e á separação d’estes da União
(Estado de Goyaz, edição 48, p. 02)

O editor do “O Estado de Goyaz”, Monsenhor Ignácio Xavier da Silva808 que fora do


Partido Católico que se desdobrava no Partido Republicano Federal, opositor de Bulhões e de
Leitão cobriu o conflito ao longo dos anos. Analisando o trecho com o perfil do jornal percebe-se
a tentativa de atrelar a imagem de Leitão a um movimento separatista que levaria Boa Vista a ser
anexada ao Maranhão. Ao se pensar em Boa Vista como parte dessa fronteira confusa entre
Maranhão, Pará e Goiás as narrativas dos periódicos tendem a ser construídas sob aspectos que

807 O 23 de novembro marca a renúncia de Deodoro da Fonseca à presidência do Brasil, em seu lugar sobe ao poder
Floriano Peixoto aliado de Bulhões.
808 Nascido em 1855 foi escritor, jornalista e religioso nascido na cidade de Goiás. 1881 tornou-se Cônego Honorário

da Capela Imperial e foi eleito deputado estadual por Boa Vista, após o fim das hostilidades em Boa Vista se
transferiu para Uberaba- MG,. Em 1896 tornou-se o patrono da Cadeira 12 da Academia Goiana de Letras, faleceu
no Rio de Janeiro em 1929 aos 74 anos de idade.
1717

justificariam as suas posições, a própria mudança de Ignácio Xavier da Silva do Partido Católico
para o Republica Federal indica ao menos a tentativa de se atrelar a imagem do jornal ao movimento
republicano, mesmo sendo ele monsenhor e representante da Igreja Católica, porém os opositores
ao monsenhor não hesitaram em colocar em xeque a posição do Estado de Goyaz. O Diário do
Maranhão em agosto de 1892 noticia os combates, destaca-se o trecho:

Os republicanos de Carlos Leitão foram pouco a pouco perdendo suas posições,


que os nacionais catholicos tomavam de assalto, arrombando as portas e decidindo
a ferro frio [...] o fanatismo religioso tem dado esse tom de aplicavel ferocidade, que
caracterizou o nosso 35 e que desvirtua qualquer revolução. Todo republicano é
atheu, deve morrer, como aqui o branco (em 35) porque era maçon [...]E’ provável
que a estas horas o governador de Goyaz, Braz Abrantes, e o do Maranhão, que
está sendo saqueado na Carolina, tenham tomado providencias para conter o zelo
de dois missionários. (Diário do Maranhão, edição 5681, p.02, 16/08/1892).

Procurando se estabelecer como novo status quo os republicanos entram no embate pela
conquista da “cidadania” e do sentimento de vitória do seu projeto abraçando o positivismo e
reforçando a dicotomia entre o novo republicano e o velho monárquico. No caso da publicação
do Diário do Maranhão essa dicotomia fica ainda mais clara, de um lado os republicanos
defendendo sua posição oficial e do outro os fanáticos religiosos, o periódico compara o
movimento de religiosos com o levante dos Malês em 1835. Colocando lado a lado as duas
publicações ambos os jornais se intitulam defensores republicanos justificável visto que era este o
discurso vencedor desde o golpe republicano, mas outros elementos se mesclam dentro da
narrativa: o regionalismo e a questão religiosa. A tentativa aqui, como em outros periódicos é usar
os jornais como ferramenta de convencimento da emergente burguesia brasileira e da sua influência
sobre a sociedade.

A Primeira Revolta da Boa Vista é um estudo de caso com características enriquecedoras


para a compreensão do sentimento político e social da Primeira República fora dos grandes polos
de poder. A abrangência do conflito com a presença de agentes dos estados limítrofes respeita a
influência regional que Boa Vista tinha no Maranhão, Pará, Paraíba, Goiás e Bahia. Do jornal “O
Democrata: Orgão do Partido Repiublicano Democratico” extrai-se a seguinte notícia com o título
“Revolta em Goyaz”:

As autoridades d’essa povoação goyana, não podendo sufocar o movimento


revolucionário pediram auxilio ao governo maranhense [...] Não há que vêr, o povo
vae pouco a pouco despertando do lethargo em que tem jazido, e levanta-se,
resolvido a construir diques contra a opressão do alto governo da republica [...] O
general Floriano está condenado por seus inúmeros atentados contra as liberdas
publicas: a sua punição é inevitavel (O Democrata, edição 142, p. 02)
1718

A indicação do envio de tropas é um aspecto a se destacar na revolta, há notícia do envio


de tropas do Goiás, Pará, Maranhão e da própria intervenção federal. As tropas procuravam
atender os interesses políticos de sua localidade, a chegada das tropas vindas do Maranhão por
ordem do Ministro da Guerra foi assim relatada por Palacin (1991. p.68): “[...] as autoridades locais
foram todas depostas, uns presos e outros banidos, e em seu lugar foram colocados os homens de
Leitão”. Evidente as pretensões da tropa a favor do aliado de Floriano Peixoto o descontentamento
e as críticas a Floriano dentro do contexto da Boa Vista se tornam assunto constante, o Correio
Paraense ataca enfaticamente Leitão identificando-o como florianista e atribui a ele o assassinato
de uma família de 18 pessoas809.

Tal como as origens do conflito e seus desdobramentos o fim da Primeira Revolta da Boa
Vista também se dá em um contexto do governo de Floriano Peixoto. Como evidenciado ainda
por Palacin (1991, p.53): “No Estado do Rio, o movimento começou pelas localidades mais
insignificantes, as quais levantaram-se, depondo logo as intendências e autoridades policiais,
aclamando outras e passando depois a aclamar Governador, depondo, não reconhecendo o que
governava [...]” ou seja, ao que se indica fazia parte de um projeto de governo a instabilidade política
e social nessas localidades, que poderiam apoiadas na figura de um mandatário se revoltar contra o
governo estadual. Ao se aclamar novos chefes do executivo – ignorando as vias democráticas – é
o maior controle do governo e há a justificativa por uma intervenção. No Goiás não seria diferente,
a intervenção de Floriano – o 20º estado a intervir– indicando seu chefe em armas Ovídio Abrantes
como presidente da província intensificou as disputadas até 1894 quando José Dias, aliado de
Perna, derrota o interventor Hesketh aliado de Leitão. Como permanência desse lugar de fronteira
Carlos Leitão, após sua derrota, atravessa o rio Tocantins e funda Marabá no Pará, permanecendo
até sua morte como um dos principais chefes locais, na edição de 03 de junho de 1894 o jornal
Correio Paraense parabeniza Leitão e diz “e a futura cidade será necessariamente uma grandeza
(edição 606, p. 01).

A Revolta da Armada e a Revolução Federalista entraram para o imaginário popular como


as revoltas do período, mas segundo Queiroz (2015) os relatórios do Senado demonstram que os
assuntos mais abordados pelos senadores da legislatura entre 1891-1893 foram os pedidos de
anistia9 devido aos constantes levantes ocorridos em período semelhante. A própria Revolta da Boa
Vista foi anistiada junto a um movimento ocorrido em Alagoas: “Artigo unico. Ficam amnistiadas,
desde já, todas as pessoas que directa ou indirectamente tomaram parte nos factos occorridos em

809 O drama sangrento da Boa Vista do Tocantins, disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/302619/2230


1719

1 de maio deste anno, no Estado das Alagôas, e no movimento sedicioso ultimamente havido na
cidade da Boa Vista, no Estado de Goyaz. Capital Federal, 17 de outubro de 1895, 7º da
Republica”810 e outras em Mato Grosso e Minas Gerais também são anistiadas.

Boa Vista foi palco de outros dois conflitos em larga escala e com forte intervenção de
externos à cidade, herança da atuação das forças políticas que acumularam poder ao longo dos
anos. O que se percebe ao fazer a análise historiográfica dos acontecimentos em Boa Vista e a visão
em uma escala mais abrangente são as evidentes mudanças e permanências dentro do Brasil
Republicano Ao englobar a organização federalista com ênfase no município o Estado permitiu
uma distribuição de poder aos coronéis e sua aproximação não somente com o governo estadual
como também na esfera federal. Suas organizações partidárias respeitaram os interesses comuns e
particulares em busca de cargos no executivo e judiciário local para que se que pudesse projetar
seus nomes públicos e seus ganhos da vida privada. A oposição marcada pelos jornais que cobriam
esses eventos trazia à tona críticas ao republicanismo de Floriano, ao passo que seus aliados contra-
atacavam nessa luta pelas mentalidades de seus leitores. A disputa intensa de um projeto vencedor
não representou necessariamente, nesses periódicos, um discurso positivista ou de liberdades
individuais e sim da atribuição de características para que o corpo político e popular pudesse ter
aversão aos seus opositores e simpatia aos seus aliados. Os periódicos destrincham essa ideia de
uma maneira extremamente enriquecedora, suas colocações em defesa da república atacam seus
adversários em prol de suas correntes próprias, na prática as ideias republicanas ruíam de ambos
os lados:

para que os cidadãos aceitassem a liberdade pública em troca da liberdade


individual [...] de identidade coletiva, que antigamente podia ser o de pertencer a
uma cidade e que modernamente é o de pertencer a uma nação [...] no Brasil do
início da República inexistia tal sentimento (Carvalho, 1998, p. 101)

A inexistência desse sentimento logo ao alvorecer da República no Brasil veio a definhar


ainda mais o conceito de cidadão, o conflito em Boa Vista que poderia ter sido resolvido de maneira
pacífica trouxe à tona diferenças regionais e políticas que marcaram o período. Floriano ao buscar
lançar seu projeto de poder fez transparecer suas bases regionais, pelo menos em Goiás, que se
tornaram extremamente úteis, anos antes da chamada Política dos Governadores. Ademais não
houve resistência ao se fazer uso das ferramentas disponíveis em detrimento às ideias republicanas
para se alcançar o poder. Sobre a percepção desse projeto republicano Lima Barreto em sua crônica
“A Política Republicana” diz:

810
Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/180784 -concede-amnistia-us-pessoas-
implicadas-nos-acontecimentos-poluticos-ultimamente-occorridos-no-estado-das-alaguas-e-na-cidade-da-boa-vista-
em-goyaz.html
1720

Parecia que o Império reprimia tanta sordidez nas nossas almas. Ele tinha a
virtude da modéstia e implantou em nós essa mesma virtude mas, proclamada
que foi a República, ali, no Campo de Santana, por três batalhões, o Brasil perdeu
a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os cofres públicos, desta
ou daquela forma.

A visão de Lima Barreto expõe um pensamento ainda preponderante sobre as formas de


organização da estrutura política de um país nocivo e corrupto, onde as revoltas e levantes do
período contam uma história de permanência e não de ruptura. Em Boa Vista o que estava em jogo
era um projeto político e não popular, mesmo a presença do contexto religioso na figura de Frei
Gil estava atrelada ao interesse de homens públicos e suas ambições locais, regionais e nacionais
impulsionadas pela criação do município e do fortalecimento do poder local. A criação do que seria
a república falha em não nascer popular, mas também ao abandonar o projeto de liberdade
individual, percebendo esse vácuo as elites tomam de assalto o discurso republicano através dos
jornais e se adaptam para a sua manutenção no status quo de governança ao longo da Primeira
República.

Referências

Capelato, Maria Helena. Imprensa e história do Brasil. Contexto, 1988.

Carvalho, José Murilo. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. Editora Companhia
das Letras, 2019

Carvalho, José Murilo. Pontos e bordados: escritos de história e política. Editora Ufmg, 1998.

Da Mota, Ireni Soares; De Quadros, Eduardo Gusmão. Deus, Pátria e Liberdade: um estudo
sobre o Partido Católico em Goiás (1881-1909).

Dolhnikoff, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. Globo Livros, 2005.

Leal, Elisabete. Floriano Peixoto e seus consagradores: um estudo sobre cultura cívica
republicana (1891-1894). Revista Estudos Políticos 5.9: 229-247.

Leal,Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.


Editora Companhia das Letras, 2012.

Palacin, Luiz. Coronelismo no extremo norte de Goiás: o padre João e as três revoluções de Boa Vista. Centro
Editorial e Gráfico UFG, 1990.

Pang, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias, 1889-1934: a Bahia na Primeira República brasileira. Vol. 128.
Civilização Brasileira, 1979.

Queiroz, Messias. O senado no Início da República: Análise crítica da produção legislativa (1891-1893).
ILB. 2015
1721

Ribeiro, Tatiana Sasse Fabiano. “Ilumina o país em que nascestes” – instrução e civilização na imprensa
goiana: A Matutina Meiapontense (1830–1834).” (2016).

Sodré, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1998.

Fontes

Annaes da Camara dos Deputados (RJ) - 1889 a 1899. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/docreader/060917_01/1 >

A Carolina ou, a definitiva fixação de limites entre as províncias do Maranhão e de Goyaz:


questão submetida a decisão da Câmara dos srs. Deputados desde 15 de junho de 1835.
Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242525 >

Correio Paraense: Diario Noticioso, Commercial e Litterario (PA) - 1892 a 1894. Disponível em:
< http://memoria.bn.br/docreader/302619/1 >

Diario do Maranhão (MA) - 1855 a 1911. Disponível em: <


http://memoria.bn.br/docreader/720011/22359 >

Estado de Goyaz: Orgam do Partido Republicano Federal (GO) - 1891 a 1896. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/docreader/244457/1>
1722

Aspectos da Marginalização do Mourisco na Granada do Século


XVI

Ximena Isabel León Contrera*

Resumo: a partir de algumas problemáticas que surgiram na pesquisa doutoral sobre a comunidade
mourisca no Reino de Granada, sobretudo em meados do século XVI, desenvolvo aspectos da
marginalização do grupo bem como as estratégias de sobrevivência desse grupo. Desde a queda do
reino muçulmano de Granada (1492) nos deparamos com tratamento desigual para com os
mouriscos, descendentes dos muçulmanos que habitaram a região, batizados à força no alvorecer
do século XVI. Muito debatidas foram as consequências do batismo forçado, pela uniformidade
das práticas religiosas e da sinceridade ou insinceridade da conversão. Se por um lado para alguns,
o mourisco era um bloco uniforme impossível de ser assimilado ao cristianismo, para outros, o
grupo deveria ser catequizado, assimilado plenamente e inserido na sociedade ibérica. Buscamos
compreender aspectos da heterogeneidade dos mouriscos como grupo social, com tratamentos (e
destinos).

Palavras-chave: Mouriscos, História Ibérica Moderna, Conversos, Islã

Introdução

Busco nesta apresentação fazer uma reflexão sobre aspectos de diferenças sociais, culturais
e econômicas entre membros da comunidade mourisca granadina811, sobretudo, no período que vai
desde meados do século XVI até a expulsão dos territórios peninsulares da Monarquia Ibérica
(1609-1614). Procura destacar aqui alguns pontos do debate relativo à uniformidade do grupo, que
propiciou infindáveis discussões junto às autoridades eclesiásticas, conselheiros e a Coroa. Para
alguns, em variadas instâncias de poder, haveria condições de conversão e evangelização e para
outros, os mouriscos seriam um grupo impossível de ser doutrinado plenamente na fé católica.

As fontes usadas são crônicas da revolta das Alpujarras: a de Diego Hurtado de Mendoza
e a de Luís del Marmol Carvajal, uma das compilações de escritos do notável mourisco granadino,
Alonso del Castillo, o tratado de Pedro de Valencia, bandos e processos inquisitoriais.

* Doutora e Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (DH/FFLCH), com Especialização em História,
Sociedade e Cultura pela PUCSP-COGEAE e Graduação em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo
(ECA). Pesquisadora do GEHIM-USP. Email: ximenalc@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1581968411631190
811 Descendentes dos muçulmanos que habitaram essas terras por séculos e foram batizados à força no alvorecer do século

XVI, também chamados de naturais da terra.


1723

Na primeira metade do século diversas legislações que modificaram as práticas cotidianas


dos mouriscos foram sendo impostas, apesar de que em 1533, os mouriscos do reino de Granada812
contribuíram com 60 mil ducados para conseguir uma concórdia ou acordo secreto com Carlos V
e ficarem isentos da perseguição inquisitorial por 40 anos e conservar alguns costumes (Kamen,
1995, pp.280-281). Já no reinado filipino esta realidade se altera com a edição das Pragmáticas que
determinavam que não mais seria tolerado viver fora das normas: não poderiam falar árabe, nem
ter nomes “mouros”, nem estabelecer contratos nesse idioma ou manter livros árabes, que seriam
recolhidos. Outras restrições vedavam vestuário exuberante (tecidos, bordados), higiene (banhos,
uso de hena), hábitos alimentares, festas, posse escravos. A revolta dos mouriscos de Granada foi
castigada com a deportação para Castela desorganizando redes, buscando reduzir a prolífica
população.

O mourisco no seio da sociedade católica e a Inquisição

O capítulo final da presença muçulmana na Península Ibérica principia no momento da


queda em mãos católicas em 1492, do último reino ibérico onde o Islã era a religião dominante. No
século XVI e começo do XVII, o mourisco se torna como tema de embates tanto sob o prisma da
razão de estado como dos debates sobre a fé, identidade cristã na era da imprensa (e da Reforma
Protestante), bem como da necessidade de um controle policial (da fé) e inquisitorial sistemático.
Tudo isto afetando amplos aspectos da vida dos indivíduos diante do perigo da heresia. (Prosperi,
2013, p. 473)

A questão da conversão efetiva dos mouriscos contaminou a vida e as relações sociais da


sociedade granadina, pois se o batismo forçado levou ao seio da cristandade um grupo de “infiéis”,
o fez com uma evangelização incompleta ou inexistente. A dissimulação das práticas do Islã (a
taqiyya813) gerava suspeitas constantes “Mahoma no quiso martires, ni espero que ninguno huviese de querer
morir por su mentira, niegan luego, y dicen ser, ò querer ser Cristianos, sin por ello perder la feé con Mahoma, ni la
honra con los suios, ni dexar de ser moros como antes” (Valencia, 1606, folio 18-19).

A taqiyya não era condenada pelo Islã. O Corão em diversas passagens aponta que seria uma
obrigação do muçulmano, garantindo a sua sobrevivência em meio uma situação de vida ou morte:
"Deus não está preocupado com as suas atitudes exteriores, mas com a intenção de seus corações
... e se eles dizem para denunciar a Maomé, denuncia-o pela palavra e ama-o ao mesmo tempo com

812 Cidades de Granada, Almeria, Guadix, Baça, Málaga e Ronda com pagamento em seis anos. AGS. EST-LEG,27,318. 1533,
enero. Granada.
813 Fingir aceitar a crença cristã era uma saída não condenada pelo Islã, constituindo-se quase uma obrigação do muçulmano,

garantindo a sua sobrevivência em meio a esta situação de vida ou morte.


1724

o teu coração" foi o que o mufti814 de Oran respondeu a certos questionamentos feitos desde a
região granadina em 1563. (Perry, 2005, p. 80).

Os mouriscos ocultavam as suas crenças e rituais muçulmanos, e nas interações com os


cristãos demonstravam a sua profissão de fé ao catolicismo. Em momentos inesperados (uma
discussão, um descuido ou uma provocação) ou diante da Inquisição, a verdade aparece (Bernabé-
Pons, 2013, p. 492). A obrigatoriedade de ingerir carne suína ou de cozinhar com a gordura do
animal era outro assunto que gerava curiosidade, atritos ou mal-estar.

Se o batismo em massa das minorias na Espanha do século XV coloriu-se com entusiasmo


e noções proféticas, depois foi a ideia de confissão que tomou seu o lugar como verdadeira porta
de acesso ao cristianismo e assim através da catequese os cristãos seriam informados sobre seus
deveres, no plano moral e civil (Prosperi, 2013, p. 286).

Cardaillac (2004, p. 38) nos mostra a rejeição das práticas religiosas impostas aos naturais da
terra, tanto pelas atitudes hostis, como pelas estratégias visando a anular as cerimônias católicas ou
ainda na má vontade no cumprimento dos rituais. Alguns casos se relacionavam às cerimônias
(nascimento, casamento, morte) ou à missa, no sentido de rezar emulando a oração muçulmana ou
fazer a limpeza ritual (abluções) e se dirigir à missa, seguindo no íntimo as determinações religiosas
muçulmanas. Uma Provisão de 1531, resgatada três décadas mais tarde, determinava dentre outros
que nenhum mourisco tomasse banho em dias de festa antes da missa, sob pena de 10 dias no
cárcere (Contrera, 2018, p. 139).

Após o batismo algumas fontes apontam que os pais da criança mourisca corriam a lavar a
cabeça do recém-nascido esfregando com migalha de pão (ou com água quente) para retirar os
efeitos do sacramento, incluindo alterar o nome da criança para o árabe (nome usado no grupo) ou
vestindo-a com acessórios típicos. Outro costume consistia numa reunião entre cripto-
muçulmanos no dia do batizado como antídoto, podendo incluir uma récita do Corão. Levar uma
criança cristã no lugar da mourisca para receber os sacramentos era outra forma de recusa em
aceitar as práticas e costumes cristãos (Cardaillac, 2004, pp. 36-37).

Em 1587, o Bispo de Segorbe, Martín de Salvatierra, num parecer acusa os mouriscos de


seguirem cumprindo e executando o disposto na “seita de mahoma” e que nenhum deles confessa
sacramentalmente nenhum pecado mortal ou venial, que são todos muito viciosos no sexto
mandamento imitando e seguindo a mahoma, que manda lavarem com água as mãos, a cabeça e as
pernas para remover seus pecados veniais e os mortais apenas se arrependendo de tê-los cometido.

814 Jurista que apresenta fatāwā ou opinião legal.


1725

Menciona diversos pecados como poligamia, prática do divórcio, a salvação por matar cristãos, a
prática da usura, da circuncisão. Confirma que todos os ditos mouriscos homens, mulheres e
crianças do reino de Valencia como do reino de Castela e de Aragão usam nomes de mouros em
suas casas e em suas comunicações secretas mesmo depois de serem batizados na igreja católica o
que era verificado quando algum cristão velho que tem contato com mouriscos indaga sobre seus
nomes de cristãos desses mouriscos que não o sabem dizer. Elenca minuciosamente aspectos da
vida e da morte e todas as burlas e menosprezos que os mouriscos cometem contra a religião cristã
e por isso aconselha o rei a limpar estes [mouriscos] de seus reinos de toda abominável seita de
mahoma.... (García-Arenal, 1996, p. 157-175)

Devemos lembrar que certas práticas encontram eco em costumes dos “rústicos” em
diversos lugares da Europa, desconhecedoras da doutrina cristã “as pessoas são tão ignorantes por
falta de instrução, que parecem não serem cristãos, a não ser de nome” (Prosperi, 2013, pp. 599-
600). Tornava-se necessário um trabalho missionário que poucas vezes aconteceu.

Sintoma de heresia era considerado viver maritalmente sem ter formalizado o matrimonio
através da benção nupcial (ou um ritual muçulmano) Seria interpretada como rejeição da autoridade
da Igreja que trata esse sacramento como uma instituição. Neste âmbito os mouriscos
desrespeitavam a proibição de casar-se com parentes próximos “que la susodicha está casada como mora
que es con Manuel Donayre, morisco, a ley de moros, sin aver rezebido las bendiçiones nupciales de la ygliesia, con
el qual a estado y vivido haciendo vida maritable como moros” (Cardaillac, 2004, p. 37-38).

O mourisco não era um bloco homogêneo

Observam-se, porém, sensíveis diferenças no tratamento recebido pelas autoridades. São


conhecidos os casos dos próximos à coroa pelo seu desempenho como licenciados em situações
ligadas à saúde de membros da realeza815, na organização (e tradução) de textos árabes da biblioteca
real de Felipe II ou tradução de profecias árabes/mouriscas (atendendo à Inquisição) e mesmo de
panfletos reais dirigidos aos mouriscos no meio do levante de 1568.

Quando essa revolta das Alpujarras, cronistas descrevem dois tipos de mouriscos: os
mouros (levantados) e ou “moros de paces” (não participaram da luta). As deportações dos mouriscos
atingiram a praticamente todos, os que se revoltaram e sobreviveram e os que permaneceram em
paz, e em meio a um inverno rigoroso muitos sucumbiram. Um incidente ocorrido durante o
levante de Granada diante da determinação real de que os mouriscos da serra de Ronda fossem

815Felipe III foi tratado em 1586 por um médico mourisco Jerónimo Planchet, apesar da cura ser atribuída a um escapulário
de São Luis Beltrán. (Puerto Sarmiento, 1998, p. 95).
1726

espalhados pela Andaluzia e até próximo de Portugal, reforça este ponto. Mesmo sem oposição
dos mouriscos, um grupo de homens a serviço do rei aproveita para roubar roupas, gados e
escravos (Carvajal, Libro X, Cap. III, Fol. 236).

Os destinos foram múltiplos em meio a deportações internas, escravidão, miséria, na


expulsão dos territórios ibéricos e no eventual retorno dissimulado816.

Pedro de Valencia insistia no julgamento individual, reforçando a presença de dicotomia


em muitas representações que acompanham a população mourisca, ao contrário dos chamados
apologistas da expulsão, que trataram todo o grupo como uma “raça” uniforme. Moderados ou
partidários da evangelização caridosa, como Valencia, procuraram apontar a heterogeneidade dos
naturais, para a abrir a porta para a permanência em território peninsular.

A diversidade no tratamento de indivíduos ou subgrupos deste coletivo seria não apenas


devida a eventuais serviços que possam ter prestado à Monarquia (mercês) ou ao Santo Ofício, mas
tinha raízes nas origens ou linhagens que certos mouriscos alegavam (e comprovavam) possuir.
Harvey (2005, p. 37) destaca a cooptação (por suborno ou outras estratégias) de membros das
classes superiores da Granada muçulmana pela Monarquia Católica no fim do século XV, o que
possibilitou, com algum sucesso, o controle dessas massas.

O licenciado Alonso del Castillo (aprox.1520-1610) cuja língua materna era o árabe
granadino (estudou também o árabe clássico) conseguiu permanecer nos círculos de poder.
Converso (filho dos batismos forçados), este médico, traduziu inscrições em árabe da Alhambra
(1555-1564), inúmeros documentos gerais de caráter privado, profecias e panfletos, também
durante a Revolta das Alpujarras, foi nomeado por Felipe II como intérprete oficial de cartas árabes
dirigidas ao rei pelo Sultão de Marrocos (1579-1587), após ter atuado para o presidente da Real
Chancelaria de Granada e depois na Corte (Cabanelas Rodriguez, 1956, p. 23). Serviu de intérprete
para a Inquisição tendo catalogado livros e documentos confiscados, entre outros. Foi um dos
consultados para tradução e verificação de relíquias forjadas e descobertas na parte antiga da torre
da mesquita maior de Granada, tendo atestado que se tratava de uma antiguidade linguística e
caligráfica817. Contribuiu ainda na organização dos livros árabes da biblioteca d’O Escorial

El memorial de los libros que va con esta, en fin del qual van los quince libros de arábigo
intitulados por el médico morisco que está aquí en San Lorenzo [. . .]. Y dice el mismo morisco
que valen algunos dellos mucho dinero, porque con ellos se pueden hacer buenos médicos [...]. Y
el morisco hace por acá buenas curas (García-Arenal, 2013, p. 106).

816 É o caso dos mouriscos de Villarubia de los Ojos em que nobres desta localidade tiveram embates com os encarregados
pela coroa do processo de expulsão e, mais tarde, conseguiram trazê-los de volta em segredo, situação estudada por Trevor
Dadson.
817 Real Academia de la Historia. Biografias: https://dbe.rah.es/biografias/11580/Alonso-del-castillo
1727

Figura de reputação por mais de 50 anos inclusive junto à comunidade cristã, celebrado
como a consciência dos mouriscos, sem suspeitas quanto a sua plena conversão à fé católica,
Francisco Nuñez Muley (1490-1568?) representou a voz de negociação. O seu Manifesto em defesa
da identidade mourisca, façanha mais conhecida, aconteceu em época de Felipe II. Esse famoso e
discurso dirigido ao presidente de Granada, Pedro de Deza, passou para a história sendo
reproduzido em crônicas, mas acabou sendo ignorado.

Parte da aristocracia mourisca originária de sultões marinidas do Marrocos, Nuñez Muley,


na juventude serviu como pajem na propriedade do arcebispo Hernando de Talavera, familiarizado
com a vida na Igreja e no âmbito do estado. Em audiência junto ao rei Fernando tratou das políticas
de assimilação cultural em 1513 e mais tarde foi mediador incansável em questões da comunidade
(1530) e depois elaborou o já citado Manifesto (1567) em defesa dos hábitos mouriscos, associados
à heresia muçulmana pela série de Pragmáticas. Seus argumentos procuraram mostrar a identidade
do grupo através de costumes cotidianos nada ou pouco tinham de conexão com o Islã. Esta
estratégia nos remete a outra posterior de quem ousou falsificar relíquias (do Sacromonte) forjando
uma raiz comum entre árabes peninsulares e figuras sagradas da cristandade.

Nuñez Muley alertava no Manifesto para as consequências sociais e econômicas para os


conversos se abrissem mão de costumes como vestimentas, higiene, festas, uso do árabe inclusive
em contratos e nomes e o apagamento de linhagens etc. Denunciou “Es muy claro que quien lo a
hordenado quiere el destruyimiento del rreyno y de sus naturales,..." (Burín; Sandoval, Vincent, 1996, p.
XLIX). No fim da vida porém, empobrecido e quase cego não teve o tratamento digno no qual
viveu.

Outros mouriscos se destacaram junto a sua comunidade e também pelo reconhecimento


encontrado junto à Igreja ou mesmo à Coroa. De maneira inversa, a população da Vega de
Granada, camponeses, artesãos, especialistas em hidráulica (que permaneceram o suficiente para
transmitir seus saberes), sapateiros entre muitos outros sofreram anonimamente (as exceções
seriam os líderes de revolta ou salteadores) as consequências das ações do Santo Ofício ou da
Monarquia diante de acusações de heresia ou conflitos, mesmo sem terem participado.

O mourisco como um grupo marginalizado

Quando da queda do rei nasrida de Granada, Muhammad XII ou Boabdil (derivado de Abū
ʽAbd Allāh) em 1492, muitos muçulmanos granadinos deixaram as terras na Península Ibérica
emigrando ao Magreb. Uma década depois, os membros desta comunidade até então mudéjar
(muçulmanos que vivem sob a égide cristã), eram batizados à força e aos poucos perdem sua
1728

conexão com práticas ligadas ao Islã. É importante lembrar que em período mudéjar existiam
condições específicas para as minorias viverem de acordo com a sua lei. No século seguinte, a
Inquisição agiria nessa comunidade, agora recém convertida.

As “agudas questões sociais” são notadas em vários trabalhos sobre o tema mourisco
mesmo não tratando desse assunto como objeto principal e na documentação, como nas crônicas
do levante das Alpujarras (Marmol Carvajal; Hurtado de Mendoza), ou o Tratado de los moriscos de
España. Em 1568, o embaixador de Felipe II em França, Francés de Alava escreve ao secretário
Çayas que os mouriscos estavam revoltados e são os cristãos velhos que os levam ao desespero
pela arrogância, roubos, insolência com que se apoderam de suas mulheres (Braudel, 1985, p. 149-
150). E sobre as suas várias visitas a Granada conta este mesmo diplomata

A mí se me antojo de ir a ver algunos lugares de la Alpujarra, por ver el proceder de aquella


gente, y verdaderamente todos los moriscos andaban como gente oprimida y de ruin ánimo e
intención y vi muchas veces algunos cristianos nuevos, hombres de poca suerte, metidos en oficios
de justicia y administración de hacienda de S.M. que me espantó, tan arrogantes y tan absolutos
señores sobre los moriscos que me pareció que aquello no podía parar en bien. Halléme en
muchas iglesias en días de fiesta y otros, donde me escandalicé harto porque, demás de que no vi
a los sacerdotes tratar a aquella gente con la suavidad y manera que convenía para atraerlos a
bien, vi muchas veces volver los clérigos, después de haber consagrado, entre la hostia y el cáliz,
a mirar si estaban de rodillas o no los moriscos y sus mujeres y decirles desde aquel paso
horrendas palabras vituperosas y soberbias, con una indecencia y atrevimiento a Dios tan
grande, que me temblaban las carnes, y salidos del oficio divino, andaban los clérigos por la villa
con un imperio y una soberbia sobre los moriscos y una amenaza y riña tan continua, que cierto
me paresció mal camino de doctrinarlos, y aunque la mayor parte de las personas con quien yo
platiqué y oí platicar desta manera en Granada atribuían la obstinación de los moriscos al
permitirles el hábito morisco a sus mujeres y algunas ceremonias moriscas, que, en efecto, parece
que era muy contrario para hacerles perder la memoria y cariño de su secta, para mí tengo que
este tratamiento duro que arriba he dicho ha sido la parte principal de su rebelión.(Longás,
1998, p. XLVIII-XLIX).

A desconfiança era constante, recebiam tratamento diverso dos cristãos velhos, gerando
inconformismo: “Y tiénelos tan fatigados con pechos y servicios, que algunos se atreven a dezir de desesperados
que, pues pagan y son tratados como moros, que no es mucho que bivan como moros...”. (Longás, 1998, p. XLV)

O mourisco estava inserido no mundo hispânico, com problemas específicos, não


deixando contudo de integrar um estrato social (camponês, artesão, prestador de serviços em geral,
sapateiro etc.) muitas vezes em condições de exploração, somando-se ao controle social decorrente
de sua origem étnica, algo bastante característico deste período em que, nas palavras de Prosperi
(2013, p. 553), “o cristianismo conquistador, marcado pela vontade de unificar o mundo, de criar
‘um único rebanho comandado por único pastor’, eliminando de um modo ou de outro dissensões
e diferenças por ter sofrido uma longa maturação em confronto com o Islã e com o judaísmo da
diáspora”.
1729

Para efeito de medidas de uniformização social que este “cristianismo depurado na época
tridentina e adaptado às necessidades de controle social de uma Igreja ameaçada” (Prosperi, 2013),
de punição coletiva ou da expulsão, o mourisco era categorizado de forma única, como explicita
um trecho do Bando de la Expulsion de los Moriscos de Granada, Murcia, Xaen, Andaluzia, y de la villa de
Hornachos (9/12/1609), sendo acusados por serem descendentes dos que se revoltaram na década
de 1560:

(...) que a mas de que son decendientes de aquellos que en Granada se rebelaron, &c. Fueron
sacados de alli, para que haziendo penitencia viuieran como Christianos para lo qual les dimos
documentos conuinientes. Empero no solo nos desobedecieron, y fueron desleales a nuestra Fè,
sino que se hixieron contrarios della en gran menosprecio de Dios, y ofensa suya, como consta,
de los muchos que ha castigado em Santo Oficio de la Inquisicion. A mas desto han cometido
grandes latrocínios, y muertes en los Chirstianos Viejos. No contentos con esto han conspirado
contra mi, mis Reynos, implorando el fauor del Turco, embiando para esto Embaxadores...
(Guadalajara, 1613, fol. 120).

Em sua análise sobre o contingente de prisioneiros da Inquisição, Vincent (1982, p. 205)


observa que aqueles a quem denomina "pueblo bajo morisco" era a maioria, perseguida
implacavelmente. Eram pequenos camponeses, artesãos, comerciantes, os Talavera, os Carbonera,
os Quilate. As diferenças de fortuna e de nível de vida seriam pouco consideráveis: "temos a
sensação de estar na presença de um grupo numeroso socialmente homogêneo, distanciado da
opulência e da pobreza. Ainda assim, esta afirmação logo a seguir é matizada ao destacar alguns
ricos, uns poucos "escravos" e muita gente modesta e considerando este perfil de perseguidos pela
Inquisição entre 1563 e 1570 como um bom reflexo desta sociedade: por mais que existissem
indivíduos ricos dentre os conversos, a grande maioria se encontrava empobrecida

Muitos aspectos sobre como a Inquisição conduzia as suas atividades mostram que, os
prisioneiros e suas famílias ficavam reduzidos à pobreza. A facilidade para os procedimentos de
sequestro de bens dos detidos e julgados e a ausência de limites quanto ao tempo de detenção e as
penalidades pecuniárias, implicava tanto em tormentos físicos e espirituais como em eventual ruína
financeira. (Harvey, 2005, pp. 103-104). O condenado era responsabilizado pelas suas despesas na
prisão, além dos papeis do processo, embargo, confisco e/ou perda dos bens, fianças. Em alguns
casos é possível inclusive ter acesso a manifestações críticas de mouriscos contra o Tribunal,
segundo Moreno mais beligerantes que os judeus, chamando os inquisidores de lobos que roubam
sem bondade, cujo ofício é soberba e grandeza, e sodomia e luxúria e blasfêmia e renegar e pompa
e vã glória e tirania e roubo e injustiça e

La inqusición] donde preside el demonio y tiene por consejeros el engaño y la çeguedad”;


“Ynfieles inquisidores, pues con su diabólico estilo, yncitados del demonio, querían o eran jueces
de las almas y apremiarlas por fuerça a siguir su maldita y endemoniada seta sin fundamento.
(Moreno, 2004, p. 70).
1730

São conhecidos basicamente em torno de 1.370 processos da Inquisição do Tribunal de


Granada entre 1550 e 1600: dos 50% dos réus, poucos teriam sido queimados, mas a maioria teve
seus bens confiscados (Gil Sanjuan, 1997, p.27). Ao analisar a situação deste grupo é preciso
relativizar em alguns momentos o teor étnico (no sentido de religioso) das ações contra eles por
parte dos seus senhores. A situação se altera no caso da pressão inquisitorial, que existia também
para outras categorias sociais embora grupos minoritários as sofressem de maneira mais intensa e
visível (Contrera, 2018, p. 158).

García-Arenal (2007, p. 58) ressalta o empenho inquisitorial na busca e confisco de escritos


árabes encontrada em todos os Tribunais do Santo Ofício ainda que processos completos existam
em Zaragoza, Toledo, Cuenca e Valencia e em Granada e Llerena estejam conservadas apenas "as
relações de causa". Ainda que sem uma visão completa se deduz um panorama de possessão de
livros árabes em Valencia como a mais frequente motivação de acusações.

Mouriscos a serviço do rei e questões de linhagem

Os chumbos do Sacromonte descobertos a partir 1588 consistiam em caixas desse material,


relíquias e pergaminhos em árabe, latim e espanhol e causaram um enorme entusiasmo popular e
junto ao clero. Um pacote progressivo e entrelaçado de lâminas, relíquias e livros plúmbeos foi
surgindo nos meses de março-abril de 1595 e depois em 1596, 97 e 99 (García-Arenal, 2003, p.
296). O sincretismo islâmico-cristão buscava traçar a continuidade entre cristianismo e Islã de
forma a acabar com a oposição "cristãos velhos" e "novos cristãos de mouros", mouriscos e não-
mouriscos. Descobriu-se depois terem sido escritos por membros da comunidade mourisca diante
da instabilidade enfrentada, em especial, após o levantamento de 1568 e a repressão pela Coroa.
Tudo leva a crer, como García-Arenal aventa, que a autoria seria de Alonso del Castillo e de outro
mourisco, Miguel de Luna.

Vincent entende que essa obsessão genealógica dos mouriscos poderia estar vinculada a
dois pontos: queriam mesclar-se por vários meios com a maioria cristã (casamentos mistos, formas
externas de religiosidade e o ingresso em ordens militares) e ao mesmo tempo conservar o essencial
de sua identidade, redefinindo as origens do cristianismo (1981, apud García-Arenal, 2003, p. 311).
Os livros plúmbeos teriam a intenção de se "apoderar da história para influenciar a opinião pública
espanhola em geral e a monarquia em particular em prol da comunidade mourisca dando-lhe uma
origem antiga, cristão, sagrado e ao mesmo tempo defendendo seu principal sinal de identidade, a
língua". O resultado foi o oposto ao objetivo inicial: a descoberta provocou um reforço da ala mais
extremada da igreja contrarreformista.
1731

Conclusão

Bernard Vincent (2015, p. 89) considerou a necessidade de maior alteridade ao tratar o tema
mourisco. A farta documentação dos diversos enclaves mouriscos na Península Ibérica mostram a
pluralidade e a expressão contínua de identidades com estratégias mais ricas do que por muito
tempo se acreditou, tanto na documentação escrita em aljamiado818, como em língua romance,
epigrafia, literatura (que hoje podemos chamar de ficção) favorável aos mouriscos, desde fontes
judiciais até notariais. E é este aspecto da diversidade de aproximações que o autor indica
acertadamente como possibilitando a existência de uma “multiplicidade de vozes” que devemos
considerar ao nos debruçar sobre este longo século mourisco. Prossegue o historiador com um
ponto essencial “si las voces de los mudéjares y moriscos son escasas, las voces indirectas son innumerables por
poco que queramos prestarles atención”. (Vincent, 2015, p. 89)

Quando de duas grandes intervenções da Monarquia junto à população mourisca, as


remoções de Granada para territórios em Castela após a revolta das Alpujarras, e a expulsão final
(1609-1614), famílias importantes desta comunidade ficaram de fora pelos motivos já apontados:
os Granada Venegas, os Zagrí, os Fez Muley e outras.

Para além dessas exceções, diversos grupos e indivíduos conseguiram retornar à Espanha
depois de algum tempo até com auxílio de membros e senhores da nobreza local, caso dos
mouriscos de Villa Rubia de los Ojos, estudado por Trevor Dadson.

A expulsão totalizou em torno de 300 mil mouriscos (a população da Espanha no início do


século XVII era de 8 a 9 milhões). As fontes estudadas por Lapeyre (cômputos dos portos de saída,
cronistas como Marcos de Guadalajara, padre Jaime Bleda) indicam que escaparam da expulsão em
torno de 10.000 a 15.000 pessoas819.

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818 Línguas vernáculas (castelhano ou catalão) transcritas em escrita arábica.


819 Morreram algo em torno de 10.000 pessoas nas revoltas de Valencia, sobretudo
1732

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