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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA


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CURSO
“EDUCAÇÃO LITERÁRIA”
COM PROFESSOR CLÍSTENES FERNANDES

AULA 02 - SINOPSE

Um mergulho na maior obra da língua portuguesa, “Os Lusíadas”, é tam-

bém um mergulho na literatura e em tudo que esta possibilita para nós.

Você aprenderá o que diferencia um poeta dos demais, como pode en-

contrar o sentido moral dos textos que lê, qual a importância da escolha

adequada do vocabulário e como o estilo pode tornar uma obra perene.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final desta aula, espera-se que você saiba: por que “Os Lusíadas” é a

maior obra da língua portuguesa; o que determina o vocabulário que

vamos usar para contar uma experiência; relação do verso e da música;

como surge a prosa; como um poeta conta algo; quais os dois olhares

possíveis para um mesmo objeto e qual sua relação com o nome; qual

a importância da forma como cantamos os acontecimentos; como

encontrar o sentido moral de uma obra; o que o caso de Aristófanes,

Platão, Sócrates e os acusadores deste pode nos ensinar; qual a

importância da literatura.

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

Sejam mais um vez bem-vindos para essas nossas aulas de edu-

cação literária. Hoje nós vamos falar de livros mesmo, de letras em si. Dos

cinco livros dos quais falaremos majoritariamente neste curso, gostaria

de começar pela maior obra literária em língua portuguesa, que é “Os

Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões (1572).

2. O VERSO E A PROSA

Por que “Os Lusíadas” é a maior obra? “Os Lusíadas” apresenta

aquele papel fundante acerca da qual conversamos na aula anterior,

quando um escritor usa a língua do povo e a eleva. No momento que o

faz, não é compreendido por todos, mas as pessoas passam a estudar

seu texto nas escolas e, a partir daqueles modelos, a língua vai se

desenvolver.

Camões criou uma autoridade, não só pelo uso da língua, dos vocáb-

ulos, de uma sintaxe bem construída, mas pelo teor da história, afinal, se

não for uma história interessante, obviamente, perdemos o interesse. Pode

ser o texto mais bem estruturado e com o uso perfeito do português, se

aquilo que estiver representando não tiver valor nenhum, não adianta, nós

perdemos o interesse.

Como mencionei, é possível contar uma história sem interesse

nenhum, como uma ida ao supermercado, por exemplo. Eu até consigo

estruturar esta narrativa de uma forma bela, a ponto de torná-la interes-

sante por isso, mas fica inclusive afetado um sujeito falar sobre uma ida

ao supermercado com um vocabulário rebuscado. Imaginem se isto fosse

feito em verso, se alguém compusesse versos heroicos para contar sua ida

ao supermercado. Isso fica extremamente afetado.

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2.1. O VOCABULÁRIO ADEQUADO

É assim porque realmente existem feitos gloriosos que merecem

uma linguagem apropriada para tratar deles. Por outro lado, existem

acontecimentos e comportamentos corriqueiros. Quando há um feito

heroico de guerra, de alguém que se sacrifica para salvar a vida dos seus

companheiros ou de um exército inteiro que se sacrifica para salvar a sua

pátria, como os 300 de Esparta, você não o conta simplesmente assim: “Os

300 de Esparta eram umas pessoas de Esperta que se juntaram e defen-

deram a cidade”. Não há graça nenhuma em contar assim. É preciso falar

de cada um desses homens, detalhar suas motivações e expor o quanto

valia a pena defender Esparta. E essa forma de contar vai desde o vocab-

ulário, desde as palavras que escolho, até a forma inteira e o tempo em

que fico narrando só um episódio de um personagem específico. Todos

esses aspectos valem a pena porque o feito é grande. Portanto, existem

ações do dia a dia, banais, que não exigem nenhum nível linguístico, e

existem ações e acontecimentos cuja forma é importante para narrá-los.

Dentre as formas, a primeira que surgiu foi o verso. A literatura

nasce com o verso. Faz pouquíssimo tempo que começamos a utilizar

a prosa, mas a humanidade usa versos desde sempre, a ponto de não

conseguirmos rastrear quando se passou a escrever versos. O mais natural,

por incrível que pareça, é contar uma história em verso, é expressar ações

e acontecimentos belos e sublimes a partir do verso. No sul do Brasil,

usamos o verbo “prosear” no sentido de conversar. E é isso, é prosa. No

entanto, não dizemos versejar.

Empregamos o verbo “prosear” porque a prosa começa a ser

utilizada com a História, com Heródoto, que, digamos assim, dignifica

a prosa. Heródoto escreve sobre coisas impressionantes, como a história

das guerras dos gregos contra os persas, e o faz em prosa. Heródoto é

muito homérico. Ele estudou muito poesia, mas decidiu contar todas as

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coisas tal como as ouviu e registrá-las. Heródoto conta as versões para os

fatos. Ele viajou muito, por isso, ouvia as pessoas, questionava-as sobre

determinados pontos e anotava as respostas. Por exemplo: quando aborda

as pirâmides do Egito, Heródoto registra a versão que os egípcios tinham

sobre a sua construção. E faz isso de uma forma muito direta, como se

estivesse contando isso a alguém.

Assim surge a prosa, por volta de 500 a.C.. Não que não existisse

prosa antes, mas esta não era comum. A prosa servia para fazer um

relatório de quanto azeite havia disponível nas reservas da cidade ou para

informações similares, muitíssimo trivias. Quando se queria contar algo,

contava-se em verso, por muitos motivos. Primeiro, porque, pela própria

musicalidade do verso, é mais fácil de memorizá-lo. A prosa, por outro lado,

é de difícil memorização. Inclusive, falar do nascimento da poesia é a

mesma coisa que falar do nascimento da música, pois ambas nascem

de forma conjunta, não conseguimos dissociar uma da outra. Na aula

anterior, comentei que todos os povos têm matemática, linguagem e

música. É muito difícil desassociar o nascimento da linguagem e da

música porque a linguagem se desenvolve por causa da literatura e faz

com que a memória daquilo se perpetue e aí sim seja possível, em algum

dia, nascer a escrita e a alta literatura. Mas a literatura também depende

muito da música, por mais que hoje nós tenhamos separado totalmente

uma da outra. Todos que escutam poesia percebem como é musical. Há,

nas próprias palavras, algo de musical.

3. O ESTILO

A propósito, para ilustrar um pouco, se abrirmos as primeiras dezenove

estrofes de “Os Lusíadas”, Camões nos comunica do que se trata o texto.

Vamos ler:

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As armas e os Barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valerosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

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Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham enveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

E, vós, ó bem nascida segurança

Da Lusitana antiga liberdade,

E não menos certíssima esperança

De aumento da pequena Cristandade;

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Maravilha fatal da nossa idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,

Para do mundo a Deus dar parte grande;

Vós, tenro e novo ramo florecente

De uma árvore, de Cristo mais amada

Que nenhuma nascida no Ocidente,

Cesárea ou Cristianíssima chamada

(Vede-o no vosso escudo, que presente

Vos amostra a vitória já passada,

Na qual vos deu por armas e deixou

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As que Ele pera si na Cruz tomou);

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando dece o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

Inclinai por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valerosos,

Em versos divulgado numerosos.

Vereis amor da pátria, não movido

De prémio vil, mas alto e quase eterno;

Que não é prémio vil ser conhecido

Por um pregão do ninho meu paterno.

Ouvi: vereis o nome engrandecido

Daqueles de quem sois senhor superno,

E julgareis qual é mais excelente,

Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

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Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,

Fantásticas, fingidas, mentirosas,

Louvar os vossos, como nas estranhas

Musas, de engrandecer-se desejosas:

As verdadeiras vossas são tamanhas

Que excedem as sonhadas, fabulosas,

Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, inda que fora verdadeiro.

Por estes vos darei um Nuno fero,

Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,

Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero

A cítara par’eles só cobiço;

Pois polos Doze Pares dar-vos quero

Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;

Dou-vos também aquele ilustre Gama,

Que pera si de Eneias toma a fama.

Pois se a troco de Carlos, Rei de França,

Ou de César, quereis igual memória,

Vede o primeiro Afonso, cuja lança

Escura faz qualquer estranha glória;

E aquele que a seu Reino a segurança

Deixou, com a grande e próspera vitória;

Outro Joane, invicto cavaleiro;

O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.

Nem deixarão meus versos esquecidos

Aqueles que nos Reinos lá da Aurora

Fizeram, só por armas tão subidos,

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Vossa bandeira sempre vencedora:

Um Pacheco fortíssimo e os temidos

Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,

Albuquerque terríbil, Castro forte,

E outros em quem poder não teve a morte.

E, enquanto eu estes canto - e a vós não posso,

Sublime Rei, que não me atrevo a tanto - ,

Tomai as rédeas vós do Reino vosso:

Dareis matéria a nunca ouvido canto.

Comecem a sentir o peso grosso

(Que pelo mundo todo faça espanto)

De exércitos e feitos singulares,

De África as terras e do Oriente os mares.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,

Em quem vê seu exício afigurado;

Só com vos ver, o bárbaro Gentio

Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem pera vós por dote aparelhado,

Que, afeiçoada ao gesto belo e tento,

Deseja de comprar-vos pera genro.

Em vós se vêm, da Olímpica morada,

Dos dous avós as almas cá famosas;

Uma, na paz angélica dourada,

Outra, pelas batalhas sanguinosas.

Em vós esperam ver-se renovada

Sua memória e obras valerosas;

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E lá vos têm lugar, no fim da idade,

No templo da suprema Eternidade.

Mas, enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Pera que estes meus versos vossos sejam,

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

Estas são as primeiras dezoito estrofes de “Os Lusíadas”. Esta obra é com-

posta por dez cantos e cada um deles apresenta uma média de cento e

poucas estrofes.

3.1. O JEITO DO POETA

Depois dessas dezoito estrofes iniciais, Camões começa a contar a


história mesmo. Até aqui, ele nos revela o tema do livro, presente no pri-

meiro verso: “As armas e os barões [...]”. Portanto, Camões canta a guerra

e as armas, não só a história de Vasco da Gama e sua frota descendo pela

costa da África, subindo-a, indo até a Índia, passando além da Taprobana,

atual Sri Lanka, e chegando até a China.

Selecionei alguns trechos para tratar desta questão do estilo.

Camões dedica o poema a Dom Sebastião e acrescenta, sobre o reino

português, “O sol, logo em nascendo, vê primeiro; Vê também no meio do

Hemisfério e quando desce o deixa derradeiro”. Camões poderia ter dito

apenas que o reino português está em todo mundo. Esse é um jeito de

dizer. Todo mundo entende? Sim. Mas aí, ficou nisso. Isso um historiador

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faz assim. Um historiador afirma que “o reino português espalhou-se

por todo o mundo” e cita algumas localidades. O poeta, no entanto,

não faz isso. O poeta diz: “O Reino, que o sol logo em nascendo vê

primeiro, vê-o também no meio do Hemisfério e quando desce o deixa

derradeiro”. Isso é a diferença, pois o fato de um reino ter se espalhado

por todo o mundo merece que seja dito desta forma. Não sei se vocês

concordam, mas é por isso que existe a poesia.

Existem coisas simples e medíocres, não no sentido pejorativo, mas

de médias, e existem coisas belas e sublimes. E essas coisas belas e sub-

limes precisam ser expressas numa forma. A matéria é o fato de o reino de

Portugal ter se espalhado por todo o mundo. Mas existe uma forma para

um fato, porque, veja só, é a primeira vez que isso acontece. E Camões pre-

cisa cantar desse jeito, precisa comparar com outros grandes feitos e dizer

que todos estes não são nada comparados com o do reino português.

Por isso “Cale-se de Alexandre e de Trajano”, “Cessem do sábio Grego e do

Troiano As navegações grandes que fizeram”. O grego a quem se refere é

Odisseu, ou Ulisses, da “Odisseia” e o troiano é Eneias, da “Eneida”.

Estas duas são grandes obras neste mesmo estilo, são duas epopeias do

mundo antigo. Atribuímos à “Odisseia” como tendo sido escrita por volta

de 800 a.C. e a “Eneida”, à época de Cristo. Neste momento, ainda não se

conhecia o cristianismo, que era apenas um pessoal de uma província

no quinto do Império de quem ninguém havia ouvido falar. A “Eneida”

também se remete a Homero e, baseada em Homero, canta a saída de

Eneias de Troia e a fundação de Roma. Trataremos disso na próxima aula.

3.2. AS INTERPRETAÇÕES

Prossigamos com Camões, que diz “Chega disso. Fundar Roma até

pode ser considerado algo interessante e digno de ser cantado, mas agora

chega, mais de dois mil anos depois, cale-se o que Alexandre, o Grande, ou

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o imperador Trajano fizeram” porque “[...] eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram”.

Netuno é deus do mar, portanto, a quem o mar se sujeito. O mar

não é mais um empecilho para os portugueses. Marte, por sua vez, é deus

da guerra. Portugal domina essa história de guerra. E, realmente, neste

tempo em que Camões escreve, é assim. E ele soube dar esse valor.

Nós lemos: “[...] eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e

Marte obedeceram”. Qual o sentido literal disto? Digamos que eu entendi

as palavras. Eu sei o que é Netuno, sei o que é Marte. Sei, também, que

Netuno é o deus do mar, então, que Camões está falando deste. Igual-

mente, sei que Marte é deus da guerra e que Camões está falando desta.

Que nível de leitura é esse? Esse é o nível alegórico. Eu não estou simples-

mente entendendo as palavras, estou me aprofundando um pouco mais.

É possível ler isto e rumar para uma outra compreensão. Eu posso

ler e me questionar: mas por que Netuno? Netuno não é um Deus? Eu

pesquiso no google “Netuno” e aparecem imagens dele com seu tridente,

saindo do mar. Então, eu me questiono se Netuno vai fazer parte da

história. De fato, nesta história, Netuno é um personagem. Mas, por que

Camões diz que Netuno obedeceu? Então, eu vou mais profundamente.

Eu entendo Netuno como uma personificação do mar.

Os deuses, na mitologia pagã, são também personificações. Claro

que os deuses não são só isso. Netuno não é o mar. Mar é mar. Netuno é o

deus do mar. É preciso estar ciente de que ambos não são a mesma coisa.

Existe uma palavra para dizer mar e existe uma palavra para dizer Netuno.

Da mesma forma, existe uma palavra para dizer Sol e existe Apolo, que não

é o Sol, mas sim o deus do Sol. Apolo carrega o Sol. Apolo é a força move-

dora do Sol. Apolo é algo invisível.

Os gregos não adoravam o mar. Não é assim. Os deuses servem

para tratar de coisas invisíveis, inexplicáveis. Você pode objetar: “Mas não

é a força do mar, na verdade, são as correntes e as marés, de acordo com

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a gravidade”. Sim, a nossa mitologia hoje é a ciência. Nós explicamos tudo

a partir disso e damos outros nomes. Por exemplo, a gravidade. A ciência

explica a gravidade, mas você consegue vê-la? Você consegue sentir a

força da gravidade.

Então, qual é a diferença entre eu chamar de “gravidade” e

chamar de “o amor da deusa gaia, que atrai para si tudo aquilo que

tenta se afastar dela”? Tal como uma mãe, que é a mãe Terra, Gaia

atrai-nos para si como uma mãe atrai os seus filhos. A diferença é que

existem dois olhares que podemos adotar sobre esse mesmo objeto.

Há um olhar normal, prosaico - do qual vem prosa - em que dizemos

“não estou nem aí para gravidade, não há o que fazer a respeito dela”

e há o olhar de admiração, de “Olhe só a força da gravidade”. Inspirado

por esse olhar, você canta: “Ó Gaia, que a ti atrais tudo aquilo que de

ti deseja separar-se”. Neste caso, você emprega um estilo grandíloquo e

corrente.

3.3. AS FORMAS

Prossigamos. Com “[...] uma fúria grande e sonora, E não de agreste


avena ou frauta ruda, Mas de tuba canora e belicosa, Que o peito acende

e a cor ao gesto muda;”. Em outros termos, Camões está pedindo inspi-

ração para as ninfas do rio Tejo. Avena é tipo uma flauta. Camões quer

um som de tuba para cantar as coisas e não de uma flautinha. Por quê?

Porque esse feito merece ser cantado assim, tal como a gravidade. Vemos

marés que afundam barcos, tsunamis que destroem cidades litorâneas e

arrasam ilhas inteiras. Para isso, podemos ter o olhar do simples jornalista,

que anuncia “Um tsunami atingiu as ilhas Fiji” ou podemos dizer “Netuno,

enfurecido contra a iníqua dos homens que habitavam aquelas ilhas,

por terem feito reféns homens ilibados [...]”. Posso adicionar novas rumos

à história e direcioná-la para onde quiser, incluindo novas causas, não

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tem problema. Se eu cantar assim, vou conseguir fazer com que todo

mundo se lembre de um tsunami daqui dois mil anos.

Assim como Homero faz com que nós nos lembremos de uma

guerra entre duas cidades. Troia era uma cidade esplendorosa na

época, devia ter cerca de vinte mil habitantes. Os gregos, que viviam

em pequenas cidades, saqueiam Troia e a destroem. E Homero cantou

isso de um jeito que até hoje nós nos lembramos. Mais do que isso:

nós traduzimos, fazemos trabalhos acadêmicos, simplesmente não con-

seguimos nos esquecer daquilo. Sempre retomamos e nos voltamos a

Homero para tentar entender a nós mesmos, porque seus textos são a

fonte mais antiga que temos da nossa própria cultura, juntamente com

os cinco primeiros livros do Antigo Testamento, os quais são anteriores a

Homero. É ali aonde nós vamos. Homero só conseguiu isso porque cantou

de uma forma grande, assim como Camões canta os feitos dos portu-

gueses.

Nós utilizamos dois versos, mas todos os versos podem ser lidos

assim. “Netuno e Marte obedeceram o peito ilustre”. Ilustre, aqui, é no

sentido de iluminado, é de lustro mesmo, de lustrar. É uma coisa brilhante,

iluminada. Hoje, usamos a palavra “ilustre” em outro sentido. E também

podemos interpretar a o restante. Camões diz: “[...] eu canto o peito ilustre

Lusitano”. Já na época de Camões, ninguém chamava de lusitanos. Eram

os portugueses. Lusitanos é como eram chamados os povos primitivos

que habitavam aquela antes da chegada dos romanos. Camões se remete

a si mesmo como um lusitano, como um herdeiro desse povo primitivo.

Isso é muito comum em poesia.

No Brasil, usamos, por exemplo, a palavra “tupiniquim” quando

queremos associar à nossa primitividade, à nossa origem, ao quão original

nós somos. Nestes casos, dizemos “tupiniquim”. Sendo que tupiniquim é

algo muito específico. Existiam outras tribos, como os tupis e os tamoios.

No Rio Grande do Sul, quando a pessoa é gaúcha mesmo, fala-se muito

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em charrua. Nós fazemos isso e Camões faz isso também. Por isso diz

lusíada, os feitos dos lusos, os feitos dos lusitanos.

Quando escreve “peito ilustre”, Camões não está se referindo ao

peito físico, mas àquilo que o peito representa. O que significa dizer que

uma pessoa tem que ter peito para enfrentar algo? Significa dizer “ter

coragem”. Então, Camões vai falar sobre a coragem dos portugueses,

que conseguiram submeter o mar e a guerra. Quer dizer, não podemos

dizer submeter a guerra, mas sim submeter a Marte. Os portugueses

conseguiram ser vitoriosos na guerra. Esse é o sentido analógico, o sentido

figurado, que nós temos que elaborar quando lemos.

Depois, há o sentido moral. Assim, com uma frase só, talvez seja

difícil aprendermos um sentido moral inteiro, mas seria possível, só com

o excerto “eu canto o peito ilustre Lusitano a quem neptuno e marte obe-

deceram”, pensar o que isso representa na minha vida. O sentido moral

sempre varia muito de pessoa para pessoa. O sentido moral apreendido

por um brasileiro e por um português lendo isso é diferente. Contudo,

existe um sentido bastante universal, que é: toda vez que vejo um fato

glorioso sendo narrado, tenho que ser movido a buscar a mesma

glória e não a vanglória, não aquela glória pecaminosa, da glória pela

glória. O sentido universal é pensar: “Veja o que esses homens faziam.

Eles pegavam um barquinho de madeira e se jogavam no oceano. E o

que eu faço? Eu tenho preguiça de acordar de manhã. Eu deixo de ir a um

lugar porque não fui com a cara de alguém. Eu deixo de tocar um projeto

porque o pessoal está muito metido.”

Muitas vezes, cortamos nossos projetos e empreitadas por razões

deste tipo. E isso é somente uma interpretação que estou fazendo aqui,

mas há várias outras possíveis. De todo modo, quando vejo a coragem

sendo narrada, é bom que reflita sobre minha própria coragem.

Há outras passagens que tratam de toda essa mitologia. Camões

toma muitos elementos da mitologia antiga e os insere na sua obra. Na

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verdade, tudo acontece por influências dos deuses pagãos.

3.4. AS DIFERENTES ANÁLISES

O impressionante é que, nessa época, as obras ainda precisavam

passar por uma censura eclesiástica para poderem ser impressas e divul-

gadas. O frade censor que aprovou “Os Lusíadas” escreveu uma nota

informando não ter visto qualquer problema no livro. Ele acrescentou que:

“Com certeza, haverá gente reclamando de que há muitos deuses pagãos

na história, mas isso não tem problema nenhum, pois todos nós sabemos

que os deuses pagãos são demônios”. Isso que o frade fez é uma leitura

em nível alegórico. Baseado na teologia cristã, esse frade pontua que

existem demônios. Quando lê “Os Lusíadas” e fez os deuses agindo e dis-

cordando entre si, pensa: “Isso aqui poderia muito bem ser os demônios”.

Você pode questionar: “Então é assim que eu tenho que ler? Eu

sempre tenho que entender aqueles deuses como demônios?”. Não, foi

assim que o frade os entendeu. Seu entendimento está errado? Não,

não está, mas a literatura não é uma ciência exata. Há múltiplas com-

preensões possíveis. Isso quer dizer que posso entender o que quiser

de uma obra ou livro? Também não. Existe uma única interpretação

possível? Não. Quantas existem? Não sei. Quem sabe? Ninguém sabe,

mas essa é a arte. Eu não posso pensar, por exemplo, que Camões está

falando sobre a situação dos pescadores em Portugal que sofriam muita

exploração por parte do governo, que cobrava muitos impostos. Essa

interpretação não tem cabimento nenhum. Há um limite, não é possível

inferir qualquer coisa.

Hoje, normalmente, o que se faz nas escolas e na crítica literária é

encontrar a luta de classes em toda a literatura. O sujeito lê “Os Lusíadas” e

encontra ali uma real demonstração do oprimido e do opressor. Uma vez,

um aluno meu ficou muito indignado com isso e disse que o crítico havia

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interpretado a obra erroneamente. Eu lhe perguntei: “Você realmente

acha que luta de classes é algo inexistente?”. Ele me respondeu: “Não, até

existe”. Então, eu lhe disse: “Pois é, mas é uma interpretação mesmo da

obra literária, como de toda a realidade”.

Agora, falo para vocês. Homero está falando de luta de classes.

Somente disso? Não, obviamente que não. O problema dessa interpre-

tação é me focar somente neste aspecto da luta de classes. É ler a Bíblia

e entender a relação dos egípcios e dos hebreus como luta de classes.

Pode até ser luta de classes, mas não é só isso. Há um aspecto psicológico,

existe toda uma necessidade artísticas, há muitos aspectos dentro de uma

obra literária, que não podem ser reduzidos a uma única coisa como, por

exemplo, a luta de classes.

Do mesmo modo, há aqueles que só veem psicanálise na obra

literária. Freud, por exemplo, quando usou o nome Édipo, de uma história

da mitologia do teatro antigo, para dar nome a um complexo, nada mais

fez do que uma leitura alegórica da obra “Édipo Rei”, interpretando com

sua própria experiência clínica aquilo que estava escrito. No entanto, essa

não é a única interpretação possível de “Édipo Rei”. Atualmente, quando

se fala em Édipo, as pessoas lembram muito mais do Freud do que da

própria obra “Édipo Rei”, que é uma tragédia supercomplexa e enseja uma

vasta reflexão e muita meditação. Freud também fez uma leitura moral

da narrativa, pois chegou à conclusão de que, por isso, não deve haver

repressão sexual. Isso nada mais é do que uma leitura moral. Freud leu

a história, entendeu-a, fez uma interpretação dela e a fechou. Ele não

meditou mais do que aquilo ali. É como se você tivesse entendido que

“Netuno é o mar” e não tivesse mais saído dali. Desta forma, a litera-

tura morre. Nós estragunlamos o texto ao afirmamos que “isso quer

dizer isso”. Isso não funciona assim, não é uma equação, não há sinal

de igual aqui. Um texto quer dizer isso, e mais isso, e mais aquilo.

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3.5. A IMPORTÂNCIA DA ARTE

Aluno: professor, minha dúvida é em relação a esses fatos isolados.

Nós sabemos que, hoje, a nossa sociedade tem muito disto, de pegar um

texto, uma frase e, como o senhor mencionou, colocá-la dentro do mesmo

pacote e acreditar que aquilo ali é uma visão totalitário, algo como “dois

mais dois é igual a quatro”. Eu sei que é uma pergunta complexa, mas,

no Brasil, qual seria a solução para mudar essa estrutura, essa briga de

classes?

Resumindo tudo, eu acredito que, sem ler Camões, não há como,

porque a solução precisa ser artística, precisa ser cultural, não há como

fazer de um outro modo. Hoje em dia, vemos na mídia pessoas sendo

tratadas por seus nomes próprios e é tudo uma questão de acusação, de

investigação e etc.. Não foi essa a solução que a humanidade encontrou

para os problemas, para o tipo de conflito que observamos atualmente na

política do Brasil, por exemplo. A solução sempre foi artística.

Vejamos isso com um exemplo. Aristófanes1 foi um contemporâneo


de Sócrates. Ele percebeu que a filosofia estava gerando muita confusão,

porque as pessoas estavam pensando demais. Aristófanes era um gênio e

fez piada com Sócrates, pois Sócrates não tinha poder nenhum para fazer

nada contra ele. Na peça “As Nuvens”, Aristófanes retrata Sócrates como

um sujeito que fica numa nuvem, olhando para cima, sem querer saber

dos problemas reais da vida. Portanto, quando estava incomodado, Aristó-

fanes fez uma piada. Essa solução é muito melhor do que a dada pelos

acusadores de Sócrates, que decidiram prendê-lo e matá-lo.

Por que a solução de Aristófanes era melhor? Porque deu uma

solução cultural para aquela questão. Quem tinha razão? Eu não sei e

não interessa. Eu estou pegando um caso. É para isso que serve o estudo

da cultura clássica. Quando estudamos a Grécia Antiga e Roma, vemos

1  Dramaturgo (447 a.C. - 385 a.C.)

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exemplos assim. Havia um problema chamado Sócrates. Platão acredita

que Sócrates é a solução. Por outro lado, Aristófanes e os acusadores de

Sócrates também o entendem como um problema. Cada um deles apre-

senta uma atitude diferente. Platão continuou a obra de Sócrates. Aristó-

fanes, muito criativo, fez uma comédia antiga muito elaborada. Os outros

o julgaram e condenaram à morte.

Na verdade, essas ações corroboraram o caminho tomado por

Platão. Se tivéssemos ficado na solução de Aristófanes, talvez, teríamos

esquecido de tudo, porque estavam ali dois literatos, Platão e Aristófanes,

competindo no campo da cultura. Como mataram Sócrates, este se tornou

um mártir da verdade e o resultado foi o crescimento, digamos assim, do

partido de Platão. Hoje, a obra de Aristófanes ainda é interessante, mas é

por causa de Platão que continuamos sabendo quem foi Sócrates, e não

por causa de Aristófanes.

No encontro anterior, mencionei a história do cordeiro e do lobo de

Esopo. Provavelmente, Esopo contou essa história em um contexto muito

específico. Pode ser que, na época, tenha saído uma notícia de alguém

abusando da própria força com desculpas esfarrapadas, tal como o lobo.

No Brasil, atualmente, não temos isso, não temos nenhum Esopo. Há um

humorista que outro, mas estes sempre acabam saindo da arte e focando

nitidamente em pessoas específicas, não naquilo que é invisível nas pes-

soas. Digamos que falam do mar e não de Netuno. Não está falando da

força do mar, está falando da Terra. E a Terra é um sujeito específico com

nome, CPF, profissão. Você sabe onde encontrá-lo.

A literatura não faz isso. A literatura não fala de pessoas em si, mas

daquilo que é há de invisível e perene em tudo. Portanto, não aponta

que o deputado ou o presidente fez isso, isso e mais aquilo. Isso não é

arte. E quem ganha mesmo a disputa é a cultura. Se não houver cul-

tura, nunca sairemos disso. É preciso ter o lobo e o cordeiro. E quem é o

lobo e o cordeiro? Justamente, não sei, pode ser qualquer um. Qualquer

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um que tenha um pouco mais de poder acaba por se corromper. Só que é

preciso falar da questão em si, mas não como um filósofo fala, abordando,

por exemplo, os princípios de justiça constantes no direito. Isso aí é muito

difícil. É preciso fazer como George Orwell na “Revolução dos Bichos”. Aí

sim, você consegue tratar destes temas. Entretanto, existe apenas um

George Orwell. Ninguém fez a continuação da “Revolução dos Bichos”.

Ninguém está falando de porcos, cavalos e galinhas. Então, é muito pouco.

George Orwell está sozinho para fazer esse aspecto fabulístico.

A fábula é um dos estilos literários. Às vezes, há um canal de humor,

mas, como disse, o humor é direito, fala de pessoas específicas. Tem que

haver filmes falando das coisas invisíveis, que fale de Marte, de Netuno, do

Lobo e do Cordeiro, e não de pessoas específicas. Hoje, acabam por ava-

calhar a história e deixar claro todas essas coisas por trás.

3.6. O “COMO SE FOSSE”

O Vasco da Gama de Camões não é o Vasco da Gama histórico, mas

é um personagem que representa a grandeza real dos feitos marítimos do

próprio Vasco da Gama, de Fernão de Magalhães, de Pedro Álvares Cabral,


de todos. Como tinha que inserir um personagem, Camões escolheu

Vasco da Gama, mas não é o personagem real.

A literatura não é história, mas é totalmente necessária para dar

a dimensão das coisas, para que consigamos ter uma hierarquia de

valores correta, para que consigamos mover os afetos. Mas você pode

questionar o que está escrito: “Eu não acredito que Vasco da Gama fez isso.

Como ele pode conversar com o Cabo das Tormentas, com o Cabo da Boa

Esperança?”. Estou me referindo ao episódio do Adamastor, do qual quero

ler um pedaço.

Aluno: você falou do Lobo e do Cordeiro, que se trata de uma represen-

tação de várias situações diferentes. Para escrever algo assim, eu preciso

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sempre fazer uma extração simbólica dos fatos e aí isso vai dar o caráter

invisível e perene de tudo?

Para escrever, você vai sempre utilizar o “como se fosse” de que

falamos na aula anterior. Essa situação é como se fosse um lobo e um

cordeiro. Essa situação é como se fosse uma raposa e uma galinha.

Aluno: mas o que vai dar o caráter invisível e perene é essa extração sim-

bólica dos fatos, para torná-lo representável?

Sim, porque você não consegue tratar do invisível. Por exemplo:

a teologia afirma que não podemos dizer nada acerca de Deus. Deus

é invisível, senão, não é Deus. Portanto, não podemos falar de Deus, a

não ser por analogia com as criaturas, com as coisas que são possíveis.

Nós dizemos “Deus-Pai”. Por quê? Porque sabemos o que é um pai e

dizemos que Deus é como um pai, pois este sustenta a casa e protege.

Nós também dizemos que Deus é bom, que Deus é amor. Sabemos o que

é bondade e o que é amor, mas tudo isso na nossa realidade. No entanto,

atribuímos essas características a Deus pois, se vivo uma situação de

amor, consigo abstrair esse amor e pensar “Se eu que sou um ser limitado

consigo amar, imagina o quanto Deus, que é ilimitado, pode amar. Então,

Deus tem um amor infinito”. Assim, ficamos atribuindo características

visíveis a Deus, por analogia, como se fosse. Na verdade, Deus não é um

pai, mas é como se fosse. Isso é com tudo que é invisível.

Quando falamos da gravidade, sabemos do que se trata. A palavra

“gravidade” vem de gravis, do latim, que quer dizer pesado. No entanto, a

gravidade não tem relação com o peso. Tudo isso que é invisível, todas

as forças naturais e mesmo espirituais, só podem ser tratadas por ana-

logia com as forças que enxergamos. Sempre por analogia.

Por exemplo: o caso do amor. Digamos que um navio com quinze

pessoas, de diferentes nacionalidades, naufragou e todos estão em uma

ilha deserta, abandonados. Eles têm duas opções: assumir a língua de

um deles como a oficial ou criar uma outra língua. Um deles decide

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ensinar aos outros a palavra “xícara”. Então, aponta para uma xícara e

diz “na minha língua, isso se chama xícara”. Todos repetem. Ele ensinou

essa palavra a todos. Agora, digamos que ele queira ensinar algo que não

é visível, como o ódio, o amor, a discórdia, a angústia. Pense, é difícil de

criar uma palavra até mesmo para fome. Quando nascemos, as palavras

já estão disponíveis. Simplesmente começamos a usá-las. No entanto, no

início, uma criança não sabe que está com fome, ela só chora. E demora

cerca de dois para aprender, de tanto os adultos lhe dizerem “faz tempo

que você comeu, você está indisposto, isso é fome”. A partir daí, a criança

tem aquele sentimento e o identifica como fome.

Mas, como essas palavras surgiram? Essas palavras só surgem

porque há um sujeito que é poeta, que é escritor, que é literato, o qual

até pode ser um analfabeto, um homem das cavernas. Como disse, quero

dar o exemplo do amor. Digamos que esse sujeito se apaixonou por uma

mulher. Ele compartilha com seus companheiros sua situação: “Olha,

eu não sei, eu fui como que ferido”. Ele é um sujeito da caça, tem arco e

flecha, então sabe o que é um ferimento de flecha. Ao tentar explicar, ele

diz “Eu fui ferido, mas é uma flecha invisível. E eu acho que ela também

foi ferida porque, quando estamos juntos, é como se cada um estivesse

cuidando das feridas um do outro. Eu estou ferido e só ela pode me curar.

Eu fui como que ferido por uma flecha”. Os amigos lhe perguntam: “Mas

como você se feriu?” e ele responde: “Sei lá, deve ser um arqueiro invisível

também, porque a flecha é invisível, eu não estou vendo sangue nem

nada. É por dentro esse ferimento”. Os amigos concordam com ele “Então

tem que ter um arqueiro invisível” e ele diz “É, é invisível, porque eu não vi

ninguém”.

Assim começam a pintar um arqueiro invisível, dotado de pequenas

asas. Os gregos chamavam esse arqueiro de Eros, deus do Amor, os

romanos, por sua vez, já tinham uma palavra para se referir a essa mesma

divindade, que era Amor. A partir de uma história como esse, um outro

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homem consegue identificar o que está se passando dentro dele. Esse

outro diz “Eu também já fui ferido. Eu sei do que você está falando. Agora

eu entendi”. O que não é poeta, e que não tinha conseguido vislumbrar

uma história como essa, diz amor.

Hoje em dia, entende-se que o amor é uma série de enzimas agindo

no corpo, mas é mais fácil acreditar no arqueiro do que nisto. Um sujeito

conversa com uma moça e as enzimas começam a agir, mas com outra

mulher isso não acontece. E não interessa o aspecto físico, a cultura, é

inexplicável. São as enzimas, dizem. As enzimas existem? Sim, mas há algo

invisível, que é a única solução para o problema, é um poema. A única

explicação é um poema. Assim, eu dou nome para esse personagem

e posso falar de amor. O tempo passa e até esquecemos da história do

arqueiro, mas a palavra permanece. E aí falamos uns com os outros e

conseguimos nos comunicar. A pessoa sabe identificar que aquilo que

está sentindo é amor ou que está sentindo discórdia.

A palavra “discórdia” também tem uma história bastante interes-

sante. A discórdia, que tinha o nome de Éris, não foi convidada para um

festa e ficou muito braba por conta disso. Para se vingar, escreveu “para a

mais bela” em uma maçã de ouro, jogou-a no meio da festa e foi embora.

Cada uma das deusas ali presentes queria pegar a maçã para si.

Digamos que você queira explicar o que essa palavra significa para

uma criança e você diz a ela que discórdia é quando não concordamos

uns com os outros. Mas o que é concordar? Você pode usar um exemplo

prático para isso. Você pega um brinquedo e diz: “Esse brinquedo é para

o menino mais forte”. Todos vão querer ficar com o brinquedo. Aí você

explica: “O que aconteceu entre vocês? Aconteceu a discórdia, porque

cada um de vocês se acha o mais forte”. É assim que as palavras e as coisas

invisíveis nascem. É como se fosse, porque não é isso. Não há nenhum

deus, não há nenhum arqueiro, mas é como se fosse.

E toda literatura é assim. Vasco da Gama não foi para a Ilha dos

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Amores com as ninfas, como Camões canta no Canto IX. Em “Os Lusíadas”,

depois que os portugueses estão voltando da Índia com as especiarias,

Vênus tem que recompensá-los e vai lhes dar um grande presente. Para

isso, vai até o cupido, deus do Amor. Existem vários cupidos, não somente

um, porque a paixão é algo que acontece com muitos. Não é um deus

único que fica distribuindo flechadas, é um exército deles. No próximo

excerto, preparam-se os amores para uma expedição:

Muitos destes meninos voadores

Estão em várias obras trabalhando:

Uns amolando ferros passadores,

Outros ásteas de setas delgaçando.

Trabalhando, cantando estão de amores,

Vários casos em verso modulando;

Melodia sonora e concertada,

Suave a letra, angélica a soada.

Nas fráguas imortais onde forjavam

Pera as setas as pontas penetrantes,

Por lenha corações ardendo estavam,

Vivas entranhas inda palpitantes;

As águas onde os ferros temperavam,

Lágrimas são de míseros amantes;

A viva flama, o nunca morto lume,

Desejo é só que queima e não consume.

Quero fazer uma pequena observação neste ponto. Camões usa

uma língua muito antiga. Naquela época, dizia-se consume. Isso permite

rimar com lume. Por isso, a edição moderna que usa “consome” é uma má

edição. Isso não vai atrapalhar muito a leitura, mas é feio. Logo notamos

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quando nada rima com nada. Na tempo de Camões, as palavras eram

pronunciadas de outro jeito. Consumir advém do verbo sumere do latim,

que é pegar. Consumir é pegar com.

Alguns exercitando a mão andavam

Nos duros corações da plebe ruda;

Crebros suspiros pelo ar soavam

Dos que feridos vão da seta aguda.

Fermosas Ninfas são as que curavam

As chagas recebidas, cuja ajuda

Não somente dá vida aos mal feridos,

Mas põe em vida os inda não nascidos.

Fermosas são algumas e outras feias,

Segundo a qualidade for das chagas,

Que o veneno espalhado pelas veias

Curam-no às vezes ásperas triagas.

Alguns ficam ligados em cadeias

Por palavras sutis de sábias mágoas;

Isto acontece às vezes, quando as setas

Acertam de levar ervas secretas.

Destes tiros assi desordenados,

Que estes moços mal destros vão tirando,

Nascem amores mil desconcertados

Entre o povo ferido miserando;

E também nos heróis de altos estados

Exemplos mil se vêm de amor nefando.

Qual o das moças Bíbli e Cinireia,

Um mancebo de Assíria, um de Judeia.

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E vós, ó poderosos, por pastoras

Muitas vezes ferido o peito vedes;

E por baixos e rudos, vós, senhoras,

Também vos tomam nas Vulcâneas redes.

Camões está contando dessa forjaria onde os cupidos fazem os

amores, onde fazem as flechas. Algumas destas têm veneno. Os cupidos

também são meio desastrados então, às vezes, acertam pessoas que não

deveriam. E isso é assim mesmo, porque o amor é assim. O amor é um

monte de crianças desordenadas que atiram as flechas sem olhar muito

bem em quem.

E mesmo “[...] vós, senhoras, Também vos tomam nas Vulcâneas

redes”. Muitas vezes, vós Senhoras, vos apaixoneis por homens muito

feios. Vulcâneo era um deus muito feio. Para os gregos, chama-se Efesto.

Camões vai explicando e dando as razões por que as pessoas se apaix-

onam por pessoas tão diferentes. Ele diz que a melhor explicação é que o

amor é como crianças jogando arco e flecha. Tem uma explicação melhor

que essa? Não tem. Só a poesia pode dar uma explicação.

Uns esperando andais nocturnas horas,

Outros subis telhados e paredes;

Mas eu creio que deste amor indino

É mais culpa a da mãe que a do minino.

A da mãe é Vênus, que é a deusa do Amor mais carnal mesmo. O

fato de as senhoras se apaixonarem por homens feios é mais culpa do

amor carnal. Daí é mais opinião de Camões. E isso também é muito legal

na poesia. A poesia contém a opinião do poeta, que a transmite sem medo

nenhum.

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Depois de os portugueses sofrerem tantos trabalhos, Vênus lhes

prepara uma ilha. Camões faz toda a narração desta, que é um lugar par-

adisíaco. É mais ou menos a mata atlântica, o litoral brasileiro. Vênus pede

aos cupidos que flechem as ninfas do mar. Também existem as ninfas

do Tejo. Cada lugar de água, e alguns montes também, apresenta suas

próprias ninfas inspiradoras das artes e igualmente suas musas. São essas

divindades invisíveis que fazem com que uns tenham boas ideias e outros,

não. Por que às vezes temos boas ideias e às vezes, não? Com certeza,

quando você teve uma boa ideia, veio uma ninfa e lhe soprou na orelha.

Dizemos isso da criatividade, do talento, de todos os nossos ânimos. O

poeta acha tão incrível que às vezes estejamos animados e às vezes, não,

que trata isso como personificações mesmo das coisas.

Vênus também pede à deusa Fama que parta e fale bem dos por-

tugueses para todas as ninfas. Ou seja, antes de tudo, a deusa Fama é que

faz os lados dos portugueses com as ninfas. Por isso, quando tomam a

flechada, é mortal, pois já os achavam interessantes. Depois de as ninfas

acharem os portugueses interessantes é que os cupidos vêm e começam

a dar flechadas. Eles acertam até mesmo em Tétis, mãe de Aquiles, que

havia negado o amor de Adamastor. Adamastor é o gigante que personi-

fica o Cabo da Boa Esperança. Por causa disso, Adamastor é acorrentado

no fim do mundo, no sul da África, e acaba com todos os navios que

tentam passar por ali. Adamastor não permite que ninguém faça a volta

no sul da África, no Cabo das Tormentas. E Vasco da Gama consegue fazer

isso. Portugal inteiro consegue dar essa volta. Os portugueses chegam à

ilha e cada um fica com uma ninfa, todos muito felizes. Não há nada de

sujo ou de pornográfico nas descrições, são apenas cenas de amores. A

Vasco da Gama, coube justamente Tétis. Vejam só, Netuno, o mar inteiro

e as ninfas do mar se submetem aos portugueses, como a esposa se sub-

mete ao marido. Essa é a imagem, mas não só isso, que temos no seguinte

trecho:

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“[...]

Tétis todo o cerúleo senhorio

Tem pera vós por dote aparelhado,

[...]”

Cerúleo é azul. Senhorio são os nobres, é a aristocracia do mar, que

são essas ninfas. Tétis, que é a maior das ninfas, havia renegado Ada-

mastor. E Vasco da Gama, para além de vencer Adamastor na batalha, ou

seja, de conseguir navegar por entre o Cabo das Tormentas, ainda acaba

com a sua amada. É a história de uma navegação em que os homens, pelo

mar, conseguem alcançar seu destino. Mas é preciso ser maior do que isso.

E Camões, que era um homem de muitas conquistas amorosas, entende

que a coisa que mais enche o coração de um homem é, além de vencer o

inimigo nas armas, vencê-lo na conquista da mulher que ama.

Isso está escrito desta forma? Não, esta é uma interpretação

alegórica que estamos fazendo. Camões era um amante. Ele tinha

namoradas em vários locais, era um sujeito bicho solto. E ele consegue

fazer isto, mas não de um jeito vulgar. Camões está falando de ninfas, não

de mulheres. E as ninfas são seres imortais, perfeitos em beleza e gen-

tileza, que inspiram corações.

Outro aspecto digno de menção. Vênus faz isso para que, a partir da

conquista do mar pelos portugueses, que Camões diz que é como se fosse

uma conquista amorosa, nasça uma outra raça, que é uma raça nunca

antes vista. Agora, não há mais mouros, negros, europeus, índios. Não, é

uma outra raça. Vênus vai inflamar amor, vai queimar de amor os corações

dos portugueses e das ninfas do mar, para que nasça uma outra raça. Esse

é o processo através do qual só Portugal colonizou o mundo e que faz com

que no Sri Lanka, na Índia, na China, na Polinésia, no Timor, na África e nas

Américas, esteja cheio de Silvas e Almeidas. É uma raça que não é nem

branco, nem negro. É a raça de Portugal com o mar.

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Poderíamos ficar o resto da vida falando sobre “Os Lusíadas”. Como

isso não é possível, espero que todo mundo passe o resto da vida lendo-o.

Pode ser que “Os Lusíadas” não seja o livro mais fantástico de toda liter-

atura universal, mas é o livro mais fantástico da nossa própria língua. Na

verdade, temos que estar muito orgulhosos e agradecidos por termos

isso na nossa língua. Quem fala espanhol não tem isso. O Cervantes, por

exemplo, é um romance, não uma epopeia cheia de deuses pagãos, de

virtudes cristãs, de sentimentos de honra e glórias os mais puros possíveis,

que explicam mesmo quem somos nós. O fato de falarmos português

define muito quem nós somos. E se nós falamos português, é porque

Camões escreveu um texto deste. Se não fosse isso, talvez estivéssemos

falando espanhol hoje, porque logo que morre Camões, Dom Sebastião

desaparece e morre também Portugal. Então, Camões morre junto

com Portugal, que fica sob domínio espanhol durante muito tempo. No

entanto, a força da cultura, cujo principal elemento é a língua, fez com

que nós conseguíssemos permanecer até hoje. Nós, eu digo os lusos. Nós

todos que somos lusíadas, não há como negar, ninguém pode mudar esse

fato de sermos lusíadas.

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4. BIBLIOGRAFIA

ADLER, Mortimer. Como ler livros.

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia.

ALIGHIERI, Dante. O Convívio.

BÍBLIA. Gênesis.

CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusíadas.

HESÍODO. Teogonia

HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias

HOMERO. Ilíada

HOMERO. Odisseia

MATEUS. MARCOS. LUCAS. JOÃO. Os Quatro Evangelhos.

VÍTOR, Hugo de São. Opúsculo sobre o modo de ler e meditar

OVÍDIO. As Metamorfoses

VERGÍLIO. Eneida

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