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Um caso de Verificacionismo

Karl Popper

Se um paciente que, de
outro modo, é muito
inteligente, resiste a uma
sugestão com argumentos não
muito inteligentes, então a
imperfeição da sua lógica é
evidência da existência de um
forte motivo para a sua
resistência.

F
r
e
u
d

O propósito desta seção é mostrar, analisando um caso famoso, que o problema da


demarcação não é simplesmente um problema de classificar as teorias em científicas e não
científicas, mas sim que a solução é urgentemente necessária para podermos realizar uma
avaliação crítica das teorias científicas ou das teo/

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rias supostamente científicas. Para tal propósito, selecionei a grande obra de Freud, A
Interpretação dos Sonhos, por duas razões. A primeira é que o meu intento de analisar seus
argumentos tiveram um papel importante no desenvolvimento das minhas concepções sobre
a demarcação.1 A Segunda é que, apesar de graves defeitos, alguns dos quais tratarei de
expor aqui, ela contém, sem sombra de dúvida, um grande descobrimento. Eu, pelo menos,
estou convencido de que existe um mundo inconsciente e de que as análises dos sonhos de
Freud em seu livro são fundamentalmente corretas, embora incompletas (como ele mesmo
deixa claro) e, necessariamente, de certo modo, enviesadas. Digo "necessariamente"
porque, devido ao fato da observação 'pura' jamais ser neutra, ela é necessariamente o
resultado de uma interpretação. (As observações sempre são sempre corrigidas, ordenadas,
decifradas e avaliadas à luz de nossas teorias. Em parte por essa razão, nossas observações
tendem a apoiar nossas teorias. Esse apoio tem pouco ou nenhum valor a menos que
adotemos conscientemente uma atitude crítica e busquemos refutações a nossas teorias em
lugar de 'verificações'.) O que seja válido mesmo para as observações mais parciais o será
também para a interpretação dos sonhos.

O que me proponho a fazer nesta seção é analisar o modo de argumentar de Freud em apoio
à sua tese principal na Interpretação dos Sonhos.
O Objetivo principal de Freud nesse livro é o de "demonstrar que, em sua natureza
essencial, os sonhos representam satisfações de desejos".2 Freud está consciente, natural/

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mente, de que há uma objeção óbvia a essa teoria: a existência de pesadelos e sonhos de
angústia; no entanto, ele rechaça tal objeção. "De fato, parece" - escreve Freud em uma
passagem na qual ele formula o que vai ser o nosso problema central aqui - "que os sonhos
de angústia tornam impossível asseverar o propósito geral... segundo o qual os sonhos são
satisfações de desejos; realmente, os sonhos de angústia parecem qualificar tal proposição
de absurda. Não obstante, não há grande dificuldade em responder a essa objeção".3 O
método de respondê-la, explica,4 consiste em mostrar que o que em aparência (em seu
"conteúdo manifesto") parece ser um sonho de angústia, na realidade (em seu "conteúdo
latente") é a satisfação de um desejo. Isso leva Freud a uma pequena "modificação" de sua
tese principal em relação à "natureza essencial dos sonhos", modificação que formula da
seguinte forma: "um sonho é a satisfação (mascarada) de um desejo (suprimido ou
reprimido)".5

Freud reafirma repetidamente o seu projeto de revelar o conteúdo latente de todo sonho de
angústia como satisfação de um desejo. Assim, o projeto se reafirma, por exemplo, na pg.
550 e mais plenamente na 557, onde se lê: " assim, não há dificuldade para ver que os
sonhos desagradáveis e os de angústia são uma satisfação de desejos no sentido de nossa
teoria, da mesma forma que são os sonhos de clara satisfação". 6 Entretanto, Freud jamais
leva a cabo o seu projeto: e no final, renuncia por completo a ele, embora sem dizê-lo
explicitamente. A evidência em que se baseia esta afirmação é a seguinte:

Freud, bem no início de seu livro (pg. 157) começa a discutir "os muitos freqüentes sonhos
que parecem estar em contradição com a minha teoria",7 e logo temos indícios de que

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o projeto de reduzir os sonhos de angústia a sonhos de satisfação de desejos pode se tornar


como um sonho de desejo insatisfeito, porque na pg. 161 nos inteiramos de que nos sonhos
de angústia, há que separar a angústia do sonho a cujo conteúdo está apenas
"superficialmente ligada" (ver também pg. 162 e a nota do editor a ela). Na pg. 236 nos
inteiramos de que a angústia "pode ser psico-neurótica... Onde isso ocorre... nos
aproximamos do limite em que falha o propósito dos sonhos de satisfazer os desejos" (O
itálico é meu; ver também o final da pg. 487). Assim, no final das contas, há um limite. Na
pg. 580, o próprio Freud se mostra consciente de que, até o momento, não faz mais do que
evitar a questão de reduzir os sonhos de angústia a sonhos de satisfação de desejos: "Refiro-
me, naturalmente, escreve, "à questão do sonho de angústia; e para não confirmar a
impressão de que estou tratando de evitar a evidência desta testemunha principal contra a
teoria da satisfação de desejos sempre que me encontro frente a ela, darei agora, ao menos,
certos indícios de uma explicação do sonho de angústia".8 Mas os indícios são
insatisfatórios; pelo menos, não satisfazem Freud. Isso porque, após duas páginas nas quais
não aparece nada novo que possa iluminar-nos com relação a nosso problema, mas apenas
uma repetição da antiga asserção de que "não há nada contraditório na noção de que um
processo físico que produz ansiedade possa ser, não obstante, a satisfação de um desejo",
Freud renuncia por completo o seu intento. Finalmente diz-nos, na pg. 582, que todo o
assunto dos sonhos de angústia acaba ficando definitivamente "fora do marco psicológico
da formação dos sonhos. Se não fosse pelo fato de que nosso tema (a teoria dos sonhos)
esteja relacionado com a angústia pelo único fator da liberação do inconsciente durante o
sonho, seria possível a mim omitir toda a discussão dos sonhos de angústia e evitar a
necessidade de penetrar, nessas páginas, em todas as obscuridades que os rodeiam".9 Em
1911, mas não nas edições posteriores, Freud resumiu sua elaboração, embora apenas
implícita e aparentemente sem se dar conta, repudiou o seu programa em uma única
sentença: "A angústia nos sonhos, insisto, é um problema de angústia e não um problema
dos sonhos".10

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Nas quatro páginas seguintes, Freud discute e analisa em parte três sonhos de angústia. O
seu propósito não é o de demonstrar que são as realizações de desejos, mas simplesmente
apoiar a sua afirmação de que "a angústia neurótica tem uma origem sexual" (pg. 582).
Isso, claramente, implica na concepção de que a angústia está vinculada a certos desejos.
Mas não justifica, em absoluto, a inferência de que todo sonho de angústia tenha que Ter o
caráter de uma satisfação de desejos. (Essa inferência equivocada parece haver sido feita
por alguns dos leitores de Freud; mas é preciso advertir que o próprio Freud sugere somente
que o primeiro dos três possa haver sido, em parte, a satisfação de um desejo e não sugere
nada pelo estilo sobre o segundo e o terceiro dos sonhos.)

A razão pela qual Freud não realiza o seu projeto original de mostrar (por meio de análise
detalhada, como as que costuma fazer) que todos os sonhos de angústia são satisfações de
desejos é claramente que, no final das contas, ele mesmo não acredita ser possível. Desse
modo, o sonho de angústia se converte em um problema de angústia: agora, é mais uma
"parte da psicologia das neuroses" (pg. 582) do que propriamente da teoria dos sonhos, quer
dizer, da teoria da satisfação dos desejos. Eu serei o último a criticar essa mudança de
opinião. Mas a mudança não supõe uma correção consciente com vistas à admissão de um
erro. Pelo contrário, nove anos depois dessas passagens terem sido escritas, Freud
acrescentou à página 135 - na qual havia introduzido pela primeira vez o seu projeto de
reduzir os sonhos de ansiedade a sonhos de satisfação de desejos - uma áspera réplica aos
"leitores e críticos deste livro". Ele os acusa de não estarem de acordo com a sua tese de
que todos os sonhos, inclusive os de ansiedade, são satisfações de desejos e de não
entenderem o seu projeto (abandonado anos antes, embora somente ao final do livro)
segundo o qual "os sonhos de angústia, uma vez interpretados, podem resultar ser
satisfações de desejos" (pg. 135). "É quase impossível dar crédito à obstinação", escreve
Freud, "com a qual os leitores e críticos desse livro fecham os olhos a essa consideração e à
fundamental distinção entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente dos sonhos".11

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Ora, o que quero apontar não é tanto que, de fato, não foram os leitores e os críticos os
obstinados; que os leitores e os críticos não podiam deixar de ver o problema dos sonhos de
angústia; e que tinham toda a razão quando ficavam insatisfeitos ao ouvirem dizer primeiro
que a redução dos sonhos de angústia a sonhos de satisfação de desejos não apresentava
"grande dificuldade" (pg. 135 e 557) para depois, no final, se depararem com o fato (pg.
582) de que esta redução nem sequer fora intentada, mas sim rechaçada por "não ser um
problema dos sonhos". O que quero criticar, antes, é a maneira pela qual Freud rechaça as
críticas.12 Realmente, estou convencido de que Freud podia Ter melhorado enormemente a
sua teoria se a sua atitude com respeito às crítica fosse diferente, sobretudo a sua atitude
sobre as "críticas mal informadas", como os psicanalistas gostam de chamá-las. E, não
obstante, não resta dúvida de que Freud era muito menos dogmático do que a maioria dos
seus seguidores, que se sentiram inclinados a fazer uma religião da nova teoria, dotada de
tudo o que era necessário: mártires, hereges, e cismas e que consideravam todo crítico
como um inimigo ou ao menos como "mal informado" (quer dizer, que precisa ser
analisado).

Essa atitude defensiva se harmoniza com a atitude de buscar verificações, de encontrá-las


em abundância por todas as partes, de recusar admitir que certos casos não se encaixam
com a teoria (e, ao mesmo tempo, descartá-los por "não serem um problema de sonhos, mas
de angústia"; é, de fato, um "estratagema convencionalista" típico, como explico na seção
20 da Lógica da Pesquisa Científica: uma "imunização", como chama Hans Albert).

Um vez que se adota essa atitude, todo o caso concebível se converterá em um exemplo
verificador. Em 1919 ilustrei isso com o seguinte exemplo de dois casos radicalmente
opostos de conduta. Um homem empurra um menino na água com a intenção de afogá-lo: e
outro sacrifica a sua vida com o objetivo de salva o menino. Cada um desses dois exemplos
de conduta pode ser explicado facilmente em termos freudianos e, certamente, também em
termos adlerianos. Segundo Freud, o primeiro homem sofria de repressão (por exemplo, de
algum componente de seu complexo de Édipo) enquanto que o segundo conseguiu sublimá-
lo.

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(E, como escreveu em uma ocasião o psicanalista Bernfeld, a psicanálise pode predizer que
um homem reprimirá ou sublimará, mas não pode dizer qual das duas coisas ele fará.)
Segundo Adler, o primeiro homem sofria de sentimentos de inferioridade (produzidos,
talvez, pela necessidade de demonstrar a si mesmo que se atrevia a cometer um crime); e o
mesmo ocorria ao segundo (cuja necessidade era demonstrar a si mesmo que se atrevia a
arriscar a sua vida). Não posso pensar em nenhum exemplo concebível da conduta humana
que não possa ser interpretada em termos de qualquer uma das duas teorias e que não possa
ser reclamado, por qualquer delas, como uma "verificação".

* (Acrescentado em 1980): Creio que a última sentença do parágrafo anterior seja


demasiado forte. Como Bartley me apontou, há certos tipos de conduta que são
incompatíveis com a teoria de Freud, quer dizer, que a teoria de Freud os exclui. Assim, a
explicação que Freud oferece à paranóia como um caso de homossexualidade reprimida
pareceria excluir a possibilidade de homossexualidade ativa em um indivíduo paranóico.
Mas isso não forma parte da teoria básica que estava criticando. Além disso, Freud podia
dizer de qualquer homossexual ativo aparentemente paranóico que não ele não é realmente
paranóico, ou que não está plenamente ativo.
Que alguns casos tão radicalmente opostos tenham sido interpretados, realmente, como
verificações, pode ser mostrado detalhadamente analisando o tratamento de Freud a certas
objeções à sua teoria. Na Interpretação dos Sonhos, Freud menciona "os sonhos, muito
freqüentes, que parecem contradizer a minha teoria pelo fato de que o tema delas é a
frustração de um desejo ou a ocorrência de algo que claramente não se deseja" (pg. 157).
Um grupo desses "sonhos contrários ao desejo", como ele os chama, pode ser explicado
como sonhos que cumprem o desejo do paciente de que a teoria de Freud seja equivocada.
(Há outro grupo que não nos preocupa aqui.) Assim, o aparente falseamento resulta ser uma
"verificação". Mas o que ocorre com o caso radicalmente oposto de um paciente cujos
sonhos se sonham para agradar o analista e para confirmar a sua teoria e não para refutá-la?
Esses "sonhos complacentes" (como os chama Freud em algumas ocasiões) 13 são também,
desde já, verificações; porque são satisfações de desejos da mesma maneira que outros.

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Uma atitude mais crítica sobre esses "sonhos complacentes" seria a seguinte: eles ocorrem,
como diz o próprio Freud, devidos à sugestão do próprio analista, ou ao fato de que o
analista impõe as suas idéias a um paciente sugestionável. Não deveríamos considerar
seriamente, então, a possibilidade de que outras "verificações clínicas" - como os analistas
gostam de falar -, ou mesmo todas elas, se devam a um mecanismo desse tipo? E a mera
possibilidade de tal mecanismo não invalida tais "verificações"?

O próprio Freud está a par desse problema; é interessante ver como ele o trata.14

"Talvez o analista se sobressalte a princípio" - começa Freud - "quando se recorda pela


primeira vez dessa possibilidade", isto é, a de influenciar assim um paciente seu.15 Essa é
uma observação interessante: "o analista", como Freud, "se sobressalta porque vê que todo
o seu edifício de 'verificações clínicas' ameaça desmoronar-se". Entretanto, a angústia do
analista se acalma logo que ele se dá conta de que não é ninguém senão o "cético" aquele
que traz à baila essa chocante possibilidade: " cético pode dizer que essas coisas aparecem
no sonho porque quem sonha sabe que tem de produzi-las, ou que o analista as espera",
escreve Freud; e acrescenta: "o próprio analista pensará, com justiça, de modo diferente". 16

Sem dúvida ele pensará isso. Mas por que "com justiça"? Freud não dá nenhuma razão.
Pelo contrário, quando o cético reaparece três páginas mais adiante e pela última vez - ao
que é chamado de simplesmente de "alguém" - nem mesmo Freud "pensa de um modo
diferente"; porque aí escreve: "se alguém mantivesse que a maioria dos sonhos que possam
ser utilizados em uma análise trata, de fato, de sonhos complacentes que foram produzidos
devido à sugestão (por parte do analista), então nada pode ser dito contra essa opinião a
partir do ponto de vista da teoria analítica. Nesse caso, somente necessito referir-me às
considerações nas minhas conferências introdutórias, onde mostro o prejuízo que resulta da
credibilidade dos nossos resultados para uma compreensão da tendência à sugestão em
nosso sentido".17 Temo que a referência às Conferên/

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cias Introdutórias dificilmente ajudará a superar a contradição entre as duas últimas
citações. Se alguém pode pensar com sentido crítico, deve permanecer em estado de
"sobressalto"; sobretudo se lê com minúcia, na décima Quinta dessas conferências (cf. as
seis primeiras linhas do ponto 4), que o sobressalto teve a sua origem no descobrimento de
que os pacientes de Freud, Adler e Stekel sonhavam, respectivamente, "principalmente com
impulsos sexuais,... de domínio... e de renascimento", adaptando desse modo, como
expressa Freud, "o conteúdo dos seus sonhos às teorias favoritas de seus médicos".

Contudo, voltando das Conferências Introdutórias à passagem que me levou a citá-las, o


único argumento digno desse nome nessas quatro páginas de desculpas é o argumento do
quebra-cabeças de peças irregulares (pgs. 312-3 e 143, respectivamente). O argumento diz
que, se o analista consegue recompor a totalidade da intrincada imagem "de modo que o
desenho adquira sentido, sem deixar vazios em lugar nenhum... então ele sabe que chegou à
solução e que não há outra".

Nada poderia ser mais perigoso do que esse argumento se, como no contexto atual, ele é
usado para dissipar as dúvidas do analista com respeito aos resultados da sugestão. Isso
porque o analista tinha medo, para começar, precisamente da possibilidade de que o
quebra-cabeças pudesse ser composto sob pressão, forçando-se as peças (que são elásticas
ou plásticas e não rígidas) para encaixá-las em seu lugar, ou talvez mediante a sugestão
inconsciente a um paciente dócil para que ele produza algumas peças novas, feitas
especialmente sob medida, para que se encaixem bem nos diversos "buracos".

Assim, sem essa objeção decisiva, o argumento do quebra-cabeças só é aceitável se temos


diante de nós uma teoria que possa ser contrastada rigorosamente: as demais teorias sempre
podem fazer com que seus quebra-cabeças se encaixem. Consideremos, por exemplo, as
interpretações da história em termos de lutas de castas ou lutas de classes: elas parecem
"resolver" o quebra-cabeças da história e da política atual. O mesmo pode ser dito da
interpretação astrológica da história ou da interpretação que dela faz Homero, em termos
das brigas domésticas no Monte Olimpo, ou da interpretação do Antigo Testamento em
termos da

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culpa coletiva, do castigo e da expiação. Cada uma delas consegue "resolver" o seu quebra-
cabeças. Mas a sua crença - e a de Freud - "de que não há outra solução" carece de
fundamento: todas elas tem êxito. (e também tiveram Adler e Stekel.)

Não quero ser mal interpretado. Penso que a Interpretação dos Sonhos de Freud é um
grande sucesso. Contudo, a teoria que ela contém possui um caráter mais parecido com o
do atomismo anterior a Demócrito - ou talvez ao da coleção de relatos de Homero sobre o
Olimpo - do que o de uma ciência contrastável. Ela mostra certamente que uma teoria
metafísica é infinitamente melhor do que a ausência de teorias; e, suponho, é um projeto
para uma ciência psicológica, comparável ao atomismo e ao materialismo, ou à teoria
eletromagnética da matéria, ou à teoria dos campos de Faraday, que foram, todas elas,
projetos para a ciência física. Todavia, é um erro fundamental acreditar que, porque está
"sendo verificada" constantemente, ela tem que ser uma ciência baseada na experiência.
O verificacionismo é sempre acompanhado de um dogmatismo perigoso. E não creio que a
pergunta "qual é a natureza essencial dos sonhos?" seja uma boa pergunta; mas se forem
consideradas, então, as respostas diferentes da teoria de Freud sobre a satisfação dos
desejos, elas parecem ser pelo menos tão apropriadas quanto ela. Por exemplo, todo o
material de Freud e a sua análise poderiam se encaixar muito bem na seguinte réplica:
"todos os sonhos são conseqüência de conflitos: de desejos em conflito ou de conflitos
entre os desejos e os obstáculos que ameaçam de frustrá-los e que criam preocupações e
problemas".18 Ora, como em um sonho de desejos não podem ser expressos mais do que em
forma de uma representação do que se deseja19 - quer dizer, de sua satisfação - uma
representação dessa satisfação se encontrará na maioria dos sonhos. No entanto, embora
alguns sonhos possam culminar em uma satisfação, o conflito e a frustração estão sempre
representados com força (inclusivo nos singelos sonhos da infância e nos sonhos de fome);
e se convertem em dominantes em um sonho de angústia, que não tem porque ser um
sintoma de neurose de angústia.20

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Nada mais longe da minha intenção do que oferecer essa teoria - que, em qualquer caso,
seria devida inteiramente a Freud - como alternativa à sua.21 O que quero assinalar é que
Freud não discute em lugar algum uma teoria alternativa (tal como a esboçada aqui) que
tome nota do simples fato, agora admitido, de que os sonhos de angústia constituem uma
refutação da fórmula geral de satisfação de desejos, como sugerem há muito tempo os
leitores "obstinados" e os críticos "mal informados". Em lugar algum Freud compara a sua
teoria com uma rival promissora, avaliando uma em relação à outra à luz das evidências; e
nunca a critica: ele tem a sua teoria e trata de verificá-la; ele a faz se encaixar a elas, na
medida do possível - como mostra o exemplo do sonho de angústia - mais além do que ele
mesmo pensou ser possível quando publicou pela primeira vez o seu grande livro, A
Interpretação dos Sonhos.

Essas foram as razões, mais ou menos, que me levaram, em 1919, a rechaçar as pretensões
de freudianos, adlerianos e marxistas com respeito à suposição de que as suas teorias
estavam "baseadas na experiência" do mesmo modo que as teorias das outras ciências, a
neurologia experimental ou, digamos, a bioquímica. Rechacei as suas pretensões porque vi
que as suas teorias não satisfaziam o critério de contrastabilidade ou refutabilidade ou
falseabilidade. Hoje, esse critério está sendo amplamente aceito como critério de
demarcação; mas as três teorias mencionadas raramente são discutidas em relação a ele. Em
contrapartida, seguem sendo discutidas em termos da evidência confirmadora, de
"verificações".

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Assim é como vi pela primeira vez o problema da demarcação. No contexto atual, não
importa se tenho ou não razão com respeito à refutabilidade de algumas dessas três teorias;
aqui só servem como meros exemplos, ilustrações. Porque o meu objetivo é mostrar que o
meu "problema da demarcação" foi, desde o início, o problema prático de avaliar as teorias
e de julgar as suas afirmações. Não era, por certo, um problema de classificá-las ou de
distinguir certas disciplinas chamadas "ciência" e "metafísica". Era, melhor dizendo, um
problema prático urgente: baseado em quais condições é possível um recurso crítico à
experiência, um que dê fruto?

Tradução de Marco Antonio Franciotti

In Popper, K. (1985): Realismo Y el Objetivo de la Ciencia (post scriptum a la lógica de la


investigación científica, Madrid: Editorial Tecnos, vol. I, pgs. 203-214.

Notas

1. Outra teoria que teve um papel similar (ver Philosophy of Science: A Personal
Report) foi o marxismo. (ver Búsqueda sin término, seção 8; mas enquanto tratei do
marximo com grande detalhe na Sociedade Aberta e seus Inimigos e sobre o
historicismo em geral na Miséria do Historicismo, não havia publicado nunca uma
análise detalhado do método freudiano de abordar os exemplos falseadores e as
sugestões críticas).
2. Cf. Sigmund Freud, The Interpretation of Dreams (publicada pela primeira vez em
1899), traduzida do inglês e editada por James Strachey, 1954, pg. 127. Ver também
pgs. 119 e 121. No que se segue, traduzo diretamente, em um dos lugares, do
Gesammelte Schriften, II e III, 1925. Posso acrescentar aqui que uma análise da
Intrdouctory Lectures (1916-1917) levara aos mesmos resultados. (Cf. sobretudo a
décima Quarta conferência.) Para uma crítica psicanalítica e o restabelecimento da
tese principal de Freud, ver Wisdom, J. O. (1949): 'A Hypothesis to Explain Trauma
Re-enactment Dreams', Intern Journal of Psycho-Analysis, 30, pgs. 13 ff. As
passagens de Freud que são citadas aqui completam as que eu citei. Compare
sobretudo a referência de Wisdom nas pgs. 13-15 (notas 2-8) a Freud, New
Introductory Lectures, 1937, pgs. 43-44, onde Freud introduz, para explicar os
sonhos de representação de traumas, o conceito de intento de satisfação de desejos:
"mas não considerou que com isso", escreve Wisadom na pg. 15, "não dizia nada
essencialmente novo". Compare também a referência de Wisdom na pg. 14 (notas 4
e 5) à explicação de Freud dos "sonhos dolorosos" pela satisfação de desejos de
castigo, como se indica na Intrdocutory Lectures, 1943, pg. 185 e Beyond the
Pleasure Principle, 1922, pg. 38.
3. Op. cit. Pg. 135 (o itálico é meu).
4. Loc. Cit.
5. Op. Cit., pg. 160. A tese principal de Freud está estreitamente relacionada com outra
fundamental (cf. pgs. 123 e 133 ff): que é "a função" de um sonho ou, de qualquer
modo, sua função "normal", ser guardião do sono contra as perturbações; apesar de
que às vezes o sonho também pode Ter que "aparecer no papel de perturbador do
sono" (pg. 580).
6. Op. cit. Pg. 537. O itálico é meu. Compare essa citação com o texto da minha nota 3
supra. No entanto, Freud fala dos sonhos de angústia em termos muito diferentes e
menos confiáveis antes dessa passagem; por exemplo, nas pgs. 161 e 236.
7. Op. cit. Pg. 157. A discussão dos "sonhos desagradáveis" é continuada nas pgs. 556
ff.; ver a citação da minha nota precedente. Certamente, estou disposto a acreditar
na hipótese de Freud (pg. 157) de que alguns de seus pacientes satisfaziam, em seus
sonhos, o desejo de refutar a teoria de Freud. E no entanto, com essa hipótese nos
aproximamos perigosamente de um estratagema convencionalista (cf. Lógica seção
20) como tratarei de argumentar.
8. Ges. Schriften, II, 1925, pg. 497; correspondente à pg. 580 (as cinco últimas linhas
antes do parágrafo a seguir) da edição de Strachey.
9. Ed. De Strachey, pg. 582; o itálico é meu.
10. Loc. Cit., nota 2: os itálicos são meus. Um enunciado bastante inequívoco (que
entretanto não contém o termo "angústia" mas o de "neutraumática" aparece em seu
lugar), com respeito ao fato de que alguns sonhos de angústia não são satisfações de
desejos, mas sim "são as únicas exceções autênticas", se encontra na primeira
sentença da seção IX do artigo de Freud de 1923; cf. também as quatro últimas
páginas do primeiro capítulo do New Introductory Lectures, 1933, especialmente a
observação "não levou ao ponto de dizer que a exceção confirma a regra...".
11. Ges. Schriften, III, pg. 25; correspondente à nota 2, pg. 135 da tradução de Strachey.
Ver também as observações sobre "os profanos" na décima Quarta das Introductory
Lectures.
12. Ver também a nota 2 que acabo de citar, pg. 135, e a nota acrescentada em 1925 à
pg. 160. Freud diz aqui de seus críticos que "não fazem muito uso de sua
consciência moral" (Ges. Schriften, III, pg. 31), sugerindo que são movidos por
"inclinações agressivas" quando atribuem a doutrina de que "todos os sonhos têm
um conteúdo sexual" à "psicanálise". No entanto, Otto Rank - que, como explica
Freud, afirmava precisamente isso - não pertence às filas da "psicanálise" ?
13. Os "sonhos complacentes" (Gefälligkeitstraüme) ou "sonhos dóceis" - sonhados
para agradar o analista confirmando a sua teoria - são descritos e discutidos por
Freud no Ges. Schriften, III, pgs. 312-4 (correspondendo a 'Remarks on the Theory
and Practice of Dream Interpretation', 1923, seção VII ff., Collected Papers 5, 1950,
pgs. 141-5). Ver também a vigésima sétima e a vigésima oitava das Introductory
Lectures.
14. Op. cit. Ges. Schriten, III, pgs. 310-4.
15. Op. cit. pg. 130.
16. Op. cit. pg. 311 (Collected Papers 5, pgs. 142).
17. Op. cit., pg. 314 (Os itálicos são meus. Cf. Collected Papers, pg. 145.) A referência
é ao ponto quatro da décima Quinta das Introductory Lectures que proporciona,
quando muito, um argumento circular como réplica à última que proporciona um
argumento que só mostra que alguns dos princípios mais gerais de análise estão
apoiados por evidência independente, de modo que, em seu todo, pode se dever à
sugestão (Estou disposto a conceder isso; o que é talvez a evidência mais
surpreeendente desse tipo pode encontrar-se na República de Platão, por exemplo,
pgs. 571-5. Essas passagens não são mencionadas por Freud. Essas e outras são
discutidas na Open Society (nota 59 ao cap. 10). A passagem na conferência
vigésima oitava também faz uso do que é essencialmento o argumento dos qubra-
cabeças de peças irregulares.
18. Os sonhos que representam trabalhos sobre problemas são discutidos na
Interpretation of Dreams, nota 2 (acrescentada em 1919), na pg. 181, onde Freud se
refere a experimentos realizados por Pötzl (ver também pg. 569) Samuel Butler
havia previsto alguns dos resultados de Pötzl em uma esplêndida passagem em
Erewhon Revisited (1901), caps. 27-8. "Gostaria que alguém escrevesse um livro
sobre os sonhos", escreveu Butler no cap. 28, ognorando que Freud havia publicado
seu livros dois anos antes.
19. Essa idéia é tomada da última sentença da seção III de Freud, On Dreams, 1901;
Standard Edition 5, pgs. 629 ff.
20. Ver Butler, loc. Cit., para uma interessante descrição e análise de um sonho de
angústia. Uns sonhos de fome - de Shackleton e Wilson - que não se encaixam na
teoria de Freud, mas que se encaixam na proposta aqui, são os referidos pelo capitão
Scott na The Voyage of Discovery (anotação no diário com data de 22 de Dezembro
de 1902): "Meus companheiros têm 'sonhos de comida' muito ruins; chegam a
aparecer na conversação normal durante o desjejum. Parecem ser uma espécie de
pesadelo; ou estão sentados junto a uma mesa bem servida e têm os braços atados,
ou agarram um prato e têm a mão decepada, ou estão a ponto de levar à boca um
pedaço excelente quando caem em um precipício. Quaisquer que sejam os detalhes,
algo se interpõe no último momento e acordam".
21. Como outra alternativa à fórmula de Freud de satisfação de desejos, J. O. Wisdom
propõe, no artigo a que se refere a nota 2 supra, que os sonhos sejam reelaborados e
reinterpretados. Atribuindo muito peso à idéia de Freud dos desejos de castigo (uma
idéia da qual o próprio Freud se havia servido muito pouco), Wisdom se propõe a
explicar todos os sonhos - inclusivo os de angústia - em termos de satisfação de
desejos (o próprio Wisdom prefere o termo "satisfação de necessidades", para que
não possa haver um "desejo inconsciente" que corresponda a cada "necessidade" no
sentido de Wisdom, incluindo o que ele chama de "necessidades de castigo".) Pode
se dizer que a teoria de Wisdom admite conflitos na explicação dos sonhos, mas,
pelo que vejo, só admite um tipo de conflito: aquele devido a sentimento de
culpabilidade.

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