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GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL ESTETICA A IDEIA E O IDEAL ESTETICA O BELO ARTISTICO OU O IDEAL Traducao de Orlando Vitorino Dightalzado com CamScanner CAPiTULo I A Concepgio Objetiva da Arte T° Secdo — Derinigors Gerais \— Revacoes Entre 0 Beto Arristico & 0 Beto NATURAL Esra opra & dedicada a estética, quer dizer uma arbitra: filosofia. ia decis da estética, compreendida como ciéncia unicamente do belo artis Porque o espiritual é superior ao natural. 7 Digitaizado com CamScanner a filosofia, & ciéncia do belo, e, mais precisamente, do belo artistico, pois dela se exclui o belo natural. Para justificar esta exclusio, poderiamos dizer que a toda ciéncia cabe 0 direito de se definir como queira; nao é, porém, em virtude de 10 que $6 0 belo arvistice & 0 objeto escolhido pela O habito que temos de, na vida cotidiana, falarmos de um belo céu, de uma bela drvore, de um belo homem, de uma bela demonstragio, de uma bela cor etc., leva-nos a ver como definigao arbitraria a que exclui o belo natural. Nao podemos agora examinat a questio de saber se ha razao em qualificar de belos objetos da natureza como 0 céu, 0 som, a cor etc, se tais objetos merecem em geral aquela qualificagao e se, por conseguinte, na mesma definigo deveremos abranger 0 belo natural e 0 belo artistico. Segundo a opiniao corrente, a beleza criada pela arte seria muito inferior 4 da natureza e 0 maior mérito da arte residiria em aproximar as suas criagdes do belo natural. Se, na verdade, assim acontecesse, ficaria excluida ico, uma grande parte do dominio da arte. Mas, contra esta maneira de ver, julgamos Nos poder afirmar gue o belo artistico 6 superior ao belo natural, por ser um produto do espirito que, superior & natureza, comunica esta supe- ioridade aos seus produtos e, por conseguinte, a arte; por isso é o belo artistico superior ao belo natural. Tudo quanto provém do espirito é su- Perior a0 que existe na natureza, A pior das idéias que perpasse pelo Spirito de um homem é melhor e mais elevada do que a mais grandiosa Producdo da natureza — justamente porque essa idéia participa do espitito, 08 PENSADOR Examinando de perto 0 contetido do belo natural, o sol pre sami’ 5 ossenci ‘Sol, mos com um momento absoluto, essencial, na existéncig, "Pl, Soe Ja nalureza, ao passo que uma mé idéia é algo ge Pa? Orgy nizagio da na iio. Mas, quando assim consideramos ° al do ponto de vies e veossidade ¢ da fungdio necessdria que ele esempenha no a sua ercrora, excluimos a beleza, como que abstraimos del, aoeietnas na existencia necesséiria do sol. Ora, s6 0 espi helo artistico que, como produto do espirito, 6 superior 8 naturess Bem sabemos que superior € um qualificativo vago, & a0 dizg que o belo artistico 6 superior ao belo natural, oven Precisar 0 que isso entendemos. O comparativo superior apenas indica quantitativa, isto é, nada significa. O que esta acima dew dominio espacial difere dessa coisa, podendo ser-lhe idé; dominios. Ora, a diferenca entre 0 belo artistico e o bel uma simples diferenga quantitativa. A superioridade do bi vém da participagao no espirito e, portanto, na verdade, s que existe s6 exista pelo que Ihe € superior, e $6 gracas a esse supesor 0 que é e possuii o que possui. S6 0 espirito € verdade. S6 enquante cs Piritualidade existe 0 que existe. O belo natural seré, assim, um tefiew do espirito, pois s6 é belo enquanto participante do espirito, e dever-se-g conceber como um modo imperfeito do espirito, como um modo contide no espirito, como um modo privado de independéncia e subordinado 20 espirito. A definicao que propusemos para a nossa ciéncia nada tem, pois, dearbitraria. O belo produzido pelo espirito 6 0 objeto, a criacao do esprit, e toda a criagao do espirito é um objeto a que se nao pode recusar dig- nidade. No cerne da nossa ciéncia, vamos pois estudar as relacées entre 0 belo artistico e 0 belo natural, questo na verdade muito importante. Basta-me, por agora, afastar a acusacio de arbitrariedade ao determinar que 86 € belo o que possui expressao artistica, o que é criagao do espiito, © que s6 enquanto relacionado com o espirito, ao natural se pode atribuir a beleza. Tudo quanto em suma queremos dizer é que as relagées entre as duas variedades da beleza nao sio as de simples vizinhanga. Podemos, pois, precisar objeto do nosso estudo dizendo-o formad? Pelo dominio do belo e, com maior rigor, pelo dominio da arte. veg Va? ha Situagdo da vida em que nao intervenha a belez®, oe amigavel com que nos encontramos sempre. Basta-nos olhar 4 noss@ a © Perguntarmo-nos onde, como, em que forma este génio se 0S io e Pn scenegnkrarmos vinculado por lagos remotos e ints enc lizagéio das nae a arte foi para o homem instrumento Foi nas obt@ attisticas p98 € dos interesses mais nobres do espiri i onde as primiram Bee eNOS depuseram as ces go concretizarar em formas egnsciencializaram. Asabedoriaea eee ‘rar 0 5¢65°0° da sabe, doria las pela arte que nos oferece a chave para e a arte foi 2 ' @ da religiio dos povos. Religides ha em qu Para apen; Tito. engen, dr, ue por uma diferencs Ma coisa 56 np ntica em outros lo natural nag ¢ elo artistico pro e bem que aquily Dightalizado com CamScanner ureet inico meio que a idéia nascida no espirito utilizou para se tornar objeto de representagio, Este & © problema que vamos submeter a um exame cientitico ou, antes, filosdfico-cientitico. Il — O Ponto pk Partipa Da E GICA A questao inicial que se nos apresenta é a seguinte; por onde iremos abordar a nossa ciéncia, que nos ira servir de introdugio na filosofia do belo? Claro que é impossivel abordar uma cigncia sem preparagio, que 6 sobretudo necessaria quando se tratar de uma ciéncia cujo objeto seja de ordem espiritual. Qualquer que seja o objeto de uma ciéneia e qualquer que seja a propria ciéncia, em dois pontos se deve demorar a nossa atengio: um, 0 de que tal objeto existe, outro, o de saber aquilo que ele Nas ciéncias ordinérias, o primeiro ponto nao oferece nenhuma di- ficuldade. Pareceria até ridiculo exigir A geometria a demonstragio da existéncia de um espaco, de tridngulos, de quadrados ete.; exigit 3 fi a demonstracao da existéncia do sol, das estrelas, dos fendmenos magné- ticos etc. Nas ciéncias como estas, que se ocupam daquilo que existe no mundo sensivel, esta na experiéncia exterior a origem dos objetos que nio 6 preciso demonstrar, mas que basta mostrar. Mas jé em certas disciplinas, nao-filoséficas até, podem surgir diividas quanto a existéncia dos seus objetos, como, por exemplo, em psicologia, na doutrina do espirito; pode- se, evidentemente, perguntar se existe uma alma, um espirito, isto é, en- tidades subjetivas, imateriais, tal como, em teologia, se pode perguntar se Deus existe. Quando é subjetiva a natureza dos objetos, quer dizer: quando 0s objetos existem no espirito, ndo fazem parte do mundo do material sensivel, sabemos que existem no espirito como produtos da prépria ati- vidade espiritual. Varias eventualidades surgem entao: a atividade do es- pirito ou se traduziu na formagao de representagées e intuigées internas ou se manteve estéril; e no primeiro caso, aquelas formas podem também ter desaparecido ou degenerado em representagées puramente subjetioas a cujo contetido nos é vedado atribuir um ser em si e para si. A realizagio de uma ou outra destas eventualidades vird entio a depender apenas do acaso. E assim 6 que, por exemplo, 0 belo muitas vezes aparece na rep- tesentacdo, nao como necessario em sie para si, mas como origem acidental dle mera adesio subjetiva. As intuigdes, observagdes e percepgies externas ja freqiientemente sao enganadoras e erréneas; com mais forte motivo 0 Serio as representagdes internas até que possuam a vivacidade irresistivel {ue nos arrasta a paixao. aolerd cnt dtivida quanto a saber se um objeto da representacdo ¢ a ntuicdo internas existe ou nao existe de um modo geral, assim como o cae preside a formagao desta representacao ou intuigdo eres ia subjetiva e & sua correlagao ou nao correlagéo com o obje! quanto ser em sie para si, sdo a dtivida e 0 acaso que justamente despertam Dightalizado com CamScanner 05 PENSADORES, mesmo a forga de vontade decisio, abstrair-se volta se agita © das condigées a que se do mundo que encontra suieito, a recomece a sta educagao e se retite para um isol tonal & sua 30 ser que Jamento onde possa en contrar o s «1 paraiso perdido. Em todos 0s aspectos referentes ao seu supremo destino para nés coisa do passado. Com sé-lo, perdeu tudo quanto tinh wn tenticamente verdadeiro ¢ vivo, sta realidade e necessidade dena € encontra-se agora relegada na nossa representagio. O que, hoje obra de arte em nds suscita é, além do direto aprazimento, tim jusonnn © seu contetido e sobre os meios de expr ‘ te adequagao da expressao ao contetido. S6 temos falado, até aqui, das concepgdes gerais da arte, Vamo agora falar das determinagées referentes ao contetido da arte, Também neste ponto encontramos algumas conceps de outro do e ainda sobre © grau de mbém 's diferentes, 2* SrcAo — As Ipf1as Correntes Sopre A NATUREZA DA Arte — IMrtacAo DA NaturezZA Segundo uma delas, a arte deve limitar-se a imitagio da natu mas da natureza em geral, da interior e da exterior. E um velho preceito, este de que a arte deve imitar a natureza; encontra-se jd em Arist6teles. Quando a reflexao ainda estava nos seus primérdios, poderia satisfazé-la tal concepcao, que contém sempre alguma coisa de justificavel com boas razes ¢ que nos aparecera como um momento, entre outros, do desen- volvimento da idéic Segundo esta concepgio, o fim essencial da arte consistiria na habil imitagdo ou reproducao dos objetos tal como existem na natureza, ¢ necessidade de uma reproducao assim feita em conformidade com a na tureza seria uma origem de prazer. Esta definigdo atribui a arte uma fi nalidade puramente formal, a de refazer, com os meios de que © homem dispoe, aquilo que existe no mundo natural ¢ tal como existe. Mas eo repeti¢ao afigura-se-nos como uma ocupagao negociosa e supérflua, pols que preciso temos nés de rever, em telas out em palcos, animais, paisases © acontecimentos humanos que ja conhecemos por os havermos visto of (os vermos nos jardins, nas moradias e, em certos casos, por termes ouvie® falar deles a pessoas do nosso convivio? E podemos até dizer que &! esforcos intiteis se reduzem a uma presungao cujos resultados sio mF" inferiores aos que a natureza nos oferec Porque a arte, com as ee dos seus meios de expressao, 56 pode produzir ilusdes ‘unilaterais, 0! - ea a aparéncia da realidade a um s6 dos sentidos; com eleito, qu oan de vai além de simples imitagao, & incapaz de nos provocar IMP uma realidade viva ou de uma vida real: tudo quanto nos posse ie » passa de caricatura da vida. Que pretende o homem ao imita zxperimentarse 4% a natureza? —u Digitalzado com CamSeanner proprio, mostrar habilidade, e regozijar-se por ter fabricado uma coisa com a aparéncia natural. A questao de saber se e como tal produto serd conservado e transmitido a épocas vindouras e comunicado a outros povos ¢ outros paises j4 Ihe nao importa. O homem regozija-se, antes de tudo, or ter criado um artificio, por ter demonstrado a sua habilidade e por ter verificado de quanto era capaz; regozija-se com a sua obra, regozija-se com 0 seu trabalho, nos quais conseguiu imitar Deus, dispensador de felicidade e demiurgo. Mas esta alegria e esta admiragao de si mesmo nao tardam a transformar-se em aborrecimento e insatisfagao tanto mais depressa e com tanta maior facilidade quanto mais fielmente a imitagao reproduzir 0 modelo natural. Retratos ha dos quais se tem dito, com al- guma ironia, serem tao parecidos que causam nduseas. De um modo geral, © prazer provocado por uma imitacao feliz é um prazer muito relativo porque o contetido, a matéria da imitagéo, sio dados com os quais nada hé a fazer sendo utilizd-los. Maior prazer deveria sentir 0 homem produ- zindo algo que proviesse de si, que lhe fosse préprio, a que pudesse chamar seu. Qualquer utensilio técnico, como um navio ou, mais particularmente, um instrumento cientifico, dar-lhe-A, por ser uma obra prépria, maior pra- zer do que uma imitacao. O pior dos utensilios técnicos teré, a seus olhos, mais valor, e pode ficar orgulhoso por haver inventado 0 martelo e o prego que sao invengdes originais e nao imitadas. Mostra o homem maior habilidade nas produgées provenientes do espirito do que nas imitadas da natureza. Pode-se, no entanto, rivalizar com a natureza, e nessa riva- lidade se pensa quando se diz. que as producoes da natureza so superiores as do espirito. Diz-se que aquelas sao obras divinas. Mas Deus é Espirito, e melhor se reconhece no Espirito do que na Natureza. A rivalidade com a natureza constitui um artificio sem valor. A um homem que se orgulhava de atirar lentilhas por um estreito orificio, ofereceu Alexandre, perante 0 qual mostrou aquela habilidade, alguns alqueires de lentilhas; com que tazo procedeu Alexandre, porque o homem se havia adestrado num exer- cicio que, além de inuitil, nao possufa nenhum significacdo! O mesmo se dird de toda a habilidade manifesta na imitagao da natureza, como sejam 08 casos de Zéuxis, que pintava uvas com tal aparéncia de naturais que 0s passaros, iludidos, as vinham picar, e de Préxeas, que pintou uma cortina que iludiu aquele pintor. Conhecem-se varias histérias de ilusées criadas pela arte e delas se fala como de um triunfo da arte. Conta Blu- menbach! a histéria de um velho camarada de Lineu, chamado Biittner, que, gastando todo o seu dinheiro em livros, adquiriu um dia os Insek- tenbelustigungen, de Résel, com as mais belas gravuras coloridas que ele Jamais vira (veio a constituir colegSes andlogas sobre ras). Como estavam Soltas as folhas do seu exemplar, Bittner deparou um dia com um macaco “comer a folha que tinha a gravura de um escaravelho. A alegria que 1 Blumenbach, Joh. Fiedr, 1752-1840, professor em Gottingen, célebre fsiologista e 206logo. 5s— Dightalizado com CamScanner — (08 PENSADORES sentiuy perante esta cena do macaco enganado pela imagem consoin da perda da gravura. Em presenga estes! exemplos, e de Outros come | inantes deve , pelo menos, compreen ler que, em vez de louvar opr. | de arle por conseguitem enganar péssar0s © macacos, se devi antes vituperar aqueles que julgam enaltecer o valor de uma obra artistica jn, dicando estas banais curiosidades e vendo nelas a expresso mais clevad, da arte, De um modo geral, pode dizer-se que a veleidade de tivalizar com a natureza pela imitagao para sempre condena a arte a Permanecer inferior a natureza, como um verme que se esforga por igualar um elefane Ha homens que sabem imitar os trilos do rouxinol, mas jé Kant obser que logo que nds percebemos que ¢ um homem, e no um rouxinol, ques esta a cantar, achamos esse canto insipido. Vemos nele um mero attificy nao uma livre produgdo da natureza ou uma obra de arte. O canto de rouxinol apraz-nos naturalmente, porque ouvimos um animal emitir, na sua inconsciéncia natural, sons que se assemelham & expressao de sent. mentos humanos. O que nos apraz é, portanto, a imitagéo do humano pela natureza. Pretendendo que a imitacao constitua o fim da arte, que a arte con- sista por conseguinte numa fiel imitagao do que existe ja, coloca-se ea len ‘branga_na base da producao artistica. Priva-se, assim, a arte da liberdade, do poder de exprimir 0 belo. O homem pode, decerto, ter interesse em produzir aparéncias como a natureza produz formas. Mas nao se pode tratar de um interesse puramente subjetivo em que o homem se limita a querer mostrar destreza e habilidade sem considerar o valor objetivo da- quilo que é sua intengao produzir. Ora, 0 valor de um produto provém do contevido, na medida em que este participa do espirito. Como imitador, © homem nao ultrapassa os limites do natural, ao passo que o contetido deve ser de natureza espiritual, A imitagdo da natureza pela arte Ppossui, apesar de tudo, um valor e um lugar. O pintor dedica-se a longa aprendizagem para se familiarizar com as Felagdes entre as cores, com os efeitos e os reflexos da luz, ¢ 0 saber transpor para a tela. Aprende, além disso, a conhecer e reproduzit, até as menores distensdes, as formas e figuras dos objetos. Foi, sobretudo, em nome desta aprendizagem que, nos tiltimos tempos, se julgou poder revigorar o principio da imitagdo da natureza e do natural. Nele se vit um meio de revigorar uma arte enfraquecida, nebulosa, decadente, Hato lempo que se pretendeu reagir contra o erréneo de uma atte a bitraria © convencional, com tao Pouco de artistico como de natural, i diante retorno a natureza sempre fiel a si propria, dirigida po aid eer tcis © manifesta de um modo direto, Por louvaveis que se)a™ we tendéncias e intuitos, nao 6 menos certo que jamais o naturalism ba © simples constituird o fundamento substancial da arte que, embora Ser natural em suas representagdes manifestacdes exteriores, de Mr agum se conforma rigorosamente, naquelas representacdes e manifest” S668, com a natureza exterior mediante a servi, imitacdo, pois mult? 46 Dightalizado com CamScanner HEGEL ferente 6 0 fim da arte, Sempre e necessariamente, terio as produgées artisticas uma aparéncia sensivel e natural, mas todos concordamos que a arte sempre fica aquém e abaixo do natural como sempre os homens mais habeis se revelarao ineptos desde que procurem colocar as suas imi- tagdes no nivel da natureza. Na pintura de retratos, em que se trata de fixar os tragos de um rosto, a semelhanga constitui, sem dtivida, um ele- mento muito importante, e, todavia, nos melhores retratos, naqueles re- conhecidos como melhor realizados, nunca a semelhanca é perfeita, pois sempre lhes falta qualquer coisa em relac4o ao modelo natural. A imper- feigdo deste género de pintura provém de que, apesar dos esforcos para a exatiddo, as suas representacées sio sempre mais abstratas do que os objetos naturais de existéncia imediata. O mais abstrato é 0 esquema, o' desenho. Quando se empregam cores, quando se tem a natureza do modelo, verifica-se sempre que alguma coisa foi omitida, que a limitagao nao é tao perfeita como a forma natural. Ora, 0 que torna estas representagdes particularmente imperfeitas é a au- séncia de espiritualidade. Os quadros elaborados para reproduzir rostos humanos precisam mostrar uma expresso de espiritualidade que falta ao homem natural tal como se nos apresenta diretamente no seu aspecto cotidiano. E, pois, o naturalismo incapaz de dar aquela expressao, e nisso manifesta a sua impoténcia. A expresso de espiritualidade deve dominar toda a pintura. Ao fixar formas sensiveis, é, decerto, necessdrio que o artista se conforme a natureza, a regra, a imitacao, mas nao pode esquecer que vai assim obter uma simples abstragio. A conformidade com a natu- reza ¢ de capital importancia na imitacdo, mas nao é algo de secundario © que falta as obras da imitagao, é antes algo de essencial, 0 espirito, e a propria intengao de imitar a natureza é jé uma intengao de carater espi- ritual. Temos um exemplo da consciéncia desta falta na acusagio dirigida por um turco a Bruce! quando este Ihe mostrou a imagem de um peixe (sabe-se que os turcos, tal como os judeus, abominam as imagens). Disse © turco o seguinte: “Se este peixe se erguer contra ti no Juizo Final para te acusar de o teres feito e Ihe nao teres dado uma alma como te defenderds?” Jé © Profeta, esta escrito na Sunna, respondera as mulheres Ommi Habiba e Ommi Selba que Ihe falaram das imagens que haviam visto nos templos etfopes: “No dia do Juizo Final, essas imagens acusariio quem as fez”. Ao pronunciar-nos deste modo contra a imitacao da natureza, que- remos, em suma, dizer apenas que 0 natural no deve ser a regra, a lei Suprema da representacao artistica. J4, alids, dissemos que ao mundo sen- sivel, ao imediato, aos dados da natureza ou das situagdes humanas, a arte parece ir buscar o seu contetido ou, pelo menos, um to importante elemento do seu contetido como 6 a exteriorizagao numa forma concreta. Mas dai até pretender que 0 contetido como tal e enquanto contetido seja 1 Bruce James, 1730-1794, Travels to Discover the Sources of the Nile, 1768-1773. 7 Dightalzado com CamScanner OS PENSADORES | inteiramente extra da natureza, medeia uma grande digg, —~ esta distincia ftalmente se acaba por apenas ver ne "San imitacdo pura e simples da natureza e, nesta imitagae: © Cini 26 ui cipal, destino da arte. 19, OU 0 print Considerando a imitagdo como finalidade da atte,» desaparece. Porque se nao tratara entdo de saber come °° oben ser imitado, mas sim o que seré preciso fazer, como se pet Se obter uma imitagto to perfeita quanto possivel, O obj eet do belo tomam-se indiferentes. E se, apesar de tudo, ainda ota a falar, a propésito dos homens, dos animais, das paisagens ota dos caracteres etc, nas diferencas da belezae da feldade some 2, Rio podem de modo algum interessar a uma arte reduzda so balho de imitagao. ~ Uma vez mais: que a arte tenha de pedir as formas a natureza é| afirmacao incontestavel e da qual ainda viremos a falar mais veres. f de tal natureza 0 contetido de uma obra de arte que, embora dotado de cardter espiritual, 56 em formas naturais pode ser representado, Quaqts de um modo abstrato se diz que a obra de arte ¢ imitagio da natura Parece que se querem impor & atividade do artista limites impeditivos de criagao propriamente dita. Ora, como ja vimos, ainda quando se imita a natureza tao exatamente quanto possivel, jamais se chega a obter a repro dusao rigorosamente fiel dos modelos. E, esse, por exemplo, o caso do retrato. A ambicao do artista pode bem ser a imitacao; nao é essa, porém, a funcao da arte. Ao realizar uma obra artistica, o homem obedece a un interesse particular, é impelido pelo anseio de exteriorizar um contetido particular. Chegamos assim a concluséo de que a imitagao da natureza, que parecia ser um principio geral preconizado e defendido por grandes au- toridades, nao passa, afinal, de um principio inaceitvel, pelo menos m= quela forma geral e abstrata. Apreciando as diferentes artes, vericams que, se é certo a pintura ea escultura, por exemplo, representarem a de aspecto aparentemente natural ou de um tipo essencialmente ext da natureza, as obras da escultura, uma das belas-artes, assim como da poesia, por nao serem puramente descritivas, em nada consti es tacdes da natureza. E caso se queira, por todo o custo, apliar a ey liltimas artes o principio da imitacao, ter-se-A, pelo menos, ee i longo circunléquio, que subordinaré aquele propésito a mips Ses ¢ reduzira a verdade a mera probabilidade. Mas, ainda 25°04, grande obstéculo se encontraré; determinar 0 que é e 0 que N40 €Prt is €, além disso, nao se podera ter a veleidade de eliminar da po as invencées arbitrérias e inteiramente fantasticas. te formal O fim da arte nao consiste, portanto, na imitagdo puramen com daquilo que existe, imitacio de que s6 resultam artificios t@ nada de comum com uma obra de arte. de di A natureza, a realidade, fontes sao que a arte nao pode Dightalizado com CamScanner como nio pode dispensar o ideal que nao ¢ algo de nebuloso, de jeral, de abstrato, Mas o fim da imitagao consiste em reproduzir os objetos da hatureza tais como so em sua existéncia exterior ¢ imediata, o que 86 ¢ proprio para satisfazer & lembranca, Ora, 0 que nds esperamos ¢ exigitnos, Fo apelo direto & totalidade da vida, nfo é apenas a satisfagio da lem- branca, mas também a da alma. TI — Desrertar A ALMA Despertar a alma: este 6, dizem-nos, 0 fim tiltimo da arte, 0 efeito gue ela pretende provocar. Disso nos vamos agora ocupar. Quando sob este aspecto consideramos 0 fim iiltimo da arte, perguntando-nos qual seja a agdo que ela deve exercer, pode exercer ¢ efetivamente exerce, logo verificamos que 0 contetido da arte compreende todo o contetido da alma e do espirito, que o fim dela consiste em revelar 4 alma tudo © que a alma contém de essencial, de grande, de sublime, de respeitavel e de ver- dadeiro. Oferece-nos a arte, num dos seus aspectos, a experiéncia da vida real, transportando-nos a situages que a nossa pessoal existéncia nos nado proporciona nem proporcionara jamais, situacao de pessoas que ela rep- resenta, e assim gracas nossa participaciio no que acontece a essas pes- soas, ficamos mais aptos a sentir profundamente o que se passa em nds proprios. De um modo geral, o fim da arte consiste em por ao alcance da intuigao o que existe no espirito do homem, a verdade que o homem guarda no seu espirito, o que revolve o peito ¢ agita o espirito humano. Isso 6 0 que compete a arte representar, e fé-lo ela mediante a aparéncia que, como tal, nos é indiferente desde 0 momento em que sirva para acordar em nés 0 sentimento e a consciéncia de algo de mais elevado. Assim a arte cultiva o humano no homem, desperta sentimentos adorme- cidos, pde-nos em presenga dos verdadeiros interesses do espirito. Vemos que a arte atua revolvendo, em toda a sua profundidade, riqueza e va- riedade, os sentimentos que se agitam na alma humana, ¢ integrando no campo da nossa experiéncia o que decorre nas regides mais intimas desta alma. Nihil humani a me alienum puto:' eis a divisa que a arte pode receber. Produz a arte todos os seus efeitos mediante a intuig&o e a representacio, sendo-nos completamente indiferente saber de onde provém este contetido, se de situagdes e sentimentos reais, se simplesmente de uma representacao que nos é dada pela arte. O importante 6 que 0 contetido que temos Perante nés nos desperte sentimentos, tendéncias e paixdes, e é-nos com- pletamente indiferente que tal contetido nos seja dado pela representagio ou ime ° conhecamos por uma intuicéo que tivemos na vida real. Pode a fepresentagio arrebatar-nos, agitar-nos, revolver-nos tao fortemente percepgao. Todas as paixdes, 0 amor, a alegria, a célera, 0 édio, 1 Nada do que é humano julgo alheio a mim. (N. do. E,) = Dightalizado com CamScanner

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