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Copyright © 2020 Kel Costa

Capa
Kel Costa

Revisão
Damas Assessoria e Raquel Moreno

Diagramação
Kel Costa

Texto em conformidade com as normas do novo acordo ortográfico


da língua portuguesa (Decreto Legislativo Nº 54 de 1995).

1ª edição – 2020

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial,


de qualquer forma ou por qualquer meio, mecânico ou eletrônico,
incluindo fotocópia e gravação, sem a expressa permissão da
autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei
nº 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Este livro foi ambientado no Rio de Janeiro e seus personagens
utilizam de gírias e algumas expressões muito comuns aos cariocas,
que talvez possam soar um pouco estranhas a outras pessoas.
Além disso, há muitas abreviações como o “tá”, “tô” e “pra”, de
forma que o texto fique o mais caracterizado possível com o estilo
dos personagens.
Magnólia: gata, gótica, estranha, ganhadora do troféu dedo
podre.
Eros: irmão de Odin, cafajeste, selo de comedor do Rio de
Janeiro, aquele hétero "topzera" irritante, Magnólia pensa que é gay.
Odin: irmão de Eros, novo gay da cidade, saiu recentemente
do armário (escondido do pai), gostoso pra cacete, sonho de
consumo de Magnólia, ela pensa que é hetero.
Uma bailarina totalmente fora dos padrões, tão azarada que se
enrola toda na hora da paquera.
Ela não poderia estar mais equivocada ao desejar o cirurgião
gay, achando que ele é hetero.
Ela não poderia ter se metido em enrascada maior ao pedir
ajuda ao irmão hetero, que ela pensa ser gay.
Os dois irmãos a envolvem nessa mentira que vai mexer com
muitos sentimentos e um deles vai acabar se apaixonando de
verdade.
E quando Magnólia descobrir que foi enganada... seu coração
já estará gravemente comprometido.
A certeza é só uma: um deles ela não pode ter e o outro... ela
gostaria de odiar.
Não Foi Amor À Primeira Vista sempre foi para ser um livro
muito musical porque a Magnólia é uma bailarina que ama a música
e tem um gosto muito eclético. A história é recheada de referências
e coreografias, então eu não poderia deixar de colocar as playlists
aqui para vocês.
A maioria das coreografias foram postadas em vídeos no meu
Instagram. Você pode conferir pelo destaque do livro em meu perfil.
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O celular atravessou a janela desenhando um arco perfeito no
ar até que a força da gravidade o fez despencar e eu corri para
observar a sua trajetória em declínio. Talvez naquele segundo tenha
batido o arrependimento de jogar meu único aparelho pelo nono
andar do prédio, mas na hora que li a mensagem me pareceu a
coisa mais sensata a fazer. A raiva foi extravasada com um grito
para que todos os meus vizinhos escutassem, um sonoro:
— Foda-se!
No mesmo instante, Sabrina abriu a porta do apartamento e
me flagrou num momento de total descontrole. Joguei-me de bunda
no chão, batendo a cabeça contra a parede e fechando os olhos
para não deixar que as lágrimas escapassem. Não adiantou nada,
elas foram derramadas mesmo assim porque eu não conseguia
controlar minhas emoções.
— O que está acontecendo, Lia?
Minha vida estava acontecendo, só isso. Porque eu vivia uma
droga de comédia romântica, só que daquele tipo horroroso onde
tudo dá errado para a mocinha. Tudo mesmo. O papo fantasioso de
que uma mulher normal podia andar tranquilamente pela rua e
esbarrar na alma gêmea — que por sinal teria um carro conversível,
um sorriso perfeito, o queixo do Henry Cavill e a conta bancária de
um sheik de Dubai — tornava a vida amorosa de qualquer uma
muito complicada. Por que diabos os autores insistiam em fazer
parecer tão fácil? Como se fosse muito simples encontrar o homem
dos sonhos dando mole por aí, estando solteiro, sem ser cafajeste e
que nos trate como as princesas que somos.
— Ei! Lia! — Minha irmã sacudiu meus ombros e eu abri os
olhos para vê-la agachada diante de mim. — O que houve?
— Acabei de jogar meu iPhone pela janela.
Não era o modelo mais atual, mas eu ainda estava pagando a
quinta parcela... de doze. Sabrina ficou de pé num piscar de olhos e
se debruçou no parapeito como se realmente desse para conferir o
que eu tinha acabado de dizer.
— Você ficou louca? — perguntou, afastando-se e me
encarando com as mãos na cintura. — Sério, o que está
acontecendo?
— O Rafael terminou comigo — confessei de uma vez só e
depois suspirei, deixando as mãos caírem em meu colo. — Por
mensagem. Mensagem, Bri. E ainda acho que logo em seguida ele
me bloqueou, porque a foto dele no Whatsapp sumiu.
— Que filho da mãe! — Ela se sentou de frente para mim e
puxou minhas mãos. — Sinto muito, nenê. Mas olha, você sabe que
eu nunca gostei dele, não é? Tenho certeza que vai aparecer
alguém muito melhor.
Estava demorando, o discurso que todo mundo escuta quando
leva um pé na bunda e tudo bem, eu não me importaria de ouvir tais
palavras motivadoras, se não fosse por um detalhe:
— Bri, eu fiz sexo com ele.
Minha irmã abriu a boca e congelou aquele movimento pelos
segundos que se passaram, deixando toda a situação ainda mais
triste. Seus olhos arregalados não aliviavam em nada a sensação
abafada em meu peito, mas engoli o choro porque se desabasse
agora, não ia parar de chorar tão cedo.
— Lia... — Ela me abraçou ao se inclinar e eu permiti que me
consolasse. — Que merda...
Minha irmã era a certinha da família, nunca falava palavrão e
para isso acontecer, era porque eu estava mesmo na merda.
Sinceramente, eu não sabia qual era o meu problema e por que eu
tinha nascido com esse dedo podre para escolher namorados.
Estava considerando começar a me interessar por garotas para ver
se minha vida amorosa dava uma repaginada. Do jeito que estava,
não tinha como continuar.
Eu me achava bonita. Nada absurdamente deslumbrante, mas
bonita sim. Tinha um rosto com traços delicados e olhos verdes,
todo mundo que me conhecia dizia que eu pareceria com uma
bonequinha... Se não fossem meus dois piercings no nariz, um no
lábio e outros pelo corpo. No auge da minha adolescência, quando
comecei a ficar caidinha por garotos do colégio, pensava que aos
vinte e um anos estaria namorando o homem com quem me casaria.
Mas então comecei a perceber que eu não precisava ser como as
outras garotas e que teriam que gostar de mim do jeito que eu era,
ou seja, nada convencional. Pelo menos, era isso que os livros que
eu consumia me faziam pensar e talvez eu devesse considerar
também atear fogo em todos eles.
Tudo mentira. Baboseira. Ilusão para idiotas como eu. Afinal,
eu cheguei aos vinte e um, com um total de dois namoros
fracassados e nenhuma previsão de casamento, nem pernas
bambas, nem choque elétrico percorrendo meu corpo. Ah, e muito
menos um homem com um mastro de vinte e um centímetros se
declarando para mim e dizendo que minha Annabelle era a coisa
mais linda que ele já tinha visto na vida. E por falar em Annabelle,
eu quero dizer... ah, você sabe. Não precisamos tornar esse
momento ainda mais constrangedor.
Àquela altura Sabrina me encarava como se eu fosse digna de
pena. E eu devia mesmo ser.
— Que tal um chocolate quente? — perguntou, se levantando
e me puxando junto. — Posso preparar em alguns minutinhos
enquanto a gente conversa sobre isso.
— Está fazendo uns quarenta e cinco graus hoje —
resmunguei, sentando-me no sofá. Não tinha energia para ficar de
pé. — Acho que prefiro sorvete.
Deitei ao comprido no sofá e fechei os olhos, puxando uma
das almofadas para colocar embaixo da minha cabeça e tentar ficar
um pouco mais confortável enquanto sofria. Não pense que eu faço
o tipo mulher dramática que passa a vida se lamentando por tudo,
não sou assim. Só estava muito decepcionada com o caminhar das
coisas, com a inércia da minha vida amorosa, que pelo visto, não
teria futuro nenhum. E não venha me dizer que eu sou muito nova
ainda, que só tenho vinte e um anos. Eram vinte e um anos de
decepções amorosas, umas atrás da outra.
— O que aconteceu com aquele discurso sobre esperar para
transar e tal?
— Eu esperei! — respondi, quase voltando a choramingar. —
Por três meses, Bri! O que mais queria que eu fizesse? Também
não sou de ferro! Não vou esperar até o casamento para transar
com alguém.
Também não sou ninfomaníaca, ok? Posso viver perfeitamente
sem sexo, mas a partir do momento em que se tem um namorado e
as coisas começam a esquentar, não dá para simplesmente fingir
que não existe um fogo subindo pelo corpo.
Minha irmã gostava de sustentar a teoria idiota de que mulher
que transa logo de cara não é valorizada e toda aquela ladainha que
a gente conhece. Eu não concordava com seu ponto de vista, mas
depois de ter perdido a virgindade aos vinte anos com meu segundo
namorado, duas semanas depois que ele me pediu em namoro,
para levar um pé na bunda após três dias, resolvi seguir o conselho
dela. Fernando não só tinha tirado meu lacre, como também me
traiu com uma vizinha nossa, a vaca da Laryssa.
Demorei a confiar novamente nos homens e me permitir estar
mais uma vez em um relacionamento, mas aí conheci Rafael na
noite de Ano Novo e pronto, ele me conquistou. Saímos algumas
vezes e logo começamos a namorar, eu sempre escapando das
investidas dele quando ficávamos a sós em seu quarto. Achei que
três meses era um bom tempo para testar a paciência dele e ter a
certeza de que estava comigo realmente porque me amava.
— Lia, por acaso, assim, só por acaso mesmo, você se
fantasiou? — Sabrina estava parada na frente do fogão, mordendo
uma cenoura.
— Eu não uso fantasias, sabe muito bem disso. — Ficava
irritada quando rotulavam meus looks especiais. — Usei uma
roupinha mais dark... Nada muito exagerado.
— Ah, Lia!
Eu me sentei no sofá e apertei a almofada entre os dedos,
querendo que ela se transformasse no pescoço de Rafael. Minha
irmã tapou o rosto com as mãos e quando voltou a me olhar, estava
claro que tentava segurar o riso.
— O que você usou?
— Eu comprei um espartilho de couro e usei com uma meia-
arrastão muito linda, Bri, com estampa de caveirinhas, mas não
acho que tenha sido nada disso e sim o batom preto. O Rafael
nunca curtiu aquele batom...
— Você foi transar de batom preto?
Sabrina apoiou as mãos no encosto de uma cadeira, deixando
seu queixo quase cair no chão e me encarando como se eu fosse
um monstro.
— Quer saber? Não interessa — respondi. — Podemos nos
concentrar na parte em que meu coração foi dilacerado?
— Você o amava?
Boa pergunta. Eu gostava muito da companhia dele porque
nossos gostos eram parecidos demais. A gente curtia os mesmos
filmes e seriados, gostávamos de ler e eu adorava o fato de que ele
não tinha vergonha de me levar para sair com seus amigos
igualmente nerds. Eu me sentia à vontade com Rafael. Mas amor...
— Ainda não — respondi. — Mas...
— Então vai superar fácil. Sinto muito que tenha se entregado
mais uma vez a quem não a merece, mas uma hora o cara certo vai
aparecer — tranquilizou-me, sentando no braço do sofá e apertando
minha mão. — Mas Lia, não vista suas roupas góticas na hora de ter
um momento mais... íntimo... com alguém. É estranho.
— Estranho? — questionei, sentindo-me afrontada. —
Estranho? O Rafael é estranho por natureza. Ele coleciona
miniaturas do Pokémon e dorme numa cama de solteiro com lençol
e fronha do Naruto. Aos vinte e quatro anos!
Minha irmã fez uma careta e eu me levantei, lembrando que
precisava ir resgatar os pedaços do meu telefone, afinal, ainda
podia aproveitar o chip. Se ele estivesse lá.
— Credo, Lia, você nunca me contou isso. Vocês transaram
em cima do Naruto?
— Sim. — Fechei os olhos, decepcionada. — Mas sabe qual
foi a pior parte? Eu estava quase chegando lá, quando o Bulbasaur
caiu da prateleira e o Rafa levantou da cama para colocá-lo no
lugar.
— Não! — Sabrina tapou a boca.
— Agora eu vou descer e tentar recolher meu orgulho que se
jogou do nono andar.
Bati a porta e saí do apartamento para ir apertar o botão do
elevador, mas quando ele chegou ao meu andar, vi minha inimiga
número um sair do apartamento dela lá do outro lado do corredor.
Chupei meu dedo do meio antes de mostrá-lo a ela e depois repeti o
processo com a outra mão.
— Segura o elevador, Magnólia!
— Nunca.
Estuprei o botão para acelerar o fechamento das portas e sorri
quando a caixa metálica começou a se mover apenas comigo
dentro. Minha irmã, que era uma pessoa com um coração muito
maior que o meu, dizia que eu precisava perdoar Laryssa, afinal, ela
também tinha sido traída por Fernando com seis meses de namoro.
Por mim, podia morrer na miséria e nunca mais gozar na vida, pois
foi exatamente a praga que joguei em cima dela.
Estava secando a louça do jantar enquanto Sabrina lavava
tudo, com uma paciência enorme para responder o interrogatório
que ela cismou em fazer a respeito da minha relação com Rafael.
Eu amava minha irmã, mas às vezes, o jeito dela me dava nos
nervos.
— Sinceramente, nunca soube o que você viu naquele garoto.
Ele sempre me pareceu tão idiota e imaturo...
— Temos gostos em comum.
Ela revirou os olhos e me entregou um copo.
— A parte nerd que você quer dizer, né? Porque de resto, não
vejo nada mais em comum. Namorar você com certeza foi o auge
da vida dele. E eu tenho muita coisa em comum com vários amigos,
justamente por isso eles são amigos. Não quer dizer que a gente
precise namorar alguém só porque curte o mesmo tipo de música,
por exemplo.
— Nossa, alguém está bastante maldosa hoje. Esqueceu de
rezar quando acordou?
Sabrina riu baixinho e deu de ombros enquanto desligava a
torneira e secava as mãos no pano de prato. Ela se virou de frente
para mim e deu um sorrisinho malicioso, ficando ainda mais linda do
que já era. Nós duas nos parecíamos bastante, mas Bri tinha
herdado o tom de pele da nossa mãe, que era bem morena, e isso
dava um contraste incrível para os olhos verdes iguais aos meus. Eu
fui presenteada com a palidez nada sensual do nosso pai
americano, e sempre invejava a cor da minha irmã. Ela também
frequentava a praia, coisa que eu nunca fazia, então sua pele
estava sempre reluzente.
— Não estou maldosa, eu só amo muito a minha irmãzinha. —
Minhas bochechas foram apertadas antes de Sabrina segurar meu
rosto. — Você é linda e inteligente, nenê. Merece coisa muito melhor
que um cara de vinte e quatro anos que pede para a mãe comprar
suas próprias roupas.
Isso era mesmo péssimo. Rafael era o famoso filhinho da
mamãe que não tinha a menor vontade de sair de casa e deixar de
ser mimado. Ele não trabalhava porque a minha ex-sogra dizia que
o filho dela só acordaria cedo para trabalhar quando arrumasse um
emprego decente em sua área, que era Sistemas de Informação. O
problema estava no fato de que Rafael tinha trancado o curso há
seis meses e não sabia se voltaria. E não, eles não eram ricos para
que ele pudesse se dar ao luxo de ficar com a bunda em casa e
dormir até meio-dia. Viviam atrasando as contas e ele estourava os
cartões de crédito da mãe para comprar seus jogos e itens
colecionáveis.
Abracei Sabrina e ela me apertou de volta, para então dar um
tapa na minha bunda e rir.
— Vamos torcer para sua próxima experiência não envolver
nenhum Pokémon.
— Não brinque com isso — pedi. — Foi muito ruim.
Ela me afastou para me olhar com uma careta e eu assenti só
para confirmar mais um pouco o que tinha acabado de declarar.
— Isso é o que acontece quando não se tem paciência. Se
realmente amasse a pessoa, não...
— Ah, Bri, me poupe! — eu a interrompi porque não aguentava
aquele papo. — Não é porque você esperou quase um ano para
transar com o monge do Pedro que eu vou conseguir fazer o
mesmo.
Pedro era o noivo dela e eles estavam juntos há quatro anos e
meio, mas quando começaram a namorar, Sabrina era virgem. O
coitado ficou onze meses subindo pelas paredes e provavelmente
se virando com muita masturbação para poder respeitar o tempo da
minha irmã. Eu achava tudo muito legal porque foi como ela queria,
mas não funcionou comigo.
Achei mesmo que conseguisse esperar mais um pouco com o
Rafael, mas estava ansiosa para descobrir se transar com ele seria
melhor que transar com Fernando, então o máximo que resisti foram
três meses. A conclusão: os dois eram péssimos, mas Fernando,
pelo menos, conseguiu me dar um orgasmo com sexo oral, e nem
nisso Rafael teve êxito.
— Ouça a voz da experiência, Lia — murmurou, saindo da
cozinha.
— Você só é cinco anos mais velha, dá um tempo. Talvez eu
até a escutaria se fosse uma mulher tão experiente, mas não vamos
esquecer que o único homem que já trabalhou nesse parquinho de
diversões foi o Pedro.
— O que tem eu? — Dei de cara com ele chegando em casa e
jogando a chave no potinho. — Boa noite, meninas.
Meu cunhado beijou a boca de Sabrina e se aproximou para
apertar minha bochecha, enquanto minha irmã alisava o braço dele
com um sorriso apaixonado no rosto.
— Nada, eu só estava contando sobre meu novo pé na bunda
— respondi, passando pelo casal e me instalando no sofá. — Rafael
terminou comigo.
— O banana teve coragem pra isso?
Era por isso que eu amava o meu cunhado! Ele se jogou ao
meu lado no sofá, ainda de terno, e passou um braço pelos meus
ombros.
— Uhum.
— Ah, Lia, que saco. Mas você sabe que merece coisa melhor,
né?
— Claro que ela sabe. E ela vai encontrar.
Minha irmã sentou do meu outro lado e beijou meu rosto,
fazendo eu me sentir amada. Mesmo que por muitas vezes eu me
culpasse por atrapalhar a intimidade deles morando sob o mesmo
teto, momentos assim me faziam esquecer desses detalhes e amar
as melhores companhias que eu tinha.
Segurei o volante do meu Porsche Carrera que Ana Clara
estava dirigindo e dei uma cutucada na perna dela, ordenando que
diminuísse a velocidade. Recebi um de seus olhares revoltadinhos,
mas senti o carro deslizar com mais tranquilidade pela estrada.
— Você adora correr, mas eu não posso? — reclamou,
apertando os dedos ao redor do volante e se empertigando para
olhar o caminho.
— Pode correr à vontade, desde que não seja com o meu
carro — rebati, apoiando o cotovelo no console. — Tenha em mente
que só está na direção por causa da blitz. Se eu não tivesse bebido,
não arriscaria minha vida deixando que me trouxesse para casa.
A louca abriu o vidro de sua janela e a ventania nos pegou em
cheio no meio da madrugada, em plena Avenida das Américas. O
cabelo dela se agitou e uma mecha chegou a atingir meu rosto
enquanto minha amiga gritava para ninguém em especial ouvir:
— Eros Montenegro é um chato!!!!
O pior de tudo era saber que ela agia daquele jeito mesmo
estando sóbria, uma pessoa amável e ao mesmo tempo
insuportável, completamente vida louca, até mais do que eu. Afastei
sua mão da buzina quando Ana a esmagou para que todo o bairro
escutasse e senti uma dor no peito ao ouvir o barulho desgraçado
dos pneus caríssimos contra o asfalto conforme ela fazia a curva
fechada para entrarmos em meu condomínio.
— Essa é a última vez que você vai encostar no meu carro —
avisei, abrindo a porta assim que Ana Clara estacionou na garagem.
— Foi exatamente isso que você disse da última vez que
bebeu e jogou a chave na minha mão. — Senti meu corpo absorver
o impacto do abraço dela quando deu a volta pelo automóvel e
enlaçou minha cintura. — Vamos logo, pois estou doida para me
livrar desses saltos.
— Ana, calma. — Puxei-a pela mão e a fiz parar no meio do
caminho. — Eva está dormindo aqui em casa porque a mãe dela
viajou. Ou seja, nada de escândalo às três da madrugada.
Ela sorriu, ficando ainda mais bonita. Ana Clara tinha olhos
verdes e um cabelo loiro que contrastava com seu bronzeado, era
linda demais, eu não conhecia mulher mais deslumbrante e
charmosa que ela. Porém, era uma criaturinha louca e mimada que
me tirava do sério.
— Não pretendo fazer escândalo nenhum, Tanque. — Dedos
finos passearam por baixo da minha camisa e tocaram no lugar que
dera origem ao apelido ridículo que meus amigos gostavam de usar
para me provocar. — A não ser que você não me amordace.
Revirei os olhos e passei por ela, deixando-a para trás
enquanto retirava as sandálias de saltos gigantes e corria atrás de
mim. Meu irmão Odin detestava Ana Clara, dizia que a garota era
um aborrecimento ambulante e eu tinha consciência disso, mas nós
fazíamos parte da mesma turma de amigos desde sempre e ela era
muito querida por todos.
Sempre rolou aquele clima de paquerinha entre nós dois, mas
só foi começar a acontecer algo a mais há uns quatro anos, quando
estávamos os dois muito bêbados numa festa de Ano Novo e
terminamos a noite nos agarrando dentro do meu carro quando fui
deixá-la em casa. Daquele dia em diante, passamos a transar
ocasionalmente, mas havia uma regra implícita entre nós, de que
não estávamos nem nunca estaríamos em um relacionamento. Eu
gostava da minha liberdade e Ana também, pois era tão solta
quanto eu.
Parei no segundo degrau da escada quando percebi que não
estava mais sendo seguido e olhei para trás, vendo que a loira
esperava pelo elevador. Uma coisa inútil naquela casa, já que só era
usado por minha mãe, que não estava mais viva.
— Ana... — chamei, cansado, descendo e indo até ela. —
Sério mesmo? São só dois lances de escada.
— Vai me carregar no colo? Meus pés estão doendo.
Sabia que ela estava louca por isso, então levei um dedo aos
lábios pedindo mais uma vez por silêncio e a peguei no colo,
jogando seu corpo sobre meu ombro e dando um tapa na bunda que
o vestido curto deixou de fora. Aproveitei para deslizar meus dedos
pela pele lisa porque Ana Clara tinha um traseiro maravilhoso,
redondinho e duro, que deixava qualquer um maluco e eu não era a
exceção.
Como a boa safada que ela era, senti suas mãos passeando
pelo meu corpo e puxando a barra da minha camisa, mas logo a
soltei sobre minha cama e me afastei. Ela relaxou porque entre nós
não havia mais aquela necessidade de impressionar o outro, e ficou
jogada sobre o colchão, inerte, enquanto esperava por mim.
Pensava se deveria perder alguns minutos e tomar um banho,
quando vi que Ana já estava tirando sua calcinha. Uma rápida
olhada para aquele pequeno pedaço de carne entre suas pernas
abertas me fez tomar outra decisão e deixar o chuveiro para mais
tarde, após a brincadeira.
Precisei abrir os olhos depois de levar a terceira cutucada no
meio da testa e a primeira coisa que vi foi o par de olhos mais lindos
que existiam.
— Tio, vampa piscina! — pediu Eva, minha sobrinha e afilhada
de quatro anos, vestida em seu maiô azul, sua cor favorita,
enquanto me encarava sentada ao lado do meu travesseiro.
Eu me espreguicei e lancei logo um olhar para o espaço vazio
na cama, aliviado ao ver que Ana Clara já tinha ido embora e minha
princesinha não flagrara nada promíscuo. Sorri para Eva, que
sequer piscava enquanto aguardava minha resposta.
— Deixa o tio acordar e tomar um banho primeiro — falei,
agarrando-a e a enchendo de beijo e cócegas. — Já tomou seu café
da manhã?
— Para tioooo! — Eva soltou seus gritinhos histéricos
enquanto tentava se livrar de mim. — Ah! Papai! Papai!
Odin logo apareceu na porta do meu quarto, falando no celular,
mas o desligou assim que entrou e eu soltei Eva para que corresse
até ele. A pequena foi gargalhando, toda vermelha de tanto rir, e
meu irmão guardou o telefone no bolso da bermuda antes de se
abaixar e pegá-la no colo.
— Acordou esse preguiçoso? — perguntou para a filha e um
bateu na mão do outro. — Muito bem. Vou pagar seu picolé mais
tarde.
— Uva!
— É um absurdo ficar comprando uma criança de quatro anos,
irmão. Vire homem e venha você mesmo me acordar.
Lancei um sorriso irônico para ele e me espreguicei, sentindo
os efeitos da bebedeira na noite passada. Não cheguei a encher a
cara como fazia quando era mais novo, pois desde que comecei a
trabalhar oficialmente com Odin e nosso pai, fui obrigado a
desacelerar minha vida noturna. Tomava um enorme cuidado de não
me envolver em confusão, boatos ou ser citado pela imprensa. Um
escândalo de grandes proporções certamente seria o suficiente para
meu pai me deserdar. Afinal, Apolo Montenegro carregava a fama
de um dos três maiores cirurgiões plásticos do país e tinha criado
seus filhos para seguirem seus passos de Midas. Ele passava a
maior parte de seu tempo entre as clínicas de Brasília e São Paulo,
Odin se revezava entre Porto Alegre e Rio de Janeiro, enquanto eu
ainda permanecia somente em solo carioca.
Eu levava meu trabalho muito a sério, não era apenas mais um
filhinho de papai e playboy como as aparências podiam indicar.
Portanto, quando terminei minha especialização, decidi que mudaria
minha vida e repensaria minhas atitudes. E eu realmente mantive
minha palavra, mas claro, ninguém é de ferro e de vez em quando
eu me dou o luxo de curtir um pouco a vida.
Levantei da cama quando percebi que tinha ficado sozinho no
quarto e acionei o botão para abrir as cortinas, observando o dia
ensolarado e quente do auge da primavera. Passei a mão pela
minha barriga e olhei para baixo ao sentir uma ardência, notando
que Ana Clara tinha afiado as garras na minha pele. Ela adorava me
deixar com o corpo marcado para que outras mulheres sentissem
ciúmes.
Tomei um banho rápido e desci para o jardim, passando pelas
portas de vidro e indo até a piscina, onde a babá tomava conta de
Eva, dentro da piscina com suas braçadeiras coloridas. Quando ela
me viu, abriu um sorrisão e apontou para o flamingo gigante que
boiava na água.
— Vamo, tio!
Eva amava que eu subisse com ela na boia esquisita e eu nem
me importava de parecer menos macho montado no bicho rosa,
porque a verdade era que eu fazia qualquer coisa por aquela
criança.
— Eu já vou entrar — avisei, piscando para minha sobrinha. —
Não o deixe fugir, pois vou dar um pulinho na cozinha pra comer
alguma coisa, ok?
Eva balançou a cabeça, empolgada, e nadou até o flamingo
antes que eu fosse procurar uma comida para tapar o buraco que
havia em meu estômago. Encontrei Odin conversando com Helena,
nossa cozinheira, que tinha a maior paciência do mundo para o
paladar extremamente exigente do meu irmão.
— Olha quem resolveu aparecer — disse ele, levantando-se e
tocando meu ombro. — Pedi para apressarem o almoço porque a
equipe da Zélia Machado vai vir no início da tarde avaliar o espaço
para a decoração da festa, e também precisaremos decidir o buffet.
— Nós é que vamos decidir? — perguntei, franzindo a testa. —
Não será o velho?
— Papai só chega amanhã.
Sorri para Odin sem muita vontade porque minha disposição
para aquele tipo de coisa era nula. Eu gostava de festas, mas só de
chegar nela e aproveitar cada uma. Esse papo de decoração,
florzinha, luzes, detalhes que passavam despercebido pela maioria
das pessoas, não era a minha praia. Nem mesmo o próprio
aniversariante, nosso pai, estava tão preocupado com a festa
quanto Odin.
— Considerando que você é o enjoado da família, o serviço de
buffet deveria ficar sob sua responsabilidade.
— Eu preciso justamente de alguém como você — explicou,
sorrindo — para balancear o meu paladar diferenciado.
Sim, porque eu era a verdadeira draga, comia de tudo, nunca
torcia o nariz para nenhum tipo de comida. Se colocasse um prato
na minha frente, ele ficava limpo em questão de minutos. Já Odin,
era vegetariano e eu tinha certeza que em breve ele se declararia o
novo vegano da família, pois estava riscando cada vez mais
alimentos de sua dieta.
Helena colocou um prato com ovos mexidos diante de mim,
sem que eu precisasse ter pedido, pois ela sabia que independente
da hora que eu acordasse, eu sempre comia ovos mexidos. Beijei a
mão da senhora na faixa dos cinquenta anos e levantei o polegar na
direção de Odin para confirmar que estaria presente na reunião do
buffet, de forma que fizesse-o parar de falar no meu ouvido.
— Eros — disse ele, sentando-se de frente para mim e
apoiando os braços na mesa —, por acaso foi a Ana Clara que
trouxe você para casa essa noite?
— Foi, precisávamos passar por uma blitz no caminho.
Mastiguei em silêncio ao mesmo tempo em que me sentia
incomodado com o olhar firme de Odin sobre mim. Tentei comer um
pouco mais depressa para ver se terminava e me desvencilhava
logo dele, pois mergulharia assim que possível naquela piscina para
curtir o dia ensolarado ao lado da minha sobrinha.
— Achei que você tivesse abandonado essa vida de noitadas.
— Eu abandonei — respondi, sem me preocupar em estar de
boca cheia.
— Mas se embriagou ontem e chegou em casa quase de
manhã.
— Só estou vivendo, Odin. Coisa que você deveria fazer de
vez em quando. — Ele desviou o olhar na direção da piscina e
quando Helena não estava mais por perto, debrucei-me na mesa e
apontei meu garfo para meu irmão. — O que está acontecendo que
você não tem saído de casa? Você está ficando cada vez mais
estranho e recluso, desde que... — Ele me encarou com o
semblante fechado e correu os olhos ao nosso redor, com sua típica
expressão de medo. — Eu sei.
Recostei-me novamente à cadeira e suspirei, enquanto
observava meu irmão. Odin vinha passando por um momento
complicado em sua vida pessoal. Enquanto eu trocava de namorada
a cada bimestre, meu irmão mais velho sempre pareceu um cara
muito centrado, que escolhia demais e não perdia seu tempo
correndo atrás de bocetas. Sempre pensei que ele apenas fosse
muito mais exigente que eu por ter namorado somente duas
mulheres nos últimos oito anos — sendo que nenhuma delas
permaneceu na vida dele por mais de seis meses. No entanto, há
pouco mais de dois anos ele entrou um dia em meu quarto e
confessou que não gostava de mulheres. Minha reação na hora não
foi das melhores, afinal de contas, ele tinha uma filha, fruto do último
namoro, e para mim parecia inconcebível que um homem de trinta e
quatro anos simplesmente tivesse decidido que não se interessava
mais pelo sexo feminino.
Precisei digerir a notícia por alguns dias até entender que ele
devia estar tão perdido quanto eu. E estava mesmo, pois não sabia
por onde começar as mudanças em sua vida. O medo do
julgamento devia ser enorme, visto que os homens Montenegros
possuíam uma certa reputação. Ele não andava muito bem desde
que começara a levar essa vida dupla, tentando fingir que ainda
gostava de mulher, com medo de se expor e de que todo mundo
descobrisse sua preferência sexual. Sei que eu não tinha nada a ver
com a vida dele, mas me incomodava vê-lo sempre desconfiado da
própria sombra e escondendo isso até mesmo do nosso pai.
— Irmão, sabe que o amo e falo para o seu bem — disse eu,
levantando-me e parando ao lado dele, tocando sua nuca. — Uma
hora você precisará viver sua vida de verdade. Não essa que finge
viver.
— Estou trabalhando nisso, Eros — respondeu ele, respirando
fundo, com as mãos apoiadas nas coxas.
— Trabalhe mais rápido. Há quanto tempo você não transa?
Ele levantou a cabeça e me olhou daquele seu jeito que
tentava deixar claro que eu era o irmão mais novo, mais imaturo e
mais irresponsável. Sorri em resposta.
— Por que não vai nadar com a sua sobrinha? — perguntou.
— Ah, eu vou. E vou mimá-la bastante porque durante um bom
tempo ela será a única criança dessa família.
— Tenho certeza que uma hora você vai fazer alguma merda e
se descuidar. — Eu ouvi sua provocação enquanto ia para a área
externa e jogava um beijo para a pequena Eva.
Graças a Deus Odin só se descobriu homossexual depois do
nascimento daquela criatura linda, que era a luz da nossa família.
Eva trouxe de volta o sentimento de união que quase perdemos
após a morte de minha mãe, que faleceu por uma doença que nos
desgastou tanto. Miriam Montenegro tinha apenas cinquenta e oito
anos quando perdeu a batalha para o carcinoma gástrico e levou
junto com ela a nossa felicidade. Sempre fomos todos muito unidos,
mas tanto eu quanto meu pai e Odin encontramos formas de nos
enterrarmos em trabalho, só para que não precisássemos socializar
direito um com o outro e, assim, não sermos atingidos com tantas
lembranças de minha mãe.
Quando Odin soube que seria pai, a necessidade de dar apoio
a ele e amparar a nova integrante da família nos reaproximou.
Adriana, a mãe de Eva, dividia a guarda dela com meu irmão, mas
como ela fazia muitas viagens a trabalho, a pequena acabava
passando muito mais tempo em nossa casa. Foi motivo suficiente
para que todos os três idiotas babões voltassem a montar
acampamento num só endereço.
Levantei a cabeça para olhar Eva no instante em que meu
corpo foi empurrado para frente e meus pés se desequilibraram.
Pude ouvir a gargalhada do babaca do Odin enquanto minha barriga
se chocava contra a água da piscina e toda a cena causava uma
grande diversão para Eva.
Estava terminando a ilustração de uma encomenda que
precisava entregar em dois dias quando Sabrina entrou em meu
quarto e se sentou na cama. Se tinha uma coisa que eu detestava
era trabalhar com alguém prestando atenção em mim, pois me
desconcentrava totalmente. Portanto, parei o que estava fazendo e
girei minha cadeira até ficar de frente para minha irmã.
— Ah, não, não pare — pediu, abanando as mãos. — Não
quero atrapalhar.
— Que cara é essa?
— Como assim? — Franzi a testa quando ela desafinou a voz
e se levantou correndo para se olhar no espelho do meu quarto. —
O que tem minha cara?
— Sei lá, parece que está escondendo algum segredo. Viu
alguma coisa surpreendente?
Sabrina sorriu e voltou à minha cama, batendo palmas e
gargalhando ao mesmo tempo, enquanto eu esperava com toda a
minha paciência.
— Sim, eu vi! Meu Deus, será que não consegui disfarçar? —
Ela arregalou os olhos e abanou o rosto. — Será que o Pedro
percebeu?
Olhei para minha mesa digitalizadora, minha ilustração ali
parada, esperando por mim, mas voltei minha atenção para minha
irmã. Sabrina era uma pessoa muito discreta, simpática, romântica,
aquela típica mocinha de livros de romance de época — que ela
amava ler —, então seu comportamento atual era muito inesperado.
Eu estava, no mínimo, curiosa.
— O que Pedro percebeu? — perguntei. — Dá pra explicar
melhor?
— Eu não disse que Pedro fechou com a Zélia Machado para
uma festa na Barra da Tijuca neste sábado?
Ela disse? Sim, ela disse e eu quase tinha me esquecido
disso. Desde que Rafael terminou comigo, dois meses atrás, eu
tinha mergulhado em cursinhos digitais, pois desde que me formei
em Design Gráfico estive completamente parada nas
especializações.
Meu cunhado Pedro era dono de uma empresa de buffet e no
meio do ano ele conseguiu fechar parceria com Zélia Machado, a
maior organizadora de eventos do Rio de Janeiro. Essa festa que
aconteceria no sábado era a primeira para a qual a Dono do Sabor
tinha sido contratada por Zélia.
Como eu ainda não conseguia me sustentar exclusivamente
pela minha profissão, também trabalhava com Pedro e Sabrina.
Nada glamuroso, apenas vestia um uniforme e me transformava
numa garçonete comum. Não era de todo ruim, eu até conseguia
me divertir um pouco, dependendo do evento que pegávamos.
Geralmente a música era boa e a comida também, então sempre
rolavam uns salgadinhos escondidos dentro do banheiro.
— Enfim, eu fui com ele na reunião, né? — Sabrina tocou meu
braço e sorriu. — Antes de terminar de contar, preciso dizer que a
Zélia é incrível, Lia. Que mulher elegante, refinada e educada! Dá
pra entender porque ela é tão bem-sucedida, viu?
— Se Deus quiser, Pedro fará um ótimo trabalho para
surpreendê-la — torci, porque meu cunhado merecia tudo.
— Sim! — Bri apertou uma mão na outra. — Ah, mas não é por
causa da Zélia que estou assim. É por causa dos donos da festa.
Eles são... Cacete!
Estreitei os olhos para minha irmã e estudei o rosto dela, que
começou a ganhar uma coloração rosada. Eu estava mesmo
escutando Sabrina, a sensata, toda empolgada com homens que
não eram o noivo dela? O que tinha acontecido com o mundo e em
que realidade paralela eu entrei?
— Você está bem, Bri?
— Estou ótima! — Ela gargalhou. — Mana, nunca vi dois
homens mais bonitos diante de mim.
— Nem aquele cara que atende pelo nome Pedro e que, por
coincidência, é o seu noivo?
— Claro que não!
A resposta me pegou tão de surpresa que até eu gargalhei.
Não era nada comum ver Sabrina Holly Riley tão descontrolada
assim. E eu sei que você está horrorizado com o nome que acabei
de falar, mas depois, em algum outro momento, terei paciência para
explicar essa coisa grotesca. O importante, agora, é o surto de
Sabrina.
— Por que você está assim? — questionei, estalando os dedos
diante do rosto dela. — Por acaso se apaixonou? Mamãe vai infartar
quando souber que você não quer mais se casar com o Pedro.
Aliás, até eu. Vou defendê-lo, Sabrina.
— Para com isso! — Ela revirou os olhos e afastou minhas
mãos. — Não é nada do que você está pensando. Claro que amo
Pedro mais que tudo nessa vida. Está louca? Tenho direito de achar
um homem bonito, ou não tenho? Não estou tirando nenhum
pedaço.
— É que você sempre achou o Pedro o homem mais lindo do
mundo...
— Você não achava o Rafael o mais lindo?
Hum, não. Com certeza não. Rafael tinha o seu charme, claro,
se ele não me atraísse de alguma forma eu não teria me envolvido
com ele. Mas seu ponto forte nunca foi a beleza. O que eu gostava
nele era a sua inteligência e o cabelo escuro que batia nos ombros.
— Eu nunca disse que ele era lindo — respondi, me
defendendo. — Sabemos que ele não era.
— Não era mesmo. Eu sempre me perguntei o que você tinha
visto naquele idiota, mas você sabe que acredito muito no amor
verdadeiro e jurava que o seu, era cego.
— Ele também não era um monstro, Bri — comentei, chutando
de leve a canela dela. — Não podemos esquecer que eu não sou
nenhuma diva, não tenho o seu bronzeado, nem as suas curvas,
muito menos os seus peitos.
Sabrina estreitou os olhos e apertou meu rosto entre as mãos,
quase tocando a ponta do seu nariz no meu.
— Você é uma princesa. Ficou maluca?
— Não. — Ri, encostando minha testa na dela antes de
empurrar minha cadeira para trás e me desvencilhar de sua pegada.
— Sei que sou linda, cheirosa, charmosa, inteligente e blablabla,
mas conheço minhas limitações. Não teria a menor chance com um
cara como o Pedro, por exemplo.
Meu cunhado era aquele tipo de homem forte, que passa muito
tempo malhando os músculos na academia, gosta de praia e
cerveja, sabe que a noiva baba no corpo perfeito dele e, se não
estivesse com Sabrina, provavelmente namoraria alguma outra
musa carioca. Os caras que eu atraía faziam mais o estilo do
Rafael, nerd, que fazia o tipo largado, não se importava muito com
moda e aparência e nunca tinha pisado dentro de uma academia.
De qualquer forma, eu estava muito bem assim e quando me
dei conta de que tínhamos saído muito do foco da conversa, estalei
meus dedos diante do rosto da minha irmã.
— Vamos parar de falar de mim e voltar ao assunto anterior?
Que tal?
— Sim! — Seus olhos se iluminaram e ela apertou o próprio
rosto. — Eros e Odin. Guarde esses nomes, vou apresentá-la a eles
no sábado. Lia, se eu fosse solteira, investiria neles.
— Nos dois? — zombei, sabendo que ela morreria antes de
pensar na hipótese de ficar com dois homens ao mesmo tempo. —
Tipo, como se fosse um combo? Leve dois pelo preço de um?
— Estou aqui falando sério.
— Tem certeza? — Cruzei meus braços. — Por que você meio
que está dizendo que os donos da festa para a qual a empresa do
seu noivo foi contratada, são maravilhosos e eu, que estarei no dia
trabalhando de forma séria para garantir uma ótima primeira
impressão, deveria dar em cima deles. Na festa.
Sabrina desviou o olhar e eu sabia que ela estava digerindo
tudo o que eu disse, mas não daria o braço a torcer sobre estar
descontrolada. Por fim, franziu os lábios e empinou o nariz.
— Não é isso. Só estou dizendo para ficar de olho no sábado.
Quem sabe...
— Ah, sim! — interrompi, batendo palmas. — Quem sabe um
deles acorde decidido a se apaixonar por uma garçonete estranha,
não é?
Ela jogou os braços para o alto e foi saindo do meu quarto,
mas se virou ao chegar na porta e sorriu para mim, enquanto eu
devolvia o mesmo gesto.
— Vai ensaiar antes de sábado ou só no dia? — perguntou
para mim.
— No sábado mesmo, o pessoal está bem treinado.
Ela piscou e foi embora, deixando-me livre para continuar meu
trabalho. Um dos trabalhos, pelo menos aquele que eu me
esforçava para tornar o principal e, um dia, o único.
Nossa mãe nos matriculou na escola de balé clássico quando
eu tinha quatro anos e Sabrina nove. Minha irmã só ficou durante os
dois primeiros anos, ela odiava dançar, e na época mamãe pensou
que eu também desistira pelo simples fato de não ter minha irmã
mais velha por perto. Mas não foi isso que aconteceu. A verdade era
que eu amava dançar e ir para o balé era minha maior diversão na
infância. Se tornou minha paixão na adolescência e por um tempo,
dos meus doze aos quinze anos, até sonhei em um dia ir dançar em
uma companhia do nível de uma Bolshoi da vida. Eu possuía o
biotipo perfeito e uma técnica exemplar, mas me faltava a dedicação
exigida para me tornar uma profissional que pudesse ter alguma
chance para seguir carreira na Europa. Amava dançar, mas não o
bastante para me matar por isso, pois a profissão era muito
desgastante.
Acabei fazendo a faculdade de Design Gráfico e continuei
dançando até meus dezenove anos, dando aula para crianças em
uma companhia perto de casa. Agora eu trabalhava para meu
cunhado, coreografando flash mobs com a equipe de garçons
dançarinos que ele mantinha na empresa. Para a festa de sábado,
tinha sido encomendada uma apresentação com trilha sonora dos
anos setenta, em homenagem ao aniversariante, e eu era a
responsável pela dança.
Eu gostava de pegar esses trabalhos porque ganhava uma
grana a mais e ainda matava a saudade de uma atividade que me
fazia muito bem. Fora que era bem divertido ver a reação das
pessoas, que nunca esperavam que do nada um bando de gente
começaria a dançar. A apresentação de sábado seria incrível com
as músicas e as coreografias que preparei.
Parei de pensar no trampo do final de semana e voltei a
encarar a ilustração que aguardava para ser finalizada. Uma coisa
de cada vez, devagar e sempre.

Terminei de passar o rímel e tinha acabado de encostar a


ponta do delineador na pálpebra quando ouvi Sabrina pigarrear bem
atrás de mim. Ela entrou em meu quarto enquanto eu me maquiava
e se sentou na cama como se quisesse tomar conta de mim. Estava
bem estranha porque geralmente uma não se metia com a outra na
hora de se arrumar.
— Tenta não carregar muito na make — murmurou baixinho,
mas pelo espelho vi que tinha se inclinado na minha direção.
— Por acaso você está controlando minha maquiagem?
— Não, claro que não. Só... — Ela balançou as pernas
enquanto fazia um bico. — Gosto quando você usa cores mais
neutras e delicadas.
Encarei seus olhos verdes pelo espelho e dei três segundos
para que ela se explicasse, como não fez, voltei a me concentrar em
meu reflexo e deslizei a caneta delineadora pelo olho, fazendo o
traço perfeito que eu conseguiria criar até mesmo de cabeça para
baixo. Na hora de escolher o batom, Sabrina quase se pendurou
sobre meus ombros para olhar dentro da gaveta e meteu a mão lá,
puxando um que eu raramente usava, num tom de rosa desbotado.
— Esse vai ficar perfeito!
Arranquei o batom da mão dela e me virei na cadeira,
encarando minha irmã que já estava pronta, dentro de seu uniforme
com o logotipo da Dono do Sabor, seu coque milimetricamente
arrumado e a maquiagem quase imperceptível que destacava a cor
de seus olhos.
— Sério, o que está acontecendo? — perguntei. — Estou
começando a me preocupar com você.
— Nada. Eu juro, está tudo bem. Só estou animada para que
você esteja linda hoje.
— Está com medo que eu use batom preto? — Ri com a
negação dela. — Sabe muito bem que sou profissional, Bri. Não vou
fazer make dark para servir uma festa.
Ela se levantou e se curvou, abraçando meu corpo e beijando
meu rosto. Alisei suas costas e quando se afastou, sorriu, tocando
meu cabelo com aquele olhar de irmã mais velha e zelosa.
— Só quero que você seja vista em toda a sua beleza.
— Está dizendo que não fico bonita com as coisas que gosto
de usar? — provoquei. — Porque sei que sou gata de qualquer
forma.
— É lógico que é, Lia! Você é a mais linda de nós duas.
Revirei os olhos quando ela apertou meus dedos e piscou,
saindo do quarto ao avisar que eles iam esperar por mim. Aquele
era o jeitinho dela de me pedir para não demorar muito, já que eu
tinha o péssimo hábito de sempre me atrasar.
Por fim, acabei pintando meus lábios com uma cor nude sem
graça e prendi meus cabelos num coque alto e apertado demais,
que em algum momento desabaria porque meus fios eram grossos
e pesados.
Como morávamos no Grajaú, era um bom caminho até a Barra
da Tijuca e eu aproveitei o trajeto longo para responder as
mensagens da minha mãe. Ela morava em Rio das Ostras,
município do Rio de Janeiro, e estava animada ao saber que eu
dançaria algumas de suas músicas favoritas. Vivian nasceu nos
anos setenta e era alucinada pelas trilhas sonoras daquela época.
Ela também adorava filmes antigos e isso, inclusive, influenciou nas
escolhas dos nossos nomes. Para Sabrina ela deu o Holly, da
protagonista de Bonequinha de Luxo, enquanto eu fui batizada em
homenagem à inesquecível Baby de Dirty Dancing. Eu não tinha
nada contra o filme, pelo contrário, era apaixonada pelas
coreografias que Patrick Swayze e Jennifer Grey protagonizaram,
mas confesso que achava um saco ter que explicar quando me
apresentava como Magnólia Baby e a pessoa me encarava como se
eu não fosse desse planeta.
Enviei uma selfie de dentro do carro e digitei o recado que
minha irmã mandou para ela, antes de desligar e prestar atenção
nos arredores. Eu não frequentava muito o bairro de gente rica,
salvo nas vezes em que a Dono do Sabor era contratada para
algum trabalho para esses lados. Portanto, meu conhecimento era
um pouco limitado apenas aos eventos dos quais participava e
nenhum tinha sido num lugar como aquele.
Dava para dizer logo de cara que Pedro ficaria muito rico se o
trabalho da noite fosse elogiado e divulgado, porque aquele não era
um condomínio de gente rica normal. Era um padrão altíssimo e
distante até mesmo dos mais ricos que eu conhecia e me senti
imediatamente nervosa, ansiosa para que tudo desse certo e a
Dono do Sabor agradasse a todos.
Como sempre, chegamos com antecedência para a reunião
com a equipe e conhecimento do local. Minha responsabilidade era
apenas encontrar o espaço perfeito para a marcação do flash mob,
porque quando se tratava de comida, minha função se limitava
apenas a servir bandejas.
— Com esse calor, eu só queria poder me jogar nessa piscina
no fim da festa.
Olhei para trás e sorri para Cauã, um dos dançarinos que
também era garçom ou garçom que sabia dançar. Tanto faz. Nós
nos conhecemos quando fizemos um teste para tentar entrar na Cia
de Dança Deborah Colker e nos tornamos bons amigos. Ele tinha
vinte e quatro anos e atualmente dava aula de jazz infantil durante a
semana, além de pegar trabalhos eventuais com a Dono do Sabor.
— Você pode esticar um pouco e dar um mergulho no mar, já
que estamos tão perto da praia — respondi, zombando. — Acho que
esta piscina está fora de cogitação.
— Lamentável, mas é isso que eu ganho por não ter nascido
inteligente o suficiente para estudar Medicina.
Eu me virei para olhar na direção da piscina e ficar de frente
para Cauã, observando sua expressão para tentar compreender se
havia ou não um tom de ironia em suas palavras. No entanto, ele
falou bem sério e deu um sorriso desanimado, apertando minha
bochecha.
— Eu não diria isso — respondi, puxando na memória o pouco
que Sabrina tinha me contado sobre os donos da festa. — Eu, pelo
menos, sou inteligente o bastante para ter estudado o mesmo que
eles. A diferença entre nós é apenas a posição de herdeiro, afinal,
quando uma pessoa como eu teria dinheiro para se formar e abrir
uma clínica de cirurgia plástica, assim, do zero? — Cauã me
segurou pelos ombros e balançou a cabeça como se estivesse em
negação. — Parece que os filhos seguiram os passos do pai, então
já tinham o caminho todo feito, né?
— Lia... — Ele apertou meu queixo e me fez virar a cabeça
para o lado.
É lógico que esse pequeno movimento me possibilitou
vislumbrar uma sombra pairando bem atrás de mim e eu me virei,
para dar de cara com um homem loiro, alto e lindo,
inacreditavelmente lindo. Tão perfumado que me deixou inebriada e
com olhos de um azul tão penetrante que fiquei sem conseguir
esboçar reação.
— É um prazer — disse ele, sorrindo sem vontade e esticando
a mão. — Sou um dos filhos que seguiu os passos do pai. Odin
Montenegro.
Assenti, esfregando minha garganta que tinha secado e sendo
salva por Cauã, que fez o favor de apertar a mão do homem.
— O prazer é nosso, senhor. Esperamos que aproveite a
comemoração.
Odin cumprimentou o dançarino e me dirigiu mais um olhar
antes de se afastar e ir desfilar pela sua propriedade com a postura
de alguém que deixava claro que mandava em tudo ali. Eu me senti
murchar e estremeci ao perceber como devo ter soado rude com
minhas palavras.
— Meu Deus, acabei com a reputação da Dono do Sabor —
murmurei, sentindo a pressão baixar. — Se ele fizer alguma
reclamação diretamente com a Zélia, eu...
— Relaxa, Lia. — Cauã apertou meus ombros e sorriu. — O
cara não parece o tipo vingativo.
Eu não estava tão convencida disso, então, quando meu
amigo foi chamado por Sabrina, decidi ir atrás do deus grego que
caminhava por entre as mesas redondas dispostas no jardim. Ele
era tão bonito que sentia meu coração disparado de um jeito
diferente. Eu não estava acostumada com homens tão... másculos e
perfeitos. Parecia até de uma espécie diferente e logo imaginei Odin
nadando em braçadas naquela piscina, com água escorrendo por
todo o seu corpo.
Ah, Magnólia, não vá por esse caminho destrutivo. Era um
ótimo conselho, pena que eu não o absorvi.
— Com licença — pedi ao me aproximar das costas dele. —
Senhor Montenegro?
O loiro virou o rosto e ajeitou a camisa social, lançando para
mim um olhar de desagrado.
— Sim?
— Peço desculpas pelo que falei minutos antes, não foi por
mal, eu apenas...
— Tudo bem — disse ele, sem me deixar terminar. — Não tem
problema algum, isso acontece muito. Você não precisa gostar de
mim, basta fazer seu trabalho e todos sairemos satisfeitos.
Uau. Doeu lá no fundo da alma. A resposta dele me fez abrir e
fechar a boca, pensar bastante e guardar minhas palavras para não
piorar ainda mais a situação. Apenas balancei a cabeça num gesto
rápido de concordância e saí de perto o mais rápido possível. Eu me
sentia péssima porque não era só pelo medo que ele fizesse alguma
reclamação formal com a Zélia Machado, mas também por
compreender que aquela perfeição de homem me odiava. Ou talvez
eu sequer tivesse relevância a ponto de ser foco do sentimento dele.
— Aí está você! — Levei um susto quando minha irmã me
abraçou por trás e apoiou o queixo no meu ombro. — Vi que
conheceu um dos Montenegros! Não é o mais bonito, mas nossa
senhora... Eu estava certa, não estava? E o que vocês
conversaram? Tenho certeza que ele achou você linda, óbvio, mas
foi até mais rápido do que eu esperava. Ok, preciso parar de falar,
estou animada demais.
— Hum, não foi exatamente isso que aconteceu — respondi,
dando um tapinha nas mãos que estavam cruzadas sobre minha
barriga. — Acho que devemos focar no nosso trabalho, irmã. Isso é
o mais importante, não acha?
— Claro que sim — pigarreou e me soltou. — E eu estou
totalmente focada, sabe muito bem que o sucesso do buffet afeta
diretamente as nossas vidas.
Caminhei ao lado dela na direção da cozinha da mansão, onde
tínhamos montado nosso acampamento. Sabia que Sabrina não
tinha falado por mal, mas eu detestava quando frases como essa
me faziam sentir em dívida eterna com eles. Minha irmã se casaria
com Pedro e a Dono do Sabor seria tão dele quanto dela, mas eu
não tinha nada a ver com isso. No entanto, minha inaptidão para me
bancar financeiramente acabava me prendendo a eles. O que eu
ganhava com meus trabalhos não dava para pagar um aluguel e
arcar com despesas para ir morar sozinha. Até a porcaria do celular
que estava usando agora tinha sido comprado no cartão do meu
cunhado e eu precisaria pagar com muito trabalho.
Cauã achava que eu estava desperdiçando meu talento e
poderia descolar uma grana legal voltando a dar aulas, mas não era
o que eu mais gostava de fazer. Nunca tive muita paciência para
ensinar.
Deixei meu desânimo de lado e coloquei um sorriso no rosto
quando Zélia Machado veio pessoalmente conferir como estava a
organização do buffet. Pela expressão tranquila, percebi que o
cirurgião gato não tinha dito nada para ela e pelo menos isso era
uma ótima notícia.
O som da batida perfeita podia ser ouvido e sentido por toda a
casa, dando início à festa em comemoração aos sessenta e dois
anos do meu coroa. Todas as equipes responsáveis por manter a
organização já tinham começado os trabalhos e pela janela do meu
quarto, que estava com a cortina suspensa, alguns feixes de luzes
neon iluminavam as paredes conforme se moviam nos aparelhos
espalhados pelo jardim.
Estava terminando de passar perfume quando Eva entrou
correndo no quarto com seu vestido Gucci de saia de tule que a
deixava igual uma princesa. Odin tinha trançado o cabelo dela e
colocado uma tiara de brilhantes no topo — a pequena estava
viciada no acessório há umas duas semanas. Ela se jogou na minha
cama e balançou os pés minúsculos dentro de sapatilhas pretas
com solas vermelhas, imitando os famosos Louboutins. Meu irmão
era um fresco e só piorava quando se tratava da filha.
— Mas que gatinha é essa que acabou de chegar? —
perguntei ao me virar e andar até ela, até segurar seus pés e fazer
cócegas atrás de seus joelhos. — Assim todas as mulheres da festa
vão ficar enciumadas!
— Papai falô que sô a mais bunita!
— Claro que é! — Toquei meu coração e me joguei na cama
ao lado dela. — Eu mesmo só tenho olhos para a princesa Eva!
Ela riu do jeitinho que lhe era peculiar, fechando os olhos. Eu
era o homem mais idiota de todos quando se tratava da minha
sobrinha. Por mais que não pensasse em sossegar e me casar tão
cedo, Eva me fazia ter vontade de ter uma filha como ela. Mesmo
tendo liberdade suficiente para agir quase como um segundo pai
para ela, nunca seria a mesma coisa. Odin era um filho da mãe
sortudo demais.
— Quem é o seu melhor amigo, Eva? — perguntei, virando-me
de lado e beijando a testa suada.
— Tio Eros!
Pisquei para ela e me levantei, pegando-a no colo e ouvindo
sua risada. Saímos do quarto e comecei a descer as escadas
quando tocava “Cheap Thrills” da Sia e aproveitei para dançar com
Eva. Ela agarrou meus cabelos enquanto eu rebolava e rodopiava
com ela, mas logo a coloquei no chão porque sabia que a pequena
amava dançar. Minha sobrinha imitou meu rebolado e fez a festa
parar ao ser notada.
Odin e meu pai, que estavam próximos das portas principais,
observaram a cena com aquelas caras de apaixonados que todo
mundo destinava à mulher da nossa vida. Segurei a pequena mão
de Eva e a girei para frente e para trás, sorrindo com o jeito fofo que
ela mexia o corpo. A criança era encantadora e muito charmosa, eu
já previa o trabalho que nos daria quando crescesse e tivesse um
bando de macho correndo atrás dela. Meus dias na academia
serviam para me preparar e matar um por um no futuro.
Quando a música acabou, peguei-a no colo de novo e demos
um selinho, caminhando até nossa família. Eva logo esticou os
braços para meu pai, que a segurou e se tornou o alvo dela pelos
próximos minutos.
— Você adora usar minha filha para atrair as mulheres, não é?
— Odin riu, me dando um tapa nas costas. — Neste exato
momento, espalhadas pela residência, tem umas cinquenta moças
sonhando em engravidar de Eros Montenegro.
— Não é bem esse tipo de coisa que quero ver entre as pernas
delas, irmão — respondi com o mesmo sorriso que ele me
direcionava.
Nosso pai colocou Eva no chão e balançou a cabeça para nós
dois. Como se pudesse falar alguma coisa sobre mim, quando
pegava tantas mulheres quanto eu. Talvez o velho não me
ultrapassasse porque vinha tentando diminuir o ritmo nos últimos
anos e, convenhamos, o coroa quase não tinha tempo disponível na
agenda para se ocupar com caprichos femininos.
Ele tocou minha nuca e a de Odin, nos aproximando e
beijando nossos rostos. Abracei-o pela cintura e o puxei, passando
meus braços pelos seus ombros para apertá-lo melhor.
— Parabéns, pai. Que venham os próximos quarenta anos!
— Ah, sim, você adoraria me ver acabado aos cento e dois. —
Ele apertou meu ombro e sorriu. — Não vai acontecer.
Gargalhei e o soltei, aproveitando para pegar a cerveja que
passava na nossa frente bem naquele momento. Afastei-me deles
para circular pela festa e cumprimentar meus amigos. Nós éramos
aquele tipo de família que dava muitas festas, tinha sempre a casa
aberta para a galera do nosso convívio social e conhecia muita
gente.
Beijei a bochecha de Manoela quando me aproximei dela e de
Pedro Henrique, os noivos do pedaço, que riam de alguma merda
que Guilherme estava contando. Junto deles, estava Eduardo, Ana
Clara e César, os seis que comigo, formavam uma turma que
cresceu lado a lado na Barra da Tijuca. Fazíamos tudo juntos desde
o Ensino Fundamental, quando ainda éramos todos um bando de
virgens desocupados. Mesmo depois de nos formarmos e
seguirmos cada um sua profissão, o contato continuava igual, pois
morávamos todos no mesmo bairro.
— Apolo está gatíssimo com o novo corte de cabelo — disse
Ana Clara, fazendo biquinho ao encarar meu pai de longe.
— Quer mudar de Montenegro? — perguntou Pedro Henrique,
ou PH para a gente. — Eros não tem dado assistência, né?
Eu sorri, bebendo um gole da cerveja e usando um dedo para
apontar na direção do aniversariante. Não era segredo para
ninguém do nosso grupo, que Ana Clara e eu dormíamos juntos de
vez em quando, mas todos sabiam que era só isso, nada mais sério.
Sequer ficávamos de casalzinho quando estávamos na companhia
dos nossos amigos, o máximo que acontecia era, na hora de irmos
embora, sairmos juntos para a cama um do outro.
— Aproveita que ele ainda não escolheu a vítima da noite —
avisei, piscando para ela. — É bom variar de vez em quando.
Estava brincando, claro. Meu pai tinha uma vida amorosa
bastante agitada, mas não chegava a tal ponto de flertar com
nenhuma amiga minha. Nunca aconteceu e eu sabia que ele sequer
se interessava por mulheres tão mais novas. Porém, o coroa era
boa pinta demais, se preocupava bastante com a saúde e a
aparência, chamava muita atenção e tinha sempre um bando de
mulher no pé.
Éramos uma família que dava o que falar e por sermos os três
homens cirurgiões plásticos, nossos nomes estavam sempre na
mídia. Seja por causa das conquistas profissionais, seja pela nossa
vida amorosa. Mesmo Odin, que não gostava de mulher e ainda
estava tentando descobrir a melhor forma de divulgar isso
oficialmente, não ficava livre das investidas constantes.
Olhei na direção dele, que estava justamente conversando
com a filha de um amigo médico e, mesmo de longe, eu conseguia
identificar toda sua postura corporal, que indicava estar doido para
que ela o deixasse em paz.
Um braço enganchou em meu pescoço e PH me beijou no
rosto, puxando-me para longe do nosso grupo.
— Começou a ver o lance da dança? — perguntou ele.
Como padrinho de seu casamento, assim como Guilherme,
Eduardo e César, eu tinha ficado responsável em procurar um
professor de dança, pois meu amigo queria fazer uma surpresa para
Manoela. Dançaríamos uma coreografia na recepção do casamento
e aquilo era um segredo absoluto entre nós.
— Ainda não, vou resolver isso nos próximos dias, prometo —
respondi, esfregando minha mão no cabelo dele e me soltando. —
Sei que está ansioso para aprender as coreografias da Anitta, mas
se acalme.
— Vai se foder!
— É o que eu costumo fazer quase todos os dias — devolvi,
sorrindo enquanto corria os olhos pela festa para procurar por carne
nova e interessante. — Mas quem fode sou eu, você sabe disso.
Nunca fui passivo.
Enquanto ríamos, esbarrei sem querer em uma garçonete ao
dar um passo para trás. Ela quase deixou cair a bandeja com
algumas taças de champagne, mas conseguiu equilibrá-la antes que
eu pudesse ajudar.
— Desculpe — pedi, virando-me novamente para PH e o
puxando de volta até nossos amigos. — Quase me causou uma
cena agora, seu idiota.
Ficamos bebendo e conversando por um tempo, coisa que
fazíamos de melhor quando nos encontrávamos. Nas últimas
semanas estava bem difícil reunir todo mundo porque PH e Manoela
vinham numa rotina acelerada com os preparativos do casamento,
então precisávamos aproveitar aquele momento.
Não vi as horas passarem, só me dei conta de que era quase
meia-noite quando a apresentação começou. Tinha sido ideia de
Odin, encomendar um flash mob ultrapassado para acontecer
momentos antes do parabéns. Meu pai provavelmente odiaria,
principalmente porque eles estavam dançando músicas dos anos
setenta e oitenta, enquanto o coroa se esforçava em parecer o mais
jovem possível.
Eu nem cheguei a me informar como aconteceria aquilo, então
fui surpreendido quando vários garçons e garçonetes pararam de
servir e se espalharam pelo jardim, ao redor da piscina, dançando
como se estivessem no meio de um musical. Procurei Apolo
Montenegro entre os convidados e gargalhei da expressão dele,
como se quisesse matar o responsável pelo... evento.
— Aquele cara é um gostoso! — Ana Clara parecia bastante
entusiasmada e eu olhei na direção que ela encarava, observando
um garçom loiro dançando próximo de uma garota magrinha.
César gargalhou e agarrou minha nuca enquanto ria da cara
de Ana.
— Aquele lá parece uma bichona! — zombou e olhei para ele.
— Cara, não fale assim — pedi. — Que ridículo.
— O quê? Falei algo errado? O maluco dança igual a uma
moça...
— Deixa de ser idiota, Cesoti! — Empurrei o peito dele e PH
me puxou pelo braço, pois era o único de nossos amigos que sabia
sobre Odin. — Ele só dança bem e daí? Sendo gay ou não, qual o
seu problema com isso?
Pedro Henrique me obrigou a andar um pouco e nos
afastamos do grupo, mas eu sentia meu sangue ferver porque ainda
conseguia ouvir os murmúrios de César. Confesso que eu era um
hipócrita imenso porque esse tipo de brincadeira ridícula nunca me
incomodou a ponto de me fazer discutir com um amigo, mas desde
que meu irmão tinha se assumido para mim, eu me sentia péssimo
quando testemunhava frases e atitudes carregadas de preconceito.
Principalmente quando partia de dentro do meu círculo de
amizades.
— Você não pode sair arrumando briga no aniversário do seu
pai — disse PH, levando-me para longe da galera e mais perto do
flash mob brega. — Não vai ser desse jeito que mudará a
mentalidade das pessoas.
Respirei fundo e estalei os ossos do pescoço, ciente de que
ele estava com razão. Cesoti era conhecido como o piadista do
grupo, o que sempre gostava de ser o centro das atenções falando
ou fazendo alguma merda. Qualquer coisa que eu falasse para ele,
ainda mais tendo álcool na jogada, só o incentivaria a insistir nas
brincadeiras ridículas.
— Cara, é disso que eu preciso, sabia? — disse PH, com o
olhar perdido na dança.
— De um... — olhei em volta, sem entender — flash mob?
— Da pessoa que organizou tudo isso.
— Ah não, não. — Apertei o ombro dele e pisquei. — Uma
paciente minha sugeriu um dançarino que ela conhece e coreografa
videoclipes de uma galera famosa aí.
Ele gargalhou e me deu um tapa forte nas costas, mas fomos
separados quando os dançarinos precisaram passar por nós, que
não nos demos conta de termos parado no meio do caminho.
— Eros, fala sério. É para dançarmos por cinco minutos no
meu casamento — zombou, rindo. — Não é uma apresentação para
o Grammy.
Ignorei aquilo porque PH me conhecia muito bem para saber
que se eu tinha ficado responsável por aquela parte do casamento,
então faria da forma mais incrível possível. Não contrataria um
maluco qualquer que nem sabe se é garçom ou dançarino, que
monta coreografias com músicas cafonas.
— Sou seu padrinho, posso conseguir coisa melhor — falei
para ele, mas percebi que fiquei no vácuo porque Pedro Henrique já
não estava mais do meu lado.
Balancei a cabeça e me aproximei de onde meu pai e Odin
estavam, enquanto observavam a dança. O coroa tinha um sorriso
congelado no rosto e bati meu ombro no dele, prendendo a risada.
— Isso é tão a sua cara! — provoquei, mexendo meu corpo no
ritmo da música de décadas atrás.
— Pois é! — Apolo Montenegro arregalou os olhos e deu um
gole em seu champagne. — Vocês dois sabem mesmo como me
surpreender.
— Ah, não, infelizmente não posso aceitar todos os créditos. A
ideia da dança foi toda do seu filho mais velho. — Sorri,
aproximando-me do ouvido dele para provocar mais. — Agora já
sabe quem deve tirar do seu testamento.
— Eu não sei por que vocês reclamam tanto — disse Odin,
encolhendo os ombros. — É divertido, porra!
Neguei a afirmação dele e peguei mais uma cerveja que
passou perto de nós, prestando atenção na coreografia que parecia
chegar ao final. E então, a música antiga acabou e logo emendou
em Rain On Me, da Lady Gaga com aquela outra gostosinha
morena. Os dançarinos continuaram dançando, mas agora parecia
que tinham se separado e cada um investia nos próprios passos.
Isso me chamou a atenção para uma das dançarinas, ou
garçonetes... Eu não sabia qual das profissões prevalecia. Não era
muito bonita, mas tinha uma ótima coordenação motora e dançava
extremamente bem aquele tipo de música.
— Como você fez para contratar essa dança? — perguntei
para Odin.
— Chama-se “flash mob”.
— Podia se chamar “vai à merda”, não me importo. — Dei de
ombros e sorri quando ele estreitou os olhos. — Só quero saber
quem procurar, irmão.
— Resolveu fazer aula de dança agora? — papai perguntou
com a melhor das expressões: uma que indicava desgosto profundo
ao imaginar o filho rebolando.
— É para o casamento do PH, ele quer fazer uma surpresa pra
Manu — expliquei, mas não pude deixar de segurar os ombros do
velho e olhar em seus olhos, bem sério. — Eu já sei rebolar, pai.
Faço isso muito bem, inclusive.
Voltei a prestar atenção na garota, que parecia olhar
frequentemente na nossa direção. Ou, mais precisamente, na
direção de Odin. Sorri ao pensar em como o desgraçado
desperdiçava tanta mulher que podia muito bem passar pela cama
dele.
— Eu contratei a Zélia e ela fez todas as designações, Eros —
respondeu ele, alheio a atenção que recebia da dançarina magrela e
branca demais. — Fale com ela.
Deixei os dois para trás e fui procurar pela cerimonialista
famosa, responsável por toda a organização da festa. Podia ser até
que eu tivesse me equivocado e o coreógrafo daquele flash mob
patético fosse uma pessoa premiada e famosa, considerando que a
Zélia Machado não trabalhava com qualquer um. Podia realmente
dar certo, principalmente porque seríamos nós a escolhermos as
músicas, não o cara que podia não ter um gosto musical tão
apurado.
Já tinha me arrependido da ideia porque Zélia me mandou
falar diretamente com o dono da empresa responsável pelo buffet
da festa, um homem que também se chamava Pedro. Simpático,
educado, um pouco bajulador, mas tudo bem, fui com a cara dele. O
problema começou quando contei do que se tratava e ele explicou
que sua cunhada era a coreógrafa daquela dança. Antes mesmo
que ele terminasse de falar eu já estava com todos os meus alertas
acionados porque sabia que nunca daria certo contratar uma
mulher. Queria uma coisa profissional, que focasse no que
precisávamos, e ter uma gostosa rebolando na nossa cara
certamente faria com que todos nós dispersássemos.
O tal do Pedro avisou que a cunhada se chamava Magnólia e
a encheu de mil e um elogios, obviamente. Ela não estava por perto,
bem que ele tentou fazer com que eu esperasse seu retorno, mas
aproveitei a oportunidade e fugi antes que me visse numa saia justa
sendo obrigado a contratar a mulher.
Uma mensagem de texto enviada por Odin me deu o pretexto
perfeito para que eu corresse para dentro de casa ao encontro dele.
Meu irmão parecia ansioso, andando de um lado para o outro do
corredor que ficava no caminho para o banheiro. Quando me
encarou, estava com os olhos marejados e o celular tremia junto
com a mão que o segurava.
— O que houve? — perguntei, apertando o ombro dele. —
Odin, o que foi?
— Aconteceu uma merda... — Ele empurrou o telefone contra
meu peito. — Minha vida acabou, Eros.
— Que merda você tá falando?
Antes que ele respondesse, eu peguei o celular de sua mão e
encarei a tela, sendo surpreendido por um vídeo pornô muito mal
feito, com aparência daquelas coisas caseiras, mas fechei os olhos
com pressa quando compreendi que o homem sendo enrabado no
vídeo... era o meu irmão. Ah, caralho. Seria difícil desvincular essa
imagem do meu córtex cerebral.
— Mano... — chamei por ele, que tinha virado de costas e
encostado o rosto na parede.
— Não sabia que estávamos sendo filmados.
Eu sabia como aquilo faria mal a ele. Odin já vinha sofrendo
com essa situação toda de não saber como se posicionar diante de
suas novas decisões e se a merda daquele vídeo caísse em mãos
erradas, ele seria jogado no olho do furacão. O herdeiro de Apolo
Montenegro, seu braço direito, o filho pródigo honrado. O pai da
pequena Eva, que precisava de Odin com a cabeça no lugar.
Com um pouco mais de sangue frio, eu me obriguei a assistir
novamente o vídeo de quinze segundos que tinha sido enviado para
ele. Eu sabia que era meu irmão porque simplesmente eu o
reconheceria de qualquer forma, mas seu rosto não estava em
evidência. Ninguém poderia apenas apontar o dedo e dizer que era
ele ali.
— Vou confessar que gosto de dar o rabo — murmurei,
engolindo em seco — caso alguém perceba que é um Montenegro
em cena.
— Eros...
— Não, não tente me persuadir, irmão.
— Ficou louco? — Ele tentou pegar o celular de minha mão,
mas não deixei. — O que está fazendo?
— Preciso encaminhar para meu aparelho, óbvio, caso seja
necessário abrir um processo. Prometo que não vai mais acontecer.
A próxima vez que eu quiser me enrolar nos lençóis com uma... rola
gostosa como essa eu... Ah, enfim, terei mais cuidado ao viver
minha vida dupla de gay que finge ser hétero e...
Parei de falar ao perceber que a música que tocava bem alto
pelas caixas de som tinha parado igual como acontece em filme. Por
sorte, não estávamos tão próximos da cozinha a ponto de me
escutarem, mas prendi a respiração quando a porta do banheiro
atrás de Odin foi aberta e uma garota saiu lá de dentro. Reconheci
imediatamente a dançarina branquela que passou por nós com os
olhos grudados no chão e quis eu mesmo puxar minhas próprias
bolas para deixar de ser linguarudo.
— Isso foi um espetáculo e tanto — disse Odin, sorrindo e
segurando meu rosto entre as mãos. — Amo você, cara, não quero
que faça isso por mim. É a minha batalha.
Deixei que ele recuperasse o celular e observei enquanto se
afastava e dava a volta pela sala para subir as escadas que
levavam ao segundo andar da casa. Estava cogitando voltar para
meus amigos quando uma figura magrela e pálida se esgueirou
pelos cantos e seguiu o mesmo caminho que meu irmão, correndo
pelos degraus como se não quisesse ser flagrada por ninguém.
Decidi ir atrás da maluca antes que ela agarrasse o pobre Odin
e causasse uma tremenda confusão. Será que tinha ouvido toda a
nossa conversa e pretendia chantagear meu irmão ou simplesmente
queria tentar fazê-lo gostar de bocetas?
— Nem uma coisa nem outra, docinho — sussurrei para mim,
adentrando um dos corredores e vendo a criatura espreitando na
porta do quarto de Odin.
Ela estava vestida com o uniforme horroroso do buffet, um
conjunto de calça e camisa preta sem caimento algum, que a fazia
parecer muito mais magra de perto. De costas, eu só tinha visão do
coque de vovó que ela usava e de como parecia uma pervertida
naquela posição, com o corpo inclinado para a frente, olhando para
dentro do quarto.
Quando parei bem atrás dela, prendi o riso. Odin tinha tirado a
roupa e estava só de cueca, prestes a ficar completamente nu. Inflei
meu peito e preparei a voz.
— Está perdida? — perguntei bem alto, fazendo-a gritar e se
virar.
A louca me estapeou e me empurrou contra a parede, com os
olhos arregalados e tendo a coragem de usar as mãos com cheiro
de camarão para tapar minha boca.
— Fica quieto! — pediu, parecendo um ratinho acuado.
Revirei meus olhos e usei o mínimo de força para afastar seus
dedos finos do meu rosto, quando Odin apareceu bem atrás dela,
ainda com a cueca no lugar.
— Está acontecendo alguma coisa aqui? — perguntou e a
maluca arregalou os olhos, ainda me encarando.
E então, ah, que merda. Ela fez o impensável e grudou a boca
na minha.
— Ok, seu papo sobre se assumir gay durou a eternidade de
cinco segundos — disse meu irmão, voltando para o quarto. —
Parabéns, garotão, estou orgulhoso!
Quando a porta do quarto bateu, eu e aquela garça nos
encaramos com os lábios ainda colados. Se tinha uma coisa que eu
detestava era beijo com gosto de camarão e a criatura estava
impregnada da cabeça aos pés com o gosto e o cheiro. Quis matá-
la, mas antes que eu tomasse uma atitude, ela recuou, ajeitou o
uniforme e esticou a mão.
— Prazer... — pigarreou com uma cara de pau extraordinária.
— Magnólia.
A coreógrafa? Ah, mas que merda.
Quanto tempo antes do nosso aniversário a gente costuma
entrar no período de inferno astral? Gostaria de descobrir porque eu
tinha certeza absoluta de que já estava passando por essa fase há
alguns meses, porém, tudo piorou de forma bem drástica durante a
festa. Devia ser apenas mais um trabalho como qualquer outro,
coisa que eu fazia muito bem. Sempre fui uma funcionária exemplar
para meu cunhado.
Mas não hoje. Nem me surpreenderia se Zélia Machado
riscasse o nome da Dono do Sabor do mapa depois que chegasse
ao conhecimento dela as maluquices que cometi no decorrer da
noite. Primeiro foi o que aconteceu com Odin e a minha língua que
não ficou quieta dentro da boca no pior momento de todos. Passei a
festa inteira me culpando por nossa breve apresentação ter
começado com o pé esquerdo, justo um homem tão incrivelmente
lindo — tive que concordar com minha irmã sonhadora. E depois,
para fechar com chave de ouro, o ataque ao outro Montenegro, algo
bem pior do que tinha acontecido com Odin.
Juro que não sou esse tipo de pessoa, que sai agarrando e
beijando bocas de forma desgovernada, não estava absolutamente
em meus planos nada disso. Eu só queria falar com o Odin e pedir
desculpas a ele, implorar para que não me odiasse. A culpada de
toda a saia justa era minha irmã, certamente, pois ela ficou
enchendo a minha cabeça com um monte de baboseiras sobre os
irmãos e eu devo ter me deixado contaminar.
Tudo bem, confesso que precisava concordar com Sabrina. Os
dois eram muito bonitos e Odin tinha olhos incrivelmente azuis,
muito hipnotizantes. Inicialmente, eu até cheguei a pensar que o
irmão mais novo parecia só mais um moleque rico da Barra da
Tijuca, com aquela aura de playboy cafajeste e sorriso de quem já
devia ter comido todas as mulheres da festa. O típico boy tóxico de
quem eu sempre gostava de manter distância porque não agregaria
em nada na minha vida. Mas o Odin... Logo vi que ele era elegante,
sério e se parecia muito com alguns protagonistas de romance,
alguém que colocaria a lua aos nossos pés.
Passei a festa inteira tentando me aproximar o suficiente para
conseguir falar de novo com ele. A porra da festa toda mesmo, mas
minhas tentativas foram um fracasso. Até que num determinado
momento eu pensei que o destino ia me dar uma ajudinha. Tinha
entrado para usar o banheiro social, visto que o de visitas que ficava
no jardim estava ocupado e eu, muito apertada. No caminho até lá,
notei que Odin estava andando em círculos pela sala de estar e
decidi que assim que terminasse de fazer meu xixi, tentaria falar
com ele.
Fiz tudo em tempo recorde, mas passei alguns segundos me
encarando pelo espelho depois de ter lavado as mãos, e tentei
imaginar se ele tinha reparado nos meus piercings, pois não parecia
alguém que julgaria pela aparência.
— Não importa — repeti para meu reflexo e ajeitei alguns fios
que teimavam em escapar do coque.
Estava com a mão na maçaneta quando a música que tocava
na casa inteira parou de repente e abri a porta para flagrar o final de
uma frase dita por Eros Montenegro:
— ... A próxima vez que eu quiser me enrolar nos lençóis com
uma... rola gostosa como essa eu... Ah, enfim, terei mais cuidado ao
viver minha vida dupla de gay que finge ser hétero e...
Ele congelou com a boca aberta quando minha presença foi
notada, mas eu grudei o olhar no chão em que pisava e passei
pelos dois irmãos, quase sem respirar, chocada com o que tinha
acabado de ouvir e ciente de que não conseguiria abordar Odin
depois daquela conversa.
Pois é, a noite só piorava. Agora eu levaria a fama de
fofoqueira que tomava conta da vida dos ricos e se minha imagem
com o filho mais velho já estava suja, tinha se tornado
completamente encardida. Pior ainda, eu percebi que tinha me
transformado no tipo de pessoa que faz julgamentos antecipados.
Julguei errado o Odin e repeti o erro quando pensei que Eros fosse
um hétero do tipo cafajeste, enquanto o rapaz devia estar passando
por uma situação difícil com essa pressão de ter que fingir uma
coisa que não era.
— Então ele é mesmo gay — murmurei, caminhando pelo
jardim, relembrando do momento anterior em que esbarrou em mim
enquanto discursava sobre ser ou não ser passivo. Na hora eu achei
que se tratasse de brincadeira entre amigos, mas pelo visto, não
era.
Quer saber? Eu não tinha nada a ver com a história. Se ele era
gay ou não, se era assumido ou não, eu fui pega de surpresa e
estava apenas fazendo xixi. Não podia deixar que isso piorasse a
péssima primeira impressão que Odin teve de mim, portanto, fiz o
caminho de volta e entrei correndo na casa. Tinha visto ele subir
para o segundo andar e me esgueirei pela escada de mármore até o
corredor que se abria para dois lados, bem coisa de mansão que eu
nunca teria.
Escolhi o lado onde havia uma porta aberta com luz acesa e
tentei ser o mais discreta possível, mas logo me dei conta de que
mais uma vez estava tudo dando errado. Como ia pedir desculpas
ao cara se parecia que estava perseguindo ele? Pensei que eu
mesma odiaria se algum homem com quem eu não tinha intimidade
invadisse meu quarto e decidi que aquele era o momento ideal de
retornar para a festa e fingir que nada aconteceu... Ah, meu Deus,
deus loiro estava de cueca.
Fechei a boca com força para evitar babar naquele corpo todo
sarado e arregalei os olhos quando percebi que ele estava prestes a
ficar pelado. Eu podia ser presa só por estar ali.
— Está perdida? — gritaram no meu ouvido e me virei com o
coração saindo pela boca.
Antes de compreender de quem se tratava, estapeei o rosto da
pessoa e a empurrei contra a parede. Pressionei minha mão contra
a boca maldita e só então pisquei, enxergando ninguém menos que
Eros Montenegro me encarando com ódio. Então, era certo: eu seria
mesmo presa.
— Fica quieto! — implorei, não querendo ser flagrada pelo
irmão dele. Preferia ser presa.
— Está acontecendo alguma coisa aqui?
Ouvi a voz melodiosa de Odin atrás de mim, meu coração
disparou alucinado por ter sido descoberta e só vi uma opção mais
ou menos coerente para explicar minha presença ali em cima: beijei
a boca de Eros.
— Seu papo sobre se assumir gay durou a eternidade de cinco
segundos — disse o homem a quem eu perseguia segundos antes.
— Parabéns, garotão, estou orgulhoso!
Quando a porta do quarto bateu, senti o olhar assassino
queimar sobre mim. Tudo bem que não tinha sido um beijo de
verdade, eu só encostei nossos lábios — com força —, mas pela
forma como Eros me olhava parecia que eu tinha cometido um
genocídio.
Tratei de me afastar dele, tentando me recompor, limpei a
garganta e estiquei minha mão.
— Prazer, Magnólia.
Pensei se deveria colocar um sorriso no rosto, mas acho que
só faria parecer que eu tinha achado tudo muito divertido, o que era
mentira. Então me mantive séria e de ombros eretos à espera da
resposta dele.
— Ah! Porra! — Eros fez uma careta e puxou a gola da camisa
para cima, limpando a boca com muito afinco como se eu tivesse
alguma doença contagiosa. — Que nojo! Por que você está fedendo
a camarão?
Funguei e cheirei minha camisa bem discretamente, sentindo-
me um pouco culpada por ter roubado vários camarões do buffet,
escondido tudo na blusa e levado para o banheiro.
— É impressão sua — respondi e dei o primeiro sorriso. —
Olha, desculpe-me por isso. Pelo beijo, não pelo camarão. Foi mal
mesmo.
Virei-me para o outro lado do corredor e pensei se deveria
correr ou andar tranquilamente para não aparentar mais culpa do
que já carregava.
— Onde pensa que vai? — O milionário segurou meu braço e
me fez virar para ele. — O que queria vindo atrás de Odin?
— Só queria pedir desculpas a ele. Pela segunda vez. — O
loirinho estreitou os olhos como se não estivesse convencido. —
Falei umas coisas injustas sobre seu irmão.
— E pretendia se desculpar com ele nu?
Pronto, agora eu seria presa e taxada como pervertida. Não
tinha histórico melhor do que aquele, não é? De quase bailarina
clássica a professora de dança de salão para detentas. O orgulho
da família.
— Eu não sabia que ele estava tirando a roupa — apressei-me
em preparar minha defesa. — Achei que seria mais inteligente
esperar que se vestisse de novo do que invadir o quarto dele
enquanto estava só de cueca.
Ou bastava eu simplesmente bater na porta e não ficar
espiando pela fresta. Sim, era isso que eu devia ter feito, mas a
curiosidade tinha sido maior, afinal, eu nunca nem vi um homem
daquele nível totalmente pelado. O máximo que conseguiria era vê-
los de sunga na praia... se eu frequentasse praias.
— Ok, chega. — Eros agitou as mãos e segurou meus ombros,
virando-me de frente para a escada, parecia que me empurraria dali
de cima. — Você é bem estranha. Dá o fora.
Joguei a cabeça por cima do ombro para poder encarar o
homem simpático.
— Não vai contar nada para a Zélia Machado, né?
— Roubou alguma coisa? — perguntou enquanto me fitava
como se eu não tivesse salvação.
— Salgadinhos de camarão.
Ele arqueou as sobrancelhas e riu, enfiando as mãos nos
bolsos da calça enquanto balançava a cabeça.
— Por isso o fedor.
— Fedor? Não estou fedendo. — Achei bem ofensivo da parte
dele, tanto que recuei e cruzei meus braços, tomando o cuidado de
não pisar em falso e sair rolando pela escada. — Eu entendo que
não faço seu tipo, mas não precisa me ofender.
— Não faz mesmo — disse o idiota, me olhando dos pés à
cabeça. — Só que isso não tem nada a ver com seu hálito de
camarão.
— Certo, que seja. Não vou me desculpar por ter beijado você.
— Sorri. — Enfim, foi um prazer, até nunca mais e... espero que
resolva seus problemas e consiga se assumir um dia. Tenho amigos
gays que vivem muito mais felizes depois que saíram
completamente do armário. Ninguém tem nada com a vida de
vocês, sabe?
Quando ele arregalou os olhos de uma forma que parecia
prestes a sofrer uma convulsão, eu percebi que não devia ter tocado
no assunto. Afinal, escutei a conversa sem querer, não tinha o
direito de falar com ele sobre algo tão sensível. Decidi que aquele
momento era o ideal para dar o fora dali o quanto antes, o cara já
me detestava mesmo, eu não precisava ser expulsa da festa.
Virei-me e desci a escadaria com pressa, sentindo meu
coração acelerado e muito arrependida de querer tentar ser legal.
Geralmente quem estava passando por esse tipo de problema não
queria uma pessoa estranha se metendo onde não era chamada. É
claro que eu senti que Eros descia logo atrás de mim e prendi a
respiração quando cheguei no térreo e ele avançou à minha frente,
me obrigando a parar.
— Você acabou de me chamar de gay? — perguntou com a
testa franzida.
— Ah, não. Não, não — respondi, erguendo minhas mãos. —
Sinto muito, eu não devia falar nada. Prometo que não vou dizer
isso a ninguém.
— Por causa do que me ouviu conversar com meu irmão,
certo?
Olhei rapidamente em volta, com medo de que aquele assunto
escapasse de novo até ouvidos alheios. Não queria ser a causadora
de mais um mal-entendido.
— Foi bem na hora que saí do banheiro — expliquei. — Eu
não tive culpa, vocês estavam conversando ali na porta.
— Sobre eu ser gay. — Eros parecia ter necessidade de frisar
aquele detalhe primordial como se ele mesmo estivesse em
negação.
— Sim? — respondi meio sem saber o que ele queria.
O homem levou a mão à boca enquanto me encarava e eu
comecei a me preocupar com aquela conversa estranha. Puxei o
celular do bolso da calça e olhei discretamente o horário, ciente de
que estava há tempo demais sem trabalhar e isso significava que o
serviço estava desfalcado.
— Eu pareço um homem gay? — perguntou Eros.
— Bem... Eu não sou aquele tipo de pessoa que possui um
radar para essas coisas, sabe?
— Dá para perceber — respondeu, sorrindo. — É
impressionante como fica pior cada vez que você abre a boca.
Gente, mas que absurdo. Ele era muito insuportável e
orientação sexual nenhuma seria capaz de tornar aquele idiota uma
pessoa melhor. Queria ter uma bandeja nas mãos só para derrubá-
la sobre a cabeça loira, mas como não tinha, apenas respirei fundo
e girei sobre meus calcanhares, marchando rumo à tenda onde
Cauã se encontrava. Imaginei que meu amigo seria capaz de me
acalmar e evitar que eu xingasse o dono da festa, mas ficou tão
chocado quanto eu ao descobrir que eu quase consegui ver Odin
pelado. Para não me encrencar ainda mais, deixei de fora a
informação sobre o segredo que Eros Montenegro carregava e
tentei me ocupar, enquanto servia bolo para os convidados. Precisei
me esquivar de todas as perguntas que Sabrina fez a respeito do
meu sumiço repentino, pois não sabia como ela reagiria quando
soubesse que fui tão bisbilhoteira e quase coloquei a Dono do Sabor
em maus lençóis.
Para minha decepção, não vi mais o Odin pelo resto da noite.
O som já tinha sido desligado e preparávamos tudo para encerrar o
trabalho quando me afastei até o corredor que dava acesso ao
banheiro externo, em busca de uma tomada. Queria dar uma carga
rápida no meu celular que estava sem bateria e tinha acabado de
me encostar na bancada perto da churrasqueira, quando olhei para
o lado e vi Eros se aproximar.
— Quero falar com você — avisou quando me desencostei e
me preparei para sair. — É rápido.
Ele tinha aquela aparência de fim de festa, camisa de botão
aberta até o peito, um lado para fora da calça, outro para dentro e
uma expressão levemente alterada que indicava ter bebido.
— Pode falar — respondi, cruzando os braços e torcendo para
o celular carregar logo.
— O que sabe sobre dança?
— Tudo? — Que tipo de pergunta era aquela? — Por quê?
— Seu trabalho foi indicado... — Ele esfregou a nuca de um
jeito preguiçoso, como se estivesse odiando ter aquela conversa. —
Talvez eu a contrate.
Ah, nossa, que bondoso.
— Não estou procurando emprego na área.
— Ainda nem falei do que se trata, Magnólia — rebateu, rindo
da minha cara. — Preciso contratar um dançarino para ensaiar com
um grupo de amigos para uma dança num casamento.
— Não sou dançarina, sou bailarina. E não estou procurando
emprego na área.
Virei-me para olhar a carga no celular e escutei uma risadinha
sarcástica atrás de mim. O corpo grande de Eros surgiu ao meu
lado e notei, inutilmente, que ele era bem mais alto que Odin.
— Você é insuportável, né? — Estalou a língua e eu lamentei
meu telefone só ter carregado dois por cento. — Olha, também não
fui com a sua cara, estamos quites, mas estou oferecendo um
trabalho e pago bem. Não deve ser muito diferente do que treinar
um flash mob cafona.
Chega! O celular podia carregar sem minha supervisão pelos
próximos minutos, mas não dava para aguentar o cirurgião idiota e
me controlar para não dar na cara dele.
— Acontece que eu só trabalho com bailarinos profissionais,
mesmo quando monto flash mobs cafonas. Não dou aula para
iniciantes.
— Não somos iniciantes, sabemos dançar.
Sorri bem grande para o bonitinho diante de mim e ele sorriu
de volta, achando que tinha mandado bem.
— Imagino que saibam. Em boates, bêbados e jogando os
braços para o alto. E pensar que estudei desde criança, quando
bastava sacudir o corpo numa pista de dança, com uma vodca na
mão. — Olhei na direção do jardim e franzi a testa. — Olha lá, meu
patrão está me chamando.
Antes que o babaca me prendesse naquela conversa e me
pressionasse para aceitar o trabalho que deveria ser penoso, corri
para bem longe dele e esbarrei sem querer em minha irmã. Ela me
segurou pelos ombros e lançou um olhar para o local onde eu
estava, colocando um sorriso no rosto.
— Primeiro o Odin, agora o caçula? Lia, você não pode fazer
os irmãos brigarem por sua causa. Isso seria errado.
— Em que mundo você vive, Bri? — perguntei, preocupada. —
Acha mesmo que os Montenegros estão interessados em mim? Vai
se surpreender com tudo que tenho pra contar.
— Como assim? — Ela arregalou os olhos.
— Eu conto tudo em casa. Amanhã, de preferência. Hoje só
quero chegar e dormir.
Tudo que eu queria era tomar um banho bem gelado para me
refrescar daquele calor infernal de quarenta e dois graus, deitar e
fechar os olhos, para poder sonhar com um mundo perfeito onde
jamais teria cometido uma gafe terrível com Odin. Eu não era
trouxa, sabia que com ou sem mal-entendido nunca teria chance
com um homem como ele, mas não custava sonhar. E isso, eu sabia
fazer muito bem.
Eu tinha terminado de desligar o notebook e estava a caminho
da cama quando o celular sobre a cômoda tocou. Passei a noite
esperando que aquilo acontecesse e sorri com um gostinho de
vitória quando ouvi o som do toque.
Mais cedo, um pouco depois do almoço em que a família
estava toda reunida, o jardineiro apareceu com o aparelho na mão e
avisou que o encontrou numa das tomadas da área gourmet, junto
com o carregador. Ele disse que os pinos estavam desencaixados
da tomada, por isso, o celular estava completamente descarregado.
Passaria despercebido por mim e eu deixaria que meu pai ou Odin
se ocupassem de procurar o dono, quando me lembrei que a
dançarina insuportável estava carregando um celular no momento
em que a abordei. Avisei que devolveria o aparelho à dona e o
deixei lá na minha suíte, sem me dar ao trabalho de colocá-lo para
carregar. Ela bem que merecia sofrer um pouco.
Então, no final da noite, quando finalmente o coloquei na
tomada, o aparelho começou a tocar. Esperei alguns segundos
antes de me aproximar, pensando há quanto tempo a garota devia
estar tentando ligar. Sorri, satisfeito com a tortura, e atendi.
— Sim?
— Ah, graças a Deus! — Ela parecia estar quase chorando. —
Quem está falando?
— Eros.
— Merda — xingou e logo pigarreou. — Quer dizer, oi. Tudo
bem? Eu sou a dona do celular e o esqueci na sua casa.
— É o que parece...
— Então, meu nome é Magnólia e...
— Sei quem você é, dançarina.
— Babaca. — Tenho certeza que ela fez o possível para
sussurrar de uma forma inaudível, mas eu tinha ouvidos muito bons.
— O que você disse?
— Que horas eu posso passar amanhã na sua casa para
buscar o telefone?
Pelo menos ela não tentou me persuadir a ir até sei lá onde
fazer a entrega.
— Estarei livre das duas às três da tarde, depois disso tenho
cirurgia marcada. Anote o endereço da clínica.
— Não posso ir de manhã até a sua casa? Preciso muito do
meu celular.
— Tenho uma agenda apertada às segundas de manhã. É
pegar ou largar.
A ligação ficou em silêncio por alguns segundos e logo em
seguida ela bufou tão forte que incomodou meus ouvidos.
— Vou anotar o endereço... — avisou aparentando muita má
vontade e eu sorri, satisfeito. Não facilitaria em nada a vida dela.
Passei tudo que era preciso para que chegasse à nossa clínica
e desliguei, indo me deitar porque às nove horas eu estaria correndo
no calçadão da praia antes de dar meu mergulho no mar e beber
minha água de coco para começar a semana de forma abençoada.
Então eu voltaria para casa, malharia um pouco, comeria o almoço
impecável de Helena e só depois tomaria meu banho para ir
trabalhar.
O Rio de Janeiro era uma cidade naturalmente quente. Quente
mesmo. Por mais que fosse litoral, havia alguma coisa na região
que fazia os cariocas amargarem as piores temperaturas do Brasil e
eu me preocupava muito quando alcançávamos sensações térmicas
de cinquenta graus. Não que eu pudesse reclamar, afinal, tinha
dinheiro suficiente para morar em uma casa com ar condicionado
central, além de amar praia e piscina. Mas sabia o quanto a maior
parcela da população sofria com as altas temperaturas e era
solidário aos homens que precisavam passar o dia todo dentro de
um terno.
Estava muito acostumado a ver saias cada vez menores e
decotes cada vez maiores, assim como o fato de que biquínis se
transformavam em vestuário comum para transitar pela cidade,
principalmente ali na Barra da Tijuca, Recreio e Zona Sul, onde
ficavam concentradas as praias cariocas. Portanto, não tinha como
não ficar absolutamente surpreso e chocado ao olhar para Magnólia
no meu consultório.
A garota era bem magra e tão branca que eu nem estava tão
perto dela e mesmo assim conseguia ver claramente as veias de
seu pulso. Mas o que chocava mesmo nem era isso, sim a roupa
que ela estava usando. Uma calça preta toda rasgada — não
aquelas da moda que fingiam os rasgos, essa estava rasgada
mesmo, quase inteiramente —, uma segunda pele fumê que cobria
a barriga e imitava aquelas meias arrastão que se usava em
fantasias e por cima disso, um top bem curto com o símbolo do
Batman. Detalhe para a segunda pele que era de manga comprida e
eu não conseguia acreditar que a garota não pudesse sentir calor.
Eu me lembrava que ela era baixa, mas estava bem alta com o
sapato mais horroroso que já vi na vida, uma espécie de bota com a
sola toda bruta que devia ter uns quinze centímetros.
— Vim buscar meu celular — disse ela, mexendo nos dedos
repletos de anéis. — Obrigada por ter cuidado dele.
Encarei os lábios pintados com um batom preto, sentindo-me
como se olhasse para um personagem de desenho animado. Eu
sabia que existia um pessoal mais jovem que se vestia de um jeito
bem estranho, mas não convivia com ninguém com gostos tão
peculiares. Arriscava dizer que a única coisa que parecia normal e
era bonita em todo o look estranho, eram os cabelos de Magnólia,
cheios e num belo tom de castanho escuro.
— O que você tanto olha? Tem mais alguma idiotice pra falar
pra mim? — perguntou, cruzando os braços e arqueando uma
sobrancelha atrevida. — Escuta, eu só quero meu celular de volta.
Pisquei, finalmente saindo do transe em que tinha entrado ao
vê-la vestida daquele jeito. Olhei em volta rapidamente e apontei
para uma das cadeiras à frente da minha mesa.
— Por que não se senta um pouco?
— Porque não quero — devolveu.
Eu ri, querendo esganar o pescoço branquelo, mas me
controlando para não deixar escapar o quanto ela se esforçava para
ser insuportável. Agindo de forma mais inteligente, segurei a garota
pelos ombros e a guiei gentilmente até a cadeira.
— Por que a gente não tenta recomeçar tudo? — Sorri para
ela ao me sentar atrás de minha mesa. — Eu queria falar com você,
Magnólia. Estou precisando muito do seu serviço para o lance do
ensaio.
— Impressionante o tamanho do seu interesse, considerando
que dias atrás chamou meu trabalho de cafona.
Magnólia logo percebeu a presença do telefone dela sobre
minha mesa e se esticou para pegar o aparelho, ligando-o
imediatamente e o acariciando como se fosse um item muito
valioso.
— Ainda bem que você foi honesto e me devolveu ele — disse
ela. — Achei que nunca mais o recuperaria.
— Claro que eu devolveria. Tenho o modelo mais recente, de
que me serve um celular de cinco gerações passadas?
Não demorou muito para que eu percebesse que falei a coisa
errada, mais uma vez. Os astros definitivamente não estavam
alinhados para que a interação entre nós dois pudesse ocorrer de
forma mais leve.
— Então, sobre o que falei do seu trabalho lá na festa... —
Cruzei minhas mãos sobre a mesa e coloquei um sorriso no rosto.
— Eu disse que flash mobs são cafonas, mas você não tem culpa,
apenas faz o que o cliente contrata. No entanto, eu não estaria
insistindo se não tivesse achado que é uma boa profissional. O que
preciso não é nenhum bicho de sete cabeças, só uma coreografia
para dançarmos no casamento do meu melhor amigo.
— Sei o que você quer, um mashup para dança de padrinhos.
— Não pude deixar de notar a cruzada de perna ágil e elegante,
muito pose de bailarina mesmo. — Sabe que isso não fica muito
atrás do flash mob, né?
— Garanto que se fosse meu casamento, não aconteceria —
respondi para deixar bem claro que eu não era a pessoa a favor
daquilo. — Sou apenas o padrinho e o responsável por fazer a
vontade do noivo.
— Tudo bem, mas eu já falei que não faço esse tipo de
trabalho. Posso tentar indicar alguém e...
— Quero você — falei e ela arregalou os olhos.
— Eu poderia entender isso de um jeito muito errado se você
gostasse de mulher.
Ah, pronto. De novo essa história. A garota entendeu tudo ao
contrário no dia da festa, ouvindo o que não devia ouvir e criando
uma confusão dentro da própria cabeça. Naquela noite, quando veio
com o discurso sobre eu ser gay e precisar me assumir, tive vontade
de desmentir a maluquice imediatamente, mas me controlei porque
tinha sido divertido. Agora, no entanto, não era mais.
Estava prestes a desfazer todo o mal-entendido que ela
mesma tinha criado, quando a garota gótica se curvou e apoiou os
braços na mesa.
— Seu irmão falou algo sobre mim?
— Não. Ele deveria?
— Não disse que me odeia ou nada parecido? — insistiu.
— Por que ele a odiaria? Você também o beijou à força?
Magnólia sacudiu a cabeça negando minha pergunta, mas
parou de prestar atenção em mim para mexer no celular. Ela riu de
alguma coisa e os dentes muito brancos se sobressaíram ao batom
tão escuro. Quando começou a digitar parecendo mais interessada
no telefone do que em qualquer outra coisa, senti que a estava
perdendo e terminaria aquela reunião sem um acordo.
— Pago cinco mil pelo trabalho — ofereci, atraindo a atenção
dela imediatamente, mas apenas seus olhos se moveram e os
dedos congelaram na digitação. — Não sei como funciona e
quantas aulas são necessárias, mas acredito que esse valor seja
suficiente.
— Trinta mil.
— O quê? Não quero um tapete mágico da porra do Aladdin,
só quero aprender uma coreografia.
Ela continuou me encarando por exatos quatro segundos
porque contei, até que baixou os olhos, guardou o celular dentro da
bolsa e se levantou.
— Não — declarou.
Eu me levantei junto e dei passos largos para alcançar a porta
antes dela e espalmar minha mão ali, impedindo-a de sair do
consultório.
— Calma, vamos conversar — pedi, sem saber qual piercing
eu encarava tão de perto: o do lábio ou os dois no nariz. — Que tal
dez mil?
Ela franziu a testa como se eu fosse louco e algo me dizia que
estava tentando me passar a perna.
— Vinte.
— Quinze — barganhei mais um pouco.
— Quinze e uma chance com seu irmão.
— O quê? — O pedido me pegou tão de surpresa que até
soltei a porta e recuei, chocado. — Como assim, uma chance?
Com... Odin?
— Você tem outro irmão? — Neguei e ela encolheu os ombros.
— Então sim, com Odin. Ele teve uma péssima primeira impressão
minha e quero ser desculpada por ele. De quebra, seria legal se
você nos apresentasse de forma adequada. Pode me dar umas
dicas do que ele gosta, o que o atrai, enfim...
Prendi a risada e andei mais para trás até me encostar no
aparador e cruzar meus braços. Precisei encarar bem a garota
diante de mim para ter certeza de que ela não estava apenas
fazendo piada com a minha cara. No entanto, Magnólia parecia falar
sério.
— Você está interessada no Odin? — Ela assentiu. — E pensa
que eu sou gay?
A enfezadinha gótica revirou os olhos e ajeitou a bolsa no
ombro.
— Já vi que gosta de transformar tudo em holofote pra você,
né? Estou pouco me importando se você é gay ou não, Eros. Nem
tenho nada com isso. Meu interesse é no seu irmão.
Esta era a questão primordial. Temi que se contasse a
verdade, mesmo que ela custasse acreditar, havia grandes chances
de Magnólia ficar com raiva de mim por não ter desfeito o mal-
entendido antes. E eu obviamente não a queria no modo raivosa
novamente porque estava quase conseguido fechar o trabalho com
ela. Ganharia fama de gay por causa de Odin, então ele não
poderia reclamar do problemão dark que eu jogaria para cima dele.
— Quinze mil e eu apresento você ao meu irmão. — Arqueei a
sobrancelha e estiquei minha mão. — Só isso?
— Apresentar e me ajudar a sair com ele.
— Fechado — declarei, ainda de mão esticada para ela.
— Depois de um aperto de mãos não se pode voltar atrás — a
garota avisou, estreitando os olhos para mim e eu assenti.
Então, ela fez algo que eu não estava esperando e
simplesmente cuspiu na palma da sua própria mão, grudando-a na
minha antes que eu conseguisse ser mais rápido para evitar aquele
contato. Magnólia balançou nossas mãos unidas, deu um sorriso
faceiro e quando desfez o aperto, deu dois tapinhas no meu rosto.
— Eu teria aceitado os cinco mil, mas foi ótimo fazer negócios
com você.
A filha da mãe piscou e abriu a porta da minha sala com tanta
força que chegou a cambalear para trás enquanto se segurava no
puxador. Ainda a observei apressar os passos, pensando em como
fui otário em deixá-la barganhar e sabendo que precisaria esconder
de meus amigos que iria pagar quinze mil reais por uma dança de
cinco minutos. Quando estava prestes a fechar a porta e me
preparar para a pequena cirurgia que tinha agendada, vi Magnólia
virar e correr de volta na minha direção. Tive muito medo que ela
caísse com aqueles sapatos e eu ainda fosse obrigado a pagar
alguma indenização para a garota.
— Seu número! — pediu, descabelada, estendendo o celular
para mim. — Anote aqui!
Digitei meu telefone no iPhone ultrapassado e lancei um olhar
de aviso quando o devolvi a ela.
— Evite ficar passando meu número para qualquer pessoa —
pedi.
— Para quem eu passaria seu número? — perguntou ela,
fazendo uma careta. — As pessoas fazem fila para disputar você,
por acaso?
— Você se surpreenderia.
— Sério? — Ela franziu os lábios e tive vontade de esganar. —
Fazem fila por você? Estando o Odin disponível? O mundo está
cada vez mais louco...
A gótica deu um tapa no meu ombro e guardou o aparelho,
indo embora definitivamente e me deixando irritado pelo resto do
dia. Como podia ser tão cega a ponto de achar que logo o Odin era
o garanhão do pedaço?
Ouvi o celular tocar e abri meus olhos ciente de que não era o
meu horário habitual de acordar. Que porra era aquela? Rolei o
corpo até a mesa de cabeceira e peguei o celular, sem nem
conseguir abrir os olhos direito. Só me dei conta de que estava
atendendo a uma chamada de vídeo, quando vi o rosto de Magnólia
na tela.
— Acordei você? — perguntou com tudo, menos culpa na sua
expressão feliz.
— Por acaso resolveu me sacanear? — Fechei os olhos e
contei até dez para ver se ela desistia e desligava.
— Você está me pagando quinze mil reais, isso significa que
preciso entregar um trabalho impecável. Não vou sujar meu nome.
— O que isso tem a ver com me acordar às sete da manhã?
Respirei fundo e me sentei na cama, piscando para olhar
melhor o celular e cacete, ela ficava completamente diferente sem
toda a maquiagem. O rosto era repleto de sardas e parecia ainda
mais nova do que aparentava ser.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e um — respondeu, estreitando os olhos. — Qual o
problema?
— Devia passar mais tempo sem maquiagem — falei e percebi
que tinha piscado para ela, que arqueou a sobrancelha e deu de
ombros. — A gente aprecia muito mais um rostinho limpo assim.
— A gente? — Ela riu e eu me lembrei que Magnólia achava
que eu era gay. — Sua opinião não conta muito, né querido?
— Certo, mas acho que sei do que meu irmão gosta. Não foi
você que disse que preciso ajudar nisso? Esse lance de make
dark... Ele não curte não.
Eu ainda nem tinha compartilhado com Odin toda essa
maluquice na qual nos envolvi, mas algo me dizia que ele me
mataria pela confusão em que tinha sido incluído. Tarde demais,
agora não podia contar a verdade antes de termos a coreografia
para o casamento.
— Se eu precisar mudar meu estilo por causa de um homem,
então ele não vale a pena — ela respondeu, desviando o olhar.
Senti uma leve mudança na entonação da voz, mas não tive tempo
de aprofundar o assunto porque a enfezadinha voltou a levantar os
olhos e modificou a postura. — Anote o endereço da sala que
reservei na Tijuca para o primeiro ensaio.
— Na Tijuca? Você ficou louca. Procure algo mais perto, todos
os padrinhos moram aqui na Barra.
— Você vai pagar? Porque eu não pretendo gastar todo o
dinheiro que vou ganhar, para alugar um metro quadrado caríssimo.
Pensei logo em Edu, que era dono de um box de crossfit e
tinha um bom espaço livre com espelhos. Eu poderia falar com ele
para que fechasse um pouco mais cedo e, assim, pegar um horário
que desse para conciliar com os ensaios.
— Falo com você mais tarde — avisei. — Resolverei isso
ainda nesta manhã e agora vou voltar a dormir porque tenho meia
hora antes de o despertador tocar.
Magnólia revirou os olhos e acenou antes de desligar, sem se
dar o trabalho de se despedir adequadamente. Joguei o celular no
colchão e virei de bruços, buscando novamente pelo meu sono
tranquilo.
Alguns dias da semana minha irmã só ia para a empresa na
parte da tarde, então, naquela terça-feira ela estava sentada na
mesa para almoçar comigo. Ainda não tinha contado nada para
Sabrina porque no dia anterior, quando saí da clínica de Eros,
sentia-me como se estivesse sonhando. Quinze mil reais? Ele me
pagaria mesmo quinze mil reais? Minha conta bancária nunca viu
nem metade desse valor, quem dirá tudo isso. Cheguei a dançar
sozinha no ponto de ônibus e depois me controlei antes que
pensassem que eu era louca.
— Então... Tenho algo a dizer... — murmurei antes de colocar
um pedaço enorme de alface na boca.
Consegui atrair a atenção de Sabrina, que estava cortando
meticulosamente seu bife e parou para me olhar.
— Desembucha!
— Lembra dos Montenegros? — perguntei só para ter tempo
de engolir a comida, claro que ela assentiu. — O mais novo, Eros,
me contratou para coreografar uma dança de padrinhos de
casamento. Eu não pretendia aceitar, mas ele vai me pagar quinze
mil reais.
Minha irmã parou o garfo a caminho da boca e manteve os
olhos arregalados enquanto eu mesma prendia o riso. Era surreal
demais pensar que eu tinha conseguido um acordo tão fácil com ele.
— Você disse quinze mil? — perguntou ao recolocar o talher
sobre o prato e se curvar na minha direção. — Por uma dança de
padrinhos? — Ela segurou minha mão e apertou. — Lia, ele tá muito
apaixonado.
— Ele é gay — respondi para jogar de uma vez o balde de
água fria sobre a cabeça dela. — Pode parar de sonhar.
A expressão de felicidade no rosto da minha irmã desabou ao
mesmo tempo em que ela jogava as costas contra a cadeira.
— Poxa vida... Eu sei que não devemos julgar pela aparência
nem nada, mas olhando bem para ele, eu nunca imaginaria isso.
— Ele ainda não se assumiu, sei lá, parece ser uma história
complexa, mas o Odin sabe a verdade porque eu flagrei uma
conversa dos dois.
— E como você conseguiu fechar um valor tão alto? — Ela riu,
balançando a cabeça. — Eu nem sabia que você estava procurando
trabalho com dança de novo.
— E eu não estava. Ele praticamente implorou e eu vi a
chance de ganhar uma boa grana.
Deixei de fora a parte do acordo em que Eros tinha ficado
responsável por fazer Odin me notar e se interessar por mim,
porque não queria que Sabrina se iludisse mais do que já
costumava acontecer. Se por acaso desse certo eu deixaria que ela
ficasse a par de tudo, mas por enquanto eu nem sabia como
aguentaria o Eros por tanto tempo. Ele estava longe de ser uma
pessoa agradável e eu não tinha muita paciência para aturar
grosseria.
Respirei fundo e pensei no dinheiro que depositaria em minha
conta, que faria todo o sofrimento valer a pena. Guardaria a grana
para depois pensar com calma no que faria com ela, já que não era
um valor que eu estava esperando receber, veio totalmente de
surpresa.
— Você fará um ótimo trabalho, Lia — disse Sabrina,
arrancando-me dos meus devaneios ao perceber que ainda estava
sentada à mesa com ela. — É uma boa quantia, use-a com
sabedoria, mas saiba que você a merece.
Coloquei um sorriso no rosto quando minha irmã se levantou e
me abraçou antes de recolher o prato. Eu tinha convicção de que
era muito boa no que fazia e merecia sim ser paga pelo meu
trabalho excelente, mas não era hipócrita ao ponto de não pensar
que aquele valor era um roubo. Eros podia pagar e provavelmente
não faria falta ao bolso dele, porém, isso não apagava o fato de que
eu havia tirado vantagem da situação. Estava arrependida? Claro
que não.
Aproveitei o resto da tarde tranquila para ir ao mercado, já que
tinha entregado uma encomenda bem antes do prazo e estava com
a agenda mais leve. Pedro e Sabrina sustentavam toda a parte de
alimentação da casa e nunca falavam nada, mas de vez em quando,
se minha conta bancária não estivesse no vermelho, eu gostava de
ajudar encher a geladeira. Também queria comprar umas frutas
bonitas, mas deixaria para ir à feira no dia seguinte.
Estava voltando, já dentro do elevador do prédio, quando meu
celular vibrou no bolso do jeans uma, duas, três vezes. Como
estava com as mãos ocupadas segurando as sacolas, só depois
que entrei em casa e coloquei as compras sobre a mesa, é que
peguei meu telefone.
Fiquei surpresa em ver que tinha recebido mensagens no
Whatsapp e se tratava de uma nova conversa, de ninguém menos
que Eros Montenegro. Observei bem a foto de perfil dele, de costas
para a câmera, olhando o pôr do sol em algum lugar do mundo que
eu não reconhecia.

Oi Barbie Dark! Consegui um local para os ensaios!


Não sei se poderemos ensaiar sempre lá (afinal, serão
quantas vezes?), mas amanhã teremos a noite toda.
Vou pegar o endereço com o dono e te passo.

A noite toda? Eros achava que um ensaio durava quantas


horas? Ele só podia estar brincando com a minha cara. Inspirei para
manter a calma e me sentei numa cadeira para falar com o irritante.

Eros, em nenhum momento eu disse que os ensaios


aconteceriam de noite.
Eu não moro perto de você e não vou ficar
andando de ônibus tão tarde. E Barbie Dark? Sério?
Você me cobrou 15 mil, acho que dá pra pagar um uber.
Tudo bem, vou te chamar de Camarão.

Tentei fazer um cálculo rápido de quanto eu gastaria


aproximadamente se quisesse manter o conselho dele e ir e vir de
uber. Para uma média de dez ensaios, considerando no máximo
dois por semana, com uma viagem que me custaria por volta de
setenta reais... eu mataria Eros Montenegro por me obrigar a
desembolsar uma pequena fortuna.

Eu irei até a sua casa e você vai me dar carona.


Marque o ensaio para as 20h.
E camarão é a puta que te pariu!
Você sabe que minha mãe morreu de
câncer há uns anos, né?

Ele estava falando sério? Fechei os olhos porque eu era o tipo


de pessoa que não sabia bem o que dizer nesses momentos em
que era preciso dar condolências. Aliás, eu nem sabia se depois de
tanto tempo de morte ainda se prestava condolências. Sempre que
falava um “meus pêsames” ou “sinto muito” me sentia um robô
dizendo palavras sem sentido.

Bem, sinto muito por isso.


Mas não apaga o fato de que você é um babaca.
Seu irmão estará em casa nesse horário?

Podia soar um pouco desesperada, mas eu não tinha aceitado


tudo aquilo somente pelo dinheiro. Se eu não cruzasse o caminho
de Odin em algum momento, ficaria difícil levar meu objetivo
adiante.
Para minha frustração, Eros parou de responder e não ficou
mais online. Estava começando a achar que ele adorava me
detestar e se divertia ao pensar que eu me irritava com suas
atitudes — o que era totalmente verdade. Eu não era alguém de
muitas amizades, sempre dei preferência para poucos e bons
amigos, principalmente aqueles que não zoavam com a minha cara.
No entanto, não me considerava uma pessoa difícil de lidar ou
agradar. Não conseguia entender o que acontecia entre mim e Eros
que parecia nos repelir instantaneamente.
Deixei o celular de lado e fui guardar as compras antes de ir
para o quarto e abrir o e-mail para estudar o briefing do próximo
trabalho que iniciaria, a ilustração para uma capa de livro. Coloquei
meus fones de ouvido e selecionei minha playlist favorita para
trabalhar: Os Hits Internacionais 80/90. Assim passei as horas
seguintes, criando um esboço de algo próximo ao que o autor tinha
solicitado e só terminei quando ouvi o movimento dentro de casa.
Fechei os programas e fui para a internet anotar algumas
ideias para a coreografia, para sugerir a eles. Eu sequer sabia como
eram os amigos de Eros e qual o contato deles com a dança. Não
conhecia o noivo, não sabia a data do casamento e nem onde ele
aconteceria. Montar uma coreografia coordenando várias pessoas
dependia também do espaço disponível, mas acreditava que se
todos tivessem tanto dinheiro quanto Eros, então espaço
provavelmente não faltaria.

Depois de quase precisar fornecer meu tipo sanguíneo para


entrar no condomínio onde a família Montenegro morava, fui
recebida por uma empregada que me pediu para esperar na sala.
Fiquei de pé naquela imensidão, lembrando do ocorrido na festa,
quando uma menininha chegou correndo e parou diante de mim,
com a cabeça jogada para trás enquanto me encarava.
— Quem é você? — perguntou a loirinha pequena de
vestidinho preto que parecia mais caro que todo o meu guarda-
roupa.
Tinha visto a menina na festa e me lembrava que ela estava
sempre com um dos três Montenegros, o que me levava a crer que
só podia ser filha de Eros ou de Odin.
— Eu sou a Magnólia — respondi, curvando-me com as mãos
nos joelhos. — E você?
— Eva.
— Uau, que nome lindo!
A garotinha sorriu e iluminou os olhos lindos. Ela esticou o
braço e apontou para a minha boca, franzindo a testa de forma
curiosa.
— Por que sua mamãe furou sua boca?
Toquei meu piercing com a ponta da língua, achando graça da
pergunta, e pelo canto do olho vi quando Odin se aproximou,
fazendo meu coração disparar. Endireitei-me imediatamente e me
flagrei passando as mãos pelo cabelo na tentativa de me ajeitar um
pouco mais. Desviei o olhar de Eva para o loiro incrível, com medo
de responder a pergunta da garota e ele não gostar do que eu
falaria.
— Boa noite — cumprimentei com o frio na barriga.
— Boa — respondeu, meneando a cabeça e olhando para a
menina. — Não foi a mãe dela que fez o furo, filha. Apenas os das
orelhas, esses outros a pessoa só pode fazer depois que cresce
muito.
Ah pronto, Odin era o pai. Provavelmente devia querer me
matar por já ter deixado a filha curiosa por algo que pais geralmente
não aprovavam. Até hoje eu lembro que minha mãe chorou quando
viu meus piercings e passou uma semana se perguntando onde
errara em minha criação.
— Eu vô podê fazê também?
Odin olhou para mim, bem para minha boca e meu nariz, como
se avaliasse minhas escolhas, então voltou-se para a filha.
— Quando você tiver a idade dela, se desejar, poderá fazer.
Mas isso vai demorar muito ainda.
Respirei fundo e soltei o ar devagar, porque não parecia que
ele me odiava. Pelo menos, não por causa daquilo. Eu não podia
me dar ao luxo de acrescentar mais um obstáculo entre nós dois,
principalmente agora sabendo que ele tinha uma filha. Minha única
opção era fazer com que Eva me adorasse!
E por falar nela, vi quando pediu colo para ele, que a pegou
nos braços, o que só facilitou para que ela olhasse meus piercings
bem de perto. Sorri para a menina simpática e tão linda, enquanto
pensava em algo interessante para falar.
— Me desculpe pelo dia da festa, eu não devia ter dito o que
disse, foi um péssimo pré-julgamento.
— E eu falei sério quando contei que você não era a primeira
— disse Odin, direcionando a mim o primeiro sorriso. — Esquece
isso, não é nada demais.
— Tudo bem, mas eu não sou todo mundo. O que eu fiz foi
horrível, julguei sem conhecer você e normalmente detesto quando
fazem isso comigo.
— Ela é sua namorada, papai? — Eva nos surpreendeu com a
pergunta, olhando para Odin.
—Não é, mas tudo pode acontecer! — A resposta veio do filho
da mãe do Eros que surgiu descendo as escadas com pressa e
sorrindo como um bom cafajeste. — Não é mesmo, Barbie Dark?
Eu queria matá-lo! Senti o sangue fugir do meu rosto e temi
que o idiota dissesse alguma coisa na cara do irmão, aí sim eu o
afogaria na piscina. Ele parou ao lado de Odin e beijou o cabelo da
sobrinha, contaminando o ambiente com o banho de perfume que
parece ter tomado, e ajeitando a gola da camisa polo branca.
— Barbie Dark? — Odin perguntou, olhando-me com
curiosidade.
— Ah, sim, parece que quando ela não está trabalhando, se
veste de uma forma bastante peculiar.
— Eros, se você me chamar de peculiar novamente, vai
precisar que seu irmão reconstrua a sua língua — avisei, dando um
passo à frente na direção dele. — Isso se eu guardar o pedaço que
vou arrancar.
— Gostei dela, cara. — Odin bateu no ombro dele e sorriu para
mim. — É um prazer conhecê-la. Volte mais vezes, viu?
E então, ele fez uma coisa que quase me levou ao chão. Por
desmaio. Esticando o braço que estava livre, o Montenegro mais
velho segurou minha mão e a beijou. Como acontecia nos livros,
como se hoje em dia alguém se desse o trabalho de fazer algo
parecido.
Eu ainda estava congelada no lugar quando ele sumiu da sala
e senti os dedos de Eros se fecharem ao redor do meu pescoço. Dei
um tapa nas mãos dele e recuei, enquanto o idiota sorria.
— O que pensa que está fazendo?
— Só queria medir a circunferência desse pescocinho —
respondeu, cutucando minhas costas para que eu andasse na
direção da porta de saída. — Preciso saber o tamanho da coleira
que esse pitbull precisa usar.
— Você não cansa de ser ofensivo? Não é por que está me
pagando que vou aceitar essas coisas que fala.
Ele revirou os olhos e me deu as costas, caminhando pelo
jardim e entrando na garagem da casa. Eu não entendia muito de
carros e marcas, mas sabia que aquele que Eros destravou devia
custar uma fortuna. Entrei e me sentei no lado do carona, levando
um susto ao me sentir como se estivesse sendo abraçada pelo
banco mais macio que qualquer outro que já tenha experimentado.
— Tentarei ser o mais profissional possível se é isso que
prefere, Magnólia.
— Sim, eu prefiro.
— Tudo bem — respondeu ele, concentrado na direção,
enquanto passávamos pelas ruas do condomínio.
— Quando é o casamento?
— Vinte de março.
O quê? Março? Por que eu não pensei em fazer essa pergunta
antes de iniciar com os ensaios? Estávamos em novembro, faltava
tempo demais. Não precisávamos começar logo, até porque eu não
podia deixar que se passasse um período muito grande entre o
último ensaio e o dia do evento, pois corria o risco de esquecerem
tudo.
— Está mais longe do que eu imaginava — avisei. — Minha
intenção era marcar duas aulas por semana com vocês, num total
de dez, mas vou precisar mexer nessa programação.
— Você acha dez aulas uma quantidade ideal?
— Depende dos alunos, preciso saber qual a relação de vocês
com a dança para estudar o nível da coreografia. Algumas pessoas
precisam de mais tempo, outras de menos. Mas acho que podemos
ensaiar uma vez por semana, já que período de Natal e Ano Novo
não conta e também, claro, o Carnaval.
Grudei as costas no banco quando Eros deu uma acelerada
pela Avenida das Américas e cortou vários carros, deixando-os bem
para trás. Meu coração quase saiu pela boca porque eu estava
acostumada com o carro popular de Pedro. Aquele parecia uma
nave espacial, com o painel bonito todo aceso em contraste com o
carro escuro e eu me peguei virando o rosto para observar o
motorista. Apesar de ser insuportável, Eros era um homem muito
bonito e devia iludir muitas mulheres. Eu mesma se não soubesse
da verdade poderia muito bem soltar um suspiro ou outro para o
braço forte que segurava o volante de um jeito sexy.
— Nem conquistou meu irmão ainda e já está pensando em
trair o pobre coitado? — ele questionou, chamando minha atenção.
— Quê? — Pisquei e voltei a olhar para a frente, sem graça. —
Não estou... Ah. Esquece.
— Eu sei quando uma mulher está babando por mim,
Magnólia.
— Queria ter a sua autoestima. A vida seria muito mais fácil,
sabia? — Puxei o ar devagar e virei o rosto, observando o caminho
que tomávamos. Quando voltei a olhar Eros, ele mantinha um
sorriso convencido no rosto. — Só estava pensando que com esse
seu jeito de hétero top pegador você deve iludir muita gente.
— Está esquecendo que eu não me assumi, Magnólia — disse
ele, estalando a língua. — Poucas pessoas sabem a verdade.
— Sim, bem lembrado. Mas pode ficar tranquilo porque eu sou
profissional, não vou tocar nesse assunto entre seus amigos.
Ele assentiu em agradecimento e piscou a seta para entrar em
uma vaga naquela região que eu nunca frequentava, o Jardim
Oceânico. Quando saí do carro e esperei que Eros desse a volta,
comecei a sentir um frio na barriga pelo simples fato de estar
prestes a conhecer os amigos dele. Se fossem todos iguais ao
Montenegro, eu teria muita dor de cabeça.
A garota era uma caixinha de surpresas porque eu nunca
sabia o que esperar dela. Como naquela noite, por exemplo, em que
apareceu lá em casa com um estilo totalmente diferente da Barbie
Dark que ela era. Magnólia estava de calça legging preta e uma
camiseta cinza comum, com cara de já ter visitado a máquina de
lavar incontáveis vezes. Nos pés um par de tênis discretos, bem
mais bonitos que as botas tenebrosas.
Eu só soube que ela estava usando alguma maquiagem
quando cheguei bem perto e não encontrei as sardas, mas dessa
vez nada de batom preto e sombra escura, tinha escolhido cores
neutras. Não que isso fosse da minha conta, mas estava ansioso
para que Odin a visse do jeito que eu tinha visto.
Quando cheguei em casa naquela segunda-feira em que fiquei
quinze mil reais mais pobre, precisei conversar com meu irmão e
explicar a cagada em que eu tinha me enfiado. Afinal de contas, ele
teria participação ativa em toda a história.
— Preciso pedir um favor pra você — avisei ao entrar em seu
quarto e me sentar na poltrona giratória ao lado da cama. — Não
pode me negar isso porque se entrei nessa confusão, o culpado é
você mesmo.
Tirei meus chinelos e apoiei minhas pernas no colchão
enquanto ele se contorcia naquelas posições nem um pouco
honradas para cortar as unhas dos pés. Apenas murmurou para que
eu continuasse, sem me dar real atenção.
— Acho que já te falei que PH quer uma dança de padrinhos e
tal, então eu finalmente contratei alguém para o trabalho. E olha que
engraçado, você vai morrer de rir. A garota em questão estava aqui
na festa do velho, pegou a gente conversando sobre o lance do seu
vídeo íntimo. Lembra disso?
— Perfeitamente.
— Que ótimo! — Sorri apesar de Odin continuar concentrado
em sua missão. — Porque ela só aceitou pegar o trabalho com uma
condição e é aí que você entra. Precisa sair com ela, irmão. De
preferência, se fingir de apaixonado.
Se eu queria a atenção dele, dessa vez consegui. Odin largou
o cortador de unha no colchão e se virou de frente para mim com
uma expressão incrédula.
— Que merda você fez, Eros?
— Nenhuma — respondi, apoiando minha nuca com as mãos.
— Magnólia pensa que eu sou gay e você é hétero. Por algum
motivo, ela acha que você é o Montenegro mais bonito e está
totalmente na sua.
— Ela disse isso pra você? — Como eu balancei a cabeça
afirmando, Odin revirou os olhos e voltou a pegar o cortador de
unhas. — Desfaça o mal-entendido e pronto.
— Não é tão simples assim, porque ela só aceitou pegar o
trabalho com a condição de eu ajudá-la a te conquistar. Se eu contar
a verdade agora, a garota vai me matar e vou ficar sem coreógrafa.
Odin se levantou, conferindo o resultado final de seu empenho
com as unhas dos pés e por fim parou ao meu lado, cruzando os
braços.
— E o que você pretende fazer? Enganar a garota? Não vou
participar disso, Eros.
— O que custa você me ajudar? — perguntei.
— Além do fato de que não gosto de mulher?
Eu também me levantei para impedir que ele saísse do quarto
e me deixasse falando sozinho. Corri atrás de meu irmão e o
segurei pelos ombros, fazendo-o virar e me olhar.
— Não estou pedindo que vá pra cama com ela, só demonstre
algum interesse quando ela estiver por aqui...
— Não fica com peso na consciência em fazer isso com outra
pessoa, Eros?
— Ela me cobrou quinze mil reais! — expliquei, porque eu não
era o vilão na história. — Acho que posso omitir um fato ou outro.
Odin me encarou de testa franzida e sorriu ao recuar alguns
passos e se encostar ao batente da porta.
— Deixe-me ver se entendi direito. Você podia contratar
qualquer coreógrafo renomado, mas preferiu desembolsar um valor
absurdo por uma profissional que não conhece e que ainda tem toda
essa história confusa por trás. Não era mais prático apenas pagar
um jantar e fazer logo o que pretende?
— O que eu pretendo?
— Levá-la para a cama, obviamente.
Ouvi a gargalhada escapar da minha boca e percebi que Odin
não tinha entendido porra nenhuma do que eu estava tentando
explicar. Agora ele me encarava com a sobrancelha direita bem
arqueada e afrontosa.
— Você entendeu tudo errado — avisei, dando um tapa no
braço dele. — Magnólia está longe de fazer meu estilo e a intenção
é que ela continue pensando que sou gay.
— Ficou louco, né? — Odin sorriu e cruzou os braços,
parecendo interessado. — Como exatamente você pretende
convencê-la de que gosta de homens?
— Eu não preciso fazer nada, ela já pensa isso. Não importa.
Vai me ajudar ou não? Você me deve essa, eu estava tentando
levantar sua autoestima quando falei aquelas coisas e a garota
escutou.
— Não irei atrapalhar nem desmentir você, se é tão importante
— disse ele, rindo, como se eu fosse uma piada. — Mas não vou
fazer nada que magoe a garota. Não me peça para sair com ela.
— Está ótimo pra mim!
Apertei a mão dele e deixei seu quarto, pensando que eu tinha
concordado em ajudar nas investidas dela, mas não prometi que
meu irmão se interessaria.
Quando ela chegou, eu tinha demorado a descer
propositalmente, para deixar que os dois conversassem um pouco
porque sabia que Odin estaria lá embaixo com Eva. Quando saímos
de minha casa, percebi que Magnólia parecia um pouco quieta,
talvez introvertida, desde que flagrei Odin beijando a mão da garota
como se estivesse em outras décadas. Tinha entrado no papel sem
nem mesmo se dar conta.
— Quantas pessoas vão dançar? — perguntou ela enquanto
caminhávamos pela calçada.
— O noivo, Pedro Henrique, eu e mais três padrinhos.
— Certo.
Ao chegarmos na porta, logo avistei Eduardo e Guilherme
conversando em frente à parede espelhada e soltei um assobio para
chamar a atenção deles. Os dois se aproximaram enquanto eu
notava Magnólia observar o ambiente e cumprimentei meus amigos.
Depois virei-me para ela e me surpreendi por perceber as
bochechas branquelas, agora coradas até demais.
— Esta é a Magnólia, gente. Esse cara estranho que se acha
muito é o Edu, dono do lugar — apresentei, dando tempo para que
eles se cumprimentassem. — E Guilherme, o pirralho entre nós.
— Vai tomar no cu, Eros — ele me xingou, beijando o rosto de
Magnólia e apertando a cintura dela. — Estava com medo que você
aparecesse aqui com uma senhora de idade capenga. Mas você é
muito melhor.
— Capenga eu com certeza não sou — respondeu a garota,
mexendo no cabelo e eu tinha quase certeza que estava sem graça.
— E aí, seus putos? — Virei-me ao ouvir a voz de César, que
chegava acompanhado de PH. — Demoramos?
Estalamos nossas mãos no aperto tradicional e já conduzi os
dois para apresentar a Magnólia. Havia um sorriso congelado no
rosto dela e eu estava doido para dar uma cutucada, sem acreditar
que a garota estava babando pelos meus amigos.
— Você é a corajosa que vai nos coreografar? — PH falou com
ela rapidamente enquanto eu dizia seus respectivos nomes.
— Pode me chamar de Cesoti, boneca.
— Vocês também podem me chamar de Lia. Sei que é mais
prático. — Ela colocou a mochila velha num canto no chão e deu um
giro pelo espaço, sem sair do lugar. — Bom gente, eu avisei ao Eros
que não faço esse tipo de trabalho. Eu sou coreógrafa, mas lido com
bailarinos, então precisarei conhecer um pouco sobre vocês, como
se movem, como é a percepção de cada um em relação à música.
Isso é o primordial para ter em mente o que posso exigir de vocês.
Algo me dizia que meus amigos não levaram nem uma palavra
a sério, mas Pedro Henrique me olhou e sorriu, erguendo o polegar.
Se ele estava satisfeito, era isso que importava para mim.
— Posso garantir que eu danço bem pra caralho — falou
Guilherme, doido para chamar a atenção de Magnólia.
— Veremos — ela respondeu sem dar corda a ele e encarando
PH. — Você é o noivo, certo?
— O próprio.
— Preciso saber onde acontecerá a recepção do casamento e,
se possível, gostaria de ir ao local ver o espaço que terei para
coreografar vocês.
Passei a observar de longe enquanto PH se aproximava dela,
confirmando seu pedido. Magnólia parecia mais profissional do que
eu tinha imaginado e estava realmente surpreso. Ao chegarmos ali
ela tinha se mostrado insegura, mas talvez tenha sido pura
impressão minha, pois vê-la falar com tanta propriedade me levava
a crer que se garantia bastante no que fazia.
— Se você tiver em mente músicas específicas, pode me
passar — disse ela. — Para uma dança de padrinhos, o ideal é que
não passe de cinco minutos, e eu vou sugerir um compilado de
cinco ou seis músicas para ficar uma coreografia bem diversificada.
— Preciso passar as músicas agora? — PH perguntou. —
Porque não cheguei a pensar em nada.
— Hoje não, mas seria legal não demorar muito pra decidir. E
é interessante pensar em músicas que a noiva goste. O intuito de
uma dança de padrinhos é surpreender a noiva, mas principalmente
divertir os convidados. Então vamos trabalhar com o lado cômico,
mas também sensual.
— Não quero ninguém rindo da minha cara — disse Cesoti,
tirando a camisa sem motivo algum. — Prefiro deixar as mulheres
com tesão.
Magnólia deu a ele um sorriso do tipo que costumava me
direcionar, ou seja, indicava que gostaria de mandar que ele fosse
tomar bem no meio do cu, mas se manteve quieta e foi até a
mochila no chão. Ela agachou e mexeu nos bolsos até pegar seu
celular e voltar para perto de nós.
— O que vocês gostam de dançar? — perguntou sem olhar
para ninguém. — Dance, pop, funk, pagode...
— Você quer dizer, dançar agora? — Eduardo retrucou,
sorrindo. — Não estamos numa festa. Seria ridículo.
A garota se virou para ele com as mãos na cintura, sem se
incomodar em ser bem mais baixa.
— E pretende dançar num casamento com centenas de
pessoas assistindo? — Riu da cara do meu amigo. — Dá tempo de
desistir?
Então ela decidiu ignorar todo mundo e passou por nós, indo
na direção da parede espelhada e amarrando o cabelo num rabo de
cavalo no topo da cabeça. Colocou Bang Bang da Jessie J e Ariana
Grande para tocar e deixou o celular num canto. Nenhum de nós
ousou se mexer enquanto o corpo magro ganhava vida e Magnólia
dançava sozinha, sem se importar com a nossa presença.
— Onde você a encontrou? — perguntou PH, sussurrando em
meu ouvido e apertando minha nuca. — Já pegou, está pegando ou
ainda vai pegar?
— Longa história — respondi, observando a Barbie Dark
sacudir o corpo com maestria. Ela era boa no que fazia. Muito boa.
Os outros idiotas estavam vidrados nela, que dançava de um
jeito que seria impossível acompanhar. Até que ela começou a nos
encarar através do espelho e deve ter percebido que não sairíamos
do lugar, portanto, decidiu vir até nós. The Middle começou a tocar e
ela fechou os olhos, jogando os braços para o alto e se movendo
lentamente.
PH me olhou e encolheu os ombros, rendendo-se e se
aproximando de Magnólia. Pelo menos ela tinha parado com os
passos difíceis e dançava como uma pessoa normal no meio de
uma boate. Acabei me deixando levar quando Eduardo e Guilherme
também se juntaram à dança e tentei fingir que estava em alguma
festa. Faltava só a cerveja.
Magnólia se dividia um pouco com cada um de nós e eu sabia
que enquanto nos movíamos de forma inocente, ela estava ali
avaliando tudo que poderíamos ou não fazer numa coreografia.
Flagrei um sorriso dela quando dançou recuando com graciosidade,
enquanto Cesoti avançava na direção dela. Conhecia muito bem
meu amigo, sabia que se a bailarina desse mole, acabaria na cama
dele em um piscar de olhos. Ele era um filho da puta charmoso.
Closer, de The Chainsmokers foi a próxima faixa e eu
simplesmente amava aquela música. Eu me soltei um pouco mais e
fui atrás dos dois que dançavam mais perto do espelho. Não podia
deixar César ciscar naquela área e colocar todo meu plano a perder.
Modéstia à parte, eu tinha um ótimo controle de corpo e me
posicionei ao lado deles, chamando a atenção de Magnólia. Fiquei
meio puto com o olhar condescendente que ela me lançou ao se
virar para mim, como se eu fosse uma criança precisando de
incentivo. Engoli a vontade de falar alguma coisa e mexi o corpo
devagar, começando a rebolar, quando um trecho mais sensual da
música começou a tocar.
Que Cesoti fosse à merda, puxei a cintura de Magnólia e a
obriguei a encaixar os joelhos entre os meus enquanto
movimentávamos nossos quadris. Seus olhos verdes se fixaram em
mim e seus braços balançaram acima da cabeça. Achei que fosse
jogá-los ao redor do meu pescoço, mas ela estava mais ocupada
prestando atenção em tudo que acontecia ao nosso redor. A música
então acabou e outra começou; Magnólia se afastou
repentinamente, batendo palmas e correndo até o celular.
— Viram só como ninguém se machucou?
Mas que merda tinha acabado de acontecer que a garota me
deixou que nem um idiota dançando sozinho? Respirei fundo e me
distanciei um pouco, ainda me sentindo um babaca.
— É, mas algo me diz que você não vai pegar tão leve assim
— disse PH, todo sorridente para ela.
— Hoje vou só mostrar alguns passos para vocês e quero que
me sigam. Nada muito difícil, é apenas para eu sentir se possuem
boa coordenação, ritmo e, principalmente, maleabilidade. Espalhem-
se, por favor.
Magnólia se virou de frente para o espelho e inclinou
levemente o corpo para frente, cruzando a perna direita à frente da
outra e a retornando ao lugar, repetindo o movimento três vezes e
na quarta, adicionou também os braços, jogando-os para o alto,
traçando meio círculo ao trazê-los novamente para baixo e depois
os jogando para frente. Eu já tinha me perdido um pouco quando ela
mudou a dança, endireitando a postura com as costas retas,
empurrando um ombro para trás em sincronia com os passos que
alternavam os pés de acordo com o ombro usado. Complicou ainda
mais quando incluiu um movimento com jogo de quadris, tocando a
ponta do pé de lado para a esquerda, depois para a direita, isso
tudo usando também os braços que acompanhavam a mesma
direção.
— Quero que tentem pegar esses passos — disse ela ao parar
de dançar e nos encarando através do espelho. — Sem música por
enquanto, só na marcação. Começando com a perna direita, joelhos
flexionados, isso é importante. Vai bater o calcanhar lá na frente do
pé esquerdo e voltar à posição inicial. Três vezes.
É claro que cada um fez em um ritmo diferente e na hora
pensei que nada daquilo daria certo. O vexame em pleno
casamento seria enorme e seríamos motivo de piada por muitos
anos.
— Não dá pra colocar uma música? — perguntou Eduardo. —
Fica meio estranho assim.
— A música tem um ritmo bem acelerado, só vai complicar. —
Ela se aproximou do celular novamente e mexeu até Blinding Lights
da The Weeknd começar a tocar. — Vou passar a coreografia inteira
para observarem.
Acho que todos nós acabamos nos entreolhando enquanto
Magnólia dançava a coreografia com muitos braços e muitas
pernas. Seria impossível decorarmos todos aqueles movimentos,
com aquela aceleração e do jeito que ela fazia. Quando terminou,
sem um pingo de suor na pele, desligou o som e virou-se para nós.
— Então, preciso avisá-la que essa não é uma música que
pretendo colocar na coreografia — avisou meu amigo Pedro
Henrique.
— Não importa, eu a escolhi por ser muito marcada, boa para
aprender. E do início ao fim essa dança vai obrigar vocês a usarem
braços e pernas coordenados. Só depois que estiverem dançando a
coreografia inteira de forma impecável, nós passaremos para o
verdadeiro ensaio.
Nenhum de nós estava realmente feliz em ter que receber
ordens e acatar tudo o que a branquela gótica mandava, porém,
nosso esforço era por um bem maior. PH parecia bastante
empolgado e era óbvio que queríamos que tudo ficasse incrível,
afinal, nossas imagens estavam em jogo. Se a dança ficasse muito
ruim isso renderia assunto por muito tempo entre todos os nossos
amigos.
Portanto, muito a contragosto, aceitamos treinar os passos que
Magnólia repetiu incansavelmente diante do espelho, sem música,
de forma lenta, até que todos tivessem decorado aquele trecho que
ela queria. O que era apenas a pontinha do iceberg, porque se
tratava da coreografia dos quarenta segundos iniciais da música.
Enquanto eu observava o meu reflexo na parede espelhada,
rezava para que aquilo ficasse melhor quando o som fosse ligado,
porque olhando dessa forma seca, parecia algo horroroso. Eduardo
era mais duro do que eu tinha imaginado e o movimento inicial com
a pisada cruzada o fazia parecer ridículo. O passinho em que
jogávamos um ombro de cada vez para trás não estava deixando
Magnólia satisfeita e ela insistiu veemente para que pegássemos o
jeito.
— Está vendo que não é só jogar o ombro? — perguntou
parando ao meu lado e repetindo o movimento. — Eu o jogo pra
trás, mas também estou empurrando o pé no chão. Do jeito que
você está fazendo, fica todo duro.
Eu era mesmo especialista em coisas duras, mas não quis
jogar aquilo na cara dela porque a branquela era arisca e sempre
tinha uma patada guardada prontinha para mim.
— Essa mexida no quadril é bem coisa de gay, não é? —
reclamou Cesoti, mais à frente, para ninguém em especial.
Pensei em responder e o mandar se foder porque detestava
quando ele dizia coisas tão preconceituosas, mas acabei me
desconcentrando porque Magnólia levantou rápido a cabeça e
chegou a se virar na direção dele, mas então me encarou,
parecendo espantada. Entendi o que estava acontecendo quando
ela me lançou um sorriso compreensivo e apertou minha mão.
— Ele é ainda mais babaca que você, impressionante —
sussurrou para mim e se afastou, voltando a se aproximar de
Cesoti. — Na verdade, saber mexer bem os quadris é coisa de
quem sabe usar o corpo, independente da orientação sexual da
pessoa. Há quem diga que influencia até na melhoria do sexo. Mas
como nem todo mundo tem talento, eu preciso dar essa aula inicial
para vocês.
— Princesa, princesa... Esse rostinho aqui faz milagres. Nem
imagina do que ele é capaz.
— Eu imagino sim — respondeu ela, alheia ao fato de que
estávamos chocados com a sua coragem. — Aposto que enquanto
está de boca fechada você atrai um monte de mulher. E homem,
claro.
— Homem é o caralho!
Magnólia riu, balançando a cabeça.
— Você acha que tem a palavra hétero escrita na testa?
— Está querendo dizer que eu pareço gay?
— Não. Estou querendo dizer que não tem nada na sua
aparência que certifique você não ser. Eu conheço alguns bem mais
sarados e bonitos, inclusive, que dão um banho na sua
masculinidade frágil.
Guilherme estava ao meu lado e me encarou, caindo na
gargalhada, enquanto César estufava o peito e olhava incrédulo
para a Barbie Dark, que voltou à sua posição como se nada tivesse
acontecido. Certamente ela tinha acabado de ganhar muitos pontos
comigo pela forma como lidara com Cesoti, que gostava de agir de
forma intimidadora.
Estava cansado quando Eduardo fechou o estabelecimento e
todos nos despedimos depois de uma hora e quinze minutos.
Tínhamos ensaiado o máximo possível e não demorou para
descobrirmos que Magnólia era pequena, magra e possuía olhos
grandes de boneca, mas era uma carrasca. Sentia minha camisa
grudada no corpo porque tinha suado tanto quanto uma noite na
academia.
— Você vai me dar carona de novo até seu condomínio — ela
avisou, caminhando na direção do meu carro sem esperar por mim.
— De lá eu chamo meu uber.
— Sim, senhora.
— Há quanto tempo vocês são amigos?
— Muitos e muitos anos — respondi, destravando e entrando
no carro. — E eu já sei que você detestou todos eles.
— Não todos, só o César. Tenho ranço de gente homofóbica e
ele claramente é um desses.
Magnólia sentou no banco ao meu lado e enquanto eu dava ré
para sair da vaga e manobrar o carro, ela começou a se contorcer,
braços e cotovelos para lá e para cá, até que simplesmente puxou o
top pela cabeça e o guardou dentro da mochila.
— O que você está fazendo? — perguntei, preocupado que ela
começasse a se despir dentro do meu carro.
Meu pensamento até parecia distorcido demais levando em
consideração o meu histórico, mas Magnólia nua na minha frente
não estava em meus planos.
— Eu? — perguntou ela, me encarando e encolhendo os
ombros. — Só tirei o top, é novo e estava machucando no pescoço.
Aproveitei o sinal fechado e olhei bem para a cara dela,
tentando descobrir se estava me sacaneando. Ela podia muito bem
só fingir que me achava gay, quando na verdade tudo poderia ser
um plano para me atrair.
— Sério?
— O quê?
— Quem tira a roupa ao lado de alguém que mal conhece? —
questionei quando ela me ignorou.
— Eu acho que você só gosta de implicar, Eros. Não fiquei
pelada, nem mostrei nada. Eu hein... Tenho peito pequeno, nem dá
pra marcar na blusa larga. Podia ter tentado barganhar um silicone
com você, inclusive.
Ela era louca, não tinha explicação. Prendi o riso quando se
ajeitou no banco e apertou a camisa contra o corpo, evidenciando o
volume dos seios. Eu não podia simplesmente bater com o carro
para olhar com atenção ao que a Barbie estava fazendo, mas dava
para perceber rapidamente que ela realmente não possuía fartura
naquela região do corpo, mas também não era totalmente reta.
Havia carne para apertar, só era apenas proporcional à sua
estrutura corporal, ou seja, pequena.
— Quem eu quero enganar? — falou e eu comecei a achar
que gostava de falar sozinha. — Nunca colocaria silicone, acho uma
besteira.
— Por qual motivo?
— Ah, sei lá. Acho que é coisa minha mesmo, não me
considero tão vaidosa ao ponto de fazer uma cirurgia estética. Tanta
gente acaba morrendo por coisa boba...
— Meu pai nunca perdeu um paciente em mais de trinta anos
de profissão. Eu e Odin esperamos seguir o mesmo caminho, pois a
grande maioria das mortes está diretamente ligada à qualificação do
profissional.
— No caso, a falta dela, né?
Assenti em silêncio, sem querer entrar muito no assunto
porque eu e Magnólia já trocávamos farpas demais para adicionar
mais um problema nessa relação conturbada. Tudo que eu desejava
era manter a paz, dançar no casamento de Pedro Henrique e
pronto, nós dois não precisaríamos mais nos aturar.
Ela também acabou se distraindo ao pegar o celular e engatar
numa conversa com alguém. Chegou a mandar um áudio avisando
que em alguns minutos pegaria o uber para casa e pensei que podia
ser a irmã.
— Pode me deixar na portaria mesmo — disse ela quando
liguei a seta para entrar no condomínio.
— Quer que espere o carro chegar? — perguntei, já que eram
quase dez da noite.
— Você? Sendo cavalheiro? Não precisa se esforçar tanto.
Balancei a cabeça depois que passei pelos portões e
estacionei diante de uma das casas ali do início e desliguei o motor.
Magnólia se apressou em pegar suas coisas e se virou para me
olhar, já com a mão na maçaneta.
— Você faz uma ideia muito errada de mim, Barbie Dark.
Ela deu um sorriso que só movimentou um lado da boca.
— Vamos ver se você me surpreende positivamente —
declarou. — Pode marcar outro ensaio para a sexta.
Abri a boca para responder que não sabia se todo mundo
estaria disponível numa sexta-feira à noite, mas Magnólia já estava
murmurando um “boa noite” e saltando do carro. Olhei pelo espelho
retrovisor quando ela deu uma corridinha até a portaria e um carro
parou na entrada do condomínio. Voltei a dirigir até a minha casa e
depois que entrei na garagem e abri a porta, a luz que se acendeu
no interior do carro destacou alguma coisa colorida no chão do lado
do carona. Estiquei meu corpo até alcançar o tecido e puxei o top
preto que a garota tinha tirado. Deve ter caído do bolso da mochila
quando ela mexeu para tirar o celular e, na escuridão do automóvel,
não viu o que aconteceu. Era inacreditável o talento que tinha para
deixar seus pertences para trás.
Eu ainda estava dentro do uber, mas a poucos minutos de
casa, quando recebi uma mensagem de Eros me avisando que eu
tinha esquecido meu top no carro dele. Quis me bater por ser tão
descuidada, só não fiz isso para não assustar o motorista. Limitei-
me apenas em responder a mensagem e pedir para que guardasse
para mim, ainda mandei uma alfinetada, pedindo que ele não
usasse minha roupa para não destruir a elasticidade do tecido.
— Noite longa? — o homem de uns trinta anos, diante do
volante me perguntou lançando um olhar interessado pelo espelho
retrovisor.
— Sim.
Tinha sido mesmo, eu sentia a camiseta incomodar minha pele
depois que o suor secou no tecido. Há algum tempo não mantinha
uma rotina de exercícios aeróbicos, com exceção das vezes em que
precisava coreografar um flash mob — que era bem raro.
Ultimamente vinha dando preferência à yoga dentro de casa,
portanto, aquela horinha com os rapazes me fez suar um pouco.
Mentalmente também estava esgotada porque não foi fácil
lidar com um dos amigos de Eros. Eu já fui esperando conhecer
homens com o mesmo estilo de vida que o meu contratante e que
deviam compartilhar personalidades semelhantes, mas César era,
definitivamente, um caso à parte. Preconceituoso e muito arrogante,
ele conseguiu ocupar com louvor o lugar de Eros Montenegro. Esse,
inclusive, até se tornava legal perto do amigo babaca.
— Está com uma carinha de cansada mesmo — o motorista
me respondeu, muito sorridente. — Trabalha fazendo o que, linda
desse jeito? Ou estava passeando?
Desviei o olhar para meu celular quando o aviso de notificação
me atraiu e abri a conversa com Eros, levando um choque ao ver a
imagem que ele me enviou. O idiota estava sem camisa na frente de
um espelho, com o meu top de renda preta atravessado em
diagonal, preso entre o pescoço e o ombro direito.

Não cabe, infelizmente.


Achei muito sexy, mas não serve para o meu tamanho.
OBS: não arrebentei as costuras, fica calma.

Aquilo acabou me arrancando uma gargalhada porque Eros


era ridículo. Como podia ser um cirurgião de sobrenome tão
renomado e ser tão paspalho daquele jeito? Dei zoom na foto para
observar de perto o tanto de músculos que o homem tinha, muito
mais que Odin, pelo que eu me lembrava quando o vi só de cueca
no dia da festa. Eros tinha aquele tipo de barriga irritante da qual
nunca cheguei muito perto, toda trincada e exibindo os gomos do
abdômen. Era uma grande perda para o público feminino...
— Não quer conversar?
Levantei os olhos para encontrar o motorista do uber virando
rapidamente a cabeça para trás e descendo o olhar pelo meu corpo.
Por sorte, minha camisa não marcava, mas o ar condicionado do
carro estava tão forte que me dei conta que meus mamilos estavam
ligados e ele podia ver alguma coisa. Era aquele olhar que causa
um arrepio ruim na gente, uma coisa vulgar, como se apenas
existíssemos para o prazer masculino.
— Estou um pouco ocupada — respondi, voltando a encarar
meu celular e digitando para Eros.

Que bom que você tem dinheiro suficiente para


comprar outro top caso esse fique inutilizado.
E eu estava só brincando, era óbvio que não caberia. Já viu o seu
tamanho?
Agora vou desligar porque preciso fazer o motorista
parar de me olhar como algo comestível. Boa noite.

Aproveitei e mandei uma mensagem para minha irmã,


avisando que estava quase chegando em casa e mandei o print da
tela do aplicativo. Quando ia guardar o celular na mochila, recebi
uma resposta de Eros e abri por curiosidade.

Vou fazer uma ligação em vídeo, entre


na minha conversa.

Só tive tempo de ler e reler antes que o telefone começasse a


tocar pelo Whatsapp e aceitei a ligação, vendo o rosto de Eros
entrar logo em foco.
— Oi amor, tudo bem? — perguntou ele, sorrindo.
Amor? O loiro estreitou os olhos para mim enquanto meu
cérebro processava o que estava acontecendo, até que finalmente
entendi o que ele pretendia fazer.
— Tudo bem, estou a caminho de casa.
— Ótimo, já estou esperando você, acabei de chegar. Saí
tarde do batalhão hoje porque rolaram operações nas favelas e o
dia foi puxado, mas levamos alguns vagabundos em cana.
Como Eros conseguiu pensar em tudo isso tão rápido? Fiquei
surpresa, mas não deixei transparecer minha confusão porque vi
que surtiu efeito e o motorista ficou caladinho.
— Faço uma massagem em você quando chegar em casa —
falei, sem saber direito como manter aquela conversa, mas logo me
arrependi quando vi Eros arquear a sobrancelha de forma sacana.
— Está no uber, né? É homem ou mulher dirigindo?
— Homem.
— Vira a câmera pra eu dar uma olhada no cara — ordenou
meu namorado fake, que nunca na vida deve realmente ter entrado
numa favela. Eu fiz o que ele pediu e ouvi: — E aí, camarada? Leva
minha patroa direitinho pra casa, valeu?
— Claro, estou levando — disse o homem, depois pigarreou.
— Chegaremos em oito minutos.
— Certo — Eros respondeu e eu virei a câmera. — Vou trocar
de roupa para te esperar, amor. E vou contar esses oito minutos. Até
daqui a pouco.
Ele mandou um beijo e eu desliguei, ainda sem acreditar no
que tinha acontecido. Na conversa do Whatsapp, recebi uma
mensagem perguntando como o motorista estava reagindo.

Agora ele nem olha para a minha cara.

Ótimo, assim que gosto.

Você é meio louco, mas obrigada por isso.

Não foi nada. Penso logo na minha sobrinha sendo


assediada e fico louco. Boa noite, Barbie Dark. Se cuida.

Boa noite, Eros.

Foi o tempo de guardar meu celular e o motorista piscar o


alerta para parar na porta do meu prédio. Não me dei ao trabalho de
agradecer ou me despedir do motorista, senti-me aliviada quando
desci do carro e caminhei até a portaria, sem olhar para trás. Nem
conseguia acreditar que o babaca do Eros não era tão babaca
assim.

Na sexta à noite, quando cheguei na casa dele, encontrei o


cirurgião e Guilherme curtindo a piscina toda acesa. Estaquei no
lugar, em choque, porque não achava ser possível Eros ter
esquecido do combinado. Horas antes eu tinha marcado no mesmo
horário com ele, para fazermos a mesma programação que fizemos
na quarta-feira: eu ia até sua casa e de lá para o ensaio.
— Olha quem chegou! — disse Guilherme, que me viu
primeiro. — Entra aí, Magnólia!
Abri a boca para responder, mas nem sabia o que falar para os
dois idiotas. Eros quando notou que eu já estava ali, pelo menos
não teve a cara de pau de me convidar para um mergulho. Ele
apenas saiu da piscina majestosa com degraus largos e veio na
minha direção, esfregando as mãos no cabelo. Foi difícil ignorar o
corpo enorme e sarado demais na sunga azul, que se tornava até
vulgar se você olhasse por muito tempo. Eros realmente era todo
grande e não no sentido apenas de ter músculos inchados, mas
de... bem, sua constituição corporal era grande. Até em locais mais
íntimos. Como seria o Odin? Estava curiosa para saber.
— Não vimos a hora passar, foi mal — falou, passando por
mim e agitando o braço para me chamar. — Quer comer? Estamos
fazendo churrasco.
— Como assim churrasco?
Ele parou e me olhou quando chegamos na área da varanda
onde ficava a cozinha gourmet, com todos os aparelhos em inox e
aquela coifa enorme.
— Bem, geralmente corta-se a carne e a coloca na
churrasqueira — explicou, se achando muito engraçado.
— Eros, temos ensaio marcado para começar em quinze
minutos.
O loiro jogou os braços para o alto e se espreguiçou com
tamanha cara de pau, antes de se virar para a bancada de mármore
e puxar uma bandeja com pedaços prontos de carne.
— É, bem, o ensaio vai acontecer aqui em casa só comigo e
com Guilherme. Não é fácil fazer as pessoas desmarcarem
compromissos numa sexta à noite. Sexta é o dia internacional do
sexo.
— O quê?
— Abre a boca. — Não tive tempo de reagir antes que ele
enfiasse um pedaço de... hm... gostoso e macio... na minha boca e
me obrigar a mastigar. — Sexo. Também não sabe o que é?
Precisarei explicar? Sei que é novinha, mas não imaginava que
fosse virgem e...
Tapei a boca do idiota, que estava rindo e me inclinei para o
lado, capturando mais um pedaço do que parecia ser uma deliciosa
picanha. Eros segurou meu pulso e afastou minha mão, descendo
até seu peito e me obrigando a alisar a pele úmida daquela região.
Estava tocando Señorita, de Shawn Mendes & Camila Cabello
enquanto o filho da mãe esboçava uma expressão de puro prazer
ao se acariciar com a porra da minha mão.
— Pelo menos hoje não está fedendo a camarão — murmurou,
sorrindo de forma bem sarcástica.
Quando me soltou, se virou de costas e deu a volta pela
bancada, em movimentos ao ritmo da música sensual. Eu me flagrei
observando a bunda aparentemente dura dentro da sunga, as
costas largas e fortes, as coxas grossas e musculosas. Aquela era a
primeira vez que eu parava mesmo para reparar no corpo de Eros e
estava chocada com o tamanho dele, chegava a ser agressivo aos
meus olhos. Ele tinha músculos delineados em todas as partes do
corpo, tinha até medo de tocar. Respirei fundo, engoli em seco e me
lembrei que não podia ficar excitada por ele.
Gay. Gay. Gay. Gay.
Talvez assim meu cérebro entendesse que era o irmão errado,
já que o coração era idiota demais e tinha acelerado e bombeado
sangue quente para as minhas veias. Cruzei os braços com medo
que meus mamilos enrijecidos ficassem evidentes sob o top e a
blusa, observando o loiro tirar pão de alho da churrasqueira.
— Eros, que merda está acontecendo aqui? — perguntei ao
recuperar a razão. — Não vai ter ensaio?
— Vai sim, comigo e com o Guilherme.
— Você não pode me fazer vir até aqui para ensaiar duas
pessoas. Que estão na piscina, inclusive. Não foi esse o combinado
entre nós.
Ele começou a cortar os pães sem tirar o sorriso do rosto e
balançou a cabeça. Salivei para provar um pedacinho e Eros
parecia saber exatamente o que eu pensava, porque jogou um
dentro da própria boca e me ofereceu outro, que eu peguei
imediatamente — e queimei a língua ao morder.
— Vamos terminar com a carne que preparei e depois
ensaiamos.
— Vocês estão bebendo, Eros — comentei, vendo as garrafas
de cerveja ao redor da piscina. — O ensaio não será nem um pouco
útil.
Ele comeu mais um pedaço de pão de alho e deu a volta,
passando um braço pelo meu pescoço e grudando o corpo gelado
em mim ao me fazer virar na direção do jardim. Era bem difícil
pensar direito sabendo que ele só estava de sunga e eu sei que
parecia imaturidade minha, mas não era comum na minha vida ver
um corpo daquele seminu.
— Achei que você fosse se interessar em vir aqui — disse,
sussurrando em meu ouvido enquanto apontava a cabeça para o
irmão.
Odin tinha acabado de passar pelas portas de vidro da casa,
usando apenas uma sunga branca, e a fofinha da Eva apareceu
correndo atrás dele com um biquíni colorido e braçadeiras com
estampa de flamingos. Os dois estavam com cabelo molhado, o que
indicava que já deviam estar curtindo a piscina antes mesmo de eu
chegar.
— De nada — Eros sussurrou de novo.
— Você me chamou aqui para ver seu irmão tomar banho de
piscina?
— Que tal entrar junto com ele?
— Não estou de biquíni, Eros — respondi, tirando o braço dele
do meu ombro e me virando de frente. — Quem toma banho de
piscina à noite? Só mesmo rico que não tem nada pra fazer da vida.
— Você está de top — retrucou, passando um dedo pela alça
que a camisa de gola cavada deixava exposta. — E short de cotton
preto. Ninguém vai ver sua calcinha ou seus peitinhos.
Então ele segurou a bandeja de carne e a de pão de alho e
piscou para mim, enquanto me deixava sozinha e caminhava de
volta para a área da piscina. Odin e Eva olharam para ele e por
estarem com os rostos virados para a mesma direção, acabaram me
vendo ainda parada no mesmo lugar. A menina quando me viu, veio
correndo falar comigo, exibindo um sorriso animado.
— Oi tia!
— Oi, Eva. — Devolvi o sorriso e toquei a cabeça dela. —
Tudo bem? Que biquíni lindo!
— Bigada! E o seu?
— Eu não trouxe um — respondi, encolhendo os ombros.
A criança segurou firme em minha mão e me puxou,
arrastando-me até onde todo mundo estava e gritando para que
ninguém deixasse de ouvir:
— Papai, posso empestá um biquíni pa Manólia?
Ri sozinha pela forma como ela pronunciou meu nome, que
realmente podia ser um pouco complicado para alguém da idade
dela.
— Não acho que os seus biquínis vão caber nela, filha — Odin
respondeu, sentado na borda da piscina e se levantando. — A
Magnólia é bem maior que você.
Pelo menos ele não soltava piadinhas ridículas como o irmão
costumava fazer. O loiro lindo se aproximou e tocou meu ombro,
quase me fazendo desmaiar ao seu inclinar e beijar meu rosto. De
repente, me lembrei que eu devia retribuir o cumprimento e deu
tempo de virar o rosto antes que parecesse uma antipática.
— Bem-vinda. No que Eros meteu você desse vez?
— Combinamos de ensaiar e aqui estou eu — respondi.
Não olhe para a sunga dele, Magnólia. Não olhe para a sunga
dele.
Respirei fundo e fixei os olhos bem no rosto de Odin, sorrindo
para o homem. Ele me devolveu o sorriso e balançou a cabeça,
lançando um olhar estranho para o idiota do irmão.
— Bom, agora que já veio, fique à vontade. Eros ofereceu algo
para beber?
— Não, mas estou bem. Na verdade, eu nem sei se vou ficar.
Eles vão beber até tarde, não tem como ensaiar assim... E eu moro
longe.
— Onde?
— Grajaú.
— Faça-o levar você em casa — disse Odin como se fosse
uma equação muito simples.
Eu caí na gargalhada porque era a única resposta que tinha
para aquela frase.
— Estamos falando da mesma pessoa? — perguntei, olhando
na direção de Eros, que caminhava dentro da piscina com Eva
agarrada às costas dele.
— Você bebe álcool? — Estremeci quando Odin tocou minha
cintura e me fez acompanhá-lo de volta até a área gourmet. — Se
sim, vou preparar um gin tônica pra você. Já estou indo fazer um pra
mim de qualquer forma. E se Eros não levá-la em casa, eu levo,
fique tranquila.
— Eu... eu... sim, bebo. — Baixei o rosto e fechei os olhos,
sem entender nada do que estava acontecendo. — Eros falou
alguma coisa pra você?
— Sobre?
Encarei Odin, que me olhou firme como se esperasse uma
resposta reveladora e apenas suspirei. Eu estava fora do meu
habitat, não sabia por que de repente tinha sido incluída num
momento íntimo de milionários à beira da piscina.
Quando o loiro se virou e puxou duas taças de cristal do
suporte preso a um dos armários, ele falou, de costas para mim:
— Parece que Eros não tem sido a melhor pessoa com você,
pelo visto. Isso é ele te dando intimidade, caso não saiba. Somos
pessoas reservadas, não deixamos qualquer um se aproximar. Você
logo vai ver que nossas amizades são todas antigas, somos famílias
tradicionais.
Ricos de berço, que não se misturavam com a gentalha. Foi
quase o que entendi.
— Eros me trata mal na maior parte do tempo — respondi,
observando o preparo das bebidas e Odin sorriu.
— E você revida, tenho certeza.
— Lógico. Não estou aqui para aturar desaforo.
— E é por isso que ele abriu nossa casa pra você — disse
Odin, entregando-me uma das taças e brindando comigo. — Não
são todas que não puxam o saco, que não queiram se beneficiar,
serem mimadas. Ou que não peçam por um silicone.
Ele acabou rindo depois de comentar a última frase e eu
pensei no que tinha acabado de dizer. Acreditava que existissem
mesmo pessoas interesseiras a ponto de só pensarem em se
aproximar de outras por dinheiro ou, no caso daquela família, pela
beleza. Pelo combo, provavelmente. Era difícil ignorar todo o
impacto que eles causavam e eu me lembrei do carrão que Eros
dirigia, que devia custar o valor de uns cinco apartamentos iguais ao
que eu morava. E aquela casa, certamente custava mais de dez
milhões pelo estilo da construção e localização privilegiada.
— Eu beijei Eros à força na primeira vez que a gente se viu —
comentei, horrorizada depois do que ouvi Odin dizer. — Por isso ele
foi tão ríspido. A garçonete atacando o ricaço.
— Normal. Eu já encontrei uma empregada nua na minha
cama.
Abri e fechei a boca, horrorizada. Imagine se ele soubesse o
que eu estava fazendo segundos antes de beijar o irmão. Engoli em
seco, sentindo-me envergonhada e meu coração acelerou quando
ele me abraçou pelos ombros e grudou as laterais dos nossos
corpos. Meu pai misericordioso, eu queria fazer justamente o que a
tal empregada tinha feito.
— Já que veio até aqui, beba um pouco, coma o que tiver
vontade e tente relaxar. Caso não coma carne, eu fiz uns espetinhos
vegetarianos e grelhei tomate, batata com alecrim... Tem abacaxi
grelhado também.
Quem come legume num churrasco, gente? Encontrei o
primeiro ponto que nós dois, definitivamente, não tínhamos em
comum. Não que eu fosse uma pessoa excessivamente carnívora,
até já tinha pensado em parar de comer carne, mas era uma
tentação muito mais forte que a minha vontade.
— Obrigada — decidi apenas agradecer e ficar quieta.
Quis chorar e reclamar quando ele se afastou e deixou a taça
na borda da piscina antes de entrar na água, exibindo aquela bunda
incrível moldada pela sunga branca. Tentei disfarçar e não secar
muito o material, mas flagrei Eros me observando e achando graça
de alguma coisa.
— Vem dar um mergulho, Barbie Dark! Se você se afogar,
Odin resgata.
Controlei a vontade de levantar meu dedo do meio pois Eva
estava presente e eu não sabia como era a relação dela com
palavrões e coisas do tipo. Escolhi uma das largas cadeiras de
piscina, daquelas que a gente conseguia deitar e descansar, e
coloquei minha bebida na mesinha ao lado.
Fiquei alguns minutos bebericando e observando o céu, a noite
bonita, apesar de quente, a paisagem sem cabeamento, sem fio
passando pelos postes, tudo limpo e organizado.
De repente, Eva saiu da piscina e correu até onde eu estava,
balançando os braços com as boias.
— Sem correr na área molhada, Eva! — gritou Odin e a
menina imediatamente desacelerou.
Achei muito meiga a forma como ela reagiu ao levar bronca,
baixando a cabeça e encarando os pequenos pés enquanto se
aproximava de mim. Quando me olhou, senti o impacto daqueles
olhos tão claros e idênticos aos de Odin.
— Tia, vem pá piscina!
— Não trouxe biquíni, lindinha. A tia vai só ficar olhando.
— Papai! — Ela se virou para ele, gritando. — A Manólia pode
entá de rôpa na piscina?
— Só se ela quiser, Eva. Pare de incomodar a Magnólia.
— Você não está incomodando — sussurrei e pisquei para ela,
que abriu um sorriso feliz. — Prometo que da próxima vez eu trago
um biquíni, ok?
Levantei os olhos para a figura de Eros que tinha saído da
água e vinha na nossa direção. Foi impossível não acompanhar os
movimentos que suas mãos fizeram ao ajeitar a sunga e pensei que
os homens com quem ele ia para a cama deviam gostar bastante
daquele pacote todo.
— Venha cá que eu preciso falar com você — disse ao parar
ao meu lado, com a mão esticada.
Revirei meus olhos, mas me levantei porque parecia algo
urgente. E quando eu coloquei minha mão sobre a palma dele, seus
dedos se fecharam ao redor dos meus, Eros se inclinou muito rápido
e passou os braços ao redor da minha cintura, erguendo meu corpo
no colo e grudando meu peito no dele.
— Não! — gritei, batendo em seus ombros. — Eros, pare! Não
faz isso!
— Eva, tire os tênis dela — ordenou, enquanto eu puxava os
cabelos dele.
— Me solta, Eros!
— Eros, deixe-a em paz — ouvi a voz de Odin. — Ela não
quer.
Ele ignorou completamente o que o irmão falou e a pestinha da
sobrinha fez o favor de ajudá-lo, puxando os tênis dos meus pés e
arrancando as minhas meias. Não podia chutar Eros porque
acertaria na menina, então me vi refém daquela pegada forte dele.
Não podia negar, o idiota tinha força e seus braços me esmagavam,
minha camisa estava ensopada por causa do seu corpo molhado.
Pior de tudo: tinha certeza que aquilo que minhas pernas tocavam
era a porra da sunga dele.
— Você é um tremendo babaca mesmo, sabia? — xinguei sem
me importar mais com a presença de Eva e ele só riu, correndo
como um louco na direção da piscina.
Só tive tempo de fechar os olhos e agarrar os cabelos dele
com força, para machucar de propósito porque ele merecia. Afundei
na água ainda presa pelos braços duros e abri os olhos, flagrando o
sorriso do idiota, muito orgulhoso por ter feito o que fez.
Assim que soltei Magnólia, ela logo emergiu e eu fui junto,
recebendo um jato de água na cara, que ela fez questão de jogar
em mim.
— Quantos anos você tem? — perguntou, toda enfezada.
— Trinta e um.
— Parece ter quinze!
Sorri abertamente para ela e prendi o riso quando vi que o
rímel estava escorrendo. Magnólia piscou várias vezes e fechou os
olhos, levando as mãos até eles.
— Droga, seu idiota — resmungou, passando por mim com
pressa na direção da escada que ocupava a outra extremidade da
piscina. — Preciso de um banheiro.
— Que foi, tia? — Eva tentou seguir a garota, mas eu a
segurei pelos ombros e a tirei do caminho.
— Fica aqui, baixinha. Deixa que o tio resolve isso. — Apressei
o passo até ficar ao lado de Magnólia, que estava com os olhos
vermelhos. — Machuquei você?
— Banheiro!
Guiei-a até a área gourmet e entrei pelo corredor lateral da
casa, levando-a até um dos banheiros externos. Abri a porta e
acendi a luz enquanto a garota corria para a pia. Ela se debruçou ali
e encheu a mão de sabonete líquido, lavando o rosto com pressa.
— Meu rímel escorreu todo pro meu olho, Eros. Eu só não te
mato porque você ainda não me pagou.
— Achei que fosse à prova d’água. Não é isso que as
mulheres usam?
Ela ergueu a cabeça e me encarou através do espelho.
— Deveria ser à prova d’água, mas aparentemente é barato
demais para funcionar com mergulhos em piscinas.
— Então não me culpe se você compra maquiagem ruim —
declarei, recebendo um olhar terrível que me fez estremecer. — Vou
esperar do lado de fora.
Fechei a porta e fui dar uma olhada na carne na churrasqueira,
percebendo que estava no ponto e tirando-a de lá. Guilherme e Odin
se aproximaram e meu irmão balançava a cabeça de forma
desgostosa.
— Não acha que ela já te odeia o suficiente? — perguntou ele,
debruçando-se na bancada. — E eu ainda tentei falar bem de
você...
— Ela não me odeia.
— Cara, nenhuma mulher gosta de ser jogada na piscina e ela
ainda estava de maquiagem. Até eu sei disso — disse Guilherme,
pegando um pedaço de picanha e jogando-o na boca. — Se
pretende levá-la pra cama, eu a...
Dei um soco no braço dele e lancei um olhar de aviso,
conferindo se Magnólia não tinha escutado nada. A porta do
banheiro ainda estava fechada e ele não falou alto o bastante.
— Porra! — xinguei. — Ficou maluco? Quer que ela ouça
isso?
Precisei desabafar com alguém e os escolhidos foram PH e
Guilherme, os amigos em quem eu mais confiava para revelar um
segredo como aquele sem que colocassem tudo a perder. Pelo
menos, era o que eu achava. Expliquei que ela tinha se confundido,
mas não cheguei a admitir que meu próprio irmão era gay. Isso era
um segredo exclusivo de Odin e eu não tinha direito algum sobre
ele. Só disse que tinha aproveitado da confusão de Magnólia para
que ela aceitasse o trabalho.
Também sabia que uma hora eu precisaria de um cúmplice
para meus planos, afinal, para que ela acreditasse na história, eu
deveria mostrar que pelo menos algum amigo meu sabia da
verdade.
— Mas aqui entre nós — disse Guilherme, virando o rosto para
Eva ao longe, na borda da piscina. — Tem vontade de levar a
professorinha pra cama ou não tem?
— Não. E pretendo continuar assim.
Meu amigo me lançou um olhar desacreditado e eu nem podia
reclamar da falta de confiança em minhas palavras porque sabia
que meu histórico dizia o contrário. Mas se tratando de Magnólia,
meu interesse começava e terminava no âmbito profissional. Depois
de um primeiro momento, quando eu estava ocupado na festa
tentando detestar a garota intrometida, pude constatar que ela era
bonita, mas não me atraía sexualmente. Sempre gostei mais das
mulheres grandes, com muitas curvas, muito peito e muita bunda.
Era gostoso demais apertar um quadril largo enquanto eu comia
uma mulher de quatro. Além de tudo, eu não pegava as novinhas
porque elas davam muita dor de cabeça. Não sabia precisamente a
idade dela, mas com certeza tinha menos de vinte e cinco anos.
O assunto morreu quando ouvimos a porta do banheiro abrir e
fechar, logo Magnólia apareceu diante de nós, ainda com os olhos
vermelhos. Senti uma pontada de culpa por ser o causador daquilo,
mas me peguei observando as várias sardas daquela pele limpa.
— Odin — chamei meu irmão e apontei a cabeça para a
garota. — Dá uma olhada.
Ele se virou para Magnólia, que parecia um pouco
constrangida por estar sem maquiagem, mas foi surpreendida
quando Odin segurou o queixo dela e a fez levantar o rosto.
Imaginei que a queda que ela nutria por ele tivesse se transformado
em um tombo só com esse gesto, porque a filha da mãe ficou mole
na frente dele.
— Uau! — murmurou, observando a pele dela de perto. —
Deslumbrante.
— O quê?
— Seu rosto. Tem gente que daria uma fortuna para ter essas
sardas tão simétricas. Sua pele é linda, cuide bem dela.
— Eita! Sem maquiagem você parece menor de idade —
murmurou Guilherme, abrindo uma nova cerveja. — Tem quantos
anos?
— Tenho vinte e um.
— Novinha... Gosto assim. — Ele piscou para Magnólia e se
afastou para a piscina, dando um susto em Eva e arrancando uma
risada da minha sobrinha.
Como Odin ainda segurava o rosto dela, a garota voltou a
olhar para ele e eu achei que meu irmão era mais canalha do que
eu, porque se aquele era o jeito que conhecia de não dar
esperanças para alguém...
— Muito novinha mesmo — disse ele, soltando a garota. —
Quando sentir vontade de fazer algum procedimento estético, não
procure por Eros, procure por mim.
— Como assim não procure por Eros? — perguntei, deixando
a última peça de picanha na churrasqueira. — Algum problema
comigo?
— Nenhum, irmão. Sabe que eu te amo. Mas no âmbito
profissional, eu sou muito melhor que você.
Odin se afastou antes que eu pudesse mandar que fosse
tomar no cu e foi se juntar à Guilherme e Eva na piscina. Mas
durante toda a caminhada dele até lá, Magnólia manteve os olhos
fixos em sua bunda. Eu me aproximei pela bancada e me debrucei
imitando-a, olhando na mesma direção que olhava.
— Quanta falta de respeito encarar desse jeito — murmurei,
dando um susto nela e fazendo-a virar o rosto para mim. — Se
fosse um homem olhando para a sua bunda assim, você ficaria
puta.
Ela deu de ombros.
— Não tenho bunda para isso. Ela não chama tanta atenção e
considero como uma dádiva.
Inclinei meu tronco para trás de forma que pudesse olhar a
bunda pequena dentro do short preto e justo. Minha mão era bem
grande, o que fazia parecer que um tapa atingiria em cheio o
traseiro discreto.
— Para com isso. — Levei um soco no meio do peito e recuei.
— Não mandei que avaliasse.
— Eu sou gay, esqueceu? Não estava olhando com interesse.
— Foda-se — disse ela, revirando os olhos e me fazendo rir.
— Sua profissão é uma das que mais mexe com a insegurança
feminina, não quero que fique me avaliando. Você não gostaria que
eu fizesse o mesmo.
Afastei-me da bancada e abri os braços, me exibindo sem
pudor algum. Magnólia olhou para trás e revirou os olhos ao me
notar.
— Não tenho problemas com isso. Até porque sou perfeito,
não possuo defeitos.
— Abra a boca — pediu ela, se aproximando muito de mim e
fiquei um pouco desconfiado. Depois do cuspe na mão, eu esperava
qualquer coisa. — Deixa de ser fresco, abre a boca logo.
Com muito receio, fiz o que a garota pediu e afastei meus
lábios lentamente, com medo do que aconteceria a seguir. Então
gemi de dor quando Magnólia enfiou os dedos dentro da minha boca
e cravou as unhas na porra da minha língua.
— O seu defeito está aqui — disse, apertando mais antes de
me soltar. — Se ela não existisse, você seria bem suportável.
Quando a doida me soltou, pisquei para afastar as lágrimas
que chegaram aos meus olhos. Ela torceu a camisa para retirar o
excesso de água e depois puxou o elástico que mantinha o cabelo
preso.
— Seria um pecado minha língua não existir. Ela faz um ótimo
trabalho por aí.
— Sei — murmurou, sem prestar atenção em mim. — Deve
fazer mesmo. Talvez eu até peça conselhos em relação a isso.
— Conselhos?
Calma, acho que estávamos falando de coisas diferentes.
Terminei de processar o que ela tinha dito quando Dance Monkey
começou a tocar e Magnólia recuou, andando de costas para a
piscina e de frente para mim, enquanto balançava os quadris no
ritmo da música e gesticulava com a mão... Ela estava fazendo
mímica imitando um boquete?
— Não posso aconselhar a respeito disso — avisei, puto da
vida. — Não foi o que eu quis dizer sobre minha língua.
— Ah, fala sério! Certeza que você tem ótimas dicas para me
dar. — Riu. — Acho que não sou muito boa nisso e você, Eros, tem
cara de ser profissional no assunto.
Ela não tinha acabado de me chamar de boqueteiro. Tinha?
— Não quero falar sobre sexo.
Magnólia deu de ombros e foi até sua taça que já estava quase
vazia. Ela se sentou na borda da piscina, com as pernas
penduradas para dentro da água e ficou olhando para o céu com a
cabeça inclinada um pouco para trás. Eu me aproximei de onde
Guilherme estava e mergulhei, de saco cheio daquela história
enrolada sobre eu ser gay. Ela estava levando a sério demais e eu
sempre esquecia que precisava representar.
— Cara, me diz uma coisa. Se você não tem como chegar nela
por causa da mentira que inventou, isso significa que ela está livre
para qualquer um chegar. Certo?
Lancei um olhar para meu amigo, que sorriu e deu um gole na
cerveja antes de colocá-la no porta-copos dentro da boia. A garota
permanecia alheia à nossa conversa, mais concentrada em
observar Odin brincando com Eva.
— Não significa porra nenhuma, Guilherme — respondi. —
Precisamos manter uma boa relação com ela, já que a veremos por
um tempo. Ou seja, tira da sua cabeça a ideia de brincar e depois
largar.
— Se a menina tiver interesse, qual o problema?
— Eu estou falando sério, mas se quiser levar umas porradas,
vá em frente.
Guilherme gargalhou e mesmo assim não foi o bastante para
interromper a conversa que se mostrava bem animada lá no outro
lado da piscina. Odin parecia tentar convencer Magnólia a fazer
alguma coisa, porque ele gesticulava e ela negava, balançando a
cabeça. Estava tímida e já tinha notado que essa nuance dela
oscilava um pouco. Ela se portava de uma forma muito confiante,
mas não era de todo uma muralha tão firme.
— Assume que você está interessado, Eros.
— Quê? — Olhei meu amigo, que sorria.
— Fiquei falando que nem um idiota e você sem tirar os olhos
da garota.
— Só estou conhecendo ela agora, assim como você. É
natural que eu observe, estão enchendo o meu saco por nada.
Finalmente entendi o que os dois estavam discutindo, quando
Magnólia pareceu se dar por vencida e tirou a camisa molhada,
entregando a peça para Odin, que saiu da piscina e entrou dentro
de casa. Prendi a risada quando ela cruzou os braços na frente do
corpo, enquanto seus ouvidos eram alugados pela minha sobrinha.
Quando me flagrou olhando em sua direção, pulou para dentro da
água provavelmente para manter o corpo submerso.
Guilherme não perdeu tempo e nadou até lá, juntando-se às
duas e me obrigando a ir atrás. Por sorte, Eva notou a aproximação
e se jogou em cima do meu amigo, pois ela adorava subir nas
nossas costas.
— Onde o Odin foi? — perguntei e Magnólia se virou de costas
para mim, debruçando na borda e pegando sua taça. Abusada. —
Ouviu minha pergunta?
— Ele foi colocar minha blusa na secadora, já que eu preciso
voltar para casa vestida. E seca, de preferência. — Virou de lado e
me encarou com a sobrancelha arqueada. — Eros, nós ainda vamos
ensaiar ou você só está me enrolando? Eu podia estar fazendo
outras coisas, sabe?
— Numa sexta-feira à noite? Vai, me diga, o que você estaria
fazendo se não estivesse aqui? Procurando algum filme macabro na
Netflix? Costurando um boneco vodu meu?
Ela riu no instante em que estava bebendo e acabou se
engasgando e esguichando líquido pelo nariz. Tirei a taça de suas
mãos enquanto voltava a respirar normalmente, com o rosto todo
vermelho e lágrimas nos olhos.
— Merda — resmungou, fazendo careta. — Olha o que você
fez.
— O que Eros fez? — Guilherme se intrometeu, passando um
braço pelos ombros dela.
— Nada que seja da sua conta — respondi antes de Magnólia,
que o ignorou e me encarou.
— A ideia sobre o vodu é ótima, mas eu estaria trabalhando.
Sou designer gráfica, trabalho como freelancer.
— Com vinte e um anos? — perguntou Guilherme.
— Sim, fiz graduação tecnológica, a duração é de dois anos e
meio.
Observei ao longe quando Odin retornou e foi até a
churrasqueira. Ele tirou a carne que eu tinha deixado lá e se ocupou
por uns minutos, até que voltou a se aproximar da piscina com a
bandeja na mão. Todos nos servimos antes que ele deixasse o
objeto ali perto e se aproximasse da escada.
— Eva, está na hora de sair, querida — chamou minha
sobrinha, que fez cara de choro. — Sem fazer dengo, anda logo
porque ainda preciso te dar banho.
— Só mais um pôquinho, papai — ela tentou barganhar,
fazendo beicinho.
— Nada disso — disse ele, abrindo a toalha que tinha trazido
no ombro e a estendendo à frente do corpo. — Sabe o que acontece
se não sair quando eu mandar, não sabe?
— O que acontece? — Magnólia sussurrou em meu ouvido.
— Castigo — respondi, rindo. O que mais aconteceria?
A contragosto e muito cabisbaixa, Eva largou o pescoço de
Guilherme e caminhou pelos degraus da escada, no ritmo mais lento
possível, só para irritar Odin. Ela dava um passo e nos olhava. Dava
mais outro e voltava a olhar. Como eu amava essa criança!
— Eva, se eu entrar aí para tirar você à força...
Minha sobrinha suspirou e se apressou, esticando a mão ao
sair da piscina e sendo guiada para dentro de casa. Eu precisava
elogiar a forma como meu irmão lidava com ela, porque confesso
que se fosse eu no lugar dele, faria todas as vontades da pequena.
Odin era um pai incrível e a criava do jeito mais liberal que podia,
sem frescura, mas sabia ser firme quando precisava. Ele agora a
levaria para o banho e passaria mais uns trinta minutos secando
aquele cabelo, depois mais meia hora esperando que ela decidisse
o pijama que usaria, prepararia o achocolatado que ela amava
tomar antes de dormir e ainda se deitaria todo apertado na cama de
Eva, para ler alguma história — provavelmente pela milésima vez.
— Ei! — chamei, debruçando na borda. — Não vai se despedir
de mim?
Eva soltou a mão do meu irmão e veio correndo, passou os
braços finos ao redor do meu pescoço e beijou meu rosto quando
ergui metade do meu corpo para fora. Então ela repetiu o mesmo
com Magnólia, que reproduziu meu movimento e empinou a bunda
para trás, atraindo minha atenção e a de Guilherme.
Olhei bem para a cara do idiota, lançando um aviso silencioso,
mas a atenção dele rapidamente foi atraída pelo toque de seu
celular. Ele saiu para atender e falou alguma coisa que não me
preocupei em ouvir, pois Magnólia ainda estava na mesma posição,
debruçada para fora da piscina. Por mais que eu não me atraísse
por garotas magrinhas assim, muito menos góticas, eu era homem e
não podia ignorar uma bunda.
— Então, Barbie Dark, conte-me mais sobre seu outro trabalho
— pedi, imitando a pose dela e virando o rosto para observar as
sardinhas. — É home office?
— É sim. Faço artes, ilustrações, na maioria das vezes pego
encomendas de capas de livros e criação de logotipos para
empresas.
— E ainda trabalha no buffet, certo?
— Isso. Trabalho como garçonete no buffet e ganho um pouco
mais quando rola uma encomenda de flash mob.
— Como vai dar conta de tudo isso agora? — perguntei porque
imaginei que ela fosse se ocupar bastante conosco.
— Já avisei ao meu cunhado que só poderá contar comigo aos
sábados e domingos — respondeu, voltando a entrar com o corpo
todo na água. — Assim eu consigo trabalhar durante o dia nas
minhas ilustrações e deixo duas noites reservadas para vocês.
— E não vai ficar cansada?
— Todo mundo que trabalha pesado fica cansado no final do
dia — disse ela, encolhendo os ombros. — Não tenho a opção de
não fazer nada. O dinheiro que você vai me pagar eu vou colocar na
poupança, portanto, preciso continuar recebendo pra arcar com as
minhas contas.
Pensei na estranheza daquela frase e em como ela parecia
otimista em guardar um valor tão irrisório, que levaria décadas para
render alguma coisa aceitável. Se Magnólia não entendesse nada
de investimentos, a grana ficaria apenas parada na poupança, sem
utilidade alguma. Porém, eu não conhecia a relação dela com o
dinheiro nem tínhamos intimidade para discutir sobre o assunto,
então preferi me manter calado.
— Lembre-me de fazer a transferência para sua conta na
segunda-feira — pedi e ela assentiu.
— Vou partir! — disse Guilherme ao encerrar a ligação e se
aproximar da piscina. — A Milena acabou de me chamar pra casa
dela.
— Porra, Gui! — Impulsionei minhas mãos contra a borda em
pedra e saí da piscina, puto com a mudança repentina de planos. —
Está de sacanagem, né?
Milena era um dos contatos que ele mantinha por perto quando
queria sair para foder. Eu não conseguia gostar da mulher, que era
um nojo, tinha trinta e um anos e vivia às custas dos pais, porque
simplesmente não fazia porra nenhuma, passava o dia na praia ou
no shopping. Minha família tinha um patrimônio avaliado em muitos
milhões de dólares porque meu pai sempre foi um homem focado
em investimentos, mas mesmo assim tanto eu quanto Odin tivemos
um ensino rígido e precisávamos tirar as melhores notas da turma.
Não trabalhar, não ter uma carreira, nunca foi uma opção.
— Cara, por mais que eu ame o PH, não troco uma boa
trepada por ele. E eu sei que você também não trocaria, então não
me julgue.
Observei ele se vestir com pressa e calçar os tênis,
arrependido de ter feito Magnólia sair de casa para não fazermos
nada. Sabia que ela ficaria irritada com a situação e com certeza
acabaria descontando em mim, o que eu sentia que se tornava um
hábito.
Murmurei uma despedida quando Guilherme deu um tapa em
minhas costas e me virei na direção da piscina quando ele foi falar
com a garota. Ela acenou com a pior das expressões e bastou
ficarmos a sós no jardim, para me fuzilar com os olhos.
— Por que você não o impediu de ir embora?
— Porque não sou dono dele — respondi, sorrindo. — Acha
que mando em alguém além de mim?
Percebi que ela xingou alguma coisa, mas foi tão baixo
propositalmente, que eu não tinha como entender. A enfezadinha
caminhou pelos degraus e abraçou o corpo ao sair da piscina,
mesmo que não estivesse ventando e o calor fosse enorme. Parecia
um filhote de pinguim, com a roupa preta, a barriga branca e os
passos duros.
— Francamente, Eros — murmurou, passando a mão na
minha camisa pendurada no encosto de uma cadeira e a vestindo
com sua enorme cara de pau. — Você me fez perder a noite!
A roupa a cobria quase até os joelhos enquanto ela torcia o
cabelo para retirar o excesso de água.
— Não exagere, você não perdeu nada — rebati, pegando
uma toalha para me enxugar. — Passou a noite com o Odin, isso
não conta pontos?
— Eu não passei a noite com ele. Por sinal, ele não está nem
aí pra mim, dá pra perceber.
Queria sacudir a criatura e explicar que Odin nunca ficaria
interessado nela como pretendia, mas não podia fazer essa
revelação. Também não estava explodindo de felicidade com a
situação, afinal, podia estar naquele momento dentro de alguma
mulher gostosa. Não tinha sido apenas Magnólia a se frustrar.
— Vamos ensaiar — falei de repente, atraindo a atenção dela
e me encaminhando para a entrada dos fundos, onde ficava nossa
academia.
— Não vou ensaiar somente você — rebateu, mas veio atrás
de mim e eu sentia que pisava firme contra o chão. — Ainda dá
tempo de ir pra casa e trabalhar um pouco e...
— Magnólia! — Parei, segurando nos ombros dela. — Relaxa.
De verdade, hoje é sexta. Também quero te mostrar uma coisa,
então pare de ser a chata de sempre.
Os olhos claros se estreitaram enquanto me observavam e eu
sorri, esticando a mão para um gesto audacioso que poderia me
render um tapa, mas apertei o nariz dela e me virei, abrindo as
portas em vidro e acendendo a luz.
— Meu pai raramente está em casa e quando está, não usa o
espaço. A academia é usada por mim e Odin, então eu pedi para
mudarem os aparelhos de lugar, coloquei-os para aquela outra
extremidade e assim, o espelho fica livre.
Senti-me vitorioso pela expressão de surpresa que tomou
conta do rosto dela. Magnólia entrou na academia e olhou em volta,
parando diante do espelho e encarando seu próprio reflexo. Tudo
bem que não era uma enorme parede espelhada igual à do crossfit
do Edu, mas era razoável.
— Você teve boa intenção, mas não acho que tem espaço
suficiente para ensaiarmos todos — disse ela, caminhando pela
parte que esvaziei. — Ainda não temos coreografia, mas com
certeza farei coisas grandes...
— Sim, imaginei que não coubesse todo mundo. Mas você
pode usar para criar a dança toda, certo?
Ela se virou para mim e franziu os lábios, evidenciando o
piercing da boca.
— Eu moro muito longe pra ficar vindo todo dia montar a
coreografia, Eros. Preciso de um lugar próximo a mim e onde eu
possa passar muito mais de uma hora, porque antes de ensinar a
vocês, eu precisarei aprender. Não é um trabalho rápido.
Não tinha mesmo pensado no tempo que ela levaria, só
achava que bastava ela chegar, treinar e pronto. Olhando pelo ponto
de vista que a garota me apresentava, parecia muito mais complexo
e demorado e logo percebi que minha ideia não foi das melhores.
— Podemos tentar ensaiar um pouco hoje — comentou ela,
amarrando o cabelo molhado num rabo de cavalo. — Só porque
você foi bem legal em ter pensado em me agradar.
Logo naquele instante, minha playlist mudou um pouco e
entrou no ritmo do funk. Começou a tocar Quando a Vontade Bater,
na versão do PK, com a letra explícita, cheia de palavrão.

“Porque quando a vontade bater vou chamar pra fuder


Daquele jeito que tu gosta
Te boto de quatro, empina esse rabo
Caralho, gostosa, lá vai piroca”

— Você não tem cara de quem escuta funk proibidão —


Magnólia comentou.
— Gosto de alguns.
— Então dança — ordenou como se tivesse algum poder
sobre mim, com aquela expressão autoritária.
— Não vou ficar dançando funk sozinho.
— Eu sei uma coreografia dessa música...
Ela deu um sorriso bem safado e eu tinha quase certeza que
estava me provocando. Então se virou de frente para o espelho e
começou a dançar com a minha camisa que ficou enorme nela.
Respirei fundo enquanto Magnólia descia lentamente até o chão no
ritmo certo. Ela continuou se movimentando sensualmente e eu
tentei imaginar Eduardo ou Guilherme ou qualquer amigo meu de fio
dental, qualquer coisa que não me fizesse ficar de pau duro porque
era óbvio que eu ficaria. Por mais que estivesse me passando por
gay, nunca na vida iria resistir a uma mulher dançando funk daquele
jeito, tão perto de mim.

“Tu toma na xota, nós tira, nós bota


Nós empurra e soca, essa é a proposta”

Meu Deus, ela se ajoelhou. Precisei escolher o aparelho mais


distante e me sentei, cruzando as pernas e entrelaçando minhas
mãos sobre meu pau, rezando para me controlar. Como estava de
sunga, qualquer mínima ereção se transformaria em um caos
enorme. Literalmente.
Agradeci em silêncio por Magnólia estar usando minha camisa
que cobria sua bunda totalmente, assim, não me dava muito mais
conteúdo para a imaginação. Onde estava o Odin nessas horas
para me dar uma ajuda e atrair a atenção da garota?
Enquanto estava ali dançando, sem me preocupar com nada,
apenas sentindo meu corpo e deixando ele se mover, pensei em
como sentia saudade de me deixar contaminar pela dança. Treinar
flash mobs ocasionais nunca seria a mesma coisa e essa percepção
me deixou um pouco triste. Sabia que não me via em um futuro
trabalhando na área, então só me restava aproveitar todas as
pequenas oportunidades que apareciam. Como aquela.
Eros não imaginava como era sortudo em poder ter tudo à
disposição. Eu daria meu sangue para ter um espaço como aquele,
por mais que não fosse preparado para mim. O dia que eu tivesse
condições de ter minha própria casa ou apartamento, tentaria ao
máximo reservar um cômodo, mesmo pequeno, para ser um
cantinho onde eu pudesse entrar e dançar, me soltar, me arrastar
pelo chão, trabalhar movimentos.
Como acontecia inúmeras vezes ao deixar a música dominar
meu corpo, acabei me distanciando da realidade e mergulhei na
coreografia, na batida forte, por mais que a letra fosse
extremamente vulgar. Eu conhecia a outra versão, não aquela que
falava sobre pirocas e xoxotas, então me surpreendi um pouco ao
ouvir, mas nada que me impedisse de dançar.
Quando percebi, Eros tinha se afastado e estava sentado em
um aparelho, apenas observando de longe. Ele parecia prestes a
sofrer um derrame, o rosto todo contorcido e o corpo encolhido
quase numa concha, provavelmente odiando tudo. O idiota não
entendia droga nenhuma de dança, nem clássica nem
contemporânea, devia achar um saco.
— Sério que você está sentado? Achei que fosse pelo menos
tentar fingir que gosta de dançar — reclamei, parando diante dele
com minhas mãos na cintura. — Então vou embora, Eros. Não
tenho mais nada para fazer aqui.
Bastou eu perder dois segundos me virando de volta na
direção do espelho para ele se levantar e sair pela porta, deixando-
me sozinha na sala. Respirei fundo, contei até dez e fui atrás, doida
para dar um soco bem no meio do nariz do riquinho.
— Ainda me deixa falando sozinha?
— Não deixei — disse ele, voltando para a área gourmet e se
protegendo das minhas unhas atrás da bancada. Quando voltou a
me encarar, sorriu. — Você dança tão bem que fiquei com vergonha
de arriscar uns dos meus passos. Prefiro que a gente dance aquela
música que já estamos treinando e eu conheço a coreografia.
Eros me elogiando era no mínimo estranho, mas não quis
problematizar mais nada aquele dia porque já não tinha mais saco.
E para completar a noite com chave de ouro, o maluco saiu
correndo na direção da piscina e mergulhou de cabeça na água,
enquanto eu permaneci ali, no mesmo lugar, sem entender porra
nenhuma. Eu não ia mesmo voltar para lá e considerei jogar algum
eletrônico ali dentro para matá-lo eletrocutado, porém, decidi me
sentar num dos confortáveis sofás daquela varanda enorme.
Estava quase pegando no sono quando Eros saiu da piscina e
passou por mim. Observei o bestalhão preparar uma bebida colorida
e pegar uma nova cerveja para ele, debruçando-se no balcão e me
olhando.
— Prove e me diga se o meu gin não é melhor que o de Odin
— pediu, indicando o copo com a cabeça.
Levantei-me ainda com raiva, mas beberiquei o líquido e
aproveitei para beliscar um pouco da carne que tinha sobrado ali na
bandeja, enquanto Eros parecia distraído, degustando de sua
cerveja. Como eu já tinha tomado uma taça que o irmão dele me
servira, não bebi muito mais porque não pretendia voltar bêbada
para casa.
Larguei meu copo, voltei para a sala da academia e esperei
por ele, que se aproximou depois de alguns minutos e parou ao meu
lado. Seria difícil não me desconcentrar com aquele corpo refletido
ali, enorme e sarado, vestindo apenas uma sunga. Eu nem sabia se
daria certo ele dançando naquele ritmo com aquela única peça de
roupa.
— Vamos uma vez sem música para ver se você lembra tudo
— avisei e comecei a marcar os passos com o básico do “um, dois,
três”.
E aí, não demorou mais que vinte segundos para que eu
parasse a dança. Primeiro porque Eros já tinha se esquecido da
maior parte da coreografia e do ritmo, principalmente, e segundo
porque o brinquedinho dele era bem volumoso, as coisas estavam
balançando de um jeito muito pornográfico e eu sabia que seria
péssimo se ele me flagrasse encarando.
— Você está um pouco sem equilíbrio — disse, buscando
algum motivo que não fosse a região íntima dele. — Estava
bebendo, então é compreensível errar os passos. Acho que é inútil
ensaiar hoje.
— Para com isso, Barbie Dark. Eu não estou bêbado. Pelo
contrário, estou me sentindo bem alerta.
— Mas o álcool interfere no equilíbrio e na coordenação
motora — expliquei para um homem de quase dois metros de altura
com cara de cachorro carente. — Seus movimentos estão lentos,
Eros. Além do mais, preciso ir embora, não quero sair tão tarde
daqui.
Passei por ele e deixei a academia, indo buscar minha mochila
que tinha ficado largada no mesmo lugar desde que eu cheguei.
Eros apareceu na área luxuosa onde ficava a churrasqueira que
nem tinha cara de churrasqueira e começou a arrumar as coisas
sem a menor pressa.
— Posso ir com sua blusa e devolver semana que vem? —
perguntei ao me aproximar e ajudei ele a levar a louça suja para a
pia com lixeira embutida.
— Não precisa ir embora, pode dormir aqui.
Ele disse com a maior naturalidade do mundo, mas eu recebi
com impacto e parei o que estava fazendo só pra olhar bem a cara
do cirurgião. Seria uma pegadinha ou ele realmente me convidou
para dormir em sua casa?
— Muito engraçado, mas preciso ir embora. — Peguei meu
celular e abri o aplicativo para chamar o carro, quando Eros o
arrancou de minhas mãos. — Ei!
— Que porra de teimosa e orgulhosa você é — reclamou,
desligando a tela do meu celular. — Não estou chamando a donzela
pra dormir comigo, mas em minha casa. Não tem problema nenhum.
— Por que eu dormiria aqui? Não temos esse tipo de
intimidade.
Se bem que Odin tinha se oferecido para me levar em casa,
mas ele não voltou depois que entrou para dar banho em Eva e eu
não iria mesmo cobrar alguma coisa dele.
— Só estou tentando ser legal, Magnólia, mas você é muito
esquentadinha — disse Eros, encostando-se à bancada. — Temos
quatro quartos de hóspedes aqui. Sempre acontece de algum amigo
passar a noite, portanto, estou oferecendo essa opção.
— Uma ótima opção seria você me dar uma carona.
— Não vou dirigir, bebi algumas cervejas. — Quem diria que
Eros Montenegro seria sensato àquela altura do campeonato? —
Vamos lá dentro, você dá uma olhada no quarto e decide se fica ou
não.
Antes que eu respondesse ele já tinha segurado minha mão, e
me rebocou para o interior da casa, forçando-me a subir as escadas
e seguir por um lado do corredor. Não prestei atenção direito no
caminho porque estava ocupada lendo mensagens que minha irmã
me mandou no Whatsapp, segurando o aparelho com uma única
mão. Então, de repente, eu estava dentro de um quarto bonito.
— Não é nada demais, só pra dormir. Tem banheiro, tem
toalha, shampoo, tudo que precisar. Pode trancar a porta por dentro
caso tenha medo de ser atacada por um Montenegro.
O único irmão que gostava de mulher não parecia muito
interessado em me atacar, mas fiquei calada porque era o mais
inteligente a fazer. Observei o quarto, maior que o meu e mais bem
decorado também. Tudo clássico e minimalista, em tons de bege,
branco e cinza, com uma cama de casal no centro, um painel bonito
na cabeceira e um tapete que eu estava curiosa para descobrir se
era macio mesmo. Parecia um quarto de hotel de rico, só faltava o
chocolate no travesseiro.
— Eu vou aceitar o banho só porque quero tirar logo o cloro
dos meus cabelos — avisei, vendo-o sorrir. — Depois decido se fico.
Poderia ver se a minha blusa que o Odin levou para a secadora já
está seca?
Quando ele assentiu e saiu do quarto, entrei no banheiro e me
senti muito disposta a tomar banho porque o ambiente era lindo.
Todas as peças de metal como puxadores, torneiras e descarga
eram de bronze, a bancada ocupava uma parede inteira e o nicho
embutido do box estava cheio de produtos. Tudo limpo e
organizado, como se sempre ficasse daquele jeito para receber um
hóspede. Nem pensei duas vezes antes de jogar minha roupa no
chão e entrar debaixo daquele chuveiro imenso. Usei o shampoo e o
condicionador de uma marca importada que eu não poderia pagar,
mas que tinha um cheiro maravilhoso.
Demorei uns quinze minutos no banho, não queria abusar da
hospitalidade e consumir toda a água da casa. Quando saí do
banheiro, percebi que a porta do quarto que eu tinha esquecido
aberta, estava fechada, e em cima da cama encontrei uma camisa
azul e um short de estampa xadrez que provavelmente era uma
cueca samba-canção. Levei a peça ao nariz para cheirar e saber se
estava limpa ou eu mataria o Eros. Depois de sentir a fragrância do
amaciante, tirei a toalha enrolada no corpo e vesti a roupa.
O elástico do short era muito largo para meus quadris, então
precisei enrolá-lo até a altura do umbigo para não cair pelas minhas
pernas. Ficou um volume embolado na cintura, mas a camiseta era
larga o suficiente para não marcar. Sentei-me na cama e penteei
meus cabelos úmidos, enquanto mandava uma mensagem para
Sabrina.
Mana, vou dormir aqui pela Barra, ok? Vim ensaiar
com o Montenegro e acabou ficando muito tarde.
Estou bem! Te amo!

Não tinha nada para fazer, nem trabalhar em alguma


encomenda de design eu podia porque não tinha meu material ali.
Fiquei pensando se fiz certo em aceitar passar a noite, lembrando
do que Odin tinha dito mais cedo e ciente de que não queria que
ninguém me achasse uma interesseira.
Quando meu estômago roncou alto, percebi que quase não
tinha comido o churrasco que me ofereceram. Como eu vi que
sobrou alguma coisa, pois ajudei Eros a guardar a carne num pote,
resolvi me arriscar pela casa e tentar encontrar o que comer.
Abri a porta do quarto e encontrei o caminho livre, então saí na
ponta dos pés, desci a escada suntuosa e abri uma das portas de
vidro que davam para o jardim. Fui até a área da churrasqueira, mas
não encontrei o pote por lá. Eros me irritava até quando não fazia de
propósito.
Apaguei a luz e entrei de novo, procurando pela cozinha, sem
querer acender as luzes da casa toda. Quando parei no meio do
enorme cômodo, pensei se não seria muita falta de educação sair
abrindo armários e geladeiras de pessoas com quem eu nem tinha
intimidade, mas a fome estava grande. Só que então, meus olhos
avistaram uma paisagem bem ali pertinho de mim: uma cesta de
frutas. Elas estavam expostas, eu não estaria sendo invasiva
demais em comer uma banana, no caso.
— Não precisa comer no escuro, sabe? — As luzes se
acenderam e vi Odin parado na porta justo no momento em que dei
a primeira mordida na fruta. — Eros avisou que você vai passar a
noite.
— Hum. Uhum — respondi, mastigando e engolindo rápido
para ter a chance de falar com ele. — Eu não queria, a ideia foi dele.
O loiro lindo puxou uma daquelas banquetas altas e eu me
sentei, com ele me acompanhando lado a lado. Comi em silêncio,
com a certeza de que se fosse Eros ali estaria fazendo alguma
piadinha sobre a banana. Como os dois irmãos eram diferentes!
— Eu não sei que poder é esse que você tem, mas a Eva está
apaixonada — disse Odin, rindo baixinho com os braços apoiados
no balcão. — Ela tocou no seu nome umas dez vezes durante o
banho e, acredite, minha filha não é uma criança tão sociável assim.
— Não é? Mas ela parece tão extrovertida...
— Ela é, mas só com quem conhece. Eva não tem uma
presença feminina tão sólida na vida dela, porque a mãe dela viaja
muito e os avós maternos moram em outro estado, então ela passa
a maior parte do tempo sendo criada por homens.
Isso era uma indireta para dizer que gostaria que eu me
tornasse uma presença na vida dela?
Meu Deus, por favor, me envie sinais mais claros. Eu não sei
se esse homem está dando em cima de mim ou não.
— Mas e as mulheres em geral? Tipo, as com quem você se
relaciona, suas amigas... — perguntei já me arrependendo porque
ele podia me achar muito fofoqueira.
— Ah, isso. — Odin riu, baixando a cabeça e me deixando
confusa. — Bem, algumas mulheres aleatórias frequentam a casa,
mas não costumam voltar. A não ser que sejam nossas amigas, mas
não é sempre que Eva gosta de alguma.
— Então eu fico feliz que ela tenha gostado de mim. Sua filha
é uma criança linda e meiga.
— Que quer colocar piercing na boca.
Arregalei os olhos para ele, que riu e encarou minha joia presa
ao lábio inferior.
— Sinto muito por isso — respondi, mas rindo também. — Eu
sou um péssimo exemplo para crianças.
— Não dói? Sim, sei que é dolorido para furar, mas
diariamente, você não sente nada?
Passei a língua pela bolinha superior, tentando sensualizar
para ele e torcendo para não parecer uma ninfomaníaca.
— Doeu um pouco nos primeiros dias, mas nada que fosse
insuportável. É só cuidar para não inflamar. — Apontei o meu nariz.
— O do septo é o pior, se eu tocasse de leve já sentia dor.
— Quantos são ao todo?
— Esses dois no nariz, o da boca, um no mamilo direito e
outro... numa região íntima. — Certeza que estava com o rosto todo
vermelho ao responder essa pergunta e minha vergonha só
aumentou quando Odin arregalou os olhos.
— Uau. Cheia de surpresas! Tem que ter coragem para furar o
órgão genital. Atendi um paciente uma vez que precisava fazer uma
reconstrução no pênis por causa de uma situação que envolveu
piercings presos um no outro.
— Nossa... — Estremeci, pensando na dor e ele riu.
Dei um sorriso meio sem graça porque não achei que o
assunto fosse se desviar para intimidades alheias. Eu nem
costumava contar para ninguém que tinha piercing na Annabelle
porque não gostava das perguntas e dos julgamentos. Pelo menos
Odin não falou nada demais, levou numa boa e até mostrou
interesse. Parecia ter ficado muito curioso mesmo com o piercing do
meu lábio, como costumava acontecer com quem não tinha muito
contato com os furos.
E eu sabia que o momento tinha passado, que ele ia se
despedir de mim, quando tive a melhor das ideias. Inclinei-me na
direção dele e o beijei porque eu jurava que estava pensando a
mesma coisa que eu. Precisei me segurar nos ombros dele para
não levar um tombo da banqueta e senti suas mãos em meus
braços, mas não para me puxar mais para si mesmo e sim, para me
manter parada no lugar e não avançar ainda mais.
O beijo teve língua, mas uma só e era a minha. Não teve
faísca, nem calafrio, nada. Ele não retribuiu, apenas ficou parado, e
quando eu recuei, deu um leve sorriso. O tipo de sorriso de quem já
se adianta e se desculpa por algo.
— Não estava esperando por isso — comentou, virando o
rosto e encarando o balcão. — Acho que vou conferir se Eva está
mesmo dormindo. Ela é uma peste e tem mania de fugir para o
quarto do Eros.
— Ok.
Engoli em seco e fitei a casca da banana sobre o balcão,
ciente de que os olhos de Odin estavam bem em cima de mim e
tudo que eu desejava era enfiar a cabeça dentro do forno. Por que
eu o beijei, afinal? Tinha que parar com essa mania horrorosa de
agarrar as pessoas. Nunca tive esse costume, sempre me comportei
e sempre esperei que os homens chegassem em mim. Por que de
uma hora para outra, bastou eu pisar na casa dos Montenegros,
para me tornar uma assediadora?
— Está tudo bem, ok? — disse ele, afagando meu ombro ao
se levantar e me fazendo sentir uma criança.
Fechei os olhos e dei um tempo para que Odin fosse embora
antes de subir a escada. O objetivo era me trancar no quarto e só
sair de lá no dia seguinte, pronta para ir embora. O problema todo
foi não ter prestado atenção em qual era o lado do corredor que eu
devia pegar ao chegar no topo da escada. Como achava ser o lado
direito, entrei por ali e abri a segunda porta branca, dando de cara
com Eros vendo televisão.
Ele ainda estava tomando cerveja e ocupava o centro da sua
cama enorme, provavelmente feita sob medida, usando apenas uma
samba-canção igual a que eu estava vestindo e comendo
amendoim.
— Errei de quarto — avisei, girando nos calcanhares para sair
o quanto antes, mas voltando a me virar para contar algo
importante: — Beijei seu irmão.
— Epa! Epa! Onde pensa que vai? Vem aqui e me conta isso
direito.
— Não tem muito pra contar — respondi, me aproximando e o
observando pausar o filme. — Não acho que ele tenha gostado.
— Você atacou o Odin? — Riu como se eu tivesse perdido a
piada. — Alguém gosta de roubar beijos, pelo visto. Melhor eu
manter meu pai fora do seu caminho para ele não se tornar mais um
alvo.
— Deixa de ser ridículo, eu nunca beijaria o seu pai. Só beijei
você porque era uma questão de vida ou morte. E não ataquei o
Odin, só achei que ele também quisesse me beijar.
— Sei. — Eros me olhou com atenção e eu senti que estava
avaliando minha roupa, vi o sorriso crescer de novo. — Ficou
bacana com a minha cueca.
Mostrei a ele o meu dedo do meio porque sabia que tinha uma
pitada de ironia na frase, eu não estava nada sexy, mas o ignorei
para dar uma bela olhada na suíte do poderoso. Chocante,
indescritível, acho que nunca imaginei que existissem quartos tão
luxuosos daquele jeito. A parede atrás da cama era tão bonita que
eu queria grudar ali e não soltar nunca mais. Acho que cabia todo o
apartamento do Pedro dentro do quarto de Eros e quando invadi o
closet, me surpreendi ainda mais, pois era maior que o meu quarto.
No final havia uma porta, que imaginei ser a do banheiro, e deixei
meu queixo cair ao entrar lá. Ele tinha duas pias, uma
hidromassagem enorme e quadrada, além do box no lado oposto,
imenso. E o chuveiro dele era estranho, eu não saberia usar porque
possuía painel digital no corpo preso à parede.
— Você tem bom gosto — falei ao passar por ele, ir até a
varanda e abrir as portas.
Não tinha nenhuma brisa para me receber porque estava um
clima seco e infernal, então voltei para dentro do ambiente
climatizado e encarei o loiro ainda no mesmo lugar. Ele tinha voltado
a assistir televisão como se nem se importasse com a minha
presença em seu quarto.
— O que está vendo? — perguntei, parando bem na frente da
enorme tela de propósito.
— No momento, o seu espírito de porco.
Revirei os olhos mas não me aguentei e deixei escapar uma
risada que não era nem um pouco bonita. Às vezes eu soltava uns
barulhos tenebrosos como se estivesse arranhando a garganta.
Aproximei-me da lateral da cama gigante e cinza, de forma
despretensiosa, notando Eros atento à tela e quando estava bem
perto, inclinei o corpo sobre o dele e arranquei o controle que ele
segurava com a mão que estava mais distante de mim. Minha ação
foi rápida e inesperada e o cirurgião demorou a entender o que eu
tinha feito.
— O que eu faço com Odin? — perguntei, atraindo a atenção
dele ao pausar o filme. — Você até agora não ajudou em porra
nenhuma.
— Controle — pediu, esticando a mão e eu recuei. — Não me
faça levantar para tirar de você, Barbie Dark. Já viu meu tamanho?
— Ui, que medo. Tamanho não é tudo, seu besta. Eu sou
muito mais ágil. — Ergui meus braços em sinal de paz quando Eros
colocou as pernas para fora da cama. — Só quero conversar.
— Faltam uns vinte minutos para o documentário acabar.
Basta sentar aqui e esperar, então a gente conversa.
Parecia uma boa proposta, no entanto, Eros já estava de pé e
caminhava na minha direção. No impulso, enfiei a mão por baixo da
camisa e prendi o controle com o elástico do meu short. O loiro
arqueou a sobrancelha, afrontoso.
— Acha que não vou meter a minha mão aí dentro? — Riu. —
Tomara que esteja usando calcinha.
De repente eu me lembrei que não estava com nenhuma e
vacilei, vendo Eros estreitar os olhos para mim.
— Jura? — questionou como se não acreditasse.
— Você me jogou na piscina caso não se lembre. Não ando
com calcinhas reservas na minha mochila. Mas fica tranquilo que
vou levar para lavar e devolver com cheirinho de amaciante.
Eu mal terminei de falar e Eros avançou para cima de mim,
sem me dar tempo de reagir. Com uma mão ele bloqueou meus
gestos e a outra enfiou por dentro da minha camisa e puxou o
controle remoto. Mas o que achei incrível foi como ele foi preciso em
seus movimentos e seus dedos sequer tocaram minha pele. Bem
coisa de cirurgião mesmo.
Quando me soltou o filho da mãe ainda passou por mim e
bateu com o controle na minha bunda. Controlei a vontade de xingar
e vi quando abriu um frigobar, tirando uma garrafa de cerveja e me
oferecendo.
— Não sou muito de beber... — comentei, mas aceitei. —
Também não posso me embebedar na casa de estranhos.
— Eu não sou exatamente um estranho, nem meu irmão. Você
já beijou nossas bocas.
Dei um tapa nele antes que conseguisse se esquivar e Eros se
sentou na beira da cama, olhando para mim. Fui me sentar ao lado
dele e apoiei a cerveja na coxa, encarando a varanda e o céu do
lado de fora.
— Afinal, qual o lance da sua obsessão pelo Odin?
— Não é obsessão — respondi, preocupada. — Você acha?
Eu só... achei ele muito gato. Terminei um namoro há dois meses e
quis me aventurar em novos territórios.
— Odin é um território? — Ele gargalhou e virou o rosto para
mim. — Por que terminou o namoro?
Estava observando o abdômen nu e sarado, muito sarado,
muito grande e com a pele muito brilhante, quando fui flagrada e
fixei meus olhos nos dele, sentindo as bochechas arderem.
— Ele terminou comigo por algum motivo que eu desconheço,
deve só ter enjoado de mim. Foi por mensagem de texto —
destaquei, ouvindo um assobio de Eros. — E sobre o Odin, não sei,
eu simplesmente me atraí por ele e resolvi arriscar porque nunca me
envolvi com ninguém remotamente parecido com vocês.
— Em que sentido?
Pensei um pouco e percebi que tinha deixado meu celular no
quarto, mas o de Eros estava bem ali sobre a cômoda perto dele.
— Abre o seu Instagram — pedi, esperando que ele pegasse o
aparelho e mexesse, entregando para mim.
Controlei minha vontade de namorar um pouco aquele celular
lindo e naveguei pelo aplicativo, digitando o usuário do Rafael. Abri
uma das poucas fotos em que ele aparecia de corpo inteiro e que
dava para ver seu rosto. Na imagem, ele calçava um tênis surrado
que tinha há uns dez anos, um jeans todo largo e sem caimento
nenhum, uma camisa preta amarrotada que batia no meio das
coxas e uma blusa de estampa xadrez por cima. O cabelo estava
horrível, repartido no meio.
— Esse é o meu ex.
— Que sorte a sua — falou, rindo. — Por ser um ex, não um
atual.
— E esse aqui... — continuei, procurando o perfil de Fernando.
— Foi meu namorado antes do Rafael.
Eu me surpreendi um pouco ao olhar as fotos dele porque há
muito tempo não entrava no perfil. Tinha deletado Fernando da
minha vida meses antes de conhecer o Rafa, então ver como ele
engordou me deixou assustada. Parecia que tinha ganhado pelo
menos uns vinte quilos. E era engraçado como ele parecia uma
versão mais velha do Rafael, mudava somente a cor do cabelo.
— O amor é uma coisa louca — murmurou Eros depois que
pegou o celular da minha mão e ficou conferindo algumas fotos de
Fernando. — Certamente você amava muito esse mané.
— Sim...
— Então agora você quer se deliciar pelo corpo do meu irmão.
Recuperar o tempo perdido. Que feio, Barbie. — Eros estalou a
língua. — Eu jurava que você tinha se encantado pela essência
incrível de Odin.
— Vai à merda — respondi, dando um gole longo na cerveja e
me levantando.
— Olha, sobre o meu irmão... — Ele deixou o celular na
cômoda e passou as mãos pelos cabelos antes de virar o rosto para
mim. — Não sei bem o que você espera, mas o Odin não tem uma
vida amorosa muito agitada. Se não rolar nada, não pense que o
problema é você, é ele que não se relaciona muito.
— Temos algo em comum, então. Porque minha vida amorosa
é quase inexistente. Você acabou de conhecer os únicos namorados
que tive.
— Eu deixo você tirar uma casquinha do meu corpo —
comentou, piscando para mim. — Quer dar uma alisada nesses
músculos?
Lancei um olhar irritado para ele. Demorou só alguns minutos
para eu me arrepender profundamente de contar aquelas coisas
para Eros, pois percebi que tinha dado conteúdo para que zoasse
de mim por muito tempo.
Não quis comentar para não atiçar a onça, mas os ex-
namorados que Magnólia me mostrou no Instagram pareciam dois
idiotas. No caso da garota, ela só era muito magrinha , mas era
bonita, tinha um rosto de traços delicados, parecia uma boneca. Não
conseguia imaginá-la ao lado de nenhum dos dois desajeitados com
cara de quem batia punheta o dia inteiro. Ela era uma caixinha de
surpresas porque eu esperaria que me mostrasse uma foto de
algum homem todo tatuado, cheio de piercings, com a pegada mais
puxada para um roqueiro.
Dedo podre, era o problema dela. Porque além dos dois
paspalhos, ainda cismou com Odin, que independente do que ela
fizesse ou vestisse, não a olharia do jeito que desejava.
Magnólia terminou a cerveja e se levantou na maior cara de
pau, abrindo meu frigobar e pegando mais uma garrafa geladinha.
Então engatinhou pelo meu colchão até se sentar no centro da
cama e dobras as pernas.
— O que você está assistindo, afinal? — perguntou,
observando a televisão.
— Um documentário sobre redes sociais. — Voltei a me
recostar na cabeceira, com ela sentada um pouco mais à frente, de
costas para mim. — E aquele papo sobre não ficar bêbada na casa
de estranhos? Já esqueceu?
— Não vou me embebedar. — Apontou para a televisão. —
Você não tem cara de quem assiste documentários.
— Ué, eu tenho cara de que assisto o que, então?
Magnólia se virou de frente e ficou me observando, como se
pudesse mesmo adivinhar alguma coisa só ao olhar para mim. Na
verdade, eu era muito eclético, gostava de quase tudo, só não curtia
aquele estilo de filme com romance adolescente.
— Você parece curtir aqueles filmes de ação e tiroteio. Sabe
aquelas perseguições de carro que se estendem por quinze
minutos? Sua cara!
— Eu gosto sim — falei, rindo, porque era uma adivinhação
óbvia só por eu ser homem. — Mas não significa que não goste de
outros gêneros.
A garota se esticou para pegar o pote com amendoim e o
levou para seu colo, os olhos correndo pelo meu corpo e as
bochechas ganhando muita cor.
— Você já ficou com mulheres?
Ah, pronto. A conversa que eu não estava ansioso para ter.
Precisaria inventar qualquer merda, me fingir de Odin por um dia e
imaginar o que ele responderia no meu lugar.
— Claro que sim. Demorei um tempo para entender o que eu
sentia, foi um longo processo de descoberta.
— Chegou a se envolver com alguma mulher depois de
perceber que era gay?
— Posso saber por que estou sendo interrogado a essa hora
de uma sexta-feira? — perguntei para desviar do assunto, pois
aquela mentira cada vez ficava maior e tornaria tudo mais
complicado se Magnólia soubesse a verdade.
Ela tinha enchido a boca de amendoim e parou por uns
segundos para mastigar e engolir, depois bebeu da cerveja que
tinha apoiado no espaço entre as pernas mais brancas que papel.
Subi meus olhos para o rosto dela e me vi prestando atenção na
forma como ela comia com aquele piercing.
Eu já estive com mulheres de umbigos furados ou um brinco
em algum ponto diferente na orelha, mas nunca com piercing na
boca ou no nariz. Não era muito o estilo das garotas do meu círculo
social, portanto, me deixava um pouco curioso em saber como seria
o contato na hora de um beijo. Da vez que ela me agarrou na festa
do meu pai, foi tudo tão rápido e inesperado que eu sequer senti
qualquer coisa, apenas o bafo de camarão.
— Tudo bem, não pretendia ser invasiva — disse, revirando os
olhos. — Só queria entender como acontece essa transição porque
eu tenho quase certeza que o meu ex talvez seja gay e não saiba.
— Só por que o cara terminou com você? — Sorri, imaginando
ela atazanando o juízo de outra pessoa além de mim.
— Eu sou uma boa namorada, ok?
Magnólia afastou o pote de amendoim e engatinhou pelo
colchão até se aproximar mais de mim, com a cerveja na mão, já
pela metade. Ela bebia rápido para alguém que dizia não ter
costume de beber e me perguntei se acordaria com muita ressaca
no dia seguinte.
— Vou contar uma coisa e eu sei que você vai usar isso contra
mim em algum momento, mas que se foda — falou bem rápido,
puxando um dos meus travesseiros para o colo e apoiando os
cotovelos nele. O que ela tinha de pequena tinha de espaçosa e
intrometida. — Eu e meu ex estávamos transando pela primeira e
única vez, quando o Bulbasaur caiu da prateleira e ele parou tudo
para ir pegar o boneco e colocar no lugar. No meio. Da transa!
Nas últimas duas palavras ela deu uma ênfase bem maior e
ficou me olhando, esperando pela minha reação enquanto eu
processava o que tinha acabado de ouvir. Era uma situação ridícula,
mas havia um detalhe que tinha ficado incompreendido.
— O que é Bul não sei o quê? — perguntei, confuso porque
ela contou rápido demais.
— Mentira — respondeu, a boca abrindo.
— Sobre?
— Você não sabe o que é um Bulbasaur?
— Eu deveria saber?
Magnólia arregalou os olhos e tapou a boca com a mão livre,
então pulou para frente e se jogou em cima de mim, o braço que
segurava a cerveja para o alto e o outro no meu pescoço. Notei que
o álcool estava fazendo efeito porque era impossível acreditar que
ela fosse capaz de fazer isso se estivesse totalmente sóbria.
— Meu Deus! Isso é um milagre! Você não é fã de Pokémon!
— Nunca assisti — respondi, tirando a garrafa de cerveja da
mão dela. — Tive uma educação rígida, não passava horas na
frente da televisão, do videogame, enfim, essas coisas.
Inclinei-me para o lado e coloquei a bebida sobre a cômoda,
depois Magnólia desenterrou o rosto do meu pescoço, mas não sem
antes dar uma fungada no meu cangote.
— Você é cheiroso.
Deixei a risada escapar com o arrepio que o nariz dela me
causou e pensei que deveria parar com aquilo, mas a vontade de
dar corda era muito maior do que a minha consciência desejava.
— Estou sempre muito cheiroso — respondi, encarando-a
quando levantou a cabeça.
— Eu não uso perfume, acredita? Sei lá, nunca me interessei
por isso e também acho muito caro.
— Nem mesmo um hidratante? — perguntei e ela negou. — É
bom ter o costume de pelo menos hidratar a pele. Vou receitar um
que não é caro, rende bastante e tem um cheirinho bom.
— E eu tenho que passar no corpo todo? — perguntou com
uma preguiça escancarada e tive vontade de rir. — Não tenho essa
paciência não. Eu só uso no rosto porque gosto muito de
maquiagem e sei que preciso tratar a pele também.
— Usa protetor no rosto?
— Às vezes esqueço, mas tento usar sempre.
— Tem que usar, Barbiezinha. Principalmente você que é
muito branca. — Segurei o rosto dela entre as mãos e deslizei meus
polegares pela textura macia. — Sua pele parece ser seca, precisa
de muita hidratação porque senão quando você chegar aos
quarenta anos, vai se arrepender de não ter cuidado.
— Ah, esqueci que você é médico — murmurou, inclinando-se
sobre o meu corpo de forma displicente para pegar a cerveja. —
Qual a cirurgia que você faz com mais frequência?
— Sem dúvida a mamoplastia de aumento. O famoso silicone
— expliquei em termos leigos. — Rinoplastia também. — Toquei o
nariz dela. — E lipoaspiração. Inclusive, muita gente daria tudo para
ter o seu nariz. Ele é bem bonitinho.
— E é verdade que tem gente que faz plástica na piriquita?
O dia que eu encontrasse uma mulher que quisesse conversar
sobre plástica e não tocasse nesse assunto, eu mudaria meu nome.
Era impressionante o tamanho da curiosidade alheia e com
Magnólia não foi diferente.
Ri da forma como ela se referiu e me levantei para levar a
garrafa vazia até o balcão sobre o frigobar. Antes de dormir eu
jogaria tudo no lixo.
— Sim, a ninfoplastia ou labioplastia é bem comum, eu faço
várias. Tem se tornado um procedimento cada vez mais procurado.
— Acho que não faria nenhuma. Tenho medo da anestesia.
— Depende — respondi, voltando a me sentar na cama. — A
cirurgia íntima leva anestesia local, não é um procedimento tão
invasivo quanto uma abdominoplastia.
— E o silicone? É muito ruim o pós-operatório? — Magnólia
levou as mãos aos seios, olhando para eles. — Acho que não
combino com peitos enormes.
— Vários fatores são estudados, não é só chegar e colocar o
que você quer. Tem que ser levada em consideração a altura da
pessoa, a largura do tórax, qual formato de prótese ela deseja. Tudo
isso tem que ser conversado na consulta.
Eu me inclinei para pegar o pote de amendoim e jogar alguns
na boca quando a maluca ergueu os braços e arrancou a camiseta
pela cabeça, ficando nua da cintura para cima. Quase me engasguei
com o petisco que desceu errado e me recostei à cabeceira,
tentando manter os olhos fixos nos de Magnólia.
— O que é isso?
— Eu não vou pagar uma consulta com você, faça-me o favor
— respondeu com muita naturalidade, apoiando as mãos nas
pernas. — Preciso aproveitar essa oportunidade. E então?
— Que bom que você não tem interesse em uma labioplastia,
não é? — respondi, chocado.
Era bem normal as mulheres com quem eu dormia sempre
pedirem minha opinião para algum procedimento, muitas acabavam
realmente operando comigo e até se tornavam amigas. Mas nunca
ocorreu de alguém com quem não tinha intimidade simplesmente
tirasse a roupa assim, e pior, na minha cama.
— Não preciso — disse ela e só então me toquei que estava
falando sobre a labioplastia. — Está tudo bem com a Annabelle.
Ignorei aquele apelido ridículo e encarei os seios pequenos, de
auréolas num tom de bege bem claro, quase da cor da pele.
Caberiam com folga na minha mão grande, eram bem delicados e
combinavam com ela. Mas havia um plus especial bem ali, diante
dos meus olhos. Um pequeno piercing atravessado em um dos
mamilos, com duas minúsculas pedrinhas de cada lado. Respirei
fundo e tentei encarar a situação do modo mais profissional possível
para não ficar de pau duro com ela a centímetros de mim.
— Se for só vontade de ter um pouco mais de volume, eu
indicaria de 150 a 200ml pra você, no máximo, porque sua estrutura
é pequena. Os métodos para incisão são: axilar, que eu
particularmente não gosto de fazer. — Levantei o braço esquerdo
dela e toquei na região onde a incisão era feita. — Periareolar, que
corta bem nessa junção da auréola com a pele — passei a ponta do
meu dedo bem de leve pela região e a garota deu uma estremecida
— e é um dos métodos mais pedidos pelas mulheres porque
também é o que deixa a cicatriz mais discreta. Porém, não
recomendo para quem tem pouco volume. E por último, a
inframamária, que proporciona uma recuperação mais rápida e é
minha favorita. O corte é feito aqui. — Passei o dedo por baixo do
seio e recuei, observando o conjunto.
— Gay. Gay. Gay — Magnólia repetiu, apertando os olhos e
vestindo a camisa ao me encarar. — Deus me livre, quase bateu
uma vontade de te agarrar agora. Seria o auge da noite, rejeitada
pelos dois irmãos e você ainda usaria esse equívoco contra mim
pelo resto da vida.
Pressionei meus lábios um no outro, pensando em como
Magnólia me mataria se descobrisse a verdade. E isso me deixou
angustiado demais porque eu não sabia quanto tempo aguentaria
levar aquela mentira adiante. Para tudo dar certo e não ter dor de
cabeça depois, ela precisaria sair definitivamente da minha vida
depois do casamento de PH. Eu não podia me apegar nem deixar
minha família se apegar. O problema era a dificuldade de manter
esse objetivo, porque ela era implicante e ranzinza, mas também
tinha seu lado cativante.
— Queria me agarrar? — perguntei, brincando. — O que
aconteceu com todo aquele papinho de Odin ser mais bonito e tal?
E o amor todo por ele?
— Primeiro, não é amor. Ficou louco? Não sou tão
desesperada assim. — Revirou os olhos enquanto ajeitava os
cabelos, prendendo-os num coque alto e desengonçado. —
Segundo, são belezas diferentes. O rosto do Odin é impressionante,
de fazer desmaiar. O seu já não é lá grande coisa, porém, seu corpo
é muito mais... impactante que o dele, que é mais magro. Ele não
malha muito, né?
— Uau. — Gargalhei querendo esganar aquele pescoço fino.
— Começou parecendo um elogio, mas depois eu vi que não era
bem assim. E não, Odin não puxa ferro como eu.
— Mas foi um elogio. — Magnólia riu e revirou os olhos. —
Pelo menos a parte do corpo. Ah, fala sério, seus olhos são legais
como os meus, mas os azuis do seu irmão são perfeitos. E eu nem
ia falar do seu corpo porque tenho certeza que você vai ficar
convencido, mas já que te mostrei os peitos, isso é o de menos. Vou
te mostrar a foto da minha irmã!
Ela se afastou de supetão, embolando o lençol todo conforme
arrastava a bunda nele, e se levantou, correndo para fora do quarto.
Depois voltou e me encarou, com os lábios franzidos.
— Ia buscar meu celular, mas não sei em qual quarto eu estou.
Suspirei, ainda um pouco atordoado com essa versão falante
da Barbie Dark e fui com ela até o quarto de hóspedes, onde entrou
e pegou seu telefone. Eu me sentei na beira da cama e fiquei
observando as perninhas finas e os pés pequenos e descalços. Se
eu a pegasse do jeito que gostava de fazer com algumas mulheres,
corria o risco de quebrar Magnólia.
— Aqui. Essa é Sabrina Holly — disse ela, sentando ao meu
lado e me mostrando a tela do celular.
— Holly?
— Minha mãe colocou por causa do filme Bonequinha de Luxo.
Sabrina Holly e Magnólia Baby. No meu caso a homenagem foi para
Dirty Dancing.
A mulher na foto era incrivelmente gostosa, com um corpo
aparentemente natural, mas cheio de curvas. Pele morena,
bronzeada de sol e olhar fatal. Virei meu rosto para a Barbiezinha e
senti minha testa enrugar.
— Essa é a sua irmã?
— Pois é — respondeu ela, passando para outra foto, uma que
a garota estava de biquíni. — Por isso você não pode reclamar
quando eu digo que prefiro o Odin, porque eu sei muito bem como é
não ser o espermatozoide mais bonito. Então eu posso falar.
— São pais diferentes? — perguntei e ignorei o lance sobre
Odin, já estava me irritando.
— Mesmo pai e mesma mãe.
— Deus foi mais generoso com ela então — zombei, sorrindo,
mas Magnólia assentiu muito séria e continuou passando as fotos.
— Estou brincando.
Mesmo sem me encarar, ela revirou os olhos. Então saiu do
aplicativo e abriu outro, colocando música velha para tocar. Nem
reconheci aquela, mas me lembrava algum filme.
— Tá.
— É sério, Magnólia Baby. — Peguei o celular da mão dela
para que prestasse atenção em mim. — Como você mesma disse lá
no meu quarto, são belezas diferentes. Olha, tem homem que fica
louco pelas mais branquinhas como você, tem os que preferem as
negras, tem aquele cara que só namora loira, os que gostam das
gordinhas. Todo mundo tem uma predileção por tudo na vida. A
gente não vive escolhendo a nossa comida? Você mesma achou o
Odin mais interessante porque é uma preferência sua e, na verdade,
eu sempre peguei mais mulher do que poderia dar conta.
Magnólia virou o rosto e arqueou as sobrancelhas, então,
percebi a enorme gafe cometida e pigarreei para consertar a merda.
— Antes de me encontrar no mundo — expliquei, sentindo o
coração acelerado. — Na época que eu achava que gostava de
mulher.
— Eu entendi. — Ela tinha o sorriso muito bonito e geralmente
quando fazia isso, os olhos quase se fechavam. — Vamos fazer um
pacto caso ninguém ainda tenha feito isso com você antes? Se em
dez anos você não estiver casado nem for pai, a gente se junta e faz
um filho.
Olhei bem para a mão esticada e me lembrei do dia no
consultório em que a criatura cuspiu para selar um acordo.
— Por que eu? — perguntei, rindo. Por que mesmo fui oferecer
cerveja para ela? — Não tem nenhum outro amigo para atazanar o
juízo?
— Amigos eu tenho, só que nenhum tem todos esses
músculos. Quero ter uma prole bonita.
— Ah sim, você quer se aproveitar da minha aparência.
— E do seu dinheiro também, pois não quero que meu filho
seja pobre como eu. — A maluca se virou de frente para mim,
dobrando as pernas e me deixando curioso para ver mais do que o
short mostrava ali entre as coxas. — É um negócio imperdível.
Mesmo que você se case, vai querer um bebê com o seu marido,
certo? Podemos criar com a guarda compartilhada. A única
observação que eu faço, é que a gravidez precisa acontecer da
forma natural. Você sabe, a fecundação.
— A fecundação? — O que tinha na bebida dela?
— Sim, a hora do vamos ver. O sexo. Não vou abrir mão disso
porque quando o bebê nascer e me perguntarem quem é o pai, eu
vou poder apontar pra você e dizer algo do tipo — ela soltou o
cabelo e encenou, mexendo os ombros e fazendo cara de safada —
“nossa, ele é tão grande que me deixou assada por uma semana”.
Ri alto, apoiando o cotovelo na coxa e usando a mão para
esfregar meus olhos que começavam a cansar. Não estava
acreditando em tudo que saía disparado da boca de Magnólia.
— Você é muito mais maluca do que pensei. Pelo menos já
acertou na questão do tamanho, está no caminho certo, pois sou
grande mesmo.
Ela riu e se jogou de costas na cama, levando as mãos ao
rosto vermelho e sacudindo os ombros.
— Se a Sabrina escutasse essa conversa, ficaria horrorizada
— comentou, abaixando as mãos no colchão. — Ela é toda puritana
e se dependesse dela eu ainda seria virgem. Não que tenha
adiantado muita coisa ter perdido a virgindade, não me rendeu
absolutamente nada de bom.
— Então você é a safada da família?
— Não sou safada! — Quase recebi uma joelhada nas
costelas quando Magnólia ergueu a perna para me acertar, mas
segurei firme seu ataque. — Só nunca concordei com esse
pensamento de ter que se guardar para o casamento. Transar não
me faz melhor ou pior do que ninguém.
— E está certíssima quanto a isso — respondi e com uma
elasticidade absurda, ela conseguiu fugir da minha pegada e puxou
a perna toda esticada, quase até o joelho tocar o seio. Fiquei
impressionado. — Por que você só escuta música velha?
Ela estreitou os olhos para mim quando fiz a pergunta que
estava doido para fazer. Já era a terceira ou quarta canção da
década de oitenta que tocava naquele aparelho de celular.
— Isso é Cyndi Lauper, um ícone — resmungou. — O nome da
música é Girls Just Want to Have Fun. E eu amo, é meu estilo
favorito, músicas dos anos setenta, oitenta, até noventa também
ouço muita coisa.
— Magnólia Baby, não é isso? — Lembrei-me do nome que ela
tinha dito e me deitei na cama ao seu lado, com o cotovelo apoiado
no colchão. — Então não é só um gosto peculiar da sua mãe.
Passou pra você também. Baby.
— Sim, fui totalmente influenciada por ela — respondeu, dando
de ombros e baixando a perna fina. — Eu escuto de tudo, até funk
eu danço se tocar, mas a minha preferência é essa. Se um dia você
quiser me dar um presente muito especial, me dê um toca-discos. É
meu sonho ter um!
— Juro que eu achava que você curtia um rock mais pesado,
heavy metal, esses gêneros que têm tudo a ver com uma pessoa
gótica.
Identifiquei a próxima música, porque essa era impossível
deixar passar. Like a Prayer da Madonna fez com que Magnólia
começasse a movimentar o corpo mesmo deitada. Ela fechou os
olhos e mexeu as mãos no ar ao mesmo tempo que cantava a letra
sem errar.
Observei a dança contida, as pernas dobradas na cama
alternando os movimentos, sem se importar em estar usando uma
roupa enorme e masculina. Tive vontade de tocar a cintura dela
para sentir seu tamanho por baixo da minha camisa, mas me
controlei. Tudo bem, admito, a garota era charmosa. Ainda por cima
estava arrepiado porque sua voz era muito doce e aveludada
enquanto cantava.
Isso me levava a crer que era hora de me mandar daquele
quarto antes que fizesse besteira. Segurei as duas mãos que
balançavam para o alto e ela abriu os olhos, encarando meu rosto.
— Tô indo dormir, Magnólia Baby. Você está bem, né? Só um
pouquinho alterada, mas nada que a faça entrar em coma alcoólico.
— Sim, estou ótima. — Ela sorriu de olhos fechados e colocou
a ponta da língua para fora, prendendo-a entre os dentes.
Eu falava inglês fluente e sabia que a letra da música era
bastante sugestiva. Será que Magnólia era do tipo que deixava
algum cara de quatro, ou melhor, de joelhos? Ou cantava para ela
própria? Estava pensando nas teorias quando ela voltou a me olhar,
séria, com os olhos verdes brilhando bastante. Foi um daqueles
momentos em que o tempo parece parar e o ar fica mais denso,
mas dura tão rápido quanto um piscar de olhos.
— Bom, fique à vontade — falei, inspirando e me levantando
da cama. — Se sentir fome, sede, já sabe onde é a cozinha.
— Boa noite, Eros.
— Boa noite, Barbie Dark.
Acordei assustada porque não estava acostumada a dormir
fora de casa, com os meus ex-namorados devo ter dormido umas
duas vezes na casa deles. Portanto, quando abri os olhos naquele
quarto diferente, levei alguns segundos para me situar e
compreender onde estava.
Fechei os olhos ao lembrar da noite passada e de como fiquei
soltinha demais. Não fiquei bêbada, era verdade, mas eu não tinha
resistência nenhuma com cerveja e aquelas garrafas foram
suficiente para me deixar afetada. Falei tanta coisa para o Eros que
não conseguia escolher a pior de todas.
Peguei meu short que tinha deixado secando sobre uma
poltrona, vesti minha calcinha e o troquei pela samba-canção, que
enfiei na mochila para lavar em casa. Não sabia onde minha camisa
estava, então iria embora com aquela e depois devolveria. O celular
ainda marcava oito horas da manhã quando saí do quarto nas
pontas dos pés para não acordar ninguém. Pelo menos eu esperava
que eles ainda estivessem dormindo. Ricos não madrugavam em
pleno sábado. Certo?
Sim, eu estava certa. No entanto, me deparei com duas
empregadas ao chegar na sala. Elas lançaram um olhar rápido para
mim, mas não perderam o tempo delas comigo. Estavam limpando
sofás e cortinas e continuaram seus trabalhos. O que me fazia
pensar que aquela situação devia ser comum na vida delas,
provavelmente achavam que eu era mais uma comidinha de Odin,
que passou a noite e foi enxotada quando amanheceu.
— Bom dia — murmurei, estufando o peito e jogando meus
cabelos para o lado. Se ia levar a fama, então seria de cima dos
saltos. Que eu não tinha, infelizmente.
Do lado de fora, um homem cuidava da piscina e passava
aquele negócio que parece um aspirador. Procurei pelos meus tênis
que eu tinha deixado ali antes de ser jogada na água, mas não
achei. Olhei até debaixo das largas cadeiras, até que o funcionário
pigarreou e eu levantei a cabeça para encará-lo.
— Acho que a senhorita está procurando aquilo ali — disse
ele, apontando para um lugar que identifiquei como uma pequena
sauna. — São seus, certo? Os pés dos rapazes são bem maiores.
— Sim! — respondi e sorri em agradecimento. — Obrigada!
Sentei-me no chão mesmo para colocar as meias que, para
minha vergonha, tinham sido meticulosamente dobradas, e depois
enfiei meus pés nos tênis velhos. Acenei para o homem antes de ir
embora e pedi o uber enquanto caminhava até a portaria do
condomínio, que ficava a uns cinco minutos de caminhada.
O carro chegou muito rápido e eu nem precisei esperar muito.
Assim que entrei e dei bom dia ao motorista, deitei a cabeça na
janela e deixei minha mente trabalhar. O que tinha acontecido ontem
naquela casa? Tinha levado aquele tombo ao beijar Odin e ser
rejeitada, mas o pior é que não fiquei triste como achei que ficaria.
Quer dizer, eu até me senti mal nos primeiros minutos, mas então a
presença de Eros me fez esquecer completamente disso. Eu fiquei
animadinha demais durante o tempo em que ficamos juntos nos
quartos.
Respirei fundo e fechei um pouco os olhos. Sabia que tinha um
histórico ruim para namorados, mas começar a gostar de um
homem gay era o início do apocalipse. Não podia deixar isso
acontecer, precisava cortar logo de cara qualquer gracinha que meu
coração quisesse inventar para mim. Porque, claro, ele iria inventar.
Não dava para permanecer muito tempo na presença de nenhum
Montenegro e não se embriagar com a atração que ambos
exalavam. Tinha sido bem difícil mesmo me controlar para não dar
uma passada de mão no tanquinho de Eros ou beijar a boca dele só
pra ver se ficaria irritado. Graças a Deus, eu não tinha bebido tanto
a ponto de passar essa vergonha.
Dei de cara com Sabrina tomando café quando entrei em casa
e não consegui passar por ela sem que me fizesse um
interrogatório. Na véspera mandei uma mensagem curta e objetiva,
só avisando que não dormiria em casa e, obviamente, conhecendo-
me como ela me conhecia, ficou espantada. Não respondi nenhuma
das sete mensagens que me mandou de volta, querendo saber o
que estava acontecendo. Mas com ela diante de mim e a
sobrancelha bonita arqueada, não consegui fugir por muito mais
tempo.
— Se não quiser me contar tudo bem — murmurou, se fingindo
de chateada —, mas sabe que pode me contar tudo, não é?
— Sei. — Sorri, jogando-me na cadeira ao lado dela e deitando
minha cabeça na mesa. — Estou ferrada.
— Dormiu mesmo na casa dos Montenegros?
— Sim. E antes que você se iluda, não é isso que está
pensando. Dormi sozinha no quarto de hóspedes.
— O irmão bonitão estava lá também?
Minha irmã, a rainha das ilusões, era a grande culpada pela
confusão em que eu tinha me enfiado. Ela ficou enchendo a minha
cabeça sobre os irmãos mesmo antes de eu conhecê-los e isso
deve ter criado toda uma fantasia em minha mente.
— Odin estava lá, mas mana, esquece isso. Eu não tenho
chance com ele — avisei, batendo a testa contra a mesa. — Beijei o
cara e ele fugiu. Só não saiu correndo porque é muito educado, mas
fingiu que nada tinha acontecido e foi dormir.
Sabrina murchou, os ombros e o sorriso caindo
simultaneamente, assim como aconteceu comigo no segundo após
o beijo malsucedido. Porém, nenhuma de nós duas gostava de
sofrer por muito tempo, então ela não demorou para balançar os
cabelos, abrir bem os olhos e colocar um novo sorriso no rosto.
— Quem perde é ele — falou, alisando minha nuca. — Nunca
vai achar ninguém com mais personalidade do que você.
Talvez alguns homens não queiram mesmo mulheres com
tanta personalidade. Virei o rosto para ela e sorri também,
lembrando de Odin me perguntando sobre meus piercings. Será que
isso o deixou assustado? Eu não devia ter comentado sobre usar
um nas minhas partes íntimas, era um assunto muito particular e ele
não precisava saber. E ao pensar na intimidade, lembrei de algo
muito pior.
— Mostrei os peitos para o Eros — soltei, morta de vergonha,
enterrando o rosto no braço.
— Quê? O gay?
Balancei a cabeça com força e ouvi a risada de Sabrina ao
meu lado. Quando ela devia me dar força e apoio moral, fazia
justamente o contrário. Estiquei a mão sem olhar e dei um tapa em
alguma parte do corpo dela, que reclamou e afastou meus dedos.
— O que deu em você?
— Eu não sei! Estávamos falando sobre silicone e eu quis uma
opinião dele sobre os meus peitos — murmurei, ouvindo a risada da
minha irmã. — Uma coisa muito comum sair tirando a blusa por aí.
Só que não. E depois eu não entendo porque só arranjo homem
estranho.
— Eu nem sabia que você tinha vontade de colocar silicone.
— Eu não tenho! — choraminguei, recostando-me à cadeira e
depois rindo sozinha da minha idiotice. — Não sei o que me deu e
isso me causa medo, Bri. Porque eu gostei muito de conversar com
o Eros ontem.
— Medo? — Ela tocou minha mão, toda carinhosa. — Lia, é
bom fazer novas amizades, principalmente se você se sentiu tão à
vontade com ele a ponto de tirar a roupa. Por que está com essa
carinha?
— Essa é a questão. Eu não sei se enxerguei o Eros como
apenas um amigo ontem... — Esperei pela reação dela que
demorou a chegar, mas logo Sabrina arregalou os olhos. — É o
fundo do poço, né? Ficar atraída por um cara que não me olharia
com interesse nem se eu ficasse pelada na frente dele com uma
melancia na cabeça.
— É... Não. Sou sempre a primeira a incentivar, mas não dá
mesmo. — Sabrina franziu a testa e os lábios ao mesmo tempo. —
Eu pensei que você o achasse irritante. Não teve isso de você
quase não ter aceitado o trabalho?
— Ele é um saco — respondi, rindo. — Mas tem qualidades e
é muito bonito...
— Mais que o Odin? — Sabrina perguntou, dando um
sorrisinho safado.
— Eles são bem diferentes. O Eros tem alguma coisa... Aquele
estilo de malandro que te faz sofrer e sabe que é irresistível.
— E gay — frisou minha irmã. — Não se esqueça dessa parte.
— O gay mais hétero que eu já conheci. Juro por Deus, se
você convivesse com ele, entenderia porque estou assim. Ah,
esquece! Vou tomar um banho e trabalhar um pouco.
Roubei o pedaço do pão com manteiga que ela estava
comendo e me levantei, dando um beijo em seu rosto antes de ir
para meu quarto. Deixei o computador ligando enquanto me
banhava, depois coloquei a roupa do Eros na máquina de lavar e fui
preparar um café da manhã simples para mim. Queria adiantar uma
encomenda até a hora do almoço, para poder relaxar um pouco
naquele sábado, antes de sairmos para um evento com o buffet.
Desde que saí da Barra da Tijuca, não mandei nenhuma
mensagem para Eros e nem mandaria. Queria fingir que estava tudo
normal, que nada aconteceu, para deixar que ele me procurasse
primeiro. Também precisava parar de pensar um pouco nos irmãos
Montenegro e tirá-los da minha cabeça, afinal, tinha outras coisas
com as quais me preocupar.
Eu nunca fui aquele tipo de garota que só pensa em garotos.
Tive minhas paixonites impossíveis quando era adolescente, mas
não saía contando para todo mundo, perseguindo a pessoa nem
sonhando acordada com ela o tempo todo. Então não tinha a menor
lógica ficar passando por isso aos vinte e um anos.
Relacionamentos não eram o foco da minha vida.
Com isso em mente, fiquei o mais longe do celular que podia e
me concentrei totalmente nas ilustrações que precisava terminar.
Almocei com Pedro e Sabrina e passei um tempinho depois do
almoço olhando alguns vídeos de danças de padrinhos, para pegar
umas ideias. Claro que para montar a coreografia eu precisaria da
seleção de músicas que Pedro Henrique tinha ficado de me passar,
mas já era bom eu me adiantar em algumas coisas.
A noite foi agitada servindo num aniversário de quinze anos,
fazendo apenas o trabalho de garçonete, já que não teve flash mob.
No domingo, tirei o dia para curtir uma tarde no sofá assistindo
filmes com minha irmã e meu cunhado. Fizemos também uma
chamada em vídeo com nosso pai que morava na Califórnia com
sua esposa e o filho dela. Nós nos falávamos normalmente, mas
não tínhamos exatamente uma relação muito calorosa porque ele
sempre foi muito ausente. Sabrina ainda pegou uma fase em que
ele vivia com nossa mãe, mas eles se separaram e ele voltou para
os Estados Unidos quando eu só tinha dois meses de vida. Como
nunca vinha ao Brasil, eu só vi meu pai pessoalmente nas únicas
três vezes em que viajei para o exterior.
Dormi cedo porque acordaria antes das sete na segunda-feira.
Tinha reservado uma sala de dança para a primeira hora do horário
comercial e não podia me atrasar porque precisava daquele tempo
para treinar uma coreografia pessoal. Semestralmente, uma amiga
com quem eu dancei por algum tempo quando era mais nova, dava
uma festa frequentada basicamente por outros bailarinos. Sofia hoje
tinha uma pequena companhia de dança e se juntava com outras
duas maiores para fazerem um concurso a cada seis meses. Eu
sempre tentava participar porque era uma chance de ganhar uma
graninha a mais.
A festa desse final de ano aconteceria na quinta-feira e eu
pretendia ensaiar todos os dias da semana. Quando saí do treino
naquela segunda de manhã, dei um pulo na costureira que estava
fazendo minha roupa, para a última prova antes de me entregar
pronta na quarta.
Estava voltando para casa, dentro do ônibus, quando meu
celular vibrou com a chegada de uma notificação. Puxei do bolso
para verificar e vi que Eros estava dando sinal de vida. Podia deixar
para ler em casa, mas a ansiedade misturada com a curiosidade
falaram mais alto.

Barbiezinha, bom dia. Dormiu bem?


Passou protetor solar hoje?
Preciso avisar que não poderemos ensaiar na quarta,
pois o Edu precisou viajar a trabalho e só volta na quinta de
manhã.
Podemos marcar pra esse dia?

Não. Não, não e não. Tudo menos quinta. Quis bater em Eros,
mas ele nem tinha culpa de nada. Respirei fundo, virei o rosto para
olhar pela janela do ônibus naquele sol escaldante e o trânsito
engarrafado, sem correr uma brisa ali dentro, sentindo minúsculas
gotículas de suor escorrerem pela minha testa.
Eu tenho um compromisso MUITO importante na quinta-feira.
Só dá pra marcarmos se for às 19h em ponto, SEM ATRASOS.
Porque precisarei estar às 23h em Laranjeiras.
Que compromisso tarde é esse num dia de semana?
Prostituição?
ESTOU BRINCANDO.

Desviei minha atenção do celular quando notei que uma


grávida tinha entrado no ônibus e ninguém cedeu o lugar a ela.
Ainda lancei um olhar torto para o homem sentado bem ao meu
lado, mas ele fingiu estar dormindo, como sempre faziam quando
não queriam levantar. Deixei Eros sem resposta, guardei meu
celular na mochila e me levantei, dando meu lugar para a mulher
com uma barriga já bem crescida. Ela ofereceu para segurar minha
mochila, mas como eu ia descer três pontos à frente, recusei e
agradeci, indo para a traseira do ônibus cheio.
Meu cunhado estava em casa quando cheguei, de vez em
quando ele e Sabrina trocavam os horários na empresa. Meu
estômago roncou ao sentir o cheiro da comida sendo preparada e
larguei tudo no sofá para dar uma conferida na cozinha. Pedro
estava provando o molho e parei bem ao lado dele, com cara de
pidona, esperando poder provar também.
— Porra, que susto, Lia! — xingou ao me ver ali e riu. — Dá
pra parar de ser silenciosa?
Ele guiou a colher até minha boca e depois a descartou na pia,
enquanto eu suspirava pelo sabor incrível. Pedro arrasava na
cozinha, não era à toa que ele decidiu abrir um buffet.
— Não faço de propósito — falei, me defendendo. — Só fui
rapidamente atraída pelo cheiro. Qual o rango?
— Lasanha à bolonhesa. Vou levar pra Sabrina também
porque eu a conheço e se deixar, não para pra almoçar.
— Acho que ela não vai comer — avisei, dando mais uma
fungada naquele cheiro antes de sair da cozinha. — Ontem ela tinha
dito que passaria a semana sem glúten.
Revirei os olhos sozinha enquanto pegava minha mochila e ia
para o quarto, pensando em como eu era realmente sortuda. Podia
comer o que quisesse que não engordava, só precisava lidar com as
celulites, mas isso era o de menos. Também não tinha nenhuma
alergia que me impedisse de comer qualquer alimento. Já Sabrina,
vivia em guerra com a balança, apesar de ser a mais gostosa das
duas.
Depois de tirar os sapatos, deitei na cama e peguei o celular,
relendo as últimas mensagens que troquei com Eros.

Meu compromisso não é da sua conta, mas se trata de uma festa.


Rola um concurso e eu me inscrevi, não posso perder.
De qualquer forma, vocês precisam se organizar de uma vez.
Não dá pra ficar ensaiando só 1x na semana e só quando puderem.

Como ele estava online, a resposta veio rápido.


Vou conversar com o pessoal e pedir mais responsabilidade.
Pode ser na quinta então, nesse horário das 19h?
Sim. NÃO ATRASEM.

Larguei o celular e peguei um caderninho para anotar nomes


de músicas que eu queria indicar ao Pedro Henrique. Conhecia
várias legais para utilizar na dança e assim incentivaria ele a tomar
logo uma decisão porque quanto mais tempo demorasse para
escolher a trilha sonora, mais trabalho eles me dariam.

Quando cheguei na casa de Eros na quinta-feira, ele me


surpreendeu ao me esperar prontinho, em pé na sala, muito
diferente das duas últimas vezes em que fui lá. Estranhei o sorriso
doce que abriu para mim ao me receber e logo pensei que estava
tentando compensar o fiasco da sexta, onde eu só perdi meu tempo
e dinheiro.
— A boneca que faltava na coleção da Barbie chegou!
— Boa noite — murmurei um cumprimento e soltei no sofá a
bolsa com minha roupa e os sapatos da festa. — Onde eu posso
guardar isso? Vou me arrumar mais tarde aqui na sua casa.
Tudo bem que eu tinha esquecido de comunicar esse detalhe
a Eros, mas ele não pareceu incomodado. Só pegou a bolsa,
parecia curioso para saber o que havia dentro, pois meus sapatos
pesavam um pouco.
— Vou deixar naquele mesmo quarto que você usou da outra
vez — avisou, subindo a escada enquanto eu esperava na sala.
Não vi nem Eva nem Odin, o que era uma pena, mas talvez
até fosse bom para eu tirar logo o Montenegro da cabeça. Se ele
realmente tivesse o mínimo interesse em mim, depois do beijo de
sexta tinha se virado para conseguir meu número de telefone com
Eros e me enviado uma mensagem. Mas parei de pensar no loiro
quando o irmão mais novo dele desceu, passou um braço pelos
meus ombros e me guiou para a garagem, querendo saber como eu
tinha passado a semana.
— Como foi sua semana, Barbie Dark? — perguntei para a
bailarina sentada em meu carro, que digitava freneticamente no
celular.
Não confessaria isso a ela, mas tinha até sentido falta das
patadas que soltava de vez em quando. No sábado quando acordei
e fui até o quarto de hóspedes, me surpreendi ao descobrir que
Magnólia já tinha ido embora e não avisou a ninguém. Mais
surpreendente ainda era saber que ela sequer mandou uma
mensagem, ligou ou enviou sinal de fumaça para comentar sobre a
noite de sexta, sobre a bebedeira ou as conversas estranhas.
— Normal, sem muita novidade — respondeu quando soltou o
celular entre as pernas e me olhou. — E a sua?
— Considerando que não matei ninguém na mesa de cirurgia,
acho que foi esplêndida. — Sorri para ela. — Passei os dias
tentando reorganizar minha agenda, pois surgiu um convite para
palestrarmos num seminário em Chicago semana que vem. Então
foram dias corridos.
— Que chique. Vocês falam inglês ou a palestra será em
português?
— Inglês. Fala algum idioma?
— Um pouco de inglês, mas não sou fluente. Um dos meus
maiores arrependimentos é não ter estudado mais, não ter feito um
bom curso.
— Você só tem vinte e um anos, Magnólia Baby — brinquei e
ela revirou os olhos, depois me deu um soquinho no braço. — Dá
tempo de fazer o que quiser.
Ela pegou o celular e mexeu nele, mostrando a tela para mim
com a foto de um homem na faixa dos cinquenta anos. Cara de
gringo, olhos claros, o tipo de coroa boa pinta e antes que ela
explicasse, eu já tinha entendido.
— Meu pai é americano, já fui algumas vezes visitá-lo, então
tudo o que sei, aprendi na prática mesmo.
— Não imaginava que a Barbie Dark era importada.
— Não sou — disse ela, rindo. — Nasci no Brasil, ele morava
aqui com minha mãe. Os dois se conheceram na época em que
Robert estava residindo a trabalho no país, aí se apaixonaram,
juntaram as coisas e tiveram duas filhas. Eu era bebê quando se
separaram e ele voltou para os Estados Unidos.
— Sinto muito então.
— Ele está vivo, não precisa sentir. — Ela riu de novo e eu
precisava contar que ficava muito melhor rindo do que
resmungando.
— Ah, desculpa. É que conheço tantas pessoas que
cresceram com os pais separados que sempre fico sem saber dizer
se é bom ou ruim — expliquei para não parecer um louco. — Acho
que Odin e eu fomos privilegiados nesse sentido. Nossos pais se
amavam muito.
— Tivemos padrastos. Se serve de consolo.
Sorri, balançando a cabeça e estacionando na porta do crossfit
de Eduardo. Avistei todos eles na porta, conversando, e olhando
com interesse quando Magnólia saiu do carro. A garota tinha
escolhido uma calça preta larga de tecido fino, porém com a cintura
muito baixa, além de uma blusa preta colada ao corpo, que deixava
à mostra um pouco de pele abaixo do umbigo.
— Boa noite, moças, como estão? — perguntou ela ao passar
por eles e jogar a mochila no chão. — Espero que tenham treinado
a coreografia em casa durante esses dias.
— A gente mexe o quadril de outra forma mais interessante,
gatinha.
Revirei os olhos ao encarar Cesoti, que afastou as pernas e
encenou uma trepada invisível, a mão batendo no ar como se
batesse em alguma bunda. Mas o melhor foi Magnólia olhando para
ele com asco e parando ao lado do idiota.
— César, não tem ninguém aqui que iria pra cama com você. A
não ser que algum dos seus amigos possua um tesão incubado, o
que não parece ser o caso. Portanto, não precisa se esforçar tanto
para mostrar que é um macho alfa.
— Ela é toda lingaruda e irônica — desdenhou ele, inclinando
o corpo na direção da garota. — A hora que eu te pegar, gatinha,
vou fazer um estrago e você vai gostar.
— A hora que você me pegar, vamos parar na delegacia — ela
falou, dividindo as sílabas com ênfase — porque pra isso acontecer,
só se você tentar abusar de mim.
Cesoti ficou em silêncio e eu imaginei que ele estivesse
assimilando as palavras dela, que foram incríveis. Tudo bem que a
bailarina gostava de me dar umas patadas de vez em quando, mas
não era nem remotamente parecido com a interação agressiva que
ela mantinha com César. Eu podia garantir que ela tinha asco dele
só pela forma como direcionava o olhar ao meu amigo. Todos nós
permanecemos mudos, até que PH pigarreou e se meteu entre os
dois, sorrindo para Magnólia e balançando um papel no ar.
— Fiz a lista das músicas — avisou ele, desviando a saia justa
da noite. — Pode dar uma olhada?
Magnólia voltou ao modo profissional e piscou para o noivo
entre nós, pegando o papel da mão dele e se virando de costas.
Aproveitei esse momento para me aproximar de César e toquei o
ombro dele, colocando pressão em meus dedos. Murmurei para que
me acompanhasse até o lado de fora e ele me seguiu, visivelmente
puto.
— Cara, você precisa parar com essas merdas — falei,
observando os carros que passavam pela rua. — Sabe que eu levo
a maioria das coisas na esportiva, mas não mexa com a Magnólia,
ok?
— Por quê? — perguntou, cruzando os braços e erguendo o
canto da boca. — Fala a verdade, está comendo ou não?
— Não. Mas isso não significa que você pode ser escroto com
ela. Aturo todas as suas merdas, mas não vou aceitar que perturbe
a garota. — César deu um sorriso que eu sabia o que havia por trás.
Tudo ele enxergava como um grande desafio. Não sabia receber e
aceitar uma negativa. — Pelo bem da nossa amizade, se você se
importa com isso.
Dei um tapa nas costas dele e voltei para dentro, observando
PH e Magnólia conversando de forma animada. Quando cheguei
mais perto deles, descobri que na verdade ela estava era
reclamando de alguma coisa.
— Seu amigo quer que eu coloque quinze músicas na
coreografia — disse ao notar minha aproximação, como se eu
pudesse fazer alguma coisa. — Quinze! Geralmente essas danças
são feitas com quatro ou cinco, no máximo seis.
— Não consigo diminuir essa lista, todas essas músicas
significam algo para nós dois.
— Então ficarão dançando por meia hora. Todos concordam
com isso?
Óbvio que mataríamos PH se ele não cortasse a porra da lista.
Eu não tinha concordado em passar o casamento inteiro dançando
para divertir ninguém. Ele me lançou um olhar como se pedisse
ajuda, mas Magnólia dobrou o papel e o tocou no braço.
— Olha, como estou de fora, é fácil fazer isso. Se quiser,
posso avaliar a lista toda e deixar apenas as que melhor se
conectam para trabalharmos a coreografia.
— Pode ser. Eu prefiro.
Por que todos não podiam ser educados como PH era? Até
mesmo Guilherme e Eduardo pisavam um pouco no freio na
presença de Magnólia, apenas César se esforçava para ser o
babaca de sempre. Lancei a ele mais um olhar de aviso quando
voltou para dentro e foquei no que a bailarina começou a falar sobre
os próximos ensaios.
A hora seguinte passou rápido demais, com a repetição
daquela música chiclete e da coreografia que eu já tinha decorado
na teoria, mas que na prática era outra história. Não foi pior que o
primeiro ensaio, mas estava longe de ser o ideal que Magnólia
esperava. Mas ela avisou que não insistiria muito mais e que não
teríamos ensaio no dia seguinte. Tiraria todo o final de semana para
estudar a lista de PH e começar a pensar na coreografia oficial.
Eu tinha acabado de sair do banho e estava me enrolando na
toalha quando bateram na porta do meu quarto. Como ninguém da
minha família estava em casa, minha companhia era apenas
Magnólia, que se arrumava no quarto de hóspedes, logo imaginei
que fosse ela para avisar que estava indo embora.
Nada, absolutamente nada, me preparou para o que apareceu
diante dos meus olhos quando abri a porta. Era como se Magnólia
estivesse nua, mas não estava. Seu corpo extremamente branco
estava coberto por faixas pretas em couro ou algum tecido que
imitava couro, cobrindo lugares estratégicos como os seios e outras
partes íntimas, mas da cabeça aos pés ela parecia... amarrada em
tiras.
— Se você fizer alguma piada sobre o meu corpo, vai perder
as bolas — ameaçou e se antecipou, me dando um tapa no braço.
— Que porra é essa? — perguntei, chocado.
— Minha fantasia — respondeu ela como se não fosse
bobeira, como se estivesse usando um vestidinho curto. — Preciso
de ajuda para ajeitar as faixas aqui atrás porque não consigo.
A bailarina simplesmente entrou em meu quarto e se virou de
costas para mim, puxando o cabelo por cima dos ombros e expondo
toda sua retaguarda.
— Por que você está vestida assim? A tal da festa é uma
orgia?
— O concurso de dança sempre possui um tema. Dessa vez é
fetiche e eu escolhi bondage. — Ela me olhou por cima do ombro.
— Também tem um pouco de inspiração no filme O Quinto
Elemento. Já assistiu?
— Você vai dançar usando apenas isso?
— Sim, papai — respondeu, revirando os olhos. — Dá pra me
ajudar ou não? Você não escutou nada do que eu disse, né Eros?
Não, não tinha escutado. Ou melhor, até tinha, mas meu
cérebro não processou muita coisa. Magnólia pensava que eu era
gay, mas puta que pariu, era bem difícil raciocinar com a criatura
seminua perto de mim. Era idiotice, sabia disso. Bastava dar um
pulo na praia, alguns minutos de distância da minha casa, para ver
mulheres com muito mais pele exposta do que a garota estava. Até
mesmo a parte da calcinha era decente, cobria todo o pequeno
traseiro dela, nada daquela coisa fio dental entrando no rabo. Minha
surpresa talvez tivesse relação com o fato de ainda não ter visto
Magnólia com nenhuma roupa decotada ou indecente.
— Do que... você precisa?
— As faixas — respondeu, trazendo a mão até as costas. —
Tem que esticá-las e deixá-las retas. Não pode ficar torto.
A roupa possuía cinco faixas pretas na horizontal, sendo que
uma era do sutiã e outra da calcinha. As demais ficavam: uma na
cintura fina, outra no meio das coxas e a última protegia os joelhos.
Também havia três faixas colocadas na vertical: a frontal, que
começava na coleira do pescoço e terminava na calcinha. As outras
duas ficavam uma em cada perna, do quadril até o joelho. Dessa
forma, todas as tiras se sustentavam e estavam interligadas.
Desenrolei o sutiã e logo senti que o tecido era grosso e
extremamente apertado. Parecia ter sido feito sob medida para
Magnólia porque eu mal conseguia enfiar meu dedo entre o couro e
a pele dela.
— O que tem nesse concurso, afinal?
— O primeiro lugar ganha sete mil reais — disse ela, animada.
— Eu ganhei ano retrasado e espero ganhar de novo.
— E entra qualquer pessoa nessa festa?
— Quem paga, entra. — Magnólia encolheu os ombros e
tentou olhar por cima do ombro para conferir meu trabalho. — Não
deixa nada torto!
Apertei os braços dela e a fiz ficar ereta, cabeça à frente, para
eu conferir como estava a roupa. Desenrolei a faixa da cintura e me
abaixei para fazer o mesmo com a coxa esquerda, sem conseguir
evitar dar uma boa olhada na bundinha pequena e arrebitada.
Parecia ser durinha, mas não podia meter a mão e tocar para
conferir.
— Vou com você — avisei ao me reerguer e ela se virar,
surpresa. — Aguarde cinco minutos enquanto visto alguma coisa.
— Por quê? — Parecia horrorizada com minha ideia.
— Não vou deixar você andar de uber desse jeito.
— Mas eu não iria só com essa roupa, né? Trouxe um vestido
para colocar por cima. — Ela revirou os olhos, rindo. — Óbvio que
não vou sair da sua casa assim.
— Nem vou deixar você sozinha na festa. Os abutres vão amar
a sua fantasia e a mão boba vai rolar fácil pelo seu corpo.
— E isso não tem nada a ver com você querendo ver os
bailarinos gostosos dançando?
Respirei fundo e sorri de forma afetada, puxando-a pelos
ombros e segurando seu rosto entre as mãos. A maquiagem estava
bem dark, o batom preto em contraste com a pele branca, as
sobrancelhas bem marcadas e escurecidas, além dos olhos
carregados na sombra preta. O cabelo estava repartido no meio e
preso em dois coques no alto da cabeça, um de cada lado.
— Você está bem bonita — admiti, sorrindo e conferindo os
fios que se soltavam do penteado. — Vem cá.
Segurei a mão dela e a puxei para fora do quarto,
atravessando o corredor até passar pela porta da minha sobrinha.
Um quarto todo decorado em azul e ro