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Vice-Diretor
DESEMBARGADOR HÉLIO QUAGLIA BARBOSA
Diretor Presidente
SÉRGIO KOBAYASHI
Diretor Vice-Presidente
LUIZ CARLOS FRIGERIO
Diretor Industrial
CARLOS NICOLAEWSKY
Coordenadoria Editorial
CARLOS TAUFIK HADDAD
REVISTA DA
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA
Semestral
2001, v. 2 (1-2
Individualização da pena
José Antonio Paganella Boschi ......................................................... 113
Relativizar a coisa
julgada material
1. Minhas premissas
E
screvi em sede doutrinária que “sem ser um efeito da sentença, mas especial
qualidade que imuniza os efeitos substanciais desta a bem da estabilidade da
tutela jurisdicional, a coisa julgada não tem dimensões próprias, mas as
dimensões que tiverem os efeitos da sentença.” 1 Sendo um elemento imunizador dos
efeitos que a sentença projeta para fora do processo e sobre a vida exterior dos
litigantes, sua utilidade consiste em assegurar estabilidade a esses efeitos, impe-
dindo que voltem a ser questionados depois de definitivamente estabelecidos por
sentença não mais sujeita a recurso. A garantia constitucional e a disciplina legal
da coisa julgada recebem legitimidade política e social da capacidade, que têm,
de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença.
Venho também pondo em destaque a necessidade de equilibrar adequada-
mente, no sistema do processo, as exigências conflitantes da celeridade, que favo-
rece a certeza das relações jurídicas, e da ponderação, destinada à produção de
resultados justos. O processo civil deve ser realizado no menor tempo possível,
para definir logo as relações existentes entre os litigantes e assim cumprir sua
missão pacificadora; mas em sua realização ele deve também oferecer às partes
meios adequados e eficientes para a busca de resultados favoráveis, segundo o
direito e a justiça, além de exigir do juiz o integral e empenhado conhecimento
dos elementos da causa, sem o que não poderá fazer justiça nem julgará bem. A
síntese desse indispensável equilíbrio entre exigências conflitantes é: o processo
deve ser realizado e produzir resultados estáveis tão logo quanto possível, sem que com
isso se impeça ou prejudique a justiça dos resultados que ele produzirá. Favorecem o
primeiro desses objetivos os prazos preclusivos impostos às partes, as preclusões
de toda ordem e, de modo superior, a autoridade da coisa julgada material que
incide sobre os efeitos da sentença a partir de quando nenhum recurso seja mais
possível; são fatores ligados ao valor do justo o contraditório oferecido às partes
e imposto ao juiz, as garantias constitucionais da igualdade, da ampla defesa,
do devido processo legal, do juiz natural etc., assim como os recursos e a ação
rescisória, mediante os quais o vencido procura afastar decisões que o desfavore-
cem e o Poder Judiciário tem a oportunidade de aprimorar seu produto.2
1. Cf. DINAMARCO, “Intervenção de Terceiros”, nº 1, p. 14. Sentença é, por definição legal, o “ato pelo qual o
juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (CPC, art. 162, § 1o). Estamos falando da
sentença de mérito, que é a única suscetível de obter a autoridade da coisa julgada material.
2. Cf. DINAMARCO, “A Instrumentalidade do Processo”, nº 32, pp. 229 ss. O que ali digo tem assento em sábias
e notórias lições dos prestigiosos Piero Calamandrei e Francesco Carnelutti, que cito.
Como é notório e já foi dito, um dos valores buscados pela ordem jurí-
dico-processual é o da segurança nas relações jurídicas, que constitui podero-
so fator de paz na sociedade e felicidade pessoal de cada um. A tomada de
Com essa função e esse efeito, a coisa julgada material não é insti-
tuto confinado ao direito processual. Ela tem acima de tudo o
significado político-institucional de assegurar a firmeza das situ-
ações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma
vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futu-
ro a situação jurídico-material das partes, relativa ao objeto do
julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou
pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está defi-
nitivamente dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se
relacionam juridicamente na vida comum, ou quanto à pertinência
de bens a um deles. As normas e técnicas do processo limitam-se a
reger os modos como a coisa julgada se produz e os instrumentos
pelos quais é protegida a estabilidade dessas relações — mas a
função dessas normas e técnicas não vai além disso. Nesse sentido
é que prestigioso doutrinador afirmou ser a coisa julgada material
o direito do vencedor a obter dos órgãos jurisdicionais a observância
do que tiver sido julgado (Hellwig).
10. Cf. DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, I, n. 73, e II, nn. 632-633.
11. Cf. “A Instrumentalidade do Processo”, que agora está na oitava edição e já foi citada acima, esp. nº
36.3, p. 293.
12. Op. cit., nº 21, esp. p. 161.
13. Cf. STJ, 1a T., REsp nº 240.712/SP, j. 15.2.2000, rel. José Delgado, m.v.
Caldas, quando reafirmou que a autoridade da coisa julgada está sempre con-
dicionada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem cuja pre-
sença a segurança jurídica imposta pela coisa julgada “não é o tipo de segurança
posto na Constituição Federal”. Discorrendo didaticamente perante uma platéia
composta na maioria por estudantes, o conferencista ilustrou seu pensamento
com hipotéticos casos de sentenças impondo condenações ou deveres absur-
dos, como aquela que mandasse a mulher carregar o marido nas costas todos os
dias, da casa ao trabalho; ou a que impusesse a alguém uma pena consistente
em açoites por chicote em praça pública; ou a que, antes do advento das mo-
dernas técnicas biológicas (HLA, DNA), houvesse declarado uma paternidade
irreal. “Será que essa sentença, mesmo transitada em julgado, pode prevalecer?”,
indaga retoricamente, para depois responder apoiando-se em obra de Hum-
berto Theodoro Júnior: “as sentenças abusivas não podem prevalecer a qual-
quer tempo e a qualquer modo, porque a sentença abusiva não é sentença”.
14. Cf. STF, 1a T., RE nº 93.412/SC, j. 4.5.82, rel. Rafael Mayer, m.v.
15. Cf. STF, 1a T., RE nº 105.012-RN, j. 9.2.88, rel. Néri da Silveira, m.v.
16. Cf. “Inflação e processo”, que figura como capítulo no livro-coletânea “Fundamentos do Processo Civil
Moderno”, I, nºs 154-159, pp. 352 ss.
17. Cf. “Tratado da Ação Rescisória das Sentenças e de Outras Decisões”, § 18, nº 2, esp. p. 195.
7. Eduardo Couture
18. Esses pensamentos estão no parecer editado com o título “Embargos à execução contra a Fazenda Pública”.
19. Cf. “Revocación de los Actos Procesales Fraudulentos”, esp. nº 1, p. 388; sobre o pensamento de Couture,
v. ainda Juan Carlos Hitters, “Revisión de la Cosa Juzgada”, cap. VIII, c, esp. pp. 255-257.
20. Cf. “Revisión de la Cosa Juzgada”, cap. VIII e IX, pp. 256 ss., esp. pp. 325.
21. Op. loc. cit., esp. pp. 305-306.
judicial pode ficar sem efeito quando, por via de ação, vier a ser reconhecida
a existência de um vício de fundo.22
25. Cf. “Manual de Direito Constitucional”, II, nº 141, esp. pp. 494-495.
26. Cf. PETER HERZOG, “Histoire du Droit des États-Unis”, nºs 1-2, p. 3.
27. Cf. “Tratado da Ação Rescisória”, § 4o, nº 7, esp. p. 26.
28. Cf. “Civil Procedure”, §§ 6-10, p. 225. O texto em inglês está assim: “there are some circumstances in which
even though the standard for applying res judicata has been met, preclusion will not result. These situations
arise when the judicial economy policies fostered by claim preclusion are outweighed by some other public
policy underlying the type of action that is envolved”.
“os tribunais somente podem fazer o melhor a seu alcance para encon-
trar a verdade com base na prova, e a primeira lição que se deve apren-
der em tema de coisa julgada é que as conclusões judiciais não podem ser
confundidas com a verdade absoluta” (Currie).32
31. Cf. FLEMING JAMES JR., GEOFFREY C. HAZARD JR. e JOHN LEUBSDORF, “Civil Procedure”, § 11.2, p. 579.
32. “Courts can only do their best to determine the truth on the basis of the evidence, and the first lesson one must
learn on the subject of res judicata is that judicial finding must not be confused with abolute truth”: cfr.
“Mutuality of collateral estoppel: limits of the Bernhard doctrine”, 9 Stan. L.Rev. 281, 315 (1957), apud
COUND-FRIENDENTHAL-MILLER-SEXTON, “Civil Procedure — Cases and Materials”, cap. 17, p. 1.208.
Uma coisa resta certa depois dessa longa pesquisa, a saber, a relatividade
da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual,
dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessida-
de de harmonizá-los. Tomo a liberdade de, ainda uma vez, enfatizar a impe-
riosidade de equilibrar as exigências de segurança e de justiça nos resultados
das experiências processuais, o que constitui o mote central do presente
33. Cf. parecer publicado in Informativo Incijuris, ano 1, nCfr. 10, Joinville, maio de 2000, pp. 5-6, com a ementa
“Coisa julgada. Limites objetivos. Objeto do processo. Pedido e causa de pedir. Trânsito em julgado de
sentença de improcedência de ação de nulidade de escritura pública de reconhecimento de filiação. Possibi-
lidade de ajuizamento de ação declaratória de inexistência de relação de filiação, fundada em ausência de
vínculo biológico”.
estudo e foi anunciado desde suas primeiras linhas. É por amor a esse equi-
líbrio que, como visto, os autores norte-americanos — menos apegados que
nós ao dogma da res judicata — incluem em seus estudos sobre esta a indi-
cação das exceções à sua aplicação. Na doutrina brasileira, insere-se expressi-
vamente nesse contexto a advertência de Pontes de Miranda, acima referida,
de que se levou longe demais a noção de coisa julgada. É igualmente central a
esse sistema de equilíbrio a fórmula proposta em Portugal pelo constituciona-
lista Jorge Miranda e também citada acima, ao propor que “assim como o
princípio da constitucionalidade fica limitado pelo respeito do caso julgado, tam-
bém este tem de ser apercebido no contexto da Constituição”. São essas as grandes
premissas e as colunas em que se apóiam a minha tentativa de sistematização
do riquíssimo tema em exame e as conclusões que oferecerei em resposta à
consulta recebida.
Para a reconstrução sistemática do estado atual da ciência em relação ao
tema, é também útil recapitular em síntese certos pontos particulares revela-
dos naquela pesquisa, a saber:
§ 3o - Proposta de sistematização
34. Cf. “Manuale di Diritto Processuale Civile”, II, nº 394, esp. p. 420.
35. Cf. “Efficacia ed autorità Della Sentenza”, nº 15, pp. 40-41.
36. “Institutos Bifrontes: só no processo aparecem de modo explícito em casos concretos, mas são integrados por
um intenso coeficiente de elementos definidos pelo direito material e – o que é mais importante – de algum
modo dizem respeito à própria vida dos sujeitos e suas relações entre si e com os bens da vida. Constituem
pontes de passagem entre o direito e o processo, ou seja, entre o plano substancial e o processual do
ordenamento jurídico (Calamandrei)” (cf. DINAMARCO, “Instituições de Direito Processual Civil”, I, nº 6).
37. Cf. DINAMARCO, “Litisconsórcio”, nº 64.8, esp. p. 293; nº 65.1, texto e nota 51, esp. p. 301.
dos quais isso deve acontecer. Alguns sinais já foram dados, no entanto,
como a alusão a uma coisa julgada inconstitucional (José Augusto Delgado) e
a invocação de outras garantias constitucionais que com a coisa julgada
devem conviver, como a da moralidade administrativa, a do justo preço nas
desapropriações e a do meio-ambiente ecologicamente equilibrado (Mazzilli).
Invocam-se também a fraude, o princípio da razoabilidade e o da proporcio-
nalidade, como fundamentos para a relativização da autoridade da coisa
julgada em certos casos.
Proponho-me, neste ponto, a tentar o esboço de uma reconstrução dog-
mática dos princípios e conceitos emergentes dessas idéias colhidas aqui e ali,
em busca de critérios objetivos constantes e capazes de oferecer segurança no
trato da coisa julgada material em face dos demais valores presentes na ordem
jurídica. Será um trabalho conduzido pelo método indutivo, partindo do
particular em busca do geral — ou seja, partindo da casuística levantada e das
idéias invocadas em cada caso, com vista a encontrar um legítimo ponto de
equilíbrio entre a garantia constitucional da coisa julgada e aqueles valores
substanciais. Como fio condutor dessa investigação e das hipóteses de mitiga-
ção da coisa julgada, valho-me do conceito técnico-jurídico da impossibilidade
jurídica dos efeitos da sentença.
38. Alusão ao drama “O mercador de Veneza”, em que o personagem shakespareano Shylock alimentava uma
pretensão dessa ordem.
39. Cf. A apresentação do tema que faço na tese “Execução Civil”, nºs 246-250, pp. 382 ss., com farta indicação
doutrinária.
O que está dito acima coincide com a idéia posta por Humberto
Theodoro Jr., de que “as sentenças abusivas não podem prevalecer a
qualquer tempo e a qualquer modo, porque a sentença abusiva não
é sentença”. Não cumpre a finalidade das sentenças de mérito aquela
que, por estar propondo um resultado impossível, não é capaz de
produzir resultado algum.
40. Cf. “Teoria Generale Del Negozio Giuridico”, III, nº 57, esp. p. 9 trad.. Discorri sobre o tema in “Fundamentos
do Processo Civil Moderno”, I, nº 181, pp. 550 ss., esp. nota 28, pp. 551-552.
41. Cf. “Tratado General de Filosofía del Derecho”, cap. XVIII, nº 3, esp. p. 483.
42. Cf. “Direito Administrativo Brasileiro”, pp. 83-84.
porque, como sempre, não se concebe imunizar efeitos cuja efetivação agrida
a ordem jurídico-constitucional.
49. STF, Pleno, RE nº 97.589, 17.11.82, rel. Moreira Alves, v.u., DJU 3.6.83.
50. Liebman nega a admissibilidade da ação rescisória nesse caso, porque a sentença seria inexistente e,
sendo inexistente, não haveria coisa julgada a debelar: cfr. “Nulidade da Sentença Proferida Sem Citação do
Réu”, p. 183.
51. Cf. DINAMARCO, “Litisconsórcio”, nºs 65 a 65.4, pp. 300 ss.
53. Cf. STJ, 3a T., REsp nº 107.248, j. 7.5.98, rel. Menezes Direito, v.u., DJU 29.6.98, p. 160.
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29. LUHMANN, Niklas. Legitimação Pelo Procedimento, Brasília, UnB, 1980.
30. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, 10a ed., S.
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31. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, 4a ed., S.Paulo, Ed. RT,
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32. MEIRELLES, Hely Lopes.Direito Administrativo Brasileiro, 17a ed., S.Paulo,
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33. MILLER, Arthur R. Civil Procedure - Cases and Materials, 6a ed., St. Paul
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34. MILLER, Arthur R. Civil Procedure, St. Paul (Minn.), West Publishing,
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35. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 3a ed., Coimbra, Coim-
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36. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de
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37. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ação Rescisória
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38. RECASÉNS SICHES, Luís. Tratado General de Filosofía del Derecho, 9a ed.,
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39. SEXTON, John E. Civil Procedure - Cases and Materials, 6a ed., St. Paul
(Minn.), West Publishing, 1993 (em coop.).
40. THEODORO JR., Humberto. “Embargos à Execução Contra a Fazenda
Pública”, na coletânea Regularização Imobiliária de Áreas Protegidas, II, publi-
cação do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo,
S.Paulo, 1999.
O Ônus da Prova e
o art. 6º, VIII do CDC
(Lei nº 8.078/90)
1. Introdução
U
m dos temas mais intrigantes do Direito Processual Civil sempre foi a
questão da prova e a sua situação dentro do processo, não só em razão da
regulamentação dada, das dificuldades imposta pela realidade, mas tam-
bém pelas inúmeras perspectivas dadas ao tema pela doutrina e pela jurisprudência.
A evolução do direito e o surgimento de novas figuras, como a proteção
ao consumidor e seu tratamento diferenciado dentro do processo, tem apenas
possibilitado novas posições e controvérsias.
Para colaborar na polêmica existente na doutrina e na jurisprudência,
procuraremos no presente trabalho abordar a questão da inversão do ônus da
prova, nas ações que envolvem relações de consumo, como possibilita o art.
6º, VIII do CDC.
Para tanto, retrataremos os pontos e premissas fundamentais, para a aborda-
gem do tema, destacando algumas das posições doutrinárias existentes.
Faremos uma breve análise da prova e sua importância para o processo,
bem como o ônus da prova.
2. O Processo e a prova
2.1. O sistema legal vigente na grande maioria dos países, coloca a juris-
dição como a forma principal de solução dos conflitos de interesses1 . Apesar
de existirem outras formas de composição, como a autocomposição ou mes-
mo a arbitragem2 , é através do exercício da atividade jurisdicional que a maioria
dos conflitos de interesses é resolvido.
Como se sabe, o processo civil e especialmente a jurisdição, estão à dispo-
sição das partes visando a solução dos conflitos de interesses. Deste modo, as
partes procuram o Judiciário, reconhecendo, ao menos de início, a impossibi-
lidade de solucionar o conflito pela composição entre elas, se sujeitando a
decisão judicial, que vai substituir a vontade das partes.
Estes conflitos podem aparecer em contextos diferentes, reclamando, portan-
to, atuações distintas do Poder Judiciário para sua solução. Basicamente, os conflitos
se referem a dúvida quanto a própria existência do direito, quanto à satisfação do
direito e, ainda, em relação a regulamentação de situação de urgência.
Para atender de forma adequada e solucionar de forma definitiva estas
diferentes espécies de litígios, foram desenvolvidas diferentes espécies de rela-
ções processuais, de processos, a saber, o processo de conhecimento (dúvida e
definição do direito), de execução (satisfação do direito) e cautelar (regula-
mentação de situação de urgência para garantia do desenvolvimento válido ou
1. Por conflito de interesses se deve entender a pretensão de um resistida por outro, em relação a determinado
interesse ou bem da vida. Evidente que só é relevante o conflito de interesses que é levado a Juízo; sendo que
não adotamos o chamado conceito sociológico de lide, adotado por CARNELUTTI (in “Sistema de Diritto
Processuale Civil”, v. I, ed. 1936, pp. 40, 231 e 250).
2. Com o surgimento da figura do Estado, durante longo período o Estado conservou para si o monopólio da
jurisdição, ou seja, a jurisdição era a única forma solução do conflito de interesses, além da auto composição
entre as partes. No entanto, as próprias partes passaram a buscar outras forma de solução, mais rápidas e
eficientes, que aos poucos passou a ser reconhecida pelo Estado. Atualmente existe a figura da arbitragem,
que pode, apesar da crítica de alguns, ser reconhecida como forma de jurisdição privada. Nos termos da lei
nº 9.307/96, que regulamenta a arbitragem entre nós, o árbitro ou a comissão de árbitros profere a sentença
arbitral, que tem a mesma eficácia da sentença judicial (cf. art. 31).
3. O art. 468 do CPC reconhecer a força de lei que a sentença tem, em relação ao conflito de interesses que foi
decidida.
4. Os italianos também denominam tal espécie de processo de “accertamento”.
5. O réu na contestação tem o ônus de impugnar de forma específica os fatos alegados na inicial, sob pena de
se considerar incontroversos tais fatos (serão admitidos como verdadeiros e não se produzirá prova a respeito
deles). Neste sentido, a disposição expressa do art. 302 do CPC
6. Ao proferir a sentença, o juiz deve observar o princípio da vinculação, adstrição ou congruência, ou seja, deve
decidir a lide exatamente nos limites colocados na inicial, sob pena de se caracterizar algum defeito ou vício
na sentença (“infra” ou “citra petita”, “ultra petita” ou “extra petita”). Nesta linha de raciocínio, a
determinação do art. 459 e 460.
7. As Ordenações Filipinas em seu Liv. III, Tít. 63, colocar que “a prova é o farol que deve guiar o juiz nas suas
decisões”.
3. Prova
8. Em algumas situações, onde está em jogo o interesse público ou interesses indisponíveis, o princípio da
verdade formal é abrandado, sendo que para certas situações se aplica no processo civil o princípio da
verdade real (busca e verificação dos fatos que efetivamente ocorreram), onde poderá o juiz atuar com mais
liberdade, podendo investigar os fatos, determinando provas de ofício, até suprindo a deficiência da atuação
da parte (por exemplo: ações que versão sobre direitos indisponíveis - não se admite a revelia - cf. art. 320,
II- e nem a confissão - art. 351 do CPC).
9. Dando idéia da dimensão a que alguns autores levaram este princípio, o defensor do liberalismo
processual, Wach preconizava: “La comprobación de la verdade no es el fin del proceso civil y no puede
serlo. Ello es un resultado deseado, pero no asegurado.” (cf. citação feita por JORGE PEYRANO em sua
obra “El Proceso Civil - Principios y Fundamentos” - ed. Astrea, ed. 1978 - p. 63).
10. Apesar do Código de Processo Civil atribuir às partes o encargo de produzir as provas, faculta ao juiz a
possibilidade de determinar a produção de provas de ofício, como se vê pela redação do art. 130.
que seria prova. E isto se explica, pois tanto em sentido vulgar, como em
sentido jurídico, a expressão prova acaba sendo utilizada para várias situações,
nem sempre de maneira muito apropriada.
Em razão disto, evidentemente surgiram na doutrina vários conceitos
relativos a prova. Outros autores, em razão desta situação preferiram não emitir
qualquer conceito de prova.
A própria doutrina faz questão de destacar esta diversidade de empregos
feito em relação a expressão.
O ilustre Moacyr Amaral Santos, em sua clássica obra, “Da Prova Judiciá-
ria no Cível e Comercial”, coloca, com precisão:
11. In “Prova Judiciária no Cível e Comercial”, ed. Max Limonad, ed. 1952, v. I, pp. 11/12.
12. In “Curso de Processo Civil”, ed. RT, ed. 2000, v. I, p. 337/338.
13. In “Curso de Direito Processual Civil”, ed. Forense, ed. 1998, v. I, p. 416.
14. In “A Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT. ed. 2000, p. 22.
15. In “O Ônus da Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, pp. 18/19.
16. In “Teoría General de La Prueba Judicial”, ed. Avalia Editor, ed. 1988, t. I, p. 28.
17. In “Tratatto di Diritto Processuale Civile”, ed. Torino UTET, ed. 1966, v. II, p. 183.
18. In “Curso de Direito Processual Civil”, ed. Forense, ed. 1998, v. 1, p. 416.
19. In “A Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT. ed. 2000, p. 22.
20. In “Manual de Direito Processual Civil”, ed. RT , ed. 1997, v. 2, p. 440.
21. In “Curso Avançado de Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, v. 1, pp. 472/473.
4. Ônus da prova
4.2. A figura do ônus da prova tem suas origens no direito romano, onde
vigorava a regra: ”semper onus probandi ei incumbit qui dicit” 27 (o ônus da
prova incumbe a quem diz).
Note-se que, com base neste preceito, a princípio poder-se-ia ter a falsa
idéia de que no direito romano somente ao autor caberia o ônus da prova,
cabendo ao réu simplesmente o papel de negar os fatos.
Ocorre que nem sempre o réu se defende negando os fatos. Ao contrário,
na grande maioria das vezes o réu alega exceções substanciais. Daí o próprio
25. A preclusão, na lição de CHIOVENDA, consiste na perda, extinção ou consumação da faculdade da parte de
praticar determinados atos processuais por ter sido alcançado o limite assinalado por lei para o seu exercício.
Existem três espécies de preclusão: a consumativa (a parte perde a faculdade de praticar o ato, por já tê-lo
feito), a lógica (a parte perde a faculdade de praticar o ato por ser ele incompatível com outro ato processual
praticado), e a temporal (a parte perde a faculdade de praticar o ato, por ter se esgotado o prazo para tanto).
As duas primeiras, a consumativa e a lógica estão mencionadas no art. 473 do Código de Processo Civil, sendo
que a última (temporal) está retratada no art. 183 do Código de Processo Civil.
26. Em alguns casos, como no ônus de recorrer, a conseqüência é inexorável; já outros, como o ônus de contestar
a ação e o ônus da prova, a conseqüência é apenas provável.
27. Digesto, fr. 21, De probat., XXII, 3.
28. A partir de 1890, o Decreto nº 763 determinou que os Estados poderiam editar leis processuais; sendo que
a partir de 1905 começaram a ser editados os Códigos de Processo Civil Estaduais. Apenas o estado de Goiás
não editou seu CPC, continuando a adotar o Regulamento nº 737, de 1850. Tal situação perdurou até 1939,
quando a legislação processual voltou a ser unificada, federal, editando-se o CPC de 1939, que vigorou até
1973; seguido pelo nosso atual Código de Processo Civil.
29. A respeito das teorias antigas, de BENTHAN, WEBBER, BETHMANN-HOLLWEG, FITTING, GIANTURCO e
DEMOGUE, vide LUIZ E. B. PACÍFICO (in “O Ônus da Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, pp.
84/93), MOACYR AMARAL SANTOS (in “Prova Judiciária no Cível e Comercial”, ed. Max Limonad, ed. 1952,
v. I, pp. 100/103) e SOARES DE FARIA (in “PrincipaisTeorias Relativas ao Onus Probandi”, ed. RT, 1936 -
dissertação para concurso à cadeira de Direito Judiciário Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo).
30. Citado por MOACYR AMARAL SANTOS, in “Prova Judiciária no Cível e Comercial”, ed. Max Limonad, ed. 1952,
v. I, p. 104.
31. Citado por LUIZ E. B. PACÍFICO in “O Ônus da Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, pp. 100/102.
de deixar-se à iniciativa de cada uma delas fazer valer os fatos que ela
pretende considerados pelo juiz, ou, em outros termos, quem tem in-
teresse em que sejam por ele considerados verdadeiros”32 .
32. In “Instituições de Direito Processual Civil”, ed. Saraiva, ed. 1969, v. 2, p. 379.
regra, alega fatos extintivos e impeditivos para sustentar sua pretensão (re-
cusa do credor em receber, pagamento etc.); também temos a mesma situa-
ção na ação de anulação de título onde o autor alega não existir qualquer
relação jurídica com o réu ou que o negócio não se consumou.
Na prática, em situações como estas, incumbirá ao autor a prova de fatos
impeditivos ou extintivos; o que, a princípio, contraria o texto expresso da lei.
Posteriormente as teorias de Mortara, Betti, Carnelutti e Chiovenda,
surgiram outras, que melhor explicam e caracterizam a distribuição do ônus
da prova.
Rosenberg 33 e Micheli34 , apesar de apresentarem idéias diferentes,
observaram que não cabe e é desnecessário previamente (no texto da lei)
qualificar e atribuir a cada uma das partes os fatos que devem ser provados,
classificando-os como constitutivos, modificativos, impeditivos ou extin-
tivos, pois tal aferição deve ser feita no caso concreto, conforme a demanda
e as afirmações feitas pelas partes, sempre sob prisma do direito substanci-
al. O autor tem o ônus de provar os fatos retratados na hipótese legal que
funda sua pretensão; sendo que o réu tem o ônus de demonstrar os fatos
contidos na norma que possibilita a rejeição da demanda.
Tais teorias, retratam de uma forma mais adequada o ônus da prova,
conseguindo estabelecer um critério aplicável a realidade multifacetária que
pode estar retratada nas relações processuais, ou seja, nos processos.
Apesar do nosso texto legal não retratar tal posição; na prática tem sido
aplicadas estas teorias mais recentes.
Isto é possível através da flexibilização do art. 333 do Código de Processo
Civil, feita através da sua interpretação pelos tribunais (jurisprudência).
4.3. Deste modo, atualmente o ônus da prova pode ser conceituado como
o encargo da parte em demonstrar os fatos que servem de pressuposto à norma
que consagra o efeito jurídico por ela pretendido35 .
4.4. Grande parte da doutrina coloca que o ônus da prova apenas será
33. In “La Carga de La Prueba”, ed. EJEA, ed. ed. 1956, pp. 91 e ss.
34. In “L’Onore della Prova”, ed. Cedam.. ed. 1966, pp. 498 e ss.
35. Neste sentido, a definição de ECHANDÍA, se aproximando das teorias de ROSENBERG e MICHELI - in “Teoría
Generalde La Prueba Judicial”, ed. Zavalia, ed. 1988, p. 490.
36. O non liquet , seria a manifestação na qual o juiz se eximiria de dar a decisão, justamente por não ter se
convencido de um ou de alguns dos fatos narrados pelas partes. O sistema jurídico veda e proíbe o non liquet.
O Código de Processo Civil tem regra expressa no art. 126, determinando que o juiz nunca poderá se eximir
de sentenciar.
37. Obra citada, p. 43.
5. Consumidor e o CDC
38. Em algumas ações, como a de responsabilidade civil de estabelecimentos hospitalares, praticamente todos os
meios de prova estão a disposição somente do réu, que detém toda a documentação (exames, prontuário do
paciente, relação de profissionais que atuaram no caso, dados dos medicamentos ministrados etc.). Em
alguns países, em tais circunstância se admite que o juiz determine a inversão da prova, cabendo então ao
estabelecimento hospitalar provar que efetivamente agiu de forma correta.
39. Sobre dirigismo contratual vide: FEDERICO CASTRO Y BRAVO (in “El Negocio Juridico”, ed. Civitas, ed. 1985,
pp. 11), JACQUES GHESTIN (in “Traité de Droit Civil - Les Obligations - Le Contrat”, ed. LGDJ, ed. 1980, pp. 33
e ss.) e GERÁRD FARJAT (in “Droit Privé de L’Economie”, ed. Presses Universitaires de France, ed. 1975, v. 2,
pp. 57/65 e ss.).
40. Como coloca RENATO SCOGNAMIGLEO, in “Commentario del Codice Civile - Contratti in Generale - arts. 1321-
1352”, Nicola Zanichelli Editore, ed. 1970, pp. 242 e ss.
41. Cf. colocam JÚLIO DE ALMEIDA COSTA e ANTONIO MENEZES CORDEIRO, in “Cláusulas Contratuais Gerais”,
ed. Livraria Almedina, ed. 1986, pp. 10/11.
42. Cf. coloca JACQUES GHESTIN, in “Traité de Droit Civil - Les Obligations - Le Contrat”, ed. LGDJ, ed. 1980, t.
II, p. 52).
43. Cf. ORLANDO GOMES, in “Transformações Gerais do Direito das Obrigações”, ed. RT, ed. 1980, p. 24.
44. Vide CLÁUDIA LIMA MARQUES, in “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, ed. RT, ed. 1995, pp. 74 e ss.
(...)
não serão considerados consumidores e usuários quem, sem se cons-
tituir em destinatário final, adquire, utiliza ou consome bens ou
serviços como fim de integrá-los em processos de produção, trans-
formação ou comercialização ou prestação a terceiros.”45
45. Cf. ANTONIO HERMEN V. BENJAMIM, em seu artigo “O Conceito Jurídico de Consumidor”, publicado na Revista
dos Tribunais, ed. RT, v. 628, pp. 69 e s.
46. In “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, ed. RT, ed. 1995, p. 107.
utiliza para uma atividade meio, como, por exemplo, uma locadora de
carros, tal adquirente não pode ser considerado consumidor, pois não é o
destinatário final do produto.
Tal situação nos leva a duas importantes conclusões, a primeira, de que
sempre é necessário analisar a relação jurídica, os sujeitos envolvidos e o con-
texto do negócio, para que se possa enquadrar a situação. Além disso, sempre
se deve ter em vista que consumidor só é o destinatário final da relação, em
termos econômicos, ou seja, a relação jurídica de consumo é aquela que não
enseja posteriores desdobramentos, ou seja, não desencadeia outras ativida-
des de fornecimento de produtos ou serviços.
6.1. Como foi visto acima, o Código de Processo Civil, burilado pela
jurisprudência acaba distribuindo o ônus da prova, fixando a prova que in-
cumbe a cada uma das partes.
Note-se que o critério adotado pelo legislador de distribuição legal do
ônus da prova procurou consagrar a lógica das provas, ou seja, a coerência do
desenvolvimento do processo, cabendo às partes alegar os fatos que sustentam
a sua pretensão e, na seqüência do processo, o ônus de demonstrar a ocorrên-
cia destes fatos.
Ocorre, porém que o legislador ao adotar o critério legal para distribui-
ção do ônus da prova, não autorizou o juiz a distribuir de forma diversa o
ônus da prova, acabando por ignorar inúmeras situações onde a parte, a quem
incumbe a prova, não tem condições ou tem imensas dificuldades para pro-
duzir a prova 47 .
6.2. Uma situação em que isto ocorria com freqüência eram nas relações
de consumo.
47. Há situações onde os critérios constantes do Código de Processo Civil são insuficientes e acabam por
prejudicar o acesso eficaz ao Judiciário. Por exemplo, em casos como de responsabilidade civil por erro médico/
hospitalar; o autor, via de regra, não tem condições de produzir prova alguma, pois freqüentemente todos os
documentos e elementos essenciais de prova ficam retidos com o réu/réus. O paciente nunca tem acesso ou
cópia dos documentos hospitalares (cópia do prontuário com descrição da terapêutica e medicação aplicada,
cópia de exames etc.). Somente com a intervenção do juiz, fulcrada no art. 130 do Código de Processo Civil
é que o autor acaba conseguindo, com grande dificuldade, produzir prova.
E isto se explica pois, como foi dito acima, na grande maioria dos
casos, o consumidor, não só a nível econômico, mas também a nível jurídi-
co está em situação de desvantagem em relação ao fornecedor do produto
ou do serviço.
O consumidor é reconhecidamente, na imensa maioria das relações jurí-
dica, o sujeito vulnerável da relação.
A vulnerabilidade pode ser verificada em três aspectos, a vulnerabili-
dade técnica; quando o consumidor não tem conhecimentos específicos
sobre o objeto que está adquirindo, podendo ser facilmente ludibriado
quanto às características e utilidades do produto (o consumidor é o desti-
natário final, não sendo profissional com o conhecimento necessário).
Além disso, existe a vulnerabilidade jurídica, que se refere a falta de co-
nhecimento do consumidor de aspectos jurídicos e econômicos (contabilida-
de), para ter plena ciência do negócio que está celebrando.
Por fim, destaca-se, ainda, a vulnerabilidade fática, resultante da despropor-
ção entre os contratantes (consumidor e fornecedor), o que implica na possibi-
lidade do fornecedor impor ao consumidor praticamente todas as condições do
negócio jurídico48.
48. Neste sentido, a lição da professora CLÁUDIA LIMAR MARQUES, in “Contratos no Código de Defesa do
Consumidor”, ed. RT, ed. 1995, p. 105.
49. Neste sentido, a lição de NELSON NERY JR., in “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”, ed. RT,
ed. 1992, p. 40.
50. Situação diversa é do art. 38 do CDC, que já no texto da lei, de forma obrigatória e incisiva, determinou e
inverteu o ônus da prova, nos casos de possível propaganda enganosa, incumbindo ao fornecedor o ônus de
provar que a propaganda era verdadeira e autêntica.
6.5. Por alegação verossímil se deve entender como sendo aquela pos-
sível, plausível, que parece verdadeira51 ; sendo o critério a ser utilizado
pelo juiz o do senso do homem médio, conforme as regras ordinárias de
experiência52 (cf. determinação do próprio inciso VIII, parte final), para
determinar se o fato alegado pelo consumidor é verossímil ou não.
O mesmo critério, ou seja, as regras ordinárias de experiência, deve ser
observado para a verificação da hipossuficiência do consumidor.
Note-se que por hipossuficiência, normalmente, se entende como sendo
aquele economicamente mais frágil53 . Contudo, em termos de direito do consu-
midor, não se pode ter esta estreita visão de hipossuficiência.
Em face das muitas facetas da vulnerabilidade do consumidor em re-
lação ao fornecedor, como acima foi colocado, deve se emprestar a hipossu-
ficiência definida na lei um espectro amplo, para atingir não apenas o
aspecto econômico, mas também a hipossuficiência técnica e fática.
Como foi salientado acima, a hipossuficiência técnica se refere a falta de
condições do consumidor de entender e de provar aspectos técnicos relativos
à lide (por exemplo — causas do defeito do equipamento que não funciona).
Já a hipossuficiência fática diz respeito a falta de informações e de contro-
le de tais informações, pois freqüentemente o consumidor não tem acesso a
documentos e informações dos fatos que cercam à lide.
Neste sentido, as posições de José Rogério Cruz e Tucci54 , Luiz Eduardo
B. Pacífico55 , João Batista Lopes56 , Carlos Roberto Barbosa Moreira57 e Ka-
zuo Watanabe58 .
51. Cf. AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA, em seu “Novo Dicionário Aurélio”, ed. Nova Fronteira, ed. 1980, o
verbete “verossímil”: semelhante à verdade; o que parece verdadeiro, que não repugna à verdade, provável.
52. Por regras de experiência, conforme a definição de Stein, se deve entender como “definições ou juízos
hipotéticos, de conteúdo geral, independentes do caso concreto que se tem de julgar e de seus elementos
particulares, e que são adquiridos pela experiência, mas que são autônomas dos casos particulares, de cuja
observação se deduzem e que pretendem ter valor em relação aos novos casos” (in “La Scienza Privata del
Giudice”, ed. 1893, pp. 103 e ss.), extraído da obra de MOACYR AMARAL SANTOS - “Comentários ao Código
de Processo Civil”, ed. Forense, ed. 1976, v. IV, pp. 51/52.
53. Cf. AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA, em seu “Novo Dicionário Aurélio”, ed. Nova Fronteira, ed. 1980, no
verbete “hipossuficiente”.
54. In Revista dos Tribunais volume 671/32, no artigo “Código do Consumidor e Processo Civil”, ed. RT, p. 35.
55. In “O Ônus da Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, p. 159.
56. In “A Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, p. 45.
57. In “Revista de Processo” - REPRO - vol. 86/302, no artigo “Notas sobre a Inversão do Ônus da Prova em
Benefício do Consumidor”, pp. 303/304.
58. In “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Projeto”, ed. Forense, ed.
1997, p. 618.
59. Neste sentido, a posição de WILSON CARLOS RODYCZ em seu artigo publicado na Revista da AJURIS - v. 67,
“A Inversão do Ônus da Prova no Juizado Especial Cível”, p. 194.
ocorrer no curso do processo, sendo determinada por decisão judicial, para que o
fornecedor, não fique cerceado na sua atuação, assegurando-se o princípio do contra-
ditório e da ampla defesa.
É importante notar que já existem alguns precedentes jurisprudenciais
reconhecendo que a inversão do ônus da prova depende de prévia decisão, sob
pena de nulidade da sentença, por violação ao princípio da ampla defesa.
Neste sentido, o acórdão do TARS, na Apelação Cível nº 194110664, da
4ª Câmara, relatada pelo dr. Márcio Puggina, cuja ementa oficial diz:
60. Cf. JOÃO BATISTA LOPES, in “A Prova no Direito Processual Civil”, ed. RT, ed. 2000, p. 43.
61. In “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Projeto”, ed. Forense, p. 494.
62. In artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor, vol. 1, “Aspectos do Processo Civil no Código de
Defesa do Consumidor”, ed. RT, pp. 217/218.
63. In “Revista de Processo” - REPRO - vol. 86/302, no artigo “Notas sobre a Inversão do Ônus da Prova em
Benefício do Consumidor”, pp. 306/308.
64. In artigo publicado na Revista da AJURIS - vol. 67, “A Inversão do Ônus da Prova no Juizado Especial
Cível”, p. 194.
6.7. Deste modo, no processo que tramita pela justiça comum, no mo-
mento do saneador, preconizado no art. 331 do Código de Processo Civil é
que deverá o magistrado, ao fixar os pontos controvertidos fazer a análise
sobre a inversão do ônus da prova, atribuindo ao fornecedor a prova relativa a
parte ou a totalidade dos fatos controvertidos.
No processo que tramita pelo rito sumário, tal inversão deverá ocorrer na
audiência de conciliação, assegurando-se, deste modo, ao fornecedor condições
de produzir provas na audiência de instrução e julgamento. Evidentemente
que deverá constar do termo de audiência tal deliberação do magistrado.
Já no processo do Juizado Especial Cível, a inversão poderá ser determina-
da na audiência de conciliação, caso ela seja presidida pelo próprio juiz. Caso
contrário, a inversão poderá ser determinada na audiência de instrução, o que
65. Acórdão publicado na íntegral e comentado por Simone M. Silveira Monteiro in Revista do Direito do
Consumidor, nº 14/114.
66. Acórdão inserto no Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo nº 2123 – ementário – p. 225.
7. Conclusões
Bibliografia
Condomínio
sem construção*
Explicação necessária
M
uitas vezes recebemos prontas algumas verdades e, pela autoridade
das pessoas que as dizem, as aceitamos e as passamos para a frente
também como as nossas verdades, sem maior questionamento até
porque o comodismo e o respeito pelos mais doutos a tanto nos levam.
Assim ocorreu conosco em relação à possibilidade da aplicação da Lei nº
4.591/64 quando o empresário, o que se dispunha à transmissão de unida-
des, não se comprometia nem se vinculava à construção, por qualquer das
várias modalidades que esse diploma possibilita.
Ao efetivarmos correição em uma Comarca do Estado de São Paulo, certa
feita deparamos com um empreendimento da renomada construtora, designado
“condomínio” em que ela estava apenas a transmitir terrenos. A quase totalidade das
“unidades” estava transmitida ou compromissada, faltando menos de 5% para se
transferir todo o empreendimento, o que nos levou a anotar apenas o que nos parecia
ser, ao tempo, uma irregularidade, um erro de registrador, sem, entretanto, nos
atrevermos a sugerir ao corregedor-geral o cancelamento, por nulidade, dos registros
feitos, pois aqueles que deveriam ser protegidos estariam sendo desamparados.
Passou-se o tempo até que uma pessoa de fora do ramo jurídico nos questi-
onou a respeito do assunto e ao obter, de pronto, nossa opinião a respeito,
indagou se nos dispúnhamos a conversar, o que foi feito, levando-nos ao reexame
da questão e destas novas reflexões chegamos ao trabalho que agora apresentamos
à crítica e ao estudo dos participantes deste XXI Encontro de Oficiais de Registro
de Imóveis, que, no ano da maioridade do IRIB, se realiza em Cuiabá.
Esperamos, com ele, que outros, como nós, sobre as questões focalizadas
e também sobre outras, tidas como dogmas em matéria registrária, possam
merecer novos estudos e um exame isento, pois acreditamos nos frutos.
São Paulo, julho de 1995
“O condomínio não será diferente, nas suas linhas mestras, pelo fato
de ser fechado ou aberto. O loteamento por seu lado, não se convola
em condomínio ‘pro-diviso’ por ser fechado, a menos que se mante-
nha a total indivisibilidade das coisas e áreas”. (Revista do Advogado
da Associação dos Advogados de São Paulo, nº 18 - Julho de 1985).
retratado no título notarial trazido aos autos está sujeito à Lei Federal nº
4.591 de 1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações mere-
cendo consignar que o óbice do registro decorreu de não satisfação da
previsão inserta no artigo 8º deste diploma, que exige a vinculação de
cada parcela de terreno, à edificações a serem nelas erigidas. E a
necessidade da prévia aprovação municipal para o empreendimento
em nada altera essa situação, pois ela é voltada à fiscalização do uso
e da edificação em si.
Por tais razões, o parecer que, respeitosamente, submeto ao elevado
exame de Vossa Excelência, é pela rejeição dos embargos”.
São Paulo, 26 de Abril de 1990
(a) Geraldo Francisco Pinheiro Franco - juiz auxiliar da Corregedoria.
Acórdão
“Vistos, relatados e discutidos estes autos de Embargos de Declara-
ção nº 10-807-0/3, da Comarca de Diadema, em que são embar-
gantes IFE - Indústria de Fios e Cabos Especiais Ltda., e outros o
embargado o Conselho Superior da Magistratura.
Acordam - os desembargadores do Conselho Superior da Magistra-
tura, por votação unânime, em rejeitar os embargos.
Trata-se de embargos de declaração interpostos por IFE - Indústria
de Fios e Cabos Especiais Ltda., e outros às v. acórdão de fls. 76/79,
que negou provimento ao recurso formulado pelo ora embargante,
‘acenado com obscuridade acerca da indicação da legislação efetiva-
mente aplicável à espécie dos autos, com vistas à regularização futura do
empreendimento em exame’ (cf. fls.91)”.
“É o relatório.
Não merece acolhimento os embargos apostos ao embargado.
Inexiste qualquer obscuridade, contradição ou mesmo omissão no
v. acórdão embargado. Nele ficou assentado, às claras, que o empre-
endimento retratado no título notarial transmitido, trazido aos autos
se pode falar em seu acesso ao registro imobiliário, como regido por esse
diploma. Tratar-se-á de loteamento comum e terá seu registro regulado pela
Lei de Parcelamento de Solo Urbano (Lei nº 6.766/79) ainda que, posterior-
mente, pela concessão do direito real de uso das áreas públicas, possa fisicamen-
te ser fechado, impedindo-se que a malha viária integre a rede de circulação da
cidade e que as áreas verdes sejam utilizadas por qualquer cidadão do povo.
O direito urbanístico, portanto, tendo em vista a característica nº 2 apon-
tada por Martin Blanco e transcrita do ensinamento de Adilson de Abreu
Dallari no início deste trabalho, isto é, conceito funcional da propriedade,
tendo como núcleo central sua utilidade e sua função social, é que ditará se
naquela comunidade específica ou, dentro dela, em determinadas zonas de
uso, serão permitidos empreendimentos desse tipo.
E o registrador, em sua função da vigilância do cumprimento das leis, no
que diz respeito com suas elevadas funções, de garantidores da propriedade,
de transmitir segurança e certeza dos atos que pratica, na sua atividade mais
importante que é a da qualificação dos títulos, certamente só abrigará a regis-
tro empreendimentos com tais características quando e se a Prefeitura Muni-
cipal lhe der guarida, lhe der licença para a instalação, para sua implantação.
Vejamos agora se a aprovação do projeto pela Prefeitura Municipal, nas
condições apontadas, encontra algum obstáculo, quer na Lei de Condomínio
(4.591/64), quer na Lei de Registros Públicos.
Na primeira delas, certamente que não, pois, em primeiro lugar estamos
diante, por equiparação legal, de edificações, assim consideradas as obras de
infra-estrutura do “loteamento”, pela conjugação da Lei nº 4.591/64 com o
art. 3º do Decreto 271/67.
Igualmente, as unidades serão designadas numérica ou alfabeticamente,
para efeito de sua individualização, constituindo-se unidades imobiliárias dis-
tintas, que será por força do art. 176 da Lei de Registros Públicos, uma uni-
dade autônoma, objeto de matrícula isolada.
Terá a sua área útil privativa, descrita e caracterizada, por suas medidas
perimetrais, característicos, confrontações e área, acrescida de sua participa-
ção nas coisas de uso comum e, mais ainda, a correspondente fração ideal no
terreno em que se assenta o empreendimento, tudo conforme hoje estabeleci-
do e facilmente visualizado nas tabelas elaboradas de acordo com a Norma nº
140 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
As coisas de uso comum que têm indissolúvel correspondência com as
C
onforme se depreende da leitura do acórdão em exame, a empresa
“Mercado do Sul Agência de Turismo e Câmbio Ltda.” (“Mercasul”)
enviou de sua sede em Foz do Iguaçu para a filial em Porto Alegre
uma determinada importância de moeda estrangeira, em espécie (dinheiro
“vivo”, “cash”), com a finalidade de realização de uma operação de câmbio, ou
seja, troca por moeda nacional. No caminho entre as duas cidades aquela
soma em dólares foi apreendida, tendo sido denunciados criminalmente o
funcionário que os portava e o sócio-gerente da “Mercasul” pela prática do
crime do art. 16 da Lei nº 7.492/86, ou seja, “fazer operar instituição finan-
ceira” sem a devida autorização do Banco Central do Brasil.
De acordo com as informações colhidas na decisão, a matriz da referida
* Jurisprudência Comentada (RT-777 – Julho/2000 – pp. 730 a 733) - Veja a íntegra da decisão à p. 106.
parte integrante do tipo, o Direito Penal deve recepcioná-lo como tal e, dessa
forma, é instituição financeira também para os efeitos do art. 16 da Lei nº
7.492/86, aquela pessoa que se enquadra nas hipóteses do art. 17 da Lei de
Reforma Bancária, ou seja, a Lei nº 4.595, de 31.12.64. Para melhor enten-
dimento de quais sejam os elementos caracterizadores das instituições finan-
ceiras, transcreve-se na íntegra o texto em questão:
Ora, como todos devemos saber, uma empresa não se qualifica pela prática
de um simples ato. A empresa (no caso do acórdão, voltada para a exploração
de atividade financeira) não se caracteriza pela prática de um único ato, mas sim
de uma série deles, coordenados em busca de um determinado objetivo.
Mesmo os atos de comércio assim considerados “por sua própria natureza”,
uma das classificações encontradas no próprio Waldemar Ferreira que, por sua
vez, foi buscá-la em Carvalho de Mendonça, não prescindiam, segundo tais
autores, de sua realização a título de mercancia, ou seja, como fruto de uma
profissão habitual exercida pelo comerciante, quer dizer, como sua atividade.
Dessa forma, é inaceitável que o sentido de dispositivos de tamanha importân-
cia, presentes no nosso Código Comercial, próximo de completar um século e
meio de existência, ainda não tenham conseguido penetrar a nossa cultura
jurídica em toda a sua extensão, como seria naturalmente de esperar-se.
O próprio art. 17 da Lei nº 4.595/64 fez menção expressa ao termo
“atividade” para a caracterização das instituições financeiras. Portanto, não se
estará diante de uma empresa dessa natureza se faltar tal requisito, ou seja, a
prática de atos coordenados entre si, desenvolvidos ao longo do tempo, tendo
em vista uma finalidade determinada. Um ou alguns atos isolados, portanto,
não podem constituir uma atividade, tendo sido esse um ponto completa-
mente ignorado no acórdão de que se trata.
Além disso, o dispositivo supra mencionado é expresso em particularizar
a atividade indicadora da existência de uma instituição financeira, que deve
ser exercida de forma “principal ou acessória”, ou seja, o sujeito a realiza como
o seu objeto primeiro ou secundário, mas sempre como objeto. Há, nesse
sentido, por conseguinte, uma configuração teleológica da atividade em tela,
não podendo ser tomada independentemente do objetivo do agente.
À luz dessas considerações, verifica-se a presença de uma contradição
absoluta no parágrafo único do art. 17, quando trata da pessoa física equipa-
rada à instituição financeira pelo “exercício de uma atividade eventual”. Isto
porque, conforme visto em Ascarelli, a atividade desenvolve-se no tempo com
um objetivo determinado, não podendo ser caracterizada a título “eventual”,
a não ser que este termo possa ser entendido como sinônimo de “acessório”,
forçando-se bastante a língua portuguesa para chegar-se a tal conclusão.
Aplicando-se os princípios acima desenvolvidos, verifica-se que o emprésti-
mo profissional de dinheiro mediante remuneração é atividade privativa de
instituição financeira. Mas se alguém fizer uma operação dessa natureza, ou
5) Decisão
caso não houvesse a apreensão das moedas estrangeiras no dia 27.5.1993” (f.
- grifo no original).
A questão jurídica a ser solvida é se a conduta do acusado, sócio-gerente
da empresa, “fez operar sem a devida autorização... instituição financeira, ...
de câmbio” (art. 16 da Lei nº 7.492/86).
A sentença entendeu que não, ao argumento de que “operar” instituição
financeira de câmbio significa contratar o câmbio, a troca da moeda.
O apelo do Ministério Público Federal sustenta que o núcleo do tipo é
mais amplo, significando também a operação de “captação da moeda estran-
geira e, assim, típica a conduta”.
Tenho que a razão está com o recorrente, porque quanto a Lei nº 7.492/
86 se referiu a “operação de câmbio” ela usou esta expressão — operação de
câmbio —, como, por exemplo, no art. 21, caput, “para realização de opera-
ção de câmbio”.
Assim, operar instituição de câmbio significa mais do que simplesmente
realizar o câmbio, porque inclui também, nos termos do art. 1º, I, da mesma
lei, a captação e a administração de câmbio.
Neste sentido merece transcrição trecho das razões de apelação, subscri-
tas pelo culto procurador da República, dr. Waldir Alves: “Resta definir qual
a definição do tipo ‘fazer operar’, constante do art. 16 da Lei nº 7.492/86, ao
que se traz a lição de Rodolfo Tigre Maia:
‘138. O tipo penal deste art. 16 tem por escopo, como já acentua-
do para os demais tipos da Lei de Regência, garantir na esfera crimi-
nal o controle estatal assegurado na Carta Política, sobre o regular fun-
cionamento das instituições financeiras como alicerces do SFN (...).
139. Desde logo, aponte-se o pouco cuidado que se evidencia na
utilização da expressão ‘inclusive de distribuição de valores mobili-
ários ou de câmbio’, mera tautologia diante do conceito expresso do art.
1º da Lei de Regência. É incriminada pelo dispositivo a ação de ‘fazer
operar instituição financeira’. O núcleo verbal permite duas aproxi-
mações exegéticas, que conduzem a diferentes patamares de aplica-
ção da norma:
a) A primeira aponta para a necessidade da criação de uma estrutura
organizacional análoga à de uma instituição financeira regular, própria
Portanto, data vênia, o verbo-núcleo do tipo ‘fazer operar’ não exige que
‘(...) o acusado já deveria estar com a moeda em sua filial de Porto Alegre
(...)’, como fundamentado pela r. sentença à f.
Fazer operar é exercer qualquer ato negocial característico de tais instituições,
conforme definido no art. 1º da Lei nº 7.492/86:
Individualização da pena
A
garantia da individualização da pena, a despeito de sua importância
teórico-prática ainda permanece à margem da atenção dos penalistas,
preocupados com problemas aparentemente mais complexos da teoria
geral do delito.
Os operadores do direito, advogados e promotores de justiça, ao que
noto, transmitem, nas suas vivências, a sensação de que a determinação da
medida da pena é assunto que diz mais ao juiz e menos com as partes, pois
nem sempre se interessam pelo controle, pela via do recurso, ainda quando,
não raro, da sentença possam decorrer erros ou omissões graves.
Daí a razão para a aviventação do debate em torno dessa matéria.
Começarei o trabalho delimitando o conteúdo da garantia da individuali-
zação da pena; passarei, depois, a expor, com a preocupação de sistema, o méto-
do trifásico e suas regras legais e jurisprudenciais, com destaque para os prece-
dentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; farei, ato contínuo, uma
análise crítica e, por último, mencionarei as inovações, sobre o tema, no âmbito
do Projeto de Reforma do Código Penal, já encaminhado ao Congresso.
1. CERNICHIARO, Luiz Vicente et alii, “Direito Penal na Constituição”, RT, 1990, p. 98 e ss.
2. DIAS, Jorge Figueiredo, Direito Penal 2, Parte Geral – “As Conseqüências Jurídicas do Crime”, Coimbra, 1988,
p. 299, textos da Faculdade de Direito de Coimbra.
7. BITENCOURT, Cezar R., “Manual de Direito Penal”, 5a. ed., RT., 1999, p. 577.
8. MIR PUIG, Santiago, “Derecho Penal, Parte General”, Tecfoto, Barcelona, 1998, p. 745.
9. CEREZOMIR, José, “Curso de Derecho Penal Español”, 3a. ed., Madrid, Tecnos, 1990, p. 107
10. ZAFFARONI, Raul, “Manual”, p. 123, apud FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos”, SP., Saraiva,
1986, p. 52.
11. GAUER, Ruth, “A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772”, Edipucrs, Porto Alegre, 1996,
p. 14 e seguintes.
12. Idem, “Influência da Universidade de Coimbra no Moderno Pensamento Jurídico Brasileiro”, Rev. do MP. do
RS., v. 40.
13. VERGARA, Pedro, “Das Penas Principais e sua Aplicação”, Rio, Boffoni Editora, 1948, p. 249.
14. “A jurisprudência do Supremo é pela constitucionalidade do art. 2º, § 1º, da Lei 8.072/90, que impossibilita
a progressão de regime para os apenados por crimes hediondos. Habeas Corpus indeferido” (Habeas Corpus
nº 74697-7/SP, STF, rel. min. Nelson Jobim, j. 29.04.97, un., DJU 27.06.97, p. 30.229). No STJ: Recurso
Ordinário em Habeas Corpus nº 5678/SP, 5ª Turma do STJ, rel. min. Edson Vidigal. j. 09.09.96, DJU 07.10.96,
p. 37.651. No TJRS: Recurso de Agravo nº 695086942, 4ª Câmara Criminal do TJRS, Caxias do Sul, rel. Erico
Barone Pires. j. 16.08.1995 e Recurso de Agravo nº 696200484, 1ª Câmara Criminal do TJRS, Porto Alegre,
rel. Luiz Felipe Vasques de Magalhaes. j. 20.11.1996, dentre muitas outras decisões.
15. TUBENCHLAK, Janes, “Tribunal do Júri, Contradições e Soluções”, Forense, Rio, 1991, p. 285.
16. Apelação Crime nº 298007329, 2ª Câmara de Ferias Criminal do Tjrs, Rosário do Sul, rel. Carlos Rafael Dos
Santos Junior. j. 16.07.1998 e Apelação Crime nº 699013264, Câmara de Ferias Criminal do Tjrs, Campo Bom,
rel. Carlos Roberto Lofego Canibal. j. 12.05.1999, dentre outros julgados.
proposta poderia ser ampliada para que a aplicação do citado dispositivo pu-
desse ser cogitada pelo juiz independentemente da espécie de crime.
Aliás, penso possível dizer que num sistema jurídico-penal orientado pela
culpabilidade do agente pelo fato, mais consentâneo com o objetivo de salva-
guarda das diferenças individuais e de resguardo da plenitude da garantia
constitucional da individualização da pena, o melhor seria a previsão junto
aos tipos não de margens penas mínimas e máximas, como as que possuímos,
porque igualmente engessadoras da atividade judicial, mas, isto sim, só de
penas com quantidades máximas, especialmente considerando, como bem o
diz Ferrajoli17, em seu magnífico Direito e Razão, a propósito das penas pri-
vativas de liberdade, que o cárcere é uma instituição ao mesmo tempo
antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, penosa e inutilmente
aflitiva, e, ao mesmo em parte, lesiva para a dignidade das pessoas.
não pelos fatos da vida, o que revelaria resquício de direito penal de autor,
representando um “gravame de caráter perpétuo, em total afronta aos princí-
pios da racionalidade e da humanidade das penas”18, pois a culpabilidade
funciona, no moderno direito penal, como fundamento e, ao mesmo tempo,
como limite à intervenção punitiva do Estado.
Determinada a medida final da pena, seguir-se-ão providências comple-
mentares, inerentes ao denominado método trifásico, como as que dizem com
eventuais substituições da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos;
a concessão ou não do benefício da suspensão condicional da pena, a fixação do
regime de execução e a manifestação expressa do juiz sobre a manutenção ou
não do condenado na prisão, se a ela estiver recolhido cautelarmente.
A pena-base
18. CARVALHO, Amilton Bueno e SALO, “Aplicação da Pena e Garantismo”, Lumen Juris, Rio, 2001, p. 44.
19. “A pena que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quantidade fixa ou dentro de determinados limites,
é a que o juiz aplicaria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento ou a diminuição da
pena”.
20. Nesse sentido: “Fixada a pena-base, após consideradas as circunstâncias judiciais, será a mesma elevada ou
reduzida se existentes agravantes ou atenuantes e sobre o quantum apurado operar-se-ão os acréscimos ou
minorações relativos às causas de aumento ou diminuição reconhecíveis” (Apelação Criminal nº 27.637, 1ª
Câmara Criminal do TJSC , Brusque, rel. des. Márcio Batista, 16.09.91, Publ. no DJESC nº 8.371 - p.13 -
05.11.91).
21. DUARTE, José. “Aplicação da Pena – Pena-Base – Inteligência do art. 50”, Revista Justitia, São Paulo, v. 4, p.
209, 1942.
22. ZAFFARONI, Eugênio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. “Manual de Direito Penal Brasileiro”. 2ª ed., São
Paulo: RT., 1999, p. 825.
A pena provisória
23. CHOCLÁN MONTALVO, José Antonio, “Individualización Judicial de la Pena”, Revista Canaria de Ciencias
Penais, número 3, julho de 1999, p. 121.
24. STF, rel. min. Djaci Falcão, in RT 592/412 e Jutacrim, 55/269. “...Não obstante a corrente afirmação apodítica
em contrário, além da reincidência, outras circunstâncias agravantes podem incidir na hipótese de crime
culposo: assim, as atinentes ao motivo, quando referidas à valoração da conduta, a qual, também nos delitos
culposos, é voluntária, independentemente da não voluntariedade do resultado: admissibilidade, no caso, da
afirmação do motivo torpe - a obtenção de lucro fácil - que, segundo o acórdão condenatório, teria os agentes
ao comportamento imprudente e negligente de que resultou o sinistro. Sempre que a conversão da pena de
prisão em restrição de direito ou o seu cumprimento em regime inicial sejam, em princípio, legalmente
admissíveis, a negativa de uma ou do outro há ser idoneamente motivada...” (Habeas Corpus nº 70362-3,
STF, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 05.10.93, maioria, Informativo STF 17.04.96, nº 26).
Com a devida vênia, não vejo como aceitar os enunciados desses emi-
nentes penalistas, a começar pela absoluta indeterminação de prudência e
de livre arbítrio.
Reconhecer que a pena possa ser imposta sem critérios claros (e lembro,
a propósito da prudência, que Descartes, no Discurso de Método já dizia que
ser afirmada por todos a prudência seria, como virtude, “a coisa mais bem
distribuída do mundo”29) implicam em aceitar a probabilidade de desmedi-
da intervenção do Estado na esfera dos direitos individuais.
Implica, ainda, em não negar a alta probabilidade de que a sentença
possa ser o instrumento para a projeção exterior dos tumultos interiores do
magistrado, como advertira, aliás, o grande Roberto Lyra30.
Ora, é evidente que a pena proporcional (“necessária e suficiente”, na
dicção do Código — art. 59) não é só a pena-base, mas também as penas
provisória e definitiva (...).
Preocupados com o problema, Luiz Régis Prado e Cézar Bitencourt pro-
puseram, pois, que a quantificação da agravante ou atenuante não extrapolas-
se o limite de um sexto da própria pena-base.
33. É correto dizermos que o juiz, ao individualizar a pena provisória, terá que investigar e sopesar as circunstân-
cias pertinentes a partir da razão íntima que as fundamenta (conteúdo do injusto) e que, só depois disso,
é que procederá à mensuração propriamente dita. Por exemplo, a reincidência atua como circunstância legal
de agravamento da pena não só porque o agente pode estar revelando certa tendência para o crime, é certo,
mas, ainda, porque, com a prática da nova infração, está demonstrando ineludivelmente seu desprezo para
com a solene advertência proveniente da condenação anterior, que o obrigava, mais do que a qualquer outro,
a respeitar o dever-ser da norma jurídico-penal. Desse modo, o maior ou menor número de condenações
definitivas será um dado de relevo porque expressará o maior ou menor desprezo do agente para com o citado
dever; é, por outro lado, a hipossuficiência a razão íntima da circunstância que autoriza o abrandamento da
pena do velho. Outrossim, será a incompleta formação da personalidade a causa da atenuação da pena do
menor de vinte e um anos de idade. É a profunda insensibilidade moral, por fim, que está presente na
motivação, o que justifica o agravamento da pena de crime cometido por motivo fútil, e assim por diante.
Entretanto, quanto mais idoso for o velho, maior será a consideração que deverá ter do direito penal pelo
crime que vier a cometer; já o menor que estiver em vias de alcançar a maioridade civil estará presumivelmente
em melhores condições do que aquele que recém completou 18 anos na compreensão da ilicitude do fato e
na exigibilidade de agir de modo a preservar a ordem jurídica. Então, sendo inequívoco afirmar que o
conteúdo do injusto da circunstância ou as razões de política criminal influem decisivamente na mensuração
do valor da circunstância, também é correto dizer que esse critério não é exclusivo, porque, se o fosse,
poderia implicar desprezo do princípio de que é a culpabilidade, em verdade, o parâmetro reitor que disciplina
a quantificação da pena. Um exemplo singelo ilustra melhor o nosso pensamento: se a pena provisória do
reincidente fosse graduável só a partir do conteúdo do injusto da agravante, dispensadas considerações em
torno da culpabilidade, não haveria a menor dúvida de que a pena provisória do criminoso habitual se elevaria
em proporção ao número de infrações, de tal modo que haveria o risco de se equipar, pela influência de uma
circunstância, a pena provisória à pena-base, quando esta é determinada sob a influência de múltiplas
circunstâncias. Seguindo esse critério, o juiz poderia cometer injustiça na individualização da pena impondo
reprimenda em quantidade superior à da culpabilidade, porque o multirreincidente pode cometer eventual-
mente um crime em situação de absoluta favorabilidade. Por exemplo, ao agredir alguém depois de reiterada
e injusta provocação, o acusado será suscetível de censura mais branda que a que ficaria sujeito se, pelo
reverso, ele próprio tivesse sido o provocador, pretextando situação de legítima defesa. Nesse exemplo, a
reiteração criminosa, devida em grande parte à intensa contribuição da vítima, não poderá ser considerada
tão severamente, como se fosse o produto final da intencional deliberação do agente de menoscabar as
solenes advertências defluentes das anteriores condenações. O indivíduo que praticar o crime e espontane-
amente dirigir-se à Delegacia para narrar o fato à autoridade, por outro lado, fará jus, é certo, à pena mais
branda, porque estará demonstrando arrependimento e desejo de colaborar com a ação da Justiça.
34. FERRAZ, Nelson. “Dosimetria da Pena. Comentários e Jurisprudência do TJ de SC”, Revista Forense, v. 277,
p. 368
3. Majorantes e minorantes
Na última fase do método trifásico cumprirá ao juiz, a teor do art. 68 do
CP, considerar na sentença, com igual fundamentação, a eventual incidência
de causas especiais de aumento ou diminuição, que podem, ao contrário das
agravantes e atenuantes, elevar a pena final acima do máximo ou trazê-la
aquém do mínimo previstos em abstrato.
Essas circunstâncias aparecem na Parte Geral e na Parte Especial do Có-
digo e não suscitam dificuldade quando a pena provisória, sobre a qual incidi-
rão, precisar ser exasperada ou abrandada em quantidade certa, o que ocorre,
por exemplo, com a hipótese do § 4o do artigo 121 do CP, que ordena o
aumento da pena provisória em 1/3, quando o homicídio culposo for decor-
rente de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício.
A questão se torna um pouco mais complexa, entretanto, por não haver
diretiva explícita, se o aumento ou diminuição da causa especial tiver que ser
determinado pelo juiz dentro dos limites pré-estabelecidos pelo legislador, o
que ocorre, por exemplo, no roubo com emprego de arma, em que a pena
precisa ser aumentada de 1/3 até ½ ou no homicídio privilegiado em que a
pena pode ser reduzida de 1/6 até 1/3.
É evidente que o juiz — como verificado na fase anterior — não pode
agir sem critérios, não é livre para anunciar ou quantificar majoração ou mi-
noração como bem entender, ao sabor do momento, porque o processo de
individualização judicial da pena não é arbitrário.
Sendo correto afirmar que a quantificação da causa especial de aumento ou
35. “Não seria exato compor que, uma vez encontrada a pena-base, saiam de cena e que o juiz não mais se
importe com elas. Pois, não estabelecendo o Código qual seja o valor numérico da agravante ou da atenuante,
não dizendo quanto vale uma agravante em tempo de prisão a mais ou quanto vale uma atenuante em tempo
de prisão a menos, como o fizera o Código de 1969. que prefixara a agravação ou a atenuação entre 1/5 e
1/3, é o juiz que deverá quantificar a agravante ou a atenuante. Nessa quantificação da circunstância o juiz
há de ser o primeiro a se prevenir contra o próprio arbítrio, sempre lembrado que seu arbítrio é vinculado ou
regulado: para isso torna a considerar as circunstâncias judiciais, encarando as agravantes com maior vigor,
se elas indicarem uma tendência majorada, ou ponderando a atenuante com mais simpatia e tolerância, se
aquela tendência for abrandadora” (“Aplicação da Pena, Circunstâncias Judiciais”, texto não publicado,
gentilmente cedido pelo autor).
diminuição pode ser determinada a partir da sua razão de ser, não me parece menos
correto afirmar que dita quantificação possa processar-se desatrelada do grau de
culpabilidade determinado na primeira fase do método trifásico, do mesmo modo
como, um pouco antes, sustentei ocorrer na determinação da pena provisória.
Destarte, em caso de reprovação mínima, (conclusão a que se pode che-
gar após o exame dos elementos da culpabilidade, como visto anteriormente),
produzindo quantificação de pena-base junto ou próximo ao mínimo legal,
em princípio, entendo que a exasperação, em nome da coerência, precisa ser
mínima, ao passo que o abrandamento, deva ser o maior possível, para que a
pena definitiva possa, desse modo, se aproximar do limite (inferior ou superi-
or), indicado pela culpabilidade.
Em caso de reprovação média, as modificações da pena, em razão de
majorantes ou minorantes, devem se aproximar ou se equiparar.
Finalmente, em caso de reprovação máxima, a exasperação deve aproxi-
mar-se do limite indicado pelo teto, ao passo que a diminuição precisa incli-
nar-se na direção do limite oposto (o piso).
Com isso, manifesto, desde logo, resistência aos critérios meramente ob-
jetivos de mensuração de causas especiais de aumento ou diminuição de pena,
como os da gravidade do fato, do iter criminis, do número de crimes ou de vítimas,
do número de participantes ou o da espécie de armamento, dentre outros.
Para demonstrar que a adoção de critérios puramente objetivos pode con-
duzir a resultados desastrosos na busca da pena final proporcional à culpabi-
lidade basta poucos exemplos:
O indivíduo que for longa e afrontosamente provocado a sacar da arma e
atirar contra o provocador em zona nobre do corpo, só não o matando em razão
do imediato e eficiente socorro, poderá vir a receber a pena do crime consumado
com a redução só de 1/3 por ter percorrido todo o iter criminis, ainda que a
quebra do dever de respeito à ordem jurídica tenha em grande parte sido
determinada pela ação instigadora, provocadora ou desafiadora da vítima.
Como todos sabem, a instigação, a provocação ou a aceitação de desafio
impedem a configuração da legítima defesa,36 pela presunção de que o agente
não se encontra na situação-limite de matar para não morrer.
36. “Não pode alegar a excludente da legítima defesa o agente que, aceitando o desafio, a provocação, parte
para a contenda. Recurso desprovido” (Apelação Criminal nº 32.067, 1ª Câmara Criminal do TJSC , Itajaí, rel.
des. Solon d’Eça Neves, 08.11.94).
4. O Projeto de Reforma do CP
37. ROXIN, Claus, “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, Vega, Lisboa, 1986, p. 46.
Reflexões sobre a
Súmula Vinculante
e o estudo do Direito
1. Relevância do tema
1. A íntegra da proposta de modificação na estrutura do Poder Judiciário pode ser encontrada no site da
Associação dos Magistrados Brasileiros, cujo endereço eletrônico é: http://www.amb.com.br
2. Como SÉRGIO BERMUDES (“nota de apresentação” publicada na Revista AMB, nº 3, p. 24), IVES GANDRA DA
SILVA MARTINS (Revista Jurídica Consulex, nº 3, p. 16), CELSO RIBEIRO BASTOS (O Estado de S. Paulo de
29.11.96), SAULO RAMOS (Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, p. 148.), MIGUEL REALE (O Estado
de S. Paulo de 23.8.97), CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO (Folha de S. Paulo de 4.7.97), NÉLSON JOBIM
(Revista Jurídica Consulex, nº 3, p. 17), ARNOLDO WALD (O Estado de S. Paulo de 15.4.96), GERALDO
BRINDEIRO (Folha de S. Paulo de 2.6.97) e JOSÉ IGNACIO BOTELHO DE MESQUITA (palestra proferida na
Associação dos Advogados de São Paulo, aos 12.2.96, no curso intitulado “A Eficácia Vinculante das
Súmulas”).
3. Tais quais JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO (“O Judiciário em Questão”, artigo publicado na Internet - http://
cf3.uol.com.br:80...ultor/arti.cfm?numero=53), DALMO DE ABREU DALLARI (Folha de S. Paulo de 31.7.97),
EVANDRO LINS E SILVA (Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 61, p. 53), CLITO FORNACIARI JÚNIOR
(Notícias Forenses de fevereiro/96), RUBENS APPROBATO MACHADO (Revista APMP, nº 7, p. 20), JOÃO
CARLOS PESTANA DE AGUIAR SILVA (In Verbis, nº 6, p. 12), LUIZ FLÁVIO GOMES (“A Dimensão da Magistratura
no Estado Constitucional e Democrático de Direito”, p. 190) e FÁBIO KONDER COMPARATO (Juízes para a
Democracia, nº 7, p. 3).
4. A Associação Juízes para a Democracia é contra a adoção das Súmulas Vinculantes, como se vê do artigo subscrito
por um de seus ex-Presidentes (RJ 232 - Fev/97, p. 21); o Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais da
OAB manifestou-se contrariamente a um antigo texto aprovado pelo Senado Federal, na Declaração de Campos
do Jordão (Tribuna do Direito - out/97).
5. “Súmula Vinculante”, ed. Juarez de Oliveira, 1999.
6. Stare decisis na cultura jurídica dos Estados Unidos. O Sistema de precedente vinculante do common law.
Revista dos Tribunais 752/11.
(obiter dicta) declinadas no caso anterior tenham recebido do juiz menor atenção
do que a devotada à proposição jurídica posta como fundamento da decisão.21
Daí por que não se pode conferir eficácia vinculante ao dictum.
Ao contrário do que muitos supõem, a atividade do juiz norte-ameri-
cano nada tem de mecânica, pois o julgador do caso pretérito não explicita o
que constitui ratio decidendi e o que deve ser entendido como obiter dictum.
Essa distinção será feita pelo juiz do caso ulterior22 e, obviamente, a diferenciação
não obedece a critérios matemáticos. Noutras palavras, é perfeitamente possível
que um juiz vislumbre ratio decidendi numa proposição anterior, enquanto o seu
colega enxerga na mesma proposição um mero dictum.
A obrigatoriedade do precedente reclama identidade de situação fática
substancial entre o caso anterior e aquele sob análise. Se o quadro fático subs-
tancial for diverso, não se justifica a adoção do precedente.
Em palestra que proferiu em 16.10.9723, Charles D. Cole, já citado neste
trabalho, esclareceu: “The precedent case will be determined to be binding
when the relevant facts in the precedent case are sufficiently similar to justify
the application of the same rule of law as was used in the precedent case to the
case before the court for adjudication”.
31. Não custa lembrar que, a despeito do exemplo ora figurado, o Pretório Excelso já considerou legítima a
prisão civil do devedor fiduciário num caso em que houve expressa invocação do Pacto de São José da Costa
Rica (RT 744/113).
Bibliografia
32. Necessidade apontada por JOSÉ EDUARDO FARIA na obra “A Reforma do Ensino Jurídico” (p. 78).
A limitação material ao
Poder Constituinte Derivado
1 - Introdução
A - Justificativa
O
tema a ser desenvolvido é empolgante e complexo. Deveras, embora
amplamente debatido na seara doutrinária e jurisprudencial, este é
um dos temas nos quais, malgrado os esforços para a uniformização
de entendimentos, exsurgem ulteriores dissonâncias, a cada estudo aprofun-
dado, como observamos, na bibliografia consultada que, juntamente com as
aulas teóricas ministradas no Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direi-
to da Universidade de São Paulo e debates suscitados em seminários, serviram
de estímulo para este trabalho.
Com efeito, as limitações materiais despertam a maior controvérsia
B - Proposta de desenvolvimento
Bibliografia
1 BACHOF, Otto.“Normas Constitucionais Inconstitucionais?”, Coimbra, Al-
medina, 1994, obra traduzida por José Manuel M. Cardoso da Costa.
2 BARRETO E SILVA FILHO, Derly. “O Poder Constituinte de Revisão e as
Cláusulas Pétreas”, artigo inserto in RT 691/262-4.
3 BRITO, Edvaldo. “Limites da Revisão Constitucional”, Porto Alegre, Sérgio
Antonio Fabris, 1993.
4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da
Constituição”, Coimbra, Almedina, 1998.
5 CAPPELLETTI, Mauro. “Riflessioni sulla creatività della giurisprudenza nel
tempo presente”, artigo inserto in “Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura
Civile”,1982, p. 774.
6 CERETI, Carlo. “Corso di Diritto Costituzionale Italiano”, Torino, Giappichelli.
7 COLAUTTI, Carlos E. “Curso de Derecho Constitucional”, Buenos Aires,
Editorial Universidad, 1996.
8 CRISAFULLI, Vezio e PALADIN, Livio. “Commentario breve alla
Costituzione”, Padova, Cedam, 1990.
9 DUGUIT, Léon. “Traité de Droit Constitutionnel”, Deuxième Édition, Tome
Quatrième. “L’ Organisation Politique de la France”, Paris, E. de Boccard,
Successeur, 1924.
10 FERREIRA, Pinto. “Comentários à Constituição Brasileira”, São Paulo, Saraiva.
11 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “O Poder Constituinte”, São Paulo,
Saraiva, 3ª edição, revista e ampliada, 1999.
Michele Taruffo
PROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE DE PAVIA
1. Introdução
* Aula inaugural proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná aos 5 de março de 2001.
Exposição feita também em São Paulo aos 7 de março de 2001, a convite do Instituto Brasileiro de Direito
Processual, da Associação dos Advogados de São Paulo e do Departamento de Direito Processual da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Tradução de Cândido Rangel Dinamarco. Revisão de Luiz
Felipe Duarte Martins Costa.
1. Por razões de simplicidade, fala-se aqui em raciocínio do juiz de modo geral e abrangente, sem distinguir entre
os diversos aspectos ou fases desse raciocínio, como: a) aquele que o juiz desenvolve no curso do processo;
b) aquele mediante o qual ele formula a decisão final; c) aquele mediante o qual ele justifica a decisão, ao
redigir a motivação da sentença. Por outro lado, os problemas que serão discutidos colocam-se em termos
substancialmente análogos nas diversas fases do raciocínio do juiz, não-obstante cada uma destas constitua
um contexto diverso e possa condicionar os modos como ele raciocina. Essas variações podem ser significa-
tivas, mas não há como analisá-las na presente sede.
2. Para a análise de algumas normas que regem a argumentação jurídica, cfr. CHIASSONI, “La giurisprudenza
civile. Metodi d’interpretazione e tecniche argomentative”, pp. 489 ss.
3. Essas características do raciocínio judiciário emergem com clareza dos estudos sobre o tema, que experimen-
taram notável expansão nas últimas décadas, no âmbito do desenvolvimento das indagações sobre o
raciocínio jurídico em geral. Não é possível, mas também não é necessário, fornecer aqui indicações bibliográ-
ficas com a pretensão de serem completas. Na literatura mais recente, v. no entanto COMANDUCCI, “Assaggi
di metaetica”, pp. 195 ss. e “Assaggi di metaetica due”, pp. 61 ss.; MAZZARESE, “Forme di razionalità delle
decisioni giudiziali”; ASÌS ROIG, “Sobre el razonamento judicial”; CHIASSONI, “La giurisprudenza civile. Metodi
d’interpretazione e tecniche argomentative”.
4. Sobre a ideologia legal-racional da decisão judiciária, cfr. especialmente WROBLEWSKI, “Legal syllogism and
rationality of judicial decision-making”, pp. 27 ss. e “Justification through principles and justification through
consequences”, pp. 140 e 158 ss.
5. Sobre a natureza contextual da decisão, cfr. esp. MINOW-SPELMAN, “In context”, pp. 1597 ss.
6. Uma definição bastante geral mas confiável de senso comum, que é útil para distingui-lo de outros fenôme-
nos, identifica-o como um “conjunto de informações socialmente produzidas”, que inclui elementos descritivos
e valorativos comumente havidos por válidos e confiáveis em um um determinado contexto social. Cfr., a
propósito, VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial decisions”, pp. 777 ss. e 792 ss.
7. Sobre o conceito de epistema na concepção de FOUCAULT, v. “Le parole e le cose. Un’archeologia delle
scienze umane”, esp. pp. 31 ss., 66 ss. e 336 ss., onde o autor individualiza com uma análise fascinante as
categorias epistêmicas fundamentais dos séculos XVI (a semelhança) e XVII (a ordem calculável), bem como da
época moderna a partir do século XIX (as limitações), individualizando também suas pausas e transformações.
8. V. infra, n. 3.
9. Sobre a construção com base na experiência pregressa e sobre o emprego de modelos de histórias típicas na
decisão, cfr. esp. as análises desenvolvidas sobre o júri norte-americano, que se encontram in PENNINGTON-
HASTIE, “The story model for juror decision making”, pp.192 ss.
Por outro lado, é útil observar que muitas vezes o senso comum representa
10. Cfr. em especial VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial decisions”, pp. 813 ss.
11. Sobre os problemas da conexão entre linguagem jurídica e linguagem ordinária, cfr. PINTORE, “La teoria
analitica dei concetti giuridici, pp. 308 ss.; LUZZATI, La vaghezza delle norme, pp. 225 ss.; LAZZARO, “Diritto
e linguaggio comune”, pp. 140 ss.
12. Sobre a conceituação das normas vagas e das cláusulas gerais existe uma literatura muito ampla, a cujo
respeito não é possível fornecer aqui indicações exaurientes. Na doutrina italiana mais recente, v. em especial
LUZZATI, “La vaghezza delle norme”, pp. 299 ss. e “L’interprete e il legislatore. Saggio sulla certezza del diritto”,
pp. 332 ss. e 579 ss.; DICIOTTI, “Vaghezza del diritto e controversie giuridiche sul significato”, pp. 97 ss.
13. Sobre o conceito de Vorverständnis e sobre seu papel na hermenêutica, v. em especial ESSER, “Vorverständnis
und Methodenwahl in der Rechtsfindung. Rationalitätgarantien richterlicher Entscheidungspraxis”, pp. 40 ss.,
50 ss. e 133 ss; cfr. ainda LARENZ, “Methodenlehre der Rechtswissenschaft”, pp. 206 ss., e por último VIOLA
e ZACCARIA, “Diritto e interpretazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto”, pp. 187 ss., 232 ss. e
427 ss.; HABA, “Precomprensiones, racionalidad y métodos, en las resoluciones judiciales”, pp. 49 ss.
14. Cfr. GADAMER, “Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik”, pp.264 ss. e 279
ss. Também Popper, todavia, entende que “pelo aspecto quantativo, como também pelo qualitativo, a fonte
largamente mais importante de nosso conhecimento (fora o conhecimento inato) é a tradição” (POPPER, “Le
fonti della conoscenza e dell’ignoranza”, p. 88).
15. A interpretação da lei inclui momentos dedutivos, mas trata-se de estruturas lógicas e argumentativas
bastante complexas. A propósito, v. em especial a ampla análise de DICIOTTI, “Interpretazione della legge e
discorso razionale”. Para uma tipologia dos silogismos que podem fazer parte do raciocínio decisório, cfr.
CHIASSONI, “La giurisprudenza civile. Metodi d’interpretazione e tecniche argomentative”, pp. 151 ss.
16. Para demonstração do acerto dessa orientação, permitam-me uma remissão, inclusive para mais referências
bibliográficas, a TARUFFO, “La prova dei fatti giuridici. Nozioni generali”, pp. 35 ss, 58 ss. e 143 ss.
17. Cfr. VAN ZANDT, “An Alternative theory of practical reason in judicial decisions”, pp.80 ss.
18. Obviamente, aqui se pressupõe que a valoração da prova seja sujeita ao livre convencimento do juiz. As coisas
seriam diferentes em um sistema de provas legais, ou quando se fizesse referência a uma prova cujo valor
fosse predeterminado pela lei, pois nesse caso o legislador, e não o juiz, é quem resolve inclusive o problema
da credibilidade. P.ex., se a lei estabelece que a declaração jurada de uma parte tem eficácia vinculante, isso
emilina a priori o problema da credibilidade do sujeito que presta esta declaração.
19. Sobre esses aspectos dos sistemas de prova legal, v. algumas indicações in TARUFFO, “La prova dei fatti
giuridici. Nozioni generali”, pp. 361 ss.
20. Também sobre essas questões existe, nas várias culturas jurídicas, uma literatura muito ampla. Cfr., a
propósito, o sintético panorama comparatistico traçado por NAGEL, “Die Grundzüge des Beweisrecht im
europäischen Zivilprozess. Eine rechtsvergleichende Studie”, pp. 72 ss.
21. Aqui se pressupõe, naturalmente, que a valoração discricionária da eficácia das provas seja uma atividade
configurável segundo esquemas e critérios racionais, no âmbito de uma ideologia legal-racional da decisão
(supra, n. 4). Mas (o que não é raro acontecer) sempre que se configure um juízo de fato e em particular a
valoração das provas como uma insondável atividade subjetiva não sujeita a qualquer controle jurisdicional,
chega a ser ocioso indagar quais seriam os critérios de julgamento adotados pelo juiz (sobre as concepções
irracionalistas do juízo de fato, v. ainda, para indicações bibliográficas, TARUFFO, “La prova dei fatti giuridici.
Nozioni generali”, pp. 8 ss.).
22. Cfr. PENNINGTON-HASTIE, “The story model for juror decision making”, pp. 195 ss., com referência aos
modelos cognoscitivos que o jurado extrai da experiência cotidiana.
23. Cfr., sobre o tema, CATELLANI, “Il giudice esperto. Psicologia cognitiva e ragionamento giudiziario”, pp. 111
ss. e 205 ss., e também RUMIATI, “Giudizio e decisione. Teorie e applicazioni della psicologia della decisione”,
pp. 218 ss.
24. Sobre esse conceito, cfr. COMOGLIO-FERRI-TARUFFO, “Lezioni sul processo civile”, pp. 651 ss.; COMOGLIO,
“Le prove civili”, pp. 286 ss.
25. Sobre o conceito de background knowledge cfr. POPPER, “Congetture e confutazioni”, I, pp. 408 ss.
26. Nesse sentido, v., mais amplamente, TARUFFO, “Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e
dialettica”, pp. 150 ss. e “Funzione della prova: la funzione dimostrativa”, pp. 569 ss. Mas, em sentido crítico,
cfr. MAZZARESE, “Scoperta vs giustificazione. Una distinzione dubbia in tema di decisioni giudiziali”, pp. 145
ss.; JACOVIELLO, “La motivazione della sentenza penale e il suo controllo”, pp. 57 ss.
27. Sobre a função da motivação, cfr., p.ex., ANDOLINA-VIGNERA, “I fondamenti costituzionali della giustizia civile:
il modello costituzionale del processo civile italiano”, pp. 191 ss.; CHIASSONI, “La giurisprudenza civile. Metodi
d’interpretazione e tecniche argomentative”, pp. 45 ss.
28. A doutrina tradicional do silogismo judicial, extremamente simplista, foi submetida a numerosas críticas. É
ainda dominante, porém, a convicção de que o núcleo da justificação racional da decisão tem um caráter
dedutivo: cfr. especialmente DICIOTTI, “L’interpretazione della legge e discorso razionale”, pp. 121 ss.; CHIASSONI,
“La giurisprudenza civile. Metodi d’interpretazione e tecniche argomentative”, pp. 151 ss. Em caráter geral, sobre
a racionalidade da justificação das decisões interpretativas, v. ainda LUZZATI, “L’interprete e il legislatore”, pp. 411
ss., e MAZZARESE, “Forme di razionalità; Comanducci, Assaggi di metaetica due”, pp. 69 ss.
3. O recurso à experiência
Tudo quanto se observou até aqui poderia não criar especiais dificulda-
des, se o que se entende como senso comum fosse um conjunto claro, coerente
e homogêneo de noções e critérios de raciocínio. O problema é que na verda-
de as coisas são assim: o senso comum, não importa como seja entendido ou
definido, é cambiante, heterogêneo, incerto, incoerente, histórica e localmente
variável, epistemicamente dúbio e incontrolável. Pode-se chegar a um acordo
sobre uma concepção geral, como a que ficou delineada acima, pela qual o
senso comum é um conjunto de conhecimentos e critérios de julgamento, de
raciocínio e de interpretação, que se presumem geral ou preponderantemente
compartilhados em dado ambiente social ou em certo momento histórico —
mas isso não exclui que esse contexto tenha caracteres intrínsecos de variabili-
dade, de incoerência e de indeterminação. Além disso, como de resto aconte-
ce com qualquer pessoa, o juiz retira do senso comum informações que pro-
vêm de outras pessoas, sem ter qualquer controle sobre sua formação, qualida-
de e confiabilidade.30 Não é por acaso que existem inúmeros exemplos de
convicções difusas que mais cedo ou mais tarde revelam-se falsas ou moral-
mente inaceitáveis.31 Além do mais, provavelmente ninguém poderia estabe-
lecer com precisão o quê pertence e o quê não pertence ao senso comum em
determinado lugar e momento, e muito menos seria possível redigir uma lista
clara, coerente e completa dos componentes deste.32
29. Sobre a já clássica distinção entre justificação interna e justificação externa da decisão, sobre a estrutura
aberta e complexa da justificação externa e sobre a necessária coerência desta com o contexto geral em que
se insere, v. especialmente AARNIO, “Reason and authority. A treatise on the dynamic paradigm of legal
dogmatics”, pp. 196 ss, 199 ss. e 205 ss.; “The rational as reasonable. A treatise on legal justification”, pp.
119 ss. Cfr. ainda WROBLEWSKI, “Justification of legal decisions”, pp. 55 ss.; “Justification though principles
and justification through consequences”, pp. 131 ss. e “Livelli di giustificazione delle decisioni giuridiche”, pp.
214 ss.; bem como COMANDUCCI, “Assaggi di metaetica”, pp. 195 ss.
30. Cfr. VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial decisions”, pp. 795 ss.
31. Cfr. ainda VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial decisions”, p. 823.
32. MICHEL FOUCAULT, “Le parole e le cose. Un’archeologia delle scienze umane”, p. 372, define, no plano das
categorias fundamentais, “o campo da episteme moderna, como um espaço volumoso e aberto segundo três
dimensões”, assinalando o superamento de toda taxinomia ordenada das ciências e das formas de conheci-
mento e analisando a multiplicidade e complexidade das tessituras entrelaçadas das ciências (pp. 374 ss.),
com referência particular às ciências humanas. Se isso caracteriza os fundamentos das ciências, fica evidente
que, com mais fortes razões, os fenômenos de fragmentação, desordem, instabilidade e incerteza craracterizam
o senso comum.
se e até que ponto o juiz deve considerar-se vinculado a tais valores, ou se ele
não pode ou não deve reportar-se a critérios mais gerais ou diversificados —
por exemplo, quando estiverem em jogo Direitos fundamentais reconhecidos
por todo o ordenamento ou até mesmo no plano internacional, mas não re-
putados relevantes em nível local.36 Em outras palavras, é lícito duvidar que a
decisão judiciária deva ser sempre culturalmente localizada. Poder-se-ia no
entanto sustentar que, em época de mundialização econômica e cultural, e
não só jurídica, um reclamo vinculante ao senso comum daquela comunidade
específica acabaria sendo provinciano e anti-histórico, além de divergente das
grandes tendências das sociedades contemporâneas.37
36. Aflora aqui o problema do juiz sociólogo, ou seja, do juiz que deve extrair da sociedade em que vive os
cânones de referência de suas valorações, em alternativa ao juiz que escolhe autonomamente seus critérios
de julgamento. No primeiro caso, coloca-se o problema do método com que o juiz pesquisa na cultura média
os critérios a seguir, e das escolhas que ele realiza entre as alternativas possíveis, especialmente quando
nessa cultura existem valores diferentes e conflitantes (v. infra, no texto). No segundo caso, é necessário que
o juiz justifique suas escolhas reportando-se aos valores que ele acata e que, por essa razão, considera
válidos como critérios de julgamento (sobre problemas dessa ordem, v., p.ex., TARUFFO, “La giustificazione
delle decisioni fondate su standards”, pp. 328 ss. e 335 ss.).
37. Na já rica literatura sobre esses temas, cfr. esp. FRIEDMAN, “The horizontal society; Ferrarese, Le istituzioni
della globalizzazione. Diritto e diritti nella società transnazionale”, pp. 42 ss.
38. Cfr. FERRARESE, “Le istituzioni della globalizzazione. Diritto e diritti nella società transnazionale”, pp. 154 ss.
39. Sobre a tendência ao superamento da dimensão nacional das culturas, v. esp. FRIEDMAN, “The horizontal
society”, pp. 80 ss., 120 ss. e 222 ss.; FERRARESE, “Le istituzioni della globalizzazione. Diritto e diritti nella
società transnazionale”, pp. 42 ss.
40. Cfr. MARTINIELLO, “Le società multietniche”, pp. 17 ss., 61 ss. e 79 ss.; FRIEDMAN, “The horizontal society”,
pp. 153 ss., 188 ss. e 222 ss. Para a análise teórica aprofundada do pluralismo cultural, étnico e religioso, cfr.
ROSENFELD, “Just interpretations. Law between ethics and politics”, pp. 199 ss.
41. Em geral, sobre as razões e os efeitos do multiculturalismo, v., no âmbito de uma literatura já muito ampla,
KYMLICA, “Multicultural citizenship”; FRIEDMAN, “The republic of choice: law, authority and culture”, pp. 213
ss.; TAYLOR, “La politica del riconoscimento”, pp. 24 ss.; MERRY, “Legal pluralism”, pp. 869 ss.; ROBERTSON,
“Globalization. Social theory and global culture”, pp. 97 ss. Especialmente sobre a pluralidade de culturas no
contexto europeu, v. DELGADO MOREIRA, “Multicultural citizenship of the European Union. Intercultural
Europe. Diversity and social policy”.
42. Cfr. p.ex., ROBERTSON, “Globalization. Social theory and global culture”, p. 173 e “Social theory, cultural
relativity and the problem of globality”, pp. 69 ss. Cfr. ainda FRIEDMAN, “The republic of choice: law, authority
and culture”, p. 116; BAUMANN, “Dentro la globalizzazione. Le conseguenze sulle persone”, pp. 78 ss.
43. Cfr. ROBERTSON, “Globalization”, p. 172.
44. Sobre esses conflitos, que vão se acentuando precisamente como efeito da globalização, ou que de todo
modo se tornam mais vísiveis na análise antropológica, v. p.ex., KARST, “The bonds of the american
nationhood”, pp. 1.141 ss.; STONE, “Comment: Cultural pluralism, nationalism, and universal rights”, pp.
1.211 ss.; ROSENFELD, “Comment: Human rights, nationalism, and multiculturalism in Rhetoric, Ethics and
Politics: A Pluralist Critique”, pp. 1.225 ss.
45. Por outro lado, é a experiência individual do mundo, ligada ao contexto específico em que o indivíduo vive, que
fornece os elementos capazes de construir os esquemas de conhecimento e interpretação da realidade e, por
essa razão, precisam ser diferenciados também em função das diversidades culturais: cfr. PENNINGTON-
HASTIE, “The story model for juror decision making”, pp. 195 ss.
46. Para um panorama dessas linhas de pensamento, v. MINDA, “Postmodern legal movements. Law and
jurisprudence at the century’s end”.
critérios gerais e abstratos como os que são fornecidos pelas normas jurídi-
cas.47 Nessa linha, uma das conseqüências que se propõem é que a decisão
judiciária deveria ser individualizada ao máximo e não formulada segundo as
regras,48 e o juiz deveria situar-se, ou seja, colocar-se no ponto-de-vista dos
sujeitos que se consideram discriminados.49 Tem sido sugerido, em substân-
cia, o abandono da idéia de que a decisão judiciária deveria fundar-se em
critérios aceitos intersubjetivamente, porque tais critérios nada mais fariam
que reforçar o predomínio dos grupos ou das classes que já detêm o poder.50
Deve-se também observar, por outro lado, que uma adesão completa e radical
à idéia de que a decisão judiciária deva ser individulizada no interior de uma
sociedade multicultural, com base na particular cultura própria dos indiví-
duos envolvidos no processo, leva a pôr em crise os valores da igualdade, da
indiferença religiosa e da tolerância, que são geralmente acatados nas socieda-
des ocidentais evoluídas, e a permitir que prevaleçam injustiças, discrimina-
ções e violências muitas vezes admitidas em várias culturas tradicionais.51 Um
exemplo relevante e preocupante dessa tendência é a chamada cultural defense,
ou seja, a defesa fundada na idéia de que um crime não deve ser punido
quando quem o cometeu pertence a uma cultura em que esse fato não é
reputado merecedor de punição.52
Quando se observa o problema do raciocínio do juiz a partir do interior
dessas perspectivas, as quais colocam em primeiro plano justamente a frag-
mentação cultural, social e econômica de muitas sociedades modernas, fica
evidente que o reclamo ao senso comum ou à experiência, como um contexto
verdadeiramente comum em que a decisão judiciária deveria inserir-se harmoni-
osamente, mostra-se como uma fuga aos problemas reais e como uma espécie
47. Um exemplo muito significativo da versão feminista da análise do raciocínio do juiz é BERNS, “To speak as a
judge. Difference, voice and power” onde se sustenta, p.ex., que uma mulher-juiz raciocina e decide de modo
inevitavelmente diferente do homem-juiz (pp. 193 ss.), em um contexto no qual a decisão judiciária se
configura como um ato de violência institucional e não como um ato de justiça (pp. 40 ss.).
48. Sobre essa distinção, em geral, v. SCHAUER, “Playing by the rules. A philosophical examination of rule based
decision-making”, pp. 51 ss. e 77 ss.
49. Cfr., p.ex., Wells, “Situated decisionmaking”, pp. 323 ss.
50. Cfr., p.ex., no âmbito de uma literatura que já é ampla, MINOW, “Foreword: justice engendered”, pp. 10 ss.;
RADIN, “The pragmatist and the feminist”, pp. 1.699 ss.
51. Sobre esses problemas, que se tornam cada vez mais graves com a crescente atenção atribuída à pluralidade
de culturas específicas no mesmo contexto político e social, cfr. esp. FERRARESE, “Le istituzioni della
globalizzazione. Diritto e diritti nella società transnazionale”, pp. 153 ss., além dos exemplos amplamente
discutidos in LAMBELET-COLEMAN, “Individualising justice through multiculturalism: the liberal’s dilemma”, pp.
1.093 ss.
52. Sobre esse problema, v. p.ex., NOTE, “7 cultural defense in criminal law”, pp. 1.293 ss., e a ampla crítica
desenvolvida por LAMBELET-COLEMAN, “Individualising justice through multiculturalism: the liberal’s dilemma”,
pp. 1.100 ss.
de nonsense.53 O que todavia não resta bem claro é qual alternativa se apresen-
ta como possível conseqüência da perda de referências culturais claras e ho-
mogêneas a que o juiz possa associar sua decisão com um mínimo de objetivi-
dade e universalidade. Essa alternativa parece ser na realidade uma pura e
simples remissão à sensibilidade subjetiva do juiz como indivíduo (sensibili-
dade cultural, política, social, racial e tantas outras), o qual deveria assumir o
encargo de fazer justiça em cada caso concreto, precisamente a partir das pe-
culiaridades específicas de cada sujeito ou de cada situação conflituosa. Desse
modo, porém, o juiz renunciaria a atuar valores gerais como a igualdade, a
liberdade individual e o respeito pela vida ou pela integridade das pessoas,
para reduzir-se a uma espécie de intérprete passivo de culturas específicas,
que caso a caso ele assumiria como contexto individualizante da sua decisão.54
53. Cfr. ROSENFELD, “Just interpretations. Law between ethics and politics”, p. 15.
54. A propósito, v. esp. LAMBELET-COLEMAN, “Individualising justice through multiculturalism: the liberal’s dilemma”,
pp. 1.127 ss.
55. Para uma resenha crítica das concepções da justiça dos últimos anos, v. GARGARELLA, “Las teorìas de la
justicia después de Rawls. Un breve manual de filosofìa polìtica”.
56. Sobre essa função do juiz, v. esp. DENTI, “Il ruolo del giudice nel processo civile tra vecchio e nuovo
garantismo”, pp. 173 ss.
4. As máximas de experiência
57. Cfr. STEIN, “Das Private Wissen des Richters. Untersuchungen zum Beweisrecht beider Prozesse”, pp. 16 ss.
58. Cfr. CARNELUTTI, “La prova civile”, pp. 64 ss. Ainda no âmbito da doutrina italiana, v. também CALOGERO, “La
logica del giudice e il suo controllo in Cassazione”, pp. 79 ss., e outras indicações nos itens a seguir. Na literatura
espanhola recente, v. GARCIMARTÌN MONTERO, “El objeto de la prueba en el proceso civil”, pp. 88 ss.
59. Sobre a função específica do conceito de máxima de experiência no âmbito da configuração silogística do
juízo de fato, v. o mesmo STEIN, “Das Private Wissen des Richters. Untersuchungen zum Beweisrecht
beider Prozesse”, pp. 18 ss., assim como CARNELUTTI, “La prova civile”, pp. 62 ss.; CALOGERO, “La logica
del giudice e il suo controllo in Cassazione”, pp. 95 ss.; Calamandrei, “La genesi logica della sentenza”,
pp. 22 ss. e 51.
60. A esse propósito, v. a já eficaz crítica de CALOGERO, “La logica del giudice e il suo controllo in Cassazione”,
pp. 100 ss. e 105 ss. Cfr. ainda NOBILI, “Nuove polemiche sulle cosiddette “massime d’esperienza”, pp. 123
ss.; TARUFFO, “La giustificazione delle decisioni fondate su standards”, pp. 308 e 397 ss.
61. Cfr. CALOGERO, “La logica del giudice e il suo controllo in Cassazione”, p. 103. Para uma concepção limitativa
da idéia de máxima de experiência e para a distinção entre esta e as outras noções de senso comum
empregadas pelo juiz, v. GARCIMARTÌN-MONTERO, “El objeto de la prueba en el proceso civil”, pp. 88 ss.
62. Já o próprio STEIN, “Das Private Wissen des Richters. Untersuchungen zum Beweisrecht beider Prozesse”, pp.
29 ss., propunha um relance nesse sentido, excluindo que as máximas tivessem natureza verdadeiramente
geral, sem porém renunciar à sua construção silogística do juízo de fato.
63. Esse, realmente, era o núcleo fundamental da crítica de CALOGERO, “La logica del giudice e il suo controllo in
Cassazione”, p. 105.
64. Cfr. VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial decisions”, p. 823.
5. O recurso à ciência
65. Cfr. esp. WAGENAAR-VAN KOPPEN-CROMBAG, “Anchored narratives. The psychology of criminal evidence”,
pp. 61 ss., 73 ss. e 237 ss.; de modo semelhante, VAN ZANDT, “An alternative theory of practical reason in judicial
decisions”, pp. 797 ss.
66. Cfr. p.ex., STALTERI, “Genetica e processo: la prova del “DNA fingerprint”. Problemi e tendenze”, pp. 189
ss.; NELKIN, apud Daubert: “The relevance and reliability of genetic information”, pp. 2119 ss.
67. Sobre o emprego das ciências sociais com fins probatórios, v. MONAHAN-WALKER, “Social sciences in law.
Cases and materials”, pp. 83 ss. e 279 ss. e “Judicial use of social science research”, pp. 571 ss.
68. Cfr., p.ex., os ensaios reunidos in “Probability and inference in the law of evidence. The uses and limits of
bayesianism”; SHAVIRO, “Statistical probability, evidence and the appearance of justice”, pp. 530 ss.; KOEHLER-
SHAVIRO, “Veridical verdicts: increasing veredict accuracy through the use of overtly probabilistic evidence and
methods”, pp. 247 ss. Para uma exposição sintética dos principais aspectos dessa orientação e para outras
indicações bibliográficas, v. TARUFFO, “La prova dei fatti giuridiche. Nozioni generali”, pp. 166 ss.
69. Cfr., p.ex., os ensaios reunidos in “Evidentiary value: philosophical, judicial and psychological aspects of a theory”.
Também na doutrina alemã se vêem aplicações de modelos de probabilidade quantitativa ao raciocínio probatório.
Cfr., p.ex., SCHREIBER, “Theorie des Beweiswertes für Beweismittel im Zivilprozess”; BENDER-RÖDER-NACK,
“Tatsachenfeststellung vor Gericht”; KOCH-RÜSSMANN, “Juristische Begründungslehre. Eine Einführung in
Grundprobleme der Rechtswissenschaft”, pp. 287 ss. e 318 ss. Para um panorama dessas linhas e mais indicações
bibliográficas, v. TARUFFO, “La prova dei fatti giuridiche. Nozioni generali”, pp. 181 ss.
70. Cfr. esp. SCHUM, “Evidence and inference for the intelligence analyst e evidential foundations of probabilistic reasoning”;
KADANE-SCHUM, “A probabilistic analysis of the Sacco and Vanzetti evidence”. O Evangelho da aplicação da
probabilidade lógica aos problemas da prova judiciária é sempre J.COHEN, “The probable and the provable”.
71. Cfr., p.ex., inclusive para outras indicações bibliográficas, TARUFFO, “Elementi per un’analisi del giudizio di
fatto”, pp. 785 ss. Em geral, sobre a aplicação de modelos de inteligência artificial ao raciocínio judiciário, v.
os ensaios reunidos in “Judicial applications of artificial intelligence”, e PRAKKEN, “Logical tools for modelling
legal argument. A study of defeasible reasoning in law”.
72. Cfr., p.ex., “Science in Court”.
73. Cfr., p.ex., DENTI, “Scientificità della prova e libera valutazione del giudice”, pp. 414 ss.
74. Cfr., a respeito, também para indicações bibligráficas, TARUFFO, “Le prove scientifiche nella recente esperienza
statunitense”, pp. 219 ss. Cfr. ainda GIANNELLI-IMWINKELRIED, “Scientific evidence”; BLACK, “A unified
theory of scientific evidence”.
últimos vinte anos o uso das provas científicas assumiu uma importância
crucial em muitíssimos processos sobre danos derivados do uso de medica-
mentos lesivos (especialmente nos chamados Bendectin cases)75 ou da exposi-
ção a substâncias cancerígenas (como no famoso Agent Orange case 76 ou nos
milhares de asbestos cases),77 ou ainda em casos famosos como o que envolveu
O. J. Simpson, no qual foi amplamente discutida a confiabilidade dos testes
genéticos. Não é por acaso que vão aflorando como setor autônomo de pes-
quisa e estudo as chamadas forensic sciences, que estudam de modo específico
precisamente as provas científicas, já existindo um corpus imponente de dou-
trina e de jurisprudência sobre tais problemas.
Todavia, o recurso à ciência não resolve todas as dificuldades oriundas
dos aspectos metajurídicos do raciocínio decisório e da descoberta dos fatos
no processo. Observe-se antes de mais nada que, malgrado os impressionan-
tes progressos de muitas ciências, com muita freqüência não se dispõe de
conhecimentos científicos suficientes a evitar o recurso ao senso comum. Es-
sas situações são ainda muito numerosas, razão pela qual freqüentemente o
recurso à ciência fica simplesmente impossível. Há também casos em que
hipoteticamente existem conhecimentos científicos disponíveis, mas sen-
tem-se resistências a fazer uso deles: um bom exemplo são as perícias psico-
lógicas (por exemplo, sobre menores), que parecem ser um instrumento útil
para a avaliação de situações complexas,78 mas encontram dificuldades para se
afirmar na prática em razão da generalizada desconfiança que ainda se nutre
em relação a elas.
Parece porém que o problema mais relevante e difícil é o do uso correto
dos conhecimentos e métodos científicos, e em particular da seleção de co-
nhecimentos e métodos que sejam verdadeiramente dotados de validade cien-
tífica. Esse problema é particularmente vivo nos Estados Unidos de hoje,
75. Nesses casos, que deram ocasião a numerosos precedentes, o problema principal dizia respeito à confiabilidade
das provas científicas relativas à possibilidade de que um medicamento usado por gestantes causasse malforma-
ções aos recém-nascidos. Cfr., por último, SANDERS, “Bendectin on trial. A study of Mass Tort litigation”,
pp. 45 ss. e 193 ss.; FOSTER-HUBER, “Judging science. Scientific knowledge and the Federal Courts”.
76. Nesse caso, o problema principal dizia respeito à prova do caráter tóxico do produto esfoliativo usado na
guerra do Vietnã. Sobre esse tema, v. esp. SCHUCK, “Agent Orange on trial. Mass toxic disasters in the
courts”, pp. 16 ss.
77. Esses numerosíssimos casos dizem respeito aos efeitos cancerígenos da exposição ao amianto. Para referên-
cias bibliográficas, cfr. TARUFFO, “Le prove scientifiche nella recente esperienza statunitense”, pp. 223 ss.
78. Cfr., p.ex., para mais referências bibliográficas, DANOVI, “Note sulla consulenza psicologica nel processo
civile”, pp. 808 ss.; ASKOWITZ-GRAHAM, “The reliability of Expert Psychological testimony”, pp. 2.027 ss.;
GIANNELLI-IMWINKELRIED, “Scientific evidence”, pp. 257 ss.
79. Para uma ampla análise dos numerosos problemas surgidos no sistema americano em relação ao recurso aos
peritos, v. GROSS, “Expert evidence”, pp. 1113 ss.
80. Para a análise dos vários casos em que uma junk science condicionou a decisão, v. HUBER, “Galileo’s Revenge.
Junk Science in the Courtroom”.
81. Cfr. DAUBERT v. MERRELL, Dow Pharmaceuticals, Inc., 113 S.Ct.2786.
82. Na vastíssima literatura sobre esse tema v., ultimamente, SANDERS, “Bendectin on trial. A study of Mass Tort
litigation”; GRAHAM, “The expert witness predicament: determining “reliable” under the gatekeeping test of
Daubert, Kumho, and proposed amended rule 702 of the Federal Rules of evidence”, pp. 317 ss. Cfr. ainda
TARUFFO, “Le prove scientifiche nella recente esperienza statunitense”, pp. 236 ss.; DONDI, “Paradigmi
processuali ed expert witness testimony nel diritto statunitense”, pp. 261 ss.; PONZANELLI, “Scienza, verità e
diritto: il caso Bendectin”, pp. 184 ss.
decisório é pois importante sempre que ela seja realmente possível, mas sem
dúvida ela não pode ser considerada como uma solução fácil e completa de
todas as dificuldades que se enfrentam para formular a decisão.
6. Conclusões
83. Sobre esses problemas, v. esp. FERRARESE, “Le istituzioni della globalizzazione. Diritto e diritti nella società
transnazionale”, pp. 52 ss.; TARUFFO, “Dimensioni transculturali della giustizia civile”, pp. 1047 ss.
Bibliografia
106 SPELMAN. “In context”, in “63 South Cal. L. Rev.”, 1990 (em coop. com
Minow).
107 STALTERI. “Genetica e processo: la prova del DNA fingerprint. Problemi e
tendenze”, in “Riv. trim. dir. proc. civ.”, 1993.
108 STEIN. “Das Private Wissen des Richters. Untersuchungen zum Beweisrecht
beider Prozesse”, Leipzig, 1893.
109 STONE. “Comment: cultural pluralism, nationalism and universal rights”, in
“21 Cardozo L. Rev.”, 2000.
110 TARUFFO. “Dimensioni transculturali della giustizia civile”, in “Riv. trim. dir.
proc. civ.”, 2000.
111 ____________. “Elementi per un’analisi del giudizio di fatto”, in “Riv. trim. dir.
proc. civ.”, 1995.
112 ____________. “Funzione della prova: la funzione dimostrativa”, in “Riv. trim.
dir. proc. civ.”, 1997.
113 ____________. “Il controllo di razionalità della decisione fra logica, retorica e
dialettica”, in L’attività del giudice, Turim, 1997, coordenado por M. Bessone.
114 ____________. “La giustificazione delle decisioni fondate su standards”, in
“L’analisi del ragionamento giuridico”, Turim, 1989, coordenado por
P.Comanducci e R.Guastini.
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116 ____________. “Le prove scientifiche nella recente esperienza statunitense”, in
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117 ____________. “Lezioni sul processo civile”, 2a ed, Bolonha, 1998 (em coop.
com Comoglio e Ferri).
118 TAYLOR. “La politica del riconoscimento”, in “Multiculturalismo. Lotte per il
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121 VIGNERA. “I fondamenti costituzionali della giustizia civile: il modello costituzionale
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122 VIOLA. “Diritto e interpretazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto”,
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123 WAGENAAR. “Anchored narratives. The psychology of criminal evidence”,
Harvester Wheatsheaf, 1993 (em coop. com Van Koppen e Crombag).
124 WALKER. “Judicial use of social science research”, in “15 Law and Hum. Beh.”,
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125 ____________. “Social sciences in law. Cases and materials”, 2a ed., Nova
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131 ZACCARIA. “Diritto e interpretazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del
diritto”, Bari, 1999 (em coop. com Viola).
O contraditório
nas ações sumárias
exauriente”, possa, mesmo assim, ser sumária sob o ponto de vista material.
Iniciemos pelo exame do que eles entendem por cognição “exauriente”.
Segundo se vê dos exemplos dados por Watanabe, em seu festejado en-
saio, “exauriente” seria, qualquer que fosse a respectiva “profundidade”, a cog-
nição com que o julgador encerra a relação processual, apreciando o meritum
causae. Nestes casos, diz ele, a cognição, embora parcial, será exauriente. Sen-
do assim, devemos ter como exaurientes tanto a cognição emanada de uma
ação ordinária e plenária — imagine-se a sentença que julga uma ação de
indenização —, quanto a cognição com que o magistrado julga a ação de
busca a apreensão do bem fiduciariamente alienado, prevista no art. 3o , § 2o
do Decreto-Lei nº 911; além naturalmente, da existente na ação cautelar e na
ação cambiária típica (“Da cognição judicial”, RT, 1987, p. 86).
Entretanto, a ação de busca a apreensão do bem objeto de alienação
fiduciária tem procedimento sumário e “defesa limitada” (José Carlos Moreira
Alves, “Da alienação fiduciária em garantia”, Forense, 2a ed., 1979, p. 17),
embora seja um “processo autônomo e independente de qualquer procedi-
mento posterior”, como prescreve o art. 2o , § 6o do Decreto-Lei nº 911. A
sumariedade material da ação vem, neste caso, proclamada pela própria lei.
A partir dessa premissa, Watanabe, como seria previsível, só concebe, como
forma de cognição sumária, aquela que ele próprio indica como sumariedade
superficial. Em suas palavras: “Na classificação acima apresentada, o vocábulo
“sumária” ficou reservado, unicamente, à cognição superficial que se realiza em
relação ao objeto cognoscível constante de um dado processo. Portanto, traduz
a idéia de limitação no plano vertical, no sentido da profundidade” (p. 91).
Essa sumariedade superficial que se dá “em relação ao objeto cognoscível
de um dado processo” é forma através da qual se expressam todas as liminares.
Pode haver, no entanto, sumarização (restrição, limitação, corte) da cognição
judicial mesmo nos casos em que o “objeto cognoscível” de uma determinada
lide seja apreciado em sentença final de mérito, sempre que ao juiz seja veda-
do o conhecimento de certas defesas que a natureza da causa tornara impossí-
vel suscitar.
Segundo escrevemos, em obra anterior, o Direito Processual pode valer-
se das seguintes técnicas para reduzir o campo da cognição judicial, de modo
a sumarizar a demanda: “a) permite-se que o juiz decida com base em cogni-
ção apenas superficial sobre todas as questões da lide, como acontece com as
decisões (sentenças) liminares; b) permite-se que o juiz decida com base em
cognição exauriente das questões próprias daquela lide, mas veda-se que ele
investigue e decida fundado em determinadas questões previamente excluí-
das da área litigiosa a ela pertencente. É isto o que ocorre com as ações cam-
biárias e possessórias, para mencionar apenas os exemplos mais notórios; c)
sumariza-se, também, impedindo que o juiz se valha de certa espécie de pro-
va, como acontece nos chamados processos documentais, de que, aliás, o cam-
biário foi o exemplo mais eminente, mas que encontram na ação de mandado
de segurança uma espécie típica do moderno Direito brasileiro; finalmente d)
pode dar-se sumarização, ao estilo dos antigos processos sumários, com verda-
deira “reserva de exceções”, por exemplo, em certas ações de despejo (convali-
da di sfratto) do direito italiano e nos processos d´inguinzione também exis-
tentes no direito peninsular, nos quais a sentença liminar torna-se desde logo
executiva se o demandado não oferecer prova escrita contrária, reservando-se
para uma fase subseqüente da própria ação o exame das questões que exijam
prova demorada e complexa” (“Procedimentos especiais”, Ed. Aidê, Rio de Ja-
neiro, 1989, p. 46; agora nos “Comentários ao Código de Processo Civil”, Ed.
Rev. dos Tribs., v. XIII, 2000, p. 58).
A distinção entre o que nós indicamos, seguindo as lições de Pontes,
como sumariedade superficial e sumariedade vertical, pode ser vista através do
contraste entre essa sumariedade que Watanabe indica como se dando no
plano da verticalidade, que é própria das liminares; e a sumarização propria-
mente vertical, que é aquela inerente à ação cambiária. Dizemos que, na pri-
meira hipótese, a sumarização dá-se no plano da horizontalidade porque ao
juiz é permitido, ao apreciar o pedido de liminares, investigar todas as ques-
tões da lide, porém apenas superficialmente.
As lições de Chiovenda a este respeito são esclarecedora e mostram-se ainda
atuais. Num de seus estudos sobre ações sumárias, o grande jurista distingue o
que ele denomina “cognizione incompleta perchè superficiale” daquela “cognizione
incompleta perchè parziale” (Azione sommaria. La sentenza di condanna con
riserva, “Saggi di diritto processuale civile”, v. I, p. 140-141), valendo-se justa-
mente a ação cambiária como exemplo de ação sumária desta última classe, em
que se dá “il frazionamento della cognizione”, pela separação entre a ação e as
respectivas exceções, a serem discutidas “ad separatum iudicium” (p. 131).
Nas hipóteses de verdadeira sumarização vertical, ao juiz é vedado conhe-
cer de toda uma parcela de questões litigiosas que, não fosse uma determina-
ção do direito material, poderiam ser suscitadas pelo demandado. É claro
razão Dinamarco, o processo executivo não contém mérito, pois este já foi
julgado no precedente processo de cognição (ob. cit., p. 107), de modo que
as oposições de mérito ao processo executivo haverão de ser objeto de outra
relação processual, indispensável como veículo para os embargos de devedor.
Como se vê, a aproximação que ocorre entre os processos cognitivo e
executivo (obrigacional) não é suficiente para tornar dispensável a ação de
embargos do devedor, sempre que o executado pretenda controverter sobre
outras questões de mérito do processo executivo, de modo que teremos de
considerar que, ao menos, o princípio da plenitude de defesa acabará mutilado,
quando o devedor — que se valha da exceção de pré-executividade — tiver de
promover uma ação de embargos para suscitar as demais objeções contra a
pretensão executória. Sua “defesa” contra o título transformar-se-á em causa
petendi da ação incidental de embargos.
É necessário, portanto, verificar se as demanda em que o contraditório
esteja vedado, como em nosso processo executivo por créditos (execução obri-
gacional, do Livro II do CPC), bem como aquelas em que a audiência do
demandado se dê para que ele alegue apenas uma parcela de suas defesas,
estarão também legitimadas, se o contraditório puder completar-se através de
outra demanda incidental, como se dá nos embargos de devedor de nosso
processo de execução; ou mediante uma ação autônoma, concebida sem o
caráter da incidentalidade, própria dos embargos.
16. É claro que, tendo sucumbido no juízo possessório, nem por isso
ficará o demandado, que perdera a posse, impedido de retomá-la se voltar a
juízo como autor de alguma ação petitória que lhe possa caber, inclusive a
reivindicatória, de modo que uma ou mais daquelas defesas que lhe foram
vedadas no possessório sejam agora empregadas como causa petendi da ação
inversa de natureza petitória.
O que poderia ser objeto de defesa, se a ação fosse plenária, torna-se
fundamento de uma nova ação de natureza petitória, por força da autonomia
conquistada pelo juízo possessório. Aquilo que a reivindicatória teria realiza-
do, numa única relação processual, agora — em virtude do fracionamento do
“processo integral” — terá de ser feito através de duas relações processuais.
Não fora a autonomia da ação possessória, que a torna, como qualquer
outra, uma demanda terminal, seria possível conceber a tutela imediata da
posse como fase liminar de uma ação reivindicatória, pois tanto no juízo pos-
sessório quanto na reivindicação, o objetivo visado pelo autor será a recupera-
ção da posse. Na ação possessória, pede-se proteção à posse, com fundamento
em posse anterior, turbada ou perdida; na reivindicatória, pede-se a posse por
ser o autor proprietário, mesmo sem nunca ter sido possuidor.
Este alvitre, aliás, fora sugerido por Virgilio Andrioli (“Commento al Codice
di Procedura Civile”, Jovene, Nápoles, v. IV, 1964, p. 283), através da admissão
como tal. O juiz diria na sentença que a posse do réu mostrava-se ilegítima e
isto seria suficiente para a procedência da ação.
Na ação reivindicatória, com execução antecipada (art. 273), as alegações
do demandado, sucumbente nessa fase liminar, deverão ser opostas na fase
subseqüente ordinária, como contestação. Teríamos composto, nessa ação de
reivindicação, uma fase liminar em que se apreciariam somente as questões
urgentes ou aquelas de fácil demonstração probatória, relegando para a se-
gunda fase ordinária, as defesa mais complexa, que a doutrina clássica deno-
minava exceções reservadas. A demanda continuaria íntegra em seus elementos
eficaciais. Apenas a estrutura interna sofreria alteração, pela transposição do
componente executivo para a fase liminar. Mas, o que é relevante, estaríamos
a manejar apenas uma ação, alterando em seu interior as respectivas fases.
O modelo, porém, ao ser comparado com as ações possessórias especiais,
permite ver que nestas ações, apenas possessórias, aquela fase liminar que
acabáramos de criar na reivindicatória, parece ter-se destacado para formar
uma demanda autônoma, transformando as exceções reservadas, que poderiam
ser usadas em nosso modelo de reivindicatória, não mais como matéria de
contestação, mas como causa petendi para a ação inversa petitória. O possui-
dor injusto que, em nosso exemplo de reivindicação com liminar, poderia
valer-se daquelas defesas, no juízo interdital possessório, teria de usá-las como
causa petendi da ação inversa petitória, de que porventura fosse titular.
21. O exemplo das ações possessórias serve para mostrar que a ordem
jurídica pode cortar em duas uma determinada ação, para atender à necessi-
dade de tutela imediata de algum interesse capaz de ser sacrificado pelo peri-
culum in mora de modo que, através dessa técnica de sumarização, é possível
partir em duas ações, igualmente autônomas (terminais), a ação originária. O
conflito possessório, inerente à demanda reivindicatória, que se destaca para
formar o interdito, ter-se-ia transformado, naquela segunda hipótese, em fase
liminar de uma única demanda de natureza petitória.
O possuidor teria preservada sua pretensão à defesa da posse, porém so-
mente enquanto tivesse curso a demanda que, não fora essa peculiaridade, seria
(apenas) possessória. O demandado, nesse modelo de tutela da posse, poderia
defender-se com todas as possíveis objeções fundadas em direito, mas a posse
seria assegurada ao possuidor, seu adversário, enquanto a ação tivesse curso.
As questões que, em nosso sistema tradicional, constituem res deducta da
ação dominial, subseqüente ao juízo possessório, agora neste modelo que aca-
bamos de propor, assumiriam as características de exceções reservadas, a serem
propostas na fase plenária da ação que não seria mais apenas possessória. Terí-
amos, através de um técnica inversa, suprimido as ações possessórias, para dar
proteção à posse, somente enquanto tivesse curso essa ação complexa, misto
de possessória e petitória.
Como se vê, à medida que reduzimos o número de pretensões de direito
material, agrupando numa única lide as questões litigiosas que poderiam com-
por duas ou mais demandas diferentes, aumentamo-lhe a complexidade, com
as naturais conseqüências disso decorrentes, ao passo que, se as pulverizarmos
em lides parciais, distribuindo por muitas ações aquelas questões formadoras
da imaginada lide total, criaríamos ações de pequena complexidade, capazes
de permitir soluções rápidas e seguras.
A complexidade (leia-se procedimento ordinário, com plenitude de defesa)
cresce na razão inversa do número de pretensões criadas pelo direito material.
Quanto menor o número de pretensões, mais complexas elas serão, e maior o
respeito ao princípio da plenitude de defesa, naturalmente com os custos corres-
pondentes. Se, ao contrário, o sistema puder desdobrar as demandas plenárias
(“processos totais”, como os chamava Carnelutti) numa pequena multidão de
demandas sumárias, o inconveniente que tal opção poderia provocar seria ape-
nas a inversão do contraditório, liberando o autor vitorioso no sumário de ter de
ajuizar o plenário, sob pena de ver desfeito o resultado por ele conseguido.
dele desapossado, ignore seu atual detentor, a solução que o sistema jurídico
lhe oferece é pedir sua anulação e substituição por outro. Trata-se do que a
doutrina denomina amortização do título extraviado, que se procede através
de sua recartulação.
Como se vê, porém, pela disposição do art. 911, a sentença, julgando
caduco o título reclamado, ordenará que o devedor emita outro que o substi-
tua. Não é admissível que se controverta, nessa ação especialíssima, qualquer
questão de que o devedor poderia valer-se se a demanda fosse plenária, como,
por exemplo, a discussão sobre a existência da obrigação, assim como as ou-
tras objeções que seriam cabíveis numa ação em que o credor pretendesse
receber o pagamento representado pelo título, ou em qualquer outra ação
deste gênero. Na ação do art. 907, apenas recria-se o título. As defesas veda-
das nesta instância poderão alimentar uma demanda subseqüente, proposta
por qualquer das partes. Quer dizer, a plenitude de defesa, se quisermos levar à
sério o conceito, necessitará, aqui, das duas demandas conjugadas.
Marquemos, porém, o seguinte: de nada valerá o devedor, demandado
na ação do art. 907, alegar que já pagara o título, para pedir a improcedência
da ação. O juiz, em obediência ao art. 911, mesmo perante essa defesa, deverá
declarar caduco o título extraviado, determinando que o devedor crie outro
que o substitua. Se ele fosse além desse limite, imposto pela natureza material
da ação, tê-la-ia feito desaparecer, transformada, quem sabe, numa ação de-
claratória de inexistência do débito, ou em ação de cobrança, jamais na ação
de amortização a que se refere o art. 907. Esta ação ou conserva-se sumária,
pela rigorosa limitação da defesa, ou desaparece, sem que o legislador do
processo possa torná-la uma ação plenária, com franquia de todas as defesas.
O exemplo basta para demonstrar que o direito processual, ao contrário
do que se imagina, não terá nunca o poder de transformar uma ação que seja
sumária em uma ação plenária, de modo que a separação entre a ação e suas
correspondentes exceções deve ser compreendida como um pressuposto que o
direito material lhe impõe. A pretendida processualidade deste fenômeno não
corresponde à realidade.
A natureza material da sumariedade a que nos referimos é a mesma que os
negócios jurídicos abstratos impõem ao direito processual. A ação cambiária,
de que mais adiante trataremos, é recebida pelo processo como uma ação
rigorosamente sumária, na qual toda a discussão relativa à causa debendi tor-
na-se inviável. A ação somente existirá se o Direito processual assegurar-lhe a
25. Por não atentar para a distinção, entre ações satisfativas e tutela de
segurança no direito de vizinhança, Ricardo Rodrigues Gama, em seu exce-
lente estudo sobre tutela inibitória, atribuiu-nos a afirmação de que a ação de
nunciação de obra nova seria cautelar (“O passado da tutela inibitória no Bra-
sil”, Revista Jurídica, v. 271, Porto Alegre, maio de 2000, p. 11), quando nos
limitáramos a atribuir “feição” cautelar apenas ao decreto liminar de suspensão da
obra embargada (a verdadeira nuntiatio do processo romano), não a ação nunciatória
do direito brasileiro, que é uma ação complexa e rigorosamente satisfativa (“Proce-
dimentos especiais”, Ed. Aidê, 1993, p. 298; agora nos “Comentários ao Código de
Processo Civil”, Ed. Rev. dos Tribs., v. XIII, 2000, p. 297).
O que é relevante, em casos como o da cautio damni infecti, é termos aí
ações sumárias autônomas que se distinguem, no entanto, das anteriores por
permanecerem cautelares, embora principais. São cautelares por limitarem-se
a dar proteção ao direito assegurado, sem satisfazê-lo (realizá-lo); e são princi-
pais por dispensarem o autor, que obtém a tutela de segurança, do ônus de
promover uma demanda satisfativa (cf. Pontes de Miranda, “Tratado de direito
privado”, t. XIII, § 1.540, 2 e 3). Tanto ele quanto o demandado, contra
quem fora concedida a medida cautelar, poderão voluntariamente controverter
a respeito do direito assegurado, porém, se o autor dessa ação cautelar (autô-
noma) não ingressar com a ação satisfativa, nem por isso a medida cautelar
perderá eficácia.
29. O leitor atento deve ter percebido que, nos casos em que o princípio
da bilateralidade da audiência assume a estrutura de contraditório eventual,
forma-se a tão célebre quão mal afamada “cláusula solve et repete”, segundo a
qual o demandado deve antes prestar (solver o débito), sem poder defender-se
plenamente, para depois, numa demanda plenária subseqüente, repetir o que
houver pago indevidamente.
Na verdade, o chamado contraditório eventual pode apresentar-se sob
duas modalidades distintas. Numa delas, tutela-se o interesse do autor numa
fase inicial da causa, para somente depois permitir que o demandado, se o
quiser, dê início ao contraditório, tornando-se autor de uma demanda inci-
dental. É o que se dá no processo de execução obrigacional (Livro II do C.P.C);
e de certo modo também no procedimento monitório (art. 1.102 do CPC),
embora nossa “ação” monitória insira os “embargos” no próprio procedimento
injuncional. Na verdade, tendo a natureza de embargos ou, o que seria mais
correto, de simples contestação, a verdade é que o ônus de provocar o contra-
ditório transfere-se para o demandado.
A outra modalidade de contraditório eventual ocorre quando o demanda-
do, a quem cabe provocar o contraditório, ao invés de promovê-lo sob uma
dessas duas maneiras, terá de fazê-lo através de uma ação autônoma (não inci-
dental) subseqüente.
É o que se verifica com as ações possessórias em relação às petitórias,
l´ha tentata Liebman, dove dice che il principio ‘della normale inscinbilità
della azione dalle eccezione ... garantisce il carattere definitivo degli
accertamenti giurisdizionali’ (“Contro il patto “solve et repete” nei contratti”,
Riv. dir. proc. civ., 1931, II, p. 249): appunto il ragionamento del Liebman
mette capo alla constatazione che la clausula instituirebbe una condanna con
riserva (delle eccezioni) che solo il legislatore può dispore” (“Clausola ‘solve et
repete’”, Riv. dir. proc. civile, 1936, II, p. 85).
Daí dizer Carnelutti, com toda a razão, que “l´inconveniente” vislum-
brado pelos processualistas, na adoção da cláusula solve et repete nos contratos,
“consistirebbe nella scissione del processo in due e, perciò, nel carattere non
definitivo dell´accertamento”. Observe-se que o conceito de “accertamento de-
finitivo” aceito por Liebman corresponde àquele contido numa sentença ema-
nada de uma lide plenária, ou seja, de uma lide total, perante a qual nada
haverá de ficar “reservado” para ser controvertido em demanda subseqüente.
Para melhor compreensão dessa questão decisiva: para Liebman, o
accertamento produzido por uma sentença que julgue procedente uma ação
possessória — ou julgue procedente a ação cambiária — não seria “definitivo”
em virtude da “scissione” entre a ação e as respectivas exceções.
Esta, sem dúvida, sempre foi a invencível dificuldade em que se encontra
a doutrina moderna em aceitar as ações sumárias. Uma vitória obtida através
de um “accertamento non definitivo”, capaz anular ou mesmo reduzir os be-
nefícios da vitória anterior, sempre apareceu aos processualistas como uma
solução inaceitável, por ser contrária tanto ao interesse que a ciência proces-
sual devota à certeza do direito, quanto à vantagem, definitivamente obtida
pelo vencedor.
Entretanto, Galeno Lacerda, que não aceitara a autonomia da ação caute-
lar, admite que determinadas espécies de cautelas prescindam de uma ação
principal, entendendo que, mesmo que a ação satisfativa não seja proposta, a
medida cautelar, nesses casos, não perderá a eficácia, de modo que fica legi-
timada a cisão entre a ação e as respectivas exceções, e consagrada a vigência
da cláusula solve et repete, afirmando o jurista que, “se acaso o réu se julgar
injustiçado pela decisão cautelar, e prejudicado pela demora do autor em
aforar a demanda principal, a solução é muito simples: ele que tome a inicia-
tiva e proponha a ação principal contrária, com vistas, p. ex., a exonerar-se de
prestação alimentar” (“Comentários ao Código de Processo Civil”, Forense, v.
VIII, t. I, 1981, p. 381).
Essa eloqüente defesa das ações sumárias autônomas, apesar de sua indis-
cutível significação para a efetividade do direito processual, não recebeu a
atenção que merecia por parte da doutrina.
34. Nosso raciocínio permite extrair duas conclusões que, embora pos-
sam parecer banais e insignificantes, revestem-se, a nosso ver, de alta relevân-
cia, como questões ligadas à tão desejada efetividade do processo. A primeira
delas é a de que ou todas as ações sumárias terão de ser consideradas inconsti-
tucionais, frente à norma do art. 5o, LV da Constituição Federal; ou, se toda
essa multidão de ações sumárias deva ser considerada legítima, perante o di-
reito brasileiro, então devemos considerar que o princípio do contraditório será
igualmente preservado nos casos do chamado contraditório eventual, em que a
defesa transforme-se, de contestação, em causa petendi de uma ação inversa a
ser facultativamente ajuizada pelo sucumbente no juízo sumário. A segunda
conclusão é o resgate da legitimidade das “ações sumárias autônomas”, com
formação de coisa julgada material sobre as questões a respeito das quais as
partes foram autorizadas a litigar.
Este último resultado talvez seja, ironicamente, a única vantagem que se
poderá obter com a constitucionalização do princípio de plenitude de defesa,
precisamente aquilo que seus românticos autores não pretenderam, ao legiti-
marem, sem o querer, as demandas sumárias. Pretendo constitucionalizar o
procedimento ordinário, com “plenitude de defesa”, sem no entanto suprimir
a mais eminente e autorizada lide em que o princípio não se observa, o siste-
ma acabou vítima da astúcia lógica do próprio conceito, impondo, para que a
plenariedade se observe, o retorno às lides parciais!
35. Há, sem dúvida, razões históricas, filosóficas e acima de tudo políticas,
Sergio Bermudes
PROFESSOR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DA PUC/RJ
* Este artigo foi escrito em memória de Evaristo de Moraes Filho, com uma saudade imensa.
CPC. Vai além a suspensão, tolhendo qualquer eficácia ao ato recorrido, para
impedir a sua execução, num sentido lato, envolvente da prática de todos os
atos, que, de qualquer modo, lhe possam dar efetividade.
Coordenação Geral
Des. Sérgio Marcos de Moraes Pitombo
Capa
Escola Paulista da Magistratura
Diagramação
Ameruso Artes Gráficas
Formato Fechado
150 x 210 mm
Tipologia
AGaramond, Frutiger
Papel
Capa: Cartão Revestido 250g/m2
Miolo: Offset Branco 90g/m2
Acabamento
Cadernos de 16pp.
costurados e colados - brochura
Tiragem
3.500 exemplares
Impressão
Imprensa Oficial do Estado
Outubro de 2001
252