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CONSELHEIRO

Em geral, quando a gente sente os efeitos da picada os mosquitos já decolaram. Apenas


raramente se deixam matar facilmente, inebriados pelo sangue que estão a sugar. Como é
possível que um ser cuja massa é inferior a 0,01 gramas possa infligir tamanhos estragos,
causando pruridos e inchaços, transmitindo doenças? São mistérios decifrados da natureza.

Pois acho que alguns fatos pequenos, pueris mesmo, por vezes causam pruridos e inchaços
pelos séculos. Minha mãe, em sua pouca crença nas origens nobres do Brasil, de vez em
quando lembrava a situação pouco gloriosa em que D.Pedro teria proclamado a Independência:
o Príncipe Regente estava acometido por forte desarranjo e a cena do Grito longe estaria
daquela do famoso quadro de Pedro Américo.

Confesso que nunca gostei desta menção pouco honrosa e, quiçá protegendo a imagem que
preferia ter dos primórdios de nossa nação, a recusei como caricata, debochada e mesmo
inconveniente para a construção da nacionalidade. Trata-se de uma invencionice, pensava, mais
um destes tiros no pé gerados na usina do nosso complexo de vira-latas. Acalentei esta ilusão
por anos, até por as mãos no livro “O Chalaça”, de José Roberto Torero, constituído a partir de
trechos do diário deixado pelo Conselheiro Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, como ficou
conhecido. Os capítulos do livro alternam passagens no Brasil e fatos decorridos na luta entre os
irmãos em Portugal, quando Pedro enfrentou o exército de Miguel e o derrotou.

O pai de minha mãe partiu para a eternidade muitos antes da publicação do livro e portanto deve
ter lido a narrativa em outra obra. D.Pedro I e sua comitiva percorreram em lombo de burro o
trajeto entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Foram doze dias de fadigas, sendo D.Pedro saudado
nas vilas pelas quais passavam. Chalaça e um acólito entraram em São Paulo antes dos demais
para averiguarem o estado de ânimo da cidade em revolta. Relata que a sujeira, a má qualidade
das ruas e a precariedade dos poucos sobrados de taipa saltavam à vista. Depois de dez dias
em São Paulo, bem sucedidos, foram a Santos, onde participaram de um jantar com costeleta de
porco que os tornaria imprestáveis, com inúmeras interrupções na viagem de volta a São Paulo.

Bon vivant e rematado mulherengo, Chalaça sentencia que tudo que o homem busca na vida
são três sons: “o sussurro das mulheres, o tilintar das moedas e o alarido das palmas”. Antes da
viagem a São Paulo ele se declarou largamente satisfeito quanto aos dois primeiros, faltava-lhe
o terceiro. Como testemunha da proclamação de nossa Independência, às margens do Ipiranga,
ainda que debaixo de indisposições ultrajantes, o episódio o inseriu definitivamente nas páginas
de nossa saga. Escreveu três livros, num dos quais (Memórias oferecidas á nação brasileira),
editado em Londres, em 1831, dedica-se a criticar o Marquês de Barbacena, seu grande
desafeto. O marquês foi responsável pela vinda da segunda esposa de D.Pedro I e pela ida sem
volta de Chalaça à Europa, feito que logrou ao obter a nomeação do conselheiro como
embaixador no Reino das Duas Sicílias. Manobra comum: promover um inimigo para afastá-lo.

Conhecer as fraquezas e virtudes dos personagens que escreveram a história tem o dom de nos
trazer o conforto do entendimento ou a inquietude, o desassossego, o inconformismo com nosso
estado de coisas. As cenas vividas junto ao Ipiranga resultaram da indignação quanto às
decisões das Cortes Portuguesas: D.Pedro deixava de ser o Príncipe Regente, não mais poderia
nomear ministros e uma força militar estava a caminho para restabelecer a ordem. Impulsivo,
graças a Deus, gritou “Laços fora”, montou em seu asno branco e mudou a nossa sorte.

Nesta quadra em que vivemos, quando já não levamos tapas na cara, mas murros de decisões
judiciais que contrariam nossa humilde ignorância, reproduzo o que Chalaça escreveu a respeito
da reação à dissolução da Constituinte por D.Pedro: “Aprendi, por exemplo, que a bravura é
inimiga do relógio. Dou por certo que, se tivéssemos cercado o paço na noite anterior, o sangue
teria sido vertido. Bastou, porém, o espaço de algumas horas para que a semente da covardia,
disfarçada em cautela, brotasse nos peitos mais valentes. Quando chegamos, estávamos diante
de um manso e ordeiro rebanho”.

Não há como negar que a falta de reação popular e das instituições diante dos descalabros
recentes causa muita estranheza. Será que fomos picados pelo mosquito do medo?

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