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Paul B. Preciado
Mutação ou submissão
Mas tudo isso pode ser uma má notícia ou uma grande
oportunidade. É precisamente porque nossos corpos são os
novos enclaves do biopoder e nossos apartamentos as novas
células da biovigilância é que se torna mais urgente do que
nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e
resistência e lançar novos processos antagônicos.
Ao contrário do que se possa imaginar, nossa saúde não virá
da imposição de fronteiras ou separação, mas de um novo
entendimento da comunidade com todos os seres vivos, de
um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta.
Precisamos de um parlamento do corpo planetário, um
parlamento não definido em termos de identidade ou política
de nacionalidade, um parlamento dos corpos vivos
(vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O evento Covid-19
e suas consequências nos chamam a nos libertar de uma vez
por todas da violência com a qual definimos nossa imunidade
social.
A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto
imunológico negativo de afastamento do social, de
fechamento da comunidade. A cura e o cuidado só podem
emergir de um processo de transformação política. Curarmos
a nós mesmos como sociedade significaria inventar uma nova
comunidade além das políticas de identidade e fronteira com
as quais até agora produzimos soberania, mas também além
da redução da vida à sua biovigilância cibernética. Seguir
vivo, permanecer vivo como um planeta, contra o vírus, mas
também contra o que pode acontecer, significa implementar
formas estruturais de cooperação planetária. Como o vírus
sofre mutação, se queremos resistir à submissão, também
devemos sofrer mutações.
É necessário passar de uma mutação forçada para uma
mutação deliberada. Devemos nos reapropriar criticamente
das técnicas biopolíticas e de seus dispositivos
farmacopornográficos. Antes de tudo, é imperativo mudar a
relação de nossos corpos com as máquinas de biovigilância e
biocontrole: elas não são apenas dispositivos de
comunicação. Temos que aprender coletivamente a alterá-
las. Mas também é necessário nos desalinhar. Os governos
chamam ao confinamento e ao teletrabalho. Sabemos que, na
verdade, eles nos chamam à descoletivização e ao
telecontrole. Vamos usar o tempo e a força do confinamento
para estudar as tradições de luta e de resistência das minorias
que nos ajudaram a sobreviver até agora. Vamos desligar os
celulares, desconectar a Internet. Façamos o grande blecaute
diante dos satélites que nos observam e imaginemos juntos a
revolução que virá.
Link
original: https://elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/15
85316952_026489.amp.html