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Volume III

Ciências sociais e educação:


Formação e aprendizagens

Manuel Carlos Silva et al. (orgs)


Centro de Investigação em Ciências Sociais (ed)
Instituto de Ciências Sociais
Universidade do Minho
Ciências Sociais e educação:

Formação e aprendizagens
Índice
Educação, formação e aprendizagens ........................................................................................................................................ 1 
A robótica pedagógica recolocando a formação social em solo educativo.............................................................................. 1 
Políticas públicas em alfabetização: a pesquisa colaborativa e sua contribuição na formação de professores ...................... 6 
A AIA de Nelson Rockfeller e o Ensino Agronômico em Minas Gerais ............................................................................. 13 
Regulação do Ensino Superior: delineamentos no Brasil e em Portugal ............................................................................... 21 
Insucesso e Abandono Escolares no Ensino Superior - Uma Analise por Coortes ............................................................... 33 
Aprendizagem eficaz dos Direitos Humanos na Escola: possibilidades para alunos e professores? .................................... 46 
Escola Pública numa comunidade e ilhéus ............................................................................................................................. 50 
Razão indolente, interesses hegemónicos e a universidade: reflexões acerca do discurso do empreendedorismo em
empresas juniores no Brasil .................................................................................................................................................... 56 
Universidade Brasileira: Classes Populares e Desafios.......................................................................................................... 66 
Estudar no Brasil: a experiência sócio-cultural de universitários da África Lusófona em São Paulo, Brasil ....................... 70 
A criatividade no caminho da diversidade de alunos do ensino superior .............................................................................. 77 
Ensino superior em Angola e formação de profissionais de educação .................................................................................. 86 
Identidades e Classificação na modernidade: ação afirmativa na universidade .................................................................... 95 
Entre o ensino superior e a inserção profissional – análise comparativa de percursos de diplomados ............................... 108 
Neoconservadorismo e Reforma da Educação Superior ...................................................................................................... 116 
A Docência nas Ciências Sociais: desafios na contemporaneidade ..................................................................................... 123 
Acesso dos jovens das camadas populares ao Ensino Superior no Brasil: políticas e programas do governo federal
desde 1990 ............................................................................................................................................................................. 129 
AVALIAÇÃO DE RESULTADOS E DO IMPACTO DE UM PROJECTO DE FORMAÇÃO-ACÇÃO: DO
SUCESSO DA INTERVENÇÃO À EMPREGABILIDADE DOS ESTAGIÁRIOS......................................................... 138 
O estudante universitário, suas vivências e a busca de um futuro em mutação................................................................... 150 
Guia de informação aos pais como factor preditor ao sucesso académico dos filhos na universidade ............................... 159 
Motivação para o ingresso e aprendizagem no Ensino Superior: o caso dos estudantes maiores de 23 na
Universidade de Aveiro ........................................................................................................................................................ 163 
A botânica no Século XX em Portugal. Análise do seu ensino nos manuais escolares dos Ensinos Primário e
Básico (1º.ciclo) .................................................................................................................................................................... 174 
O Processo Formativo Profissional da Escola de Artes e Ofícios e os Ajustamentos de Goffman .................................... 187 
A formação do trabalhador na Amazônia: um breve olhar nas políticas do Estado nos anos 2000. ................................... 193 
Os desafios da educação especial para os professores: uma pesquisa sobre a avaliação que professores do ensino
fundamental fazem de sua atuação com alunos com necessidades educacionais especiais ................................................ 205 
A Globalização e a Infância: reflexos e reflexões nas falas das crianças ............................................................................ 209 
Educação Infantil de meninas e meninos Brasileiros ........................................................................................................... 222 
Resgate da Psicomotricidade através dos recursos naturais ................................................................................................. 227 
Currículo multicultural: possibilidades para a construção de um planejamento participativo das aulas de educação
física escolar .......................................................................................................................................................................... 236 
Quando a educação faz a diferença: dilema das famílias brasileiras imigrantes ................................................................. 242 
Género, Educação e Desenvolvimento - Manual de Apoio (Faculdade Ciências Pedagógicas - Moçambique) ................ 247 
“Professores da Escola Pública: sentido da aprendizagem” ................................................................................................. 250 
A construção do conceito de educador social em contextos variados de intervenção ......................................................... 258 
Os Modos de Significar a Profissão Docente e aquilo que a identifica conforme os Docentes Ativos .............................. 262 
O processo de formação identitária dos professores por meios pedagógicos/ comunicacionais na docência online ......... 267 
Sociedade, Educação Básica Pública e Comunicação: responsabilidade, lutas sociais e direitos no Brasil (1988-
2007) ...................................................................................................................................................................................... 274 
Educação e Formação em São Tomé e Príncipe: Constrangimentos ao seu desenvolvimento. .......................................... 280 
A racionalidade da administração da escola pública portuguesa ......................................................................................... 295 
O Estado português, as políticas educativas e a sua dependência de uma Governação multinível..................................... 300 
Mudança Educativa em Contexto Global: Alguns Dados do Sub-financiamento Português .............................................. 305 
A Regulação Transnacional das Políticas Educativas: O Papel dos Indicadores de Comparação Internacional na
Construção de uma Agenda Global de Educaçã’ ................................................................................................................. 318 
Novas oportunidades para velhos problemas: o vocacionalismo como ideologia educativa .............................................. 328 
Abordagem de uma instituição escolar a partir de um estudo de caso de longa duração: reflexões metodológicas
no campo da sociologia das organizações educativas .......................................................................................................... 335 
Educação deformada: aventuras da reforma do ensino médio no nordeste brasileiro ......................................................... 343 
Sociedade, educação básica pública e comunicação: responsabilidade, lutas sociais e direitos no Brasil (1988-
2007) ...................................................................................................................................................................................... 356 
Educação de adultos e diversidade cultural .......................................................................................................................... 362 
Educação: Uma Oportunidade para Todos - Da Educação Escolar à Educação Ao Longo da Vida .................................. 370 
Alfabetização de jovens e adultos - das políticas públicas à prática docente ...................................................................... 377 
O regresso à escola e o (re)posicionamento social: dois estudos de caso ............................................................................ 386 
Projetos de vida e regresso à escola na idade maior: quatro estudos de caso ...................................................................... 395 
Os Jovens Alunos do “Último Turno”: Produzindo Outsiders ............................................................................................ 405 
A Mediação Sócio-Educativa na Construção da Cidade Educadora: O Projecto "Massarelos, Freguesia
Educadora" ............................................................................................................................................................................ 414 
Moralizar ou democratizar a(s) consciência(s)? Equívocos em torno das práticas e das representações no espaço
da formação cívica. Comparação entee duas escolas ........................................................................................................... 424 
Desenvolvimento sustentável e cultura de paz: a construção de uma interface................................................................... 433 
Observação Etnográfica do Grupo de Atletismo Misto - Meninos e Meninas entre 7 e 17 Anos na Vila Olímpica
de Belford Roxo .................................................................................................................................................................... 436 
Educação Básicas - Um Desafio para as comunidades desfavorecidas de Micaune ........................................................... 442 
Concepções de justiça na escola: um estudo comparativo Portugal-Brasil ......................................................................... 447 
Dialogando sobre as iniciativas de promoção da cultura de paz nas escolas: a voz dos educandos ................................... 454 
Educação e Cidadania: uma reflexão sobre o Ensino Superior no Brasil ............................................................................ 461 
Educação cidadã: o reconhecimento de identidades coletivas através da educação............................................................ 471 
La construcción de la ciudadania participativa por meio de la educación ........................................................................... 474 
Preparação Básica para o Trabalho: O olhar dos docentes do Ensino Médio no meio rural da Amazônia ........................ 482 
Formação de profissionais em saúde e inclusão social: o desafio de uma proposta de curso de mestrado
profissional ............................................................................................................................................................................ 491 
Organismos Internacionais e a Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores no Brasil .................................................... 494 
Educação e Formação de Adultos: do modelo formativo aos impactes nos públicos abrangidos ...................................... 501 
Comunidades de Aprendizagem: a diversidade a favor da potencialização da aprendizagem............................................ 508 
Formação profissional: perspectivas e desafios no século XXI ........................................................................................... 512 
Formação de Professores da Rede Municipal de Fortaleza na perspectiva da Lei 10.639/03 ............................................. 516 
Culturas Juvenis e Escola: desafios à formação docente na contemporaneidade ................................................................ 518 
Precarização do trabalho, tecnologias, formação de professores - caminhos para a efetivação da cidadania .................... 526 
Regulação das políticas de formação docente no Brasil e as intrerências do Banco Mundial ............................................ 530 
Multiculturalismo e Etnicidade – A formação de professores indígenas............................................................................. 542 
O papel do professor na formação da criança e do jovem em situação de vulnerabilidade social ...................................... 546 
Trabalho Docente e Processos de Aprendizagem. Analise de uma Política de Formação Docente no Nordeste do
Brasil...................................................................................................................................................................................... 555 
O desafio da aprendizagem contextualizada e as suas implicações na formação do professor: entre o universal e o
particular ................................................................................................................................................................................ 563 
O espaço do professor no cenário global. ............................................................................................................................. 568 
Dimensão utópica no ensino: representações e memória ..................................................................................................... 575 
Reformas do Estado e da educação no Brasil impõem novos marcos à formação docente ................................................ 581 
Trabalho, Educação e Prática Docente ................................................................................................................................. 588 
Construção de identidades profissionais ............................................................................................................................... 592 
Democracia e Gestão da Organização Escolar: os conselhos escolares e a construção da democracia na escola
pública ................................................................................................................................................................................... 598 
Aprendizagem dialógica e gestão escolar: a participação dos familiares dos estudantes na escola .................................... 607 
Organização e Gestão das Escolas Secundárias de Cabo Verde: Entre o centralismo e a autonomia ................................ 619 
A acção das políticas supranacionais e a construção do sucesso escolar em Portugal ........................................................ 623 
Paradoxos da “Autonomia” consagrada dos Agrupamentos de Escolas -Um olhar sociológico-organizacional a
partir das representações dos docentes de um Agrupamento de Escolas. ............................................................................ 636 
Problemas de Administração Educativa em Portugal e Brasil: o Olhar Académico ........................................................... 643 
Intencionalidades político-partidárias na construção normativa da gestão democrática do ensino público no RS -
Brasil...................................................................................................................................................................................... 650 
Refugees motivation for mandatory language training programs in Norway ...................................................................... 658 
Etnoeducando e etnoaprendendo: educação pela valorização da ancestralidade africana e afro-brasileira ........................ 664 
Identidades e Diferenças em Trocas Culturais entre Crianças Brasileiras e Portuguesas ................................................... 670 
A competência linguística e a relação pedagógica: necessidades para o sucesso escolar ................................................... 675 
Cor, desigualdades educacionais e diferenças de desempenho nas avaliações em larga escala no Brasil .......................... 683 
Agressões praticadas por garotas dentro da escola: reflexões sobre escola, gênero e violência ......................................... 696 
Movimento negro no Brasil: Pedagogia Interétnica uma Acção de Combate ao Racismo ................................................. 709 
A Ascensão da Diversidade nas Políticas Educacionais Contemporâneas .......................................................................... 720 
Vozes de trabalhadores sobre a sua inclusão sócio-digital na educação de jovens e adultos: dizeres e saberes em
uma escola pública de Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil ................................................................................................ 729 
Inclusão social e educação: tensões e intenções nas políticas curriculares brasileiras ........................................................ 738 
Portadores de necessidades especiais no ensino regular ...................................................................................................... 743 
“Só morre quem merece”: representações e estratégias dos jovens alunos para conviver com a violência
extramuros ............................................................................................................................................................................. 747 
O movimento negro brasileiro e a lei 10.639/03:Uma experiência de implementação no Municipio de Vitória ............... 754 
A Educação Infantil no Contexto dos Movimentos Sociais: duas leituras possíveis .......................................................... 764 
Currículos praticados, emancipação social e democracia no cotidiano da escola ............................................................... 774 
Projectos educativos e promoção de igualdade – realidade ou retórica? ............................................................................. 783 
Desafios da escola multisseriada no contexto da região insular de Belém .......................................................................... 791 
Fabricar o sucesso escolar: quando o desempenho mascara a desigualdade ....................................................................... 797 
Diásporas académicas: estudantes angolanos no ensino superior português ....................................................................... 810 
Fora de lugar: imigração internacional, educação e mobilidade .......................................................................................... 817 
Educação em São Tomé e Príncipe: qualificação e o potencial de geração de rendimentos............................................... 820 
Exclusão / Inserção Social nas pesquisas em Educação e Infância no Brasil ...................................................................... 824 
Avaliação da qualidade em educação de infância: Um processo colaborativo.................................................................... 827 
Reflexões sobre a criança, o uso do computador e as possibilidades de narrar na escola ................................................... 831 
Criança constituindo-se sujeito na sala de aula .................................................................................................................... 836 
Investigação com crianças pequenas: rompendo fronteiras ................................................................................................. 843 
Produção de conhecimento numa comunidade: imagens da alteridade ............................................................................... 850 
(In)disciplina, normatização e normalização na escola ........................................................................................................ 859 
Política da juventude: A formação da identidade e práticas educativas .............................................................................. 870 
Jovens e cotidiano: trânsitos pelas culturas juvenis e pela escola da vida ........................................................................... 882 
Orientar futuros: análise das concepções de orientação vocacional escolar e profissional ................................................. 892 
Etnografia e juventude nos estudos em educação ................................................................................................................ 902 
Tertúlia literária dialógica: leitura dialógica como proposta de transformação das relações sociais .................................. 911 
Da escola à clínica do social: a dificuldade de aprendizagem como demanda à análise. .................................................... 922 
A arte da narrativa reinventa o cotidiano da sala de aula: outros olhares, outras práticas .................................................. 927 
Leitura: um aprendizado significativo .................................................................................................................................. 931 
Considerações sobre concepções de aprendizagem: perspectiva construtivista e perspectiva comunicativo-
dialógico. ............................................................................................................................................................................... 935 
A escola indígena e as noções de infância: os Mebengokré-Xikrin ..................................................................................... 947 
O pós-colonialismo explica a educação do campo no Brasil ou a educação do campo no Brasil explica o pós-
colonialismo? ........................................................................................................................................................................ 951 
A situação escolar de alunos(as) da periferia urbana no Brasil............................................................................................ 958 
A preparação para o trabalho dos jovens envolvidos com o comércio varejista de drogas ilegais no Rio de Janeiro ....... 970 
Discriminação racial e processo de ensino/ aprendizagem de crianças negras – São Paulo-BR ........................................ 982 
Mãos, Muletas e Pedras: pontos e contrapontos nos caminhos da educação inclusiva ....................................................... 988 
Cultura escolar inclusiva: fragmentos da fala do professor ................................................................................................. 996 
A Inclusão Social na Presente Globalização ...................................................................................................................... 1002 
Silvia Lane: uma vida dedicada à pesquisa ........................................................................................................................ 1006 
Educar para desconfiar? As interseções entre confiança e controle no cotidiano da educação escolar ............................ 1016 
A Superação da desigualdade: paradigma liberal de educação X ontologia do ser social – o confronto necessário....... 1020 
A educação e o brincar: espaço para construir, reinventar ................................................................................................. 1029 
A educação, substrato do trabalho docente......................................................................................................................... 1032 
A Formação do Educador do Educador Social no Contexto da Rede de protecção da Infância e da Adolescência ........ 1042 
Praxis ética e formação de professores ............................................................................................................................... 1046 
Traçando o caminho entre a formação continuada e a reconfiguração de práticas na escola: narrativas de uma
professora de arte ................................................................................................................................................................ 1050 
Lei de Directrizes e Bases da Educação Nacional.............................................................................................................. 1061 
A formação de professores e o contexto multifacetado da escola: a socialização escolar de alunos vítimas de
violência sexual ................................................................................................................................................................... 1068 
Direitos humanos e gênero na formação da educadora e do educador .............................................................................. 1076 
Reconstruindo a Formação do professor no Contexto da Educação Popular .................................................................... 1082 
Estágio e Formação Inicial: espaço de constituição da profissionalidade do professor das séries inicias ........................ 1093 
“Relações raciais e a Formação do Professor” ................................................................................................................... 1106 
Formação docente e avaliação: pontos de reflexão entre professores de uma universidade pública brasileira ................ 1113 
Da validade da formação de professores em face da educação especial/ inclusão escolar: numa lógica excludente ....... 1124 
Ação pedagógica jesuítica no Brasil conônia e polaridade social: a manutenção de uma sociedade
concomitantemente dominada e dominadora ..................................................................................................................... 1130 
Os velhos mestres de capoeira ensinam pegando pelas mãos ............................................................................................ 1134 
FORMAÇÃO INTERDISCIPLINAR E CIDADANIA: insights a partir de um projeto em Educação Ambiental ......... 1139 
Educação em valores humanos: formação e aprendizagens............................................................................................... 1148 
Os Desafios da Educação a Distância em Portugal ............................................................................................................ 1154 
A Importância do professor no E-Learning em Portugal ................................................................................................... 1157 
Ensino presencial ao ensino a distância .............................................................................................................................. 1160 
Especificidades da Formação Docente Adaptada às Novas Tecnologias .......................................................................... 1165 
A Importância do e-Learning na Educação à Distância em Meio Universitário ............................................................... 1169 
A Inovação no Ensino – Aplicações ao Ensino à Distância ............................................................................................... 1173 
Evolução Tecnológica do Ensino Tradicional .................................................................................................................... 1177 
Proposta curricular de Santa Catarina (Brasil) e orientações da UNESCO: um estudo comparativo ............................... 1180 
A natureza dupla do sistema de aprendizagem na reconstrução da relação de jovens com o saber: as diferentes
figuras do aprender .............................................................................................................................................................. 1183 
O papel da Igreja Católica na formação profissional dos jovens: um estudo de caso do Centro de Formação
Profissional Dom Bosco no Município do Sambizanga (1994-2006) ............................................................................... 1194 
Ensinar Saúde e produção do conhecimento: perspectivas contemporâneas de integração entre currículos,
informação técnico-científica e formulação de conceitos em saúde .................................................................................. 1201 
Natureza do Processo de Aprender e Ensinar de uma Instituição de Educação Profissional Técnica de Nível
Médio na Perspectiva do Aluno .......................................................................................................................................... 1211 
O sistema de aprendizagem em alternância – alternativa ou mais do mesmo? ................................................................. 1215 
Formar o Cidadão para a República: Émile Durkheim e a Proposta de uma Educação para a Autonomia ...................... 1231 
Limites da lógica da inovação para mudança educacional: ações em São Paulo, SP, Brasil ............................................ 1241 
O diálogo na aula: uma construção a partir do projeto comunidades de aprendizagem .................................................... 1248 
Entre o lápis e o teclado: Reflexões sobre a produção de textos escritos no computador ................................................. 1251 
O Ser Humano: O Protagonista........................................................................................................................................... 1257 
Formação de educadores: Ensinando e aprendendo com gestores de escola ..................................................................... 1263 
Formação inicial e continuada de educadores no Brasil frente à globalização.................................................................. 1267 
Género e Políticas Públicas de Educação no Brasil: entre contradições e desafios........................................................... 1270 
A questão ambiental e a formação docente ........................................................................................................................ 1278 
As Pesquisas e a Formação dos Professores do Curso Especialização em Artes .............................................................. 1282 
Educação para o Desenvolvimento através de “Oito Maneiras de Mudar o Mundo” ....................................................... 1286 
Administração e gestão da educação: um estudo dos seus fundamentos teóricos ............................................................. 1293 
Educação, Formação e Usos do Diploma nas Carreiras Profissionais no Brasil ............................................................... 1306 
A lógica da Diferenciação Funcional e da Hierarquização Simbólica na Modernidade Avançada no contexto do
Ensino Superior em Portugal .............................................................................................................................................. 1313 
Doutores em Humanidades no Brasil: interfaces entre titulação e formação de pesquisadores ........................................ 1320 
Adesão ao Processo de Bolonha na Região Centro ............................................................................................................ 1325 
Preferências de Crianças e Adolescentes relativas às novas atividades oferecidas pelo Clube Escola da Secretaria
Municipal de Esportes, Lazer e Recreação de São Paulo................................................................................................... 1337 
O impacto do vestibular de uma universidade pública brasileira nos candidatos negros .................................................. 1341 
Inclusão/exclusão escolar: um retrato teórico .................................................................................................................... 1351 
Infância, corpo e educação na produção científica brasileira (1997-2003) ....................................................................... 1357 
Crianças, Professores e Famílias: (Co) Protagonistas de uma Educação Infantil de Qualidade ....................................... 1360 
O espaço é coisa séria: a arquitetura e o currículo da EMEI Maria Pacheco Resende (um estudo de caso) .................... 1368 
A razão da escola................................................................................................................................................................. 1377 
Educação, Diferenças Culturais e Cidadania. Análise a partir de uma experiência escolar. ............................................. 1385 
Educação do campo no Brasil: o que dizem os discursos? ................................................................................................ 1394 
Que educação inter/multicultural no Jardim de Infância: os livros infantis e as suas imagens da alteridade* ................. 1398 
A experiência cidadã em contextos educativos não-escolares: representações e práticas de jovens pertencentes ao
escutismo ............................................................................................................................................................................. 1407 
Educação, formação e aprendizagens

A robótica pedagógica recolocando a formação social em solo educativo


Akynara Aglaé Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
akynara@gmail.com

Maria das Graças Pinto Coelho


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
gpcoelho@ufrnet.br

Resumo: Há quase duas décadas, o mundo se perfilou no cruzamento da história, indeciso entre o passado e o porvir. Essa incerteza gerou
conflitos em todas as dimensões do processo social e colocou em xeque as teorias que tentavam explicar a sociedade pós-industrial nos
últimos vinte anos. Diversas são as discussões acerca do surgimento do novo modelo de sociedade, resultante de novas relações entre
indivíduos e destes com o mundo, neste novo padrão social, informação e conhecimento são fundamentais. O mundo é tecnologia e a
sociedade não pode ser simbolizada sem suas ferramentas tecnológicas. Surge como conseqüência a necessidade de uma nova concepção de
educação, que abarque as novas formas do agir e pensar social, de caráter global, permitindo a penetração do sujeito no meio social e
cultural, buscando sua compreensão integral e historicizada. Tentando responder às exigências educacionais da sociedade vigente, a robótica
pedagógica surgi como um ambiente capaz de proporcionar um tipo de conhecimento diferenciado e cooperante, proporcionando à escola o
aparecimento de novos espaços, garantindo novas vivencias através de contextos tecnológicos que agenciem o desenvolvimento de novas
competências cognitivas. Desta forma, há uma modificação na forma de transmissão de conteúdos, na aprendizagem do alunado e na relação
entre os atores do processo educativo. A robótica pedagógica carrega em sua essência um ambiente problematizador e concreto, contempla o
desenvolvimento pleno do aluno, com atividades dinâmicas, permitindo a construção cultural, autonomia e responsabilidade. Desta maneira,
a robótica educativa paulatinamente ganha espaço e gera significativos e surpreendentes resultados para a educação.

Há quase duas décadas, o mundo se perfilou no cruzamento da história, nervosamente indeciso entre o passado e o
porvir. Essa incerteza gerou conflitos em todas as dimensões do processo social e colocou em xeque as teorias que tentavam
explicar a sociedade pós-industrial nos últimos vinte anos. Diversas são as discussões acerca do surgimento de um novo
modelo de sociedade, o qual é resultante de novas e promissoras relações dos indivíduos entre si e destes com o mundo que o
cerca e, neste novo padrão social, que se propaga rapidamente, informação e conhecimento são fundamentais. Castells (1999)
fala que vivenciamos um intervalo histórico, cuja característica principal é a modificação de uma cultura material para um
novo paradigma tecnológico organizado em torno de tecnologias da informação. Hoje, o mundo é tecnologia e a sociedade
não pode ser compreendida ou simbolizada sem suas ferramentas tecnológicas, portanto, de acordo com Lévy (1999),
podemos pensar em tecnologias como produtos de uma sociedade e de uma cultura, extensões do homem, as quais carregam
consigo idéias, projetos, implicações sociais, econômicas e culturais específicas.
Nesta nova perspectiva de sociedade, em que o progresso tecnológico e a globalização delineiam um novo espaço
de ação, proporcionando uma nova representação de comportamentos e valores sociais, cabe-nos (re) pensar que papel tem a
educação nos dias atuais, dentro do ponto de vista da sociedade moderna, tecnológica. Considerando tal conjuntura, a escola
deve procurar assumir um novo papel: o de formar cidadãos para esta nova sociedade, buscando um referencial de educação
inclusiva, também, em seu aspecto tecnológico. Notamos, nesta nova função educacional, a primeira relação entre educação e
tecnologia.
Ao ilustrar o referencial de educação com vistas à inclusão social, consideramos o sujeito como ser pensante e
construtor do saber, que tenha em sua bagagem intelectual conhecimentos adquiridos não só por meio de sua jornada escolar,
mas também pela sua visão de mundo, conseqüência de sua inserção em um meio sócio-cultural. Rego (1995), ao pesquisar
acerca dos referenciais vygotskyano, explica que a estrutura fisiológica humana, aquilo que é inato, não é suficiente para
produzir o indivíduo humano, na ausência do ambiente social. As características individuais (modo de agir, de pensar, de
sentir, valores, conhecimentos, visão de mundo etc.) dependem da interação do ser humano com o meio físico e social.
Vygotsky chama a atenção para a ação recíproca existente entre o organismo e o meio e atribui, especial importância, ao fator
humano presente no ambiente. (REGO, 1995).
Nessa visão de mundo e de si mesmo, tocada por Vygotsky, construída por meio do contato com o meio cultural
que o cerca, o indivíduo acaba por traçar um conceito próprio de si, dos outros e do meio que o abarca. Esse pensamento nos
faz remeter a complexidade do ser humano e sua característica multifacetada. Morin (2006), por sua vez, fala de um ser
humano com várias dimensões, “multidimensional”. Nesse sentido, o conhecimento não deve estar dissociado dessa visão
abrangente do ser. O referido autor enfoca que unidades complexas - como o ser humano ou a sociedade - são
multidimensionais, ou seja, o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico, psíquico, social, afetivo e racional e a sociedade
comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosa, portanto o conhecimento pertinente deve reconhecer esse
caráter multidimensional.

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Morin (2006) fala de uma educação completa, a qual leva em consideração todos os aspectos que envolvem o ser
humano físico e psicológico. Este pensamento vem em conseqüência da relação de permuta que há entre o sujeito e o meio
sócio-cultural-familiar que o envolve, priorizando além de uma educação conteudista, aspectos que correspondem a atitudes e
valores, os quais precisam ser conhecidos pelos educadores para que eles possam delinear e definir ações educativas mais
adequadas para o desenvolvimento de seus alunos. Deste modo, a instituição educativa torna-se responsável pelo preparo do
indivíduo para uma vida social saudável, semeando práticas democráticas e a participação cidadã do sujeito, com vistas a
construir sua identidade, que é instituída em comparticipação, afinal, homens se educam em comunhão, mediatizados pelo
mundo. (FREIRE, 2005).
Delineamos, desta forma, uma educação inclusiva, com vistas a permitir a penetração do sujeito ao meio social e
cultural que o cerca, buscando sua compreensão integral, historicizada e não dissociada dos vários aspectos que o envolve. A
educação assume como pano de fundo a “sociedade tecnológica” que vigora em épocas atuais e os múltiplos aspectos que
cerca o ser humano, desconsiderando uma educação segmentada, que não leve em consideração as extensões do ser.
De um lado, temos essa visão abrangente e complexa do ser, a qual refletirá na maneira como se manifestará a
transmissão de conhecimentos, como também nos objetivos com que esse conhecimento é impresso, em uma situação
adversa, temos uma configuração de educação pautada no ensino aprendizagem de forma restrita e limitada, baseada na mera
transmissão de conteúdos e com objetivos obscuros quanto ao caráter social da educação.
Esse ensino, de caráter tradicional, traz consigo a incapacidade de entender o ser e suas complexidades,
desconsiderando sua contribuição na construção do conhecimento. Nesse sentido, o ato de ensinar torna-se uma mera
transmissão de conteúdos dissociados da realidade, fragmentado e mal organizado, reduzido a mera narração do
conhecimento, em que os sujeitos tornam-se indivíduos não pensantes, não construtores da sua própria sabedoria,
corroborando com Freire (2005) quando se refere à relação educador-educando, estabelecendo-a como fundamentalmente
narradoras ou dissertadoras. Coloca que esta narração de conteúdos tende a petrificar-se ou a fazer-se algo morto, sejam
valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica um sujeito – o narrador – e objetos
pacientes, ouvintes – os educandos. (FREIRE, 2005, p. 65).
Nesse contexto, emerge a necessidade de recursos pedagógicos que possam propiciar a inserção do sujeito neste
meio que o abarca, uma vez que mediante as novas características da sociedade informacional, surge a necessidade de novas
competências cognitivas para o ser humano. A escola deve encontrar saídas para concretizar este seu novo objetivo: educar
para incluir.
A apropriação social da educação exige uma recolocação. Assim, competências devem ser priorizadas e construídas
por intermédio do conhecimento curricular, emergindo como arcabouços complementares, os quais trabalhados
harmoniosamente poderão munir o indivíduo com recursos cognitivos eficazes para agir em determinadas situações
inusitadas. A escola, por sua vez, já não poderá abranger apenas o conteúdo curricular restrito, surgindo então, a necessidade
de um redimensionamento no ensino e na aprendizagem. Desta forma, a preocupação em torno da aprendizagem de
competências torna-se presente nas esferas educacionais, mais precisamente na última década do século XX, como esclarece
Perrenoud (1999),
[...] aspectos como a evolução do mundo, das fronteiras, das tecnologias dos estilos de vida estão contribuindo para a
transformação do pensamento educacional, obtendo como conseqüência uma recolocação da formação do sujeito,
requerendo deste, flexibilidade e criatividade crescentes no trabalho e na cidade. Nessa perspectiva - acrescenta o
autor-, confere-se ocasionalmente à escola a missão prioritária de desenvolver a inteligência como capacidade
multiforme de adaptação às diferenças e às mudanças. (PERRENOUD, 1999, p. 15).

Portanto, novas possibilidades devem ser criadas e experimentadas, proporcionando a aquisição de conhecimentos
através da prática, da experiência e de desafios. Chella (2002) ao analisar o ensino tradicional, verifica que a preocupação
maior está na apresentação de conceitos contidos no currículo escolar formal, e que esse enfoque curricular provoca um
distanciamento entre o que é ensinado e a realidade dos fenômenos físicos, biológicos e sociais em que o aprendiz está
inserido. Oliveira Netto (2005) acrescenta que a importância desta nova função educacional esta em buscar novas formas de
pensar, de procurar e selecionar informações, construindo um modo próprio de trabalhar o conhecimento, reconstruindo e
atribuindo novos significados, de acordo com interesses e necessidades. Tais competências se fazem presentes e são frutos
das novas relações estabelecidas no tecido social. Quanto mais a sociedade evolui e se transforma em termos tecnológicos e
culturais, outras formas de pensar e de se relacionar são desencadeadas, as quais resultam na necessidade de novas
aprendizagens e produção de conhecimento.
A robótica pedagógica surge como um ambiente capaz de proporcionar um tipo de conhecimento diferenciado e
cooperante com sistema atual de sociedade e educação, contribuindo para a formação de competências. Ela surge como
reflexo requerido desta nova era, assim, novos espaços, além da sala de aula, passam a existir na escola, de forma a garantir
novas vivencias através de contextos tecnológicos que agenciem o desenvolvimento de competências cognitivas.
Segundo Steffen apud D’Abreu (2002), na educação, a robótica pedagógica pode ser entendida,
Como o emprego da robótica industrial, a qual pressupõe um conjunto de conceitos básicos de mecânica, cinemática,
automação, hidráulica, informática e inteligência artificial, em um contexto onde as atividades de construção e controle
de dispositivos, usando kits de montar ou outros materiais, como sucata, composta por diferentes peças, motores e
sensores controláveis por computador e softwares, propiciam o manuseio destes conceitos em um ambiente de

2
aprendizagem. Portanto, a robótica aplicada à educação designa-se Robótica Educativa ou Robótica Pedagógica, ambas
com o mesmo sentido. (STEFFEN apud D’ABREU, p. 05, 2006).

Nesse sentido, a robótica pedagógica busca em diversas áreas tecnológicas subsídios para a efetivação de suas
atividades, pressupondo um trabalho multi e interdisciplinar; as atividades correspondem à construção, controle ou
programação do protótipo para que ocorra a resolução das atividades propostas. Portanto, a robótica pedagógica carrega, em
sua essência, um ambiente problematizador, insere o alunado em constantes desafios em busca do seu resultado final, como
também concreto para nossas crianças, incitando o pensamento, a estruturação de idéias e elaboração de hipóteses.
Maisonnette (2006) soma a idéia de que o uso desta nova tecnologia pode sugerir atividades lúdicas, desafiantes e criativas
para as crianças, que passam a programar a máquina para controlar objetos concretos, possibilitando a elas explorar e
verificar suas hipóteses, formalizar seus conhecimentos intuitivos e a unir um instrumento de aprendizagem a um instrumento
de lazer.
Castilho (2006) argumenta acerca de outras possibilidades advindas do trabalho com esta ferramenta pedagógica,
consoantes aos objetivos de uma educação com vistas à formação do individuo para a sociedade vigente. Ela considera que o
aprendiz constrói seus próprios conhecimentos, por meio de observações e da própria prática, ou seja, os alunos aprendem
fazendo, tem como objetivo estimular a exploração e a investigação de problemas concretos por meio do raciocínio lógico,
pois ao criar e programar o robô, as crianças estão sendo constantemente desafiadas a pensar sobre o que está fazendo, de
forma lógica e organizada. Outra característica importante de se trabalhar com a robótica educativa, refere-se à questão do
erro como um fator construtivo na aprendizagem. Ao deparar-se com o erro, a criança não encarará o mesmo como um fator
desestimulante, de condenação ou de castigo, ao contrário, como assegura Zilli (apud ZACHARIAS, 2004, p.2), o erro
oferece oportunidades para que o aluno entenda porque errou e busque uma nova solução para o problema, investigando,
explorando, descobrindo por si próprio. Desta maneira, a aprendizagem se dará pela descoberta.
Ao considerar o trabalho com a robótica educativa, podemos evidenciar uma modificação na forma de transmissão
de conteúdos, na aprendizagem do alunado e na relação entre os atores do processo educativo - aspectos são imprescindíveis
para uma transformação no processo educativo. Esse novo enfoque no ensino e na aprendizagem, intermediado pelo uso da
robótica pedagógica faz aflorar um novo tipo de professor, de aluno e de educação. O professor desafiador e construtor de sua
própria aprendizagem, o aluno independente e responsável e uma educação pautada no desenvolvimento integral dos alunos,
preparando-os para serem cidadãos autônomos.
Constatamos que a robótica pedagógica se constitui em recurso tecnológico bastante interessante e rico no processo
de ensino-aprendizagem. A cada dia esta ferramenta vem ocupando mais espaço no âmbito educacional, devido a gama de
benefícios oriundos desta ferramenta tecnológica, ela contempla o desenvolvimento pleno do aluno, pois propicia uma
atividade dinâmica, permitindo a sua construção cultural e, enquanto cidadão torna-o autônomo, independente e responsável.
(ZILLI, 2004, p. 77), características estas primordiais para a inserção e vida ativa do indivíduo junto à sociedade que o cerca.
Diante do que foi exposto e reverenciando a produção hábil da robótica pedagógica em esferas educacionais,
trazemos uma exemplificação de seu uso, nos remetendo as experiências desenvolvidas no Projeto de Inclusão Digital com
Robôs, originado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, coordenado pelo Departamento de Engenharia da
Computação e Automação, na cidade de Natal, Brasil. Detendo-nos a expor o trabalho educativo proporcionado pela
ferramenta, onde os elementos constituídos da educação, professor, aluno e concepção de ensino-aprendizagem passam a ser
trabalhados com vista à inclusão social. Para tanto, iremos apresentar atuações do projeto, abordando metodologias, materiais
utilizados e resultados em forma de opiniões acerca do mesmo por comunidades escolares, as quais foram beneficiadas por
suas ações.
Para tanto, iremos apresentar atuações do projeto, abordando metodologias, materiais utilizados e opiniões acerca
do mesmo pela comunidade escolar, a qual está ou foi beneficiada por suas ações.
Buscando explorar as potencialidades da robótica educativa, o Projeto de Inclusão Digital com Robôs (DCA –
UFRN) tem como objetivos amenizar a exclusão digital presente nas camadas desfavorecidas da sociedade brasileira,
propiciando a familiarização com os recursos tecnológicos utilizados, neste caso, computadores e robôs, extraindo com ajuda
desse recurso, conhecimento. Este projeto possui três anos de existência, atuando nas instituições escolares públicas do
estado do Rio Grande do Norte, Brasil, proporcionado oficinas de robótica pedagógica para crianças de 06 aos 10 anos de
idade.
Atualmente as oficinas de robótica pedagógica ocorrem quinzenalmente, dentro da própria instituição beneficiada,
onde hoje participam um total de 19 alunos em fase de alfabetização, divididos em grupos, acompanhados de suas monitoras.
Nessas oficinas, os alunos são convidados a construir seu robô, mediante a utilização de um manual de montagem e kits
LEGO Mindstorms, controlá-lo ou programá-lo por meio de software especializado sempre com orientação da monitora,
objetivando o desenvolvimento de estratégias para a execução das atividades propostas. As atividades priorizam a
interdisciplinaridade, no caso atual do projeto, com ênfase na apropriação do código lingüístico, uma vez que o mesmo está
inserido em uma instituição escolar de ensino infantil, objetivando fazer com que a prática interdisciplinar juntamente com a
ferramenta tecnológica, - a robótica - colaborem ainda mais no processo de ensino-aprendizagem dos alunos inseridos nas
oficinas.

3
Figura I – Oficina de Robótica Pedagógica: Aluno controlando o protótipo montado por meio do computador e software especializado na resolução do problema
proposto.

Nas oficinas mencionadas, os alunos são levados a estimular o raciocínio lógico, por meio do planejamento de
ações, construção e reconstrução de protótipo e da resolução de problemas, a criatividade, o trabalho em equipe, a
responsabilidade, a disciplina, a socialização, a autonomia, o respeito, liberdade de expressão, dentre vários outros conteúdos
atitudinais e valores. Além disso, há o trabalho com conceitos e conteúdos que envolvem uma perspectiva do letramento,
como a própria aquisição do código lingüístico e significados, linguagem corporal e visual, coordenação motora, lateralidade,
estruturação espacial e etc, adicionando conteúdos de robótica e informática, tudo isso através de atividades previamente
planejadas e consoantes com as relações sociais.

Figura II – Oficina de Robótica Pedagógica: Momento da socialização de idéias e construção de conteúdos atitudinais e conceituais de robótica, objetivando a
resolução da atividade proposta.

O trabalho com a robótica educativa dentro da perspectiva do Projeto apresentado não contempla aspectos
conteudistas da forma como são comumente aceitos pela educação tradicional, em que são desvinculados do cotidiano do
alunado e suas relações sociais, onde há predominância da palavra do professor, de imposição de regras e castigos, além da
mera transmissão verbal de conhecimentos, as atitudes como os questionamentos, comunicação entre alunos, interação
grupal, são postas em plano inferior, prevalecendo o trabalho individual, atenção, concentração, disciplina, como garantias de
uma aprendizagem significativa. Contraditando as ações desenvolvidas no Projeto de Robótica Pedagógica, como citadas
anteriormente, as quais partem para uma formação de caráter social, em que conteúdo passa a ter uma conotação
diferenciada, não prevalecendo apenas conceitos, mas sim valores e atitudes, como especificado e sugerido pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais - documento nacional, desenvolvido pelo Ministério da Educação e Cultura do Brasil, o qual expõe
referencias de qualidade para os ensinos fundamentais e médios do país. A prática desenvolvida pelo projeto pressupõe,
assim, uma ressignificação da noção de conteúdo escolar, o qual se amplia para além de fatos e conceitos, passando a incluir
valores, normas e atitudes. Ao tomar como objeto de aprendizagem escolar conteúdos de diferentes naturezas, reafirma-se a
responsabilidade da escola com a formação ampla do aluno e a necessidade de intervenções conscientes e planejadas nessa
direção. (Parâmetros Curriculares Nacionais, p. 51, 1997).
Com a metodologia apresentada, a robótica pedagógica insere-se na instituição beneficiada também como forma de
auxiliar docentes e alunos no conteúdo ministrado em sala de aula, dando suporte didático-pedagógico a comunidade escolar.
As avaliações realizadas durante o desenvolver das oficinas de robótica mostraram que os alunos interagiam de forma

4
significativa com a ferramenta usada mostravam-se eufóricos em responder sobre o que poderia fazer o robô e para que
servia.
Além do conhecimento referente à robótica, que abarca a curiosidade e ansiedade do aluno em manipular e
construir o seu robô, a ferramenta cede espaço para o trabalho com disciplinas curriculares, portanto, após a
construção/manipulação do protótipo, os alunos são convidados a resolver situações problemas de naturezas científicas
diversas por meio do controle ou programação do sistema robótico desenvolvido com o software especializado. Neste
sentido, para que ocorra a programa ou o controle com sucesso, o alunado deve ter conhecimentos básicos de informática
acerca de hardware e software, uma vez que, terão que assumir um computador neste processo de construção de
conhecimento.
As oficinas de robótica pedagógica estruturadas pelo Projeto de Inclusão Digital com Robos são desenvolvidas
essencialmente para dar suporte didático-metodologico aos docentes. Com a presença da ferramenta, professores poderão
desmistificar conteúdos, tornando-os concretos à visão dos alunos. Português, Ciências, Artes, História, dentre outros
conhecimentos, até mesmo os relacionados ao processo de alfabetização na Educação Infantil, podem ser abarcados à
ferramenta, agregando valor a metodologia utilizada pelo professor. Uma das docentes atuantes na instituição que fora
benefiada pelo projeto afirma que foi possível constatar que esse trabalho com a robótica é mais uma possibilidade de
desenvolvimento das operações mentais. Além de a criança desenvolver sua criatividade e a cooperação entre os colegas
(Professora). Outra docente faz um pequeno relato sobre a contribuição da robótica pedagógica no letramento de alunos, ela
expõe: Podemos dizer que a robótica educativa na educação infantil já é uma realidade, é possível sim transmitir
conhecimento com apoio da ferramenta a essses alunos que ainda estão em um processo de abstração de pensamento
concreto. Nesse sentido, inferimos que a robótica na educação é hoje um recurso didático capaz de auxiliar o alfabetismo,
bem como a transmissão do conhecimento científico.
A narrativa da gestora de uma das instituições benefiaciadas vem a revalidar a importância da ferramenta para uma
formação social, tanto dos alunos como da categoria docente da escola. A implantação da robótica educativa nesta instuição
fez com que a gestão escolar despertasse para a capacitação de professores, a mesma coloca: Uma oportunidade dessa para
nós foi maravilhosa e percebemos realmente que esta fazendo que o professor e até a própria escola acorde, por que nós
educadores também somos analfabetos digitais e sem contar com a questão da robótica que já é um outro leque de
conhecimentos que se apresenta para essas crianças. Então, em nossa opinião o projeto tem sido significativo, gostaríamos
inclusive que ele continuasse e se possível que outras crianças tivessem oportunidade.
Os resultados advindos desta experiência nos oportunizam refletir acerca de uma possibilidade de um novo tipo de
educação, a qual precede aprendizagens próprias proporcionadas pela ferramenta em questão, a robótica pedagógica. Os
alunos beneficiadas com a inserção do Projeto de Inclusão Digital com Robôs em suas escolas descobriram novas formas e
conteúdos a aprender, por meio de uma aprendizagem colaborativa. Este tipo de aprendizagem oferece recursos ao professor
para propiciar a alunos e professores uma participação ativa e interativa na construção social do conhecimento. Nesse
sentido, o processo educativo é beneficiado pela participação social em ambientes que propiciem a interação, a colaboração, a
avaliação e o crescimento intelectual de todo o grupo.
Podemos evidenciar mudanças cognitivas e comportamentais dos alunos durante e após a passagem pelo Projeto de
Inclusão Digital com Robôs em suas escolas, uma das monitoras das oficinas de robótica pedagógica ressalta transformações
no que concerne a forma dos alunos aprenderem, por meio da troca de conhecimento entre eles, a monitora afirma: Uma
característica que tenho visto é a mudança da maneira de trabalhar em equipe, como as oficinas acontecem em grupos, o que
fiquei responsável tinha grande dificuldade de trabalhar em equipe, um queria estar na frente do outro, às vezes “atropelava”
o que os outros estavam falando. Hoje em dia não, eles já sabem que se sabe algo pode ajudar o outro que não sabe. Outro
relato de umas das professoras pode nos mostrar mais mudanças cognitivas, ela expõe: a mudança maior tem sido a de que
eles estão mais interessados, mais responsáveis. Esses alunos do projeto passaram a ser mais responsáveis.
Além de mudanças atitudinais, foi possível evidenciar que os alunos aperfeiçoaram seus conhecimentos, bem como
adquiriram outros, relacionados principalmente a conhecimentos relacionados à robótica e a informática. Elementos de
hardware e software foram construídos e assimilados pelos alunos, bem como peças e funções das peças dos kits de robótica
que utilizamos em nossas oficinas.
Por fim, é neste sentido que a robótica pedagógica se projeto, servindo de apoio pedagógico/metodológico à prática
docente. Gerando benefícios cognitivos aos alunos, resultando em uma nova formação, a formação que englobas aspectos
atitudinais e conceituais na aprendizagem,consoante com a sociedade vigente, a qual abarca consigo o papel necessário das
tecnologias em nossas vidas.
Desta maneira, torna-se inadiável incluir na pauta educativa as discussões sobre a utilização dos meios tecnológicos
na escola, dentre esses meios, evidenciamos a robótica educativa, a qual paulatinamente começa a ganhar espaço e a gerar
conseqüências favoráveis no que diz respeito à aprendizagem do alunado. Contudo, há a necessidade de um maior
detalhamento quanto suas experiências no meio educacional, mais especificamente as experiências consideradas iniciais. Por
meio dos resultados obtidos nessa pesquisa é possível pensar sobre uma aprendizagem cada vez mais significativa e
completa, fazendo com que o indivíduo se insira como parte ativa na sociedade atual, abrangendo, além de outros aspectos,
seu contexto tecnológico e cultural.

5
AGRADECIMENTOS:
A CAPES pelo apoio financeiro à pesquisa.

REFERENCIAS:
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC.
CASTELLS, Manoel. (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.
CASTILHO, Maria Inês. (2002). Robótica na Educação: Com que objetivos.
http://www.pgie.ufrgs.br/alunos_espie/espie/mariac/public_html/robot_edu.html (Consultado na internet em 15 de outubro de
2008).
CHELLA, Marco Túlio. (2002). Ambiente de robótica educacional com LOGO. www.Nied.unicamp.br/~siros/
doc/artigo_sbc2002_wie_final.pdf (Consultado na internet em 20 de julho de 2008).
FREIRE, Paulo. (2005). Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MAISONNETTE, Roger. A Utilização dos Recursos Informatizados a partir de uma Relação Inventiva com a Máquina: A
Robótica Educativa. www.proinfo.gov.br. (Consultado na internet em 31 outubro de 2008).
MORIN, Edgar. (2006). Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez.
OLIVEIRA NETTO, Alvim Antônio de. (2005). Novas Tecnologias & Universidade: da didática tradicionalista à
inteligência artificial, desafios e armadilhas. Rio de Janeiro: Vozes.
PERRENOUD, Philippe (2000). Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas.
REGO, Teresa Cristina. (1995). Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes.
STEFFEN, Heloisa Helena (2002). Robótica Pedagógica na Educação: Um Recurso de Comunicação, Regulagem e
Cognição. http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/teses/helo_robotica.pdf (Consultado na internet em 31 de outubro de
2008).
ZILLI, Silvana do Rocio. (2004). A Robótica Educacional no Ensino Fundamental: Perspectivas e Práticas.
http://teses.eps.ufsc.br/defesa/pdf/10000.pdf. (Consultado na internet em 10 de julho de 2008).

Políticas públicas em alfabetização: a pesquisa colaborativa e sua contribuição na


formação de professores

Claudia Reyes
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
clreyes@ufscar.br

Danitza Dianderas da Silva


PPGE - UFSCar
danitzads@yahoo.com.br

Ester Helmer
PPGE- UFSCar
eahelmer03@hotmail.com

Ana Lucia Lopes


PPGE- UFSCar
massonlopes@ig.com.br

Mariana Pedrino
PPGE- UFSCar

Resumo: O presente artigo tem por objetivo socializar as pesquisas elaboradas pelo grupo de estudos “Aquisição da Escrita e da Leitura:
processo de ensino e aprendizagem” (2007-2008). Com a ampliação do Ensino Fundamental para Nove Anos em 2006, no município de São
Carlos (Lei nº 11.274/2006), São Paulo - Brasil e com as implicações dessa política pública, o grupo ofereceu o curso de extensão
“Letramento: reflexões sobre os saberes no primeiro ano do Ensino Fundamental” (UFSCar-PRO-Reitoria de Extensão), no segundo
semestre de 2007, para pesquisadores e professores das redes de ensino da cidade, visando contribuir com as discussões sobre os conteúdos
da língua portuguesa ensinados nessa etapa da escolarização e os instrumentos de avaliação. O artigo apresenta as etapas desses estudos e a
discussão dos dados obtidos, considerando os pressupostos da metodologia colaborativa.

6
Introdução
Entre 1996-2000, REYES et all (2000) desenvolveram uma pesquisa sobre a base de conhecimento1 do ensino da
língua. Tal pesquisa tinha como objetivo abordar o ensino de conteúdos curriculares, à medida que as pesquisadoras
consideravam que os mesmos revelariam a identidade do trabalho docente em todas as suas dimensões: concepções
específicas e gerais sobre o ensino, aprendizagem, papel do aluno, papel do professor e sentido do trabalho. Os dados obtidos
nessa pesquisa revelaram que o ensino da leitura e da escrita, em sua grande maioria, era concebido como aquisição crescente
dos elementos constitutivos da língua (letras, sílabas, palavras e frases).
Com base nesses resultados, foi criado o grupo de pesquisa “Aquisição da Escrita e da Leitura: processo de ensino e
aprendizagem”, coordenado pela Profª Drª Claudia Raimundo Reyes, cujo trabalho se centra em processos e práticas
pedagógicas relacionadas ao ensino e à aprendizagem da língua materna, em diferentes níveis, modalidades de ensino,
contextos educacionais e diferentes participantes desse processo.
O grupo concebe alfabetização de acordo com os pressupostos de Freire (1990), entendida como um projeto
político pelo qual tanto homens como mulheres conquistam o direito e responsabilidade de ler, mas, também, de
compreenderem e transformarem suas próprias experiências e a sociedade em que se situam.
De acordo com o autor, a alfabetização permite que o sujeito se torne:
[...] autocrítico a respeito da natureza historicamente construída de sua própria experiência. Se tornar experiente é parte
do que significa ‘ler’ o mundo e começar a compreender a natureza política dos limites bem como das possibilidades
que caracterizam a sociedade mais ampla. (FREIRE, 1990, p.8)

Assim, a alfabetização emancipatória é constituinte de duas dimensões: uma ligada à alfabetização de educandos e
educandas por meio de suas próprias histórias, experiências e cultura de seu meio e, também, pela apropriação dos códigos e
culturas das esferas dominantes, com o intuito de transcender o seu próprio meio; e a outra que junto a este processo se
associa a leitura do mundo que ultrapassa a leitura da palavra.
Ler a palavra e aprender como escrever a palavra de modo que alguém possa lê-la depois, são precedidos do
aprender como ‘escrever’ o mundo, isto é, ter a experiência de mudar o mundo e de estar em contato com o mundo. (Freire,
1990, p.31)
O autor considera que antes mesmo de ler a palavra o sujeito lê o mundo, diz a respeito dele. Ainda que adotemos
para o sujeito a leitura de mundo como fator importante como constituinte de si próprio, não afirmamos que a leitura da
palavra deva ser desconsiderada, ao contrário, cabe à escola se responsabilizar por desenvolver este conhecimento nos anos
iniciais do Ensino Fundamental (SILVA, 2008).
Dentre os estudos desenvolvidos no grupo, Cunha (2004) propôs investigar as expectativas de professores
alfabetizadores da rede municipal de ensino da cidade de São Carlos, quanto ao ensino de conteúdos sobre a língua materna e
o que de fato conseguiam realizar durante um ano letivo. Assim como na pesquisa de Reyes et all, (ibidem), constatou-se que
o texto era trabalhado como pretexto para identificação das unidades menores da escrita. Embora a leitura fosse prática
constante nas salas de aula, geralmente era realizada somente pelas professoras. As ocasiões de leitura ainda centravam-se em
poucos gêneros (em geral, narrativas), revelando que as oportunidades de leitura na escola ainda não contemplavam a
variedade do material literário disponível.
Tais pesquisas focavam a construção da base de conhecimento sobre a língua materna, especificamente em relação
ao conhecimento de conteúdo específico. Ao longo de sua trajetória, o grupo desenvolveu outros estudos sobre o
conhecimento da língua e em 2006 as mudanças políticas apontavam para a necessidade de reflexão e reelaboração dos
conteúdos da língua portuguesa para o Ensino Fundamental de nove anos.
O Governo Federal desde 1996 com a lei 9.394, sinalizava um ensino obrigatório de nove anos, em que crianças
com seis anos de idade estariam matriculadas no Ensino Fundamental. No ano de 2004, a Câmara dos Deputados aprovou o
Projeto de Lei nº 3.675 que dispunha sobre a ampliação do Ensino Fundamental de oito para nove anos, com a matrícula a
partir dos seis anos de idade, e, em 2006, com a Lei nº 11.274 de 6 de fevereiro deste mesmo ano tornou o ensino obrigatório
para todas as crianças com seis anos completos ou a completar até o início do ano letivo, sendo que cada município ou estado
têm o prazo até 2010, para implantação do sistema (BRASIL, 2006b).
As escolas brasileiras iniciaram no ano de promulgação da lei um processo de mudança no qual as crianças passam
a freqüentar a educação obrigatória aos seis anos de idade e não mais aos sete. Dessa maneira, o ensino organizou-se em
cinco anos iniciais (1º ao 5º ano) e quatro anos finais (6º ao 9º ano). Com essa nova proposta de ensino, a Secretaria
Municipal de Educação e Cultura (SMEC) da cidade de São Carlos-SP, optou pela ampliação cumprindo a lei em vigor, logo
em seu primeiro ano de vigência. Para isso, muitas ações foram desenvolvidas para que ocorressem as adequações nas

1
Por base de conhecimento entende-se o corpo de compreensões, conhecimentos, habilidades e disposições necessárias para atuação efetiva em situações
específicas de ensino e aprendizagem. Entre os fundamentos dessa base têm-se os diferentes tipos de conhecimento que apóiam a tomada de decisões dos
professores (Shulman, 1986, 1987): conhecimento de conteúdo específico (conceitos básicos de uma área de conhecimento, o que implica a compreensão de
formas de pensar e entender a construção de conhecimentos de uma disciplina específica, assim como sua estrutura); conhecimento pedagógico geral
(conhecimento que transcende o domínio de uma área específica e que inclui os conhecimentos de objetivos, metas e propósitos educacionais; de ensino e
aprendizagem; de manejo de classe e interação com os alunos; de estratégias instrucionais; de como os alunos aprendem; de outros conteúdos; de conhecimento
curricular) e conhecimento pedagógico do conteúdo [...] (são visualizações do professor sobre as possibilidades e as contingências relacionadas à aula, que
incluem o conhecimento dos estudantes e de como eles provavelmente reagiriam à aula, a predição do comportamento dos alunos, os possíveis problemas de
compreensão dos estudantes e de como os professores lidariam com os mesmos). (MIZUKAMI et all, 2002, p.67-69)

7
escolas para atender a nova faixa etária. Foram realizadas formações de professores, ampliação de salas, compra de materiais
pedagógicos e de mobiliário, parques infantis entre outras ações.
Sobre a proposta curricular, muitas ações começaram a ser tomadas, visto que, a referência apresentada pelo
governo pautava-se em livro denominado – Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a inclusão da criança de
seis anos de idade (BRASIL, 2006a), organizado pelo Ministério da Educação e Secretaria de Educação Básica, que traziam
aprofundamentos teóricos importantes, mas sem traçar ainda um currículo a ser seguido e sem apontar quais conteúdos
seriam trabalhados.
Sob tal pressuposto, consideramos que a ampliação para nove anos requer novas diretrizes curriculares e o
Conselho Nacional de Educação já iniciou um processo de discussão para a elaboração das novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental e para a Educação Infantil, mas no cotidiano escolar o tempo é diferente, as crianças
estão na instituição de Ensino Fundamental e os profissionais da educação não sabem, com segurança, como possibilitar um
ensino de qualidade.
O Governo Federal (BRASIL, 2006a) nos indica a necessidade de haver, de forma criteriosa, com base em estudos
e debates no âmbito de cada sistema de ensino, a reelaboração da proposta pedagógica das Secretarias de Educação e dos
projetos pedagógicos das escolas, assegurando que as crianças de seis anos de idade desenvolvam-se plenamente nos
aspectos físico, psicológico, intelectual, social e cognitivo.
As políticas públicas sinalizam que este novo ano escolar do Ensino Fundamental, não pode ser visto como uma
sala de primeira série e tão pouco como uma sala de Educação Infantil. Professores do primeiro ano sentem insegurança no
desenvolvimento das atividades, nos encaminhamentos do processo de aprendizagem e, principalmente, na ação de avaliar o
processo de aquisição da língua materna.
No bojo dessas mudanças políticas, o grupo de pesquisa “Aquisição da Escrita e da Leitura: processo de ensino e
aprendizagem” iniciou discussões sobre o assunto ao oferecer um curso de extensão a professores, coordenadores e
pesquisadores com o objetivo de discutir tais transformações.
O objetivo deste artigo é, portanto, socializar as pesquisas de cunho colaborativo elaboradas pelo grupo “Aquisição
da Escrita e da Leitura: processo de ensino e aprendizagem” nos anos de 2007-2008, como estudos exploratórios que
serviram de base para fundamentar o planejamento e a ação da pesquisa que integra o projeto “Comunidades de
Aprendizagem2: aposta na qualidade da aprendizagem, na igualdade de diferenças e na democratização da gestão da escola”,
financiado pela FAPESP (Processo 2007/52610-6) e pelo CNPq (Processo 401985/2007-5), no eixo: “aprendizagem da
leitura e da escrita”.
Apresentamos neste artigo a metodologia utilizada nesses estudos, bem como os procedimentos metodológicos e
discussão dos dados. Torna-se importante enfatizar que este artigo é uma parceria entre pesquisadoras e participantes da
pesquisa, especificamente em relação aos sujeitos que já faziam parte ou vieram a integrar o grupo “Aquisição da Escrita e da
Leitura: processo de ensino e aprendizagem”.

Metodologia
A metodologia da pesquisa desenvolvida foi de cunho qualitativo. De acordo com Paulilo (2007) neste tipo de
abordagem são considerados valores, crenças, hábitos, atitudes, representações, opiniões no aprofundamento dos dados e nos
processos de grupos e de indivíduos, bem como, possui como característica a imersão na raiz da subjetividade e do
simbolismo de um determinado contexto social. A autora, referendando Chizzotti (1991), entende que tanto pesquisador
como participantes, são atores sociais da investigação.
Imersa na abordagem qualitativa, a escolha pela metodologia colaborativa deu-se por permitir a construção do
conhecimento entre pesquisadores e participantes, comportando opiniões, reflexões, conhecimentos e outros elementos
referentes à temática em discussão. Para Magalhães (1994), no contexto educacional, a metodologia colaborativa desenvolve
a teoria e condução da prática de forma conjunta entre os profissionais envoltos, conduzindo à auto-reflexão, análise crítica e
transformação na aprendizagem destes. O papel do pesquisador nesta metodologia se junta ao dos participantes, por ambos
serem co-participantes e sujeitos “no ato de construção e de transformação do conhecimento” (p.72).
Ao longo do desenvolvimento de pesquisas colaborativas, Vieira (1996) propõe que o pesquisador encaminhe
discussões por meio de diálogos críticos a fim de que a realidade dos pesquisadores e participantes seja visível.
De acordo com Zeichner (1998), a pesquisa colaborativa surge como alternativa para superação da dicotomia
“conhecimento prático” e “conhecimento acadêmico” presentes no campo educacional em que, por um lado, “pesquisadores”
desmerecem os conhecimentos produzidos pelos professores devido a falta de sistematização e rigorosidade científica, por
outro, os educadores avaliam as pesquisas acadêmicas como distantes da prática, portanto, sem utilidade. Na concepção do
grupo, tal escolha metodológica possibilita a articulação e combinação entre conhecimento acadêmico e conhecimento
prático na vida escolar, trazendo grandes benefícios para a educação (HELMER, 2008).

2
Comunidades de Aprendizagem é um projeto elaborado pelo Centro Especial de Investigación em Teorías y Prácticas Superadoras de Desigualdades (CREA) /
Universidade de Barcelona, na década de 1990. Visa à aprendizagem escolar de máxima qualidade para todos e todas, participação da comunidade de entorno e
familiares na escola e convivência na diversidade como valor positivo. A partir de 2003, passou a ser difundido, reelaborado e desenvolvido em escolas públicas
da cidade de São Carlos, sob coordenação e acompanhamento Profª Drª Roseli Rodrigues de Mello - Departamento de Metodologia de Ensino - UFSCar.

8
Segundo Mizukami (2002), o marco da pesquisa colaborativa encontra-se na pesquisa-ação, entendida como uma
abordagem investigativa com propósito de não apenas produzir novos conhecimentos e teorias, mas de também solucionar
problemas imediatos da prática escolar. Os quatro elementos básicos que caracterizam a pesquisa-ação são: colaboração, foco
em problemas práticos, ênfase em desenvolvimento profissional e necessidade de tempo e apoio para comunicação aberta.
Desse modo, colaboração é a característica chave dentre os quatro elementos.
Segundo Helmer (2008), respaldada em Mizukami (2002), os trabalhos orientados pelo princípio de colaboração
podem imprimir uma idéia ingênua do conceito: a) nos pesquisadores por pensarem fazer um trabalho de emancipação dos
professores ao ensiná-los a como entender melhor o processo de aprendizagem de seus alunos; b) nos professores a idéia
ingênua de que os pesquisadores das universidades entrariam em suas salas de aula para melhorar ou apontar as falhas de sua
maneira de ensinar.
Nesses pressupostos, o objetivo fundamental da pesquisa colaborativa é garantir a compreensão e a participação de
todos os envolvidos e em todas as fases do processo de pesquisa: no desenvolvimento das questões, na escolha dos
procedimentos metodológicos bem como na análise dos resultados.
A participação e envolvimento em pesquisas ganham outro significado: os sujeitos tornam-se parceiros e co-autores
da pesquisa, ou seja, não se trata de uma participação passiva, mas de uma participação ativa, consciente e deliberada em
cada decisão, ação ou análise.
Acreditamos que a participação de todos deve ser garantida, contudo sabemos que nem sempre o envolvimento é
igualmente possível para todos. Os participantes podem não dispor do mesmo tempo, disponibilidade e interesse pelo projeto,
e exigir isso deles pode tornar um trabalho, a priori, de cunho transformador em um trabalho não emancipatório
(MIZUKAMI, 2002). Nesse caso, professores e pesquisadores são co-investigadores de um trabalho que é de todos,
compreendido por todos, mas cada um contribui com seus conhecimentos e suas competências.
Alguns teóricos desta metodologia concebem colaboração como diálogo partilhado, entre professores e
pesquisadores comprometidos com o seu desenvolvimento profissional. Sendo assim, o diálogo assume papel central na
pesquisa colaborativa, pois caracteriza partilha e mutualidade, no entanto, estagnar o trabalho apenas nele reduz seu potencial
investigativo. Entendemos que a pesquisa colaborativa vai além do diálogo entre os participantes, pois nela está implícito
aspectos de seleção, negociação do que é relatado, metodologia, critérios para análise e sistematização dos resultados
(MIZUKAMI, 2002).
Helmer (2008) afirma que a pesquisa colaborativa representa um salto qualitativo para o pesquisador na medida em
que ele consegue uma participação não invasiva na prática escolar, mas consentida pelos professores, aumentando, assim, as
chances de todo o grupo comprometer-se com a transformação da realidade educacional por meio do diálogo, orientado por
princípios de igualdade.
De posse desses pressupostos, encaminhamos o desenvolvimento da pesquisa apresentada e passamos, no próximo
tópico, a descrever os procedimentos metodológicos.

Procedimentos Metodológicos
O que passamos a descrever neste trabalho são os procedimentos da realização da pesquisa dividida em três etapas.
1) Realização de entrevistas; 2) Formação do Curso de Extensão; 3) Análise conjunta entre pesquisadores e participantes.

Etapa 1 – Realização das entrevistas:


Para iniciarmos o curso de extensão tínhamos como objetivo coletar informações sobre como professoras pensam
os conteúdos para o primeiro ano de escolarização básica para crianças de seis anos de idade, frente ao contexto de
implantação do Ensino Fundamental de Nove Anos. Para tanto, realizamos entrevistas semi-estruturadas com as professoras
como principal técnica para coleta de dados desta etapa, entendendo que na pesquisa qualitativa tal procedimento não é uma
série de perguntas, mas um guia, um lembrete ao entrevistador. Desse ponto de vista, realizar pesquisa com entrevistas
implica na realização de um processo social, uma interação em que as palavras são o meio principal de troca (GASKELL,
2002). Trata-se de um procedimento flexível e reflexivo que possibilita ao entrevistado oferecer informações que revelem
suas crenças, valores e demais concepções que orientam sua forma de ver e agir no mundo.
A realização de entrevistas prevê outros procedimentos que garantam a fidedignidade dos dados coletados. Cabe ao
pesquisador transcrever os dados, lapidando-os para formulação de categorias e delimitação do material a ser analisado.

1.1 – Critério de seleção dos participantes


Os critérios de seleção dos participantes eram os seguintes: a) professores que lecionavam ou já haviam lecionado
ou ainda, estavam em acompanhamento da implantação do novo ano escolar para crianças desta faixa etária; b) professores
que tivessem diferentes tempos de experiência na carreira docente – em fase inicial (até cinco anos de experiência); em meio
de carreira (entre seis e dez anos); e professor experiente (com mais de dez anos de carreira); c) por se tratar de estudo
exploratório para posteriormente ser aplicado no interior do projeto “Comunidades de Aprendizagem: aposta na qualidade da
aprendizagem, na igualdade de diferenças e na democratização da gestão da escola”, os professores deste projeto não
poderiam ter vínculo com este estudo.

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1.2 – Caracterização dos participantes
Dez foram as professoras entrevistadas, sendo que três estavam em início de carreira, três em meio e quatro
possuíam experiência docente acima de dez anos. Acreditávamos como pesquisadoras que a presença de participantes em
diferentes níveis de carreira possibilitaria uma maior representação de momentos diferenciados de formação acadêmica,
vivências pessoais e educacionais e que com isso haveria um maior diálogo entre as participantes.
Dentre as participantes, três faziam parte do grupo de estudo “Aquisição da Escrita e da Leitura: processos de
Ensino e Aprendizagem” em 2007; e uma, no ano de 2008, passou a integrar o mesmo grupo.

1.3 – Questão desencadeadora das entrevistas


Após seleção dos participantes3, as entrevistas foram realizadas. A questão que orientou as entrevistas foi: Quais
conteúdos da língua materna as professoras esperavam que seus (suas) alunos (as) soubessem ao término do primeiro ano do
Ensino Fundamental de Nove Anos?
O objetivo de saber sobre a questão acima, era de criar um grupo de conhecimento de conteúdos específicos, que de
acordo com Mizukami (2002) são “conceitos básicos de uma área de conhecimento, o que implica a compreensão de formas
de pensar e entender a construção de conhecimentos de uma disciplina específica, assim como sua estrutura” (p.67-69).
Assim, neste caso, pretendíamos tratar especificamente sobre o conhecimento de conteúdo específico da língua materna com
o intuito de que estes conteúdos presentes nas falas das professoras fossem desencadeadores das discussões a serem
desenvolvidas na etapa seguinte do curso de extensão.

Etapa 2 - Formação do Curso de Extensão


Com base nas mudanças políticas educacionais instituídas para o Ensino Fundamental, realizamos no segundo
semestre de 2007 o curso de extensão “Letramento: reflexões sobre os saberes no primeiro ano do Ensino Fundamental”
(UFSCar-PROEX). A finalidade deste curso era a de contribuir com as discussões sobre o primeiro ano do ensino
fundamental, agora com nove anos, uma vez que os documentos produzidos pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2006a)
não estabeleciam diretrizes e conteúdos a serem ensinados no ano escolar em questão e ressaltavam a necessidade de que as
escolas se organizassem, junto a equipes pedagógicas, para elaboração dos conteúdos a serem trabalhados com seus alunos.
Diante de tal objetivo, iniciamos discussões sobre o currículo da língua portuguesa e dos conteúdos a serem ensinados no
primeiro ano, confrontando os conteúdos presentes nos documentos oficiais4 e, ainda, elaboramos instrumentos de avaliação
para verificar os conhecimentos que os alunos já possuíam bem como aqueles que ainda precisavam ser adquiridos5.
Este curso contou com a participação de cinco das dez professoras-alfabetizadoras entrevistadas que atuavam em
escolas públicas e particulares do município de São Carlos/SP6, e seis pesquisadoras do grupo de pesquisa “Aquisição da
Escrita e da Leitura: processo de ensino e aprendizagem” em um trabalho de parceria, no qual todos os sujeitos envolvidos
tinham o compromisso de desempenhar seu papel social/profissional com eficiência, de modo a contribuir com a promoção
da educação com qualidade para todos.
Para esta etapa foram realizados quinze encontros no Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade
Federal de São Carlos, no segundo semestre de 2007, com duração semanal de 2 h 30 min., sendo que as demais horas eram
destinadas a outras tarefas, como a preparação de material pelas docentes para ser apresentado ao grupo e, ainda, com leituras
de textos retirados de livros e de artigos, totalizando 60 horas de curso.
As discussões realizadas neste curso previam a produção de conhecimento científico para o campo educacional.
Para tanto, trilhamos os pressupostos da pesquisa colaborativa. Desse modo, víamos a possibilidade de construirmos em
parceria, entre professoras e pesquisadoras, conhecimentos relativos ao desenvolvimento profissional docente, bem como
conhecimentos sobre o processo de aprendizagem mobilizados para aquisição da leitura e da escrita.
Os debates ocorridos neste curso eram concebidos como momentos de reflexão sobre o próprio trabalho, tanto de
professor, como de pesquisador. No caso do professor, houve a possibilidade de articular de forma crítico-reflexiva os
saberes construídos em sua prática profissional com os conhecimentos teóricos que orientam e justificam sua ação. No caso
do pesquisador, víamos a possibilidade de desempenhar outra forma de fazer pesquisa, uma vez que o diálogo no grupo era
regido por princípios de igualdade, no qual não existia sujeito que sabia mais e outro que sabia menos. Visualizamos,
portanto, o caminho para superação da idéia de que realizar pesquisas e estudos sobre o cotidiano escolar, que envolvam
professores, deva apenas falar sobre eles e adotamos o princípio de que este tipo de trabalho é possível fazer com eles.
Nesses pressupostos, compartilhamos do pensamento de Mattos (1995) de que:
[...] a parceria das universidades com a rede de ensino é uma exigência para que as pesquisas educacionais sejam mais
relevantes e eficazes na reversão do quadro de falência educacional. Mediante esta parceria, o professor como
pesquisador torna-se um ator social importante para a facilitação não só das pesquisas nas escolas, mas na

3
Torna-se importante enfatizar que as participantes foram exclusivamente professoras, e que por isso, passaremos a referir a partir deste momento às
participantes ou professoras.
4
SILVA, D. D. Construção dos conteúdos para o primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos a partir da base de conhecimento sobre a língua materna de
professoras em exercício e de propostas governamentais. São Carlos: UFSCar, 2008. Dissertação de Mestrado.
5
HELMER, E.A. A avaliação no processo de aprendizagem da língua materna: uma construção conjunta, entre professores e pesquisadores, de instrumentos
avaliativos e suas implicações na constituição dos saberes docentes. São Carlos: UFSCar, 2008. (Em andamento).
6
Uma delas passou a integrar o grupo “Aquisição da Escrita e da Leitura: processos de Ensino e Aprendizagem” no ano de 2008.

10
determinação do que é importante a ser pesquisado dentro da sala de aula e fora dela. Acreditamos, ainda, que em
etnografia crítica de sala de aula a colaboração entre professor e pesquisador é condição indispensável para o avanço
na pesquisa educacional. (MATTOS, 1995, p. 101)

Sob tal perspectiva, vimos que é possível promover um curso de extensão, permeado por princípios colaborativos,
compromissado com a formação docente que não busca apenas melhoria da ação, mas também a produção de conhecimento
sobre os processos de ensino e de aprendizagem.

Etapa 3 – Análise conjunta entre pesquisadores e participantes


Como previsto na metodologia colaborativa, os pesquisadores devem, logo que possível, retornar o diálogo com os
participantes da pesquisa, a fim de mostrar os resultados, analisarem, refletirem e debaterem sobre o processo acontecido. O
que foi realizado até o momento foi uma conversa com as professoras participantes que faziam parte em 2007 ou que passou
a integrar o grupo de pesquisa “Aquisição da Escrita e da Leitura: processos de Ensino e Aprendizagem” em 2008, com o
intuito de compreender como vêem o processo após o término das entrevistas e do curso de extensão7.
Por se tratar de uma análise em que pesquisadoras e participantes pertencem ao mesmo grupo de estudo, reflexões
vêem sendo realizadas ao longo dos encontros. Para esta etapa, solicitamos às participantes que realizassem um relato escrito
sobre o processo de transformação por que passaram durante a entrevista, curso de extensão e vivência profissional, ao longo
dos anos de 2007 e 2008.
Apresentamos a seguir o relato das participantes da entrevista quanto às suas impressões:
No momento da realização da pesquisa eu estava atuando como professora em uma turma de 2ª Série, era ainda início
do ano letivo e eu tinha muito alunos pré-silábicos e silábicos8, sendo assim considero que minhas expectativas tanto
em relação a entrada e a saída da série eram baixas, mesmo porque eu não tinha idéia de quanto conseguiríamos
aprender até o final daquele ano.

Atualmente estou com uma turma de 2º Ano do Ensino Fundamental de 9 anos e minhas expectativas em relação a eles
são diferentes, acredito que todos eles devam sair da série lendo, escrevendo textos, reconhecendo e escrevendo
segundo as características de alguns gêneros, que saibam se expressar oralmente e pela escrita com coerência e coesão,
façam uso dos sinais de pontuação, utilizem-se das regularidades ortográficas, eu não poderia esquecer do
reconhecimento de diferentes tipos de letras. (Participante 1)

No relato desta participante, percebemos que inicialmente sua expectativa sobre a aprendizagem das crianças na
série a que se refere era baixa. Levando-nos a constatar que, para ela, ao final do primeiro ano, o aluno não precisava estar no
nível alfabético da escrita. Ao longo de um ano de dedicação em pesquisas e estudos sobre o processo de aquisição da língua
materna por crianças do Ensino Fundamental, constatou-se avanços em suas expectativas sobre os conteúdos a serem
lecionados.
Outra participante também revela suas expectativas diante da temática:
No início do ano de 2007, considerava importante que os educandos deveriam ser letrados, fazer relações entre texto e
contexto, ter conhecimento de diferentes gêneros textuais, estarem silábicos com valor sonoro. Por outro lado,
considerava que os educandos precisariam ouvir muitas histórias, ler diferentes gêneros textuais, mas não precisariam
dominar todos os gêneros na escrita. Precisariam usar o caderno; reconhecer algumas letras do alfabeto; discriminar
letras de números; reconhecer seu nome; saber a finalidade do uso de alguns gêneros; expressar oralmente em
diferentes situações; reconhecer que a escrita representa a fala.

Após um ano do referido questionamento, analisando o mesmo para escrever este artigo, percebo o quanto as
minhas expectativas eram baixas. O contato com educandos dos 1ºs anos sinalizou que estes são capazes de desenvolver
competências que ultrapassam as expectativas apresentadas por mim, naquele momento. Considero hoje, primeiro semestre
de 2008, que os educandos devam chegar alfabetizados e letrados ao final do 1º ano. Compreendo que os educandos precisam
chegar ao final do 2º ano alfabético sim, mas já fazendo uso de aspectos gramaticais como concordância nominal e verbal,
contemplando as irregularidades e regularidades ortográficas, pontuação, a compreensão e entendimento de conhecimentos
explícitos e implícitos, além de outros conhecimentos fundamentais para tornar-se um bom produtor de texto e leitor. Para
isso, é necessária leitura, revisão e muita produção textual. (Participante 2)
Vemos na fala desta participante que, embora sua auto-reflexão aponte para uma baixa expectativa frente aos
alunos, ela já considerava uma bagagem satisfatória de conteúdos que, no momento seguinte, vieram a compor a base de
conhecimentos elaborada pelas professoras do curso de extensão. Mesmo assim, percebemos em sua reflexão alterações em
sua forma de conceber o currículo da língua portuguesa para o Ensino Fundamental – séries iniciais.
O relato a seguir refere-se a reflexão de uma participante da entrevista e do curso de extensão:

7
Cabe enfatizar que será realizado no mês de julho de 2008, um encontro com as cinco professoras participantes do Curso de Extensão, a fim de realizar o
mesmo procedimento de análise.
8
Conceitos definidos por Ferreiro (1986), no qual afirma que a criança passa por quatro sistemas ordenados de escrita: a) Pré-silábico: quando a criança utiliza
letras de forma aleatória; b) Silábico: quando as vogais e/ou consoantes adquirem valores sonoros convencionais, embora sejam utilizadas para representar uma
sílaba completa; c) Silábico-alfabético: as escritas aparecem com a característica de “omissões” de letras pela coexistência das hipóteses alfabética e silábica. É o
momento em que o valor sonoro torna-se muito importante; d) Alfabético: a criança já adquiriu um conhecimento geral das palavras em sua estrutura e pode
ainda apresentar alguns erros ortográficos.

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Neste trabalho colaborativo discutimos os conteúdos que estávamos desenvolvendo na escola e enfatizamos a
importância da brincadeira e do brincar, do desenho, da oralidade, da leitura e da escrita. Destaco como pontos
importantes deste curso, o saber produzido coletivamente entre professoras e pesquisadoras sobre: currículo deste
ano/série escolar, conteúdos, formas de ensino, possibilidades de atividades e encaminhamentos e construção de
instrumento avaliativo. Todo momento que estávamos juntas nossos encontros eram marcados por indagações
importantes e reflexivas. Estas iam conosco todo final de noite, nos sinalizar as reflexões sobre a nossa prática em sala
de aula, nosso planejamento e nas discussões dos Horários de Trabalho Pedagógico, assim como nas conversas do café.
(Participante 3)

A participante 3 destaca os pontos culminantes de discussão no Curso de Extensão, permeados por indagações e
reflexões sobre a prática docente. Ao longo de seu registro, essa professora relembrou debates que envolviam os conteúdos
tratados nos encontros, como a importância do desenho como precursor da escrita:
O desenho merece uma importância que infelizmente não é dada pela escola, na sua maioria. Posso confessar que eu
passei a realizar mais atividades com desenhos após as explicações dadas por este curso de extensão/reflexão do que
anteriormente. Com essa prática modificada, pude observar mais e melhor a evolução das crianças também no
desenho, o que foi de extrema importância para acompanhar também a evolução das crianças na aquisição da leitura e
escrita. (Participante 3)

Outros conteúdos relembrados pela participante diz respeito a importância de apresentar diferentes suportes e
gêneros textuais aos alunos e que estes devem estar presentes na produção textual oral e escrita das crianças.
Lembro-me que neste encontro conversamos muito sobre a importância de alfabetizarmos/letrarmos a partir de
textos e, que as crianças que ainda não estavam escrevendo convencionalmente, também deveriam participar de todo
processo de construção textual, já que oralmente, coletiva e individualmente isso seria possível. (Participante 3)
A participante 3 recorda os encontros da construção de instrumentos para a verificação da aprendizagem das
crianças de primeiro ano, ocorrida no curso de extensão:
O estudo estendeu-se para a construção de um instrumento avaliativo. Este foi construído coletivamente com a
colaboração das professoras e pesquisadoras, sempre nos respaldando teoricamente. Nossa prática ajudou muito para a
elaboração deste instrumento, mas mesmo assim, foi um processo difícil, pois os resultados poderiam não ser o que
estávamos esperando. Enquanto professoras, esperamos muito dos alunos, mas quando realmente refletimos sobre
nossa prática, observamos que também esperamos muito de nós. Contudo, não foi fácil construirmos o instrumento,
esta é a minha consideração, pois nós estaríamos nos julgando. Todo processo perpassa pela angústia e, o melhor, é
que não nos mata. O importante foi ver onde erramos: na construção da avaliação, pois quando voltamos a falar sobre o
assunto, destacamos muitos pontos que deveriam ser revistos, assim como a importância de não nos basearmos em
somente uma avaliação. Também, observamos que poderíamos ter desenvolvido muito mais a produção de texto com
as crianças, além de enfatizar as características de alguns gêneros. Em suma, avaliar é preciso, a insegurança é fato,
mas a mudança e reflexão devem ser necessárias. (Participante 3)

Ao longo deste processo percebemos, como nos lembrou a participante 3 em seu registro, que todos estes
apontamentos fizeram com que todas, pesquisadoras e professoras, refletíssemos, mais uma vez, sobre a importância do
nosso papel, pois por trás do mesmo existe uma concepção de mundo, homem, aluno, escola, família que nos orienta na
prática.

Considerações Finais
O objetivo que norteou a elaboração deste artigo foi socializar o trabalho colaborativo realizado com professores e
pesquisadores envolvendo integrantes do grupo de estudos “Aquisição da Escrita e da Leitura: processos de ensino e a
aprendizagem”, bem como, professoras da rede pública e particular da cidade de São Carlos, por meio do curso de extensão
“Letramento: reflexões sobre os saberes no primeiro ano do Ensino Fundamental” (UFSCar-PROEX).
A escolha pela pesquisa colaborativa contribuiu para que todas as envolvidas identificassem-se como co-
participantes e sujeitos compromissados com a construção e a transformação do conhecimento teórico e prático envolvidos
no contexto escolar.
Os dados apresentados no registro das professoras revelaram o processo de transformação por qual passam os
sujeitos envolvidos em um trabalho colaborativo que prevê transformações em sua forma de ver, sentir e agir sobre o mundo.
Como escreveu Freire (1996, p. 33):
Mulheres e homens, seres históricos-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de
decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição,
entre nós, para ser.

Nesta perspectiva nos identificamos com o que enfatiza Freire, pois comparando, valorando, intervindo,
escolhendo, decidindo, o momento é outro, portanto, as expectativas também. Ainda bem, que mudamos e podemos rever os
conceitos do ontem e replanejar o amanhã.

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Compreender o processo de ensino e aprendizagem como algo dinâmico, que não tem um fim em si mesmo,
respeitar os diferentes contextos que cada educando está inserido e apostar nos avanços são condições para que aconteça
aprendizagem.

Referências
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idade. Brasília, FNDE, Estação Gráfica, 2006a.
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https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-006/2006/Lei/L11274.htm Consultado em 15/10/2007.
________. Ministério da Educação. Parecer CNE/CEB 24/2004. Brasília, 2005.
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf.pceb006_05.pdf Consultado em 15/10/2007.
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São Carlos: UFSCar, 2004. 173 p. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Profª Drª Claudia Raimundo Reyes.
FERREIRO, E. Reflexões sobre a alfabetização. 2a ed. – São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986. (Coleção Polêmicas
do Nosso Tempo: 17).
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessárias à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, P.; MACEDO, D. Alfabetização: leitura da palavra leitura de mundo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
GASKELL, G. Entrevistas Individuais e Grupais. In: BAUER, M. W. & GASKELL, G. (editores). Pesquisa Qualitativa com
texto, imagem e som: um manual prático. (tradução de Pedrinho A. Guareschi). Petrópolis: Vozes, 2002.
HELMER, E. A. A avaliação no processo de aprendizagem da língua materna: uma construção conjunta, entre professores e
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2008. (Em andamento).
MAGALHÃES, M. C. C. Etnografia colaborativa e desenvolvimento de professor. Trabalhos em Lingüística Aplicada.
Campinas/IEL, (23): 71-78, Jan.Jun. 1994.
MATTOS. C. L. G. Etnografia Crítica de Sala de Aula: o Professor Pesquisador e o Pesquisador Professor em Colaboração.
Rev. Bras. Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 76, n. 182/183, p. 98-116, jan./ago. 1995.
MELLO, R. R. (org); BENTO, P. E. G.; CONTI, C. L. A.; LOGAREZZI, A. J. M.; LUIZ, M. C.; REYES, C. R.
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gestão da escola. Projeto de Pesquisa apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2007.
MIZUKAMI, M. G. N.; REALI, A. M. M. R.; REYES, C. R.; MARTUCCI, E. M.; LIMA, E. F.; MELLO, R. R.;
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13º COLE. 2000.
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Dissertação de Mestrado.
VIEIRA, H. M. M. Pesquisa colaborativa: a interação necessária entre o professor e pesquisador. Dissertação de Mestrado.
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ZEICHNER, K. M. Para além da divisão entre professor-pesquisador e pesquisador acadêmico. In: GERALDI, FIORENTINI
& PEREIRA. Cartografias do trabalho docente. Campinas: Mercado das Letras/ALB, 1998, p. 207-236.

A AIA de Nelson Rockfeller e o Ensino Agronômico em Minas Gerais 

Maria das Graças M. Ribeiro


Universidade Federal de Viçosa
mgrib@uol.com.br

Resumo: A presença norte-americana na sociedade brasileira constitui um tema longe de estar esgotado na literatura acadêmica, havendo, no
que diz respeito à educação superior, uma grande lacuna. A maior parte dos poucos estudos existentes prioriza o exame da atuação dos norte-
americanos, a partir dos anos 1960, pondo o foco em acordos envolvendo a United States Agency for International Development (USAID). O
presente trabalho trata de analisar a atuação da American International Association for Social and Economic Development (AIA) no ensino

 Trabalho realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

13
superior em Minas Gerais, nos anos 1940. A AIA, uma entidade pretensamente filantrópica, organizada por Nelson Rockfeller, teve um
significativo envolvimento no ensino agronômico naquele estado. Por meio de programas desenvolvidos no bojo de convênios de assistência
técnica firmados com o governo mineiro, a AIA orientou a implementação de um programa de crédito agrícola supervisionado, para o qual
foi fundamental a participação da Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG), atual Universidade Federal de Viçosa. O
envolvimento desta instituição com a AIA marcou profundamente a sua identidade, levando-a a tornar-se a primeira universidade a oferecer
o curso de economia doméstica no Brasil, assim como a tornar-se uma referência nacional em extensão rural.

1.Introdução
As relações entre o Brasil e os Estados Unidos constituem um tema longe de estar esgotado na literatura acadêmica.
Entre os poucos estudos existentes sobre os laços entre as duas nações, permanece ainda uma grande lacuna no que diz
respeito à presença norte-americana na educação superior brasileira. O presente trabalho tem como objetivo analisar as
relações entre o ensino agronômico no estado de Minas Gerais e a American International Association for Economic and
Social Development (AIA), uma entidade presidida por Nelson Rockfeller, um dos ícones da sociedade norte-americana no
século XX.
Para a realização da pesquisa, além do apoio na escassa literatura, procedeu-se ao exame de fontes primárias junto
ao acervo do Arquivo Central e Histórico da Universidade Federal de Viçosa, do Arquivo Público Mineiro, além do acervo
da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
Vale notar que após a Segunda Guerra Mundial, a AIA firmou um acordo com o governo mineiro, mediante o qual
orientou a implementação de um programa de crédito agrícola supervisionado, envolvendo no mesmo a Universidade Rural
do Estado de Minas Gerais (UREMG), atual Universidade Federal de Viçosa.
Esta instituição que nasceu como Escola Superior de Agricultura e Veterinária do Estado de Minas Gerais (ESAV),
teve a inspirar o seu projeto pedagógico os land-grant colleges, escolas superiores agrícolas criadas, em meados do século
XIX, para atender à massa de jovens do meio rural no Oeste e no Meio Oeste dos Estados Unidos 1.
Os land-grant colleges tinham como características básicas o ensino de caráter prático, a pesquisa aplicada e a
prática da extensão rural.
Na verdade, o forte sentido utilitário de ensino perpassava de tal modo a prática dos land-grant colleges norte-
americanos que neles logo se constituiu a tríade ensino-pesquisa-extensão.
Além de adotar o modelo dos land-grant colleges, ESAV manteve, desde as suas origens, estreito contato com
universidades dos Estados Unidos, tendo contado, ao longo de sua história, com vários professores e dois diretores norte-
americanos. Transformada em universidade rural à mesma época em que foi celebrado o acordo do governo mineiro coma a
AIA, a participação desta instituição na preparação dos profissionais para atuar no programa previsto pelo acordo foi um dos
elementos fundamentais para o seu êxito.

2.Primórdios das relações Brasil-Estados Unidos


Os estudos sobre as relações entre o Brasil e os Estados Unidos têm privilegiado o período do pós-guerra. A
aproximação econômica entre os dois países, no entanto, data do final do século XIX.
No início do século seguinte, os norte-americanos já começavam a ameaçar a liderança dos ingleses como
principais compradores de nossos produtos primários. Em 1907, a forte presença dos Estados Unidos em nossa economia se
manifestava pelo predomínio das empresas norte-americanas entre as vinte e três sociedades anônimas estrangeiras
autorizadas a funcionar no Brasil. Neste ano, o capital das sete empresas norte-americanas ultrapassava então o montante do
capital das demais em mais de 100% (Pinto, 1975, p.145).
Face nossas relações econômicas com os norte-americanos, houve por parte do governo brasileiro, no início do
século XX, uma “aceitação tácita da Doutrina Monroe”. Com a morte do Visconde do Rio Branco, em 1912, a aliança Brasil
e Estados Unidos foi estreitada até a ascensão de Vargas, em 1930 (Moniz Bandeira, 1989, p.26).
Com a Revolução de 1930, o governo brasileiro foi delineando uma política externa marcada por maior autonomia.
Em meados da década, Vargas procurou manter uma posição de neutralidade em relação aos conflitos mundiais que se
anunciavam, adotando uma estratégia de barganha tanto com os Estados Unidos como com a Alemanha, que também
ocupava lugar de destaque entre os parceiros comerciais do Brasil 2.
No início da década de 1940, os Estados Unidos, por receio de perder o Brasil como aliado, acabam liberando
créditos para a construção de uma usina siderúrgica. Tal fato resultou no alinhamento brasileiro com aquele país, a partir
daquele ano, mediante a assinatura de um acordo, o qual criava a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, voltada para a
defesa dos dois países.
A partir de então, os norte-americanos passaram a importar grande parte de nossos minerais, assim como outros
produtos importantes para a sua indústria bélica. No caso de nossa borracha, a Rubber Reserve Corporation se comprometeu,

1
Sobre a adoção do modelo dos land-grant colleges pela ESAV, ver Ribeiro (2006).
2
Em 1934, nosso país assinou um tratado de comércio com os norte-americanos e, no mesmo ano, um acordo de cooperação com os alemães, que então se
tornavam nossos maiores fornecedores de manufaturados até o ano de 1939, quando a guerra foi deflagrada.

14
conforme observa Moura (1991, p. 17), com a compra da “produção total de borracha crua brasileira que não fosse de uso
interno, pelo período de cinco anos”.
Deste modo, com o início da Segunda Guerra Mundial os produtos norte-americanos ganharam a liderança em
nosso mercado, constituindo 60,3% de nossas importações em 1941, enquanto as importações de nossos produtos pelos
Estados Unidos saltavam de 32,2%, em 1913, para 53%, no ano de 1944 (Moniz Bandeira, 1989; 1998).
Desde a assinatura do acordo antes mencionado, a preocupação em preservá-lo e em manter o Brasil distante do
Eixo levaram os Estados Unidos a apoiar explicitamente o governo Vargas.
A partir de 1944, no entanto, aquele apoio, que já vinha sendo solapado com os constantes atritos entre membros do
governo brasileiro e representantes dos Estados Unidos em nosso país, foi sendo retirado. Contribuiriam decisivamente para
isto a eminente derrota dos alemães na guerra e a morte de Franklin Roosevelt, em 1945, e a posse de Harry Truman na
Presidência dos Estados Unidos.
“A morte de Roosevelt”, como bem observa Moniz Bandeira, “desnudou o caráter agressivamente reacionário do
imperialismo norte-americano”. Truman, personificando o “espírito das grandes corporações americanas, enriquecidas pela
guerra”, nem de longe apresentava o mesmo perfil conciliador. Deste modo, a sentença do governo norte-americano contra
Vargas foi posta quando este assinou a Lei Antitruste, criando a Comissão de Defesa Econômica e lhe conferindo plenos
poderes para expropriar “qualquer organização, cujos negócios lesassem o interesse nacional” (1998, p.247).
Não mais é segredo a ativa participação do governo norte-americano na conspiração que levou Vargas à renúncia
no final de 1945. A partir de então, seria difícil para os Estados Unidos recuperar, junto ao povo brasileiro, a simpatia que
desfrutara por ocasião da Segunda Guerra Mundial.

3.A presença norte-americana na educação superior brasileira


A educação superior nasceu no Brasil sob a égide dos jesuítas, os quais organizaram, em oito dos colégios que
fundaram em terras brasileiras, cursos de artes e teologia. Com a expulsão dos jesuítas (1759), estes cursos foram
desativados ou modificados. Logo após isto, foi criada uma faculdade, por iniciativa de frades franciscanos, no Rio de
Janeiro, a qual copiava a nova estrutura da Universidade de Coimbra (Cunha, 1980).
A partir de 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, a necessidade de formação da burocracia
nacional levou à criação da Academia da Marinha (1808) e ao aparecimento de Cursos e Cadeiras que se transformaram em
escolas ou faculdades 3. No final do século XIX, houve o primeiro surto de expansão da educação superior no país com a
criação da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, da Escola Superior de Agronomia de Cruz das Almas, na Bahia, da Escola
de Minas de Ouro Preto e da Escola Superior de Agronomia, em Pelotas.
A instauração da República, no entanto, não favoreceu o surgimento da universidade. Os republicanos brasileiros,
como observa Moniz Bandeira (1998, p.179), “imitaram Jefferson e Hamilton, com o sotaque de Auguste Comte”.
Não obstante o aparecimento de algumas universidades nas primeiras décadas do século XX, a educação superior
brasileira esteve organizada, até meados deste século, primordialmente sob a inspiração do modelo napoleônico de ensino.
Vale notar, no entanto, que já no final do século XIX, algumas instituições de educação superior nasciam no Brasil
tomando como referência as experiências desenvolvidas nos Estados Unidos.
Na verdade, como observa Azevedo, as idéias pedagógicas norte-americanas foram se difundindo no Brasil a partir
da segunda metade do século XIX, com a criação de escolas aqui fundadas por educadores vindos dos Estados Unidos, os
quais tomavam por base o modelo do seu país. A primeira destas instituições foi a Escola Americana, fundada em São Paulo
por missionários presbiterianos, em 1871, a qual foi transformada em Mackenzie College, em 1886, dando origem, em 1896,
à Escola de Engenharia Mackenzie (Azevedo, 1964, p.620).
Outra instituição que se destacou pela forte presença norte-americana, entre as primeiras instituições de educação
superior no Brasil, foi a Escola Superior de Agricultura de Lavras, hoje Universidade Federal de Lavras, fundada, em 1908,
em Minas Gerais, por missionários presbiterianos.
A presença norte-americana na educação superior brasileira não se deu somente pela ação missionária como
aquelas anteriormente mencionadas. Nas primeiras décadas do século XX, houve, por parte de autoridades brasileiras, a
contratação de cientistas norte-americanos que, na ausência de pessoal qualificado, contribuiriam para consolidar várias
instituições em nosso país.
Além disso, a presença norte-americana na educação superior brasileira se fez por outros meios como a assinatura
de acordos de cooperação com entidades norte-americanas, como aquele que, assinado na década de 1940, entre o governo
brasileiro e o Massachussets Institute of Technogy, viabilizou a criação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA).
Menos conhecida, mas não menos relevante foi a ação da Fundação Rockfeller junto à Universidade de São Paulo
(USP). Como já demonstrou Marinho (2001), a Fundação teve forte atuação junto à área de medicina da USP, com o apoio à
implantação e manutenção de grupos de pesquisa, que foram determinantes para consolidar a reputação da instituição nesta
área.

3
cadeira de Anatomia no RJ e a de Cirurgia no RJ e na Bahia (1808) deram origem à Academia de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro (1813) e à Academia
de Medicina da Bahia (ANO). Outros cursos e cadeiras deram origem a escolas de farmácia como a de Ouro Preto (1839).

15
Outra instituição na qual a presença norte-americana foi determinante foi a Escola Superior de Agricultura e
Veterinária do Estado de Minas (ESAV), a qual, além de contar com vários professores vindos dos Estados Unidos, esteve
envolvida em programas de cooperação com entidades norte-americanas, que marcariam irremediavelmente a sua história. A
principal destas entidades foi a American International Association for Economic and Social Development (AIA).

4.A AIA de Nelson Rockfeller no Brasil


A história da AIA tem uma de suas matrizes nas ações filantrópicas desenvolvidas pela família Rockfeller,
proprietária da Standard Oil e ícone da sociedade norte-americana no século XX.
Como afirma Marinho, “A origem das ações filantrópicas da família é mais precisamente identificada com os
tempos de juventude do patriarca”, John Dawson Rockfeller, que então contribuía regularmente para a caridade em pequena
escala, voltada para orfanatos, creches, hospitais, escolas e outras ações relacionadas com a Igreja batista. A filantropia em
larga escala, viria mais tarde, a partir de 1913, com a criação da Fundação Rockfeller, sociedade civil sem fins lucrativos que
tinha o trabalho em prol da humanidade como seu objetivo proclamado. Atuando em âmbito internacional, a Fundação
assumiu, a partir dos anos 1920, a filantropia científica (Marinho, 2001, p.16).
A história da AIA, no entanto, remete-se mais diretamente a agosto de 1940, quando, no contexto da Segunda
Guerra Mundial, foi criada uma agência do governo dos Estados Unidos, o Office of the Coordinator of Inter-American
Affairs (CIAA), tendo Nelson Rockfeller como seu diretor.
A CIAA era uma agência de guerra – war agency – e sua criação se devia, em parte, à sugestão de Nelson
Rockfeller para que Roosevelt lançasse, para a América Latina, uma contra-ofensiva de propaganda de modo a neutralizar na
região a influência da Alemanha.
No comando do CIAA, Nelson Rockfeller construiu uma divisão de informações no CIAA, tratando de expandir
“as instalações de transmissões em ondas curtas para a América Latina” (Colby & Dennett, 1998, p.141).
Do mesmo modo, “Distribuía transcrições e gravações cuidadosamente selecionadas para emissoras de rádio da
América Latina retransmitirem” e, ainda, “Convenceu Hollyhood a negar material para cinemas que exibissem filmes ou
cinejornais italianos e alemães”. Além disso, “O CIAA preencheu o vazio de notícias com propaganda própria, produzindo
noticiários, desenhos animados políticos e filmes com o lado róseo da cultura americana e de governos latino-americanos”
(Colby & Dennett, 1998, pp.141-142).
Com o final da Segunda Guerra, o governo norte-americano extinguiu o Office, designando, no entanto, Nelson
Rockfeller para o Departamento de Estado, onde este deu continuidade a suas relações com os países latino-americanos 4.
Na verdade, conforme observam Colby & Dennett (1998), Nelson Rockfeller teve participação decisiva na política
norte-americana para a América Latina, sob o governo Roosevelt. No governo de Harry Truman, Rockfeller foi peça chave
na execução do chamado Ponto IV, política de cooperação do governo norte-americano com os latino-americanos,
envolvendo a assistência técnica. Já com Eisenhower no poder, Rockfeller levou ao extremo o seu compromisso, como
elemento pessoal de ligação do presidente com a Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, exercendo o
papel de assistente especial para a estratégia da Guerra Fria e de guerra psicológica na América Latina (Colby &
Dennett,1998).
Paralelamente à sua atuação no Departamento de Estado, Nelson Rockfeller tratou de fundar, com o apoio dos
irmãos, em julho de 1946, a American International Association for Economic and Social Development (AIA).
Dalrymple, em seu livro editado pela própria AIA, afirma que esta era uma entidade filantrópica, cujo
financiamento tinha como fontes as contribuições de seus próprios membros (antigos colaboradores de Nelson Rockfeller no
Office), do governo federal, dos governos estaduais, de organizações internacionais, grupos privados e outras doações
individuais. Segundo Dalrymple, as atividades da AIA se constituíam principalmente de programas de assistência técnica,
prioritariamente nas áreas de saúde, agricultura e educação. Punha-se a ênfase no trabalho com a população rural, afirmando-
se pretender o ensino de novas práticas aos agricultores e melhores métodos de saúde às mulheres do meio rural (Dalrymple,
1968).
Na verdade, o próprio Dalrymple esclarece que a idéia original de Rockfeller era a de uma entidade filantrópica
auto sustentada por suas atividades de negócios; no entanto, isto não era permitido pela legislação norte-americana. Deste
modo,em janeiro de 1947, Rockfeller criou a International Basic Economy Corporation (IBEC) como base para as operações
de negócios que subsidiariam as finanças da AIA. (Dalrymple, 1968).
Para Colby & Dennet (1998), no entanto, a IBEC, cujo nome foi inspirado pela Divisão de Economia Básica do
CIAA, era mais um negócio lucrativo no amplo leque de ganhos da família Rockfeller.
As atividades da AIA foram concentradas em dois países, Venezuela e Brasil. O primeiro por abrigar propriedades
petrolíferas da família Rockfeller e o segundo por sua enorme riqueza potencial e por sua influência sobre toda a América do
Sul.
Na verdade, ainda neste último, “Nelson esperava fundar uma indústria de fertilizantes como parte do projeto maior
de trazer para o Brasil o modelo agrícola do Meio-Oeste americano” (Colby & Dennett, 1998, p.250).

4
Vale notar que a designação de Rockfeller para o Departamento de Estado coincidiu com a indicação de Adoph Berle, seu fial aliado, para a embaixada norte-
americana no Brasil. Ver Colby & Dennett (1998).

16
É interessante notar que em novembro de 1946, Nelson visitara o Rio de Janeiro, oferecendo os serviços da AIA ao
governo brasileiro. Isto coincidiu com a explosão de um surto de cólera em alguns estados do país. Veterinários e suprimento
de vacinas foram, então, oferecidos pela AIA, a qual, logo depois, autorizou a criação de um programa de demonstração nos
lares para ajudar a melhorar a nutrição, a higiene e as condições sanitárias da população rural brasileira (Dalrymple, 1968).
Logo a AIA abriu um escritório no Brasil, escolhendo para sediá-lo a cidade de São Paulo. Para a direção brasileira
da entidade foi indicado o nome de Robert W. Hudgens, o qual, juntamente com Walter Crawford, John B. Griffing e Marcos
Pereira compôs o seu quadro administrativo.
As primeiras atividades da AIA no país, “apesar de conduzidas oficialmente do escritório em São Paulo, têm sua
gênese nas fazendas [...], em duas pequenas comunidades – Santa Rita de Passa Quatro e São José do Rio Pardo”. Nestas
localidades, a AIA envolveu os agricultores no trabalho de combate a infecções no gado, além de envolvê-los na construção
de silos e na organização de centros comunitários como base para a organização de clubes agrícolas (Dalrymple, 1968).
Não obstante as atividades realizadas no interior paulista, foi em Minas Gerais que teve lugar o primeiro programa
da AIA em larga escala no Brasil. Comentando a escolha por Minas, Colby & Dennett (1998, p.249) observam:
Era uma escolha sábia. Um tanto maior do que a França, Minas Gerais era um reduto agrícola e minerador da facção
exportadora conservadora do Partido Social Democrata, que rompera com Vargas em 1945 para apoiar o golpe do
general Eurico Gaspar Dutra

Segundo as afirmações de Dalrymple (1968), em seu livro patrocinado pela AIA, tudo começou com uma idéia de
Robert W. Hudgens, diretor da AIA no Brasil, de trazer para o nosso país um programa de crédito agrícola supervisionado.
A idéia de Hudgens baseava-se em sua sólida experiência em programa de crédito agrícola supervisionado,
acumulada no período em que atuou como especialista do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, por ocasião do
New Deal do Presidente Roosevelt.
Apresentada ao governador Milton Campos, por Nelson Rockfeller, em setembro de 1948, a idéia de Hudgens foi
se concretizando em Minas Gerais, a partir do início de dezembro daquele ano, quando o governador mineiro e Robert W.
Hudgens, representando a AIA, firmavam, no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, um acordo
[…] for the purpose of establishing a system of financial and technical assistance within the terms of Act nº 29 of
December 10th, 1947, which makes possible the development of crop and livestock production and the improvement
of the economic and social conditions of rural life, BY WHICH ACT IF ORGANIZED, on this date, the Associação de
Crédito e Assistência Rural (ACAR) 5.

Segundo os termos do acordo, o financiamento para os três primeiros anos de atividade da ACAR se daria por cotas
eqüitativas da AIA e do governo mineiro, somando um total de US $ 450.000,00 (Dalrymple, 1968).
O objetivo fundamental da ACAR, definido no acordo, era o aumento da safra e da criação de animais de modo a
melhorar as condições de vida econômicas e sociais da população rural. Isto deveria ser garantido pela assistência técnica e
financeira com base em um sistema de crédito para pequenos agricultores e um plano de supervisão do uso do mesmo. Para
tanto, estavam previstos empréstimos com fins de cobrir necessidades agrícolas e domésticas da população rural, tanto
aquelas relacionadas ao aumento da produção da safra e da criação de animais como para a aquisição de suprimentos
essenciais e estocagem, assim como para desenvolver a terra, para construções e instalações (Dalrymple, 1968).
Para dirigir a ACAR foi constituído um quadro administrativo com dois representantes do governo mineiro e dois
da AIA, tendo um quinto nome para presidi-la, o qual deveria ser um membro da AIA com aprovação do governo de Minas
Gerais. Do lado norte-americano, os nomes indicados foram os de John B. Griffing e William H. Alton; do lado brasileiro, os
nomes de José de Almeida Barbosa e Paulo Salvo. O nome aprovado para a presidência da ACAR foi o de Walter L.
Crawford 6.
Na verdade, a criação da ACAR fora previamente acertada de modo que Walter Crawford chegou a Minas Gerais
em outubro de 1948 para coordenar o programa a ser desenvolvido.

5.A AIA e o ensino agronômico em Minas


O início da execução do acordo entre a AIA e o governo mineiro teve como pano de fundo a implementação de um
plano de modernização da agricultura e da pecuária de Minas Gerais. O trabalho da ACAR, previsto no acordo com a AIA,
assim como o plano de modernização da agricultura e da pecuária em Minas Gerais, exigia um pessoal qualificado que, no
final da década de 1940, o governo mineiro ainda não dispunha. Havia então naquele estado vários cursos de medicina
veterinária e agronomia; estes não formavam, todavia, profissionais com o perfil exigido para o trabalho da ACAR.
O acordo previa como linhas prioritárias para a ação da ACAR a melhoria das condições físicas, principalmente
relacionadas à saúde, saneamento; educação da população rural com ênfase em instrução agrícola, indústrias domésticas,
nutrição, alfabetização e desenvolvimento de espírito comunitário; promoção de serviços sociais em campos tais como

5
Representative International Agreements Entered into by AIA (DALRYMPLE, 1968.
6
Idem, p.199.

17
assistência médica e pré-natal; demonstrações de construção de moradias de baixo custo adaptadas ao ambiente (Dalrymple,
p.199).
Para executar aquelas atividades, a ACAR deveria contar, conforme informações contidas em seu primeiro
relatório, com um “programa geral de extensão agrícola e educação”. Deveria contar, ainda, com um “Serviço de Economia
Doméstica” para a realização de visitas domiciliares, a organização de “clubes de moças e senhoras e desenvolvimento de
Centros Educativos Rurais”, nos quais seriam “mantidas classes regulares para lições sobre nutrição, puericultura,
melhoramentos domésticos, costura, horticultura, etc ” 7.
Crawford logo tratou de constituir um staff com três norte-americanos e três brasileiros os treinando para o trabalho
com o crédito supervisionado (Dalrymple, 1968). O trabalho da ACAR exigia mais. Havia a necessidade de um curso que
preparasse profissionais para programas de demonstração nos lares, como o acordo com a AIA exigia.
Na verdade, não era apenas de economistas domésticas que a ACAR precisava; havia também a necessidade de
agrônomos com formação em extensão rural. Afinal, como observa Dalrymple (1968), o trabalho da ACAR seria constituído
em sua maior parte pela atividade de extensão rural.
Em 1952, Hudgens lançou como lema do trabalho de extensão da AIA no Brasil o slogan “o homem, a moça e o
jeep”. Como afirma Dalrymple (1968, p.43), o homem seria um extensionista agrícola, a moça uma economista doméstica e o
jeep “era o único veículo que poderia cruzar as precárias estradas do país”.
Dalrymple (1968) relata que foi grande a dificuldade para recrutar pessoal para o trabalho da ACAR até que se
formasse, em meados da década de 1950, a primeira turma do curso superior de economia doméstica em uma universidade
rural, em Viçosa.
Vale notar que um mês antes da celebração do acordo entre a AIA e o governo mineiro, a antiga Escola Superior de
Agricultura e Veterinária do Estado de Minas Gerais (ESAV), em Viçosa, foi transformada, pela lei estadual n. 272, em
Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG). A instituição, que naquele momento contava apenas com o curso
de agronomia, teria que organizar, conforme estabelecia a mesma lei, uma Escola Superior de Veterinária e uma Escola
Superior de Ciências Domésticas. A lei também previa uma Escola de Especialização, um Serviço de Experimentação e
Pesquisa, e ainda um Serviço de Extensão.
A UREMG já havia nascido com uma significativa experiência em extensão rural. Na verdade, a ESAV foi uma
instituição de educação superior pioneira nesta área, ao organizar, desde 1929, um grande encontro anual de agricultores – a
Semana do Fazendeiro. Deste modo, os agrônomos egressos da ESAV já contavam em sua formação com um componente
extensionista. Não havia, contudo, na instituição, até o final da década de 1940, um serviço de extensão com as dimensões
exigidas pelo trabalho da ACAR.
Para oferecer o suporte necessário à ACAR, a UREMG buscou o apoio numa instituição norte-americana, a
Universidade de Purdue. Isto foi possível graças a um acordo firmado, em junho de 1951, entre o Ministério das Relações
Exteriores do Brasil e o embaixador norte-americano, em nosso país. Este acordo previa, entre outras atividades, a
cooperação entre o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e a UREMG para estabelecer em Minas Gerais um
programa de extensão rural e economia doméstica. O Institute of Inter-American Affairs (IIAA) intermediou tal cooperação
envolvendo a Universidade de Purdue. Deste modo, em 1952, dois especialistas de Purdue chegavam a Viçosa para atuar
naquele programa 8.
Vale notar que antes mesmo do início das aulas da primeira turma do curso superior de economia doméstica na
UREMG, esta instituição já fora engajada no trabalho da ACAR. Alguns cursos de breve duração foram então oferecidos
com o objetivo de pavimentar o caminho para a construção da Escola Superior de Ciências Domésticas 9.
Deste modo, em janeiro e fevereiro de 1952, a ACAR ofereceu em conjunto com a UREMG um curso de
treinamento com a duração de sete semanas, que funcionou nos edifícios da Escola Superior de Agricultura de Viçosa e
contou com o concurso de técnicos e professores de ambas as entidades 10.
Para as supervisoras domésticas, este curso compreendeu “aulas de nutrição, horticultura, puericultura, carpintaria,
higiene e saneamento, costura, sociologia, organização de clubes e até ordenha e direção de jeeps” 11.
Ainda em 1952, a Secretaria de Agricultura de Minas Gerais promovia em conjunto com a UREMG, em sua sede,
em Viçosa, e sob os auspícios do Ministério da Agricultura, do Instituto de Assuntos Inter-Americanos, dos Colégios
Americano de Porto Alegre e Bennett do Rio de Janeiro e da Embaixada dos Estados Unidos, um curso intensivo de
treinamento, com duração de sete semanas, visando a qualificação de agrônomos e supervisoras domésticas.
Até encerrar as suas atividades, em 1968, a AIA contou com a estreita colaboração da UREMG, principalmente
com sua ação conjugada ao trabalho da ACAR. A Universidade fornecia, em número cada vez maior, grande parte dos

7
ASSOCIAÇÃO DE CRÉDITO E ASSISTÊNCIA RURAL (ACAR). Relatório das Atividades da ACAR em Minas Gerais Desde o Inìcio até 30 de Setembro
de 1951, pp.4, 5.
8
BARBER, Fred W. The Origin and Development of Brazil’s Cooperative Agricultural Extension Service. USAID Mission to Brazil. Office of Agriculture and
Rural Development. May, 1965.
9
Relatório ACAR,1951, p.10-11.
10
ASSOCIAÇÃO DE CRÉDITO E ASSISTÊNCIA RURAL (ACAR). Terceiro Relatório das Atividades,1951, p.10. Cabe registrar que não obstante a data do
Relatório seja o ano de 1951, o documento faz referência a atividades desenvolvidas no ano seguinte.
11
Idem, pp.10,11.

18
profissionais para as atividades não só da ACAR, mas também para entidades congêneres, que nos anos 1950 se formaram
em vários estados brasileiros, e para a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR), criada em 1956 12.
A partir de meados dos anos 1950, o Serviço de Extensão da UREMG empenhava-se na criação de cooperativas de
consumo e de produção agrícola, ao mesmo tempo em que mantinha cursos de breve duração, muitos dos quais oferecidos a
religiosos que atuavam no meio rural. O então Chefe do Serviço de Extensão da Universidade prestava conta dos mesmos,
em cartas enviadas ao diretor do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos 13.
No final dos anos 1950, além de continuar formando economistas domésticas que atuariam no trabalho da ACAR,
sob a orientação da AIA, a UREMG também formava agrônomos com forte componente extensionista em seu currículo.
Em 1958, graças a um convênio com a ACAR, a ABCAR e o Technical Office of Agriculture dos Estados Unidos,
que coordenava projetos na área de educação e pesquisas agrícola no Brasil, foi criado no campus da UREMG, um Centro de
Ensino de Extensão.
Vale notar que no final da década de 1960, foi criado na UREMG um curso de mestrado em extensão rural. No
mesmo período, a colaboração da UREMG com a ACAR envolvia a realização de demonstrações com soja, juntamente com
técnicos da Universidade de Purdue, estimulando a produção comercial da mesma no estado de Minas Gerais, com base em
experiências desenvolvidas com financiamento da United State Agency for International Development (USAID) 14.
É interessante notar que a oferta de pessoal qualificado pela UREMG para atuar nos programas da AIA, antecede a
assinatura do acordo da entidade com o governo mineiro em 1948. Desta instituição educacional saíram destacados quadros
que atuariam nos programas da AIA no Brasil. Entre estes, vale destacar o nome de John B. Griffing, considerado por
Dalrymple (1968) “o pai da AIA no Brasil”.
Antes de compor o quadro administrativo da AIA no Brasil, John Benjamim Griffing foi diretor da Escola Superior
de Agricultura e Veterinária de Minas Gerais, tendo chegado ao Brasil em 1936 para assumir este posto.
Especialista em genética, com formação no Kansas State College e na Columbia University, tinha estudado ainda
na University of Southern California. Não obstante sua formação, Griffing vinha da Universidade de Nankim, na China, onde
atuava principalmente em extensão e educação rural, ainda que desenvolvesse estudos sobre melhoramento de algodão
(Ribeiro, 2008).
Ao chegar à ESAV, Griffing encontrou a instituição numa situação dramática de crise. Faltava material para o
trabalho dos professores, seu pagamento atrasava e circulavam então boatos de que a Escola seria fechada. A despeito destas
dificuldades, Griffing deu início a um programa de intercâmbio com universidades norte-americanas para onde enviava
professores com fins de aperfeiçoamento. Ao mesmo tempo em que ia conseguindo contornar a crise em que se encontrava a
ESAV, Griffing tratou de criar o Departamento de Educação Rural, além de uma Estação Experimental (Ribeiro, 2008).
Após o seu afastamento da ESAV, em 1939, Griffing, que era pastor protestante, ainda permaneceu no Brasil.
Quando a AIA deu início às primeiras atividades, foi Griffing o responsável pela coordenação das mesmas. Em razão do seu
envolvimento naquelas atividades, Griffing era conhecido em Santa Rita do Passa Quatro como “Dad”, pai (Dalrymple,
1968).
Destacando a atuação de Griffing em programas de combate a parasitas com fumigação, na restauração do solo com
uso de matéria orgânica e fertilizantes químicos e na organização de clubes agrícolas inspirados no modelo 4-H dos Estados
Unidos, Dalrymple (1968, p.38), afirma que “Dad” Griffing era “a pure extensionist who believed in doing practically
everthing himself before having others do it”.
Outro quadro importante para a AIA no Brasil foi Paulo Salvo que compôs a primeira diretoria da ACAR, não
obstante indicado pelo governo mineiro.
Salvo graduou-se na primeira turma de engenheiros agrônomos da antiga ESAV. Egresso, atuou como engenheiro
agrônomo e, após participar da diretoria da ACAR, militou na política mineira, elegendo-se deputado estadual e sendo
nomeado para a Secretaria de Agricultura do Estado de Minas Gerais, no início dos anos 1960. Ainda nos anos 1960, ocupou
ainda a presidência da Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais (FAEMG) 15.
Outro egresso da ESAV ligado à AIA foi Antônio Secundino de São José, também da primeira turma de
engenheiros agrônomos.
São José logo foi contratado como professor da Escola. Em 1937, participou do programa de intercâmbio da ESAV
com universidades norte-americanas, obtendo, com o apoio de Griffing uma bolsa para um curso de aperfeiçoamento em
Stoneville Experiment Station, no Mississipi, e posteriormente para um curso de pós-graduação em Iowa. Após o seu retorno
a Viçosa, São José criou na ESAV o Departamento de Genética Vegetal 16.
Em 1942, São José foi contratado como assessor técnico da Comissão Brasileiro-Americana de Produção de
Gêneros Alimentícios 17.

12
A ABCAR está hoje constituída como Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER).
13
Carta de Odemar Resende Pimenta, escrita, em 13-03-1954, a Mr. Hearne, do Departamento de Agricultura norte-americano, localizada no acervo do Arquivo
Central e Histórico da UFV.
14
REPORTS. Purdue-Brazil Project. Rural University of Minas Gerais. Viçosa-MG, nov-dez, 1967.
15
Informações sobre Salvo podem ser encontradas em Borges et al (2000).
16
PACHECO, 2000, p.44.
17
Idem.

19
Segundo Pacheco, São José criou, em 1945, com amigos brasileiros e os sócios norte-americanos Dee William
Jackson e John Ware “uma companhia dedicada a experiências com milho híbrido: ‘Agroceres Ltda’ [...] ”, a qual levantou
recursos para a sua expansão junto a uma subsidiária da Fundação Internacional de Economia Básica (IBEC), “empresa
financiadora de projetos de desenvolvimento e conglomerado de administração, organizada pelo milionário americano
Nelson Rockfeller” 18.
Esta empresa viria a se fundir com a empresa de Secundino, em 1951, dando origem a uma nova empresa, a
Sementes Agroceres S/A 19.
Cabe considerar, conforme observam Colby & Dennett (1998, p.252), que “a AIA de Rockfeller se tornara uma
fachada filantrópica para o que era basicamente uma operação lucrativa, a IBEC”.
Deste modo, segundo os autores,
Enquanto as equipes da AIA promoviam a criação de frangos, Nelson montava, através da IBEC, uma empresa de
ração para aves. As equipes da AIA promoviam as virtudes fertilizantes químicos e a IBEC os vendia. A AIA encorajava o
uso de sementes mais produtivas, a IBEC vendia sementes híbridas. . A AIA pregou o evangelho dos pesticidas e herbicidas e
a IBEC montou uma empresa de fumigação.
Cabe considerar ainda que, além dos interesses em jogo com o IBEC, Rockfeller também tinha em vista os recursos
minerais do estado de Minas e o potencial manancial de petróleo que o subsolo brasileiro poderia oferecer para a sua empresa
petrolífera, a Standard Oil.
Na verdade, os interesses de Rockfeller e seu staff no Brasil e em outros recantos da América Latina era mais do
que puramente econômico. Como os próprios autores, antes mencionados, afirmam “Os brasileiros subestimaram Nelson. Ele
estava interessado em mais do que petróleo. Queria o destino deles” (Colby & Dennett, 1998, p.249).

Considerações Finais
O envolvimento de Griffing e São José com a AIA são fortes elementos para a hipótese, construída nesta pesquisa,
de que a criação da UREMG com a sua ESCD e com o seu Serviço de Extensão se deveu, em alguma medida, aos interesses
da AIA no sentido de contar com uma instituição a seu serviço para a provisão de profissionais que atuassem em seu projeto
em Minas Gerais. Não obstante a ausência de documentos que comprovassem tal hipótese, há outros elementos que a
fortalecem, como o fato de a lei estadual responsável pela transformação da ESAV em Universidade Rural ter sido assinada,
pelo governo mineiro, um mês após a chegada de Crawford a Minas Gerais e um mês antes da celebração do acordo do
governo de Minas com a AIA.
Vale ainda notar que a assinatura do acordo entre a AIA e o governo mineiro, assim como a transformação da
ESAV em UREMG, aconteceu quando esta instituição tinha como seu diretor Antônio Secundino São José 20.
São José era sócio de empresa subsidiária do grupo Rockfeller e foi identificado por um ex-aluno da ESAV e ex-
professor da UREMG como “grande amigo de Rockfeller” 21.
Se a Universidade Rural do Estado de Minas Gerais não foi intencionalmente criada para atender os interesses do
projeto da AIA, pode-se considerar que houve no mínimo uma afinidade eletiva entre a sua criação e a implementação
daquele projeto.
Neste contexto, a extensão rural realizada pela ACAR, sob a orientação da AIA, e realizada com a colaboração da
UREMG, constituiu um eficiente instrumento para os norte-americanos. Os extensionistas preparados pelos mesmos e
imbuídos de seus valores e ideais apresentavam-se às comunidades rurais credenciados como técnicos especializados e
difusores do progresso e promotores do bem estar social.
Garantia-se, assim, o controle de áreas e mercados tradicionais dos EUA e se legitimava a sua pretensa “missão
civilizadora”.
Vale notar que o trabalho dos extensionistas contribuiu decisivamente para apaziguar a animosidade de uma
população miserável e predominantemente rural, objeto de um trabalho educativo no sentido do seu disciplinamento.

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CHOMSKY, Noam. (1997). Segredos, mentiras e democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

18
Idem.
19
Idem.
20
São José assumiu a direção da ESAV em 1947, afastando-se da direção da instituição, transformada em UREMG, em 1951.
21
Informação baseada em entrevista com ex-aluno da ESAV e ex-professor da UREMG, realizada em agosto de 2006.

20
COLBY, Gerard & DENNETT, Charlotte. (1998). Seja feita a vossa vontade. A conquista da Amazônia: Nelson Rockfeller e
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Educação, 19, pp.105-119.

Regulação do Ensino Superior: delineamentos no Brasil e em Portugal

António Cabral Neto


Universidade federal do Rio Grande do Norte
cabraln@ufrnet.br

Ana Maria Seixas


Faculdade Psicologia e Ciências da Educação - Univ. Coimbra
anaseixas@fpce.uc.pt

Resumo: Pretende-se nesta comunicação apresentar uma análise comparativa dos modos de regulação dos sistemas de ensino superior
brasileiro e português, destacando a importância da avaliação enquanto instrumento de regulação nas reformas em curso em ambos os países.
No Brasil a defesa de regulação do ensino superior esteve sempre presente na agenda dos governos. Entretanto, nos primeiros anos do
presente século, o tema da regulação assume lugar de destaque na agenda das políticas direcionadas a este nível de ensino. No anteprojeto da
Lei da Reforma Universitária, de 2005, foram realçados três pilares de sustentação da reforma: educação como bem público, educação
superior como política de estado e a instituição de marcos regulatórios. O argumento para privilegiar o marco regulatório está relacionado
com a necessidade de melhorar a qualidade do ensino ofertado pelas IES. Este mesmo argumento é, também, utilizado em Portugal para
legitimar a emergência de novos dispositivos legais associados a transformações em curso no campo do Ensino Superior. A nossa reflexão
neste trabalho centra-se no exame do papel que estes instrumentos legais vêm desempenhando quanto à regulação do ensino superior no
Brasil e em Portugal. Será privilegiada a análise de normativos legais relacionados com a questão da avaliação do ensino superior,
nomeadamente para o caso brasileiro a lei que instituiu em 2004 o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, e para Portugal, os
normativos legais relativos à Avaliação das Instituições de Ensino Superior e à criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino
Superior.

Introdução
Pretende-se nesta comunicação analisar a importância da avaliação enquanto instrumento de regulação nas reformas
em curso no ensino superior no Brasil e em Portugal. No Brasil a defesa de regulação do ensino superior esteve sempre
presente na agenda dos governos. Entretanto, nos primeiros anos do presente século, o tema da regulação assume lugar de
destaque na agenda das políticas direccionadas a este nível de ensino. No anteprojeto da Lei da Reforma Universitária, de
2005, foram realçados três pilares de sustentação da reforma: educação como bem público, educação superior como política
de estado e a instituição de marcos regulatórios. O argumento para privilegiar o marco regulatório está relacionado com a
necessidade de melhorar a qualidade do ensino ofertado pelas instituições de ensino superior. Este mesmo argumento é,

21
também, utilizado em Portugal para legitimar a emergência de novos dispositivos legais associados a transformações em
curso no campo do ensino superior

1 A Avaliação e a emergência de novas formas de regulação do ensino superior


A partir da década de 80 é visível o desenvolvimento de novas formas de regulação dos sistemas de ensino superior
de acordo com a lógica da Nova Gestão Pública, implicando uma crescente importância da avaliação enquanto instrumento
de regulação e uma redefinição do papel do Estado, transformando-se este num Estado avaliador (Neave, 1988; 1998).
Guy Neave justifica o aparecimento nos anos 80 do Estado avaliador como resposta a três preocupações altamente
pragmáticas: as dificuldades em sustentar o peso crescente das despesas sociais, o forte aumento na procura de ensino
superior, e a consciência das limitações do modelo de controlo estatal na promoção da adequação dos sistemas de ensino
superior às necessidades das sociedades pós-industriais. A expansão dos sistemas de ensino superior, transformando os
sistemas de ensino superior de elite em sistemas de massas ou mesmo universais, torna disfuncional o modelo de controlo
estatal. Na perspectiva deste autor, o que estava em causa não era o princípio do mecanismo de coordenação do controlo
estatal, mas sim o crescente aumento da sua intensidade e visibilidade e a incapacidade de responder adequada e
atempadamente às novas pressões de diversificação e diferenciação do ensino superior.
O desenvolvimento de uma nova ética social, assente nos valores da excelência e da competitividade, parece ser
um dos propósitos do Estado avaliador. Tendo subjacente uma retórica de eficiência, qualidade e responsabilidade, e
procurando responder às transformações sociais e económicas, o Estado avaliador pretende efectuar uma mudança de
mentalidades, visando incutir o que vários autores designam de cultura empresarial (Cowen, 1996; Neave, 1988). Pretende-
se, assim, fomentar uma nova mentalidade baseada na iniciativa individual e na competição, considerada fundamental para o
desenvolvimento nacional. O discurso do Estado avaliador, associado aos discursos da modernidade tecnocrática, é
essencialmente um discurso de mercado, tendo como conceitos-chave a qualidade, a eficiência, a prestação de contas, a
escolha, a diversidade, novas formas de gestão, a produtividade, o consumidor e a avaliação. No entanto, e de uma forma
aparentemente paradoxal, se o Estado avaliador desenvolve uma retórica enfatizando o mercado e a ética competitiva, as suas
práticas demonstram falta de confiança no mercado enquanto mecanismo de coordenação
O Estado avaliador encontra-se, assim, associado a novas formas de coordenação e gestão, traduzidas no conceito
de “new public management” (Bleiklie, 1998). A nova forma de gestão da coisa pública, expressão política da teoria da
escolha pública, sublinha a eficiência, a responsabilização e a prestação de contas. Os principais objectivos desta abordagem
consistem numa separação dos interesses do Estado como proprietário ou financiador de uma agência, dos seus interesses
enquanto comprador de serviços dessa mesma agência; na avaliação do desempenho, através da especificação, em termos de
resultados dos objectivos de desempenho de agências governamentais; na associação da prestação de contas com controlo,
delegando nas agências uma autonomia acrescida sobre os inputs e sobre as decisões acerca do uso dos recursos; e, por
último, no estímulo à prestação de contas ou responsabilização através da realização de contratos, do aumento da competição
entre os vários fornecedores de serviços e da privatização (Dill, 1998: 361).
O Estado avaliador assenta no conceito da contratualização entre o Estado, sociedade e instituições de ensino. Este
conceito baseia-se fundamentalmente em dois princípios: o princípio da renegociação e o princípio da condicionalidade do
desempenho (performance conditionality). O Estado avaliador opõe-se, assim, ao modelo do Estado de controlo central e ao
princípio da homogeneidade legal, predominante no continente europeu até à década de 80. A homogeneidade e a
convergência ficam limitadas a uma série de condições nacionais mínimas de desempenho, de custos e taxas de qualificação,
que são tão mais poderosas quanto a elas estão associadas recompensas ou sanções. Estes indicadores de desempenho,
auditorias, etc., são, além de instrumentos tácticos de coordenação e controlo, instrumentos de convergência. A sua eficácia
assenta na sua suposta natureza técnica e objectividade, bem como na aceitação da legitimidade da diferença institucional nos
processos de realização dos objectivos nacionais de desempenho (Neave, 1996: 37). O Estado dirige, agora, o ensino superior
através dos mecanismos e procedimentos de negociação numa lógica de contratualização entre instituição, organismos
intermédios e Estado. Requer, portanto, um enquadramento legal forte onde são definidas as funções de definição,
implementação, interpretação e avaliação das políticas, desenvolvendo, assim, estratégias de controlo à distância ou de
controlo remoto, articulando o desenvolvimento da autonomia institucional com a constituição de sistemas de avaliação e de
controlo de qualidade dos sistemas educativos. Aliás, a principal contradição do Estado avaliador expressa-se exactamente na
ênfase simultânea, por um lado, na desregulação e na autonomia institucional, e, por outro, no desenvolvimento de um corpo
regulatório condicionando a acção institucional.
O aparecimento do Estado avaliador implicou uma mudança no conceito de avaliação, considerado, agora,
juntamente com a autonomia institucional, um instrumento estratégico essencial de articulação entre as políticas educativas
definidas pelo Estado e a sua interpretação e cumprimento ao nível institucional. A avaliação dos sistemas educativos tem
sido uma função desempenhada pelo Estado ou pelo governo, principalmente nos sistemas mais centralizados. O controlo
público sobre as instituições públicas era, contudo, geralmente associado a uma mera verificação formal administrativo-
burocrática (Neave, 1988; 1998). Ora, no Estado avaliador o lugar e o papel da avaliação no processo da tomada de decisão
política transforma-se. Não só a avaliação de rotina se liga com a avaliação estratégica, como e principalmente a avaliação
passa a ser a posteriori. Esta tende a avaliar a realização dos objectivos através do controlo do produto e não através do

22
controlo dos processos. Esta mudança de ênfase dos processos para os produtos, dos input para o output, reflecte, segundo o
autor, uma das mudanças mais importantes na relação entre o Estado e o sistema de ensino superior.
Os primeiros sistemas de avaliação da qualidade do ensino superior surgem na década de 80 no Reino Unido,
França e Holanda. Se a preocupação com a qualidade do ensino superior não é recente, a dimensão externa da avaliação
torna-se, agora, predominante. O desenvolvimento destes sistemas de avaliação da qualidade é justificado essencialmente
pela massificação, diversificação e internacionalização do ensino superior e a necessidade de garantir a qualidade e a
eficiência do sistema num contexto de restrições orçamentais. A melhoria da qualidade, a accountability e a informação
aparecem como os seus principais objectivos. A partir do final da década de 90, desenvolvem-se na Europa, os sistemas de
acreditação. Estes, face à avaliação, orientada para a melhoria da qualidade, centram-se na função de validação. Teichler
(2007) refere como factores para o seu desenvolvimento a diminuição da confiança relativamente à capacidade de auto-
regulação da comunidade académica, a crescente ênfase nas forças do mercado, os esforços para fortalecer o poder dos
gestores no ensino superior, a crescente competição internacional no ensino superior, o aumento da mobilidade internacional
dos estudantes e dos diplomados, bem como o Processo de Bolonha. Os sistemas de acreditação, permitindo uma maior
comparabilidade dos cursos e instituições, encontram-se asssociados a uma tendência para uma maior diversificação vertical,
podendo a implementação de um sistema de acreditação europeu levar à formação de um Espaço Europeu de Ensino Superior
altamente estratificado.
Como afirmam Amaral, Rosa e Tavares (2007) a avaliação pode ser um instrumento potenciador de diferentes
acções. Ao analisar a evolução dos sistemas de avaliação europeus, os autores sublinham a sua crescente importância
enquanto instrumento de regulação, nomeadamente de controlo governamental bem como de implementação de uma política
supranacional.

2 Avaliação da educação superior no Brasil: concepção e implementação


2.1 Elementos contextuais que definem a necessidade de um novo modelo de avaliação
No final do século XX e início do século XXI ocorre mundialmente um processo de reforma nos sistemas de ensino
com o objetivo de adequar o campo educacional às novas demandas contextuais decorrentes do processo de reestruturação
produtiva, vivenciado pelo sistema capitalista. A nova configuração do capitalismo decorrente desse processo de
reestruturação engloba, dentre outras características, uma reorganização da produção com desdobramentos na organização do
trabalho e na atividade profissional; a intensificação do processo de globalização e o reordenamento do papel do estado.
Destaca-se que esse processo de reestruturação da produção em escala mundial, em novas bases, passa a condicionar a
educação em todos os seus níveis, porém, observa-se uma maior atenção no que concerne ao ensino superior em decorrência
do papel que pode vir a desempenhar nesse novo cenário de uma economia globalizada.
Evidencia-se, desse modo, que essa dinâmica imposta pelo processo de globalização coloca a necessidade de graus
mais elevados de qualificação e flexibilização da formação do trabalhador em todos os níveis de atuação. Tal situação, como
assinala Carnoy (2004), se traduz por uma pressão no sentido de elevar o nível médio de instrução da população
economicamente ativa e permitir que, mais facilmente, os adultos retornem à escola para adquirirem novas competências.
Realça, ainda, o sobredito autor que por toda parte, são cada vez mais avultados os créditos alocados ao ensino
superior em decorrência das novas orientações da produção econômica voltada para produtos e procedimentos que exigem
um maior volume de conhecimento. Por outro lado, a elevação da renda dos funcionários mais qualificados suscita o aumento
do número de pessoas interessadas em ingressar na universidade, incitando os Governos a desenvolver o ensino superior, ao
mesmo tempo em que cresce o número de diplomados do segundo grau (ensino secundário) que estão preparados para entrar
na universidade. (Grifos nossos).
Outra evidência importante que emerge nesse cenário refere-se à necessidade de melhorar o nível da educação
ofertada pelos sistemas de ensino. Para desenvolver uma política bem-sucedida de aprimoramento da educação, coloca-se
como imperativo o estabelecimento de marcos regulatórios, complementados por uma sistemática de avaliação capaz de
auferir o nível de competitividade do sistema educacional. O desafio que se delineia para a educação superior, nesse
contexto, pode ser traduzido nos seguintes termos: “conciliar as exigências de qualidade e inovação com as necessidades de
ampliar o acesso e diminuir as assimetrias sociais” (INEP/MEC, 2004, p. 15).
A defesa de novos mecanismos de regulação para educação superior circunscreve-se nos marcos de um processo de
reforma para adaptar esse nível de ensino às mudanças em curso na sociedade brasileira e para atender às demandas que
emergem dos novos delineamentos político e jurídico, decorrentes das mudanças do papel do Estado em um novo cenário
instituído a partir da década de 1990.
Nessa dinâmica atribuem-se ao Estado novos papéis dentre os quais o de regulador e avaliador. Como bem assinala
Seixas (2003), o Estado avaliador implica uma redistribuição das suas funções e responsabilidades na coordenação do ensino
superior em, pelo menos, três aspectos fundamentais: a concentração da administração central na dimensão estratégica de
desenvolvimento do sistema, definindo objetivos e critérios de qualidade do produto final; a emergência de órgãos
intermediários constituído por especialistas, funcionando como agentes diretos de avaliação e coordenação; e a ênfase na
auto-regulação das instituições. Nessas circunstâncias continua argumentando a referida autora que a utilização da avaliação
enquanto mecanismo simultâneo de regulação e de desregulação social expressa bem a aparente contradição das políticas
educativas neoliberais e neoconservadoras desencadeadas a partir da década de 1980. Em acordo com essa orientação o

23
processo avaliativo possibilita a comparação dos desempenhos das diferentes instituições e apresenta-se como um mecanismo
essencial para a formulação de opções racionais por parte dos consumidores do mercado educativo.
A defesa assumida, no Brasil, situa-se no sentido de reconhecer que há muito o Estado brasileiro deveria estar mais
dedicado à tarefa de aprimorar e corrigir os objetivos e o funcionamento das instituições de educação superior, visando o
desempenho de um sistema de ensino e pesquisa que se coadune com as necessidades e interesses de uma Nação democrática
e soberana. Nesse sentido, o poder público necessita aperfeiçoar suas condições para o exercício da função regulatória do
sistema educacional, realizando-a com objetiva dedicação, em paralelo à função de avaliação (INEP/MEC, 2004). Nessas
circunstâncias estão delineadas as condições objetivas e subjetivas para proposição, no País, de uma proposta que articula
regulação e avaliação da educação superior.

2.2 Estudos e proposições de um novo modelo de avaliação


É nesse cenário das mudanças verificadas no final do Século XX e início do Século XXI que se delineia, no Brasil,
a necessidade histórica de se conceber a modernização do processo de regulação e de avaliação da educação superior. Os
argumentos para a edificação desse processo de modernização podem ser assim resumidos: necessidade de os Estados
assegurarem a qualidade e os controles regulatórios, a distribuição e o uso adequado dos recursos públicos, a expansão
segundo critérios estabelecidos por políticas institucionais e do sistema, orientar o mercado consumidor dos serviços
educacionais e de produzir informações úteis para as tomadas de decisão (INEP, 2004).
É nesse contexto que o governo brasileiro faz um balanço do modelo de avaliação do ensino superior vigente no
País e propõe um modelo em novas bases a partir da criação do SINAES (Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior).
Para realizar essa empreitada o governo brasileiro cria, por meio de seu Ministério da Educação, a Comissão
Especial de Avaliação (CEA)1. Segundo a análise realizada por essa comissão a concepção de avaliação que embasava o
modelo vigente (apesar de sua importância) estava fundada em concepção essencialmente vinculada “ao controle de
resultados e do valor de mercado, como visão regulatória” (INEP/MEC, 2004, p. 21). O novo sistema pretende ser uma
alternativa de avaliação pensada em outros moldes que inclua o “comprometimento com a transformação acadêmica, em uma
perspectiva formativa/emancipatória (INEP/MEC, 2004, p. 21).
A defesa formulada a partir dos estudos da comissão situa-se na perspectiva de materializar a criação de um sistema
que combine a regulação e a avaliação educativa, em suas dimensões interna e externa. Tal defesa parte da concepção de
avaliação delineada no âmbito do estudo da Comissão e pela constatação de que a avaliação da educação superior no Brasil
está desequilibrada pelos seguintes motivos: a) está centrada quase exclusivamente nas atribuições de supervisão do MEC; b)
praticamente não considera instituições e cursos como sujeitos de avaliação; c) não distingue adequadamente supervisão e
avaliação, com nítida ênfase à primeira; d) não constitui um sistema nacional de avaliação, porém, mais propriamente uma
justaposição de verificação de determinadas condições, unilateralmente definidas pelo Ministério (INEP/MEC, 2004).
A partir dessas considerações relativas à lógica da avaliação vigente define-se o enfoque que será considerado na
concepção do novo modelo de avaliação. Nesse sentido, o entendimento é de que a avaliação institucional não deve ser
compreendida como um fim, em si mesma; ela deve ser considerada parte de um conjunto de políticas públicas, no campo da
educação superior, voltadas para a expansão do sistema pela democratização do acesso, para que a qualificação do mesmo
faça parte de um processo mais amplo de revalorização da educação superior como parte de um projeto de desenvolvimento
da nação brasileira (INEP/MEC, 2004).
A proposta é, portanto, afastar-se de uma abordagem de avaliação que atribui a atual crise do ensino superior à
eficiência ou ineficiência das instituições se adaptarem às novas exigências sociais, entendendo que a educação superior
funciona como fator de incremento ao mercado de trabalho. No âmbito dessa abordagem a avaliação se realiza como
atividade essencialmente técnica, que busca na mensuração dos resultados produzidos pelas instituições em termos de ensino,
sobretudo, e também da pesquisa e prestação de serviço a comunidade. São enfatizados os indicadores quantitativos que
permitem promover um balanço das dimensões mais visíveis e facilmente descritíveis (como área construída, titulação dos
professores, descrição do corpo docente, discente e servidores, dentre outros), evidenciando, desse modo, uma visão de
avaliação vincada apenas na regulação (avaliação regulatória).
Os estudos da comissão realçam que essa abordagem de avaliação não atende as atuais exigências postas para as
instituições de educação superior e destacam a necessidade de pensar a avaliação para além de sua dimensão regulatória. E,
nessa perspectiva evidencia a urgência de conceber esquemas de avaliação que busque ir além “da medição e de aspectos
perfomáticos” (INEP/MEC, 2004, p. 17). Essa abordagem de avaliação em construção “adere à própria discussão do sentido
ou da existência das instituições de ensino superior na sociedade; entendendo que estas têm ‘funções múltiplas’; que o
conhecimento produzido no interior delas, além de ser requisitado como força produtiva, também é um instrumento de
cidadania, em sua pluralidade, em sua diversidade” (p. 17).

1
Comissão designada pelas portarias ministeriais (MEC/SESU) n. 11 de 28 de abril de 2003 e de n. 19 de 27 de Maio de 2003 e instalada pelo Ministro da
Educação em 29 de Abril do mesmo ano. Conforme especificam esses instrumentos normativos essa comissão tinha como finalidade analisar, oferecer subsídios,
fazer recomendações, propor critérios e estratégias para a reformulação dos processos e políticas de avaliação da educação superior e elaborar a revisão crítica
dos seus instrumentos, metodologias e critérios utilizados. A composição da comissão contemplou professores de universidades, representantes de vários órgãos
do governo (SESu, INEP, CAPES) e três representantes dos estudantes.

24
A defesa da Comissão se situa, portanto, na direção de que o novo sistema de avaliação do ensino superior a ser
concebido deva ser fundado em novas bases. E nessa direção, argumenta a necessidade de trabalhar na perspectiva da
avaliação emancipatória, entendida como aquela em que a avaliação não se apresenta somente como prática produtora de
juízo de fatos, de coleta de informações, medida e controle de desempenho. Seu processo requer reflexão tanto sobre a prática
quanto sobre o objeto e os efeitos da avaliação, o que só pode ser feito através de juízo de valor.
Essas são as bases da proposta original do SINAES2 apresentada pela Comissão Especial de Avaliação (CEA) ao
Ministério da Educação (MEC)3. Ressalta-se que o próprio MEC reconhece que durante o processo de discussão da proposta
apresentada pela Comissão “houve mudanças que alteraram significativamente algumas das orientações originais da
comissão, sem, no entanto, ferir os princípios e diretrizes fundamentais” (INEP/MEC, 2004, p. 7)

2.3 Institucionalização e regulamentação do SINAES


O Sistema Nacional de Avaliação da Educação superior – SINAES – foi instituído, no Brasil, pela Lei n. 10.861, de
14 de abril de 2004 (publicada no Diário Oficial da União – DOU – n. 72 de 15 de abril de 2004, Seção 1, p. 3-4) e
regulamentado pela Portaria Ministerial n. 2.051, de 9 de julho de 2004 (publicada no DOU n. 132, de 12 de julho de 2004,
Seção 1, p. 12).
No seu Artigo 1º a Lei nº 10.861 prevê que o SINAES tem por objetivo assegurar o processo nacional de avaliação
das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes. No parágrafo
1º, desse mesmo artigo, destaca que o SINAES tem por finalidade a melhoria da qualidade da educação superior, a orientação
da expansão da sua oferta, o aumento permanente de sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social e,
especialmente, a promoção do aprofundamento dos compromissos e responsabilidades sociais das instituições da educação
superior, por meio da valorização de sua missão pública, da promoção dos valores democráticos, do respeito à diferença e à
diversidade, da afirmação da autonomia e da identidade institucional. Desse modo o instrumento normativo incorpora os
fundamentos básicos dos princípios formulados pela CEA.
No seu conjunto, o SINAES ao promover a avaliação das instituições, dos cursos e do desempenho dos estudantes
deverá pautar-se nos seguintes princípios: avaliação institucional, interna e externa, contemplando a análise global e
integrada das dimensões, estruturas, relações, compromisso social, atividades, finalidades e responsabilidades sociais das
instituições de educação superior e de seus cursos; o caráter público de todos os procedimentos, dados e resultados da
avaliação dos processos avaliativos; a participação do corpo discente, docente e técnico-administrativo das instituições de
educação superior, e da sociedade civil, por meio de suas representações (Artigo 2º, Incisos I, II e III).
Em relação à avaliação das instituições de educação superior a supracitada norma prevê que ela tem por finalidade
identificar o seu perfil e significado de sua atuação, por meio de suas atividades, cursos, programas, projetos e setores,
considerando as diferentes dimensões institucionais. As dimensões indicadas no instrumento legal são: a missão e o plano de
desenvolvimento institucional; a política para o ensino, a pesquisa, a pós-graduação, a extensão e as respectivas formas de
operacionalizá-las; a responsabilidade social da instituição, com destaque para inclusão social, o desenvolvimento econômico
e social, a defesa do meio ambiente e da memória cultural, assim como a da produção artística e do patrimônio cultural;
comunicação com a sociedade; as políticas de pessoal, incluindo carreira, condições de trabalho e desenvolvimento
profissional; organização e gestão da instituição; infraestrutura física; planejamento e avaliação; política de atendimento aos
estudantes; sustentabilidade financeira (Artigo 3º, Incisos I ao X). No parágrafo 3º, deste mesmo Artigo, se encontra a
determinação de que a avaliação das instituições de educação superior resultará na atribuição de um conceito, ordenado em
uma escala com cinco níveis, para cada uma das dimensões avaliadas.
Relativamente à avaliação dos cursos, o Artigo 40 da Lei nº 10.861 determina que tal procedimento tem por
objetivo identificar as condições de ensino oferecidas aos estudantes, em especial as relativas ao perfil do corpo docente, às
instalações físicas e à organização didático pedagógica. Para essa avaliação serão utilizados instrumentos variados e inclui
obrigatoriamente a visita de comissões de especialistas das várias áreas de conhecimento. Aqui, de forma similar a avaliação
institucional, também serão atribuídos conceitos, ordenados em uma escala com cinco níveis, a cada uma das dimensões e ao
conjunto das dimensões avaliadas.
No que concerne à avaliação do desempenho dos estudantes dos cursos de graduação, a supracitada Lei prevê que
será realizada mediante a aplicação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE que aferirá o desempenho
dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares dos respectivos cursos de
graduação, suas habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências
para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras
áreas do conhecimento (Artigo 5º).

2
A comissão propôs um desenho operacional para o SINAES que inclui os seguintes instrumentos que se articulam: a) avaliação institucional (instrumento
central, organizador da coerência do conjunto); b) Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior - CONAES (órgão coordenador e supervisor do
SINAES); c) procedimentos metodológicos de avaliação institucional (auto-avaliação das IES, avaliação externa organizada pela CONAES, metaavaliação para
retroalimentação do sistema); d) processos e bases de informação (processo de avaliação integrada do desenvolvimento educacional e da inovação da área, censo
da educação superior, cadastro de perfil institucional); e) relatório de auto-avaliação nas dimensões interna e externa (balanço crítico de todos os aspectos
avaliados).
3
As bases da proposta de avaliação elaborada pela CEA foi resultado de uma consulta à comunidade acadêmica e à sociedade civil organizada no decorrer da sua
formulação. O texto final, elaborado pela Comissão, foi submetido a inúmeros debates no MEC, nos fóruns de pró-reitores, nos sindicatos, nas sociedades
científicas, na mídia, na academia, no parlamento e na sociedade em geral (INEP, 2004, p. 7).

25
O ENADE é considerado componente curricular obrigatório dos cursos de graduação (Parágrafo, 4º) e como na
avaliação institucional e de cursos, os seus resultados serão expressos por meio de conceitos, ordenados em uma escala com
cinco níveis, tomando por base padrões mínimos estabelecidos por especialistas das diferentes áreas do conhecimento
(Parágrafo 7º).
Em seu Artigo 6º da Lei 10.861 fica determinada a instituição da Comissão Nacional de Avaliação da Educação
Superior – CONAES. Essa comissão (criada no âmbito do Ministério da Educação e vinculada diretamente ao gabinete do
Ministro de Estado caracteriza-se como órgão colegiado) tem a responsabilidade de exercer a coordenação e a supervisão do
SINAES. Ela é composta por um representante do INEP, um representante da CAPES (Coordenação de aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior), três representantes do Ministério da Educação, um representante do corpo discente das
instituições de educação superior, um representante do corpo docente das instituições de educação superior, um representante
do corpo técnico-administrativo das instituições de educação superior, cinco membros, indicados pelo Ministro de Estado da
Educação, escolhidos entre cidadãos com notório saber científico, filosófico e artístico, e reconhecida competência em
avaliação ou gestão da educação superior.
A Lei nº 10.861 estabelece, ainda, em seu Artigo 10, que os resultados da avaliação considerados insatisfatórios
ensejarão a celebração de protocolo de compromisso, a ser firmado entre a instituição da educação superior avaliada e o
Ministério da Educação. Tal protocolo deve prever as condições e os compromissos da instituição para redimensionar a
situação de fragilidade evidenciada na avaliação. Caso não seja cumprido o especificado no protocolo de compromisso o
MEC pode aplicar uma série de penalidades dentre as quais destacam-se: a suspensão temporária de abertura de processo
seletivo par cursos de graduação, a cassação de autorização de funcionamento da instituição ou do reconhecimento dos cursos
por ela oferecidos, a advertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada, no caso
de instituições públicas de ensino superior.
Ficou determinado, também, que cada instituição de ensino superior, pública ou privada constituiria uma Comissão
Própria de Avaliação – CPA, com as atribuições de condução dos processos de avaliação interna da instituição,
sistematização e de prestação das informações solicitadas pelo INEP.
Destaca-se que todo o processo de avaliação das instituições, dos cursos e do desempenho dos estudantes ficou, por
determinação deste instrumento normativo, sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira – INEP.

2.4 A implementação do SINAES


O sistema Nacional de Avaliação vem sendo implementado no Brasil desde o ano de 2004. A primeira dimensão
implementada foi o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes – ENADE. O ENADE tem por objetivos acompanhar
o processo de aprendizagem dos estudantes, avaliar o desenvolvimento de competências dos estudantes, promover uma
avaliação com maior amplitude e complementar a avaliação do SINAES. A estrutura do ENADE compreende um
questionário sócio-econômico para compor o perfil dos estudantes do primeiro e do último ano do curso; um questionário
para os coordenadores de curso para reunir informações que contribuam para a definição do perfil do curso e uma prova
aplicada a uma amostragem de alunos ingressantes (que tenham cursado entre 7 e 22% da estrutura curricular) e outra de
alunos que estejam em fase de conclusão do curso (mais de 80% dos créditos cursados). A mesma prova é aplicada aos
ingressantes e aos concluintes porque permite comparar o desempenho dos estudantes e, com isso, aquilatar o valor agregado
adquirido durante o curso.
A prova do ENADE é composta por duas partes. Na primeira, de formação geral, são contemplados temas e
conhecimentos que avaliam competências gerais de todos os cursos, sendo constituída por 10 questões (8 objetivas e 2
discursivas). Os temas mais recorrentes nas provas de formação geral nos anos de 2004 a 2008 foram: arte, ética, literatura,
cultura, filosofia, exclusão/inclusão digital, exclusão e minorias, políticas públicas, problemas contemporâneos da sociedade
brasileira e do mundo. A segunda parte da prova que está relacionada à formação específica inclui os conhecimentos e as
competências relativos a cada curso, sendo composta por 30 questões (26 objetivas e 4 discursivas). As questões das provas
estão relacionadas à identidade temática da área do curso e se caracterizam como de múltipla escolha, estudo de caso,
situações problemas, contextualização dos conteúdos, exploração de habilidades, conteúdos diversificados e raciocínio
complexo, avaliação da capacidade de análise, síntese, aplicação.
O ENADE é aplicado anualmente por grupos de cursos definidos pelo INEP. Em 2004 foram avaliados os cursos
da área da saúde e das ciências agrárias (agronomia, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia,
medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia, serviço social terapia ocupacional e zootecnia). No ano de 2005, os
cursos avaliados foram as licenciaturas e as engenharias (arquitetura e urbanismo, computação, ciências sociais, filosofia,
física, geografia, história, letras, matemática, pedagogia, química, engenharias). Em 2006, os cursos avaliados foram os da
área de ciências sociais aplicadas (administração, biomedicina, biblioteconomia, ciências contábeis, ciências econômicas,
comunicação social, direito, música, psicologia e turismo). Com aplicação das provas em 2006 o ENADE fecha o seu
primeiro ciclo, tendo avaliado todos os cursos de graduação no País. Em 2007 iniciou um novo ciclo com os cursos avaliados
em 2004 e 2008 estão sendo avaliados pela segunda vez os cursos avaliados em 2005.

26
Em relação à avaliação institucional conforme já assinalado ela compreende a avaliação interna ou auto-avaliação e
a avaliação externa. A proposta previa que a primeira fase da avaliação institucional seria a avaliação interna coordenada pela
CPA, processo iniciado em setembro de 2004 4. Conforme especifica a Portaria n. 2.051, de 9 de julho de 2004 (Artigo 13,
parágrafo 1º) a CPA teria o prazo de dois anos para apresentar os dados do processo de autoavaliação. Essa sistemática de
autoavaliação está consolidada em todas as instituições de ensino superior e consiste na elaboração pela CPA de relatórios,
contemplando informações detalhadas sobre as 10 dimensões avaliadas (a missão e o plano de desenvolvimento institucional;
a política para o ensino, a pesquisa, a pós-graduação, a extensão; a responsabilidade social; comunicação com a sociedade; as
políticas de pessoal; organização e gestão da instituição; infraestrutura física; planejamento e avaliação; política de
atendimento aos estudantes; sustentabilidade financeira).
O trabalho da comissão compreendeu três momentos complementares conforme previa as orientações as do MEC
(2004), a saber: preparação (contempla a constituição da CPA, o planejamento do projeto e a sensibilização da comunidade
acadêmica), desenvolvimento (consiste na concretização das atividades planejadas, de acordo com as orientações do
CONAES), e consolidação (refere-se à elaboração, divulgação e análise do relatório final, e a realização de um balanço
crítico do processo avaliativo e de seus resultados).
Os relatórios elaborados pelas CPAs, a partir do levantamento e análise das dez dimensões, já foram concluídos em
todas as Instituições de Ensino Superior – IES - e entregues ao Governo. Atualmente (2008) um número significativo de
instituições já recebeu a visita da comissão de avaliação externa, enquanto outras estão aguardando esta etapa.
Embora as normas estabelecessem que a metodologia, os procedimentos e os objetivos do processo de
autoavaliação devessem ser elaborados pela própria IES, segundo a sua especificidade e dimensão, ouvindo a comunidade,
não deixavam dúvidas, todavia, de que deveriam estar em consonância com as diretrizes da CONAES. Na verdade a CPA e,
por conseguinte, as universidades não tiveram espaço para exercer a sua autonomia nesse processo, visto que as normas eram
bastante detalhadas e rígidas. O papel da CPA ficou restrito a operacionalizar, em nível da instituição, as orientações
concebidas fora de seu nível de ação.
A segunda fase da avaliação institucional foi concretizada pela avaliação externa realizada por comissões
designadas pelo INEP (Portaria n. 2.051, Artigo 13, Parágrafo 4º), seguindo as diretrizes estabelecidas pela CONAES. Ela foi
subdividida em duas etapas: visita dos avaliadores à instituição após análise prévia do relatório da auto-avaliação
institucional, coordenada internamente pela CPA e a elaboração do relatório de avaliação institucional. Durante as visitas e
após a análise previa dos relatórios de auto-avaliação, os avaliadores externos realizam reuniões com os dirigentes, os
docentes, os discentes e os técnico-administrativos das instituições em processo de avaliação. Esse procedimento tem por
finalidade propiciar aos avaliadores o conhecimento de como são desenvolvidas as atividades nas IES. Esse é um momento
importante porque cria as condições para esclarecer as dúvidas que possam ter permanecido após a leitura do relatório de
autoavaliação.
Na segunda etapa da avaliação institucional externa, a comissão de avaliadores tem como missão elaborar o
relatório de avaliação institucional, considerando os documentos da instituição, as informações advindas dos diversos
processos avaliativos (ENADE e Avaliação de Cursos), as informações sistematizadas pelo MEC (Censo, Cadastros,
Relatórios CAPES), a realização de entrevistas e as demais tarefas desenvolvidas durante a visita, bem como o relatório de
auto-avaliação. O relatório produzido pela Comissão de avaliação externa contendo todos os resultados da avaliação será
encaminhado a CONAES que formulará parecer conclusivo sobre a situação de cada uma das instituições avaliadas.
Segundo as orientações do SINAES esse parecer deve ser a base para subsidiar a melhoria da qualidade acadêmica
e o desenvolvimento de políticas internas da IES, assim como para a implantação ou manutenção de políticas públicas
relacionadas à regulação do sistema de educação superior do país (INEP, 2004).
Essa avaliação institucional (conforme reza o Artigo 14 da citada Portaria) será o referencial básico para o processo
de credenciamento e recredenciamento das instituições o qual terá prazo de validade estabelecido pelos órgãos de regulação
do Ministério da Educação.
Em relação à avaliação dos cursos de graduação, o INEP constituiu Comissões Externas de Avaliação composta
por especialistas de cada área do conhecimento. Para iniciar o seu trabalho essa comissão teve acesso antecipado aos dados,
fornecidos em formulário eletrônico pela IES (Portaria nº 2.051, Artigo 20). Essa avaliação se constitui em um instrumento
de acreditação, uma vez que é o responsável pelas autorizações e reconhecimentos de cursos de graduação5. Avaliação dos
cursos está em fase adiantada de implementação em todas as IES.
No ano de 2008, o INEP/MEC divulgou o Índice Geral dos Cursos (IGC) das IES. Tal índice compreende de uma
média ponderada dos conceitos dos cursos de graduação e pós-graduação da instituição e pretende ser (ao lado de outros
elementos e instrumentos) um referencial orientador para as comissões de avaliação institucional. Na composição do IGC
foram utilizados os conceitos preliminares dos cursos referentes aos ENADEs realizados de 2005 a 2007 e a nota da CAPES

4
Conforme especifica o Artigo 11 da Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004 cada instituição de ensino superior teria que no prazo de 60 dias a contar da
publicação desta lei constituir suas Comissões próprias de Avaliação (CPA) para conduzir os processos de avaliação internos das instituições. A CPA conforme
esta norma deveria ser composta por representantes de todos os segmentos da comunidade universitária e da sociedade civil organizada, sendo vedadas
composições que privilegiem a maioria absoluta de um dos segmentos. A CPA terá atuação autônoma em relação a conselhos e demais órgãos colegiados
existentes na IES.
5
Embora não haja referência nos documentos de concepção e formalização do SINAES, pode-se inferir, pela sua formatação, que a avaliação dos cursos de
graduação, conforme delineado no âmbito do SINAES se aproxima do formato utilizado para a avaliação da educação superior até 2003, quando recebia a
denominação de ACE (análise das condições de ensino).

27
referente à avaliação do triênio 2004-2006. O IGC foi divulgado, obedecendo a uma escala contínua de 0 a 500 e por faixa,
assim especificada: faixa 1 (de 0,0 a 94), faixa 2 (de 95 a 194), faixa 3 (de 195 a 294), faixa 4 ( de 295 a 394) e faixa 5 ( + de
395). Com base nesse índice o MEC/INEP divulgou, no ano de 2008, um ranque das instituições por natureza jurídica
(público privado) e por dependência administrativa (federal, estadual, municipal). Os dados da avaliação de 172
Universidades indicam o seguinte: 4,7% das instituições foram classificadas na faixa 2; 64,5 % na faixa 3; 27,3 % na faixa 4
e 3,5% foram classificadas na faixa 5. Os dados indicam que a maior parte das instituições foram classificadas na faixa 3, o
que evidência um desempenho mediano dos cursos nas instituições avaliadas.

2.5 Um breve balanço


O SINAES, na forma como foi concebido pela CEA, contempla uma perspectiva de avaliação fundada em novas
bases. A proposta inclui a compreensão de que a avaliação não pode mais ter apenas um caráter meritocrático e tecnicista,
orientada essencialmente pela lógica da regulação e do controle, do cumprimento de requisitos e normas. Esse modelo
avaliativo volta-se notadamente para a identificação e selecção dos melhores, com vista a políticas de incentivos e
financiamento, assim como ao estabelecimento de padrões de status e excelência, traduzidos em listas hierárquicas ou
rankings (Belloni, 2000), tal como vinha se configurando no modelo vigente no Brasil antes do ano de 2004.
Em uma crítica ao sistema vigente antes do SINAES, Ristoff (2000) assinala que quando a avaliação é conduzida,
como no caso do provão e das comissões de especialistas, pelo Ministério da Educação, é evidente que os resultados têm
como usuário preferencial o governo que faz uso destes resultados para administrar o sistema como um todo. E nesse sentido,
os resultados servirão de base para o estabelecimento de matrizes de recursos, alocações privilegiadas, medidas de controle e
políticas de premiação ou punição.
Em reforço a esse argumento, Dias Sobrinho (2003) diz que sob o domínio do Estado avaliador dos últimos anos, a
avaliação da educação superior tem sido praticada com instrumento privilegiado de regulação. Portanto, vem exacerbando
sua dimensão burocrático-legalista de controle, modelação, ajustamento e fiscalização. Argumenta ainda o sobredito autor
que as ações de regulação – entendidas equivocadamente como avaliação – se desenvolvem como parte essencial da agenda
de modernização e privatização, em que as instituições educativas são levadas a adotar mentalidades, práticas e formas de
organizações voltadas a seus interesses próprios e privados.
Essa argumentação forneceu as bases para a CEA (Comissão Especial de Avaliação) propor um esquema
avaliativo fundado em princípios democráticos, que assumisse caráter diagnóstico, formativo, processual, emancipatório e
comprometido com a melhoria da qualidade da educação superior. Desse modo, o SINAES representa (enquanto concepção)
um considerável avanço em elação ao modelo de avaliação praticado em nível da educação superior brasileira, na mediada
em que foi concebido de modo a articular, em novas bases conceituais, a relação marco regulatório, processo de avaliação e
processo de regulação, em que o foco central não é o mero controle governamental coercitivo, mas sim, a melhoria da
educação superior.
Como assinala Recktenvald (2005), o SINAES ao buscar articular a avaliação e a regulação cria as condições
favoráveis para a formatação de um sistema que soma os esforços das instituições com os esforços governamentais, o que
representaria a superação do modelo desarticulado que até então presidira as avaliações nesse nível da educação. Nesses
termos a pretensão do SINAES seria, portanto, adotar a avaliação formativa como um dos pré-requisitos de acreditação,
incluindo, também, formalmente as IES, por meio de suas CPAs, nesse processo (de acreditação), notadamente nos
credenciamentos e re-credenciamentos da instituição, bem como nas autorizações e reconhecimentos de cursos.
Entretanto, como preleciona Santos (2000, p. 54), é preciso estar atento porque vem ocorrendo, por parte do Estado,
uma “crescente transformação das energias emancipatórias em energias regulatórias”. Assinala, ainda, o mencionado autor
que como avaliador ou interventor, o Estado costuma praticar uma avaliação predominantemente controladora e organizadora
de suas políticas de distribuição de recursos – diretamente, sob a forma de orçamentos, indiretamente, por meio de
premiações e incentivos –, hierarquização institucional com base em resultados de testes de rendimentos e quantificação de
produtos, (re)credenciamentos de cursos e acreditation. Em geral, como bem sugere Santos (2000), são avaliações externas,
somativas, orientadas para o exame dos resultados, realizadas ex post e seguem prioritariamente os paradigmas objetivistas e
quantitativistas.
Mesmo o SINAES tendo sido concebido com base em uma avaliação emancipatória parece que em sua
materialização algumas características têm se afastado de alguns de seus princípios. Nesse sentido, a ponderação formulada
por Santos (2000) de que governos, no atual momento, têm transformado energias emancipatórias e em mecanismos de
regulação merece atenção.
Em relação ao SINAES destaca-se que ele foi inicialmente instituído por meio de Medida Provisória, o que não
permitiu um debate mais consistente de suas bases conceituais no âmbito do Congresso Nacional, embora tenha havido uma
discussão mais ampla com setores acadêmicos e da sociedade civil organizada. Apesar da insistente argumentação do
governo de que o SINAES representaria um rompimento com a avaliação de caráter meritocrático, observa-se que, na prática,
persistem mecanismos que não se configuram como tal. Em muitos casos verifica-se continuidade com a política vigente na
década anterior (antes de 2003) na medida em que a avaliação, em muitos casos, tem sido utilizada para conformar o sistema
educacional aos preceitos utilitaristas da política governamental para a educação superior.
A CONAES tanto em sua constituição (com ampla maioria de representantes direto do governo) quanto em suas
atribuições representa uma enorme centralização de poder na medida em que tem a função de controlar todas as ações do

28
SINAES e tem a última palavra sobre o processo avaliativo, expressando dessa forma um excesso de poder na definição da
vida das IES.
No SINAES apesar das suas bases conceituais enfatizarem pressupostos democráticos em sua operacionalização
apresenta-se fortemente centralizado, refletindo, desse modo, o papel destinado ao Estado brasileiro no atual contexto das
reformas neoliberais, em que esse ente passa a assumir as características de Estado avaliador e regulador das ações na esfera
social de forma centralizada, desconcentrando, para o nível local, a execução das ações concebidas no nível central. A
autonomia universitária nesse processo de avaliação é pouco considerada, visto que a própria avaliação interna das IES (auto-
avaliação) é normatizada pelo MEC que determina todos os mecanismos a serem adotados. Ademais, na norma que
regulamenta o SINAES fica determinado que a Comissão Própria de Avaliação deve atuar com autonomia em relação aos
conselhos e aos demais órgãos colegiados existentes na instituição de educação superior, mas deverão seguir as normas
estabelecidas externamente pelo SINAES/CONAES.
Outro aspecto que merece realce diz respeito à forte tendência, na execução do SINAES, da elaboração de ranques,
procedimento bastante criticado em relação ao modelo anterior. Ademais, a promessa do MEC de não divulgar dados de fases
do processo de avaliação de forma isolada não foi cumprida. Isso ocorreu logo no início quando foram publicados
isoladamente os resultados do primeiro ENADE, realizado em 2004. Ressalta-se, inclusive, que o SINAES havia introduzido,
pela primeira vez no País, o caráter integrador à avaliação da educação superior, na mediada em que propunha uma
modalidade avaliativa que articulava avaliação institucional (auto-avaliação e avaliação externa), avaliação dos cursos de
graduação e avaliação do desempenho dos estudantes. O resultado da avaliação da instituição de ensino superior deveria ser,
portanto, a síntese integradora desses vários ângulos considerados na avaliação.
Um dado publicado isoladamente se constitui um recorte da realidade institucional e não a realidade da global da
instituição. Com essa iniciativa da divulgação de um dado isolado de uma das modalidades da avaliação (ENADE), os
princípios da globalidade e da integração tão evidenciado nas bases conceituais do documento da CEA (INEP/MEC, 2004)
foram desconsiderados. Para assegurar a materialização dessa base conceitual, o MEC precisaria, na operacionalização do
SINAES, assegurar uma visão integradora, abrangente, sistemática e participativa de avaliação. De certa forma tem-se
observado que o ENADE tem assumido maior destaque no conjunto do processo de avaliação do SINAES, tendo inclusive,
sido utilizados como forma de ranquear as instituições.
Por último, cabe evidenciar que o SINAES apesar de seus limites (certo distanciamento entre as bases conceituais e
as estratégias de implementação) tem contribuído para iniciar uma cultura de avaliação no âmbito das IES que podem a partir
de sua implementação buscar superar as fragilidades e construir mecanismos avaliativos de caráter educativo e que venham a
se configurarem como indutores de política e não apenas como elementos utilitaristas de controle e regulação.

3 A avaliação do sistema de ensino superior português: evolução e tendências


Portugal desenvolve no início da década de 90, por iniciativa do Conselho de Reitores das Universidades
Portuguesas, e numa lógica de “resultados antecipados” (Neave, 1996), um sistema nacional de avaliação da qualidade do
ensino. A Fundação das Universidades Portuguesas foi a primeira entidade a ser reconhecida como representativa das
universidades públicas e da Universidade Católica, através da realização de um protocolo em Junho de 1995 entre o
Ministério da Educação, o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas e a Fundação. Em Dezembro de 1996 e em
1999 são reconhecidas, respectivamente, como entidade representativa do ensino politécnico público e do ensino superior
privado, a Associação dos Institutos Superiores Politécnicos Portugueses e a Associação Portuguesa de Ensino Superior
Privado. Esta última deverá promover a constituição de dois Conselhos de Avaliação, um para o ensino universitário e outro
para o ensino superior politécnico. O sistema de avaliação e acompanhamento das instituições do ensino superior português é
criado pela Lei da Avaliação do Ensino Superior (Lei 38/94 de 21.11), na recta final do XII Governo, tendo por base a
proposta apresentada, em 1993, pelo CRUP ao Ministério da Educação.
Em 1998 é criado o Conselho Nacional de Avaliação de Ensino Superior (CNAVES) para coordenar todo o
processo6.
O processo de avaliação dos cursos de graduação adoptado implicava uma auto-avaliação, seguida de uma
avaliação externa, realizada por uma comissão de peritos independentes, sendo produzido no final um relatório de avaliação
externa para cada curso e um relatório global para cada conjunto de cursos da mesma área científica. Foram realizados dois
ciclos de avaliações, o primeiro entre 1995 e 2000, abrangendo apenas as universidades públicas, e o segundo entre 2000 e
2005, envolvendo também o ensino politécnico e as instituições privadas.
O sistema de avaliação aparece claramente como outro dos pilares do Estado avaliador emergente. A criação de
organismos intermediários e o princípio da contratualização expressam essa nova forma de regulação estatal. O princípio da
contratualização, consubstanciado na celebração de protocolos com as entidades representativas para o processo de avaliação,
e na possibilidade de estabelecer contratos programa e de desenvolvimento com as instituições escolares, é considerado, no
texto legal que cria o Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, como o método estratégico que melhor

6
Para uma análise mais detalhada veja-se Seixas (2003)

29
corresponde à moderna sociedade de informação, permitindo uma mais rápida resposta às mudanças sociais e às novas
exigências da sociedade (Seixas, 2003).
Paralelamente ao sistema de avaliação da qualidade de ensino, iniciou-se em 1994 uma avaliação da qualidade das
unidades de investigação. O modelo de avaliação da investigação assenta desde 1996 na elaboração de um relatório de
avaliação trienal pelas unidades de investigação, contemplando as actividades realizadas e uma proposta de actividades a
realizar, uma avaliação documental e visita à unidade ou a sua apresentação aos painéis de avaliação, constituídos
essencialmente por cientistas estrangeiros, por investigadores da unidade. Os resultados da avaliação são claramente
traduzidos numa escala de cinco níveis (mau, regular, bom, muito bom e excelente), e determinam o financiamento
(montante) da unidade.
Em 2003 foi publicada uma nova lei prevendo o estabelecimento de uma acreditação académica mas tal nunca
chegou a ser implementado.
Embora o sistema de avaliação salientasse, a nível retórico, a dimensão da melhoria da qualidade face à dimensão
da prestação de contas (accountability), é visível a crescente importância atribuída a esta última dimensão. Exemplo claro
dessa tendência é a introdução, no 2º ciclo de avaliações, de uma classificação dos cursos em 14 campos, numa escala de A a
E. Diga-se, contudo que os relatórios produzidos não facilitavam a elaboração de comparações entre os vários cursos
avaliados. Note-se, também, que não era feita uma relação directa entre os resultados da avaliação e o financiamento.
Contudo, é estabelecida uma ligação entre os dois mecanismos ao ser considerado como efeito da avaliação a possibilidade
de um reforço do financiamento público, o apoio a actividades de investigação científica, ou a celebração de planos de
desenvolvimento com vista à correcção das disfunções e das disparidades encontradas. Também ficam previstas sanções em
caso de avaliações negativas sucessivas ou de não seguimento, por parte das instituições avaliadas, das recomendações
formuladas.
A questão da internacionalização/europeização do ensino superior, com a implementação do processo de Bolonha,
associada à criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior permite-nos compreender a evolução mais recente no sistema
de avaliação do ensino em Portugal. Em 2005, traduzindo a crescente importância da avaliação como instrumento público da
regulação das políticas públicas e da regulação transnacional, o Governo solicita à OCDE uma avaliação do sistema de
ensino superior português e acorda com a European University Association (EUA), em colaboração com a EURASHE
(European Association of Institutions in Higher Education) o desenvolvimento de um programa da avaliação institucional,
lançando em 2006 e 2007 concursos para o co-financiamento do processo a instituições de ensino superior público e privado.
O novo Ministro da Ciência e Tecnologia e do Ensino Superior solicitou, ainda, à European Association For Quality
Assurance in Higher (ENQA) uma avaliação das práticas de garantia de qualidade existentes em Portugal e recomendações
para o futuro, tendo em conta os Standards and Guidelines for Quality Assurance in The European Higher Education Área
(ESG) apresentados em 2005, por esta associação, a pedido dos ministros signatários da Declaração de Bolonha.
Embora conscientes do facto da organização e os procedimentos do sistema de garantia da qualidade desenvolvidos
pelo CNAVES não terem tido por base os ESG, dada a sua posterior adopção (2005), a avaliação feita pela ENQA tem por
base a conformidade com aqueles, justificada pela falta de transparência e comparabilidade do processo se os ESG não
fossem tidos como referência. São salientados como principais pontos fortes do sistema: 1) o estabelecimento de uma cultura
de auto-avaliação nas IES, permitindo o desenvolvimento de sistemas internos de garantia da qualidade enfatizando a
dimensão da melhoria da qualidade; 2) os métodos utilizados, de acordo com outros modelos europeus , incluindo a auto-
avaliação, a avaliação externa, visita à IES e publicação de um relatório; 3) a representação de todos os subsectores do
sistema de ensino superior português (público/privado e universidades/politécnicos), incluindo todas as IES. Como pontos
fracos do sistema são referidos aspectos como: 1) a não independência da agência de avaliação, dada a natureza
representativa do CNAVES e dos conselhos de avaliação, o que contraria claramente os ESG; 2) a falta de consistência e de
eficiência operacional dada a complexidade da organização do sistema, agravada pela falta de recursos, traduzida no grau
limitado de consistência dos processos e dos próprios relatórios elaborados pelas equipas de peritos; 3) a ausência de
consequências e de seguimento (follow-up) das avaliações, não justificada totalmente pela passividade do Estado e das IES,
mas pela própria acção do CNAVES ao não realizar visitas posteriores às IES e aceitando relatórios formulados de maneira
vaga, sem conclusões e recomendações claras, obstaculizando o seguimento do processo; e 4) o apoio nos peritos nacionais,
facto que, dado o seu número limitado e familiaridade, coloca em causa a necessária independência e objectividade da
avaliação. Diga-se que a maioria destas limitações tinha sido já referida pela própria CNAVES no relatório de auto-avaliação,
conforme reconhece a ENQA (ENQA, 2006).
Durante o processo de avaliação pela ENQA do sistema de avaliação português, o Ministro anunciou o fim do
sistema de avaliação existente e a sua substituição por um sistema de acreditação, a implementar em 2007, seguindo a
tendência internacional de desenvolvimento dos sistemas de garantia da qualidade. Ainda em 2006 são aprovadas normas de
acreditação (Decreto-Lei n.º 74/2006), e em 2007 é aprovado o novo regime jurídico de avaliação do ensino superior (Lei
nº38/2007) e criada a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (decreto-lei nº 369/2007). No entanto só em
Maio de 2008 o Governo designa o Conselho de Curadores, não existindo desde 2005 qualquer processo de avaliação externa
nacional. Saliente-se, contudo, o desenvolvimento interno de sistemas de garantia de qualidade do ensino pelas próprias IES,
a realização de avaliações externas por agências internacionais de acreditação por iniciativa e financiadas pelas próprias
instituições, e a realização, também por iniciativa das IES, mas em regime de co-financiamento com o Estado, de avaliações
institucionais a cargo da EUA, em colaboração com a EURASHE, conforme já foi referido.

30
O sistema de garantia da qualidade vertido nos novos dispositivos legais tem em consideração as recomendações
feitas pela ENQA relativas à organização, métodos e processos de um novo sistema de avaliação e de acreditação,
nomeadamente a sua conformidade com os ESG, bem como as principais recomendações feitas pelo OCDE no âmbito do
exame realizado ao sistema de ensino superior português (OCDE, 2006). A nova entidade responsável pela implementação
do sistema de avaliação ( a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior) é agora uma fundação de direito
privado, indo de encontro ao princípio de independência entre avaliadores e avaliados. O sistema mantem, de acordo com as
recomendações da ENQA, o seu carácter nacional, implicando a avaliação periódica e obrigatória de todas os cursos e
instituições, de acordo com os princípios da universalidade, obrigatoriedade e periodicidade. A avaliação comporta, também,
uma forma de auto-avaliação e uma forma de avaliação externa, realizada pela Agência de Avaliação e Acreditação do
Ensino Superior), sendo esta última obrigatória e base do processo de acreditação das instituições e dos seus cursos.
Respondendo a uma das críticas formuladas no relatório da ENQA, a avaliação externa integra obrigatoriamente a
participação de peritos de instituições estrangeiras ou internacionais.
No dispositivo legal são apresentados como objectivos da avaliação da qualidade “a) proporcionar a melhoria da
qualidade das instituições de ensino superior; b) a prestação de informação fundamentada à sociedade sobre o desempenho
das instituições de ensino superior; (e), c) o desenvolvimento de uma cultura institucional interna de garantia de qualidade”.
O novo sistema de avaliação tem por objecto a qualidade do desempenho das IES, avaliada através de parâmetros
relacionados com a actuação e com os resultados decorrentes da actividade das IES. Saliente-se o facto de a “estratégia
adoptada para garantir a qualidade do ensino e a forma como a mesma é concretizada” ser apresentada como um dos
parâmetros de avaliação da qualidade. Relativamente aos parâmetros de avaliação da qualidade relacionados com os
resultados decorrentes da actividade das IES destaque-se a referência a inserção dos diplomas no mercado de trabalho, a
integração em projectos e parcerias nacionais e internacionais e a captação de receitas próprias através da actividade
desenvolvida.
Traduzindo a importância crescente da função pública da avaliação externa de prestação de contas e de informação
no novo sistema de avaliação, é estabelecido que os resultados da avaliação externa devem ser expressos numa classificação
qualitativa que permita ordenar e comparar o objecto de avaliação, permitindo assim a hierarquização relativa (rankings) dos
diferentes IES, unidades orgânicas ou cursos. Os resultados da avaliação externa estarão, também, obrigatoriamente, na base
da fundamentação das decisões sobre a acreditação das IES e dos seus cursos, e nos processos de contratualização entre
aquelas e o Estado visando o seu financiamento.
Com a publicação de novos dispositivos legais torna-se claramente visível a entrada numa 2ª fase no processo de
avaliação da qualidade do ensino em Portugal, com o desenvolvimento da avaliação institucional, uma maior ênfase
conferida à comparabilidade dos resultados da avaliação e uma clarificação das consequências da avaliação para o
funcionamento e financiamento dos cursos e IES. O novo sistema de garantia da qualidade, considerado fundamental para o
processo de criação do Espaço Europeu de Ensino Superior, traduz o aumento da regulação transnacional com o crescente
peso de actores internacionais na regulação do ensino superior. Nesta nova fase parece ser claramente mais reduzido o papel
dinamizador das instituições no desenvolvimento do sistema de avaliação.

4 Algumas considerações finais


A edificação de novos padrões de avalição para o ensino superior situa-se no âmbito de novas demandas
contextuias e apresenta-se como uma estratégia dos governos na busca de construir níveis crescente de qualidade para esse
nível de ensino. Como já foi referido anteriormente são vários os factores explicativos que atribuem ao Estado um papel
importante no processo de regulação e avaliação das políticas públicas. Em relação ao ensino superior a avaliação passa a ser
considerada como um instrumento fundamental de sua regulação, buscando adequá-lo aos novos requerimentos sociais.
Evidencia-se que esses novos modelos avaliativos situam-se entre as estratégias adoptadas pelos países para
reconfigurar o ensino superior de forma e torná-lo mais adequado às leis do mercado educacional. Nesse momento o Estado,
reorganizado a partir das orientações neoliberais, assume mais claramente a sua feição de regulação e, portanto, de avaliador.
Essa é uma tendência internacional e se expressa, embora com algumas particularidades, com bastante evidência nos dois
países considerados neste estudo (Brasil e Portugal). Dstaca-se que na Europa a dimensão externa da avaliação torna-se mais
visível a partir da década de 1980, com o desenvolvimento de sistemas de avaliação no Reino Unido, na França e na Holanda.
Na esteira destes países, Portugal desenvolve, no início da década de 1990, por iniciativa do Conselho de Reitores das
Universidades Portuguesas, e numa lógica de “resultados antecipados” um sistema nacional de avaliação da qualidade do
ensino. No Brasil, também na década de 1990 se institui uma sistemática de avaliação do ensino superior centrado em uma
concepção de avaliação essencialmente vinculada ao controle de resultados e do valor de mercado, como visão regulatória.
Embora já no início do século XXI o País tenha proposto um novo sistema de avaliação que pretende considerá-la em uma
perspectiva formativa/emancipatória, observa-se que até o momento de sua implementação pouco se tem avançado nessa
direção. Os mecanismos adoptados e os resultados da avaliação estão mais próximos de visão classificatória e, portanto, mais
preocupada com a regulação do que com definição de políticas para a melhoria desse nível de ensino.
O sistema de avaliação concebido nos dois países se apresenta claramente como um dos pilares do Estado avaliador
emergente. Em Portugal a criação de organismos intermediários e o princípio da contratualização expressam essa nova forma
de regulação estatal. O princípio da contratualização, consubstanciado na celebração de protocolos com as entidades

31
representativas para o processo de avaliação, e na possibilidade de estabelecer contratos programa e de desenvolvimento com
as instituições escolares, é considerado, no texto legal que cria o Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior, como
o método estratégico que melhor corresponde à moderna sociedade de informação, permitindo uma resposta mais rápida às
mudanças sociais e às novas exigências da sociedade.
No Brasil a Lei que cria o SINAES estabelece que os resultados da avaliação considerados insatisfatórios ensejarão
a celebração de protocolo de compromisso, a ser firmado entre a instituição da educação superior avaliada e o Ministério da
Educação. Tal protocolo deve prever as condições e os compromissos da instituição para redimensionar a situação de
fragilidade evidenciada na avaliação. Caso não seja cumprido o especificado no protocolo de compromisso o MEC pode
aplicar uma série de penalidades dentre as quais destacam-se: a suspensão temporária de abertura de processo seletivo par
cursos de graduação, a cassação de autorização de funcionamento da instituição ou do reconhecimento dos cursos por ela
oferecidos, a advertência, suspensão ou perda de mandato do dirigente responsável pela ação não executada, no caso de
instituições públicas de ensino superior. Ficou determinado, também, que cada instituição de ensino superior, pública ou
privada constituiria uma Comissão Própria de Avaliação – CPA, com as atribuições de condução dos processos de avaliação
interna da instituição, sistematização e de prestação das informações solicitadas pelo INEP.
Parece que em ambos os casos guardadas as suas especificidades, observa-se a emergência de um sistema de
avaliação fortemente centrado no controle de resultados e com forte foco na regulação para atender aos novos contornos das
políticas para o ensino superior.

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32
Insucesso e Abandono Escolares no Ensino Superior - Uma Analise por Coortes

Alfredo Campos
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
alfredo@ces.uc.pt

Jose Mendes
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
jomendes@ces.uc.pt

Ana Seixas
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
anaseixas@fpce.uc.pt

Claudino Ferreira
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
claudef@fe.uc.pt

Elisio Estanque
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
estanque@fe.uc.pt

Resumo: Nas sociedades actuais, assistindo-se ao desenvolvimento das estruturas económicas, cada vez mais baseadas no conhecimento, na
ciência e tecnologia, a qualificação da população assume um papel fundamental para o desenvolvimento social e económico. Um vector
essencial no que respeita a qualificação da população, prende-se com o insucesso e abandono escolares, nomeadamente no ensino superior,
que espelharão os sucessos e dificuldades na qualificação dos indivíduos e sua capacidade de participação nas novas economias baseadas no
conhecimento. Esta comunicação pretende dar conta de um dos aspectos trabalhados pelo projecto de investigação “Factores de Sucesso e
Abandono Escolares no Ensino Superior Português, uma Analise Comparativa”, baseado na parceria entre o Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, o Centro de Investigação Social do ISCTE e o SOCIUS da Universidade Técnica de Lisboa. Aborda-se então o
aspecto central da conceptualizaçao e monitorização destes fenómenos, tendo-se verificado a inadequação das actuais mecanismos –
baseados no cálculo somente quantitativo da Taxa de Sobrevivência – patente nas críticas de instituições de ensino e reconhecidas pelo
Estado. Dada a pertinência de adequadamente classificar e avaliar o insucesso e abandono, para melhor intervir, apresenta-se então as
potencialidades de uma análise por coortes, considerando qualitativamente os percursos e desempenhos dos alunos, procedimento utilizado
nomeadamente na Suiça e Islândia. Alem disso, apresentar-se-á igualmente as possibilidades de uma nova equação de cálculo do abandono
escolar, criada no âmbito da investigação, e a sua complementaridade com uma análise por coortes do abandono escolar.

A presente comunicação é fruto de uma das temáticas abordadas pela investigação “Factores de Sucesso e
Abandono Escolar no Ensino Superior Português – Uma Análise Comparativa”, numa parceria entre o Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra, o Centro de Investigação em Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
da Empresa e o SOCIUS da Universidade Técnica de Lisboa, financiada pelo POCI 2010.
Tal como os demais dados relativos ao Ensino Superior em Portugal, os dados do insucesso escolar são recolhidos e
tratados pelo Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI), antigo Observatório da
Ciência e Ensino Superior (OCES), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
Para o cálculo do sucesso escolar, o GPEARI/OCES recorre ao conceito de “taxa de sobrevivência” utilizado pela
OCDE, do seguinte modo definida:
“A taxa de sobrevivência ao nível terciário é definida como a proporção de ingressados para esse nível de
qualificação, que completa com sucesso a primeira qualificação. É calculada como o rácio entre o número de estudantes que
termina a graduação inicial e o número de ingressados para esse nível n anos antes, sendo n o número de anos de estudo a
tempo inteiro requeridos para completar esse grau1”. (OCES, 2004, p. 2)
Deste modo, a taxa de insucesso escolar será o inverso da taxa de sobrevivência. Em termos metodológicos esta
abordagem pretende, de um modo unicamente quantitativo, analisar em termos do seu sucesso ou insucesso, uma
determinada coorte de alunos. No entanto, sendo uma abordagem estritamente quantitativa, em rigor apenas será eficaz na
medida em que se adeqúe a um conjunto de pressupostos metodológicos. Assim, a utilização desta conceptualização e

1
No original: «Survival rate at the tertiary level is defined as the proportion of new entrants to the specified level of education who successfully complete a first
qualification. It is calculated as the ratio of the number of students who are awarded an initial degree to the number of new entrants to the level n years before, n
being the number of years of full-time study required to complete the degree. »

33
metodologia de cálculo para o insucesso escolar, apresenta um conjunto de requisitos estabelecidos pela OCDE e, portanto,
um correspondente conjunto de insuficiências no caso português, reconhecidas pelo próprio GPEARI/OCES2.
Ainda assim, sendo esta actualmente a metodologia oficialmente utilizada, será útil analisar alguns resultados no
que respeita ao insucesso escolar e sua evolução, sendo aqui examinada a sua evolução geral para o conjunto das instituições
do Ensino Superior público português, nos anos de 2002 a 2006, e em maior pormenor para as instituições observadas nesta
investigação e para os cursos presentes na nossa amostra3. Procurar-se-á então demonstrar desde já alguns aspectos
importantes no que respeita ao insucesso escolar e apresentando algumas indicações ilustrativas das insuficiências desta
metodologia, sendo estas e as possíveis alternativas abordadas posteriormente, no próximo capítulo.

1) O insucesso escolar nas universidades públicas portuguesas


A observação do seguinte gráfico, no qual se pode observar a média do insucesso escolar, para os anos de 2002 a
2006, de todas as universidades públicas em Portugal, permitirá desde já avançar uma importante conclusão, ainda que de
modo algum inesperada. Assim, da observação do gráfico podemos concluir, à partida, da heterogeneidade de situações e
graus variáveis de insucesso escolar em função das instituições em questão.

50,00% 47,55% 46,75%


39,40%40,18%
40,00% 36,33% 37,58% 41,53%
39,95%
38,58%
30,00% 29,03% 29,90% 31,58%
26,05%
20,00% 23,18%

10,00%

0,00%

Universidade de Coimbra Universidade de Lisboa Universidade Nova de Lisboa


Universidade Técnica de Lisboa Universidade do Porto ISCTE
Universidade do Algarve Universidade dos Açores Universidade de Aveiro
Universidade da Beira Interior Universidade de Évora Universidade da Madeira
Universidade do Minho U. Trás-os-Montes e Alto Douro
Gráfico 1: Insucesso Escolar nas Universidades Portuguesas, de 2002 a 2006

Deste modo, verificam-se valores correspondentes a um insucesso escolar de quase metade dos alunos,
nomeadamente na Universidade dos Açores, com 47,55%, e na Universidade da Beira Interior, com 46,75%. No pólo oposto,
verifica-se que as instituições com menor insucesso médio para este período foram a Universidade do Porto, com 23,18%, e a
Universidade de Évora com 26,05%. Registe-se, no entanto, que se para 10 das 12 instituições o insucesso escolar dos seus
alunos se situa acima dos 30%, a média para o total destas é de 36,25%, o que se poderá considerar elevado, significando
que, em média, um pouco mais de um terço dos alunos nas universidades portuguesas não termina as suas licenciaturas no
tempo previsto pela sua duração.
Para além disso, no que respeita a factores como a antiguidade ou interioridade/litoralidade e insularidade das
instituições, é interessante também notar que, por um lado, não se verifica uma dicotomia nos graus de insucesso entre as
instituições mais antigas e mais recentes, por exemplo apresentando a Universidade do Porto e a Universidade de Aveiro
níveis de insucesso médio respectivamente de 23,18% e 29,90%, ou a Universidade de Lisboa com 39,40% e a Universidade
do Algarve com 38,58%. Pelo contrário, aparentemente verificar-se-á alguma dicotomia entre as universidades do litoral e do
interior e ilhas, sendo que a título de exemplo as Universidade de Aveiro e do Minho registam um insucesso médio de
29,90% e 26,05%, enquanto as universidades de Évora e Beira Interior apresentam um insucesso de 39,95% e 46,75%
respectivamente, e Açores e Madeira 47,55% e 41,53%.

1.2) O insucesso escolar em função das áreas científicas, em cada instituição


Tendo-se já analisado as especificidades do insucesso escolar em função das instituições universitárias, será agora
relevante proceder a uma análise nos mesmos moldes, em função das áreas científicas abordadas nesta investigação:

2
Note-se que, em função destes requisitos, e do seu não cumprimento, um conjunto de países na OCDE não utiliza a taxa de insucesso mas sim a análise por
coortes por nós proposta, como a Suíça e a Islândia, sendo que a Itália suspendeu a sua utilização (OCDE, 2007, pp. 41-44).
3
Todos os dados utilizados são recolhidos pelo GPEARI anualmente, tendo aqui sido utilizados os dados relativos ao número de inscritos, inscritos no primeiro
ano pela primeira vez, diplomados e de insucesso escolar, para os anos e licenciaturas descritas ao longo desta exposição.
engenharia, gestão, arquitectura, ciências da saúde e comunicação4, na Universidade de Coimbra, Universidade Técnica de
Lisboa e ISCTE.
Atendendo à evolução do insucesso para as várias áreas científicas da Universidade de Coimbra, no período entre
2002 e 2006, desde já se poderão adiantar algumas pertinentes conclusões. Deste modo, poderemos constatar que, apesar das
variações ao longo dos anos considerados, se verificam tendências de maior e menor insucesso em função das áreas
científicas, sendo que nomeadamente a área de gestão apresenta sempre um insucesso mais elevado que a Universidade como
um todo, além de que igualmente as engenharias e a arquitectura apresentam graus de insucesso consideravelmente elevados,
ainda que no último caso também bastante variável. Pelo contrário, a área com níveis de insucesso mais reduzidos, as
ciências da saúde, apresenta resultados na verdade paradoxais, demonstrando graus de insucesso inclusive negativos.
Ora, poder-se-ão delinear outras indicações quanto à inadequação da metodologia utilizada para avaliar o insucesso
escolar no ensino superior, nomeadamente observando a sua evolução nas áreas de ciências da comunicação e saúde. Deste
modo, por um lado, tal como previamente referido no que respeita à profunda variabilidade do insucesso escolar em algumas
instituições do ensino universitário, no caso das ciências da comunicação na Universidade de Coimbra, a ainda maior
variação, atingindo no período de quatro anos, graus de insucesso tão díspares como 96,83% e 16,28%, apontará para efeitos
das insuficiências da metodologia aplicada, não podendo ser certamente explicadas por transformações de ano para ano na
instituição ou nos alunos. Por outro lado, os níveis negativos de insucesso escolar nas ciências da saúde, traduzem um
número de diplomados em determinado ano, superior ao número de ingressos n anos antes, demonstrando portanto a
ineficácia desta metodologia puramente quantitativa avaliar o insucesso de determinada coorte de alunos. Finalmente,
importa ainda notar que, se a Universidade de Coimbra não se incluía no grupo de instituições às quais, devido à
variabilidade dos níveis de insucesso, a utilização da actual taxa de insucesso não será adequada, de modo algum tal
significará que o mesmo se aplica às suas áreas científicas.
Observando-se agora a evolução do insucesso escolar, nas áreas científicas consideradas, na Universidade Técnica
de Lisboa, poder-se-á corroborar as análises apresentadas no que respeita à Universidade de Coimbra. Deste modo, apesar da
sua considerável variabilidade, ainda que menor que a registada na Universidade de Coimbra, também na Universidade
Técnica se verificam níveis de insucesso em geral mais elevados para a área da gestão e das ciências da comunicação e, em
menor medida, também das engenharias. No entanto, inversamente à situação encontrada para a Universidade de Coimbra,
nesta instituição encontramos a área da arquitectura com o mais reduzido nível de insucesso, inclusive negativo no ano 2002-
2003, o que apontará para a particularidade antes explanada. Para além disso, as ciências da saúde registam aqui igualmente
um insucesso reduzido, relativamente às demais áreas, embora consideravelmente superior ao verificado na anterior
instituição, o que poderá dever ao facto desta área respeitar à medicina na Universidade de Coimbra e à medicina veterinária
na Universidade Técnica. Finalmente, corroborando a hipótese adiantada aquando da análise da Universidade de Coimbra,
também neste caso se encontra um nível praticamente constante de insucesso escolar para o todo da instituição, no período
considerado, embora tal se verifique a par de uma razoável variabilidade do insucesso nas várias áreas, sobretudo nas ciências
da comunicação, na gestão e na arquitectura.
Finalmente, a análise relativa à evolução do insucesso escolar nas áreas científicas contempladas relativamente ao
ISCTE, apenas a arquitectura, a engenharia e a gestão, novamente verificamos níveis de insucesso bastante elevados para a
engenharia, à semelhança das instituições anteriormente abordadas. Pelo contrário, verificamos neste período níveis de
insucesso na área da gestão consideravelmente inferiores na área da gestão, sendo que ainda assim será relevante notar o
crescendo da sua evolução neste período, inclusive terminando em 2005-2006 com um grau de insucesso superior ao das
demais instituições abordadas. Do mesmo modo, se na Universidade de Coimbra a arquitectura apresentava patamares de
insucesso intermédios, face às restantes áreas, e na Universidade Técnica constituía a área científica de menor insucesso, pelo
contrário no ISCTE a arquitectura apresenta níveis muito altos de insucesso, não somente relativamente ao todo da instituição
como comparativamente aos valores do insucesso para a mesma área, nas demais instituições.

1.3) Padrões de insucesso escolar em função das áreas científicas, entre instituições
Foi já anteriormente analisado as formas como o insucesso escolar no ensino superior varia em função das
instituições universitárias, não sendo aparentemente possível estabelecer um padrão entre as mais antigas e recentes
universidades, tendo-se pelo contrário traçado um mapa de insucesso escolar mais agravado no que respeita às instituições de
ensino localizadas no interior do país e nas ilhas. Para além disto, foram igualmente abordadas as especificidades do
insucesso escolar relativamente às áreas científicas, tendo-se registado algumas tendências nomeadamente para um maior
insucesso nas áreas de gestão, engenharia e ciências da comunicação, e menor nas ciências da saúde, com a arquitectura
apresentando uma tendência mais variável.
No entanto notou-se que, havendo variações nos níveis de insucesso conforme as instituições e as áreas científicas,
de igual modo se verificam diferenças nas áreas em função da instituição, não sendo possível mapear hierarquias inequívocas
de insucesso no que respeita às áreas, transversais às instituições abordadas nesta investigação. Deste modo, importará agora
concluir analisando precisamente que variações se poderão encontrar para as áreas em questão, combinando essa análise
simultaneamente contextualizando-as com cada instituição universitária em causa.

4
Recorde-se que, para cada instituição presente na amostra, as licenciaturas enquadradas em cada área científica não serão exactamente as mesmas, nem incluirão
todas as licenciaturas relativas a essas áreas.

35
80,00%
62,28% 62,57%
60,00% 48,46%
35,08% 58,01%
40,00% 35,35% 41,01%
37,94%
20,00% 20,05%
9,45% 22,98% 26,18%
0,00%
-20,00%
-6,39%
Arquitectura (UC) Arquitectura (UT) Arquitectura (ISCTE)
Engenharia (UC) Engenharia (UT) Engenharia (ISCTE)
C. da Saúde (UC) C. da Saúde (UT) C. da Comunicação (UC)
C. da Comunicação (UT) Gestão (UC) Gestão (UT)
Gestão (ISCTE)
Gráfico 2: Insucesso Escolar médio, por áreas e instituições, de 2002 a 2006

Da observação do precedente gráfico, no qual se expõe um quadro estático do insucesso escolar para as áreas
científicas consideradas nas várias instituições, a partir da média do insucesso nos vários anos no período considerado,
constatar-se-á então que, existindo distinções entre as instituições e entre as áreas científicas, os padrões de insucesso não
respeitarão simplesmente a determinadas instituições ou áreas, antes ao próprio par área/instituição.
Deste modo, no que respeita às instituições, poder-se-á considerar a Universidade Técnica como, globalmente, a
instituição com níveis de insucesso mais reduzidos: tal não se verifica no entanto para a área de gestão e para as ciências da
saúde, embora neste último caso importe recordar o anteriormente exposto quanto ao valor negativo do insucesso para a
medicina na Universidade de Coimbra e às possíveis diferenças desta para com a medicina veterinária. Para além disto, se as
engenharias atingem patamares de insucesso consideráveis, tal aplicar-se-á sobretudo no que respeita à Universidade de
Coimbra e ISCTE, apresentando a Universidade Técnica valores mais reduzidos, o mesmo se aplicando à área de
arquitectura, área que naquela instituição atinge um reduzido nível de insucesso, por oposição ao ISCTE.
Concluindo, verifica-se então que, existindo diferenciações das instituições no que respeita ao insucesso escolar,
bem como relativamente às áreas científicas, o certo será que tais diferenciações farão essencialmente sentido à luz dos pares
área/instituição, não sendo possível hierarquizar em definitivo uns ou outros. Assim, o que se definirá será não padrões de
insucesso escolar no ensino superior em função de instituições ou áreas, mas sim mapas específicos de insucesso escolar em
função das áreas de cada instituição. Importará, assim, compreender que factores intrínsecos a cada instituição propiciarão
maiores ou menores graus de insucesso para cada uma das áreas.
No entanto, como foi sendo assinalado ao longo do capítulo, vários aspectos foram fornecendo indicações para as
insuficiências desta metodologia, nomeadamente as variações acentuadas dos níveis de insucesso, em algumas áreas e
instituições, bem como a existência de valores negativos de insucesso, sobretudo na área das ciências da saúde na
Universidade de Coimbra. Será então das diversas insuficiências desta metodologia e das possíveis alternativas que tratará o
próximo capítulo.

2) Uma abordagem às insuficiências da metodologia oficial


Esta análise preliminar dos dados disponíveis a partir do GPEARI/OCES para o insucesso, permitiu já constatar
algumas das suas lacunas e insuficiências, no que à metodologia e operacionalização diz respeito. O próprio GPEARI
reconhece diversas fragilidades da metodologia da taxa de insucesso, de resto assinalando-as anos consecutivos, embora se
desconheçam esforços para a alterar ou melhorar (GPEARI, 2008) (OCES, 2004; OCES, 2006; OCES, 2007).
Este método supõe que os cursos tenham atingido já alguma estabilidade, sendo aconselhável um número de anos
de funcionamento igual ao dobro da duração do curso.
Refira-se ainda que, para que este método seja mais fidedigno, nesse período de tempo os ingressos deverão ser
semelhantes.
Dadas as transformações que se têm observado no sistema de ensino superior português, nomeadamente no que se
refere à criação de novos cursos, mudanças de grau, designação e/ou duração dos mesmos, este pressuposto metodológico
não está presente em muitos casos pelo que os resultados são apresentados com alguma reserva.
A existência de um trabalho de fim de curso e sua arguição, em alguns casos, provoca que o ciclo de licenciatura
seja concluído em um número de anos muito superior à duração “normal” prevista.
Além disso, as críticas apontadas decorrem, por outro lado, do tratamento puramente quantitativo do insucesso
escolar, a tal se somando a não consideração de diversos fenómenos importantes, seja em termos quantitativos, na medida em
que influenciam os números do insucesso, seja também em termos qualitativos, na medida em que constituem importantes
processos para a compreensão da realidade do Ensino Superior.
No que respeita às ressalvas apresentadas pelo GPEARI, constata-se que o próprio considera que a fórmula
utilizada para o cálculo do insucesso é, de acordo com os pontos 1 e 2, de difícil aplicabilidade em Portugal, dadas as
transformações no sistema de Ensino Superior, as flutuações nos ingressos, etc, sem que no entanto se tenham vindo a
procurar outros meios de definir e calcular o insucesso escolar.
Relativamente às críticas e sugestões apresentadas pelas instituições, além das coincidentes com as já referidas pelo
GPEARI, salienta-se:
O facto de o método de cálculo ser altamente influenciável por (frequentes) aumentos e decréscimos nos ingressos;
Os resultados são adulteráveis por fenómenos de mobilidade como as mudanças e transferências de curso, sendo
que estas elevam o insucesso quando se trata de saídas e reduzem-no no caso de entradas;
Igualmente, a existência de estágios, projectos ou dissertações, finalizadas após a recolha por parte do GPEARI,
dos dados relativos aos diplomados, inflaciona os níveis de insucesso;
Embora a própria definição da OCDE saliente o estudo a tempo inteiro, a existência de trabalhadores-estudantes
não é considerada pela fórmula, sendo que no entanto se poderão considerar como um caso específico de insucesso;
Tal como as transferências e mudanças para o exterior, também o abandono escolar é cumulativamente considerado
como insucesso para efeitos do uso desta fórmula;

Face a este conjunto de questões, poder-se-á ainda tecer um conjunto de considerações. A fórmula de cálculo
utilizada, ao tratar o insucesso de forma puramente quantitativa, comparando inscritos, diplomados ou outras variáveis
semelhantes, introduz desvios que, na verdade, levam a que não demonstre de facto o insucesso num dado curso. Deste
modo, como visto, todo um conjunto de aspectos são negligenciados, levando a que se obtenha níveis de insucesso
completamente díspares em anos consecutivos para as mesmas licenciaturas, por vezes muito altos, outras valores negativos
muito reduzidos.
Assim sendo, efectivamente a equação utilizada actualmente, fornece sobretudo uma avaliação das flutuações de
entradas e saídas dos cursos, só até certo ponto, por si só, relacionável com o insucesso escolar. Deste modo, para que
efectivamente se conheça o insucesso, torna-se fundamental criar uma metodologia que não somente o quantifique, além de
considerar fenómenos como os acima elencados, mas igualmente que considere os próprios alunos. Portanto, que avalie os
percursos das coortes de alunos que entram em cada ano, monitorizando os desempenhos de cada um ano a ano.
Ora, a construção destas coortes de alunos exige a existência de listagens uniformes e detalhadas, que permitam
conhecer todo o percurso dos alunos, de modo a que seja possível a correcta definição das coortes de cada ano. No entanto,
tendo sido realizado, junto das instituições a ser estudadas, um levantamento de um conjunto de dados que possibilitassem,
nomeadamente a reconstituição de coortes, foram encontrados, no entanto, diversos problemas à recolha destes dados, seja
por inexistência dos mesmos nos serviços administrativos, seja por entraves vários à sua disponibilização.

3) Comparação entre Taxas de Insucesso e Insucesso por Coortes, em função das áreas científicas, entre instituições
Observando o seguinte gráfico, relativo à evolução das taxas de insucesso e do insucesso por coortes nas
licenciaturas de Jornalismo na Universidade de Coimbra e Ciências da Comunicação na Universidade Técnica, poderemos
retirar pertinentes informações no que respeita às conclusões antes adiantadas aquando da análise das taxas de insucesso para
estas licenciaturas nestas instituições.
120,00%
96,83%
100,00% 90,77% 85,07% 83,82%
80,00%
61,11%
59,04% 53,62% 51,85%
60,00% 56,60% 44,44% 53,33%
48,33% 36,23% 40,58%
40,00% 55,71% 40,29%
34,57% 40,29%
37,04% 35,89%
20,00% 25,00% 26,92% 23,68%
16,28%
0,00%
1997-1998 1998-1999 1999-2000 2000-2001 2001-2002 2002-2003
Taxa Jornalismo UC Taxa C. Comunicação UTL
Coortes Jornalismo UC Coortes C. Comunicação UTL
Gráfico 3: Comparação entre Taxas de Insucesso e Insucesso por Coortes,nárea de Ciências da Comunicação, de
1997 a 2003

Assim, em consonância com o capítulo anterior, no que respeita ao facto de em algumas licenciaturas os alunos
entregarem os relatórios ou projectos finais após a contabilização dos diplomados por parte do GPEARI, poderemos
equacionar que os muito elevados níveis de insucesso escolar registados na licenciatura em Jornalismo na Universidade de
Coimbra, se ligarão ao facto das entregas de relatórios de estágios se darem após esse período, sendo grande parte dos
finalistas considerados como insucesso, questão esta solucionada através da análise de coortes, assim descendo
consideravelmente os níveis de insucesso nesta licenciatura. Para além disto, regista-se na análise por coortes, no geral, uma
menor variabilidade dos graus de insucesso, ainda que não negligenciável; no entanto se na análise do insucesso com recurso

37
à taxa não seria possível definir se tal se deveria a dificuldades de aplicação se a variações efectivas no insucesso, a análise
por coortes, ao acompanhar o percurso dos alunos, oferece resposta a este problema, para além de que, ainda que tenuemente,
se mostram mais perceptíveis tendências na evolução do insucesso, de redução no caso da licenciatura em Jornalismo na
Universidade de Coimbra.
Finalmente, importará notar que a análise por coortes fornece-nos uma perspectiva mais fidedigna do insucesso em
dada licenciatura, e das diferenças entre estas, sem que tal implique que seja encontrado um padrão de menor ou maior
insucesso, variando sim de acordo com os casos em questão. Deste modo note-se que, para a licenciatura em Jornalismo na
Universidade de Coimbra, a análise por coortes indica níveis de insucesso inferiores aos registados pela taxa de insucesso, à
excepção do ano 2001-2002; pelo contrário na licenciatura em Ciências da Comunicação obtemos por meio da análise de
coortes patamares de insucesso superiores aos indicados pela taxa de insucesso, à excepção de dois anos, 1997-1998 e
também 2001-20025. Assim, altera-se consideravelmente o panorama do insucesso escolar para estas licenciaturas, sendo
mesmo que se pela utilização da taxa de insucesso se concluiria que a licenciatura em Ciências da Comunicação na
Universidade Técnica apresentava um menor nível de insucesso que a sua congénere na Universidade de Coimbra, à
excepção do ano lectivo de 2001-2002, por meio da análise de coortes o panorama inverte-se, passando a licenciatura em
Jornalismo na Universidade de Coimbra a registar níveis de insucesso inferiores, a partir do ano 1999-2000 inclusive.
Observando-se agora o gráfico comparativo da evolução do insucesso escolar, avaliado pela taxa de insucesso e
pela análise de coortes, para as licenciaturas em Medicina na Universidade de Coimbra e Medicina Veterinária na
Universidade Técnica, poder-se-ão constatar novamente outras vantagens do recurso à análise por coortes, face às
insuficiências da taxa de insucesso antes apontadas, no caso destas licenciaturas, com destaque para o efeito da mobilidade.
40,00%
32,94%
29,76%
30,00% 27,32%
25,00% 21,42% 22,52% 24,67%
21,18% 20,51%
20,00% 21,10%
16,07%
16,54%
10,00% 6,99%
‐1,29%
0,00%
1997‐1998 1998‐1999 1999‐2000 2000‐2001
‐10,00% ‐14,58%
‐16,67%
‐20,00%
Taxa Medicina UC Taxa Med. Veterinária UTL
Coortes Medicina UC Coortes Med. Veterinária UTL
Gráfico 4: Comparação entre Taxas de Insucesso e Insucesso por Coortes, área de Ciências da Saúde, de 1997 a
2001

Assim, recorrendo a uma análise por coortes, surge claramente o efeito das transferências e mudanças de curso no
enviesamento dos resultados conseguidos com a taxa de insucesso6. Torna-se assim evidente que os níveis negativos de
insucesso registados para a licenciatura em Medicina na Universidade de Coimbra, são fruto dos alunos que esta recebe por
transferência e mudanças, a partir de outras licenciaturas e instituições, sendo então o número de diplomados muito superior
aos ingressos n anos antes, causando os valores negativos encontrados. Pelo contrário, a aplicação da análise por coortes,
controlando os efeitos da mobilidade, permite constatar uma importante realidade, a existência de graus consideráveis de
insucesso nesta licenciatura, sendo o seu valor mais baixo 16,54%, para um máximo de 27,32%. De igual modo, também na
licenciatura em Medicina Veterinária na Universidade Técnica, se encontrarão níveis de insucesso consideravelmente mais
elevados a partir da análise de coortes, embora de forma menos significativa que no caso de Coimbra, sendo que nesta
situação a influência da mobilidade no cálculo da taxa de insucesso será menos gravosa. Finalmente, apesar de se registar que
não se alteram os padrões de insucesso entre as duas licenciaturas, considera-se que tal não será pertinente dadas as
diferenças de conteúdo entre estas.
Observando-se agora o caso das licenciaturas em gestão, único para o qual foi possível proceder à construção das
coortes para as três instituições abordadas, de imediato notar-se-á que o insucesso escolar avaliado por meio da análise das

5
Deve aqui considerar-se que, fruto das diferenças na construção das listagens de alunos por parte das instituições, para a licenciatura em Ciências da
Comunicação na Universidade Técnica foi possível contabilizar as mudanças e transferências de curso inter e intra instituição, bem como os abandonos, para
todos os anos considerados, tornando o resultado mais fidedigno. Pelo contrário, no caso da licenciatura em Jornalismo na Universidade de Coimbra, apenas são
contabilizadas as transferência e mudanças intra instituição e não entre instituições, reduzindo a fiabilidade da construção das coortes de alunos. Para além disso,
no caso particular da coorte de 2000 não são igualmente ponderadas as mudanças e transferências intra instituição, sendo que igualmente para a coorte de 1997 o
insucesso é estimado por defeito.
6
Note-se, no entanto, que a construção das coortes para Medicina, fruto das insuficiências das listagens disponíveis, somente permitiu controlar a existência de
mudanças e transferências internas à instituição, não o sendo possível para a mobilidade inter instituições; pelo contrário, ambas as formas de mobilidade são
controladas para a licenciatura em Medicina Veterinária, fruto de melhor qualidade das listagens. Finalmente, para a coorte do ano 2000 de Medicina, não foi
possível controlar nenhuma forma de mobilidade.

38
coortes de alunos, em regra atingirá níveis mais elevados que os obtidos por meio da taxa de insucesso. Recorde-se, no
entanto, os resultados obtidos na análise de coortes para as licenciaturas na área de ciências da comunicação, portanto que o
facto de nesta situação a análise de coortes conduzir a resultados de insucesso mais elevados para qualquer das licenciaturas,
não constituir uma regra da análise de coortes, indicando sim resultados mais fidedignos, sejam mais elevados ou reduzidos.
90,00%
80,00%
80,00% 75,84% 79,10%
72,04% 73,46% 76,68%
73,33%
75,80%
70,00% 70,12% 70,41% 63,46% 62,22%
61,11% 63,01%
60,00% 56,96%
51,55% 46,48% 52,73%
50,00% 43,70%
40,00% 33,50% 34,41% 35,95%
34,98%
30,91% 31,69%
30,00% 23,14%
19,18% 22,09%
20,00%
9,68%
11,34%
10,00%

0,00%
1997‐1998 1998‐1999 1999‐2000 2000‐2001 2001‐2002
Taxa Gestão UC Taxa Gestão UTL Taxa Gestão ISCTE
Coortes Gestão UC Coortes Gestão UTL Coortes Gestão ISCTE
Gráfico 5: Comparação entre Taxas de Insucesso e Insucesso por Coortes, área de Gestão, de 1997 a 2002

Para além disso, importará notar que análise por coortes permite contrariar algumas tendências que aparentemente
se registariam na evolução do insucesso nestas licenciaturas. Assim, se pela utilização da taxa de insucesso se verificava um
aumento progressivo no insucesso na licenciatura em gestão no ISCTE, uma redução na Universidade de Coimbra, e uma
tendencial redução na Universidade Técnica, apesar da sua variabilidade, por meio da aplicação da análise por coortes o que
se conclui será o oposto. Portanto um nível estável de insucesso no ISCTE, reduzindo-se somente no último ano, um
crescimento reduzido ao longo deste período na Universidade Técnica, o mesmo se aplicando à Universidade de Coimbra,
apesar da quebra na coorte de 1999-2000; recorde-se novamente que, ainda assim, para qualquer das licenciaturas o insucesso
verificado é mais elevado que pelo uso da taxa de insucesso.

3.2) Padrões de Insucesso por Taxas e Coortes, em função das áreas científicas, entre instituições
Terminando a abordagem às avaliações comparativas do insucesso, indicado pela taxa convencionalmente utilizada
e pela análise de coortes, tendo-se já observado as comparações para cada área, importará finalmente proceder à mesma
análise para o insucesso médio num dado período, avaliado em função dos dois indicadores. Logo à partida, torna-se evidente
que a análise do insucesso escolar por coortes conduz, sendo única excepção a licenciatura em Jornalismo na Universidade de
Coimbra, adiante abordada, a resultados sempre mais elevados de insucesso, do que o obtido por meio da metodologia oficial
da taxa de insucesso. Ainda assim, tal não nos deverá levar a concluir que o recurso à taxa de insucesso proporcionando
níveis mais reduzidos será uma regra, na medida em que o limitado número de licenciaturas para as quais foi possível
proceder à análise de coortes inviabiliza que estes resultados possam ser tidos como um padrão.
80,00% 71,02%
65,28% 73,61% 71,83%
60,00% 41,35% 45,10%
40,00% 42,09% 42,22%
20,05% 28,09%
20,00% 23,21% 30,83%
21,62%
0,00%
-20,00%
-6,39%

Taxa Jornalismo UC Taxa C. Comunicação UTL Coortes Jornalismo UC


Coortes C. Comunicação UTL Taxa Medicina UC Taxa Med. Veterinária UTL
Coortes Medicina UC Coortes Med. Veterinária UTL Taxa Gestão UC
Taxa Gestão UTL Taxa Gestão ISCTE Coortes Gestão UC
Coortes Gestão UTL Coortes Gestão ISCTE
Gráfico 6: Comparação de Taxas de Insucesso e Insucesso por Coortes

Assim verifica-se no precedente gráfico que o recurso à análise do insucesso escolar por meio da análise de coortes,
no caso de algumas licenciaturas como Jornalismo e Medicina na Universidade de Coimbra, altera consideravelmente o
panorama do insucesso, oferecendo respostas adequadas para as insuficiências registadas pela metodologia oficial,
demonstrando as mais-valias oferecidas pela análise de coortes. Deste modo, regista-se um insucesso médio muito inferior
para a licenciatura em Jornalismo, ainda que globalmente elevado, solucionando então o problema da inadequação da taxa de
insucesso oficial para licenciaturas nas quais um projecto ou estágio final ultrapassa o período de colecta de dados. De igual
modo, ainda que como salientado nem sempre tenha sido possível, na construção das coortes, controlar adequadamente os
fenómenos de mobilidade, sobretudo entre instituições, tal como se verificou na licenciatura em Medicina na Universidade de
Coimbra, verifica-se que somente o controlo da mobilidade interna fornece já uma perspectiva bem mais realista acerca do
insucesso nesta licenciatura, na verdade demonstrando valores consideráveis, com cerca de um quinto dos alunos da coorte
tendo necessitado de mais que o número de anos necessário à conclusão da licenciatura, não muito distante da licenciatura em
Medicina Veterinária na Universidade Técnica, apesar das diferenças entre estas.
Note-se igualmente que, no que respeita à existência de padrões de insucesso, a existência de alterações
significativas nesses padrões entre instituições relacionar-se-á com cada área em específico, corroborando a importância
antes verificada, aquando da análise por meio das taxas oficiais, de procurar padrões não somente entre áreas ou instituições,
mas pelo seu par. Deste modo tais padrões alteram-se, entre a Universidade de Coimbra e a Universidade Técnica,
relativamente às suas licenciaturas na área das ciências da comunicação, sendo que se a primeira através da taxa de insucesso
apresenta um insucesso muito superior à segunda, na verdade por meio da mais fiável análise de coortes, constatamos um
nível de insucesso muito próximo, aliás ligeiramente inferior. No que respeita às licenciaturas em gestão nas três instituições,
embora o padrão entre as três não se altere, importará ainda assim notar que, se por uso da taxa de insucesso surgia um claro
padrão de insucesso com o nível mais elevado para a licenciatura na Universidade de Coimbra e o mais reduzido para o
ISCTE, com a Universidade Técnica num patamar intermédio, tal altera-se consideravelmente a partir da análise de coortes,
praticamente igualando o insucesso nestas licenciaturas entre a Universidade de Coimbra e a Universidade Técnica, apenas se
destacando pela positiva o ISCTE, ainda que igualmente crescendo.

4) Uma fórmula de cálculo para a quantificação do abandono escolar


Não deixará decerto de ser surpreendente a inexistência de recolha e tratamento oficial de dados relativos ao
abandono escolar, não tendo o GPEARI publicações ou bases de dados relativas a este fenómeno, sem dúvida essencial no
ensino superior. Deste modo, os poucos dados disponíveis são coligidos pelas próprias instituições, para algumas das suas
licenciaturas, ainda que sem dúvida em número reduzido. Ora, o facto de tais dados serem recolhidos e tratados somente por
um reduzido número de instituições, e de acordo com os critérios metodológicos por si definidos, impossibilitava qualquer
análise em profundidade do abandono escolar no ensino superior, nomeadamente da sua evolução a nível microsociológico,
nas licenciaturas, e macrosociológico, nas instituições, igualmente não sendo possível qualquer análise comparativa.
Assim, no quadro desta investigação, procurou-se conceber uma equação matemática que possa dar conta do
fenómeno do abandono escolar que, tomando como variáveis dados oficiais há muito recolhidos e tratados pelo GPEARI,
seja passível de mapear o abandono escolar nos últimos anos, para as diversas licenciaturas e instituições. Deste modo, foi
construída a seguinte equação para o cálculo do número de alunos que abandonam dada licenciatura ou instituição de ensino
em dado ano lectivo, e correspondente taxa:
Equação do Abandono absoluto7: Ab(x) = I(x) - I(x+1) + I1(x+1) - Dp(x)
Equação da Taxa de Abandono: Tab(x) = Ab(x) / I(x) * 100
A equação consiste, essencialmente, na determinação ou, pelos motivos adiante expostos, estimação, do número de
alunos que abandonam a licenciatura ou instituição, tomados como o número de alunos que saem dos registos sem que se
tenham diplomado, por meio da comparação entre os inscritos em dois anos consecutivos, ponderando no cálculo a variação
induzida pelos novos alunos que entram e os diplomados que saem.
No entanto, no que respeita ao abandono escolar, a equação por nós criada padece de falhas semelhantes, ou
análogas, às anteriormente apontadas à metodologia de cálculo da taxa de insucesso oficial, ainda que, como se verá, estas
não sejam inteiramente solucionadas de forma satisfatória pela análise de coortes. Assim, note-se que logo à partida esta
equação de abandono não permite calcular o abandono de uma dada coorte de alunos, calculando sim o abandono de um ano
lectivo para o seguinte, independentemente da coorte a que pertencem os alunos que abandonaram. Deste modo, ao contrário
do que hipoteticamente a taxa de insucesso oficial pretende conseguir, a quantificação do insucesso para dada coorte de
alunos, de modo mais eficaz conseguida pela análise de coortes, a equação de cálculo do abandono não tem de modo algum o
mesmo objectivo, pelo que a sua substituição pela análise de coortes não seria, ao contrário do proposto para o estudo do
insucesso escolar, uma proposta coerente, na medida em que uma e outra metodologia de avaliação do abandono medem dois
aspectos distintos: a análise por coortes o abandono registado numa coorte de alunos, a análise pela equação o abandono
registado em dado ano lectivo. Para além disso, considerando como diplomados somente os contabilizados pelos critérios
oficiais, como previamente indicado na análise do insucesso, tal exclui deste indicador alunos que terminam a sua graduação
após a recolha dos dados pelo GPEARI, pelo que estes alunos, nem inscritos no ano seguinte nem diplomados, serão
incluídos por esta equação nos alunos que abandonaram.

7
Ab(x) = Abandono no ano X;
I(x) = Inscritos totais no ano X;
I(x+1) = Inscritos totais no ano seguinte ao ano X;
Dp(x) = Diplomados no ano X;

40
Por outro lado, mais importante mas de difícil solução, a equação de cálculo do abandono escolar fornece-nos um
valor de abandono total, os alunos que saem da licenciatura, sem que tal signifique necessariamente um abandono do ensino
superior. Assim, é possível que um aluno saia da sua licenciatura sem que abandone o sistema de ensino, por exemplo
mudando para outra licenciatura na mesma universidade, ou transferindo-se para a mesma licenciatura de outra instituição,
sendo estes casos contabilizados como abandono escolar, inflacionando os resultados. Tal tornará pertinente que sejam
referidas duas modalidades de abandono, relativo para o total de saídas de dada licenciatura ou instituição, absoluto somente
para a saída do sistema de ensino superior.
No entanto, será certo que, mesmo numa análise das coortes de alunos, por nós efectuada, tal insuficiência se
demonstra inultrapassável, na medida em que mesmo acompanhando cada aluno individualmente, somente se poderão
conhecer os alunos que deixam de estar registados nas listagens da licenciatura, sem que aí tenham estado o número de anos
necessário ao seu término, o que incluirá a mobilidade para o exterior. Assim, apesar das vantagens verificadas para a
metodologia da análise de coortes, os níveis de abandono que se registam encontrar-se-ão sempre em maior ou menor medida
inflacionados, uma vez que incluem sempre os alunos que saem da licenciatura por mudança ou transferência para outra
licenciatura ou instituição.
Para além disso, no que respeita à construção das próprias coortes, esta segue exactamente o mesmo procedimento
das coortes para análise do insucesso, pelo que as insuficiências induzidas pela reduzida qualidade das listagens repetir-se-ão.
Deste modo, a possibilidade de controlo da mobilidade é igual para a construção das coortes de análise do abandono, pelo
que as ressalvas antes apresentadas para as coortes de cada licenciatura, na análise do insucesso, se encontrarão novamente
agora.

5) Evolução do Abandono Escolar: uma análise a partir dos dados oficiais


Observando o seguinte gráfico, poderemos constatar, como de resto seria de esperar, variações consideráveis do
abandono escolar em função das instituições de ensino universitário, variando entre um mínimo de 5,87% para a
Universidade do Minho e um máximo de 12,21% para a Universidade dos Açores. Para além disso, pode-se observar que, à
excepção das Universidades dos Açores e Nova de Lisboa, todas as demais instituições apresentam níveis de abandono
escolares situados abaixo dos 10%. Ora, se um grau de abandono escolar inferior a 10%, à partida, sugeriria um cenário não
muito grave, importará analisar esta informação conjuntamente com os níveis de abandono escolar. Assim, se recordarmos
que muitas destas instituições apresentavam níveis de insucesso na ordem dos 30%, conjugando com um abandono de cerca
de 10%, tal configurará já um panorama algo pessimista para o sucesso no ensino superior.

14,00%
12,21%
12,00% 10,23%
9,22% 9,26%
10,00% 9,88%
8,48%
8,00% 8,26% 8,25% 8,42%
6,79%
7,83%
6,00% 6,22% 6,76%
5,87%
4,00%
2,00%
0,00%

Universidade de Coimbra Universidade de Lisboa Universidade Nova de Lisboa


Universidade Técnica de Lisboa Universidade do Porto ISCTE
Universidade do Algarve Universidade dos Açores Universidade de Aveiro
Universidade da Beira Interior Universidade de Évora Universidade da Madeira
Universidade do Minho U. Trás-os-Montes e Alto Douro
Gráfico 7: Abandono nas Universidades Portuguesas, de 1997 a 2006

5.2) O abandono escolar em função das áreas científicas, em cada instituição


Seguindo para uma análise mais refinada para as instituições universitárias abordadas nesta investigação,
observando a evolução do abandono escolar para as cinco áreas científicas consideradas, na Universidade de Coimbra,
podemos verificar que tal como anteriormente, aquando da análise do gráfico análogo para o insucesso escolar, que
subjacente à variação média da Universidade de Coimbra, se encontra uma diversidade bem maior, seja na variação de cada
área seja aos níveis mais ou menos elevados ou reduzidos de cada uma.
Assim, antes de mais verificando-se uma tendência crescente de abandono na Universidade, desde o ano 2000-
2001, ainda assim existe uma diferença considerável entre as suas áreas, nomeadamente com abandonos mais elevados para
as Ciências da Comunicação e mais reduzido para as Ciências da Saúde, com Arquitectura e Gestão igualmente atingindo
valores elevados em alguns anos, sendo a Engenharia a única área que apresenta alguma estabilidade.
Os níveis consideravelmente mais elevados de abandono nas Ciências da Comunicação, para além de um pico nos
anos de 2002 a 2004, possivelmente terá a mesma explicação que quanto à taxa de insucesso, remetendo para os alunos que
terminam o seu estágio já após a recolha dos dados de diplomados pelo GPEARI, inflacionando o abandono na mesma
medida em que o faziam para o insucesso. No que respeita às Ciências da Saúde, os níveis negativos de abandono que se
verificam serão boa imagem do efeito da mobilidade, sendo que a impossibilidade destes níveis será espelho de um
crescimento dos estudantes inscritos na área, não contabilizados nos ingressos, portanto remetendo para a mudança e
transferência intra ou inter instituição. Finalmente a área de Arquitectura, bem como a de Gestão, apresentam variações
consideráveis, por um lado em Gestão ao longo de todo o período considerado, por outro em Arquitectura com dois picos em
dois anos consideráveis. No entanto, uma diferença em relação à taxa de insucesso é que a de abandono, como referido, não
se liga a uma coorte de alunos mas a um ano lectivo: assim, se as variações constantes no insucesso seriam dificilmente
explicadas por variações nas características das coortes que, hipoteticamente, a taxa procurava ilustrar, pelo contrário as
variações no abandono poderão remeter para variações específicas nas áreas ou licenciaturas. Se tal será pouco provável para
uma variação permanente como em Gestão, será talvez ainda assim possível no caso dos picos verificados em Arquitectura,
embora tal não deva ser tomado enquanto conclusão, dada o insuficiente conhecimento das especificidades da licenciatura,
que o possam justificar.
Observando agora a evolução do abandono no período compreendido entre 1997 e 2006 para as áreas científicas na
Universidade Técnica, com um abandono médio inferior à Universidade de Coimbra, verificamos também nesta instituição
diferenças consideráveis entre as várias áreas, a par de uma redução tendencial do abandono globalmente considerado.
Assim, constata-se que tal como na Universidade de Coimbra a área de Ciências de Comunicação apresenta os mais
elevados níveis de abandono, sendo aqui a área de Arquitectura a de menor abandono, inclusive se registando um valor
negativo, ao qual se atribuirá a mesma explicação anteriormente apresentada para a licenciatura em Medicina na
Universidade de Coimbra. Para além disso, se as áreas de Gestão e Engenharia apresentam níveis, face às restantes, análogos
às diferenças registadas na Universidade de Coimbra, pelo contrário a área de Ciências da Saúde apresenta valores bastante
mais elevados, o que se poderá possivelmente atribuir às diferenças entre a Medicina e a Veterinária, aqui inseridas na
mesma área. Finalmente, importará assinalar que a similitude dos níveis de insucesso e abandono da área de Ciências da
Comunicação, nas universidades de Coimbra e Técnica, apontará para especificidades das licenciaturas consideradas
transversais às instituições e que se reflectirão nos vários casos na distorção dos resultados conseguidos por meio de taxas
puramente quantitativas.
Atentando finalmente na evolução do abandono nas áreas do ISCTE, um menor número face à especificidade
científica da instituição, para além de se registar que no ano de 2005-2006 a instituição apresenta um abandono superior às
áreas em causa, o qual se atribuirá a um mais elevado abandono nas demais licenciaturas da instituição aqui não
consideradas, poderemos adiantar algumas notas quanto à diferença entre áreas e instituições e à importância, na análise do
abandono tal como na do insucesso, de ter em consideração nem uma ou outra dimensão, mas o par conjugado de ambas.
Assim, verificamos que a Engenharia é no ISCTE a área de maior abandono, o que no entanto poderá ser explicado
pela ausência na análise desta instituição da área de Ciências da Comunicação. Mas tal não será decerto a única justificação,
na medida em que se a área de Gestão apresentava igualmente um elevado abandono nas instituições antes abordadas, no
ISCTE é na verdade a área que apresenta melhores resultados, apesar de um pico no ano de 2004-2005, o qual seria
pertinente, ainda que aqui a tal não se proceda, indagar no sentido de o atribuir ou a especificidades da área nesse ano em
concreto ou à sua influência na distorção dos resultados da fórmula de cálculo. Por outro lado, a área de Arquitectura
apresenta níveis de abandono consideráveis face às restantes, ao contrário da Universidade Técnica, o que igualmente
apontará para a pertinência de considerar simultaneamente o par de instituição e área na análise de padrões de abandono
escolar.

5.3) Padrões de abandono escolar em função das áreas científicas, entre instituições
Tal como anteriormente, apontou-se face às análises elaboradas quanto aos gráficos precedentes, para a
probabilidade da existência de padrões de abandono, se relacionar com pares de determinadas áreas em dadas instituições, e
não somente para áreas ou instituições de maior ou menor abandono. Observando-se o seguinte gráfico, onde se poderá
verificar ao abandono médio para o período de 1997 a 2006, nas áreas consideradas nas várias instituições, poderemos
proceder a uma análise mais afinada quanto às diferenças entre estas.

42
20,00%
17,56%
15,00% 12,68%
8,26% 12,04%
10,00% 8,36%
6,41% 9,79%
5,00% 4,87% 6,43% 6,73%
2,64% 5,28%
0,00%
-5,00%
-0,54%

Arquitectura (UC) Arquitectura (UT) Arquitectura (ISCTE)


Engenharia (UC) Engenharia (UT) Engenharia (ISCTE)
C. da Saúde (UC) C. da Saúde (UT) C. da Comunicação (UC)
C. da Comunicação (UT) Gestão (UC) Gestão (UT)
Gestão (ISCTE)
Gráfico 8: Abandono médio, por áreas científicas e instituições, de 1997 a 2006

De facto, poder-se-á constatar que, em função das áreas, umas ou outras instituições apresentarão melhores
resultados nos seus níveis de abandono escolar. Na verdade, tal aplicar-se-á sobretudo à Universidade Técnica a ao ISCTE,
na medida em que a Universidade de Coimbra apresenta o mais elevado nível de abandono para qualquer das áreas à
excepção das Ciências da Saúde, para a qual é aliás negativo, remetendo tal no entanto para as considerações já previamente
apresentadas quanto às especificidades da licenciatura em Medicina e aos desvios que induz na fórmula de cálculo da taxa de
abandono. Para as restantes áreas, verificam-se variações entre a Universidade Técnica e o ISCTE, registando-se níveis
bastante mais elevados na segunda nas áreas de Engenharia e Arquitectura, e em menor medida na Gestão. Importará aqui
referir que tais resultados se assemelham consideravelmente aos obtidos na análise do insucesso escolar, quanto às áreas nas
duas instituições, à excepção da Gestão na qual, quanto ao insucesso, o ISCTE apresentava um grau mais reduzido.

6) Análise do abandono escolar a partir das coortes de alunos: comparação de alguns resultados
Pretende-se avaliar as diferenças na caracterização do abandono escolar nas instituições e áreas científicas
consideradas, de modo a avaliar as diferenças face aos padrões encontrados por meio da aplicação da taxa de abandono,
portanto identificando vantagens da análise de coortes que se hajam verificado na abordagem ao insucesso e no abandono
novamente se encontrem. Importará referir novamente que a construção das coortes para o estudo do abandono é a mesma
que para o insucesso, pelo que as diversas notas antes apresentadas quanto às especificidades de cada licenciatura, face às
características das listagens disponíveis, não serão novamente explanadas.
Observando-se gráfico relativo à evolução do abandono escolar medido pela taxa de abandono e por meio da
análise de coortes, nas licenciaturas em Jornalismo na Universidade de Coimbra e Ciências da Comunicação na Universidade
Técnica, no período de 1997 a 2003, verificar-se-á que os resultados encontrados na análise de coortes são, em regra, mais
elevados que pela taxa de abandono, embora se deva recordar que os dois indicadores avaliam fenómenos distintos.
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
1997-1998 1998-1999 1999-2000 2000-2001 2001-2002 2002-2003
Taxa Jornalismo UC Taxa C. Comunicação UTL
Coortes Jornalismo UC Coortes C. Comunicação UTL
Gráfico 9: Comparação entre Taxas de Abandono e Abandono por Coortes, área de Ciências da Comunicação, de
1997 a 2003

Verifica-se igualmente que, por um ou outro método de cálculo, a licenciatura da Universidade de Coimbra
apresenta níveis de abandono mais elevados, sendo que portanto é aquela na qual se registam mais abandonos anuais, e
também aquela cujas coortes de alunos abandonam mais a licenciatura. Assim, poderemos equacionar estas duas
metodologias como complementares, por um lado para quantificar o abandono anual, por outro para compreender as
especificidades das coortes de aluno quanto ao abandono que apresentam. No que respeita à área das Ciências da Saúde, da
análise do seguinte gráfico constatar-se-á logo à partida níveis bem mais elevados de abandono escolar para ambas as
licenciaturas, avaliado mediante a análise de coortes. Assim, poder-se-á afirmar que se a licenciatura em Medicina
Veterinária é já das duas aquela em anualmente mais número de alunos abandona, recordando no entanto não somente as
diferenças entre as duas como também dos desvios introduzidos nos resultados da licenciatura em Medicina, a primeira será
ainda assim aquela na qual um menor número de alunos de cada coorte termina a licenciatura, com um aumento considerável
no ano 2000-2001.
40,00%

30,00%

20,00%

10,00%

0,00%
1997-1998 1998-1999 1999-2000 2000-2001 2001-2002
-10,00%
Taxa Medicina UC Taxa Med. Veterinária UTL
Coortes Medicina UC Coortes Med. Veterinária UTL
Gráfico 10: Comparação entre Taxas de Abandono e Abandono por Coortes, área de Ciências da Saúde, de 1997 a
2002

Será relevante aqui apontar os resultados obtidos para a licenciatura me Medicina na Universidade de Coimbra, na
qual a taxa de abandono indica, à excepção de um ano, um abandono negativo, atribuído ao facto da taxa não contabilizar a
mobilidade para o interior da licenciatura, pelo contrário a metodologia da análise de coortes, permitindo-o ainda que
somente para a mobilidade intra instituição, assegura-nos ainda assim um retrato bem mais fiável do abandono nesta
licenciatura, com níveis aliás bastante consideráveis. E será sem dúvida um indicador do potencial analítico das coortes, pela
possibilidade do controlo da mobilidade, o facto de no único ano para o qual tal não foi possível para a esta licenciatura, quer
para inter quer intra instituição, 2000-2001, se assistir a uma quebra drástica do nível de abandono escolar.
Finalmente, atentando no gráfico relativo à evolução do abandono escolar nas licenciaturas de gestão nas três
instituições abordadas, de imediato se verificará que o abandono registado pela análise de coortes é, para qualquer das
licenciaturas, mais elevado que o nível obtido pela taxa de abandono, significando que se não serão muito elevados o número
de alunos que anualmente abandonam as licenciaturas, serão no entanto uma proporção considerável de cada coorte.
60,00%

40,00%

20,00%

0,00%
1997-1998 1998-1999 1999-2000 2000-2001 2001-2002
Taxa Gestão UC Taxa Gestão UTL Taxa Gestão ISCTE
Coortes Gestão UC Coortes Gestão UTL Coortes Gestão ISCTE
Gráfico 11: Comparação entre Taxas de Abandono e Abandono por Coortes, área de Gestão, de 1997 a 2002

Sendo importante ressalvar que as insuficiências e dificuldades encontradas na construção destas coortes podem ser
responsáveis pelas variações consideráveis que se verificam nos níveis de abandono obtidos pela análise de coortes,
particularmente para a Universidade de Coimbra e ISCTE, onde particularmente se encontraram mais problemas, poder-se-á
ainda assim sugerir a existência de padrões distintos conforme observamos o abandono por anos lectivos através da taxa, ou o
abandono para cada coorte, registando-se que se por exemplo quanto ao primeiro indicador o ISCTE a Universidade Técnica
apresentam os níveis mais reduzidos, pelo contrário no que respeita ao abandono das coortes a existência de padrões é já mais
equívoca, ainda que se possa sugerir níveis tendencialmente mais reduzidos para a Universidade Técnica.

6.2) Padrões de Abandono por Taxas e Coortes, em função das áreas científicas, entre instituições
Terminando, importará agora observar o gráfico relativo aos níveis médios de abandono escolar, avaliado pelas
duas metodologias, para os vários pares licenciatura-instituição, de modo a avaliar a possível existência de padrões entre de
abandono entre as instituições, para as duas formas de análise do abandono que recorde-se, ao contrário do caso do insucesso,
aqui se complementam mais que substituem, ainda que naturalmente o reduzido número de licenciaturas não permita a

44
extrapolação de conclusões para as instituições globalmente consideradas. Assim, verifica-se no caso das Ciências da
Comunicação que se o abandono anual na Universidade Técnica, foi neste período, quase metade do registado na licenciatura
em Jornalismo na Universidade de Coimbra, a respeito do abandono verificado em cada coorte de alunos, na verdade as duas
licenciaturas situam-se a um nível muito próximo, embora ligeiramente superior em Coimbra. Por outro lado, no caso das
Ciências da Saúde o cenário inverte-se, verificando-se um abandono médio das coortes bastante mais elevado para a
licenciatura em Medicina Veterinária, apesar de um abandono anual não muito elevado, ainda que também a licenciatura em
Medicina apresente valores consideráveis no abandono nas suas coortes. Por último, as licenciaturas em Gestão apresentam
como um aspecto fundamental o reduzido abandono médio em termos anuais, e bastante mais elevado a nível das suas
coortes de alunos, facto notório na licenciatura no ISCTE, devendo-se no entanto ter alguma cautela face às dificuldades
antes apresentadas quanto às coortes destas licenciaturas.
30,00%
25,00% 27,05%
19,12% 18,56% 23,11%
20,00% 23,88%
20,14%
15,00% 11,42% 17,37% 14,11%
10,00%
6,33% 8,58% 7,25%
5,00%
0,00% 4,59%
-5,00%
-1,53%

Taxa Jornalismo UC Taxa C. Comunicação UTL Coortes Jornalismo UC


Coortes C. Comunicação UTL Taxa Medicina UC Taxa Med. Veterinária UTL
Coortes Medicina UC Coortes Med. Veterinária UTL Taxa Gestão UC
Taxa Gestão UTL Taxa Gestão ISCTE Coortes Gestão UC
Coortes Gestão UTL Coortes Gestão ISCTE
Gráfico 12: Comparação de Taxas de Abandono e Abandono por Coortes

Terminando, poderemos sugerir a eventualidade de um cenário, apesar do reduzido número de licenciaturas


abordadas, ainda mais para o ISCTE, para a existência de níveis de abandono tendencialmente mais elevados na
Universidade de Coimbra que na Universidade Técnica, além de que o abandono escolar verificado em cada coorte de alunos
será, em regra, mais elevado que o abandono registado anualmente nas licenciaturas.

Algumas Conclusões
Concluindo, poder-se-á afirmar que a metodologia de análise do insucesso escolar por coortes, apresenta diversas
vantagens comparativamente ao uso da taxa de insucesso actualmente utilizada, permitindo colmatar muitas das suas
ineficiências, fruto das características do ensino superior português e das suas instituições e licenciaturas, previamente
referidas. Por outro lado, no que respeita ao abandono escolar, a equação de cálculo para uma taxa, por nós concebida,
apresenta como se apontou falhas assinaláveis, ainda que possa ser utilizada como complementar a uma análise do abandono
escolar em termos de coortes.
Assim, o que se verifica é que se as análises por coortes constituem o método mais adequado para o estudo destes
fenómenos, o grande obstáculo à sua implementação generalizada prende-se com a inadequação dos actuais registos dos
alunos, ou seja, das fragilidades e falta de uniformidade das listagens utilizadas por cada instituição, o que não permite a
construção das coortes para todas as licenciaturas e todas as instituições, de forma totalmente fiável e comparativa.

Bibliografia
OCDE. (2007). Education at a Glance 2007 - Annex 3: Sources, Methods and Technical Notes. Obtido em 27 de Novembro
de 2008, de Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico:
http://www.oecd.org/dataoecd/4/33/39314561.doc
OCES. (2004). Índice de Sucesso Escolar no Ensino Superior Público: Diplomados em 2002-2003. Obtido em 12 de Julho de
2007, de Observatório da Ciência e do Ensino Superior:
http://www.estatisticas.gpeari.mctes.pt/archive/doc/indicesucessoES.pdf
OCES. (2006). Sucesso Escolar no Ensino Superior: Diplomados em 2003-2004. Obtido em 16 de Julho de 2007, de
Observatório da Ciência e do Ensino Superior:
http://www.estatisticas.gpeari.mctes.pt/archive/doc/Indice_Sucesso_Escolar_04.pdf
OCES. (2007). Sucesso Escolar no Ensino Superior: Diplomados em 2004-2005. Obtido em 6 de Julho de 2007, de
Observatório da Ciência e do Ensino Superior:
http://www.estatisticas.gpeari.mctes.pt/archive/doc/SUCESSO_ESCOLAR_ES04_05.pdf
Aprendizagem eficaz dos Direitos Humanos na Escola: possibilidades para alunos
e professores?

José Irivaldo Alves Oliveira Silva


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
irivaldos@uol.com.br

Lucira Freire Monteiro


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
freirel@uol.com.br

Juliana Fernandes Moreira


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB

Larissa Mayara Alves de Almeida


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
lary-kk@hotmail.com

Natally Ferreira Coelho


Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
natally66@yahoo.com.br

Resumo: Visto que os Direitos Humanos consistem naqueles direitos e liberdades básicos adquiridos pelo homem desde a sua concepção,
faz-se necessário que todos os cidadãos reconheça-os para assim usufruí-los uma vez que são inerentes ao homem e componentes essenciais
da cidadania. Assim, entendemos como Direitos Humanos aqueles que resguardam a integridade física e psicológica do cidadão perante seus
semelhantes e o Estado em geral, garantindo, assim, o bem estar social através da igualdade, fraternidade e da proibição de qualquer espécie
de discriminação. Neste inicio de século, o desrespeito e a descrença nesses direitos elementares é um problema gerador de muitos outros,
por ilustração podemos citar a violência doméstica, trabalho escravo, bullying, desrespeito ao principio da dignidade da pessoa humana,
restrição ao acesso à informação e muitos outros. Nesse contexto a intervenção das universidades desenvolvendo projetos em conjunto com
as escolas de nível médio e fundamental tem importância relevante para a transformação social. É por isso que na cidade de Campina
Grande, Paraíba, Brasil a Universidade Estadual da Paraíba está desenvolvendo o projeto “Vivendo a cidadania desde a escola: A UEPB
formando gestores em Direitos Humanos”, inicialmente implantado na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Elpídio de Almeida, a maior
escola pública da cidade, tendo por metas a capacitação dos participantes em noções de Direitos Humanos e cidadania, e também
proporcionar uma educação diferenciada aos seus estudantes universitários através do contato direto com as demandas sociais, reconhecendo
o saber como meio de emancipação social.

1. Considerações acerca do entrelaçamento entre pesquisa e extensão


A Universidade brasileira sustenta-se no tripé ensino, pesquisa e extensão, tendo como centro de conjugação desses
elementos as Universidades. Nos campos da pesquisa e extensão, pesquisadores treinados e qualificados buscam, no
cotidiano, a problematização das questões que agravam a sociedade. A partir da conjunção entre realidade e teoria,
vislumbram soluções práticas e reais, encontrando a consagração de seus esforços na formação de outros sujeitos dispostos a
construir respostas e soluções para questões que acabam por imiscuir-se na realidade de um e de todos. Assim, o locus desse
encontro e congraçamento constituiu-se com naturalidade nas universidades, ambiente de aprendizado, mas também de
reflexão sobre o papel de cada um acerca da transformação constante da realidade. Para tanto, devem os alunos destas
instituições trabalhar, devidamente orientados pelos docentes, em busca de soluções para as necessidades oriundas dos
diversos segmentos da sociedade.
Particularmente, o Direito tem conquistado com muita eloqüência a condição de saber interventivo, mais que
técnica e apontamento normativo, na medida em que se aproximou dos legítimos clamores da população através da
sensibilidade dos juristas, sejam eles produtores, aplicadores ou fiscalizadores das leis. Mas, a sensibilização de tais juristas
não se deu senão como resultado da reflexão sobre a própria atuação do âmbito judiciário de nossa sociedade.
Muitos debates, alguns bem acalorados, outros um tanto quanto cautelosos, despertaram a necessidade de mudanças
na atuação do “pessoal da justiça”. Um entendimento mais aprofundado da formação cultural de nosso povo, a
desmistificação da estrutura do Estado brasileiro, bem como a desentronização das profissões jurídicas e, sobretudo, a
investigação responsável de questões humanitárias universais, favoreceram a abertura das fronteiras acadêmicas em prol das
habilidades científicas de resolução de problemas simples e complexos, que afetam a todos os segmentos da sociedade, posto
serem compostos dos seres humanos e seus respectivos, e múltiplos, anseios.
Até recentemente, o Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da UEPB restringia sua atuação junto à comunidade à
prestação de assistência jurídica gratuita, como exercício da formação de seus alunos, como também pelo oferecimento do

46
ensino jurídico gratuito. Nisto reduziu-se por muito tempo a atividade de nossos professores e pesquisadores. Agora, vimos
cada vez mais como necessária a articulação de outros métodos de formação de nossos discentes, incluindo-se aí uma
concepção diferenciada da antiga extensão universitária. Nossa compreensão em face da extensão universitária visa mesmo
aproximar segmentos estudantis, que nem estão ainda na universidade, por considerar sua potencial capacidade de influência
nos movimentos sociais, considerando-a uma parcela da universidade interdependente com a pesquisa.

2. Pertinência da abordagem dos direitos humanos


Os Direitos Humanos vêm sendo reconquistados ao longo dos séculos, versando acerca do reconhecimento de
atributos pelo simples fato de se pertencer à espécie Humana, na maioria das vezes o credenciava como titular desse Direito
(SILVA, 2004). No entanto, com uma tendência à segregação, seja por raça, cor, etnia, etc, esses direitos inerentes à cada
indivíduo foram cada vez mais sendo desrespeitados.
Partindo dessa tendência à reconstrução dos Direitos Humanos, entendidas aqui por “prerrogativas inerentes à
dignidade da espécie humana” (CHIMENTI, CAPEZ, ROSA e SANTOS, 2007: 46) a sociedade passou a observar tais
direitos sob um prisma diferente, conferindo-os uma maior importância e inclusive inserindo-os nos ordenamentos estatais.
Podemos destacar o pioneirismo da Inglaterra com a Magna Carta de 1215 e a partir daí diversas outras espécies
normativas até desembocar na Declaração Universal dos Direitos do Homem (que este ano completa 60 anos), documento
assinado por vários países, que apesar de não ter caráter vinculante, foi extremamente incorporada pelos estados recém-saídos
do período de guerra.
Intensifica-se, a partir deste movimento pós-guerra, uma incessante preocupação do aparelho estatal, através dos
parlamentos dos vários países, em “firmar vários pactos e convenções internacionais, sob o patrocínio da ONU, visando
assegurar a proteção dos direitos fundamentais do homem” (SILVA, 2004: 165).

2.1. As Gerações dos Direitos humanos


Eivados de caracteres jusnaturalistas, os Direitos Humanos tornam-se proteções individuais inseridas no Direito
Positivo. No Brasil, dentre os vários exemplos que podemos citar, temos o presente no art. 2º inciso II da Constituição da
República, que estatui como fundamento do Estado Democrático de Direito a Dignidade da Pessoa Humana. Eis um explícito
exemplo da adoção aos Direitos Humanos por parte dos ordenamentos atuais, no caso, nossa Carta Magna.
A Doutrina costuma classificar os Direitos Humanos como de Primeira, Segunda e Terceira geração, já havendo
autores que vislumbram inclusive uma quarta geração.
Embora alguns autores critiquem essa classificação, defendendo que o termo “geração afigura-se enganador por
sugerir uma sucessão de categorias de direitos, uma substituindo-se às outras” (MIRANDA, 2002: 24), entendemos ser tal
denominação útil, por facilitar o estudo da matéria.
O critério utilizado para tal divisão é o lema da Revolução Francesa, sob as primícias de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, tal divisão, porém, não esgota o estudo, pois outros direitos vão sendo incorporados de acordo com a dinâmica
social.

2.2 Direitos de Primeira Geração


Os Direitos de Primeira Geração são aqueles que têm como pilar a Liberdade, considerada tanto em aspectos
políticos como civis. Considera-se que a liberdade é a “essência da proteção dada ao indivíduo, de forma abstrata, que a
merece apenas por pertencer ao gênero humano” (CHIMENTI, CAPEZ, ROSA e SANTOS, 2007: 47).
Partindo desse pressuposto, busca-se assegurar a liberdade positiva, de, por exemplo, ir e vir, limitando, desta
forma, o poder estatal, que deverá garantir tais liberdades para a devida segurança jurídica.

2.3 Direitos de Segunda Geração


Os Direitos de Segunda Geração são baseados nos fundamentos de igualdade, tendo no século XX uma maior
efetivação.
Tais direitos são encarregados de colocar o estado como sujeito ativo no papel de estabelecer meios para assegurar
uma maior igualdade, através das diminuições das desigualdades sociais e do repúdio à formas de discriminação.
Em nossa Constituição, os direitos de segunda geração têm a Denominação de Direitos Sociais, que “conferem ao
indivíduo o direito subjetivo de exigir do Estado as prestações positivas” (CHIMENTI, CAPEZ, ROSA e SANTOS, 2007:
47)

2.4 Direitos de Terceira Geração


Os Direitos de Terceira Geração tem como base a fraternidade. Aqui há de ser observada a proteção individual e
também do corpo social, ou seja, trata-se de uma proteção aos direitos de uma coletividade, irmanada na defesa de questões
que atingem a todos.
Podemos exemplificar como direitos de terceira geração, a proteção ao meio ambiente, ao patrimônio comum, à
infância e juventude e à comunicação. São agrupados pela moderna doutrina como sendo difusos ou coletivos.

47
3. O projeto
O projeto pretende ter uma ação concreta no meio estudantil, começando pela formação dos professores do ensino
médio da Escola Estadual Elpídio de Almeida, situada no bairro da Prata, em Campina Grande, na qual teremos como papel
prioritário realizar estudos, oficinas e outras atividades, inicialmente com os professores, fazendo com que os mesmos
tenham contato direto com o universo dos direitos humanos.
Dessa forma, ele tem como característica básica o desenvolvimento de atividades que possibilitem aos professores
da escola pública, no processo educacional de ensino aprendizagem, elaborar conceitos de pessoa humana, ética, justiça e
cidadania, direitos humanos e instrumentos concretos de defesa desses direitos; divulgando-os e vivenciando-os no interior
do ambiente de sala de aula.
Outrossim, há que considerar que o presente trabalho tem como marco a compreensão clara de que o Direito não é
algo dado, mas algo em constante construção, uma vez que ele se faz no processo histórico de libertação, nascendo na própria
rua, no clamor de classes espoliadas e oprimidas (SOUSA JÚNIOR, 1993). Compreendemos o Direito, portanto, como
resultante de uma práxis social, logo, não pode se pautar numa racionalidade indolente1 (SANTOS, 2007). É interessante
lembrar a reflexão que Maia Filho (2007: 29) realiza de forma clara e atual acerca do papel da universidade como sujeito
ativo nesse processo:
“A universidade – e em especial a universidade pública – há que estar antenada com o tempo e o lugar nos quais
está inserida, sob pena de ser uma ilha de saberes e produções inconsistentes. Para ser útil e producente, ela precisa dialogar
com a coletividade que a cerca, interagindo de modo a proporcionar-lhe os conhecimentos e saberes que vão sendo gerados.
Nesse caminho, a universidade aprende também com a sociedade, porque é da sociedade que extrai a matéria-prima que
amolda a produção científica, cultural e pedagógica que lhe caracteriza”.
Este trabalho tem como efeito, num tempo relativamente curto, a formação de agentes multiplicadores desses
direitos (professores), que são estimulados a repassar o que aprenderam, além do que os alunos, inseridos em suas
comunidades, auxiliarão na criação de uma cultura de paz e de permanente vigilância contra os desrespeitos aos direitos
humanos2 e serão multiplicadores também. O presente projeto auxilia ou serve como subsídio na formação do aluno pelos
gestores (os próprios professores) para que ele exercite de forma eficiente os seus direitos e tenha consciência, também, de
seus deveres, o que não acontece por diversos fatores:
O pouco ou nenhum conhecimento que as pessoas têm sobre os direitos humanos;
O precário conhecimento que as pessoas têm acerca da forma de exercer tais direitos, que muitas vezes parecem
distantes da realidade de camadas da população menos favorecidas;
A tímida atuação das escolas públicas na divulgação de uma cultura de paz através dos direitos humanos, embora
os parâmetro curriculares nacionais (MEC) exijam conteúdos de cidadania, ditos transversais;
Professores com poucos conhecimentos sobre direitos humanos, principalmente para que no cotidiano escolar possa
fazer valer esses direitos, diante de um quadro de violência crescente em nosso país e, inclusive, nas escolas.
Podemos listar abaixo alguns tipos ou modalidades de violência ou de desrespeito aos direitos humanos que podem
ser, claramente, abordados em sala de aula pelos gestores-professores:
Violência doméstica – essa categoria é mais ampla por estabelecer um território físico e um território simbólico. O
primeiro é delimitado pelo domicílio, todos os que ali residem (familiares ou empregados) devem obediência ao dono da
casa, cujo domínio pode extravasar o espaço físico passando ao território simbólico, o que permite que exerça poder sobre as
pessoas mesmo estando fora de casa. A mulher é uma das pessoas que mais sofrem essa modalidade de violência3, bem como
crianças e adolescentes. Para se ter uma idéia, a partir de dados oficiais (BARBOSA ET AL., 2008), cerca de 25% sofre
algum tipo de violência, sendo 70% dos casos originados na própria casa pelo marido ou companheiro; o Brasil gasta quase
2% do PIB no tratamento de pessoas vítimas desse tipo de violência; o problema é que nem todos os casos são registrados.
Trabalho escravo – mesmo em pleno século XXI sabe-se que existem pessoas sendo obrigadas a realizar
determinadas atividades laborais sem a devida contraprestação financeira, bem como seres humanos que ainda são tratados
como “bicho” em condições laborais subumanas, o que pode caracterizar trabalho escravo. Em 2003, foram resgatados de
cativeiros 4.735 trabalhadores no Brasil, principalmente na região norte, o que corresponde a 51,1% do total de 9.263
indivíduos libertados entre 1995 e 2003. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que haja entre 25 e 40 mil
trabalhadores no Brasil4.
Direito à informação – também consagrado como um direito humano, muitas vezes a mídia utiliza-se de forma
errônea, ou aborda de forma sensacionalista diversas notícias nos programas veiculados nas redes de televisão, jornal ou
rádio. Em várias ocasiões, a informação não é veiculada corretamente, assim como pode funcionar como elemento
estigmatizante de regiões numa cidade, bem como de seus moradores. Isso acontece, por exemplo, quando se noticia de

1
Conceito colocado ou sugerido por Boaventura de Souza Santos para caracterizar o modelo de racionalidade utilizado para pensar o conhecimento hegemônico
filosófico e científico produzido no ocidente nos últimos duzentos anos.
2
Violência na família, contra os professores, contra as mulheres, contra os negros, contra os homossexuais, contra o idoso, contra criança e adolescente, abuso de
autoridades, entre outros desvios de conduta em face de outros grupos sociais, muitos deles já criminalizados.
3
Em 22 de setembro de 2006, entrou em vigor a Lei nº. 11.340/06, denominada Maria da Penha. Foi uma resposta às incansáveis lutas dos movimentos em
defesa das mulheres, bem como o atendimento à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e à Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
4
www.onu.org.br

48
forma constante crimes numa determinada localidade, o que pode levar a população a pensar que na mesma só existem
“bandidos”. Pode-se tomar como exemplo ainda, a divulgação de uma entrevista com supostos membros do PCC (Primeiro
Comando da Capital) veiculada no programa de um famoso apresentador de televisão do nosso país. Segundo os
entrevistados, o PCC estaria preparando uma série de ações que incluíam o seqüestro de importantes personalidades ligadas à
igreja e ao cenário político. A reportagem teve grande repercussão e resultou numa investigação criminal, descobrindo-se ao
final que tudo havia sido forjado. Portanto, a informação acaba sendo tratada como produto, sendo vendida como tal,
importando apenas os pontos no IBOPE.
Outros direitos estão intrinsecamente relacionados com os direitos humanos, dentre os quais: o direito ao meio
ambiente, o direito dos povos indígenas, o direito dos afro-descendentes, o direito das crianças e dos adolescentes, o direito
das pessoas portadoras de deficiência, o direito dos idosos, isto é, um verdadeiro conjunto de direitos que perpassa diversas
áreas do conhecimento, configurando-se em profícua área interdisciplinar. Além disso, há uma crescente preocupação em
face dos direitos da pessoa humana (BOBBIO, 1992), à medida que há um aumento da população mundial, aumento da
degradação ambiental em todos os setores, aumento do poder destrutivo dos armamentos, aumento da intolerância5, entre
outros. Portanto, como se pode constatar, o leque de temáticas que podem ser tratadas a partir dos direitos humanos junto ao
corpo docente e discente de uma escola pública é imenso e instigante.
Compreendemos que a extensão universitária proporciona aos alunos um contato direto com a sociedade,
constatando na prática a construção do conhecimento e praxis do mesmo. Assim, vejamos a opinião de Costa (2007: 11)
acerca da extensão universitária:
“A extensão universitária constitui-se como a oportunidade do saber científico desenvolver-se com sua abertura
para a sabedoria criada e posta em prática na dinâmica social. Na medida em que se realiza a extensão universitária,
sobretudo voltada para a cidadania e para os direitos humanos, a sociedade ganha por desenvolver processos de autonomia
emancipatória, e a Universidade ganha na medida em que aprende com a comunidade suas formas de realização
profissional”.
É importante frisar que a extensão e a pesquisa na área de direitos humanos e justiça é proporcional à quebra da
dicotomia teoria-prática como dois momentos da realização da atividade acadêmica. A visão tradicional de ensino ignora a
extensão como atividade integrante do processo de aprendizagem, entendendo somente como espaços adequados para o seu
desenvolvimento a sala de aula onde ocorre a reprodução da teoria, e o laboratório ou o estágio onde se realiza a atividade
prática. Portanto, a extensão proporciona a quebra da dicotomia acima citada, propondo uma prática pedagógica
interdisciplinar e que é refletida no processo de sua realização, auxiliada pela pesquisa e pelo ensino.

4. Considerações finais
O presente trabalho está tendo como principal benefício de a capacitação dos participantes em noções de direitos
humanos e cidadania, para que reconheçam as situações de violência, os seus direitos, e os mecanismos jurídicos de proteção
dos mesmos e assim, dessa forma, assumam o papel de sujeito de suas próprias vidas e atuem em suas comunidades,
orientando e participando dos processos de decisão democráticos; bem como investigar o ambiente escolar e sua relação com
os direitos humanos. Por outro lado, visando proporcionar ao estudante de direito uma formação diferenciada a partir do
contato direto com as demandas sociais, reconhecendo no direito um instrumento de emancipação social, dinamiza a
atividade de ensino, indiscutivelmente combinada à extensão. Nesse caso, assevera-se que a extensão é concebida como
instrumento pedagógico necessário ao resgate da legitimidade da ciência do direito (LOSADA ET AL, 2007). Sendo assim, a
participação no presente trabalho faz com que o futuro bacharel tenha sua visão ampliada quanto aos problemas sociais,
realçando a sua responsabilidade em encontrar soluções para as novas demandas.
Quanto a trabalhos desenvolvidos frente a esta problemática temos informação do trabalho profícuo realizado pela
Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), intitulado “Cidadania e Justiça também se aprendem na escola”, desenvolvido
em alguns Estados do Brasil, com a finalidade precípua de informar acerca de direitos básicos do cidadão, mas,
principalmente, divulgar nas escolas junto aos professores e alunos, o funcionamento do Poder Judiciário. Porém,
diferentemente, o nosso projeto foca nos direitos humanos, bem como intenciona formar gestores, ou seja, pessoas
capacitadas para agir na sociedade de forma proativa.
Na busca de informações acerca de trabalhos dessa magnitude realizados junto às Escolas foi-nos informado no
Núcleo de Ensino do Estado que não tem sido realizado nada nesse sentido, inclusive que já há a prática de “bulling”6 em
escolas de Campina Grande. Não há ainda um dado preciso acerca dessa prática nas escolas públicas campinenses.
Divulgar os direitos e, principalmente, quando se trata dos direitos humanos, consiste num dever do Estado, mas
também nosso, estudantes universitários, que estamos recebendo educação superior gratuita, dando um retorno à sociedade.
Sendo assim, porque não divulgar os direitos humanos, bem como a sua exeqüibilidade aos professores e alunos das escolas
públicas? Isso deve ser feito com a finalidade, também, de prevenir a sociedade dos comportamentos violentos que podem
redundar em algo pior no futuro.

5
Terrorismo, violência nas escolas, jovens com problemas, enfim...
6
Prática torturante, na qual os estudantes acham que podem fazer o que quiserem com seus colegas de escolas.

49
A escola contemplada pelo presente projeto é a Escola Estadual e Ensino Médio Elpídio de Almeida, no bairro da
Prata, a qual conta com cerca de 2.800 (dois mil e oitocentos alunos) e 150 professores, sendo a maior escola de Campina
Grande e região. Ela é referência no que se refere ao ensino público estadual na cidade, por isso acreditamos que seja
importante o desenvolvimento de um projeto desse porte na mesma, devido à alta concentração de jovens dos mais diversos
bairros da cidade, representando um potencial disseminador das idéias que a serem trabalhadas.
Outrossim, trata-se de um projeto de baixo custo, mas que pode ter um alto retorno social, uma vez que está
relacionado à capacitação dos professores e à verificação das metodologias aplicadas, através de dinâmicas, materiais
escritos, vídeos, entre outras estratégias, bem como o acompanhamento da implantação disso em sala de aula.
Necessitaremos, basicamente, de transporte, papel, lápis, flipchart, datashow, cartolinas, computador, DVD e CD virgem para
gravação e impressão de conteúdo, fotocópias, entre outros materiais muito acessíveis à própria UEPB ou encontrados em
Campina Grande; assim como a própria escola beneficiada com o projeto poderá colaborar nesse sentido.
Atualmente, reuniões regulares estão sendo realizadas no intuito de se traçar metas e objetivos concretos para uma
racional e coerente aplicação do Projeto. Tais encontros estão sendo efetivados com o inteiro acompanhamento dos
professores que, orientam os extencionistas no sentido ético e sustentável de tal trabalho.
A conscientização da importância de levar além dos muros da Universidade o conhecimento, visando retribuir à
sociedade o ensino gratuito de qualidade, instiga cada vez mais os participantes do projeto.
As reuniões têm sido fervorosas como um todo, presenciando-se uma grande vontade e anseio, tanto de alunos e
professores em atuarem de forma efetiva junto à comunidade, como transformadores e formadores de uma nova consciência
no meio social.

5. Referências
BARBOSA, A. W. de G. & CAVALCANTI, S. V. S. de F. (2007). A constitucionalidade da Lei Maria da Penha . Jus
Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1497, 7 ago. 2007. <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10249>. (Consultado na
internet em 21 de julho de 2008).
BOBBIO, N. (1992). A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus.
COSTA, A. B. (2007). A extensão universitária da Faculdade de Direito da UnB. In COSTA, A. B. (Org.). A experiência da
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CHIMENTI, R. C.; CAPEZ, F.; ROSA, M. F. E. & SANTOS, M. (2007). Curso de Direito Constitucional. 4 ed.. São Paulo:
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LOSADA, P. R. et al. (2007). Projeto promotoras legais populares do Distrito Federal: troca de conhecimento rumo a uma
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Escola Pública numa comunidade e ilhéus1

Mariangela Hoog Cunha


Universidade Tuiuti do Paraná
maricunha@hotmail.com

Resumo: Este trabalho problematiza a realidade da escola pública numa comunidade de ilhéus, situada na baía de Paranaguá, no estado do
Paraná, Brasil. Está localizada numa Área de Proteção Ambiental, com população de aproximadamente 500 habitantes, que sobrevive da
pesca, do cultivo de ostras, do comércio local e empregos públicos na área da saúde e da educação. A intenção é caracterizar como se
desenvolve o ensino nesta escola da Ilha Rasa, que recebe alunos/as do Ensino Fundamental e Médio com turmas de 1ª a 4ª serie em classes
multisseriadas. E, turmas de 5ª a 8ª série com professores/as multi-disciplinares. Esta escola revela um cenário onde contracenam a escola, a
cultura e a natureza como forma de organização educacional e temporal da comunidade da Ilha Rasa. A metodologia desta pesquisa

1
. Este artigo é fruto de investigações e aproximações decorrentes da pesquisa de campo para minha dissertação de mestrado em Educação. Nesta pesquisa
procuro analisar a relação existente entre a prática escolar e o reflexo desta na comunidade bem como o reflexo da organização da comunidade na vida escolar.
Esta pesquisa está sendo realizada na Ilha Rasa, município de Guaraqueçaba, litoral norte do Estado do Paraná. Até o momento já aconteceram aproximações
com a escola na ilha, onde tive a oportunidade de observar aulas, fotografar material produzido pelos alunos, conversar informalmente com os alunos,
professores, cantineiras e moradores da comunidade da Ilha Rasa, e com a escola sede em Guaraqueçaba.

50
caracteriza-se por uma abordagem qualitativa, com realização de observação direta, entrevistas e análise de dados. É um trabalho que se
aproxima do que Ludke e André (1986) denominam de estudo de tipo etnográfico por estabelecer um contato direto do pesquisador com a
situação pesquisada e por permitir a reconstrução dos processos e das relações que configuram a experiência escolar. O presente trabalho
aponta para a necessidade de se empreender uma Educação adequada aos ilhéus, um currículo multicultural; garantia de formação continuada
de seus docentes; políticas públicas visando o crescimento e desenvolvimento humano, social, político, econômico dos grupos sociais em
questão e uma educação voltada para as diversidades culturais.
Palavras-chaves: escola, ensino, ilhéus.

1 Introdução
O ensino está sendo compreendido neste artigo como uma prática educativa que pode ocorrer tanto em espaços e
tempos escolares como nos espaços de socialização, onde florescem as experiências e trocas de saberes que ocorrem além
dos muros da escola, portanto com intencionalidades de aprendizagem.
Nessa perspectiva, tudo o que acontece ao entorno da escola, assim como atividades escolares desenvolvidas pelos
alunos em outras comunidades também fazem parte do ensino que está sendo analisado.
Descreveremos primeiramente, a localidade denominada Ilha Rasa, sua localização geográfica e o modo de vida
desta população de ilhéus que vive em uma ilha isolada na baía de Guaraqueçaba. Num segundo momento, caracterizaremos
como se desenvolve o ensino nesta escola da Ilha Rasa, que recebe alunos/as do Ensino Fundamental e Médio com turmas de
1ª a 4ª serie em classes multisseriadas. E, turmas de 5ª a 8ª série com professores/as multi-disciplinares. Exploraremos a
prática educativa e os alunos.
Concluíremos com uma discussão sobre a necessidade de se empreender uma Educação adequada aos ilhéus, um
currículo multicultural; garantia de formação continuada de seus docentes; políticas públicas visando o crescimento e
desenvolvimento humano, social, político, econômico dos grupos sociais em questão e uma educação voltada para as
diversidades culturais.

2 Metodologia
A pesquisa em questão envolverá os seguintes procedimentos metodológicos: 1) entrevista com professores da
escola multisseriada e com a direção da escola, para indagar sobre o projeto pedagógico e materiais didáticos utilizados. 2)
observação do caderno e desenhos realizados pelos alunos com o intuito de verificar as atividades escolares e a possível
relação entre elas e o modo de vida local. 3) observação do modo de vida local, atentando-se para as brincadeiras das crianças
e interação entre elas. 4) Análise de documentos: diretrizes da educação do campo e projeto político pedagógico da escola.
As questões apresentadas parecem ser melhor analisadas a partir de um enfoque qualitativo das técnicas de análise.
Por isso, a temática em questão envolverá investigação empírica com trabalho de campo, pesquisa bibliográfica e
documental.
De acordo com Lüdke e André (1986), a pesquisa qualitativa implica em ter o ambiente natural como sua fonte de
dados e o pesquisador como seu principal instrumento. Este tipo de pesquisa pressupõe um contato direto e prolongado do
pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada, pois os problemas são estudados no ambiente em que
eles ocorrem naturalmente. Estes mesmos autores afirmam que este contato direto com a situação estudada é essencial porque
as pessoas, os gestos, as palavras estudadas devem ser retratados no contexto onde ocorrem.
A abordagem de pesquisa integra o debate da pesquisa qualitativa que se caracteriza na ótica de Oliveira,
como sendo um processo de reflexão e análise da realidade através da utilização de métodos e técnicas para
compreensão detalhada do objeto em seu contexto histórico e/ou segundo sua estruturação. Esse processo implica em
estudos segundo a literatura pertinente ao tema, observações, aplicação de questionários, entrevistas e análise de dados,
que deve ser apresentada de forma descritiva. (2007, p.37).

A pesquisa qualitativa também compreende que os dados coletados devem ser ricos em descrições de pessoas,
situações, acontecimentos transcrições de entrevistas e de depoimentos, fotografias, desenhos e extratos de vários tipos de
documentos. É necessário que haja uma preocupação com o processo maior do que com o produto e o significado que as
pessoas dão às coisas e à sua vida são focos de atenção especial do pesquisador. (LÜDKE E ANDRE, 1986, p. 12).
Entendendo a escola como parte de um contexto social maior, e recebendo de seu entorno influências importantes,
faz-se necessário uma abordagem do tema proposto a partir do pressuposto de que se deve relacionar o que é aprendido
dentro e fora da escola. (LÜDKE E ANDRE, 1986, p. 14).
A pesquisa é um estudo do tipo etnográfico por um contato direto do pesquisador com a situação pesquisada e por
permitir reconstruir os processos e as relações que configuram a experiência escolar. Esta abordagem de pesquisa permite que
se compreenda o cotidiano escolar, como se pudesse colocar uma lente de aumento na dinâmica das relações e interações que
constituem o seu dia-a-dia. (ANDRÉ, 1995, 41).
Ainda segundo esta autora, este tipo de pesquisa permite que se chegue bem perto da escola para tentar
compreender o seu dia-a-dia, ao mesmo tempo em que são veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores,
crenças, modos de ver e sentir a realidade e o mundo. (ANDRÉ, 1995, 41).

51
A pretensão deste trabalho de cunho etnográfico não é somente falar com o nativo da Ilha Rasa, mas conversar com
ele, ou seja, estabelecer um diálogo em que o outro possa se situar como sujeito e não simplesmente como um objeto a ser
estudado. Desta forma, a importância da revisão bibliográfica para este estudo, no aprofundamento teórico necessário para a
compreensão do discurso e da imagem construída pelos sujeitos sobre sua vivência. O que se aprende na escola, o que se faz
nela e o que se pensa dela está diretamente vinculado ao conhecimento que foi construído ao longo do tempo na sociedade e
na prática escolar. Esta pesquisa procurará estabelecer um diálogo entre a teoria e a realidade estudada para fundamentar a
reflexão desta pesquisa.
Algumas aproximações já foram efetivadas com a escola sede em Guaraqueçaba e com a Secretaria de Educação do
Município, na busca de informações referentes à escola e que pudessem servir de ponto de partida para as investigações
subseqüentes. No entanto, posteriores entrevistas serão feitas com os pedagogos do município e Estado, professores da
escola, diretora da escola em Guaraqueçaba, alunos e moradores da comunidade. Foram realizadas também observações de
aulas e conversas informais com alunos, professores, funcionários da escola e moradores da vila de Ilha Rasa.

3 Uma Comunidade Chamada Ilha Rasa


A Ilha Rasa está situada entre as várias ilhas que se encontram dentro da Área de Proteção Ambiental de
Guaraqueçaba (APA). Esta ilha brasileira do Estado do Paraná, abriga um dos mais ricos patrimônios naturais do país, de alta
diversidade biológica e cultura peculiar. A ilha Rasa é rodeada por manguezais, não dispondo de praias, areias brancas, nem
habituais turistas. É uma ilha de pescadores artesanais que habitam a região há muitos anos.
A Ilha Rasa tem uma população de aproximadamente 600 habitantes que habitam uma área aproximada de 10,5
km2. Os ilhéus vivem basicamente da atividade pesqueira, do comércio local e poucos empregos públicos da saúde e da
educação.
A escola da Ilha Rasa possui 140 alunos em média que frequentam as turmas de 1ª a 8ª série. As turmas de EJA e
Ensino Médio contam com 40 alunos que frequentam a escola no período noturno. As turmas de 1ª e 4ª série somente
acontecem à tarde para poder atender alunos que vem de barco de outras ilhas e das comunidades ribeirinhas no continente.
A escola é decorada e preservada por sua gente nativa, com 4 salas de aula. A lousa é de madeira, assim como as
carteiras, carteiras, a mesa e a cadeira para o professor. Uma estante com livros didáticos situa-se no fundo da sala,
juntamente com muitos cartazes e desenhos elaborados pelos alunos nas paredes.
A escola da ilha oferece o ensino fundamental até a oitava série, Ensino Médio e EJA. As turmas de 1ª a 4ª série são
multisseriadas. O Ensino Médio iniciou somente há 5 anos e os alunos que o frequentam estudam à noite e apresentam
distorção idade-série. Este carece de professores qualificados e os pais que optam por oferecer um ensino médio de mais
qualidade para seus filhos são obrigados a migrar para a zona urbana de Guaraqueçaba diariamente de barco. O deslocamento
nem sempre é fácil, os alunos precisam levantar bem cedo para enfrentarem o trajeto de mais ou menos.
Na realidade que está sendo estudada, o acesso à educação escolar é restrito para os ilhéus e ribeirinhos da baía de
Guaraqueçaba. As crianças que freqüentam a escola da Ilha Rasa provêm de diferentes vilas localizadas na própria ilha Rasa,
ilhas próximas, e comunidades de ribeirinhos localizadas no continente, porém sem acesso por terra. O acesso à escola é
realizado a pé, de canoa ou baleeira2. Os alunos que habitam as regiões ribeirinhas próximas e cursam os anos iniciais do
ensino fundamental, freqüentam a escola no período da tarde devido às condições climáticas, neblina ou chuva que dificultam
o trajeto.
Há a compreensão de que na ilha as possibilidades de trabalho são poucas, todavia alguns optarão por permanecer,
provavelmente reproduzindo o que lhes é esperado pela sociedade em que vivem. No entanto, o professor relata que os
alunos precisam ter oportunidades de sair de lá, de saber como é o mundo lá fora, e que existem outras formas de viver que
não a de um pescador artesanal. Nesse sentido, a missão da educação para eles e segundo eles é transformar sujeitos e
mundos em alguma coisa melhor, preparar os jovens para que possam adentrar novos mundos ou até mesmo melhorar o
universo em que vivem.

O currículo da escola
A ilha é desprovida de transporte público marítimo, acarretando numa grande dificuldade de locomoção para os
alunos das ilhas, das regiões ribeirinhas próximas e para os ilhéus que não possuem barco a motor.
A partir dessas considerações, compreendemos que o currículo escolar tem a necessidade de se adequar às
condições e modos de vida da sociedade em que está inserida. Um aluno ribeirinho que vai à escola de baleeira e não
consegue chegar no horário pré-estabelecido, devido a uma neblina ou a uma maré baixa, é muitas vezes prejudicado com
faltas ou perda das aulas.
Não obstante, as considerações de Moreira, tornam-se importantes neste contexto por salientarem que “ao procurar
entender a singularidade de cada grupo, de cada cultura, você vai compreender mais a humanidade.” (2002, p.15).

2.
As baleeiras e canoas são barcos típicos da região litorânea do Paraná. As baleeiras são feitas de compensado e suportam até 10 pessoas. As canoas são feitas de
uma peça de madeira única e são construídas em diversos tamanhos. O motor é geralmente instalado no centro do barco.

52
Estas questões estão diretamente vinculadas ao currículo, pois ainda segundo Moreira, o professor precisa
reconhecer a diferença cultural existente na sociedade e na escola, abandonando uma perspectiva monocultural e tornando-se
sensível à “heterogeneidade, ao arco íris de culturas que tem nas mãos quando trabalham com seus alunos.” (2002, p.25).
Assim, embora enfrentando todas as diversidades impostas a estes moradores das ilhas e das comunidades
ribeirinhas, a escola da Ilha Rasa representa a única possibilidade de acesso à instrumentalização do saber, leitura e escrita
desta região. Desta maneira, esta escola fornece aos seus alunos oportunidades de aprendizagem, que, de outra forma, não
existiriam.
Estes são desafios enfrentados pela educação para responder ao ensino oferecido em ambientes culturais distintos.
A questão do multiculturalismo, indicando o caráter plural das sociedades contemporâneas, está sendo incorporada ao campo
currículo para discutir prioritariamente as estratégias que têm sido utilizadas para conferir uma orientação multicultural aos
currículos das escolas.
O Multiculturalismo tem sido empregado para indicar uma meta a ser alcançada em um determinado espaço social,
estratégias políticas referentes ao reconhecimento da pluralidade cultural, um corpo teórico de conhecimentos que buscam
entender a realidade cultural contemporânea, e o caráter atual das sociedades ocidentais. (MOREIRA, 2002, CANDAU E
MOREIRA, 2008).
Candau (2005) atesta para o fato de que não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto
em que se situa, pois não é possível haver uma experiência pedagógica desculturalizada, ou seja, desvinculada da sociedade
local. Na verdade estes universos estão entrelaçados e não podem ser analisados a não ser que exista uma relação entre eles.
Ou seja, a educação em uma sociedade multicultural necessita estar vinculada com os tempos e espaços de determinada
sociedade. Torna-se impraticável oferecer uma educação que desrespeite o modo como as sociedades vivem.

O interior da escola
As paredes da escola são ilustradas com desenhos dos alunos que procuram retratar aspectos geográficos e
históricos da ilha assim como situações relativas ao seu modo de vida.
Estes cartazes refletem o universo vivido pelos ilhéus, pois mostram as principais ilhas e rios da região, limites
geográficos da ilha, elementos naturais e culturais, animais em extinção na mata Atlântica, aniversários, nomes das crianças,
festividades, saúde, higiene e clima. Outros cartazes e um grande painel confeccionado pelos alunos e professores da escola,
contam o passado, o presente e o futuro da ilha Rasa, é a História da Ilha Rasa. Este painel foi realizado através de relatos
orais dos habitantes mais antigos do local.
Esta produção reflete a tentativa do grupo docente da escola em associar o conhecimento vinculado nos livros
didáticos ao modo de vida da população de ilhéus. Percebemos que o ensino oferecido nesta escola não é somente o que lhes
é transmitido pelas Secretarias de Educação, ou o que é trazido pelos alunos do seu cotidiano, mas a tentativa por parte dos
professores, de estabelecer um vínculo entre o conhecimento escolar e o modo de vida desta população e de valorizar modos
de vida distintos e específicos.
Tomaz Tadeu da Silva (2003, p. 12) discorre sobre o currículo como narrativa pontuando sobre a importância do
discurso, do que é dito e transmitido,
As narrativas constituem uma das práticas discursivas mais importantes. Elas contam histórias sobre nós e o mundo
que nos ajudam a dar sentido, ordem, às coisas do mundo e a estabilizar e fixar nosso eu. O poder de narrar está estreitamente
ligado à produção de nossas identidades sociais. [...]. Dessa forma, as narrativas não apenas nos ajudam a dar sentido ao
mundo, a torná-lo inteligível, elas contribuem para constituí-lo e a nós. É através de histórias sobre o passado – narrativas –
que podemos dar sentido ao presente e construí-lo e é também assim que podemos imaginar um outro futuro.”
Entendemos dessa forma, a importância para os moradores da ilha de ter a sua história retratada, de se inserirem no
contexto da história e do ensino escolar oferecido aos povos ribeirinhos e ilhéus. O conhecimento está assim sendo reescrito,
e isto é feito com base nas visões e experiências dos diferentes grupos. Existe a necessidade, segundo Moreira, de “desafiar a
lógica eurocêntrica, cristã, masculina, branca e heterossexual que até agora informou o processo.” (2002, p.27). O que se
ensina nas escolas é o ensino pretendido pelas classes dominantes e estes são os discursos que determinam o que conta como
verdadeiro, importante e o que acaba por ser falado. “O que pode ser dito e o que deve permanecer impronunciável.”
(CHERRYHOLMES, 2002, p.9).

A EJA na escola da ilha


Nas aulas da EJA, segundo um aluno da escola, os estudantes após exposição do professor dividem-se em grupos,
elaboram perguntas, debatem, expõe suas idéias e opiniões sobre o conteúdo e fazem trabalhos para apresentar na frente da
classe. As aulas contam com somente um professor que “ensina de tudo.” Este professor é um morador nativo da ilha Rasa
que fez normal superior através do sistema de educação à distância oferecido em Guaraqueçaba nos finais de semana.
Compreende-se o esforço deste professor que “ensina de tudo”, em ensinar, mesmo não tendo a devida formação.
Quando em conversas informais com este professor, falava muito em Marx e em Engels. Batia no peito e se dizia apaixonado
pelo marxismo. Desconhecemos seu referencial teórico, no entanto percebemos o carisma que exerce sobre os alunos, a
dedicação e a vontade de obter conhecimento teórico.

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Refletindo sobre esta exposição, compreendemos que o sentido da educação deve ser amplo, um processo de
formação humana, de referências culturais e políticas para que os sujeitos do processo social possam intervir e seguir
almejando uma humanidade mais plena e feliz.
Na comunidade estudada, é necessário que os professores não somente procurem oferecer uma aprendizagem para
transformar a pessoa para que ela se adapte aos modos de vida locais, mas sim que esta apredizagem sirva como assimilação
de novos conhecimento e que esses conhecimento teóricos e científicos os auxiliem na resolução de seus problemas e
necessidades.
Com relação a esse fato citamos Luria,
Quando muda o padrão de vida e se ampliam as dimensões da própria experiência, quando eles aprendem a ler e a
escrever, a ser parte de uma cultura mais avançada, esta maior complexidade de sua atividade estimula novas ideías.
Tais modificações, por sua vez, ocasionam uma reorganização radical de seus hábitos de pensamento, de modo que
eles aprendem a usar e a compreender o valor de procedimentos teóricos que anteriormente pareciam irrelevantes.
(LURIA apud DUARTE, 2003, 622).

A partir dessas considerações, percebe-se que as pessoas menos letradas moradoras da ilha se recusam a trocar sua
canoa a remo por uma baleeira a motor. Preferem remar e pescar pouco a experimentarem o novo, o diferente. Não conhecem
o novo e nem o imaginam. Preferem se manter reproduzindo o que os seus antepassados faziam , mantendo assim o mesmo
tipo de vida. Essas pessoas, não tiveram acesso à educação formal. O ensino na ilha Rasa reduzia-se aos anos iniciais e foi
somente há cinco anos que se iniciou o ensino fundamental completo e o EJA para o Ensino Médio. Existe então, grande
disparidade de idade-série e adultos sem escolarização que se recusam a voltar aos bancos escolares. Os mais jovens já estão
percebendo que quando vão para a escola e recebem o conhecimento, quando começam a ler, tem condições de modificar
este modo de vida.
É através do conhecimento transmitido pela escola, que os ilhéus poderão refletir acerca de sua vida e transformá-
la. Poderão deixar de remar suas canoas e adquirir um barco a motor. E mais do que somente trocar de barco, trocar e
compreender o valor da transformação e o que os está transformando. Através do conhecimento científico os ilhéus poderão
modificar a sua existência, seu padrão de vida.
Não existe a necessidade de permanecerem ilhéus somente pelo fato de terem nascido em uma ilha. A escola tem o
papel de transmitir conhecimentos que os levem a fazer escolhas, a optarem pelo modo de vida que mais lhes seja
conveniente.
Procurando ver esta população na sua totalidade, os ilhéus que habitam esta ilha são parte de uma cultura maior,
uma cultura universal e no decorrer da história não tiveram acesso ao material concreto disponível na sociedade. Foram
alijados de certa forma do conhecimento.
As más condições de existência na ilha Rasa explicam diferentes acessos ao que já foi produzido pela humanidade.
O difícil acesso as cidades maiores, a dificuldade de produzir seu próprio sustento, a falta de reconhecimento pelos poderes
públicos são apenas algumas das razões que isolam cada vez mais esta população de pescadores artesanais.
Dessa maneira compreende-se que o homem não é apenas produto do seu meio, mas agente ativo no processo de
criação deste meio.

O papel do professor e de sua formação


O professor ao trazer o conhecimento escolar e científico para dentro da escola, ao ensinar e ao fazer com que os
alunos reflitam sobre seu cotidiano a partir do conhecimento científico, estará trazendo os produtos que a humanidade
produziu para dentro da sala de aula, para o cotidiano desta população.
Os alunos têm o direito e os professores o dever de se apropriar dos bens da humanidade para se produzir. E ao
transmitir o conhecimento escolar os professores estarão possibilitando que este saber seja aprendido.
Nessa linha, a formação de professores deverá ser realizada nas universidades, e não somente pautada na prática
profissional e no conhecimento tácito, pois segundo Duarte,
De pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas universidades se o conteúdo dessa formação for
maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal,
particularizado, subjetivo etc. (id., 2003, p.620).

A partir dessas considerações, compreendemos que o ensino e a escola como instituição tem a necessidade de
oferecer uma aprendizagem pautada no conhecimento científico.

A prática do professor
Nesta escola situada em uma ilha, os professores procuram trazer a compreensão do material didático que utilizam
para a realidade da comunidade de ilhéus. Na aula de Geografia, 6ª série, por exemplo, enquanto os alunos estudavam sobre o
clima e o professor situava-os no contexto em que vivem, fazendo uma ligação entre o conteúdo do livro didático com a vida
na ilha. Na aula de Biologia, enquanto o professor falava de animais marinhos relacionava o conteúdo com a realidade dos
ilhéus. Nesse momento, o professor sempre procurava chamar a atenção dos alunos para a vida na ilha e o conteúdo dos
livros. Os alunos mostravam-se passivos e sem muito interesse andavam pela sala, conversavam e até mesmo saíam sem

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pedir autorização. Um outro professor da escola também encontrava-se debruçado na janela observando a movimentação. A
presença de um pesquisador dentro da sala parecia ser desconfortante e ao mesmo tempo curiosa.
Em outras aproximações realizadas tanto na escola quanto na vila de pescadores, percebemos através de conversas
informais com os alunos uma grande valorização do lugar onde vivem e da escola. Esta faz sentido pois, a escola traz
possibilidades de acesso ao conhecimento científico e ao desenvolvimento, nesse sentido, preparando as pessoas para algo
mais, para que possam ter escolhas de ficar na ilha, ou buscar algo diferente, caso desejem. Segundo um professor da escola
da Ilha Rasa, este é um dos objetivos do ensino naquela comunidade. Objetivo este determinado pelos próprios professores da
escola que veêm na relação escola comunidade a única maneira de se ensinar numa ilha isolada da baía de Guaraqueçaba.
Duarte menciona Luria em seu texto, pois esse diz que a educação escolar tem seu “papel na superação das
limitações próprias do pensamento cotidiano.” (DUARTE, 2003, p. 621).
Para um professor da escola da Ilha Rasa, este é um dos objetivos do ensino naquela comunidade. Objetivo este
determinado pelos próprios professores da escola que veêm na relação escola comunidade a única maneira de se ensinar
numa ilha isolada da baía de Guaraqueçaba.
Há a compreensão de que na ilha as possibilidades de trabalho são poucas, todavia a grande maioria dos alunos
optarão por permanecer, provavelmente reproduzindo o que lhes é esperado pela sociedade em que vivem.
É essencial destacar a opinião de Brandão quando ressalta que,
Cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos
adolescentes, e também aos jovens e mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo
de homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade – ou mesmo de cada grupo mais específico, dentro dela –
idealiza, projeta e procura realizar. (BRANDÃO, 2007, p. 22).

Essas considerações contradizem em certo ponto a fala do professor da ilha. No entanto, ao mesmo tempo que o
professor relata que os alunos precisam ter oportunidades de sair de lá, de saber como é o mundo lá fora, e que existem outras
formas de viver que não a de um pescador artesanal, o próprio professor não sabe como é o mundo fora da ilha. Esses
professores não tem formação acadêmica suficiente para transmitir a seus alunos como é viver fora de uma ilha.
O conhecimento escolar, acadêmico e teórico precisa ser valorizado acima do conhecimento tácito. Os professores
têm a necessidade de receber formação acadêmica para serem capazes de transmitir algo novo e enriquecedor para seus
alunos.
Nesse sentido, a missão da educação deve ser a de transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, preparar
os jovens para que possam adentrar novos mundos ou até mesmo melhorar o universo em que vivem.

Classes Multisseriadas
As classes multisseriadas acontecem geralmente em escolas rurais, situação esta onde um único professoro leciona
para crianças de várias séries na mesma sala de aula. Os alunos são divididos em fileiras seriadas e enquanto umas fileiras
recebem matéria nova, as outras trabalham sozinhas. A heterogeneidade das classes multisseriadas podem ressaltar da
multiplicidade de séries e é a prpincipal culpada pelo baixo rendimento escolar da turma.
Segundo o Censo Escolar 2002, INEP, 2002, as classes multisseriadas tiveram um crescimento de 3,4% no período
de 1984 a 1997, evidenciando desta forma o desafio educacional no meio rural no Brasil. Ainda segundo dados do INEP,
mais da metade das escolas brasileiras, 64% são multisseriadas.
O Caderno de Subsídios para a Educação do Campo (2004) demonstra que as classes multisseriadas enfrentam
dificuldades devido a precariedade da estrutura física, falta de condições e sobrecarga de trabalho dos professores. Este fato
gera alta rotatividade dos profissionais, interferindo no processo de ensino/aprendizagem. (p. 21).

4 Considerações Finais
A comunidade da ilha Rasa apresenta-se envolvida com as questões do mundo escolar; há um entrelaçamento entre
a vida na escola e a escola da vida, mesmo diante dos obstáculos presentes no seu dia-a-dia. Existe a valorização da escola,
do saber e o modo de vida na comunidade. De outro, professores e alunos vivenciando as fragilidades do transporte escolar, o
longo e perigoso percurso para chegar à escola.
Deste modo, ao colocar em questão os aspectos culturais da escola dos Ilhéus, inserimos no debate a prática social
de um povo que deseja uma escola que seja deles e não para eles.
Pensamos que considerações de Moreira (2002) sobre as implicações do multiculturalismo para o currículo são
pertinentes, pois este autor considera que o multiculturalismo envolve os procedimentos empregados para fazer frente à
heterogeneidade cultural, devendo expressar um posicionamento claro a favor da luta contra a opressão, o preconceito e a
discriminação a que certos grupos minoritários têm, historicamente, sido submetidos. Currículos multiculturalmente
orientados instigam práticas renovadas e democráticas na escola e na formação docente, bem como estimulam ações.
Moreira (2002, p. 22) destaca também que “ao procurar entender a singularidade de cada grupo, de cada cultura,
compreende-se mais a humanidade”, pois não basta reconhecer a diferença, mas compreendê-la. Ao adotar uma posição de
estranhamento com relação à comunidade, percebe-se que os professores apesar de suas formações deficientes assumem uma

55
postura multicultural, um reconhecimento das diferenças, da heterogeneidade, deste grande “arco-íris de culturas” que fazem
parte de nossa sociedade.

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http://www.cedes.unicamp.br
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Razão indolente, interesses hegemónicos e a universidade: reflexões acerca do


discurso do empreendedorismo em empresas juniores no Brasil

Alessandra Costa
Fundação Getúlio Vargas - EBAPE
amello9@terra.com.br

Denise Barros
Fundação Getúlio Vargas - EBAPE
denise.fb@globo.com

Paulo Emilio Martins


Fundação Getúlio Vargas - EBAPE
paulo.martins@fgv.br

Resumo: Utilizando-se do arcabouço teórico da sociologia das ausências de Boaventura de Souza Santos, este artigo analisa a construção do
conceito de empreendedorismo no Brasil em dois loci de produção de significado: a universidade e a mídia de negócios. O estudo confiou no
método da análise do discurso e concentrou seu foco no material publicado nas revistas Exame, Você S.A. e HSM Management dos últimos
três anos e em entrevistas em profundidade realizadas com alunos e docentes, participantes de empresas juniores de universidades localizadas
na cidade do Rio de Janeiro. O objetivo foi identificar construções discursivas acerca do conceito de empreendedorismo, investigando
vínculos que evidenciem as relações de poder no mundo do trabalho e suas possíveis conseqüências na formação de futuros gestores. Assim,
a principal suposição deste trabalho é a de que os discursos analisados provenientes das entrevistas dos alunos e professores participantes de
Empresas Juniores em conjunto com os discursos engendrados e reproduzidos na mídia especializada, parecem caracterizar a construção de
uma compreensão ocidental do mundo que elimina a possibilidade de cenários alternativos fundamentando-se em uma razão indolente. Ou
seja, o conhecimento teórico produzido nas escolas de administração apresenta-se hoje como um forte complemento ao dia-a-dia empresarial,
reproduzindo o discurso da indústria cultural do management e reduzindo a importância das práticas acadêmicas na formação de indivíduos
mais crítico e reflexivo com relação à sua inserção profissional.

1. Introdução
A presente pesquisa direciona sua atenção para as possíveis implicações da criação e disseminação do conceito de
empreendedorismo construído pela mídia de negócios e incorporado no ensino e nas práticas docentes universitárias por meio
das atividades de Empresas Juniores brasileiras.
A suposição que norteia este ensaio é a de que o conhecimento teórico produzido nas escolas de administração
apresenta-se hoje como um forte complemento ao dia-a-dia empresarial, reproduzindo o discurso da indústria cultural do

56
management e reduzindo a importância das práticas acadêmicas e a formação de um profissional crítico com relação a sua
inserção no mundo do trabalho.
O tema do empreendedorismo e seus desdobramentos vêm sendo valorizados por governos, empresas e sociedades,
em geral, (CHANLAT, 1995) e, pelos cursos de administração, em particular (BARROS e PASSOS, 2000), como sendo o
grande e fundamental veículo de inovação, de crescimento econômico e de realização individual.
Na área educacional brasileira, o tema empreendedorismo incorpora-se às grades curriculares das Instituições de
Educação Superior através das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Administração que sugerem um
perfil para o administrador que desenvolva, entre outros pontos, uma capacidade empreendedora e crítica (SARAIVA, 2007).
Ao mesmo tempo, além das disciplinas relacionadas ao tema que passam a fazer parte dos curriculos, as instituições de
ensino passam a incentivar e promover a abertura de Empresas Juniores que seriam o espaço por excelência da prática do
empreendedorismo. Cabe a estas o papel de potencializadores do espírito empreendedor e a responsabilidade pelo début
profissional de seus participantes.
Assim, o senso comum, a mídia e a literatura de negócios propagam modelos de profissionais idealizados e
heróicos, apresentando o tipo ideal do empreendedor como sendo aquele herói emblemático que ousa desbravar caminhos
novos, que incorpora o risco em suas ações, que quebra regras e que reconhece oportunidades onde ninguém mais as
consegue perceber. São quase personalidades míticas, caracterizadas – por exemplo – por metáforas como a do “guerreiro
amoroso”, definição atribuída ao guru empresarial Roberto Shinyashiki (SEBRAE, 2004).
Dentro da problemática definida, três inquietações subjacentes passam a direcionar e a articular os caminhos deste
trabalho.
A primeira questão diz respeito às formações discursivas de cada grupo escolhido e suas articulações: (a) as
empresas juniores e os docentes e discentes envolvidos em suas atividades (em última instância as escolas de administração);
e (b) a mídia de negócios. É exatamente a articulação desses elementos que faz do discurso uma prática social ou discursiva,
centralizando a questão da investigação das ordens de discurso institucionais e societárias.
A segunda questão refere-se às relações de poder e de dominação presentes no mundo do trabalho. Qual modelo de
trabalhador o conceito de empreendedorismo privilegia? E qual trabalhador este conceito escamoteia ou marginaliza? Ou
seja, quais são os impactos da produção social desta ausência?
Tal questionamento apresenta-se relevante quando inserido em um contexto internacional de fluxo global de
riquezas, imagem e poder. Segundo Lemos e Rodrigues (2008), subjacente a esse entendimento existe uma nova atitude
frente à esfera produtiva, diferente da relação de trabalho tradicional. O profissional contemporâneo passa a ser uma unidade
econômica autônoma inserida em um contexto competitivo, sendo o “eu empreendedor (...) um atributo fundamental do
indivíduo empregável, que precisa autogerir a carreira, deve ser empresário de si próprio e ver a si mesmo como se fosse um
negócio” (LEMOS e RODRIGUES, 2008, p.2).
A terceira, e última questão, diz respeito ao modelo de racionalidade que fundamenta e embasa as duas discussões
anteriores. Assumindo que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo (SANTOS, 2007),
como proceder de forma a compartilharmos experiências sem a destruição de nossas identidades? O processo de globalização
é entendido neste trabalho como um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, políticas, sociais e culturais
interligadas que não permitem explicações monocausais uma vez que “interage (...) com outras transformações no sistema
mundial (...) tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país,
entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a
emergência de novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente
organizado, (...) etc” (SANTOS, 2002, p.32).
A perspectiva epistemológica que embasou o desenvolvimento teórico da pesquisa foi a sociologia das ausências de
Boaventura de Souza Santos, que propõe a busca de abordagens alternativas à globalização neoliberal e ao capitalismo
global, expandindo o domínio das experiências sociais já disponíveis (SANTOS, 2001; 2002). Essa perspectiva assume que a
realidade não se reduz apenas ao que já existe e posiciona-se contra o contemporâneo “etnocentrismo ocidental” (SANTOS,
2004, p.12). Ao contrário, a realidade apresenta-se como um campo de possibilidades para práticas alternativas que foram
marginalizadas, cabendo a ampliação “do espectro do possível através da experimentação e da reflexão acerca de alternativas
que representem formas de sociedade mais justas” (SANTOS, 2002, p.25).
A sociologia das ausências apresenta-se (junto com a sociologia das emergências e o trabalho de tradução) como
um procedimento sociológico fundamentado não em uma racionalidade indolente, mas sim em sua contraposição: em uma
razão cosmopolita.
Segundo Santos (2007), a razão indolente ocorre por meio de quatro racionalizações diferentes: (1) a razão
impotente, que não se exerce porque acredita-se que nada pode-se fazer contra uma necessidade concebida como exterior à
ela própria; (2) a razão arrogante, que não sente-se necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente livre, até
mesmo da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade; (3) a razão metonímica, que reivindica-se como a única forma
de racionalidade; e (4) a razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, pois o concebe como uma superação linear,
automática e infinita do presente.
Neste trabalho, a racionalização que nos interessa destacar é a metonímica. Para a razão metonímica, não pode-se
compreender uma determinada ação sem que esta seja referida a um todo. Esta totalidade possui absoluta primazia sobre cada
uma das partes que o compõem, tendo como conseqüência: (a) nada que existe fora da totalidade merece ser inteligível; (b)

57
nenhuma das partes pode ser pensada fora da relação com a totalidade; e (c) a compreensão do mundo que a razão
metonímica promove apresenta-se parcial, seletiva e produtora de não-existências.
Segundo Santos (2007), existem cinco lógicas por meio das quais a razão metonímica produz a não existência1. No
caso deste trabalho, a lógica identificada nos discursos analisados foi a produtivista.
A lógica produtivista baseia-se nos critérios de produtividade capitalista cujo objetivo racional inquestionável é o
crescimento econômico. Nos termos desta lógica, a natureza produtiva é a natureza maximamente fértil num dado ciclo de
produção, enquanto trabalho produtivo é o trabalho que maximiza a geração de lucros igualmente num dado ciclo de
produção. A não-existência é produzida sobre a forma do improdutivo, do estéril, da preguiça ou da desqualificação
profissional. Ou seja, “o lucro é um excedente legítimo que não gera nem exploradores nem explorados, mas simplesmente
ganhadores de um lado e malsucedidos ou perdedores do outro lado (...)” (AKTOUF, 2004 p.68).
Dentro desta lógica, não existe espaço para questionamentos mais substantivos como, por exemplo: “na corrida
pela produção de bens materiais, no que se transformam o homem e a comunidade dos homens? Qual é, nesta corrida, a
finalidade do econômico? (...) Por que produzir? Por que enriquecer? Quem se enriquece? Como se enriquece? Até que
ponto? E em detrimento de quem?” (AKTOUF, 2004 p.64-65).
Assim, de forma a buscar possíveis respostas às nossas inquietações, a opção deste trabalho é questionar os
pressupostos da razão metonímica e da lógica produtivista inerentes, ao nosso ver, à construção discursiva do conceito de
empreendedorismo tal como ocorre nas Empresas Juniores e na mídia de negócios.
Em contraposição à razão indolente, Santos (2007) apresenta a razão cosmopolita. Ou seja, a forma de crítica que
busca evitar o desperdício da experiência, aumentando o seu campo e tornando possível uma melhor avaliação das
alternativas que são hoje possíveis e disponíveis (SANTOS, 2001). Esta diversificação de experiências visa recriar a tensão
entre experiências e expectativas, mas de tal modo que estas ocorram no presente: “as expectativas são as possibilidades de
reinventar a nossa experiência, confrontando as experiências hegemônicas, que nos são impostas, com a imensa variedade
das experiências cuja ausência é produzida activamente pela razão metonímica ou cuja emergência é reprimida pela razão
proléptica” (SANTOS, 2007, p.45).
Desta forma, trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, produzido como
não existente. Ou seja, como uma alternativa não-crível ao que existe pois, “o objetivo das sociologia das ausências é
transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças” (SANTOS, 2007,
p.12). Assim, os discursos analisados provenientes das entrevistas dos alunos e professores participantes de Empresas
Juniores em conjunto com os discursos engendrados e reproduzidos na mídia especializada, parecem caracterizar a
construção de uma compreensão ocidental do mundo que elimina a possibilidade de cenários alternativos fundamentando-se
em uma razão indolente.
Esta razão indolente, fundamenta o conhecimento hegemônico produzido no Ocidente em um contexto sócio-
político de: (a) consolidação do Estado liberal na Europa e na América do Norte; (b) revoluções industriais; (c)
desenvolvimento capitalista; e (d) colonialismo e imperialismo (SANTOS, 2004; 2007). Ao mesmo tempo, a indústria do
management, contribui para a homogeneização dos conceitos e práticas administrativas referentes ao tema
empreendedorismo, apresentando-se como um importante veículo para a disseminação das ideologias na sociedade em
função da abrangência de seu poder de comunicação e pela sua capacidade de publicizar idéias (FONSECA, 2003).
A mídia de negócios e a literatura designada por pop-management efetiva esse processo por meio de: (a) promoção
de valores associados ao empreendedorismo e ao sucesso profissional; (b) indução pelo poder da influência e do prestígio de
agendas específicas junto ao público executivo; (c) divulgação sistemática de novidades gerenciais; e (d) legitimação das
novidades gerenciais (MICKLETHWAIT e WOOLDRIDGE, 1998; WOOD e de PAULA, 2002).
Neste sentido, diante da dinâmica social e econômica da atualidade, acredita-se que a construção discursiva do
conceito empreendedorismo apresenta-se como um elemento útil à compreensão das relações de poder existentes no mundo
do trabalho e suas consequências na formação de futuros gestores.
O trabalho está organizado em cinco seções. Após a introdução, no referencial teórico, procuramos contemplar
através de revisão bibliográfica, as diversas interpretações acerca dos conceitos de empreendedor e empreendedorismo. Em
seguida explicitamos os procedimentos metodológicos da pesquisa empírica. Na quarta seção interpretamos os resultados que
nos permitiram a identificação e a seleção de um conjunto de objetos discursivos vinculados ao tema do empreendedorismo,
presentes tanto nas reportagens das revistas quanto no discurso dos alunos e professores vinculados às Empresas Juniores.
Tais objetos discursivos, ancorados na fundamentação teórica da sociologia das ausências, permitiram a elaboração de
algumas reflexões acerca das relações de poder no mundo do trabalho e suas consequências na formação de futuros gestores.
A quinta e última seção, apresenta as considerações finais e sugestões para pesquisas futuras.

2. Referencial Teórico
2.1 Definindo Empreendedorismo

1
Segundo SANTOS (2007) além da lógica produtivista, pode-se destacar outras quatro por meio das quais a razão metonímica produz a não-existência: (a) a
monocultura do saber e do rigor do saber; (b) a monocultura do tempo linear; (c) a lógica da classificação social; e (d) a lógica da escala dominante.

58
Ao longo da história, várias foram as tentativas de definição do que seria empreendedorismo e quais seriam as
especificidades de seu agente social: o empreendedor. A ascensão sócio-econômica dos empreendedores tem início no início
do século XIX inserida em um contexto econômico refletido pelas forças livres do mercado e da concorrência. No século
XVIII, Cantillon (1755) apresenta o empreendedor como um comerciante, produtor de manufatura ou agricultor que se ajusta
ao risco devido às oscilações de oferta e demanda. Para o economista clássico Jean Baptiste Say, o empreendedor é de
fundamental importância no desenvolvimento econômico dada a sua capacidade de combinação e transferência de recursos
de setores de baixa para os de alta produtividade (GOMES, 2005). No entanto, a definição mais recorrente é a extraída de
Schumpeter (2001), para o qual empreendedor é, sobretudo, um inovador que impulsiona o desenvolvimento econômico
através da reforma ou revolução do padrão de produção.
Segundo Castanhar (2007), Joseph A Schumpeter explica o processo de desenvolvimento econômico (e seus ciclos)
como decorrência do surgimento de novas combinações e novos usos de recursos: (a) introdução de um novo bem ou de um
bem já existente com nova característica; (b) introdução de um novo método de produção; (c) abertura de um novo mercado;
(d) descoberta de novas fontes de suprimento; e (e) desenvolvimento de novas formas de organização. Estas inovações
apresentam-se como potencializadoras de desequilíbrios (ou perturbações) que movimentariam as economias e as sociedades
em direção ao desenvolvimento. E o empreendedor é o agente que inicia estas mudanças, alterando o sistema em equilíbrio
através da identificação de novas oportunidades.
O destaque para a questão do caráter inovador surge em definições mais atuais que privilegiam novas
oportunidades de investimento, de produto ou de negócios (BYGRAVE e HOFER, 1991; KRUEGER e BRAZEAL, 1994) ou
a criação de novas empresas (GARTNER, 1989). O empreendedorismo também apresenta-se como fundamental para o
desenvolvimento econômico, potencializando lucros através de uma “visão” ou um “espírito” muitas vezes mais pessoal do
que fruto de um cálculo racional (ANDERSSON, 2000).
Desta forma, são concebidos como indivíduos que impulsionam a máquina capitalista ao prover novos bens de
consumo e inovadores métodos de produção e transporte. Os empreendedores possuem uma função social de identificar
oportunidades e convertê-las em valores econômicos.
Segundo López-Ruiz (2007), tais procedimentos são coerentes com a reformulação neo-liberal da economia política
contemporânea, onde o espírito do capitalismo produz um repertório de explicação da realidade que toma a figura do
executivo como matriz de uma conduta a ser disseminada pela sociedade inteira fundada no investimento constante e
exclusivo da vontade na produção da riqueza abstrata. Tal matriz prolonga e intensifica a obrigação do homem moderno de
dedicar sua vida ao ganho, reduzindo os atributos dos indivíduos à dimensão do interesse e incorporando a lógica do capital
“como se ela fosse, mais do que a razão de sua existência, o fundamento último da própria vida humana em sociedade”
(SANTOS, 2007).
Assim, para que uma sociedade fundamentada em um mercado livre seja capaz de produzir mais riqueza, seria
preemente a existência de indivíduos capazes de criar e aproveitar oportunidades, melhorar processos e inventar negócios. De
que adiantaria um mercado livre sem tal espírito empreendedor? Desta forma, a busca do ganho é mais do que uma obrigação
e o indivíduo, nos dias de hoje, é qualificado como o sujeito econômico capitalista por excelência. Mas como o trabalhador
pode ser convertido em capitalista? Lemos (2005), argumenta que a incorporação à formação econômica nacional da
atividade empresarial no Brasil é recente e fundamentou-se por: (a) ausência de uma ética do trabalho; (b) desvalorização do
trabalho manual, percebida como uma atividade de menor valor pois era executada por escravos; (c) ausência de estímulo à
iniciativa individual e à atividade empresarial; (d) estreita simbiose com o Estado, o que restringia a percepção da atividade
empresarial como pioneira ou desbravadora; e (e) tradição católica que condena a usura e o lucro.
Nos dias de hoje, podemos identificar a falta de reflexões mais críticas que ressaltem as relações de poder e de
dominação presentes nestas construções discursivas: tanto a produção acadêmica quanto a produção da mídia de negócios
reproduz as mesmas premissas e argumentações.
Neste sentido, a atual valorização do empreendedorismo parece apontar para uma incorporação ingênua por parte
dos indivíduos deste conceito, sem um fundamental “procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira”
(GUERREIRO RAMOS, 1996 p.73). As características destacadas dos empreendedores são quase sempre as mesmas:
valores e cultura do empreendedorismo adquiridos através de um modelo empreendedor durante a juventude, tenacidade e
capacidade de tolerar ambigüidades e incertezas, experiência em negócios, diferenciação, intuição, envolvimento,
trabalhadores incansáveis, correm riscos moderados, sonhadores realistas (visionários), imaginativos, líderes, voltam-se para
resultados, trabalham com moderação em rede, tem seu próprio sistema de relações com os seus funcionários, controlam o
comportamento das pessoas ao seu redor, aprendem com seus próprios padrões.
Da mesma forma, as definições acerca do que é empreendedorismo também não escapam deste certo consenso,
mesmo quando as diferentes definições expressam as diversas maneiras de abordagem do fenômeno: como disciplina,
comportamento ou técnica de gestão. Por exemplo, segundo Hisrich e Peters, (2004, p.29), empreendedorismo é o processo
“de criar algo novo com valor dedicando tempo e o esforço necessário, assumindo os riscos financeiros, psíquicos e sociais
correspondentes e recebendo as conseqüentes recompensas da satisfação e independência econômica e pessoal”. Para Paiva
Jr. e Cordeiro (2002, p.2), “(...) consiste no fenômeno da geração de negócio em si, relacionado tanto com criação de uma
empresa, quanto com a expansão de alguma já existente, a exemplo do desenvolvimento de uma unidade de negócio no
contexto da grande corporação (...) voltado para a busca e exploração de oportunidades tende a acelerar a expansão dos
empreendimentos, o progresso tecnológico e a geração de riqueza”. De forma complementar, Feger (2004, p.4) define este

59
conceito como um processo dinâmico de criação de riquezas “por indivíduos que assumem riscos em termos de patrimônio,
tempo ou comprometimento com a carreira e que provêem valor ao produto”.

2.2 Empreendedorismo e as escolas de Administração.


As escolas superiores de administração são um fenômeno bastante recente no Brasil. Até a década de 1960 só
existiam dois cursos em território nacional, um no Rio de Janeiro e outro em São Paulo. A partir desta década, no entanto, o
crescimento foi exponencial: entre 1960 e 1999 foram criados mais 821 cursos, chegando ao total em 2000 de 1462 cursos
existentes no Brasil (ver: Conselho Federal de Administração, 2007). Apenas no estado do Rio de Janeiro, existem cerca de
100 escolas superiores de Administração. Cifra ainda mais surpreendente se levarmos em consideração o percentual de
indivíduos que chega à universidade no Brasil.
Neste contexto, o conceito de empreendedorismo adquire cada vez mais relevância nos meios acadêmicos, o que
nos sugere a importância de uma análise mais crítica e reflexiva acerca do papel de tal conceito no ensino e prática da
administração. Segundo Murphy, Jiao e Welsch (2006), este crescimento pode ser percebido nos números referentes às
academias e escolas de negócios. Nos últimos cinco anos, apenas nos EUA, cerca de 1.600 universidades ofereceram 2.200
cursos de empreendedorismo, além de 100 centros estabelecidos oferecendo recursos, consultoria e orientação aos
empreendedores e oportunidades pedagógicas para estudantes.
No Brasil, o maior congresso de Administração, o Encontro Nacional da Associação de Pós Graduação e Pesquisa
em Administração - EnANPAD, possui uma área especialmente dedicada ao tema. Esta área situa-se dentro da divisão de
Estratégia em Organizações, e aprovou em 2006 e 2007, 23 e 21 artigos, respectivamente. Cabe a ressalva, no entanto, de que
o tema apresenta-se abrangente o suficiente para permear outras áreas, como por exemplo: (a) ensino e pesquisa em
administração; (b) estratégia; e (c) estudos organizacionais. Fora do âmbito acadêmico, revistas dedicadas aos negócios
possuem colunas permanentes sobre o assunto e promovem, em conjunto com associações como o Serviço Brasileiro de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) ou a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN),
encontros e feiras dedicadas especificamente ao tema.
Segundo Saraiva (2007), seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Administração, as escolas de
administração dedicam pelo menos uma disciplina ao tema do empreendedorismo e incentivam o crescimento de suas
Empresas Juniores. Estas parecem representar a oportunidade de transformação do estudante em empreendedor, como afirma
a Federação das Empresas Juniores do Rio de Janeiro: “Os alunos das universidades públicas, por terem menos infra-
estrutura e menor contato com as grandes empresas, precisam desenvolver muito o empreendedorismo, que, aliás, é o grande
princípio Júnior” (UFRJ Online, 2005).
Neste processo, no entanto, alguns pontos merecem ser destacados. Primeiro, conforme as questões profissionais
passam a ser consideradas como individuais e definidas a partir da capacidade dos indivíduos em competir e vencer, o senso
coletivo é enfraquecido e instala-se “uma lógica darwiniana de todos contra todos, em que só se beneficiam as empresas, em
detrimento dos indivíduos e instituições” (SARAIVA, 2007, p.5). Segundo, tal capacidade empreendedora também pode ser
questionada pois, na maior parte das matrizes curriculares o que verifica-se é que “ter uma formação empreendedora significa
consentir, do ponto de vista profissional, com as iniciativas empresariais pró-flexibilização do trabalho” (SARAIVA, 2007
p.5), uma vez que transfere para os indivíduos a responsabilidade pela gestão de suas carreiras e oportunidades profissionais.
O Brasil apresenta-se hoje como o país com maior número de Empresas Juniores (mais de 600 em catorze estados)
com 23 mil empresários juniores segundo censo realizado pela Brasil Jr em 2001 (Confederação Brasileira das Empresas
Juniores – CBEJ, 2007). O tempo médio de permanência do aluno nestas organizações é de dois anos (UFRJ Online, 2005),
sendo importante ressaltar que tal experiência não conta como estágio supervisionado, pelo qual todo estudante de
Administração tem que se submeter por, no mínimo, seis meses.

2.3 Empreendedorismo e a mídia de negócios


A mídia de negócios refere-se ao conjunto de livros, revistas e jornais de negócios caracterizados como artefatos da
cultura do management (WOOD JR, 2001). Segundo Wood Jr e de Paula (2002), esta cultura possui os seguintes
pressupostos: (a) a crença da sociedade no mercado livre; (b) a visão do indivíduo como auto-empreendedor; (c) o culto da
excelência como forma de aperfeiçoamento individual e coletivo; (d) o culto de símbolos e figuras emblemáticas; (e) a crença
em tecnologias gerenciais que permitem racionalizar as atividades organizadas grupais.
Com relação a esta mídia, já existem estudos preocupados com o desenvolvimento da indústria do management nas
escolas de graduação em Administração no Brasil (CARVALHO, CARVALHO e BEZERRA, 2007; COSTA, BARROS e
MARTINS, 2008; WOOD JR e DE PAULA, 2003) que consubstanciam-se em três pontos principais.
Primeiro, tal desenvolvimento torna-se preocupante porque a mídia de negócios contribui para a difusão das modas
e modismos de gestão sem questionar o reducionismo e condicionantes ideológicos embutidos nestas informações sobre
negócios. Segundo Carvalho, Carvalho e Bezerra (2007), tais publicações apresentam “discurso unificado, linguagem
simplificada e narrativa pasteurizada (...) [e] através da padronização de conceitos, modelos e métodos, os autores abordam
problemas complexos por meio de construções simbólicas, criando a impressão de que se pode facilitar a compreensão da
questão e a tomada de decisão decorrente de seu tratamento”.
Segundo, porque a mídia de negócios apresenta narrativas com aspectos identificáveis de controle social onde “as
histórias de sucesso disseminadas (...) auxiliam na redução de tensões geradas pela instabilidade do mundo do trabalho

60
contemporâneo” (WOOD JR e DE PAULA, 2003, p.9). Os casos de sucesso de grandes empresas e suas receitas prontas para
vencer, narrativas normalmente estrangeiras, são prescritivas e impõem noções dicotômicas de certo ou errado, moderno ou
antiquado (CARVALHO, CARVALHO e BEZERRA, 2007).
Terceiro, e mais importante para a prática futura da Administração, porque os estudantes de administração – sem
valorizar outras fontes de informação e sem um posicionamento crítico e reflexivo - passam a ter contato com a teoria
principalmente através da mídia de negócios o que “pode criar desvios de aprendizagem que acabarão por gerar deturpações e
deformidades (...) em sua formação profissional e pessoal” (CARVALHO, CARVALHO e BEZERRA, 2007 p.1).

3. Procedimentos Metodológicos
Para construção do corpo de dados, foram coletados dados em cinco Empresas Juniores brasileiras de escolas de
administração do Rio de Janeiro, três do âmbito privado e duas do âmbito público, bem como matérias publicadas nas
revistas de negócios Você S.A., Exame e HSM Management no período entre os anos de 2004 e 2007.
Neste trabalho privilegiamos as universidades localizadas na cidade do Rio de Janeiro não apenas em função da
conveniência dos pesquisadores, mas também por conta da importância de tais escolas nos panoramas nacional e continental.
Das três escolas do âmbito particular: (a) uma apresenta-se como a escola de administração mais antiga da América Latina;
(b) outra é uma universidade particular de grande prestígio, sendo a sua Empresa Junior considerada a referência nacional; e
(c) a última, a mais recente, possui grande fama na formação de administradores especialmente voltados para o mercado de
capitais. Todas as três instituições têm filiais nas principais cidades brasileiras e convênios com várias universidades do
exterior.
Consideramos também importante incluir escolas públicas, de forma a verificar se havia similaridades ou
diferenças perceptíveis nos discurso de seus integrantes. Desta forma, entrevistamos professores e alunos tanto de uma
universidade estadual, quanto de uma federal, sendo esta última a maior universidade federal do Brasil. Com referência ao
segundo caso, recorreu-se deliberadamente à literatura designada como pop-management (WOOD JR e DE PAULA, 2001) e
o critério que orientou a seleção das matérias nas revistas foi a existência dos termos empreendedor ou empreendedorismo no
título ou subtítulo da coluna ou matéria, totalizando cerca de 60 páginas sobre o tema no período. Também foram realizadas
dezessete entrevistas em profundidade (McCRAKEN, 1988) de cerca de uma hora e meia cada, até que houvesse saturação
dos dados. Isto é, até que não fossem apresentadas novas versões sobre o tema.
Os dados foram analisados segundo análise do discurso para embasar e conduzir os protocolos metodológicos
requeridos para a etapa aplicada da pesquisa. A abordagem aqui adotada foi a CDA – critical discourse analysis – e, de forma
mais específica, a perspectiva da teoria social do discurso de Norman Fairclough (2001). Esta pressupõe a utilização de um
esquema tridimensional (FAIRCLOUGH, 2001, GRANT, KEENOY e OSWICK, 2001; HARDY, 2001) de análise no qual o
evento discursivo (qualquer exemplo de discurso) é analisado tendo como base a idéia de que este é simultaneamente (a) um
pedaço de texto; (b) uma instância de prática discursiva; e (c) uma instância de prática social.
A perspectiva defendida pelo presente trabalho comporta a idéia de que todo conhecimento empírico acerca das
organizações é socialmente construído (ALVESSON e DEETZ, 1998; MISOCZKY, 2003; PAGÈS et al., 1993), cabendo ao
pesquisador encontrar os significados associados por estas construções sociais à ação organizacional. Toda palavra traz
consigo um certo número de conotações obscuras, passíveis de investigações que revelem intenções ocultas, pressuposições
veladas e ambigüidades implícitas. Nos discursos organizacionais, tais estruturas lingüísticas e metalingüísticas estão
naturalmente presentes, e sua captura e seu estudo sistemático possuem relevância científica (ALVESSON e KARREMAN,
2000; PAGÈS et al., 1993; STEFFY e GRIMES, 1986).

4. Representação dos Resultados


Os resultados da pesquisa permitiram a identificação e a seleção de um conjunto de objetos discursivos vinculados
ao tema do empreendedorismo, presentes tanto nas reportagens das revistas quanto nos discursos dos alunos e professores
vinculados às Empresas Juniores.
Na pesquisa científica, geralmente os discursos são identificados por intermédio de um “objeto discursivo”
(ALLEN e HARDIN, 2001) que serve como referência do interesse específico do pesquisador. Assim, a análise do discurso
produzido pelo contato real, simbólico e/ou imaginário dos sujeitos com o tema do empreendedorismo permitiu identificar
aspectos mais subjacentes, proceder inferências fundamentadas em indícios e interpretar as mensagens explícitas e implícitas
desvendando possíveis sentidos ocultos, silêncios e omissões.
Esses objetos discursivos foram considerados como expressões de formações discursivas compartilhadas que,
ancoradas na razão metonímia e em sua lógica produtivista, podem contribuir para a investigação de possíveis vínculos que
evidenciem as relações de poder no mundo do trabalho e as evidentes conseqüências na formação de futuros gestores.
Os objetos discursivos selecionados foram: (a) espírito empreendedor; (b) inovação e geração de riqueza; (c)
exploração de oportunidades; e (d) sonhadores realistas.
Estes objetos discursivos identificados refletem a lógica produtivista da razão metonímica quando apresentam o
conceito de empreendedorismo vinculado a um necessário engajamento dos indivíduos – e o desenvolvimento dos negócios –
apenas à produção capitalista. Ou seja, o tema do empreendedorismo é construído pelas reportagens e expresso pelos alunos e

61
professores como vinculado à idéia de ascensão sócio-econômica apenas em um contexto econômico refletido pelas livres
forças do mercado e da concorrência.
Não existem alternativas: são considerados possuidores de um espírito empreendedor aqueles que impulsionam a
máquina capitalista e a busca do crescimento econômico ao prover novos bens de consumo e métodos inovadores de gestão e
produção:
“O potencial de renovação da classe empresarial é fundamental para a geração de novos empregos, a melhoria da
distribuição de renda, e, em última análise, para o crescimento de toda a nação” (MANO, 2006).

“[possui a] capacidade quase sobrenatural de identificar a próxima grande coisa bem antes de outras pessoas chegarem
a ela (...) O primeiro servidor de internet no Japão estava localizado no banheiro de seu apartamento em Tóquio”
(HSM MANAGEMENT, 2007b).

Tais indivíduos – produtivos e caracterizados como proprietários ou funcionários - possuem a função social de
identificar oportunidades e convertê-las em valores econômicos, desempenhando um papel fundamental de geração e ou
expansão de negócios:
“(...) são as pessoas que tem vontade de realizar alguma coisa. Tem o capital e tem uma idéia muito forte (...) um sonho
de fazer o próprio negócio”.

Os alunos entrevistados tiveram dificuldades em aceitar ou identificar empreendedores em áreas que não a dos
negócios. Estes vinculam a sua identidade ao espaço organizacional de gestão.
“O Empreendedor (...) assume completa e total responsabilidade pelo negócio dele. (...) Ele quer que o negócio dele dê
certo porque o sucesso (...) do negócio dele é o sucesso dele”.

“Ele é realmente um empreendedor (...) porque ele investiu no negócio, viu possibilidade de crescimento (...) e ele
cresceu a partir daí. (...) É um cara que correu atrás (...) teve oportunidade ali no centro da cidade de mercado, de
demanda não atendida e ele foi suprindo essa necessidade (...) mesmo não tendo ‘know how’ técnico pra isso, ele foi
meio que fazendo na intuição mesmo”.

A inovação vincula-se à idéia de geração de riquezas e apresentam-se como fundamentais.


“(...) [o empreendedor] tem um estilo de vida frenético. (...) quando distingue uma idéia promissora, ele funda uma
empresa ou injeta fundos em um negócio existente (...). uma vez que o negócio esteja rodando, vai embora em direção
à próxima grande idéia” (HSM MANAGEMENT, 2007).

Para os alunos, o empreendedor percebe oportunidades em diversas áreas de atuação. Cabe ressaltar, no entanto,
que o empreendedor de sucesso não é somente o individuo que abre um novo negócio, mas sim aquele que obtém sucesso
com a abertura desse negócio e está sempre inovando. O bom empreendedor não é um indivíduo fracassado, preguiçoso ou
estéril:
“(...) acho que o cara que se mantém empreendedor ele tá sempre buscando coisas novas. Tem aquela parte da questão
da inovação, né? Que o cara é criativo e consegue implementar as idéias que ele tem. (...)”.

“O mau empreendedor é aquele (...) que tem uma idéia, lúdica, como a maioria das idéias são, mas que ele tem uma
expectativa maior do que (...) o mercado necessita ou que as pessoas precisam”.

Para os alunos, também não necessariamente os empreendedores de sucesso precisam ter tido contato com a
educação formal. Não é este afastamento que os desqualifica. Pelo contrário, a qualificação provém da experiência
profissional e da capacidade de perceber oportunidades:
“Uma pessoa empreendedora, ela é empreendedora a vida inteira. Ela sempre vai ter essa noção de negócio, (...) de
mudança, que ninguém aprende isso, acho que isso é um fator que você não tem como aprender em faculdade
nenhuma”.

“Ele está aberto a novas sugestões, mas nem sempre ele bota essas sugestões na prática, se ele achar, se ele tiver um
‘feeling’, por que o empreendedor trabalha muito com o ‘feeling’ dele (...) são pessoas que normalmente não tem o
‘know how’ técnico, que não estudaram tanto”.

Esta qualificação para o sucesso parece ser potencializada pelo ambiente familiar. Os primeiros exemplos vêm da
família e incluem personagens que tiveram diferentes negócios, não necessariamente formais.
“(...) Na maioria dos casos, filhas e filhos de empreendedores de sucesso se tornam excelentes líderes (...) [porque]
crescer numa empresa familiar confere boa orientação empresarial e muito conhecimento, e essas são qualidades
extremamente valiosas” (HSM MANAGEMENT, 2006).

“Um exemplo de empreendedor? Pô, tem vários. (...) Meu avô acho que é um exemplo de empreendedorismo. (...) Ele
começou a trabalhar cedo numa farmácia. (...) Com 18 anos ele comprou essa farmácia (...) . (...) Depois comprou outra
farmácia, depois ele viu que o mercado de farmácia tinha enchido na cidade porque era uma cidade pequena (...) Ele
comprou restaurante, cinema, (...) começou a diversificar. (...) Ele agora investe em gado”.

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Os entrevistados parecem concordar com a idéia de que a Empresa Junior e suas normas, regras e códigos de
conduta, apresenta-se como o principal lócus de aprendizagem e de emergência do empreendedor e de sua carreira
profissional.
“A empresa junior (...) é um grande celeiro de pessoas que vão trabalhar no mercado e vão querer fazer alguma coisa,
empreender em algum momento na vida delas, elas vão querer fazer isso (...) porque mal ou bem na empresa junior
você pega esse gostinho”.

No entanto, não vinculam esta experiência como sendo uma experiência acadêmica ou pertencente ao contexto
universitário. Ou seja, por um lado, o ensino universitário, espaço da teoria, desempenha um papel dúbio ao ser confrontado,
na percepção dos alunos, com o mercado – espaço da prática:
“O começo do negócio foi típico dos empreendedores – muita criatividade e quase nenhuma sofisticação gerencial”
(GOMES, 2004).

“(...) Tem muita coisa que a gente aprende aqui que não vê na faculdade. Passa pela faculdade inteira e não vê coisas
que a gente aprende aqui”.

“Eu, em duas semanas eu aprendi muita coisa, até mais do que em dois anos de faculdade. Aprendi mais do que em
sala de aula porque bota em prática, você vê situações do dia a dia”.

“Muitas das vezes são poucas as pessoas que conseguem ver o conhecimento sendo transmitido em sala de aula e
conseguir aplicar (...) São poucas as pessoas que conseguem transpor essa barreira. (...) Tem que quebrar o paradigma
que ela tem que o que é aprendido em sala de aula fica em sala de aula (...) A gente tenta romper essas barreiras para
que as pessoas comecem a assimilar mais isso”.

Por fim, os empreendedores são caracterizados como criativos e sonhadores, mas sempre por meio de visões
corroboradas por uma racionalidade instrumental:
“A gente tem liberdade para criar, a gente faz da empresa o que a gente quiser, quer dizer, conforme, com certa ordem.
Mas gente faz isso aqui crescer. A gente criou essa empresa. Isso é total empreendedorismo”.

“Na empresa Junior (...) existe uma certa flexibilidade dentro das atividades, dentro das áreas (...) a pessoa tem as
chances de ser empreendedora dentro da empresa, de modificar, de implantar coisas novas (...) ele pode fazer
experimentações que ele quiser ali, claro que existem limites, mas ele já pode experimentar, ele já pode perceber quais
são os impactos das suas ações”.

“Mostrar para ele [aluno] que a teoria tem uma grande diferença da prática. (...) Quando ele chega na Empresa Junior a
empresa Junior é uma empresa. Então ele tem que controlar a parte contábil, ele tem que buscar clientes para ter
receita, tem que administrar – entre aspas – os funcionários, que são os outros membros da empresa (...) Ou seja, o
principal mérito é justamente você trazer um pouco mais da prática para a teoria dentro da própria instituição que dá a
teoria. Então eles fazem acontecer dentro da Academia”.

5. Considerações finais
Neste trabalho assumimos as premissas que: (a) os discursos não apenas refletem entidades e relações sociais e sim
as constrõem; (b) o discurso não é apenas o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta
(FOUCAULT, 2007); (c) nenhuma linguagem é neutra e que determinados usos da linguagem e de outras formas simbólicas
são ideológicos, ou seja, estabelecem e mantêm, em circunstâncias específicas, relações de poder e dominação; e (d)
tentativas de definir a direção da mudança cada vez mais incluem tentativas de mudar as práticas de linguagem
(FAIRCLOUGH, 2001).
.Neste sentido, refletir sobre o tema do empreendedorismo e seus discursos a partir da sociologia das ausências,
pode trazer contribuições significativas para a análise das relações de poder no mundo do trabalho e a formação de futuros
gestores.
Uma primeira contribuição, é que tal reflexão descortina os discursos construídos e disseminados pela mídia de
negócios e pelos participantes das Empresas Juniores acerca do papel desempenhado pelo empreendedor no mundo
contemporâneo: impulsionador do desenvolvimento e do crescimento econômico baseado na lógica de produção capitalista.
As alternativas não são contempladas, caracterizando-se como ausências, restando apenas a opção de que, na atualidade, para
que uma sociedade possa potencializar todos os benefícios provenientes de um mercado livre capitalista, necessita do espírito
empreendedor gerador de inovação e de riquezas.
Ao mesmo tempo, refletir a partir de uma lógica que não exclui possibilidades de caminhos de produção não
capitalistas, permite também desmascarar o discurso da mídia de negócios que cristaliza a caracterização do empreendedor
como herói, sendo seu sucesso atribuído a características consideradas capazes de produzir resultados que expressam sucesso
empresarial: ambição, dinamismo, incorporação do risco calculado, intuição para percepção de novas oportunidades e
liderança para motivar equipes.
Como ressalta Saraiva (2007, p.5) nada é dito “a respeito das condições de trabalho, ou da precarização que
acompanham a vida profissional da maior parte dos empreendedores, sendo apenas reforçados os estereótipos e mitos sobre

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as glórias do mundo dos negócios”. Mas quem é esse profissional contemporâneo? Quem é esse trabalhador? Como nos
mostra Aktouf (2004, p.40 e 41): “Quem pode efetivamente nos dias de hoje aproveitar os frutos do progresso? Em
detrimento de quem? E quando se fala de melhoria geral do nível de vida do trabalhador, de que trabalhador se trata? Do de
Paris ou do de Ouagadougou? Qual desses dois tipos de trabalhadores é mais numeroso na Terra?”.
O próprio Schumpeter - resgatado pelos acadêmicos como o grande definidor do que seria a figura do
empreendedor – a partir dos anos 1930, redefine suas idéias ao defender a tese de que a competição perfeita raramente havia
existido na história e que não havia motivos para considerá-la um modelo de eficiência na promoção do crescimento
econômico a longo prazo (ARRIGHI, 1996).
Para este, o sistema formado pelas grandes empresas com poderosas unidades de controle possuíam as supostas
vantagens da competição perfeita sem as suas desvantagens, uma vez que as práticas competitivas e restritivas seriam os dois
lados de um mesmo processo de destruição criadora: “as limitações ao livre comércio (...) podem, no final das contas,
produzir uma expansão não apenas mais sistemática da produção total, como também maior do que a que seria assegurada
por um avanço inteiramente descontrolado, que não tem como deixar de ser repleto de catástrofes” (SCHUMPETER, 1984,
p. 103).
Desta forma, a competição que realmente importava na promoção do crescimento a longo prazo - decorrente do
novo produto, da nova tecnologia, de novas fontes de abastecimento e de novos tipos de organização – apresentava-se mais
intensa na presença de grandes unidades empresariais do que em sua ausência. E as práticas restritivas a que as grandes
empresas podiam recorrer (com mais facilidade e freqüência do que as pequenas empresas) garantiam um espaço para o
planejamento a longo prazo e para a proteção às desorganizações temporárias do mercado (ARRIGHI, 1996).
Talvez algumas possíveis respostas a estas duas reflexões possam vir da ecologia da produtividade (SANTOS,
2007). Esta consiste na valorização de sistemas alternativos de produção ocultados pela lógica produtivista capitalista como:
(a) organizações econômicas populares; (b) cooperativas operárias; (c) empresas autogeridas; e ou (d) economias solidárias.
Valorizar alternativas pode ser um posicionamento mais crítico com relação a idéias e práticas que privilegiam e legitimam a
racionalidade do lucro sem limites e a disseminação de um modelo conceitual que privilegia o empreendedor-herói de
“conteúdo capitalista, ocidental, branco, masculino, heterossexual e euro-norte-americano – tido como certo e como padrão a
ser copiado por todos os demais” (SARAIVA, 2007, p.6).
Como último ponto de reflexão, pode-se observar no discurso dos alunos e professores entrevistados, que a
educação, ou o conhecimento teórico produzido na universidade, apresenta-se hoje apenas como um complemento ao dia-a-
dia empresarial, reproduzindo os discursos da indústria cultural do management e reduzindo a importância das práticas
críticas e reflexivas acadêmicas (FARIA, 2006).
Diante deste quadro, deve-se, por um lado, refletir sobre a orientação do ensino oferecido pelas universidades para
que tal ideologização da figura do empresário ou empreendedor não reduza a importância simbólica da universidade e para
garantir que instituições acadêmicas não apóiem (de forma consciente ou não) determinados interesses empresariais,
governamentais ou sociais em suas práticas de ensino e pesquisa, transformando o espaço universitário em um mercado de
idéias.

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Universidade Brasileira: Classes Populares e Desafios

Leda Maria de Oliveira Rodrigues


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP
ledamor@uol.com.br

Resumo: O presente trabalho é resultado de recente pesquisa empírica realizada com universiotários de uma importante instituição privada
do sudeste brasileiro.Os sujeitos da pesquisa adentraram ao ensino superior pelo Programa Universidade para Todos (PROUNI), voltado para
jovens que não podem pagar um curso superior privado e tampouco têm capital cultural e escolar para enfrentar o exame de seleção realizado
nas universidades públicas brasieliras.Foram sujeitos da pesquisa bolsistas do programa matriculados em cursos de baixa e alta procura da
referida instituição. O PROUNI foi isntituído no governo Lula da Sila no ano de 2004 e este estudo procura conhecer suas bases, ganhos
sociais e seus limites. Esta investigação, embora preliminar, pretende compreender em que medida o programa atende expectativas de uma
população pouco ou nada favorecida pelos programas sociais do referido governo.Resultados: apresenta uma possível caracterização social
dos universitários (classes populares, filhos de trabalhadores manuais), bem como conhece algumas de suas perspectivas sociais e
profissionais, levando em conta a relação educação e trabalho. Analisa como o neoliberalismo atingiu esses sujeitos, considerando-os como
fração de uma classe específica cujas ambições escolares estavam, dadas as características profundamente eletistas do sistema educacional
brasileiro, além de suas possibilidades.A bibliografia marxista, neoliberal e estudos de Bourdieu direcionaram nossa análise. A partir de
dados coletados o problema do acesso e permanência na universidade foi abordado.Pudemos refletir sobre a questão da oposição entre a
democratização e massificação do ensino superior brasileiro e seus desdobramentos.

Esta pesquisa foi realizada recentemente, nos anos de 2006-2007 e seu objeto de análise são estudantes do ensino
superior que ingressaram em uma instituição de ensino superior (IES) privada a partir do programa universidade para todos,
conhecido como PROUNI, instituído pelo governo de Luis Inácio Lula da Silva a partir de 19 de novembro de 2004 no
Brasil. Elaborei o projeto de pesquisa e este foi desenvolvido em um ano, com a colaboração de dois estudantes da

66
graduação1. Trata-se, portanto, de um estudo preliminar e este necessariamente deverá ter continuidade, ampliando-se o
número de sujeitos e diversificando-os no quesito instituição.
O PROUNI oferece bolsas integrais em instituições privadas de ensino superior para alunos que completaram o
ensino médio em escolas da rede pública (ou escolas privadas, com bolsa integral) e fazem parte de famílias com renda per
capita de até um salário mínimo2 e meio, e bolsas parciais de 50% para alunos cuja renda familiar per capita não exceda três
salários mínimos; em contrapartida, a instituição que aderir ao PROUNI fica isenta de alguns impostos. O termo de adesão,
entre o Estado e as instituições de ensino superior (IES) pagas, tem vigência de 10 anos, atendendo tanto as prerrogativas dos
grandes empresários da Educação Superior quanto à agenda neoliberal assumida pelo atual governo. Até 02/2008 o governo
ofereceu 434.592 bolsas PROUNI, de acordo com o Ministério da Educação.
Os resultados dessa fase preliminar da pesquisa referem-se aos sujeitos de uma única universidade, escolhida pelo
fato de respeitar alguns critérios por nós estabelecidos: ter status de universidade, diferenciando-se de outras que são apenas
faculdades; por ser uma universidade de prestígio nacional uma vez que tem como princípio o ensino, a pesquisa e a
extensão; por ser uma universidade privada com mensalidades altas abrigando em seus cursos uma clientela de alto poder
aquisitivo, na sua maioria. Essa universidade localiza-se no sudeste brasileiro. É confessional e não visa lucros.
Para nós, o bolsista, objeto desta pesquisa, é um sujeito especial dado que além de atender aos critérios do
programa universidade para todos (PROUNI) é um estudante que foi aprovado pelo exame nacional do ensino básico tendo
alcançado um bom rendimento, e esse último é um dos critérios de seleção de alunos do PROUNI para diferentes cursos
nessa instituição. Como essa é uma universidade de prestígio, as vagas reservadas aos alunos do PROUNI (10% do n° de
alunos pagantes e matriculados no curso) são muito concorridas, às vezes, dependendo do curso, mais concorridas do que o
próprio vestibular - exame que o aluno egresso do 3°ano colegial presta para adentrar ao curso superior. Trabalhamos com
estudantes de cursos de alta e baixa procura, pois uma das nossas preocupações era saber como este aluno percebe o curso
que faz, se é um curso que proporcionará uma profissão valorizada ou não valorizada socialmente.
O objetivo fundamental da pesquisa foi o de caracterizar os sujeitos matriculados na universidade a partir das
bolsas PROUNI. Buscamos: detectar a classe social de onde tais estudantes provêm, informação esta não suficientemente
conhecida; explicitar ao grau de conhecimento dos alunos do programa de bolsas do qual usufruíam, o que entendem pelo
programa; saber como esses estudantes vêem suas perspectivas sociais e profissionais, considerando as relações educação e
trabalho.
Quanto às características socioeconômicas dos estudantes, pensamos que estes bolsistas do PROUNI matriculados
na universidade em questão, correspondem por hipótese, a sujeitos oriundos de uma classe média pauperizada. Ainda neste
trabalho, esta suposição será discutida, mesmo preliminarmente.
Trabalhamos com um total de 50 bolsistas, 25 deles matriculados nos cursos de Fonoaudiologia, Pedagogia e
Direito, primeiro grupo e um segundo grupo de 25 bolsistas matriculados nos cursos de Ciências Sociais e Psicologia. Os
estudantes bolsistas foram entrevistados pelos dois alunos de iniciação científica, participantes da pesquisa. Assim, como
eram dois pesquisadores, cada um entrevistou 25 estudantes bolsistas. O número de bolsistas entrevistados obedeceu à
proporção do número total de bolsistas em cada curso. Os bolsistas foram divididos da seguinte forma: cinco (05) do curso de
Pedagogia, dois (02) do curso de Fonoaudiologia e 18 do curso de Direito para um dos pesquisadores. O outro pesquisador
entrevistou 13 bolsistas do curso de Psicologia e 12 bolsistas do curso de Ciências Sociais.
Com esses objetivos e a partir da coleta de dados passamos a apresentar os principais achados da pesquisa, bem
como a análise dos mesmos. Também teceremos, com o aporte de autores da sociologia da educação e outros, alguns
significados importantes que podemos dar, inicialmente, às relações por nós estabelecidas.Considerando os sujeitos
matriculados pelo PROUNI nos cursos acima especificados, apresentamos informações e considerações sobre estas relações,
traçando, inicialmente, o perfil sociecomômico dos sujeitos.
No caso dos estudantes do primeiro grupo, a média de idade dos 25 alunos pesquisados é de 25.4 anos; quatro
sujeitos têm mais de 30 anos. Encontramos apenas três estudantes com 20 anos, idade esperada para esses estudantes,
considerando o fato destes alunos poderem estar cursando no máximo o terceiro ano do curso superior.3 Dos 25 estudantes,
13 deles ingressaram no curso superior com no mínimo 22 anos, quando o normal seria ingressar no ensino superior com 18
anos. Portanto, considerando a média de idade de 25.4 anos, há uma defasagem de 7.4 anos com relação aos sujeitos que
adentram ao sistema escolar com sete anos de idade e têm um percurso escolar de sucesso.
No segundo grupo, 25 bolsistas dos cursos de Ciências Sociais e Psicologia, a faixa etária está entre 18–45 anos. A
maioria (14) concentra-se entre 20 - 23 anos; nove sujeitos têm idade entre 18-20 anos e somente dois estudantes têm idade
acima do esperado, um com 30 e outro com 45 anos. Assim, a média de idade dos estudantes desse segundo grupo é: 21.5. Se
considerarmos a média de idade do primeiro grupo, ou seja, 25.4 podemos dizer então que, a idade predominante dos
estudantes do PROUNI ao adentrarem na universidade é de 23.4 anos.

1
Os estudantes Cibele Suzuki Gomes Pedroso e Hugo Eiji Nakagawa eram alunos do 3° ano da graduação no curso de Pedagogia, Faculdade de Educação da
PUC/SP no período de agosto de 2006 a agosto de 2007. Neste ano, os dois estudantes foram meus orientandos de Iniciação Científica, com bolsa do CNPq,
órgão do governo federal que subsidia parte da pesquisa científica no Brasil.
2
Na época, ano de 2007, um salário mínimo correspondia a 350 reais (moeda brasileira) ou aproximadamente 162, 7 dólares.
3
Isto porque o PROUNI teve início em 2005, primeiro ano em que tivemos estudantes com essa modalidade de bolsa. Em 2006, estariam no segundo ano e em
2007, no terceiro. Ressalta-se que a coleta foi realizada em 2006-2007.

67
A defasagem entre idade e série do segundo grupo é menor, em relação ao primeiro, neste último, a defasagem é de
7.4 anos, e no segundo grupo, a defasagem é de 3.5 anos.
Em geral, os estudantes que conseguem manter a relação idade / série sempre adequada tendem a ter uma
trajetória escolar de sucesso. Dificilmente estes estudantes sofrerão com o processo de exclusão, por qualquer razão que seja:
reprovação, mudança de cidade por necessidade familiar, trabalho infantil e outros fatores determinantes da evasão escolar
precoce. Esses fatores foram e são estudados de forma profunda por Cunha (1981, pp.113-175).
Os trabalhos de Bourdieu (1975, pp.80-118) e Lahire (2004, pp17-70) nos ajudam a compreender o caso desses
estudantes, uma vez que os conceitos de capital cultural e social, aliados à extração social dos sujeitos impedem que os
mesmos tenham acesso à cultura dominante. As famílias dos estudantes pesquisados provavelmente não puderam oferecer,
desde a infância dos mesmos, as condições mínimas de leituras, visitas a museus, estudo de línguas estrangeiras e outras
formas de conhecimento; o mesmo podemos dizer das relações sociais, estas provavelmente não proporcionaram o contato
natural com a cultura dominante ou com as informações necessárias para a atualização dos estudantes. Em função do grau de
instrução dos pais, ocupação e faixa de renda familiar dos estudantes, apresentados logo em seguida, as lacunas culturais e
sociais podem ser verdadeiras. Com isso, a evasão escolar por reprovação, desistência e outras formas de exclusão são
plausíveis no caso específico desses estudantes, e por isso a defasagem idade/ série se justifica. Há indícios que os
estudantes desta pesquisa não chegaram à escola com habilidades e comportamentos adequados e esperados pela instituição
escolar, para aquisição de conhecimentos específicos nunca antes visto por eles. Os dados indicam que os pais e a família em
geral, não tinham comportamentos voltados para a educação institucionalizada: concentração, hábito de leitura e discussão
em casa, redação de pequenos textos ou mesmo, de familiaridade com a busca de informações em jornais, revistas e
bibliotecas (mesmo públicas), etc. Ressalta-se que todos esses comportamentos esperados são do domínio de estudantes das
classes médias e da elite social, o que dá condição de enfrentar a escola com mais desenvoltura, podendo terminar o ensino
básico com uma formação que extrapola as condições oferecidas pela instituição escolar. Livremente, os estudantes mais bem
aquinhoados de conhecimentos fornecidos pelas famílias (capital cultural e social) aplicam o conhecimento recebido na
instituição escola conseguindo, na prática, vê-lo resolver problemas de suas necessidades. Assim, a escola capitalista
atendendo as necessidades das elites, afasta o conhecimento das crianças dos setores populares, sendo este um dos fatores
mais fortes para a desistência escolar precoce, a evasão escolar. Aqui, podemos identificar o caso dos alunos do PROUNI.
Quanto à profissão e ocupação dos pais dos alunos do curso de Psicologia e Ciências Sociais verificamos que sete
(07) pais, dentro dos 25 têm formação no Ensino superior e quatro deles têm formação técnica. Aqui, encontramos
congruência entre as informações sobre profissão / ocupação com os pais dos estudantes do curso de Direito, Pedagogia e
Fonoaudiologia.. Nos dois grupos verificamos que a formação no ensino superior está entre seis (06) e sete (07) pais, no
máximo. Se considerarmos 100 pais, somando-se todos os pais e mães dos dois grupos, teremos 13% dos pais com ensino
superior completo, o que é muito pouco. Isto mostra que a maioria dos pais (87%) só fez ensino fundamental ou básico
completo.
Também podemos dizer que nos dois grupos predominam as ocupações que exigem pouca escolarização ou
nenhuma qualificação. Assim, no grupo de 50 pais (pai e mãe) de estudantes do curso de Direito, Pedagogia e
Fonoaudiologia, 28 pais e mães dos bolsistas executam trabalhos manuais, ou seja, com pouca ou nenhuma qualificação.
Entre esses 28 estão 11 mães cujos filhos declararam ser donas de casa. Na categoria, supervisão de ocupações não manuais
encontra 19 pais e mães. Somente três dos pais (pai e mãe) têm ocupação como profissional liberal e proprietário de empresa
de tamanho médio.
No grupo de 50 pais (pai e mãe) de estudantes de Psicologia e Ciências Sociais também encontramos uma maioria
de pais que executa trabalhos manuais. Entre as mães a ocupação predominante é dona de casa, 12 delas exercem esta
atividade e somente uma delas é professora primária. Identificamos entre o restante de pais (pai e mãe) um total de 37
sujeitos que executam trabalhos que exigem pouca qualificação. As profissões encontradas nos dois grupos são: carpinteiro,
mecânico, costureira, metalúrgico; comerciante, caminhoneiro, vendedor. Entre os profissionais liberais encontramos uma
(01) psicóloga e um (01) empresário cuja empresa caracteriza-se como pequena, já que tem menos de (05) cinco empregados.
Ao compararmos os dados podemos dizer que existe um equilíbrio entre os dois grupos. O grau de escolaridade dos
pais concentra-se entre ensino fundamental completo e ensino médio completo, deixando-se de lado os pais que não
terminaram o ensino fundamental ou ainda, os que não têm nenhuma escolarização. Neste último caso, encontramos um (01)
dos pais nos dois grupos. A porcentagem de quem fez o ensino fundamental completo e ensino médio completo está na faixa
de 34% e 32%, respectivamente, considerando-se os dois grupos, ou ainda, 100 pais dos sujeitos da pesquisa.
O essencial é que o grau de escolaridade dos pais não é sequer o ensino médio, não têm formação básica mínima.
Divide-se entre ensino fundamental e médio, o que é pouco. Este fato demonstra que a democratização do ensino não existiu
de fato, pois não alcançou os sujeitos dessa geração – pela idade dos filhos (22-45 anos), os pais são aproximadamente de
1950-1960 ou mais – período este, segundo alguns autores, caracterizado por tentativas de democratização da escola
brasileira, como é o caso de Cunha (1981, pp. 111-171).
Quanto à renda familiar, nos dois grupos, a renda está concentrada entre dois e três salários mínimos, já que a
maioria, 28 famílias no grupo dos estudantes dos cursos de Direito, Pedagogia e Fonoaudiologia) e 40 famílias no grupo dos
estudantes dos cursos de Psicologia e Ciências Sócias encontram-se nessa situação. Apenas três (3) famílias têm renda
superior a cinco salários mínimos. Este caso é interessante, pois em duas destas três famílias os pais têm ensino superior
completo, o que não quer dizer que atuam na universidade, mas pode explicar o fato de terem uma renda maior.

68
Ressaltamos que dos 50 sujeitos entrevistados, 32 deles trabalham, pelo menos meio período. O número de
estudantes matriculados nos cursos de Direito, Pedagogia e Fonoaudiologia que trabalham é maior, com relação aos
estudantes do outro grupo. A maioria dos estudantes 38 sobre 50 cursaram o ensino básico em escolas públicas,
Nos dois grupos, a avaliação sobre o programa universidade para todos é muito positiva, mesmo com algumas falas
que apontam para a idéia de que o programa “é uma jogada de marketing do governo Lula e que este deixa de lado a
discussão da expansão da universidade pública”. Dizem também os sujeitos: “a elitização da universidade pública é
marcante”, reforçando e concordando com o ideário de repasse de recursos públicos para as instituições de ensino superior
(IES) privado Assim, segundo eles o Estado financia o estudo de alguns poucos privilegiados; o PROUNI, conforme os
entrevistados, é uma medida que garante o acesso de muitos jovens de setores populares ao ensino superior.Para eles, essa é
uma opção democrática frente à restrição de acesso nas principais IES públicas do país.
Em termos de perspectivas profissionais os dados dos dois grupos apontam para a idéia expressa da valorização da
mobilidade individual ascendente, conforme, Bourdieu (1975, pp. 80-114).O ingresso na universidade acena para a superação
ou manutenção da situação socioeconômica familiar. Acreditam na importância social dos cursos nos quais estão
matriculados.
Os dados de renda familiar, profissão / ocupação e grau de escolaridade dos dois grupos nos esclarecem que esses
sujeitos, 50 alunos bolsistas, são oriundos de setores populares e não de famílias de classe média pauperizada, como
pensávamos em nossa hipótese. Se fossem oriundos da classe média pauperizada poderíamos entender porque essa
população procura hoje pelo ensino superior, conforme aponta Saes (1977, pp.96-102)
Segundo Saes, a classe média é a classe que não tem, como a burguesia, uma forma própria de ascensão social. Esta
classe, de modo geral pode deixar para os filhos a forma de trabalho já estabelecida pelos pais (empresa, latifúndio, etc.). É a
herança do patrimônio dos pais que será administrada pelos filhos. Por isso, não dependem diretamente do sistema escolar
para ascensão, mesmo porque essa classe já tem seu lugar no espaço social, tendo apenas que mantê-lo. Ainda, segundo Saes,
a classe média é a classe que busca uma forma de ascensão a partir da escolarização e valores meritocráticos diferenciando-se
da classe operária quanto ao tipo de trabalho que executa. Para ele, a classe média quer se distanciar do trabalho manual (em
geral executado por trabalhadores operários com pouca qualificação) e busca uma profissão socialmente mais valorizada.
Assim, procura o sistema escolar como forma de profissionalização e meio de execução do trabalho intelectual, considerado
simbolicamente como a forma de distinção dessa classe média da classe operária.
Como os estudantes pesquisados não pertencem à classe média, (são filhos de pais trabalhadores manuais e com
baixa escolarização) quais as razões que os leva a procurar o ensino superior hoje? Teria a universidade perdido seu papel
principal de produtora de conhecimento passando a atender uma população em busca de apenas um diploma? (Santos, 2004,
pp. 54-112). Essa procura, seria hoje reflexo da ideologia neoliberal brasileira que aposta na educação como forma de
solução dos problemas sociais (emprego, desenvolvimento, etc.), embora, até hoje, o governo não tenha democratizado o
ensino? (Neves, 2002, pp.21- 40). Neste ponto podemos dizer que talvez tenhamos democratizado as vagas, mas não
democratizamos o conhecimento. Talvez os estudantes do PROUNI estejam sendo manipulados pela idéia de que a educação
ou futura profissão, será de fato uma forma de ascensão. Por isso, o grande desafio da universidade brasileira atualmente é
pensar em como redimensioná-la sem que deixe de ser o lócus da produção de conhecimento científico, ao mesmo tempo em
que convive com os paradoxos colocados pelo PROUNI, cotas para negros, pardos, índios e estudantes egressos do ensino
médio público. Será isto possível?
Diante de tais dados sobre renda familiar, escolarização de pais e trabalho do estudante, Bourdieu explica a
impossibilidade desses sujeitos se apropriarem do conhecimento produzido e reproduzido na escola capitalista, no caso desta
pesquisa, no sistema universitário. Esses sujeitos estão em busca de uma formação universitária, pensando e acreditando na
possibilidade de serem profissionais como os demais, cuja origem de classe é média ou mesmo, elite. O fato de serem
oriundos de setores populares pode impedir de terem uma carreira profissional de sucesso, como está de certa forma
garantida para os estudantes de classes sociais mais abastadas. O fato é que a pesquisa aponta para a idéia de que esses
estudantes podem estar imbuídos da ideologia neoliberal de que a educação é de fato uma panacéia para seus problemas de
ascensão, pois contam com a possibilidade de obterem melhores empregos, afinal essa é a tônica do mercado de trabalho. O
mercado só absorve mão de obra qualificada, pensando nos objetivos da indústria, ou seja, melhorar a produção e aumentar a
competitividade no mercado (Rodrigues, 2007, pp.59-63). Ocorre que, a condição socioeconômica desses estudantes não lhes
permitirá competir no mercado, com profissionais de classe média e da elite, num mesmo patamar. Todos sairão do mesmo
curso, terão o mesmo diploma, mas estes terão valores diferenciados, no momento da execução e da exigência do mercado
competitivo. Maiores serão ainda as diferenças entre profissionais egressos das instituições de ensino superior públicas
quando comparados com os egressos das instituições privadas. O sistema educacional capitalista brasileiro é cruel.

BIBLIOGRAFIA
Bourdieu,P.& Passeron, J.C. (1975). A reprodução. Rio de Janeiro: LivrariaFrancisco Alves Editora S.A.
Cunha, L. A. ( 1981). Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S.A.
Lahire, B. (2004). Sucesso escolar nos Meios Populares as razões do improvável. São Paulo: Editora Ática.
Neves, Maria Lúcia (Org.). (2002). O empresariamento da educação novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos
1990. São Paulo: Xamã.

69
Rodrigues, José. ( 2007). Os empresários e a educação superior.Campinas: Autores Associados.
Santos, B. de S. ( 2004). A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São
Paulo: Cortez Editora.
Saes, D. A. de. ( 1977). Classe média e políticas de classe (uma nota teórica). Contraponto, 2 , novembro, 96-102.

Estudar no Brasil: a experiência sócio-cultural de universitários da África


Lusófona em São Paulo, Brasil

Carlos Subuhana
Universidade de São Paulo (USP) e Casa das Áfricas
subuhana@hotmail.com

Resumo: No presente Congresso nos propomos apresentar os resultados das atividades de pesquisa desenvolvidas no Programa de Pós-
doutorado em Antropologia da Universidade de São Paulo - USP. O projeto teve como objetivo investigar a experiência social e cultural de
estudantes universitários oriundos de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)– através dos programas PEC-G e PEC-PG do
governo brasileiro, localizados em São Paulo. Ampliamos, assim, um universo de pesquisa iniciado no Rio de Janeiro e que teve como
primeiro resultado a tese de doutorado. O nosso objetivo não deixa de estar relacionado a trabalhos de outros especialistas em Ciências
Sociais e Humanas, que abordam questões relativas a estudos de etnologia urbana. A pesquisa vai nesta mesma direção, sendo que no
presente caso constitui um desafio para o próprio pesquisador o fato de ser, ao mesmo tempo, observador e parte integrante do objeto de
estudo. Os dados que foram coletados para a elaboração do relatório final se referem a: i) avaliação dos estudantes acerca dos programas
PEC-G e PEC-PG; ii) projetos de vida e a escolha do Brasil; iii) atitudes de preconceiro e discriminação (percepção e/ou interpretação sobre
as atitudes de preconceito e discriminação no Brasil, bem como em África); iv) sociabilidade e redes sociais; v) e, por último, a expectativa
do retorno (ou seja, como esses acadêmicos pensam aplicar os conhecimentos adquiridos no Brasil a realidade dos países de origem). O
material foi coletado através de entrevistas com estudantes PALOPs cursando universidades (públicas e privadas) de São Paulo.

Introdução
Nessa introdução apresentamos os referenciais teóricos e analíticos, a metodologia e a bibliografia que orientaram a
pesquisa para a redação do relatório final no Programa de Pós-doutorado em Antropologia da Universidade de São Paulo -
USP. Além da justificativa, apresentamos também as hipóteses e o método que foi utilizado na coleta do material, bem como
a forma de análise dos resultados.
A hipótese que foi desenvolvida durante a pesquisa para a elaboração do relatório enfoca a presença de estudantes
provenientes de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)1 em universidades e instituições de formação
profissional – públicas e particulares - de São Paulo. Ampliamos, assim, um universo de pesquisa iniciado no Rio de Janeiro
e que teve como primeiro resultado a tese de doutorado (Subuhana, 2005). No Rio de Janeiro o trabalho ateve-se a estudantes
de nacionalidade moçambicana. Tratou-se, portanto, de um segmento nacional dentre as nacionalidades que compõem o
conjunto de estudantes africanos naquele Estado brasileiro. No caso do estudo de São Paulo, considera-se o conjunto de
nacionalidades componentes dos PALOP – Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, sendo
esse universo uma ampliação da questão tratada no Rio de Janeiro, fato que considera ainda, a especificidade de outra região.
Em segundo lugar, a ampliação do universo corresponde também, a uma abordagem mais complexa, não só pela questão das
diversas nacionalidades, mas também pela diversidade de origens sociais e étnicas desse universo, que com suas histórias
singulares podem revelar novos ângulos das questões já postas pelo primeiro estudo. Um terceiro ponto é que, nesse novo
contexto, houve a expectativa de que o emergir dados novos e significativos pudesse permitir descobertas significativas para
se pensar os deslocamentos com finalidade de estudo entre África e Brasil e, ainda, proporcionar uma reflexão mais teórica
do sentido desses fluxos.
Vale comunicar que aqui a proposta foi investigar a experiência social e cultural dessa população que está no
Estado de São Paulo principalmente fazendo seus estudos universitários, em nível de graduação ou pós-graduação,
comumente portadores do “visto temporário tipo IV”. Ao restringir o nosso universo de pesquisa não estamos querendo
afirmar que as questões que esses estudantes se colocam sejam apenas inerentes a seu grupo, ao contrário, elas também se
fazem presentes em outros universos sociais, basicamente em outras situações de dinâmicas populacionais e/ou migratórias,
como as estudadas por Leandro (2004), Petrus (2001), Sayad (1998), Subuhana (2005) entre outros. Segundo os
ensinamentos de Elias e Scotson (2000), o uso de uma pequena unidade social como foco de investigação de problemas
igualmente encontráveis numa grande variedade de unidades sociais, maiores e mais diferenciadas, possibilita a exploração
desses problemas com uma minúcia considerável – “microscopicamente, por assim dizer”. Esses teóricos afirmam que

1
PALOP é o acrônimo de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Ou seja, as antigas colônias de Portugal em África, possuindo cada um deles diferentes
características geográficas, econômicas e demográficas. Nestes países a língua portuguesa é o elemento interno de ligação entre as respectivas populações e de
projeção no exterior.

70
“pode-se construir um modelo explicativo, em pequena escala, da configuração que se acredita ser universal [...]” (Elias &
Scotson, 2000:20).
É difícil fornecer dados quantitativos que caracterizem essa população. Existe imensa dificuldade de obter dados
efetivos desse contingente como mostram inúmeros trabalhos feitos com o tema, do qual cito o de Edilma Desidério (2006),
que em sendo funcionária do IBGE, fala da incerteza dos dados nessa fonte e outras como a Polícia Federal. Lembro ainda,
que os sistemas de registros das universidades brasileiras quanto à origem desses estudantes são irregulares e falhos, o que
impossibilita saber quantos são de fato. Os dados que dispomos aponta para a faixa etária dessa população que varia de 18 a
44 anos, havendo um ligeiro equilíbrio entre o número de homens e mulheres.
São poucas as famílias constituídas de marido, mulher e filhos. Durante as entrevistas identificamos quatro casais, a
saber: um casal de caboverdianos, um casal de moçambicanos, um casal constituído por uma caboverdiana e um Russo, um
casal constituído por uma guineense e um brasileiro, e um casal constituído de moçambicano e brasileira.
Os estudos desses universitários são financiados por seus próprios pais e parentes2, Organizações Não-
governamentais (ONG`s)3, pelos Governos de dos países de origem (via ministérios), pelo Governo Brasileiro
(CAPES/MEC, CNPQ), bem como por empréstimos bancários.
Em razão de serem contingentes relativamente pequenos e de difícil acesso, mesmo para outro africano, quantificá-
los pode conduzir a resultados pouco expressivos. Assim, de modo muito geral e, somente com relação aos efetivamente
entrevistados, pode-se afirmar que em termos de origens sociais, os pais e parentes desses estudantes são, em sua maioria,
membros de altos escalões do governo (como ministros e governadores, por exemplo), empresários, funcionários dos setores
público, privado e de ONG´s, ou seja, de famílias de alto status sócio-econômico e político. Os poucos filhos de camponeses
ou de funcionários que auferem salários baixos conseguem entrar no Brasil para prosseguirem com seus estudos
universitários através de bolsas de estudos, basicamente em nível de pós-graduação (mestrado e doutoramento).
Essa população, entrevistada por nós, se identifica a partir de classificações distintas que se referem a distinções
étnico-raciais e lingüísticas que podem ou não se cruzar - como negros, mestiços, indianos, mulatos e brancos; fulas, macuas,
umbundus e rongas -; são bilíngües e/ou multilingües, ou seja, falam português, emakhwa, ciyao, bitonga, crioulo, kikongo,
inglês e francês, entre outras línguas.
Os setores de ensino nos cinco países estão em processo de grande expansão e também de inovação. Mesmo assim,
é fato que um número ínfimo alcança o nível universitário que, se cresceu nos últimos anos coma criação de instituições
privadas de ensino que se estabeleceram também fora das capitais (especialmente nas cidades de Corimba/Angola,
Mindelo/Cabo Verde e Nampula/Moçambique), ainda atendem diminuto número de cidadãos, ou seja, os estudantes
universitários representam um segmento microscópico em relação ao total da população, não atingindo 1%. O perfil comum
que caracteriza as instituições de ensino superior e pesquisa dos PALOP é: i) dificuldade de acesso a recursos; e, ii) elevada
dependência de doações externas para o ensino e, particularmente, para a pesquisa. Hoje os cinco países contam com
cinqüenta e cinco (55) IES e estão assim distribuídas: Angola (16)4, Cabo Verde (8); Guiné Bissau (3), Moçambique (25)5, e
São Tomé e Príncipe (3).
Já que o número de potenciais candidatos ao ensino superior não para de crescer e as universidades nacionais –
sobretudo as universidades públicas, não conseguem absorver essa demanda, hoje a opção de alguns pais e familiares tem
sido enviar seus filhos para realizarem seus estudos universitários no exterior, em especial para Portugal, África do Sul e
Brasil. Ao que consta, a primeira geração de estudantes dos PALOP a e/imigrar para o exterior a fim de prosseguir com seus
estudos universitários ocorreu nos meados da década de 1950 através das missões (Igrejas) Protestantes, num primeiro
momento para África do Sul e para outras colônias inglesas, e depois para Portugal, França, Suíça, RDA, EUA e Inglaterra,
entre outros. Dessa primeira geração6, que manteve contato com a esquerda européia através do Partido Comunista Francês e
com os ideais liberais florescentes nos EUA, surgem as principais lideranças que conduzem os processos de luta interna em
nome das independências de seus países.
A principal questão teórica que foi usada para a elaboração do relatório final é a da e/migração (Sayad, 1998), no
caso presente, e/imigração temporária. Preferimos usar o termo “imigração temporária” por acreditar que o conceito
“imigração” em strictu sensu seria definitivo demais, uma vez que esses estudantes entram no Brasil com o “Visto
Temporário IV”. É um visto que pode ser renovado e prorrogado anualmente, bem como transformado em Visto Permanente.
Migrações temporárias seriam, de acordo com Maria Beatriz Rocha-Trindade, os movimentos migratórios a que
correspondem estadias a prior limitadas no tempo, e uma das situações singulares seria a dos estudantes que, em países
estrangeiros, visam obter determinadas qualificações, sobretudo em programas de ensino superior graduado e pós-graduado
de longa duração (Philip Muus, 1995, p.170).
Essa questão é discutida em todo o trabalho. Outros temas, como sociabilidade e redes sociais, a idéia de projeto e
trajetória são abordados a partir da questão principal. A base do nosso trabalho consiste em investigar e compreender como

2
Como mostraremos posteriormente, os pais e parentes têm como obrigação assinar um termo de compromisso no qual afirmam estarem em condições de custear
os estudos de seu filho e/ou parente, sendo que o valor mínimo exigido é de 300/500$00 (quinhentos dólares americanos) mensais.
3
The Ford Foundation, Banco Mundial, FNUAP, entre outras.
4
Até 1999 tinha uma Univrsidade, a Universidade Agostinho Neto, fundada em 1962.
5
A Universidade Eduardo Mondlane, a maior e a mais antiga, fundada em 1962, hoje conta com 12 Faculdades.
6
Os nomes das lideranças mais conhecidas e famosas são: Agostinho Neto (Angola), Amílcar Cabral (Cabo Verde e Guiné Bissau), Eduardo Mondlane e
Marcelino dos Santos (Moçambique), Miguel Trovoada (São Tomé e Príncipe), entre outros.

71
esses estudantes experimentam a vivência de sair de seus países; o porquê desta iniciativa; o que acontece quando chegam ao
Brasil; o que vêm a se tornar quando chegam aqui; como constroem suas próprias identidades e auto-imagem; como se
relacionam nesse novo contexto; e depois, como voltam, o que os faz voltar, quem volta e de que maneira voltam.
O material aqui analisado foi coletado através de entrevistas (com questões fechadas e abertas) com estudantes da
África Lusófona que estão fazendo cursos em universidades (públicas7 e privadas8) de São Paulo. A escolha dos
entrevistados foi aleatória. As entrevistas ocorreram nas casas dos interlocutores, em minha casa, em festas, no CRUSP
(moradia estudantil), bem como em suas universidades. No total foram realizadas vinte (20) entrevistas9, ocupando um
espaço de cerca de 3.48 GB, o que corresponde a cerca de 26:35 horas. A média é de 35 páginas por entrevista, sendo que a
mais longa foi de 54 páginas transcritas. Os cinco países estão assim representados: Angola (4), Cabo Verde (93), Guiné
Bissau (5), Moçambique (5), São Tomé e Príncipe (3). Foram contatados representantes de duas associações de estudantes
(Angola e Guiné-Bissau) e acessados sites (como o Mozucas10, por exmplo).
Os métodos quantitativo, qualitativo - a observação direta e participante - se fizeram presentes durante a pesquisa.
De acordo com Hannerz (1980), a observação urbana participante é um modo eficaz de coligir dados. Através da observação
participante “é possível chegar a percepções de comportamento que as pessoas não verbalizam com facilidade e os dados que
se obtêm podem se centrar melhor nas relações e em seu contexto do que em indivíduos abstratos” (Ibid., p. 343). Esses
métodos nos permitiram escutar, observar e testemunhar o melhor possível o que já havia sido visto e ouvido de meus
interlocutores, antes do empreendimento da pesquisa.
Através das bibliotecas da USP e da Casa das Áfricas (SP), encomendei documentos e folhetos em bibliotecas de
dentro e fora de São Paulo, que foram indispensáveis na análise dos dados, sendo que o estudo teve como base fontes
primárias.
A presença de universitários africanos oriundos de países africanos de fala portuguesa em São Paulo, Brasil, foi
analisada à luz das transformações - como o contexto de mudanças e reestruturação econômico-social - pelas quais as
sociedades africanas têm passado nas últimas décadas e que vem trazendo um novo diálogo sobre as políticas públicas e
educacionais.
Uma das questões que me vem chamando atenção na minha própria experiência e nas conversas tidas com outros
estudantes africanos diz respeito aos aspectos que têm motivado pais e familiares a mandarem seus filhos ao Brasil, um país
de “desenvolvimento intermediário”, para prosseguirem seus estudos. É necessário perceber a existência de diversas
motivações que se escondem por detrás de uma aparente similaridade de projetos e escolhas por parte desses estudantes e de
seus familiares. Como bem observou Maria Engrácia Leandro (2004) a elaboração ou re-elaboração de projetos migratórios
ou de estudos não estaria desligada da dinâmica social e familiar em situações muito concretas, uma vez que normalmente é
na família e em função dela “que se concebem, tomam forma e realidade e se re-elaboram” os projetos de dinâmicas
populacionais (Leandro, 2004: 95).

Acordos e Convenções Bilaterais e/ou Multilaterais entre o Brasil e os PALOP


As relações entre a África e o Brasil não se limitam ao trafico de escravos. Como tem sido assinalado por vários
autores, como Aurélio Rocha (1989), por exemplo, “houve troca de influências políticas e culturais”. Tanto assim foi que
nenhum fato político no Brasil deixou de se repercutir na África e vice-versa. Neste fluxo comercial, em que o tráfico
emergia como nuclear, culturas se interpenetraram. Pode-se assim afirmar que se estabeleceram entre os territórios africanos
sob dominação política de Portugal e o Brasil, antes mesmo do século XIX, laços culturais e políticos, que se prolongaram
bem para lá da independência política do Brasil. As autoridades portuguesas chegaram a temer o prolongamento de correntes
políticas, de entendimentos e simpatias, entre liberais do Brasil de Angola, Cabo Verde e Moçambique.
Foi no ano de 1974, “já livre do compromisso sentimental com Portugal”, que o Brasil estabeleceu a sua ofensiva
diplomática na África, a qual resultou na implantação do “ciclo africano” em julho de 1980 com a viagem do Chanceler
Saraiva Guerreiro a cinco países da chamada “área socialista” – Tanzânia, Moçambique, Zimbábue, Zâmbia e Angola -, onde
se abriu um “caminho seguro para um comércio privilegiado sob a tutela do Estado” (Castro, op. cit.). De lá para cá o Brasil
tem assinado vários acordos diplomáticos com diversos países africanos, incluindo os PALOP, em inúmeras áreas. Hoje os
estudantes da “África Lusófona”, tanto os Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) quanto os Estudantes-Convênio de
Pós-graduação (PEC-PG), entram no Brasil para realizarem seus estudos no âmbito de cooperação em Ciência e Tecnologia
(PRÓÁFRICA), acordos esses assinados entre o Brasil e os governos de seus países de origem.

Projetos de vida e a escolha do Brasil


Em termos conceituais a noção de projeto, assim como da sua objetividade e subjetividade, tem recebido pouca
atenção por parte dos sociólogos, como bem reconheceu M. E. Leando (2004). De acordo com Leandro, foram os filósofos,

7
USP e UNESP. Hoje a USP conta com 71 estudantes provenientes dos PALOP. Fonte: Comissão de Cooperação Internacional (CCInt) da USP.
8
PUC-SP, Uni-Nove e São Camilo.
9
Dos 20 entrevistados dois – um caboverdiano e uma angolana – não autorizaram a gravação das falas.
10
www.geocities.com/mozucas (página dos estudantes moçambicanos no Brasil).

72
como J.-P. Sartre (1986), M. Merleau-Ponty (1971), E. Husserl, D. Christoss, entre outros que inicialmente se debruçaram
sobre esta problemática.
No Brasil são muitos os autores que atualmente se dedicam ao estudo de projeto. Um dos mais renomados é
Gilberto Velho (1994) que vê o mundo moderno como palco da valorização do indivíduo, o que possibilitaria a elaboração de
projetos individuais que na sociedade tradicional. Na sociedade complexa e moderna a família aparece mais como rede de
apoio. Myriam Moraes Lins de Barros (2000) diz que o projeto é pensado em condições sócio-culturais específicas e está
ligado aos valores da sociedade. É o aspecto socializado do conhecimento (Schutz, 1974), ou o aspecto público da linguagem
(Velho, 1979) que dá ao projeto a possibilidade de existência.
A pesquisa nos indicou que os projetos destes interlocutores estão mais atrelados à família, embora alguns cheguem
a afirmar que suas trajetórias e seus projetos de vida sejam individuais. Para muitos desses estudantes, a família constitui o
núcleo central e fonte de equilíbrio.
[...]. Não tem como ser individual porque ele não é individual. Para eu vir para cá é meu irmão que morava comigo que
era estudante e trabalhador na época, teve que abrir mão de muita coisa, ele já era pai. E, com certeza, ele pode não ter
me dito, mas, com certeza ele abriu mão de muita coisa para me ajudar. Quando eu estava aqui, todos eles, na verdade,
eles já eram, todos os meus irmãos já eram pais, pais de família e sem muitos recursos. Com certeza eles abriram mão
de um monte de coisas para poderem me manter aqui. Então, isso é impagável, não vou pagar nunca. O único jeito de
pagar é pensar nesse coletivo, mesmo (Fausto – Moçambique).

É importante frisar que nas tradições culturais africanas, de origem bantu, a idéia de coletividade é muito presente.
Para um bantu, “ser”, é fundamentalmente “estar em relação com os outros” (Tempels, 1965). Com isso não queremos
afirmar que em países de economia de mercado, como é o caso dos PALOP, não se faça presente o “individualismo”. Ele
existe, mas os resquícios das sociedades simples, que por sua coalizão deram origem às soberanias atuais, acabam
prevalecendo nas famílias, sejam elas nucleares ou alargadas. Como diria Elísio Macamo (2005), em África “todos [vivem]
num contexto social moderno, mas na base de referências sociais tradicionais. É um contexto extremamente individualista,
mas a [...] resposta a essa condição é a família e a comunidade”. Hoje, quando o diploma universitário vem se tornando o
principal passaporte de construção do futuro das jovens gerações, as famílias se vêem na obrigação de se mobilizar para ter
um doutor no seio da família, o que lhes permitirá aceder ou não a outra posição social. “É sempre bom ser uma referência na
família. É muito gratificante [...]” (Sonia – Guiné Bissau).
Eu acho que é o orgulho de ter amanhã alguém com nível universitário. Eu não acredito, eu não acredito que
nenhum deles esteja a espera da minha ajuda para melhorar alguma coisa na vida deles. Não acredito, tenho certeza disso.
Mas eles [...] estão a espera de algum dia dizer para os amigos deles que têm um irmão que se formou, na universidade X,
fora de Moçambique. Já é um privilegio para eles, é um privilegio para mim também (Fausto - MZ).
Ao escolher um país para prosseguir os estudos, o Brasil acaba apresentando vantagens por causa dos laços de
amizade que unem o Brasil com os PALOP com ênfase em suas especificidades históricas, sociais, econômicas, educacionais
e culturais. A língua portuguesa, que é oficial no Brasil e nos PALOP, acaba sendo um dos atrativos para esses estudantes.
O Brasil foi minha primeira opção por causa da língua portuguesa, que é um facilitador. Já pensei em estudar em
Portugal mais pela língua também. Acabei escolhendo o Brasil porque sabia que era um país líder em cursos de jornalismo e
comunicação (Vanda – Cabo Verde).
Vale notar que em termos de custos, sai mais barato mandar um filho para prosseguir seus estudos no Brasil do que
na África do Sul, Austrália, EUA, Inglaterra e Portugal, por exemplo. O custo de vida do Brasil seria mais baixo que dos
países citados. A oportunidade também é apontada como um dos fatores que traz esses estudantes ao Brasil.
Eu fui para África do Sul, mas não gostei, voltei para Angola, estava à espera de uma bolsa para o Canadá depois as
coisas começaram a correr mal. Não tive alternativa a não ser o Brasil (Jorge – Angola).
Na verdade, não foi uma escolha. Em Moçambique a dificuldade de fazer curso superior é muito grande. [Depois]
que consegui terminar o ensino secundário, não consegui entrar no ensino superior lá, entrei numa escola técnica de
jornalismo em Moçambique (Fausto – Moçambique).
Muitos são os que escolhem fazer um curso no Brasil sem terem nem sequer uma idéia do que seja esse curso.
Outros escolheram o Brasil por influência de amigos ou parentes que aqui moram ou moraram. Uns chegaram a imaginar que
o Brasil fosse um “paraíso social”, sinônimo de desenvolvimento e progresso, portanto, de uma vida farta e de oportunidades
incomensuráveis para todos, chegando a imaginar que o estilo de vida e o Brasil mostrado nas telenovelas da Rede Globo de
Televisão e da Rede Record (Miramar, em Moçambique) era o Brasil real, ou seja, o Brasil que eles haveriam de encontrar. O
que mostram nos mios de comunicação “é uma perfeição” (Sonia – Guiné Bissau).
Quando eu comecei a ver as novelas brasileiras, principalmente as mais modernas, casas mais modernas e tal, é
impossível você não se espelhar naquilo. [...] Esses meios de comunicação acabam influenciando a sua escolha (Fausto –
Moçambique).
Esses estudantes não partem numa situação de total desconhecimento acerca da nova realidade social que os recebe.
De fato, há toda uma vasta rede de relações que se vai tecendo e re-atualizando entre os primeiros que partem e os que ficam,
que faz com que estes possam elaborar uma certa constelação de elementos avaliativos em relação à sua provável situação
futura. Contudo, agora que conhecem o Brasil, muitos dos nossos interlocutores voltariam para prosseguirem com seus
estudos porque o ambiente de estudos encontrado é considerado bom. Cá os professores são “muito legais” e “dispostos a

73
ajudar”. Muitos são os que afirmam que a experiência que estão tendo é mais “gratificante” do que dolorosa e o Brasil
oferece um ambiente universitário que incentiva ao crescimento científico.

Sociabilidade e Redes Sociais:


As redes sociais não são um dado natural, antes, são construídas através de estratégias de investimento nas relações
sociais, passíveis de serem utilizadas como fontes de benefícios (Bourdieu, 1980). A análise de redes não seria apenas um
instrumento de investigação urbana, segundo Hannerz (1980: 188) ela começou a ganhar importância graças ao interesse
antropológico pelas sociedades complexas.
Uma rede social pode ser definida como “um conjunto de unidades sociais e de relações, diretas ou indiretas, entre
essas unidades sociais, através de cadeias de dimensão variável” (MERKLÉ, 2004:4). As unidades sociais podem ser
indivíduos ou grupos de indivíduos, informais ou formais, como associações, empresas, países. As relações entre os
elementos da rede podem ser transações monetárias, troca de bens e serviços, transmissão de informações, podem envolver
interações face a face ou não, podem ser permanentes ou episódicas. Do ponto de vista metodológico, a abordagem a partir
da teoria das redes permite usufruir de um conjunto de dispositivos solidamente estruturados e testados. A linguagem, os
conceitos, os indicadores, os métodos de recolha e tratamento de dados da network analysis (Barnes, )constituem um corpo
analítico que oferece inúmeras possibilidades heurísticas e grande flexibilidade temática (Knoke & Kuklinski, 1982:13).
Nesse trabalho a questão da sociabilidade e das redes sociais, assim como o seu significado, recebeu uma atenção
especial. Partindo de entrevistas procuramos desvendar como os estudantes oriundos dos PALOP formam suas redes de
relações, identificando como essas redes se organizam, suas estratégias, desde os países da emigração – no momento do
afastamento do ambiente familiar - até o país de imigração (Brasil). Em termos de residência há uma maior concentração
dessa população em alojamentos da Universidade de São Paulo (USP). Outros moram em Repúblicas, casas de famílias e em
apartamentos alugados. A escolha do lugar de moradia, muitas vezes, está condicionada à proximidade da universidade,
facilidade de transporte, valor do aluguel e segurança. Poucos moram sozinhos. Muitos moram com outros estudantes e/ou
indivíduos. De acordo com os meus interlocutores, existe uma diferença entre morar com compatriotas e com pessoas de
outras nacionalidades. Entre estudantes oriundos do mesmo país existiria uma compatibilidade nos hábitos. Mesmo assim,
nem todos vêem a experiência de morar com pessoas de outras nacionalidades como uma experiência negativa, pois há uma
troca de elementos culturais.
Moro com três brasileiros. Tem um mineiro, outro de Pernambuco, e o outro é daqui de São Paulo mesmo. Somos
quatro. Quando eu vim morar aqui no CRUSP eu até fiz questão de não morar com nenhum moçambicano. Isso pode ser
muito mal interpretado, mas a minha intenção era justamente essa. Eu queria mergulhar, estar nesse meio. Eu queria que
fosse um ambiente em que eu aprendesse muito mais com os outros (Nerito - Moçambique).
Moro com dois brasileiros. É diferente de morar com pessoas do seu país. Com pessoas do seu país você fala a sua
língua, está mais em casa. Você tem mais vontade, por exemplo, de fazer uma comidinha do seu país toda a semana. Mas se
você está morando com pessoas de outro país, você faz a comida, mas nem sabe se eles gostam. Você coloca uma música de
Cabo Verde, mas eles nem prestam atenção. Quando passa uma notícia sobre Cabo Verde eles nem se interessam. O lado
bom de morar com pessoas de outras nacionalidades é aprender sobre a cultura do outro, aprender sobre o outro, o país do
outro (Maura – Cabo Verde).
De uma maneira geral, estes estudantes, quando procuram suas parceiras ou seus parceiros para ficar11, namorar ou
casar não dão muita importância aos fatores raça, religião ou origem sócio-econômica e sim à “compatibilidade”. Os namoros
são mais comuns entre os homens com as brasileiras. Preferem as brasileiras. As principais motivações por mim identificadas
entre os meus interlocutores seriam a receptividade, a simpatia e a beleza da mulher brasileira.
É engraçado que se vou numa festa dos PALOP, se estiverem lá brasileiros, tenho muito mais facilidade de
conversar com uma menina brasileira do que com uma menina dos PALOP. Isso é incrível. A gente é muito conservadora. A
gente é muito fechada. O tempo que você leva para ganhar uma confiança [...] de uma menina africana, moçambicana,
angolana, e o tempo que você leva para ganhar confiança de uma menina brasileira na mesma festa é absolutamente
diferenciado. Se [as africanas] ficam naquela reticência ainda, se nega ou vai, você vai numa brasileira. Ela é super aberta
para conversar [...] (Ivan - Angola).
Entre os nossos interlocutores, os caboverdianos são os que mais namoram entre si.
Eu acho que os caboverdianos namoram mais com gente de Cabo Verde. Não sei porque convivem mais do que
com pessoas de outros países. Você acha aqueles que namoram com brasileiros, guinenses angolanos, mas eu acho que fica
tudo em casa. A relação acontece. Já namorei com caboverdiano e brasileiro, mas eu prefiro namorar com caboverdiano. Os
brasileiros não levam a relação a sério, os guineenses e os angolanos também. Os moçambicanos eu não sei (Vanda – Cabo
Verde).
As mulheres evitam se envolver com homens brasileiros por acharem que “os homens brasileiros não levam a
relação a sério” (Vanda). Mas também há aquelas que não descartam a possibilidade de namorarem brasileiros. Em meados
de 2007, por exemplo, uma guineense contraiu matrimonio com um brasileiro (gaúcho). Situação semelhante foi observada

11
Ficar: Namorar sem compromisso, durante um curto espaço de tempo, às vezes por uma noite. Cf. AURÉLIO: Novo Aurélio. O dicionário da língua
portuguesa, 2000.

74
em pesquisas similares (Subuhana, 2005; Belhadj, 2000). Marnia Belhadj (2000), em seu estudo sobre as filhas de pais
magrebinos,12 descobre que as escolhas matrimoniais, basicamente para o caso das mulheres, não passavam de um ajuste
entre aspirações pessoais e expectativas familiares. Isso se daria porque haveria uma vontade de preservar os laços familiares
e de manter a coesão da família. Lá, a escolha do cônjuge resultaria, segundo a autora, de um ajuste entre suas próprias
aspirações e as experiências familiares. Se de um lado a tal escolha era percebida como estritamente pessoal, do outro “ela é
ainda tributária de certas condições impostas pelos pais, como o fato de que o futuro cônjuge deve pertencer à população
muçulmana e magrebina”13 Contudo a autora reconhece que hoje, mesmo nas sociedades modernas, a escolha do cônjuge
continua a obedecer, de maneira consciente ou inconsciente, a certos tipos de determinismos sociais, culturais e religiosos
que contribuem para reduzir a liberdade individual. Tais normas, segundo M. Berlhadj, obrigaria essas jovens, com
freqüência, a desenvolverem estratégias visando a conciliar as próprias aspirações com as de sua família (M. Berlhadj, 2000:
68).

As Festas
Falar de festas é falar de identidade. Ela nos revela com quem essa população anda e nos mostra como é que essa
geração preserva as tradições dos países de origem. Como referiu Elísio Macamo (1998), as nações africanas são tanto
tradicionais quanto modernas. Nessas festas é na comida, nos pratos típicos, como mukapata (Moçambique), cachupa (Cabo
Verde), por exemplo, que essa geração deixa transparecer a preservação das tradições africanas: “na roupa e na música não
tanto”. Como disse um dos meus entrevistados, “o que identifica mais o moçambicano é a comida” (Fausto – Moçambique).
Os moçambicanos que eu conheço, pelo menos a maioria deles, são muito de hip-hop, rap, e aquelas baladas só de
estilo do negro norte-americano. O que identifica mais o moçambicano é a comida. Se eu sair para ir curtir um samba com
um amigo e tal, não sei o que, eu vou gostar, mas se o Euclides, que é moçambicano, me chamar e disser, “vem aqui na
minha casa, a gente está comendo um carril de amendoim”, vai ser uma sensação muito diferente. Vai ser boa, do mesmo
jeito, mas a sensação, eu acho que o que mais me identifica como moçambicano está no convívio com o moçambicano. Acho
que está no convívio em que predomine a cultura moçambicana (Fausto - Moçambique).
O que identifica mais o caboverdiano e o guineense é o crioulo.
O que identifica mais o caboveridiano é o crioulo, tal como os guineenses. Porque música, você escuta várias
músicas, mas o crioulo não tem igual. Até a comida você acha alguma coisa parecida aqui, mas o crioulo é o crioulo. Por
exemplo, se você passa muito tempo com brasileiro e depois encontra um crioulo você começa a falar em português com a
pessoa, e depois os dois vão se entrosando, mas depois [...], é maravilhoso (Vanda – Cabo Verde).
As festas organizadas anualmente para a comemoração das independências de seus países de origem, para além de
serem “momentos de descontração”, servem também para reunir essa população. Nelas, o estar perante os compatriotas e
amigos não deixa de ser uma forma de superar a saudade.
Eu convivo bem com outros PALOP. Quando a gente se encontra nas festas, a gente lá aprende o semba, eles têm
uma paciência para ensinar, né? É muito legal. Você se sente com os seus irmãos. Por exemplo, a gente está aqui, não tinha a
minha conterrânea, era só eu, e sempre que tinha alguma coisa corria para eles me ajudarem, a gente conversa. Eu me sinto
mais em casa estando com os PALOP (Vanda – Cabo Verde).
Nessas festas, estes estudantes também reconstroem suas memórias individuais, que se conjugam com a memória
oficial – daí a presença das bandeiras e dos Hinos Nacionais. As lembranças não se limitam às suas trajetórias individuais
nem à vida familiar; seus relatos falam de acontecimentos políticos e sociais.
São Associações de Estudantes (Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau) que organizam os eventos para a celebração
de datas festivas. Para além de serem agentes de difusão de informações, são os membros dessas Associações que acolhem os
recém-chegados.
Entretanto, o desenrolar da pesquisa nos fez crer que não só existe uma circularidade nos projetos desses
estudantes, como também se manifesta a vontade de preservar a herança cultural, através da manutenção de hábitos culinários
e estéticos e da celebração de festas em comemoração as independências de seus países de origem, assim como por uma
identificação com compatriotas, com os africanos, com os PALOPs, CPLPs e com os de outras nacionalidades e comunidades
regionais ou trans-fronteiriças.

Mozucas: uma rede virtual


Além dos contatos face-a-face, há interações nas redes virtuais. O Muzucas14 - site15 e comunidade16 - foi criado
em 2001 com o princípio de encurtar as distâncias entre os estudantes e residentes moçambicanos no Brasil. Tem como
principal objetivo facilitar o convívio e a troca de idéias entre os mesmos sem qualquer tipo de formalidades. Decidimos

12
Na França, os países do norte da África (Argélia, Tunísia e Marrocos) são denominados de Maghreb. Daí o adjetivo maghrébin, em português magrebino.
13
Segundo a autora, o casamento dos homens muçulmanos com uma mulher não-muçulmana é, em geral, mais aceito e mais bem tolerado, na medida em que ela
não acarreta as mesmas conseqüências e que se considera que os homens têm maior poder que as mulheres no sentido de propiciar a conversão do outro cônjuge.
14
MOZUCAS = Mozes + brazucas.
15
www.geocities.com/mozucas
16
http://groups.yahoo.com/group/mozucas

75
incluir o Mozucas nesse trabalho por acreditar que ele nos revela como os moçambicanos que estudam no Rio de Janeiro têm
suas redes de relações com outros moçambicanos que também moram no Brasil, com os amigos em Moçambique, com os
amigos brasileiros e demais contactos em outros cantos do mundo. Entretanto, estes estudantes formam uma rede de relações
ampliada, a qual acolhe também indivíduos de outras nacionalidades, possibilitando não apenas a vivência de contatos face a
face como também a interação através de redes virtuais.

Atitudes de Preconceito Discriminação


O “preconceito de cor” e/ou “preconceito racial” é apontado como a principal causa do mal-estar de um número
considerável desses estrangeiros, nossos interlocutores, em terras brasileiras. Há que reconhecer que os brancos, alguns
mestiços e poucos negros afirmam que não se sentem discriminados por causa do “tom de pele”.
Vale notar que mesmo entre os negros há aqueles que afirmam ter mais facilidade de detectar que estão sendo
discriminados em relação aos outros. Talvez sejam vítima de “discriminação sofisticada” (Santos, 2002:36). Segundo Hélio
Santos muitas das vezes, quando a pessoa está sendo vítima de “discriminação sofisticada” raramente consegue se aperceber.
Esse tipo de discriminação, difícil de captar, seria o mesmo que sofre a classe média negra brasileira. O que notamos em
quase todas as entrevistas é o reconhecimento de que o ser universitário e estrangeiro atenua a experiência negativa que
representa descobrir-se em desvantagem social pela simples pigmentação da pele. Todavia muitos são os que dizem ter
passado por situações constrangedoras pelo fato de terem uma tonalidade de pele escura (negros). São vários os ambientes
sociais - como em prédios residenciais, ônibus, supermercados, restaurantes, em festas, dentro da universidade, entre outros -
que obrigam esses estudantes a refletirem sobre a sua condição de “preto”.
Especificamente diria que [foi] num restaurante. Na época namorava uma menina branca. A gente entrou para
comer num restaurante, e a única possibilidade que o garçom achou, “o cara ali entrar naquele restaurante, era negro que
tinha que ser estrangeiro”. Ele já veio me atender falando inglês. Aí olhei para ele e disse, mas eu falo português, podes falar
português comigo. Levou aquele baita susto e eu falei para ele: “eu entendo”. Você, provavelmente, por eu ser negro você
achou [...]. Era um garçom negro. Com a mesma menina passei por uma outra situação. Era bem tarde da noite, a gente
estava caminhando a procura de algum táxi, a gente foi parado por policiais, e com arma mesmo, eles nos apontaram com a
arma, “mãos para o ar”. A gente ficou naquele pânico e tudo, fomos revistados, apontaram arma na nossa cara, pediram
documentos [...]. Mas aí, nos documentos tinha a carteirinha da USP [...]. Na hora que ele viu a carteirinha pensou ‘é
universitário,[...] universitário da USP’ e [disse], “podem ir”. Eu falei que “não, você nos apontou arma, fez o maior
estralhaço aqui e não vai explicar por que?”. Ele falou para mim, “você já tem a sorte de estar vivo. Então, toma cuidado.
Você não está em condições de me fazer pergunta nenhuma”. Automaticamente fiquei com medo. É a sua vida que está em
jogo. É revoltante, é muito revoltante (Fausto - Moçambique).

A Expectativa do Retorno
O retorno é naturalmente o desejo e o sonho de todos os imigrantes. É o elemento constitutivo da condição do
imaginário do imigrante (SAYAD, 2000).
Para além do compromisso diplomático assumido, que é de “retornar a seu país de origem em período não superior
a três meses” (Protocolo, seção X, Cláusula 23) após o término dos estudos, quase todos manifestam o interesse de regressar
para contribuir para o progresso de seus países, trabalhando ou dando aulas, e formar família.
Eis o comentário de um dos entrevistados: “Terminando os meus estudos eu vou direto para Angola. Sou uma
pessoa bem família, quero ficar com os meus familiares. Se for para fazer sucesso faço lá mesmo” (Jorge – Angola).
Os nossos interlocutores imaginam poder dar o máximo de si e esperam ter um “enquadramento” que lhes facilite
“transmitir” os conhecimentos adquiridos no Brasil. Mas há aqueles que reconhecem que nem tudo será maravilhoso e têm
suas reservas, pois hoje em dia o mercado moçambicano tornou-se muito competitivo. De uma maneira geral esperam aplicar
os conhecimentos adquiridos no Brasil nas realidades de seus países, dando aulas, se envolvendo em organismos
governamentais e não-governamentais ou criando seus próprios negócios.
Eu estou pensando em fazer uma Pós-graduação. Na verdade, eu queria terminar e voltar no dia seguinte, mas, na
verdade, agora que o curso está para terminar fica aquele aperto: “Como é que vai ser lá. E o trabalho, será que vou
conseguir? Será que se eu consigo uma Pós-graduação aqui, será que eu faço? Será que eu consigo uma bolsa?” Não tem
como falar “eu vou voltar de imediato” (Vanda – Cabo Verde).

Conclusão
O projeto de pesquisa teve como objetivo investigar a experiência sócio-cultural de universitários da África
Lusófona em São Paulo, Brasil. A pesquisa mostrou que os projetos de vida de muitos desses estudantes estão atrelados à
família, embora alguns cheguem a afirmar que suas trajetórias e seus projetos de vida sejam individuais. Existe uma
circularidade e uma dimensão cultural nesses projetos, e a família é central em muitas culturas africanas. A Tia de uma das
entrevistadas, por exemplo, penhorou uma casa para que a sobrinha pudesse conseguir a vaga.

76
As telenovelas – um dos principais artigos de exportação do Brasil – estão entre os fatores que contribuem para que
esta população queira cruzar o Atlântico para fazer estudos de graduação e pós-graduação no Brasil. Dificuldades naturais de
adaptação fazem parte dos relatos dos estudantes por nós entrevistados, e a questão financeira está entre as dificuldades mais
citadas. Alguns vêm de famílias que pertencem às elites econômicas ou políticas de seus países, enquanto outros não têm
recursos e dependem de bolsas. Os estrangeiros precisam renovar o visto e obter uma nova carteira de identidade (Registro
Nacional de Estrangeiros - RNE) anualmente na Polícia Federal, e pagam taxas para os dois documentos. Como são
estudantes, não podem ter emprego, apenas estágios – nem sempre fáceis de obter.
Acreditamos que os alunos africanos podem ajudar a esclarecer os brasileiros sobre a realidade africana. Muita das
vezes a imagem veiculada na mídia brasileira sobre o continente africano e os africanos é negativa, e isso faz com que muitas
pessoas achem que África é um país só.
Alguns dos fatores positivos citados pelos estudantes são a facilidade com a língua, o custo de vida baixo em
comparação com outros países, a valorização da formação universitária no Brasil e a integração e amizade com os brasileiros.
Entre os nossos interlocutores há uma estudante da Guiné-Bissau que se casou com um brasileiro, e um moçambicano
contraiu matrimonio com uma brasileira.
Como poucos têm recursos para visitar a família nas férias, a saudade é driblada com e-mails, cartas, telefonemas e
torpedos via celular.

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A criatividade no caminho da diversidade de alunos do ensino superior

Cristina Ribeiro
ISPGAYA - Escola de Desenvolvimento Social e Comunitário
cribeiro@ispgaya.pt

Resumo: Diversos estudos têm sido focalizados na criatividade enquanto energia propulsora para novos encontros com o eu e com o outro,
sendo por isso evidente o seu interesse para diferentes áreas do conhecimento. Com a nossa comunicação pretendemos situar a criatividade
enquanto agente catalisador de mudanças no seio das práticas pedagógicas de docentes do ensino superior, contribuindo para um ensino mais
inclusivo e respeitador da diversidade. Não obstante a presença de um crescente olhar científico sobre os benefícios da criatividade, a sua
expressão no ambiente universitário continua a precisar de novos contributos teórico-práticos. Nos últimos anos, o ensino superior tem sido
palco de transformações do seu público-alvo. Os alunos tradicionais, provenientes de um trajecto escolar sem interrupções, começam a dar
lugar a alunos com um largo espectro de papéis e origens sociais, a que apelidamos de alunos não-tradicionais. Esta nova realidade constitui

77
uma excelente oportunidade para que a educação superior substitua as suas práticas pedagógicas tradicionais, renovando e inovando os
programas e métodos como resposta à diversidade. Face aos novos rostos de alunos, importa procurar novas propostas pedagógicas, mais
inovadoras e que, a partir da diversidade, construam pontes mais sólidas para o conhecimento.
Partindo das percepções individuais de um grupo alunos do ensino superior, intencionalmente estimulados para a criatividade, encontramos
evidências da activação de três inteligências gardnerianas: interpessoal, intrapessoal e corporal-cinestésica. Acreditamos que as práticas
docentes que se socorrem da criatividade contribuem para o desenvolvimento psico-social do aluno, tornando-o elemento activo no seu
processo de aprendizagem e integração.

Antes de situar a criatividade enquanto agente catalisador de mudanças das práticas pedagógicas, impostas num
quadro de diversidade que atravessa o ensino superior, é necessário recuperar o contexto de turbulência que assola a
educação, em particular de nível superior. Envolto numa sociedade em transformação, qualquer observador mais atento
apercebe-se dos inúmeros desafios que se colocam a todas as áreas do saber, em especial, à Educação. Secularmente
implicada com o quadro social vigente, a Educação vê o seu campo de acção muito mais permeável aos sinais de mudança
que assolam o quotidiano de milhões de pessoas. Todavia, é neste processo de interdependência que encontramos uma escola
que, paradoxalmente, continua agarrada a modelos pedagógicos do início do séc. XX, arrastando consigo sonhos que
singularmente se perdem nas salas de aula. Particularizando o caso do ensino superior, verificamos que o novo quadro sócio-
demográfico impõe mudanças profundas, alcançáveis quando se repensar todo o processo ensino-aprendizagem, em partilhar
o papel do professor. De imediato surge a necessidade de novas práticas pedagógicas que, alicerçadas na teoria construtivista
de Piaget e Bruner e sócio-construtivista de Vygotsky, promovam espaços e momentos pedagógicos em que o aluno possa
desenvolver abordagens próprias de cognição a partir da relação que decorre entre o seu quadro de referência e os processos
interpessoais de interacção social que brotam do contexto escolar. Se considerarmos que “Todas as funções superiores têm
origem nas relações reais entre os indivíduos (Vygotsky, 1978, p. 57), verificamos que o contexto de aprendizagens,
enquanto espaço de experiência educacional assume a sua centralidade no processo de desenvolvimento do aluno. Nesta
perspectiva, reforçamos o entendimento de Costa (2007) quando a autora refere que a aprendizagem acontece primeiramente
em sociedade e só depois tem impacto ao nível dos processos cognitivos do aluno. Assim, a aprendizagem sai fortalecida
com ambientes educativos potenciadores de interacção social, que estejam sustentados na diversidade de envolvimentos, na
complementaridade e na colaboração. Estas características assumem especial importância na emergência das comunidades de
prática (Wenger, 1998), ajudando a enriquecer a dimensão de empenhamento mútuo (mutual engagement) que, inter-
relacionada com as dimensões de reportório partilhado e empreendimento mútuo, ajudam a dar harmonia às comunidades de
prática.
“Focar no nível das comunidades de prática, não é glorificar o local, mas ver estes processos – negociação de
significado, aprendizagem, o desenvolvimento das práticas e a formação de identidades e configurações sociais, como
envolvendo interacções complexas entre o local e o global” (Wenger, 1998, p.133)
Inserido neste conceito de comunidade de prática e suportando-se num conjunto de pequenas práticas onde a acção
pedagógica se vincula à vida em comunidade, verificamos que os docentes devem fomentar a construção de uma constelação
de práticas sociais mais amplas e representativas, próximas de uma comunidade de prática, de onde emergem formas mais
dinâmicas e implicadas de construção de conhecimentos. Tendo como referencial o quadro de aprendizagens potenciadas
num horizonte de interacções sociais, encontramos na criatividade a presença de uma força emancipadora que actua sobre o
aluno na activação das suas inteligências (Ribeiro, 2008), ajudando-o a viver os momentos de interacção de forma mais
segura, dinâmica e harmoniosa. Partindo de um ambiente educacional mais amplo e variado, que rejeite um desenvolvimento
exclusivo da linguagem e da lógica (Walters & Gardner, 1985; Blythe & Gardner, 1990), o professor estará assim a despertar
o aluno para o desenvolvimento de competências que emergem do seu quadro de inteligências. Neste sentido, seguimos o
marco conceptual presente na teoria das Inteligências Múltiplas (Gardner, 1995, 2001) para verificar que as praticas
pedagógicas mediadas pelo recurso à estimulação da criatividade, podem constituir-se enquanto recurso fundamental para o
desenvolvimento do aluno do ensino superior, num contexto de diversidade que o acolhe.
Neste sentido, Gardner chama a atenção para a dissonância entre os propósitos de uma Educação que veicula a
formação integral dos alunos mas que continua a apostar no desenvolvimento de programas e metodologias pedagógicas
promotoras de capacidades conceptuais limitadas por raciocínios verbais e lógicos. Partindo do pressuposto de que cada
pessoa tem diferentes potenciais cognitivos à espera de serem activados, estamos convencidos de que as práticas pedagógicas
que estimulem a criatividade contribuem para o desenvolvimento das inteligências nos alunos. Neste sentido, e no âmbito das
percepções individuais de um grupo de alunos, fomos à procura de evidências que liguem a estimulação da criatividade com
a activação das Inteligências Interpessoal, Intrapessoal e Corporal-cinestésica. É neste marco teórico que surge o nosso
estudo, orientado para a procura de práticas pedagógicas que ajudem o aluno no processo de integração com o quadro de
diversidade que se entranha no ensino superior.

O quadro de mudanças no Ensino Superior


Nos últimos trinta anos, os fenómenos de integração económica foram particularmente acelerados, factores que se
revelaram determinantes para a fragilização das fronteiras entre os países e para o surgimento do processo de
“mundialização” (Canário, 2006, p. 29) transversal às diferentes áreas da sociedade, obrigando-as a repensar o seu campo de

78
acção. Particularizando o ensino superior, verificamos que as tendências socioeconómicas e demográficas que nas últimas
décadas atravessaram a Educação contribuíram para que o espaço das faculdades e politécnicos se constitua enquanto um
microcosmo social, de intervenção privilegiada e urgente.
Emersos nesse quadro de transformação, os sinais seguidos pela sociedade portuguesa têm contribuído para o
aumento da procura pelo ensino, em particular, a de nível superior que, pela sua dimensão, não encontra precedentes em
nenhum momento da nossa História, nem mesmo aquando do aparecimento da escola de massas. Os movimentos de
escolarização de massas que atravessaram a Educação na segunda metade do séc. XX, levando à escola milhares de crianças
e jovens, contribuíram decisivamente para a difusão dos processos de escolarização, substituindo os clássicos processos de
alfabetização (Candeias, 2001 e 2005). Os fenómenos de escolarização de massas, que dão lugar aos movimentos da
universidade de massas (Karabell, 1998), que decorrem do processo de busca por novas respostas aos reptos lançados dentro
de uma sociedade que estando com ideais esbatidos, procura reencontrar-se. Neste sentido, os sinais que há muito
ameaçavam o ensino superior estão agora corporizados no nosso quotidiano, de onde emerge uma pluralidade de solicitações
que requer um novo quadro de acções.
Os alunos que frequentaram o ensino superior nos últimos 30 anos são agora substituídos por alunos heterogéneos,
com origens e vivências que se enquadram em segmentos socioculturais diferenciados. A hegemonia que marcou o palco de
um ensino superior elitista e residual dá lugar à diversidade de alunos que carregam sonhos e necessidades distintas. A par
dessa diversidade que diariamente gravita sobre a atmosfera do ensino superior, verificamos que muitos dos alunos que
frequentaram o sistema de ensino secundário na década de 70 e 80, dando vida à escola de massas no séc. XX, são agora
arrastados para os corredores físicos e virtuais da universidade de massas. Em conformidade com o exposto, os fenómenos
que têm marcado o crescimento do ensino superior poderão espelhar a 2ª fase do processo de escolarização de massas
iniciado há mais de 30 anos. Com efeito, esse reencontro dos novos alunos com o sistema de ensino, a par da
multiculturalidade que preenche as salas de aulas, coloca sérios desafios as instituições de ensino superior e aos seus
professores.
Uma leitura atenta à evolução do número de alunos matriculados no ensino superior (GPEARI/MCTES, 2008),
revela a tendência para o seu crescimento, que é verificada até 2001, período em que se abrem portas à sua estabilização,
vindo posteriormente a decrescer no período de 2003 até 2005, ano em que a população de alunos inscritos pela 1ª vez era
constituída por 96. 854. Todavia, se considerarmos que no ano lectivo de 2007/08 esse número era de 114.114 alunos,
assistimos a uma nova fase de crescimento dos alunos inscritos pela 1ª vez no ensino superior, representando uma evolução
positiva de aproximadamente 17% face ao ano de 2005. Segundo a leitura feita por Rodrigues (2002), essa atmosfera de
crescimento do ensino superior, que irrompe na década de 80, não é um fenómeno exclusivo português, já que no período
entre 1980 e 1995 o número de alunos matriculados no ensino superior a nível mundial apresentou um crescimento de cerca
de 61%. Quando analisamos o género, verificamos que essa tendência de crescimento está presente tanto no sexo feminino
como masculino, sendo contudo mais expressivo neste último (GPEARI/MCTES, 2008).
Segundo Tiana (1998, citado por Velasco, 2004), esses números poderão ser compreendidos com base na análise de
factores demográficos e socioeconómicos:
Acesso da geração baby-boom ao ensino superior;
A diminuição do nº de alunos verificado corresponde à redução da taxa de natalidade, que em Portugal se verifica a
partir dos anos 80;
A transformação do mercado de trabalho é acompanhada da emergência de novas competências que obrigam os
trabalhadores a reingressarem no sistema de ensino como forma de actualização permanente. Este factor de ordem
socioeconómica vem compensar alguns desequilíbrios provenientes do factor demográfico. Aqui incluem-se os alunos com
idade superior a 23 anos, alvo de um regime de acesso diferenciado.
Sobre o reingresso de alunos que há muito abandonaram o sistema educativo e que desde 2006 têm um regime
próprio de acesso ao ensino superior, designado por adultos maiores de 23 anos, verificamos que uma leitura comparativa
entre os anos lectivos de 2006-07 e 2007-08 revela-nos a presença de um crescimento de 8% do nº de alunos inscritos no 1º
ano e que o fazem pela 1ª vez. Com efeito, é no ensino superior público que esse crescimento se verifica, em confronto com a
tendência de decréscimo que acompanha o ensino privado.
Inscritos nº 1º ano, pela 1ª vez
Subsistema de ensino
Ano lectivo 2006-07 Ano lectivo 2007-08
Ensino superior público 4.257 6.039
Ensino superior privado 6.599 5.734
TOTAL 10.856 11.773
Gráfico nº 1 - Evolução de alunos (maiores de 23 anos,) inscritos em Portugal
Fonte: GPEARI/MCTES, 2008
Estes indicadores constituem sinais importantes para a compreensão do quadro de diversidade que assola o ensino
superior português, fruto de um novo processo de escolarização de massas, agora de nível superior. A par destes fenómenos,
os processos de adequação à Bolonha, a que as faculdades e politécnicos estão sujeitos, trazem consigo novos desafios para
os actores educativos, com especial incidência para o professor. O panorama de diversidade conjugado com a busca pela
convergência do ensino no quadro do Espaço Europeu de Ensino Superior, obriga a mudanças de âmbito conjuntural e

79
estrutural que devem interpenetram no processo de ensino-aprendizagem, obrigando os professores a adoptarem uma
pedagogia mais centrada no aluno (Mas Tous, 2007).

Desafios do Ensino Superior


Como reflexo das mudanças que têm assolado o sistema educativo, em particular a de nível superior, verificamos
que a linha que marcou o horizonte educativo durante anos e que se apresentava sem qualquer curvatura dá agora lugar a uma
multiplicidade de traços e efeitos que abrem portas aos imperativos educativos do séc. XXI, esbatendo as fronteiras entre a
Educação e a sociedade. É neste cenário de transformação que as faculdades e politécnicos sobrevivem, esforçando-se por se
apresentar enquanto organização social que, estando inseridas num contexto específico, se inscrevem num quadro de
identidades e culturas muito mais amplo, evocando continuadas mudanças. Todavia, Nóvoa (2005) lança um alerta quando
verifica que o ciclo histórico, nascido no século XIX, onde se inventou a modernidade escolar e pedagógica, tarda em
desaparecer, impedindo o acesso da educação à contemporaneidade.
A emergência de novas respostas educativas torna-se ainda mais acentuada se considerarmos que de uma sociedade
secularmente implantada na homogeneidade, Portugal, à semelhança de outros países europeus, converte-se num palco
heterogéneo e multicultural, onde à diversidade social e económica, juntam-se a cultural e a étnica (Araújo, 2005). Com
efeito, para além dos alunos oriundos de núcleos culturalmente distintos, que dão um colorido especial às salas de aula,
verificamos que os alunos tradicionais, com uma trajectória escolar sem interrupções, começam a dar lugar a uma amálgama
de novos alunos, aqui designados de não-tradicionais (Mello, 2004). Atento a este fenómeno, Karabell (1998) afirma que esta
realidade se encontra em grande crescimento, gerando novas ameaças e oportunidades para o ensino superior. Com um largo
espectro de papéis, os alunos não-tradicionais têm habitualmente idade superior aos 25 anos, exercem uma actividade
profissional em regime de part-time ou full-time e têm responsabilidade familiar acrescida, nomeadamente, através do
cuidado com os filhos como também com a sobrevivência económica dos dependentes.
Esta nova realidade constitui uma excelente oportunidade para que a educação superior proceda à demolição das
didácticas tradicionais (Mello, 2004), renovando e inovando os seus programas e métodos pedagógicos, como resposta à
diversidade. Face aos novos rostos de alunos, importa procurar novas propostas pedagógicas, mais inovadoras e que a partir
da diversidade, construam pontes mais sólidas para o conhecimento. Que se tornem portanto, mais inclusivas (Bond, 1999).
Espera-se que o professor, absorvido com este novo papel (Torrego Egido, 2004), se assuma enquanto motivador e
facilitador, numa clara valorização do aluno e da interacção em contexto de sala de aula ou ambiente virtual. Com a ênfase
dada a uma aprendizagem mais autónoma e às tutórias, rosto de um processo mais construtivista, a implantação de uma
aprendizagem que potencie as competências dos alunos constitui a marco de referência para os professores (Garcia Martínez,
2007). No seu comprometimento com o processo de ensino-aprendizagem, o professor passa a assumir-se enquanto
encantador de relações que se socorre de mecanismos empáticos, referências positivas e aceitação incondicional (Rogers,
1957), numa busca incessante pelo desenvolvimento de competências pessoais e sociais no aluno.
Neste sentido, as vibrações actualmente sentidas, que gravitam sobre a atmosfera europeia, deixam-nos acreditar
que é possível conduzir os agentes educativos num verdadeiro encontro (Moreno, 1975), com o eu, com a educação e com a
sociedade. É sobre este cenário de transformações que os diferentes actores educativos devem ser capazes de construir,
desconstruir e reconstruir, sempre com um renovado olhar dirigido ao palco social que diariamente se entranha no espaço
escolar.

A criatividade no contexto de ensino


Analisando os contributos da etimologia, verificamos que a palavra criatividade relaciona-se com o termo criar,
proveniente do latim creare, que significa “dar existência, sair do nada, estabelecer relações até então não estabelecidas pelo
universo do indivíduo, visando determinados fins.” (Pereira, Mussi, & Knabben, 1999, p.4). Alargando o nosso
entendimento, verificamos que a criatividade apresenta-se como sendo um processo humano que possibilita o aparecimento
de um produto novo ou inovador a partir de uma ideia ou invenção original ou pela reelaboração e aperfeiçoamento de
produtos ou ideias já existentes (Alencar, 1997).
Apesar de ser objecto de simples e vulgares entendimentos, o processo que conduz à compreensão da criatividade
enquanto potencial humano é complexo e de construção heterogénea, evidenciando que muito está por desvendar (Abraham
& Windmann, 2007). À semelhança do que se verifica na abordagem feita a outras áreas do conhecimento, existe uma
preocupação multidisciplinar no tratamento da temática criatividade, com especial destaque para as ciências sociais e
humanas. O fascínio que a criatividade tem provocado junto de diferentes áreas do conhecimento, poderá ser explicado
através do seu potencial de aplicação em variados campos da actividade humana, pois como refere Barron (1991), o estudo
da criatividade oferece ao campo da investigação multidisciplinar, inúmeros pontos de interesse ainda por descobrir. Pelo
crescimento de entusiasmos e pelas áreas de intervenção tão amplas e complexas, a criatividade assume-se como uma
disciplina científica do futuro (Cardoso de Sousa, 1999).
Embora o potencial criativo tenha sido alvo de análise nas diferentes épocas da história com especial ênfase dado
pelos filósofos, os primeiros passos dados na sistematização do seu estudo apenas foram dados a partir de meados do século
XX quando a criatividade começa a atrair a atenção da comunidade científica. No campo da investigação sobre a criatividade,

80
existe uma variedade de teorias e modelos que procuram explicar o pensamento criativo e os seus procedimentos mentais.
Até aos anos 70, as contribuições teóricas procuravam compreender o indivíduo criativo, construindo um perfil criativo que
suportasse cientificamente o desenvolvimento de programas e técnicas capazes de medir o potencial criativo. A partir daí,
novos rumos para o entendimento da criatividade foram abraçados, passando os teóricos a concentrar a sua atenção na
compreensão dos fenómenos sociais, culturais e históricos e a sua influência no desenvolvimento da expressão criativa.
Passamos de uma abordagem umbilical, onde o sujeito assumia total protagonismo no acto criativo, para uma leitura
sistémica do fenómeno criativo (Feldman, Csikszentmihalyi & Gardner, 1994). É sobre essa nova abordagem que diversos
estudos têm emergido no panorama científico internacional, conduzidos para a análise dos factores do contexto socio-
histórico-cultural, que interferem na produção criativa, ajudando a compreender os comportamentos criativos (Amabile,
1996; Csikszentmihalyi, 1996).
Ao longo do nosso trabalho, fizemos uma aproximação conceptual à teoria das Inteligências Múltiplas (Gardner,
1995, 2001) que, na tentativa de quebrar a hegemonia do conceito de inteligência única, introduz a compreensão da
inteligência plural enquanto potencial bio-psico-social, expressa a partir da integração dos factores genéticos com os
ambientais. Embora o conceito de inteligências múltiplas tenha nove inteligências no seu portfólio, dedicaremos especial
atenção às Inteligência Interpessoal, Intrapessoal e Corporal-cinestésica, como sendo úteis para a promoção de características
que liguem os alunos às dimensões presentes na comunidade de prática de Wenger (1998).
Recentemente, muitos estudos têm procurado evidenciar a importância da criatividade no desenvolvimento sócio-
psicológico do ser humano, tanto em ambiente profissional (Gilson et al, 2005; Munoz-Doyague et al, 2008) como em
contexto escolar (Daniels, 2007; Kusa, 2006; Landazabal, 2005). Os estudos que focalizam o impacto da criatividade no
ensino superior seguem essa tendência de crescimento (Alencar, 1997; Christy & Lima, 2007; Prabhu, 2008; Walker &
Gleaves 2008). Não obstante a presença de um crescente olhar científico sobre os benefícios da criatividade, a expressão da
criatividade no ambiente universitário continua a precisar de novos contributos teórico-práticos. É nesse entendimento que o
nosso estudo se apresenta, abrindo caminhos a novas reflexões.

Objectivos do estudo
O nosso estudo foi suportado num processo de construção, desconstrução e reconstrução que decorre da dialéctica
entre a teoria e a nossa prática enquanto professor-investigador (Alarcão, 2000). Partindo das percepções de um grupo de
alunos, deliberadamente sujeitos à estimulação da sua criatividade, procuramos alcançar os seguintes objectivos:
Extrair evidências da ligação entre a criatividade e a activação de três inteligências;
Reconhecer que os ambientes de aprendizagem criativo contribuem para uma aproximação ao conceito de
comunidade de prática.

Metodologia
O presente estudo está entroncado no campo de acção da investigação qualitativa que se harmoniza com a
multidimensionalidade e opacidade do nosso objecto de estudo. Com a abordagem qualitativa pretendemos compreender e
reflectir sobre alguns fenómenos educativos inscritos num sistema aberto e complexo. Porém, não poderíamos negligenciar o
enfoque integrador e triangular de outras formas de leitura, nomeadamente o quantitativo quando analisamos as respostas às
perguntas fechadas, presentes no questionário. No campo do saber qualitativo, fomos conduzidos pelo enfoque descritivo-
narrativo, pois enquanto docentes implicados, pretendemos conhecer as percepções dos alunos, sobre o que fazem, como
interagem e como se movimentam no quadro de representações sobre a criatividade no contexto de ensino superior.
Como participantes, tivemos um grupo de 37 alunos do 1º ano do ensino superior, distribuídos por duas turmas que
frequentaram a unidade curricular de Comunicação Psicopedagógica no ano lectivo de 2007-08. Os alunos da turma em
regime diurno, num total de 15 alunos, são maioritariamente constituídos por jovens estudantes do sexo feminino (apenas 3
alunos do sexo masculino), com idades compreendidas entre os 18 e os 23 anos, que passaremos a designar por alunos
tradicionais. Os alunos em regime pós-laboral, num total de 22 alunos, dividem-se por 17 do sexo feminino e 5 do sexo
masculino. Frequentam as aulas à noite, têm idades compreendidas entre os 21 e os 68 anos, aqui designados por alunos não-
tradicionais. Verificamos que são maioritariamente estudantes trabalhadores.
Orientados por uma multiplicidade de métodos utilizados (Denzin y Lincoln, 1998), que permitem alargar o
conteúdo de informação disponível para o nosso estudo, socorremo-nos do questionário com perguntas semi-abertas e da
observação participada, que partindo do contexto de sala de aula, constitui um instrumento privilegiado, permitindo ampliar a
visão sobre onde e como se desenrola a acção.

Resultados e discussão
No decorrer do nosso estudo procuramos encontrar evidências que liguem as práticas pedagógicas, suportadas na
estimulação da criatividade ao processo de activação de três inteligências gardnerianas, enquanto promotor de amplos
contributos para as vivências próximas de uma comunidade de prática (Wenger, 1998). Do processo de recolha, análise e

81
interpretação dos elementos que provém da percepção dos alunos, verificamos que a Inteligência Interpessoal surge como
sendo a mais activada, seguida da Corporal-Cinestésica e da Intrapessoal.

80%
78%
76%
74%
72%
70%
68%
66%
64%
62%
60%
Int.Interpessoal Int.Intrapessoal Int.Corporal-
Cinestésica

Gráfico nº 1 – Relação entre a presença das três Inteligências


Numa leitura mais aprofundada, se compararmos os grupos de alunos tradicionais, que frequentam as aulas em
regime diurno, com os alunos não-tradicionais, frequentadores das aulas em regime pós-laboral, encontramos alguns
resultados que permitem avançar no entendimento sobre a influência da criatividade junto da activação de alguns domínios
da mente humana, com especial destaque para os alunos não-tradicionais.

90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
Inteligência Int.Intrapessoal Int.Corporal-
Interpessoal Cinestésica

Aluno tradicional Aluno não-tradicional

Gráfico nº 2- Presença das Inteligências por tipologia de aluno

Inteligência Interpessoal
Para Gardner (1995), a Inteligência Interpessoal representa a capacidade do sujeito para o desenvolvimento de
relações interpessoais e sociais que, potenciadas pela compreensão da natureza humana, ajudam a responder adequadamente
a estados emocionais, motivações ou desejos de outras pessoas. Desta forma, envolve as habilidades de persuasão, partilha,
tolerância e amabilidade. A activação desta inteligência contribui para compreensão dos sentimentos do outro, aceitando-o
enquanto ser integral, liberto de qualquer visão estereotipada. Sobre esta predisposição para os outros e para sermos
empáticos Goleman (1996) afirma que esta competência nasce com a abertura das nossas emoções, numa estreita ligação com
a Inteligência Intrapessoal.
Desta forma, verificamos que o domínio da Inteligência Interpessoal continua a ser o mais activado, tanto para os
alunos não-tradicionais (85%), como no grupo dos alunos tradicionais (74%). Contudo, essa diferença poderá ser explicada
através das relações de proximidade já existentes entre os alunos tradicionais com os elementos dos grupos. A
disponibilidade de tempo desses alunos, poderá ajudar a fomentar e a estreitar os laços de afinidade intra-grupo, não sendo
daí tão evidente a sua activação. O contrário se verifica com os alunos não-tradicionais, já que enquanto actores com
diferentes papéis sociais (estudante, trabalhador, pai, marido, etc.), têm pouco tempo disponível para as relações com os
colegas. Tal facto poder-se-á explicar se considerarmos que são alunos maioritariamente trabalhadores que precisam investir
na relação com o outro, aproveitando o clima de interacção potenciado nas aulas para incrementar as suas competências
sociais. Quando questionados sobre os benefícios da criatividade junto do grupo, os dois grupos de alunos foram claros no
reconhecimento do seu papel dinamizador na inter-ajuda e união do grupo:
“Estar mais atento às características pessoais dos alunos.” (participante 11, 19 anos, tradicional, linha 22)
“Maior relacionamento interpessoal.” (participante 19, 32 anos, não-tradicional, linha 21)

82
Numa sociedade que enfatiza a competição entre pares, exige-se que as instituições de ensino, mediadas pelos seus
professores, sejam agentes promotores destas competências nos alunos. Num estudo recente (Leung et al., 2008), são
lançadas evidências sobre o contributo da diversidade, que preenche o contexto educativo com alunos de diversas origens,
idades e papéis sociais diferenciados, na expressão da criatividade, gerando laços de proximidade e interacção entre alunos e
também entre alunos e professores.

Inteligência Intrapessoal
Sobre a inteligência Intrapessoal, Gardner (1995) situa-a na aptidão para se compreender a si próprio. Esta
inteligência reflecte-se na capacidade do aluno possuir um correcto auto-conceito, reconhecendo facilmente as suas forças e
fragilidades, os seus prazeres e receios. Ao desocultar os seus próprios sentimentos, sonhos e desejos o aluno será capaz de os
descriminar, utilizando-os convenientemente no seu quotidiano. A perseverança, a autenticidade, a auto-estima e a
autoconfiança completam este quadro de percepções pessoais.
É nesta inteligência que encontramos uma diferença mais acentuada entre os dois grupos de alunos. Também aqui,
os alunos não-tradicionais (79%) socorreram-se dos estímulos da criatividade para o desenvolvimento do auto-conceito e
auto-estima, competências indispensáveis no domínio do intrapessoal e que se revelam de grande importância no quadro de
interacções sociais. Embora com presença mais reduzida (57%), também os alunos tradicionais reconhecem ter desenvolvido
competências ligadas a essa inteligência. Se atendermos ao facto de que a maioria dos alunos não-tradicionais esteve um
longo período afastado do meio escolar e que estão pela primeira vez num curso superior, poderemos deduzir que estão
ávidos por desenvolver as suas competências pessoais, contribuindo assim para uma maior auto-confiança, fruto de uma auto-
estima reforçada. Os alunos tradicionais poderão apresentar um nível de percepção pessoal já razoável, daí não ter sido tão
activado. Quando convidados a reflectir sobre os benefícios da estimulação da criatividade, os alunos afirmaram:
“Desperta sentimentos desconhecidos pela pessoa.” (participante 2, 19 anos, tradicional, linha 17)
“O aluno pode aprender que aquilo que pensamos que somos na realidade não é verdadeiro, que somos muito mais
do que aquilo que pensamos.” (participante 30, 22 anos, não-tradicional, linhas 19-20)
Numa tentativa de encontrar uma associação entre os sentimentos e emoções com a criatividade (De Dreu et al.,
2008) foi possível apurar que as emoções positivas como a alegria e felicidade exercem mais influência sobre o acto criativo
do que as emoções negativas como a tristeza e depressão. Sobre a emergência de uma escola que valorize os sentimentos dos
seus alunos, promovendo os conceitos de Inteligência Intrapessoal e Interpessoal, Motos (1999) afirma que a escola, ao
renunciar aos sentimentos que envolvem os processos mentais dos seus alunos está inevitavelmente a contribuir para o
estreitamento da sua inteligência.

Inteligência corporal-cinestésica
Numa leitura gardneriada, verificamos que esta inteligência representa uma habilidade que o ser humano utiliza
para solucionar problemas ou para a criação de produtos, recorrendo ao uso do corpo ou de partes dele. É a capacidade para
reconhecer, utilizar e controlar o corpo na sua plenitude, utilizando a motricidade grossa ou fina para a realização de tarefas
ou situações novas. Podemos entende-la como a inteligência que nos induz a “pensar, sentir e agir com e através do corpo”.
Embora seja a segunda inteligência mais activada, verificamos que a tendência seguida no domínio das restantes inteligências
é também aqui sentida. Ao analisamos o resultado a activação da Inteligência Corporal-cinestésica, verificamos que é
ligeiramente mais activada nos alunos não-tradicionais (79%) do que nos alunos tradicionais (73%).
Verificamos que a disponibilidade dos alunos para transportar as competências, desenvolvidas em contexto
educativo, para o seu quotidiano saiu reforçada nos dois grupos, ajudando-os a construir aprendizagens verdadeiramente
significativas que se reflectem num empreendimento mútuo capaz de ultrapassar as fronteiras físicas dos corredores
universitários. Com efeito, e próximos dos momentos de catarse, típicos da tragédia grega e tão bem reconhecido por
Aristóteles como purificador do espírito (Ribeiro, 2007), os alunos reconhecem que as aulas de criatividade conduziram à
libertação das suas emoções através do corpo.
“Maior libertação e participação nas actividades.” (participante 8, 18 anos, tradicional, linha 18)
“Foi interessante descobrir o que se pode fazer com materiais tão simples e que fazem parte do nosso quotidiano,
despertou em nós uma capacidade de criar coisas, para as quais eu não tinha dado conta de ser capaz.” (participante 21, 44
anos, não-tradicional, linhas 12-14)
Diversos autores defendem a inclusão das artes, como forma de Inteligência Corporal-cinestésica, na prática
pedagógica ao longo dos diferentes ciclos de ensino. A cerca disso, Garrido (1989) afirma que do ponto de vista educativo, a
inserção de métodos e técnicas artísticas e criativas na programação curricular conduz ao êxito das aprendizagens. Nos
estudos reunidos por Deasy (2002), encontramos contributos de vários autores para a promoção das artes como alavanca para
o desenvolvimento integral do aluno.

Considerações finais

83
No decurso do nosso estudo fomos conduzidos num processo que permitiu ler e re-ler, de forma implicada, os
elementos que emergiram das percepções dos nossos alunos relativamente à experiência de estimulação criativa a que foram
sujeitos durante as aulas de Comunicação Psicopedagógica. Suportados na visão gardneriana de inteligências, encontramos
diferentes sinais que ligam a criatividade à activação das Inteligências Interpessoal, Intrapessoal e Corporal-cinestésica.
Verificamos que o impacto da activação dessas inteligências foi mais acentuado no grupo de alunos não-tradicionais do que
nos tradicionais. Esta situação vem alertar para a necessidade de práticas pedagógicas diferenciadas, capazes de responder
aos desafios que emergem da diversidade de atributos da dimensão humana que hoje dão colorido às instituições de ensino
superior.
A estimulação e o desenvolvimento das capacidades sócio-cognitivas contribuem para que cada aluno aprofunde o
seu quadro de relações e interacções, num total respeito pela sua autenticidade e singularidade de cada um. Os contextos
educativos que fomentem o desenvolvimento das três inteligências analisadas predispõem os alunos para o trabalho em
interacção com acentuado proveito para a aprendizagem. Sobre a importância dos processos de interacção em grupo, Hobbs
(1975, p. 286), afirma que é no grupo que “ a pessoa aprende, como membro de um grupo, o que significa dar e receber apoio
afectivo e compreensão de uma forma nova e amadurecida.” Verificamos que as práticas pedagógicas sustentadas no quadro
racional teórico sócio-construtivista promovem o aparecimento embrionário das comunidades de prática (Wenger, 1998),
condição importante para a destruição de alguns dogmas do passado que ainda aprisionam a educação num colete-de-forças.
A criação de ambientes pedagógicos (Sternberg & Lubart, 1996) que facilitem a expressão da criatividade nos
alunos deve ser objecto de atenção dos agentes educativos que actuam no ensino superior, promovendo didácticas assentes na
diversidade e respeitadoras da singularidade de cada aluno. O professor deverá possuir um perfil que facilite o encontro do
aluno com a criatividade (Chambers, 1973), activando a sua motivação enquanto digno representante das forças
impulsionadoras da criatividade. Através das suas práticas, deverá ser capaz de conduzir o aluno para as conquistas do seu
quadro de inteligências, ajudando-o a descobrir-se, redescobrindo-se para o social. A partir daí, a formação integral do aluno
deixa de ser utópica, passando antes a fazer parte das inquietações de professores e alunos que, numa constante dialéctica
entre a teoria e a prática, se encontram verdadeiramente (Moreno, 1975).
Não tendo a pretensão de pintar um quadro com verdades absolutas, pretendemos antes ajudar a colorir as imagens,
contribuindo para a intensificação dos debates e discussões sobre as novas competências que se exigem ao professor do
ensino superior, emerso num contexto em transformação acelerada.

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Ensino superior em Angola e formação de profissionais de educação

Eugénio Silva
Universidade do Minho
esilva@iep.uminho.pt

Resumo: Apesar da expansão acelerada do “mercado de ensino superior” em Angola, a demanda de instrução superior é muito maior do que
a capacidade de resposta das instituições públicas e privadas de ensino superior que apenas oferecem 33 mil vagas para mais de 50 mil
candidatos. A própria estrutura da oferta formativa disponível apresenta distorções no que se refere à quantidade e natureza dos cursos,
revelando a existência de mais cursos nas áreas das ciências sociais e humanas do que nas áreas de ciências naturais, engenharia e
tecnologias. Esta situação, que produz desajustes no sistema de disponibilização de recursos humanos altamente qualificados (excesso de um
lado e défice do outro) compromete a concretização das estratégias de desenvolvimento nas esferas da produção e inovação tecnológica,
consideradas como motor de arranque do progresso social.
A formação superior na área da educação revela-se deficitária em termos quantitativos e de diversificação de perfis profissionais,
contemplando apenas a formação de professores e formadores de professores, garantida nos vários institutos superiores integrantes da rede de
ensino superior público e privado. Deste modo, não são contempladas as necessidades educativas do país em termos de formação superior de
profissionais que actuem fora do sistema educativo, em contexto comunitário. Entre estes, estão os assistentes sociais, os animadores
sociocomunitários, os mediadores culturais, os activistas e outros agentes comunitários cuja acção se exerce em contexto social numa lógia
de educação não escolar e não formal.
Esta comunicação pretende interpelar o actual sistema de formação de profissionais da educação, analisando os constrangimentos actuais e as
possibilidades de diversificação da oferta formativa nesta área, com proposta de introdução de novos perfis, tendo em conta o imperativo de
realização dos objectivos de desenvolvimento do milénio e a implementação dos programas educativos nacionais mais importantes, sob o
pressuposto de que a educação ao longo da vida é um processo que se realiza em todas as instâncias sociais, justificando, num país em
desenvolvimento como Angola, a existência e intervenção de agentes educativos com o perfil adequado.
Palavras-Chave: Formação superior; educação não formal; perfis profissionais; educadores sociais; agentes educativos comunitários,
activistas comunitários.

Introdução
Com o advento da paz e com melhores condições para assegurar a consolidação da democracia e o
desenvolvimento social, novos desafios se colocam no sector educativo angolano, nomeadamente no que diz respeito à
escolarização, formação e educação de todos os segmentos populacionais, visando a sua capacitação para a vida activa e a
cidadania. Com efeito, a educação para a cidadania está no centro do programa educativo nacional que pretende fazer da
educação a chave do desenvolvimento.
A educação em Angola é considerada, no plano das políticas e no das práticas, uma área estratégica para o
desenvolvimento social não apenas pelo que representa em termos de escolarização da população e formação dos recursos
humanos mas essencialmente pela possibilidade de qualificar os angolanos para a cidadania e a participação na reconstrução
nacional. Isto implica considerar que o acesso à cidadania, no que respeita à assunção de direitos e deveres e a fruição de uma
vida condigna, se faz por via de uma intervenção educativa a todos os níveis e em todas as circunstâncias da vida. Essa
responsabilidade cabe ao Estado através das suas estruturas e mediante políticas educativas compagináveis com as exigências
do país em matéria educativa.
O governo angolano vem referindo insistentemente a importância da educação na superação do atraso
socioeconómico e na qualificação da população para a vida social e o processo de reconstrução e tem aprovado nos últimos
anos programas nacionais de desenvolvimento educativo, sendo de referir, por exemplo, o Plano de Educação para Todos
(2004), a Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação 2001-2015 (2001), a Estratégia de Alfabetização e
Recuperação do Atraso Escolar 2006-2015 (2005), cuja relevância radica na possibilidade de reverter o quadro de atraso
educativo em que o país esteve mergulhado. Por outro lado, os governos provinciais referem que a aposta no
desenvolvimento social passa pela educação comunitária no sentido de capacitar os cidadãos para a vida activa.
A educação escolar está no centro da política nacional de desenvolvimento educativo, com prioridade para a
escolarização de todas as crianças em idade escolar, e para a formação profissional de jovens e adultos, mas existem outras
áreas de intervenção educativa não escolar e não formal tão importantes como as anteriores e das quais depende a promoção
do desenvolvimento das pessoas no que se refere à dimensão da cidadania. Isto significa que existem múltiplas formas de
promover a educação cívica das populações nas suas comunidades de pertença, fornecendo-lhes as ferramentas cognitivas
para uma leitura consciente do mundo, um melhor conhecimento de si e uma intervenção informada e útil na vida social.
Esta reflexão aborda a necessidade de repensar a estratégia para a educação em Angola, nas suas vertentes escolar e
não escolar, demonstrando a possibilidade de realizar um trabalho educativo abrangente, na comunidade, com recurso a
variados processos em contextos não formais capazes de potenciarem o desenvolvimento sociocultural das pessoas e das
comunidades. Tal possibilidade remete-nos para a questão que consiste em saber quem e de que modo se pode realizar esta
tarefa educativa comunitária, ou seja, que tipo de agentes educativos e com que estratégias podem, em contextos variados,
dinamizar a educação no seio das comunidades.

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Outra questão prende-se com a formação destes agentes do modo a assegurar a sua intervenção qualificada,
contemplando-se novas áreas de formação superior e secundária vocacionada para perfis compatíveis com este tipo de
intervenção educativa, até aqui inexistentes em Angola. Daqui decorre, então, um desafio à área da formação em Ciências da
Educação, ou seja, às instituições que em Angola se dedicam à formação de profissionais da educação stricto sensu. Esta
formação será, então, aqui analisada.

1. A educação superior em Angola


O ensino universitário em Angola surgiu em Agosto de 1962 com a criação dos Estudos Gerais Universitários
(EGU) que, segundo Serrão (1983:189-190), estavam integrados na Universidade Portuguesa e deviam seguir o modelo das
universidades da metrópole, com prioridade aos cursos em que havia maior carência de diplomados com vista ao
apetrechamento de quadros das duas províncias ultramarinas (Angola e Moçambique). De acordo com Crespo (1973:73),
estes EGU “tiveram um enorme impacto na sociedade, procurando desenvolver-se em estreita sintonia com as necessidades
locais, empenhando-se no serviço à comunidade”. Como corolário do seu desenvolvimento, os EGU de Angola e
Moçambique foram convertidos em universidades em 1968, adoptando a designação de Universidade de Luanda e
Universidade de Lourenço Marques, conferindo os graus de licenciado, doutorado e agregado. A Universidade de Luanda
tinha várias faculdades e cursos e, nesse âmbito, na Huíla (em Sá da Bandeira, hoje Lubango) funcionavam os cursos de
Ciências Pedagógicas e de Formação de Professores do 8° e 11° grupos do Ensino Técnico, a par das licenciaturas em
História, Geografia e Filologia Romana. Este facto regista o início da formação de professores e agentes de ensino, com
habilitações superiores, destinados à educação escolar.
De referir que, face à necessidade de formar agentes comunitários para as zonas rurais, existiu em Angola uma
instituição que se dedicava à formação de assistentes sociais e dinamizadores rurais. Trata-se do Instituto Pio XII, localizado
em Luanda, que foi desactivado quando ocorreu a primeira reforma curricular de 1978.
A então Universidade de Luanda conheceu um desenvolvimento favorável no contexto de uma evolução positiva da
economia angolana, situação que foi interrompida pelos acontecimentos do 25 de Abril de 1974 que precipitaram o fim do
colonialismo português e deram início ao processo da descolonização que culminou com a proclamação da independência
nacional. Aquela universidade beneficiou essencialmente a burguesia colonial no território, tendo permitido o acesso a alguns
angolanos. Formou vários profissionais que, entretanto, debandaram na altura da independência, deixando o território
angolano desfalcado de quadros e profissionais em todos os domínios da actividade.
A sua transformação numa universidade nacional foi um processo relativamente rápido mas difícil e conturbado e
esteve intimamente associado aos acontecimentos que marcaram o difícil e conflituoso processo de ascensão de Angola à
independência. Esta transformação está intimamente ligada à revolução social por que passou a sociedade angolana e, em
particular, ao processo atribulado de descolonização e de instauração da independência num cenário de guerra civil entre os
exércitos dos movimentos de libertação nacional que lutaram pela independência de Angola (MPLA, FNLA e UNITA). Esta
nova universidade rapidamente se adaptou ao seu novo papel de formação de quadros para a revolução e o socialismo,
assumindo mesmo a dimensão de símbolo de soberania nacional com funções de preservação da identidade cultural.
Essa transformação caracterizou-se pela tentativa de romper radicalmente com o modelo colonial de universidade
(considerado elitista, retrógrado e desfasado) e com a exigência de implantação de uma universidade progressista de cariz
africano, capaz de contribuir para a construção de uma nova sociedade. Nesta conformidade, a universidade angolana
mereceu as preocupações do Partido (MPLA) e do governo tendo sido objecto de orientações políticas para que pudesse
funcionar como “instrumento da revolução socialista” e como “viveiro de quadros para o socialismo”. Isso pode ser
constatado em passagens de documentos da política educativa nacional. Nos “Princípios de Base para a Reformulação da
Educação e Ensino na RPA” (1978:42-43), define-se que “o ensino superior será assegurado pela Universidade de Angola e
deve obedecer aos princípios ideológicos [...] definidos para a Educação em geral”.
A Universidade de Angola nasceu sob o signo da revolução socialista ficando sujeita ao controlo do Estado e à
influência ideológica do Partido, realizando uma tarefa revolucionária de extrema importância - a produção de quadros
nacionais co-artífices da construção de uma nova sociedade em Angola. É neste âmbito que se inscreve a sua criação em
1976, cabendo-lhe um papel estratégico no contexto da revolução cujo objectivo era o estabelecimento de uma sociedade
socialista para a qual era necessário formar o almejado “homem novo”.
Para realizar este desafio procedeu-se ao ajustamento dos planos curriculares dos vários cursos, introduzindo-se
disciplinas da área do marxismo-leninismo para garantir a formação ideológica e patriótica dos quadros angolanos, como
reforço da sua formação científica. Defendia-se, na altura, a formação de intelectuais comprometidos com o socialismo e
capazes de actuar como artífices da “nova sociedade” e construtores do “homem novo”.
Na década de 1980-1990, a Universidade de Angola conheceu desenvolvimentos que a projectaram como
instituição de âmbito nacional mas foi afectada pelos efeitos de uma economia planificada de carácter socialista e da guerra
que continuava a minar as bases do desenvolvimento sustentado da sociedade angolana. Assim, no início dos anos oitenta foi
criado, no Lubango, o Instituto Superior de Ciências da Educação - ISCED, vocacionado para a formação de professores para
os vários níveis do Sistema de Ensino, especialistas de educação e para a promoção da investigação científica na área da
educação. Exprime-se aqui a preocupação com a formação de professores angolanos de nível superior para fazer face à
carência de professores nos vários subsistemas de ensino e para contribuírem para o desenvolvimento do sistema educativo.

87
A Universidade Agostinho Neto (nome adoptado em 1984), sob obrigação de um “compromisso social”, pretendeu
assumir-se como instituição voltada para a criação de uma “consciência nacional” enquanto base de qualquer projecto social
de desenvolvimento sustentado, colocando Angola na rota da “globalização científica e tecnológica” face às perspectivas de
aproximação às sociedades mais desenvolvidas nos planos científico, tecnológico e cultural. Esta ambição veio marcar a
definição das políticas educativas nacionais para o ensino superior orientadas por tendências de internacionalização visando o
estabelecimento de padrões de formação que possam servir de factor de cooperação e de mobilidade de docentes e alunos no
espaço africano (e não só) e possam constituir pontes de aproximação e diálogo com a Europa e o resto do mundo.
Na última década, a UAN assumiu o desafio de se tornar uma instituição idónea, cientificamente competente,
inserida na realidade nacional e integrada na comunidade universitária internacional pautando a sua acção pelo reforço da
credibilidade junto de instituições nacionais e internacionais pelo que tratou de relançar a actividade científica (investigação e
publicação) a nível interno e em parceria com os Centros de Investigação existentes ou recentemente criados. Nessa tarefa
teve de considerar os desafios lançados pela UNESCO (1995) relacionados com uma maior interacção com a sociedade, com
a perspectiva da educação para a vida e durante toda a vida, com a expansão do acesso, garantindo a equidade, com o
equilíbrio entre a autonomia e a prestação de contas e com a garantia das liberdades académicas.
Assim, a par das preocupações com a melhoria das condições e da qualidade do ensino, a Universidade Agostinho
Neto realizou esforços no sentido de promover a qualificação pós-graduada dos seus docentes e de instituir a investigação
científica uma vez que são estas dimensões que conferem credibilidade científica e aceitação social e a tornam capaz de
produzir o salto qualitativo na produção, difusão e aplicação do conhecimento científico e na esfera da formação de novos
profissionais.
Presentemente, a UAN está a realizar uma reforma curricular com particular destaque para a área das Ciências da
Educação, procurando ampliar a oferta formativa, tendo em conta a dispersão de centros e núcleos universitários por várias
províncias do país. Note-se que as várias universidades privadas que operam presentemente em Angola (Universidade
Católica de Angola, Universidade Jean Piaget de Angola, Universidade Lusíada de Angola, Universidade Independente de
Angola, Universidade Metodista de Angola, Instituto de Relações Internacionais e Instituto Superior Privado de Angola) não
contemplam a formação em Ciências da Educação, papel que está reservado exclusivamente à Universidade Agostinho Neto.
Desde 1985, ano em saíram os primeiros licenciados em Ciências da Educação, foram formados cerca 1200
professores/formadores em várias áreas e 160 em Pedagogia, o que denota a escassez destes quadros no sistema educativo
angolano em expansão.
Dos 177.989 professores do ensino não universitário, cerca de 60 mil têm formação média (12ª classe) dos quais
47.630 formados nos últimos 6 anos nos Institutos Normais de Educação, 1200 têm uma licenciatura em Ciências da
Educação e os restantes têm apenas habilitações ao nível da 9ª classe, muitos dos quais estão a beneficiar de formação em
serviço e superação pedagógica. Os dados do MED indicam que 66% dos professores (116.789) não têm as habilitações
escolares mínimas nem as qualificações profissionais para a docência, o que revela o grande esforço que o Ministério da
Educação deve realizar no sentido da reciclagem destes docentes para que estejam capazes de responder às exigências de
qualidade decorrentes da reforma curricular em curso no ensino básico e no ensino secundário.
Embora se faça referência à necessidade de incrementar a educação comunitária em Angola, nada se tem feito nesta
área, à excepção da formação de activistas comunitários na área da saúde, baseada numa parceria entre o Ministério da Saúde
e algumas ONG’s que operam neste domínio.

2. As Ciências da Educação em Angola


A designação Ciências da Educação expressa fundamentalmente um campo científico plural, reportado ao domínio
das ciências que investigam e se debruçam sobre o acto educativo no seu sentido mais lato. Neste sentido, tanto se referem
aos conhecimentos científicos produzidos como aos processos de educação, cabendo nesta designação os saberes e as práticas
sobre educação. A investigação, como trabalho crítico de problematização das práticas sociais e de produção de
conhecimento científico, não está desligada da transformação da realidade e tem impacto nela pois, ao investigar no sentido
de esclarecê-la opera também transformações. Por isso, as Ciências da Educação têm um compromisso quer com os saberes
teóricos quer com as experiências e práticas profissionais na educação, aprofundando aqueles e orientando as estas. Deste
modo, estas ciências, preocupam-se quer com a produção de saberes quer com a análise e fundamentação das práticas
educativas dos profissionais e agentes educativos.
A educação é, segundo Mialaret (1976) um conceito polissémico que traduz quer o processo quer o produto. Como
processo, a educação pressupõe uma dinâmica contínua dos indivíduos e uma influência no sentido da construção da sua
personalidade e como resultado, traduz a incorporação das características sociais que os transformam em cidadãos. Este
processo extravasa a escola e observa-se em todas as circunstâncias da vida humana e em todas as instâncias sociais e pode
ser estudado por um conjunto de ciências sociais que, ao adoptarem o objecto “educação” como foco, se configuram como
ciências da educação. Estamos, portanto, perante uma área científica plural que aborda a educação sob múltiplas dimensões
para tentar captar a sua complexidade mas também a sua singularidade.
A constituição das Ciências da Educação como área científica própria é, na opinião de Canário (2005:29) “o
resultado, por um lado, da referência a um conjunto de saberes e de práticas profissionais e, por outro lado, da contribuição
de disciplinas científicas já anteriormente estabelecidas (sociologia, psicologia, etc.)”. Isto quer dizer que o campo científico

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surge na esteira de um campo profissional que lhe preexiste e representa uma federação de domínios que têm um carácter
interdisciplinar imbricando saberes e terrenos profissionais e emergindo como resposta a processos de procura social e de
produção de saberes.
A expressão “Ciências da Educação” não facilita, portanto, a distinção entre o campo científico e o campo
profissional, já que se reporta a ambos possibilitando o alargamento dos domínios de intervenção dos profissionais que, nesta
lógica, se dedicariam tanto a actividades de carácter científico (investigação) como de intervenção prática. A referência às
“Ciências da Educação” subentende o conjunto dos processos de natureza teórica, axiológica e praxeológica de que se
compõe a actividade educativa dos especialistas nos vários campos de intervenção educativa, constituindo assim uma
pluralidade de saberes e práticas. A emergência das Ciências da Educação corresponde a uma realidade que se consubstancia
pela existência de: uma comunidade científica auto e socialmente reconhecida; consolidação de métodos e instrumentos de
investigação das práticas; assunção de rituais próprios que configuram e legitimam as práticas; desenvolvimento de
actividades de investigação e intervenção reportadas à educação; produção de saberes (teóricos e experienciais) como
decorrência da investigação e da prática.
A opção pela designação “Ciências da Educação” representa uma perspectiva plural que se consubstancia num
compromisso articulador entre as actividades de natureza científica e investigativa, referentes à produção e difusão de
saberes, e as de natureza prática e de intervenção sobre a realidade social, visando resolver situações, valorizando a
multiplicidade de ciências que têm a educação como objecto. Logo, o objecto das Ciências da Educação é o acto educativo na
sua complexidade, enquanto fenómeno e prática social que decorre em contexto histórico-social determinado. Este objecto
pode ser analisado e interpretado segundo vários prismas, decorrendo daí múltiplas visões. De acordo com cada um, pode-se
construir uma “versão” desse objecto, parcelar em si mas complementar no seu conjunto.
As várias Ciências da Educação lançam olhares diferentes ao mesmo objecto, formando dele imagens distintas,
baseadas em esquemas conceituais próprios. As Ciências da Educação procuram explicar e interpretar a natureza da educação
sob várias perspectivas, ampliando a compreensão desse fenómeno social e criando as bases para uma intervenção educativa
devidamente informada. O contributo de cada uma permite gerar uma compreensão específica do acto educativo, mas o
cruzamento das várias ciências fornecem uma visão mais holista da educação, fundamentando as práticas educativas nos
múltiplos contextos sociais em que se realiza.
Abordar o desenvolvimento educativo em Angola implica contemplar áreas que têm incidência directa no
desenvolvimento social, ou seja, domínios que se referem à formação do capital humano (recursos humanos), à educação dos
cidadãos em termos de consciência cívica e cidadã, à educação das comunidades nos valores da democracia e da identidade
nacional e à construção de um sentido de nação virada para o progresso. Por isso, as prioridades do sistema educativo devem
definir-se por referência a políticas que reforcem a acção da escola e o papel da educação formal, no sentido da escolarização,
formação e educação cidadã, mas também por políticas que assumam a educação comunitária como estratégia de
desenvolvimento dos cidadãos e das comunidades, consubstanciando práticas educativas exercidas nos diversos contextos de
vida e de socialização, abrindo espaço para a educação informal em contexto comunitário, ou seja, fora da instituição escolar.
Isto significa que a educação em Angola tem de estar voltada para preocupações fundamentais ligadas não apenas à
escolarização das crianças e jovens, mas também relacionadas com a formação dos jovens e adultos como pessoas,
trabalhadores e cidadãos. É nesta perspectiva que as instituições de ensino superior na área das Ciências da Educação em
Angola (Instituto Médio de Educação, Instituto Superior de Ciências da Educação, Instituto Superior Pedagógico) têm de se
posicionar no sentido de conceber, por via do alargamento da sua missão, uma acção educativa/formativa que não se limite a
servir o sistema educativo (através da formação de professores, formadores e gestores) mas se dirija à comunidade e à
sociedade em geral (através da formação de agentes de desenvolvimento como animadores sociocomunitários, assistentes
sociais, dinamizadores locais, mediadores socioculturais, activistas comunitários, etc.).

3. Estado actual e perspectivas de desenvolvimento das Ciências da Educação em Angola


Importa traçar um breve retrato do estado das Ciências da Educação em Angola tendo em conta os seguintes
referenciais:
a) Formação: dados recentes do Ministério da Educação (2008) referem que foram formados nos últimos 6 anos
cerca de 47.630 professores nos Institutos Médios Normais a que se pode somar os 12.300 formados em anos anteriores. A
nível superior foram formados desde 1985 nos ISCED cerca de 1210 licenciados em Ciências da Educação registando-se
também a existência de cerca de 48 doutores formados no estrangeiro e 105 mestres, alguns dos quais formados no país, na
última década. Estes dados denotam um avanço qualitativo no que à formação de professores, educadores e gestores
educacionais diz respeito mas revelam também a necessidade de requalificar científica e pedagogicamente mais de 116 mil
professores do ensino básico, tarefa que o Ministério da Educação angolano já assumiu como compromisso a breve prazo.
Parte-se do princípio que quanto melhor for a formação dos profissionais, mais capacitados estarão para desenvolver a sua
actividade e contribuir para o aperfeiçoamento da prática e do saber teórico. Como reflexo, verificar-se-á uma melhoria da
qualidade da educação e ensino, no sentido de corresponder às expectativas sociais.
b) Comunidade de profissionais da educação: do ponto de vista quantitativo podemos considerar a existência no
ensino não universitário de 60 mil docentes com formação pedagógica de nível médio (12ª classe) e cerca de 1220 com
licenciatura na área das Ciências da Educação. No ensino universitário registam-se 43 doutorados, 105 mestres e 256

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licenciados na área da Educação, distribuídos pelas escolas que se dedicam à formação de professores e formadores. Todos
estes profissionais constituem assim o núcleo de uma “comunidade” que apresenta as seguintes características: grande
dispersão geográfica e isolamento pedagógico de muitos, dificultando os contactos; ausência de intercâmbio científico e de
partilha de boas práticas devido à escassez ou quase inexistência de encontros científicos e de publicações de autores
nacionais; escassas oportunidades de requalificação científica e de acesso a fontes bibliográficas na área; inexistência de
investigação científica estruturada e orientada por políticas nacionais ou por exigência de solução de problemas;
desconhecimento quase generalizado uns dos outros em resultado da falta de encontros e de trabalho conjunto; precariedade
das condições de trabalho em muitas regiões reduzindo a sua capacidade de intervenção no sistema educativo e na sociedade.
Por estas razões não se pode falar de uma verdadeira comunidade já que os contactos, a partilha e o trabalho conjunto são
inexistentes e não se registam evidências sociais publicamente reconhecidas do trabalho destes profissionais, como por
exemplo, publicações científicas ou intervenções relevantes no sistema educativo e na sociedade.
c) Investigação: esta esfera da actividade dos profissionais da educação revela-se muito incipiente uma vez que a
investigação realizada é escassa e restrita ao contexto académico, o que a torna ignorada pelo Ministério da Educação,
desconhecida do público e irrelevante para as práticas educativas. É, portanto, uma actividade muito residual e da qual só
alguns membros da comunidade têm conhecimento. Embora existam iniciativas localizadas relacionadas com a elaboração de
trabalhos de licenciatura e mestrado e com a edição de revistas científicas (Revista Kulonga, do ISCED de Luanda) a prática
investigativa está quase ausente da actividade dos profissionais da educação em Angola, pouco contribuindo para o
desenvolvimento do conhecimento, do saber e da prática educativa. Deste modo, pouco se pode esperar para o
desenvolvimento do pensamento científico, das correntes pedagógicas e da prática educativa em Angola, retardando a
afirmação das Ciências da Educação.
d) Práticas: estas resumem-se às práticas lectivas no interior das instituições (escolas e universidades) levadas a
cabo individualmente e, por vezes, sob difíceis condições. Os profissionais da educação preocupam-se essencialmente em
assegurar a docência deixando de lado as actividades de investigação. Assim sendo, estas práticas têm pouca visibilidade,
inclusivamente entre os pares, dado que não existem processos de partilha de boas práticas e de intercâmbio de saberes. A
inexistência de uma política de edições e publicações de trabalhos dos profissionais e a escassez de encontros científicos
restringem ainda mais o impacto das boas práticas aos contextos em que ocorrem e remete os docentes para uma situação de
isolamento pedagógico o que afecta as suas possibilidades de crescimento profissional. Muitos desses docentes actuam sem
qualquer tipo de apoio ou supervisão, entregues a si próprios e às limitações de muitos locais de trabalho o que acaba por
afectar a qualidade das práticas, nem sequer sujeitas a uma avaliação no contexto da avaliação do desempenho.
Depreende-se daqui o estado muito incipiente das Ciências da Educação em Angola e o longo e difícil caminho que
precisam de realizar para se afirmarem como área de referência no país, para alcançarem visibilidade e legitimidade sociais e
para se constituírem como um espaço próprio gerador de conhecimento e de uma identidade profissional. Daqui resultam os
desafios inerentes à formação inicial e contínua dos profissionais, aos incentivos financeiros à investigação científica e
respectivo reconhecimento público através da institucionalização de prémios, à promoção do intercâmbio de saberes e
práticas entre pares mediante a realização de encontros científicos periódicos e à constituição urgente de um acervo
bibliográfico universitário para apoio à actividade dos profissionais. É preciso não esquecer que a aposta no desenvolvimento
de Angola passa necessariamente pelo desenvolvimento da educação e aqui cabe um papel relevante às Ciências da
Educação.

4. Novos campos de intervenção em educação em Angola


Tendo em conta a abrangência da acção educativa e o seu impacto na qualificação dos cidadãos angolanos para o
trabalho e a vida social, pode-se pensar na ampliação dos espaços de intervenção dos profissionais da educação, o que supõe
considerar novos perfis e novos cursos. Admitindo estes pressupostos os profissionais formados em Ciências da Educação,
estarão aptos a intervir nos seguintes contextos:
a) no sistema educativo: órgãos da administração do sistema educativo; centros de investigação em educação;
escolas de vários níveis; creches e jardins-de-infância; centros de formação profissional e de educação de adultos; núcleos de
alfabetização.
b) em instituições sociais: serviços de apoio à criança e à juventude; serviços autárquicos de cultura e acção social;
centros de tempos livres e centros de dia para a terceira idade; agências de desenvolvimento local; estabelecimentos
prisionais e correccionais; instituições de reinserção social; instituições de solidariedade social;
c) na comunidade: associações cívicas, culturais, recreativas e paroquiais; associações de luta contra a pobreza;
organizações de base da sociedade civil; Organizações Não Governamentais de cooperação e desenvolvimento local; missões
religiosas.
Deste modo, propõe-se que os ISCED desenvolvam uma formação em Ciências da Educação virada para valências
que tenham como referência quer os saberes teóricos e a investigação, quer as práticas profissionais nos domínios da
docência, da formação e da intervenção social, ampliando o leque de cursos segundo novos perfis compatíveis com as
necessidades de outros tipos de profissionais da educação.
Assim, para a além da formação de professores/formadores para dotar o sistema educativo de agentes (professores,
educadores, formadores) capazes de assegurar as funções de instrução, ensino, formação e educação em contextos formais

90
(escolas e centros de formação), de administradores e gestores educacionais para alimentar o sistema educativo com agentes
capazes de promover a própria regulação deste no sentido de o fazer funcionar com eficiência e de investigadores
educacionais para garantir a possibilidade de se criar e difundir conhecimento e experiências no interior do sistema educativo
através da prática investigativa e da produção científica, como forma de melhorar a prática dos docentes e de outros
profissionais da educação, propõe-se uma formação na área de intervenção comunitária e animação cultural, direccionada
para a formação de técnicos e agentes comunitários cujo perfil se caracterize por um conjunto de conhecimentos,
competências, atitudes e valores que fundamentem o seu trabalho de intervenção, animação e desenvolvimento
sociocomunitário visando a promoção do bem-estar de grupos e populações e a sua educação cidadã. Trata-se de introduzir
agentes de desenvolvimento local e comunitário nas comunidades e nas instituições sociais, capazes de mobilizar os recursos
locais para promover a “educação social” dos cidadãos, de modo informal e segundo objectivos de desenvolvimento, de
promoção da cidadania e de reafirmação identitária tendo em conta os valores da democracia e da cultura angolana.
No domínio das Ciências da Educação preconiza-se, nesta fase actual de desenvolvimento da sociedade angolana e
tendo em conta as prioridades de desenvolvimento educativo, e para além da formação de professores e formadores que já
ocorre nos ISCED, uma formação em outras 2 áreas: Administração e Gestão Educacional; e Intervenção Comunitária e
Animação Cultural. A primeira tem como referência o próprio sistema educativo, contemplando os órgãos e estruturas da
administração da educação, os de gestão escolar e o funcionamento das instituições educativas (escolas, creches, jardins de
infância, centros de formação profissional) dos vários níveis de ensino incidindo sobre os processos e práticas de
administração, gestão e liderança escolar, controlo e supervisão educacional, avaliação das instituições e dos recursos
humanos.
A segunda área incide sobre contextos socioeducativos fora do sistema escolar e inseridos nas comunidades
(instituições de solidariedade, organizações sociais, associações cívicas, culturais, recreativas e de desenvolvimento local,
ONGD’s, centros de reabilitação) focalizando as dinâmicas participativas comunitárias, associativas e de desenvolvimento
local, os processos de animação cultural, educação não formal, mediação cultural e iniciativas de promoção da cidadania.
Isto pressupõe tomar a “educação comunitária” como uma área de intervenção estratégica no contexto do
desenvolvimento local e da promoção da cidadania em Angola, país cuja distribuição demográfica revela uma grande parte
da população concentrada nas zonas semi-urbanas e rurais, com índices de escolarização e formação muito baixos e défices
de acesso a condições essenciais de vida (habitação, água potável, cuidados primários de saúde, saneamento básico). Estas
populações carecem, para além de recursos e condições infra-estruturais, de um atendimento educativo e sanitário de
proximidade, o que se pode viabilizar através da acção de agentes comunitários com formação em educação e saúde. O
trabalho educativo e sanitário destes agentes converte-se numa via para potenciar o desenvolvimento local, promover a
participação e os comportamentos de cidadania tendo em conta a preservação dos valores culturais identitários.
Entende-se a educação comunitária como um processo de influência socioeducativa, exercido nos mais variados
contextos da vida social e com recurso a estratégias diversificadas que envolvam os participantes, visando a apropriação de
saberes, valores e atitudes e o desenvolvimento de capacidades emancipatórias com as quais os actores sociais podem
entender o mundo que os rodeia e interagir com ele. É um processo de capacitação para a vida social, movido por objectivos
de empowerment das populações (Friedmann, 1996) que podem tornar-se, assim, donas do seu destino e da sua história. A
educação comunitária identifica-se com a educação popular que, segundo Freire (2000), tem como objectivo mobilizar a
capacidade dos indivíduos em relação aos seus próprios objectivos, emancipá-los relativamente às relações de dominação e
às condições precárias de vida, assumindo-se assim com uma prática política que consiste em promover uma leitura crítica do
mundo, o que significa a adopção de um posicionamento crítico do sujeito face à realidade que apreende e da qual faz parte.
Deste modo, as populações adquirem consciência de si e do mundo que as rodeia e desenvolvem capacidades de participação
e intervenção na vida comunitária, o que faz delas cidadãs de pleno direito.
É um processo que se desenvolve numa dinâmica colectiva, a par da própria socialização e assente em grupos
sociais que interagem em situação de cooperação e conflito, num determinado espaço territorial, apropriando-se das
condições da sua existência. A educação comunitária aproveita as potencialidades socioculturais das comunidades,
traduzindo-se numa acção que visa resgatar a dignidade da pessoa, consciencializá-la face à necessidade de salvaguardar o
bem comum e capacitá-la para o exercício da cidadania activa. Como processo de capacitação das classes populares, deve
suportar-se nas experiências práticas e reflexivas dos educandos, com vista ao seu desenvolvimento pois, tal como Freire
afirma, a educação popular é uma forma de conhecimento do mundo e este “é também feito através das práticas do mundo; e
é através dessa prática que inventamos uma educação familiar às classes populares” (1989:20). Assim, a educação
comunitária assume uma clara opção política já que conduz à “formação de uma consciência política no indivíduo, qualquer
que seja sua situação social actual, seu nível cultural”.
Tal tipo de educação exige a intervenção de profissionais qualificados, conhecedores da realidade das comunidades
onde vão intervir e imbuídos de uma perspectiva desenvolvimental e emancipatória. Daí a razão desta proposta que toma
como ponto de partida o perfil de animador sócio-comunitário, concebido como agente de desenvolvimento local e
comunitário que actua nas comunidades e instituições sociais, com intervenção directa nos processos de animação
sociocultural junto de grupos ou comunidades, capaz de mobilizar os recursos locais para promover a “educação social” dos
cidadãos, de modo informal e segundo objectivos de desenvolvimento, de realizar diagnósticos de problemas sociais, de
contextos e acções educativos, capaz de potenciar as situações sociais, económicas e culturais em que sejam relevantes as
componentes de educação e formação. Este deve ser capaz de desenvolver projectos de intervenção, animação e

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desenvolvimento sociocomunitário visando o bem-estar de grupos e populações, planificar objectivos educacionais,
operacionalizar programas e projectos de educação e desenvolvimento, apoiar as comunidades no diagnóstico de
necessidades, elaborar planos de intervenção socioeducativa e dinamizar acções de natureza sociocultural e de cidadania.
O perfil deste técnico compreende:
- A capacidade de observação e análise de contextos socioeducativos, de projectos de intervenção e de dispositivos
de educação formal e não formal, de actividades culturais, onde as dimensões de educação, de formação e de aprendizagem
ao longo da vida se revelem determinantes;
- A capacidade de intervenção em variadas instâncias de educação, formação e desenvolvimento, dentro e fora do
sistema educativo assumindo-se como agentes de desenvolvimento local;
- A capacidade de desempenho de funções nos âmbitos: da identificação de problemas educacionais; da
planificação, organização, gestão e avaliação de programas e projectos de intervenção comunitária; da formação de
professores e agentes de desenvolvimento sociocultural; da animação socioeducativa; da intervenção em acções de
desenvolvimento local, e de educação contínua de adultos;
Além disso, nesse perfil, são contempladas as seguintes competências:
- de diagnóstico de problemas e de análise de organizações, contextos e acções educativos, bem como das situações
sociais, económicas e culturais com componentes de educação e formação;
- de intervenção como educador, formador, supervisor e animador socioeducativo, com base em saberes científicos,
métodos e recursos adequados aos contextos e aos problemas;
- de definição e execução de orientações de política educativa e de formação nos seus diferentes níveis de
formulação, de planificação de objectivos educacionais, de operacionalização de programas e projectos de educação,
formação e desenvolvimento;
- de elaboração, interpretação e operacionalização de objectivos concernentes à descrição e caracterização,
avaliação e acompanhamento, estudos de prospectiva e trabalhos de consultoria;
- de direcção de programas, projectos e acções, de concepção de modelos de intervenção, de planos, dispositivos e
métodos de educação e formação, de definição orientações educativas, necessidades, objectivos e planos de formação, de
compreensão dos problemas e das situações, de investigação em educação;
- de âmbito pessoal e social, nomeadamente de criatividade e espírito crítico, de autonomia e responsabilidade, de
auto-formação permanente, de observação e análise, de diálogo e cooperação, de animação e intervenção.

5. A formação superior nas Ciências da Educação


No que se refere à formação superior em Ciências da Educação, recorda-se que esta se realiza no contexto dos
Institutos Superiores de Ciências da Educação (ISCED) existentes em Luanda, Lubango, Huambo, Benguela, Cabinda e Uíge
e na Escola Superior Pedagógica da Lunda Norte (que forma bacharéis), garantindo-se a formação de professores/formadores
em várias disciplinas e na área específica da Pedagogia. Pode-se afirmar que a grande preocupação é a formação de
professores para o ensino básico e o ensino secundário e a formação de formadores de professores. Aqui, os
professores/formadores recebem, no âmbito dos cursos de graduação, formação na área específica da sua disciplina de
especialidade e formação em Ciências da Educação.
Dada a diversidade sociocultural das várias regiões do nosso vasto país e as especificidades e necessidades de cada
uma, torna-se imperioso que cada instituição formadora (ISCED) possa conceber uma oferta formativa própria, ajustada às
necessidades da região onde está implantada o que pressupõe diversificar o leque de cursos. Isto significa que cada instituição
credenciada pela Secretaria de Estado do Ensino Superior possa dispor de uma oferta própria, mas admitindo que os cursos
semelhantes oferecidos pelas diversas instituições definam currículos parecidos (ou, pelo menos, com uma base semelhante)
de modo a facilitar o seu reconhecimento mútuo e equiparação no espaço nacional.
Sendo o ensino superior um factor de desenvolvimento regional dados os seus contributos em matéria de formação
de quadros, de pesquisa da realidade local e de contribuição para a resolução dos problemas locais, torna-se necessário
avaliar a oportunidade e pertinência da criação de determinado tipo de instituição de ensino superior e de cursos de modo a
conseguir-se, no global, um desenvolvimento equilibrado do ensino superior em Angola tomando em consideração as
prioridades nacionais, por um lado, e as necessidades locais, por outro.
Além disso, a reestruturação da formação superior em educação em Angola não pode deixar de considerar os
aspectos inerentes à inclusão do país na comunidade regional que é a SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África
Austral) e nos compromissos assumidos junto das associações científicas africanas a que Angola aderiu (Associação de
Universidades Africanas - AUA, Associação para o Desenvolvimento da Educação para África - ADEA) e muito menos as
obrigações decorrentes da criação do espaço lusófono de ensino superior em resultado da Declaração de Fortaleza (2004).
Quer isto dizer que as novas políticas de reorganização do ensino superior em Angola e os processos de reforma curricular
devem atender às implicações dos processos de cooperação que sugerem medidas de aproximação curricular e
comparabilidade internacional de modo a facilitar a mobilidade académica e o reconhecimento das formações.
Para se tornar consentânea com as exigências de adequabilidade à realidade educativa angolana em transformação,
a formação em Ciências da Educação em Angola deve basear-se nos seguintes princípios:

92
Universalidade - articulação da formação oferecida com o nível geral de conhecimento actual, aliando o
conhecimento particular com o universal, tendo em conta a comparabilidade da formação no espaço africano e lusófono.
Sobre as questões da internacionalização do ensino superior, entre as quais a equiparação dos diplomas e a mobilidade
académica, que também passaram a constituir preocupações das universidades africanas, cf. Simão, Santos & Costa,
2002:319-320. A Associação para o Desenvolvimento da Educação para África (ADEA) defendeu no seu Encontro de
Ouagadougou (Bourkina Faso, Novembro de 1999), a internacionalização dos curricula como condição para favorecer a
mobilidade académica de alunos e professores.
Contextualidade - ligação dos saberes teóricos à realidade social, profissional e cultural de Angola, e articulação da
formação com os problemas da prática para gerar uma massa crítica consciente da realidade nacional, capaz de a questionar e
de nela intervir de modo competente.
Democraticidade - liberdade de escolha e de acesso aos cursos, garantido que todos tenham as mesmas
oportunidades de formação universitária sem descurar as lógicas da meritocracia subjacentes à formação das elites de
intelectuais. Pressupõe a adopção de medidas de compensação financeira para alunos oriundos de famílias economicamente
desfavorecidas;
Flexibilidade - articulação entre cursos, facilitando os percursos académicos dos alunos tendo em conta uma
formação de base mais homogénea e a diferenciação das áreas de formação que têm como núcleo as Ciências da Educação.
Coerência - integração da formação no sistema geral de formação de professores e outros profissionais da educação,
tendo em conta a relação entre os perfis, objectivos e conteúdos da formação de cada nível e área de formação. Articulação
com a pós-graduação como condição para favorecer a especialização do perfil.
Racionalidade – formação em tronco comum, para gerar bases científicas e técnicas uniformes, concebendo
percursos de formação de duração mais curta tendo em conta a carência de profissionais nestas áreas e a possibilidade de
continuarem os estudos de especialização mais tarde.
Articulação teoria-prática – concepção de um modelo de formação que valorize tanto a dimensão teórica com a
vertente prática, articuladas dialecticamente de modo que a teoria sirva para iluminar a prática e esta para dar sentido à teoria,
de tal forma que os profissionais sejam capazes de agir reflectindo e de reflectir agindo.
Tónica nas competências - preocupação com as competências pessoais, profissionais e sociais que configurarão o
perfil dos futuros licenciados para que sejam capazes de articular os saberes teóricos com as experiências da prática
profissional e de resolver problemas concretos colocados pela praxis.
Carácter activo - desenvolvimento da atitude activa e autónoma dos alunos na aprendizagem tornando-os capazes
de regular o seu processo de formação, desenvolvendo a capacidade de gestão do processo formativo e a responsabilidade
pela sua própria aprendizagem.

Conclusão
Apesar dos progressos quantitativos verificados no campo educativo, Angola ainda revela défices de profissionais
qualificados que possam responder às exigências de melhoria qualitativa do sistema educativo em geral e da reforma
curricular em particular. Embora a tónica continue a ser colocada na formação de professores, torna-se necessário, face à
pertinência de um trabalho de educação cívica dos cidadãos nas suas comunidades, formar e qualificar profissionais para as
tarefas da educação não formal e comunitária. A educação não formal e comunitária tem-se revelado cada vez mais um
desafio que exige profissionais especificamente formados. Estamos perante a emergência de novos campos de intervenção
educativa que exige repensar a formação na área das Ciências da Educação, contemplando a diversificação de perfis
profissionais para responder à necessidade de formação de novos profissionais.
É neste contexto que as instituições de formação em Ciências da Educação devem passar a ocupar-se da formação
de profissionais para a educação não formal, incluindo novas áreas que se direccionem para a formação de educadores
sociais, assistentes sociais, animadores sociocomunitários, dinamizadores culturais, promotores do desenvolvimento local,
activistas comunitários, ou seja, um conjunto de profissionais cuja esfera de intervenção é a comunidade, trabalhando numa
perspectiva de educação informal ou não formal e visando o desenvolvimento sustentado desta. Este é um desafio que deve
ser assumido como estratégia para complementar a acção educativa da escola, aumentando as possibilidades educativas de
cidadãos (jovens, adultos e idosos) que no passado se viram afastados da instrução escolar, da formação profissional ou de
qualquer tipo de educação. Estamos perante um alargamento do campo de trabalho dos profissionais da educação que passa a
abranger a escola e a comunidade.
Como é lógico, os especialistas das Ciências da Educação (do Ministério da Educação e das instituições
universitárias) serão chamados a reflectir sobre esta nova realidade educativa e sobre a natureza da formação de educadores
sociais, recorrendo ao seu saber teórico, à experiência do passado e ao conhecimento da actual realidade angolana e de outras
realidades similares para encontrarem as soluções mais adequadas a esta realidade que não tem merecido a devida atenção.
Ao descurar-se a educação comunitária está-se a comprometer as possibilidades de desenvolvimento de pessoas e
comunidades que têm ficado à margem dos processos educativos e que, por isso, não têm tido oportunidades de aceder à
cidadania efectiva. Cabe a esta educação não formal resgatar estes cidadãos da exclusão a que foram remetidos, o que
pressupõe uma intervenção na comunidade segundo objectivos de desenvolvimento, de emancipação e de cidadania.

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A abordagem efectuada à formação, investigação e intervenção em Ciências da Educação remete-nos, tanto para o
passado que já conhecemos como para uma perspectiva de futuro. Depois de mais de 28 anos de actividade na área de
formação de professores e agentes da educação, é pertinente questionar o estado actual do desenvolvimento das Ciências da
Educação em Angola sob consideração do importante papel que devem desempenhar nesta fase de consolidação do sistema
educativo que apela à redefinição de perfis tendo em conta os actuais e futuros campos de intervenção em educação.
A reflexão sobre o futuro das Ciências da Educação em Angola deve inscrever-se nas preocupações gerais do
Ministério da Educação no sentido de adequar, diversificar e consolidar esta área, considerando o papel que a educação deve
desempenhar no desenvolvimento da sociedade angolana. Relativamente a isto há que considerar que esse futuro passa por:
- repensar a formação superior em Ciências da Educação nos aspectos quantitativo e qualitativo, irradiando as
escolas de formação profissional pelo país;
- reforçar a formação e a investigação nos campos do ensino, da planificação e gestão educacional, da formação de
educadores e formadores para o sistema de ensino;
- penetrar nas esferas da educação não formal e da intervenção sociocomunitária de forma a contribuir para o
desenvolvimento sustentado das comunidades locais;
- apostar na investigação e conhecimento das realidades educativas locais e influenciar, através da divulgação dos
resultados da investigação, as práticas profissionais dos agentes educativos;
- consolidar a compreensão sobre o papel e a importância da educação formal e não formal como factor de
desenvolvimento social de Angola;
- investigar, desenvolver e clarificar novos perfis profissionais relacionados com as várias áreas de intervenção
socioeducativa no país;
- constituir, a partir das boas práticas e da investigação, um suporte teórico e metodológico das estratégias, acções e
intervenções de natureza socioeducativa.
No entanto, não devemos esquecer que a consolidação e a evolução favorável e consequente das Ciências da
Educação em Angola apenas se fará sob as seguintes condições:
- Existência de quadros altamente qualificados, devidamente aproveitados e remunerados, no âmbito de uma
carreira correctamente gerida e remunerada;
- Dotação de recursos bibliográficos e financeiros suficientes como condições fundamentais para viabilizar o ensino
e a investigação na graduação e na pós-graduação;
- Acompanhamento da evolução das Ciências da Educação em África e no mundo através da pesquisa na Internet e
da participação em eventos internacionais;
- Constituição de parcerias com instituições nacionais e internacionais através de protocolos de cooperação e da
criação de redes de pesquisa e intercâmbio;
- Adopção de métodos de gestão eficazes e de uma estrutura orgânica funcional para que possa ser possível
supervisionar e avaliar o processo de reforma curricular;
- Criação de instâncias de publicação/divulgação dos resultados da investigação, nomeadamente revistas científicas
e de prémios para valorizar contributos relevantes;
- Reforço da formação e requalificação dos quadros existentes de forma a manter elevados os seus níveis de
desempenho;
- Activação de programas de cooperação internacional nos domínios da investigação e da formação como forma de
acompanhar a evolução internacional neste campo;
Como nota final, referira-se que uma reestruturação curricular deve operar-se segundo uma priorização de
objectivos e acções, considerando que, neste caso específico, não basta diversificar a formação nem tão pouco ajustá-la às
demandas socioeducativas. É preciso:
- desenvolver um processo contínuo de acompanhamento (monitorização) e reflexão permanente para produzir
imagens em tempo real sobre a eficácia das medidas;
- realizar esforços para melhorar a qualidade da formação, em todos os aspectos, pois só assim a instituição
universitária granjeará prestígio;
- analisar o impacto da formação em termos do desempenho dos diplomados e do desenvolvimento da
profissionalidade docente (deontologia) para perceber em que medida as Ciências da Educação contribuem para a afirmação
de um campo profissional autónomo e auto-regulado.

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de 2008. Luanda: UAN. Direcção dos Serviços de Documentação e Informação Científica.

Identidades e Classificação na modernidade: ação afirmativa na universidade

Alessandra Nascimento
UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
alesantosnas@yahoo.com.br

Rita de Cássia Ferreira


UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
ritacassiaferreira@yahoo.com.br

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Resumo: Este estudo contempla uma pesquisa empírica com abordagem qualitativa, o público consistiu em todos os alunos regulares de
graduação do Curso de Ciências Sociais ingressos nos anos de 1998 a 2001. O local da pesquisa foi a FCL/UNESP/Araraquara. Ao
refletirmos sobre os critérios de classificação/identificação que foram mobilizados pelos alunos entrevistados para responderem as questões
propostas pelo censo étnico-racial, criado e aplicado por nós, dialogamos com questões contemporâneas como a criação e implantação de
políticas sociais e de igualdade e a construção das identidades, e, tangencialmente, com a cultura de direitos, as novas formas da
desigualdade e o novo estatuto da participação. Trabalhamos com diferentes métodos de classificação no censo como a autoclassificação
(aberta e fechada) e a heteroclassificação. A partir da comparação dos resultados de cada método supracitado buscamos entender se e como
esta instituição de ensino superior pode influenciar para uma diferença qualitativa nos discursos, em particular, naqueles envolvendo os
conceitos de etnia e de raça, tendo em vista que participaram da pesquisa tanto alunos do último ano quanto ingressantes. Este processo
investigativo nos impôs pensarmos sobre a relação entre a construção da identidade deste tipo de instituição e as políticas universalistas. E a
difícil reconstrução da identidade mediante as experiências das políticas de ação afirmativa. Ao considerarmos que IBGE não objetivou
contribuir para a construção de identidades étnico-raciais no país, a criação e aplicação deste censo piloto permitiu sugerirmos algumas
diretrizes para desmistificar a expressão “identidade nacional” e problematizar a implantação de ações afirmativas na universidade.

O estudo contempla uma pesquisa empírica com abordagem qualitativa e quantitativa envolvendo graduandos de
Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras/UNESP em Araraquara, ingressos nos anos de 1998 a 2001. Para tanto foi
elaborado e aplicado um Censo Étnico-racial com o público de 272 pessoas, no qual visou-se compreender como os
graduandos se classificavam e, ao mesmo tempo, construíam sua identidade étnico-racial no interior desta instituição. No
questionário do Censo trabalhou-se com os métodos de classificação étnico-racial: autoclassificação (aberta e fechada) e
heteroclassificação (a partir de fotos presentes na Seção de Graduação). Procurou-se relacionar os resultados desta pesquisa
com a literatura recente que trata de experiências de implementação de políticas de ação afirmativa no ensino superior
brasileiro. Neste contexto, buscou-se entender a relação entre a construção da identidade étnico-racial, a identidade
institucional da UNESP e as políticas universalistas, bem como os desafios impostos pela implantação das políticas de ação
afirmativa para esta modalidade de ensino em outras instituições. De forma sintética, a interpretação dos resultados do Censo
permite-nos apontar que o procedimento de heteroclassificação reduziu a população branca, aumentou significativamente as
populações parda e mulata e diminuiu a negra no interior desta faculdade. E, mais, que semelhante quadro, somado as outras
questões, salienta a predominância que o procedimento de autoclassificação deve ter sobre qualquer outro critério para a
definição do público alvo para as políticas de ação afirmativa. Outro dado considerável, foi a expressividade do uso do termo
brasileiro(a) para representar a identidade étnico-racial dos graduandos.

Introdução
A presente comunicação foi dividida em duas partes: a primeira, procurará fornecer um quadro do perfil
institucional da Universidade Estadual Paulista (UNESP), enfocando sua política de inserção – através do vestibular – e de
permanência para os alunos. Enquanto a segunda irá discorrer de forma detalhada sobre os procedimentos e os resultados da
pesquisa Censo Étnico-racial. Nesta perspectiva, a segunda parte tentará apresentar e problematizar os métodos de
classificação utilizados na pesquisa Censo, bem como os resultados e as abordagens teóricas, inclusive, estabelecendo
diálogos com outros trabalhos. O tema identidade e classificação étnico-racial funcionará como uma espécie de nexo entre
nossa pesquisa e os trabalhos sobre a implantação de políticas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro.
Em 2001, quando o material da pesquisa Censo foi coletado, não havia no país nenhuma experiência de
implementação de ação afirmativa e/ou de cotas nas universidades. Naquele período, a pesquisa buscou responder dentre
outras questões, uma que na atualidade continua sendo considerada um entrave na efetivação deste tipo de política – seja nos
discursos de parte da intelectualidade brasileira, seja nos discursos da população em geral –: “Como definir os possíveis
beneficiários das políticas de ação afirmativa e/ou de cotas?”.
Selecionar-se-á do conjunto de perguntas/hipóteses que estimularam a realização da pesquisa àquelas que se
relacionaram diretamente com o enfoque proposto por esta comunicação. Tendo em vista tal seleção, as perguntas/hipóteses
que nortearam o Censo foram:

Os graduandos de Ciências Sociais da Fclar/UNESP possuem e assumem uma identidade étnico-racial?


O material resultante do Censo Étnico-racial – identidades e classificações assumidas pelos graduandos
pesquisados – assegura diretrizes para definir um possível público beneficiário de uma política de ação afirmativa no interior
desta faculdade?
Quais categorias são mobilizadas pelos graduandos no estabelecimento de suas identidades étnico-raciais?
Métodos distintos de classificação asseguram mudanças nas categorias expostas pelos graduandos para expressar
sua identidade étnico-racial?
A formação propiciada pelo Curso de Graduação influenciou nos discursos dos graduandos sobre identidade étnico-
racial, promovendo desafios teóricos para compreender e difundir o tema das relações étnico-raciais, a partir de rupturas
conceituais evidenciadas por raça, cultura e etnia?

1. UNESP: perfil institucional e os desafios das políticas de ação afirmativa e de cotas

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Antes de tratarmos do perfil institucional da UNESP faz-se necessário esta digressão: historicamente, em países
centrais e periféricos, o “[...] modelo de modernização política trouxe implicitamente consigo o projeto de forjar a identidade
política nacional através da preservação e desenvolvimento da cultura nacional” (Magalhães, 2006: 24). Neste contexto, a
“[...] ligação entre a universidade e a consolidação do Estado-nação [...] [tornou-se extremamente] forte. Essa ligação pôde
ser ainda muito recentemente verificada nos processos de independência dos países anteriormente colonizados, [como a
Tanzânia]” (Ibidem). Com a globalização, diferentes regiões se assumiram como novas unidades políticas, em detrimento do
modelo Estado-nação. No entanto, este processo não reduziu a importância da educação superior na construção da identidade
política e sim a reatualizou.
Para Magalhães (2006), a narrativa da modernidade foi responsável por articular as narrativas públicas sobre o
ensino superior, tais dimensões narrativas tiveram no Estado o locus privilegiado para seu encontro. De acordo com o autor:
[...] A modernidade foi um tempo de grande segurança e forte identidade das instituições de ensino superior e da
educação superior em si mesma, isto é, havia um consenso essencial, para além da diversidade dos sistemas de ensino
superior, acerca do que era educação superior e acerca dos seus objetivos educacionais, sociais e políticos (Magalhães,
2006: 26-27).

Entretanto, este “consenso essencial” encontra-se abalado no contexto de “pós-modernidade”, à medida que “[...]
um discurso específico [vem] assum[indo] uma posição central, agregando sentidos em torno de uma nova identidade do
ensino superior: a narrativa empreendedora/empresarialista [...]” (Magalhães, 2006: 27). Esta narrativa ao deslocar o modelo
liberal de universidade – alicerçado na idéia da busca do conhecimento como um fim em si mesmo – enfatiza o papel do
mercado na produção e na escolha do quê saber. Isto propicia reconhecer que a crise da narrativa moderna e a emergência da
narrativa empreendedora/empresarialista são tanto sintomas quanto causas da fragmentação identitária do ensino superior,
nos termos apontados por Magalhães (2006). Outro aspecto desta questão é perceber a coincidência entre a crise da
modernidade e a crise da identidade da universidade.
Para Carvalho (2006) é fundamental considerar que “[...] o auge da expansão das academias de ciências e dos
cursos universitários delas correlatos coincidiu com o auge do colonialismo e do imperialismo” (Carvalho, 2006: 110). E que
as transformações na agenda política e na academia, atualmente, refletem a decadência tanto do imperialismo europeu e
norte-americano quanto do colonialismo europeu. É na “ressaca moral do pós-guerra” que Carvalho (2006) situa o importante
papel das teorias das Ciências Humanas e Sociais no questionamento do imaginário originalmente racista e imperialista. E
destaca como um dos fatores que colaborou para tais mudanças, a adoção de políticas de ação afirmativa no interior das
universidades americanas e européias e, com isto, o ingresso de um número crescente de “subalternos” com visões de mundo
e interesses distintos. A interpretação de Carvalho (2006) converge com a de Siss (2003), ao apontar que esta alteração no
perfil hegemônico da academia abriu perspectivas para o surgimento das análises da condição subalterna e dos processos de
produção discursiva do sujeito etc., desencadeando uma espécie de descolonização do imaginário de educadores e/ou de
pesquisadores nestas e em outras sociedades. Guardando as devidas proporções, as análises de Siss (2003), de Carvalho
(2006) e de Magalhães (2006) contribuem para elucidar parte da crise da identidade do ensino superior atualmente.
Segundo Carvalho (2006), o material produzido pelo IPEA e por outros órgãos de pesquisa – ao tratar da situação
da população negra no Brasil – aponta para o alijamento deste grupo das posições de destaque no país, particularmente, no
decorrer dos últimos 30 anos. Esta exclusão coincide com a criação e o desenvolvimento de diversas instituições de ensino
superior e pesquisa, bem como seu gerenciamento e o estabelecimento de um circuito acadêmico e científico cada vez mais
restrito e competitivo. Tal quadro torna o alijamento desta população duplo, isto é, tanto da sociedade quanto da academia. É
neste contexto que a discussão sobre a forma de inserção e de permanência na universidade pública brasileira adquire
relevância no âmbito acadêmico, político e social.
Ao tratar sobre o tema da inclusão social na UNESP e seu vestibular o diretor acadêmico da Vunesp, Fernando
Dagnoni Prado, em documento apresentado no Conselho Universitário (CO/UNESP) em fevereiro de 2005, afirma que a
UNESP conta com dispositivos estruturais e conjunturais para minorar as disparidades provocadas pela exclusão social no
ensino superior. Como exemplos de dispositivos de ordem estrutural, Prado (2005) destaca a disseminação geográfica da
instituição; a oferta de cursos e vagas no período noturno, em percentual acima do estabelecido pela Constituição paulista; as
próprias características do vestibular: a fase única e a inexistência de lista de obras literárias etc. De ordem conjuntural,
chama-nos a atenção para o fato da UNESP atuar em diferentes fases do processo, isto é, antes e depois do ingresso na
universidade. Na primeira fase ressalta o papel dos cursinhos preparatórios gratuitos ou subsidiados na maioria de suas
unidades, a distribuição gratuita do Guia das Profissões, a divulgação do vestibular nas maiores escolas públicas do Estado de
São Paulo e a isenção da taxa de inscrição para candidatos carentes, além da inserção das provas do ano anterior no Manual
do Candidato. Na segunda fase, Prado (2005) salienta o apoio social e financeiro aos estudantes carentes (bolsas, moradia,
auxílio aluguel, bibliotecas equipadas, assistência social e médica etc.). De acordo com sua avaliação, a UNESP com todas
estas ações encontra-se próxima de colocar em risco a recente expansão de vagas e de cursos bem como a qualidade da
pesquisa, advindo a preocupação com mudanças intempestivas que poderão comprometer a credibilidade adquirida pela
instituição ao longo dos anos. Apesar de Prado (2005) não mencionar quais seriam as “mudanças intempestivas” pode-se
perceber, nas entrelinhas de seu discurso no decorrer do documento, a referência às políticas de ação afirmativa e de cotas.
É necessário problematizar algumas informações disponibilizadas por Prado (2005) no que tange aos dados e
análises do questionário socioeconômico dos candidatos/ingressantes no vestibular de 2004 da UNESP, à medida que estas

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informações serviram para fornecer um quadro do vestibular e influenciar direta ou indiretamente as decisões sobre a política
de ingresso adotada na instituição para os próximos anos. Estes dados foram apresentados em formato de tabela com os
seguintes itens: renda familiar mensal; ensino médio em escola pública; cor de pele não branca; não freqüentou cursinho;
escolaridade dos pais. Comentaremos somente os itens renda e cor de pele não branca, em particular o último, pois incide
diretamente no tema por nós desenvolvido, na pesquisa Censo Étnico-racial.
Quando se observa o item renda familiar mensal constata-se uma sutil dubiedade na disposição dos dados e,
conseqüentemente, nas interpretações que os mesmos permitem. Em outros termos, a tabela ao apresentar de forma paralela e
sem os valores absolutos a coluna total de candidatos e a de ingressantes, induz a seguinte interpretação capciosa: 64% do
total de candidatos tinham o perfil “renda familiar mensal abaixo de 10 salários mínimos” e, destes, ingressaram 62%. Uma
leitura atenta dos dados somente nos permite dizer que 62% do total de ingressantes apresentava o referido perfil. Esta
diferença na interpretação é significativa quando se considera que o total de candidatos em valor absoluto correspondeu a
104.403 enquanto o de ingressantes foi 7.015 (UNESP, 2007: 172-173).
Ainda considerando a tabela, percebe-se que no item cor de pele não branca aos equívocos na disposição e
interpretação dos dados (como explicitado anteriormente), juntam-se outros problemas como os decorrentes de trabalhar com
os resultados agrupados. Ao trazer as categorias (pardo, preto, amarelo ou indígena) como um único valor (20% do total de
ingressantes apresentava estas características) obstaculiza-se a compreensão sobre qual o percentual de cada grupo, podendo
ter grupos sub ou sobre representados. Ao não apresentar relação com a opção de curso dificulta-se conhecer se os cursos nos
quais ingressaram são ou não os menos prestigiados etc. Esta falta de transparência das informações é agravada pela
inexistência de relação entre os dados econômicos e os de auto-identificação.
No Jornal UNESP nº. 217 de 2006, a ouvidoria estabelece que a inclusão social é uma necessidade ética e cidadã.
Seguindo este raciocínio tal seção irá recorrer às palavras de Fernando Prado no documento de 2005, para afirmar que a
UNESP não está insensível às experiências das universidades que adotaram as cotas raciais. No entanto, sua política de
acesso com isenção de taxas nos vestibulares, bolsas de manutenção, moradia estudantil, refeitório universitário etc. somada a
crescente ampliação do número de vagas permite à instituição ter uma postura de relativa tranqüilidade para estudar
mecanismos de acesso sem violentar o critério do mérito, ou seja, algo alternativo as cotas. Com este encaminhamento a
ouvidoria não sugere e nem descarta que poderá haver medidas que contemplem as políticas de ação afirmativa, mas antecipa
que as cotas raciais não constam no horizonte. De certo modo, esta posição da ouvidoria rivaliza com a assertiva do discurso
presente na seção Sociologia, da mesma edição do referido jornal. Na seção Sociologia apresenta-se o resultado de uma
pesquisa de mestrado realizada na Faculdade de Presidente Prudente, na qual se afirma ser imprescindível a implantação de
políticas de ação afirmativa ao constatar a situação desfavorável dos alunos negros e pardos, no interior desta faculdade. O
autor do estudo é enfático ao dizer que caso tais políticas não sejam implantadas, ainda se terá por muito tempo que tolerar a
falácia da inferioridade do negro (Zanella, 2006).
Em 2008 o tema das políticas de ação afirmativa e de cotas é reatualizado no interior da UNESP após a entrevista
do reitor, Marcos Macari. Segundo Cafardo (2008), a UNESP, nas palavras de Macari, adiou o projeto sobre cotas para
ingressantes provenientes da escola pública – no qual seriam criadas 700 novas vagas exclusivas para estes alunos no
vestibular – devido à ausência de estrutura para receber novos discentes. O reitor expôs que o projeto não prevê recortes por
raça, cor ou renda familiar, mas objetiva que a UNESP atinja o percentual de 50% de alunos oriundos da escola pública.
Entre as unidades que alegaram problemas de estrutura para receber mais público encontram-se a Faculdade de Ciências
Farmacêuticas (Araraquara), o Instituto de Biociências (Botucatu) etc. Contudo, Macari afirmou que houve unidades como a
de Engenharia (Guaratinguetá) e de Ciência e Tecnologia (Presidente Prudente) que informaram já terem aprovado a proposta
internamente.
O referido projeto está de acordo com o diagnóstico feito pela instituição em seu Plano Decenal de
Desenvolvimento Institucional (PDI), o qual encontra-se em discussão nos campi. Segundo este documento, as expectativas
com relação ao ingresso dos discentes se dividem entre os que entendem “[...] que a UNESP já pratica a inclusão social e
aqueles que acham que deve haver algum mecanismo para a inclusão de alunos oriundos de escolas públicas, sem orientação
racial” (UNESP, 2008: 14). Brandão (2005) reforça no interior da UNESP – como docente – o discurso que reconhece a
necessidade de criar um mecanismo para inclusão de discentes oriundos da escola pública sem recorte racial. Neste sentido,
este autor posiciona-se desfavorável as cotas raciais como uma alternativa para democratizar o ingresso nas universidades
públicas do país.
Outros críticos da ação afirmativa e do dispositivo de cotas para ingresso de negros no ensino superior, como
Almeida (2003), têm reconhecido que a “solução universal” da melhoria da qualidade das escolas públicas de ensino
fundamental e médio trata-se a curto e médio prazo de uma quimera. Estes críticos sutis da efetividade das políticas
universalistas no campo educacional, e das políticas de ação afirmativa e de cotas, se posicionam favoráveis à implantação do
sistema de bolsas de estudos nas escolas privadas do ensino médio assim como a realização de cursos pré-vestibulares
gratuitos pelas universidades públicas. De acordo com Almeida (2003), tais ações consistiriam em um ‘sistema de cotas’ sem
uma ‘reserva de mercado’, o que representaria uma defesa da democracia e do princípio da meritocracia. Nas entrelinhas do
discurso de Almeida (2003), encontra-se a defesa do crescimento da rede privada de ensino como uma condição para
a democracia na esfera educacional. Entretanto, aceitar semelhante condição significa ir de encontro com a história da
educação brasileira, caracterizada pela luta em prol da escola pública ao longo de todo o século XX.

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O fato da “solução universal” ser considerada uma quimera nos termos supracitados, não revoga o importante papel
das políticas universalistas para a melhoria da educação em todos os níveis de ensino. Por outro lado, a possibilidade de
utilização de uma medida transitória como as políticas de ação afirmativas e/ou de cotas – para acelerar o processo de
inclusão – tão pouco desloca ou suprimi a necessidade de políticas universalistas na área educacional.
A proposta de fornecer cursinho pré-vestibular para a população negra e para a de baixa renda, apesar de ser uma
ação importante e necessária, inclusive como estratégia para combater o racismo, não assegura, isoladamente, que estes
grupos possam competir em igualdade de condições com os alunos oriundos da rede privada, em particular, para os cursos de
maior prestígio. Isto se deve ao fato da estruturação do habitus destes grupos ter se desenvolvido de forma precária por longo
tempo, seja em virtude do baixo nível cultural, seja em virtude do baixo nível social e econômico de suas famílias e/ou de
suas redes de amizade (Bourdieu, 2001). Desse modo, apesar do cursinho consistir em uma proposta interessante, ele não é
a panacéia para o problema do ingresso da população negra e/ou a de baixa renda na universidade pública.
Para Teixeira (2003) a discriminação na academia brasileira é expressão da reprodução que a universidade pública
realiza da sociedade. Em outras palavras, ao verificarem-se as condições de vida da população negra e compará-las com as de
outros grupos étnico-raciais constata-se que esta população possui os piores percentuais nos indicadores de educação; saúde;
renda entre outros. Teixeira (2003), ao olhar para a participação dos negros na universidade, percebe a reprodução deste
quadro de desigualdades à medida que tal população ingressa:
[...] nos cursos que dificilmente irão conduzi-l[a] à conquista dos lugares melhor remunerados pelo mercado de
trabalho. De forma que, em algum sentido, a seleção social continua operando dentro dos níveis mais elevados de
ensino, de maneira a limitar as chances dos negros de alcançar as profissões de maior status ou prestígio, mais
procuradas pela elite do país, que assim, mantém seus níveis de reprodução social (Teixeira, 2003: 112, itálico da
autora).

Semelhante cenário representa um aspecto do racismo que opera fora e dentro da universidade pública brasileira,
expressando-se dentro desta última como elitismo. Neste tipo de universidade, não apenas o corpo discente, mas também o
corpo docente e o administrativo são predominantemente brancos, o que assegura ao Brasil ser considerado um dos países
com as academias étnica e racialmente mais excludentes do mundo. Esta situação pode ser verificada ao considerar-se que
52% do total de brasileiros são brancos e amarelos – segundo os dados ibgeanos – e ocupam 98% das vagas atuais no ensino
superior (Carvalho, 2006). Daí a necessidade de pensar e de implantar mudanças na forma de inserção e de permanência dos
alunos negros e de outras minorias na universidade.
No que se refere à proposta de ampliação do número de vagas no ensino superior privado, mediante bolsas de
estudo, trata-se de uma medida importante, porém insuficiente. Outro aspecto que precisa ser considerado é o fato da
reivindicação do movimento negro centrar-se no aumento da participação da população negra nos melhores centros de ensino
e pesquisa do país, os quais são públicos.
No que tange ao tema do mérito, vale destacar que Carvalho (2006) se distancia e até mesmo se contrapõe às idéias
apresentadas por Almeida (2003) ao sugerir outro ponto de vista para esta questão. De acordo com Carvalho (2006) todo
estudante secundarista que conclui o ensino médio está habilitado, inclusive legalmente, a ingressar no ensino superior.
Sendo assim, grande parte dos formados no ensino médio encontra-se excluída da universidade pública, particularmente os
estudantes negros, não por falta de capacidade, mas devido, dentre outros aspectos, a atuação das “indústrias” de cursinhos; a
reduzida oferta de vagas neste nível de ensino e a precariedade da formação propiciada pela escola pública. Nesta
perspectiva, pode-se assinalar que a implementação das cotas para negros e outras minorias permitiria combinar o mérito, nos
termos apontados anteriormente, e a justiça da reparação.
Os estudos de Silva e Silvério (2003) e de Pacheco e Silva (2007) apontam que o ingresso de cotistas é desafiador
para a universidade à medida que coloca em xeque sua identidade institucional. Segundo estes autores, semelhante desafio
torna-se algo positivo ao ser capaz de possibilitar uma alteração no modo de ver e de produzir a pesquisa, o ensino e a
extensão. Tais estudos salientam que a valorização do mérito individual e do talento como formas de reconhecimento e
crescimento acadêmicos permanecem com a implantação do sistema de cotas raciais nesta modalidade de ensino.
Reiterando a idéia que vestibular e mérito não são sinônimos, Siss (2003) afirma tratar-se de “[...] ingenuidade
política admitir a existência de competição justa no âmbito de uma sociedade racista” (Siss, 2003: 121), e a partir disto, dizer
que as cotas são prescindíveis. Um outro aspecto analisado por este autor, é o argumento segundo o qual as ações afirmativas
estigmatizariam os beneficiados. Siss (2003) salienta que ao contrário de estigmatizá-los, elas cumpririam o importante papel
de propiciar o surgimento dos “espelhos sociais”, ou seja, dos “exemplos vivos” para serem mobilizados na formatação de
imagens sociais positivas na luta por ascensão social e simbólica e contra o racismo.
Pesquisas recentes da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), baseadas em levantamentos de dados nos diários
de classe (notas e freqüências de alunos optantes e não optantes ao sistema de cotas) e entrevistas com os optantes,
apresentaram as seguintes conclusões: a partir dos diários de classe constatou-se que as diferenças de médias semestrais são
insignificantes e que em alguns cursos os alunos cotistas apresentam valores um pouco maiores, quando comparados ao
grupo não cotista; ao analisar a freqüência, os cotistas têm um índice maior de assiduidade em quase todos os cursos. Nos
resultados das entrevistas verificou-se que entre os aprovados pelo sistema de cotas não houve pessoas com o fenótipo branco
declarando-se afrodescendente. Ainda foi possível detectar que os alunos cotistas não sofreram qualquer tipo de
discriminação pelo fato de serem optantes deste sistema (Santos, 2007).

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Na análise de Santos (2007) encontramos o que foi apontado por Siss (2003) enquanto suposição, ou seja, não
houve estigmatização dos alunos cotistas. No entanto, é evidente que a possibilidade que isto esteja ocorrendo em outras
instituições, ou que venha a ocorrer na UNEB e/ou em outras universidades como a UNESP não está descartada. Todavia, o
que pretendemos enfatizar é que semelhante fato dependerá das características de cada instituição de ensino, não se tratando
de algo a priori, como tem sido apontado por alguns intelectuais como os professores da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), Peter Fry e Ivonne Maggie.
De acordo com Prado (2005), em documento apresentado no CO da UNESP, os relatórios da UERJ explicitaram
avaliações positivas e negativas sobre a questão da progressão curricular dos ingressantes cotistas. Este autor salienta o
aspecto negativo da experiência com cotas na UERJ para refletir sobre a proposta deste tipo de política para a UNESP. No
entanto, Prado (2005) não explica quais foram os resultados das referidas avaliações. É importante destacar que os relatórios
da UERJ foram objeto de inúmeras controvérsias, particularmente, na questão sobre as diferenças de desempenho dos alunos
cotistas e não-cotistas ingressos em 2003.
A idéia segundo a qual a qualidade da universidade pública poderia ser ameaçada pelas políticas de ação afirmativa
e de cotas é problematizada por Carvalho (2006) ao apresentar os resultados das pesquisas realizadas pela Universidade de
Brasília (UnB) e pela Universidade de São Paulo (USP) em 2003. Tais pesquisas visavam compreender se existia ou não uma
correlação entre a colocação dos alunos no vestibular e seu rendimento durante o curso. Ambas as pesquisas concluíram que
a referida correlação era/é inexistente e que a alta pontuação no vestibular não assegura melhores notas nas disciplinas
cursadas.
A experiência ocorrida no vestibular da UnB de 2004 nos proporciona alguns elementos para pensarmos a
implantação da política de ação afirmativa, mediante as cotas, na UNESP e/ou em outras universidades sem que erros
semelhantes sejam repetidos. Maio e Santos (2005b), ao analisarem o vestibular da UnB, apontaram que esta instituição
sobrepôs ao critério da autoclassificação – o qual é consagrado na literatura antropológica como o método mais aceitável para
a definição das identidades étnica e social – o parecer de uma comissão que recorreu a fotografia do candidato para deferir ou
indeferir sua inscrição no sistema de cotas. Na leitura destes autores e da Comissão de Relações Étnicas e Raciais da
Associação Brasileira de Antropologia (Crer-ABA) a UnB, em seu processo seletivo do vestibular de 2004, incorreu em um
tipo de prática autoritária, caracterizada pelo fato de promover “[...] um constrangimento ao direito individual, notadamente
ao da livre auto-identificação” (Crer-ABA, 2004, apud Maio & Santos, 2005b: 202) dos candidatos. A atuação da comissão
da UnB, privilegiando o método de heteroclassificação na definição identitária, suscitou a polêmica sobre a validade e a
legitimidade dos critérios que envolvem a identidade étnico-racial no país.
Neste contexto, surgiram reflexões de diferentes áreas do conhecimento tentado responder a pergunta “como se
define quem deve ser ou não o beneficiário do sistema de cotas?” A Antropologia responde a esta indagação com a seguinte
assertiva: os critérios de identidade étnica são se reconhecer e ser reconhecido como um grupo específico. Todavia, no que se
refere ao “ser reconhecido como tal” faz-se preciso ponderar, pois se o reconhecimento da sociedade implicar na necessidade
de uma nova distribuição simbólica e material, este reconhecimento pode ser negado. De certo modo, isto ocorre com parte
significativa das populações indígenas e quilombolas no Brasil.
Pena e Bortolini (2004) adentram tangencialmente na polêmica sobre os critérios de identidade étnica no contexto
das políticas de ação afirmativa, ao argumentarem que do ponto de vista genômico a maioria da população brasileira é
afrodescendente. Isto por si só poderia invalidar a proposta de implantação de políticas setoriais no Brasil. No entanto, vale
ressaltar, que no país, a construção do racismo e do preconceito não está baseada na idéia de origem como nos Estados
Unidos e, sim, na de aparência dos sujeitos, ou seja, nas marcas – nos fenótipos – (Nogueira, 1985). Advém desse fato a
necessidade de trabalharmos com o conceito de raça em uma perspectiva social (Silva, 1994) e problematizarmos a
autoridade e a legitimidade da Genética na definição de quem é quem no Brasil. O estudo de Pena e Bortolini (2004) fornece-
nos uma crítica ao poder de definição da Genética. Tais autores afirmam de maneira categórica que a Genética não pode
definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas. Por outro lado, o trabalho de Teixeira
(2003) orienta-nos para o fato de que o processo de configuração do beneficiário de tais políticas perpassa o reconhecimento
sobre quem sofre discriminação racial no Brasil.
Oficialmente na UNESP, há um grupo de pesquisa e extensão com atuação no campo das relações étnico-raciais,
especificamente para a temática do negro: o Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE). O NUPE foi
fundado em 2000 no interior da Reitoria desta instituição, estando vinculado à Pró-Reitoria de Extensão Universitária
(PROEX) e compondo o Programa UNESP de Integração Social Comunitária (PISC). O referido núcleo está presente em
vários campi, inclusive em Araraquara – local da pesquisa Censo – e tem entre seus objetivos: internalizar nesta universidade
o estudo, a pesquisa e o debate sobre a temática do negro; facilitar o acesso dos pesquisadores e/ou interessados à produção
científica sobre a temática do negro de modo que sempre haja um vínculo entre as atividades de pesquisa realizadas dentro da
universidade e sua extensão à comunidade não universitária.
Para Lemes (2007), atual coordenador do GT-NUPE-FCL/AR, as ações afirmativas são o reconhecimento oficial
das demandas e necessidades de intervenções em uma dívida social impagável. O sistema de cotas raciais nas universidades é
o início do resgate dessa dívida:
As cotas raciais representam, de forma tardia, o apoio político institucional da área acadêmica aos processos de ações
de discriminação positiva em nossa sociedade. [...]. A Universidade nesse contexto, precisa manter e aprofundar as

100
práticas e buscar mecanismos de interação entre cotas, outras formas de culturas internas e a questão da identidade
étnico-racial [...] (Lemes, 2007: 47).

Lemes (2007) não propõe de forma clara a política de cotas dentro da UNESP, mas defende este sistema afirmando
que as universidades têm assumido um papel de vanguarda no processo de resgate da dívida social para com a população
negra no Brasil. O coordenador explicita que há caminhos alternativos as cotas raciais para a busca de equidade na educação,
mas reitera que o sistema de cotas consiste em uma estratégia importante e significativa neste processo.

2. Censo Étnico-racial
As reflexões sobre a utilização dos métodos de classificação étnico-racial hetero1 e autoclassificação2, bem como
os apontamentos sobre a importância de estabelecer relação entre a hetero e autoclassificação (aberta3 e fechada4) –
presentes nos trabalhos de Silva (1994), Osório (2004), Rosemberg (2004) e (2006), Rocha e Rosemberg (2007), Rodrigues
(2007) e Bastos et al. (2008) – orientaram a abordagem teórico-metodológica adotada pela pesquisa Censo Étnico-racial para
acessar e interpretar a construção das identidades étnico-raciais no interior da UNESP.
Os estudos de Silva (1994) e Osório (2004) explicitam parte das contribuições – da supracitada literatura – com a
qual dialogamos na pesquisa Censo: Silva (1994) discute a relação entre hetero e autoclassificação e afirma que há diferença
entre ambas, em sua análise sobre ‘raça social’ no Brasil. Segundo o autor, enquanto a autoclassificação aparece influenciada
pela situação socioeconômica do entrevistado, a hetero permite um critério mais objetivo, ou seja, mais vinculado às
características do fenótipo do entrevistado. No entanto, deve-se problematizar esta idéia de critério “mais objetivo”, o artigo
de Osório (2004) sobre o sistema classificatório racial ibgeano parece-nos oportuno. Analisando inclusive o estudo de Silva
(1994), Osório (2004) argumenta que “[...] [n]o fundo, a opção pela auto ou pela hetero-atribuição de pertença racial é uma
escolha entre subjetividades: a do próprio sujeito da classificação ou a do observador externo” (Osório, 2004: 96).
Compartilhamos desta interpretação de Osório (2004), pois de fato há um caráter subjetivo em ambos os métodos de
identificação. Contudo, isto não reduz e/ou invalida a necessidade de demonstrar a distinção entre estes métodos e de
entender como se relacionam.
A pesquisa Censo Étnico-racial trata-se de um estudo de caso na Faculdade de Ciências e Letras em Araraquara,
com a utilização da aplicação simultânea de dois métodos de classificação étnico-racial: a autoclassificação e a
heteroclassificação. O público pesquisado contou com 382 alunos do curso de graduação de Ciências Sociais, ingressantes
nos anos de 1998 até 2001. O estudo apresentou duas fases distintas e complementares para sua concretização. A primeira
compreendeu a aplicação do método de heteroclassificação em 100% do público. A segunda consistiu na aplicação do
método de autoclassificação através de um questionário, participou da pesquisa nesta fase 71% (272 graduandos) da
população total. Os graduandos que optaram por não participar da pesquisa somaram 16% (60). Enquanto o total de
graduandos não encontrados representou 13% (50).
O primeiro momento da pesquisa contemplou a classificação dos graduandos através de suas fotografias, este
procedimento foi realizado pelas pesquisadoras formuladoras do Censo. O acervo fotográfico encontrava-se no arquivo da
Seção de Graduação. Criou-se neste momento um código para o pesquisado, visando assegurar seu anonimato e estabelecer
um vínculo para comparação entre os dados da hetero e os da autoclassificação, e um quadro contendo informações sobre ano
de ingresso, idade e sexo. Na heteroclassificação foram utilizadas as seguintes categorias: negro, mulato, branco, amarelo,
indígena, pardo. Inserimos a opção “sem foto”, para responder a uma situação presente no período da pesquisa. A utilização
das categorias branco, pardo, indígena e amarelo visou dialogar com a classificação oficial do IBGE. Enquanto a retirada da
categoria preto e a inserção das categorias negro e mulato objetivaram propiciar caminhos para trabalharmos com nossas
hipóteses.
O segundo momento da pesquisa abarcou o método de autoclassificação (aberta e fechada) na aplicação de um
questionário, o qual propôs a utilização das mesmas categorias de identificação disponibilizadas na primeira fase com uma
única exceção: a substituição da opção “sem foto”, pela “não sabe”. O questionário foi composto também por um conjunto de
outras questões de múltipla escolha e dissertativas que permitiram mapear o tema da identidade étnico-racial de forma ampla.
Nesta fase, as principais razões alegadas para o índice de recusas de 16% foram: certo incômodo em participar de pesquisas
que fomentam o debate sobre o tema da identidade étnico-racial, em particular, sobre o conceito de raça, e o desinteresse. Já
no grupo dos alunos ausentes 13%, verificou-se como as principais causas: não estar cursando disciplinas (em fase de
monografia); motivos de trabalho e de saúde; problemas familiares; a transferência para outro curso ou faculdade. O
levantamento a partir das fotos e as entrevistas através do questionário foram realizadas no segundo semestre de 2001.

1
Trata-se de um método no qual a pessoa entrevistada é “reconhecida” e/ou “classificada” através do olhar do pesquisador (seja mediante o contato pessoal, seja
por intermédio de uma fotografia da pessoa pesquisada) etc.. Neste sentido, o pesquisador atuaria como sujeito do processo de classificação.
2
Trata-se de um método no qual a pessoa entrevistada se auto-atribui uma identidade e/ou uma classificação, tornando-se sujeito deste processo de
reconhecimento.
3
Neste procedimento o entrevistado não encontra nenhuma categoria como referência para responder ao questionamento sobre seu processo de identificação
étnico-racial.
4
Neste procedimento o entrevistado encontra um conjunto de categorias pré-estabelecidas como referência para responder ao questionamento sobre seu processo
de identificação étnico-racial.

101
Antes da aplicação do questionário do Censo realizamos um piloto com 12 alunos selecionados aleatoriamente. O
piloto objetivou averiguar a clareza e a adequação das perguntas, no que tange a utilização das categorias de identificação
negro e mulato assim como a exclusão da categoria preto. Por mais problemáticos que esses procedimentos possam parecer, à
primeira vista, os entrevistados não opinaram sobre os mesmos, manifestando-se somente a respeito dos dados
socioeconômicos.
O questionário foi organizado em três partes: I Dados Pessoais; II Dados socioeconômicos, III Identidade étnico-
racial. Na parte I recuperou-se o código do pesquisado e o quadro de dados gerais para comparação (nos termos
supracitados). Na parte II procuramos compreender e estabelecer o perfil dos entrevistados através de informações que
perpassavam seus gastos, o tipo de ensino que mais freqüentou, se era ou não bolsista etc. A última parte encontrava-se
dividida em perguntas de múltipla escolha e dissertativas, inclusive as questões de autoclassificação aberta e fechada.
Apresentaremos um panorama dos resultados da comparação entre a hetero e a autoclassificação fechada e algumas
reflexões a partir dos discursos presentes na autoclassificação espontânea; demonstraremos algumas interpretações
envolvendo as informações sobre o Continente de origem dos bisavós dos entrevistados e a presença ou não de apelido ou
tratamento diferenciado no interior da UNESP, e/ou no grupo familiar/amigos. A partir deste conjunto de considerações
entendemos esclarecer a parte III do questionário, a qual versa sobre Identidade étnico-racial. Neste caminho, recuperaremos
o diálogo, quando necessário, com algumas pesquisas recentes sobre identidade étnica e ação afirmativa na educação.
Para efeito de comparação foi selecionado do total de 382 pesquisados apenas os que participaram das duas fases
do estudo (272 entrevistados), tal procedimento assegura a esse valor tornar-se o público total da pesquisa.
Quando consideramos os resultados dos procedimentos de hetero e autoclassificação (fechada) chegamos à mesma
conclusão de Silva (1994), ou seja, há uma diferença significativa ao adotarmos um ou outro procedimento. De forma
sintética, ao relacionarmos os dois resultados em nossa pesquisa, percebemos que o procedimento de heteroclassificação
reduziu a expressividade da população branca, aumentou significativamente as populações parda e mulata e diminuiu a negra.
A categoria branco foi classificada na hetero e na autoclassificação respectivamente como 52,20% e 69,85%; já a categoria
negro como 2,20% e 8,08%. Na categoria mulato obtivemos 5,88% na hetero e 2,20% na autoclassificação. Na pardo os
dados foram hetero 17,64% e autoclassificação 11,39%. A categoria amarelo representou 3,67% na hetero e 1,83% na
autoclassificação. Enquanto a categoria indígena não apareceu na hetero e na auto representou somente 0,73%. Os
entrevistados que se autoclassificaram como indígena no procedimento fechado, mobilizaram as seguintes categorias no
procedimento aberto: “Não sabe” e “Mameluco”. O índice da opção “não sabe” na autoclassificação fechada foi de 4,04%. Já
a opção “sem foto”, presente na heteroclassificação, correspondeu a 18,38% do total de entrevistados.
Carvalho (2006) estabelece uma hipótese para tentar explicar a dificuldade de trabalhar com a categoria pardo na
classificação dos candidatos para o vestibular da UnB. Segundo este autor, em várias regiões do Centro-Oeste, Norte e
Nordeste do país, com destaque para Brasília, a categoria pardo adquire significados distintos dos existentes em outros
lugares. Grosso modo, em Brasília, sugere Carvalho (2006) que “[...] denominar-se pardo é um modo de expressar uma
adesão a uma condição histórico-geográfica específica. Parece indicar tanto uma recusa de pertença quanto uma afirmação de
origem e de posicionamento psico-político-social na geopolítica de distância e segregação tão marcadas em Brasília”
(Carvalho, 2006: 73). Neste contexto, o pardo do distrito federal não é necessariamente reconhecido como negro e por isso
discriminado, nem tão pouco é pobre, possuindo, muitas vezes, uma condição social de classe média. Diante destas
considerações, pode-se afirmar que há tanto o pardo-branco quanto o pardo-negro e que foi pensando neste último, e no
negro, que as cotas foram vislumbradas no vestibular da UnB (Carvalho, 2006).
Na pesquisa Censo, nuances envolvendo as categorias trabalhadas, inclusive, a de pardo, apontam que no caso de
aplicação das cotas raciais para o ingresso na universidade a classificação precisa ser definida local e/ou regionalmente, pois
diferentemente do exemplo acima, não foram encontrados apenas o pardo-negro e o pardo-branco e sim uma diversidade de
pardos. As identidades expressas pelos pardos variaram, demonstrando sua complexidade através das categorias mobilizadas
pelos pesquisados. Do total de entrevistados autoclassificados como pardos – no procedimento fechado – obteve-se as
seguintes categorias na autoclassificação aberta: “pardo”, “brasileiro” e “miscigenado” (48,40% do total); “mestiço”, “negro”
e “moreno” (19,35%); “misturado”, “afro-brasileiro”, “cafuzo”, “de forma política e cultural”, “filipino” (16,13%). O número
de entrevistados pardos que afirmou não saber responder na autoclassificação aberta correspondeu a 12,90% e o percentual
que não quis responder somou 3,22%.
Na construção do questionário do Censo tínhamos como hipótese que a categoria mulato seria rejeitada pelo
público entrevistado em virtude de “mulato” (substantivo proveniente do espanhol) ser originário do termo “mula”
(Petruccelli apud Rocha & Rosemberg, 2007: 763). Esta hipótese foi refutada, pois mesmo em pequena quantidade houve
menção a categoria mulato tanto na autoclassificação fechada 2,20% quanto na aberta. Um exemplo de utilização desta
categoria na autoclassificação aberta encontra-se na fala de uma entrevistada de 2001: “Mulata, mas não tenho nenhum
problema.”, ou na fala de um entrevistado de 1999: “Mulato/Negro”. Outro aspecto interessante envolvendo esta categoria foi
o índice de correspondência de 66,60% entre os resultados da autoclassificação fechada e da aberta, isto é, a maioria que se
definiu na auto-identificação fechada como mulato(a) manteve esta categoria na autoclassificação espontânea. Para as
entrevistadoras, a categoria mulato seguiu o critério de gradação de cor, segundo o qual os graduandos assim
heteroclassificados seriam “mais escuros” que os heteroclassificados como pardos. Esta utilização no procedimento de
heteroclassificação encontra respaldo em outros trabalhos no âmbito do ensino superior como o de Teixeira (2003).
Para Teixeira,

102
[...] por mais amplo, ambíguo e abrangente que possa ser o sistema de classificação racial brasileiro, cada indivíduo
guarda em si, baseado em suas características físicas, onde a principal delas é a cor da pele, um certo “limite” nas
possibilidades, tanto de classificação por terceiros quanto de autoclassificação (Teixeira, 2003: 64, aspas da autora).

É neste sentido que tanto o preconceito de marca (nos termos de Oracy Nogueira) quanto a discriminação acabam
também por serem orientados dentro de certos “limites”, isto é, destituídos em vários momentos e espaços de possibilidades
de negociação.
Na pesquisa Censo, apesar de não enfatizarmos as trajetórias e/ou as estratégias de ascensão social e de
apresentarmos um público alvo “homogêneo”, em termos de curso e área, podemos encontrar ressonâncias entre os resultados
de nossa pesquisa e os da realizada por Teixeira (2003), nos seguintes termos: enquanto que no procedimento de
autoclassificação aberta na pesquisa Censo constatou-se que nenhum entrevistado mencionou a categoria preto, no trabalho
de Teixeira (2003), verificou-se que: “[...] grande parte d[as] pessoas entrevistadas, independente do curso ou área em que
estudava, preferia a designação de negro ao invés de preto” (2003: 88).
A idéia, segundo a qual o grupo étnico é aquele que compartilha valores, expressões e formas culturais, foi
questionada pela Antropologia tendo em vista três pressupostos: 1) a cultura não é a característica primária de um grupo e
sim a conseqüência de sua organização, isto é, ela consiste no produto de um grupo; 2) a cultura partilhada não é
necessariamente a cultura ancestral, afinal o mesmo grupo étnico poderá apresentar traços culturais distintos dependendo das
condições e oportunidades sociais e naturais na interação com outros grupos sem perder sua identidade própria; 3) existe uma
imprevisibilidade dos traços culturais que serão enfatizados pelo grupo (Cunha, 1987a). A partir desta reflexão de Cunha
(1987a), o fundamental na definição do grupo étnico é considerar-se e ser considerado como tal. Ou seja, o principal critério
de identidade étnica é o de ser identificado e se identificar como grupo específico. Isto é válido para todos os grupos étnicos,
sejam eles indígenas, negros etc.
Outra questão importante é que em contextos de disputas o reconhecimento da identidade torna-se algo
problemático, advém disto o esforço explícito para descaracterizar o grupo étnico. No caso dos grupos negros, mobiliza-se,
dentre outras, a narrativa da miscigenação. Um trabalho que dialoga criticamente com semelhante discurso foi escrito por
Brandão (2005), nele, o autor argumenta sobre a necessidade de considerar que a democracia racial no Brasil é de fato um
mito e entender que há racismo em todas as camadas da população e nas diversas instituições. Brandão (2005) expõe que a
utilização do argumento da miscigenação, seja como fator de unidade, seja como elemento dificultador no processo de
definição das identidades étnico-raciais no país é extremamente questionável. Outros trabalhos que discutem de forma crítica
com os discursos “descaracterizadores” do grupo étnico foram elaborados por Cunha (1987a e 1987b). Para esta autora, no
momento em que a cultura deixa de ser algo “essencialmente dinâmico e perpetuamente reelaborado” (Cunha, 1987a: 116)
para tornar-se enrijecida:
“[...] [h]á quem nos tente convencer de que a questão “racial” se dissolve na de classe, e nesta negação da
especificidade da questão étnica conjugam-se às vezes os defensores da democracia racial com os da democracia tout
court, expulsando, por exemplo, os negros como uma falsa categoria” (Cunha, 1987b: 103, aspas e itálico da autora).

Ao trilharmos os caminhos sugeridos pelas respostas da questão “Como você se define etnicamente?”, da
autoclassificação aberta, entramos em contato com uma produção de discursos cuja intensidade e diversidade não se
esgotaram no recorte por nós aqui apresentado. Acompanhando as pistas lançadas nos diferentes discursos agrupamos
algumas falas para levantarmos: 1) aspectos do processo de construção das identidades étnico-raciais; 2) entendermos se
houve ou não uma diferença qualitativa nos discursos dos graduandos tendo em vista seu processo de formação no Curso de
Ciências Sociais e a influência da atuação dos docentes na mudança ou na reprodução de determinadas idéias no interior
desta universidade; 3) dialogarmos com algumas idéias sobre o Brasil.
No processo de tabulação dos dados da autoclassificação aberta adotamos como critério quando o entrevistado
escreveu mais de uma referência para se auto-identificar selecionar o termo que sintetizasse a orientação de sua fala. No
entanto, faz-se necessário expor que interpretando os discursos dos entrevistados percebemos que o fato da categoria aparecer
em primeiro ou em segundo lugar apontava para uma hierarquia desenvolvida pelo próprio sujeito em seu processo de
classificação. A categoria “brasileiro(a)” foi expressiva desta diferença de valor simbólico, ora expressando-se como central,
ora como secundária nas falas.
Diante da questão: “Como você se define etnicamente?” percebemos uma grande recorrência a categoria
brasileiro(a) como referência central nas respostas, 20,22% do público entrevistado. Ao analisarmos por turmas, optamos por
trabalhar com as porcentagens dentro do próprio ano e não em relação à população total. Tal opção se deu para melhor
dimensionarmos esta categoria para a população entrevistada. Sendo assim, do percentual de 20,22% a maior recorrência a
categoria brasileiro(a) aconteceu na turma de 1999 (22,41%) e a menor na de 2001 (19,04%). Nas outras turmas os índices
foram 1998 (20,68%) e 2000 (19,71%).
A presença da categoria brasileiro(a) como referência secundária nas respostas ocorreu nos seguintes termos: os
entrevistados que se definiram a partir de uma categoria (X) como primeira referência, adjetivaram ou associaram sua
primeira opção com a categoria brasileiro(a). Deste modo, diante da questão “Como você se define etnicamente?”, obtivemos
respostas como a de uma entrevistada de 2000: “Sei lá, tudo misturado, brasileira”.
Constatamos que aceitar a inserção da categoria brasileiro(a) quando ela aparece com posição secundária na fala,
consiste em uma mudança relevante em nossa análise, pois além de aumentar a representação desta categoria em todas as

103
turmas, eleva o índice da turma de 2001 invertendo sua colocação; de turma que apresentava o menor índice de
autoclassificação como brasileiro(a) torna-se a turma com maior percentual, passando de 19,04% para 35,71%.
Explicitar tais procedimentos e seus resultados assim como os provenientes da aplicação simultânea dos métodos
de hetero e de autoclassificação apresenta-se como um caminho aceitável para reduzir equívocos que podem ser gerados ou
obscurecidos no processo de interpretação dos dados sobre identidade e classificação.
Poderíamos inferir a partir das respostas presentes na autoclassificação aberta, em particular, envolvendo a
categoria brasileiro(a), que o sentimento de pertencimento territorial encontra-se arraigado no imaginário de auto-
identificação dos entrevistados. Em uma fala de um entrevistado da turma de 1998, encontramos um exemplo interessante
deste sentimento: “Brasileiro, sou nascido aqui e tenho orgulho, não preciso que meus antepassados sejam europeus, o que
importa é que nasci aqui e tenho os costumes próprios daqui.” Neste discurso, o território é tanto físico quanto simbólico,
pois ele se apresenta, simultaneamente, como produto e condição de uma especificidade.
As três falas seguintes são expressivas de classificações que dialogam direta ou indiretamente com os termos
mistura e raça, e também foram apresentadas como respostas à questão “Como você se define etnicamente?”. Temos que,
enquanto uma entrevistada de 1998 afirma sua identidade a partir da utilização do termo mistura: “Como o Brasil não possui
raça pura, posso me considerar uma mistura de raças”, um entrevistado de 1999 recorre ao conceito de raça e se identifica
como branco, porém de forma hesitante. A hesitação do entrevistado é perceptível na maneira como utiliza a pontuação:
“Considero-me da ‘raça humana’. Do ponto de vista dos rótulos (!), sou um membro da ‘raça branca’, porém impura (!)”.
Uma entrevistada de 2001 se auto-identifica a partir da mistura, porém remetendo-se indiretamente ao conceito de raça e ao
de cultura: “Uma mistura, ou seja, mestiçagem”.
Tais discursos assemelham-se aos proferidos no final do século XIX, e na década de 1930, em particular a partir da
política nacionalista promovida sob os auspícios de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. O termo “mistura”,
mobilizado nos discursos, nos impõe, pelo menos duas considerações: 1) a noção de mistura implica na dissolução das
características dos diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira, pois dificulta a percepção de que tais grupos não
são equivalentes enquanto “lugares” simbólicos e sociais; 2) o fato do termo funcionar como uma espécie de tropo para falar
em raça e em cultura sem evidenciar a ruptura teórica que tais conceitos expressam. Neste contexto, os termos mistura e
mestiçagem tornam-se sinônimos e passam a alicerçar o conceito de identidade nacional caracterizado pelas idéias de
harmonia e de inclusão, ao mesmo tempo, que obscurecem a hierarquização, a desigualdade e o conflito entre os diferentes
grupos étnico-raciais que compõem o Brasil.
Deste modo, destacar-se da idéia de “brasileiro, mestiço, homogêneo” significa lutar por reconhecimento na esfera
pública como sujeito coletivo auto-identificado e identificável (Paixão, 2005). Ou seja, como sujeito que optou pela
etnicidade enquanto uma estratégia para se colocar na arena política em busca de um novo equilíbrio de forças, objetivando
uma distribuição e usufruto equânime dos direitos sociais, em particular no âmbito educacional, passando de objeto de uma
cidadania passiva, tutelada, para sujeito de uma cidadania ativa, plena. Esta postura corresponde aquela vivenciada, por
exemplo, por parcela da população negra que enquanto sujeito coletivo enfatiza e ressignifica a cultura negra “tradicional” no
fluxo constante entre o local e o global, apropriando-se da “negritude com etnicidade”, e, desta forma, assumindo a
identidade negra, inclusive, como uma maneira de ser “moderno”. O que se difere da alternativa exposta de forma primorosa
por Livio Sansone (2007), nela, parte desta população optaria pela “negritude sem etnicidade”, isto é, pelo “[...]
comportamento e a atitude individuais centrados na manifestação do orgulho negro” (Sansone, 2007: 267).
A diversidade étnico-racial é deslocada como representação do país e em seu lugar valoriza-se, o esforço de
homogeneização, de criação do povo novo, esta interpretação encontra respaldo em algumas falas que serão aqui
representadas pelo discurso de uma entrevistada de 1998: “Brasileira, fusão étnica, povo novo”. Por outro lado, a recorrência
a miscigenação como uma estratégia para não assumir uma identidade étnico-racial é expressa de forma exemplar na fala de
uma entrevistada de 2000: “Não tenho identidade étnica definida. Sou uma mistura de etnias, principalmente da branca
(européia/portuguesa) com indígena.”
De acordo com as informações sobre religião no censo de 2000, realizado pelo IBGE, ocorreu uma redução do
número de católicos no Brasil em comparação aos censos anteriores. Apesar dos resultados de nossa pesquisa não permitirem
confirmar ou refutar este dado, nos asseguram uma observação interessante sobre o tema religião. Quando interpretamos os
discursos dos entrevistados percebemos que 0,73% da população total fazia referência a religião e, apesar do baixo índice, a
única religião mencionada foi a Católica. Um exemplo de reconhecimento do Catolicismo como parte da construção da
identidade étnica encontra-se na fala de uma entrevistada de 2001: “Européia abrasileirada com influência da religião
católica.”.
A referência à categoria negro na autoclassificação aberta permite dialogarmos com a noção de identidade étnica
nos termos apresentados no estudo de Cunha (1987a), em particular, no que tange a acepção: “ser negro é considerar-se como
tal”. As palavras de um entrevistado de 1998 são expressivas deste processo de identificação: “Eu nunca me vi como um
negro típico, descendente dos negros africanos. Também nunca me vi como um branco. Sempre me vi no meio do caminho,
ou seja, os ditos "morenos, mulatos". Hoje posso dizer que estou assumindo uma identidade étnica negra.”.
Dentre os resultados do trabalho sobre autodeclaração de cor e/ou raça com crianças e jovens, Rocha e Rosemberg
(2007) realizam duas constatações que dialogam diretamente com os resultados das análises de nossa pesquisa. Primeira,
ocorre uma referência considerável da utilização da categoria negro e, segunda, a ausência do termo afrodescendente no
vocabulário do público pesquisado. Na pesquisa Censo Étnico-racial podemos afirmar que houve uma recorrência

104
significativa da categoria negro tanto na autoclassificação fechada quanto na espontânea, totalizando respectivamente: 8,08%
(22 graduandos) e 6,98% (19 graduandos). A correspondência na utilização desta categoria entre os dois procedimentos
(aberta e fechada) foi de 86,36%. Se esse percentual por si só, não valida a inserção desta categoria no rol de categorias
oficiais do IBGE, por exemplo, pelo menos demonstra o grau de reconhecimento que a mesma apresenta no processo de
classificação que envolve a identidade étnica, no segmento entrevistado. No total de autoclassificação aberta (6,98%),
chamou-nos a atenção o fato de 84,21% se remeter diretamente ao termo negro(a), enquanto 15,79% fez referências indiretas.
Os discursos seguintes representam falas com referências indiretas: um entrevistado de 1999 se auto-identifica como:
“Mbundu”; e uma entrevistada de 2000 como: “Afro-brasileira”.
No método de heteroclassificação foram identificados como negro(a) 2,20% do total de entrevistados. Neste
procedimento procuramos nos atentar para os traços fenotípicos de forma geral (formato e cor dos olhos, cabelos; formato e
proporção da boca, nariz e, particularmente, tonalidade de pele). Este olhar que é ao mesmo tempo antropológico e
antropométrico evidencia as dificuldades que a heteroclassificação proporciona ao considerarmos a questão da identidade
étnica, pois “vimos” como negro(a) 2, 20% do total de entrevistados, enquanto se viram e se auto-identificaram como
negro(a) um percentual de 8,08%. Outra observação importante na pesquisa é que não houve na autoclassificação aberta
nenhuma menção a categoria preto – como citado anteriormente – seja no momento do piloto, seja na aplicação do Censo.
Isto pode ser um indicativo que esta categoria pode estar realmente, no processo de construção da identidade étnica, perdendo
espaço para a categoria negro.
Pelo menos como hipótese, podemos inferir que a presença da categoria amarelo como opção na autoclassificação
fechada não tenha influenciado para sua utilização na autoclassificação espontânea, pois ao passo que tivemos 1,83% se auto-
identificando como amarelo(a) na fechada, não houve nenhuma ocorrência na aberta. Nesta última as categorias mobilizadas
nos discursos foram: “Nipônico” (turma de 2000); “Mestiça” (turma de 2000); “Japonesa” (turma de 1999); “Brasileiro”
(turma de 2001) etc. Outro aspecto que merece consideração foi a disparidade entre os resultados do método de
heteroclassificação (fotos) e os da autoclassificação fechada, foram classificados como amarelo(a) 3,67%, através da hetero,
em contraposição a 1,83% na auto.
Uma justificativa plausível para a discrepância entre os resultados das classificações consiste na má qualidade das
fotografias, pois estas eram entregues pelos próprios alunos na Seção de Graduação ao ingressarem no Curso. Desse modo, a
utilização de fotografias no processo de classificação exige que haja um nivelamento das condições do material fotográfico,
caso contrário, tal utilização torna-se totalmente questionável. Um exemplo de utilização imprópria deste recurso pode ser
encontrado no processo seletivo do vestibular de 2004 da UnB (já mencionado).
Alguns discursos dos entrevistados irão apontar para a compreensão de que a definição da identidade étnico-racial
perpassa a posição econômica. Outros irão mobilizar explicitamente o conceito de “classe social”. São expressivas destes
discursos as falas de três entrevistados, a saber: um entrevistado de 2000: “Economicamente”, e duas entrevistadas de 2001:
“Eu me defino etnicamente como branca pertencente a uma elite por isso” e “Branca, brasileira, classe média.” Podemos
afirmar que o recorte econômico aparece apenas nos discursos dos entrevistados de 2000 e 2001, representando
respectivamente 0,36% e 2,57% do total.
Contrariando os argumentos que envolvem a “dificuldade” de estabelecer o pertencimento étnico-racial da
população brasileira e assim classificar os beneficiários das políticas de ação afirmativa, pesquisas recentes, como a de Rocha
e Rosemberg (2005), demonstram que mesmo crianças brasileiras a partir de 9 anos de idade são capazes de manipular um
conjunto complexo e sutil de terminologias que dialogam com as representações sociais orientadas por raça e etnia através do
termo cor. Ao compartilharmos desta avaliação dos autores, causou-nos surpresa que adultos e, no caso da pesquisa, que
graduandos, colocassem dificuldades para se classificar. Pelo menos enquanto hipótese, uma explicação possível para isto
pode estar relacionada ao fato de haver uma tensão entre identidade e classificação, em virtude da identidade ser fluída,
flexível, relacional e a classificação representar uma espécie de aprisionamento da fluidez em um registro “fotográfico”, isto
é, estático. Em outros termos, a classificação ao determinar um lugar social e político para os diferentes grupos que compõem
a população inviabiliza a existência de um espaço que aceite a identidade enquanto processo. Desse modo, a classificação
enrijece a vivacidade das representações e gera apreensão por ser utilizada para orientar as políticas públicas universalistas
e/ou setoriais.
Em nossa pesquisa, encontramos referências em todas as turmas sobre a dificuldade de definição envolvendo a
questão da identidade étnica. Para explicitar em que termos a mesma é apresentada selecionamos dois exemplos: o primeiro,
uma entrevistada em 1998: “Não encontro uma definição no que diz respeito à minha posição diante desta questão, mas tenho
clareza da importância de se estar debatendo as implicações que envolvem o tema.”. O segundo, uma entrevistada de 2001:
“Apesar da dificuldade de identificação, possivelmente miscigenada.” O total de graduandos que escreveram “Não sei” na
questão aberta ou forneceram respostas como as mencionadas anteriormente equivale a 7,72%. Neste contexto, a afirmação
segundo a qual há um desconhecimento dos alunos em relação à identidade e ao pertencimento étnico-racial precisa ser
considerada com cautela, pois diante da autoclassificação fechada a maioria dos 7,72% se classificou, ou seja, 80,95%
mobilizou a categoria branca, enquanto 19,05% afirmou não saber se classificar em ambos os procedimentos de
identificação.
Considerando datar de longo tempo a imigração compulsória da população negra e a destruição de seus documentos
de origem, bem como a ocorrência da política de genocídio desta população e de grande parte da indígena no país,
trabalhamos com a hipótese de que parte significativa da memória a respeito dos Continentes de origem dos antepassados dos

105
entrevistados – população nacional “não-branca”, para usarmos uma expressão de Lesser (2001) – estivesse perdida.
Contudo, no processo de interpretação dos dados da questão: “Qual o Continente de origem dos avós de seu pai e de sua
mãe?”, tal hipótese foi refutada, ao percebermos que os índices de graduandos classificados (na autoclassificação fechada) a
partir das categorias branco, negro, mulato, pardo, indígena e amarelo correspondiam à representação dos percentuais dos
Continentes de origem de seus bisavós. Ao analisarmos os resultados passamos a conhecer que a incidência do Continente
Europeu correspondia – nos bisavós paternos a 56,98% e nos maternos a 60,66% – ao percentual de graduandos que se
classificaram como brancos (69,85%), e que equivalências similares ocorreram com as categorias “não-brancas”. Decorrem
destes resultados não haver discrepância significativa entre os dados de origem dos bisavós dos entrevistados e suas próprias
classificações, e ser possível sugerir que a memória forneceu uma orientação significativa para as auto-identificações dos
entrevistados.
As análises sobre a questão envolvendo o tema da origem étnico-racial do entrevistado lhe proporcionar algum
apelido e/ou tratamento diferenciado no grupo familiar/amigos e/ou no interior da UNESP trouxeram algumas constatações
significativas no que tange particularmente aos auto-identificados como amarelo(a) – autoclassificação fechada. Nota-se que
do total de autoclassificados nesta categoria, 60% informou que sua origem étnica lhe confere um apelido ou tratamento
diferenciado na UNESP. No desdobramento da questão indagava-se qual tipo de apelido, tais entrevistados responderam que
seus sobrenomes (os sobrenomes que faziam referência aos seus ascendentes) eram seus apelidos. Já observando os totais de
autoclassificados nas categorias (negro, branco, mulato, indígena, não sabe, pardo) não chega a 10% o percentual de
entrevistados (por categoria) que afirmou apresentar apelido ou tratamento diferenciado em virtude de sua origem étnica.
Tais constatações apontam para a hipótese de que há correspondência na maneira como se manifesta o racismo em âmbito
acadêmico, contra este grupo, em duas instituições de ensino superior de cidades do interior paulista: Araraquara (Fclar),
pesquisa Censo, e São Carlos (Ufscar), segundo Carvalho (2006). Em ambas as instituições é a origem étnico-racial destes
grupos (em sua maioria, descendentes de japoneses e de chineses) que fornece o “material” simbólico para a discriminação
racial.
No que tange a situação de presença de apelido ou tratamento diferenciado no grupo de amigos e/ou familiares
encontramos um quadro distinto do descrito anteriormente, isto é, não há uma porcentagem tão relevante envolvendo apenas
o grupo amarelo. Dos totais de entrevistados autoclassificados como mulatos, amarelos e negros, cerca de 30% (por
categoria), respondeu afirmativamente que sua origem étnico-racial lhe proporcionava algum tratamento diferenciado ou
apelido no interior do referido grupo. Outro aspecto interessante desta questão foi o fato de que aqueles que se
autoclassificaram na categoria branco, seja na universidade, seja entre os amigos/familiares, apresentaram baixíssimos
índices de apelidos ou tratamentos diferenciados em ambos os grupos, respectivamente 4,73% e 7,36%.
Quando comparamos os discursos dos graduandos ingressantes e dos concluintes, constatamos diferenças como a
referência ao conceito de classe social ser marcante nas falas do primeiro grupo e ausente nas do segundo, ou a existência de
uma preocupação em dialogar com a questão proposta, presente no grupo de concluintes etc., todavia, tais diferenças só
podem ser atribuídas à formação no Curso de maneira arbitrária. Talvez a hipótese envolvendo a contribuição do Curso nos
diálogos devesse ser pensada de outra forma, não focando as singularidades e sim as similitudes. Notamos que foi recorrente
nos discursos dos graduandos, do primeiro ao quarto ano, o mito fundador das três raças assim como a utilização dos termos
misturado, miscigenado, mestiço e mistura como sinônimos, no entanto, podemos inferir, pelo menos enquanto hipótese, que
a sofisticação teórica propiciada pelo Curso contribuiu para tornar progressivamente algo que era “senso comum” em “senso
científico”. Deste modo, contrariamente a noção que o processo de formação impôs desafios teóricos para compreender,
explicar e difundir o tema das relações étnico-raciais, a partir de rupturas conceituais evidenciadas por raça, cultura e etnia,
supomos que tenha ocorrido uma valorização das mudanças teóricas sem ruptura, tão ao gosto da tradição de conciliação no
Brasil – inclusive na política. Pareceu-nos que a atuação dos docentes do Curso, principalmente da área de Antropologia,
dificultou a concretização de uma formação voltada às contribuições do pensamento sociológico contemporâneo mediante
uma compreensão e uma avaliação profunda do pensamento social brasileiro, isto resultou, entre outros aspectos, em uma
interpretação racializada do conceito de cultura e culturalizada do conceito de raça5.
Rosemberg (2004) em artigo dialogando acerca da classificação de raça e cor explicita algumas estratégicas
políticas compartilhadas pelas experiências de ação afirmativa, como a da Fundação Ford, que estão contribuindo para
conformar no século XXI quem é negro no Brasil. São elas: intensificar a difusão do perfil dos bolsistas; de suas fotos
individuais e em grupo; divulgar sobre o que se trata um programa de ação afirmativa com ou sem cotas e a quem ele se
destina. Na construção do perfil dos possíveis beneficiários das políticas entende-se raça como um conceito social, porém
enfatiza-se a dimensão da aparência, pois ela orienta o imaginário social contribuindo ou não, tanto para a existência do
preconceito e da discriminação racial no país, quanto para uma possível eliminação dos mesmos. Essa idéia é compartilhada
inclusive por Munanga (2004) ao falar sobre a difícil tarefa, porém não impossível, de se definir quem é negro no Brasil.
Devemos ressaltar que semelhante dificuldade de definição não é uma exclusividade da população negra como vimos por
meio dos resultados de nossa pesquisa.

5
Para um estudo aprofundado das expressões: “culturalização da raça” e “racialização da cultura” ver: Martínez-Echazábal, L. (1996). O culturalismo dos anos
30 no Brasil e na América Latina: Deslocamento retórico ou mudança conceitual? In Maio, M. C. & Santos, B. V. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/CCBB, (pp. 107-124).

106
A partir do Censo entende-se que no tratamento do tema da identidade étnico-racial não se deve descartar a
possibilidade de recorrer às estratégias políticas supracitadas, para conformar um perfil fenotípico para os possíveis
beneficiários do sistema de cotas no ensino superior. Entretanto, enfatiza-se a predominância que a autoclassificação deve ter
na definição identitária. Reitera-se a orientação segundo a qual a aplicação do sistema de cotas raciais exige que a
categorização da classificação do público alvo seja definida de forma local e/ou regional. E mais, que é a adoção simultânea e
explícita de ambos os métodos de identificação (auto e hetero) que permite acessar a emergência de um conjunto de
referências sobre as ambigüidades, as hesitações etc. que acompanha a definição relacional de identidade étnico-racial,
propiciando um caminho para refletir de forma crítica sobre o perfil da comunidade acadêmica. Nesta perspectiva, sugere-se
enquanto horizonte para a construção reflexiva da identidade institucional da UNESP que a democratização do acesso e da
permanência de seu corpo discente seja posta em pauta, inclusive em termos étnico-raciais.

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Entre o ensino superior e a inserção profissional – análise comparativa de


percursos de diplomados

Mariana Gaio Alves


UIED, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa
mga@fct.unl.pt

Resumo: O tema da transição entre ensino superior e mundo do trabalho tem tido grande visibilidade social nos últimos anos, sendo as
dificuldades de empregabilidade dos diplomados de ensino superior alvo de grande preocupação e debate, quer por parte da sociedade em
geral, quer no interior das instituições universitárias e politécnicas. Na sequência do trabalho de investigação que vimos realizando sobre esta
matéria, pretende-se nesta comunicação concretizar uma análise comparativa dos estudos realizados mais recentemente em diversas
instituições de ensino superior portuguesas (universidades e politécnicos) com um triplo objectivo. Por um lado, procuraremos identificar
traços convergentes e divergentes relativamente aos percursos de transição para a vida activa de diplomados de ensino superior revelados
pelos diversos estudos nas várias instituições. Por outro lado, enunciaremos algumas reflexões sobre aspectos metodológicos dos estudos em
análise, quer no que respeita aos instrumentos e estratégias de recolha de dados quer no que se refere aos indicadores mobilizados nesses
estudos. Por fim, consideramos que esta perspectiva comparativa permitirá explicitar alguns pressupostos e aspectos teórico-conceptuais
sobre a empregabilidade e transição para a vida activa dos diplomados de ensino superior. Sempre que seja possível compararemos os
resultados obtidos no caso português com dados de pesquisas semelhantes realizadas noutros países, bem como mobilizaremos reflexões
metodológicas e teórico-conceptuais sobre o tema em análise concretizadas por outros autores em diferentes contextos geográficos e
institucionais.

Introdução:
O tema da transição entre ensino superior e mundo do trabalho tem tido grande visibilidade social nos últimos anos,
sendo as dificuldades de empregabilidade dos diplomados de ensino superior alvo de grande preocupação e debate, quer por
parte da sociedade em geral, quer no interior das instituições universitárias e politécnicas. Na sequência do trabalho de
investigação que vimos realizando sobre esta matéria, pretende-se nesta comunicação dar conta da fase exploratória de uma
análise comparativa de alguns estudos realizados mais recentemente em diversas instituições de ensino superior portuguesas
(universidades e politécnicos), a qual tem o duplo objectivo de contribuir para o aprofundamento do conhecimento sobre
estes processos de transição e de reflectir sobre aspectos inerentes à recolha e análise de informação sobre estas matérias.
Para tal, numa primeira parte da comunicação procuramos contextualizar o trabalho realizado quer do ponto de
vista teórico-conceptual quer na perspectiva dos critérios e procedimentos seguidos na análise comparativa. Na segunda parte
da comunicação apresentamos os traços convergentes e divergentes que decorrem da concretização das primeiras etapas de
análise comparativa.

Contextualização teórica e metodológica da análise comparativa:


Na investigação que vimos desenvolvendo sobre estas matérias temos argumentado que é necessário considerar os
processos de inserção profissional de diplomados universitários como o resultado do confronto e da interacção entre um
conjunto de actores com diferentes lógicas, estratégias e posicionamentos, não podendo de modo algum considerar-se a

108
inserção profissional como uma consequência directa e exclusiva da acção do ensino superior (Alves, M., 2005, 2007). Aliás,
em nosso entender, o estudo dos processos de inserção profissional não dispensa a consideração de pelo menos três unidades
de análise – os empregadores, os académicos e os próprios diplomados – e das interacções entre eles, bem como implica ter
em atenção as tendências estruturais de evolução sócio-económica e profissional e ainda os contextos locais e regionais que
afectam aquelas três unidades de análise. Como sublinhamos num texto anterior, trata-se de considerar a articulação entre
educação, trabalho e emprego sob a forma de uma “regulação”, ou seja, enquanto modo de coordenação entre educação,
trabalho e emprego através do qual se produzem as normas e regras da interacção entre todos, sendo que este modo de
coordenação não decorre de uma finalidade claramente definida nem é controlada por nenhuma autoridade externa (Alves,
M., 2008).
Tendo em conta estes pressupostos na análise das transições protagonizadas pelos diplomados entre universidade e
mundo do trabalho, procuramos na presente comunicação realizar uma síntese comparativa procurando, simultaneamente,
identificar traços convergentes e divergentes relativamente aos percursos de transição para a vida activa de diplomados de
ensino superior revelados pelos diversos estudos nas várias instituições, bem como enunciar algumas reflexões sobre aspectos
metodológicos dos estudos em análise, quer no que respeita aos instrumentos e estratégias de recolha de dados quer no que se
refere aos indicadores mobilizados nesses estudos.
Na análise comparativa optámos por considerar estudos realizados por instituições de ensino superior
(universitárias ou politécnicas), tendo vindo a constatar-se a existência de um trabalho da responsabilidade da Fundação da
Juventude que abrange três instituições de ensino superior algarvias que foi também considerado. Deste modo, foram
analisados estudos que têm como ambição caracterizar a situação do conjunto de diplomados de uma ou mais institiuições de
ensino superior, excluindo-se estudos parciais centrados apenas em alguns cursos ou áreas de formação que também têm sido
realizados em várias instituições. Este critério de selecção justifica-se pelo facto de cada um dos estudos permitir caracterizar
a situação de um conjunto de diplomados diverso do ponto de vista das áreas disciplinares de formação mas uniforme no que
respeita à(s) instituição(ões) de formação, o que só é possível tendo em conta que optaram pela recolha de informação em
extensividade sobre um grupo de diplomados de uma ou mais instituições de ensino superior.
Sabemos que, em alguns casos, estes trabalhos constituem também a base de explorações mais aprofundadas que
conduzem, designadamente, à realização de dissertações de doutoramento (veja-se o trabalho de Gonçalves, 2007, na
Universidade de Aveiro ou de Alves, N., 2007, na Universidade de Lisboa). Para além disto, sabemos também que existem
trabalhos de investigação de doutoramento que analisam os casos concretos de um ou mais cursos, áreas de formação e
escolas/faculdades, mas optámos por não considerar estes estudos na nossa análise comparativa (veja-se o exemplo de
Marques, 2006, ou Alves, M., 2007). Contudo, a nossa opção recaiu sobre a selecção de estudos realizados com a ambição de
abranger amostras representativas dos diplomados da respectiva instituição.
Um outro critério adoptado na selecção dos estudos a considerar é o de que os estudos que são objecto de análise
comparativa correspondam a operações de recolha de dados concretizadas desde 20011, centrando-se em diplomados de
ensino superior que vêm concluindo os seus cursos desde meados dos anos 90. Isto com o objectivo de analisar estudos que
se reportem a períodos cronológicos não muito distantes e, portanto, não muito diversos no que respeita à conjuntura
económica e, ainda, com a intenção de caracterizar tanto quanto possível a situação mais recente sobre a qual dispomos de
dados.
Não obstante sabemos que em algumas instituições (por exemplo nas Universidades de Aveiro e Lisboa) os estudos
que analisamos foram precedidos de outras iniciativas semelhantes mas cronologicamente anteriores, pelo que comportam o
potencial de permitir ter indícios sobre a evolução da inserção profissional de diplomados daquelas instituições em tempos
distintos. Evidentemente, o conjunto de estudos que foram objecto de análise comparada é constituído por aqueles que nos foi
possível, de momento, identificar não sendo de ignorar que outros existam sem que deles se tenha conhecimento2. Neste
texto, procura dar-se conta da análise comparativa do seguinte conjunto de estudos:
- (a) - Trajectórias Académicas e de Inserção Profissional dos Licenciados 1999-2003, da Universidade de Lisboa,
publicado em 2005;
- (b) - Percursos de Inserção profissional dos Diplomados do Ensino Superior Politécnico do Instituto Politécnico
de Beja, publicado em 2005;
- (c) A inserção profissional dos jovens diplomados no Algarve entre 1999 e 2001 da Delegação do Algarve da
Fundação da Juventude publicado em 20043;
- (d) Sistemas de (des)Emprego: trajectórias de inserção da Universidade de Aveiro publicado em 2002.

Resultados da análise comparativa:

1
Numa fase posterior consideramos a hipótese de alargar este período temporal retrospectivamente, considerando na análise comparativa: o estudo da
Universidade de Lisboa realizado em 2000, o estudo da Universidade de Aveiro realizado em 1998 e o estudo da Universidade do Minho também de 1997/98.
2
Aliás, a apresentação desta comunicação visa, entre outros objectivos, permitir a identificação de iniciativas semelhantes noutras instituições de ensino
sueprior.
3
São considerados neste estudo os diplomados da Universidade do Algarve (única instituição de Ensino Superior Público na região), dos Institutos Superiores de
Matemáticas e Gestão e de Humanidades e Tecnologias (Grupo Lusófona), do Insituto Superior de Dom Afonso III e da Escola Superior de Saúde Jean Piaget.

109
Começamos por apresentar uma breve análise comparativa dos estudos considerados no que respeita aos seus
aspectos metodológicos e de enquadramento para, em seguida, nos centrarmos num primeiro conjunto parcial de resultados
da análise comparativa dos dados obtidos nos quatro estudos.

Caracterização geral dos estudos


Numa primeira fase, escolhemos realizar uma análise comparativa que permita situar os estudos realizados do
ponto de vista cronológico e institucional, mas também no que respeita às metodologias de trabalho empírico concretizadas.
Sobre esta matéria (ver o qudro 1 em anexo) importa destacar que, do ponto de vista da metodologia do trabalho empírico, os
estudos das Universidades de Lisboa e Aveiro se distinguem dos que foram realizados no Instituto Politécnico de Beja e no
Algarve.
Com efeito, os dois primeiros assentam na aplicação de um inquérito por questionário e no respectivo tratamento de
dados, revelando a intencionalidade de essencialmente descrever as trajectórias de inserção dos diplomados daquelas duas
universidades4. Note-se que ambos correspondem a uma segunda edição deste tipo de trabalho e estão na base de
dissertações de doutoramento de um dos autores do estudo, nas quais se exploram e complementam os dados referentes
aquelas instituições universitárias.
Por seu turno, os estudos concretizados em Beja e no Algarve foram financiados no quadro de um mesmo programa
operacional e incluem mais do que uma única fase de trabalho empírico, combinando a informação em extensividade junto
dos diplomados com a realização de entrevistas a grupos restritos de informantes privilegiados e/ou diplomados. Acresce,
ainda, que ambas as publicações não se limitam a apresentar os dados empíricos recolhidos, mas procuram enquadrá-los do
ponto de vista teórico e conceptual.
Um traço característico comum aos quatro estudos é o facto de se centrarem na análise, exclusivamente, de
diplomados que concluíram uma formação inicial de nível superior, não abrangendo o estudo de trajectórias profissionais e
educativas de diplomados de pós-graduação5. Noutros países, o crescimento acentuado dos diplomados de nível pós-
graduado, mais precocemente do que em Portugal, já originaram trabalhos de pesquisa e caracterização dos percursos
profissionais e educativos de pós-graduados, mestres e doutores antes e depois o regresso ao ensino superior (ver a título
ilustrativo Dubois, 2004).
Todos os questionários foram aplicados por via postal, sendo de destacar que, em geral, os diplomados aderem em
número assinalável a estas iniciativas que obtêm taxas de resposta expectáveis para uma inquirição por via postal: no estudo
da Universidade de Lisboa refere-se uma taxa de retorno próxima dos 30% (Alves, N., 2005, p.11), a mesma taxa é de 35,3%
no caso da Universidade de Aveiro (Martins, Arroteia e Gonçalves, 2002, p. 13), de 26,9% no trabalho sobre o Instituto
Politécnico de Beja (Saúde, 2005, p. 17) e no caso do Algarve (único estudo em que não foram as instituições de ensino
superior a coordenar o trabalho) a taxa de resposta situa-se nos 23% (Geraldes et al., 2004, p. 179).
Adicionalmente, identifica-se em todos os estudos considerados uma tendência ligeira para serem os diplomados
que há menos tempo se diplomaram que respondem em maior número, o que pode ser interpretado de várias formas. Na
verdade, pode ser o resultado da (ainda) maior proximidade à instituição que frequentaram que os induz a responder, mas
pode também suceder que se trate de um efeito da menor probabilidade de ter ocorrido entretanto uma mudança de residência
que dificulte a recepção dos questionários pelos diplomados6. Para além disto, pode tratar-se da expressão de uma tendência
que identificámos anteriormente para responderem em maior número aqueles que enfrentam maiores dificuldades na inserção
profissional (ver o estudo de Alves, M., 2007) e que se encontram, previsivelmente, mais representados entre os diplomados
mais recentes.
Relativamente à constituição das amostras de respondentes, importa ressalvar que se identificam uma diversidade
de procedimentos seguidos e operacionalizados nos quatro estudos. Verifica-se, nos casos das Universidades de Aveiro e
Lisboa e do Politécnico de Beja, a opção de enviar os questionários a todos os diplomados, controlando através de algumas
variáveis até que ponto a amostra assim constituída apresenta enviezamentos e (des)respeita as proporções no universo do
estudo de diferentes grupos. Essas variávies diferenciadoras dos grupos são o curso e ano de conclusão do mesmo nos três
estudos, assim como também o sexo (em Aveiro e Lisboa) e a média de licenciatura (apenas no caso de Lisboa).
Relativamente ao estudo realizado na região Algarvia escolheu-se constituir uma amostra aleatória estratificada,
estabelecendo estratos em função do ano de conclusão e estabelecimento de ensino frequentado.

Dados sobre a situação actual dos diplomados


Numa segunda fase, realizamos uma primeira aproximação à análise comparativa de resultados substantivos dos
quatro estudos, ou seja, procuramos iniciar a comparação dos percursos de transição entre ensino superior e mundo do
trabalho dos diplomados inquiridos. No que respeita à apresentação de dados dos inquéritos por questionário realizados em
cada um dos estudos, constata-se (ver quadro 2 em anexo) que a forma de organização dos dados empíricos recolhidos é

4
Refira-se, a título ilustrativo, que no caso do estudo referente à Universidade de Aveiro se afirma a dado momento que “os dados serão apresentados de forma
descritiva, não se procurando fazer a sua interpretação à luz de qualquer teoria” (Martins, Arroteia e Gonçalves, 2002, p. 21).
5
Em projecto de investigação anterior procurámos, num grupo restrito de cursos e instituições, estudar trajectórias educativas e profissionais de mestres e
doutores (ver resultados em Alves, 2008).
6
Para evitar os enviezamentos que podem decorrer de uma eventual mudança de residência dos diplomados, alguns estudos de inserção profissional envolvem a
confirmação/actualização dos contactos dos diplomados que constam do registos existentes nos serviços académicos.

110
contrastante: em três eles inicia-se com a caracterização sócio-demográfica ou sociográfica dos diplomados inquiridos mas
no outro (Algarve) tal secção é remetida para o final da apresentação de dados; em dois casos (Universidade de Aveiro e
Politécnico de Beja) a apresentação de dados parece tender a seguir a lógica cronológica de desenvolvimento dos percursos
referindo-se primeiro os elementos que se relacionam com o percurso académico e só depois os elementos caracterizadores
do percurso e situação profissional actual incluindo no final as representações e opiniões dos inquiridos, mas num outro caso
todas essas vertentes aparecem de forma mais mesclada (Universidade de Lisboa) e noutro caso essa lógica cronológica não é
tão evidente (Algarve).
Apesar destas lógicas diferenciadas na estruturação da apresentação de dados podemos identificar, do ponto de
vista analítico, que nos quatro estudos são identificáveis quatro dimensões de análise no estudo dos percursos dos diplomados
que, tendencialmente, têm implícita uma lógica cronológica sequencial de etapas desses percursos: caracterização
sociográfica dos inquiridos, caracterização dos percursos escolares no ensino superior, caracterização dos percursos de
transição entre ensino superior e mundo do trabalho, caracterização da situação profissional do momento da inquirição.
Percebe-se de modo claro, apenas pela estrutura dos capítulos mas sobretudo através da leitura dos conteúdos dos
mesmos, que o destaque conferido a cada uma destas dimensões de análise é diferencial em cada um dos estudos tendo em
conta o número de indicadores mobilizados e, portanto, em termos da diversidade e profundidade da informação recolhida.
Para além disto, é também notório que a informação analisada no quadro de cada uma daquelas quatro dimensões de análise
contempla quer a recolha de dados que podem ser considerados de caracterização objectiva dos diplomados e dos seus
percursos, quer a recolha de dados que remetem para as apreciações, opiniões e representações subjectivas dos diplomados
relativamente aos seus percursos académico e profissional e à articulação/transição entre curso de ensino superior e mundo
do trabalho.
Assim sendo, e face à abrangência dos elementos de caracterização recolhidos nos quatro estudos em análise,
optámos por numa primeira aproximação abordar a dimensão de análise que corresponde à “situação profissional no
momento da inquirição” considerando uma caracterização objectiva dessa situação e uma dimensão subjectiva sobre graus de
satisfação com a profissão e sobre o modo como esta se adequa ao diploma7. A identificação dos indicadores em cada um
dos quatro estudos que contribuem para esta dimensão de análise (a este propósito pode consultar-se o quadro 3 em anexo)
revelou um grupo restrito daqueles que são comuns nos vários trabalhos e que permitem, com algum rigor, a comparabilidade
dos dados obtidos nessas quatro operações de recolha de dados.
Em primeiro lugar, há um conjunto de indicadores nos quatro estudos que permitem caracterizar a situação actual
dos inquiridos relativamente ao emprego/desemprego. Constata-se que a grande maioria corresponde aos diplomados que
estão empregados (70% em Aveiro, 80% em Beja, 82% no Algarve, 77,5% em Lisboa) e a minoria aos desempregados (7,4%
em Aveiro, 15,2% em Beja, 15,5% no Algarve8, 15,5% em Lisboa). Para os estudos de Aveiro e Lisboa, acresce a estes
números o grupo dos estagiários (com e sem remuneração) que representam 8,7% no primeiro caso e 5,5% no segundo, não
existindo a informação nos outros dois estudos. Também com base nestes dois estudos é possível comparar a situação actual
dos diplomados destas instituições com a verificada cerca de 5 anos antes, destacando-se que diminui o número e proporção
de inquiridos empregados o que parece traduzir a existência de maiores dificuldades no acesso ao emprego.
Todos os estudos considerados evidenciam as variações dos valores globais de emprego/desemprego em função das
áreas disciplinares dos cursos concluídos, do sexo dos indivíduos e do ano de conclusão do curso. No caso do Algarve a área
das Ciências Exactas e Naturais é identificada como a mais “problemática” (Geraldes e Santos, 2004, p. 93) no sentido em
que menos diplomados trabalham, enquanto nos estudos de Aveiro, Lisboa e Beja se regista uma convergência no sentido de
nos cursos que dão acesso ao Ensino em diferentes disciplinas se registarem dificuldades muito significativas e crescentes de
acesso ao emprego9. Relativamente ao género são os indivíduos do sexo masculino que se encontram mais representados
entre os empregados, como se refere nos estudos de Aveiro, Lisboa e Beja. Sobre o ano de conclusão, os quatros estudos
concluem que o conjunto dos diplomados sem emprego engloba mais indivíduos que concluíram os cursos em anos mais
recentes, o que está de acordo com o que diversos trabalhos de pesquisa neste domínio vêm evidenciando relativamente a
uma associação entre mais tempo passado desde a conclusão do curso e menos probabilidade de desemprego dos indivíduos.
Um nota breve para referenciar a relação entre nota média final de curso e situação face ao emprego no momento
da inquirição que permanece um terreno pouco claro, pois no caso do Algrave embora se indique a inexistência de uma
relação estatística entre essas duas variáveis também se refere que a “proporção de diplomados à procura de emprego é
superior entre os diplomados com média mais baixa” (Geraldes e Santos, 2004, p. 94). Contudo, no caso de Aveiro afirma-se
que tendem a estar empregados em maior número aqueles que terminaram com as notas mais baixas, realçando-se que
aqueles que terminam com 16 ou mais se encontram como estudantes a tempo inteiro com bolsa.

7
Remetemos para uma etapa posterior a análise comparativa das restantes dimensões de análise: caracterização sociográfica, percurso escolar no ensino superior,
percurso de transição entre ensino superior e trabalho/emprego.
8
O valor apontado para o Algarve deve ser considerado com alguma cautela uma vez que engloba aqueles que “não trabalham e não procura emprego” (2,3%) e
aqueles que “procuram emprego” (12,2%) mas não poderão estes últimos estar a trabalhar? No caso dos outros estudos a opção de resposta era “desempregado”
ainda que pudesse desagregar-se em “desempregado à procura do 1º emprego” ou “desempregado à procura de novo emprego” ou “desempregado que não
procura emprego”.
9
No caso do estudo da Universidade de Lisboa refere-se que o facto de ainquirição ter tido lugar em Outubro de 2004 (início de um ano lectivo no qual o
concurso nacional de colocação de professores registou diversos atrasos e dificuldades) terá contribuído, em particular, para o resultado obtido no que respeita
aos cursos vocacionados para a formação de professores (Alves, N., 2005).

111
Em segundo lugar, analise-se a informação disponível sobre o vínculo contratual dos diplomados na procura de
melhor caracterizar a sua situação profissional. No caso do estudo realizado em Lisboa assinala-se que o grupo dos
assalariados é o mais numeroso mas identificam-se no seu interior três situações distintas: trabalhadores ocasionais (5,3%),
trabalhadores com contrato a termo certo (27,1%) e com contrato a tempo indeterminado (24%). Em Aveiro a informação
referente ao tipo de vínculo com a entidade patronal indica a seguinte distribuição: estagiários (2,1%), contratados (40,6%),
contratados a prazo (39,7%), trabalhadores independentes/recibos verdes (4,7%), trabalhadores ocasionais (0,5%), outra
situação (12,4%). Em Beja os contratados “sem termo” perfazem 35,8%, aqueles que estão “com termo certo/a prazo” 37,2%,
os que têm contratos de “prestação de serviços” 11,2%, em “situações de trabalho pontuais e ocasionais” 0,5%, como
“estagiários” 6,2% e 9,1% noutra situação. No Algarve a informação referente a “estabilidade contratual” organiza-se da
seguinte forma: “pertence aos quadros” (39,2%), “contrato com renovação garantida” (110,1%), “contrato a termo certo”
(24,1%), “recibo verde” (13,9%), “estágio profissional” (5,1%) e outra situação (7,6%). Globalmente, constata-se então que
as situações de precariedade sob diferentes formas (contratos a prazo, trabalhos ocasionais, prestação de serviços,...)
prevalecem como a situação que abrange a maior parte dos inquiridos nestes estudos.
Em terceiro lugar, no que respeita a indicadores que incidem sobre a dimensão das apreciações e representações dos
sujeitos é pertinente analisar comparativamente os dados que resultam das seguintes questões: “qual a adequação da
formação inicial ao exercício das suas funções profissionais?” (Beja), “que relação existe entre a sua ocupação profissional
actual e o curso que concluiu no ensino superior?” (Lisboa, Algarve) e “a aprendizagem feita na Universidade de Aveiro está
articulada com a vida activa?” e “a formação adquirida na Universidade de Aveiro permitiu o desempenho das tarefas
profissionais?”10. Ainda que as questões não estejam formuladas exactamente do mesmo modo, entendemos que contêm
potencial de comparabilidade num domínio que nos parece muito relevante e que remete para as percepções dos sujeitos
sobre a articulação entre ensino superior e trabalho/emprego.
No caso de Lisboa, 72% dos inquiridos consideram que a sua ocupação profissional está numa “área relacionada
com o curso”, 14% que está numa “área próxima” e 14% numa “área diferente”. No caso do Algarve, a área de actividade é
considerada “directamente relacionada” (58,4%), “próxima” (26,1%) e “totalmente diferente” (15,5%). No caso de Beja, 70%
consideram a formação “adequada”, 12,9% “muito adequada”, 15,2% “inadequada” e 1,9% “muito inadequada”. No caso de
Aveiro, a valorização da ideia de que a “aprendizagem esteve articulada com a vida activa” tende a ser mediana (média de
3,5 numa escala de 6) e a afirmação “formação permitiu o desempenho das tarefas profissionais” obteve uma valoração mais
elevada (4,3 em 6). Globalmente, são então notórios os consensos alargados em torno da ideia de uma
adequação/correspondência entre curso/formação, por um lado, e área de actividade profissional, por outro lado, sendo
residuais os grupos que negam a existência dessa adequação/correspondência.
Ainda no domínio das apreciações e opiniões dos sujeitos relativamente à sua situação no momento da inquirição, é
notório que no que respeita aos graus de satisfação com a situação profissional actual esta é elevada entre os inquiridos em
Aveiro (em média 4 numa escala de 6). No caso dos estudos de Lisboa e Algarve este grau de satisfação é indagado a
propósito de diversas vertentes:
- no caso do Algarve constata-se que os aspectos mais valorizados11 são, por ordem decrescente, a “relação com os
colegas”, “interesse da actividade” e “utilidade social” reunem sensivelmente o mesmo número de respostas, em seguida
“horário de trabalho” e um pouco menos evidenciados (mas sempre acima de 60% das respostas) surge “autonomia de que se
dispõe no trabalho” e a “estabilidade”; os dois aspectos menos valorizados correspondem ao “nível de remuneração” (cerca
de 50% de satisfação) e “oportunidades de promoção” (cerca de 45% de satisfação). Tendo em conta estes níveis elevados de
satisfação com diversos aspectos compreende-se que quando interrogados sobre até que ponto o enquadramento profissional
correspondeu às expectativas que os diplomados tinham respondam mais de metade (56,6%) que correspondeu e mesmo que
“excedeu” (14,2%) ou “excedeu muito” (2%);
- no caso da Universidade de Lisboa constata-se que igualmente são mais valorizadas12 as opções de resposta
“relação com os colegas” (90,8%), “utilidade social” (89,9%), “interesse da actividade” (88,3%), seguindo-se “autonomia de
que se dispõe” (79,1%) e “horário de trabalho” (78,4%); ainda reunindo mais de metade dos inquiridos surge “acesso à
formação contínua” (62,6%), “estabilidade” (52,4%) e “nível de remuneração” (50,7%); o aspecto menos valorizado é
também “oportunidades de promoção” (44,8%).
Para além de sublinhar os graus de satisfação elevados manifestados pelos diplomados de Aveiro, Algarve e Lisboa
relativamente à sua situação profissional actual, consideramos essencial destacar o consenso que decorre da análise
comparativa dos resultados obtidos no Algrave e em Lisboa, pois os aspectos mais e menos valorizados são os mesmos, bem
como a hierarquização de todos é quase exactamente a mesma. Sobre esta convergência podemos avançar uma hipótese
interpretativa que sublinha que esta convergência é, afinal, o resultado de um processo de socialização ocorrido no ensino
superior que dá origem a um conjunto de atitudes e representações sobre a esfera profissional bastante semelhante entre os
diplomados de ensino superior de diversas instituições.

10
No caso de Aveiro seleccionámos estes dois indicadores de uma lista mais longa de aspectos referentes à apreciação da formação, por os considerarmos
próximos das questões incluídas nos outros três estudos sobre a mesma matéria.
11
Consideramos mais valorizados os aspectos em que mais indivíduos se declaram “muito satisfeitos” e “satisfeitos” e que no conjunto destas duas opções de
resposta abrangem mais de 60% dos inquiridos.
12
Consideramos, de igual modo, mais valorizados os aspectos em que mais indivíduos se declaram “completamente satisfeitos” e “satisfeitos” e todos os valores
apresentados resultam da soma destas duas opções de resposta para cada um dos aspectos considerados.

112
Conclusão:
Para concluir esta primeira aproximação a uma análise comparativa dos estudos que vêm sendo realizados em
Portugal com o objectivo de caracterizar os percursos de inserção profissional dos diplomados de uma ou mais instituições de
ensino superior identificamos, essencialmente, pistas que ficam ainda inexploradas num trabalho que se nos afigura tão
importante quanto complexo.
Por um lado, destaque-se que nesta fase exploratória de análise comparativa torna-se muito claro as dificuldades,
que já antevíamos, de comparar os estudos existentes. Essas dificuldades residem nas diferentes opções seguidas na
constituição das amostras, mas sobretudo na variabilidade de perguntas e opções de resposta dos instrumentos de recolha de
dados que remetem para uma multiplicidade de indicadores cuja comparação nem sempre é possível. A este propósito
emerge, aliás, uma interrogação central: até que ponto é legítimo este tipo de análise comparativa e qual o aprofundamento
que permite no que respeita ao conhecimento sobre as transições?
Por outro lado, importa sublinhar que neste texto optámos por analisar com detalhe elementos que nos permitissem
retratar a situação profissional dos diplomados no momento da inquirição e a sua apreciação relativamente a essa situação.
Como se pode perceber ficam por explorar dados importantes para compreendermos, com maior detalhe e profundidade, a
situação actual dos diplomados, designadamente referentes à caracterização sociográfica, aos percursos académicos e aos
percursos profissionais entre a conclusão do curso e a situação em que se encontram no momento da inquirição. Aspectos tão
diversos como a apreciação que fazem do curso frequentado tendo em conta a transição profissional, o facto de já ter ocorrido
(ou não) procura e frequência de formação pós-licenciatura, as dificuldades de acesso ao emprego após a licenciatura e as
razões que têm estado na origem da mobilidade profissional dos diplomados são alguns dos elementos que contribuirão em
etapas seguintes da análise comparativa para aprofundar o nosso conhecimento sobre as transições entre ensino superior e
mundo do trabalho.
Neste domínio, parece-nos que poderá ser particularmente pertinente dar conta da análise comparativa de um
conjunto de indicadores que se centram nas percepções e opiniões dos sujeitos em relação às (des)articulações entre educação
e trabalho/emprego, bem como relativamente à avaliação da formação frequentada no ensino superior. A consideração destes
dados afigura-se-nos importante na sequência da constatação, através de dados apresentados neste texto, de como a grande
maioria dos inquiridos consideram existir uma adequação entre curso concluído e actividade profissional desempenhada. Que
interpretação fazer deste resultado? Que interpretação fazer relativamente aos elevados graus de satisfação dos diplomados
com a sua situação profissional no momento da inquirição? Estas são algumas das questões que ficam em aberto para
posterior exploração.

Bibliografia:
ALVES, Mariana Gaio, 2005, “The entry into working life of higher education graduates: an educational perspective” in
European Journal Vocational Training, number 34, January-April 2005/I, pp. 28-39
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da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Lisboa, edição FCT/FCG.
ALVES, Mariana Gaio, 2008, “Contributos para pensar a regulação entre educação, trabalho e emprego” in Universidade e
Formação ao Longo da Vida, Oeiras, edições Celta.
ALVES, Natália, 2005, Trajectórias Académicas e de Inserção Profissional dos Licenciados (1999-2003), Lisboa, edição
Universidade de Lisboa.
ALVES, Natália, 2007, ????
DUBOIS, Pierre, 2004, Synthése des enquêtes 82001-2004) sur les DEA ete les Docteurs (1999-2002) de l’ENPC et de le
l’UMLV, Université de Marne-la-Vallée.
GERALDES, Maria, SANTOS, Paulo (coord.), 2004, A inserção profissional dos jovens diplomados no Algarve entre 1999-
2001, Faro, Fundação da Juventude-Delegação do Algarve.
GONÇALVES, Manuela, 2007,
GONÇALVES, Albertino, 2001, As asas do diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho,
Braga, edição Universidade do Minho.
MARQUES, Ana Paula, 2006, Entre o Diploma e o Emprego: a inserção profissional de jovens engenheiros, Porto, edições
Afrontamento.
MARTINS, António Maria, ARROTEIA, Jorge Carvalho, GONÇALVES, Maria Manuela, 2002, Sistemas de (des)emprego:
trajectórias de inserção, Aveiro, edição Universidade de Aveiro.
SAÚDE, Sandra, 2005, Percursos de Inserção Profissional dos Diplomados do Ensino Superior Politécnico, Beja, edição
Instituto Politécnico de Beja.

113
Quadro 1 – Caracterização geral dos estudos: análise comparativa
Estudo/ (a) U. Lisboa (b) P. Beja (c) Algarve (d) U. Aveiro
/Características
Ano de publicação 2005 2005 2004 2002
Ano de inquirição 2005 2004 2003 2001
Ano de conclusão de
cursos dos inquiridos 1999-2003 2000-2003 1999-2001 1995/96-1999/00
Metodologia do estudo Ùnica fase: 1ª:Entrevistas a informantes 1ª: Questionário a Única fase:
empírico (em fases) Questionário privilegiados;2ª:Questionário a diplomados; 2ª: Questionário
(semelhante ao todos os diplomados; Entrevistas sob a (semelhante ao
que haviam 3ª:Questionário a grupo restrito forma de histórias que haviam
aplicado em de diplomados de vida aplicado em
2000) 1997)
Universo/amostra Universo: Universo: diplomados do Universo: Universo:
diplomados da U. Politécnico de Beja em 2000- diplomados nas diplomados na U.
Lisboa entre 1999 2003 (N=1956); Amostra não instituições Aveiro entre
e 2003 (N=8107); probabilística (N=528); algarvias em 95/96 e 99/00
Amostra questionário 3ª fase a 29 e 1999-2001; (N=3372);
(N=2216) entrevistas exploratórias 1ª fase a Amostra aleatória Amostra
responsáveis dos cursos e estratificada (N=1191),
presidentes de conselhos (N=426) e 10 existindo algumas
directivos do politécnico (cerca entrevistas sub-amostras de
de 27?) “histórias de vida” curso/área sem
significado
estatístico
Enquadramento Docente da Equipa de docentes da instituição Coordenação Equipa de
institucional/equipa do instituição no no quadro de projecto financiado científica de docentes da
estudo quadro de pelo POEFDS1 docente, equipa da instituição no
iniciativa da Fundação quadro de uma
Reitoria Juventude no das unidades de
quadro de investigação da
projecto U.Aveiro
financiado pelo
POEFDS
Graus dos diplomados
inquiridos Só Licenciados Licenciados e Bachareis Licenciados (2/3) Maioria
Bachareis (1/3) Licenciados (+ 6
Bachareis)

Quadro 2 – Estrutura dos capítulos de apresentação de dados dos questionários: análise comparativa

Estudo Estrutura capítulos


(a) U. Lisboa 1 – Caracterização sociográfica de diplomados da Universidade de Lisboa; 2 – Estatuto ocupacional
em Outubro de 2004; 3 – Trajectórias escolares e opinião sobre o curso; 4 – Inserção na vida activa;
5 – Trajectórias de inserção; 6 – Trajectórias profissionais dos trabalhadores-estudantes
(b) P. Beja 1 – Perfil socio-demográfico e origens sociais; 2 – Trajectória escolar: escolha do curso; 3 –
Percursos de inserção profissional; 4 – Situação profissional; 5 – Relação entre curso e exercício
profissional
(c) Algarve 1 – Diplomados no Algarve (1999/2001) – áreas de formação e auto-avaliação da trajectória
académica; 2 – Trajectórias profissionais e atitudes face ao trabalho; 3 – A empregabilidade dos
diplomados – situação actual; 4 – Atitudes e práticas perante a sociedade; 5 – Perfil social dos
diplomados
(d) U. Aveiro 1 - Caracterização sócio-demográfica e escolar; 2 - Percurso formativo após o diploma; 3 -
Estudantes-trabalhadores: situação no último ano do curso e trajectória profissional; 4 - Situação dos
diplomados em Maio de 2001; 5 – Transição para a vida activa e trajectórias profissionais de
diplomados; 6 - Os diplomados e a Universidade de Aveiro; 7 – Representações da vida social e

1
POEFDS – Programa Operacional de Emprego, Formação e Desenvolvimento Social.

114
profissional dos diplomados e perspectivas futuras

Quadro 3 – Indicadores da dimensão de análise “situação profissional actual”: análise comparativa

Estudo Indicadores seleccionados


(a) U. Lisboa Estatuto ocupacional dos diplomados (desempregado, estudantes, estágio, assalariados, patrões e trabalhadores independentes)
Nível de remuneração (inferior a 300 euros, 301 a 500, 501 a 1000, 1001 a 1500, superior a 1500)
Profissão dos diplomados (...)
Grau de satisfação com os vários aspectos relacionados com o emprego (estabilidade, nível de remuneração, oportunidades d
interesse da actividade, relação com os colegas, utilidade social, horário de trabalho, acesso à formação contínua)
Relação horário/remuneração (trabalhar mais horas e ganhar mais dinheiro, trabalhar o mesmo número de horas e ganhar o m
ganhar menos dinheiro)
Avaliação face à ocupação (só faço aquilo que tenho obrigação de fazer, trabalho bastante mas não deixo que isso interfira com
trabalhar o melhor possível mesmo que isso interfira na minha vida)
(b) P. Beja Situação profissional actual (empregado, desempregado, outra)
Tipo de contrato de trabalho (sem termo, a termo certo, prestação serviços, trabalho pontual e ocasional, estágio, outro)
Exerce funções profissionais na área do curso (sim/não)
Adequação da formação ao exercício de funções profissionais na área
(c) Algarve* Situação actual perante o emprego (trabalha; não trabalha, mas não procura emprego; procura emprego; outra)
Modalidade de emprego (a tempo inteiro, a tempo parcial)
Actividade da empresa (ramo actividade económica...)
Tipo de empresa ou organização (privada até 10 empregados, privada entre 11 e 100 empregados, privada com mais
administração pública, por conta própria sem empregados, trabalhava por conta propria com empregados, outra)
Estabilidade contratual (pertence aos quadros, contrato com renovação garantida, contrato a termo certo, recibo verde, estágio p
Relação entre a ocupação e o curso (directamente relacionada com o curso, área de actividade próxima, área de actividade total
Rendimento líquido mensal (menos de 250 euros, entre 250 e 500, entre 501 e 1000, entre 1001 e 1500, mais de 1500)
Grau de satisfação quanto ao enquadramento profissional (em 4 graus relativamente a horário de trabalho, utilidade socia
actividade, autonomia de que dispõe, oportunidades de promoção, nível de remuneração, estabilidade)
Tipo de adequação do enquadramento profissional às expectativas (muito aquém, aquém, correspondeu, execedeu, excedeu em
(d) U. Aveiro Situação dos diplomados (Estudante a tempo inteiro com bolsa, estudante a tempo inteiro sem bolsa, estudante trabalhador,
emprego, inactivo-não procura emprego, estagiário com remuneração, estagiário sem remuneração, bolseiro de investigação, ou
Profissão dos diplomados (Funções dirigentes, profissões intelectuais e científicas, professir di eneino superior universitário, pr
professor do 2º e 3º ciclos e do ensino secundário, professor do 1º ciclo e educador de infância, profissões técnicas interméd
armadas, outra)
Ramo de actividade económica (...)
Organismo a que estão ligados os diplomados (empresa com capital privado, empresa com capital familiar, empresa com capit
de aveiro, ministério da educação, organismo de outro ministério, outra)
Dimensão das empresas a que estão ligados os diplomados (1 a 4, 5 a 9, 10 a 49, 50 a 199, 200 a 499, =ou+500)
Local de desempenho das actividades profissionais (distrito e concelhos no caso do distrito de Aveiro)
Situação na profissão (por conta própria-empresário, por conta própria-trabalhador independente, por conta de outrém-ass
outrém, trabalhador familiar não remunerado, outra situação)
Tipo de jornada de trabalho (tempo inteiro, tempo parcial)
Tipo de vínculo (estagiário, contratado, contratado a prazo, trab. Indepndente com recibos verdes, trabalho ocasional, outra)
Rendimento mensal líquido em contos (até 100, entre 101 e 150, entre 151 e 250, entre 251 e 350, entre 451 e 550, mais de 550
Apreciação da situação social e profissional (satisfação com situação face ao emprego, articulação entre diploma acadé
reconhecimento social por ser licenciado, reconhecimento social por ser licenciados pela Universidade de aveiro, situação
situação no emprgeo vai melhorar com estabilidade, situação no emprego vai melhorar materialmente, situação no emprego vai
No caso deste estudo há um conjunto de perguntas sobre a actividade profissional secundária que optámos por não
considerar, pois são respondidas por cerca de 1/3 dos inquiridos mas e correspondem ao mesmo tipo de indicadores.

115
Neoconservadorismo e Reforma da Educação Superior

Maria das Graças Ribeiro


Universidade Federal de Viçosa
mgrib@uol.com.br

Resumo: A crise pela qual passa a universidade, em todo o mundo, constitui um tema longe de estar esgotado na literatura acadêmica.
Grande parte dos estudos existentes sobre a reforma da educação superior no Brasil, nas duas últimas décadas, trata de analisar a orientação
dos organismos internacionais sobre a mesma, privilegiando uma análise que tem como premissa a exigência destes organismos no sentido
de contenção dos gastos governamentais. O presente trabalho tem como objetivo analisar a reforma da educação superior brasileira, a partir
dos anos 1990, como parte de um movimento internacional de reforma deste setor. Com base em revisão bibliográfica e análise documental,
este trabalho, não obstante entenda a reforma como um imperativo do capital face à sua crise de acumulação, a compreende, sobretudo, como
parte de um projeto neoconservador, cujo conteúdo permeia as justificativas das autoridades governamentais brasileiras em sua defesa.

Introdução
As três décadas que sucederam à Segunda Guerra Mundial representaram para a economia capitalista uma fase
excepcional de crescimento. Esses “trinta anos gloriosos” ou a chamada “Era de Ouro” bateu todos os recordes anteriores de
crescimento em praticamente todos os países capitalistas desenvolvidos, levando, conforme observa Hobsbawm (1995,
p.235), sofisticados analistas a supor, nos anos 60, “que, de algum modo, tudo na economia iria para a frente e para o alto
eternamente” (Hobsbawm, 1995, p. 235).
Cabe considerar que o equilíbrio da chamada “Era de Ouro” fora possível graças a um compromisso entre capital e
trabalho, mediado pelo Estado, com base numa política de redistribuição dos ganhos gerados na produção, a qual contribuía
para manter a estabilidade dos lucros. Esta política, baseada nas idéias de Keynes, a qual também procurava fazer frente à
ameaça representada pela enorme expansão do bloco socialista após a Segunda Guerra Mundial, permitiu que o capitalismo
fosse “reformado a ponto de ficar irreconhecível” (Crosland apud Hobsbawm, 1995, p.265).
Desde o início, o consenso keynesiano constituiu-se como alvo de ataques dos liberais defensores da ortodoxia
clássica, que defendiam o mercado como regulador da economia e como critério de distribuição. Até o início dos anos 70,
contudo, tais ataques não conseguiam, junto à opinião pública, nenhuma ressonância. A partir de então, a explosão da crise
foi solapando a legitimidade da política econômica keynesiana, fortalecendo os defensores do livre mercado e suas críticas ao
intervencionismo estatal. Simultaneamente, foi emergindo um pensamento de conteúdo neoconservador que atribuía às
crescentes demandas sociais dirigidas ao Estado e à sua incapacidade de atendê-las a responsabilidade sobre a crise.

A crise da economia capitalista


Ao final dos anos 60, um processo de deterioração da rentabilidade do capital foi tornando opaco o brilho da
chamada “Era de Ouro”. Na verdade, as dificuldades então enfrentadas pelo capital investido na produção expressavam
contradições inerentes à própria dinâmica da acumulação capitalista. Como explica Brunhoff (1991, p. 45), “A acumulação
de capital alimenta-se do lucro: é necessário que os fundos investidos proporcionem uma renda líquida aos empresários, sem
o que estes não são estimulados a investir”. Assim, uma vez que “Só o trabalho assalariado pode fornecer uma mais valia,
[...]”, os empresários calculam o custo da força de trabalho com relação à sua produtividade.
Brunhoff prossegue afirmando: “Se o aumento da produtividade dos trabalhadores passa pela mecanização ou a
automação dos processos de produção, a despesa em capital fixo [...] aumenta em relação à que se efetiva com os salários”.
Segundo a autora, “A melhora da produtividade pode levar à redução dos custos salariais, pelo ‘enxugamento dos efetivos’.
Entretanto, o aumento das despesas em capital fixo pode fazer baixar a taxa de lucro [...]”. Desse modo, é inerente ao
processo de acumulação capitalista o risco de uma queda de rentabilidade e, conseqüentemente, de instabilidade no mercado,
acompanhada da possibilidade de crise.
Brunhoff (1991, p. 45) observa ainda a existência de contratendências que, segundo Marx, compensariam a queda
da taxa de lucros, as quais atuariam de acordo com “as relações de força entre os empresários e os assalariados, a capacidade
das empresas em investir no exterior” e, ainda, da capacidade de intervenção do Estado no que diz respeito à cobrança de
impostos, a subvenções e auxílios sociais. Segundo ela, nos anos 70, “todas essas contratendências tiveram um efeito, sem
permitir entretanto o restabelecimento da rentabilidade do capital, notadamente nos Estados Unidos”.
De todo modo, na tentativa de compensar a queda de rentabilidade no setor produtivo, os capitais aí aplicados, ao
saírem, como explica Chesnais (1995, p. 252), “[...] em busca de formas de valorização puramente financeira”, acabaram por
detonar um novo modo de funcionamento do capitalismo, o “regime de acumulação financeirizada mundial”. Este regime,

116
além de apresentar acentuadas características rentistas, implicou transformações significativas na composição orgânica do
capital, com o aprofundamento da taxa de exploração da força de trabalho.
Assim, houve uma hipertrofia da esfera financeira, para a qual contribuíram decisivamente medidas adotadas pela
Inglaterra e pelos Estados Unidos, na virada para os anos 80, quando forças conservadoras assumiram o controle do governo
destes países. Tais medidas implicaram a abertura do sistema financeiro de ambos os países para o exterior, com o fim do
controle do movimento de entrada e saída de capitais, ao mesmo tempo que ocorria um amplo movimento de
desregulamentação monetária e financeira, acompanhada de um processo de expansão espetacular do endividamento do
Estado, no caso dos Estados Unidos.
A política monetária do governo norte-americano para atrair investidores estrangeiros acabou por levar a “uma
rápida expansão dos mercados de obrigações, interconectados internacionalmente”, os quais viabilizaram o “financiameto
dos déficits orçamentários mediante a aplicação [...] de bônus do Tesouro e outros ativos da dívida pública” no mercado
financeiro (Chesnais,1996, p.258).
Segundo Plihon (1999, p.109), “Esse recurso em grande escala dos Estados Unidos ao endividamento
internacional” detonou uma profunda transformação nos movimentos internacionais de capitais distribuídos entre as regiões
do mundo, o que marcaria a emergência do processo de globalização financeira.
Não obstante tenha provocado a explosão da dívida federal americana, o governo de Ronald Reagan, junto com o
de sua colega britânica M. Thatcher, lançou-se numa cruzada em defesa da ortodoxia monetária e orçamentária, que acabou
por enterrar o consenso keynesiano, desde o início dos anos 70, fortemente atingido pela crise.
Na verdade, as idéias de Keynes e seus seguidores, como já foi aqui mencionado, sempre estiveram na mira de
ataques lançados por pensadores liberais que defendiam a ortodoxia clássica, afirmando ser o mercado o mecanismo por
excelência de decisão ou alocação de recursos. Entre os mais famosos críticos do ideário keynesiano estava Friedrich Hayek
que, desde os anos 40, questionava o planejamento da economia e sugeria que o papel ativo do Estado na área da política
econômica representava séria ameaça à liberdade. Algumas décadas depois, Hayek e outros adeptos do novo liberalismo
acusavam a economia da “Era de Ouro” e a política keynesiana de ter levado a sociedade a uma grave crise.

A crise política
Se a queda tendencial da taxa de lucro faz da crise um traço constitutivo da economia capitalista, “Os elementos
genéricos de crise política, devidos à luta de classes”, são, como observa Poulantzas (1977, p. 7), “inerentes à reprodução
mesma do poder político institucionalizado”. Para o autor, uma crise econômica não se traduz necessariamente em crise
política, mas em alguns países capitalistas, todavia, em meados dos anos 1970, esta tradução estava sendo operada.
Poulantzas (1977, p.13) considera que toda crise política “se articula necessariamente a uma crise ideológica”. No
que concerne ao Estado, esta articulação se manifesta, segundo ele, mediante uma crise de legitimação.
Poulantzas (1977, p. 19) observa, no entanto, que, “contrariamente a toda uma tendência atual que [...] vê [...] na
crise do Estado uma simples crise de legitimidade (derivada da ‘comercialização’ da produção simbólica, da ‘circulação’ e da
‘fetichização’ dos signos, símbolos etc)”, as modificações relativas ao seu papel na economia “recobrem [...] modificações
substanciais da reprodução da força de trabalho e da divisão do trabalho (inclusive sob as novas formas de divisão trabalho
manual – trabalho intelectual), tanto no plano mundial como nacional”.
É interessante notar que a crise mundial, deflagrada a partir dos anos 1970, também foi explicada no plano da teoria
política por pensadores neoconservadores que punham a ênfase de suas análises na crítica à ação do Estado nos moldes
keynesianos. Esses “teóricos neoconservadores da crise”, como a eles se refere Offe (1981), chamavam atenção para os
problemas decorrentes da defasagem entre as crescentes demandas sociais dirigidas ao Estado e sua incapacidade de atendê-
las, pondo em pauta o problema da chamada (in)governabilidade.
Toda essa discussão seria desenvolvida por Michel Crozier, Jogi Watanuki e Samuel Huntington em The Crisis of
Democracy, um livro que apareceria em 1975 e se tornaria a bíblia dos pensadores neoconservadores.
The Crisis of Democracy (1975) era, na verdade, um relatório escrito sob encomenda para a Comissão Trilateral,
organização internacional, fundada sob os auspícios de David Rockfeller, em 1973, que reunia mais de 200 representantes
dos maiores consórcios econômicos do mundo. Segundo seus autores, três desafios básicos estavam postos para os governos
chamados democráticos:
a) os desafios contextuais que emergem do meio externo às democracias;
b) os desafios constituídos com base nas mudanças que ocorreram na distribuição internacional do poder
econômico, político e militar, os quais envolveram problemas como a inflação, a estabilidade monetária internacional, o
gerenciamento da interdependência econômica e a segurança militar, o desenvolvimento de uma “cultura adversária” entre os
intelectuais, a qual foi se disseminando entre os estudantes, os scholars e a mídia e, ainda, os desafios constituídos com base
nas mudanças ocorridas nos valores sociais, resultando numa pressão pela satisfação pessoal, de lazer, além da satisfação
intelectual e estética;
c) o terceiro desafio teria um caráter intrínseco à viabilidade dos governos democráticos, implicando uma
deslegitimação da autoridade política e de outras formas de autoridade, além de uma sobrecarga de demandas sobre o
governo, excedendo a sua capacidade de resposta (Crozier et al.,1975).

117
Ainda em The Crisis of Democracy, Samuel Huntington afirmava que o renascimento do espírito democrático na
América, nos anos 1960, fora marcado por uma tendência de desafio à autoridade das instituições políticas, sociais e
econômicas, assim como pelo aumento da participação popular e da reemergência da idéia de igualdade. Do mesmo modo,
teria havido, para o autor, uma onda de associativismo de profissionais liberais e o desejo de assegurar a proteção a direitos e
privilégios (Huntington,1975).
Para Huntington (1975), os Estados Unidos e outras sociedades industrializadas, viviam, a partir de então, um
desafio: o aumento das expectativas do público em relação às ações do governo crescera muito mais do que a sua capacidade
para atendê-las. Tal desafio decorria, segundo o autor, de um excesso de democracia, sendo, portanto, necessário limitá-la.
Em maio de 1975, a Comissão Trilateral promoveria, no Japão, um encontro, onde o relatório elaborado por
Crozier, Huntington e Watanuki seria discutido. Naquela ocasião, Ralf Dahrendorf faria os pronunciamentos que abririam os
debates sobre o estudo da governabilidade. De todo modo, foi somente no ano de 1979, também no Japão, que os governantes
dos principais países capitalistas do mundo, reunidos na Cúpula do G-5, decidiram por uma mudança radical nos rumos das
políticas públicas, abandonando a orientação keynesiana e adotando os preceitos monetaristas, elegendo como prioridade
absoluta o combate à inflação (Plihon,1999).
No corpo das novas orientações, adotadas pelos países do G-5, não se colocava apenas a maximização da liberdade
econômica, com a retirada do Estado da economia, como solução para a crise do capitalismo, mas também colocava-se a
necessidade de rever os dispositivos institucionais da democracia, acreditando-se que uma hipertrofia dos direitos sociais e
democráticos teria contribuído para gerar as condições para a ingovernabilidade. Colocava-se então a proposta de transferir
para a esfera do mercado grande parte das expectativas da população em relação ao poder de intervenção do Estado, o que,
acreditava-se, aliviaria a crise fiscal do mesmo e sua crise de legitimidade.
Foram essas novas orientações que nortearam as políticas de desregulamentação e privatização dos governos de M.
Thatcher e de R. Reagan, na virada para os anos oitenta. Quando estes países detonaram as medidas que acabaram por
estabelecer um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade, o debate sobre a questão da chamada (in)governabilidade já
ganhara significativos espaços na mídia e nos meios acadêmicos. Fora fundamental para a viabilidade de tais políticas um
trabalho desenvolvido por determinados organismos que se dedicaram, nas palavras de George (1996, p.32), “a transformar a
paisagem intelectual”, tratando de propagar o ideário neoliberal.
A questão da (in)governabilidade também constituiu-se, a partir de então, como forte argumento no discurso
daqueles que iniciaram uma pregação pela chamada “Reforma do Estado”.

A educação superior na pauta do neoconservadorismo


A chamada “Era de Ouro” do capitalismo teve como um de seus traços uma expansão espetacular da educação
superior em todo o mundo. Não obstante fosse enorme, no mesmo período, o crescimento das ocupações que exigiam
educação de nível médio e superior, as instituições, em geral, não estavam preparadas para oferecer uma educação de massa,
conforme a demanda que lhes era colocada. Tão grave quanto isto era o fato de, ao final dos anos 1960, coincidirem os
primeiros sinais de desgaste da “Era de Ouro” com a formatura, nas universidades, da geração do “baby boom”, cujas
expectativas estavam condicionadas à experiência do pleno emprego e do crescimento econômico sob o qual tinha vivido.
De todo modo, no movimento estudantil de 1968, tal problema não era colocado. Ele apareceria alguns anos mais
tarde, entre as preocupações dos trilateralistas que, em 1975, no Japão, listavam para discussão alguns pontos que chamavam
“Arenas Para Atuação”, os quais eram apresentados como áreas de fragilidade crítica e de ruptura potencial. Vale notar que
um desses pontos era o “Reexame do Custo e das Funções da Educação Superior”.
Segundo Crozier et al. (1975), houve, nos anos 1960, uma enorme expansão da educação superior nas sociedades
trilaterais. Esta poderia resultar numa superprodução de pessoas com educação superior em relação aos empregos
disponíveis, o que poderia levar a frustrações e outras dificuldades aos que disputavam uma vaga no mercado de trabalho.
Segundo Crozier, Huntington e Watanuki (1975, p.183), “O resultado dessa expansão [...] pode ser a superprodução
de pessoas com educação universitária em relação aos empregos disponíveis para elas”. Eles também consideravam que tal
expansão poderia implicar um “dispêndio de somas substanciais de recursos públicos e a imposição de impostos às classes
mais baixas para pagar pela gratuidade da educação pública dos filhos das classes média e alta”.
Os mesmos autores se inspiravam em Schumpeter, segundo o qual, os “inempregáveis” acabavam por engrossar as
“coortes de intelectuais”, desenvolvendo um descontentamento que dava origem ao ressentimento que, racionalizado,
transformava-se em crítica social.
Para os teóricos neoconservadores da crise,
A expansão da educação superior pode criar frustrações e privações psicológicos entre os graduados universitários, os
quais são incapazes de garantir tipos de emprego para os quais eles crêem sua educação os capacitou e pode também
criar frustrações e privações materiais para os não graduados que são incapazes de assegurar empregos que estavam
abertos para eles anteriormente (Crozier et al., 1975, p.183).

Assim, sugerindo um planejamento educacional, de acordo com as metas econômicas e políticas existentes, os
autores recomendavam que fossem baixadas as expectativas de emprego daqueles que recebiam uma educação de nível

118
superior ou que fossem redesenhados os programas das instituições que ofereciam este nível de ensino. Estes deveriam ser
adaptados aos padrões de desenvolvimento econômico e às oportunidades de emprego existentes.
Os trilateralistas também chamavam atenção para a existência de uma “cultura adversária” desenvolvida pelos
intelectuais e grupos afins. Acreditavam que tal grupo investia-se da prerrogativa de liderança, desafiando a autoridade e
deslegitimando as instituições estabelecidas, vindo a expansão da educação superior, ao ampliá-lo, contribuir para uma
ameaça potencial tão séria quanto a do movimento fascista e a dos partidos comunistas (Crozier et al., 1975).
Assim, Crozier et al. (1975) afirmavam vir do “mundo intelectual” uma das fontes básicas de disrupção nos países
da Europa. Para eles, uma crise cultural talvez fosse o maior desafio enfrentado pelas sociedades capitalistas, constituindo a
ingovernabilidade daquelas sociedades um fracasso cultural.
Seria no mínimo ingenuidade explicar as reformas universitárias que foram ocorrendo, a partir dos anos 1980, com
base simplesmente nas análises e recomendações dos autores responsáveis pelo relatório da Comissão Trilateral. No entanto,
é impossível deixar de situá-las no bojo da onda de conservadorismo que começaria a invadir o mundo no mesmo período.
Evidentemente, houve em cada país um processo próprio que deu mais ou menos asas ao projeto neoconservador. De todo
modo, há que se considerar que se a “Era de Ouro” foi, para o capital, compatível com a educação superior de massa, a nova
era de crise que se abria não o seria. Assim, as transformações que foram ocorrendo, naquele período, nos sistemas de
educação superior, em quase todas as partes do mundo, diziam respeito principalmente às suas relações com o Estado.
Tanto na Europa como nos Estados Unidos, os governos passaram a intervir mais nas instituições, no sentido de
torná-las mais eficientes no uso das verbas públicas e de estimular determinadas carreiras, assim como no sentido de estreitar
as suas relações com o meio, principalmente, o seu contato com as empresas. Além disso, recomendaram às instituições a
criação de “corpos intermediários”, que passariam a controlar os resultados de sua gestão. Não obstante fosse a estratégia da
“planificação racional e do controle” a estratégia básica dos governos para a educação superior até o início dos anos 1980, o
que se percebe, a partir de então, é a adoção de uma “estratégia de autorregulação”, enfatizando-se a autonomia e a
autogestão ou o “controle remoto” de tais instituições (Neave y Vught, 1991).
Tratando do conjunto dos países europeus, Neave y Vught (1991, p.385) observam que, a partir do pós-guerra,
houve uma “admirável estabilidade” nas relações entre a educação superior e o Estado. A base de tal estabilidade seria um
acordo tácito, mediante o qual o sistema ofereceria formação e educação a todos que estivessem preparados para o ingresse
no mesmo, contando, para tanto, com o suporte financeiro do Estado. Já no início dos anos 80, no entanto, tal forma de
relação era revista, entrando em cena os “contratos condicionais”, que envolviam “termos negociáveis específicos”,
justificados como necessários ao desenvolvimento da flexibilidade que deveria responder “às prioridades cambiantes” que
remetem-se às transformações nas relações da educação superior com a indústria, com a região e com a capacidade de
inovação econômica e tecnológica da nação.
Não obstante tenha se criado um certo consenso em torno de alguns pontos da pauta dos governos conservadores
para a educação superior, particularmente no que toca à contenção de gastos públicos com o setor e à questão da avaliação
das instituições, já não são poucas, no início do novo século, as manifestações de preocupação com os rumos das políticas
para o setor.

O neoconservadorismo e a reforma da universidade brasileira


A década de 1980 ficou associada, na história da sociedade brasileira, à luta pela democracia. O período foi de
intensa mobilização política, alimentada pela esperança de maior justiça social com a queda do autoritarismo. Em 1986, foi
eleita uma Assembléia Nacional Constituinte, cujo trabalho resultou na Constituição Federal de 1988. A chamada “transição
à democracia” se fez, contudo, num cenário de crise econômica. Não obstante o Brasil ainda apresentasse, até meados da
década de 1980, índices de crescimento, a desaceleração em relação à década anterior era evidente. Além disso, já estava
configurada uma crise de acumulação de capital no plano internacional com fortes repercussões sobre o problema da dívida
externa dos países da América Latina.
O agravamento da crise da economia brasileira coincidiu com a promulgação da nova Constituição Federal,
alimentando os argumentos dos segmentos mais conservadores da sociedade nos seus ataques aos direitos sociais ali
inscritos.
A partir do início dos anos 1990, a legislação trabalhista herdada da Era Vargas, a tradição intervencionista do
Estado e, mais especificamente, os direitos sociais inscritos na Constituição Federal de 1988, constituíram-se alvos de muitos
ataques. Do mesmo modo, não obstante o regime autoritário, que perdurou de 1964 a 1985, tenha desmantelado em grande
medida as conquistas sociais dos trabalhadores brasileiros, os ataques ao ideário keynesiano começaram a ecoar no Brasil, a
partir do início dos anos 1990, sob a forma de críticas ao chamado Estado Nacional-Desenvolvimentista.
Vale notar que neste contexto, o Brasil tornou-se objeto de pressão das agências financeiras internacionais no
sentido da fixação de uma política de contenção dos gastos públicos e de reformas que levassem ao “enxugamento” do
Estado. O tema da (in)governabilidade foi então introduzido nos debates políticos, recebendo, contudo, maior atenção
somente a partir de meados dos anos 1990, particularmente quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência da
República.
Num dos seus primeiros atos na Presidência, Cardoso criou o Ministério da Administração e Reforma do Estado
(MARE), nomeando para sua direção o economista de perfil conservador Luiz Carlos Bresser Pereira, o qual já vinha há

119
alguns anos defendendo a idéia de que o Estado crescera demais no Brasil, sendo pois necessário “dar um papel maior ao
mercado na coordenação da economia” (Bresser Pereira,1991, p.5).
No Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, documento norteador das ações do novo ministério,
abordava-se a crise do Estado, atribuindo-lhe a responsabilidade pelos graves problemas econômicos, assim como defendia-
se a redefinição do seu papel com base na justificativa de que o mesmo já não conseguia “atender com eficiência a
sobrecarga de demandas a ele dirigidas, sobretudo na área social”(1995, p.9).
Bresser Pereira também defendia a reforma administrativa chamando atenção para as demandas dos cidadãos sobre
o Estado, considerando que aqueles tendem a exigir muito mais do que este pode oferecer, havendo uma lacuna (gap) que
estaria na origem não apenas da crise fiscal, mas da crise de governabilidade (Bresser Pereira, 1997).
Citando Huntington, Bresser Pereira (1997) afirma que a garantia dos direitos sociais pelo Estado do Bem-Estar e o
papel assumido pelo Estado na promoção do crescimento econômico, tornaram evidente o seu caráter republicano,
implicando, a cobiça de indivíduos e de grupos desejosos de submetê-lo a seus interesses especiais (rent-seeking 1 ).
Em artigo acadêmico publicado posteriormente, Pereira, abordando a questão do Estado na América Latina, afirma
que seriam objetivos da reconstrução do Estado nos países da região a governabilidade e a governança. Entendendo a
primeira como a legitimidade do governo “assegurada por instituições políticas capazes de representar e intermediar
interesses setoriais legítimos”, Bresser Pereira define a segunda como “capacidade financeira e administrativa” do Estado
“para executar as políticas decididas pelo governo” (Bresser Pereira, 1998, p.97).
À frente do MARE e dando início à reforma da administração pública brasileira, Bresser Pereira pôs na pauta da
reforma a universidade pública.
Deste modo, no bojo do projeto da reforma administrativa estava a transformação do estatuto jurídico das
universidades públicas federais, as quais passariam de instituições de regime especial a “Organizações Sociais”. Seus
recursos materiais, de pessoal e financeiros seriam então providos por um “contrato de gestão”, que também definiria as
metas e indicadores de desempenho a serem alcançados por aquelas instituições.
É interessante notar que Bresser Pereira, responsável pela proposta, revelou, inúmeras vezes, sua inspiração na
experiência conservadora britânica que adotou para o serviço público a chamada “administração gerencial”, baseada na
descentralização e nos chamados “contratos de gestão”. Instituições como universidades foram, neste processo,
transformadas em “organizações quase não-governamentais” ou, na sigla formada pelas iniciais do nome original em inglês,
QUANGOS, isto é, “quasi non-governamental organizations”, as quais, segundo ele, não têm fins lucrativos, não contam, em
seus quadros, com funcionários públicos e, não obstante estejam livres do controle formal do Estado, são incluídas no
orçamento público (Bresser Pereira,1997;1998).
Bresser Pereira defendia que as nossas universidades se tornassem instituições públicas não-estatais como o eram
as universidades norte-americanas, segundo ele, as melhores do mundo, graças à “total autonomia financeira e a completa
flexibilidade administrativa” (Bresser Pereira, 1995, p.1).
Em face da resistência apresentada pela comunidade acadêmica à proposta do MARE, Fernando Henrique Cardoso
anunciou a sua intenção de manter o caráter público que das universidades federais, dando destaque a uma proposta do MEC
para a educação superior federal. Esta enfatizava, sobretudo, a questão da autonomia institucional, “expressa no orçamento
global, associada a novas formas de controle público” (Cunha, 1997, p.25).
Ao negociar a sua reeleição à Presidência da República, em 1998, Cardoso recompôs a sua base de apoio,
imprimindo-lhe um perfil ainda mais conservador. Deste modo, no início de 1999, a antiga proposta do MARE para as
universidades federais foi, de certo modo, incorporada pelo próprio MEC, o qual apresentou uma nova proposta de
autonomia institucional. Nesta, a maior novidade referia-se a um “contrato de desenvolvimento institucional” que poderia
ampliar a autonomia da universidade, desde que esta fizesse opção pelo mesmo. Tal contrato encontraria, de acordo com o
MEC, “plena afinidade” com a lei n.9637/98 “que dispõe sobre as organizações sociais”.
De todo modo, não obstante ficasse indefinida até o final dos anos 1990, a questão da autonomia para as
universidades, muitas das propostas do MEC foram aprovadas no plano da legislação, como aquela de instituir o exame final
de curso para os alunos concluintes da graduação (lei n.9131/95).
Cabe considerar que os policy makers de Cardoso, na área da educação, defendiam as mudanças na educação
superior e, especialmente, a diversificação das instituições com base na justificativa de ampliar o acesso a este nível de
ensino sem a ampliação dos custos. Segundo eles, sendo o custo per capita nas universidades públicas excessivamente alto e
tendo o Estado crescentes dificuldades no que toca à sua capacidade de financiamento, expandir o ensino superior implica a
necessidade de baixar tais custos, o que seria possível diversificando o sistema, pela oferta, junto com a educação
universitária nos padrões tradicionais, de um setor pós-secundário de curta duração, quer voltado para a qualificação em áreas
técnicas e profissionais, quer voltado para uma educação de caráter geral.
Os policy makers de Cardoso identificavam, na verdade, dois grandes pontos de estrangulamento no que se referia
aos problemas do sistema federal de ensino superior: de um lado, os elevados custos da pesquisa na universidade, de outro a
ação dos docentes das universidades federais como grupo de pressão.

1
Bresser Pereira (1997, p.21) define como rent-seeking “a atividade de indivíduos e grupos de buscar ‘rendas’ extra-mercado para si próprios através do controle
do Estado”.

120
No que se refere ao primeiro ponto, afirmavam que a pesquisa era um dos elementos mais dispendiosos no
orçamento das universidades federais, devendo-se, portanto, extinguir a exigência legal da indissociabilidade entre esta e o
ensino nestas instituições. Além disso, como solução para o problema, defendiam a necessidade de se buscar outras formas
de organização institucional para o ensino superior afora a organização universitária. Neste sentido, o poder executivo editou,
em 1997, o decreto n.2207, o qual, além de reconhecer e estimular a diversificação das instituições de ensino superior no
país, rompeu com toda uma tradição que apontava a universidade como modelo de organização a ser alcançado por todas as
instituições (Durham,1993; Schwartzman & Klein, 1993; Schwartzman,1996).
A segunda questão, também relacionada à pesquisa, era abordada por Simon Schwartzman, um dos principais
inspiradores da equipe do MEC que no governo Cardoso promoveu a reforma da educação superior, da seguinte forma: o
fluxo de fundos aberto, no início dos anos 1970, para as atividades de pesquisa nas universidades brasileiras fez emergir, em
poucos anos, um novo grupo social que se tornaria um forte grupo de pressão. Ele referia-se à profissão acadêmica e suas
demandas por “altos salários, privilégios trabalhistas e os benefícios completos do serviço civil”, os quais exigiam, segundo
ele, “um crescimento substancial no orçamento das universidades federais, 80% do qual era gasto em salários” (Schwartzman
& Klein,1993, p.25).
O autor observava ainda que quando, em 1985, estabeleceu-se o governo civil, a situação das universidades federais
era de precariedade, sendo que os gastos com salários comprometiam o orçamento das instituições.
Criticando a isonomia conquistada pelos professores das universidades federais, Schwartzman considerava que
face as freqüentes greves por aumento salarial, o governo acabara por oferecer, aos professores, estabilidade no emprego e
facilidades nos critérios de promoção para compensar o valor dos salários, quando não podia atender as reivindicações para
elevá-los (Schwartzman & Klein, 1993).
Segundo o mesmo autor, ao final da década de 1980, o governo brasileiro enfrentara, no plano financeiro,
crescentes dificuldades, tendo os investimentos públicos declinado significativamente. Contrastando com essa situação, “o
orçamento permanente das universidades federais, salários, sobretudo, apesar de experimentar algumas perdas, foram, de
modo geral, preservados”. Tal teria sido possível pelo então “emergente poder político das associações de professores”.
Schwartzman endossava assim os ataques de Bresser Pereira ao chamado “rent seeking” e identificava a
universidade pública brasileira como um dos lócus principais dos grupos de pressão, cuja existência era denunciada nas
análises neoconservadoras dos trilateralistas.
Com a substituição de Fernando Henrique Cardoso por Luís Inácio da Silva, o Lula, na Presidência da República, a
partir de 2003, os intelectuais neoconservadores responsáveis pela política educacional de Cardoso saíram de cena.
Não obstante, Lula tenha sido eleito, em 2002, com o apoio popular, o seu governo também conta com uma
composição política que inclui segmentos da ala mais conservadora da política brasileira.
No que diz respeito à educação superior, Lula anunciou em seus primeiros dias de governo a intenção de realizar
uma reforma universitária, desencadeando com grande destaque na mídia, um debate sobre os problemas do ensino superior
no país. Deste modo, já no primeiro ano de governo, foi constituído um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI),
coordenado pelo Ministério da Educação, para tratar da reforma das instituições federais de ensino superior. Não obstante o
Grupo tenha apresentado o seu relatório ao governo após alguns meses de trabalho, pouca visibilidade foi dada ao mesmo.
Na verdade, após um ano à frente do MEC, Cristovam Buarque foi substituído por Tarso Genro, o qual logo após a
sua posse instalava um Grupo Executivo da Reforma do Ensino Superior e instituía o Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior (SINAES), que fazia alguns ajustes à política de avaliação institucional implementada no governo
anterior. Do mesmo modo, com Genro, o MEC elaborou o Programa Universidade Para Todos (PROUNI), o qual após a sua
apresentação ao Congresso Nacional, na forma de projeto de lei, foi aprovado com grande polêmica.
O PROUNI instituía bolsas de estudo com base em cotas étnicas e para egressos de escolas públicas, para
estudantes de família de baixa renda, nas instituições privadas de educação superior, que as oferecessem em troca de isenção
fiscal em impostos tais como Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido,
Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social e Contribuição para o Programa de Integração Social.
No final de 2004, Genro finalmente apresentou um anteprojeto de Lei Orgânica da Educação Superior, o qual,
segundo nota da sua Assessoria de Comunicação Social (ACS), contemplava propostas de entidades de classe, associações
representativas da administração das instituições federais de ensino superior e movimentos organizados da sociedade civil 2.
A enorme polêmica gerada com a apresentação do anteprojeto, em vários segmentos da sociedade – do sindicato
docente aos órgãos representativos do setor privado de ensino – levou o governo a novas discussões com entidades e com a
comunidade acadêmica, de modo que uma segunda versão do anteprojeto foi elaborada. Esta nova versão também sofreu
vários ataques dos mais diversos segmentos, de modo que o governo elaborou uma terceira versão do anteprojeto, o qual
coincidiu com o afastamento de Genro do Ministério da Educação, para socorrer o Presidente Lula em meio à primeira
grande crise política de seu governo.
Encaminhado pela Presidência da República ao Congresso Nacional, em 2006, o anteprojeto de Lei Orgânica da
Educação Superior recebeu, no poder legislativo, mais de uma centena de emendas, permanecendo desde então em exame.

2
Eram estas a Andifes, a Andes, UNE, Contee, Forplad e Educafro.

121
Enquanto o anteprojeto hiberna no Congresso Nacional, Fernando Hadad, sucessor de Genro no Ministério da
Educação, revogou mais de cem portarias do MEC, a maioria editada anteriormente ao governo de Lula, e encaminhou à
Presidência da República uma proposta, que aprovada como decreto n.6096, tratou de antecipar muitas das disposições
contidas no anteprojeto de reforma da educação superior.
Deste modo, com a aprovação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI), estas foram induzidas a aumentar o número de vagas, preferencialmente dando ênfase a cursos baseados
em “novas tecnologias educacionais” e diversificando os cursos de graduação com base em currículos mais flexíveis, que
possibilitem cursos de menor duração.
Alem disso, o governo vem expandindo significativamente o número de universidades federais, não propriamente
pela criação de novas instituições, mas principalmente pelo desdobramento de instituições já existentes.
Na verdade, o que marca a política para a educação superior do governo Lula é a expansão desordenada do sistema
como aconteceu no governo Cardoso. Há, contudo, uma grande diferença: enquanto o último estimulou a expansão do setor
privado de ensino, que cresceu, na década de 1990, de forma desordenada, com o governo Lula, além do setor privado, o
próprio setor federal de ensino se expande desordenadamente. O discurso em ambos os casos tem sido o mesmo – elevar a
baixíssima taxa de escolaridade no que toca ao ensino superior no Brasil.
A questão da (in)governabilidade também não foi completamente abandonada pelo governo Lula ao tratar da
educação superior. Se por um lado, Lula expande o setor federal de ensino, com o PROUNI, também desloca para o mercado
parte das demandas sobre o Estado no que diz respeito à oferta de educação superior.
Muitas vezes a questão da (in)governabilidade foi levantada, principalmente por Tarso Genro em sua defesa do
anteprojeto de reforma da educação superior. Não obstante não haja quadros de grande expressão acadêmica na área
educacional do governo Lula e não mais se fale em rent-seeking, o redesenho do sistema de educação superior vem se
consolidando. Isto se faz particularmente pela reconfiguração interna às universidades federais para acomodar cursos dos
mais diversos tipos, de modo a garantir a ampliação da oferta de vagas, mas também principalmente para atender demandas
do mercado. Tal ação vem ao encontro das recomendações dos neoconservadores no sentido de redesenhar os sistemas de
ensino superior de modo a baixar as expectativas dos potenciais descontentes que descarregariam suas frustrações na forma
de crítica social, tornando-se ameaçadores às chamadas sociedades democráticas.

Considerações Finais
Quando, a partir do início dos anos 1970, foi se configurando a crise de acumulação capitalista, foi sendo
fortalecido um discurso que pregava a importância de uma hierarquia de legitimidade das despesas públicas e que se
contrapunha àquele que tinha por referência as “necessidades sociais”. Para o pensamento neoconservador comprometido
com a recomposição da ordem nas chamadas sociedades democráticas, não bastava, contudo, pensar apenas formas de limitar
as despesas sociais do Estado. Era preciso enfrentar os desafios postos pelo próprio desenvolvimento das sociedades
capitalistas na sua dimensão social e política. A dupla preocupação manifestada por esse pensamento pôs em pauta a
educação superior, não só na perspectiva de seus gastos, mas também do seu modo de funcionamento.
Evidentemente, as reformas na educação superior, em todo o mundo, a partir do final do século XX, foram
condicionadas pelos matizes nacionais e pela correlação de forças configuradas no campo social em cada país. No caso
brasileiro, o fio da meada que orientou a reforma tece os seus desdobramentos. Não me refiro aqui à ampliação dos ganhos
privados no setor, pois já é significativa a literatura que procura demonstrar como a reforma da universidade brasileira vem,
em grande medida, propiciar o alargamento da margem de lucro das empresas educacionais.
Chamo atenção para um processo de reconfiguração do sistema de educação superior que vai para além de seus
problemas de financiamento, dizendo respeito à tentativa de evitar a ruptura da ordem social.
Vale notar que os elevados índices de desemprego e de criminalidade na América Latina constituem uma
preocupação que tem marcado o discurso de nossas autoridades governamentais e de representantes de organismos
multilaterais. Esta preocupação vem defendendo uma política de inclusão social, principalmente pela via educacional. Se até
o governo Cardoso apontava-se o papel determinante do ensino elementar no combate à exclusão social, no governo Lula,
também é convocado para esta cruzada o ensino superior. Neste quadro, parece que vai se atribuindo à educação superior a
função de criar a ilusão de igualdade de oportunidades no sentido de legitimar as profundas desigualdades sociais existentes.

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A Docência nas Ciências Sociais: desafios na contemporaneidade

Celeste Aparecida Pereira Barbosa1


Marta Regina Farinelli 2
Edna Aparecida de Carvalho Pacheco3
Nanci Soares4

Resumo: O presente trabalho expõe algumas reflexões sobre a vida cotidiana da docência universitária, destacando os desafios, papel da
universidade e do docente na formação de profissionais da área das ciências sociais na contemporaneidade. Nesta direção o estudo relata a

1
Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista UNESP/Franca-SP; docente do curso de Serviço Social do Centro Universitário Barão de Mauá
– Ribeirão Preto-SP, membro-pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação Profissional em Serviço Social – GEFORMSS – BRASIL,
celser@terra.com.br
2
Doutora em Serviço Social pela UNESP–Campus de Franca-SP; docente do Curso de Serviço Social da Faculdade de Barretos-SP e participante do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Formação Profissional em Serviço Social – GEFORMSS e Assistente Social no Instituto Atende – Psicologia e Serviço Social Franca-SP
– BRASIL, mrfarinelli@uol.com.br
3
Doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista UNESP/Franca-SP; docente do curso de Serviço Social do Centro Universitário Barão de Mauá
– Ribeirão Preto-SP, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação Profissional em Serviço Social – GEFORMSS; Assistente Social da Prefeitura
Municipal de Franca-SP – BRASIL, edna.pacheco@netsite.com.br
4
Docente do Curso de Serviço Social da UNESP/Franca-(SP) Brasil; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente – GEPECA e do
Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação Profissional em Serviço Social – GEFORMSS. – BRSAIL, nancisoares@netsite.com.br

123
experiência, compromisso das profissionais com a docência e apresenta a pesquisa - processo educativo de construção de conhecimento -
como um dos componentes da atividade didática e instrumento fundamental na formação e atuação dos futuros profissionais. Enfatiza como
a pesquisa deverá nortear a docência, uma vez que oportuniza aos discentes em formação, questionamento, reflexão e interpretação do modo
de produção da vida social no capitalismo, o que certamente contribuirá com as discussões sobre a edificação de uma proposta no que se
refere ao respeito às diferenças, a liberdade e a igualdade entre as pessoas.
Assim, os fundamentos teóricos desenvolvidos precisam ser construídos de forma articulada com a pesquisa, tornando o trabalho vivo,
vibrante e contextualizado. O texto revela também a relevância entre ensino, pesquisa e extensão na formação profissional. Focaliza a
pesquisa como elemento fundamental da atividade didática da docência. Apresenta a dimensão dialógica produzida por Mikhail Bakhtin
como um caminho metodológico na construção do conhecimento do professor. Sugere alguns instrumentos de trabalho nesta visão dialógica
que permitem reflexões do fazer profissional.

A partir do momento que buscamos estabelecer um dialogo sobre formação profissional, concomitantemente nos
reportamos a nossa própria formação no período da graduação como, os conflitos, ansiedades, conhecimentos, a procura por
novos caminhos, os ensaios teóricos, as dificuldades para a realização de pesquisas. A educação recebida naquele momento
desenvolvia-se de maneira tradicional, conservadora, no que diz respeito a relação ensino - aprendizagem se limitava a uma
afinidade unilateral em que o professor detinha os conhecimentos, cabendo ao aluno apenas a assimilação das informações
transmitidas. O comum e usual era que o conteúdo das disciplinas fosse decorado, decorar parecia suficiente, a prova como
única forma de avaliação, o aprender reduzido ao copiar e escutar, numa posição de reprodução, cuja passividade era o ponto
alto do aprendizado. Em sala de aula nos momentos de discussões, a maioria dos alunos permaneciam ora calados, por receio
de exporem suas idéias, ou então diálogos curtos, que expressavam as dificuldades dos mesmos.
No desempenho das funções de docentes em Serviço Social, esse grupo é responsável pela formação profissional
de Assistentes Sociais, neste papel percebemos que os discentes chegam a universidade com um modelo preconcebido de
que o professor ainda é o único detentor do conhecimento e que sua postura deva ser de um mero expectador, cujo
aprendizado encontra-se situado no caráter da cobrança de leituras, da cópia, da prova, da cola, da aula como único caminho
de aprendizado. Para muitos discentes esse momento na universidade é muito significativo, pois requer dele uma postura
diferenciada, crítica e política, que em geral ainda não tiveram oportunidade de vivenciar.
Desse modo, encontramos inúmeras indagações que partilhamos com nossos pares na tentativa de obter respostas
diferenciadas dos modelos preconcebidos de educação, para que possa efetivamente contribuir para a formação profissional
dos graduandos, zelando para que essa intensa busca não reproduza os paradigmas introjetados ao longo de nossa experiência
profissional .
Algumas indagações que acreditamos serem pertinentes diante do exposto: Como contribuir na formação de um
discente que vive num momento em que o acúmulo de informações ocorre com tanta rapidez? Como manter-se atualizado ao
longo da trajetória profissional? Como ser educadoras inovadoras com tanta tecnologia e ao mesmo tempo com a
responsabilidade de nos afastarmos da facilidade do comodismo em “dar as aulas por dar”? Na condição de educadoras
conseguimos situar as disciplinas no contexto histórico social, contribuindo para alterar o estado ou a condição dos alunos no
que se referem aos aspectos sociais, culturais, cognitivos, emocionais, políticos, entre outros? Será muita pretensão? Ou seria
onipotência? E, sobretudo, como despertar no aluno o desejo para descobrir, pesquisar, produzir novos conhecimentos a
partir do existente? Muitos são os nossos questionamentos, no entanto, acreditamos que estes já nos incomodam o bastante
para iniciarmos uma discussão e/ou busca por respostas que tornem mais compreensível e possível o fazer profissional,
enquanto docentes do terceiro grau.
Neste ensaio propusemos compartilhar alguns caminhos descobertos nesta empreitada inicial, que assumem um
caráter coletivo.
Para Demo (2003), professor é pesquisador, pois possui a capacidade do diálogo com a realidade, orientando a
descobrir e a criar, elaborando a ciência; é também socializador de conhecimentos desde que apresente uma bagagem própria,
despertando no aluno a mesma noção de pesquisa e enfatiza que se esse professor concebe a proposta de emancipação a si
mesmo, será capaz de motivar o novo pesquisador no aluno, evitando de todos os modos reduzi-lo a discípulo subalterno.
[...] pesquisa como princípio científico e educativo faz parte integrante de todo processo emancipatório, no qual se
constrói o sujeito histórico auto-suficiente, crítico e auto-crítico, participante, capaz de reagir contra a situação de
objeto e de não cultivar os outros como objeto [...] pesquisa como diálogo é um processo cotidiano, integrante do ritmo
da vida, produto e motivo de interesses sociais em confronto, base da aprendizagem que não se restrinja a mera
reprodução; na acepção mais simples significa conhecer, saber, informar-se para sobreviver, para enfrentar a vida de
modo consciente. ( DEMO, 2003, p.48).

Pensamos que para ser professor é necessário, além de possuir habilidade técnica, ou seja, o conhecimento
específico, gostar de ensinar e de aprender, ser um pesquisador que consiga criar sabedoria, que se vincule de forma
favorável com seus alunos e que tenha “ paixão” pela docência, pois ao contrário a dinâmica de sala de aula torna-se
insuportável, o que certamente acarretará danos na formação profissional dos alunos.
Amaral (2000, p.152) coloca que é preciso refletir sobre “a prática docente de aula universitária ser voltada para o
ensinar - pesquisando e o pesquisar- ensinando” em que as aulas sejam um espaço de construção de múltiplos saberes e de
múltipla relações entre ensino e pesquisa.

124
Demo (2003, p. 87) enfatiza que o “ professor precisa investir na idéia de chegar a motivar o aluno a fazer
elaboração própria, colocando isso como meta de formação”. O autor coloca ainda a necessidade de impregnar a convivência
com os alunos com estratégias de pesquisa e/ou exercícios pessoais. Compreende que anotar é preciso, para poder reelaborar,
interpretar os conhecimentos e poder realizar uma leitura crítica, tendo o pesquisar como um diálogo da realidade. Não se
pode perder de vista as informações recriadas pelo professor a partir de seus conhecimentos teóricos e práticos. Desta forma
o caderno de notas evoluiria de uma simples cópia das aulas para a elaboração de uma síntese própria.
O aluno não vai reinventar a lei da gravidade, ou o alfabeto ai cabe aprender, no sentido de instruir-se. Mas é apenas
instrumentação técnica. O interessante começa depois: como internalizar sem decorar, como exercitar para convencer-
se de que funciona; como experimentar para poder aplicar; como utilizar na condição de instrumento de pesquisa, para
questionar e dialogar com a realidade. Mais que despertar a curiosidade é fundamental despertar o ator político capaz
de criar soluções. (DEMO, 2003, p.88)

Para esses estudiosos, entre outros, a pesquisa torna-se uma estratégia educativa da maior relevância,
oportunizando aos alunos em formação questionamentos, reflexão, a interpretação, os múltiplos olhares , a construção do
conhecimento a partir dos já existentes, a relação teoria e prática e acima de tudo o gosto por estudar, o que certamente o fará
após ter concluído sua graduação. A preocupação, portanto, em vincular e articular ensino pesquisa e extensão torna-se
necessária. Destacamos a pesquisa como a grande geradora na construção do conhecimento, ela deverá nortear a docência.
Os fundamentos teóricos necessitam ser construídos de forma articulada com a pesquisa, tornando o trabalho
desenvolvido vivo, vibrante e contextualizado.
O importante é compreender que sem pesquisa não há ensino. A ausência de pesquisa degrada o ensino a patamares
típicos da reprodução imitativa. Entretanto, isto não pode levar ao extremo oposto, do professor que se quer apenas
pesquisador, isolando-se no espaço da produção científica. (DEMO, 2003,p.52).

Acreditamos que motivar a elaboração própria faz parte de um processo de crescimento do aluno em que o mesmo
ao longo de sua formação acadêmica terá oportunidades de transformar sua consciência ingênua sobre sua formação
profissional em consciência crítica, amadurecendo-se e estando mais preparado para sua vida profissional.
Compreender o ensino e a pesquisa como o objeto principal do educador é uma condição importante para a
organização de princípios que irão nortear suas ações para que o mesmo, cada vez mais, organize o ensino como um fazer
que se aprimora , visando transformar-se e contribuindo para que outras pessoas se transformem. A articulação entre ensino
e pesquisa é necessária para que se alcance um ensino de alta qualidade. Lima aponta:
[...] a indicação de metodologias modernas como a aula e o hipertexto, ou a aula e os programas como datashow, a
aula e a internet, a aula como objeto de marketing entre outras que não suprimem a clássica aula expositiva e outras
modalidades.

( LIMA, 2000, p.152).

Porém, o educador necessita mais do que maneiras de transmissão de conteúdo de forma criativa e inovadora. O
professor precisa adotar caminhos metodológicos adequados no desenvolvimento de suas disciplinas que contribuíam para
essa formação profissional crítica, emancipada e cidadã dos educandos, afinal serão futuros profissionais , futuro colegas.

O Caminho Metodológico...
Metodologia é uma orientação, um guia e, especialmente nas ciências humanas, à medida que nós vamos
levantando e investigando os dados e a gente vai olhando para aquilo que vai acontecendo, realmente muitas vezes se torna
necessário mudar o rumo do caminho [...] a flexibilidade é muito importante e a capacidade de combinar formas
metodológicas também [...]. (GATTI, 1996 p.36).
Em nossas buscas nos deparamos com o pensamento do russo Bakhtin, que consiste em significativa contribuição
com o caminho metodológico adequado à prática do ensino e pesquisa e com reflexões pertinentes a algumas indagações
realizadas. Sua contribuição é significante, por considerar o homem como um ser social e histórico, porém irei “extrair”
somente parte de sua construção teórica neste caminho metodológico, qual seja a metodologia da pesquisa sócio histórica,
entendida “como um processo dinâmico objetivo e natural estabelecido entre a realidade investigada e a lógica do
pensamento manifestado nos depoimentos dos sujeitos, atores do cenário”( COSAC, 1998, p.48)
Mikhail Bakhtin (1895–1975) foi historiador da literatura e filósofo soviético que produziu uma obra extensa,
original e de singular coerência. Considera a arte como um produto da atividade humana também afetada pelo meio social.
Reconhece a influência do social, mas compreende que o homem não é submetido ao seu determinismo.
Disposto a ultrapassar a dicotomia positivismo/idealismo, tenta encontrar a dialética do subjetivo e do objetivo
mediada pelo fenômeno da linguagem. Por isso a linguagem é uma das questões centrais de seus sistemas. Considerou a
linguagem como elemento organizador da vida mental e essencial na constituição da consciência e do sujeito, enfatizando a
função do discurso interior. Destaca em seus estudos que o modo de existência da linguagem é o dialogismo, pois em cada
texto, enunciado, palavras, ressoam duas vozes: a do eu e a do outro.

125
[...] o sentido das coisas é dado ao homem pela linguagem, na linguagem, no diálogo, na interação, estão o tempo todo
o sujeito e o outro. Procurou, pois, na luta contra a alienação o espaço do sujeito [...]. (FREITAS, 1996, p.159).

Bakhtin entende que a linguagem é social: ela é essencial para a existência humana. De acordo com sua teoria, “
não é a experiência que organiza a expressão; na verdade, a expressão precede e organiza a experiência, dando-lhe forma e
direção” ( KRAMER, 2003, p.59).
O destaque dado por Bakhtin ao estudo da linguagem contribui para concluir que é pela linguagem , na linguagem
e com a linguagem que os feixes de sentido se constroem , dialogam, disputam espaços. O dialogo é então condição
fundamental para se conceber a linguagem.
Bakhtin enfatiza que o princípio dialógico articula três grandes posicionamentos: um sobre a natureza do social: a
sociabilidade é de essência intersubjetiva; um segundo sobre a natureza do signo, ou seja o signo é para agir e um terceiro
sobre a natureza do sujeito; o sujeito é feito do que ele não é o ser humano emerge do outro.
Para o autor o homem sempre se expressa através de um texto que requer uma resposta, uma compreensão. Os
acontecimentos na vida, as expressões de um texto sempre se desenvolvem entre duas consciências, dois sujeitos, em que se
efetuam trocas, ou seja, o diálogo. Diálogo este entendido não só como uma relação face a face, mas também numa relação
do texto com o contexto.
O diálogo contribui para que o aluno se torne sujeito/ator, participe do processo de ensino e aprendizagem,
contribuindo de maneira efetiva na sua formação profissional. Porém, deve-se ter o cuidado para que o diálogo não caminhe
para uma concepção funcionalista e sim, numa comunicação dialética, em que o educador e o aluno questionem os
conhecimentos transmitidos, construídos e que o fruto desta reflexão se transformem em auto-conhecimento e incorpore ao
professor e ao aluno contribuindo para uma ação transformadora da realidade.
Neste sentido Lima (2000) aponta:
O projeto de uma aula deixa de ser apenas uma manifestação do pensar a ação e do agir , ou seja, não é só um
movimento de idéias, mas idéias em movimento. A aula constitui, também, o desvelar do novo, do imprevisto, que
surge na própria ação e que faz da aula um ato de criação e expressão de valores científicos, estéticos e éticos do
professor, dos alunos, de um tempo, de uma cultura. ( LIMA, 2000, p.159)

Assim, observa-se que o professor é um pesquisador de sua prática se considerarmos a pesquisa como uma relação
de sujeitos, numa perspectiva dialógica. Os sujeitos são percebidos em suas singularidades, mas situados em relação ao seu
contexto histórico, cultural e social. Mas como são percebidos esses sujeitos?
Segundo Freitas (2003) o próprio uso pelo educador dos termos objeto e sujeito, enquanto na condição de
pesquisador, reflete como o professor compreende sua realidade. Assim, se o professor detém o poder de realizar uma
interpretação sobre seus alunos sem propiciar-lhes um espaço para uma participação ativa no processo ensino-
aprendizagem, concebe o educando como um objeto. Porém, se compreendê-los como possuidores de uma voz reveladora da
capacidade de construir conhecimentos, de refletir sobre a realidade, de tornar-se co-participante no processo de ensino
aprendizagem, é que este educador concebe seus alunos como sujeitos.
A concepção do profissional/professor enquanto pesquisador de sua atuação profissional numa perspectiva sócio
histórica implica compreender a relação entre os sujeitos possibilitada pela linguagem.
Assim, os registros de aulas serão considerados diários de campo, de prática trazendo novos significados a aula
universitária, gerando resignificações da didática, da sua atuação enquanto professor comprometido e co- responsável pela
formação profissional do aluno. O diário nos permitirá reflexões também de nossa atuação enquanto agentes de cidadania.
Cabe ressaltar que assumir essa concepção de sujeito numa relação dialógica como essencial na constituição e
interação dos seres humanos não significa imaginá-la sempre harmoniosa, consensual e desprovida de conflitos, mas
reconhecer o outro enquanto pessoa que possui uma história de vida com preceitos e preconceitos, vivências diferenciadas.
Segundo Bakhtin (2003, p.95) na relação dialógica “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós
ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”.
A unicidade de ensinar, aprender, pesquisar está caracterizada pela relação dialética do papel orientador e diretivo
do professor e auto atividade do aluno. Nesta unicidade há, portanto, muitas tensões e conflitos.
Evidenciamos a sala de aula como um dos espaços possíveis para a concretização dos processos de ensinar,
aprender e pesquisar em que o professor faz o que sabe, o que sente e se posiciona quanto sua visão de homem e de mundo.
O modo como olhamos e concebemos o mundo pode definir a finalidade do conhecimento que buscamos a cada momento,
afinal somos pessoas em constantes mudanças.
[...] se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver,
devo estar inacabado, aberto para mim mesmo [...] pelo menos no que constitui o essencial da minha vida [...], devo
ser para mim mesmo um valor ainda por vir, devo não coincidir com minha própria atualidade.(BAKHTIN, in
GERALDI, 2003, p.46)

Outro aspecto a salientar é que a sala de aula é o local em que se efetiva o resultado do ensino: a construção do
novo, a criação de uma atitude questionadora, de busca e inquietação. Local de construção e socialização de conhecimento e
cultura.

126
Estudiosos salientam que é no decorrer da aula universitária que o trabalho docente se torna mais evidente, pois é
ali, no espaço físico para a realização do ensino formal e sistematizado, que o professor se encontra com o grupo de alunos. É
durante as aulas que os professores/alunos criam e recriam o processo educativo: tomam decisões quanto à concepção,
execução, avaliação e revisão do processo de ensinar, aprender e pesquisar, alicerçados na relação dialógica.
É importante pontuar a necessidade de inovar e as aulas desenvolvidas em ambientes não convencionais favoreçam
a troca de experiências mais concretas, possibilitando reconfigurações de saberes e novas relações com o conhecimento.
Outro aspecto a observar na formação profissional é a construção do projeto pedagógico, que necessita ser bem
delineado, interativo, evidenciando a preocupação com a formação integral do acadêmico. O comprometimento com o aluno
em formação será, sem dúvida, o diferencial de qualidade que toda instituição de ensino deve buscar atingir e melhorar
continuamente. O papel da universidade será à busca do novo, da reflexão crítica através do ensino e da investigação
científica, em todas as áreas do conhecimento. É essencial que a universidade crie espaços coletivos para um pensar
conjunto sobre as metas pretendidas com o ensino e aprendizagem, bem como sobre os recursos materiais disponíveis, os
talentos humanos necessários e os avanços e dificuldades para alcançá-las.
Esses momentos de reflexão coletiva são fundamentais para a construção de um projeto pedagógico genuíno que
atenda às necessidades daquele grupo específico de sujeitos.
A universidade deveria também criar um espaço que possibilitasse aos seus docentes a reflexão sobre sua própria
prática, visando com isso à melhoria da qualidade de todos os seus cursos e de seus professores em atividade.
Mediante essas colocações faz se necessário apontar alguns instrumentos metodológicos sob o enfoque teórico
sócio–histórico, capazes de auxiliar nesta construção dialógica proposta por Bakhtin. Um deles é a observação:
A observação, numa pesquisa de abordagem sócio-histórica, se constitui pois em um encontro de muitas vozes: ao se
observar um evento depara-se com diferentes discursos verbais, gestuais e expressivos. São discursos que refletem e
refratam a realidade da qual fazem parte construindo uma verdadeira tessitura da vida social. ( FREITAS, 2003, p.33).

Nesta visão o professor não é mero observador que se detém apenas em descrever as situações ocorridas em sala de
aula, mas constitui-se parte delas. Significa portanto, uma imersão no mundo da universidade em que está inserido,
compartilhando os acontecimentos, integrando esse processo e buscando melhorar o meio em que vive através de sua
influência nele e nas pessoas que interagem com ele. E assim, podendo produzir conhecimentos e interrelações novas, ser
agente de mudança não somente a partir do seu olhar, mas também através do olhar, das vozes , dos significados de outras
pessoas, interagindo com a história, cultura, ideologia e vivência dos demais participantes dos acontecimentos.
A observação dialógica possibilita ao professor novos desafios de construção de suas aulas e de interação com a
universidade, com o compromisso de educar cidadãos competentes, capacitados a atuar numa sociedade historicamente
determinada e prontos para nela intervirem. Permitirá ao professor não ser apenas um interprete de livros e dos
conhecimentos, mas também responsável pela criação de seu próprio caminho, adequando o saber com o mudar resultando
numa educação questionadora e flexível. Terá êxito em cumprir essa trajetória o professor imbuído de preocupações
formativas e informativas, voltadas para o processo educacional abrangente.
Para tanto o professor deverá mostrar-se acessível a esse processo, questionando seu pensar e agir profissional. Há
professores que tendem a resistir a esse tipo de abordagem considerando-se prontos e aptos para o exercício da docência.
Muitas vezes, a rotina e a repetição cristalizam posturas profissionais que comprometem e até mesmo impedem uma reflexão
sobre essa prática. A reflexão consiste em elemento fundamental no desempenho acadêmico, encontrando-se professores com
posturas diferenciadas frente à educação. Porém, ainda existem muito educadores descomprometidos e acomodados, alheios
a qualquer movimento para o aperfeiçoamento de seu trabalho em sala de aula e mesmo na universidade.
Um outro instrumento que contribui na construção desse caminho metodológico são os contatos em sala de aula
ou mesmo fora dela que realizamos com os alunos, que permitem a compreensão da linguagem do outro. Toda palavra tem
intenções e significados; para compreender o discurso (o texto falado ou escrito), o contexto precisa ser entendido.
Bakhtin aborda:
Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele vê; devo colocar-me
em seu lugar, e depois de volta no meu lugar, contemplar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo
fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber,
de meu desejo e de meu sentimento (BAHKTIN in FREITAS, 2003, p. 35).

Este voltar ao seu lugar é imprescindível ao professor, pois possui condições teóricas e técnicas de dar forma e
complementar o que ouviu, de perceber seu aluno num papel ativo num contexto maior. Acredito ser este mais um grande
desafio para o professor colocar-se no lugar do outro e perceber o mundo através de seus valores e voltar novamente para o
meu lugar . Esta forma de conceber uma visão plural é o Bakhtin considera com o excedente da visão.
Nos contatos coletivos, a situação dialógica é enriquecida: as análises e interpretações que podem ser realizadas
são mais profundas, oportunizando maior conhecimento do grupo a ser trabalhado.
Discorremos ainda, sobre a Avaliação como outro instrumento desta proposta metodológica, que permite o
educador com sua sensibilidade, flexibilidade e capacidade de observação, criar um espaço diferenciado de interlocução
entre professor e aluno. Através da interação entre os vários sujeitos, torna-se possível a incorporação dos conhecimentos já

127
sistematizados e o reconhecimento de sua determinação histórica, ao mesmo tempo em que esse sujeito se reconhece como
participante do processo histórico de produção do conhecimento.
Assim, o resultado do aprendizado é compartilhado por todos os alunos num diálogo estabelecido entre os
envolvidos, podendo ter possibilidades efetivas de construção do conhecimento.
Neste processo o professor terá oportunidade de avaliar o desenvolvimento e aprendizagem do aluno considerando
sua cultura, seus hábitos, costumes, evolução, valores próprios, como também se auto avaliar, verificar a eficácia das
situações de ensino-pesquisa utilizadas, revelando erros e acertos e redirecionar sua atuação dentro de seus propósitos
voltados para a formação de sujeitos críticos e criativos, futuros profissionais. Afinal, ensinar é uma ação que exige
permanente investigação e, consequentemente, permanente aprendizado.
É possível a organização de processos de avaliação mais formais, nos quais o professor possa fazer uso de
atividades ou instrumentos que auxiliem em suas análises, que lhe ofereça apoio para reduzir a influência de seus
preconceitos, suas preferências, antipatias e simpatias.
São utilizadas entre outras:
As fichas de registro de grupo-classe: que assume um caráter menos formal e facilita a análise da participação dos
alunos, podendo o professor acompanhar seus desenvolvimentos coletivos;
Trabalhos práticos, confecção de ensaios teóricos, monografias, exercícios, exposições orais: são formas diferentes
de verificar o grau de alcance dos objetivos e detectar dificuldades relativas ao processo ensino- aprendizagem;
Auto – avaliação e co – avaliação: são formas que somadas as demais contribuem para desenvolver pessoas críticas,
autônomas e responsáveis. É um processo muitas vezes lento, pois exige dos alunos certo grau de amadurecimento e os
resultados serão obtidos em longo prazo, através do diálogo, da discussão aberta e principalmente da maneira que os
resultados são encaminhados.
Provas com questões abertas, fechadas, testes, exames escritos, orais: são alternativas que podem integrar a
avaliação do aluno, desde que sejam muito bem elaboradas e seus resultados não se transformem em “ juízo final” para o
aluno, mas que tenha um peso muito menor que atualmente lhe é atribuído e que se somem aos resultados de outros
instrumentos. Pode ser realizada ao final de cada unidade desenvolvida, como um exercício individual de apreensão do
conhecimento, perdendo esse caráter disciplinador autoritário que o seu próprio nome carrega.
Essas formas contribuem, também, para a auto- avaliação do professor e se tornam eficientes em salas de aulas
compostas por uma quantidade adequada de alunos, facilitando o ensino – aprendizagem.
Outro aspecto que se faz necessário enfatizar é que a formação profissional dos alunos encontra-se localizada na
forma com que cada Universidade preocupa-se com a qualidade deste futuro profissional.
Neste sentido, muitas Universidades necessitam reorganizar suas diretrizes, sua política de ensino, centrando-se nas
atividades de pesquisa e oportunizando o exercício da investigação, da construção do conhecimento, da atuação profissional,
da avaliação consciente de seu papel de formadora de profissionais atendendo a demanda da sociedade.
Assim, a criação de espaços coletivos como os núcleos de estudos e pesquisas são importantes, possibilitando
aos seus docentes e alunos a reflexão teórico/prática, num trabalho conjunto visando à construção de uma nova práxis
educacional e profissional.
Acreditamos que os conteúdos teóricos construídos por Bakhtin não constituem uma resposta completa e acabada,
mas norteiam de forma significativa “um jeito” de caminhar. Um jeito de caminhar em constante transformação porque o
homem, é “ fundamentalmente questionado em sua história em seu devir.” (JAPIASSU, in FREITAS, 2003, p.17).
Em nossas aproximações conclusivas na elaboração deste ensaio, consideramos a experiência da reflexão em grupo
bastante enriquecedora, nos fez pensar e refletir sobre o fazer profissional, a docência, respondendo a algumas indagações
comuns decorrentes do cotidiano profissional de cada um, o que gerou novas perspectivas e desafios para a construção do
projeto de trabalho docente na contemporaneidade, reafirmando o nosso compromisso com as reais necessidades para
formação profissional dos discentes.

Referências
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Alencastro et al. (Org.). Pedagogia universitária: a aula em foco. Campinas, SP: Papirus,.
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VEIGA, Ilma Passos Alencastro et al. (Org.). (2000). Pedagogia universitária: a aula em foco. Campinas, SP: Papirus

Acesso dos jovens das camadas populares ao Ensino Superior no Brasil: políticas
e programas do governo federal desde 1990

Maria Rita Aprile


Universidade Bandeirante de São Paulo
ritaaprile@hotmail.com

Rosa Elisa Mirra Barone


Universidade Bandeirante de São Paulo
rebarone@uol.com.br

Resumo: O estudo compara as diferentes políticas públicas de acesso ao ensino superior, propostas no Brasil, desde 1990, para os jovens das
camadas populares. Tem o objetivo de verificar as suas articulações com o momento sócio-produtivo em que foram gestadas e o papel das
agências internacionais, como o Banco Mundial (BIRD). Foram analisados o Programa de Crédito Educativo (CREDUC) de 1992; o Fundo
de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) de 1999; e o Programa Universidade para Todos (PROUNI), implementado em
2005. São programas de financiamento e/ou concessão de bolsas para o acesso de estudantes menos favorecidos às instituições de educação
superior privadas. O recente PROUNI concedeu no primeiro semestre de 2008, 106.134 bolsas, sendo 52.977 integrais e 53.157 parciais. O
segundo prevê a distribuição de 119.529 bolsas, sendo 47.0006 integrais e 72.523 parciais, o que indica a dimensão do Programa e a
relevância deste estudo cuja perspectiva analítica e metodológica se insere no rol da pesquisa qualitativa e empírica. O ponto de partida foi a
análise dos pressupostos teóricos e políticos que orientaram os programas no contexto histórico. O estudo será desdobrado por meio de
pesquisa de campo com amostra de bolsistas de uma universidade de grande porte de São Paulo para levantar informações sobre os impactos
do curso superior em sua trajetória profissional. A investigação discute a relação entre público e o privado e o discurso oficial que considera
uma política de educação inclusiva programas, como o PROUNI, sem considerar a qualidade do ensino oferecido pelas instituições
aderentes.

Introdução
Este estudo discute as políticas públicas de acesso ao ensino superior propostas e, em curso, desde o final dos anos
de 1990, no Brasil, com o objetivo de verificar os seus principais desdobramentos para inclusão profissional da população
atendida, no mundo do trabalho. Embora a pesquisa priorize a implantação do Programa Universidade para Todos
(PROUNI), implementado em 2005, pelo Governo Federal, foi realizado um levantamento das políticas anteriormente
propostas (CREDUC e FIES) com o foco na população de baixa renda. Tais propostas são analisadas, aqui, sob uma
perspectiva histórica, aspecto que nos remete à reconstrução de parte da história do ensino superior no país.
O PROUNI, por meio da oferta de bolsas de estudo, visa criar condições de acesso ao ensino superior privado para
estudantes oriundos em sua maioria das camadas populares ou de estratos da pequena classe média e que não dispõem de
recursos para assumir os custos de uma universidade particular, haja vista que não conseguiram aprovação nas universidades
públicas. No tocante à opção metodológica, o estudo se insere no rol da pesquisa qualitativa, empírica, condição que exige
uma profunda articulação entre a teoria, a técnica de pesquisa e a metodologia propriamente dita. A opção pelo trabalho
empírico justifica-se pelo próprio recorte do objeto de pesquisa: conhecer, analisar e verificar os impactos do PROUNI, eixo
que exige uma busca exaustiva de referências, dadas, sobretudo, pelo levantamento documental e pela realidade objetiva,
pelo cotidiano do trabalho e pelas percepções dos diferentes sujeitos envolvidos em todo o processo.
O estudo parte da revisão da literatura sobre o tema que, aliada aos dados secundários coletados, fornece elementos
essenciais para a realização do estudo de campo por meio de diferentes e complementares técnicas de pesquisa. A primeira
etapa conta com o levantamento bibliográfico e documental. Posteriormente, será realizado um survey, respeitando dois
momentos específicos. No primeiro, serão identificados os pressupostos que orientaram as Instituições de Ensino Superior
(IES) na sua adesão ao PROUNI, com destaque para as suas características. Na segunda, o levantamento de dados está sendo
feito por meio de questionários e termo de consentimento com amostra de bolsistas de duas IES de grande porte de São Paulo
que, por sua vez, constituem o universo a ser pesquisado.

129
O trabalho, ora apresentado, constitui-se na parte inicial da pesquisa, em curso. A primeira seção sintetiza alguns
elementos da história do ensino superior, no Brasil. A segunda seção apresenta os aspectos que contribuíram para a
emergência do PROUNI, a partir de elementos que conformam o cenário das políticas públicas para a educação superior. A
terceira seção tem o foco no PROUNI, atentando para as diferentes perspectivas - como política focalizada e compensatória,
privatista e como ação afirmativa. Alguns questionamentos e considerações dão corpo a terceira seção.
As informações obtidas resgatam a discussão entre as relações entre o público e o privado, além de apontar
contradições entre o discurso oficial que considera o PROUNI uma política inclusiva, ao transferir recursos de isenção fiscal
para estratos populacionais menos favorecidos e a qualidade do ensino oferecida pelas universidades aderentes ao Programa.

Ensino superior no Brasil: elementos de sua história


A questão do acesso ao ensino superior, no Brasil, pressupõe uma breve incursão na história da educação superior
no sentido de identificar e delimitar alguns marcos significativos de sua trajetória, posto que direta ou indiretamente
concorreram eles para o delineamento da atual configuração das universidades brasileiras. De início, é importante destacar
que o país nunca teve um modelo próprio de universidade, valendo-se sempre de exemplos e de experiências de países
centrais, podendo-se constatar, nos dias atuais, uma superposição de modelos entre as IES públicas e privadas.
Desde o seu advento, a educação superior, no país, esteve voltada para os filhos das famílias da elite social e
econômica. No Brasil Colônia, os jovens eram enviados para estudar nas universidades européias, especialmente, em
Coimbra, Portugal. Com raras exceções, alguns jovens vindos de famílias menos favorecidas conseguiam freqüentar cursos
superiores por meio do ingresso na vida religiosa e, portanto, com o apoio da Igreja. Por volta de 1808, com a chegada da
Corte portuguesa, registra-se a criação das primeiras escolas isoladas de educação superior, no país, concebidas à luz do
“modelo napoleônico”, centrado em cursos e faculdades, estruturados de forma independente e não propriamente a partir da
concepção de universidade. O “modelo”, centralizado do ponto de vista administrativo, mas dissociado em relação à
integração das faculdades, via no ensino superior um importante mecanismo para formar os profissionais necessários ao
funcionamento da sociedade e, ao mesmo tempo, um importante instrumento para disseminar as doutrinas vigentes
(TRINDADE, 1998). Esses cursos e faculdades se destinavam principalmente à formação dos quadros necessários à
burocracia do Estado, em consonância com as suas doutrinas.
Vale destacar que o Brasil esteve fora do debate sobre um novo projeto de universidade empreendido por países
europeus, posto que somente em 1920, portanto, bastante tardiamente (CUNHA, 2007), é criada a Universidade do Rio de
Janeiro, efetivamente a primeira do país, que incluía uma confederação de escolas – Medicina, Politécnica e Direito
(FÁVERO, 1999). Alguns anos mais tarde, em 1927, é inaugurada a Universidade Federal de Minas Gerais, à luz do modelo
neonapoleônico, aglutinando cinco faculdades – Engenharia, Medicina, Direito, Farmácia e Odontologia. Tratava-se de um
modelo de administração centralizada, que pressupunha alguma coordenação em relação aos cursos de formação profissional.
Na prática, esses cursos - concebidos sob a ótica da ciência positivista que delimita rigidamente os campos de conhecimento -
se apresentavam desintegrados e independentes (ANASTASIOU, 2001). Até hoje, esse modelo de inspiração napoleônica
influencia as universidades brasileiras tanto em relação à oferta de cursos e programas, quanto ao não incentivo ao
desenvolvimento de processos divergentes de pensamento.
No contexto da “revolução de 1930”, são registrados dois projetos de universidade com propostas assemelhadas: o
da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e o da Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1935. Em que pese, na
UDF, as idéias liberais-progressistas de seus mentores quanto à criação de uma instituição autônoma, responsável pela
produção do “saber desinteressado” e pela formação de indivíduos críticos e “cultores da liberdade”, a proposta não se
consolida em razão de pressões de segmentos conservadores da sociedade, entre eles, a Igreja e o próprio Estado, que a
consideravam uma ameaça à sociedade. Na USP, é criada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como um “centro
integrado de busca e de crítica do saber”, sob a inspiração do modelo germânico humboldtiano, pautado na concepção da
indivisibilidade entre o saber, o ensino e a pesquisa (TRINDADE, 1998). A proposta sofre oposição das demais instituições
superiores de formação profissional (Direito, Engenharia, Medicina e Agricultura) cuja autonomia, estrutura, mentalidade e
tipo de ensino certamente sofreriam limitações sob essa nova concepção de universidade. Por quase três décadas, de 1934 a
1959, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras resiste às pressões tal qual “um estado dentro do estado”, mas, desprovida
de poder político, a proposta acaba por se descaracterizar e se tornar impraticável. Nessas condições, a Universidade paulista
sobrevive como uma federação de escolas, incorporando, pois, traços do modelo napoleônico profissional (SGUISSARDI,
2004).
No início dos anos de 1960, as várias correntes da intelectualidade brasileira e os estudantes discutem uma nova
proposta de universidade para o país em meio a um crescimento espontâneo e desordenado das IES. Em 1962, é fundada a
Universidade de Brasília (UnB) que, considerada um “projeto coletivo da intelectualidade brasileira”, reacende a idéia de um
modelo de universidade baseado na associação do ensino e da pesquisa e de uma estrutura integrada por meio da coordenação
das atividades das várias unidades de ensino. Vista como uma inovação face ao modelo tradicional baseado em faculdades e
escolas independentes e consideradas auto-suficientes, a experiência da UnB foi logo abortada pelo golpe militar de 1964.
Considerada foco de deliberação de idéias subversivas, seus idealizadores foram demitidos e muitos deles obrigados a se
exilar no exterior. Inúmeros professores foram detidos e outros se demitiram em sinal de protesto contra a intervenção militar
(CUNHA, 2007).

130
Ainda, no início da década de 1960, o movimento dos estudantes liderado pela União Nacional dos Estudantes
(UNE) defendia uma reforma universitária como parte das Reformas de Bases defendidas pelos setores progressistas do país.
Uma das principais bandeiras de luta dos estudantes era a democratização da universidade, traduzida principalmente pela
democratização do acesso ao ensino superior, o que deveria ocorrer pela ampliação do número de vagas, pela rediscussão dos
exames vestibulares, entre outros aspectos (SGUISSARDI, 2004). Tal qual aconteceu com os gestores e docentes da UnB,
também alguns estudantes foram exilados, outros detidos e torturados, sob a acusação de conspirarem contra a ordem
estabelecida pelo novo regime do país.
Em 1968, o governo militar implanta a Reforma Universitária por meio da Lei 5.540, sob inspiração do acordo
entre o Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid), que
impunha diretrizes à produção do conhecimento e ao processo de pesquisa a serem realizados pelas universidades brasileiras.
A legislação da ditadura militar rompe com o modelo neo-humboldtiano na medida em que a responsabilidade pelo
desenvolvimento de pesquisas passa a ser da pós-graduação, enquanto que à graduação caberia a formação dos quadros de
profissionais especializados para atender às demandas do “modelo” econômico então denominado de milagre brasileiro. Com
foco no mercado e a cisão entre ensino e pesquisa, no âmbito da graduação e da pós-graduação, que leva a uma quase
estagnação do processo de criticidade no âmbito dos cursos de graduação, a Reforma resgata o caráter arcaico do modelo
napoleônico (ANASTASIOU, 2001).
Uma avaliação dos vinte anos que se seguiram à implantação da Reforma indicam, de um lado, a consolidação da
pós-graduação e a estruturação da carreira docente nas universidades federais e, de outro, a não efetivação do propósito de
consolidação de um modelo de universidade para oferta da educação superior, haja vista a ampliação das IES isoladas ou
aglutinadas em federações (VIEIRA, 1991).
É importante destacar que, desde meados dos anos de 1990, o Estado vem incentivando e criando facilidades para a
abertura e expansão de IES privadas. Em contrapartida, tem restringido o apoio à manutenção e expansão do setor público
federal, que também não goza de autonomia administrativa e financeira sobre seu orçamento. As IEs privadas se concentram
sobretudo na região Sudeste onde, entre outros fatores, é maior a demanda de alunos, de renda e de lucro. Entre 1994 e 2000,
verifica-se um aumento de 38% de IES, no país, montante em que as privadas apresentaram um crescimento de 58%,
enquanto que as públicas apresentaram uma diminuição de 23% (SGUISSARDI, 2004).
A partir de meados dos anos de 1990, a legislação federal por meio dos Decretos N° 2207 e N° 2306 de 1997 e N°
3.860 de 2001, concebidos sob inspiração neoliberal e influência efetiva do Banco Mundial, estabelece que a
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão se aplica apenas às universidades, deixando desobrigadas as IES, o que
contraria o artigo 207 da Constituição Federal, que estabelece o vínculo entre as três instâncias. Tal situação dá indícios da
existência de uma superposição ou dualidade de modelos de universidades (SGUISSARDI, 2004).
Em 2000, de um total de 1.180 IES, no país, apenas 71 eram públicas, as demais assim se dividiam: 884 IES
isoladas, 140 Centros Universitários e/ou Faculdades Integradas e 85 universidades privadas, em que mais de 60% tinham
fins lucrativos. Nesse contexto, é bem provável que a maior parte delas, com raras exceções, se inclua no modelo neo-
napoleônico haja vista a não obrigatoriedade de apresentar uma estrutura consolidada de pesquisa e de associar ensino,
pesquisa e extensão. Desse grupo, certamente ficariam de fora as IES públicas e algumas privadas que, conforme o modelo
neo-humboldtiano, deveriam atender os requisitos necessários para a produção do conhecimento oriundo da pesquisa
(SGUISSARDI, 2004). Para não se cair ingenuidade de um raciocínio maniqueísta, é bem provável que os dois modelos
convivam ou estejam superpostos em uma mesma instituição.
Nesse contexto, Trindade (1998) nos chama a atenção para a crise da universidade que, para além do público e do
privado, é a crise da instituição na atual sociedade do conhecimento cuja ênfase é dada à formação de profissionais
polivalentes para o mercado. Também Sguissardi (2004) nos chama a atenção para um modelo emergente de universidade
“pública” e privada, que denomina de neoprofissional, heretônomo e competitivo. A característica neoprofissional se revela,
entre outros fatores, pelo aumento do número de IES particulares e pela evolução de seu número de matrículas, na ordem de
121%, entre 1994 e 2000 contra 36% nas públicas, o que indica um crescimento das universidades ditas profissionais em
relação às universidades que associam ensino e pesquisa. A heteronomia diz respeito à redução da autonomia das
universidades, especialmente nas públicas federais, em que a prática estaria cada vez mais submissa à lógica do mercado e do
Estado. A competitividade não se restringiria ao tipo de gestão assumido pelas IES particulares, ou seja, de uma empresa
tipicamente comercial, mas, sobretudo, como parte do problema econômico do país em que a educação superior é
considerada fator de competitividade no mundo globalizado.
A despeito dos modelos de universidade encontrados no cenário brasileiro, é importante destacar que a educação
superior continua sendo um segmento educacional voltado a uma minoria, haja vista os dados do último censo nacional de
2000. De uma população de 170 milhões de habitantes (86 milhões feminina e 84 milhões masculina), menos de 5%, isto é,
5.890.631 (2.689.726 homens e 3.200.905 mulheres) teve acesso ao ensino superior e, desse montante, apenas 5.485.710
tinham completado cursos de graduação e, somente, 302.043 tinham diplomas de pós-graduação (Mestres e Doutores).
É nesse contexto que se insere a discussão sobre o acesso ao ensino superior temática que envolve não só os
estudos das políticas públicas e dos mecanismos que levam à tomada de decisão, como também suas implicações nos
modelos de avaliação em educação.
Os programas de acesso ao ensino superior inserem-se no âmbito das políticas inclusivas compensatórias posto que
visam corrigir as lacunas deixadas pelas insuficiências das políticas universalistas. Esses programas, como destaca Cury

131
(2005), buscam equilibrar uma situação sempre que a balança tende a favorecer grupos hegemônicos no acesso aos bens
sociais, conjugando, ao mesmo tempo, os princípios de igualdade com o da eqüidade, compreendida como a melhor
escolaridade. Buscam também atender à dimensão de uma inserção profissional mais qualificada mediante uma base maior
de inteligência, visando ao desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Dentre as políticas que têm o foco no acesso ao ensino superior destacam-se o Programa de Financiamento
Estudantil (FIES) e o Programa Universidade para Todos (PROUNI). Voltados para a população de baixa renda, são
considerados políticas inclusivas, compensatórias, focalizadas e afirmativas.
Ao priorizar a análise do PROUNI, o pressuposto deste estudo é que este Programa, ao mesmo tempo em que
produz mudanças tanto para a IES como para os alunos bolsistas, é um desdobramento das políticas públicas focalizadas e de
caráter compensatório. Considerando as regras que garantem a participação de pessoas de diferentes etnias, a proposta do
PROUNI pode também ser identificada como uma ação afirmativa. Integra o escopo do trabalho a análise sobre as relações
entre o público e o privado no âmbito do Programa.

Políticas Públicas para a Educação Superior


A definição e implementação de uma política de acesso à universidade integram um rol de demandas oriundas, em
larga medida, do cenário produtivo. A solicitação de uma força de trabalho mais qualificada e apta a “aprender a aprender” e
a responder às qualificações que vão sendo forjadas, desenvolvendo novas competências exigidas para a vida na sociedade
contemporânea, em contraposição aos requerimentos colocados pelo modelo taylorista/fordista, são elementos que permeiam
a proposição das políticas de educação. A solicitação do cumprimento de funções mais cerebrais como raciocínio lógico,
resolução de questões surgidas no cotidiano do trabalho, disposição de estar sempre aprendendo, e a cobrança de um novo
padrão atitudinal, qual seja, uma força de trabalho mais cooperativa, autônoma e comunicativa, são aspectos que se
coadunam com a ampliação da escolaridade. À educação é atribuído o papel estratégico de promover o desenvolvimento das
novas capacidades requeridas do trabalhador.
A discussão sobre a emergência e implantação das propostas de acesso dos jovens das camadas populares ao
Ensino Superior no Brasil a partir dos anos de 1990 insere-se no quadro das políticas públicas de educação superior nos
conduz a recuperar não apenas questões ligadas à definição, manutenção e/ou (re)direcionamento das políticas em curso, mas
possibilita reconstruir, mesmo que parcialmente, suas ligações com as concepções neoliberais. Nesse sentido, é preciso
considerar que, desde meados da década de 1970, o quadro sócio-político e econômico do país provocou mudanças na
definição do caráter das políticas públicas, na relação entre o público e o privado e nos debates sobre a redefinição do papel
do Estado, tocando na problemática do emprego e desemprego. Ao mesmo tempo, esses temas ganharam destaque nos
debates e proposições feitas por agências multilaterais e organismos internacionais e permanecem presentes nos debates de
diferentes setores e segmentos da sociedade, interagindo com as políticas educacionais, sobretudo nos países em
desenvolvimento.
Em decorrência das solicitações que emergem desse cenário em contínua mudança, definiram-se vínculos quase
lineares entre a escolaridade da população e a sua capacidade de inserção e permanência no mercado de trabalho, bem como
com o seu desempenho produtivo. Trata-se de novas solicitações feitas à educação e à escola, aos trabalhadores, tendo em
vista a busca de maior produtividade, qualidade e competitividade, marcas de uma economia globalizada. Esse processo de
mudanças, associado a uma grande discussão sobre o papel do Estado e à crise do Welfare State, foi um dos pilares da
constituição de uma agenda de reformas, sob inspiração neoliberal. O cenário brasileiro, no final da década de 1970 e início
dos anos de 1980, foi marcado por duas tendências complementares e, muitas vezes conflitantes: as conseqüências das
medidas de caráter neoliberal, identificadas por medidas de ajuste estrutural, e os processos de redemocratização, com a
implementação de inúmeras reformas.
O papel do Estado em um contexto de ajustes estruturais está estreitamente relacionada aos lemas definidos pelas
agências multilaterais em relação às políticas públicas - focalizar, descentralizar e privatizar - temas presentes nos debates
sobre as políticas públicas na década de 1990 e, também, no quadro atual. Um exame dos programas e recomendações das
agências multilaterais, como o Banco Mundial, ou de projetos e políticas elaborados por vários governos, mostra a
preocupação com esses temas. Segundo essas agências, uma política focaliza e racionaliza a alocação de recursos e os
resultados são rapidamente visíveis. Autores críticos desses princípios consideram que a política de focalização, em
contraposição às políticas universalistas apresenta
[ ] várias vantagens para as elites conservadoras, que geralmente conduzem as reformas. Em primeiro lugar os
benefícios focalizados reduzem custos; os setores no extremo da pobreza são conquistáveis com recursos limitados.
Afinal, pobre custa pouco, muito pouco. Em segundo lugar, racionalizam a velha política de clientela. Benefícios
dirigidos e particularizados não correm o risco político de serem confundidos com medidas que criam direitos
universais ou bens públicos, sempre submetidos, estes últimos, a demandas de extensão e generalização. Permitem
também a distribuição mais discricionária dos recursos. Além de seletivos (e por causa disso), têm mais chance de
impor condições à concessão, dando forma mais clara às manifestações de gratidão dos beneficiados (MORAES, 2001,
p.66).

A política pública, ao focalizar grupos, recursos e benefícios, substitui a política de acesso universal pelo acesso
seletivo, posto que:

132
O acesso universal faz com que os serviços sejam considerados direitos sociais e bens públicos. O acesso seletivo
permite definir mais limitadamente e discriminar o receptor dos benefícios. [ ] As políticas sociais do neoliberalismo,
por sua vez, aproximam-se cada vez mais do perfil de políticas compensatórias, isto é, de políticas que supõem, como
ambiente prévio e ‘dado’, um outro projeto de sociedade definido em um campo oposto ao da deliberação coletiva e de
planificação. O novo modelo de sociedade é definido pelo universo das trocas, pela mão invisível do mercado
(MORAES, 2001, p.66).

Ao focalizar grupos específicos, o modelo preconiza a idéia de “dar a quem mais precisa”, compensando ou
reparando seqüelas do passado, idéia presente desde a Antiguidade Clássica que destacava o “tratar desigualmente os
desiguais” (CURY, 2005, p.15). Esse tema associa-se aos pressupostos que orientam as ações afirmativas, uma vez que tais
ações planejam e atuam no sentido de promover a representação de grupos inferiorizados na sociedade e lhes conferir uma
preferência para assegurar seu acesso a determinados bens, econômicos ou não (MOEHLECKE, 2002, p.200).
Outro aspecto a ser destacado refere-se ao crescimento das ações sociais e de caráter público no âmbito da
iniciativa privada, entre elas, iniciativas privadas no campo da educação básica pública como a “adoção” de escolas públicas
e as parcerias entre as empresas e as escolas, que já contam com muitos adeptos e reiteram o pressuposto neoliberal sobre a
inoperância/insuficiência do Estado na gestão escolar. Esse quadro, de certo modo, nos remete à idéia de privatizar, presente
nas políticas públicas do contexto neoliberal – que pode ser feita pela transferência ao setor privado da propriedade dos entes
estatais (inclusive os entes provedores de políticas sociais, tais como saúde, educação, moradia, assistência social, etc.), bem
como pela transferência da operação e/ou gestão destes serviços (MORAES, 2001, p.67).
A redução da capacidade de investimento do Estado na educação superior e outras mudanças, como a interrupção
do processo de expansão física da rede federal de ensino superior, em curso, até o final da década de 1970, com repercussões
em sua oferta, produziram resultados que vieram reforçar as idéias de focalização e privatização acima destacadas, permeadas
pela emergência das ações afirmativas. O foco definido para as políticas públicas do projeto neoliberal foi a educação básica,
face a pressão social pela expansão e melhoria desse nível de ensino.
No final dos anos de 1980, no governo Collor, as análises sobre o ensino superior destacam o que consideram suas
distorções: formação de profissionais desvinculada da geração de riquezas; insuficiente formação na área de ciências exatas e
gasto excessivo, em detrimento dos demais níveis de ensino. Para dar conta dessas distorções, foram estabelecidas algumas
metas: ampliação do acesso; respeito à autonomia universitária; maior estímulo ao desenvolvimento de pesquisas entre
universidades e empresas; ampliação dos programas de pós-graduação; capacitação e valorização dos profissionais de
educação. No entanto, o que ocorreu foi o estabelecimento de medidas de favorecimento à expansão do ensino superior
privado, situação que se consolidou ao longo dos governos Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2002), quando foram
acelerados e facilitados os processos de autorização, reconhecimento e credenciamento de cursos e instituições pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE) (CORBUCCI, 2004).
Em síntese, dentre os fatores responsáveis pelo avanço do setor privado, no campo da educação superior, destacam-
se as imposições do ajuste fiscal dos anos de 1990, momento em que o governo federal não demonstrou capacidade para
ampliar os gastos com a educação superior, assumindo o compromisso com a educação básica.
Embora, em 2002, 70% do total das matrículas do ensino superior estivesse concentrado no setor privado, o modelo
de expansão do ensino superior proposto na década de 1990, centrado na iniciativa privada, mostrou limites que poderão
comprometer, em breve, a própria sustentabilidade da oferta, tendo em vista a baixa capacidade de demanda da sociedade e
dos índices de inadimplência dos estudantes matriculados nas instituições privadas. Ou seja, a simples ampliação da oferta de
vagas não é condição suficiente para a democratização do acesso ao ensino superior (CORBUCCI, 2004, p.684, 687).
Para preencher as vagas ofertadas pelas IES privadas, foi criado o Fundo de Financiamento do Ensino Superior
(FIES), em 1999 pelo Governo Federal, com o objetivo de ser auto-sustentado, substituir o Programa de Crédito Educativo
(PCE/CREDUC) e financiar o ensino superior de estudantes sem condições de arcar os custos de sua formação, que
estivessem regularmente matriculados em instituições privadas cadastradas no Programa e com avaliação positiva nos
processos conduzidos pelo MEC.

Programa de Crédito Educativo (PCE/CREDUC)


Criado nos anos de 1970, o Programa de Crédito Educativo (PCE/CREDUC) somente foi institucionalizado em 25
de junho de 1992 por meio da Lei nº 8436, quando passa a ser definitivamente administrado e supervisionado pelo MEC.
Baseado em experiências de outros países, o Programa tinha os seguintes objetivos: buscar a igualdade de
oportunidades educacionais; diminuir a evasão do ensino superior; proporcionar às camadas populares recursos financeiros
para cursar o ensino superior, dentre outros.
Inicialmente, o Programa definiu duas modalidades de empréstimo: manutenção e anuidade. A manutenção
buscava reduzir as dificuldades de sustento dos alunos em ambas as redes – pública e privada. A anuidade tinha seu valor
correspondente à anuidade estabelecida pela IES.
Com prazo contratual equivalente ao da duração média dos cursos, o CREDUC admitia, em casos especiais, a
ampliação por mais um ano. Quanto aos critérios de seleção dos candidatos, o MEC se baseava no índice de carência dos
interessados, definido pela renda bruta familiar do candidato, pelo número de componentes da família, dentre outros.

133
O Programa contou com financiamento de várias fontes como MEC, recursos próprios da Caixa Econômica Federal
e do Banco do Brasil, além da participação de bancos privados. Desde a sua criação na década de 1970, até meados de dos
anos de 1980, o Programa atendeu mais de um milhão de estudantes e, considerando a inadimplência em relação à quitação
dos empréstimos efetuados aos estudantes, por volta de 1983 o PCE/CREDUC estava praticamente falido. Para trazer auto-
suficiência ao Programa, duas grandes reformulações foram introduzidas: novas fontes de financiamento, como é o caso das
loterias em 1983, e a diminuição do período de carência, exigência de fiador e introdução de uma taxa de 6% acima da
correção monetária, em 1989.
Na década de 1990, o Programa enfrentou problemas de natureza político-operacional, entre eles, a baixa prioridade
dada pelo MEC e, em decorrência, a instabilidade dos recursos e a falta de clareza entre os papéis do MEC e da Caixa
Econômica Federal, bem como a avaliação insuficiente da qualidade das IES parceira do Programa. Além disso, a taxa de
retorno era baixa em oposição ao elevado custo operacional. O Programa financiou vagas pela última vez em 1997, ocasião
em que atendeu 58.709 estudantes.
As avaliações feitas indicam que, o Programa foi desativado no início da década de 2000 em razão da inexistência
de fiadores e de garantias de crédito, dificuldades operacionais na cobrança dos empréstimos, limitação das fontes de
recursos e o valor elevado das parcelas para a amortização da dívida contraída. Em decorrência, foram atendidos os alunos
que já tinham contraído os empréstimos em anos anteriores.
As alterações verificadas no cenário econômico influenciaram no esgotamento do modelo do CREDUC e, com
isso, o modelo deixou de contratar novos empréstimos mantendo apenas os aditamentos realizados anteriormente.

O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES)


O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES), criado em 1999, é um programa do Ministério
da Educação, operacionalizado pela Caixa Econômica Federal, instituição financeira estatal, destinado a financiar a
graduação no Ensino Superior de estudantes que não têm condições de arcar integralmente com os custos de sua formação
em até 100% do valor da parte da mensalidade devida pelo estudante à instituição de ensino1.
Para candidatar-se ao FIES, o aluno deve estar regularmente matriculado em instituição privada, cadastrada no
Programa e com avaliação positiva nos processos conduzidos pelo MEC. Não poderão se candidatar os alunos cuja matrícula
acadêmica esteja em situação de trancamento; que já tenham sido beneficiados pelo FIES; que sejam responsáveis por
inadimplência junto ao Programa de Crédito Educativo (PCE/CREDUC); beneficiários de bolsas integral ou parcial do
ProUni bem como em curso/habilitação/turno diferente daquele vinculado a sua bolsa; alunos cuja renda bruta total mensal
familiar seja inferior ao valor da mensalidade do curso a ser financiado. Essa restrição não se aplica aos bolsistas parciais de
50% do ProUni e aos bolsistas complementares de 25%, pois esse grupo não passa por processo seletivo para obter o
financiamento do FIES.
Algumas alterações foram introduzidas com a edição da Lei nº 11.552/2007 em relação ao FIES, buscando ampliar
o número de alunos atendidos pelo programa2.
O FIES tem registrado uma participação cada vez maior das IES e dos estudantes do país. Os números do processo
seletivo do segundo semestre de 2006, mostram que participam do FIES 1.110 mantenedoras, 1.513 IES, 2.059 campi,
23.035 cursos/habilitações, além de 449.786 estudantes beneficiados. No entanto, o FIES não consegue absorver a demanda e
sequer atinge 10% do total de alunos matriculados no setor privado. Mesmo assim, as análises centradas no FIES devem
levar em consideração os eixos que passaram a nortear as políticas públicas a partir de meados da década de 1990,
principalmente a idéia de focalização.
A partir de 2005, o FIES passou a conceder financiamento também aos estudantes selecionados pelo PROUNI para
recebimento da bolsa parcial de 50%, regularmente matriculados em cursos de graduação. O FIES pode ser utilizado por
estes estudantes para pagamento de 25% do valor da mensalidade. Concebido em 2004, no âmbito do governo federal, e
implementado em 2005, o PROUNI visa criar condições para o acesso de estudantes carentes ao ensino superior, por meio da
oferta de bolsas de estudo, de diferentes modalidades, para instituições mantidas por iniciativa privada. Os bolsistas parciais
do PROUNI não participam dos processos seletivos regulares do FIES, sendo designados períodos específicos para concessão
do financiamento.

1
Ao longo do curso, o beneficiado do financiamento se compromete a pagar, a cada três meses, o valor de R$ 50,00 (cinqüenta reais), que vai sendo abatido de
seu saldo devedor, sobre o qual incidirá taxa de juro contratada. Após o término do curso o beneficiário conta com um período de carência de seis meses antes
do início do pagamento das prestações, permitindo que o aluno possa recompor seu orçamento após a graduação. Nesses seis meses, o aluno continua pagando
apenas R$ 50,00 por trimestre e após o período de carência, o financiamento começa a ser amortizado. Nos doze primeiros meses a prestação será igual ao valor
da última mensalidade. Terminado esse período, o saldo devedor é dividido em prestações iguais, pelo prazo de duas vezes o período de utilização do
financiamento.
2
Aumento do percentual de financiamento para até 100% no caso dos bolsistas parciais de 50% do ProUni; alongamento do prazo de pagamento para até duas
vezes o tempo do financiamento. Criação da Fiança Solidária, uma alternativa para facilitar o ingresso no FIES; criação de um prazo de carência de 6 meses para
o início do pagamento. Maior percentual de financiamento para os cursos com melhor avaliação pelo MEC e com maior empregabilidade; aumento do percentual
de financiamento de 50% para 75% no caso dos estudantes não bolsistas do ProUni; possibilidade de que a universidade possa ser fiadora dos estudantes do
FIES; opção de desconto em folha de pagamento como garantia ou forma de pagamento do contrato; extinção da dívida do FIES em caso de morte ou invalidez
permanente do estudante financiado.

134
A emergência do PROUNI
Em 2003, no início da gestão do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o MEC desencadeou o processo de Reforma
da Educação Superior, visando: democratizar o acesso ao ensino superior; inserir a universidade no projeto de
desenvolvimento nacional; refinanciar a universidade pública; transformar a universidade pública em referência para toda a
educação superior; estabelecer nova regulação entre os sistemas público e privado. O PROUNI, uma das primeiras iniciativas
no âmbito da Reforma, pode ser analisado como desdobramento da relação posta aos setores público e privado, como uma
política focalizada, de caráter compensatório e, de certa forma, como uma ação afirmativa.

O Programa Universidade Para Todos – PROUNI no campo das políticas públicas


Instituído em setembro de 2004, o PROUNI visa criar condições para o acesso de estudantes carentes ao ensino
superior, por meio da oferta de bolsas de estudo, de diferentes modalidades: bolsa de estudo integral concedida a brasileiros
não portadores de diploma de curso superior, cuja renda per capita não exceda o valor de até um salário mínimo e meio; bolsa
de estudo parcial de cinqüenta por cento concedida a brasileiros não portadores de diploma de curso superior, cuja renda
familiar per capita não exceda o valor de até três salários mínimos.
Implantado em 2005, o PROUNI insere-se em um contexto no qual apenas 13% dos jovens de 18 a 24 anos estão
matriculados em IES, segundo dados da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios, PNAD (2003). No conjunto dos países
da América Latina, o Brasil apresenta um dos mais baixos índices de acesso, comparado com a Argentina (cerca de 40%),
Venezuela (26%) e Chile (20,6%). Tal situação se configura como particularmente desafiadora quando se toma como
referência a meta definida pelo Plano Nacional de Educação de 2001, que propõe prover até o final da década a oferta de
educação superior para, pelo menos, 30% da faixa etária de 18 a 24 anos.
Além da renda per capitaI, os critérios que norteiam a inscrição do aluno no PROUNI para concorrer a uma bolsa
de estudos são os seguintes: ter participado do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)3 em 2002, 2003, 2004 ou 2005;
ter cursado o ensino médio completo em escola pública; ter cursado o ensino médio completo em instituição privada com
bolsa integral; ser portador de necessidades especiais; ser professor da rede pública de educação básica, no efetivo exercício
do magistério, integrando o quadro de pessoal permanente da instituição, desde que esteja buscando complementar sua
formação em cursos de licenciatura ou de Pedagogia. Nesse último caso, não é necessária a comprovação de renda familiar
per capita estipulada.
As inscrições para o processo seletivo do PROUNI são efetuadas por meio eletrônico e cabe à IES credenciada
oferecer acesso à internet aos candidatos. Ao aderir ao PROUNI, a IES deve conceder uma bolsa de estudo para cada nove
alunos regularmente matriculados e, no caso da IES beneficente, o percentual é de uma bolsa para cada quatro alunos
matriculados. A concessão de bolsas está limitada a 10% do total de matriculados, devendo a IES atentar para a
proporcionalidade em relação aos cursos oferecidos, turnos e unidade administrativa. O processo de seleção de bolsistas deve
beneficiar, também, negros e indígenas em igual proporção à sua participação no conjunto populacional, razão para que o
Programa seja identificado como ação afirmativa.
As primeiras análises do governo federal são otimistas. No primeiro semestre de 2005, o Programa colocou à
disposição 112 mil bolsas de estudos em universidades privadas, sendo 72 mil bolsas totalmente gratuitas. Com essa medida,
o governo ampliou em 60% a oferta do ensino superior gratuito em apenas um ano.
O quadro a seguir mostra a distribuição de bolsas ofertadas pelo PROUNI ao longo de sua existência.

Número de bolsas ofertadas pelo PROUNI – 2005-2007


Ano Número de bolsas
Integral Parcial Total
2005 71.905 40.370 112.275
2006 (1º semestre) 63.536 28.093 91.609
2006 (2º semestre) 36.162 11.897 47.059
2007 (1º semestre) 65.276 43.366 108.642
2007 (2º semestre) 32.355 22.857 55.212
Total 269.234 146.583 415.817
Fonte: MEC, 2008

Para além das bolsas de estudo, integrais ou parciais, o governo federal autorizou, por meio da Medida Provisória
251 de 2005, a concessão da bolsa permanência, no valor de R$ 300,00 (trezentos reais) mensais, exclusivamente para o
pagamento de despesas educacionais, para estudantes beneficiários de bolsa integral, matriculados em turno integral. Os

3
O ENEM é uma prova de âmbito nacional, voluntária para os concluintes ou egressos do ensino médio. Avalia o domínio de códigos de linguagem, capacidade
de aplicar conceitos na compreensão de fenômenos, selecionar e interpretar informações, argumentar, compreender e elaborar propostas de intervenção na
realidade. Seus objetivos são: servir de referência para o desenvolvimento do currículo das escolas com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio que privilegiam a interdisciplinaridade, a contextualização e as questões sociais em contraponto aos exames vestibulares tradicionais; servir de
modalidade alternativa ou complementar de avaliação para seleção de candidatos das IES ou do processo de seleção de pessoal das empresas.

135
estudantes que receberam bolsa parcial podem recorrer ao Fundo de Financiamento do Ensino Superior (FIES). A adesão ao
PROUNI permite a IES a isenção do recolhimento de impostos e tributos incidentes sobre as receitas provenientes das
atividades desenvolvidas na educação superior (CORBUCCI, 2004, p.694).
O PROUNI como política focalizada e compensatória, prática privatista e ação afirmativa
Ao proporcionar condições para o acesso de estudantes carentes ao ensino superior privado, por meio da oferta de
bolsas de estudo, o PROUNI define como focos de atuação um nível de ensino, o superior, e um segmento expressivo
de jovens das camadas populares, egressos de ensino médio oferecido em escolas públicas.

O PROUNI como política focalizada e compensatória


Apresenta-se como estratégia voltada para a “focalização” dos direitos de grupos marcados por carências
econômicas e pela vulnerabilidade social. De certo modo, as políticas focalizadas visam corrigir as lacunas deixadas pelas
insuficiências das políticas universalistas.
Sobre o alcance das políticas focalizadas, Cury (2005) destaca que buscam equilibrar uma situação sempre que a
balança tender a favorecer grupos hegemônicos no acesso aos bens sociais, conjugando ao mesmo tempo, por justiça, os
princípios de igualdade com o de equidade. Ao apontar para a ampliação da escolaridade em nível superior, a política
focalizada pretende atender também às solicitações de uma inserção profissional mais qualificada, contribuindo para o
desenvolvimento científico e tecnológico do país e para uma melhor distribuição de renda. Contudo, essas ações focalizadas
no ensino superior se dão em um cenário em que os desafios da educação básica persistem, em que pesem as políticas
direcionadas das últimas décadas.
Estudos recentes sobre acesso à educação em diferentes faixas etárias revelam que, apesar do significativo
crescimento das matrículas e dos índices de conclusão nos ensinos fundamental e médio, decorrentes de políticas de expansão
e correção de fluxo, apenas cerca de 27% dos jovens com idade de 18 a 24 anos concluíram o ensino médio. Assim, são
poucos os que possuem, do ponto de vista do nível de escolarização alcançado, os requisitos formais para acesso ao ensino
superior (ANDRADE e DACHS, 2006).
Por outro lado, a expansão do atendimento não se fez acompanhar de uma oferta de ensino com o nível de
qualidade esperado. Nas avaliações de âmbito nacional prevalecem o desempenho insuficiente dos alunos do ensino médio
no que se refere ao domínio de conhecimentos básicos para a inserção social e no mundo produtivo. Isto significa que as
responsabilidades do Estado com a expansão e a qualidade da educação básica continuam a exigir toda a atenção por ser esta
a base indispensável para políticas dirigidas ao ensino superior. Em 2003, a rede pública de ensino era responsável pelo
atendimento da grande maioria dos estudantes, com uma cobertura nitidamente diferenciada em função do nível de ensino;
27,3% dos estudantes, no ensino superior; 84,9%, no ensino médio; 89,5%, no fundamental e 76,0%, no pré-escolar (PNAD,
2003).

O PROUNI como ação afirmativa


As políticas universalistas de democratização do ensino, orientadas pela lógica da oferta, a despeito do reconhecido
avanço na questão do acesso e da vinculação de recursos, não lograram cumprir a promessa de tratar a todos igualmente e
têm alimentado uma forte tendência para a adoção de políticas orientadas pela lógica da demanda, voltadas para o direito à
diferença como base do direito à igualdade.
O número de egressos do ensino médio público, ainda bastante distante das metas nacionais, aumentou
consideravelmente no último decênio, composto agora por um contingente maior de representantes dos extratos menos
favorecidos da sociedade. Nesse contexto, eleva-se o questionamento do princípio de igualdade de oportunidades que pautou
a expansão da escola pública por meio de políticas homogeneizadoras que favoreceram grupos restritos de portadores de
privilégios econômicos, sociais e culturais.
Como já afirmado, a disponibilidade de candidatos qualificados formalmente ao ensino superior é de apenas 27%
da população de 18 a 24 anos. Essa restrição fundamental se amplia quando consideradas as camadas de renda mais baixa da
população e o segmento de não brancos (considerados aqui pretos, pardos e indígenas). Quanto ao acesso ao ensino superior,
segundo dados do PNAD/IBGE (2003), apenas 5% dos jovens de 18 a 24 anos oriundos de famílias com renda per capita de
até um salário mínimo e 5% de não brancos chegam ao ensino superior.
Uma das idéias mestres da reforma universitária, em processo, em vários países é a democratização do acesso, entre
outras medidas, por meio de ações afirmativas seja de caráter racial, social ou de ambas. No âmbito do direito, a igualdade
jurídica, segundo a qual a lei deve ser igual para todos, é hoje confrontada com experiências e estudos que demonstram sua
insuficiência para, por si só, tornar acessíveis aos indivíduos socialmente desfavorecidos as oportunidades de que gozam os
socialmente privilegiados.
No Brasil, políticas de ação afirmativa ganharam destaque pela pressão de movimentos sociais, em especial o
movimento negro, com grande penetração social no país. Esses movimentos exercem um esforço meritório no sentido de
ampliar a inclusão social no ensino superior e lutar não apenas pelo acesso, mas também pelo acompanhamento e necessário
apoio ao estudante dada a diversidade de fatores responsáveis pela evasão. A reserva de cotas raciais para acesso ao ensino

136
superior, público ou privado, vem causando polêmica nos diversos setores da sociedade brasileira, dos acadêmicos aos
políticos, dos juristas às organizações não-governamentais.
Quanto ao mérito para acesso ao ensino superior, o PROUNI concede bolsas de estudos para alunos que tenham se
submetido ao Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM), com avaliação igual ou superior a 50 pontos. Esses alunos também
deverão se submeter a uma seleção na IES, segundo seus próprios critérios.

O PROUNI como prática privatista; a utilização dos recursos públicos na iniciativa privada
Ao voltar-se para a solução do problema de escassez de vagas no ensino superior através do incentivo à iniciativa
privada, o PROUN resgata as relações entre o público e privado, sobretudo no tocante ao financiamento da educação, uma
vez que se registra a transferência de recursos públicos para as empresas privadas de ensino, mediante isenção de
recolhimento de impostos e tributos incidentes sobre receitas provenientes de atividades desenvolvidas.
Esse mecanismo de financiamento público indireto para os estabelecimentos de ensino superior privados tem
sofrido resistências daqueles que lutam por uma retomada dos investimentos na educação superior pública, após décadas de
seu reconhecido processo de descapitalização. Consideram que os recursos que deixam de ser arrecadados poderiam ser
aplicados na oferta de vagas em instituições públicas em lugar de comprar vagas ociosas do setor privado, oferecendo um
serviço de qualidade duvidosa. Para esses, o PROUNI representa uma medida de recuperação financeira de IES que
enfrentam queda na demanda pelos serviços do ensino, quer pelo excesso de vagas criadas, quer pela queda de rendimentos
reais da população e o nível elevado de desemprego, responsáveis pela inadimplência e desistência.
Como resposta, dirigentes do MEC argumentam que o grau de evasão fiscal nesse nível de atividades empresarial é
tão elevado que o montante não arrecadado seria irrisório comparado ao benefício que a ampliação do acesso no ensino
superior poderia oferecer.
Nesse sentido, o PROUNI é divulgado pelo Governo Federal como uma iniciativa ainda tímida de redistribuição
indireta de renda, ao transferir recursos de isenção fiscal para os estratos populacionais menos favorecidos, o que dificilmente
ocorreria de outro modo. Ao mesmo tempo, acena com medidas de caráter estrutural como a ampliação de vagas e criação de
novas Universidades Federais, nas diferentes regiões do país.
No entanto, a questão que não se cala é aquela que indaga sobre a qualidade do benefício distribuído pelo PROUNI
em nome de maior eqüidade social. Qual é efetivamente a qualidade do ensino oferecido pelas IES privadas participantes do
Programa? Como assegurar um padrão mínimo de qualidade? Quais as características e compromissos das IES envolvidas no
PROUNI?
As expectativas colocadas para a Universidade no projeto de desenvolvimento de uma sociedade democrática e
justa, ainda que inserida no mundo globalizado com fortes determinantes do mercado, é a de uma instituição em que a
formação graduada, pós-graduada, a pesquisa e extensão são articuladas e orientadas por princípios que denotem clara
responsabilidade social. A opção por privilegiar IES privadas, cuja maioria são faculdades ou centros universitários,
desobrigados da pesquisa e extensão, parece indicar uma opção por flexibilizar e diversificar a oferta de estudos pós-
secundários, de menor custo e mais sensíveis às urgências do mercado.
Por outro lado, as ações afirmativas, por definição, devem cumprir um período de vigência determinado, enquanto
perdurarem as condições que justificam sua criação. No caso do PROUNI, o contrato de adesão tem validade de dez anos,
ficando, porém sujeita a IES ao monitoramento do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), podendo
seus cursos serem desvinculados do Programa caso sejam considerados insuficientes por três avaliações consecutivas, sendo
redistribuídas as bolsas de estudos vinculadas.
Ao analisar o Programa, do projeto à legislação, no aspecto da renúncia fiscal, CARVALHO (2005) considera que
a falta de sanções mais severas pelo descumprimento das regras estabelecidas e o lapso temporal para a avaliação dos cursos
podem provocar uma acomodação de interesses em torno do afrouxamento do aparato regulatório estatal e estimular
comportamentos oportunistas de IES de qualidade duvidosa. A autora ainda considera que há dúvidas quanto à efetividade do
caráter social do Programa uma vez que
[....]a população de baixa renda não necessita apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condições
que apenas as instituições públicas, ainda, podem oferecer tais como: transporte, moradia estudantil, alimentação
subsidiada, assistência médica disponível nos hospitais universitários, bolsas de pesquisa, entre outros.

Considerações finais
As análises e considerações realizadas no corpo do presente trabalho ultrapassam em escopo as indagações
colocadas como objeto da pesquisa, qual seja, o impacto do PROUNI nas IES e na vida pessoal e escolar dos alunos. Qual é o
impacto da adoção do PROUNI no que se refere ao currículo, à organização dos cursos, à criação de instituições de apoio
escolar? Quais os desdobramentos para o aluno de sua inserção na universidade? Quais os problemas vivenciados pelos
alunos no cotidiano da vida universitária? Em que medida a inserção na universidade, por meio do PROUNI, propicia a
permanência do aluno? Essas são algumas das questões que constituem o pano de fundo do presente projeto.

137
Constituem, contudo, ainda que mereçam maior aprofundamento, referencial indispensável a uma análise que
pretende capturar a complexidade inerente a processos sociais que se desenvolvem em momentos de grandes transformações
como o atual. A maioria das análises aponta para as limitações do Programa, particularmente nos aspectos referentes à
qualidade da formação acadêmica oferecida aos jovens egressos do ensino médio e, conseqüentemente, à grande
possibilidade de se estar mais uma vez contribuindo para alargar a distância social entre os diferentes segmentos da
sociedade. Contudo, não há como negar que o momento é de busca de alternativas que permitam sair do imobilismo das
constatações, momento de oportunidade para se explorar o surgimento de novas formas de caráter mais híbrido, que
articulam práticas de regulação e de emancipação social. Políticas de inclusão social no ensino superior são um desafio a se
analisar.

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AVALIAÇÃO DE RESULTADOS E DO IMPACTO DE UM PROJECTO DE


FORMAÇÃO-ACÇÃO: DO SUCESSO DA INTERVENÇÃO À
EMPREGABILIDADE DOS ESTAGIÁRIOS

Elisabete VINHA
Universidade Fernando Pessoa
elisabete.vinha@gmail.com

Nelson LIMA-SANTOS
Universidade Fernando Pessoa
limasant@ufp.pt

Resumo: Neste trabalho é apresentada a avaliação de resultados e de impacto de um projecto de formação-acção, especificamente
caracterizado pela presença de um Estagiário em cada Empresa participante, disponível a tempo inteiro para a concretização de um projecto
particular de inovação, desenvolvido no âmbito de uma parceria entre uma Associação Empresarial e uma Instituição do Ensino Superior,

138
ambas do norte do país, bem como uma Entidade de Consultoria. Na avaliação foi utilizado um instrumento original, propositadamente
construído para o efeito – com base no referencial de desenvolvimento e acção do projecto –, que foi administrado aos participantes, após
reuniões de grupo ou entrevistas, num total de 47 sujeitos, a saber: 15 Empresários, 10 Professores do Ensino Superior, 12 Estagiários e 10
Consultores. Esta intervenção revelou resultados que evidenciaram o desempenho do Estagiário como um dos principais factores de sucesso.
O projecto teve, ainda, um impacto claramente positivo ao nível do desenvolvimento de novos produtos e serviços, da aquisição de novas
competências e da promoção da imagem da Empresa. Globalmente, o contributo do estágio para a Empresa e para a profissionalização dos
Estagiários foram os pontos fortes do projecto, sendo de salientar que, no final da sua execução, se registaram indicadores objectivos muito
positivos, nomeadamente quanto à promoção da empregabilidade destes Estagiários (71% encontram-se empregados, dos quais 57% noutras
Empresas que não aquelas em que realizaram o estágio), indicadores estes que são bastante significativos e reveladores do contributo desta
metodologia de intervenção formativa para o desenvolvimento das respectivas competências pessoais e profissionais.

Introdução
Com este trabalho pretendemos apresentar a avaliação de resultados e de impacto de um projecto de formação-
acção, procurando evidenciar o contributo desta metodologia de intervenção formativa para o desenvolvimento/construção de
competências dos formandos, muito particularmente no plano da inovação e da promoção da empregabilidade.
Deste modo, importa referir que a formação-acção, assumindo-se como uma metodologia de intervenção formativa
que permite o desenvolvimento de competências relacionadas com a resolução de problemas empresariais concretos e bem
definidos e/ou com a modernização e crescimento organizacional (Ministério da Economia e da Inovação, 2008), poderá
funcionar como elemento dinamizador da construção da competência dos indivíduos, que entendemos, corroborando Le
Boterf (1994), como um saber agir reconhecido, logo, este construto engloba, de acordo com a taxonomia de Lima Santos e
Pina Neves (2001) três dimensões, a saber: (i) a dimensão técnica (saber e saber-fazer), (ii) a dimensão psicossocial (saber-
agir e saber-ser/estar) e (iii) a dimensão processual (saber-integrar, saber-mobilizar e saber-transferir).
Assim, mais do que permitir a aquisição de uma certificação, ao emergir como uma situação de formação on the
job, o contexto de formação-acção parece favorecer, por um lado, a consolidação dos saberes agrupados na dimensão técnica
da competência – que são, aliás, conferidos pela qualificação – e contribuir, por outro lado, para o desenvolvimento do saber
agir com pessoas e do saber ser/estar perante pessoas e situações (Lima Santos & Pina Neves, 2001; Lima Santos, Pina
Neves, & Anjos Ribeiro, 2003).
Mais ainda, pensamos que este contexto de formação poderá funcionar como um elemento facilitador da construção
dos saberes incluídos na dimensão processual da competência – o saber integrar novos saberes naqueles que já se possuem, o
saber mobilizar tais recursos de forma eficiente e eficaz e o saber transferir esses saberes para diferentes contextos e situações
– que, no fundo, colocam em acção os saberes técnicos e psicossociais de um indivíduo qualificado, possibilitando (ou não!)
a sua validação social (Lima Santos & Pina Neves, 2001; Lima Santos, Pina Neves, & Anjos Ribeiro, 2003; Salgado, 1997).
Já no que se refere às práticas de avaliação da formação, mencione-se que, no plano conceptual, a mesma deve ser
entendida como um processo sistemático de recolha de informação, que pretende aferir a qualidade de uma acção/projecto de
formação (Tejada Ferández & Ferrández Lafuente, 2007), processo este que pode centrar-se, por um lado, na análise da
qualidade com que as actividades decorreram (análise da eficiência) ou, por outro, nos resultados produzidos pela intervenção
formativa (análise da eficácia) (Lima Santos & Pina Neves, 2004). Saliente-se, no entanto, que estes momentos são
interdependentes, embora possam apresentar-se de forma distinta, e que a forma como decorre a acção/projecto de formação
é determinante para os resultados alcançados.
Assim, quando pretendemos analisar a eficiência de uma intervenção formativa, procuramos verificar a
concretização dos objectivos e das actividades previstas para essa intervenção e identificar desvios face aos mesmos,
tornando-se possível, nesse caso, propor estratégias para a reorientação das acções no sentido esperado. Estaremos, por isso, a
organizar a avaliação numa lógica de acompanhamento e auto-regulação (Lima Santos, Pina Neves, & Anjos Ribeiro, 2003;
Tejada Ferández & Ferrández Lafuente, 2007).
Por sua vez, se organizamos o trabalho de avaliação no sentido da identificação de resultados concretos e na
reflexão integrada e abrangente relativamente à intervenção concretizada, a lógica de avaliação será a de avaliação final – de
resultados e de impacto – e os dados obtidos poderão fornecer pistas e sugestões úteis para intervenções formativas análogas
no futuro (Lima Santos, Pina Neves, & Anjos Ribeiro, 2003; Tejada Ferández & Ferrández Lafuente, 2007).
Ora, no projecto de formação-acção que aqui analisamos, a avaliação decorreu numa lógica de avaliação final, uma
vez que a intervenção havia já terminado e, dessa forma, seria pertinente identificar resultados concretos, compará-los com os
objectivos que haviam sido definidos inicialmente e reflectir acerca da intervenção concretizada, no fundo, conhecer os
efeitos de todo o processo de formação desenvolvido.
Importa ainda fazer um breve apontamento aos aspectos conceptuais subjacentes à idealização deste projecto de
formação: a inovação e a cooperação para a inovação. Assim, convém referir que num mercado económico globalizado é
essencial, como assumem Tidd, Bessant e Pavitt (2003), uma forte aposta na inovação para o desenvolvimento e o aumento
da competitividade de qualquer organização/empresa. Contudo, são evidentes no tecido empresarial nacional, em particular
nas PME, as fragilidades das infra-estruturas físicas, tecnológicas e de formação profissional, bem como as resistências à
incorporação da inovação e à colaboração em Investigação & Desenvolvimento (Egreja, 2003). Saliente-se que são
reconhecidas, no entanto, as vantagens da cooperação entre o meio empresarial e as universidades ou institutos politécnicos,

139
particularmente no que diz respeito ao acesso informado e facilitado relativamente ao recrutamento de jovens especialistas, a
uma prospecção tecnológica mais eficaz e à partilha de competências e equipamentos (Egreja, 2003).
Parece, assim, claramente fundamentada pela literatura a pertinência da concepção deste projecto de formação em
cooperação para a inovação.

Caracterização do projecto de formação-acção


Este projecto foi desenvolvido no âmbito de uma parceria entre uma Associação Empresarial e uma Instituição do
Ensino Superior, ambas do norte do país, e uma Entidade de Consultoria. Para a realização deste trabalho de cooperação
foram delineados os seguintes objectivos:
- Sensibilizar as empresas para a importância da inovação na melhoria sustentável da sua competitividade;
- Desmistificar o conceito de inovação, através de actividades concretas e exemplificativas num grupo de empresas-
piloto, em regime de parceria com Instituições de Ensino Superior;
- Desenvolver práticas sistemáticas e contínuas de inovação nas empresas em ligação com Instituições do Ensino
Superior e associativas, bem como com empresas de prestação de serviços de consultoria;
- Reduzir custos de produção pela optimização da inovação em processos;
- Criar um efeito demonstrador para outras empresas.

A constituição desta parceria, envolvendo três entidades distintas, implicou, consequentemente, três tipos
específicos de participação, tendo-se observado um modelo de funcionamento muito particular. Deste modo, a execução
deste projecto exigiu que se criasse, em cada uma das PME participantes, uma equipa de trabalho responsável pelo
desenvolvimento de um projecto de inovação que colmatasse uma necessidade e/ou resolvesse um problema concreto e
específico das mesmas.
Cada uma destas equipas reuniu quatro elementos, cada um com funções bem definidas, a saber:
(i) O Empresário da PME (e/ou Quadro participante em representação da empresa e responsável pelo projecto)
onde decorreu a intervenção, para assegurar o compromisso e envolvimento da empresa na intervenção;
(ii) Um Estagiário (designado de Investigador Júnior), recém-licenciado e com um papel particularmente activo na
investigação e no desenvolvimento do projecto de inovação na empresa, já que estava disponível a tempo inteiro para o
mesmo;
(iii) Um Professor do Ensino Superior (denominado Investigador Sénior), com responsabilidade científica na
condução do trabalho do estagiário;
(iv) Um Consultor, com funções de ligação dos investigadores à empresa e de apoio ao estagiário na adequação do
projecto às características da empresa.

Na figura 1 apresentamos o modelo de funcionamento deste projecto, procurando esquematizar a rede de relações
desenvolvida entre os diferentes actores envolvidos.

As Instit En
Parce sociação uição do tidade de
iros Empresarial Ensino Consultoria

Figura 1 – Esquema funcional dos Inves


parceiros e participantes do projecto tigadores
(Adaptado de Lima Santos & Vinha, 2008) Seniores

Ora, no
sentido
da PME Inves Co
Partic ’s: tigadores nsultores
ipantes Empresários/ Juniores/
concretização dos objectivos delineados, foi
estabelecida uma metodologia de acção que
envolveu o conjunto de actividades que Formadores
descrevemos, sucintamente, no quadro 1.

Quadro 1 – Síntese da estruturação das actividades do projecto

140
Fase Caracterização

 Realização de workshops de sensibilização acerca de temas de inovação destinados ao meio


empresarial e ao meio académico
Preparação do  Acções de divulgação inicial do projecto
projecto  Selecção das Empresas para intervenção
 Selecção de Investigadores Juniores/Estagiários, Investigadores Seniores e Consultores
 Formação de integração para Investigadores Seniores e Consultores

 Realização de workshops para Empresários/Quadros da Empresa


 Execução dos diagnósticos estratégicos de inovação nas Empresas
Intervenção  Produção dos planos de acção para a inovação
nas  Formação de integração para Investigadores Juniores/Estagiários
Empresas  Implementação de um projecto de inovação em cada Empresa
 Formação para as Empresas
 Elaboração de um relatório final do projecto de inovação por cada Empresa

Conclusões
 Realização de workshops de apresentação de resultados dos projectos de inovação desenvolvidos
finais e
nas Empresas
encerramento

Avaliação do projecto de formação-acção


Instrumento, amostra e procedimento
No âmbito desta avaliação da formação, e uma vez que estávamos perante uma lógica de avaliação final, portanto,
uma avaliação de resultados e de impacto, foi necessário proceder à construção de um instrumento original para o efeito
(Lima Santos & Vinha, 2008). De facto, e como referem especialistas no domínio, quando nos deparamos com uma avaliação
deste género é necessário desenvolver instrumentos e procedimentos adaptados aos indicadores do projecto (Lima Santos &
Pina Neves, 2004), uma vez que só dessa forma é possível atender fielmente às especificidades do mesmo e obter resultados
mais próximos da realidade.
Para a construção deste instrumento específico assumiram-se como referências organizadoras: (i) os objectivos do
projecto, (ii) as acções previstas para a sua concretização, (iii) os respectivos indicadores/critérios de sucesso e (iv) as
sugestões de um painel de especialistas.
Saliente-se, também, que foram respeitados os princípios básicos para a construção de questionários,
particularmente no que diz respeito à redacção clara, precisa e concreta dos itens, bem como no que se refere ao cuidado em
evitar formulações vagas e propiciadoras de ambiguidades, duplas negações ou repetições (D’Ancona, 1992; Ghiglione &
Matalon, 2003; Gil, 1989; Ketele & Roegiers, 1999; Moreira, 2004; Oppenheim, 1996).
Assim, operacionalizados os indicadores, obtivemos uma 1ª versão do instrumento que, após ter sido submetido a
um pré-teste junto de uma pequena amostra da população e de um painel de especialistas (Lima Santos & Vinha, 2008), deu
origem à versão final do questionário, constituída por três subescalas, que apresentamos, de forma detalhada, no quadro 2.

Quadro 2 – Questionário de avaliação de resultados e do impacto do projecto


Subescala Itens

141
1. Cumprimento do cronograma e prazos
2. Adequação do ritmo das actividades ao funcionamento normal da Empresa
3. Utilidade da formação inicial e/ou workshops
4. Adequação do Diagnóstico da Empresa
5. Pertinência do Plano de Acção
I. Subescala de
6. Qualidade do Projecto de Inovação desenvolvido
Avaliação da
7. Utilidade da formação na Empresa
Intervenção
8. Grau de implicação do Empresário e/ou Quadro participante
9. Desempenho do Investigador Júnior/Estagiário
10. Contributos do Investigador Sénior
11. Desempenho do Consultor
12. Ajustamento das actividades desenvolvidas à metodologia proposta inicialmente

1. Melhoria da organização interna das Empresas/Instituições


2. Adopção de novos métodos e procedimentos de trabalho
3. Utilização de novas tecnologias
4. Desenvolvimento de novos produtos e/ou serviços
5. Aquisição de competências específicas no domínio da inovação
II. Subescala de
6. Redução de custos de produção
Avaliação do
7. Aumento da produtividade global da Empresa
Impacto
8. Incremento do volume de negócios
9. Promoção da imagem da Empresa
10. Promoção da imagem da Instituição do Ensino Superior
11. Fomento de relações de cooperação/parceria entre Empresas e Instituições de Ensino
Superior

1. Contributo do Estágio para a Profissionalização dos Investigadores Juniores/Estagiários


2. Contributo do Estágio para a Empresa
3. Interesse da Empresa na manutenção do projecto de inovação após a intervenção
III. Subescala de 4. Interesse da Empresa na implementação de futuros projectos de inovação
Avaliação Global 5. Qualidade da parceria Empresa/Instituição do Ensino Superior
6. Satisfação das expectativas iniciais
7. Promoção da empregabilidade dos Investigadores Juniores/Estagiários
8. Efeitos demonstradores/multiplicadores para a região

Os itens deste questionário, num total de 31, podem ser respondidos numa escala de Likert de 4 pontos, que varia
entre dois extremos, a saber: na subescala de Avaliação da Intervenção e na de Avaliação Global, entre “1-Insuficiente” e “4-
Muito Bom”; na subescala Avaliação do Impacto, entre “1-Nenhum Impacto” e “4-Impacto Muito Positivo”.
Assim, obtido o questionário para a avaliação dos resultados e do impacto deste projecto de formação-acção,
iniciou-se, então, a recolha de informação junto dos participantes, com a respectiva administração de forma individual, após
reuniões de grupo ou entrevistas, a uma amostra de 47 indivíduos – 10 Consultores (C), 15 Empresários/Quadros (E), 12
Investigadores Juniores/Estagiários (IJ) e 10 Investigadores Seniores (IS). O quadro 3 sintetiza a informação que caracteriza a
nossa amostra.

Quadro 3 – Caracterização da amostra


Tipo de participação C E IJ IS Total
n=10 n=15 n=12 n=10 N=47
f % f % f % f % f %
Sexo Feminino 1 6,7 7 58,3 3 30,0 11 23,4
Masculino 10 100,0 14 93,3 5 41,7 7 70,0 36 76,6
Idade ≤ 25 7 58,3 7 14,9
26-35 4 40,0 2 13,3 5 41,7 2 20,0 13 27,7
36-45 4 40,0 6 40,0 6 60,0 16 34,0

142
46-55 5 33,3 1 10,0 6 12,8
> 55 2 20,0 2 13,3 1 10,0 5 10,6
Habilitações ≤ 9º 2 13,3 2 4,3
literárias
10º-12º 1 10,0 6 40,0 7 14,9
Bacharelato/ 9 90,0 5 33,3 12 100,0 26 55,3
Licenciatura
Mestrado 1 6,7 5 50,0 6 12,8
Doutoramento 1 6,7 5 50,0 6 12,8

Relativamente ao sexo, podemos verificar, pela leitura do quadro 3, que a nossa amostra é maioritariamente do sexo
masculino (76,6%). De facto, observamos em todos os grupos uma elevada representação do sexo masculino –
nomeadamente, 100% no grupo de Consultores –, com excepção do grupo de Investigadores Juniores/Estagiários, em que
temos uma subamostra mais equilibrada, com 58,3% de indivíduos do sexo feminino e 41,7% do sexo masculino.
Quanto à idade, os participantes encontram-se distribuídos por todas as faixas etárias apresentadas, sendo de referir
que a faixa etária dos 36 aos 45 anos é a mais representada (34,0%), seguida da faixa etária dos 26 aos 35 anos (27,7%).
Já no que se refere às habilitações literárias, os participantes possuem, maioritariamente, o grau de
Bacharelato/Licenciatura (55,3%), situação em que se encontram a totalidade dos Investigadores Juniores/Estagiários e 90%
dos Consultores. Menos representadas encontram-se as habilitações até ao 9º ano, que se atribuem, exclusivamente, ao grupo
dos Empresários, embora representem, apenas, 13,3% dos participantes deste grupo.
Apresentado o instrumento e caracterizada a amostra, resta fazer referência ao procedimento utilizado no âmbito
desta avaliação, referindo que foi considerado essencial criar um momento de reunião de grupo, em que pudéssemos ouvir os
relatos dos participantes relativamente à experiência de participação no projecto. De facto, permitir que o sujeito se expresse
verbalmente é uma das formas de aceder à informação implícita, a qual apenas assim é acessível (Baldwin, 2000; Rodrigues,
2002), tornando-se um meio valioso para a avaliação de uma intervenção formativa.
Este momento de grupo foi ainda utilizado para a administração presencial do instrumento por nós construído,
aspecto este que foi considerado essencial, uma vez que tornava possível o acesso a todos os participantes, quer aos mais
satisfeitos e, provavelmente, mais motivados para colaborar na avaliação, quer aos menos satisfeitos e, talvez, menos
disponíveis para tal. Por isso, como se observaram algumas ausências às reuniões de grupo por parte de empresários
participantes no projecto, e porque se entendeu que as mesmas poderiam ter um significado pertinente para a avaliação,
foram efectuadas visitas às empresas não representadas na reunião de grupo para a realização de uma entrevista com o
empresário e a posterior administração do questionário.
Deste modo, as reuniões de grupo, entrevistas e visitas às empresas possibilitaram a recolha de informações que
complementaram e facilitaram a compreensão dos dados obtidos com a administração dos questionários. Além disso, o uso
destas técnicas, a par da construção e administração de um questionário específico, procuraram – uma vez que pretendíamos
compreender de forma holística um acontecimento delimitado no tempo e no espaço, a saber, o projecto de formação – que a
condução desta avaliação fosse ancorada numa lógica de estudo de caso (Lima Santos & Vinha, 2008).
Por fim, quanto ao tratamento dos dados dos questionários, recolhidos após as reuniões de grupo e as entrevistas,
refira-se que estes foram cotados e estatisticamente tratados através do programa SPSS (versão 15.0). Este tratamento
estatístico incluiu a análise de variância das respostas aos itens das três subescalas do questionário (I. Subescala de Avaliação
da Intervenção, II. Subescala de Avaliação do Impacto e III. Subescala de Avaliação Global), em função do tipo de
participação no projecto (Consultor, Empresário/Quadro, Investigador Júnior/Estagiário ou Investigador Sénior).

Apresentação e análise dos resultados


a) Perfis das avaliações médias dos diferentes grupos
O cálculo do valor médio das respostas permitiu obter os resultados que se encontram representados nos gráficos 1,
2 e 31, resultados estes que evidenciam o que foi mais ou o que foi menos valorizado por cada grupo participante, tendo
como termo de comparação a média das respectivas avaliações.

1
A designação dos itens das três subescalas do questionário, representados no eixo das abcissas de cada um dos gráficos, pode ser consultada no quadro 2 deste
artigo.

143
3,8
3,6
3,4

Valores médios
3,2
3,0
2,8
2,6
2,4
2,2
2,0
I.1 I. 2 I. 3 I. 4 I. 5 I. 6 I. 7 I. 8 I. 9 I. 10 I. 11 I. 12
Itens da subescala de avaliação da intervenção

Empresários/Quadros Investigadores Juniores/Estagiários


Investigadores Seniores Consultores
Média das avaliações

Gráfico 1 – Avaliação da intervenção em função do tipo de participação

4,0

3,5
Valores médios

3,0

2,5

2,0
II. 1 II. 2 II. 3 II. 4 II. 5 II. 6 II. 7 II. 8 II. 9 II. 10 II. 11
Itens da subescala de avaliação do impacto
Empresários/Quadros Investigadores Juniores/Estagiários
Investigadores Seniores Consultores
Média das avaliações

Gráfico 2 – Avaliação do impacto em função do tipo de participação

144
4,0

3,5

Valores médios
3,0

2,5

2,0
III. 1 III. 2 III. 3 III. 4 III. 5 III. 6 III. 7 III. 8
Itens da subescala de avaliação global

Empresários/Quadros Investigadores Juniores/Estagiários


Investigadores Seniores Consultores
Média das avaliações

Gráfico 3 – Avaliação global em função do tipo de participação

Assim sendo, dos gráficos apresentados é possível destacar (Quadro 4) os aspectos que, em cada uma das
subescalas e em termos médios, foram melhor avaliados e pior avaliados pelos participantes.

Quadro 4 – Itens melhor e pior avaliados pelos participantes


Itens
Subescala Melhor avaliados Pior avaliados
I. Subescala de - Desempenho do Investigador - Utilidade da formação inicial e/ou
Avaliação da Júnior/Estagiário (item 9) workshops (item 3)
Intervenção
- Contributos do Investigador Sénior (item
10)

II. Subescala de - Desenvolvimento de novos produtos e/ou - Redução de custos de produção (item 6)
Avaliação do serviços (item 4)
Impacto - Aquisição de competências específicas no - Promoção da imagem da Instituição de
domínio da inovação (item 5) Ensino Superior (item 10)

- Promoção da imagem da Empresa (item 9)

III. Subescala de - Contributo do Estágio para a - Qualidade da parceria Empresa/Instituição


Avaliação profissionalização do Investigador de Ensino Superior (item 5)
Global Júnior/Estagiário (item 1)
- Contributo do Estágio para a Empresa
(item 2)

b) Estudos diferenciais
Os quadros 5, 6 e 7 resumem os elementos obtidos para os itens de cada uma das subescalas, em função do tipo de
participação, bem como os resultados dos testes diferenciais realizados.
Assim, quando comparadas as médias dos grupos e realizados os testes diferenciais para a subescala de avaliação
da intervenção, foram observadas diferenças significativas num elevado número de itens, sendo, em alguns casos, diferenças
muito significativas (Quadro 5).

Quadro 5 – Diferenças na avaliação da intervenção em função do tipo de participação

145
Tipo de Participação anova Post-Hoc

Itens2 C E IJ IS
n=10 n=15 n=12 n=10 gl F p LSD
M DP M DP M DP M DP

1 3,50 0,707 2,60 0,632 3,17 0,577 3,10 0,568 3 4,513 0,008** E < C, IJ

2 3,30 0,483 2,87 0,834 2,92 0,996 2,90 0,316 3 0,805 0,498

3 3,30 0,675 2,60 0,828 2,42 0,669 2,60 0,843 3 2,758 0,054

4 3,50 0,527 3,00 0,655 2,25 0,965 3,00 0,816 3 5,160 0,004** IJ < C, E, IS

5 3,60 0,516 2,93 0,594 2,92 0,669 3,40 0,516 3 3,902 0,015* C > E, IJ

6 3,70 0,483 3,07 0,594 3,08 0,793 3,00 0,667 3 2,656 0,060

7 3,00 0,667 2,87 0,915 2,75 1,138 3,10 0,876 3 0,302 0,824

8 3,50 0,527 3,27 0,704 2,67 0,651 2,40 0,843 3 5,928 0,002** C, E > IJ, IS

9 3,50 0,707 2,87 0,915 3,58 0,515 3,40 0,516 3 2,847 0,049* E < C, IJ

10 2,80 0,632 2,47 1,246 2,50 1,000 3,10 0,316 3 1,147 0,341

11 3,50 0,527 2,93 0,961 3,00 0,739 3,00 0,471 3 1,362 0,267

12 3,50 0,527 2,80 0,775 2,58 0,515 3,00 0,471 3 4,524 0,008** C > E, IJ
Subescala
3,39 0,369 2,85 0,537 2,82 0,369 3,00 0,302 3 4,167 0,011* C > E, IJ, IS
Total
* p < 0,05; ** p < 0,01.
Legenda: C – Consultor; E – Empresário/Quadro; IJ – Investigador Júnior/Estagiário; IS – Investigador Sénior.

Como se constata no quadro 5, o grupo de Consultores distinguiu-se significativamente do grupo de Empresários e


do de Investigadores Juniores/Estagiários quanto à percepção relativa à pertinência do plano de acção (item 5) e ao
ajustamento das actividades desenvolvidas à metodologia proposta inicialmente (item 12), apresentando uma avaliação mais
positiva.
É ainda de salientar que foram encontradas diferenças muito significativas entre o grupo de Consultores, a par do
grupo de Empresários, e os restantes grupos no que se refere ao grau de implicação do Empresário e/ou Quadro participante
(item 8), sendo a percepção dos Consultores e dos Empresários superior à dos restantes participantes (Quadro 5).
Quanto à percepção da intervenção por parte dos Consultores, podemos acrescentar que o estudo das diferenças
para a subescala total volta a evidenciar a percepção deste grupo como significativamente diferente dos outros grupos,
apresentando o grupo de Consultores a avaliação média mais positiva (Quadro 5).
Já no que se refere às avaliações dos Empresários, estas evidenciaram diferenças significativas quando comparadas
com as avaliações dos Consultores e dos Investigadores Juniores/Estagiários no que diz respeito ao cumprimento do
cronograma e prazos (item 1) e ao desempenho do Investigador Júnior/Estagiário (item 9), apresentando, nestes casos, uma
avaliação menos positiva que estes dois grupos de participantes (Quadro 5).
Observaram-se, também, diferenças significativas entre a percepção dos Investigadores Juniores/Estagiários e a dos
restantes grupos relativamente à adequação do diagnóstico da Empresa (item 4), tendo este grupo evidenciado a avaliação
menos positiva (Quadro 5).
Relativamente ao impacto deste projecto de formação-acção, avaliado através da segunda subescala do
questionário, os testes diferenciais realizados permitem constatar que não se observaram diferenças significativas nas
percepções dos quatro grupos de participantes (Quadro 6), sendo apenas de realçar que as referidas percepções são
claramente positivas.

Quadro 6 – Diferenças na avaliação do impacto em função do tipo de participação

2
A designação de cada um dos itens da Subescala de Avaliação da Intervenção encontra-se referida no quadro 2 do presente trabalho.

146
Tipo de Participação anova

Itens 3 C E IJ IS
n=10 n=15 n=12 n=10 gl F p
M DP M DP M DP M DP

1 3,00 0,816 2,47 0,915 2,83 0,937 3,20 0,789 3 1,580 0,208

2 3,10 0,738 2,67 1,047 2,83 0,835 3,00 0,816 3 0,564 0,642

3 3,10 0,876 2,67 1,047 2,92 0,793 2,90 0,994 3 0,446 0,721

4 3,20 0,632 2,87 0,915 3,08 0,669 2,90 0,876 3 0,449 0,719

5 3,20 0,632 2,60 0,910 3,08 0,669 3,10 0,568 3 1,805 0,161

6 2,70 1,160 2,13 0,990 2,50 0,798 3,00 0,816 3 1,797 0,162

7 2,90 0,738 2,27 0,961 2,67 0,888 2,90 0,876 3 1,481 0,233

8 2,50 0,707 2,47 0,834 2,67 0,778 3,00 0,943 3 0,968 0,417

9 3,00 0,816 3,00 0,845 3,00 0,853 3,00 1,054 3 0,000 1,000

10 2,90 0,568 2,33 0,976 2,42 0,996 2,70 0,949 3 0,962 0,419

11 3,30 0,823 2,80 0,941 2,42 0,900 3,20 0,789 3 2,367 0,084
Subescala
2,99 0,427 2,57 0,678 2,76 0,427 2,99 0,427 3 1,709 0,179
Total
Legenda: C – Consultor; E – Empresário/Quadro; IJ – Investigador Júnior/Estagiário; IS – Investigador Sénior.

No que diz respeito aos resultados das análises diferenciais para a subescala de avaliação global, as respectivas
diferenças são apresentadas no quadro 7.
Como se pode observar, nas percepções de balanço global recolhidas junto dos participantes encontraram-se
diferenças significativas entre o grupo de Investigadores Juniores/Estagiários e os restantes grupos de participantes no que se
refere ao interesse da Empresa na implementação de futuros projectos de inovação (item 4) e à qualidade da parceria
Empresa/Instituição do Ensino Superior (item 5). De facto, este grupo efectuou um balanço global menos positivo,
distinguindo-se significativamente, no primeiro caso, dos Consultores e dos Empresários e, no segundo caso, dos
Investigadores Seniores.
Já entre o grupo de Investigadores Seniores, por um lado, e os grupos de Empresários e de Consultores, por outro,
foram encontradas diferenças muito significativas no que diz respeito à percepção da possibilidade deste projecto ocasionar
efeitos demonstradores/multiplicadores para a região (item 8), tendo os Investigadores Seniores apresentado uma percepção
menos positiva comparativamente aos outros dois grupos.
Refira-se, ainda, que as diferenças significativas, encontradas para cada um dos grupos de actores envolvidos,
parecem poder ser melhor explicadas se recorrermos às informações recolhidas nas reuniões de grupo e nas entrevistas, já por
nós referidas4.

Quadro 7 – Diferenças na avaliação global em função do tipo de participação


Tipo de Participação anova Post-Hoc

Itens 5 C E IJ IS
n=10 n=15 n=12 n=10 gl F p LSD
M DP M DP M DP M DP

1 3,40 0,699 2,87 0,834 3,08 0,669 3,50 0,707 3 1,880 0,147

3
A designação de cada um dos itens da Subescala de Avaliação do Impacto pode ser consultada no quadro 2 deste artigo.
4
As informações recolhidas neste âmbito foram tratadas através da análise de conteúdo, não sendo, no entanto, nosso objectivo a apresentação exaustiva desses
resultados no presente artigo.
5
Cada um dos itens da Subescala de Avaliação Global está designado no quadro 2 do presente texto.

147
2 3,60 0,516 2,87 0,915 3,08 0,515 3,30 0,823 3 2,160 0,107

3 3,30 0,483 3,00 0,756 2,58 0,793 2,70 0,949 3 1,913 0,142

4 3,20 0,422 3,07 0,961 2,42 0,515 3,00 0,667 3 2,813 0,049* C, E > IJ

5 2,60 0,516 2,67 0,900 2,08 0,793 3,00 0,667 3 2,814 0,049* IJ < IS

6 3,20 0,422 2,67 0,976 2,67 0,778 2,60 0,516 3 1,449 0,242

7 2,80 0,632 2,80 0,941 2,50 1,087 2,80 0,919 3 0,315 0,814

8 3,20 0,632 2,80 0,775 2,58 0,900 2,00 0,667 3 4,393 0,009** C, E > IS
Subescala
3,16 0,373 2,84 0,717 2,62 0,377 2,84 0,717 3 1,886 0,146
Total
* p < 0,05; ** p < 0,01.
Legenda: C – Consultor; E – Empresário/Quadro; IJ – Investigador Júnior/Estagiário; IS – Investigador Sénior

Em suma, sempre que se observaram diferenças significativas entre o grupo de Consultores e os restantes grupos, o
grupo de Consultores apresentou avaliações mais positivas que os restantes. Aliás, como já se verificou a propósito da
apresentação dos resultados das avaliações dos diferentes grupos (gráficos 1, 2 e 3), os Consultores apresentaram, na maior
parte dos itens, percepções mais positivas relativamente à intervenção e resultados deste projecto de formação: talvez estes
aspectos possam estar relacionados com o facto dos Consultores pertencerem à Entidade Consultora Parceira do projecto (cf.
Figura 1), já que esta situação de dualidade (participante e parceiro) poderá ter propiciado a emergência de um viés associado
à competência profissional dos mesmos, ou seja, uma boa avaliação da intervenção e dos resultados produzidos seria o
reflexo de uma boa prestação profissional, logo, um factor determinante para o sucesso do projecto e, consequentemente, um
bom indicador da qualidade da parceria.
Relativamente às diferenças significativas encontradas entre o grupo de Empresários e os restantes participantes
quanto ao cumprimento do cronograma e prazos (item 1) e quanto ao desempenho do Investigador Júnior/Estagiário (item 9),
podemos assumir que a apresentação de piores avaliações por parte deste grupo poderá ser explicada pelo facto dos
Empresários terem criado expectativas iniciais de mais e melhores resultados. Aliás, nas reuniões de grupo e nas entrevistas
com os mesmos, foram referidos aspectos menos positivos que poderão estar associados com as percepções apresentadas,
concretamente: o mau funcionamento da parceria; a má selecção dos elementos das equipas; a má preparação dos
Investigadores Juniores/Estagiários, quer em termos técnicos, quer em termos sócio-comportamentais, resultando num mau
desempenho; a má organização e pobre comunicação por parte da entidade gestora do projecto, entre outros. Salientamos, no
entanto, que estes aspectos foram referidos, principalmente, pelos Empresários com casos de insucesso, embora os restantes
Empresários também os tenham reconhecido, mas considerando que tal não terá prejudicado o produto final da intervenção: o
projecto de inovação desenvolvido na empresa foi útil e importante.
Quanto aos Investigadores Juniores/Estagiários, as diferenças encontradas entre as suas avaliações e as dos
restantes grupos, no sentido de avaliações menos positivas, parecem prender-se, essencialmente, com dois aspectos: por um
lado, o que se liga com o seu desempenho, e, por outro lado, o que os prepara para o mundo do trabalho. Assim sendo, as
percepções de diagnósticos desadequados, mau funcionamento das equipas, má organização por parte da entidade gestora, má
qualidade da parceria, bem como algum desinteresse do Empresário no acompanhamento desta experiência (por falta de
tempo, na perspectiva dos Empresários) já haviam sido assumidas na reunião de grupo com Investigadores
Juniores/Estagiários como constrangimentos para o seu desempenho, aspectos estes que parecem poder explicar as diferenças
observadas.
Por fim, as diferenças encontradas nas avaliações dos Investigadores Seniores, no que se refere à percepção menos
positiva do que a dos Consultores e Empresários quanto ao efeito multiplicador desta experiência para outras empresas da
região, parecem revelar, essencialmente, que o papel das Instituições de Ensino Superior neste tipo de parcerias, não será
ainda cabalmente assumido como mais-valia junto da comunidade empresarial e demais parceiros deste projecto.

Considerações finais
Da avaliação dos resultados e do impacto deste projecto de formação-acção destacamos o carácter inovador do
modelo de intervenção adoptado, o qual procurou promover a parceria entre Empresas e Instituições de Ensino Superior, e a
presença permanente do Investigador Júnior/Estagiário na empresa, como interface activo e disponível a tempo inteiro para o
projecto, aspectos estes que se constituíram como elementos distintivos desta intervenção.
Salientamos, também, que esta intervenção formativa parece ter contribuído positivamente para a promoção da
empregabilidade dos Investigadores Juniores/Estagiários participantes, já que, à data de conclusão desta avaliação, 71% dos

148
participantes deste grupo se encontravam empregados, 57% dos quais em empresas que não aquelas em que realizaram o
estágio.
De facto, e entendida a empregabilidade como a capacidade/prontidão do indivíduo para obter e manter um
emprego (Arocena, Núñez & Villanueva, 2007; Hillage & Pollard, 1998, in Harvey, 2001; McQuaid, Green, & Danson,
2005), ou então, segundo Gazier (s.d., in Almeida, 2007, p. 53) como “a capacidade relativa de que um indivíduo dispõe para
obter um emprego que o satisfaça tendo em conta a interacção entre as suas características pessoais e o mercado de trabalho”
– logo, podendo traduzir-se pelo conjunto de atributos que os empregadores antecipam como presença necessária em
potenciais colaboradores para o funcionamento efectivo das suas organizações (Harvey, 1999, in Harvey, 2001) –, estes
valores percentuais parecem-nos ser indicadores objectivos de um nível bastante bom.
Aliás, permitem-nos afirmar que a oportunidade de participação neste projecto terá facilitado a construção de um
conjunto de competências transversais e específicas, nomeadamente, a um nível transversal, competências de mestria no uso
de novas tecnologias e, a nível específico, competências no domínio da inovação, que parecem ter favorecido o acesso ao
mercado de trabalho, contribuindo, assim, para a promoção da empregabilidade deste grupo de jovens estagiários.
Em síntese e em jeito de conclusão, avançamos com uma pista de investigação para futuros estudos, concretamente,
no que se refere à pertinência e intencionalidade, em projectos desta índole, do desenvolvimento das soft skills – conjunto de
competências/habilidades definidas como características pessoais/comportamentais essenciais para o bom desempenho
profissional (Savanevičienė, Stukaitė, & Šilingienė, 2008) –, com o intuito de que estas também possam contribuir para a
promoção da empregabilidade dos formandos, uma vez que alguns dos relatos dos participantes, nas reuniões de grupo,
apontaram para o elevado grau de importância atribuído pelos empresários às competências sociais e comportamentais para a
tomada de decisão de acolhimento dos estagiários como futuros colaboradores nas suas empresas.

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O estudante universitário, suas vivências e a busca de um futuro em mutação

Rosa Maria da Exaltação Coutrim


Universidade Federal de Ouro Preto
rosaexcoutrim@yahoo.com.br

Filipe Dias Dulci


Universidade Federal de Ouro Preto
nosferatufd2@hotmail.com

Emerson Carioca
Universidade Federal de Ouro Preto
histemerson@yahoo.com.br

Resumo: A crescente complexificação do mercado de trabalho tem exigido, cada vez mais, maior preparo dos jovens. Ao buscarem o ensino
superior de qualidade, rapazes e moças oriundos de famílias de camadas médias se esforçam para conseguir o que é socialmente considerado
um bom emprego.
Porém, com o prolongamento dos ciclos da vida, os jovens têm amadurecido mais tarde do que as gerações anteriores e muitos saem da casa
dos pais para cursar a universidade sem estarem preparados para assumir as responsabilidades da vida adulta. Esse amadurecimento tardio se
reflete na escolha profissional e na vivência universitária e, em muitos casos, traz danos para o desempenho escolar e a formação da
identidade do jovem. Com o objetivo de compreender as expectativas, frustrações e o processo de socialização de alunos do primeiro ao
último período dos cursos diurnos e noturnos oferecidos por uma universidade pública do interior de Minas Gerais/ Brasil foram avaliados os
resultados de 160 questionários e depoimentos de alunos de ambos os sexos na fase introdutória, intermediária e final da graduação. Os
dados têm demonstrado que, apesar das diferenças entre alunos trabalhadores e não trabalhadores e de cursos de maior e menor prestítigio,
todos enfrentam dificuldades em suas trajetórias universitárias. Os problemas enfrentados pelos jovens se modificam no decorrer do curso e
são derivados de diversos fatores, entre eles a insegurança quanto ao futuro profissional e a relação com os professores e as disciplinas,
consideradas, em muitos casos, anacrônicas.

Introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa que está em andamento sobre os estudantes da Universidade Federal de Ouro
Preto em Minas Gerais, Brasil. O objetivo principal da pesquisa é conhecer o perfil dos alunos dos diversos cursos da
universidade, suas dificuldades, ansiedades, meios de socialização entre outros. Sabe-se que com o processo de ampliação de
vagas nas universidades públicas os estudantes deixam de ter um perfil sócio econômico homogêneo, além disso, os cursos
noturnos facilitam aos alunos trabalhadores cursar a universidade e, ao mesmo tempo, manter-se economicamente. Tais
distinções entre os estudantes se refletem nas distintas demandas na universidade, contudo, será que a mesma está preparada
para atender tais demandas oriundas de estudantes mais jovens e mais velhos, rapazes e moças, trabalhadores e não
trabalhadores, iniciantes na pesquisa e não iniciantes, alunos de licenciatura e bacharelado, dos cursos noturnos e diurnos,
etc...? Tais questões precisam ser abordadas pela universidade pública para conquistar melhor qualidade no ensino e diminuir
os índices de evasão dos diversos cursos.
Rapazes e moças cada vez mais jovens estão iniciando sua vida universitária cada vez mais cedo e todos têm em
comum a expectativa com o mercado de trabalho. Antes de se abordar referentes à relação dos universitários entre si e a
instituição, é preciso se perguntar quem são e como vivem esses jovens da atualidade. Quais são seus ideais e perspectivas
para o futuro e como têm se adaptado às contínuas mudanças tecnológicas e comportamentais dos últimos tempos e às
exigências feitas a eles pelo mercado (HARVEY 2003). Sabe-se que o mercado de trabalho vem se constituindo ao longo do
tempo em um fator de grande importância para a escolha da profissão, o que torna a escolha cada vez mais difícil. É preciso
ter em vista o que é ser jovem hoje, num mundo onde as pressões de diversas ordens sobre os indivíduos têm aumentado,
exigindo que os mesmos se qualifiquem cada vez para um mercado de trabalho em mutação.

150
A Universidade Federal de Ouro Preto conta com 5.259 alunos distribuídos em 23 cursos (não foram computados
os cursos implantados no ano de 2008). A pesquisa tem caráter exploratório e a investigação de campo tem caráter
quantitativo e qualitativo, divididos em dois momentos. Na primeira fase foram aplicados 380 questionários aos alunos de
todos os cursos em uma amostragem representativa nos períodos diurno e noturno. No segundo momento estão sendo
entrevistados 10 estudantes por meio de entrevista semi diretiva com o objetivo de se aprofundar as questões do questionários
e também àquelas que dizem respeito ao cotidiano desses alunos, suas expectativas diante da vida universitária e o mercado
de trabalho.

Juventude em Mutação
Com a aceleração e o aumento da dificuldade do processo civilizador indivídual (ELIAS, 1994), tem se percebido
um alargamento da fase da juventude e um tempo maior para se concluir as etapas necessárias a transição para a vida adulta.
Tais estágios a serem concluídos para se atingir a assim chamada vida adulta até então eram definidos por eventos1 como: a)
saída da escola; b) entrada no mercado de trabalho; c) casamento; d) a saída da casa dos pais ou de origem; e)
maternidade(no caso feminino) (CAMARANO; KANSO; MELLO, 2006). Contudo, o que tem ocorrido na
contemporaneidade é que tais momentos não têm mais significado rupturas, e muitos coincidem durante o curso da vida. Um
exemplo disso, que pode ser observado em famílias de diversas camadas sociais, é a conquista do primeiro emprego. Se na
década de 70 a inserção no mercado de trabalho constituía-se no marco para a auto-suficiência financeira e, portanto, no
símbolo da independência familiar, hoje essa conquista na vida do jovem não tem sido acompanhado da saída da casa dos
pais. Assim tem ocorrido com todos os outros fatores que evidenciam a passagem para a vida adulta. Essa interposição de
demarcações de rupturas tem ocorrido também nas outras fases da vida, mas a sua natureza e extensão dependem das novas
configurações familiares, bem como da importância que os governos de cada país deram e continuam dando às políticas de
emprego, à educação e às prioridades que estabeleceram nos seus projetos educacionais (MADEIRA, 2006).
É certo que o aumento da permanência na vida escolar também reflete a complexificação de nossa sociedade, que
tem exigido um maior preparo dos indivíduos que a constituem. Ao buscarem o aperfeiçoamento necessário para a inserção
no mercado de trabalho, as famílias têm investido cada vez mais na educação de seus filhos e, no caso das camadas médias, o
curso universitário já não basta para se obter o que é considerada uma boa colocação no mercado de trabalho. Em
conseqüência disso, a permanência por mais tempo na vida escolar, tem levado a um prolongamento do período de
dependência da família e, assim, da juventude.
O que tem sido observado também é que os jovens, apesar de terem seu período de dependência em relação a
família prolongado têm, em contra-partida, que tomar decisões importantes cada vez mais cedo em relação à escolha da
carrreira à seguir. Cada curso traz consigo um status diferente perante a sociedade, inclusive com renumerações variantes de
acordo com seu prestígio perante o grupo, o que o leva rapazes e moças a escolher, cada vez mais cedo, entre um curso que
lhe trará melhores oportunidades no mercado de trabalho ou optar pela satisfação pessoal.
Com o crescente processo de massificação da educação superior, os jovens, independentemente da origem sócio-
econômica, têm enfrentado o dilema de ser, na medida em que a disputa pelo mercado de trabalho se torna mais acirrada,
mais exigidos pela sociedade capitalista. Necessitam para isso, de mais tempo dentro das instituições de ensino superior na
busca do diploma, que ainda se constitui como fator importante para a ascensão social e status. Embora o acesso à
universidade tenha se tornado mais democrático, as oportunidades de ingresso no curso de 1ª escolha ainda não são iguais
para todos. Apesar dos cursos noturnos oferecidos por universidades públicas e privadas representarem uma possibilidade
concreta de continuidade dos estudos para o jovem trabalhador, os cursos de maior prestígio social e melhor colocação no
mercado são oferecidos no período diurno. Isso demonstra que as famílias de capital cultural, social e econômico mais
elevado, terão mais facilidades e oportunidades de propiciar a seus jovens as condições que satisfaçam as exigências dessa
sociedade detentora dos meios de produção simbólica NOGUEIRA e NOGUEIRA (2004).
Portanto aqueles que se dispõem e consegue permanecer nos bancos escolares, ingressando na universidade, estão
sob constante pressão exercida pelo mercado, pela sociedade e pela academia. Apesar disso, seu aperfeiçoamento profissional
continua sendo a prioridade para a grande maioria deles e suas famílias.
Com o processo de massificação das universidades toda a estrutura universitária e, consequentemente, seus
professores, funcionários e alunos necessitam de adaptação que vai além daquela necessária ao aumento de estudantes por
sala. Outros fatores que influenciam nesse processo segundo ZABALZA (2004) são:
O atendimento de grupos muito grandes e heterogêneos;
Baixa motivação para os estudos por parte dos alunos;
Necessidade de contratar (em muitos casos, às pressas) novos professores, técnicos e monitores;
Dificuldades por parte dos professores com salas superlotadas para variar as metodologias de ensino;
Não atendimento das necessidades específicas de cada aluno;
Menos tempo para planejamento de práticas, visitas e estágios.

1
“ A divisão da vida em etapas e cíclos é utilizada por uma questão de método, e implica uma certa arbitrariedade...” (CAMARANO; KANSO; MELLO, 2006,
p.32).

151
Tais empecilhos para um ensino de qualidade leva, em muitos casos, o aluno à reprovar ou mesmo desistir do
curso. Além disso, diante das exigências do mercado, muitos saem da casa dos pais sem estar preparados.
Pesquisas apontam que, mesmo estando preocupados com a colocação no mercado de trabalho e realizando
atividades remuneradas durante o período de estudos, os jovens têm amadurecido mais tarde do que as gerações anteriores.
Este amadurecimento tardio ocorre tanto em países desenvolvidos como os europeus, quanto nos países em desenvolvimento
(RAMOS, 2006; INPR, 2005) e isso se reflete nas relações desses jovens com a universidade, os professores e os colegas.
Esse processo de saída da casa dos pais e de início da vida universitária, que traz exigências sociais de maior autonomia por
parte do aluno, pode causar stress, evasão e outras dificuldades entre aqueles que ainda não estão preparados para essa nova
fase da vida. Entre os alunos concluintes, as angústias e temores se direcionam para a expectativa de não se enquadrar no
perfil profissional que o mercado de trabalho exige (TEIXEIRA e GOMES, 2004). Estudos realizados em Portugal
(SANTOS e ALMEIDA, 2001) constataram sérios problemas entre os estudantes universitários nos anos iniciantes e
intermediários que, em muitos casos, não encontram apoio institucional nos momentos de crise nos estudos e de convivência
com professores e colegas. De acordo com tais estudos, no processo de adaptação acadêmica, do jovem universitário é
exigido que assuma as responsabilidades pelos próprios atos, saiba lidar com a mudança, consiga desenvolver a autonomia
por meio da autodisciplina e gerencie adequadamente seu tempo e as situações de stress. Em suma, que se tenha maturidade
para tal.
Inserida nas discussões teórico-metodológicas atuais da sociologia da educação e da sociologia do curso da vida (e
transição para a vida adulta), essa investigação vem contribuindo para maior compreensão do universo do jovem, seus
conflitos, expectativas, e decepções com o estudo na universidade pública. Além de trazer importantes subsídios para se
entender suas estratégias de atuação e a relação de poder que se estabelece na sala de aula e no relacionamento interpessoal
com professores e colegas.
Certamente, tais discussões apresentam resultados que podem orientar a prática. Os dados coletados e os resultados
gerados pela pesquisa auxiliarão na compreensão dos diferentes perfis do alunado, bem como no diagnóstico das principais
demandas desse(s) grupo(s) que encontram na universidade um espaço para a formação intelectual e para a interação social.
A pesquisa oferece também subsídios para a formulação de políticas institucionais que visem à diminuição dos conflitos entre
os diversos agentes formadores e mantenedores da universidade, bem como proporciona elementos para a criação de um
sistema mais eficiente de apoio aos jovens que se encontram em dificuldade nesse período de transição para a vida adulta.
Ao ingressarem na universidade esses jovens se vêem em um novo ambiente social, diferente do qual estavam
acostumados anteriormente, pois a universidade se distingui dos demais níveis escolares, por ser uma instituição onde se
formam pessoas que terão uma grande representatividade junto a sociedade, contribuindo para a consolidação ou não de
determinadas ideológias. E nesse espaço se consolida, em um novo habitus, para utilizar uma expressão de Bourdieu
(NOGUEIRA e NOGUEIRA, op.cit.), no qual os jovens serão parte dessa estrutura social, sendo obrigados à se familiarizar
com as normas e códigos exigidos pelo mundo acadêmico.
Recém-ingressos nesse novo corpo social, estudante universitário se vê diante de novas possibílidades, inclusive da
necessidade de constituir uma nova identidade social. Partindo do pressuposto de que cada indivíduo é responsável pela sua
identidade, auto-reflexiva (GIDDENS; PIERSON, 2000), o jovem se vê diante de uma difícil tarefa, dependendo de sua visão
e de sua postura para cada situação. Contudo, o indivíduo ” ... é sem dúvida o átomo fictício de uma representação ideológica
da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama disciplina.”
(FOUCAULT, 1995, pag. 172) . Assim adotando este ponto de vista não em contradição, mas em complemento ao de
GIDDENS (op.cit.), o jovem além de ter que constituir uma nova identidade, está também envolto em jogos de poderes, dos
quais muitas vezes não se percebe, mas que é coagido por eles, adaptando- se ou não à essa realidade.
Dentro desse emaranhado complexo de forças sociais e de poderes atuando sobre os recém-ingressos, muitos
percebem, repentinamente, que têm o peso de suas ações influenciando diretamente na sua vida. O que para alguns é um fato
extremamente difícil de ser encarado, pois não é fácil para pessoas recém saídas da adolescência, enfrentar a necessidade de
gerir a própria vida escolar, financeira e particular. Como conseqüência, acabam optando por evadir do curso. Outros fatores
também são apontados como responsáveis pela repetência e evasão da graduação, um deles é a própria insatisfação perante o
curso e a universidade.
Em muitos casos, percebe-se que o que tem causado a insatisfação desses estudantes é a falta de correspondência
com suas expectativas. Tais expectativas estão relacionadas a visões pré-concebidas pelo jovem antes de ingressar no curso
escolhido ligadas aos ideais desses estudantes, incapazes de serem realizados frente ao modelo universitário atual, que tende
a acompanhar as tendências do mecado de trabalho impulsionado pelo crescente número de universidades do setor privado
(SAMPAIO 2003).
Dentro dessas considerações sobre como o jovem lida com a universidade, um fato a ser destacado é a qualidade do
ensino na perspectiva do aluno. Um dos motivos que leva o estudante a optar por um curso de graduação, é a sua
disponibilidade no mercado de trabalho, mas atrelado a isto, esta a satisfação pessoal do aluno que é um dos motivos
principais que o leva a permanecer ou desistir de um curso. E muito dessa satisfação pessoal, está intrisicamente ligado a
qualidade do ensino. Permitindo este para o aluno, a obtenção de uma maior capacidade crítica e uma visão mais analítica da
realidade.
A qualidade do ensino passa também, por uma validade prática do conhecimento obtido, este reconhecido por ele e
pela comunidade da qual faz parte. Assim, quando os alunos não têem essas expectativas alcançadas, levam-o a constatar que

152
esperava um conhecimento diferenciado e não de assuntos já dominados, insuficientemente aprofundado que não o levaram a
crescimento nenhum (GAVALDON).
Outro aspecto apontado como fundamental na relação com a qualidade de ensino, é o professor. Pois este é
considerado um espelho para o aluno, e a aceitação ou não de um determinado conhecimento, passa pelo modo como o
professor vai problematizar, instruir e incitar a capacidade crítica e intelectual de cada aluno. Desta maneira, a consideração
de uma qualidade de ensino, passa muitas vezes pelo professor, ele A Qualidade de Ensino na Visão do Aluno”, em geral a
uma avaliação positiva do docente pelos alunos.vai ser um dos critérios fundamentais para essa avaliação, mas como aponta
Gavadon em seu artigo “
Também é motivo de evasão a falta de adequação às normas da instituição disciplinadora (FOUCAULT).
Aqui estão muitos estudantes que enxergam na universidade um meio de compreender o mundo social no qual estão inseridos
para, à partir daí, tentarem modificá-lo, mas ao se depararem com a estrutura dos cursos e da instituição, bem como a relação
professor/aluno, se vêem decepcionados com sua política de normatização e disciplína. Com essa pesquisa que está sendo
realizada na UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), em todos os seus cursos, pretende-se ter uma clara noção de qual é
a perspectiva desses estudantes em relação ao mundo acadêmico e suas exigências. Ao propor conhecer o alunado de uma
universidade pública brasileira e suas práticas, essa pesquisa traz uma proposta inovadora de estudo mais amplo da
universidade. Além disso, ao enfocar as relações dos jovens com professores, instituição e colegas a investigação subsidiará
pesquisas sobre a influência histórica das políticas da educação superior no Brasil na confecção e execução dos programas e
aulas, bem como na assistência e apoio ao estudante.

Metodologia
A pesquisa cujos resultados parciais estão sendo mostrados nesse congresso está inserida em um projeto maior que
visa conhecer a Universidade Federal de Ouro Preto, nos aspectos institucional e referente aos atores que nela se
interrelacionam (professores e alunos). A pesquisa exploratória utiliza-se de fontes documentais relacionadas ao perfil do
universitário da Universidade. Está sendo realizada também uma investigação empírica por meio de uma amostragem
representativa (com 5% de erro) com a aplicação de 380 questionários aos alunos de ambos os sexos em três períodos do
curso localizados na fase introdutória, intermediária e final. O objetivo é compreender as semelhanças e diferenças entre os
alunos dos períodos diurno e noturno de cada curso, e entre os cursos das áreas de exatas, biológicas e humanas.
Posteriormente à coleta e análise dos questionários, serão feitas entrevistas aos respondentes selecionados tendo-se
como principal meta conhecer quais as expectativas e frustrações enfrentadas na vida universitária no que diz respeito à
relação com professores, colegas e instituição, bem como levantar os principais motivos que levam os estudantes
universitários à evasão.

Resultados
Na análise dos dados a pesquisa feita pela ANEP (2004) (Tabela 1) demonstrou que do universo total pesquisado,
887 entrevistas, cerca de 14,2% dos entrevistados exercem regularmente atividade não acadêmica remunerada. Sendo que
cerca de 8,7% realizam eventualmente atividade não acadêmica remunerada. É importante ressaltar que os estudantes que
mais exercem esse tipo de atividade são os das classes C, D e E (cerca de 14,8% dos entrevistados), o que significa que
nesses estratos sociais, as atividades não acadêmicas remuneradas são uma considerável fonte de recursos para os alunos de
baixa renda.

Tabela 1: Atividade Não Acadêmica Remunerada Exercida pelos Estudantes das IFES

Classe socioeconômica Total


Atividade não acadêmica remunerada
A% B1% B2% C,D,E%
Não exerce 79,7 79,5 76,9 75,7 77,0
Eventualmente 8,1 8,3 8,4 9,5 8,9
Exerce 12,2 12,1 14,7 14,8 14,2
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: ANEP – Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (2004) e UFOP

Tabela 2: Atividade Acadêmica Remunerada Exercida pelos Estudantes da UFOP

Classe socioeconômica Total


Atividade acadêmica
A% B1% B2% C,D,E%

153
Exerce 23,0 27,3 20,6 25,0 24,0
Não exerce 77,0 72,7 79,4 75,0 76,0
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: ANEP - Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (2004) e UFOP

A pesquisa revelou que apenas 24% dos entrevistados da UFOP exercem alguma atividade acadêmica remunerada
regularmente ou eventualmente e 76% não exercem (Tabela 2). Esses dados são próximos dos coletados nas outras
Universidades Federais, nas quais 26,3 % dos estudantes exercem tais atividades (Tabela 3). Nota-se que, ao contrário dos
dados apresentados na Tabela 1, os estudantes das IFES que mais exercem tais atividades regularmente são os das classes
econômicas C, D e E e no caso da UFOP são os da camada B1.

Tabela 3: Atividade Acadêmica Remunerada Exercida pelos Estudantes das IFES no Brasil

Classes
Total de
A1% B1% B2% C, D e E% Estudantes
Percentual de estudantes por classe 16 19 22 43 100

Não exerce 72 70 65 60 64,60


Eventualmente 8 9 9 10 9,10
Exerce 21 22 26 30 26,30
Total 100
Total de Estudantes 68860 85055 97891 188267 440073
Fonte: ANEP - Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (2004)

No perfil sócio-econômico da UFOP, segundo o critério de classificação econômica Brasil a classe predominante é
a B com 41,9% dos entrevistados na amostra (Tabela 4). Em seguida a classe C com 36% da população, posteriormente
seguida respectivamente das classes D com 10,6%, A com 8,4% e E com 0,5%. Nota-se aí que, embora haja representantes
de todos os estratos sociais na Universidade em Ouro Preto, a maioria dos estudantes está concentrada nas camadas B e C da
população, o que significa que a universidade precisa estar preparada para demandas de diversas ordens.
A desigualdade no perfil sócio econômico pressiona a universidade à traçar ações que atinjam os diversos públicos.
Tais ações vão desde a criação e manutenção de mecanismos que facilitem o acesso à alimentação e moradia estudantil
gratuita e de baixo custo até a disponibilização de bolsas de estudo que possam contribuir para a manutenção do estudante na
universidade. Tal disparidade também possibilita à reflexão à respeito do capital cultural e da apreensão dos conteúdos
ministrados pelos professores nas diversas disciplinas escolares. O apoio da universidade na manutenção econômica e
escolar do aluno é, em muitos casos, fundamental para que o mesmo possa se manter estudando e se preparando para o
mercado de trabalho, cada vez mais seletivo.

154
Tabela 4: Classe Econômica Segundo Critério de Classificação Econômica da UFOP

Classe socioeconômica Freqüência %

A1 5 0,6
A2 69 7,8
B1 133 15,0
B2 239 26,9
C 319 36,0
D 94 10,6
E 4 0,5
S/Resposta 24 2,7
Total 887 100,0
Fonte: ANEP - Associação Nacional de Empresas de Pesquisa (2004)

Esses dados em comparação com a pesquisa com as IFES no Brasil feita pela ANEP novamente sugerem uma
semelhança significativa para a composição sócio-econômica na distribuição dos estudantes. Segundo a distribuição
percentual na pesquisa nacional, a classe econômica predominante é a B com 41,5% dos entrevistados. Em seguida a classe C
com 30,9% dos entrevistados, e assim posteriormente seguida das classes A com 15, 6% e D com 11,1%.

Gráfico 1: Perfil Etário dos Estudantes da UFOP

Fonte: Pesquisa sobre Jovens Universitários na UFOP – NEASPOC, 2007.

No que diz respeito à idade, o Gráfico 1 demonstra que os alunos da graduação na universidade em estudo são
jovens (78% tem até 24 anos), embora seja significativa a presença de estudantes com mais de 25 anos (cerca de 20%).

155
Gráfico 2: Expectativa dos Jovens Universitários Quanto ao Mercado de Trabalho

Fonte: Pesquisa sobre Jovens Universitários na UFOP – NEASPOC, 2007.

De acordo com a pesquisa realizada, é possível observar que não existe uma expectativa muito negativa quanto ao
mercado de trabalho (Gráfico 2). Apenas 3% do corpo discente qualificou como muito negativa sua expectativa de entrada no
mercado de trabalho, 13% qualificou como negativa. Entre os otimistas observamos a maioria. 60% dos entrevistados têm
uma visão positiva quanto ao futuro, 8% muito positiva e 13% dos estudantes se mantiveram indiferentes. A Escola de
Nutrição e a escola de farmácia foram as que melhor qualificaram sua expectativa de entrada no mercado de trabalho,
enquanto o Instituto de Filosofia e Artes Cênicas foi o instituto que apresentou a expectativa mais negativa. Esses dados
revelam que o jovem já entra na universidade com certa expectativa com relação ao futuro profissional e existe uma forte
relação entre o curso de ingresso e a expectativa negativa ou positiva quanto à inserção no mercado de trabalho e a satisfação
profissional.

156
Gráfico 3: Expectativa Quanto à Preparação do Curso para o Mercado de Trabalho

Fonte: Pesquisa sobre Jovens Universitários na UFOP – NEASPOC, 2007.

É possível notar no gráfico 3 que a maioria dos estudantes da UFOP acreditam na universidade como agente
preparador para o mercado de trabalho. Apenas 2% do corpo discente entrevistado considera a preparação que estão
recebendo é péssima, 6% avalia como ruim, 11% consideram a preparação que o curso oferece como regular, 77% avaliam
como boa e apenas 4% dos entrevistados consideram ser a preparação excelente. Dentre os institutos a Escola de Nutrição é a
que melhor avalia a preparação do curso para o mercado, seguido pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais e a Escola de
Farmácia. Isso significa que aproximadamente 18% avaliam negativamente a sua preparação para o mercado de trabalho e a
grande maioria (78%) avaliam positivamente.
Essa tendência otimista diminui de acordo com o decorrer do curso. Muitos alunos percebem que a exigência do
mercado de trabalho é maior e muda mais rápido do que a sua preparação. Em muitos casos, os professores são apontados
como retrógrados e desatualizados no conteúdo de suas aulas, o que dificulta o acompanhamento das novas exigências das
empresas.

Gráfico 4: Relação entre Expectativa de Preparação do Curso para o Mercado de Trabalho e Tempo de
Permanência na UFOP

Fonte: Pesquisa sobre Jovens Universitários na UFOP – NEASPOC, 2007.

157
De acordo com o gráfico 4 existe uma certa euforia quanto à expectativa de ingresso no mercado de trabalho nos
primeiros anos de permanência na universidade (52% dos alunos de 1 a 3 anos na universidade consideram muito positiva a
preparação do curso para o mercado de trabalho), contudo, a média tende a diminuir quando se aproxima o ano de conclusão
do curso (16% dos alunos que estão de 4 à mais de 5 anos na universidade consideram muito positiva tal preparação). O auge
da positividade quanto ao futuro profissional ocorre entre os 2 e 3 anos de curso (37%). Pode-se observar também que as
avaliações mais negativas estão presentes entre os primeiros e os últimos anos, sendo que os alunos que estão a mais de 5
anos na UFOP apresentam-se mais indiferentes quanto à essa expectativa.

Conclusão
O jovem recém-ingresso na universidade encontra-se diante de uma realidade diferente de tudo que experienciou na
vida. A expectativa é alta e abrem-se novas possibilidades, inclusive oriundas da necessidade de constituir uma nova
identidade social, e esse processo em muitos casos, é muito difícil para o jovem recém saído (ou não) da adolescência. É
exigido dele a capacidade de auto gerir sua nova vida acadêmica e particular, além de se deparar com currículos e sistemas de
aulas e avaliações totalmente anacrônicos. Isso provoca no jovem a desilusão diante de sua formação individual e
profissional.
A universidade, por sua vez, nem sempre está preparada para ouvir e atender o que esse jovem em adaptação
necessita e, sem apoio institucional, o mesmo acaba por perder disciplinas, reprovar ou, em casos mais graves, evadir do
curso.
A pesquisa sobre os estudantes universitários de Ouro Preto tem como proposta ouvir e compreender à luz da teoria
sobre o assunto, quais são as necessidades, dificuldades, expectativas e frustrações da comunidade discente. Para isso é
necessário que se conheça qual é o perfil dessa população, constituída por jovens de diversas camadas sociais, cor/raça, de
ambos os sexos, trabalhadores ou não, etc que estão em constante mutação durante seu processo de amadurecimento
intelectual e emocional. Tal diversidade provoca distintas demandas na instituição. A investigação não está concluída, porém
já pode oferecer elementos de análise com relação ao perfil desse aluno e às suas expectativas diante do mercado de trabalho
em mutação e cada vez mais exigente de mão de obra técnica competente, mas capaz de ser flexível nos momentos de crise.
Os dados coletados na UFOP estão próximos dos observados nas demais instituições públicas de ensino superior e revelam a
necessidade dessas instituições colocarem à disposição de seus alunos bolsas de estudos e demais atividades que possam
subsidiar sua permanecia na universidade, bem como oferecer o ensino de qualidade e programas de apoio ao estudante que
trabalhe suas reais necessidades e tenha ações efetivas no universo acadêmico.

Apoio: FAPEMIG
NEASPC e PRACE/UFOP

Referências:
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158
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na internet em 22 Novembro 2008).
Zabalza, M. (2004). O Ensino Universitário: seu cenário e seus protagonistas. Porto Alegre: Artmed.

Guia de informação aos pais como factor preditor ao sucesso académico dos
filhos na universidade

Dayse Neri de Souza


Universidade de Aveiro
dayneri@ua.pt

Carlos Fernandes da Silva


Universidade de Aveiro
csilva@ua.pt

Resumo: A entrada dos estudantes no ensino superior constitui uma fase de cruciais desafios, experiências stressantes e de grande tensão
emocional. A transição para a universidade requer novas exigências, responsabilidades e preparação para funções de adulto, no âmbito
afectivo, vocacional, académico e social. Em muitos casos, os pais não são informados sobre muitas das situações que os filhos irão enfrentar
no contexto académico. Nesta perspectiva, o presente trabalho tem como objectivo apresentar uma parte dos resultados do projecto de
investigação intitulado “Interacção família/ensino superior como factor preditor ao sucesso académico”. Os resultados qualitativos indicam a
percepção dos pais sobre o Guia de informação aos pais – sucesso na transição dos filhos para a universidade, assim como a importância de
se promover palestras informativas sobre as dificuldades dos filhos na transição para a universidade, de apoiá-los, mesmo a distância, como
factor preditor ao sucesso académico.

Introdução
No âmbito da transição dos alunos do nível secundário para o nível superior, estudos constatam problemas de
ajustamento no ambiente académico, nomeadamente adaptação às novas regras e tarefas impostas no ensino superior, novas
responsabilidades na forma de viver os aspectos pessoais, relacionais com a família e sociais com os novos amigos. Além da
gestão do tempo para o cumprimento de todas as responsabilidades e o factor emocional de viver longe do seu ambiente
natural.
Estes factores multifacetados poderão acarretar no insucesso dos alunos no contexto académico e possivelmente
profissional. A fase académica é considerada uma fase importante e decisória na vida dos jovens. É o momento em que
deixam a vida de dependência escolar para a de uma aprendizagem autónoma. Fase em que vivenciam sentimentos de
ambivalência e experiências stressantes que poderão, sem a devida atenção, provocar problemas psicopatológicos. Entram na
universidade como adolescentes e sairão como adultos, futuros profissionais.
Das muitas alterações que os estudantes enfrentam no ingresso ao ensino superior, além dos factores académicos de
não se basear mais em manuais e sim textos científicos e livros em língua estrangeira, dominar novas ferramentas
informáticas e tecnológicas, que para alguns são desconhecidas, sistema pedagógico das aulas, turmas e vários professores,
momentos e tipos de avaliação, ritmos das aulas, o factor emocional e dependência familiar tem-se verificado como factor
crucial na vida desses adolescentes e futuros jovens (Neri de Souza, 2006; Pratta & Santos, 2007).
Os estudantes que ingressam no ensino superior/universidade são muitos deles adolescentes, com vivências ainda
imaturas. Como é sabido, a adolescência é conhecida como um ciclo da vida de transição, em que poderá ocorrer
desequilíbrios e instabilidades cruciais, imbuídos de sentimentos de insegurança, angústia, acarretando problemas de
relacionamentos. É nesta etapa da vida que muitos adolescentes necessitam manter ligação afectiva e diálogo com os pais,
todavia ao ingressarem na universidade e, em muitos casos, terão que enfrentar a “saudade de casa”.
O apoio da família exerce um papel importante na madurez dos indivíduos em todos os aspectos da vida, seja para
as funções biológicas, psicológicas e sociais. No aspecto psicológico e social, alguns autores (Adams, Ryan, & Keating,
2000; Hill & Taylor, 2004) afirmam a importância interacção, envolvência afectiva e comunicacional dos pais para o sucesso
académico dos filhos.
Segundo Brewin, Furnham, & Howes (1989) a distância dos pais e do contexto familiar tem sido estudado como
factor decisivo no ajustamento pessoal e social dos estudantes na universidade. Tem sido factor explicativo para o número de
fracassos na concentração nos estudos e pouca qualidade nos trabalhos.
A “saudade de casa” (homesickness) tem sido alvo de investigações (Fisher & Hood, 1987) em que corroboram que
estudantes que vivenciam este fenómeno enfrentam sintomas de depressão, ansiedade e mudanças somáticas. O contexto
familiar na percepção de Youniss & Smollar (1990) realçado por Celen, Cok, Bosma, & Djurre (2006) afirmam que é no
contexto social da família que o adolescente desenvolve autonomia.

159
Podemos verificar que o alcançar sucesso ou não obter sucesso académico, poderão estar relacionados com os
factores pessoais, psicológicos, sociais e mesmo institucionais na situação da entrada do estudante no ensino superior.
Neste contexto, nos detemos em analisar o contributo dos pais na transição dos filhos à universidade,
compartilhando com outras realidades estrangeiras que têm desenvolvido a participação dos pais no ajustamento académico
dos filhos. Essa realidade não pode ser mais incógnito, uma vez que a cada ano tem-se verificado a presença dos pais ao
acompanhar os filhos nas matrículas e nas praxis.

Método
O estudo da “Interacção família/ensino superior como factor preditor ao sucesso académico” tem como objectivo
verificar se o facto de os pais conhecerem a universidade, a prática pedagógica da instituição, informá-los das dificuldades
que os filhos enfrentam na transição e o acompanhamento familiar no percurso do 1º ano académico são factores preditores
para o bom rendimento dos filhos na universidade.
Para o ano lectivo de 2007/2008, foi realizado na Reitoria da Universidade de Aveiro uma recepção aos pais (dois
dias), em que participaram alguns representantes dos órgãos responsáveis no apoio aos estudantes caloiros. Participaram o
Vice-Reitor para educação e formação graduada, a Vice-Reitora para a formação pós-graduada, Administrador dos Serviços
de Acção Social, Representante do Gabinete Pedagógico, aluno do 5º ano do curso de Engenharia para um testemunho na 1ª
pessoa sobre a sua transição e uma Professora Doutora do Departamento de Ciências da Educação que apresentou o tema
sobre o stress e as problemáticas dos estudantes na transição à universidade.
Antes de finalizar a recepção, os pais voluntariamente responderam um inquérito com escala de Likert acerca dos
filhos ingressarem na Universidade de Aveiro, o relacionamento com os filhos, os novos desafios que iriam enfrentar, o apoio
nas actividades e novas responsabilidades e as questões financeiras (Neri de Souza & Silva, 2008). Neste mesmo inquérito foi
solicitado o endereço pessoal para receberem via correio o Guia, tendo em conta não ter sido publicado atempadamente para
a ocasião.
Dos que participaram da recepção, 120 responderam ao inquérito e disponibilizaram os endereços. A amostra
participativa para este trabalho foi de pais que voluntariamente responderam o inquérito de questões fechadas e abertas sobre
o Guia de informação aos pais – sucesso na transição dos filhos para a universidade. Foram seleccionados 25 pais das regiões
mais distantes do país. A selecção desta amostra respondia ao critério para analisarmos a utilidade do Guia como um apoio
aos pais à distância. Dos 25 pais seleccionados, após duas solicitações para colaborarem, 10 colaboraram. Ao nível do país,
obtivemos uma representatividade por regiões (norte, centro, sul e ilhas), como mostra o Quadro 1 abaixo.

Quadro 1: Amostra dos pais por localidade e distrito


Pais/ Localidade Distrito
P1 Viana do Castelo Viana do Castelo
P2 Vila Nova de Gaia Porto
P3 Torres Novas Santarém
P4 Lagoa Faro
P5 Funchal Região Autónoma da Madeira
P6 Angra do Heroísmo Região Autónoma dos Açores
P7 Horta Região Autónoma dos Açores
P8 Guarda Guarda
P9 Luso Aveiro
P10 Pinheiral Vila real

O inquérito de perguntas abertas enviado por correio aos pais é composto por 18 questões fechadas e abertas. As
perguntas tinham por base se leu o guia, opinião sobre os temas abordados, se consultava, se conhecia ou não as
problemáticas abordadas, se foi útil, se compartilhou com o filho(a) os temas abordados, se o guia orienta em como lidar
melhor com o filho(a), a necessidade de contactar com o filho(a) durante o ano lectivo e se consideravam a pertinência de se
realizar seminários sobre as problemáticas dos filhos(a) na universidade.
Para este trabalho seleccionamos três perguntas, a saber: Leu o guia? Qual a sua opinião? Qual a sua opinião sobre
os temas abordados no Guia? Considera importante realizar seminários aos pais sobre as problemáticas dos filhos na
adaptação à Universidade?
Foi utilizado para análise dos resultados o software para análise de conteúdo NUD*IST versão 6.

Resultados
Os resultados obtidos das respostas dos pais às questões sobre a opinião geral e temática do Guia, bem como a
importância de se realizar seminários sobre a problemática dos filhos à entrada na universidade, serão apresentados de forma
descritiva com exemplos dos discursos dos pais.

160
Das respostas fechadas das questões seleccionadas, constatamos que os pais responderam positivamente a criação e
utilização do Guia como apoio aos pais, como mostra o Quadro 2, abaixo.

Quadro 2: Opinião dos pais sobre o Guia de Informação aos Pais


Pais Leu o Guia Opinião Guia Opinião_Temas_Guia Importante-Seminários
P1 Sim Importante Importante Sim
P2 Sim Importante Muito Importante Sim
P3 Sim Importante NR NR
P4 Sim Importante Importante Não (guia é suficiente)
P5 Sim Importante Importante Sim
P6 Sim Muito Importante Muito Importante Sim
P7 Sim Importante Muito Importante Sim
P8 Sim Importante Importante Sim
P9 Sim Muito Importante Importante Sim
P10 Sim Importante Muito Importante Sim

Após análise dos resultados das perguntas abertas e realizada a categorização e codificação das respostas em três
dimensões (opinião geral sobre o Guia, opinião sobre os temas abordados no Guia e a necessidade de realizar seminários
sobre as problemáticos dos filhos na adaptação à universidade), verificamos que a opinião dos pais sobre o Guia é importante
ao promover o conhecimento do problema que os filhos enfrentam na transição, para tirar dúvidas sobre alguns aspectos, útil
para saberem como agir/ajudar os filhos, conhecerem como funciona a universidade, conhecerem mais sobre a vida
académica, que a distância pode ser um impedimento para que os pais participem de seminários e que o Guia é suficiente
para ajudar os pais. O Quadro 3 abaixo, mostra os resultados numericamente.

Quadro 3: Dimensões e categorias dos discursos dos pais sobre o Guia


Dimensões Conhecer Tirar_ Acção Conhecimento Vida Distância Guia Sem
Problema Dúvidas UA Académica Suficiente Resposta
Opinião_Geral_Guia 4 3 1 1 0 0 0 1
Opinião_Temas_Guias 5 2 0 0 2 0 0 1
Seminário_Problemáticas 5 2 0 0 0 1 1 1
Total 14 7 1 1 2 1 1 1

De acordo com o Quadro acima, podemos constatar que no total de respostas analisadas os pais são da opinião que
o Guia foi importante para fazê-los conhecer e tirar dúvidas acerca das problemáticas que os filhos enfrentam no ingresso à
universidade. Dos 10 respondentes sobre a opinião geral sobre o Guia, 4 afirmaram que foi útil para conhecer as
problemáticas e 3 para tirar dúvidas. Como afirma o P1 e P2:

“No início, onde tudo é novo e todas as dúvidas se levantam, qualquer


informação é bem-vinda. Ajudou a tirar algumas dúvidas relativas ao
funcionamento da UA, que não estavam para nós ainda bem definidas e
sentimos que a Universidade se preocupou com a temática”. P1

“Ao ler o Guia ficamos mais atentos a possíveis problemas que possam
surgir com a nossa filha ao longo do percurso académico”. P2

Relativamente a opinião sobre os temas abordados no Guia, dos 10 respondentes e em concordância com os dados
numéricos, 5 foram de total acordo que os temas abordados acerca do conhecer o problema tornou-se o item mais importante
e/ou muito importante, enquanto 2 ressaltaram de terem sido úteis para tirar dúvidas como destaca as falas abaixo:

“Porque se tratam de assuntos relacionados com a realidade da vida


académica dos alunos e do seu dia-a-dia na universidade”. P7

“Porque estes temas deixam-nos pensar de uma perspectiva diferente e


mais objectiva”. P8

A análise das respostas da questão sobre a importância de realizar seminários sobre as problemáticas dos filhos na
adaptação à universidade, os dados do Quadro acima, indica que dos 10 respondentes, 5 responderam que consideram
importante para melhores esclarecimentos e 2 para tirarem dúvidas.
“Porque muitos pais não estão despertos para estas problemáticas e há
jovens que têm muitos problemas de adaptação, nomeadamente aqueles que

161
nunca saíram de casa, os muitos dependentes dos pais, aqueles que tem
baixa auto-estima, os que não conseguem entrar no curso que gostariam, os
que partilham apontamentos com colegas que nem sempre são os ideais, ou
que encontrem colegas competitivos, os que não levam uma boa preparação
académica, etc.”. P7

É de salientar que houve um respondente que realçou a ideia de que o Guia era suficiente para ajudar os pais.

“I think the Guia is sufficient as it seems to cover most, if not


every, subject necessary”. P4

Convém ainda sublinhar que, de acordo com 1 respondente, o Guia possibilitou conhecer acerca do funcionamento
da universidade, como cita o P10:

“Porque me ajudou a compreender melhor como funciona a universidade”. P10

Verificamos, ainda, que apenas 1 respondente ressaltou a importância de conhecer os problemas para saber como
agir. Enquanto os outros respondentes limitaram-se a comentar da necessidade de conhecerem as problemáticas.

Considerações Finais
De acordo com a literatura e com as análises acima, permitem-nos, assim, considerar que é de total relevância que
os pais necessitam de serem esclarecidos sobre as problemáticas que os filhos enfrentam na transição e adaptação à
universidade. Ao considerar que este conhecimento poderá tornar-se num envolvimento contributivo para o sucesso
académico dos filhos. É sabido que, a família é uma instituição fundamental para a constituição dos indivíduos e formação da
personalidade, que com o apoio permanente recompensará nas dificuldades pessoais, sociais, psicológicas e
consequentemente académicas (Sarti, 2004).
É no seio da família que se alicerçam as normas e valores que permeiam toda a vida e que cooperam em tomadas de
decisões e atitudes até o mundo da adultícia. O amadurecimento biopsicossocial do indivíduo transcorre no contexto familiar
e no integrado processo de inter-relações.
Apesar de os estudantes ingressarem numa vida direccionada à autonomia, a necessidade da ligação afectiva,
psicológica e social da família contribuirá para um envolvimento motivacional para alcançarem sucesso (Gonzalez-DeHass,
Willems, & Holbein, 2005).

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162
Motivação para o ingresso e aprendizagem no Ensino Superior: o caso dos
estudantes maiores de 23 na Universidade de Aveiro

Ana Vitória Baptista


Universidade de Aveiro
ana.vitoria@ua.pt

José Bessa
Universidade de Aveiro
jabessa@gmail.com

José Tavares
Universidade de Aveiro
jtav@ua.pt

Resumo: Desde 1999 o Processo de Bolonha tem demonstrado ser um móbil impulsionador de mudanças profundas no panorama
educacional do Ensino Superior (ES). Daqui ressaltamos uma maior ênfase colocada na abertura à equidade e à diversidade de públicos não-
tradicionais que podem ingressar no ES e um reforço da ideia associada à Aprendizagem ao Longo da Vida. De facto, assistimos à
promulgação do DL nº 64/2006 que legisla sobre a entrada de indivíduos Maiores de 23 (M23) com determinadas características nas
Instituições de ES. Estes são considerados estudantes maduros ou estudantes adultos não-tradicionais, devido às características particulares
que apresentam. É sobre a caracterização deste público que assenta a nossa investigação de Mestrado.
Neste trabalho propomos divulgar determinadas conclusões que advêm da análise de conteúdo de cartas de motivação dos alunos M23
matriculados na Universidade de Aveiro em 2006-2007, ressaltando as categorias de análise que delas poderemos retirar. Igualmente, de uma
análise de conteúdo a entrevistas realizadas a M23, salientaremos as expectativas criadas e o seu grau de satisfação das mesmas depois do
seu ingresso no ES.
Consequentemente, o nosso estudo visa: (i) relembrar genericamente a ênfase colocada na abertura do ES a novos públicos e na
Aprendizagem ao Longo da Vida, conceito considerado por nós como um princípio; (ii) reexaminar a Literatura Nacional e Internacional
referente à caracterização deste novo público; (iii) divulgar algumas conclusões da nossa investigação de Mestrado, recorrendo à análise
anteriormente descrita; (iv) propor caminhos para futuras investigações.

Introdução: Sobre a supercomplexidade do nosso Tempo


Cremos que é adquirido que hoje se vive numa época em que a sociedade do conhecimento muito exige, devido às
suas mais diversas mutações. Mais: esta economia do conhecimento, que a todos implica como capital humano e intelectual,
impulsiona-nos a responder a mudanças e imprevisibilidades constantes.
Inclusivamente, inúmeras e vertiginosas questões, em todas as esferas da nossa vida, são lançadas, não apenas pelo
tão falado fenómeno de globalização e das suas consequências, como também pela inevitabilidade do próprio mundo
contemporâneo, repleto de novas tecnologias. Consequentemente, temos de ver, interpretar e actuar nesta sociedade,
entendendo-a e construindo-a como the understanding society or the wise society (Barnett, 1994, p.42).
Na verdade, num mundo de supercomplexidade, a infinidade e multiplicação de frameworks (estruturas da mais
variada ordem, importância e particularidades), frequentemente em conflito, pedem um comprometimento efectivo dos
indivíduos e das Instituições, através de respostas inovadoras e concertadas, de forma a agir sobre o exigente quotidiano com
que nos defrontamos. E esta exigência e novas demandas conduzem Barnett (2000) a caracterizar este mundo como
desconhecido, incompreensível: enfim, unknowable (p.42). E, para além da constante incerteza, a velocidade a que o mundo
e os conhecimentos giram e se criam é tal forma grande, que não conseguimos responder-lhes e acompanhá-los.
Por estes e tantos outros aspectos caracterizadores da realidade deste nosso Tempo, poderemos dizer que a
supercomplexidade está inclusivamente presente nas Instituições de ES, apesar de haver outras instituições produtoras de
conhecimento e com grande importância. Consequentemente, focando a nossa atenção no ES, cabe-lhe uma enorme
responsabilidade em preparar os seus estudantes, tradicionais ou não-tradicionais, munindo-os de ferramentas flexíveis,
reflexivas e criativas, que lhes permitam ser bem sucedidos no trabalho, na sociedade, enfim, nas várias esferas da sua vida.
Por isso mesmo, poderemos mencionar que as Instituições de ES são organismos vivos que ora aprendem, ora
desaprendem. Assim, as mudanças aí produzidas não devem ser meras adaptações, mas sim transformações, tendo em conta
os equilíbrios possíveis e uma melhor gestão das muitas demandas e desafios, que surgem ao nível institucional,
especialmente no domínio das respectivas práticas (Zabalza, 2002). Neste sentido, focamos o nosso olhar sobre um novo
público – os estudantes adultos não-tradicionais (EANT) – que, progressivamente em maior número, tem entrado no ES: há
que caracterizá-lo e compreendê-lo, com o grande e maior objectivo de lhes proporcionar um percurso de qualidade, onde as
suas aspirações, expectativas e motivações não saiam goradas.

Aprendizagem ao Longo da Vida: Para uma pequena revisão de um princípio

163
Com a leitura de diversos documentos europeus, facilmente poderemos concluir que
a educação e a formação (…) constituem, actualmente, uma das áreas de trabalho prioritárias da União Europeia, de
modo a possibilitar a emergência de uma Europa do conhecimento (Pacheco & Vieira, 2006, p.87).

De facto, o Processo de Bolonha salienta que os seus objectivos e ideologia, particularmente em termos de agenda
educativa de ES (embora não possamos ignorar objectivos de outra ordem), se têm mantido na ordem do dia. E, de facto, ao
analisarmos variados documentos oficiais, em especial os relatórios relativos às reuniões ministeriais bienais que se seguiram
à assinatura do Tratado de Bolonha em 1999, constataremos um foco abrangente na perspectiva educacional. Neles
poderemos notar um enfoque explícito ao assumir a Aprendizagem ao Longo da Vida como um motor importante para se
atingir um Espaço Europeu de ES forte, competitivo, equitativo. Esta será, pois, uma forma de se atingir a Europa do
Conhecimento, reconhecida como um
factor insubstituível para o crescimento humano e social, sendo componente indispensável para a consolidação e para o
enriquecimento da cidadania europeia, capaz de fornecer aos seus cidadãos as necessárias competências para encarar
os desafios do novo milénio, bem como desenvolver a consciência de valores partilhados e relativos a um espaço
comum, social e cultural. (Declaração de Bolonha, 1999, p.1)

Igualmente, essa tónica colocada sobre a Aprendizagem ao Longo da Vida apresenta como essencial vários pontos,
dos quais destacamos:
- A abertura das instituições de ES a públicos adultos, com variadas características, que desejem recomeçar ou
iniciar o seu percurso no ES, com as mais diversas motivações;
- O reconhecimento de competências e experiências anteriormente adquiridas noutros contextos;
- A existência de um sistema de créditos de tipo ECTS (European Credit Transfer and Accumulation System) e do
Suplemento ao Diploma que promovam flexibilidade e mobilidade dentro do sistema e estimulem também o reconhecimento
de competências adquiridas em ambientes formais, não-formais e informais;
- O reforço da coesão social, da equidade, da cidadania e da liberdade de escolha do momento e do percurso de
educação e formação;
- A existência de flexibilidade e articulação entre os diversos percursos formativos.
Ao mesmo tempo, e neste contexto, damos conta do rejuvenescer de um conceito que, embora nunca esquecido,
tem vindo a adquirir uma importância digna de nota, devido à relevância e ao potencializar do desenvolvimento integral do
ser humano. De facto, perante os dias de hoje e os desafios colocados a nós, cidadãos, e às próprias Instituições, é necessário
entender a Aprendizagem ao Longo da Vida, a sua essência, ideologia e propostas. Nesta sequência, destacamos uma
definição deste conceito, que consideramos que parte de uma abordagem holística, abrangente e enriquecedora:
Lifelong Learning is the development of human potential through a continuously supportive process which stimulates
and empowers individuals to acquire all the knowledge, values, skills and understanding they will require throughout
their lifetimes and to apply them with confidence, creativity and enjoyment in all roles, circumstances, and
environments. (Longworth and Davies, 1998, p.22)

Relendo a Literatura: O estudante adulto não-tradicional


De facto, o público estudantil que frequenta as instituições de ES tem-se tornado cada vez mais heterogéneo. E,
para se colocar em prática estratégias de vária ordem para se dar respostas eficazes e bem sucedidas ao que esta nova e
sempre emergente realidade solicita ao ES, é necessário ter uma visão, pelo menos geral, das características dos estudantes.
Neste sentido, afigura-se-nos pertinente concentrar o nosso olhar nos EANT, os M23, que, embora já entrassem nas
instituições de ES via ad hoc, neste momento o Decreto-Lei nº 64/2006, de 21 de Maio, torna a realidade mais diferente. Na
verdade, segundo Gomes (2002, p.5):
Uma preocupação generalizada a todas as instituições é a de reforçarem as suas capacidades para receberem
estudantes mais velhos já com experiência profissional. Acolherem e reacolherem profissionais que ali irão procurar a re-
qualificação ou simplesmente novas competências cuja carência foi identificada. Este é um novo público com exigências bem
diferentes dos jovens adultos a que as universidades estão mais habituadas.
Este é, como esperávamos, um público de estudantes mais velhos, com diferentes exigências, características e
especificidades, não-tradicional e bastante heterogéneo. Mas, sublinhamos que, apesar de adoptarmos a referida terminologia
EANT, a verdade é que, como nos dizem vários estudiosos (Rautopuro & Vaisanen, 2001; Smith, 2005), o uso de termos
como adulto, não-tradicional, maduro, é um pouco problemático, pois a semântica veiculada depende do contexto em que
estão inseridos e do país onde são mobilizados. Até mesmo a própria idade poderá variar de país para país (Santiago, Rosa &
Amaral, 2000). No entanto, cremos que são as características profissionais, pessoais, motivacionais e psicológicas que dão
conta da sua diferença qualitativa em relação aos seus pares estudantes tradicionais. Consequentemente, neste contexto,
deveremos realizar uma pequena incursão pela Literatura, com o objectivo de retirarmos características, apesar de gerais, que
nos permitam perceber quem são estes estudantes adultos.
Para Correia e Mesquita (2005, p.37), este grupo não-tradicional abarca

164
pessoas adultas que abandonaram o percurso escolar sem qualificações, estiveram afastados do sistema de ensino
durante bastante tempo, não têm experiência prévia do ensino superior e provêm de grupos económico e socialmente
desfavorecidos (podendo aplicar-se um ou mais destes factores).

Na linha anterior também seguem os autores atrás mencionados (Santiago, Rosa & Amaral, 2000).
Por sua vez, de acordo com o Decreto-Lei n.º 64/2006 de 21 de Março referido anteriormente, estes são
indivíduos que, não estando habilitados com um curso secundário ou equivalente, façam prova, especialmente
adequada, de capacidade para a sua frequência. E são sujeitos maiores de 23 anos.
De qualquer forma, múltiplos factores fazem destes adultos estudantes ditos não-tradicionais. Para isso concorrem
aspectos sociais, familiares, pessoais, experienciais, profissionais, cognitivos, afectivos, motivacionais, educacionais.
Consequentemente, é natural que tragam consigo, para os bancos do ES, especificidades maiores e competências adquiridas
mais consolidadas e variadas, alcançadas por outras vias, noutros contextos. Por conseguinte, reforçamos a ideia de que é
necessário um dispositivo credível, transparente e justo de reconhecimento e certificação de competências, o qual permita que
experiências e competências anteriores já adquiridas possam ser reconhecidas e tidas em conta no percurso educacional
formal. Desta forma estar-se-á a actualizar e a potencializar a Aprendizagem ao Longo da Vida em algumas das suas
vertentes.
Igualmente, em estudos internacionais existem algumas definições similares, que se vão completando e clarificando
as características deste público. Assim, estes EANT podem:
- Deter responsabilidades familiares e de emprego que é, normalmente, a tempo inteiro;
- Frequentar o ES em part-time, devido à falta de tempo para conciliarem todos os seus compromissos, de ordem
diversa e ao facto de muitas instituições de ES não apresentarem horários mais flexíveis;
- Ser independentes financeiramente;
- Não possuir diplomas de ensino secundário;
- Apresentar motivos de ordem diversa para quererem recomeçar, pela primeira vez, o seu caminho no ES, podendo
ser mais focados nos objectivos que pretendem alcançar (Shankar, 2004).
Importantes características são observadas por Kasworm (2003, p.3) que caracteriza o estudante adulto como:
as one who represents the status of age (…); the status of maturity and developmental complexity acquired through
life responsibilities, perspectives, and financial independence; and the status of responsible and often-competing sets of adult
roles reflecting work, family, community, and college student commitments.
Por sua vez, Rogers (2002, p.71) ainda salienta:
the student participants define themselves as adults; they are in the middle of a process of growth (…); they bring
with them a package of experience and values; they come to education with intentions; they bring expectations about the
learning process; they have competing interests; they already have their own set of patterns of learning.
Apesar de podermos sistematizar estas características, temos de olhar para elas com cautela, tendo sempre em conta
o contexto onde contactaremos com estes EANT. De facto,
Adult learning and continuing education are of growing importance of our changing society. (Pascual-Leone &
Irwin, 1998, p.35)
Por isso é que consideramos essenciais reflexões continuadas sobre estas temáticas e a urgência de se reflectir sobre
o papel do docente, do estudante adulto e do processo de ensino e aprendizagem em contexto de ES tendo em conta toda esta
dinâmica e contexto.

O processo de entrada para M23 na Universidade de Aveiro: Breve descrição


Para que um EANT possa ingressar numa instituição de ES, ele terá de apresentar-se como detentor de alguns
atributos prévios, estando, como observámos, os mais gerais previstos no mencionado Decreto-Lei nº 64/2006. Por sua vez, a
UA promulgou um Despacho – nº 18137/2006 – que estabelece a forma como se processa a entrada dos M23 nesta
instituição. Assim, cremos ser importante tornar explícitas as fases pelas quais os candidatos têm de passar para conseguirem
ingressar na UA, igualmente com o objectivo de desmistificar a ideia de que este regime dirigido aos M23 é apenas de
simplicidade e simplista (no aspecto pejorativo e negativo da palavra).
Assim, num primeiro momento, os candidatos têm de preencher um formulário normalizado e entregar a
documentação solicitada. Se na primeira edição poderiam recorrer ao suporte papel ou ao digital, a partir de 2008 a
candidatura só se pode efectuar por computador. O segundo momento é constituído pela prova(s) específica(s) do Curso a
que o candidato se propõe. Em alguns casos, a prova específica poderá também ter uma vertente prática, dependendo,
novamente, do Curso a que se candidata. Num terceiro e último momento, os que obtiverem uma classificação superior a 8
valores na prova de conhecimento, são chamados a uma entrevista. Neste ponto, não só se tem em consideração a nota que o
candidato obteve na prova escrita, como são analisados os seguintes aspectos, contidos no formulário de candidatura, aos
quais são dados extrema relevância: (i) motivações no que concerne à escolha do Curso; (ii) Curriculum Vitae; e (iii)
experiência profissional, pessoal e académica. Ainda durante a entrevista, concomitantemente, o júri fornece ao candidato
informações sobre o Curso, seu plano, exigências e saídas profissionais. Por vezes, até há uma tentativa de
reencaminhamento do candidato para outro Curso, que se revele mais adequado ao seu perfil.

165
Finalmente, a nota final com que os adultos se candidatam a um Curso da UA é baseada nos seguintes critérios:
classificação da(s) prova(s) de conhecimentos – 60%; motivação do candidato – 20%; avaliação do currículo escolar,
profissional e pessoal – 20%.
Não deveremos concluir sem relevar que são, então, admitidos à matrícula o número de estudantes que
preencherem as vagas que cada Curso abrirá para esta via de acesso ao ES. De facto, deveremos ressaltar que o número de
vagas aberto para os M23 está contido no número geral para regimes especiais (mudança de Curso, reingresso,
equivalências....). Posteriormente, cada Departamento distribui o seu número de vagas de acordo com os seus Cursos, pelos
diferentes canais. Por sua vez, a Reitoria da UA tem feito o seguinte: caso não sejam preenchidas as vagas nos outros canais,
elas revertem para os M23, desde que existam candidatos.

Uma investigação na UA: Apontamentos preliminares


Em Novembro de 2007 iniciámos a investigação na UA, sobre a qual debruçamos este pequeno trabalho,
divulgando alguns dos resultados obtidos. A nossa atenção recaiu sobre os EANT ou M23 por várias razões, de entre as quais
destacamos:
- A ênfase colocada em estratégias para promover a Aprendizagem ao Longo da Vida no espaço privilegiado de ES
– poderá notar essa relevância nos discursos oficiais de Bolonha e, mais abrangentemente, nos discursos político-sociais da
Comunidade Europeia;
- O particular realce atribuído pela política nacional ao discurso e práticas das Novas Oportunidades – nele não só
observamos intentos sócio-culturais e educacionais, mas de forma muito vincada finalidades económicas;
- A nossa observação da parca existência, a nível nacional, de estudos que se foquem e contemplem um público do
ES – o estudante adulto – que cremos que tem vindo, progressivamente, a marcar presença nas instituições de ES, com as
mais diversas motivações e proveniências;
- A análise de que, depois de se ter fechado as portas do ES a um público com determinadas características, com o
terminus dos concursos ad hoc, ter sido promulgado um Decreto-Lei que as volta a abrir ao estudante adulto com
determinadas características;
- A observação de que nem todas as instituições de ES do país abriram as suas portas aos M23 – mas a UA decidiu
seguir em frente;
- O assumir da importância que as instituições do ES têm de criar estruturas que acolham, com qualidade, os
públicos adultos, porque, numa sociedade cada vez mais envelhecida e incerta, indivíduos de qualquer idade poderão querer
retomar o sistema formal de ensino, em qualquer patamar, com os mais variados objectivos.
Por estas e por outros motivos que poderíamos evocar, concluímos que seria necessário, antes de mais, proceder a
uma descrição (qualitativa) deste público, tendo em conta o contexto da UA. Desta forma, observando e analisando dados
contextualizados, outras investigação e estratégias de actuação poderão ser delineadas, planeadas e colocadas em prática.
Consequentemente, o nosso maior objectivo foi caracterizar os M23 que se matricularam na UA no ano lectivo de 2006-2007
– o primeiro grupo que pôde usufruir do Decreto-Lei promulgado. Essa caracterização recai sobre os aspectos sócio-
demográficos, profissionais, académicos e motivacionais.
Para isso, e após a devida autorização, procedemos à análise do formulário que estes M23 tiveram de preencher na
primeira fase de candidatura. Um dos anexos obrigatórios a esse formulário foi a redacção de uma carta de motivação, que
também analisámos. Assim, os dados recolhidos do formulário foram tratados em SPSS procedendo nós a uma análise
descritiva dos mesmos. Por sua vez, os dados das cartas de motivação foram tratados através da análise de conteúdo, tendo o
recurso ao NVivo7 ajudado na sistematização das informações.
Por outro lado, de forma a aprofundarmos determinados aspectos relacionados com as expectativas e seu grau de
satisfação (entre outros pontos que desejávamos realçar, mas que não cabe lugar neste estudo em particular), solicitámos o
envio de um e-mail aos alunos M23 matriculados no mencionado ano lectivo a pedir a sua colaboração na nossa investigação
através de uma entrevista. Esta esteve ao encargo da investigadora, tendo 9 EANT respondido positivamente a este apelo.
Novamente, os dados foram tratados através da técnica de análise de conteúdo, utilizando a ferramenta NVivo7.
São as principais conclusões da nossa investigação que desejamos partilhar com a comunidade académica, de forma
a deixarmos um pequeno contributo nesta temática e obtermos feedback do trabalho realizado até ao momento.

O Estudante M23 na UA: Algumas características


Apesar de já termos mencionado anteriormente, cremos que devemos relembrar os seguintes aspectos:
- A análise que apresentaremos nos quatro primeiros pontos, respeitantes à caracterização demográfica,
profissional, académica e motivacional suportam-se no formulário individual que estes estudantes adultos tiveram de
apresentar na primeira fase de candidatura, para darem início a todo o processo;
- A análise das expectativas e seu grau de satisfação suporta-se da leitura e interpretação dos dados recolhidos nas
entrevistas semi-orientadas realizadas aos M23 que se disponibilizaram para participarem deste estudo.

Características demográficas

166
A amostra desta investigação é constituída por 85 EANT, matriculados pela primeira vez, na UA, no ano lectivo
2006-2007.
Relativamente às suas principais características demográficas podemos salientar que 55,3% são do sexo masculino
e 44,7% do sexo feminino. As suas idades variam entre os 24 e os 60 anos (média=33,95; desvio padrão=8,37). Como
poderíamos prever, a maioria dos alunos são de nacionalidade portuguesa e também a maioria vive perto da UA. Este último
aspecto remete-nos para o seguinte facto: a maioria destes alunos escolherá a UA devido à sua proximidade com os locais
onde têm de desempenhar os seus principais compromissos, quer sejam familiares, quer profissionais. No que toca à
constituição e responsabilidades familiares, observamos que a maioria são casados os ou vivem em união de facto, como
demonstra o gráfico.

45,1
50
37,8
40

30
% 17,1
20

10

0
Casados/ União de facto
Divorciados Solteiros

Gráfico 1: Estado civil do alunos M23 à data da candidatura

Igualmente, dos que são casados ou divorciados, muitos têm filhos a seu encargo. Este último facto aumenta o seu
nível de responsabilidade em casa, em virtude dos papéis familiares que têm de suportar e harmonizar com os restantes que
são chamados a realizar.

Características profissionais

15%

Empregado
Desempregado

85%

Gráfico 2: Situação profissional dos alunos M23 à data da candidatura

Centrando a nossa atenção em aspectos de índole profissional, podemos observar o gráfico anterior e constatar que
a grande maioria se encontra a trabalhar. Relativamente a esta última percentagem apresentada, 82,9% está a trabalhar a
tempo inteiro. Por conseguinte, observamos que 80,5% possui o estatuto de trabalhador-estudante, sendo, portanto, estudante
em regime de part-time. Assim, percebemos que, a par desta situação e não tendo apoio dos seus empregadores, estes
estudantes adultos tenham dificuldades em conciliar as diversas tarefas, podendo os seus resultados académicos vir a ser
influenciados (como assim calculamos).
Por outro lado, 53,1% destes estudantes escolheu Cursos relacionados com a profissão que exercem, sendo que a
duração da sua actividade profissional varia entre 1 a 36 anos de trabalho.
57,1
60

50

40
28,6
%30

20 14,3

10

0
Até 10 anos 11 - 20 Mais de 21
anos anos

Gráfico 3: Duração total das actividades profissionais deste grupo de M23 à data da candidatura

Antes de terminarmos este ponto, devemos salientar que motivações relacionadas com a vertente profissional são
apresentadas nas suas cartas: alguns expõem, como motivo principal da sua candidatura, a progressão na carreira.

Características académicas
No que concerne a este ponto, consideramos que os estes resultados são muito importantes, contribuindo para uma
caracterização, embora relativamente abrangente, do percurso destes estudantes adultos, especialmente no sistema formal de
ensino.
Assim, podemos relevar as seguintes habilitações académicas por parte dos candidatos, atentando no gráfico 4 que
se segue:

60 53,7

50
39
40

%30
20

10 6,1
1,2
0
Até ao 2º ciclo Secundário

Gráfico 4: Habilitações académicas deste grupo de M23 à data da candidatura

Observando-o, podemos constatar que a maioria desistiu do sistema formal de ensino quando tinha 15/16 anos,
aproximadamente. No entanto, ao mesmo tempo, observa-se que 39% possui diploma de ensino secundário. Apesar de este
ser um pequeno grupo, saliente-se que 65,6% atingiu uma média final que se localiza entre os 10 e os 13 valores (em 20).
Embora não sejam notas muito altas, podemos dizer que estes adultos parecem possuir um padrão de competências e de
conhecimentos que, aliados à sua experiência profissional, poderá influenciar positivamente o seu percurso académico na
UA.
Acrescente-se, igualmente, que do grupo de 85 EANT, 30,5% estava a frequentar o sistema formal de ensino
(principalmente o ensino secundário) quando se candidataram a uma vaga na UA pelo regime de M23. Para além disto,
67,1% diz frequentar, normalmente, cursos ou acções de formação contínua. Este facto realça que estes adultos se interessam
por renovar, reactualizar e reciclar os seus conhecimentos e competências, regularmente, tentando dar uma resposta aos
desafios e mudanças do mundo do trabalho, por exemplo. Igualmente, reportando-nos às cartas de motivação, observamos
que muitos deles desejam aumentar a sua performance nos locais de trabalho, para além de quererem ver-se crescer pessoal e
interiormente, através de novos conhecimentos e competências.
No que diz respeito às suas notas de candidatura à UA, observamos que elas colocam-se entre os 10 e os 19 valores
(em 20), concentrando-se a maioria (52,4%) em notas entre os 10 e os 13 valores (34,1% em 14-16 valores; 13,4% em 17-20
valores).

60 52,4

50
40 34,1

%30
20 13,4

10
0
Suficiente Bom (14- Muito
(10-13 16 valores) Bom (17-
valores) 20 valores)

Gráfico 5: Notas de candidatura a Cursos da UA por parte deste grupo e M23

Estes dados podem levar-nos a prever que alguns deles, não obtendo notas muito acima da fasquia positiva,
poderão ter algumas dificuldades em determinadas áreas, mesmo possuindo experiência profissional. Apesar disto, estes
EANT conseguiram passar com sucesso pelas diversas fases do processo de candidatura. Parecem, pois, apresentar um
padrão de condições e competências mínimas para ingressarem no ES.
Igualmente, observando as notas com que se candidataram, interessa-nos também mencionar quais as áreas dos
Cursos em que estes estudantes adultos se encontram a estudar. Para isso, podemos anotar o gráfico que se segue, relevando a
importância que o domínio das Novas Tecnologias da Informação (NTI) se reveste, seguido de perto por Administração e
Gestão Públicas (AGP):

50

40 34,1
28,2
30
%
20
14,1
10,6
8,2
10

0
NTI AGP FP RE SS

Legenda:
NTI – Novas Tecnologias da Informação
AGP – Administração e Gestão Públicas
FP – Formação de Professores
RE – Relações Empresariais
SS – Serviços de Saúde

Gráfico 6: Áreas de estudo em que se encontram matriculados o grupo de M23 no ano lectivo 2006-2007

Inclusivamente, há que sublinhar que a maioria dos estudantes ingressou na UA, começando o seu percurso no ES
de forma normal. Porém, houve 4 estudantes que pediram equivalências ou reconhecimento de competências profissionais a
algumas Unidades Curriculares (possibilidade esta prevista pela Lei). Todavia, pela inexistência de um dispositivo existente
na prática que permita a realização credível destes pedidos, apenas 2 foram aprovados no seu pedido de equivalências; 1 não
foi aprovado; e 1 continua à espera de resposta.
Passado o 1º ano lectivo, os números demonstram que apenas 50,6% foi aprovado para frequentar o 2º ano do
Curso no ano lectivo 2007-2008. Na verdade, o 1º semestre do 1º ano já demonstrou que a maioria deste grupo de M23 não
tinha conseguido responder de forma positiva aos exames das Unidades Curriculares.
Também os números nos informam que apenas 49,4% do grupo inicial de 85 EANT é que renovou a sua matrícula
no ano lectivo seguinte – 2007-2008. Este último aspecto realça, efectivamente, a elevada percentagem de desistências e
insucesso. Neste sentido, o grande passo que nós, investigadores e docentes, e para as instituições de ES é sermos capazes de
fazer e encontrar respostas para (i) perceber as razões que conduzem a tal percentagem; e (ii) dar respostas adequadas para se
resolver esse problema. Porque, na verdade, este não é apenas um problema dos próprios sujeitos, é problema das próprias
instituições e das suas estruturas que, cremos, poderão não ter capacidade para lidar com uma variedade enorme de questões
a que urge dar respostas concertadas.

Características motivacionais
Quando nos confrontamos com a tarefa de ler, analisar e categorizar as cartas de motivação, devemos ter em conta
dois aspectos:
- o que se diz versus o que não é dito;
- o que eles acham que devem dizer versus o que ele realmente pensam/sentem.
Assim, depois de realizar uma análise de conteúdo a este documento, podemos evidenciar como as categorias
principais as seguintes:
- Motivações pessoais;
- Motivações profissionais;
- Motivações sociais.
Como poderíamos prever, as motivações pessoais apresentam uma grande importância para estes estudantes
adultos. Assim, muitos EANT focam uma grande necessidade em auto-actualizarem-se:
- Sinto diariamente necessidade de aprofundar conhecimentos (A13);
- O facto de procurar actualizar-me continuamente é prova da minha constante vontade e empenho em aprender
(A33, A40);
- Por não considerarmos que adquirimos conhecimentos na juventude que baste para toda a vida, sentimos
necessidade de actualizarmos constantemente os Saberes (A75).
Esta também é vista como uma oportunidade para aumentar a auto-estima:
- Desenvolver potencialidades adormecidas e redescobrir o meu valor pessoal (mais do que mera funcionária
administrativa, mãe e esposa, redescobri-me enquanto pessoa) (A18);
- Pelo facto de ser mulher, venho tentar conquistar uma formação que me permita igualar-me ao meu marido (…),
com oportunidade de me desenvolver em termos pessoais e profissionais (…) Com este curso abre-se oportunidades para
desenvolver plenamente os meus potenciais (A26);
- Para além da minha realização como pessoa, viria tirar o “travo amargo” que a minha paragem no final do ensino
secundário originou (A61).
Evidente que esta é uma oportunidade para se tornar um sonho antigo em realidade:
- A concretização de um projecto pessoal (A21);
- A expectativa de ver concretizado um sonho de há 26 anos (A24);
- A oportunidade ideal de poder realizar um sonho muito desejado e antigo (…) sempre tive interesse, motivação e
especialmente gosto por esta actividade (A25).
Ainda relacionada com motivos de ordem pessoal, encontramos o facto de muitos adultos estarem abertos e
desejosos de novos desafios, querendo alargar os seus horizontes pessoais:
- Com este curso abre-se oportunidades para desenvolver plenamente os meus potenciais e aplicar todos os meus
valores que aplico e defendo todos os dias (A26);
- A vontade de continuar a crescer (A30);
- Resolvi “desafiar” os meus próprios limites (A56).
Finalmente, relacionado com este ponto, muitos adultos vêem esta oportunidade (uma palavra que eles usam
frequentemente) como uma forma de se aproximarem da família, sendo um motivo de exemplo para todos e, em especial,
para eles próprios. Curiosamente, são mulheres quem proferem as palavras seguintes:
- Considero que neste momento será também de muita importância para a sua [dos filhos] educação/formação que a
mãe dê exemplos de vontade, determinação e conquista de objectivos (A3);
- Será um incentivo para os meus três filhos ter uma mãe que estuda com eles e como eles (A18).
Passando para as motivações de ordem profissional, tal como já avançámos anteriormente, muitos são os EANT
que focam estes aspectos. Assim, nas suas cartas, demonstram o desejo de quererem responder com mais profissionalismo e
de forma cada vez melhor às exigentes tarefas e desafios que o mundo do trabalho lhes coloca. Ao mesmo tempo, consideram
indispensável aumentarem a sua capacidade e performance no trabalho:
- O mercado de trabalho está (…) mais competitivo, e são exigidos mais conhecimentos e competências aos
trabalhadores, assim, como uma maior polivalência (A4);

170
- (…) enfrentar as vicissitudes do presente mercado de trabalho, caracterizado por um elevado grau de exigência
profissional, forte concorrência e uma relevante mobilidade (A15);
- Ser um profissional mais preparado para os desafios do mercado (A55).
A par do aspecto anterior também há os que pretendem frequentar o ES para conseguirem continuar a sua
progressão na carreira, pois já atingiram o patamar máximo com as qualificações que detêm. Neste sentido, encontramos
testemunhos como os seguintes:
- Poder dar um salto qualitativo a nível profissional, que espero conseguir com a minha formação nesta instituição
(A2);
- Profissionalmente tenciono tornar-me numa pessoa mais competitiva e dinâmica, abranger um maior número de
conhecimentos, que aliados à experiência, me permitam evoluir no mercado de trabalho, que é cada vez mais competitivo
(A10).
Por outro lado, há aqueles adultos que, encontrando-se desempregados ou no início do seu percurso profissional,
consideram que frequentarem e terminarem o ES com um diploma será uma forma de poderem arranjar emprego numa área
da sua eleição: é uma possibilidade para (re)iniciarem a sua vida profissional:
- Enveredar por uma via profissional mais a meu gosto (A36);
- Estar em busca de algo melhor e com um maior desafio para a minha carreira (A64);
- Um trabalho que me traga realização (A80).
Relativamente às motivações de cariz social, observamos que muitos EANT atribuem um valor de cariz social ao
ES e ao diploma que poderão conseguir obter, apresentando várias nuances na sua perspectiva. Daí que tenhamos nomeámos
esta categoria como Motivações Sociais.
Nesta linha, observamos que diversos são os estudantes adultos que mencionam que, frequentar o ES, é uma forma
de eles demonstrarem o seu compromisso para com a sociedade, contribuindo para a (re)qualificação dos recursos humanos
do seu país. Esta é, pois, uma forma de se potencializarem a eles próprios como cidadãos, de um país e do mundo.
Consequentemente, encontramos passagens como as seguintes, que relembram alguns discursos políticos relacionados com
as Novas Oportunidades:
- Sei que sem estudos que me possam qualificar para exercer uma função que visa ajudar e melhorar a nossa
sociedade e cada um dos seus indivíduos (…) (A2);
- O desejo de exercer uma actividade profissional mais exigente e que contribua para o desenvolvimento do país
(A3);
- Sem formação adequada não é possível atingir os níveis desejados de qualidade e sustentabilidade (A40).
Ao mesmo tempo, aliado ao último ponto, alguns adultos expressam uma consciência sobre a ideologia de
Aprendizagem ao Longo da Vida (apesar de ser vaga) e sublinham o Direito Universal que é o acesso ao ensino e
aprendizagem, nomeadamente do ES:
- A formação é uma busca incessante que nos impera, tendo em conta a transformação contínua da sociedade.
Reafirma-se o valor de formação como factor de desenvolvimento dos países e do mundo, consagrando-a como direito
universal (A5);
- Na ordem do dia, partilho da ideia de que a formação deverá ser contínua ao longo da vida, de que devemos
apostar na qualificação e na reestruturação das nossas carreiras profissionais, de que devem apostar num Ensino Superior
para todos quantos desejam adquirir competências e habilitações necessárias à sua realização pessoal e de encontro às
necessidades colectivas (A20).
Para concluir, não podemos deixar de realçar que alguns olham para o ES e para o diploma que poderão conseguir
obter como algo instrumental, sendo uma moeda de troca para o seu reconhecimento social e profissional:
- (…) que vai possibilitar enquadrar-me socialmente, uma vez que me sinto deslocado nas funções que actualmente
desempenho (A44);
- Desta forma pretendo reforçar a minha formação acreditando os meus conhecimentos com um documento oficial
(A46).
Na verdade, perante motivos de variada ordem e de tantas perspectivas, facilmente podemos concluir que uma só
carta de motivação é um cadinho de ideias intrincadas, algumas das quais tivemos oportunidade de tentar elencar e
sistematizar, apesar da dificuldade que este exercício demonstrou ter para nós. De facto, a complexidade de motivos é tal que
a leitura de uma carta de motivação apresenta uma multiplicidade de cores, pelo entrecruzar de motivos, o que revela,
simultaneamente, a complexidade do ser humano. E, acrescente-se, não podemos deixar de mencionar a importância de que
se reveste a escrita pessoal de uma carta de motivação: dá ao adulto a oportunidade de se confrontar consigo próprio, de fazer
uma revisão pessoal dos seus próprios motivos, do que o impele a iniciar o seu percurso com determinadas mudanças e de
uma outra forma. Esta será, pois, uma oportunidade de se auto-questionar e de se conhecer melhor.

Expectativas criadas e seu grau de satisfação


Relativamente às entrevistas semi-orientadas, devemos salientar que estas foram realizadas individualmente a 9
EANT de Cursos diferenciados, mantendo-se esses M23 no ES a completarem os Cursos por si escolhidos. Todas as
entrevistas foram gravadas em registo áudio com o consentimento dos entrevistados, tendo sido este o primeiro momento em

171
que o entrevistador e o entrevistado contactaram entre si. Igualmente neste ponto, dever-se-á relembrar que, na leitura,
análise e categorização das entrevistas, tivemos em consideração o que mencionámos a propósito das cartas de motivação:
- o que se diz versus o que não é dito;
- o que eles acham que devem dizer versus o que ele realmente pensam/sentem.
Neste sentido, ao relermos as várias entrevistas realizadas aos EANT que revelaram disponibilidade para
participarem neste estudo, temos a intenção de sistematizar as várias dimensões por eles abordadas.
Assim, de um modo geral, constatámos que as expectativas são várias, mas encontrando-se inter-relacionadas. E,
apesar de elas poderem ser consideradas como positivas, a maioria dos estudantes demonstrou conscientemente uma que,
consoante a perspectiva que adoptarmos na sua interpretação, poderá ser considerada como negativa. Esta poderá ser
denominada como os sacrifícios pessoais que eles terão de praticar de forma a conquistarem o seu sonho, o seu projecto de
frequentarem e concluírem o Curso que escolheram na UA. De facto, a consciência que revelam sobre este aspecto é bastante
aguda, de tal forma que verbalizam a reestruturação das suas vidas familiares, profissionais e sociais de forma a conjugarem
as diversas actividades. Por isso mesmo, falam de uma disciplina pessoal e de organização e gestão do tempo e das diversas
tarefas.
Apesar deste aspecto, poderemos considerar que as expectativas que estes M23 delinearam para com a UA, o seu
Curso, os colegas são positivas. Devemos relevar que, de qualquer modo, as expectativas que verbalizam são muito
genéricas, acabando por não se focar em aspectos demasiado particulares. Na verdade, este aspecto poderá levar-nos a
concluir que, como forma de defesa pessoal e emocional, (i) não quiseram verbalizar para a investigadora todas as
expectativas que delinearam e que (ii) no momento de entrada efectiva na UA não racionalizaram as suas expectativas,
principalmente as mais difíceis, para não ficarem demasiado decepcionados, se as vissem sair goradas. Estes aspectos
poderão, pois, demonstrar a consciência que demonstram em relação ao facto incontornável de que estão afastados do sistema
formal de ensino há bastantes anos, o que os pode prejudicar, tendo em conta as competências de estudante que já
esqueceram, por exemplo. Acrescente-se, ainda, o receio e a ansiedade que sentiram em não conseguir equilibrar e levar a
bom porto as várias actividades de índole diversa. Por isso mesmo, alguns também vieram para ver como é:
Tinha a expectativa de vir a adquirir uma visão diferente (…), mas também vinha numa perspectiva de quase “ver
como é”. Ok, precisava de adquirir competências, para mim era importante, mas… vou ver como é (E3)
De qualquer forma, devemos mencionar que, no que diz respeito à sua própria performance académica, 3 destes
estudantes mencionaram o objectivo de conseguirem atingir boas notas nas Unidades Curriculares dos Cursos que
frequentam. E, apesar de terem sido só 3 a verbalizarem este aspecto, o que podemos constatar é que 6 deles têm,
efectivamente, sucesso académico. Poderemos, inclusivamente, deixar o testemunho de que um dos alunos, de 50 anos,
desempregado à data da sua matrícula e encontrando-se na UA a tempo inteiro, foi convidado para fazer parte do grupo de
investigação no Departamento onde estuda. Também ele é um dos melhores alunos do Curso.
No que concerne às expectativas, embora genéricas, para com a Universidade e os seus serviços. Poderemos, neste
ponto, sistematizar os aspectos seguintes:
- Todos eles disseram que estavam à espera de aprender muitas coisas novas, de adquirir novos conhecimentos, de
potencializar e consolidar competências de variada ordem.
Que viesse realmente a adquirir mais conhecimentos sobre estas matérias, porque nós depois sabíamos quais eram
as cadeiras que o curso tem, elas são divulgadas e pareciam-me cadeiras que, à partida, eu gostava de saber mais alguma
coisa acerca desse programa (E2)
- 3 destes estudantes confessaram que muito importante seria adquirirem competências e conhecimentos que
pudessem actualizar nos seus locais de trabalho, com as suas equipas (nestes casos, poderemos referir que os Cursos estão em
estreita ligação com a sua actividade profissional).
Os elementos, os factores que eu entendia que seriam para mim muito importantes era essa visão, era a gestão dos
processos e eu agora incluo, como disse há pouco, a gestão dos recursos humanos. São elementos que trouxeram uma
componente muito importante àquilo que estou a fazer, por um lado, e, por outro, trouxeram ainda um elemento novo, para o
qual eu não me tinha ainda verdadeiramente apercebido (…) (E3)
- A maioria refere que há muito para partilhar, abrindo o espírito a outros pontos de vista.
Quando vemos as disciplinas pensamos que aquilo vai ser mais específico da nossa vivência profissional, de facto
tem um pouco, mas muito mais científico, muito mais aberto a todos os ângulos, a todos os pontos de vista, a todas as
referências. (E6)
- Todos eles mencionaram que, devido ao facto de terem variados compromissos, não poderiam viver a vida
académica tão intensamente, como seria de prever. Porém, não se encontram pesarosos, nem demonstram constrangimentos
em relação a isso, uma vez que têm outras responsabilidades e prioridades, tendo propósitos cognitivos e experienciais mais
importantes para atingirem.
Já estou um bocado desfasado, desfasado no sentido que já devia ter vindo mais cedo porque a minha vivência teria
sido completamente diferente, era uma coisa que eu gostava e a vivência a nível académico e coisas e aquelas coisa que a
gente nunca viveu nem vai viver agora, mas fica a nostalgia de não ter passado por lá anteriormente. (E6)
- Todos estes M23 mencionaram, genericamente, a boa reputação da UA em Portugal, tendo expectativas boas e
altas em relação à preparação que teriam aqui, ao desenho do Curso e à actividade dos professores.

172
Neste sentido, ao realizar esta entrevista, reconhecemos que as questões que colocámos em relação às expectativas,
que tinham delineado no início do seu percurso, foram vistas como uma forma, um momento de fazer um balanço sobre o
que tinham vindo a viver e a pensar. Porém, consideramos que, pelo facto de não se sentirem totalmente à-vontade, não
partilharam outros tipos de expectativas e pensamentos. E, de novo genericamente, ao abordarmos o grau de satisfação das
suas expectativas – que tinham delineado e com o que estavam a experienciar desde o momento que iniciaram o seu percurso
educativo-formativo na UA – o balanço foi assaz positivo. A maioria diz sentir-se bem e feliz nos Cursos que escolheram,
pois vêem esta como uma oportunidade (uma das palavras mais usada com maior frequência) para renovarem os
conhecimentos e competências que já trazem consigo (e que reconhecem) e para adquirirem outros novos. Podemos salientar
os testemunhos seguintes:
- Costumo dizer em gíria que o meu curso, comparado com o dos meus colegas, é um jogo a feijões. Eu não estou a
jogar pelo canudo, estou a jogar pela aquisição de competências e que até agora têm sido muito importantes e que têm
mudado muita coisa no meu trabalho. (E3);
- (…) quase tudo está pela positiva, estou satisfeito, sinto que aprendi, sinto que evoluí, porque depois no mercado
de trabalho sinto-me mais confiante e torno-me mais activo, já tinha recebido a ideia que não é tanto o curso superior mas
também a passagem pela universidade que é necessária (E4);
- Independentemente do que vou fazer com o curso ou não, o ter-me dado muito gozo, já ninguém me tira (E5)
Na verdade, todos acabam por reconhecer:
Nós aprendemos coisas, mas não são todas… Aprendemos algumas coisas. (E1)
O percurso iniciado valeu a pena!

Considerações finais: Para o futuro


Perante a análise de dados que realizámos, sinteticamente, neste trabalho, parece-nos evidente que estes EANT
traduzem, qualitativamente, um outro perfil de estudantes de ES. Consequentemente, a devida atenção deve ser relevada,
tendo em conta, entre outros aspectos:
- A dinâmica do processo de ensino e aprendizagem;
- A relação estabelecida entre o estudante-adulto e o docente-adulto;
- A contínua formação de docentes com o objectivo de os preparar para a abertura de estratégias inovadoras e
criativas que permitam lidar com a diversidade e, em especial, com o estudante-adulto.
The purpose of teaching is to facilitate personal growth and development that impact the professional, social, and
political aspects of learners. Teachers of adults carry out this purpose in a wide array of formal and informal educational
settings (…) Those helping adults learn carry such labels as facilitator, mentor, teacher, instructor, coach, broker, monitor,
trainer, or adult educator. (…) helping adults learn is continuously evolving and changing (…) (Galbraith, 1998, p.3)
De facto, a nossa ênfase em toda a dinâmica que envolve ensino-aprendizagem-estudante-docente-instituição
revela-se de extrema relevância nos dias de hoje, devido a todas as exigências, nas mais diversas esferas, com que nos
confrontamos. Por isso mesmo é que ao docente de estudantes adultos é atribuído tantas características, como a citação
anterior ressalta. Mas será esse desafio que impulsionará os diversos agentes à acção, construindo, re-construindo, des-
construindo e trans-construindo, práticas, de forma a potencializar o desenvolvimento integral de todos os seres humanos,
com grande qualidade.

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A botânica no Século XX em Portugal. Análise do seu ensino nos manuais


escolares dos Ensinos Primário e Básico (1º.ciclo)

Fernando Guimarães
Universidade do Minho, LIBEC/CIFPEC
fguimaraes@iec.uminho.pt

Resumo: Está hoje bem patente no número de publicações que regularmente podemos encontrar em diversas revistas científicas, o
reconhecimento da relevância educativa das Ciências na escola básica a nível nacional e internacional. Contudo, é inquestionável que a
implementação das Ciências dos níveis de escolaridade mais baixos tem-se revelado um empreendimento difícil e complexo. Os manuais têm
para a escola uma importância na conformação das formas e dos conteúdos do conhecimento pedagógico. Integrando aspectos relativos à
sequência e ao ritmo da transmissão de conhecimentos desempenham importantes funções pedagógicas e didácticas através das actividades
que propõem e dos modos de avaliar as aquisições realizadas.
O presente estudo, baseado na dissertação de doutoramento em Estudos da Criança, analisa a importância que tem sido conferida à área de
Botânica nos manuais de Ciências dos Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo) no século XX. Na tentativa de perceber de que forma ocorreu
uma evolução na abordagem de conteúdos de Botânica, apreciamos livros didácticos baseados em onze princípios.
Esta apreciação, assente na análise de conteúdo e na análise de clusters, contribui para confrontar os livros quanto aos conteúdos que
incluem, as orientações curriculares, pedagógicas e didácticas que traduzem, assim como os valores educativos e científicos que sugerem.
Os resultados mostram que a par das alterações de designações do ensino das Ciências, os conteúdos nelas incluídos também se modificam e
adquirem relevâncias distintas. Assim, surgem a descomplexificação, a desconceitualização e a conservação dos conteúdos de Botânica
distribuídos por diferentes dimensões do ensino da Botânica.

1. Conteúdos de Botânica no currículo dos estudos básicos


O conceito e definição do conhecimento educacional válido constitui um problema principal para quem tem de
proceder à concretização das orientações gerais de uma política educativa sob a forma da organização ou reorganização de
planos curriculares. A complexidade da tarefa torna-se patente quando se consideram os factores que intervêm neste processo
– os objectivos da política educativa, mas também o conhecimento, o educando, a sociedade – e as suas múltiplas
possibilidades de realização e articulação, a própria natureza dos conteúdos é objecto de controvérsia, discutindo-se se devem
ser derivados do conhecimento, da cultura, dos valores, das características do educando1.
Para lá da diversidade das concepções expressas, relacionadas também com a pluralidade dos contextos teóricos e
disciplinares em que o problema tem sido colocado, há um facto reconhecido e reconhecível: a construção do currículo
envolve uma operação de selecção que decorre em última análise da impossibilidade de tudo instituir como objecto da

1
Não cabendo no âmbito deste trabalho uma discussão substantiva deste problema, importa-nos, no entanto, notar que a definição daquilo que vale
como conhecimento educacional é axiologicamente orientada.

174
educação. Quer se tomem como referência as características do educando, o universo dos valores, o conhecimento ou as suas
formas, o currículo constrói-se sempre a partir de uma delimitação, no campo de referência, de domínios pertinentes e não
pertinentes. Alguns destes domínios podem ser considerados relevantes num dado momento histórico e não relevantes em
outros momentos, sendo que há domínios que têm mantido uma presença mais ou menos continuada no currículo. Em
qualquer caso, a introdução, manutenção ou supressão de domínios curriculares, e de temas e tópicos no seu interior, decorre
sempre de uma operação de selecção que se relaciona certamente com a configuração do sistema educativo, mas também
com a configuração dos outros sistemas que com ele interagem.
Esta selecção de que vimos falando processa-se em dois níveis: a) Uma selecção de primeiro grau estabelece aquilo
que é ou não válido como conteúdo curricular; b) Uma selecção de segundo grau define uma hierarquia no interior daquilo
que é validado.
À selecção primária corresponde uma lógica que poderíamos designar por externa, já que resulta de regulações que
na relação sistema educativos/outros sistemas decorrem predominantemente da acção destes sobre aquele – a selecção dos
conteúdos que devem integrar o currículo é, em Portugal, uma decisão que compete ao Estado e que, em última análise,
deriva de assunções políticas gerais. A lógica que preside ao segundo tipo de selecção referido é um pouco diferente, já que é
gerada fundamentalmente no interior do sistema educativo, o que não quer dizer que o sistema educativo se configure como
uma entidade autotélica pois a hierarquização a que se procede aparece muitas vezes relacionada com definições realizadas,
por exemplo, no campo científico.
Tomaremos como ponto de partida para a análise do estatuto da disciplina de Botânica2 nos estudos básicos a
observação de Bernstein (1977), segundo a qual em todas as instituições educativas há uma organização do tempo em
unidades, variáveis em extensão e preenchidas de forma própria por determinados conteúdos. Em consequência da
verificação de que a alguns conteúdos correspondem mais unidades de tempo e de que os conteúdos podem ser, para os
alunos, obrigatórios ou não, Bernstein (1977) propõe que se considere “the relative status of a content in terms of the number
of units given over to it and in terms of whether it is compulsory or optional” (p. 79). Uma segunda vertente da análise dos
conteúdos proposta por Bernstein envolve a consideração do tipo de fronteiras, mais marcadas ou menos marcadas, que os
separam; neste caso, tratar-se-ia de procurar determinar o seu grau de insularidade, averiguando-se o tipo de relação que os
conteúdos mantêm entre si: a) Uma relação fechada, o que significa a existência de distinções claras entre aqueles; b) Uma
relação aberta, traduzida numa diluição dos seus limites.
Ao propor esta forma de abordagem do currículo, que procura criar condições para uma sua definição mais
consistente, Bernstein acentua o carácter não intrínseco das escolhas relativas ao modo como é utilizado o tempo educacional
a ao estatuto que é conferido aos conteúdos, referindo-se-lhes como possuindo natureza social. Deste conjunto de
observações e princípios, Bernstein (1977) deriva uma definição de currículo, considerando que “any curriculum entails a
principle or principles, whereby of all the possible contents of time some contents are given a special status and enter into an
open or closed relation with each other” (p. 80). Nesta perspectiva, analisar o currículo significa identificar o estatuto de cada
conteúdo e descrever o modo como ele se relaciona com os restantes.
Orientaremos agora, de acordo com estes princípios, a nossa atenção para a determinação do estatuto da disciplina
de Botânica escolar e da caracterização da relação que ela mantém com as outras áreas de conteúdo. A análise visará, de uma
forma integrada: a) Identificar a relevância curricular da Botânica, através da análise da sua presença/ausência ao longo dos
planos de estudo; b) Determinar o estatuto da Botânica, tal como ele pode ser estabelecido a partir das unidades de tempo que
lhes são atribuídas; c) Analisar a forma da relação entre a Botânica e as outras disciplina do plano de estudos; d) Descrever
declarações de intenção política que orientam a construção daquele estatuto.

2. Uma análise sincrónica


Os momentos em que se procede a reformas globais do sistema educativo são particularmente apropriados para a
análise das concepções curriculares em confronto num determinado período histórico e dos princípios em que elas se
fundamentam; nestas situações, a reestruturação dos planos de estudo, pelas suas implicações em vários níveis do sistema
educativo, tende a ser objecto de um tipo de justificação normalmente ausente de alterações curriculares pontuais3. Passemos
então a uma análise de alguns aspectos da realidade portuguesa, procurando identificar algumas das orientações da reforma
curricular iniciada em 1986 e o tipo de argumentação que a apoia, centrando a nossa atenção sobre o caso da disciplina de
Botânica, numa tentativa de caracterização do seu estatuto.

2.1. Orientações da reforma curricular iniciada em 1986

2
Relativamente a esta terminologia – Botânica escolar, disciplina de Botânica – podemos referir que não entendemos os conteúdos de ciências
escolares como ciência + pedagogia. São, sim, uma triangulação das ciências escolares – criações próprias da escola a partir das ciências de referência –,
originando as disciplinas escolares. Desta forma, neste capítulo utilizamos a denominação Botânica escolar enquadrada nas áreas de Estudo do Meio, Meio Físico
e Social, Ciências Geográfico-Naturais e Sciências/Ciências Naturais.
3
Embora se trate de uma análise sincrónica, neste ponto 2 entendemos, que para efectuarmos uma abordagem ao Programa do 1.º Ciclo do Ensino
Básico de 1990 (ponto 2.2), ser necessário focalizar primeiro a nossa atenção no documento que o antecede e origina, nomeadamente as orientações da reforma
curricular iniciada em 1986.

175
A reforma do sistema educativo que se desenvolveu desde 1986 decorre inicialmente, e do ponto de vista do
Estado, da necessidade de assegurar as condições para uma resposta mais eficaz aos imperativos da adesão à CEE e da
emergência de novas condições sociais, considerando-se que o sistema educativo português não oferecia, a este respeito e na
sua forma anterior, as garantias julgadas necessárias. O propósito de realização de uma reforma global e coerente das
estruturas, métodos e conteúdos do sistema é concretizado, no primeiro diploma legal que a regula, na definição de três
princípios genéricos entre os quais se inclui a intenção de modernizar o sistema de ensino, tanto na sua organização curricular
e estrutural como nos métodos e técnicas da sua prática. O currículo surge, portanto, desde o início, como pedra de toque da
reforma e como componente fundamental a considerar na sua realização.
Este ponto de vista é depois retirado pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE) (1986) ao proceder
a uma inventariação dos pontos de crise do sistema, em ordem à definição de uma estratégia de reforma:
A composição curricular de grande parte dos cursos ou anos de escolaridade (nos diferentes níveis de ensino)
consubstancia, ainda que com significativas excepções, um ensino excessivamente teórico e académico e uma escola
fechada sobre si mesma e, como tal, alheia às solicitações do meio social em que se integra. (…) Os conteúdos
programáticos – por vezes quantitativa e qualitativamente ambiciosos na sua elaboração – matem entre si, em muitos
casos, uma grave descoordenação horizontal e vertical, bem como uma fixidez incompatível com o ritmo de evolução
dos conhecimentos, com o que se distanciam, dia a dia, dos interesses e das expectativas dos alunos e das exigências
do futuro que os espera. (26-27)

A propósito desta formulação, em que ecoam várias vozes e várias problemáticas, importa notar, em primeiro lugar,
a consideração de diversos factores na construção do currículo, desde as características do aluno às condições do contexto
social e à natureza do conhecimento, valorizando-se a adequação psicológica dos conteúdos, a sua utilidade pessoal e social e
a sua actualidade. Note-se, entretanto, a dependência que é estabelecida entre as áreas e conteúdos e os objectivos, mesmo os
específicos, que são apresentados como reguladores estritos da selecção a efectuar; pelo menos aparentemente, recusando-se
a possibilidade de as formas de construção e organização do conhecimento poderem interferir de modo significativo sobre a
organização do currículo.
Os textos legais raramente se apresentam como lugar de reflexão extensiva sobre a importância do ensino e da
aprendizagem da Botânica, justificando a valorização a que procedem em termos compreensivelmente sucintos e genéricos.
Reflexões de um outro tipo podem ser encontradas em declarações de política educativa que têm como objecto o ensino das
ciências; são textos com estas características que agora procuraremos comentar, no sentido de precisar a argumentação em
que se funda a atribuição ao Estudo do Meio de um lugar relevante no quadro curricular.
A constituição de um corpus capaz de permitir o desenvolvimento deste tipo de trabalho procedeu da definição
prévia de um conjunto de critérios que conduziu à selecção de um pequeno conjunto de textos – contemporâneos dos
momentos de concepção e lançamento da reforma do sistema educativo –, significativos do ponto de vista do estatuto do seu
autor, das suas finalidades e do contexto da sua produção. Textos que, se esperava, permitiriam detectar formas de entender,
no plano do discurso oficial não legal, o ensino da Botânica enquanto ensino das ciências e o estatuto e as funções que lhe são
cometidas.
Em síntese, diremos que os discursos produzidos contemporaneamente no âmbito das agências de geração das
orientações de política de educação e de política científica conferem uma atenção particular ao ensino da Botânica,
entendendo-o como forma de garantir e promover a cultura científica nacional. O ensino da Botânica aparece, assim,
claramente concebido como importante instrumento de acção política.

2.2. Programa do 1.º Ciclo do Ensino Básico de 1990


A Lei de Bases do Sistema Educativo e o Decreto-Lei n.º 286/89, que estabelece a Estrutura Curricular, constituem
o quadro de referência que serviu de base à elaboração do Programa. Um conjunto de princípios definidos naqueles
documentos, determinaram as opções para a selecção e organização das áreas curriculares, os objectivos, os conteúdos e as
experiências educativas que o Programa propõe.
O programa proposto para o 1.º Ciclo implica que o desenvolvimento da educação escolar ao longo das idades
abrangidas constitua uma oportunidade para que os alunos realizem experiências de aprendizagem activas, significativas,
integradas e socializadoras que garantam efectivamente o direito ao sucesso escolar de cada aluno.
O meio local, espaço vivido, deverá ser o objecto privilegiado de uma primeira aprendizagem metódica e
sistemática da criança já que, nestas idades, o pensamento está voltado para a aprendizagem concreta. No entanto, há que ter
em conta que as crianças têm acesso a outros espaços que, podendo estar geograficamente distantes, lhes chegam por
exemplo, através dos meios de comunicação social e virtual. O interesse das crianças torna estes espaços afectivamente
próximos, mas a compreensão de realidades que elas não conhecem directamente, só será possível a partir das referências que
o conhecimento do meio próximo lhes fornece.
As crianças deste nível etário apercebem-se da realidade como um todo globalizado. Por esta razão, o Estudo do
Meio é apresentado como uma área para a qual concorrem conceitos e métodos de várias disciplinas distintas, entre as quais a
Botânica, procurando-se, assim, contribuir para a compreensão progressiva das inter-relações entre a Natureza e a Sociedade.
Por outro lado, o Estudo do Meio está na intersecção de todas as outras áreas do programa, podendo ser motivo e motor para
a aprendizagem nessas áreas.

176
O programa de Estudo do Meio apresenta-se organizado em blocos de conteúdos antecedidos de um texto
introdutório onde é definida a sua natureza e são dadas algumas indicações de carácter metodológico. A ordem pela qual os
blocos e os conteúdos são apresentados obedece a uma lógica mas não significa que eles sejam abordados com essa
sequência em sede de sala de aula.
O bloco denominado À descoberta do ambiente natural, compreende os conteúdos relacionados com os elementos
básicos do meio físico, os seres vivos que nele vivem, o clima, o relevo e os astros. A curiosidade infantil pelos fenómenos
naturais deve ser estimulada e os alunos encorajados a levantar questões e a procurar respostas para elas através de
experiências e de pesquisas simples. O professor deve fomentar nos alunos atitudes de respeito pela vida e pela Natureza
assim como sensibilizá-los para os aspectos estéticos do ambiente.
O meio pode ser entendido como um conjunto de elementos, fenómenos, acontecimentos, factores e ou processos
de diversa índole que ocorrem no meio envolvente e no qual a vida e a acção das pessoas têm lugar e adquirem significado. O
meio desempenha um papel condicionante e determinante na vida, experiência e actividade humanas, ao mesmo tempo que
sofre transformações contínuas como resultado dessa mesma actividade.
Nesta perspectiva, o conhecimento do Meio deverá partir da observação e análise dos fenómenos, dos factos e das
situações que permitam uma melhor compreensão dos mesmos e que conduzam à intervenção crítica no Meio. Intervir
criticamente significa ser capaz de analisar e conhecer as condições e as situações em que somos afectados pelo que acontece
no Meio e significa também intervir no sentido de o modificar, o que implica processos de participação, defesa, respeito, etc.
Partindo das diferentes concepções de meio criadas por Drouin e Astolfi (1986), podemos aferir que o
conhecimento se move num crescendo, desde uma visão mais reducionista até um olhar mais complexo, quer ao nível da
descentração, quer ao nível da abstracção. Estes autores entendem que a noção de meio só pode ser caracterizada em função
de um dado objecto, quer se trate de uma célula, de um órgão, de um organismo ou de uma população. Assim, estes autores,
caracterizam o meio não como um objecto ou um espaço, mas sim como um conjunto de relações, donde resulta que “le
milieu n’existe pas ‘en soi’ mais par rapport à des vivants” (Drouin & Astolfi, 1986, p. 82).
Presentemente, quer do ponto de vista das Ciências Naturais, quer do ponto de vista das Ciências Sociais,
permanece a necessidade de incluir não só os aspectos físicos e biológicos, mas também os aspectos sócio-culturais e
psicológicos quando se trata de definir o conceito de meio. Numa tentativa de descrever e especializar as diferentes
concepções e significações da noção de meio num contexto pedagógico/didáctico, Drouin e Astolfi (1986), articulam os
dados fornecidos pela história do conceito com as representações dos alunos propondo seis concepções possíveis de meio: 1)
Meio lugar (ou meio cenário): o meio é o lugar onde se movimentam e vivem os seres vivos. Neste nível o meio é
compreendido como um todo não diferenciado; 2) Meio harmonia: o meio surge como um sistema harmonioso no qual cada
coisa está no seu lugar; 3) Meio recurso: o meio constitui um agrupado de ofertas, entre as quais os seres vivos podem eleger,
de acordo com as suas predilecções; 4) Meio composto (ou meio aditivo): o meio é enumerado como um conjunto
(composto) constituído por partes; 5) Meio factor: o meio é definido por um certo número de factores (os factores do meio).
Entende-se uma concepção do meio em que a acção dos factores deixa de ser considerada separadamente mas sim agindo em
interacção; 6) Meio biorelativo: o meio não é considerado separadamente dos seres vivos, nem como espaço ou recurso, nem
como um conjunto de condições influentes. É um meio onde cada ser vivo, de forma específica e incomparável, encontra
aquilo que equivale às suas necessidades próprias.
Estas concepções não deverão ser compreendidas como categorias restritas mas sim como dimensões de análise ou
mais concretamente como uma grelha de análise das diferentes formulações do conceito de meio.
Tal como Drouin e Astolfi (1986) conceberam, numa tentativa para hierarquizar e posicionar estas diferentes
concepções, socorremo-nos de três critérios sugeridos pelos autores, a saber: abstracção, descentração e complexidade
crescentes. A utilização dos dois primeiros critérios pode ser esquematizada de acordo com a Figura 1.

177
1. Concepção do meio
Meio globalizante,
Cenário
indiferenciada

Meio 2. Concepção do meio


Harmonia analítica, mecanicista,
Meio experimentalista
Composto

descentração
Meio
Meio Factor
Recurso 3. Concepção do meio
totalizante, biológica
sistémica

Meio Inter-
Dependente
a

Meio
Biorrelativo

Figura 1 – Diferentes concepções do meio entre um sincretismo pré-analítico até uma visão sistémica, pós analítica
(Drouin & Astolfi, 1986, p. 93) (adaptado).

A transição entre a concepção meio-cenário e a concepção de meio-biorelativo, colocadas na base e no extremo


oposto do eixo vertical representará, em termos de evolução intelectual, uma capacidade progressiva de abstracção, desde o
meio entendido como uma coisa ou um lugar até um meio entendido como um conjunto de meios biorelativos.
A transição entre as concepções situadas ao longo do eixo horizontal caracteriza-se pelo abandono progressivo da
visão antropocêntrica e a construção duma maior objectividade na análise das questões relativas ao meio, representando uma
descentração crescente deste eixo.
A complexidade crescente com que se entendem as relações e inter-relações existentes no meio é tido em
consideração pelo terceiro critério. Nesta perspectiva, e de acordo com Borges (2002):

o “meio-composto” ocupa a base da hierarquia em pé de igualdade com o “meio-cenário”. Os elementos são


entendidos como justapostos, não se estabelecendo relações entre eles.
O “meio-recurso” pressupõe o estabelecimento de uma relação simples, que se traduz na “escolha” por parte dos
seres vivos dos recursos de que necessitam.
O “meio-factor” traduz igualmente uma relação simples, mas com um nível de objectividade superior: os seres
vivos não “escolhem” o que necessitam do meio, mas são condicionados por ele.
O “meio – biorelativo”, em correspondência com um nível de complexidade mais elevado, propõe uma visão
sistémica do meio que leve em conta as inter-relações entre os factores, entre os seres vivos e entre estes e os factores. (19)

Drouin e Astolfi a partir da caracterização das concepções do meio descrevem as possíveis interligações entre estas
concepções utilizando uma dupla perspectiva: a) Do ponto de vista dos obstáculos que podem dificultar a passagem de uma
concepção mais simples a outra mais elaborada; b) Do ponto de vista dos progressos intelectuais correspondentes a essas
transições.

3. Uma abordagem histórica


Julgamos importante interrogar a história, em ordem a alargar a compreensão do estatuto da disciplina de Botânica
no currículo, na busca da identificação dos modos como ela foi sendo construída. Com este objectivo procede-se, de seguida,
à análise de alguns aspectos da emergência e consolidação da Botânica como disciplina do currículo. O estudo envolve a
delimitação de momentos importantes daquele processo, a identificação de conteúdos que lhe foram sendo associados, a
avaliação da importância que lhe foi atribuída ao longo do tempo e a caracterização de alguma argumentação que no decurso
de todo este processo foi expendida.

178
A análise incide sobre o Ensino Primário, designação que aqui utilizamos numa acepção genérica para descrever o
ciclo de instrução situado na faixa etária dos 6/7 anos aos 10/11 anos4, sendo a escola primária a organização educativa que
tomamos como referência, opção que radica na importância e influência que teve na história do ensino em Portugal.

3.1. Programa do Ensino Primário de 1902


O texto programático de 18 de Outubro de 1902, publicado em 20 de Outubro do mesmo ano, após a reforma do
Ensino Primário de 24 de Dezembro de 1901, realça no programa das disciplinas que constituem o Ensino Primário em cada
uma das diferentes classes os conteúdos de Botânica para o 2.º Grau, 4.ª Classe no título Rudimentos de ciências naturais,
especialmente aplicáveis à agricultura e à higiene. Estes conteúdos, relacionam-se com a Ideia de matéria, corpo e dos três
Reinos da natureza; animal, vegetal e mineral.
Contudo, no programa afirma-se que os rudimentos de ciências naturais:
não constituem um curso, mas uma série de conhecimentos gerais que convém dar às crianças. A matéria deve ser
disposta em lições de coisas e o ensino tem de ser feito por meio de processos intuitivos, com o auxílio de estampas, na
falta ou impossibilidade da apresentação dos próprios objectos.5

3.2. Programa do Ensino Primário de 1921


No programa de 1921, publicado no Diário do Governo em 15 de Fevereiro, após a reforma de Leonardo José
Coimbra (Decreto n.º 5/787-B Sup. 18.º de 10 de Maio de 1919), as primeiras noções de Ciências Histórico-Naturais e
Físico-Químicas eram abordadas segundo as Lições de coisas na escola, em passeios, excursões, visitas a museus e em
trabalhos de horticultura e jardinagem.
Os conteúdos de Botânica existentes na 3.ª Classe eram sobre o conhecimento prático das plantas Fanerogámicas.
Este estudo implicava conhecimento sobre a distinção da raiz, do caule, das folhas, da flor e dos frutos em exemplares
naturais. Para tal, os conteúdos dos órgãos da planta versavam: a) Raiz – Conhecimento das raízes aprumadas e fibrosas;
raízes adventícias. Noção elementar da principal função da raiz (absorção). Necessidade das regas e dos adubos. Palestra
sobre raízes úteis; b) Caule: Colo, nó e entrenós do caule. Ervas, arbustos e árvores; lenho e casca. Palestra sobre lenhos úteis
e sobre cascas úteis. Caules erectos, trepadores, volúveis, prostrados e reptantes. Tronco e espique. Colmo; palestras sobre a
aplicação e o valor das palhas e dos fenos; c) Folhas – Limbo e pecíolo. Folhas rentes, pecioladas e envaginantes; folhas
alternas, opostas e verticiladas; folhas inteiras, denteadas, fendidas e lobadas. Folhas compostas, folioladas e pinuladas.
Nervações. Planta de folha perene e de folha caduca. Acúleos, espinhos, etc., Gomos; olhos dormentes e ladrões; botões;
bolbilhos. Bolbos. Palestra sobre os tubérculos radiculares (cenoura, etc.), caulinares (batata, etc.) e mistos (beterraba).
Plantas anuais, plantas vivazes e plantas perenes. Multiplicação dos vegetais por estacas, mergulhia, alporque e enxertia; d)
Flor – Partes principais da flor: receptáculo, cálice, corola, estames e ovário. Flores nuas: flores unisexuadas e hermafroditas.
Conhecimento prático das formas da corola. Estames: filete, antera e pólen. Ovário e estigma. Polinização e fecundação das
flores. Palestra sobre a abelha e as flores. Plantas monóicas e dióicas; e) Fruto – Pericarpo e sementes. Distinção dos frutos
secos e carnosos. Conhecimento prático do córculo seminal. Multiplicação das plantas pelas sementes e métodos de
arrecadação dos cereais. f) Palestras sobre plantas úteis. Palestra sobre plantas medicinais, venenosas ou nocivas mais
vulgares. Conhecimento prático das espécies cultivadas por meio de exemplares de herbário e, sobretudo, de excursões ao
campo.
Os conteúdos de Botânica existentes na 4.ª Classe eram sobre o conhecimento prático das Criptogámicas. Este
estudo baseava-se nos seguintes conteúdos botânicos: a) Análise de plantas que não produzem flores; b) Conhecimento
prático, adquirido no campo e no herbário, dos fetos e dos musgos, assim como das algas, dos líquenes e dos fungos nas suas
formas macroscópicas mais características; c) Multiplicação das Criptogámicas: i) Simples divisão; ii) Por pequeníssimos
gérmenes (esporos e ovos) desprovidos de cróculos. d) Palestras sobre Criptogámicas úteis; e) Palestras sobre Criptogámicas
venenosas ou nocivas.
De acordo com as Instruções do programa, o ensino da Botânica deve ser feito, sempre que possível, em presença
de plantas da região, colhidas em meio envolvente ou em herbários. De igual modo, as instruções referem que o programa da
3.ª Classe servirá de guia para a descrição dos órgãos constituintes da planta.
No que respeita ao papel do professor, ele indicará e descreverá as diferentes partes mais essenciais das plantas que
os alunos procurarão desenhar. Quanto ao papel dos alunos, eles organizarão pequenos herbários com as plantas mais
características da região. Surge-nos, também, indicações sobre o papel do professor nas excursões, sendo que nelas o
professor irá indicando as plantas úteis e venenosas e procurará fazer palestras demonstrativas referentes ao programa6.

3.3. Programa para o Ensino Primário Elementar de 1929

4
A designação Ensino Primário aqui utilizada, embora ao longo do século XX tenha, também, surgido com a denominação de Ensino Primário
Elementar, Ensino Primário Geral e Ciclo Elementar, refere-se para este período à escolaridade obrigatória.
5
Cf. Decreto de 18 de Outubro, que aprova os programas das disciplinas que constituem o ensino primário, publicado no Diário do Governo de 20 de
Outubro de 1902.
6
Cf. Decreto n.º 7:311, de 15 de Fevereiro de 1921.

179
O programa que vigorou a partir de 13 de Abril de 1929, que se enquadra dentro da reforma do Ensino Primário de
1927, modificou os programas para o Ensino Primário Elementar que fazem parte do decreto n.º 16:077, de 26 de Outubro de
1928, no sentido de os simplificar.
Com a organização deste programa não se pretendeu fazer uma simples reforma, mas dar um passo mais no
caminho da simplificação, cuja necessidade todos reconheciam, tendo-se alterado também a distribuição das disciplinas pelas
diversas classes do Ensino Primário. Conservando-se o regime das quatro classes, pode dizer-se, dum modo geral, que nas
três primeiras se ministra o ensino propriamente elementar – ler, escrever e contar correctamente – e na 4.ª Classe um ensino
complementar que fornece os conhecimentos indispensáveis a todos aqueles que não possam continuar os seus estudos.
Quase não se modificaram as instruções pedagógicas elaboradas pela comissão organizadora dos programas
decretados em Outubro de 1928, introduzindo-se apenas umas ligeiras alterações de acomodação nos novos programas. Na
4.ª Classe os conteúdos de Botânica são os seguintes: a) Os animais, as plantas e os minerais (noções muito práticas para a
sua distinção); b) Pequeno estudo descritivo das plantas vulgares e seus órgãos fundamentais; raiz, folhas, flores e frutos.
Esta disciplina, de acordo com as Instruções, tem de se revestir de:
um cunho tão prático quanto possível: lições de coisas, e nada mais. É certo que a quase totalidade das escolas são
desprovidas de material didáctico, mas uma pequena parcela de boa vontade poderá suprir quase sempre a deficiência
desse material.

O método a empregar no ensino das ciências deve fundar-se na observação e experiência; o livro desempenhará um
papel secundário.

Os assuntos tratados devem apresentar-se ao aluno sob uma forma atraente, para lhe despertar o interesse e o
entusiasmo.7

É sob este ponto de vista que o professor tem um espaço de desenvolvimento do trabalho para, desenvolver
exemplos que não estejam consignados no programa. Por exemplo, as plantas da localidade e a sua utilização, consoante o
emprego de cada espécie, oferecem meios de satisfazer a curiosidade infantil e permitem a aquisição de conhecimentos
indispensáveis à vida prática. As excursões ao campo facilitam extraordinariamente o ensino da botânica e, dentro das
escolas, nos exemplares de plantas que os alunos facilmente conseguirão, objectiva-se o ensino das diversas partes da planta.

3.4. Programa do Ensino Primário de 1960


Os programas do Ensino Primário actualmente em vigor para as três primeiras classes e para a quarta foram
aprovados, respectivamente, pelo Decreto n.º 27:603, de 29 de Março de 1937, e pelo Decreto n.º 16 730, de 13 de Abril de
1929. Elaborados em datas diferentes e fora de um esquema de conjunto, cedo se começou a notar a desarticulação que entre
eles existia, resultante da diversidade de concepções a que obedeceram. Note-se ainda que, de acordo com os seus autores,
sendo publicados há mais de vinte anos, não podiam corresponder à evolução da vida portuguesa e das técnicas pedagógicas
no último quarto de século.
Numa altura em que se falava de ensino diferenciado, poderia parecer que o programa é omisso na matéria, para
mais tratando-se do nosso país, uma nação:
dispersa pelo Mundo. A diferenciação, porém, não é tanto questão de programa como de técnica de ensino, e a esta se
fará a necessária referência nas instruções respeitantes a cada disciplina. Ao traçar as linhas mestras a que deve
obedecer o ensino primário básico o programa não contraria a aplicação diferenciada desse esquema geral, quer em
relação às regiões, quer em relação aos sexos. Assim se conseguirá, através de uma prudente diversidade, a perfeita
unidade educativa.8

O Ensino Primário é constituído por quatro classes, de frequência obrigatória, formando um só ciclo, e termina com
a aprovação no exame da 4.ª classe. No ensino do Português, da Aritmética, da Geometria e das Ciências Geográfico-
Naturais a terminologia específica a empregar deve ser apenas a dos programas, sendo que os livros e os cadernos necessários
ao ensino serão indicados por portaria do Ministro da Educação Nacional.
Os conteúdos de Botânica existentes no Programa do Ensino Primário de Ciências Geográfico-Naturais para as 1.ª e
2.ª classes, abordados através de Lições de observação eram as plantas: a) Plantas úteis; b) Plantas nocivas (conforme a
região).
Na 3.ª classe, os conteúdos de Botânica compreendiam a: a) Observação da natureza: flora e fauna da região; b)
Nomes das principais espécies e sua utilidade; c) Descrição sumária de uma planta completa: nomes das partes que a
compõem; d) Ideia muito geral do aproveitamento industrial das plantas.
Na 4.ª classe, os conteúdos de Botânica compreendiam os vegetais: a) Germinação das sementes; b) Multiplicação
das plantas (estudo elementar e essencialmente experimental); c) Plantas que mais contribuem para a riqueza nacional; d) O
que se extrai de cada uma (estudo muito sumário).
Com o estudo das ciências geográfico-naturais pretende-se, fundamentalmente, que as crianças aprendam a
observar o meio ambiente e a reflectir sobre ele. Por isso, e como princípio de ordem geral, o seu ensino deve ter a feição de

7
Cf. Decreto n.º 16.730 de 13 de Abril de 1929, publicado no Diário do Governo, que aprova os novos programas para o Ensino Primário Elementar.
8
Cf. Decreto- Lei n.º 42.994 de 28 de Maio de 1960, relativo aos programas do ensino primário.

180
lições de coisas. É visível a orientação geral do programa: a) Partir sempre do que é mais próximo, mais familiar às crianças
para o que lhes é mais distante e alheio; b) E do mais concreto para o mais abstracto.
O programa agora descrito neste ponto é o mesmo das 1.ª e 2.ª Classes. No entanto, a matéria que os constitui, que
na 1.ª Classe será abordada segundo a experiência escolar, na 2.ª Classe será tratada com maior desenvolvimento e um pouco
mais de sistematização.
Na 3.ª classe alargam-se os horizontes do ensino, mas mantém-se a orientação geral desta disciplina. A simples
observação pode ir dando lugar à experimentação, especialmente no que se refere à vida das plantas e aos estados da água na
natureza. Todo o ensino continuará a ser muito elementar, nunca descendo a pormenores que ultrapassem as possibilidades
dos alunos. O professor procurará levá-los a entender a correlação e interdependência dos seres da natureza. O estudo dos
animais e das plantas será subordinado a esta ideia fundamental.
Na 4.ª classe a mentalidade dos alunos já permite a sistematização, e esta será em larga medida necessária. Isso não
significa, contudo, que se deva sacrificar o princípio fundamental de que a memorização deve ser precedida pela
compreensão. Durante a 4.ª classe espera-se que os professores recorram a uma pluralidade de métodos, para a abordagem
destes conteúdos de Botânica, nomeadamente: a) A recolha de plantas pelos próprios alunos; b) A construção de um pequeno
museu animal, vegetal e mineral; c) O horto e o jardim da escola; d) Colmeias e aviários; e) Material indispensável para
algumas experiências.
Desta forma, os professores têm um conjunto de ferramentas que lhes permite tornar possível o estudo objectivo da
natureza e a concretização dos conteúdos de Botânica.

3.5. Programas do Ensino Primário de 1980


Na nota explicativa dos programas do Ensino Primário, em vigor desde 1975/76, previa-se a sua alteração após três
anos de experiência, por isso, em 1978/79, foi elaborado um novo programa, concebido em termos de objectivos terminais,
aprovado pela Portaria n.º 572/79, de 31 de Outubro. Entretanto, reconheceu-se a impossibilidade de pôr em prática, de forma
generalizada, o referido programa, uma vez que não estavam reunidas, minimamente, as condições para que o mesmo tivesse
possibilidades de atingir os propósitos que devem presidir à implementação de qualquer programa – a melhoria da acção
pedagógica no Ensino Primário. Assim, reconheceu-se como necessário reestruturar a área do Meio Físico e Social,
desenvolvendo o conhecimento e o apreço pelos valores característicos da identidade e da cultura portuguesas e tomando na
devida consideração os interesses e necessidades dos alunos.
De acordo com o Ministério da Educação e Ciência (MEC, 1980), é
cada vez maior a apreensão acerca do futuro da vida na Terra. O homem, confronta-se permanentemente com
problemas biológicos e sociais, mas, ao contrário dos outros animais, é capaz de os reconhecer e de estudar a maneira
de os solucionar. Estes dois tipos de problemas – os biológicos e os sociais – são realidades com que os alunos
deparam várias vezes por dia e todos os dias. Daí a necessidade de associar as verdades científicas e os problemas
sociais. Assim, considerando que nenhum sistema educacional deve alhear-se daquilo que se passa na sociedade, que a
educação deve ser integrada, fundamentalmente os problemas relativos ao ambiente e ao Homem, são temas
unificadores deste programa a Sociedade e a Natureza. (29)

Os conteúdos de Botânica existentes neste programa encontram-se no tema Meio local – Natureza – no conteúdo
Existência no ambiente de seres vivos e seres não vivos, que atravessa os quatro anos de escolaridade das duas fases do
Ensino Primário Elementar. No entanto, neste tema, no quarto ano da segunda fase não existem conteúdos de Botânica. Os
conteúdos de Botânica, para o quarto ano encontram-se no tema Humanização da paisagem. No primeiro ano, as sugestões de
actividades relativas à Natureza (MEC, 1980, p. 42), são: a) Em contacto com a Natureza observar plantas e animais
permitindo que os alunos notem que tem cores, formas, tamanhos e outras características diferentes; b) Proporcionar a
descoberta que as plantas e os animais são seres vivos (nascem, crescem, alimentam-se, reproduzem-se e morrem) e que há
seres não vivos (água, rochas...) que não crescem, não se alimentam, não se reproduzem, não morrem; c) Organizar cartazes
com gravuras de seres vivos (plantas); d) Organizar uma pequena horta ou jardim e mais plantas em pequenos canteiros e/ou
vasos; e) Procurar que as crianças descubram os cuidados a ter com as plantas e o respeito e o carinho que merecem.
No segundo ano, as sugestões de actividades relativas à Existência no ambiente de seres vivos e seres não vivos
(MEC, 1980, p. 49), são: a) Tendo sempre o cuidado de não deteriorar o ambiente, a recolha (ou simples observação) no
campo, de plantas verde permite a identificação das suas partes constituintes (raiz, caule, folhas, flores e frutos) e a
relacionação das funções mais elementares que desempenham; b) Experiências de germinação em frascos de iogurte (ou
outros) utilizando várias sementes envolvidas em algodão seco e embebido em água (seco – húmido – encharcado), À luz e
às escuras, ao ar ou dentro de um armário com portas de vidro, permitem verificar o desenvolvimento das plantas.
No terceiro ano, as sugestões de actividades relativas à Natureza (MEC, 1980, p. 58), são: a) Visitar locais (hortas,
pomares, jardins, matas) para observação de plantas; b) Promover o contacto com pessoas que cuidem de plantas para
informarem os alunos do seu trabalho.
No quarto ano, as sugestões de actividades relativas à Humanização da Paisagem (MEC, 1980, p. 64), prendem-se
com: a) Colaborações na defesa e conservação do ambiente; b) Participar em acções de combate à poluição.

4. Na procura de uma abordagem de análise

181
O nosso estudo debruça-se sobre o ensino das Ciências da Natureza, a partir dos manuais escolares, através de uma
abordagem diacrónica, indagando o que se passou sobretudo na Botânica. Tendo em consideração um conjunto de
pressupostos (Guimarães, 2007); atendendo a que vários estudos documentam o papel significativo que os manuais escolares
têm na vida dos professores e dos alunos (Sá, Varela, Carvalho e Guimarães, 1999; Proença, 2000; Colon Cañellas, 2003); e,
considerando que um dos factores que condicionam o uso do manual reside, certamente, nos conteúdos oferecidos, parece-
nos importante estudar os manuais escolares.
São objectivos deste trabalho: Contribuir para o conhecimento da Botânica existente nos manuais escolares dos
Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo), no século XX em Portugal; Entender a importância dos manuais escolares no ensino
das Ciências da Natureza nos ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo), nomeadamente no caso da Botânica; Interpretar a
evolução dos conceitos de Botânica, os conteúdos e as abordagens metodológicas contidas nos manuais e o modo como estes
influenciaram e influenciam o ensino das Ciências da Natureza nos Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo) em Portugal.
Este trabalho tem como período de pesquisa o século XX. Esta escolha deve-se ao facto de nesta fase terem
ocorrido diversas reformas educativas, publicações de diversos manuais escolares, diferentes regimes de governação, diversas
abordagens ao conceito de conservação biológica marcando algumas rupturas no sistema de ensino português,
particularmente significativas para os Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo), que justificam a escolha de um período alargado.
O corpus de textos pedagógicos sobre o qual vai ser desenvolvido este nosso ensaio é constituído por manuais
escolares de Ciências da Natureza. A escolha de manuais escolares foi efectuada a partir do universo de publicações daqueles
que são destinados ao Ensino Primário e Básico (1.º Ciclo). Sobre este universo foi construída apenas uma amostra de vinte e
cinco compêndios orientada por critérios simultaneamente quantitativos e qualitativos, procurando-se assegurar a
representatividade dos livros para o período histórico em referência, privilegiando a data de publicação dos mesmos em
associação com a entrada em vigor dos novos textos programáticos.
Obtivemos, por este processo, a colecção seguinte de manuais escolares de Ciências da Natureza, apresentada na
Tabela 1:

Tabela 1 – Amostra de vinte e cinco Manuais Escolares

Ano Autor, Título, Edição e Nível de Ensino


1903 Cardoso; Rudimentos de Sciências Naturaes; 3.ª edição; Ensino Primário Elementar
1907 Almeida e Cardeira; Ligeiras Noções de Sciências Naturaes; 3.ª edição
1910 (s. a.); Sciências Naturaes; 9.ª edição; Ensino Primário
1914 Araújo; Breves Noções de Sciências Naturais; 6.ª edição; Ensino Primário
1916 Andrea e Magno; Sciências Naturais; 6.ª edição; Ensino Primário
1920 Borges; Sciências Naturais; 10.ª edição; Ensino Primário
1922 Vasconcelos; Sciências Histórico-Naturais e Físico-Químicas; 3.ª edição; 3.ª,4.ª e 5.ª classes; Ensino Primário
Geral
1925 Júnior; Simples Noções de Sciências Naturais; 9.ª edição; Ensino Primário
1928 Vasconcelos; Sciências Físico-Naturais Higiene e Agricultura; 8.ª edição; 3.ªe 4.ª classes; Ensino Primário
Elementar
1930 Santos; Elementos de Sciências Naturais; 4.ª classe; Ensino Primário Elementar
1933 (s. a.); Ciências Naturais; 4.ª classe; Ensino Primário Elementar
1942 Barros; Ciências Naturais; Ensino Primário
1950 Pinho; Ciências Naturais; 3.ª edição; 4.ª classe; Ensino Primário
1960 Carvalho; Ciências Geográfico-Naturais; 4.ª classe
1968 Lopes e Rodrigues; O mundo que te cerca e de que fazes parte. Ciências Geográfico-Naturais; 3.ª classe;
Ciclo Elementar
1974 Ramiro; Ciências Geográfico-Naturais; 4.ª classe
1982 Carvalho; Por caminhos não andados... Meio Físico e Social; 4.º ano
1984 Monteiro; Ecos de Portugal. Meio Físico e Social; 4.º ano
1986 Moreira, Moutinho e Oliveira; Bom Dia! Meio Físico e Social; 4.º ano

1989 Pinto e Carneiro; O Bambi descobre... Meio Físico e Social; 2.º ano
1990 Ramos e Ramos; Coca-Bichinhos 4. Meio Físico e Social; 4.º ano
1995 Monteiro; Magia do Saber. Estudo do Meio; 4.º ano; Ensino Básico
1996 Barros e Nunes; Crescer com os outros 2. Estudo do Meio; 2.º ano; 1.º Ciclo
1997 Monteiro; Saber quem Somos. Estudo do Meio; 3.º ano; Ensino Básico
1998 Borges, Lima e Freitas; Andorinha Turrinha 4. Estudo do Meio; 4.º Ano; Ensino Básico

A apreciação aos manuais escolares relativos aos anos de 1903, 1907, 1910, 1914, 1916, 1920, 1922, 1925, 1928,
1930, 1933, 1942, 1950, 1960, 1968, 1974, 1982, 1984, 1986, 1989, 1990, 1995, 1996, 1997 e 1998, baseou-se em onze

182
princípios de apreciação: Forma; Reinos; Classificação; Órgãos; Caule; Raiz; Folha; Flor; Fruto; Reprodução; e Dimensões,
que cruzaram com categorias de análise, divididas em quatro níveis de importância: Nível 1 (N1); Nível 2 (N2); Nível 3
(N3); Nível 4 (N4), nas quais foi possível integrar a grande diversidade de informação contida na amostra por nós elaborada.
Sendo assim, para melhor compreensão indicamos na Tabela 2 os procedimentos utilizados na formulação das categorias de
análise e respectivos níveis de importância.

Tabela 2 – Relação estabelecida entre os princípios de apreciação e os níveis de análise

Princípios Níveis
Forma N1 N2
Reinos N1 N2
Classificação N1 N2 N3
Órgãos N1 N2 N3
Raiz N1 N2 N3 N4
Caule N1 N2 N3
Folha N1 N2 N3
Flor N1 N2 N3 N4
Fruto N1 N2 N3
Reprodução N1 N2 N3 N4
Dimensões N1 N2 N3

Para o conhecimento da Botânica nos manuais escolares dos Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo) no século XX
em Portugal, optamos pela realização de uma investigação documental, com a procura de bibliografia, legislação e manuais
escolares, pudemos privilegiar o estabelecimento de relações interdependentes entre a construção teórica e os dados
empíricos obtidos, numa situação de constante contraponto mas, também, de reforço mútuo. Este método, a análise
documental, é adequado para recolher dados já impressos e que não variam com a memória humana se bem que não deixem
de revelar informações selectivas, portanto, tendenciosas, uma vez que os documentos contêm apenas o que foi decidido
registar, omitindo aspectos inconvenientes. Apesar disso, e na qualidade de materiais impressos, os documentos podem ser
utilizados como fonte de informação relevante e credível nos estudos da criança, nomeadamente no estudo do meio físico.
Ao optarmos por uma metodologia inspirada numa abordagem interpretativa, privilegiamos sobretudo a lógica da
descoberta mais do que a da justificação e testagem de conceitos – embora não seja possível separá-las – conduzindo-nos a
ter mais presente, como formas de validação, a atenção à representatividade dos elementos recolhidos, a triangulação, o
contrastar e comparar e o destacar dos casos raros ou excepcionais. Esta opção implica, também, a escolha de um contexto da
investigação, como sendo fundamentalmente um contexto de descoberta, em oposição ao contexto da prova. A opção por um
contexto de descoberta, segundo Lessard-Hébert, Goyette, e Boutin (1994), onde “o investigador foca a formulação de teorias
ou de modelos com base num conjunto de hipóteses que podem surgir quer no decurso quer no final da investigação” (p. 95),
permite que as questões, as hipóteses, as variáveis ou as categorias de observação não estejam predeterminadas e
completamente definidas no início da investigação, dando-lhe margem de acção para as ir definindo à medida que isso se
evidencie pertinente.
O modo de análise dos dados tornou-se uma questão essencial desta pesquisa pois era importante encontrar
evidências que tornassem possível a descrição e a interpretação da situação estudada sob consideração das particularidades
desta realidade. Face ao quadro de análise, aos pressupostos, aos objectivos e ao objecto de estudo da nossa investigação,
para o seu desenvolvimento, a sua análise e seu tratamento era necessário recolher informações dos manuais escolares através
da elaboração de instrumentos adequados. Assim utilizou-se um conjunto de ferramentas para a consecução dos referidos
objectivos: a) A análise de conteúdo; b) A análise de Clusters.

5. Analisando os resultados
As relações de semelhança entre os manuais escolares, o princípio de apreciação Forma e o período de análise,
sugerem-nos as seguintes análises e reflexões sobre:
a) A variação da terminologia dos manuais escolares. Uma primeira constatação que surge da análise efectuada é as
diferentes tipologias usadas para identificar o manual escolar desde as Sciências Naturais, Ciências Naturais, Ciências
Geográfico-Naturais, Meio Físico e Social a Estudo do Meio. Estas modificações evidenciam alterações de abordagem, uma
vez que atendendo a que os manuais escolares em causa são manuais de Ciências da Natureza, inicialmente as denominações
utilizadas versavam uma abordagem disciplinar – Sciências Naturais e Ciências Naturais –, sendo substituídas por uma
anexação disciplinar – as Ciências Naturais com a Geografia: Ciências Geográfico-Naturais –, passando depois para uma
abordagem com o meio, sendo que no nosso entender nesta fase se passa de um abordagem disciplinar para uma abordagem
contextualizada, admitindo-se diferentes concepções do meio entre um sincretismo pré-analítico até uma visão sistémica,

183
pós-analítica (Drouin & Astolfi, 1986). Nesta abordagem, o contexto específico é o meio, sendo inicialmente o – Meio Físico
e Social – e mais tarde o – Estudo do Meio –.
b) A descomplexificação dos conteúdos de Botânica. Estas alterações de designações nos manuais escolares
denotam que no caso da Botânica, enquanto esta ciência se complexifica, surgindo novas áreas de investigação que trazem
novos conhecimentos e especificações próprios, a Botânica escolar se simplifica, uma vez que os seus conteúdos tendem a
surgir vazios de novas temáticas científicas, não se verificando por parte da Botânica escolar a incorporação destes novos
conhecimentos.

As relações de semelhança entre os manuais escolares, o princípio de apreciação Órgãos e o período de análise,
sugerem-nos algumas reflexões sobre:
Desconceitualização dos conceitos de Botânica. Os dados da nossa matriz mostram que quando existem abordagens
aos órgãos das plantas, elas surgem relacionadas com os conceitos de plantas completas e plantas incompletas. Para cada um
destes conceitos, os manuais escolares explicitam que quer as plantas completas, quer as plantas incompletas podem ser de
dois tipos: as plantas Fanerogámicas e as plantas Criptogámicas. Desta forma, parece-nos claro a abordagem taxonómica
relativamente aos órgãos das plantas. Estranho é quando na segunda metade do século XX os manuais escolares não
apresentam qualquer referência a estes dois tipos de plantas, referindo só que as plantas podem ser completas. Relativamente
às plantas incompletas, mantém-se a mesma opção para o mesmo período de tempo, sendo que só existe referência ao
conceito de plantas Criptogámicas como plantas incompletas no ano de 1922.

As relações de semelhança entre os manuais escolares, o princípio de apreciação Dimensões e o período de análise,
sugerem-nos as seguintes reflexões sobre:
a) A alteração ou surgimento de novas abordagens do ensino da Botânica, aqui designadas de dimensões. Nestes
resultados, verificamos que a dimensão nocional existe ao longo do século XX, com a excepção dos manuais escolares de
1974, 1986, 1989 e 1998. A dimensão morfológica surge nos compêndios a partir de 1920 e mantém-se ao longo do período

184
em análise com algumas excepções, nomeadamente nos anos dos livros de 1925, 1968, 1982, 1986, 1990, 1995 e 1998. A
dimensão funcional surge, também, nos manuais escolares a partir de 1920 e mantém-se ao longo do século XX, exceptuando
o ano de 1925, a década de 30, a década de 80 (apenas surge no manual de 1984) e nos anos de 1990 e 1996. A dimensão
ecológica surge nos compêndios a partir da década de 80, no manual de 1982, tendo-se mantido a partir desta data,
exceptuando os manuais escolares de 1990, 1996 e 1997.
b) A inclusão ou não, por parte dos autores, de diferentes dimensões do ensino da Botânica nos manuais escolares.
Existem compêndios que só abordam a dimensão nocional do ensino da Botânica no período de 1900 a 1920 (inclusive) e o
livro de 1990, ou seja setenta anos depois. Verificamos a existência de dois manuais escolares que, para além da dimensão
nocional, só abordam a dimensão morfológica do ensino da Botânica na década de 30 (1930 e 1933) e na década de 90
(1996). O manual escolar de 1968, para além da dimensão nocional evidencia só a dimensão funcional do ensino da Botânica.
Verificamos que o manual escolar de 1982 só apresenta a dimensão ecológica do ensino da Botânica, para além da dimensão
nocional. E, por último, o compêndio de 1998 que apresenta só a dimensão funcional e dimensão ecológica do ensino da
Botânica.

As relações de semelhança entre os manuais escolares, a Botânica escolar e o período de análise, permitem-nos as
seguintes reflexões:
a) A especificidade de semelhanças entre os manuais escolares. Os resultados evidenciam alguma especificidade
nas relações de semelhança entre os manuais escolares. Assim, podemos referir que face aos cinco clusters significativos
apresentados neste Dendograma, os casos pertencentes ao primeiro cluster indiciam semelhança na abordagem da Botânica
escolar em momentos históricos separados por quarenta anos, ou seja os resultados mostram que os conteúdos de Botânica
são semelhantes e, neste sentido, os manuais escolares nos primeiros vinte anos do século XX e nos últimos quarenta anos do
século XX. Os manuais escolares pertencentes ao quinto cluster indicam semelhanças relativas à Botânica escolar num
período de trinta anos, correspondentes às décadas de 30 a 50, ou seja nestes trinta anos a abordagem de conteúdos de
Botânica torna os manuais escolares específicos mostrando os resultados que se trata de um período com características
próprias e abordagens distintas de Botânica escolar. Relativamente aos outros três clusters merece-nos uma análise particular,
uma vez que eles surgem isolados no Dendograma. Esta característica evidencia particularidades únicas dos manuais
escolares, já que atendendo ao período histórico a ao conjunto de princípios de análise (que retratam os conteúdos de
Botânica existentes nos manuais escolares) eles mantêm a sua identidade não se relacionando com outros compêndios,
mostrando especificidades próprias. Uma análise possível prende-se com o facto de os manuais escolares de 1922 e 1928
pertencerem ao mesmo autor e isto torná-los-ia específicos e de difícil relação com os outros. Contudo, não encontramos
explicação para que sendo do mesmo autor não se relacionem entre si.
b) Conservação de conteúdos de Botânica. Observando este Dendograma, podemos afirmar que os resultados
mostram uma tendência relacional entre os programas de ensino e os manuais escolares da nossa amostra relativamente à
Botânica escolar. Assim, a alusão de que os rudimentos de ciências naturais não constituiriam um curso, mas somente uma
série de conhecimentos gerais que convinha transmitir às crianças, sendo o ensino/instrução feito através de processos
intuitivos com a apresentação dos próprios objectos e, na sua impossibilidade com o auxílio de estampas; a valorização da
importância do saber ler, escrever e contar constituindo para isso as três primeiras classes a excelência da instrução do ensino
primário; a utilização de métodos baseados na observação e experiência, inferem uma Botânica escolar de Lições de coisas.
A preocupação da relação com o meio envolvente, uma vez que o contacto com as plantas da localidade e a sua utilização
satisfazem a curiosidade das crianças e possibilitam a obtenção de conhecimentos úteis para a vida prática; a disponibilização
de um ensino da Botânica através de meios, como a recolha de plantas pelos próprios alunos, a construção de um museu
vegetal, o horto e o jardim da escola, conseguindo-se um estudo objectivo da natureza; a exigência que os alunos aprendam a

185
observar o meio ambiente e a reflectir sobre ele, esperando-se que sejam capazes de concluir que as pessoas vivem e se
organizam de diferente modo, na interdependência do homem com o meio; a transformação da Natureza pelo trabalho, as
experiências vivenciadas, o interesse por locais mais distantes são situações que pretendem valorizar e sistematizar ideais a
partir das referências que o meio próximo lhes fornece, numa inferência a princípios morfológicos e uma riqueza nacional
numa abordagem a uma Botânica escolar manipulativa. Os conteúdos de Botânica relacionados com a transformação do
ambiente, com a defesa e conservação do ambiente inferem a Botânica escolar preventiva.

6. Concluindo
As conclusões que se possam retirar deste trabalho mais não são do que contributos, para o esforço emergente de
esclarecimento da Botânica escolar enquanto disciplina com conteúdos próprios dentro da área de ensino das Ciências da
Natureza. Como em qualquer trabalho científico, estas são conclusões que, não sendo definitivas, constituem respostas
possíveis e transitórias, fontes de novos questionamentos a imporem novos avanços no esclarecimento, nunca terminado,
dessas realidades educativas em que a Botânica se inscreve.
Foi um processo de pesquisa que passou pela interpretação das interacções entre o conhecimento científico de
conceitos de Botânica e a visão normativa para o ensino e educação das Ciências da Natureza nos Ensinos Primário e Básico
(1.º Ciclo). Assim, a investigação cruzou dois eixos de análise: a interpretação dos modos como o conhecimento produzido
sobre assuntos Botânicos vem sendo induzido pelas políticas de educação, nomeadamente nas alterações curriculares; a
compreensão da forma como estas questões foram introduzidas nos manuais escolares de Ciências da Natureza em Portugal.
Os resultados mostram que a par das alterações de designações do ensino das Ciências da Natureza, os conteúdos
nelas incluídos também se modificam e adquirem relevâncias distintas. Assim, surgem a descomplexificação, a
dicotomização, a desconceitualização e a conservação dos conteúdos de Botânica distribuídos por diferentes dimensões do
ensino da Botânica, nomeadamente a dimensão nocional, a dimensão morfológica, a dimensão funcional e, por último, a
dimensão ecológica (Cf. Guimarães, 2007).

7. Referências bibliográficas
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Routledge & Kegan Paul.
Borges, F. A. M., (2002). A educação ambiental no 1º ciclo do ensino básico – contributos para o seu desenvolvimento no 4.º
ano de escolaridade. Braga: Universidade do Minho – Instituto de Estudos da Criança Dissertação de Doutoramento.
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Universidad de Burgos/Sociedad Española de H.ª de la Educación, (pp. 917-926).
CRSE (1986). Projecto Global de Actividades. Lisboa: MEC.
Decreto de 18 de Outubro, publicado no Diário do Governo de 20 de Outubro de 1902, que aprova os programas das
disciplinas que constituem o ensino primário.
Decreto n.º 16.730 de 13 de Abril de 1929, publicado no Diário do Governo, que aprova os novos programas para o ensino
primário elementar.
Decreto-Lei n.º 42.994 de 28 de Maio de 1960, relativo aos programas do ensino primário.
Despacho n.º 139/ME/90, de 16 de Agosto, publicado no Diário da República n.º 202, II Série de 1 de Setembro de 1990.
Drouin A. M. & Astolfi J. P. (1986). Milieu. Aster, 3, 73-109.

186
Guimarães, F. (2007). A Botânica nos manuais escolares dos Ensinos Primário e Básico (1.º Ciclo) no século XX em
Portugal. Braga: Universidade do Minho/Instituto de Estudos da Criança Dissertação de Doutoramento.
Lei n.º 46/86 de 14 de Outubro de 1986, publicada no Diário da República, que inscreve a Lei de Bases do Sistema
Educativo.
Lessard-Hébert, M. Goyette, G. & Boutin, G. (1994). Investigação qualitativa: fundamentos e práticas. Lisboa: Instituto
Piaget.
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desde la experiencia portuguesa. In A. T. Ferrer (Edit.), El libro escolar, reflejo de intenciones politicas e influencias
pedagógicas. Madrid: UNED, (pp. 319-326).
Sá, J. Varela, P. Carvalho, G. & Guimarães, F. (1999). Manual do professor para o ensino experimental no 1.º Ciclo – um
projecto de investigação-acção centrado na escola. In R. V. Castro, A. Rodrigues, J. L. Silva & M. L. D. Sousa (Orgs.),
Manuais escolares – estatuto, funções, história. I encontro internacional sobre manuais escolares. Braga: Universidade do
Minho/Instituto de Educação e Psicologia, (pp. 441-458).

O Processo Formativo Profissional da Escola de Artes e Ofícios e os


Ajustamentos de Goffman

Andrea Abreu Astigarraga


Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
aas.tigarraga@hotmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o processo formativo profissional da Escola de Artes e Ofícios (EAO) do município de Sobral, no
estado do Ceará, Brasil, através da análise de documentos e da observação participante. A EAO tem como finalidade proporcionar aos jovens
pobres com experiência de trabalho precoce a inserção no mercado de trabalho através da restauração do patrimônio histórico e da
aprendizagem de ofícios. Através da análise de documentos, realizamos um estudo crítico sobre o projeto político pedagógico expresso no
Plano de Curso da EAO: seus objetivos, a estrutura, o funcionamento e o currículo. Tendo como base o quadro teórico dos estudos de Erwin
Goffman na obra Manicômios, Prisões e Conventos, realizamos um estudo da EAO tomando as seguintes categorias teóricas: ajustamentos
primários e secundários, a carreira moral dos jovens aprendizes e as características e ações da equipe dirigente. Nesse estudo concluímos que
iniciativas como a EAO direcionadas aos jovens pobres com experiência de trabalho precoce mantêm características das instituições totais,
ou seja, são predominantemente disciplinadoras, visando o “desculturamento” a fim de ajustar os indivíduos à sociedade sem proporcionar
uma adequada inclusão social e uma real inserção no mercado de trabalho.

Introdução
Este texto visa relatar a pesquisa realizada no Projeto Oficina Escola de Artes e Ofícios (POEAO) enquanto
instituição promotora de a ação sócio-educativa implantada no município de Sobral, Ceará, no ano 2000. O objeto da
pesquisa foi o processo formativo oferecido pelo POEAO às crianças e adolescentes consideradas em situação de risco
(aprendizes).
Considerando o POEAO uma instituição formativa com características de instituição total, tomamos como
categorias de análise o quadro teórico advindo das idéias de Erving Goffman (1999) sobre carreira moral, hierarquia, táticas
de adaptação, desculturamento e ajustamentos. Assim como, as categorias “viração” e “circulação”, provenientes de Gregori
(2000). Os procedimentos metodológicos foram: análise de documentos (relatório e folder de divulgação da instituição,
jornais locais e estaduais), observação participante, conversas informais, aplicação de questionários e pesquisa bibliográfica.
Iniciativas como o Projeto Oficina-Escola de Artes e Ofícios do Ceará1 (POEAO) direcionam seu atendimento às
crianças e adolescentes consideradas em “situação de risco”, mas que, em nossa pesquisa, são concebidos como filhos de
trabalhadores. Eles fazem parte da grande maioria da população que vive na miséria ou à beira dela, sem direito ou
participação nos benefícios sociais, buscando alternativas de sobrevivência, nem sempre condizentes com os padrões aceitos.
A pesar de a Constituição Federal proibir o trabalho de menores de 16 anos, existe quase quatro milhões de crianças no País
nessas condições.
O Projeto é desenvolvido em dois setores: no Centro Histórico (com atividades experimentais nos imóveis do Sítio
Tombado de Sobral) e no Centro de Referência (com atividades experimentais em oficinas de marcenaria, carpintaria,

1
O Projeto Oficina Escola de Artes e Ofícios (POEAO) surgiu na cidade de Ouro Preto onde nasceu seu idealizador, Jair Afonso Inácio, homem simples, filho de
lavadeira, negro, pobre. Cursou apenas o primário e tornou-se autodidata e uma especialista em assunto de restauração do patrimônio histórico nacional. Na
época em que iniciou as atividades havia um número reduzido de restauradores no país para atender ao grande volume de serviços do IPHAN (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Jair reconheceu a necessidade de formar profissionais para a área do restauro. A primeira turma formou-se em 1972.

187
instalações prediais, alvenaria, conservação e restauração de acervos gráficos e artes e papel). Os aprendizes trabalham
durante 4 horas diárias, de segunda a sexta-feira.
O perfil dos aprendizes da Oficina Escola é basicamente constituído por jovens pobres, residentes em bairros
periféricos do município de Sobral, entre 14 e 20 anos, vários deles com defasagem entre a idade e a série escolar, tendo em
vista que a maioria freqüenta o ensino fundamental e possuem experiência de trabalho infanto-juvenil.
De acordo com Goffman, as instituições totais de nossa sociedade podem ser grosso modo, enumeradas em cinco
agrupamentos.
Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e
inofensivas; nesse caso estão as casas de órfãos e indigentes, entre outras. Em segundo lugar, há locais estabelecidos para
cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são, também, uma ameaça à comunidade (...) em
quarto lugar, há instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e
que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais, tais como escolas internas (1999, p.16-17).
Considerando esses pressupostos, questionamos em que medida a proposta pedagógica profissionalizante da
Oficina Escola tem características de instituição total, até que ponto pretende impor aos alunos aprendizes um
comportamento meramente adaptativo, com ênfase no treinamento técnico das oficinas e, em que medida, o POEAO
enquanto instituição que pretende desenvolver uma ação sócio-educativa dirigida aos adolescentes, voltada à aprendizagem
de ofícios, atinge seus propósitos.

1. A carreira moral dos jovens aprendizes: a fase pré-paciente e o internamento


1.1: A fase pré-paciente: o processo de admissão
Inicialmente, tomamos o conceito de carreira apontada por Goffman. Carreira é qualquer trajetória percorrida por
uma pessoa durante sua vida. Pode ser inicialmente a história natural do sujeito. É um conceito ambivalente, por um lado,
está ligado a assuntos íntimos e preciosos, por exemplo, a imagem do eu e a segurança sentida; o outro se liga à posição
oficial. As relações jurídicas, a um estilo de vida, e é parte de um complexo institucional acessível ao público. O conceito de
carreira vai do público para o íntimo e vice-versa, entre o eu e sua sociedade significativa. Com esse conceito, pode se fazer
um estudo institucional do eu. Os aspectos morais da carreira: a seqüência regular de mudanças que a carreira provoca no eu
da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesmo e aos outros (Goffman, 1999, p.111).
Para Goffman, os novatos entram na instituição com diferentes estados de ânimo. Explica que num hospital, por
exemplo, na fase de pré-paciente, um grupo relativamente pequeno de pessoas vai à instituição por vontade própria, seja
porque tem uma idéia de que será bom para ele, seja porque há um acordo com as pessoas significativas da sua família.
Presumivelmente, tais novatos verificam que estavam agindo de uma forma que, para eles, era prova de que estavam
perdendo a cabeça ou o controle de si mesmos. É a reavaliação desintegradora que a pessoa faz de si mesma (Idem, p.103).
Essa angústia resultante dessa percepção de si mesmo e as estratégias usadas para reduzi-la, podem ser
apresentadas por qualquer pessoa socializada em nossa cultura e que chegasse a pensar que está perdendo a cabeça. Pode
haver diferentes proporções de auto-avaliação. Há um circuito de agentes e agências que participam de maneira decisiva em
sua passagem do status civil para o de internado.
A carreira moral dos jovens aprendizes pobres atendidos pelo POEAO tem uma pré-internação bastante longa. A
falta de oportunidade de estudos é um dos aspectos sociais da vida desses jovens, aliado a outros, tais como: trabalho na
infância, moradia com pouca estrutura básica, migração, entre outros. Aspectos que na sua totalidade constituem uma vida
inteira de “humilhação social”, sem as necessidades básicas de subsistência contempladas.
Os aprendizes ingressaram no POEAO por vários motivos: através de outras pessoas ou instituições: por iniciativa
própria, indicados por irmãos e amigos, encaminhados pela escola regular, conselho tutelar ou pelos educadores sociais de
rua. O ingresso dos jovens pode acontecer por turmas ou individualmente, por isso há diferenças nos períodos que estão
freqüentando a instituição em um intervalo que varia de um mês a dois anos. Estes dados repercutiram em questões tais como
o conhecimento que os jovens têm sobre a proposta de formação profissional da Oficina Escola.
Os adolescentes são predominantemente oriundos da experiência de rua, considerados pela instituição como “em
situação de risco”. Antes de ingressarem na Oficina Escola, muitos deles disseram que: Eu fazia nada, eu andava pela rua
“rapano”, usando drogas, eu trabalhava de doméstica.
Gregori utiliza o termo “viração” para explicar a dinâmica da vida dos chamados “em situação de risco”. Ela
emprega o termo viração tomado do linguajar coloquial referente à prática de “se virar” para sobreviver, conquistar recursos
para a sobrevivência (Gregori, 2000, p.18). Usualmente, é referido às atividades informais de trabalhar, dar um jeito, driblar o
desemprego. Isso significa, que muitas vezes, eles podem se tornar pedintes ou ladrões ou prostitutos (as) ou “biscateiros”.
Assim, a viração na rua não vincula apenas à aquisição de bens para a sobrevivência, ela pode fornecer, sobretudo,
relações e interações entre parceiros. A viração tem um caráter dúplice – a estratégia ao mesmo tempo de sobrevivência
material e mediadora de posicionamentos simbólicos (ob. cit. p.31).
Outro termo que “casa” com a viração é o de “circulação” tendo em vista que a movimentação dos meninos é
constante. As intervenções ou práticas institucionais encontram dificuldade de reconhecer aspectos como a viração e a

188
circulação2. Pode-se observar como um mesmo menino é capaz de mudar inteiramente seu comportamento dependendo do
agente ou das instituições pelas quais circula. Os meninos são capazes de conduzir seus gestos e falas como “carentes” e
“vítimas” ou se tornar “independentes”.
Da mesma forma, as instituições os tratam de maneira diversa – e os meninos sabem disso, e assim, as instituições
alimentam o circuito da viração e da circulação3. Parece haver certa astúcia. Astúcia em poder transitar, sem conseqüências
danosas, pelas esferas da ordem e da desordem. Segundo Gregori:
Mais do que meros aspectos, são formas de um viver que aprisionam o destino a uma circularidade Há nessa
circularidade algo que dificulta a passagem para a vida adulta e para a conquista da cidadania. Trata-se de um trajeto que não
desenvolve alternativa (2000, p.160)
Entre os jovens pobres pertencentes ao POEAO, também encontramos alguns que fazem parte do processo de
circulação entre as instituições de atendimento. O conceito de circulação é fundamental por mostrar uma dimensão da
pobreza e, em particular, de uma situação mais absoluta de pobreza que se vê no imediatismo das relações que se travam nas
ruas.
A circulação é um padrão urbano popular, resultante da pobreza e, em especial, daqueles pobres que não
conseguem manter exclusivamente na esfera privada (a casa, o bairro, a comunidade, o trabalho fixo) o espaço de sua
reprodução, buscando oportunidades melhores no espaço público – das ruas e das instituições – e junto ao mercado informal
de trabalho.
Segundo Goffman, alguns internados que têm larga experiência em orfanatos, reformatórios e outras instituições
totais, tendem a vê-la apenas como mais uma, na qual podem aplicar as técnicas de adaptação apreendidas e aperfeiçoadas
em instituições semelhantes, Para essas pessoas, a “viração” não representa uma mudança em sua carreira moral, mas uma
tática que faz parte de sua segunda natureza (1999, p.63).
Goffman descreve que a sensação do tempo passado no estabelecimento pelo internado é tempo perdido, destruído
ou tirado da vida da pessoa, é tempo que precisa ser apagado, é algo que precisa ser cumprido, preenchido ou arrastado de
alguma forma. “Passar o tempo” é algo penoso ou leve. Este tempo é algo que foi posto entre parênteses na consciência
constante e de uma forma que o internado dificilmente encontra no mundo externo. É como se sua estada obrigatória fosse
um tempo de exílio da vida (1999, p.64).
No caso dos jovens aprendizes com experiência de rua, parece que o tempo anterior à institucionalização é que
apresenta este caráter de “perdido”. Alguns dos adolescentes aprendizes estavam inseridos na antiga FEBEMCE ou foram
encaminhados pelos educadores sociais de rua, Cheguei ao Projeto através de uma educadora. Ela é da Febemce; A Febemce
me ajudou muito, porque sem ela eu acho que hoje eu estava perdido na rua.
Portanto, percebe-se que, ao contrário da instituição amplamente fechada – instituição total – a passagem pela
FEBEMCE e a experiência no POEAO, por alguns adolescentes pobres, com experiência de rua, interpretam a estada nessas
instituições como uma saída, uma alternativa, uma chance na vida.
É como se, aparentemente, concordassem com o desculturamento ou o apagamento da cultura de rua pelo qual
passaram e aceitassem uma nova personalização laboriosa, conseqüência de uma reavaliação desintegradora, pois a
motivação principal pelo ingresso na Oficina Escola reside na perspectiva (real ou não) de obter um emprego. E isso só é
possível se o aprendiz se submeter aos critérios da instituição de voltar a freqüentar a escola regular e participar
integralmente do projeto, como podemos ver nos depoimentos a seguir:
Primeiramente foi uma amiga da minha mãe lá na minha casa me convidar para ir ao projeto. Depois que eu soube
que estavam empregando gente eu fui com duas colegas; Antes de entrar no projeto eu só estudava, mas percebi que
precisava me ingressar em alguma coisa para garantir o meu futuro. Eu não sei nada sobre a escola mas o que eu acho é que
um dia eu vou conseguir um emprego melhor.
Quando questionamos sobre o conhecimento do processo formativo oferecido pelo POEAO um adolescente novato
afirma que não conheço muita coisa. Um [dos objetivos] é rebocar, o outro é levantar paredes e o outro é ser monitor. É um
depoimento que caracteriza a fase pré-paciente, do processo de admissão. Esse depoimento é interessante porque demonstra a
mudança nos pensamentos e ações dos aprendizes na fase posterior de internamento que predomina nas falas dos
adolescentes que estão inseridos em um período de tempo maior na Oficina Escola. Quando indagamos aos adolescentes
sobre a contribuição que o POEAO está dando em suas vidas eles fizeram referência à importância dela na mudança e
formação de atitudes, tais como:
Aprender a ser bons profissionais, ajudar as pessoas a mudarem para melhor, ter uma visão melhor do futuro,
deixar de andar nas ruas vadiando, modificar as pessoas que vivem ao redor, aprender a ser alguém na vida, formar o jovem a
ser um mestre de obras; transformar todos nós em pessoas educadoras, inteligentes e transformar nossa vida, ter um futuro
digno; afastar do mundo das drogas e da prostituição dos menores; o objetivo da Oficina Escola é capacitar, colocar no
mercado de trabalho profissionais capacitados; a EAO é tudo o que uma escola profissionalizante pode ter e acreditar na
capacidade que os jovens têm.

2
Percebemos e descrevemos esses dois fenômenos em nossa dissertação de mestrado “Processos diferenciados de institucionalização da infância de rua em
Fortaleza: Projetos “Atleta do Ano 2000” e “Integração da criança à sociedade”, Fortaleza, CE, 1997.
3
O fenômeno da viração e da circulação não é recente, perpassam a história da institucionalização das crianças e meninos pobres do Brasil.

189
Encontramos vários aprendizes com o perfil de pré-paciente. Adolescentes que fazem uma reavaliação
desintegradora, se sentem “fora do lugar”, com a vida “sem sentido”, uma percepção de si mesmo angustiante que provoca
uma decisão voluntária ou induzida por parentes e amigos de ingressar no POEAO. Vejamos o depoimento de um aprendiz a
seguir:
Se não tivessem me chamado eu ia insistir até me chamarem. Fiquei indignada com a merendeira da minha escola
que disse: Como é que você vai trabalhar para ganhar R$ 70,00? (referindo-se a bolsa-auxílio). Eu respondi para a senhora
que dinheiro é uma necessidade e que o importante para mim, é o que vou aprender com o curso e não o dinheiro. Trabalho
até de graça para ter experiência.
Numa sociedade capitalista, onde cada vez mais se exige uma maior qualificação das pessoas, num mercado
competitivo e excludente, ter acesso a oportunidades em que os adolescentes possam adquirir experiência profissional se faz
necessário tanto quanto um trabalho remunerado. Deste modo, o interesse em estar no projeto está ligado à necessidade de
aprender mais e aproveitar as oportunidades, não descartando a possibilidade da ajuda financeira, através da bolsa
aprendizagem.
Mas, depois da fase pré-paciente, do processo de admissão, como os jovens aprendizes ingressos reagem ao
processo formativo recebido no POEAO? Passamos a analisar a fase do internamento.

1.2 A fase de internamento: as táticas de adaptação, os ajustamentos primários, intermediários e secundários.


Dentro da carreira moral do internado, pode haver ajustamento primário e ajustamento secundário. Goffman explica
que o ajustamento primário ocorre:
Quando um indivíduo contribui cooperativamente com a atividade exigida por uma organização e sob as condições
exigidas – em nossa sociedade com o apoio de padrões institucionalizados de bem-estar, com o impulso dado por incentivos e
valores conjuntos e com a ameaça de penalidades indicadas – se transforma num colaborador; torna-se o paciente “normal”,
“programado” ou “interiorizado”. Ele dá e recebe, com espírito adequado, o que foi sistematicamente planejado,
independentemente do fato de isso exigir muito ou pouco de si mesmo. Em resumo, verifica-se que, oficialmente, deve ser
não mais e não menos do que aquilo para o qual foi preparado, e é obrigado a viver num mundo, na realidade, que lhe é afim
[Trata-se] de um indivíduo com ajustamentos primários à organização (1999, p.160)
Os ajustamentos secundários são práticas que não desafiam diretamente a equipe dirigente, mas que permitem que
os internados consigam satisfações proibidas ou obtenham, por meios proibidos, as satisfações permitidas. Também são
chamadas de “conivência”, “trato”. Os ajustamentos secundários dão ao internado uma prova evidente de que é ainda um
homem autônomo, com certo controle de seu ambiente; às vezes, um ajustamento secundário se torna quase uma forma de
abrigo para o eu, um alojamento para a alma (Goffman, 1999, p.54).
Complementando as categorias teóricas de Goffman, acrescentamos um terceiro ajustamento, ou seja, o
intermediário. Em nossa coleta de dados constatamos que, em suas concepções, os adolescentes oscilam entre esses três tipos
de ajustamento.
Buscamos entender em que medida os adolescentes aprendizes contribuem cooperativamente com as atividades
exigidas pela organização onde estão inseridos, sob as condições exigidas, para tornarem-se alunos adaptados (programados)
ou se eles utilizam práticas que não desafiam diretamente à equipe dirigente, mas, expressam pensamentos e sentimentos
próprios e análise crítica ao processo formativo profissionalizante pelo qual estão passando ou ainda se há um caminho
intermediário entre os dois ajustamentos citados anteriormente.

2. Como se constrói um sonho?


Desenvolvemos junto aos aprendizes a técnica projetiva chamada Grupo Focal. Adotamos o material audiovisual
“Cidadania em Construção”, utilizado pela ONG Raio. Esse material é composto por um conjunto de 11 vídeos clips que
expõem várias situações vivenciadas pelos adolescentes. “O modo de operar é similar ao do teatro-debate sendo que, ao invés
da encenação, é apresentado o vídeo clip. Este é previamente selecionado em função do tema investigado. O vídeo tem a
duração de cerca de oito minutos. A seguir, procede-se à discussão, registro, gravação, filmagem, etc.” (Damasceno & Sales,
2005, p.133). O video clip que utilizamos foi “O que você quer muito na vida”. Após assistir ao filme, os adolescentes
participantes foram orientados a discutir as questões seguintes:
Com qual (is) adolescentes (s) você mais se identificou?
Quais as dificuldades que você(s) imaginam que vai (vão) encontrar no caminho para realizar o (os) seu (s) sonhos?
Que fatores influenciam para obter um bom emprego?
Qual a importância do trabalho em suas vidas?
O objetivo dessa técnica projetiva foi identificar os sonhos dos adolescentes. Nos depoimentos, verificamos uma
variedade muito grande de sonhos, as perspectivas durante o curso profissionalizante onde eles estão inseridos e após o
término do mesmo.
O que constatamos em alguns adolescentes foi a influência da proposta formativa profissionalizante estruturada
hierarquicamente na Escola de Artes e Ofícios, mas nem sempre de forma coerente, ou seja, muitos sonhos dos adolescentes
são ambíguos porque ao mesmo tempo em que pretendem seguir as perspectivas apontadas pelo processo formativo

190
profissional engendrado pela aprendizagem de ofícios apresentado a eles, também alimentam sonhos paralelos que,
aparentemente, não condiz com a proposta.
Nos primeiros depoimentos expostos abaixo, percebe-se uma clara “adesão” à proposta formativa profissionalizante
recebida na escola pelos adolescentes aprendizes. Nessa “conversão”, utilizando um conceito de Goffman, o internado parece
aceitar a interpretação oficial da instituição ou da equipe dirigente e tenta representar o papel do internado perfeito,
convertido (1999, p. 59). Enquanto discutiam as dificuldades encontradas pelos adolescentes na sociedade atual e a
necessidade de políticas públicas e melhoria das escolas, uma jovem alega que não concordava com isso, porque a gente tem
que tomar consciência que a gente vive numa hierarquia. Temos que respeitar isso e concordar como é que é, né. Temos que
aceitar a realidade como ela é.
Os adolescentes possuem sonhos muito variados. Alguns pretendem ser mestres de obras, capoeiristas, jogadores de
futebol. Mas muitos deles almejam fazer faculdade: Direito, Medicina, Construção Civil ou Engenharia. Quando indagamos
aos aprendizes sobre as possíveis dificuldades que encontrarão para a realização de seus sonhos, eles responderam que estas
poderiam ser de ordem pessoal (interesse, esforço próprio), conjectural (falta de emprego) e financeira (falta de dinheiro para
pagar os estudos).
N. lavava carros nas ruas e está no POEAO há dois meses. É um dos alunos que estava em “situação de risco”, ou
seja, sujeito central na proposta formativa do POEAO. Ele está na fase transitória de pré-paciente para internado. Faz um
balanço da vida nas ruas, o ganho financeiro com a situação atual de aprendiz e projeta sua vida para além do passado e do
presente almejando ser um técnico em construção civil.
- Qual a diferença de sua atividade anterior para as atividades no POEAO?
- A diferença é que eu ganhava “mais pouco”. Apesar daqui [o pagamento da bolsa aprendizagem] é por mês [eu
ganho mais porque] lá eu ganhava “mais pouco”. Lá era uns dez reais por semana e aí não dava para o que eu queria
bicicleta, roupa, não dava.... Aqui na escola eu aprendi a pintar, a rebocar, a hidráulica. Meu maior sonho é ser mestre.
Você pensa em fazer faculdade?
Penso, Construção Civil (17 anos, 2ª série do Ensino Fundamental).
Alguns adolescentes expressam sonhos diretamente ligados ao contexto da proposta profissional onde estão
inseridos: Meu sonho é terminar meus estudos e ter uma profissão. Ser um bom profissional, mestre ou pintor (N, 17 anos, 5ª.
Série). No caso de M, deixar a vida difícil do trabalho no campo para aprender um ofício e trabalhar na cidade, representa
uma mudança em sua vida: Eu fui boiadeiro. Meu sonho é “se formar” em mestre de obras (M, 18 anos, 4ª série).
Em alguns depoimentos, fica evidente a influência das possibilidades de ascensão funcional, ou seja, de mestre de
obras a engenheiro: O que eu mais quero na vida é ser engenheiro, “se formar” e ensinar aos outros o que aprendi (R, 15
anos, 8ª série do Fundamental -Tempo de Avançar).
Também está presente, entre os aprendizes, a aplicação imediata do curso realizado, a possibilidade de estender
seus conhecimentos às pessoas mais próximas, além de projetar no futuro o sonho de fazer uma faculdade: Eu queria muito
esse negócio de Engenharia, essas coisas assim. Quando eu sair do POEAO eu já estou sabendo o que eu vou fazer. Eu posso
ensinar alguns que não sabem, por exemplo, gente da minha família, porque eu posso sair daqui como mestre - de- obras (N,
18 anos, 5ª. série).
Um aspecto interessante é a incorporação pelos adolescentes do mecanismo da hierarquia utilizada pela equipe
dirigente como um dispositivo disciplinar e de privilégios (recompensas e castigos). JR expressa o seu sonho e o que significa
ser um mestre de obras: Quando eu sair daqui talvez eu seja um mestre de obras. Um mestre de obras ordena as obras que
está realizando: “Fulano, faz esse reboco aí porque nós temos que entregar esse serviço hoje!” (JR).
F. já ocupa um degrau a mais na hierarquia da Oficina Escola e também internalizou a perspectiva de ser um
engenheiro depois de passar pelo aprendizado de mestre-de-obras: Meu objetivo mais na frente é ser um mestre de obras e
com esses planos eu quero chegar a fazer faculdade de construção civil, Engenharia ou Direito. Fui aluno durante quase um
ano e agora sou monitor há uns quatro meses (F, 19 anos, 2ª anos do Ensino Médio).
FE, 17 anos, trabalha na alvenaria e hidráulica. Está no POEAO há um ano e seis meses. É monitor, recebe R$ 104
reais, ao contrário dos alunos aprendizes que recebem uma bolsa aprendizagem de R$ 70 reais. Em seu depoimento a seguir,
podemos acompanhar a carreira de um jovem aprendiz da Oficina Escola. FE entrou no POEAO como jovem em “situação
de risco”, com experiência de trabalho precoce. Ele compara a experiência de trabalho na rua com a proposta
profissionalizante atual, faz a diferença entre a remuneração recebida e diz que no POEAO tem muito que aprender. Apesar
de trabalhar na oficina de alvenaria e hidráulica, ele queria estar na marcenaria. Sente-se conformado com isso. Descreve a
atividade de monitoria e do seu sonho de ser engenheiro.
Qual o seu maior sonho?
Se eu estudar muito, eu quero ser Engenheiro.
Qual o teu sonho atual?
Eu queria ser marceneiro.
E você não pode ir para a marcenaria?
Não, se eu tô aqui deixa, eu tenho que aprender aqui.
Outro adolescente expressa seus sonhos da seguinte maneira:
Eu acho que cada um tem seus direitos, direito de ser advogado ou de ser qualquer outra coisa na vida, né. Eu tiro
como exemplo o Claudinei. Ele começou aqui [na EAO] como aluno, igual a todos nós aqui e hoje ele é instrutor. Ele

191
começou da estaca zero, aluno e hoje ele é instrutor. Então, cada um que está aqui, com certeza, se perseverar, se agente lutar
por esse ideal, vai ser um instrutor, monitor ou qualquer outra coisa [para isso], tem que “ralar”, tem que trabalhar.
Percebe-se que há adesão a uma proposta escalonada de ascensão profissional. Iniciar o curso como aluno e almejar
subir os degraus hierárquicos até ser mestre de obras e sonhar com um curso a nível superior, empregando muito interesse,
empenho para atingir seus objetivos.
Nos depoimentos a seguir aparece uma característica diferente. Os adolescentes mesclam a influência da formação
profissional recebida pela equipe dirigente com sonhos para o futuro, após o período no POEAO: pode-se perceber uma
mistura entre ajustamentos primários e ajustamentos secundários pois os jovens estão “convertidos” à proposta oferecida,
mas ao mesmo tempo, alimentam um sonho que não está diretamente relacionado com a formação profissional voltado aos
ofícios, recebida atualmente.
- Meu sonho é estudar, arranjar um emprego e ser jogador de futebol.
E depois de terminar o curso da Escola de Artes e Ofícios?
Quero me formar em Engenharia.
Você pensa em ser restaurador?
Não (C, 17 anos, 7ª série do Ensino Fundamental)
- Meu sonho é um dia ser jogador de futebol, também.
Quando você sair da Escola de Artes e Ofícios?
Vou me arranjar em algum canto aí. No ramo em que eu tô. Pode ser na Coelce, nessas empresas...(AE, 18 anos, 2º
Anos do Ensino Médio).
- Meu maior sonho é arranjar um emprego “mais melhor”.
- Como seria esse emprego?
- Um assim que a pessoa não levantasse muito peso. Com estudo a pessoa pode arranjar um emprego só escrevendo
as coisas. Meu sonho é ser um grande capoeirista (M, 16 anos, 6ª série).
Chama a atenção o fato de que alguns aprendizes possuírem sonhos e perspectivas, atuais e futuras, sem relacionar
com a proposta formativa recebida atualmente pelo POEAO. Vejamos: Meu sonho é ser secretária executiva, me formar em
Letras (M, 17 anos, 1º ano do Ensino Médio); Meu sonho é ser advogado (AU, 18 anos, 2º ano do Ensino Médio); Meu sonho
é fazer faculdade de medicina (I, 17 anos, 1º ano do Ensino Médio).
É interessante observar um certo distanciamento entre o sonho dos adolescentes e a iniciação profissional que estão
recebendo na Oficina Escola. De acordo com Damasceno:
O mundo do trabalho, quando é introduzido de maneira precoce no universo do jovem pobre, nem sempre contribui
para estruturar sua identidade (...), o trabalho torna-se mais uma fonte de renda do que uma atividade que contribui para a
realização pessoal. Desse modo, observa-se por um lado, a crença no poder da educação como instrumento de mobilidade
social, pois esta encerra uma possibilidade real de melhoria das condições de vida, por outro, há clareza de que esta contém
um forte componente ideológico (2001, p.11).
Nos depoimentos dos adolescentes pode-se perceber a lógica da empregabilidade (capacidade de se manter em um
emprego e de se manter em um mercado de trabalho em constante mutação) presente entre os homens de negócio e suas
propostas formativas parece estar se inserindo pouco a pouco no discurso dos adolescentes.

Considerações Finais
Como vimos o mundo do trabalho, quando é introduzido de maneira precoce no universo do adolescente pobre,
nem sempre contribui para estruturar sua identidade, o trabalho torna-se mais fonte de renda do que uma atividade que
contribui para a realização pessoal.
Observa-se por um lado, a crença no poder da educação como instrumento de mobilidade social, pois esta encerra
uma possibilidade real de melhoria das condições de vida, por outro, há clareza de que esta contém um forte componente
ideológico. É conveniente destacar que parte dos adolescentes percebe e expressa tal contradição com bastante lucidez.
Porém, apesar deste quadro contraditório, a grande maioria dos adolescentes entrevistados reconhece e acredita na
relação entre educação e trabalho. Para eles, o estudo aumenta as possibilidades de adquirir um bom trabalho além de ampliar
as perspectivas de vida.
Ser inserido ou aderir a uma proposta formativa tem várias implicações para crianças e adolescentes em “situação
de risco”. Uma delas é o processo de desculturamento, ou seja, “desaprender” a cultura da “viração” e da “circulação” pelas
ruas, pela busca de sobrevivência através do trabalho precoce ilícito e o ajustamento (total ou parcial) à instituição que se
propõe formadora.
Em alguns momentos, com alguns adolescentes, a pesquisadora, no momento da investigação, achou estranho,
incoerentes alguns depoimentos e fez algumas perguntas não previstas que, posteriormente ajudaram a compreender melhor
as concepções dos adolescentes tendo como referência as categorias teóricas, principalmente os ajustamentos primários e
secundários de Goffman.
Na análise dos depoimentos dos adolescentes, captados através da técnica projetiva do vídeo-clip percebemos que
adolescentes alegam que para atingir seus sonhos precisarão estudar muito, mas em nenhum momento comparam seu
“déficit” de escolaridade com a meta de entrar em um curso superior. Entendemos que diminuir esse “déficit” entre idade e

192
escolarização poderia suavizar o caminho até o sonho. Mas, uma das maiores dificuldades descritas no relatório técnico feito
pela gerente da Oficina Escola é justamente a conciliação da freqüência à Oficina Escola e à escola regular.
Estes adolescentes expressam certa adesão a uma proposta escalonada de ascensão profissional, ou seja, iniciar o
curso como aluno e almejar subir os degraus hierárquicos até ser mestre de obras e sonhar com um curso a nível superior,
empregando muito interesse, empenho individual para atingir seus objetivos.
Em seus depoimentos, percebemos que há tanto ajustamentos primários à proposta pedagógica profissionalizante da
Oficina Escola, quanto ajustamentos secundários. Alguns adolescentes “aderem” ao que lhes é proposto. Em tais
depoimentos, pode-se detectar o discurso da proposta formativa da Oficina Escola assimilada pelos aprendizes.
No entanto, vários deles expressam em seus discursos à lógica da empregabilidade. Isso nos faz concluir que, em
um mundo globalizado, com altos índices de desemprego, onde as exigências de escolarização e formação profissional são
cada vez maiores, propostas apresentadas aos adolescentes pobres, tal como da Oficina Escola, podem representar alternativa
importante em suas vidas, em termos de oportunizar ações sócio-educativas visando garantir os direitos das crianças e
adolescentes, mas isso não significa que ela seja a única.
Eles podem compartilhar das perspectivas apresentadas a eles, aderir total ou parcialmente. No entanto, eles
mantêm suas identidades e perspectivas próprias. Apóiam-se nas oportunidades, mas não perdem de vista seus (verdadeiros)
sonhos, sejam estes individuais ou coletivos, imediatos ou futuros. Sendo assim, os adolescentes recriam “outros” territórios
em seus contextos formativos.

Referências Bibliográficas
ASTIGARRAGA, A. A. (1997). Processos Diferenciados de Institucionalização da Infância de Rua em Fortaleza: Projetos
“Atleta do Ano 2000” e “Integração da Criança à Sociedade”. Fortaleza (CE), Universidade Federal do Ceará (UFC).
Dissertação de Mestrado.
AUED, Bernadete Wrublevski (org.). (1999). Educação para o (Des) Emprego: ou quando estar liberto da necessidade do
emprego é um tormento. Petrópolis, RJ: Vozes.
DAMASCENO, Maria Nobre (coord.). (2004). Entre o Sonho e a Realidade: Educação e perspectivas de trabalho para os
jovens. Fortaleza, CE: Ed. Brasil Tropical.
DAMSCENO, Maria Nobre & SALES, Celecina (coords). (2005). O Caminho se faz ao caminhar: Elementos teóricos e
práticas na pesquisa qualitativa. Fortaleza: Editora UFC.
Diário do Nordeste, 23/08/2000.
GOFFMAN, Erving (1999). Manicômios, Prisões e Conventos. SP: Ed. Perspectiva, 6ª. Ed,
GERGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. SP: Companhia das Letras, 2000.
Neto, José Clodoveu de Arruda Coelho Neto. (2000). Sobral: Patrimônio Histórico-Cultural Nacional, 43 -50 SANARE –
Revista Sobralense de Políticas Públicas, Ano II, nº. 3, out./nov./dez.

A formação do trabalhador na Amazônia: um breve olhar nas políticas do Estado


nos anos 2000.

Carlos Renilton Freitas Cruz


Universidade do Minho (PT); Universidade Federal do Pará (BR); Programa ALBAN.
renilton@ufpa.br

Resumo: O estudo analisa a formação do trabalhador no Pará, estado situado na Amazônia brasileira, tendo em vista a reconfiguração do
mundo produtivo experimentada nas últimas décadas. Discute as ações do Estado no campo da qualificação profissional. Para tanto, além de
pesquisa bibliográfica, recorre-se a fontes documentais capazes de esclarecer o percurso e a abrangência das políticas públicas realizadas na
última década. Atualmente, graças a voraz necessidade de expansão do capital em nível global, a exigência pela formação do trabalhador
vem ganhando complexidade e impondo novas atitudes por parte dos responsáveis pelas instituições educativas. No Brasil os estudos sobre o
processo de qualificação do trabalhador remontam à década de 1970, quando eram vinculados à economia da educação. Desde os anos de
1980 as pesquisas tem, majoritariamente, se vinculado à uma visão crítica, onde o trabalho é entendido como princípio educativo. Percebe-se
hoje que as iniciativas estatais voltadas à educação do trabalhador, tanto em nível regional como nacional, privilegiam programas e projetos
às políticas estruturantes; priorizam o privado em detrimento do público na oferta e gestão dos programas, mesmo com financiamento estatal;
adotam iniciativas que atendem interesses dos organismos internacionais, onde uma visão restritiva do direito à educação é evidente;
ampliam vagas, mas precarizam os processos educativos. Fatos que demonstram que, apesar dos discursos enfatizando a necessidade da
elevação da qualificação do trabalhador, as ações se distanciam de um projeto educativo que instrumentalize os trabalhadores para o
enfrentamento e a problematização do atual mundo do trabalho.
Palavras.chave: Trabalho; Educação; Reestruturação Produtiva; Política Pública.

Introdução

193
As últimas décadas do século passado testemunharam uma profunda e contínua transformação em diversos setores
da sociedade em escala planetária. A globalização instaurou um novo momento na história da humanidade impondo
alterações nos campos da produção, da cultura, do meio ambiente, do comportamento individual e coletivo.
Tais transformações impuseram novas condições aos trabalhadores da cidade e do campo, principalmente no que
diz respeito à sua qualificação e às questões que envolvem a conquista e a permanência no emprego. A região amazônica
encontra-se envolvida nesse processo, sentindo de perto os avanços e os retrocessos que o desenvolvimento econômico vem
proporcionando nas últimas décadas no interior de suas fronteiras. Ao mesmo tempo em que a região presencia a introdução
de sofisticadas tecnologias da informação que aproxima os mais isolados dos ribeirinhos, camponeses ou indígenas, também
é testemunha da insana e voraz destruição de florestas, rios e do próprio ser humano em nome do progresso e do lucro.
Infelizmente muitos amazônidas são testemunhas e vítimas da mais cruel de todas as formas de acúmulo de riqueza, o
trabalho escravo. Em uma região tão rica em recursos naturais, o trabalho escravo, a mais precarizada forma de exploração do
trabalho já inventada pela humanidade, só é possível em pleno século XXI graças à flagrante negação de direitos
fundamentais, dentre eles o direito à educação escolar e a qualificação profissional.
Em tempos de capitalismo flexibilizado, revolução técnico-científica e nova organização do processo produtivo, o
ingresso e a permanência estável no mundo do trabalho dependem de uma longa e qualificada experiência formativa, que não
se encerra na instituição escolar, mas que tem nela a base sólida necessária ao enfrentamento de outros desafios formativos
que se seguirão ao longo da vida. Por isso, torna-se cada vez mais importante o desvelamento das questões que envolvem a
formação do trabalhador na Amazônia, para que se perceba como esse direito do cidadão vem sendo garantido.
Porém, discutir a formação do trabalhador na Amazônia ainda é um desafio de grandes proporções, pois além da
complexidade própria do tema, várias outras se impõem aos que buscam clarear essa questão. A relativa escassez de estudos
publicados e de informações atualizadas e sistematizadas nos órgãos públicos ou privados responsáveis pela oferta de cursos
ou execução de políticas, dificulta um olhar mais detalhada sobre o problema. De qualquer forma, esse trabalho, ainda
preliminar, resulta de um estudo a pouco iniciado sobre a temática abordada e por isso possui os limites analíticos comuns
aos que se defrontam pela primeira vez com um instigante, porém complexo problema.
O estudo foi delimitado no estado do Pará, segundo maior em extensão territorial e o mais populoso da região1. Os
dados foram coletados a partir de levantamentos bibliográficos e documentais e as análises privilegiaram uma visão mais a
alargada das políticas desenvolvidas ou em desenvolvimento no estado. O texto inicia-se com um rápido olhar sobre o
processo de reestruturação produtiva e as consequências para a formação dos trabalhadores e segue discutindo a ação do
Estado no campo da formação profissional.

1. Reestruturação produtiva e as exigências sobre a formação do trabalhador


Depois de um período de acumulação de capitais que coincidiu com o ápice do fordismo e do keynesianismo, o
sistema capitalista deixa transparecer nítidos sinais de uma crise experimentada a partir da década de 1970. Há um visível
desgaste do padrão de acumulação taylorista/fordista, que àquela altura não se mostrava capaz de responder ao contínuo
processo de diminuição do consumo que contrastava com o excesso de capacidade produtiva instalado no setor manufatureiro
internacional.
Organizada a partir de uma produção em escala, em grandes e pesadas estruturas fabris, que se utilizavam de
equipamentos preparados para a execução de tarefas predefinidas, e de operários preparados para a realização de tarefas
mecânica e repetitivas, a produção taylorista/fordista foi marcada “pela mescla da produção em série fordista com o
cronômetro taylorista, além da vigência de uma separação nítida entre elaboração e execução”, onde “a dimensão intelectual
do trabalho operário, que era transferida para a esfera da gerência científica” era apropriada pelo capital (Antunes, 2002,
p.37).
Com a intensificação da concorrência intercapitalista, agora mais do que nunca em escala mundial, a produção
rígida e burocratizada que marcou as três décadas anteriores, não consegui responder ao novo quadro estabelecido pela
retração do mercado consumidor, bem como à crescente diversificação das demandas por produtos cada vez mais
particularizados, resultado da luta entre as empresas por novos e mais exigentes consumidores.
A “hipertrofia da esfera financeira”, que se agigantava diante do capital produtivo, também é apontada por Antunes
(2002) como uma das vertentes da crise do capital. Graças a incapacidade da indústria de manter elevada a taxa de lucro, a
especulação financeira passa a ser um novo espaço para o capital transnacional, com o suporte das tecnologias da informação
e de taxas de juros atrativas, em especial em economias dependentes de capital externo, como a dos países em
desenvolvimento. Hoje o capitalismo vive a sua pior crise desde o final da década de 1920, justamente pelo gigantismo do
setor financeiro e pela farra especulativa que ele patrocinou.
Um outro elemento constitutivo da crise estrutural do capital, ainda segundo Antunes, foi a “crise do welfare state”,
que enfrentava sérias dificuldades fiscais para manter o aparato sobre o qual sustentava sua política social, que teve que ser
reduzida, desnudando, consequentemente, o insustentável “compromisso” estabelecido entre trabalhadores e capitalistas, sob
a intermediação do Estado nas “décadas de ouro”. Os anos de 1970 e 1980, nos países centrais e a década de 1990 nos países

1
O estado do Pará possui uma área de 1.247.689.515 km2 e uma população de 7.065.573 habitantes (IBGE, 2008).

194
em desenvolvimento presenciaram o desmonte da estrutura estatal fundada na ideologia social-democrática e a significativa
privatização de vários setores do Estado, diante da introdução do ideário neoliberal.
Portanto, a crise do modelo taylorista/fordista de produção representou apenas uma “expressão fenomênica” da
crise estrutural do capital, que na sequência de um ciclo de acumulação de lucratividade, passa a conviver, graças ao conjunto
de fatores rapidamente esboçados acima, com taxas de lucro decrescentemente ameaçadoras. Todavia, como o sistema do
capital é estruturalmente incapaz de resolver suas contradições, a saída para a crise é buscada não tentando sanar suas
contradições, mas buscando um novo ciclo de lucratividade elevada. Para tal empreitada, se utilizará de mecanismos que
afetará frontalmente o mundo do trabalho, trazendo consequências perversas aos trabalhadores dentro e fora dos locais de
trabalho.
Objetivando o enfrentamento da crise nascida de suas próprias contradições estruturais, o capitalismo colocou em
prática um forte movimento de “reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental
necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores” (Antunes, 2002, p. 31). Assim, o sistema do capital
buscava recompor sua taxa de lucratividade, e com esse objetivo parte para o ataque à classe trabalhadora fortalecida no
período anterior.
Apesar da crise do capitalismo ser profunda, a resposta do capital se deu de maneira superficial, apenas em sua
expressão fenomênica, de modo que a reestruturação não atingisse os alicerces do sistema produtor de mercadorias, sendo a
alteração da base produtiva de inspiração taylorista/fordista pela produção flexível de inspiração toyotista a saída encontrada
para responder a diminuição da taxa de lucratividade experimentada a partir da década de 1960.
Dentre as várias experiências de produção flexível, o modelo japonês ou toyotismo tem sido o mais implantado nos
parques produtivos, com mais ou menos elementos característicos, dependendo da conjuntura econômica, política dos locais
onde as empreses estão instaladas ou mesmo do nível de envolvimento do trabalhadores. A síntese de Antunes oferece um
quadro onde é possível verificar as características fundamentais da produção flexível:
Tentando reter seus traços constitutivos mais gerais, é possível dizer que o padrão de acumulação flexível articula
um conjunto de elementos de continuidade e de descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente distinto do
padrão taylorista/fordista de acumulação. Ele se fundamenta num padrão produtivo organizacional e tecnologicamente
avançado, resultado da introdução de técnicas de gestão da força de trabalho próprias da fase informacional, bem como da
introdução ampliada dos computadores no processo produtivo e de serviços. Desenvolve-se em uma estrutura produtiva mais
flexível, recorrendo frequentemente à desconcentração produtiva, às empresas tercerizadas etc. utiliza-se de novas técnicas de
gestão da força de trabalho, do trabalho em equipe, das ‘células de produção’, dos ‘times de trabalho’, dos ‘grupos semi-
autônomos’, além de requerer, ao menos no plano discursivo, o ‘envolvimento participativo’ dos trabalhadores, em verdade
uma participação manipuladora e que preserva, na essência, as condições de trabalho alienado e estranhado. O ‘trabalho
polivalente’, ‘multifuncional’, ‘qualificado’ combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada entre as diversas
empresas, inclusive nas empresas tercerizadas, tem como finalidade a redução do tempo de trabalho”(2002, p. 52 – grifo
nosso).
O que se percebe é um sistema organizado para possibilitar ao capital uma exploração intensiva do trabalho,
camuflada no discurso de maior participação do trabalhador no processo de produção e sob uma exigência de maior
qualificação. Elimina-se capital variável, seja improdutivo ou mesmo produtivo, eleva-se o incremento tecnológico, extrai-se
mais mais-valia relativa, tudo isso com o “envolvimento participativo do trabalhador”. Assim, produzir cada vez mais com a
utilização cada vez menor de capital variável constitui-se a máxima que deve ser seguida pela empresa moderna e flexível
Há, portanto, com a produção flexível uma intensificação da exploração da força de trabalho, seja através da
introdução de novas tecnologias e/ou das novas técnicas de gestão dos trabalhadores, que articuladas ao discurso da maior
participação no processo produtivo, visam a elevação da produtividade e, em última instância, o aumento da valorização do
capital. Como consequência, o mundo do trabalho presencia, provavelmente, a maior crise da história, onde o desemprego
estrutural atinge níveis assustadores tanto na periferia como no centro do capitalismo.
Nesse contexto, a classe trabalhadora tornou-se mais complexa, mais heterogênea e mais fragmentada que antes,
visivelmente distinta da feição exposta quando da hegemonia da base produtiva assentada no taylorismo/fordismo,
caracterizada pelo predomínio do operário industrial diretamente produtivo. Porém, “se a classe trabalhadora não é idêntica
àquela existente em meados do século passado, ela também não está em vias de desaparição, nem ontologicamente perdeu
seu sentido estruturante”(Antunes & e Alves, 2004).
Na compreensão ampliada de classe trabalhadora estão presentes todos aqueles que vivem do trabalho.
Compreensão esta que coloca em xeque as formulações que tão contundentemente decretaram o fim do trabalho, uma vez
que engloba tanto os trabalhadores dos setores que, em função das mutações do mundo do trabalho, vêm numa escala
decrescente – trabalhadores estáveis do setor industrial, por exemplo, como os trabalhadores dos setores que encontram-se
atualmente em expansão – trabalhadores dos serviços, temporários, part-time, por exemplo. Portanto, além do desafio próprio
de sua estrutura, a classe trabalhadora também tem que enfrentar a batalha da formação profissional, que com a flexibilização
da base produtiva do capital tem se tornado cada dia mais complexa.
Historicamente a classe dirigente sempre pensou a educação dos trabalhadores com a finalidade de “habilitá-los
técnica, social e ideologicamente para o trabalho” (Frigotto, 1999, p. 26), subordinando, assim, a função social da educação
às demandas impostas pelo capital. Todavia, argumenta este autor, a classe trabalhadora percebe a educação de forma mais

195
ampla e complexa, não só como desenvolvimento de diversas potencialidades técnicas, mas acima de tudo como apropriação
do saber socialmente construído, que lhe possibilita a defesa de seus interesses mais diretos.
Em função das crises eventuais pelas quais passa o sistema capitalista e o seu consequente rearranjo político-
econômico, a exigência pela formação do trabalhador vem ganhando complexidade, como pode ser visto atualmente.
Todavia, essa exigência não busca necessariamente a elevação do padrão intelectual do trabalhador com vistas a uma maior
liberdade deste em relação ao capital, mas sim uma reestruturação nas bases da produção que objetiva um crescimento da
acumulação capitalista.
Com a produção flexível surgem novas demandas à formação profissional a fim de adequá-la a nova gestão do
trabalho, onde o conhecimento tácito e as habilidades psicofísicas do trabalhador também passam a ser apropriado pelo
capital. O quadro2 abaixo sintetiza algumas das principais características da formação do trabalhador no taylorismo/fordismo
e no toyotismo:

Formação profissional Formação profissional


sob o taylorismo/fordismo sob o toyotismo
• Escolarização mínima; • Sistema educativo revalorizado (maior nível de
• Formação mínima sobre o trabalho; escolaridade);
• Conhecimento sobre o produto; • Formação baseada na demanda de força de trabalho;
• Desenvolvimento de habilidades psicofísicas, com • Conhecimento sobre os processos;
foco na ocupação; • Desenvolvimento de habilidades psicofísicas, com
• Formação profissional de média e curta duração por foco nos processos;
intermédio de corporações patronais setoriais, como • Formação profissional de curta duração por intermédio
Sistema S, e de longa duração por intermédio de escolas de instituições livres, como parte integrante das políticas
técnicas. públicas de emprego;
• Aprendizagem formativa com centralidade na escola; • Aprendizagem formativa, de caráter complementar;
• Desvalorização do conhecimento Tácito; • Articulação de conhecimentos tácitos e científicos;
• Qualificação para um posto de trabalho dentro de sua • Compreensão global do processo de trabalho da área
área de atuação. em que atua;
• Formação específica; • Formação geral, com diferenciação por funções;
• Habilidades específicas demandadas para o exercício especialização flexível;
das tarefas; • Competências, capacidades comprovadas para resolver
• Formação de pessoas com comportamentos rígidos problemas, ou seja, articular conhecimentos teóricos e
práticas laborais;
• Formação de pessoas com comportamentos flexíveis;

Com a implementação da produção toyotista a educação básica é ressaltada pelo discurso dos ideólogos do mercado
como fundamental à formação profissional dos indivíduos, uma vez que estes precisam desenvolver novas “competências”,
sem as quais, encontrarão sérias dificuldades para conseguir e/ou manter seus empregos. Diante disso, passa-se a demandar
reformas nos sistemas educativos com vistas a garantir formação do trabalhador com base no modelo de competências.
A discussão em torno da noção de competências no ensino médio e na educação profissional no Brasil tem
mobilizado vários pesquisadores, que sob ângulos distintos têm se debruçado na análise de documentos oficiais e no debate
teórico onde essa categoria ganha relevância. Zibas (2005), em um estudo sobre a reforma do ensino médio dos anos de 1990,
onde apresenta a perspectiva de um conjunto significativo de autores sobre essa questão, mostra que na reforma curricular o
“modelo de competência” foi o eixo para onde o olhar crítico dos especialistas mais foi direcionado. Dessa forma, para este
estudo importa destacar alguns pontos deste debate que possam auxiliar na compreensão de sua importância no quadro atual
onde está inserido a problemática da formação do trabalhador.
A noção de competências não aparece na Constituição Federal de 1988 nem na LDB de 1996. Ela só surge no
momento das reformas promovidas a partir dos anos finais da última década do século passado, uma vez que até a metade dos
anos de 1990 essa noção ainda não ganhara importância no vocabulário dos neoliberais que ocupavam o Estado brasileiro
(Batista, 2006).
A introdução da noção de competências representa a aproximação do campo educacional ao novo formato da
produção capitalista, pois “de certo modo ela é a resposta capitalista à crise da educação profissional como expressão
particular da crise geral da educação ou da sócio-reprodutividade do capital” (Alves, 2006, p. 77). Giovanni Alves,
argumenta ainda que a noção de competência expressa a busca do capital em se apropriar não só do trabalho material do
trabalhador, como o fizera intensamente na fase anterior, mas também da sua subjetividade, ou seja do trabalho imaterial,
representado por sua capacidade reflexiva.

2
Organizado a partir do quadro construído por Lima (2007).

196
Para Batista, tal noção ao disputar espaço com a de qualificação, sobrepondo-se a essa, “se afirma como a ideologia
do capital tanto no âmbito da produção como no da educação como instância privilegiada da reprodução social” (2006, p.94).
Assim, a noção de competências cumpre uma função muito importante no processo de afirmação da lógica societal imposta
pelo capitalismo, sendo a escola, profissionalizante ou não, um poderoso instrumento para a concretização dessa tarefa.

2. A ação do Estado no campo da qualificação profissional


O debate sobre a formação profissional no Brasil remonta às décadas de 30 e 40 do século XX quando são criados
os Sistemas Nacionais de Formação Profissional e as Escolas Técnicas Federais. As Leis Orgânicas do Ensino Técnico e a
criação do Sistema S3 fazem parte deste contexto, onde se buscava a formação de mão-de-obra capaz de contribuir para a
consolidação da industrialização do País que só recentemente se iniciara (Frigotto, 1999). Mas é na década de 1970, sob a
influência da Teoria do Capital Humano e num contexto de intensa internacionalização da economia, que os estudos acerca
da formação do trabalhador ganham maior consistência. Nos últimos anos, alimentadas pelas profundas transformações que a
base produtiva do capital vem sofrendo, várias medidas legais vêm sendo tomadas no campo da formação dos trabalhadores,
fato que tem gerado um intenso debate na sociedade, especialmente dentre os pesquisadores da área, profissionais ligados às
agências formadoras e organizações vinculadas aos trabalhadores e aos empresários, no sentido de influenciar na construção
e implementação das políticas do Estado relativas à educação de um modo geral e a formação profissional em particular.
Os primeiros anos do século XXI têm desafiado o campo a enveredar pelo aprofundamento das análises das largas
transformações ocorridas no mundo da produção e do trabalho, suas consequências políticas e sociais, assim como os
desafios lançados ao setor educacional, principalmente aqueles ligados à formação profissional.
Durante os anos 90, o cenário educacional foi marcado profundamente pela ação direta de vários organismos
internacionais que buscavam induzir reformas organizacionais e pedagógicas nos sistemas de ensino capazes de ajustar a
educação à nova ordem capitalista. Conferências, documentos, estudos foram patrocinados nesse período por instituições
como o Banco Mundial, UNICEF, UNESCO, CEPAL para subsidiar os países da periferia do capitalismo (mas não só estes)
na elaboração, implementação e avaliação de políticas educacionais que abrangiam da educação infantil ao nível superior,
passando pela formação profissional.
É exatamente nesse contexto, marcado pela tutela de diferentes organismos internacionais e de dependência passiva
do Estado brasileiro face aos países mais influentes do ponto de vista econômico e ideológico, que a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional foi sancionada em dezembro de 1996 pelo Presidente Cardoso, que coloca em prática o seu projeto de
adequação da sociedade brasileira às mudanças desencadeadas pela globalização acelerada do capital.
Com uma equipe de ministros e colaboradores com passagens por vários organismos internacionais, com uma base
parlamentar caracterizada por partidos de cento e de direita e com um projeto hegemônico de longo prazo, o presidente
Cardoso realiza um governo dentro dos marcos da ortodoxia monetarista, dando significativa ênfase ao ajuste fiscal e à
reforma do aparelho do Estado, e seguindo sempre os pressupostos neoliberais que se encontravam em franca expansão em
boa parte dos Países latino-americanos nos anos 90.
É com base nesses pressupostos, direcionados a “tornar o Brasil seguro para o capital”, como bem afirmou
Francisco de Oliveira (2002, apud Frigotto & Ciavatta, 2003, p. 104), que as políticas educacionais do governo Cardoso
foram desenvolvidas. Dentre as várias ações realizadas no campo educacional, a formação do trabalhador foi sempre
destacada graças ao sempre acalorado debate que proporcionava na sociedade e no governo.
Na LDB a educação profissional foi contemplada com quatro artigos (39 a 42) que compõem o Título IV do
Capítulo III e regulamentada pelo Decreto 2208/97 que, verdadeiramente, passa a ser a principal referência jurídica nesse
campo.
De um modo geral, para Frigotto, o Decreto 2208/97 recoloca o dualismo que tanto tem marcado a educação
brasileira, pois além de acentuar a fragmentação da formação profissional, no momento em que organiza o currículo através
de módulos, promove “a separação do nível médio regular de ensino da rede não regular de ensino técnico-profissional com
organização curricular específica e modular”(1999, p. 13).
Em que pese a LDB ser flexível quanto à possibilidade de organização da educação profissional, o referido Decreto
restringiu a articulação entre ensino médio e educação profissional à concomitância ou à sequencialidade, ignorando o
estabelecido no artigo 36 que prevê a possibilidade de o ensino médio preparar para profissões técnicas. Mesmo sendo claro
que a LDB é juridicamente superior ao Decreto 2208/97, foi este que serviu de referência normativa para o conjunto de
instituições ligadas à oferta de educação técnico-profissional (Cêa, 2007).
A partir de 1997 concretiza-se a existência de um sistema paralelo de formação profissional que pode, mas não é
obrigado a relacionar-se com o sistema regular de ensino. Tal situação possibilitou, especialmente nas redes estaduais, a
oferta de cursos básicos (que não cobram escolaridade prévia) e de cursos técnicos concomitantes ou sequenciais ao ensino
médio, ao mesmo tempo em que os cursos de ensino médio de caráter profissionalizante foram sendo drasticamente
reduzidos (Cêa, 2007). Essa situação foi, em algumas situações, imposta por medidas normativas, e em outras induzidas por

3
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI, Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, entidades sob gestão privada e a serviço dos
empresários da indústria e do comércio, financiada também através de renúncia fiscal do Estado, não constitui um sistema, no sentido que se utiliza para designar
o sistema federal, por exemplo. Tem participação considerável na formação profissional no País.

197
instrumentos financeiros utilizados pelo governo Cardoso. Verifica-se com isso que o Decreto 2208/97 “praticamente
inverteu a compulsoriedade da Lei 5.692/71, pois enquanto esta tornou obrigatória a profissionalização no ensino médio, o
decreto acabou forçando os sistemas de ensino a ofertarem exclusivamente o ensino médio de formação geral” (Cêa, 2007, p.
4).
Ao buscar a formação propedêutica como identidade para o ensino médio, essa medida legal não levou em conta o
contexto da sociedade brasileira, marcado pela desigualdade resultante de um modelo de desenvolvimento concentrador de
riqueza. Aos jovens da classe trabalhadora criou-se mais um obstáculo no caminho de sua formação profissional ancorada
numa consistente educação básica. Atenta a esta questão, Ramos (2003, p 2) mostra que ao ter que disputar agora duas vagas
para cursar o ensino médio e a formação profissional em um contexto adverso quanto à garantia de plena gratuidade e
universalização desse nível. A autora argumenta que, optando “por ambas as formações concomitantemente, a dupla jornada
escolar, para a maioria, passou a ocorrer em condições precárias (alimentação imprópria, permanência desconfortável na
mesma escola, ou traslados cansativos de uma escola para outra, além da despesa financeira muitas vezes difícil de ser
enfrentada)”.
Reproduzem-se, dessa forma, as desigualdades sócio-econômicas e as condições de acesso aos postos mais
avançados no mercado de trabalho, uma vez que as ocupações que exigem um percurso formativo mais abrangente acabam
sendo ocupadas por aqueles que tiveram tempo disponível para enfrentar uma jornada dupla de formação e condições
econômicas para sustentá-la.
Ramos mostra ainda que o esvaziamento de qualquer possibilidade de garantir a profissionalização no ensino médio
não deveria ser a premissa orientadora da identidade desse nível de ensino, que se caracteriza por ser a última etapa da
educação básica. Diferentemente, a identidade do ensino médio deveria ser pautada “pela construção de possibilidades
formativas que contemplem as múltiplas necessidades sócioculturais e económicas dos sujeitos que o constituem –
adolescentes, jovens e adultos”, sendo fundamental para isso que os mesmos sejam percebidos “não como cidadãos e
trabalhadores de um futuro indefinido, mas como sujeito de direitos no momento em que cursam o ensino médio” (2003, p.
2-3).
Kuenzer, mesmo tendo claro que deve ser buscada a universalização da educação básica e que é frágil qualquer
formação profissional anterior a ela, considera que o caso brasileiro requer a atenção para suas particularidades, uma vez que,
em se tornando prioridade nas políticas do Estado, ainda serão necessárias algumas décadas para que todos os jovens tenham
o acesso garantido no ensino médio. Portanto, conclui a autora:
A considerar as necessidades dos jovens trabalhadores no Brasil, fortemente marcadas pelo ingresso no mundo do
trabalho por imperativo de sobrevivência e continuidade dos estudos, ofertar-lhes uma única modalidade, idêntica à
oferecida aos filhos das elites, é condená-los precocemente à exclusão (2003, p. 7)

Kuenzer mostra ainda que esta situação consegue recolocar a formação do trabalhador nos marcos dos anos 40,
onde era nítida a dualidade que determinava, tendo-se em conta a origem de classe, um percurso para os intelectuais que
exerceriam funções dirigentes e outro para os trabalhadores, responsáveis pelas ocupações manuais e menos qualificadas.
Ressalta ainda a autora que as políticas para a educação profissional e para o ensino médio no governo Cardoso negaram “a
construção da integração entre educação geral e educação para o trabalho que vinha historicamente se processando nas
instituições responsáveis pela educação profissional, certamente mais orgânica à nova realidade da vida social e produtiva”
(2003, p. 6).
Em artigo em que defendem a tese de que a educação profissional deve ser realizada sob um sólida base de
educação geral, científico-tecnológica e sócio-histórica, e que por isso deve ser parte indissociável da Educação Nacional,
Kuenzer e Grabowski (2006) argumentam que a LDB busca enfrentar a dualidade estrutural que tem marcado a história da
educação profissional no Brasil, uma vez que a concepção de educação estabelecida logo no seu 1º artigo4 é ampla,
extrapolando os limites das instituições escolares e reconhecendo o caráter formativo dos processos sociais realizados em
todos os âmbitos da existência humana. Assim o trabalho tem realçado sua dimensão educativa e a educação passa a ser
compreendida em sua relação íntima com as práticas sociais e o mundo do trabalho. A partir desse entendimento, conclui-se
que a educação profissional em “sua organização e [em] sua gestão estratégica não admite qualquer forma de paralelismo ou
extremidade” (p. 299). Verifica-se então, que a política de formação profissional do governo Cardoso negligenciou a
formulação ampla e claramente estabelecida pela LDB para o conceito de educação, quando separou, através do Decreto
2208/97, a formação profissional do sistema regular de ensino.
Mas se é verdade que o desenvolvimento das forças produtivas, impulsionado pelo avanço da ciência e da
tecnologia, traz novas exigências para educação do trabalhador, uma vez que corrobora para a valorização do capital, e que
essas exigências incidem em uma formação com uma coerente base científica, o que motiva as políticas educacionais a
desenvolverem uma formação que separa a compreensão teórica da ciência de sua utilização materializada na prática
profissional?
A resposta para essa questão talvez possa ser encontrada na diminuição de custos, como afirma Manfredi:

4
“Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. (Brasil, 1996).

198
O custo do aluno do ensino profissionalizante é muito mais alto do que o custo do aluno do ensino médio regular.
Assim, a separação das redes de ensino permite, por um lado, que a democratização do acesso seja feita mediante um
ensino regular de natureza generalista, o qual é bem menos custoso para o Estado do que um ensino médio de caráter
profissionalizante, e, por outro, enseja a possibilidade de parcerias com a iniciativa privada, para a manutenção e a
ampliação da rede de educação profissionalizante (2002, pp. 134-135).

As observações de Kuenzer também são esclarecedoras sobre essa questão. A autora mostra que a diminuição de
despesas com formação profissional é uma recomendação do Banco Mundial aos Países pobres, uma vez que estes devem
priorizar o ensino fundamental, “deixando de investir em educação profissional especializada e de elevado custo como
estratégia de racionalização financeira com vistas ao atingimento das metas de ajuste fiscal”(2003, p. 5).
Apesar da vigilante, ativa e qualificada resistência realizada por várias organizações de trabalhadores, entidades
científicas, movimentos sociais, o projeto neoconservador desenvolvido nos oito anos do governo Cardoso no campo da
educação profissional deixou profundas sequelas na sociedade brasileira e um grande desafio ao governo do presidente Lula
que chega ao Palácio do Planalto em janeiro de 2003 com a promessa de realizar uma profunda alteração na política de
educação do trabalhador.
Desde o processo constituinte findado em 1988, passando pelos longos oito anos de tramitação da LDB, aprovada
em 1996, e pela publicação no ano seguinte do Decreto 2208/97, trava-se um embate na sociedade brasileira de dois projetos
de formação profissional, sendo um defendido pelos setores ligados aos pesquisadores, instituições sindicais dos
trabalhadores e movimentos sociais populares, que propunha uma formação integrada à educação geral levando em
consideração os seus múltiplos aspectos humanísticos e científico-tecnológico, e o outro capitaneado pelos representantes do
Estado e das elites nacionais e organismos internacionais, que se materializa no Decreto 2208/97 e em outros textos
normativos, e que “vêm não somente proibir a pretendida formação integrada, mas regulamentar formas fragmentadas e
aligeiradas de educação profissional em função das alegadas necessidades do mercado” (Frigotto et al, 2005, p. 3).
Esse debate é retomado durante os eventos promovidos pelo governo Lula em 2003 para discutir com a sociedade
os rumos da educação profissional do País, que possibilitou a construção conflituosa do Decreto 5154/04. Assim,
reconhecendo as contradições e limites que o texto apresenta, os autores afirmam que o decreto “é fruto de um conjunto de
disputas e, por isso mesmo, é um documento híbrido, com contradições que, para expressar a luta dos setores progressistas
envolvidos, precisa ser compreendido nas disputas internas na sociedade, nos estados, nas escolas” (Frigotto et al, 2005, p. 4).
Rodrigues (2005), em um artigo que avalia o Decreto 5154/04, faz uma observação que assim como a legislação
por ele revogada, este instrumento legal não representa verdadeiramente um avanço para a formação do trabalhador, uma vez
que:
De uma maneira geral, podemos dizer que o novíssimo decreto estabelece um salto de 40 anos adiante na educação
brasileira. Com efeito, se o decreto 2208/97 reproduzia, de certa forma, a reforma Gustavo Capanema (também
conhecida como ‘leis’ orgânicas do ensino), de 1942, o novíssimo decreto parece inspirar-se na lei 7.044 de 1982. Lei
essa que ‘reformou a reforma’ do regime militar (lei 5.692/71). Em síntese, a educação profissional brasileira deu um
salto no tempo: deixamos o ano de 1942 e avançamos até 1982” (Rodrigues, 2005, p.1).

Em que pese o Decreto 5154/04 restabelecer de maneira acertada a possibilidade da oferta integrada da formação
profissional no ensino médio, como já previa a LDB, não impede que a formação do trabalhador seja realizada de forma
distanciada da necessária elevação de sua escolaridade, uma vez que a oferta integrada é apenas mais uma possibilidade que
se junta às ofertas concomitante e sequencial anteriormente determinadas pelo decreto anterior, sendo de responsabilidade da
instituição de ensino optar por um desses caminhos formativos (Cêa, 2007).
Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005a), criticam a postura do MEC no momento em este “declinou” de exercer “sua
função de coordenar a política nacional” quando não enviou ao CNE as diretrizes curriculares sob as quais iria se desenvolver
a formação integrada determinada pelo Decreto 5154/04. Segundo os autores, com isso, o CNE apenas atualizou as diretrizes,
“contraditoriamente, nos termos adequados à manutenção das concepções que orientaram a reforma organizada no governo
anterior por meio do decreto n. 2208/97”(p. 1093). Diante desse fato, concluem:
A manutenção da validade das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e para a Educação Profissional,
após a edição do novo decreto, dá continuidade à política curricular do governo anterior, marcada pela ênfase no
individualismo e na formação por competências voltadas para a empregabilidade. Reforça-se, ainda, o viés
adequacionista da educação aos princípios neoliberais. Neste particular, reafirma-se um dos fetiches ou uma das
vulgatas, insistentemente afirmada nos oito anos de Governo Fernando Henrique Cardoso, de que no Brasil não havia
falta de empregos, mas de ‘empregáveis’” (Frigotto et al., 2005a, p. 1095).

Assim, o principal ponto por volta do qual os debates foram travados no processo de construção da base jurídica
da política de formação profissional do governo Lula, foi fragilizado por força da omissão do MEC e do comprometimento
da maioria dos conselheiros do CNE com a concepção de formação defendida no governo anterior e, duramente criticada
pelo Fórum em Defesa da Educação Pública. A “nova” concepção da Educação Profissional vai, portanto, orientar os planos
e projetos realizados nessa área pelo governo (alguns deles serão abordados mais tarde).
Analisando as diversas políticas de educação profissional, com seus Planos e projetos em desenvolvimento no
governo Lula, Kuenzer (2006) argumenta que é perceptível que as medidas privilegiam os programas e projetos em
detrimento das políticas de Estado, uma vez que somam mais de uma dezena as propostas em andamento, espalhados em

199
vários Ministérios e/ou Secretarias do governo, com objetivos, metodologias e público-alvo relativamente parecidos, “que
não justificam tamanha fragmentação de ações e pulverizações de recursos”, o que deixa nitidamente visível uma “estratégia
populista de eficácia discutível”(p. 902).
Mais recentemente, procurando fazer valer as determinações do Decreto 5154/2004, o governo editou alguns textos
legais ou de orientação no processo de implementação de ações no âmbito da formação profissional. Surgem, então, em
dezembro de 2007 os Decretos 6301/07 e 6302/07. O primeiro cria, no Ministério da Educação, o Sistema Escola Técnica
Aberta do Brasil - e-Tec Brasil, objetivando o “desenvolvimento da educação profissional técnica na modalidade de educação
à distância, com a finalidade de ampliar a oferta e democratizar o acesso a cursos técnicos de nível médio, públicos e
gratuitos no País” (Brasil, 2007). O segundo institui, também no âmbito do Ministério da Educação, o Programa Brasil
Profissionalizado, que busca “estimular o ensino médio integrado à educação profissional, enfatizando a educação científica e
humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional no contexto dos arranjos produtivos e das
vocações locais e regionais” (Brasil, 2007).
Além desses Decretos, e reconhecendo como “necessária uma ação política concreta de explicitação, para as
instituições e sistemas de ensino, dos princípios e diretrizes do ensino médio integrado à educação profissional”
(MEC/SETEC, 2007, p. 4), a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica divulga o Documento-Base intitulado
“Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio”, com a finalidade de apresentar uma
“contextualização dos embates que estão na base da opção pela formação integral do trabalhador, expressa no Decreto no
5.154/2004, apresentando os pressupostos para a concretização dessa oferta, suas concepções e princípios e alguns
fundamentos para a construção de um projeto político-pedagógico integrado” (MEC/SETEC, 2007, p. 4).
É certo que estas iniciativas contribuem para deixar mais nítidas as opções políticas e pedagógicas do Ministério da
Educação quanto à formação dos trabalhadores, respondendo, assim, às pressões dos intelectuais, organizações de
trabalhadores e agências formativas.

3. A formação do trabalhador no estado do Pará


Segunda maior unidade federada do Brasil, o estado do Pará integra a região norte e está fincado no coração da
Amazônia. Sua economia gira entorno do extrativismo mineral e florestal, pecuária, agricultura, e nas cidades maiores e na
zona metropolitana da capital Belém, o comércio e a indústria são representativos na composição da economia local.
Como ocorre nos demais estados da Amazônia, o Pará possui um território reconhecidamente rico em recursos
naturais ao mesmo tempo em que a grande maioria de sua população sobrevive em condições econômicas precárias. Em
2000, IDH do estado foi de 0,723, índice inferior à taxa média brasileira que naquele ano foi de 0,766 (PNUD, 2000).
Levando-se em consideração que o IDH brasileiro não se destaca como um dos melhores no cenário mundial, pode-se
perceber os desafios a serem enfrentados para a garantia de uma vida digna ao povo dessa terra.
Um desses desafios encontra-se no setor educacional, uma vez que em plena era tecnológica verifica-se que 10,
88% da população paraense acima de 10 anos é analfabeta. Na região norte, a média de anos de estudo da população com 18
ou mais anos não ultrapassa 6,8 anos, enquanto na média nacional o brasileiro nessa mesma faixa etária possui apenas 7,3
anos de estudos, tempo bem inferior aos 9 anos escolaridade obrigatória estabelecida na Constituição Federal (IBGE/PNAD,
2007).
No campo específico da formação profissional constata-se que no Pará há uma grande carência de informações
sobre as ações desenvolvidas, entidades executoras, volume de recursos aplicados tanto na esfera pública quanto na privada,
dentre outras. Raros também são os estudos voltados à questão da formação do trabalhador em nível regional ou estadual,
destacando-se a pesquisa publicada em 2007 pelo grupo de investigadores liderado pelo Professor Ronaldo Araújo, da
Universidade Federal do Pará. Nesse estudo pioneiro, Araújo e os seus colaboradores buscam traçar um quadro da
institucionalidade surgida a partir das políticas para a formação profissional desenvolvidas desde meados nos anos 90, dando
destaque nos desdobramentos ocorridos na cidade de Belém.
O poder público estadual vem acompanhando o desenrolar das políticas organizadas em nível nacional,
demonstrando total dependência das diretrizes e recursos oriundos do governo federal, enquanto a iniciativa privada vem
ganhando espaço na oferta de cursos em diversas áreas. Como é possível verificar no estudo de Araújo, em 2000 existiam no
Pará 674 entidades envolvidas com a formação profissional, sendo que 49 atuavam em nível superior e o restante em nível
técnico e básico.
Estudando mais especificamente a realidade de Belém, Araújo mostra que 24 entidades ofertavam formação de
nível técnico em 1999, sendo 2 federais, 13 estaduais, 1 municipal e 8 mantidas pela iniciativa privada. Já no ano de 2004, o
cenário da formação técnica mostrava que 26 entidades atuavam naquele nível, sendo 3 federais, 2 estaduais, 1 municipal e
20 privadas. Com uma considerável redução da participação do governo estadual na oferta da formação de nível técnico, ao
mesmo tempo em que há uma não menos significativa elevação da oferta privada, é possível verificar com muita nitidez os
efeitos das políticas que foram implementadas a partir de meados da década de 1990.

3.1. O ensino médio no estado do Pará


Desde meados da década de 1990 o ensino médio no Brasil vem sendo alvo de reformas que visam adequá-lo ao
novo momento sócio-econômico pelo qual atravessa a sociedade brasileira e mundial. Como foi visto acima, a disputa de

200
paradigmas orientadores desse nível de ensino marcou todo o período, sendo que nos anos que coincidiram com o mandato
do Presidente Cardoso foi mais forte a concepção que pretendia uma separação desse nível da formação profissional. Com a
chegada do Presidente Lula ao Palácio do Planalto, ganha maior atenção à concepção de um ensino médio integrado à
formação profissional. O Programa Brasil Profissionalizado, criado no final de 2007, tem por objetivo incentivar a referida
integração e o fortalecimento da rede de escolas técnicas do País5.
Os números da Sinopse Estatística da Educação Básica extraídos do Censo Escolar de 2006 (INEP, 2007) mostram
que naquele ano o estado do Pará matriculou 370.287 alunos no ensino médio nas redes federal, estadual, municipal e
privada, dos quais 361.188 na área urbana e 9.099 na zona rural. A rede estadual concentrou 337.955 matrículas, sendo, como
determina a LDB, a unidade administrativa como maior responsabilidade nesse nível.
As meninas ocupavam a maioria das vagas nas escolas de ensino médio (203.247), tanto na zona urbana como na
rural. Verifica-se ainda que 253 mil alunos tinham 18 anos ou mais, fato que mostra um grande desnível idade/série que
levanta questões sobre a qualidade do ensino praticado no Pará. Outra importante informação extraída das estatísticas oficiais
é o fato de que na rede estadual, onde como foi visto há a maior concentração de matrículas, o noturno é o período com a
maioria das matrículas (182.995 contra 155.000 do diurno). Isso aponta para a questão do aluno trabalhador que só dispõe de
tempo para se dedicar aos estudos durante a noite, uma vez que durante o dia precisa garantir sua sobrevivência. Nesse
circunstância, uma formação em nível médio integrada à formação profissional poderia possibilitar-lhe uma melhor inserção
no mercado de trabalho, bem como condições materiais para dar prosseguimento nos estudos em nível superior.
Porém, a educação profissional de nível técnico matriculou naquele ano 6.044 matrículas, ainda muito aquém da
demanda dos jovens e do próprio mercado. Há perspectiva de uma significativa elevação da oferta pública de educação
técnico-profissionalizante com a previsão de construção de novas escolas federais e estaduais até 20116
Nesse sentido, em 2008 a Secretaria de Estado de Educação do Pará – SEDUC/PA inicia uma discussão com a
sociedade com o objetivo de discutir as diretrizes para implantação de currículos do ensino médio integrado à formação
profissional em sua rede, atendendo ao que preconiza o Decreto 5154/04 e incentivado pelo Programa Brasil
Profissionalizado. Atualmente existem no âmbito da SEDUC/PA de 12 Escolas de Educação Tecnológica, havendo a
intenção de se expandir para 26 unidades até 2010.
Tendo em vista que atualmente a formação do trabalhador cobra uma sólida escolarização básica, onde os
princípios da ciência e da técnica devam ser trabalhados de maneira consistente, o investimento na elevação da quantidade de
escolas e na qualidade do ensino de nível médio é fundamental para a garantia de um desenvolvimento regional onde as
pessoas tenham oportunidades de viver em condições econômicas e sociais dignas.

3.2. Planos de formação do trabalhador executados no Pará


Vários programas do governo federal voltados à formação do trabalhador foram desenvolvidos no estado do Pará
nos últimos anos, induzindo ações locais em consonância com as diretrizes nacionais. Dentre eles destacam-se o Plano
Nacional de Qualificação do Trabalhador – PLANFOR7, o Programa de Expansão da Educação Profissional PROEP8, o
Plano Nacional de Qualificação – PNQ9, previsto para o período de 2003 a 2007 e o Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária – PRONERA10.
Sendo uma das principais medidas do governo do Presidente Cardoso nesse âmbito, o PLANFOR foi realizado
através do Ministério do Trabalho e Emprego – MTb e contava com financiamento do fundo de Amparo ao Trabalhador –
FAT. Tinha como objetivo articular as Políticas Públicas de Emprego, Trabalho e Renda e como principal meta qualificar 15
milhões de trabalhadores em todo o País (20% da PEA) através da educação profissional. Com um significativo aporte de
recursos, o PLANFOR ofertava cursos que variaram de 150 para 60 horas na média, fato que indica uma maior atenção aos
aspectos quantitativos que qualitativos. Sua gestão era compartilhada por representantes do poder público, dos empregadores
e dos trabalhadores, nas três esferas da federação através de Conselhos de Trabalho (Kuenzer, 2006).
O Plano de Educação Profissional – PEP foi o instrumento criado no Pará com vista a implementar a política local
de formação do trabalhador no âmbito do PLANFOR. Entre os anos de1997 a 2002 o estado recebeu R$ 42.749.993,00 para
financiar cursos ministrados por várias entidades públicas e privadas. Apesar da abrangência conseguida, alguns estudos
mostram que a execução do Programa foi marcada por diversas limitações.
No estudo que realizou no Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET/PA, Santos (2008) mostra que os
cursos executados por aquela entidade tinham a organização e o desenvolvimento definidos pela Secretaria de Estado de
Trabalho e Promoção Social – SETEPS, fato que inibia a ação inovadora do CEFET/PA. Mostra ainda a pesquisadora que a
falta de clareza sobre o PLANFOR não permitiu aos professores direcionarem os cursos no sentido da renovação pedagógica,
assim como o aprofundamento das temáticas trabalhadas, com a devida articulação entre teoria e prática, foi prejudicado pela

5
A meta do Programa Brasil Profissionalizado é investir R$ 900 milhões nos próximos quatro anos (2008-2011) na construção, ampliação ou reforma de escolas
públicas de ensino médio e profissional.
6
Através do Programa Brasil Profissionalizado o governo federal pretende construir no Pará mais seis escolas técnicas de nível médio que se somarão as sete
atualmente em funcionamento.
7
Coordenado pelo Ministério do Trabalho - MTb, vigorou de 1995 a 2002.
8
Coordenado pelo Ministério da Educação - MEC em parceiria com MTb durante o período de 1998 a 2008.
9
Coordenado pelo MTb de 2003 a 2007
10
Coordenado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, Órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA desde
1998.

201
reduzida carga horária dos cursos. Por fim, Santos afirma que os cursos ofertados eram marcados pelo conservadorismo
metodológico, onde a concentração no “saber fazer” e no conhecimento instrumental era enfatizada.
As observações da autora acima mencionada em relação a uma experiência localizada vão em direção à análise
realizada por Kuenzer no plano nacional:
[…] além do mau uso dos recursos públicos, caracteriza-se pela baixa qualidade e pela baixa efetividade social,
resultante de precária articulação com as políticas de geração de emprego e renda, desarticulação das políticas de
educação, reduzidos mecanismos de controle social e de participação no planejamento e na gestão dos programas e
ênfase em cursos de curta duração focados no desenvolvimento de habilidades específicas (2006, p.889)

Diante da realidade estudada por Santos, onde fica claro que mesmo um importante centro de formação como o
CEFET/PA, referência na qualidade da oferta de educação profissional, teve sua capacidade de ação limitada pela rigidez
organizativa e pela fragilidade pedagógica dos projetos de cursos ofertados pelo PLANFOR, parece razoável admitir que no
Pará seguiu-se os mesmos estreitos caminhos trilhados em outras regiões do País, no fim dos quais há uma formação
aligeirada, instrumentalizada e pouco eficiente para possibilitar uma (re)inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho
contemporâneo.
Todavia, dando continuidade a sua política de adequação da força de trabalho brasileira aos interesses do
capitalismo contemporâneo, o governo do Presidente Cardoso cria em 1997 o PROEP, desenvolvido pelo Ministério da
Educação – MEC, em parceria com o MTb, com o objetivo de desenvolver ações integradoras da educação e do trabalho, a
ciência e a tecnologia, buscando a implantação de um novo modelo de educação profissional no País. Resultado de um
Acordo de Empréstimo do governo brasileiro com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, no valor de 250
milhões de dólares, somados a outros 250 milhões de contrapartida brasileira.
Nascido no mesmo ano em que o governo criou o Decreto 2208/97, que se transformou no principal instrumento
legal no disciplinamento da educação profissional e do ensino médio, o PROEP serviu de indutor da nova institucionalidade
da educação profissional no País, especialmente através dos recursos financeiros que poderia liberar aos estados e às
entidades formadoras. Assim, o PROEP se constituiu no grande incentivador da separação do ensino médio da formação
profissional, preconizada pelo Decreto 2208/97.
O estado do Pará recebeu até o início de 2006 R$ 27.865.364,01que foram distribuídos entre várias entidades
responsáveis pela oferta de educação profissional, sendo visivelmente privilegiado as entidades do segmento comunitário
(Araújo et al, 2007).
Da mesma forma como na gestão anterior, o governo Lula também desenvolve um conjunto de programas e
projetos direcionados ao enfrentamento da questão do desemprego e da qualificação profissional. O PNQ constitui-se na
principal ação de política pública no âmbito da formação do trabalhador desse governo até 2007 e buscou construir ações de
qualificação profissional como forma de garantir inclusão social do trabalhador.
É possível perceber um avanço conceitual do PNQ em relação ao PLANFOR no que tange à relação entre trabalho
e educação, uma vez que nesse Plano o trabalho é percebido como a categoria central do desenvolvimento humano.
Nesses termos, a qualificação profissional, como uma complexa construção social, inclui, necessariamente, uma
dimensão pedagógica, ao mesmo tempo em que não se restringe a uma ação educativa, nem muito menos a um processo
educativo de caráter exclusivamente técnico. Por outro lado, quanto mais associada estiver a uma visão educativa que a tome
como um direito de cidadania, mais poderá contribuir para a democratização das relações de trabalho e para imprimir um
caráter social e participativo ao modelo de desenvolvimento (PNQ, 2003, p. 23).
Nos estados e municípios o PNQ funcionou através dos Planos Estaduais Territoriais de Qualificação – PlanTeQs.
Estes teriam o desafio de proporcionar qualificação profissional através da elevação da escolaridade, assim como da difusão
de tecnologias sociais capazes de possibilitar a autogestão dos sujeitos sociais envolvidos. A valorização do local e o
reconhecimento das potencialidades das pessoas deveriam orientar as ações do Plano. Entre os anos de 2003 a 2005, o Pará
recebeu do governo federal via PNQ R$ 3.436.579,19 que foram investidos em projetos de várias instituições públicas e
privadas11.
Ao estudar a implantação do PNQ no estado do Pará, Dias (2006) observa que apesar de significar um avanço em
relação à proposta de formação desenvolvida no PLANFOR, apresenta um conjunto de fragilidades que devem ser
observadas pelo governo e pela sociedade, afim de que haja um contínuo aperfeiçoamento da ação formativa,
preferencialmente tendo por base os diversos conflitos existentes na sociedade. Portanto, para esta autora,
[...] a qualificação profissional proposta pelo PNQ, de modo geral, tem sido insatisfatória, não apresentando os
resultados esperados. Contudo isso não significa dizer que o PNQ não possa assumir um papel importante na
sociedade, bem ao contrário, entende-se que falta mais visibilidade às ações; mais críticas propositivas; mais
acompanhamento dessas políticas pelo movimento social, porque, em termos de proposta, o PNQ significou um grande
avanço tanto no que se refere ao PLANFOR, como, e principalmente, ao processo de democratização da sociedade
brasileira. Mas é necessário sair do lugar confortável da proposição para as turbulências da ação (2006, p. 13).

11
Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego. Disponível em: http://www.mte.gov.br

202
Não basta o estabelecimento de boas propostas e a garantia de recursos financeiros para que as políticas sociais
realmente cumpram seus objetivos, se faz necessário enfrentar os conflitos políticos sociais e econômicos que interferem
diretamente no processo de implementação dos planos que envolvem a formação profissional, do contrário corre-se o risco de
ver-se o dinheiro público e bons projetos não atingirem aqueles sujeitos que mais necessitam do apoio do Estado, como é o
caso dos habitantes dos espaços rurais.
Por isso ganha relevância o PRONERA, uma vez que foi gestado e implementado com o apoio dos movimentos
sociais do campo, e mesmo sem a abrangência dos Planos mais diretamente focados na qualificação profissional é um
importante programa de elevação da escolaridade e qualificação profissional do trabalhador rural. O PRONERA desenvolve
projetos desde a alfabetização de adultos até cursos de pós-graduação. Apesar de um investimento relativamente tímido
durante a era Cardoso, foi avaliado como positivo pelos movimentos sociais, fato que justificou sua continuidade com um
maior aporte de recursos no governo Lula.
No ensino médio e técnico profissionalizante, o PRONERA volta-se à formação de professores no curso normal e à
formação de técnicos jovens e adultos nas áreas de reforma agrária. Já no ensino superior o Programa “destina-se ao
cumprimento da garantia de formação profissional, através cursos de graduação ou pós-graduação, em diversas áreas do
conhecimento que qualifiquem as ações dos sujeitos que vivem e/ou trabalham para a promoção do desenvolvimento
sustentável dos assentamentos” (INCRA/PRONERA, 2008).
No Pará o PRONERA financiou vários cursos técnicos de nível médio na área agrícola e no magistério e de nível
superior em Agronomia, Letras e Pedagogia, além da alfabetização de jovens e adultos, sempre voltados aos assentados da
reforma agrária. De 2003 a 2008 o Programa investiu no estado do Pará R$ 6.301.842,6812 somente em cursos técnicos de
nível médio e cursos superiores, que foram executados por instituições como a Universidade Federal do Pará e a Escola
Agrotécnica de Castanhal que possuem reconhecida capacidade técnica e compromisso social com a região.
Em um momento onde a preparação para o trabalho requer uma elevação da escolaridade do trabalhador e um
ensino que seja cientificamente relevante e socialmente referenciado, as políticas educacionais que proporcionam
oportunidades de qualificação profissional ao jovem e adulto do campo cumprem um importante papel no processo de
democratização da sociedade amazônica.

Considerações finais
O breve panorama sobre a formação do trabalhador que se buscou esboçar acima caminhou rapidamente por alguns
dos elementos históricos que marcaram a qualificação para o trabalho no Brasil. Posteriormente, apontou-se a ação do Estado
no nível federal no campo da educação profissional durante os anos iniciais deste século. Por fim, tendo em vista o que fora
discutido anteriormente, analisou-se a problemática a formação do trabalhador no estado do Pará.
Não restam dúvidas que de um lado a configuração atual do mundo do trabalho, marcada por novas formas de
gestão da produção e por uma contínua e acelerada introdução de tecnologias informacionais nos processos produtivos, e de
outro as exigências por uma maior participação política do cidadão na construção da vida pública, cobram uma maior
elevação e uma melhor qualificação dos trabalhadores da cidade e do campo. É nítido também que o ingresso no mundo do
trabalho ou mesmo a permanência nele não depende exclusivamente da quantidade ou da qualidade da educação recebida
formal ou informalmente pelo trabalhador. Isto porque outra marca do atual estágio de desenvolvimento das forças
produtivas é a diminuição persistente de postos de trabalho, onde a expulsão do mercado de trabalho dos trabalhadores
considerados velhos para a produção e a exclusão dos mais novos por falta de experiência compõe o quadro de crise do
emprego formal em todos os setores produtivos.
Assim, a garantia de acesso e permanência com sucesso em todos os níveis de ensino, bem como a participação do
trabalhador em momentos formativos que se desenrolam fora dos limites da instituição escolar, não devem ser alicerçadas
pelas demandas do mercado, mesmo que não as negue. A formação do trabalhador deve ser orientada por uma concepção de
educação pautada no direito. Uma educação de qualidade que possibilite uma participação ativa no mundo produtivo e na
vida social e política é um direito do trabalhador e, portanto um dever dos organismos do Estado.
Infelizmente as políticas públicas capazes de enfrentar a questão da formação do trabalhador ainda são
insuficientes, apesar dos governos sempre ressaltarem a importância da elevação da escolarização dos trabalhadores como
fundamental para o enfrentamento da competitividade internacional. Os programas com financiamento limitado e tempo de
execução determinado previamente se destacam muito mais do que as políticas estruturantes, pensadas a longo prazo, que
ultrapassem o período de um mandato. O que não quer dizer que os programas mais focalizados não tenham importância,
basta ver o caso do PRONERA que há anos vem contribuindo para a melhoria dos índices educacionais no campo no Pará e
no Brasil. O que se está afirmando é que o direito à educação do trabalhador deve ser consolidado em uma base mais sólida,
como política de Estado e não simplesmente como um programa de governo.
Mesmo ainda apresentando algumas limitações de abrangência das ações ou mesmo no processo de execução,
parece claro que houve um avanço, ainda que tímido, no que diz respeito à formação do trabalhador durante o governo Lula,
com repercussões plenamente visíveis nos estados. A aprovação do Decreto 5154/2004, em que pese às ambiguidades que o

12
Fonte: Portal da Transparência. Disponível em: http://www.cgu.gov.br/convenios/index2.asp

203
marcam, resultado do intenso conflito ideológico travado durante a sua construção, sinaliza no sentido de uma concepção de
ensino médio integrado, capaz de proporcionar ao jovem estudante uma formação científica mais sólida sem desvinculá-la da
vida produtiva. Todavia, uma intensificação no processo de implementação dessa concepção se faz necessária, sob pena de se
transformar em letra morta os aspectos positivos do texto legal e que mais interessam aos trabalhadores, deixando espaço
para as interpretações mais conservadoras que priorizam o ensino médio exclusivamente propedêutico venham a prevalecer
no quotidiano das agências formadoras, perpetuando a histórica dualidade que acompanha a formação do trabalhador no
Brasil. Nesse sentido é preciso acompanhar de perto a interessante proposta de implantação do ensino médio integrado à
formação profissional realizada no início de 2008 pelo governo do estado do Pará.
Todavia, é possível perceber que as iniciativas estatais voltadas à educação do trabalhador, tanto em nível regional
como nacional, ainda privilegiam programas e projetos às políticas estruturantes, deixando a formação profissional exposta
aos interesses políticos e econômicos dos grupos que ocupam o Estado. Também pode ser constatado que as medidas
governamentais, de um modo geral, priorizam o privado em detrimento do público na oferta e gestão dos programas, mesmo
com financiamento estatal, em que as ONG’s têm exercido papel fundamental.
Alguns programas adotam iniciativas que atendem interesses dos organismos internacionais, onde uma visão
restritiva do direito à educação é evidente, uma vez que focalizam públicos específicos em detrimento de políticas mais
abrangentes. Verifica-se ainda que os diversos programas ampliam vagas, mas tendem a precarizar os processos educativos,
uma vez que os cursos são rigidamente formatados e têm carga horária reduzida e oferta fragmentada em módulos. Fatos que
demonstram que, apesar dos discursos enfatizando a necessidade da elevação da qualificação do trabalhador, as ações
continuam relativamente distante de um projeto educativo que instrumentalize os trabalhadores para o enfrentamento e a
problematização do atual mundo do trabalho.
Àqueles e àquelas que vivem no interior da Amazônia fica evidente que a formação para o trabalho gratuita e de
qualidade ainda é restrita aos que conseguem ter acesso às escolas técnicas federais ou estaduais, assim como aos que chegam
aos cursos de nível superior. Aos que só têm acesso aos programas de qualificação ofertados eventualmente, nem sempre é
garantida uma formação com a qualidade necessária para o ingresso ou permanência com sucesso no mercado de trabalho.

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Os desafios da educação especial para os professores: uma pesquisa sobre a


avaliação que professores do ensino fundamental fazem de sua atuação com
alunos com necessidades educacionais especiais

Érika Lourenço
Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
lourenco_erika@yahoo.com.br

Resumo: Esta pesquisa foi realizada entre os meses de agosto de 2007 e julho de 2008 e teve como objetivo geral investigar a avaliação que
os professores do ensino fundamental das cidades de Ouro Preto e Mariana (localizadas no Estado de Minas Gerais – Brasil) faziam de sua
atuação com alunos com necessidades educacionais especiais. Foram objetivos específicos da pesquisa: investigar a contribuição da
formação universitária para a atuação desses professores com alunos com necessidades especiais; identificar o que os professores
consideravam como necessidades educacionais especiais, que estratégias utilizavam para ensinar os alunos que consideravam ter
necessidades especiais e identificar possíveis demandas de aperfeiçoamento desses professores. Para alcançar os objetivos propostos, um
questionário com dez perguntas abertas foi aplicado a uma amostra de 100 professores das duas cidades. Os resultados da análise dos dados
obtidos através dos questionários apontaram que a maioria dos professores tem formação superior (licenciatura), mas não se considera
preparada para ensinar alunos com necessidades educacionais especiais; que o que esses professores consideram como necessidades
educacionais especiais nem sempre coincide com o que a bibliografia da área e a legislação brasileira descrevem como tal; que diante de um
aluno com necessidades educacionais especiais a tendência dos professores é buscar novas estratégias de ensino e estabelecer uma relação
mais afetiva com esse aluno; e que os professores consideram que a participação em cursos de curta duração seria uma boa estratégia para se
prepararem para a educação de alunos com necessidades educacionais especiais.

Introdução
As últimas décadas do século XX e os primeiros anos do século XXI têm sido marcados por uma série de encontros
de âmbito internacional para a reflexão a respeito da inclusão social. As propostas para uma educação especial receberam
especial atenção no cerne dessas reflexões e foram produzidos vários documentos através dos quais os representantes dos

205
países participantes dos referidos encontros se comprometiam com a sua implementação. Dentre esses documentos, pode-se
destacar a Declaração de Salamanca, a Convenção de Guatemala, a Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão e a
Carta para o Terceiro Milênio (Abenhaim, 2005).
No Brasil verifica-se, sobretudo a partir da década de 1990, a criação de leis para garantir a inclusão social em geral
e, em particular, a educação inclusiva. A nova legislação surge concomitantemente à divulgação dos documentos
internacionais em defesa da inclusão e à organização de sociedades de pessoas com necessidades especiais, que passam a
apresentar demandas de modificação nas políticas educacionais, além de outras medidas para evitar sua exclusão de várias
instâncias da vida social (Lima, 2006).
Assim, hoje no Brasil, dentre as leis vigentes, estão aquelas que garantem a acessibilidade e o apoio às pessoas
portadoras de deficiência, os direitos das pessoas acometidas de transtornos mentais, o direito de todos à educação, o apoio às
pessoas portadoras de deficiências, a educação especial na escola regular e a formação de docentes para a educação especial.
Ao mesmo tempo em que se configuraram tais propostas legais para garantir a inclusão das pessoas com
necessidades educacionais nas escolas regulares, vários estudos sobre o assunto começaram a ser produzidos e foi publicada
uma diversidade de artigos e livros para sua divulgação e para reflexões sobre o tema. Tais estudos foram e vêm sendo
realizados por profissionais das mais diversas áreas, envolvidos com as práticas educativas, havendo vários deles disponíveis
para consulta via internet. Trazem relatos de experiências bem sucedidas em educação inclusiva, como é o caso de Lima
(2006), reflexões de um grupo de psicólogos a respeito dos direitos humanos na escola e a educação inclusiva (Machado et al,
2005), relatos de debates a respeito da inclusão e da integração escolar (Arantes, 2006), discussões sobre políticas e práticas
de educação inclusiva (Góes; Laplane, 2004), discussões acerca da inclusão de alunos com diversos tipos de necessidades
educacionais especiais (Baptista, 2006), etc.
Considerando as propostas legais a respeito da inclusão de alunos com necessidades especiais nas escolas regulares
e considerando ainda a importância dos professores para que a educação especial e inclusão sejam de fato efetivadas, foi
realizada a pesquisa “Os desafios da educação inclusiva para as práticas pedagógicas: como os professores do ensino
fundamental de Ouro Preto avaliam sua atuação junto a alunos com necessidades educacionais especiais” (Lourenço,
Martins, 2008). Como o próprio título indica, a pesquisa teve como objetivo geral conhecer a avaliação que professores da
cidade de Ouro Preto - localizada no interior do Estado de Minas Gerais – Brasil, numa região atendida pela Universidade
Federal de Ouro Preto – fazem de sua atuação com alunos com necessidades educacionais especiais. Foram objetivos
específicos da pesquisa: investigar a contribuição da formação universitária para a atuação desses professores com alunos
com necessidades especiais; identificar o que os professores consideravam como necessidades educacionais especiais, que
estratégias utilizavam para ensinar os alunos que consideravam ter necessidades especiais e identificar possíveis demandas de
aperfeiçoamento desses professores.

Métodos
O levantamento de dados para a pesquisa ocorreu com a aplicação de um questionário aberto a uma amostra de
cem professores e professoras da educação básica da região de Ouro Preto. O questionário continha as seguintes questões:

A respeito de sua formação, responda:


Em que instituição se formou?
Em que curso se formou?
Há quanto tempo se formou?
Há quanto tempo atua como professor?
Em que nível de ensino atua hoje?
Tem ou teve nos últimos anos alunos com necessidades educacionais especiais?
Quais são essas necessidades educacionais especiais?
Como você descreveria sua atuação com esses alunos?
Você se considera preparado para educar alunos com necessidades educacionais especiais? Por que?
Qual a principal fonte de preparo para sua atuação com esses alunos?
Qual ou quais disciplinas do seu curso de graduação podem ser consideradas importantes para sua atuação com
alunos com necessidades especiais? Por quê?
Que sugestões você daria para a melhoria do preparo dos professores para a educação inclusiva?

O ponto de partida para a aplicação dos questionários foi uma listagem com a relação de todas as escolas públicas e
particulares da região de Ouro Preto fornecida pela Superintendência Regional de Ensino da Região dos Inconfidentes. A
partir desta relação foram feitos os primeiros contatos com as direções das escolas e os convites para participarem da
pesquisa. Nas escolas cujos diretores aceitaram o convite para participar da pesquisa, foram feitas visitas para a aplicação dos
questionários, as quais aconteceram entre os meses de outubro e novembro de 2007.
Realizou-se, em cada escola, pelo menos, duas visitas: uma primeira para a apresentação detalhada da pesquisa à
direção da escola e aos professores, convite oficial para que participassem da mesma, distribuição dos termos de

206
consentimento livre e esclarecido e dos questionários; e uma segunda para recolher os questionários respondidos e termos de
consentimento assinados.
Aplicados os questionários, os mesmos foram analisados quantitativa e qualitativamente. Na análise quantitativa, os
dados foram separados em categorias e organizados em tabelas. A partir destas tabelas os dados foram interpretados com
fundamento na bibliografia estudada.

Perfil dos professores que responderam à pesquisa


Os professores que responderam o questionário proposto atuam entre o primeiro e o oitavo anos do ensino
fundamental de escolas públicas da região de Ouro Preto. Apenas 7% destes professores não têm ainda formação de nível
superior concluída. 75% deles fizeram sua formação superior em instituições públicas e 25% em instituições particulares.
Praticamente metade destes professores fez uma formação voltada para os anos iniciais do ensino fundamental:
21% deles fizeram Curso Normal Superior, 21% Curso de Licenciatura em Educação Básica, 7% Curso de Pedagogia e 6%
Curso Normal ou Magistério. Os demais têm formação distribuída entre as seguintes áreas: Letras, Matemática, Educação
Física, Biologia, Geografia, História, Química, Física, Estudos Sociais, Ciências, Filosofia e Música.
Dentre os professores que participaram da pesquisa, 7% ainda não completaram curso superior, 11% terminaram
curso superior há menos de um ano, 49% completaram curso superior num intervalo de um a cinco anos, 13% completaram
num intervalo de seis a dez anos, 6% completaram num intervalo de onze a quinze anos, 3% completaram num intervalo de
dezesseis a vinte anos e os demais terminaram o curso superior há mais de vinte anos.
Assim como têm uma formação diversificada, os professores que responderam ao questionário apresentam também
diferentes graus de experiência no magistério. 14% deles atuam no magistério há menos de cinco anos, 23% têm entre seis e
dez anos de atuação, 20% têm entre onze e quinze anos de atuação, 16% têm entre quinze e vinte anos de atuação e 26% têm
mais de vinte anos de prática de magistério. 1% não informou o tempo de atuação como professor.

Atuação dos professores com alunos com necessidades educacionais especiais


A maioria dos professores participantes da pesquisa (57%) informou que em algum momento de sua prática já teve
alunos com necessidades educacionais especiais. Dentre estas necessidades educacionais especiais são citadas algumas que
podem ser consideradas bastante comuns, como as deficiências auditivas (citadas por 17% dos professores), deficiências
visuais (citadas por 9% dos professores), deficiências físicas (citadas por 9% dos professores), transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade (citado por 7% dos professores), deficiências mentais (citadas por 6% dos professores), síndrome de
Down (citada por 3% dos professores), autismo (citado por 3% dos professores). Alguns professores mencionaram também
como necessidades educacionais especiais problemas de cunho psicológico e problemas sociais e familiares, que geralmente
não aparecem na bibliografia da área como necessidade educacional especial.
Diante de alunos com características que consideram características de necessidades educacionais especiais, os
professores apresentam reações diversificadas. Uma parte significativa dos professores (28%) relata a sensação de não estar
preparado ou de não se sentir apto a educar esses alunos. Uma outra parcela desses professores (cerca de 11%) relata uma
ação mais proativa, buscando utilizar novas e diferenciadas estratégias de ensino. Outros 10% relataram haver encontrado
como alternativa tratar os alunos com necessidades educacionais especiais de forma mais afetiva do que tratava os demais
alunos.
Algumas alternativas apresentadas por uma parcela menor de professores para sua atuação com alunos com
necessidades educacionais especiais foram as seguintes: buscar cursos e outras fontes de informação para se preparar, buscar
ajuda de pessoas da família do aluno ou de profissionais especializados, tratar o aluno da mesma forma como tratava os
demais alunos, sem qualquer tipo de atenção especial.

Formação dos professores para educar alunos com necessidades educacionais especiais
Confirmando as respostas dos professores com relação ao que consideram como necessidades educacionais
especiais e à forma como atuam quando se vêem na situação de receber em sua turma um aluno com necessidade educacional
especial, 80% dos participantes da pesquisa relataram não se considerar preparados para a educação especial. A justificativa
para esta não preparação, na maioria dos casos, é relacionada a uma formação superior deficitária. Outra justificativa bastante
presente no discurso dos professores para a sua não preparação para a educação especial está relacionada à escola e à falta de
estrutura do pessoal (funcionários em geral, incluindo os próprios professores), do ambiente físico e do material didático
disponível.
Quanto às possíveis fontes de preparo para sua atuação na educação especial, os professores relatam buscar cursos
de curta duração (12% das respostas), a própria experiência (9% das respostas), o diálogo com os familiares dos alunos com
necessidades educacionais especiais (9% das respostas), leituras especializadas (8% das respostas), a relação afetiva que
estabelece com os alunos com necessidades especiais (4% das respostas), participação em eventos (3% das respostas) e
reflexões (3% das respostas). Cerca de 50% dos professores não relatam ter fontes de preparação para educar alunos com
necessidades educacionais especiais.

207
Dentre as disciplinas cursadas durante a formação superior que teriam trazido aos professores alguma contribuição
para sua atuação com alunos com necessidades especiais, destacam-se as disciplinas específicas do curso de graduação, com
5% das respostas; as disciplinas da área de ciências humanas em geral, com 4% das respostas; as disciplinas de metodologia
do ensino, também com 4% das respostas; e disciplinas específicas sobre educação especial, com 4% das respostas. São
mencionadas também disciplinas como psicologia, antropologia, ética e sociologia. Essas disciplinas são consideradas
importantes por um dos três seguintes motivos: porque trataram da temática da inclusão, porque ajudaram a compreender o
indivíduo, ou porque ajudaram o professor em sua prática pedagógica. No entanto, a grande maioria dos professes relata
considerar que nenhuma disciplina que cursou durante a graduação tenha trazido qualquer contribuição para sua atuação com
alunos com necessidades educacionais especiais.
Com relação às sugestões que poderiam apresentar para a melhoria do preparo dos professores para atuação na
educação especial, 23% dos participantes da pesquisa sugeriram a realização de cursos; 10% sugeriram que a escola deveria
disponibilizar profissionais de outras áreas, sobretudo da área da saúde, para dar um suporte aos professores; outros 10%
sugeriram a participação de professores em congressos, palestras e oficinas. Outras respostas que foram apresentadas pelos
professores foram a necessidade de adequar as escolas para receber os alunos com necessidades educacionais especiais, a
necessidade de dar ao professor oportunidade de realizar visitas e estágios que permitam a observação e a vivência orientada
de práticas de educação inclusiva e de educação especial, e a necessidade de promover a melhoria dos cursos de licenciatura,
de modo que preparem o futuro professor para atuar em educação especial, e o diálogo com a família do aluno com
necessidade educacional especial.

Conclusões
A pesquisa cujos resultados estão aqui apresentados fez um questionamento a respeito da preparação dos
professores para realizar o papel de ensinar e incluir todos os alunos, inclusive aqueles com necessidades educacionais
especiais. De acordo com Carvalho (2004), a crítica aos cursos de formação, com freqüente presença nesta pesquisa, é mais
uma forma de imobilização do que propriamente um meio de mudança. Contudo, o simples reconhecimento de que a
atualização é necessária mostra-se como o início de um processo de renovação. Assim, também como resposta recorrente dos
professores, a formação continuada é um meio de substituir práticas antigas por outras baseadas numa nova visão de mundo.
No entanto, se os professores, na maior parte das respostas, ao se referir à formação continuada, diziam de cursos
de atualização, é importante mencionar que, apesar de necessários e de trazerem muitas informações, só estes não são
suficientes. A realização da inclusão precisa, como rotina das escolas, de discussão sobre o fazer pedagógico. Não se trata de
desvalorizar a teoria em face da prática, mas de entender que ao realizar a teoria, na prática, ela é experimentada e recriada.
Constrói-se a teoria para aplicá-la.
A defesa da inclusão e da educação especial é a defesa de um direito humano fundamental ao qual não cabem
concessões. A Convenção da Guatemala preceitua que as pessoas deficientes têm os mesmos direitos humanos e liberdades
fundamentais que as outras pessoas, ou seja, preceitua que de ninguém pode ser retirado o direito à educação. Dessa forma,
segundo Fávero (2004), cabe à escola comum enfrentar as diferenças e se tornar um lugar para todas as crianças. O fato de
alguns alunos precisarem de atendimento especializado não significa que deles possa ser subtraído o direito de conviver com
seus pares, em escola regular. Tal atendimento deve ser bem definido e se dar de forma paralela ao ensino comum. O
atendimento educacional especializado não representa uma educação plena, a qual tem que ocorrer na escola regular.
De forma bastante clara, a Constituição da República Brasileira (Brasil, 1988), bem como inúmeros documentos
internacionais dos quais o Brasil é signatário, garantem a todos o direito à educação e à escola. Seus dispositivos demonstram
que a qualquer pessoa com deficiência não pode ser negado o acesso à mesma sala de aula que outro aluno, sob pena de
infligir o princípio da igualdade. Para garantir o acesso e a permanência de educandos com necessidades especiais, é dever
das escolas promover as alterações necessárias. Com isso, pode se concluir que a efetivação de uma inclusão irrestrita se
vincula em grande parte ao cumprimento e correta aplicação das leis.
Assim, diante do contexto de transformação do sistema escolar, vive-se o desafio de colocar em prática o direito à
educação de qualidade que é assegurado a todos. Questiona-se ainda a forma pela qual os sistemas educacionais criarão
escolas inclusivas, com condições de educar adequadamente aqueles que possuem necessidades individuais de aprendizagem.
Tem-se com as leis, as bibliografias, bem como com os discursos de especialistas, a garantia teórica a estes direitos. Mas,
uma educação inclusiva, de fato, só se efetivará através de ações que concretizem tais direitos. São várias as providências
políticas, administrativas e financeiras a serem tomadas para que as escolas aceitem e eduquem todos os alunos.

Referências
Abenhaim, E. (2005). Os caminhos da inclusão: breve histórico. In Machado, A. M. et al. (Org.), Educação inclusiva: direitos
humanos na escola. São Paulo: Casa do Psicólogo; Brasília: Conselho Federal de Psicologia, (pp.39-54).
Arantes, V. A. (Org.) (2006), Inclusão escolar. São Paulo: Summus.
Baptista, C. R. (Org.). (2006), Inclusão e escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação.
Brasil (1988), Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal.
Carvalho, R. E. C. (2004), Educação inclusiva com os pingos nos is. Porto Alegre: Mediação.

208
Fávero, E. A. G. ( 2004), Direito das pessoas com deficiência: garantia de igualdade na diversidade. Rio de Janeiro: WVA.
Góes, M. C. R. & Laplane, A. L. F. (Orgs.) (2004), Políticas e práticas de educação inclusiva. São Paulo: Autores
Associados.
Lima, P. A. (2006), Educação inclusiva e igualdade social. São Paulo: Avercamp.
Machado, A. M. et al. (Org.) (2005), Educação inclusiva: direitos humanos na escola. São Paulo: Casa do Psicólogo; Brasília:
Conselho Federal de Psicologia.

A Globalização e a Infância: reflexos e reflexões nas falas das crianças

Márcia Rejane Scherer


UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
marciarscherer@yahoo.com.br

Resumo: A presente pesquisa busca analisar como as crianças que freqüentam os primeiros anos de escolarização e vivenciam o atual
momento histórico são subjetivadas pelos discursos e produtos culturais contemporâneos, como refletem sobre as questões vivenciadas neste
tempo e como reagem às tentativas de sua massificação. A investigação, que privilegia a escuta das vozes infantis manifestadas em diferentes
linguagens, foi balizada pelas seguintes questões: Como se caracteriza a infância contemporânea? De que forma o processo de globalização
atua sobre a infância e que lugar designa a ela? Em que se constitui o processo de reinstitucionalização da infância e como essa infância
reinstitucionalizada se faz presente na escola? Como a heterogeneidade dos mundos culturais e sociais atravessa o espaço escolar e é
expressa nas falas e produções escritas dessas crianças? A análise dos dados da pesquisa de campo realizou-se através da observação, registro
e apreciação de produções das crianças de uma escola pública localizada no município de Ijuí, Estado do Rio Grande do Sul e amparou-se
nas contribuições teóricas das Ciências Sociais, em especial da Sociologia da Infância. A pesquisa permitiu comprovar, entre outras questões,
que, enquanto sujeitos sociais plenamente integrados com sua contemporaneidade e com o mundo em que vivem, as crianças desenvolvem
formas de resistência à homogeneização proposta pelo processo de globalização. As reinterpretações dos produtos culturais contemporâneos
direcionados ao público infantil configuram-se em uma forma de resistência das crianças à tentativa de massificação e homogeneização
promovida por esse processo.

Achadouros:
(...)Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias.
Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal,
lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira.
Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro,
lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa.
Sou hoje um caçador de achadouros de infância.
Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal
vestígios dos meninos que fomos (Manoel de Barros, 2003).

Falar de crianças e da infância, ao contrário do que possa parecer, não se constitui em tarefa fácil. As crianças estão
em todos os lugares: nas escolas, nas creches, nas ruas, nas vilas, nos condomínios das grandes cidades, nas periferias, no
campo, nas aldeias em meio às matas, nos acampamentos improvisados de refugiados, nos lugares devastados pelas guerras,
pelas epidemias e pela fome.
As realidades das quais participam são diferentes, assim como diferentes são as culturas as quais integram. Por
conta disso, diversas são as experiências que vivenciam, variados são os tratamentos que recebem a partir de sua condição de
criança e desiguais são as formas de organização de suas rotinas diárias.
Essa diversidade de vivências e tratamentos conferidos à infância, durante muito tempo foi desconsiderada nos
discursos e práticas relacionadas e/ou direcionadas a esse grupo etário. A imagem de infância amplamente veiculada
constitui-se naquela que historicamente foi construída, e através da qual esse grupo é percebido a partir de uma visão
reducionista, que não contempla a compreensão da multiplicidade de formas de viver e significar essa etapa da vida humana.
Assim, consideradas a partir de uma idéia de negatividade, segundo a qual são percebidas como aqueles que não
falam, que não têm direitos políticos, que não conseguem auto-sustentar-se, que não possuem uma abrangente visão de
mundo, entre outros pressupostos que institucionalizaram1 a idéia de infância na Modernidade, as crianças passaram a ser
estigmatizadas como seres ingênuos e desprovidos de competência para realizar determinadas atividades ou emitir opiniões
confiáveis a respeito dos mais variados assuntos. Sua condição infantil foi utilizada para simbolizar, numa perspectiva muitas
vezes depreciativa, o que é pequeno, imaturo, simples, insignificante, limitado, dependente.
Essas percepções traduzem uma visão adultocêntrica em relação à criança e a apresentam como um “outro”,
alguém a quem nós, do alto de nossa pretensão de saber adulto, percebemos como um estranho, como alguém a quem não

1
Utilizo aqui o termo “institucionalizar” na perspectiva com que trabalha o sociólogo da infância Manuel Jacinto Sarmento (2003a).

209
entendemos, sobre o qual pouco sabemos e, conseqüentemente, como alguém a quem devemos moldar para que se converta
em um de “nós”. Um “outro” que já fomos, uma experiência pela qual já passamos, mas que hoje não mais reconhecemos e
com o qual, em muitas situações, não sabemos como agir.

1. “Essas crianças não sãomais como antigamente” – a criança como um “outro”


O “outro” é aquele que, por algum motivo, se apresenta como “diferente” de nós ou daquilo que a sociedade em
que estamos inseridos instituiu como padrão de normalidade. E por assim constituir-se, questiona e desestabiliza a forma
como nós e esta sociedade ou determinados grupos que a compõem, vêem e atuam no mundo.
Quem constrói a imagem do outro somos nós, e o fazemos de forma mais contumaz quando nossa definição “se
supõe avalizada pelos aparatos que articulam uma função técnica ou perita dos distintos campos do saber” (LARROSA;
LARA, 1998, p. 08). Desta forma, nos investimos de autoridade para pensar, perceber, “olhar”, traçar imagens do outro, dizer
como ele é, do que necessita, qual a melhor maneira de tratá-lo, quais suas possibilidades de futuro, a partir de uma visão
pretensamente hegemônica sobre ele.
E ao se traçarem imagens e estipularem-se maneiras de tratar aquele que é considerado, de alguma forma, diferente,
criam-se estereótipos. Muitas vezes estas mesmas imagens e representações são utilizadas como justificativa para a tomada
de determinadas atitudes em relação aos sujeitos considerados “diferentes”. A história da humanidade está marcada por
inúmeros exemplos de tentativas de eliminação, dominação, opressão ou subjugação do “outro”, de negação de sua
alteridade. Esta realidade se processa tanto no campo real, físico, quanto simbólico.
Ao tomar como foco principal a discussão sobre a infância e percebendo as crianças como atores sociais, sujeitos
plenos que vivenciam esta etapa da vida humana, problematizo a percepção destes como um “outro”. Jorge Larrosa (1998),
ao discutir a alteridade da infância, chama a atenção para o fato de que perceber a criança em uma experiência como “outro”
significa dar atenção à presença da infância como algo misterioso, enigmático, que traz em si sempre algo novo, único,
original:
À medida que encarna a aparição da alteridade, a infância não é nunca o que sabemos (é o outro de nossos saberes),
mas igualmente é portadora de uma verdade diante da qual devemos colocar-nos em posição de escuta; não é nunca a
presa de nosso poder (é o outro que não pode ser submetido), mas, ao mesmo tempo, requer nossa iniciativa; não está
nunca no lugar que lhe damos (é o outro que não pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar que a receba. Isso é
a experiência da criança como outro: o encontro com uma verdade que não aceita a medida do nosso saber, como uma
demanda de iniciativa que não aceita a medida de nosso poder e com a exigência de hospitalidade que não aceita a
medida de nossa casa (LARROSA, 1998, p. 71).

Na história da humanidade, o que se fez foi negar a criança em sua alteridade, asseverando-a em sua diferença e
dependência em relação ao adulto. Negou-se efetivamente à criança a possibilidade de dizer de si, rotulando-a a partir do
dizer de outrem.
Enquanto profissionais envolvidos no trabalho educativo com crianças, nos acostumamos a pensar a infância como
uma fase da vida humana marcada pela ingenuidade, fragilidade, carente de atenção e desvelo. Estudamos em nossos cursos
de formação as fases do desenvolvimento infantil propostas por Freud; os estágios de desenvolvimento do conhecimento,
formulados por Piaget; e como a Pedagogia pode abordar os processos que envolvem a aprendizagem do ser humano. Isto
porque, durante muito tempo, os conhecimentos sobre a infância nos foram apresentados pela Medicina, pela Biologia e pela
Psicologia do Desenvolvimento. Estes foram os primeiros campos de estudo que se interessaram em aprofundar as pesquisas
em que a infância se constituía como temática principal. Suas contribuições constituíram-se e permanecem constituindo-se
em importante aporte para a Pedagogia, pois apresentam uma compreensão aprofundada de como se processa o
desenvolvimento físico e cognitivo dos sujeitos infantis.
Contudo, nos deparamos nas escolas com uma realidade na qual a infância se apresenta como plural. E nossos
olhares e conhecimentos sobre ela parecem não mais dar conta de toda esta heterogeneidade na qual a mesma se compõe e se
apresenta. Constantemente ouvimos de educadores, pais e demais profissionais e/ou sujeitos envolvidos no trabalho ou na
vivência e convivência com crianças, a famosa expressão: ”Estas crianças não são mais como antigamente”. O estranhamento
e o desconhecimento sobre como agir frente a atitudes, falas e demais manifestações dos sujeitos infantis são traduzidos em
expressões do tipo:
“Elas não ouvem a gente, não param um segundo, estão sempre falando, questionando, desafiando, não conseguem
ficar sentados na sala de aula”.

“Ele tem resposta pra tudo, não sei onde aprende!”

“Deste tamanho e já querendo impor suas idéias.”

“Não sei mais o que fazer com esta criança para que se concentre mais nas atividades que está realizando e cumpra
com as regras combinadas pelo grupo.”

Se as crianças de hoje não mais são como as de antigamente, nem como as de um “antigamente” bem próximo,
traduzido em dez, quinze, vinte anos atrás, o que aconteceu para que mudassem? O que fez com que se tornassem tão
diferentes daquela imagem dependente e ingênua que por muito tempo habitou e ainda se faz presente no imaginário

210
coletivo? Quem é, afinal, o sujeito infantil, este “outro” que habita nossos espaços de ação e que temos dificuldade de
compreender? Será que se processaram mudanças na constituição infantil ou o que realmente mudou, com o passar do tempo
e as transformações verificadas nas sociedades, foi a relação da criança com o adulto?

2. Criança: ator social e sujeito da história


Segundo os sociólogos da infância, pesquisadores que se propõem a trazer para o debate a infância como um
fenômeno sociológico, apontando para a construção social desta e sua constituição enquanto categoria social do tipo
geracional, ao se pensar a infância como uma construção social e cultural, se reconhece, antes de tudo, que as crianças são
atores sociais.
Os papéis sociais atribuídos a elas são construídos historicamente, modificando-se segundo as transformações pelas
quais passam as sociedades. Ao ser percebida como um ator social, a criança ganha uma nova compreensão, tornando-se
sujeito de sua própria socialização, uma percepção muito diferente daquela que por séculos foi veiculada, e através da qual a
criança era concebida como simples receptora da cultura ou dos processos de socialização propostos pelos adultos. Se na
Antiguidade a criança era considerada um ser anônimo que só ganhava visibilidade quando passava a participar ativamente
da vida da família, na Modernidade passou a ser percebida como alguém frágil, dependente, obediente, um “vir-a-ser”. A
infância da contemporaneidade, por sua vez, fortemente influenciada pela mídia e pelo mercado de consumo, vem questionar
os lugares que tradicionalmente foram destinados a ela, demonstrando que interage com seus pares e com os adultos,
expressa opiniões e quer ser ouvida.
A percepção das crianças como atores sociais entra em choque com certezas modernas que apresentavam o grupo
infantil ocupando o lugar do não-saber, devendo ser conduzido e socializado pelos adultos. Delgado e Müller auxiliam na
compreensão desta questão ao afirmar que
A palavra ator tem sentido de ação e não foi tão simples nos últimos tempos perceber que as crianças não somente
reproduzem regras, valores, hábitos e comportamentos do mundo adulto, mas principalmente criam e recriam as
realidades e dão outros sentidos ao mundo (2006, p. 9).

Como atores sociais, as crianças estão em constante interação entre si, com os adultos, com as instituições e buscam
formas de participação no mundo social. Nesta interação, apreendem e contestam regras, constroem visões de mundo e
significam o tempo e o espaço em que vivem a partir da compreensão que têm deles. Considerando a criança como ator
social, permitir que sua voz se faça ouvir é condição fundamental para a conhecermos e compreendermos como se
constituem e se organizam estas apreensões, construções e significações, ao mesmo tempo em que passamos a percebê-la
para além de nossas certezas pré-estabelecidas configuradas em uma lógica adulta. Além disso,
O estudo das crianças a partir de si mesmas permite descortinar uma outra realidade social, que é aquela que emerge
das interpretações infantis dos respectivos mundos de vida. O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que
o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das
crianças pode ser não apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e
dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 25).

Considerar as crianças como atores sociais é percebê-las também como sujeitos plenos, com direitos que
necessitam ser garantidos, respeitando-as em sua condição de crianças. E este respeito se estende na percepção da infância
como plural e na valorização de sua diversidade, marcada pela classe social, gênero, cultura, etnia, o espaço geográfico em
que as crianças habitam, enfim, seus diferentes mundos de vida.
Compreendendo, então, a infância como uma construção cultural e social e as crianças como atores sociais,
retornamos à questão apresentada anteriormente: As crianças de hoje não mais são como antigamente?
Se olharmos para a questão do ponto de vista da ação e participação da criança no mundo, podemos afirmar: Não,
elas realmente não são mais como antigamente. E não o são por diversos motivos: os tempos são outros, as vivências são
outras, as condições de possibilidades são outras. O mundo mudou, e as crianças, como sujeitos plenamente integrados a ele,
vivenciam e participam das mudanças processadas. Elas não são coadjuvantes deste processo, mas participantes ativos dele.
Portanto, se as instituições, as crenças, os grupos sociais, os paradigmas, os sujeitos construídos na Modernidade estão
passando por uma fase de rupturas e mudanças, a infância também está.
Contudo, se as observarmos pelo âmbito das condições sociais, podemos afirmar que muitas crianças ainda são
percebidas, tratadas e guardam características da infância de tempos atrás. Apesar de todo o avanço da tecnologia, de todo o
aparato técnico e tecnológico e possibilidades educativas diferenciadas, as questões sociais que envolvem o desemprego, as
guerras, a fome, o abandono, o desabrigo, permanecem fazendo parte do cotidiano de inúmeras crianças no mundo inteiro.
Muitas delas ainda necessitam trabalhar para sobreviver e/ou auxiliar na sobrevivência da família; muitas ainda morrem logo
após nascer; outras tantas ainda são abandonadas à própria sorte; ainda são prostituídas, drogadas, vendidas, menosprezadas,
maltratadas, violentadas.

3. A globalização e a reinstitucionalização da infância contemporânea

211
Vivemos um tempo marcado pela globalização, processo que possui um caráter hegemônico, e que busca defender
uma ilusória idéia de homogeneização do mundo, através de um discurso que pretende mascarar ou minimizar as
diversidades e diferenças existentes. Percebemo-nos atingidos pelas transformações originárias deste, em todas as instâncias
que envolvem e organizam nossas sociedades: econômica, política, ambiental, social.
Num olhar mais rápido e desatento, poderíamos dizer que hoje todos os sujeitos contemporâneos (ou pelo menos
quase todos) vivem (ou necessitam viver) uma mesma linha de organização econômica e política, seguem uma forma
relativamente igual de pensar e perceber o mundo, desenvolvem os mesmos gostos, atitudes, opiniões, em relação a situações,
acontecimentos, lazer, moda,... Esta “necessidade” de pensar, viver ou parecer igual aos outros, sob pena de, se assim não
agir, ficar à parte do mundo e da ordem dita “natural” das coisas, é apresentada em especial pela mídia, principal meio de
suporte, manutenção e divulgação do discurso da globalização.
Contudo, apesar do viés hegemônico, o processo de globalização possui pontos de escape, o que torna esta
percepção homogeneizadora do mundo e dos sujeitos que nele vivem, apenas aparente. Os pontos de fuga à atuação
hegemônica da globalização são representados, como bem destaca Boaventura Souza Santos (2002), pela ação de sujeitos,
movimentos e organizações que lutam contra os efeitos negativos deste processo. O esforço dos sujeitos que são colocados à
margem ou excluídos da atual configuração do mundo, e que buscam fazer ouvir sua voz, manter sua cultura e a garantia de
seus direitos, caracteriza-se como um exemplo de resistência ao viés hegemônico da globalização.
Se a globalização é um processo que traz uma diversidade de influências externas para as diferentes nações, e estas
influências interferem na vida dos cidadãos que ali vivem, agindo de maneira intensiva, afeta também o contexto cotidiano
onde a criança cresce e interage com a sociedade. Ao atingir este cotidiano, age sobre as dinâmicas sociais e culturais em que
a mesma está inserida, intensificando as diferenças entre as formas de vivenciar a infância nos diferentes espaços mundiais.
Neste sentido, diferentes percepções sobre a constituição da infância contemporânea se fazem presentes.
Há quem diga que a infância estaria passando por um processo de desaparecimento (POSTMAN, 1999), e que
estaríamos nos encaminhando para uma fase marcada pelo fim da infância, frente a sua precoce adultização e erotização. Há,
porém, quem defenda (e compartilho das idéias deste grupo) que a infância contemporânea não está desaparecendo e sim se
modificando, apresentando-se como plural e recebendo o investimento de novos papéis e estatutos sociais. Fazem parte deste
segundo grupo os sociólogos da infância. Segundo esses pesquisadores, as mudanças sociais que ora se configuram em nível
mundial vão produzir mudanças também nos modos de perceber e representar a infância, diferentes daqueles
institucionalizados na Modernidade. Estaríamos vivenciando hoje, portanto, um processo de reinstitucionalização da infância.
Sarmento afirma que:
Os tempos contemporâneos incluem, nas diferentes mudanças sociais que os caracterizam, a reinstitucionalização da
infância. As idéias e representações sociais sobre as crianças, bem como suas condições de existência, estão a sofrer
transformações significativas, em homologia com as mudanças que ocorrem na estruturação do espaço-tempo das
vidas quotidianas, na estrutura familiar, na escola, nos mass-media, e no espaço público. Contrariamente à proclamada
“morte da infância”, o que a contemporaneidade tem aportado é a pluralização dos modos de ser criança, a
heterogeneização da infância enquanto categoria social geracional e o investimento das crianças com novos papéis e
estatutos sociais (2003a).

Apesar de não ser o único fator apontado pelos pesquisadores como responsável por esta mudança na percepção e
vivência da infância, torna-se necessário destacar que seu impacto, ao mesmo tempo em que intensifica problemas sociais,
tornando mais agudos os processos excludentes, que atingem de maneira bastante intensa a vida de um grande número de
crianças no mundo inteiro, também age sobre o cotidiano das crianças que não vivem realidades sociais de exclusão.
Estender um olhar significativo para como se dá esse processo de reinstitucionalização é condição para
compreendermos a infância que se personifica na figura das crianças que povoam as ruas, as praças, os parques e com as
quais nos deparamos diariamente em nossas escolas: plurais em seus modos de ser e de viver, investidas de novos papéis e
estatutos sociais como resultado dos novos tempos que estão se configurando.
A escola, acostumada a trabalhar segundo uma visão de infância criada na Modernidade, vê-se desafiada frente à
infância do século XXI que passa a ocupar seus espaços. Esta se apresenta cada vez mais independente, quer verbalizar suas
idéias e opiniões e é constantemente interpelada pelos artefatos culturais contemporâneos e subjetivada por diferentes e
variados discursos.
Quando a criança vai para a escola, passa a ter acesso a uma cultura organizada em torno dos conhecimentos
construídos historicamente pela humanidade. Esta cultura escolar, possui regras, formas de organização de tempos e espaços,
conhecimentos e exigências diferentes daquelas que as crianças vivenciavam enquanto participavam apenas do seu grupo
familiar.
Jurjo Santomé (2003), ao discorrer sobre as propostas curriculares e os conteúdos desenvolvidos na maioria das
instituições escolares, destaca que as culturas consideradas hegemônicas estão presentes de maneira intensa nestas
instituições, enquanto que aquelas culturas consideradas minoritárias são desconsideradas. Entre as vozes não ouvidas se
incluem as culturas infantis e juvenis.
Ampliando a idéia de Santomé, podemos acrescentar que, se estas vozes têm recebido pouca atenção nos currículos
da escola básica, também por um grande período de tempo não perpassaram os estudos, discussões e análises realizadas nos
cursos de formação de professores. A própria concepção do que sejam culturas infantis e como elas se fazem presentes nos

212
contextos escolares, se constitui em uma discussão que se processa ainda de maneira tímida no interior das instituições
educativas.
Por culturas da infância, “entende-se a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de
significação do mundo e de acção intencional, que são distintos dos modos adultos de significação e acção” (SARMENTO,
2003b). Estes modos de significação e ação no mundo, que são especificamente infantis, não acontecem no vazio social, pelo
contrário, exprimem as realidades e o momento histórico em que as crianças vivem. Segundo Sarmento,
(...) as culturas da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e são alteradas pelo processo
histórico de recomposição das condições sociais em que vivem as crianças e que regem as possibilidades de
interacções das crianças, entre si e com os outros membros da sociedade. As culturas da infância transportam as marcas
dos tempos, exprimem a sociedade nas suas contradições, nos seus estratos e na sua complexidade (2003b).

Faz-se necessário insistir que o processo de reinstitucionalização da infância não retira das crianças seu status
social. Ao discorrer sobre uma mudança identitária da infância em função das transformações percebidas na
contemporaneidade, não se está a falar em perda da identidade infantil, ao contrário, se admite que a infância está vivendo
um processo de mudanças em relação à imagem construída sobre si na modernidade, mas se reafirma a percepção das
crianças como atores sociais, que necessitam ser ouvidos, atendidos em suas necessidades e garantidos em seus direitos.

3. A infância reinstitucionalizada presente na escola


Com o intuito de compreender como o processo de reinstitucionalização da infância contemporânea, assinalado
pelo sociólogo Manuel Jacinto Sarmento, e manifestado em especial pela pluralização dos modos de ser criança, é divisado
nos sujeitos infantis presentes na escola, bem como de que forma estes externam suas percepções de mundo através de
diferentes linguagens, desafiei-me a, na interlocução teórica com pesquisadores ligados, em especial, à área da Sociologia da
Infância, desenvolver uma investigação junto às crianças das turmas com as quais trabalhava. Minha intenção, enquanto
pesquisadora, não era de estabelecer certezas ou definir verdades sobre este grupo geracional a partir do observado e
registrado, mas oferecer uma entre as mais variadas possibilidades de leitura sobre ele.
A investigação foi balizada pelas seguintes questões: Como se caracteriza a infância contemporânea? De que forma
o processo de globalização atua sobre a infância e que lugar designa a ela? Em que se constitui o processo de
reinstitucionalização da infância e como essa infância reinstitucionalizada se faz presente na escola? Como a heterogeneidade
dos mundos culturais e sociais atravessa o espaço escolar e é expressa nas falas e produções escritas dessas crianças?
Ao delimitar a pesquisa, optei por realizar observações em turmas de alfabetização, com as quais trabalhava. A
opção por este grupo específico se deu de forma intencional e em função de um motivo muito específico: é neste grupo do
Ensino Fundamental que as crianças, que já vinham tendo experiências na Educação Infantil com a utilização de diferentes
linguagens para externar suas idéias, sentimentos, opiniões, como a fala, desenhos, pinturas, jogos dramáticos, jogos
simbólicos, passam a se apropriar da leitura e da escrita, as quais irão se constituir em importantes e significativas formas de
representação das percepções e visões de mundo dos sujeitos.
As observações e registros da pesquisa aqui relatada, iniciaram no segundo semestre de 2005, no contexto de uma
escola pública localizada em um dos bairros do município de Ijuí2, localizado no interior do Estado do Rio Grande do Sul,
região sul do Brasil, com um grupo de 20 crianças, integrantes de uma turma da 1ª série do Ensino Fundamental e
continuaram de forma mais intensa durante todo o ano de 2006, com uma nova turma também de 1ª série, com 21 crianças.
As crianças das duas turmas compreendiam idades entre seis e oito anos.
A pesquisa efetivou-se com um viés etnográfico, através de observação participante, privilegiando a escuta das
vozes infantis manifestadas em diferentes linguagens (brincadeiras, oralidade, desenhos, produções escritas) a partir de
intervenções de minha parte em conversas dirigidas com as crianças durante as atividades diárias realizadas na sala de aula,
de discussões sobre assuntos que surgiam no decorrer das aulas e que muitas vezes não diziam respeito ao que estava sendo
estudado, mas representavam angústias e dúvidas das crianças ou de observações nos momentos em que as crianças estavam
se relacionando com seus pares em diferentes atividades.
As falas das crianças, suas brincadeiras, desenhos, e muitas vezes até mesmo seu silêncio, nos revelam muito de
suas percepções em relação ao mundo que as cercam. Auxiliam-nos também a compreender como as crianças organizam seu
pensamento, como estabelecem suas relações sócio-culturais e como vão construindo suas visões de mundo a partir da forma
como se percebem inseridas neste. Todas as intervenções e observações foram registradas em um diário de campo. Utilizei
como instrumentos para recolhimento das impressões infantis gravações, fotografias e os próprios registros gráficos e escritos
das crianças.

2
O município de Ijuí localiza-se na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul e possui área territorial de 689,124 Km2. Têm suas potencialidades
expressas através de uma economia baseada no setor agropecuário, no comércio, indústrias e serviços. Abriga a Universidade Regional do Noroeste do Estado do
Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), instituição de ensino superior com campi nos municípios de Ijuí, Santa Rosa, Três Passos e Panambi, além dos núcleos
universitários de Santo Augusto, Tenente Portela e Campina das Missões. A área de atuação desta universidade compreende 60 municípios das regiões Noroeste
Colonial e Fronteira Noroeste do estado.

213
Busquei ouvir as crianças sobre como vivenciavam o seu dia-a-dia, quais eram seus medos, seus sonhos, interesses
e sobre como simbolizavam a escola, no sentido de melhor compreendê-las enquanto crianças que formavam um grupo de
colegas provenientes de diferentes realidades sociais e culturais, com diferentes vivências, experiências e subjetivações.
As crianças que participaram da pesquisa moram próximas à escola, no bairro onde ela se localiza ou nos bairros
vizinhos a este. Um destes bairros vizinhos congrega, em uma significativa parte de seu espaço, famílias bastante
desfavorecidas economicamente que organizaram suas moradias em um beco. Com o passar do tempo, o crescimento das
primeiras famílias e a chegada de outras a este espaço, transformou o que eram poucas casas reunidas na beira de uma rua
estreita em um considerável número de moradias, que ocupam boa parte do referido bairro, do qual provém um significativo
número de crianças que freqüentam a escola. Por residirem próximas à escola, os alunos das turmas pesquisadas não
necessitam utilizar transporte para se deslocarem até este espaço, mas muitas são acompanhadas diariamente por pais ou
irmãos mais velhos no percurso até ele.
Todas crianças participam de famílias operárias3, com diferentes realidades sociais e culturais e com cotidianos
organizados de diferentes formas. As profissões dos pais ou responsáveis, segundo entrevistas realizadas com os mesmos,
variavam: pintor de paredes, pedreiro, vigilante, caminhoneiro, comerciante, com um número maior de industriários,
comerciários e trabalhadores autônomos. Entre as mães, as profissões variavam entre industriária, professora, comerciárias,
comerciantes, com um número significativo de domésticas e donas de casa.
A maior tecnologia a que as famílias pesquisadas têm acesso é a televisão, seguida do rádio. O computador ainda é
um instrumento tecnológico presente e utilizado pelas crianças apenas na escola em atividades pedagógicas. Somente duas
famílias entre as que participaram da pesquisa possuem computador em casa. A grande maioria da turma, independente da
condição financeira da família, elege como principal veículo de informação e diversão presente em suas casas a TV,
assistindo diariamente a programação dos principais canais abertos.
A presença deste veículo de informação é constante junto às crianças nos períodos em que estão em casa, apesar de
destacarem que aliavam momentos de brincadeiras com momentos em que assistiam a TV. Apenas duas crianças: uma da
turma de 2005 e uma da turma de 2006, relataram que suas famílias restringem os horários para os filhos assistirem à
programação televisiva, insistindo para que brincassem mais. Os programas mais assistidos eram desenhos animados
transmitidos em programas infantis matinais e novelas. Uma verdadeira “febre” entre as crianças era uma novela considerada
um fenômeno televisivo intitulado “Rebeldes”4.
Esta situação é preocupante, quando pensamos na ausência do contato social, na passividade frente a este veículo
de informação e no controle corporal que horas de atenção à programação televisiva vão impingir à criança. Mais
preocupante é perceber que num universo em torno de quarenta famílias envolvidas na pesquisa, apenas duas (conforme
relato das crianças) se preocupam em controlar e reduzir horários e programas televisivos, enfatizando a necessidade das
crianças brincarem mais.
A realidade contemporânea do desemprego e do subemprego que atravessa o dia-a-dia de milhares de famílias
brasileiras também se faz presente entre várias famílias das crianças que estudam na escola pesquisada. As concepções do
que é um trabalho e da necessidade deste para garantir a própria sobrevivência e/ou da família recebem diferentes conotações
conforme a realidade social em que o sujeito está inserido. Esta situação ficou bem marcada nas falas das crianças envolvidas
com a pesquisa durante uma discussão realizada em aula5:
Após o feriado do dia 1º de maio, comemorado no Brasil como o Dia do Trabalhador, conversávamos em aula
sobre o trabalho e sua importância para a vida das pessoas. Questionei as crianças sobre o que elas entendiam por “trabalho”:
É para ganhar dinheiro.(M2)

É fazer faxina, construir,... (A5)

Tem que trabalhar para ganhar dinheiro e comprar coisas como leite, comida. (M4)

É, e roupas e calçados também. (A1)

“Os trabalhos são todos iguais?” questionei. Neste momento todos falavam ao mesmo tempo, relacionando diferentes
profissões.

“Todas as pessoas têm trabalho?”

3
Cabe ressaltar que a população de Ijuí, que hoje, segundo informações divulgadas no site oficial da Prefeitura do Município, conta com 76.739 habitantes
(dados de 2007), formou-se a partir de um caldeirão étnico, representado por alemães, austríacos, poloneses, italianos, afro-brasileiros, portugueses, árabes,
holandeses, entre outros. A imigração foi a grande marca do período de colonização do município, iniciada no século XIX. Ijuí teve grande impulso em seu
desenvolvimento a partir de 1899 quando foi incentivado o assentamento de colonos com conhecimento de agricultura vindos principalmente de colônias mais
antigas do Rio Grande do Sul. A diversificação étnica está culturalmente integrada às tradições e costumes da região e em função deste amálgama cultural, Ijuí é
conhecida como a “Terra das Culturas Diversificadas”. Assim, nas escolas e, de forma mais próxima, entre as famílias pesquisadas, encontramos descendentes
das diversas etnias que formaram a população do município.
4
Novela mexicana produzida pelo canal Televisa e escrita por Pedro Damián. Direcionada a princípio e em especial ao público adolescente, no Brasil foi
veiculada pelo canal de televisão brasileiro SBT durante o ano de 2006 e obteve sucesso instantâneo também entre o público infantil. Na esteira do sucesso da
novela, muitos produtos comerciais como roupas, alimentos, figurinhas, músicas,... ostentando a figura dos personagens entraram no mercado sendo largamente
consumidos pelas crianças.
5
As transcrições das falas da professora e das crianças seguirão a seguinte notação: a fala da professora será apresentada entre aspas. As falas das crianças serão
apresentadas em itálico. As crianças serão identificadas por letras e números diferenciados. As falas serão apresentadas da maneira como foram proferidas, sem
correção gramatical.

214
Ao ouvirem este questionamento algumas crianças disseram que sim, ao que foram veementemente contrariadas
por outras que diziam o contrário:
Nem todos têm trabalho, umas pessoas estão desempregadas e aí não tem dinheiro para comprar comida e roupas. (G)

Às vezes não fácil encontrar serviço. (C)

E às vezes têm que fazer greve, igual às professoras fizeram.

“Por que os trabalhadores necessitam fazer greve?” perguntei.

Para ganhar um salário melhor. (M4)

É, porque estão ganhando pouco e precisam ganhar mais para sustentar a família. (A4)

“E por que será que há trabalhadores que recebem um salário menor do que outros?” continuei a questionar.

Eu acho que quem ganha pouco é porque trabalha pouco. (M4)

Ao ouvir a afirmação de M4, C intervém e diz:


Eu acho que não, minha mãe não ganha bastante dinheiro no pagamento e ela trabalha de manhã até de noite. Eu
acho que quem ganha pouco é porque o patrão não pode pagar mais.
Outros colegas concordaram com C, lembrando das horas trabalhadas por seus pais diariamente e relacionando com
o salário que recebiam. Apesar de ainda não compreenderem completamente o valor do mesmo, sabiam que não representava
uma quantidade muito grande, pelos comentários que ouviam dos pais em casa. L1 encerrou esta parte da discussão:
Meu pai sempre diz que o salário é que é baixo (referindo-se ao salário mínimo nacional). (Diário de Campo,
02/05/2006)

Apesar de todas as mutações percebidas no mundo do trabalho no período atual da modernidade que vivenciamos,
ele ainda se mantém como uma dimensão estruturante da vida social, processando-se sobre novas configurações sociais,
notadamente presentes no dia-a-dia e nas falas das crianças, que demonstram diferentes percepções e compreensões sobre o
mesmo:
Continuando a discussão iniciada no dia anterior sobre a necessidade e importância do trabalho na vida dos sujeitos,
propus uma atividade em que as crianças, em grupos, deveriam recortar imagens de jornais que retratassem pessoas
trabalhando e com as quais comporíamos um mural. Durante a realização da atividade, efetivou-se uma discussão em um dos
grupos entre dois meninos. Um deles havia recortado a fotografia de um catador de papel empurrando um carrinho que estava
cheio do respectivo material coletado nas ruas da cidade durante o dia.
Isto não é trabalho! Dizia A4

É sim, insistia A5

Mas ele está juntando lixo, não está trabalhando, insistia A4.

Ouvindo a discussão, um colega que estava em outro grupo completou:


É trabalho sim, minha avó trabalha catando papelão e ela ganha dinheiro pra comprar comida e outras coisas pra nós.

Ao ouvir o argumento de M2, relatando sua experiência pessoal, A4 meio contrariado, desiste da discussão.
Contudo, A5, o menino que havia recortado a imagem, insiste em solicitar minha mediação:
Profe, isso é ou não é um trabalho?

Expliquei, então, que a atividade realizada pelos catadores de papel constituía-se em uma forma de trabalho, pois
garante o sustento destes e de suas famílias. Encerrando-se a discussão, A5 cola no mural a imagem que recortou
(Diário de Campo, 03/05/2006).

Entre as crianças envolvidas com a pesquisa, nenhuma vivencia situações familiares que as obriguem a se envolver
com o trabalho precoce, mas um dos meninos que, entre as diferentes situações familiares experienciadas pelas crianças que
compunham o grupo envolvido na pesquisa, participa de uma das realidades de maior carência econômica, manifesta
seguidamente o desejo de crescer logo para poder trabalhar. Ao ser questionado sobre o porquê deste desejo, ele afirma:
Eu quero trabalhar para poder ganhar dinheiro e ajudar a minha vó e também comprar coisas pra mim. (M2) (Diário de
campo, 26/10/2006).

Nesta mesma discussão, ao serem questionados sobre com quem ficavam quando os pais estavam trabalhando,
vários foram os casos em que os nomes das irmãs e irmãos mais velhos foram citados como a pessoa responsável por seu
cuidado. Muitas vezes elas próprias, em casos especiais, necessitam cuidar dos irmãos mais novos:
Recebi hoje um bilhete da avó de um dos meninos da turma, solicitando que o dispensasse da aula mais cedo
porque ela necessitava ir ao médico e não havia ninguém para cuidar da irmãzinha deste, que é uma criança com deficiência,
pois todos os outros integrantes da família estavam trabalhando neste horário. Frente a impossibilidade de levá-la junto à

215
consulta médica, M2 necessitaria incumbir-se da tarefa de cuidar da irmãzinha até o retorno da avó. Antes de dispensá-lo,
questionei-o sobre como ele ajudava a cuidar da irmã:
“Sua maninha é grande?”

Não, ela é do tamanho da V. (referindo-se à menor colega da turma)

“E você sempre ajuda a cuidar dela quando está em casa?”

Sim.

“E o que você faz?”

Eu cuido dela.

“Mas o que você faz para cuidar dela”, insisti. “Ajuda a comer, a caminhar?”

Sim, mas ela não fala como a gente. Quando ela diz “ica” é que ela quer ir ao banheiro.

“Ela tem dificuldade para falar?”

Sim, e pra caminhar também, tem que ajudar ela.

“E você cuida dela sempre?”

Eu ajudo a cuidar, mas é mais a vó que faz as coisas pra ela, eu ajudo mais nas coisas que eu posso fazer. Eu brinco
com ela (Diário de campo, 12/05/06).

Uma criança destacou que entre as brincadeiras matinais, desenvolvia atividades para auxiliar a mãe no trabalho
doméstico – arrumar a cama após levantar e a mesa para as refeições. Ao ouvir o relato da colega, as demais crianças também
disseram que realizavam pequenas atividades para auxiliar os pais na organização doméstica. Citaram em especial: limpar
seu calçado, lavar e/ou secar a louça, varrer a casa, recolher a roupa do varal depois de seca, arrumar a mesa para as
refeições, arrumar a sua cama, guardar os brinquedos.
Reporto-me aqui à reflexão de Sarmento, Bandeira e Dores (2002, p. 105), quando afirmam que nem todo o
trabalho infantil está ligado à exploração e nem tão somente são as crianças das classes sociais mais desfavorecidas que
trabalham. Segundo os autores, todas as crianças trabalham, ou seja, realizam uma atividade social. Os autores questionam o
fato de estas atividades sociais realizadas pelas crianças não serem consideradas como formas específicas de trabalho, pois
mesmo não tendo caráter exploratório, envolvem a atividade infantil.
As realidades familiares vivenciadas pelas crianças envolvidas com a pesquisa são diferenciadas. Assim como
algumas crianças conviviam em famílias nucleares, com os pais e irmãos, outras em função da separação, falecimento ou
novas uniões dos pais, vivenciavam organizações familiares diferenciadas, a maioria com estruturas monoparentais, morando
com a mãe e irmãos, com o pai e irmãos ou ainda com avós e/ou tios. Dentre estas, havia aquelas que mantinham contato
constante com o(s) progenitor(es) com quem não conviviam diariamente. Mas havia também aquelas em que o contato era
apenas esporádico, situação que algumas crianças encaravam de forma sofrida, outras naturalmente, e que atravessava o
espaço da sala de aula através das falas e atitudes das crianças. Três crianças moravam em uma instituição de acolhimento
próxima à escola. Por estarem vivenciando situação de risco junto aos seus familiares, foram judicialmente retiradas de suas
famílias e passaram a morar nesta instituição.
Enquanto estávamos envolvidos na confecção do presente que seria dado para as mães, muitas crianças contavam
seus planos de como fariam para presenteá-las:
Eu vou chegar em casa e vou esconder em um lugar que a minha mãe não vai achar, daí no domingo eu dou pra ela.
(M4)

Vou pedir pra minha vó mandar o presente que eu estou fazendo para a minha mãe pelo correio porque ela mora numa
cidade bem longe daqui. (A5)

Vou dar o presente pra minha vó e não pra minha mãe porque foi a vó que me criou.(M2)

Eu vou dar pra minha mãe, eu moro só com ela. O meu pai não mora com a gente, ele paga só pensão. (C) (Diário de
Campo, 10/05/2006)

No dia-a-dia das crianças muitos sonhos se fazem presentes. Quando questionadas sobre os mesmos, a grande
maioria se reporta ao futuro e à profissão que pretendem exercer, mas também muitos desejos relacionados à vida diária aí
aparecem:
Meu sonho é ser motorista como o meu pai.(A4)

Quero ser soldado do quartel porque eu gosto de ver eles quando eu passo lá.(M2)

Meu sonho é ser policial e prender os bandidos que fazem mal pras pessoas.(R)

O que eu queria é comprar uma casa.(M)

Eu queria ter um computador.(M4) (Diário de Campo 18/07/2006)

216
E em meio aos sonhos, também os medos surgem. Discutíamos um dia em aula sobre o que incutia medo em cada
um. Cada criança manifestou-se. Além dos tradicionais: medo de aranha, cobra, bruxa, injeção, o medo da violência também
apareceu de forma significativa. Sinal dos tempos contemporâneos, que a fala de M2 deixa bem claro: Tenho medo de sair
sozinho de noite, porque tem gente que rouba e machuca os outros. Minha vó me disse que antigamente não era tanto assim
(Diário de Campo, 17/08/2006).
Frente ao questionamento se os receios dos adultos eram os mesmos das crianças a resposta geral foi de que por
mais que os adultos também sentissem medo em inúmeras situações, seus receios eram outros, diferentes dos das crianças.
Pelo tamanho e idade destes serem maiores que os seus, parecia-lhes absurdo que os adultos tivessem medo de cobra ou
aranha, seus receios eram maiores, e se referiam a situações que não conseguiam controlar.
Além disso, por serem responsáveis pelo sustento das famílias, as crianças relacionaram os receios adultos com o
fato de serem impedidos de efetuar esta atividade. E foi aí que o tema da violência apareceu de maneira mais premente. Em
suas falas, as crianças registram questões sociais que suas famílias vivenciam/vivenciaram ou receiam vivenciar:
Os adultos têm medo de levar tiro. (G)

E de roubarem os filhos. (A1)

Já assaltaram o meu pai e levaram a carteira dele duas vezes. (G)

É, os adultos têm medo de roubo, já levaram o nosso carro. Mas depois encontraram. (M4)

Quando as pessoas saem de carro, elas têm medo de bater. (V)

Eles também têm medo quando uma pessoa vai morrer. (J)

Os adultos têm medo de acidente. (M3)

E também quando dá briga na família e os filhos têm que sair de casa. (V)

A percepção social das crianças sobre seu mundo, seu tempo e sua realidade, durante muito tempo foi algo
desconsiderado quando se tratava de infância. Suas falas eram tratadas com desatenção e não se acreditava que as crianças
pudessem ter uma visão crítica sobre situações que vivenciavam ou de que tomavam conhecimento. Este discurso é resultado
da percepção moderna que tratava a infância como ingênua, insegura, imatura, sem voz.
A defesa de uma nova percepção sobre a infância, a partir da compreensão das crianças como atores sociais, não
mais permite visões limitadas como esta. Enquanto ator social, a criança é sujeito da história e, portanto, porta-voz e leitor
crítico do que vivencia. Esta leitura é realizada dentro dos seus limites de compreensão e vai se modificando à medida que a
criança cresce.
Ao demonstrar uma preocupação muito grande com a falta de emprego, com o abandono de crianças e com a
violência, as crianças demonstram insegurança também com relação ao seu futuro. Trazendo a discussão para o âmbito da
nossa cidade, novamente a preocupação com a violência e em especial com a falta de emprego se fez presente, pois esta
questão está diretamente relacionada com a impossibilidade de sustento da família. Uma das crianças emitiu o seguinte
depoimento:
Tem umas pessoas que moram dentro do beco e são boas, mas elas arrumam um trabalho, depois os patrões vão lá
olhar onde elas moram e não dão mais o emprego, porque elas moram no beco.(M4) (Diário de Campo, 08/09/2006)

Apesar de não ser uma moradora do local citado em sua fala, M4 demonstra conhecer o que se processa com muitas
pessoas que ali residem, as quais lutam pela sobrevivência, inclusive famílias de colegas seus. Aos destacar as pessoas boas
que moram no beco, busca, através de sua linguagem infantil, desmistificar um discurso que provavelmente já ouviu bastante:
que este se constitui em um local onde residam apenas pessoas envolvidas com atividades ilícitas. Como desconsiderar esta
fala ou não compreendê-la como percepção social?

4. Infância e artefatos culturais contemporâneos: reinterpretações


A ação da mídia e do mercado de consumo são notórios e instigantes entre os sujeitos contemporâneos interpelando
e subjetivando-os, instituindo modos de ser, agir e estar no mundo. Entre as crianças esta ação não é diferente. Afinal, as
culturas de infância configuram-se em uma construção social e histórica, refletindo a sociedade em que se inserem e sendo
atravessadas pelas marcas do seu tempo. Na contemporaneidade, estas marcas são apresentadas exatamente pela mídia e pelo
mercado de consumo.
A socialização do consumidor, segundo Gunter e Furnham (1998) inicia bem cedo na vida dos sujeitos
contemporâneos e a mídia desempenha um importante papel na efetivação desta. Os agentes de socialização do consumo são,
a princípio, os pais, mais tarde os colegas e também as empresas, que utilizam a publicidade veiculada pela mídia para
seduzir os sujeitos a se tornarem consumidores em potencial de seus produtos.
Assistimos na contemporaneidade à constituição de um mercado global de produtos culturais para a infância, que
são acompanhados por um grande incremento comercial, o qual busca incentivar o consumo entre o grupo social infantil.
Mesmo participando de famílias operárias, algumas com condições econômicas bastante desfavorecidas, as crianças não

217
deixam de consumir. E o consumo se processa, em especial, através de compras efetuadas em lojas populares que
comercializam produtos similares aos “de marca” amplamente veiculados pela mídia, tornando aparentemente igual a
infância que habita diferentes espaços e participa de diferentes classes sociais. Estes artefatos culturais são trazidos para
dentro do espaço escolar pelas crianças e congregam desde material escolar e brinquedos, até músicas e formas de vestir e
falar.
Com a turma que participou da pesquisa, pude constatar isso já no primeiro dia de aula. A tarde iniciou cheia de
novidades, com todas as crianças querendo mostrar aos colegas seu material escolar e contar-lhes como ganharam seus
cadernos e mochilas. Pergunto às crianças quem acompanhou os pais na compra do material escolar. Cinco crianças
levantaram a mão. Cada um queria contar sobre seu material e como foram efetivadas as compras. Muitos descreveram que
pediram ou escolheram materiais com motivos que representassem personagens de desenhos da TV:
Eu escolhia os cadernos e colocava na cestinha. (G)

Eu fui junto, mas foi minha mãe quem escolheu. (B1)

Eu escolhi o caderno com a capa do Dragon Ball e a mochila dos Power Rangers porque eu tenho os “homenzinhos”
deles. (A5)

Eu queria o caderno com a capa da Polli, mas minha mãe achou feio, então ela comprou da Bela. (M3)

A minha mochila é da Pequena Sereia e fui eu quem escolhi. (M4)

Muitos relataram a dificuldade econômica em adquirir os produtos que desejavam:

Eu queria a mochila dos Power Rangers, mas minha mãe me deu outra porque aquela era muito cara. (A4)

Meu material foi minha mãe quem escolheu. (L2)

Eu queria uma mochila de rodinha, mas era muito cara, então minha tia comprou esta e me deu. (M3)

Os cadernos e mochilas (fig. 1 e 2) em sua maioria estampavam gravuras de personagens de desenhos animados,
filmes ou literaturas: Dragon Ball, Power Ranger, A Bela e Fera, Barbie, Superman, Homem Aranha, Hello Kitty, Ursinho
Puff. Mesmo aquelas crianças que não foram junto com seus pais efetuar a compra do material escolar ostentam estes
personagens nas capas dos cadernos e mochilas, o que leva a concluir que os pais atenderam aos pedidos insistentes dos
filhos.

Fig. 1. Fig. 2.

Os objetos de consumo possuem uma textualidade. Esta textualidade veicula representações, na maioria das vezes
sutis, sobre formas de ser e estar no mundo e concorre para a formação de identidades e subjetividades. Cantar e dançar de
determinada forma, possuir determinado brinquedo, usufruir determinado bem, imitar o personagem do programa favorito
significa possuir uma certa identidade, “estar dentro”, “tornar-se um igual”, participar de uma linguagem, ocupar um lócus
social. Para que isso se efetive, consumir é fundamental e a mídia organiza-se para promover este consumo.
A música é um dos produtos da indústria cultural que encontra grande receptividade entre o público infantil. Um
episódio ocorrido na escola ilustra muito bem esta questão: A grande predileção pelo grupo musical mexicano RBD era
notório entre as crianças da escola. Elas dançavam, cantavam, reproduziam maneiras de falar, usavam roupas e acessórios
semelhantes aos que os personagens portavam na novela homônima. Ao final do ano, quando iniciaram as preparações do
Festival de Dança, evento tradicional de encerramento do ano na escola, uma das professoras responsáveis pela Oficina de
Dança relatou estar sendo muito difícil propor outras possibilidades musicais para coreografar com as meninas e demovê-las
da idéia de dançar apenas músicas do grupo RBD. Todas queriam representar as Rebeldes.
Em uma primeira e rápida análise das crianças que vemos nos diferentes espaços, nos parece que estamos diante de
uma infância homogênea, que compartilha os mesmos gostos, os mesmos desejos, que brinca com os mesmos brinquedos,
assiste aos mesmos programas infantis, se espelha nos mesmos ídolos, usa roupas parecidas.
Contudo, se nos propomos a perceber as crianças como atores sociais, não podemos restringi-las a atitudes
resignadas e apáticas frente às situações que vivenciam. Nesta perspectiva, uma nova visão sobre a constituição da infância

218
contemporânea se estabelece, percebendo-se que, ao mesmo tempo em que a criança se apropria dos bens culturais que lhe
são apresentados, não o faz de forma passiva, reinterpretando-os em seu dia a dia, cruzando culturas globalizadas com
culturas locais e de pares.
Corsaro aponta para a ação das crianças na construção de suas culturas a partir das informações que recebem do
mundo adulto, a qual denominou de “reprodução interpretativa”:
Na minha perspectiva de reprodução interpretativa (a qual eu propus como uma alternativa ao termo socialização,
Corsaro, 1997) tentei fazer uma ponte entre o fosso micro-macro, salientando a agência das crianças na sua produção e
participação nas próprias e únicas culturas de pares. Estas culturas de pares resultam da apropriação criativa que as
crianças efectuam da informação do mundo adulto para endereçarem aos seus próprios interesses enquanto grupo de
pares. Por outro lado, de acordo com a noção de reprodução, eu argumento que as crianças não apenas internalizam a
sociedade e a cultura, mas estão também a contribuir activamente para a reprodução e mudança cultural. Esta ênfase na
reprodução também implica que as crianças, são, pela sua participação efectiva na sociedade, constrangidas pela
estrutura social existente e pela reprodução cultural (CORSARO, 2003).

Se os produtos da indústria cultural direcionada ao público infantil ganham a simpatia das crianças pelo valor
simbólico que estabelecem com elas, sua utilização por estes sujeitos é diferenciada. Sarmento ressalta que:
Uma das conclusões mais insistentemente afirmadas na análise da recepção dos produtos da indústria cultural pelas
crianças, nomeadamente no que respeita aos programas televisivos, é de que, contrariamente ao que é correntemente
veiculado pelo senso-comum, as crianças não são receptoras passivas, acríticas e reprodutivas desses produtos, mas,
pelo contrário, ainda que se estabeleça uma relação empática, essa recepção é criativa, interpretativa e frequentemente
crítica das respectivas mensagens (Buckingham, 1994 e 2000 e Pinto, 2000). (SARMENTO, 2003b).

Assim, o pesquisador sustenta que para se compreender com mais propriedade as culturas da infância, não basta
analisar unicamente os produtos culturais produzidos especialmente para estes sujeitos, mas, de forma mais profunda, cruzar
a análise do que é produzido para o público infantil e a recepção desses produtos por parte deste público com as formas
culturais produzidas pelas próprias crianças nas suas interações entre si, com os adultos e a natureza. Ou seja, se faz
necessário analisar o que é produzido para as crianças, como elas recebem esses produtos e o que fazem com eles em seus
momentos de fruição e criação.
As falas de duas crianças, recolhidas em meio a uma situação lúdica, quando as mesmas foram questionadas sobre
quais os brinquedos que, dentre os que possuíam, mais gostavam de brincar, podem constituir-se em exemplos para esta
afirmação:
“Eu tenho várias bonecas, uma delas é a Barbie. Eu chamo ela de Talía. Eu brinco que ela é mamãe e trabalha lavando
e limpando a casa e ela diz: Filhas, vão tomar banho para ir pra escola!” (M.)

“Eu tenho uma Barbie, eu chamo ela de Queli. Eu faço casinha para ela com uma caixa, faço cama e travesseiro. As
bonecas das minhas amigas são as irmãs dela. A gente brinca que elas trabalham em uma padaria e são confeiteiras.
Elas faltaram o serviço um dia e perderam o emprego. Daí precisaram procurar outro.” (C.)

Um brinquedo, neste caso específico a boneca Barbie6, apresentado mundialmente a partir de uma determinada
visão pela publicidade, e definida por Shirley Steinberg como “a mimada que tem tudo” (2001, p. 328), pois ostenta, a partir
de seus produtores, uma imagem atemporal e de uma personagem com possibilidades econômicas invejáveis, em meio à
brincadeira infantil assume características locais, através das experiências vivenciadas e transportadas para as situações
lúdicas pelas crianças que a manipulam.
A boneca, ícone entre os brinquedos infantis dirigidos especialmente às meninas, em sua versão original, “nunca foi
uma cozinheira, mas já foi chef; nunca foi operária, mas já foi desenhista de moda; ela foi solista, uma estrela de rock e a
mitológica fada dos dentes” (STEINBERG, 2001, p. 328). Contudo, apesar do esforço publicitário em apresentar o referido
produto cultural a partir de uma idéia de glamour, na expectativa da manutenção e ampliação do consumo do mesmo, o
imaginário infantil o transporta para diversas e diferentes situações, muitas delas, presentes no dia-a-dia das crianças que com
ela brincam.
A personagem, personificada na boneca, assume diferentes feições, recebe outro nome, torna-se uma trabalhadora
que necessita lutar pela sua sobrevivência e da família, passa a preocupar-se com um possível desemprego, cuida dos filhos e
da casa. Uma imagem muito diferente daquela que a empresa que produz o brinquedo apresenta e que, pela propaganda que
veicula em todo o mundo, esforça-se para que ocupe o imaginário social. O produto cultural apresentado a nível global
recebe diferentes interpretações no âmbito local segundo experiências, práticas e vivências específicas do grupo social e
cultural em que a criança está inserida.
Outras situações podem referendar o que buscamos destacar: que as crianças reinterpretam numa base local os
produtos apresentados a nível global. A partir da literatura “O Gato de Botas”, trabalhada em sala de aula, surgiu a discussão

6
Boneca criada pela empresa americana Mattel na década de 1960, que encarna um modelo adolescente de mulher loura, alta, magra, com diferentes trajes e
artefatos, que se tornou um ícone entre os brinquedos produzidos em escala mundial. Diante do sucesso que alcançou, a boneca já recebeu diversas
representações temáticas, bem como se transformou em personagem de histórias em quadrinhos, livros e filmes infantis. Cabe destacar que muitas versões da
boneca surgiram, embaladas pelo sucesso comercial da primeira, sendo produzidas por outras empresas e vendidas a preços menores do que o da boneca original,
no comércio popular. As Barbies a que se referem as meninas cujas falas estão aqui apresentadas, fazem parte destas versões.

219
de como seria interessante se pudéssemos nos transformar em outras coisas: animais, plantas, artistas, objetos, personagens.
Solicitei que as crianças representassem através de desenho em qual personagem se transformariam, e depois justificassem o
motivo da escolha.

(Fig. 3)
Eu queria ser uma artista famosa como as Rebeldes. Ser famoso é bom para ganhar dinheiro e alegrar as
pessoas.(L1)
Ao ser questionada sobre o porquê da escolha, L1 voltou a afirmar que gostaria de ser famosa. Quando lhe
perguntei onde ela iria querer se apresentar, prontamente respondeu que seria no palco do auditório da escola. Conjeturei que,
sendo famosa, deveria se apresentar em outros lugares. A menina, no entanto seguia firme na idéia de se apresentar somente
no palco da escola. Novamente questionada sobre o porquê desta insistência, relatou-me que ali sua família poderia assistí-la
e em outros lugares o deslocamento seria difícil.

(Fig 4)
Eu acho o meu pai igual ao Batman porque ele trabalha muito o dia e a noite. Por isso eu acho meu pai igual ao
Batman. (A6)

Este menino, em diversas ocasiões durante as aulas externou sua grande admiração e preferência, dentre o universo
de super-heróis dos quadrinhos, pelo Batman, ao mesmo tempo em que solicitava continuamente aos pais a compra de
roupas, brinquedos e material escolar que estampassem a figura do personagem. Na realização da atividade proposta, não
pensou duas vezes em escolher para representar através de desenho o referido personagem, mas não relacionou a figura do
mesmo a si próprio e sim com o pai. Ao escrever que acha seu pai parecido com o personagem, o fez relatando que o pai
trabalha muito durante o dia e às vezes também durante a noite. Este fato o tornava, aos olhos do menino, tão corajoso quanto
o herói dos quadrinhos.

220
Todas as crianças, apesar de escolherem personagens ou ícones contemporâneos com quem gostariam de parecer,
ao explanar o motivo de sua escolha, relacionaram com o seu dia-a-dia, ou seja, reinterpretaram no local um produto global.
Como afirma Marisa Vorraber Costa (2004), ao assinalar que apesar de todos os discursos contemporâneos
buscarem a homogeneização do ser humano a partir da lógica do mercado e do consumo, há possibilidades de resistência:
(...) embora estejamos inseridos em redes discursivas que nos antecedem e ultrapassam, as tramas sempre têm lugares
de escape. Pelas frestas, desvãos, buracos, as subjetividades deslizam, fluem, e podem tornar-se diversas. Nem todas as
pessoas sujeitas aos mesmos discursos são subjetivadas da mesma forma. Embora a tendência seja favorável à
homologia, não há um determinismo total e inescapável. Reportando-me aos estudos de Elizabeth Ellsworth (2001),
arrisco-me a dizer que o modo de endereçamento (de um filme, de uma propaganda, uma novela, uma música)
freqüentemente erra seu alvo, além de que não existe um único e unificado modo de endereçamento.

A escuta das vozes infantis permitiu-me confirmar e corroborar as análises dos pesquisadores da infância, quando
destacam que a reinterpretação dos artefatos da indústria cultural direcionada ao público infantil configura-se em uma forma
de resistência das crianças à sua homogeneização. Uma forma de externar que o sujeito infantil não se constitui em alguém
acrítico (como por muito tempo o fizeram parecer), mas que recebe de maneira criativa as mensagens veiculadas pela
indústria cultural, reinterpretando-as e recriando-as no seu dia-a-dia, a partir da realidade que vivencia.
As crianças estão resistindo bravamente à sua massificação, e o fazem através da cultura infantil.

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221
Educação Infantil de meninas e meninos Brasileiros

Daniela Finco
(Doutoranda Faculdade de Educação da USP, integrante do Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura
Sexual – EDGES e atualmente realiza um estágio de doutoramento no Instituto de Estudos da criança da Universidade do
Minho)
dfinco@usp.br

Resumo: A Constituição Federal Brasileira (1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) garantem às crianças
brasileiras de 0 a 6 anos o direito de serem educadas fora de casa em creches e pré-escolas. As relações das crianças na educação infantil
apresentam-se como importante forma de introdução de meninos e meninas na vida social, quando passam a conhecer e aprender seus
sistemas de regras e valores, interagindo e participando nas construções sociais. Este trabalho, resultado de pesquisa de doutorado, discute as
interações sociais que as crianças estabelecem com os adultos e a re-significação das suas experiências sociais de gênero no ambiente da
educação infantil. Os procedimentos metodológicos baseiam-se numa pesquisa etnográfica no ambiente coletivo de esfera pública de uma
pré-escola e em entrevistas com as professoras. Ao utilizar gênero como categoria de análise aborda questões relativas às práticas educativas,
faz relação com o que as crianças constroem entre elas, reproduzindo ou transgredindo as regras impostas pelo adulto. A reflexão tem como
base o conceito de criança discutido pela sociologia da infância, que destaca a capacidade das crianças estabelecerem relações sociais
múltiplas e diversas, no confronto e na construção de diferentes experiências entre os atores sociais presentes no contexto educativo. O
estudo é relevante principalmente se considerarmos a situação atual de construção e formulação de políticas públicas voltadas à superação
das desigualdades de gênero, que pretende garantir condições igualitárias de qualidade para o sistema de educação e para a formação
docente.
Palavras-chave: Educação Infantil, Relações de Gênero, Pedagogia da Infância.

Introdução
Este artigo, que apresenta resultados de minha pesquisa de doutorado em andamento, tem como base o conceito de
gênero para analisar as interações adulto-criança e criança-criança no espaço coletivo e público da pré-escola. Parte da
perspectiva sócio-cultural, que permite centrar o olhar nas formas de controle dos corpos infantis, processo este social e
culturalmente determinado, permeado por um controle sutil, muitas vezes por nós desapercebido. Busca investigar como as
práticas educativas constroem e reforçam as diferenças determinadas pelo seu sexo.
O estudo de caráter etnográfico enfocou as relações de gênero entre meninos e meninas de 4 a 6 anos, e entre
adultos e crianças de uma Escola da Rede Municipal de Educação Infantil Paulistana. A pesquisa de caráter etnográfico
utilizou como procedimentos metodológicos registros em cadernos de campo, registros fotográficos e entrevistas semi-
estruturadas com a equipe de professoras.
Atrelar gênero e infância pode oferecer pistas para uma outra formação docente que problematize a origem das
desigualdades. Percebeu-se que é necessário discutir as teorias de gênero enquanto fundantes da análise das relações entre
crianças e entre adultos e crianças e para a construção de práticas educativas atentas às diferenças e que combata a
desigualdade.
A utilização do gênero como categoria de análise implica em conhecer, saber mais sobre as diferenças sexuais.
Compreender como são produzidas pelas culturas e sociedades nas relações entre homens e mulheres. Portanto, como nos diz
Scott (1995), gênero pode ser entendido como a “organização social da diferença sexual”. Gênero, segundo Scott, é um
elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, que fornece um meio de
decodificar o significado e de compreender as complexas conexões entre as várias formas de interação humana. É a
construção social que uma dada cultura estabelece ou elege em relação a homens e mulheres, meninos e meninas.
Optar por tal conceito constituiu-se em um desafio que aceitei por acreditar em uma educação que respeite a criança
na construção de sua identidade e que favoreça, desde as primeiras relações, a constituição de pessoas sem práticas sexistas.
Gênero, desse modo é um conceito relevante, útil e apropriado para as questões sobre a educação da infância.
A discussão das questões de gênero na educação infantil se traduz na possibilidade de uma educação mais
igualitária, que respeite a criança na construção de sua identidade e que favoreça, desde as primeiras relações, a constituição
de pessoas sem práticas sexistas. Demandam a incorporação de práticas educativas que introduzam conscientemente, como
estratégia de socialização a meta de igualdade de gênero.
Pois, de acordo com Faria e Nobre (2003) o sexismo afeta o crescimento de meninos e meninas, inibindo muitas
manifestações na infância e impedindo que se tornem seres completos. A forma como meninos e meninas estão sendo
educados pode contribuir para se tornarem mais completos e ou para limitar suas iniciativas e suas aspirações.
A discussão das questões de gênero na infância também traz elementos para subsidiar cursos de formação de
professores/as da Educação Infantil, para iniciar um processo de sensibilização para as questões de gênero na infância e para
iniciar uma intencionalidade pedagógica relativa a diversidade cultural, entre elas a de gênero, nas práticas educativas da
Educação Infantil.
Pesquisas apontam que a escola ainda naturaliza as diferenças entre meninos e meninas, denunciam que a visão
predominante do que é ser menino e menina em nossa sociedade se reflete, muitas vezes, na função social assumida pela

222
escola e nas relações escolares. Ainda nos dias de hoje, na educação de meninos e meninas, os gestos, movimentos, sentidos
são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninas e meninos, tornando-se parte de seus corpos, constituindo suas
identidade. A escola imprime marcas distintivas sobre os sujeitos, através de múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-
se e distinguem-se os corpos e as mentes.
Desse modo, este trabalho analisa como as características aparentemente naturalizadas e direcionadas à
masculinidade, considerada dominante em nossa sociedade e à feminilidade, tradicionalmente atribuída às mulheres, são
resultantes de muitos esforços para deixar marcas distintas nos corpos, comportamentos e habilidades de meninas e meninos.
Vago (2002), Soares (2002) e Zarakin (2002) apontam que o corpo é um lugar de inscrição da cultura, é objeto e
vítima da civilização. “O corpo revela toda a imposição de limites sociais e psicológicos que dados à sua conduta,
permitindo, assim compreender a dinâmica de elaboração de códigos, técnicas, pedagogias, arquiteturas e instrumentos
desenvolvidos para submetê-lo a normas” (Soares e Zarakin, 2004, p.25).
Ao analisar as interações entre adultos e crianças tornou-se indispensável pensar sobre práticas, habilidades e
configurações corporais infantis, assim como sobre os modelos cognitivos nelas referenciados, como configurações de
gênero, processadas, reconhecidas e valorizadas na e pela cultura na qual se inserem. Foram investigados como esses
mecanismos sociais estão, de alguma forma, presentes na educação de meninas e meninos, como são inscritos em seus
corpos, como normatizam, disciplinam, regulam e controlam seus comportamentos, posturas, verdades e saberes.

Gênero e educação infantil


A Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional de 1996 garantem às crianças
de 0 a 6 anos o direito de serem educadas fora de casa em creches e pré-escolas Vianna, Unbehaum, 2006). A educação
infantil (creche e pré-escola), como primeira etapa da Educação Básica, marca o início da experiência discente, quando as
crianças terão oportunidade de conviver em um grupo social mais amplo, em uma instituição com características diferentes
das do meio familiar. É palco de inscrições intelectuais, sociais e psicológicas. No convívio com os outros – educadores e
colegas – o corpo ganha destaque: os gestos, os movimentos e as posturas são alinhavados socialmente; ganham determinado
lugar e uma imagem, segundo padrões de conduta e valores culturais em que cada criança se insere.
Na educação infantil as crianças podem passar a maior parte do tempo em contato com outras crianças É
nesta relação singular que o protagonismo da criança ganha destaque e que a potencialidade do convívio em suas diversas
formas de relações pode propiciar uma nova interação. Trata-se de um universo com características próprias, voltadas para
crianças pequenas. Uma formatação com espaços, tempos, organizações e práticas construídos no seio das intensas relações
entre crianças e entre crianças e adultos. Segundo Ana Lúcia Goulart de Faria (2006: 87)
(...) neste espaço da sociedade vivemos as mais distintas relações de poder: gênero, classe, idade, étnicas. Desse modo
é necessário estudar as relações no contexto educativo da creche e pré-escolas onde confrontam-se adultos – entre eles,
professor/a, diretora, cozinheira, guarda, pai, mãe, secretário/a de educação, prefeito/a, vereador/a, etc. –; confrontam-
se crianças, entre elas: menino, menina, mais velha, mais nova, negra, branca, judia, com necessidades especiais,
pobre, rica, de classe média, católica, umbandista, atéia, “café com leite”, “quatro olhos”, etc; e confrontam-se adultos
e crianças – a professora e as meninas, a professora e os meninos, o professor (percentual bastante baixo, mas existente
e com tendência a lento crescimento) e os meninos, o professor e as meninas, o professor e a mãe da menina.

O direito a uma educação infantil de qualidade, inclui a discussão das questões de gênero. As relações das crianças
na educação infantil apresentam-se como uma das formas de introdução de meninos e meninas na vida social, daquelas mais
ricas considerando que, no caso das instituições públicas e conveniadas, estarão em contato com crianças oriundas de classes
sociais, religiões, etnias, valores, comportamentos diversos interagindo e participando nas construções sociais.
A educação infantil não só cuida do corpo da criança, como o educa: ele é o primeiro lugar marcado pelo adulto,
em que se impõem á sua conduta os limites sociais e psicológicos. É o emblema no qual a cultura inscreve seus signos. Nosso
corpo, nossos gestos e as imagens corporais que sustentamos são frutos de nossa cultura, das marcas e dos valores sociais por
ela apreciados. O corpo – seus movimentos, posturas, ritmos, expressões e linguagens – é, portanto, uma construção social
que se dá nas relações entre as crianças e entre estas e os adultos, de acordo com cada sociedade e cultura. Ele é produzido,
moldado, modificado, adestrado e adornado segundo parâmetros culturais.
Torna-se, assim, indispensável pensar sobre práticas, habilidades e configurações corporais infantis, e também
sobre os modelos cognitivos nelas referenciados, como relações sociais de gênero, processadas, reconhecidas e valorizadas na
e pela cultura na qual se inserem. É importante perguntar como esses mecanismos se fazem presentes na educação de
meninas e meninos; de que maneiras são inscritos em seus corpos, como normatizam, disciplinam, regulam e controlam seus
comportamentos, posturas, verdades e saberes.
Homens e mulheres adultos educam crianças definindo em seus corpos diferenças de gênero. As características
físicas e os comportamentos esperados para meninos e meninas são reforçados, às vezes inconscientemente, nos pequenos
gestos e práticas do dia-a-dia na educação infantil (Finco, 2003). Por exemplo, a forma como a família ou a professora
conversa com a menina, elogiando sua meiguice, ou como justifica a atividade sem capricho do menino. O fato de pedir para
uma menina a tarefa de ajudar na limpeza e ao menino para carregar algo já demonstra como as expectativas são
diferenciadas para cada sexo. O que é valorizado para a menina não é, muitas vezes, apreciado para o menino, e vice-versa.

223
A experiência de meninas e meninos na educação infantil pode ser considerada como um rito de passagem
contemporâneo que antecipa a escolarização, por meio da qual se produzem habilidades. O minucioso processo de
feminilização e masculinização dos corpos, presente no controle dos sentimentos, no movimento corporal, no
desenvolvimento das habilidades e dos modelos cognitivos de meninos e meninas está relacionado à força das expectativas
que nossa sociedade e nossa cultura carregam. Esse processo se reflete nos tipos de brinquedos que lhes são permitidos e
disponibilizados: para que as crianças “aprendam”, de uma maneira muito prazerosa e mascarada, a se comportar como
“verdadeiros” meninos e meninas.
Meninos e meninas desenvolvem seus comportamentos e potencialidades a fim de corresponder às expectativas de
um modo singular e unívoco de masculinidade e de feminilidade em nossa sociedade. Muitas vezes instituições como a
família, creches e pré-escolas orientam e reforçam habilidades específicas para cada sexo, transmitindo expectativas quanto
ao tipo de desempenho intelectual considerado “mais adequado”, manipulando recompensas e sanções sempre que tais
expectativas são ou não satisfeitas. Meninas e meninos são educados de modo muito diferente, sejam irmãos de uma mesma
família, sejam alunos sentados na mesma sala lendo os mesmos livros ou ouvindo a mesma professorasociais. A diferença
está nas formas aparentemente invisíveis com que familiares, professoras e professores interagem com as crianças.
As distinções podem ser percebidas, mas não são fixadas na característica biológica apresentada ao nascer. Os
significados de gênero – habilidades, identidades e modos de ser – vão sendo socialmente configurados, impressos no corpo
de meninos e meninas de acordo com as expectativas de uma determinada sociedade. Se, por um lado, é possível observar o
controle da agressividade na menina, o menino sofre processo semelhante, mas em outra direção: nele são bloqueadas
expressões de sentimentos como ternura, sensibilidade e carinho. Os brinquedos oferecidos às crianças também estão
carregados de expectativas, simbologias e intenções. As expectativas em relação à diferença de comportamento que se deseja
para o menino e para a menina, justificadas pelas diferenças biológicas, acabam proporcionando distintas vivências corporais
e determinando os corpos infantis: meninos e meninas têm no corpo a manifestação de suas experiências. Egle Becchi (2003)
nos fala de uma “linguagem dos gestos”: gestos ligados ao dia-a-dia, gestos do ato de brincar, gestos do corpo pelos
movimentos corpóreos de aproximação, contato e exploração. Para a autora italiana, muito ainda deve ser estudado sobre
linguagem gestual, uma “didática dos gestos”, que penetra e caracteriza a pedagogia: o uso do corpo acariciado ou punido, as
estratégias de voz: o tom, o canto, o grito.
Contudo, pouco se questiona do caráter desse processo, e afirma-se que se trata de fato natural ligado ao sexo
biológico. As transgressões que se apresentam, por mais numerosas que sejam, são consideradas exceções, e assim o
preconceito não chega sequer a ser arranhado.
Deste modo, trago para reflexão algumas observações da pesquisa realizada em uma pré-escola municipal de
educação infantil (EMEI) da cidade de São Paulo - Brasil. Elas nos mostram as complexas interações entre professoras da
educação infantil e crianças que transgridem as fronteiras de gênero e nos ajudam a pensar nas relações de poder envolvidas
neste contexto educativo de vida.

Comportamento e habilidades entre meninos e meninas: uma questão de gênero e poder


Ao discutir os relatos de professoras e observar suas ações frente às meninas e aos meninos, este artigo trata das
relações de gênero e poder presentes nos processos de socialização de crianças pequenas e analisa as estratégias voltadas para
a normalização e o controle das expressões corporais de meninas e meninos. Ao buscar compreender como ocorria a
educação de meninos e meninas que transgrediam as fronteiras do que eram lhes imposto verifiquei como as características
aparentemente naturalizadas e direcionadas à masculinidade e à feminilidade são resultantes de muitos esforços para deixar
marcas distintas no corpo, no comportamento e nas habilidades dessas crianças.
Desse modo, esta reflexão aborda como as formas de controle disciplinar de meninas e meninos estão
intrinsecamente relacionadas ao controle do corpo, à demarcação das fronteiras entre feminino e masculino e ao reforço de
características físicas e comportamentos tradicionalmente esperados para cada sexo nos pequenos gestos e nas práticas
rotineiras da educação infantil.
As interações observadas trazem consigo complexas relações de poder e evidentes tentativas de controle. As
professoras da pré-escola em foco muitas vezes orientam e reforçam diferentes habilidades nos meninos e nas meninas, de
forma sutil, transmitindo expectativas quanto ao tipo de desempenho intelectual mais adequado para cada sexo, manipulando
sanções e recompensas sempre que tais expectativas sejam ou não satisfeitas. É também considerado comum que meninas e
meninos desenvolvam seus comportamentos e potencialidades no sentido de corresponder às expectativas quanto às
características mais desejáveis para o masculino e para o feminino. Este aspecto aparece nos relatos das professoras
entrevistadas:
Normalmente as meninas são mais tranqüilas que os meninos. As meninas falam muito e os meninos são mais
agitados assim com o corpo. As classes com mais meninos são mais agitadas. As meninas, eu costumo chamá-las de
princesas, né então é uma relação mais meiga, mais doce mesmo. E os meninos são os meus rapazes,… os meus rapazes são
mais ativos, gostam de correr de pular, não param quietos no lugar.
As meninas são mais meiguinhas, são mais dóceis, mais caprichosas, mais atenciosas. Os meninos gostam mais de
brincar, são mais descuidados, mais agitados, tem uma diferença muito grande. Entendeu, mas eu não vejo essa diferença

224
para mim, você está entendendo? Quando eu olho a classe, eu olho a classe como um todo, né, não separo meninos de
meninas.
Eu não tenho um aluno que tem o capricho de muitas meninas, a maioria dos meus meninos fazem as coisa de
qualquer jeito, não tem cuidado, não é caprichoso, deixam as coisas jogadas, não tenho coisa de menina que deixa o estojo
jogado no chão.
Os meninos não têm muita paciência para se apegar nos detalhes das atividades, eles querem acabar logo para
poder brincar, para ficar livre. As meninas já são mais cuidadosas, se preocupam com detalhes. Elas se preocupam com o que
eu vou achar do trabalho delas, os meninos não estão nem ai.
Nas cores eles se prendem, o azul e o cor de rosa, a gente mesmo adulto acaba impondo isso, se você ver as portas
dos banheiros é azul dos meninos e rosa das meninas.
Este conjunto de expectativas e práticas faz com que a criança pequena que transgrida as fronteiras de gênero, seja
acompanhada e investigada profundamente de forma individual, tornando-se um “caso”. Cria-se um sistema comparativo que
estabelece informações que comporão as bases para o estabelecimento das normas. Esse sistema além de classificar os
indivíduos estabelece sua relação com o coletivo. Com isso, cada criança que transgride é abordada na forma de um caso, um
problema que é construído tanto do ponto de vista da produtividade tanto do poder, quanto do saber:
O caso é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria
individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado,
excluído, etc.(Foucault, 1977, p. 170).

Assim, escolhi dois relatos sobre dois casos de transgressões das fronteiras de gênero e suas percepções sobre cada
um deles. O “caso do menino que se veste de noiva” e o “caso da menina que usa tênis de dinossauro” são exemplos de vozes
que ainda não se emudeceram, mesmo no interior de um sistema que procura normatizar as identidades de gênero das
crianças.

O MENINO QUE SE VESTIA DE NOIVA


Tenho um caso de um menino que quer vestir vestido de noiva. A primeira vez ele chegou para mim e disse ‘coloca
em mim este vestido de noiva?’ Eu falei ‘nossa, esse vestido de noiva?’ Ele me disse, é, é!’ Então eu coloquei, deixei, não
falei nada, né. Ele ficou rodando para lá e para cá com aquele vestido todo rodado, ficou um tempão com o vestido, gostando
muito. Ai já numa segunda vez eu falei ‘pega uma outra fantasia, você pega sempre a mesma, tem outras tão bonitas!’ ele
insistiu, queria por e eu coloquei o vestido nele na segunda vez. Mas na terceira vez, eu vou juro que não pus..., falei, ‘ah vai
lá pega outra fantasia, essa não!’, e ele foi lá e voltou com uma fantasia de rumbeira, aquelas coisas cheias de babados, ah
meu deus! Eu ainda tentei dizer ‘mas isso não te serve’ sabe tentei fazer com que ele esquecesse da fantasia, mas não
adiantou. É muito difícil ele ir lá e pegar uma coisa que seja de menino, ele se atrai pelas fantasias de menina. Quando chega
à brinquedoteca ele vai logo para as fantasias. Chegou um dia, que ele vestiu o vestido e me disse que ia se casar com o
Pedro, para mim foi o basta. Quer dizer que ele tinha a idéia que ali de noiva ele ia se casar como Pedro, ele poderia falar que
iria se casar com a Julia, sei lá ai ainda tudo bem né. Mas não né, ele dizia que ia se casar com o Pedro, ele era a noiva
mesmo no caso. As outras crianças não deram muita atenção para ele com o vestido, não ligaram... Uma menina um dia
passou e disse ‘ih tia, olha!” ela riu, mas já foi andando e foi brincar com outra coisa. E para ele também não tem problema
nenhum; ele riu também, para ela está tudo bem. Agora é difícil dele pegar o vestido, as vezes dá uma luz nele e ele pega o
vestido, mas não é uma coisa constante, todo dia. (Entrevista 5: Professora Sara)

A MENINA QUE USAVA O TENIS DO DINOSSAURO


A mesma menina que gosta de jogar futebol, usa tênis com cores diferenciadas. Se é uma menina nos moldes
normais não vai comprar um tênis bem masculino, vai comprar um tênis da Barbie, da Hello kit. Não vai querer um tênis
verde musgo com uma boca cheia de dentes na frente. Por isso nesse momento ela fugiria dos padrões normais. E para ela
isso é muito tranqüilo, e as outras crianças da classe também, nunca ninguém fez um comentário, nem percebem. Ela é filha
única, não tem irmão, não tem irmã. Ela fez o parâmetro dela, então ela fez a escolha dela. Não existe um modelo pré-
estabelecido, se ela quiser chutar a bola em casa pode. (Entrevista 3 - Professora Sara)
Assim como no caso dos gestos, as vestes, as operações que o corpo deve efetuar no manuseio dos objetos
requeridos pelo desenvolvimento da atividade são submetidas ao que Foucault (1977) descreve como outra forma de poder, a
“articulação corpo-objeto”: a boneca, o carrinho, o vestido de noiva, o Tênis de dinossauro. Existe uma prática de controle
apresentada por meio de uma relação entre o corpo e o brinquedo.
As diferenças entre meninas e meninos, descritas pela professora Sara são justificadas como fruto da natureza e não
existe uma intencionalidade de propiciar a todos as mesmas oportunidades de acesso às várias dimensões da cultura infantil,
independente do sexo. Meninas não são incentivadas a jogar nos campeonatos de futebol da EMEI, algumas vezes elas
solicitam o auxílio da professora para mediar a relação com os meninos, mas as professoras não interferem, acreditando que
este não seja o seu papel. Justificam que os meninos são fominhas de bolas, que as meninas preferem ficar assistindo o jogo,
que elas não sabem as regras do futebol, se machucam, desanimam e acabam desistindo de jogar.
Se, por um lado, meninas podem ter sua identidade de gênero questionada se praticam futebol, com meninos o
mesmo ocorre se eles não o fazem, se não são fanáticos pelo seu time, se não têm um time. Meninos são como que obrigados

225
a gostar de jogar futebol. Pais, mães, amigos, amigas e até educadores/as exercem uma “pressão social” para que pratiquem
essa modalidade. Aqueles que não o fizerem podem ser vistos como femininos.
A análise interações nos remete ä vigilância hierárquica, definida por Foucaut, ao controle sobre o corpo alheio,
integrado por redes verticais de relações exercidas por dispositivos que obrigam pelo olhar, pela completa visibilidade dos
submetidos, e produzem efeitos de poder:
Acho que é o olhar do adulto que aponta o erro para as crianças, elas são inocentes, as crianças não percebem e não
estão preocupadas com aquilo. (Entrevista 3 - Professora Sara)
Também a sanção normalizadora, caracterizada pela existência de um sistema duplo de recompensa e de punição,
instituído para corrigir e reduzir os desvios, especialmente mediante micro-penalidades. O poder disciplinar permite o
controle minucioso das operações do corpo e a sujeição constante de suas forças. A disciplina, arte de dispor em fila,
individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e só faz circular numa rede de relações. A
organização de lugares e fileiras cria espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São
espaços que realizam a fixação e não permitem a circulação, marcam lugares e indicam valores, garantem a obediência dos
indivíduos e uma melhor economia do tempo e dos gestos.
Não são somente os meninos que sofrem com essa forma de opressão. As meninas são igualmente punidas, pois
elas carregam a obrigação de serem delicadas, organizadas e obedientes. Meninos e meninas desenvolvem seus
comportamentos e potencialidades no sentido de corresponder às expectativas quanto às características mais desejáveis para o
que é definido como pertinente a um modelo singular e unívoco de masculinidade e de feminilidade em nossa sociedade.
Os significados de gênero vão sendo impressos nos corpos de meninos e meninas de acordo com as expectativas
colocadas diariamente para as crianças, na forma como as professoras interagem com elas. Os corpos de meninas e meninos
passam, desde muito pequenos, por um processo de feminilização e masculinização, responsável por torná-los “mocinhas” ou
“moleques”.
Contudo, mesmo quando a disciplina insiste em fabricar corpos submissos e afeitos aos padrões tradicionais de
gênero, estes, mesmo quando pequenos, insistem em resistir e se rebelar. Meninos que se vestem de noiva, meninas
consideradas abrutalhadas destoam das habilidades de gênero que muitas vezes as professoras insistem em reforçar,
transmitindo expectativas quanto ao tipo de comportamento considerado “mais adequado” para cada sexo, manipulando
recompensas e sanções sempre que tais expectativas são ou não satisfeitas.
Essas crianças nos mostram que é possível fazer educação produzindo diferenças, mesmo que isso se constitua em
um grande desafio. Pois a estranheza é o primeiro sentimento que as crianças transgressoras provocam nas professoras. A
estranheza deriva da exposição do que todos esperavam que se mantivesse oculto e restrito. A criança transgressora desafia as
normas pressupostas e as coloca em discussão. Mostra, por suas ações, que as masculinidades e as feminilidades são
construções sociais que também acontecem na EMEI, que já chegou a separar meninos e meninas em salas distintas, com
atividades distintas, contribuindo para fabricar sujeitos desiguais.
As preferências são construídas e classe de pré-escola observada tende a contribuir para que as crianças pequenas
sigam um padrão socialmente imposto do que seria certo ou errado, aceitável ou passível de rejeição. O modelo binário
masculino-feminino é apresentado diariamente para elas. A manutenção deste modelo binário depende do ocultamento das
masculinidades e feminilidades alternativas, do silêncio sobre elas e de sua marginalização. É por meio desses “maus
exemplos” que a sociedade reforça a associação unívoca, e supostamente natural entre sexo e padrões de gênero. Mas é
também por meio deles que se convive com a diferença. Jeffrey Weekes (2003) afirma que o cruzar a fronteira dos padrões
de comportamento considerados mais apropriados para homens e mulheres pode adquirir o caráter de suprema transgressão.
A transgressão dos padrões socialmente aceitos costuma ser socialmente mal vista e ridicularizada, uma das
maneiras mais eficientes de reafirmar que cada um teria que se conformar ao seu gênero com seus atributos e principalmente,
ao lugar que lhe cabe na sociedade. São preconceitos que não resistem à razão, nem aos novos tempos e que continuamos a
considerar verdades intocáveis, nos costumes e nas regras inflexíveis.
Entretanto, frente às opressões que as crianças vêm sofrendo, meninos e meninas ainda exercitam habilidades mais
amplas, experimentam, inventam e criam, nos lembram que o modo como estão sendo educados pode contribuir para limitar
suas iniciativas e suas aspirações, mas também para se tornarem mais completos.

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ZARANKIN, Andrés. (2002) Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura escolar capitalista, São Paulo: Fapesp.

Resgate da Psicomotricidade através dos recursos naturais

Elisabte Helena Cavalcante Lima


Prefeitura Municipal de Fortaleza
elisabetehclima@hotmail.com

Eva Soares Silva


Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar Lima
eva.parisotto@hotmail.com

Francisca Braga das Chagas


Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar Lima
francisca.braga@hotmail.com

Lindalva Fernandes R. da Silva


Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar Lima
lilika_linda53@hotmail.com

Lidyane Evangelista
Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar Lima
lidy.10@hotmail.com

Resumo: Objetivando motivar a aprendizagem das crianças na Educação Infantil, desenvolveu-se o projeto, com a proposta de sair do
convencional, utilizando como ferramentas, atividades lúdicas e psicomotoras, através dos recursos naturais realizadas na praia próxima a
Escola Municipal Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar Lima.
A localização da escola, numa comunidade carente na Praia do Futuro - Fortaleza-Ceará, apontou o caminho natural a ser seguido.
Inicialmente, dentro da sala, com atividades de rotina, com a socialização das crianças e um conhecimento maior em relação a elas, o projeto
foi estendido à orla marítima, com estratégias de psicomotricidade, utilizando recursos pedagógicos e naturais, como bolas, cordas, sacos de
pano, aproveitou-se a praia, para corridas e escavação na areia.

227
Simples e sem ônus para a escola, para os pais ou professores, utilizamos atividades lúdicas e recreação como base de nossos experimentos,
direcionadas para o aumento da coordenação motora, do convívio social, das interações, dos limites, do respeito às regras, da consciência
ecológica etc. Ao desenvolver as brincadeiras como mediadoras entre os envolvidos (alunos x professores x comunidade), torna-se criativa a
relação da criança com o mundo, inserindo a consciência crítica sobre importância de preservação e conservação do meio ambiente.
A avaliação foi sentida no convívio, na descoberta do prazer do próprio movimento, do reconhecimento dos limites e possibilidades de seu
corpo, no incentivo da comunidade à participação dos filhos. De forma mais específica, contribuiu para o ensino e aprendizagem no processo
de alfabetização e redução da evasão escolar.
Palavras-chave: Educação, Lúdico, Psicomotricidade, Homem e Natureza.

INTRODUÇÃO
A escola pública nas últimas décadas vem modificando sua forma de agir, suas estratégias no contexto social,
primando pela melhoria da qualidade do ensino-aprendizagem ofertado aos seus alunos. É imprescindível que em seu bojo de
ação, tenha como objetivo orientar e transmitir ao educando, conhecimentos que o leve à prática da cidadania, à valorização
do meio ambiente onde esteja inserido, adquirindo também, responsabilidade e consciência crítica para a necessidade de
preservação da natureza. Contudo para que esta mesma escola atinja seu objetivo, são necessárias mudanças na prática
pedagógica docente e, sobretudo, no desenvolvimento de atividades envolvendo toda comunidade escolar: alunos, corpo
docente, a família e demais segmentos engajados no processo educacional.
Urge assim, um repensar sobre a atuação dos segmentos da escola pública no sentido de programar ações
pedagógicas inter e extra classe que favoreçam a aprendizagem dos alunos, fazendo com que os mesmos sejam agentes
participativos de seu próprio conhecimento, de acordo com que orienta a educação global.
Desta forma, neste artigo, temos como objetivo fazer uma síntese sobre a relevância do resgate da
psicomotricidade para facilitar o processo de ensino-aprendizagem e desenvolvimento da criança, envolvendo atividades
lúdicas que priorizem a utilização de recursos naturais oriundos do meio ambiente e apresentar os tipos de ações
desenvolvidas durante a execução do Projeto Resgate da Psicomotricidade Através dos Recursos Naturais.

1. A ludicidade, uma ferramenta na aprendizagem do educando.


Uma das características da vitalidade da criança na idade infantil é a maneira prazerosa de expressão através das
brincadeiras que ela realiza, sejam estas, em casa, na escola, ao ar livre, enfim, em qualquer local e ocasião. Suas atitudes
tornam-se cada vez mais transparentes pelas atividades lúdicas que desenvolve. (Foto 1) Isso significa muito para a criança,
porque ela acredita que a brincadeira que realiza diz muito do seu mundo e da sua concepção de vida e de pessoa. Quando as
crianças brincam, exercitam papéis sociais, são intensas, verdadeiras, integram-se, percebem o mundo e lidam com a
realidade, assim sendo, o seu crescimento intelectual vai acontecendo.
O brinquedo contribui para a aprendizagem na medida que a criança constrói seu conhecimento, baseada no prazer,
na ação motivadora, na espontaneidade e lidando com as interações sociais. Foi pensando em resgatar a psicomotricidade
dos alunos que a proposta foi baseada, através de atividades lúdicas que favorecessem a aprendizagem dos mesmos, tendo
como ferramenta auxiliar a inserção da educação ambiental.

FOTO 1 - CHEGADA À PRAIA, SOBE E DESCE NA DUNA.

Fonte: Lima, 25/05/2007 - Praia do Futuro Fortaleza - Ceará.

Dentro da idéia do projeto e da pesquisa, precisou-se analisar e aprofundar os conhecimentos existentes,


complementar as atividades, envolver os professores, tornando o grupo docente mais apto na realização do mesmo. Dever-se-

228
ia aliar vontade ao conhecimento e, principalmente, às características das crianças que diretamente estavam sob a
responsabilidade da equipe.
Segundo o psicomotricista argentino Esteban Levin, (2005, p.20-22:) “O corpo ajuda o aluno a aprender”. Em
entrevista concedida à revista “NOVA ESCOLA” durante a realização do 9º Congresso Brasileiro de Psicomotricidade –
Olinda/Pe, onde detalha vários fatores relacionados à utilização do corpo como ferramenta de aprendizagem e cita a
exigência da criança obrigada a ficar sentada o tempo todo como uma das piores causas da hiperatividade – distúrbio de
aprendizagem mais comum nos dias atuais.
Nas muitas reflexões sobre os conceitos difusos da Educação Física X Recreação, deparou-se com a seguinte
questão: O que realmente deve-se oferecer às crianças?
A idéia principal: Colocá-las em um espaço mais amplo, agradável e com infinitas possibilidades de ação, sem
fugir do objetivo de estímulo à aprendizagem. Como sugere Lima, (2005, p.15) “Aprendizagem, ensino e desenvolvimento
são processos distintos que interagem dialeticamente. Ambas não existem de fatores independentes e sim, possibilitam a
conversão de um no outro. A aprendizagem promove o desenvolvimento e este, dá origem às novas formas de
aprendizagem”.
Buscaram-se, então, algumas definições, tais como: Psicomotricidade, Motricidade Infantil, e
Movimento/Brincadeira, além de passar às crianças algumas informações sobre o meio ambiente e a Educação Ambiental.
Para Esteban, (1977, p.242) “O termo psicomotricidade indica a conexão estreita do corpo-motor com o intelectual-psiquico.
Na verdade não existe nenhum movimento sem a participação de processos psíquicos, ou emocionais. A atividade física é
excepcionalmente boa para as crianças e para os adultos e acreditando-se que promovendo uma respiração mais profunda,
levamos mais oxigênio para o sangue, fazendo com que este seja mais rapidamente absorvido e digerido pelo organismo. O
exercício também induz a bons padrões de sono e um repouso adequado, deixa a todos mais descansados para um novo dia,
novas experiências e novas aprendizagens. O brincar é necessário e vital para o desenvolvimento normal do organismo em si
e para o seu amadurecimento como ser social.”(sic)
Quanto à motricidade infantil, profissionais de várias áreas são envolvidos pela riqueza deste estudo.
Particularmente, na Educação Física é que as características motoras das crianças tornaram-se o principal foco dos estudos e
tem recebido diferentes denominações por parte dos autores. Talvez o termo que mais se popularizou, tenha sido o da
Psicomotricidade, que passou a significar um sinônimo para a Educação Física Infantil a partir dos anos oitenta, assumindo
dentre outras denominações, Desenvolvimento Motor e Motricidade Humana, usados freqüentemente na literatura específica
da Educação Física. Para (Zimmer, 1989:92) “O ser humano só pode ser entendido como um todo; sentir e pensar, perceber e
movimentar-se estão ligados inseparavelmente e influenciam-se mutuamente.”(sic)
Buscou-se compreender onde de fato os significados se relacionavam, onde se sobrepunham uns aos outros e onde
criavam interligações, mas o fato é que não se separavam. Psicomotricidade é uma ação vivida no desenvolvimento de uma
meta.
Já neste último conceito, o significado de brincadeira para as crianças é o próprio movimento, uma simples
brincadeira torna-se estímulo para o seu desenvolvimento e para a sua aprendizagem. Observando a vida cotidiana das
crianças, fica fácil perceber a alegria em situações em que elas brincavam, corriam, pulavam e subiam em eternos
movimentos, aproveitando as oportunidades por onde passavam. Escorregavam nos corrimãos, se equilibrando na beira da
calçada, ou fazendo de pneus encontrados na rua um motivo a mais para desenvolverem a sua imaginação. Desta maneira,
sobre o brincar, Zimmer (1992: 92) apud Thomas Semarau (2003), afirma que: “Conhecer o próprio corpo e com isso
conhecer-se, revelar uma imagem de si mesmo, adaptar-se às próprias capacidades corporais e aprender a usá-las; Fazer algo
com os outros, comunicar-se e entender-se com eles, criar regras entre si, brincar com os outros e contra eles; Expressar-se,
transformar necessidades e sentimentos (inclusive a alegria e o prazer) em movimento, descobrir através do movimento a
sensação de fadiga ou energia; Conhecer o ambiente espacial e material; reconhecê-lo, explorá-lo, experimentar com
situações de brincar e testar objetos, adaptar as realidades ambientais aos objetos, respectivamente, ou seja, acomodá-los;
Comparar-se e igualar-se aos outros, melhorarem o próprio desempenho, competir e aperfeiçoar-se, aceitar limites, derrotas e
alcançar vitórias”.
Nesse sentido, é importante que o trabalho envolva os professores e alunos superando os seus próprios limites e
atitudes, oportunizando novas descobertas corporais. (Foto 2) Vale ressaltar a expressão de uma pequenina aluna – Olha a tia
correndo!

FOTO 2 - EXRCÍCIOS COM OBSTÁCULOS.

229
Fonte: Lima, 05/06/2008 - Praia do Futuro - Fortaleza – Ceará.

As orientações contidas no Referencial Curricular Nacional apontam que os conteúdos relacionados ao movimento
devem priorizar o desenvolvimento das capacidades expressivas e instrumentais, permitindo a apropriação corporal pelas
crianças de forma a agir cada vez mais com intencionalidade.
“A atividade lúdica oferece subsídio ao educador para desenvolver atividades motivadoras, instigadoras e
interessantes, possibilitando, sobretudo, que a criança se auto-afirme, rompendo com a função instrumental da escola
de ensinar a ler, escrever e contar. É no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de uma
esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências internas e não dos incentivos fornecidos pelos objetivos
externos.” (VIGOTSKY, 1994, p. 55).

A criança amplia as suas potencialidades sempre que tem contato com o mundo que para ela é significativo, e é
através das brincadeiras que compõem este seu universo. Vigotsky (1994, p.64) referenda: “A fala da criança é tão
importante quanto à ação para atingir um objetivo”. As crianças não ficam simplesmente falando o que elas estão fazendo;
sua fala e ação fazem parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a solução do problema em questão.
Necessário se faz reconhecer a própria condição da criança frente às atividades que são desenvolvidas no seu cotidiano. As
atividades lúdicas devem ocorrer não da necessidade do professor mensurar a capacidade do aluno na socialização e
aprendizagem, mas sim da expectativa frente ao clima que se forma nos variados espaços e tempos, seja na sala de aula, no
pátio, fora da escola, juntamente com os colegas de sala.
Num ambiente propício, as brincadeiras devem surgir como meios eficazes de aprendizagem o que permitirá o
desenvolvimento psicomotor e consequentemente o desenvolvimento funcional de todo o corpo e suas partes. Segundo
Fonseca (1995), este desenvolvimento está dividido em vários fatores psicomotores e apresenta “os 7 fatores, os quais são: a
tonicidade, o equilíbrio, a lateralidade, a noção corporal, a estrutura espaço-temporal e práxis fina e global”.
Para Marinho (1993, p. 13), “A brincadeira é também essencial para um bom desenvolvimento psicomotor”.
Sabendo-se que a psicomotricidade é a relação do pensamento e da ação, onde está presente também a emoção, podemos
concluir que é brincando que a criança exercita de forma globalizada e equilibrada todas essas atividades. (Foto 3)
Mediante as atividades lúdicas que são realizadas na escola, torna-se possível conhecer o crescimento intelectual da
criança, sabendo que as suas funções intelectuais da imaginação e da aprendizagem se processam de maneira dinâmica e em
interação com o meio. Vygotsky (1994, p. 21) assim complementa: “Freqüentemente descrevemos o desenvolvimento da
criança como o de suas funções intelectuais; toda criança se apresenta para nós como um teórico, caracterizado pelo nível de
desenvolvimento intelectual superior ou inferior que se desloca de um estágio a outro. Porém, se ignoramos as necessidades
da criança e os incentivos que são eficazes para colocá-la em ação, nunca seremos capazes de entender seu avanço de um
estágio do desenvolvimento para outro”.

FOTO 3 - EXERCÍCIOS COM BOLAS

230
Fonte: Lima, 10/04/2008 - Praia do Futuro Fortaleza - Ceará

Na realização das atividades lúdicas, deve-se primeiramente perceber o conhecimento prévio da criança diante
dessas propostas e saber como elas as encara no cotidiano letivo. É mister reconhecer que a criança possui uma natureza
singular, que a caracteriza como ser que sente e pensa o mundo de um jeito muito próprio. A brincadeira para a criança, é a
expressão mais nítida de sua comunicação com o mundo, o que garante sempre da parte dela disponibilidade e clareza nas
atividades envolvendo brinquedos.
Sabe-se que no universo infantil existem muitas formas de brincadeiras que quando guiadas sob a orientação
docente podem contribuir para a aprendizagem da criança. Uma diversidade de brincadeiras faz parte do cotidiano da criança,
pode-se citar como exemplo, as brincadeiras de roda, de pula-pula, de competição entre outras. No entanto, uma das que mais
as agrada é a brincadeira de roda, cujos movimentos proporcionam o desenvolvimento corporal da criança. Por esta razão,
Vigotsky (1994, p. 86) considera que:
“A brincadeira cria para as crianças uma “zona de desenvolvimento proximal” que não é outra coisa senão a distância
entre o nível de desenvolvimento, determinado pela capacidade de resolver independentemente um problema, e o nível
de desenvolvimento potencial determinado através da resolução de um problema sob a orientação de um adulto ou com
a colaboração de um companheiro mais capaz”.

A atividade lúdica é um momento de grande prazer e contentamento para a criança, pois neste momento ela brinca
por brincar, pelo prazer e pelo prazer ela se expõe, se libera e age espontaneamente.
As brincadeiras são de fundamental importância para o processo ensino-aprendizagem, pois estimulam e
desenvolvem a criatividade, a socialização, a autonomia, o autocontrole e o imaginário da criança. Através do lúdico a
criança expressa as relações sociais que vivencia, demonstrando situações vividas e recriando-as através de sua
potencialidade onírica. A ludicidade é um assunto que tem conquistado espaço nos mais diversos setores da sociedade. O
final do século passado parece ter levado a humanidade a questionar sobre muitas coisas, principalmente, sobre sua própria
trajetória.

1. 1. A escola e sua função social em tempos de mudanças: o brincar como um recurso pedagógico.
A escola é a instituição especializada na educação das novas gerações e tem como finalidade específica, ofertar
informações através de atividades sistemáticas e programadas. Os métodos utilizados para cumprir este objetivo são os mais
diversificados possíveis, no entanto, às vezes, podem não atender às peculiaridades dos alunos, passando a interferir na
aprendizagem, comprometendo o rendimento e o seu sucesso como aprendiz, principalmente, quando se tratam de crianças
da Educação Infantil.
O professor deve ser um mediador entre o conhecimento e o aluno, oportunizando a aquisição de saberes através de
atividades pedagógicas que motivem a criança à aprendizagem. Lenhard, R. (1973, Sociologia Educacional, p. 41) afirma: “O
professor deve ser consciente de seu papel na sociedade e corresponder à confiança que lhe é depositada, assumindo uma
posição que venha abranger padrões de comportamentos formais onde permeiem a autoridade e a liderança”. Numa escola, a
prática pedagógica do professor é fator contribuinte para a aprendizagem do educando. Em sua ação magisterial, deve
contribuir para o processo de transformação da sociedade e juntamente com a equipe colegiada, mostrar ao aluno que a
realidade social é construída e modificada pela ação dos homens.
Hoje as políticas ambientais e educacionais demonstram a necessidade de uma educação ambiental voltada para
uma conscientização integrada, em todos os aspectos da vida humana, implica em desafios para a escola, aprender e trabalhar
interdisciplinarmente e com um novo olhar.

231
Refletindo, sobre essa ação, evidenciou-se a importância do âmbito da motricidade, sobre esta interação humana
com o meio ambiente, apontando o compromisso com mudanças de atitudes e valores, que possam interferir de forma
positiva nessa relação. (Foto 4)
Sobre a valorização do meio ambiente, da necessidade de conservação e preservação, dialogar com as crianças,
neste contato com o meio natural, de maneira orientada, deverá ser a postura adotada e incorporada. Procurou-se falar sobre o
Meio Ambiente, sobre esta importância da educação ambiental para o bem estar da humanidade, da existência, sobrevivência
e equilíbrio na natureza. O ser humano deve colaborar e entender a necessidade de preservar outras formas de vida, as quais
contribuem para o equilíbrio da natureza. Segundo o Manual de Educação-Consumo Sustentável, (2002):
(...) atualmente o meio ambiente apresenta nítidos sinais de esgotamento devido à contaminação dos recursos a
desertificação, a destruição da camada de ozônio, o aquecimento global, a escassez e falta de água. Esses são alguns
exemplos dos reflexos da atividade humana sobre o meio ambiente e que já estão afetando o dia-a-dia das pessoas. “O
desaparecimento de florestas e de espécies da fauna e da flora, já é uma realidade incontestável”.

Mediante esta problemática, torna-se clara a necessidade de que as escolas precisam adaptar seus programas e seu
modo de relacionamento para com a comunidade, abrangendo, além dos especialistas, os cidadãos e os alunos, para
colaborarem na elaboração dos seus próprios programas. Aos professores, caberá a implantação de um novo e eficaz estilo de
relacionamento junto aos alunos, a começar mesmo com estes estando na Educação Infantil, no sentido de proteger o
ambiente em que vivem. Torna-se necessária, a renovação nos conteúdos educativos, por meio da qual a variável ambiental
poderá permear todas as disciplinas escolares, nos métodos de ensino e níveis de escolaridade. É fundamental que as
atividades desenvolvidas (sejam inter, ou extra classe), sejam em equipes e de forma interdisciplinar no sentido de despertar a
co-responsabilidade dos educandos.
Das infinitas possibilidades e da importância de utilizar-se do lúdico nesta proposta, não é apenas a atividade em si,
mas a própria ação, o rico momento vivenciado, momentos de encontro consigo e com o outro, o autoconhecimento e
conhecimento do outro, momentos de cuidar de si e do outro, momentos de criação e inventividade da fantasia e de realidade,
que são próprios da vida. A participação dos alunos é efetiva na prática de atividades lúdicas e integradas à natureza.
Segundo Marinho (2004), pode-se observar a manifestação em sua essência, e por conseqüência, podem ser efetivadas e
positivas as mudanças de atitudes e comportamentos referentes ao estar na natureza e com a natureza. Durante a condução
das atividades é estabelecida uma forte cumplicidade, uma confiança dos participantes (aluno, professor e convidados) com
seu corpo, com seus pares e com a natureza, momento no qual se alcança uma experiência maravilhosa.

FOTO 4 - EXERCÍCIOS DE AQUECIMENTO

Fonte: Lima 05/06/2008 - Praia do Futuro Fortaleza - Ceará

1. 2. Educação Ambiental
Como a Educação Ambiental é um tema recente, acarreta certa dificuldade de ordem institucional, pedagógica e
didática. Tais dificuldades podem ser facilmente superadas com a conscientização e boa vontade política dos dirigentes e
principalmente dos professores. Uma comunidade escolar pode buscar, nos avanços de vivência de sua clientela, os subsídios
teóricos e práticos para uma nova concepção de vida e sociedade. A produção dos espaços, as questões ambientais e a
finitude dos recursos do meio, exigem de cada segmento da educação, uma reformulação nas concepções de escola e nas
relações professor-aluno-comunidade.
A Educação Ambiental surge com este desafio: Propor um novo olhar, que valorize e dignifique o meio
ambiente em todas as suas esferas. Entender que somos parte integrante deste sistema exigirá postura diferenciada, pré-
condição para a reversibilidade dos problemas socioambientais, tão explorados na atualidade. A questão ambiental e

232
desequilíbrio ecológico são situações preocupantes para as sociedades de modo geral. Constatar que a grande maioria destes
problemas que acontecem no mundo de hoje poderiam ser evitados se o homem tivesse uma consciência de preservação
ecológica. E segundo Léa Tiriba (2007) “Por razões históricas e culturais, os estudantes crescem acreditando que existe
separação entre seres humanos e natureza”. Esta seria a origem da degradação do planeta, que está nos levando a um processo
de autodestruição.

FOTO 5 - MOMENTO DE RELAXAMENTO E LIVRE EXPRESSÃO

Fonte: Lima, 20/10/2006 - Praia do Futuro – Fortaleza - Ceara.

A professora propõe: “Vamos ultrapassar as paredes de concreto, alargar as janelas das salas, deixar as crianças de
pés descalços, passar mais tempo ao ar livre”. E seguindo o raciocínio lógico, ela pergunta: “Como aprender a respeitar a
natureza se as crianças não convivem com seus elementos?” Criança feliz põe os pés na terra, toma banho de mangueira,
observa e interage com a natureza. (Foto 5)
Sob a ameaça constante dos perigos oriundos da poluição ambiental, é importante que o homem atente para a
necessidade de perceber-se como parte integrante da natureza, respeitando-a e reconhecendo, sobretudo, entenda que sem ela
não podemos viver, e para isso, temos que preservar e cuidar, evitando a poluição. Hoje já se percebe certo interesse em
orientar as crianças com a intenção de que, cresçam conscientes dos efeitos da poluição, da devastação de florestas, da
importância da biodiversidade para o equilíbrio do planeta.
Para que aconteça tal conscientização, precisa-se repensar e reinventar o projeto pedagógico e imprimir no sistema
escolar a liberdade de expressão, estimulando a atenção às necessidades de nossos corpos e movimentos em contatos com a
natureza. (Foto 6)

FOTO 6 - CRIANDO ESCULTURAS DE AREIA

Fonte: Lima -14/11/2008 - Praia do Futuro Fortaleza - Ceará

2. CONTEXTUALIZANDO O AMBIENTE x ATIVIDADES DESENVOLVIDAS

233
Com perspectivas de desenvolver o resgate da psicomotricidade dos alunos e participantes vem sendo desenvolvido
o Projeto, durante os anos de 2006, 2007 e 2008 na Escola Municipal de Ensino Infantil e Fundamental Frei Tito de Alencar
Lima, da Rede Municipal de Ensino em Fortaleza – Ceará - Brasil, localizada em área litorânea, no bairro Caça e Pesca –
Praia do Futuro. A referida escola atende a uma demanda de 1461 alunos, dentre estes, 250 crianças na Educação Infantil e
nas séries inicias, na faixa etária entre 05 e 08 anos, de ambos os sexos, que participam das atividades, atendidas por um
grupo de professoras com formação superior e, em alguns casos, com pós-graduação em Educação Infantil.
É uma escola com poucos recursos, composta de 33 salas, sendo 23 direcionadas para a sala de aula, 01 à direção,
01 à biblioteca, 01 à informática (desativada), 01 refeitório, 01 à reunião de professores, 01 de supervisão, 10 banheiros, entre
femininos, masculinos, professores, funcionários e infantil. Contamos também com um pátio coberto, uma quadra (esportiva)
e um playground (desativado). Apesar de termos uma boa área física, faltam espaços para atividades específicas como
laboratórios, brinquedotecas, salas de artes, de música etc.
Os equipamentos disponíveis nem sempre estão em condições adequadas de utilização, seja por necessidade de
reformas, seja por desgaste e/ou depredação. Tendo em vista que a comunidade está localizada em uma área com graves
desequilíbrios sociais, abrigando uma legião de pessoas carentes, ou com baixo nível de escolarização e renda, isto gera um
ambiente sempre tenso e por vezes com risco real, o que reflete diretamente no cotidiano escolar.
As principais fontes de renda são a pesca, o comércio informal e os serviços turísticos. É importante destacar a
ociosidade como fator de risco, principalmente com os adolescentes, carentes de cursos profissionalizantes e da prática de
esportes.
O projeto vem sendo trabalhado, mensalmente. Com o passar do tempo, houveram mudanças quanto às saídas para
recreação, além do conjunto de outras atividades de conteúdo ao ar livre, foram alteradas, para até uma vez por semana,
estimulando novas aprendizagens, como: caminhadas ecológicas, limpeza da praia, passeios culturais, oficinas etc.
A distribuição das atividades pré-escolhidas fica a critério do professor responsável, articulado com os outros e
utilizadas de acordo com o desenvolvimento de cada grupo e trabalho, realizados em momentos anteriores.
Várias modalidades de jogos foram utilizadas, desde os mais simples até os de maior grau de complexidade, tais
como: jogos de corridas variadas, jogos em linha e em círculo, jogos de interpretação. Além de atividades relacionadas às
pesquisas, à descoberta da importância do social e do meio ambiente tais como: observar e descobrir os fenômenos e os
recursos naturais encontrados na área, a utilidade da água do mar e do Rio Cocó, que nasce em Maracanaú, cidade vizinha à
Fortaleza, e desemboca na Praia do Futuro bem pertinho da Escola, formando um complexo sistema com rio, manguezal, mar
e duna, que garante o sustento de uma parte considerável da população local. Esse ecossistema é importante para os trabalhos
de campo, assim os alunos conhecem melhor o ambiente onde vivem e podem contribuir com o aprendizado, já que muitos
convivem na área em estreito contato com a fauna e a flora local.
Citamos alguns exemplos de nossos dias de recreação, tal como o que acontece, quando se utiliza dos Jogos de
“corrida variada”. Neste jogo, as crianças ficam reunidas próximas às professoras. Quando é dada a orientação às crianças
correrem até a jangada azul e em seguida retornarem ao ponto de partida, o jogo só termina quando todos chegam.
Para avaliarmos as habilidades das crianças, exemplificamos os “jogos em linha”. Com a bola se deslocando de
mão em mão e combinando as variações por cima/ por baixo; direita/esquerda; indo/voltando e criando novas formas de
jogar, desenvolvendo-se assim a atenção e a agilidade, conceituando diversas convenções necessárias aos hábitos do
cotidiano, tornando-se um momento de aprendizado, cooperação e socialização.
Nos “jogos circulares”, trabalha-se com noções comparativas, com grandes e pequenos círculos e materiais
diversificados. Estes jogos podem ser executados em espaços fechados ou abertos, utilizando-se a mesma estrutura. Estimula-
se a percepção de espaço e tempo, dentro ou fora, maior ou menor. Neste caso, pode se trabalhar com bolas. Para o bom
funcionamento e andamento deste jogo, até a própria organização das crianças, faz parte da técnica.
Para os “jogos de interpretação”, onde a estrutura se faz com a imagem, um professor é escolhido. As crianças ao
imitarem as suas atitudes, desenvolvem criatividade e espontaneidade e tem a sua expressão oral estimulada, quando
assumem a posição de comando. Utiliza-se de materiais concretos como arcos, varas, cordas, cabos de vassoura e sacos de
pano. (FOTO 7)

FOTO 7 - JOGOS DE CORRIDAS VARIADAS

234
Fonte: Lima 25/05/2007 - Praia do Futuro – Fortaleza - Ceará

Após a brincadeira esgotar o tempo previsto, encerra-se a atividade. As crianças não desejam o seu final. Assim,
aproveita-se o momento e explica-se o conceito de finitude, onde “tudo tem começo, meio e fim”. Após o relaxamento,
prepara-se o grupo para o retorno às salas, cansados, mas felizes e o mais importante, certos de que as crianças haviam
assimilado algum conhecimento.

3. CONCLUSÃO
Foi constatado, após a realização das atividades, que as crianças com maiores dificuldades de expressão, obtiveram
uma evolução notória em um curto espaço de tempo no seu desenvolvimento. Segundo os pais, as crianças que participaram
do projeto melhoraram o comportamento familiar e escolar, aumentando o grau de interesse, atenção e concentração na
execução das atividades de casa e em sala de aula. A aprendizagem, como objetivo específico e primordial da ação, obteve
um índice satisfatório, onde a maioria das crianças terminou o ano letivo, com aumento do processo de alfabetização,
embora, nem sempre de forma convencional.
Baseado na experiência deste projeto piloto e devido aos resultados positivos alcançados, no âmbito da motivação,
da auto-estima, da aprendizagem, da sociabilidade, da visão de futuro quanto ao uso e preservação ambiental e de conceitos
básicos, como reciclagem e reaproveitamento de materiais, e da valorização humana e do social, vimos que se faz necessária
a continuidade e ampliação desta ação, constituindo parcerias com instituições e/ou entidades governamentais para difusão
desta prática pedagógica.
É de fundamental importância salientar que nesse processo incubador, foi comprovada a mudança de atitude do
profissional da educação. O envolvimento com o meio social, com os familiares e especialmente, a convivência com as
crianças em novos ambientes extra-escolares, observou-se uma maior valorização dos espaços de convivência, a diminuição
na evasão escolar, um aumento substancial no aprendizado e alfabetização tão esperados no meio educacional do Brasil,
mormente na escola da qual somos parte integrante do corpo docente.

REFERÊNCIAS
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de Psicomotricidade. In: Apostila Infância: Dimensões Lúdicas e Psicomotoras – Fortaleza – CE. Vivação.

Currículo multicultural: possibilidades para a construção de um planejamento


participativo das aulas de educação física escolar

Dinair Leal da Hora


UERJ/FIOCRUZ
tucupi@uol.com.br

Luciana Santos Collier


FUNITA/Governo do Estado do Rio de Janeiro
collier@hotmail.com

Resumo: Este trabalho tem origem na necessidade de se pensar na importância da disciplina Educação Física Escolar e, com base nas
experiências vividas e nas reflexões realizadas, foi possível apontar uma alternativa pedagógica aplicável ao cotidiano das aulas de Educação
Física Escolar, capaz de atuar no processo de construção do cidadão participativo, contemplando amplamente a diversidade cultural dos
sujeitos envolvidos no processo pedagógico e ainda por cima possa colaborar de forma eficaz para: a construção do conhecimento e da
cultura a partir de atividades auto-organizadas que visam ao protagonismo e à transformação social, inerente a todo processo que prevê
participação coletiva nas tomadas de decisão; implicando na construção da cidadania ativa. Com base nestas reflexões, este estudo apresenta
uma proposta de trabalho para as aulas de Educação Física Escolar em que os interesses e as necessidades do aluno são os pontos centrais da
elaboração de conteúdos fundamentados na prática social, priorizando as atividades com as quais mais se identificam ou têm curiosidade em
aprender, além de adequá-las ao espaço físico e materiais disponíveis e aos limites e possibilidades de cada turma. Esta proposta defende a
participação efetiva dos alunos na escolha e organização dos conteúdos dentro do planejamento das aulas, no desenvolvimento destes
conteúdos e no processo de avaliação. Desta forma, o aluno terá a oportunidade de escolher democraticamente os conteúdos que deseja
vivenciar nas aulas e se tornará responsável pelas conseqüências de sua escolha, a partir da concepção de currículo multicultural.
Palavras-chave: currículo; planejamento participativo.

“Não resta dúvida de que a presença de metas multiculturais nas discussões mais recentes de educação para a cidadania
constitui no mínimo um desfio e, no máximo vem modificando o âmbito curricular da educação cidadã.” (TORRES,
2001 p.199)

1. INTRODUÇÃO
Um dos problemas que mais preocupa os estudiosos em educação é a elaboração da proposta curricular dos
sistemas educacionais. O pano de fundo desta discussão é saber: Que conhecimento deve ser ensinado nos diferentes níveis
escolares? Qual conhecimento é considerado importante ou válido para merecer ser incluído no currículo? A escolha do
conhecimento a ser ensinado está intimamente relacionada com o tipo de indivíduo que se pretende formar a partir da
educação formal. Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas; nele se entrecruzam práticas de significação,
de identidade social e de poder.
Para pensar o currículo inevitavelmente nos remetemos a questões que envolvem o que é uma “boa” sociedade e
como seria uma “boa” educação para essa sociedade. Questões que perpassam as idéias de cidadania, autonomia, identidade,
participação política. Desta forma podemos afirmar que: “o currículo não é um elemento inocente e neutro de transmissão
desinteressada do conhecimento social. O currículo está implicado em relações de poder, transmite visões sociais particulares
e interessadas, produz identidades individuais e sociais particulares” (NEIRA, 2006 p.3). Desta forma, o professor não pode
mais, se preocupar apenas com a forma como os conteúdos são distribuídos e ensinados; o currículo não pode mais ser
trabalhado de forma ingênua, descontextualizada e não-problematizada.
O contexto político hegemônico da atualidade – um projeto neoliberal centralizado na primazia do mercado que
privilegia os valores puramente econômicos beneficiando os interesses dos grandes grupos industriais e financeiros – tem

236
influência preponderante sobre o conhecimento curricular a ser ensinado nas escolas. Nesse projeto, a educação é vista
simplesmente como instrumental, visando à obtenção de metas econômicas que sejam compatíveis com esses interesses.
Neste modelo, o currículo aborda valores como disciplina, obediência, persistência cooperação, tolerância, homogeneidade,
etc. onde apenas aqueles que seguem fielmente estes valores conquistam a plenitude econômica e social.
A fim de resgatar, na sociedade em que vivemos, o direito de todos os seres humanos de ter uma vida na qual sejam
plenamente satisfeitas suas necessidades vitais, sociais e históricas; a educação e o currículo escolar devem ter como
prioridade a valorização da igualdade, dos direitos sociais, da justiça social, da cidadania. Em nossa sociedade, a riqueza –
recursos materiais e simbólicos indispensáveis ao alcance de uma vida de boa qualidade – precisam ser mais bem
distribuídos.

2. O CAMPO (DE BATALHAS) DO CURRÍCULO


Se pensarmos o currículo enquanto conhecimento pertinente, elaborado a partir das relações sociais e de poder
cotidianas estaremos concordando com a teoria crítica que defende que a educação e o currículo estão profundamente
envolvidos com o processo cultural, numa política cultural. A cultura, aqui referida, não é um conjunto inerte e estático de
valores e conhecimentos a serem transmitidos de forma não-problemática a uma nova geração, nem existe de forma unitária e
homogênea. Moreira e Silva (2005) alertam que, em vez disso, a cultura é vista como um campo de lutas no qual se
enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida social; é aquilo por que se luta e não aquilo que recebemos
passivamente. Em uma sociedade hierarquicamente dividida em grupos e classes sociais, a cultura é o terreno onde se dá a
luta pela manutenção ou superação das divisões sociais.
O currículo educacional, sob a luz destas idéias, não pode ser visto como um local de transmissão de uma cultura
incontestada e unitária, mas como um lócus de batalha para se tentar impor ou impedir que se imponha, tanto a definição
particular de cultura da classe ou grupo dominante, quanto o conteúdo dessa cultura. O currículo é então o terreno
privilegiado de manifestações desse conflito. De acordo com Neira:
a educação e o currículo não atuam apenas como correias de transmissão de uma cultura produzida num outro local,
por outros agentes, mas são partes integrantes e ativas de um processo de produção e criação de sentidos, de significações, de
sujeitos. O currículo pode ser movimentado por intenções oficiais de transmissão de uma cultura oficial, mas o resultado
nunca será preciso porque essa transmissão se dá num contexto cultural de significação ativa dos materiais recebidos.(2006
p.4)
Se quisermos mudar a sociedade, os currículos escolares terão inevitavelmente que ser modificados. Ao invés de
priorizar ações sem significado, as atividades escolares devem envolver-se com a análise e contextualização das práticas
sociais existentes. A proposta curricular escolar deve, portanto, encontrar meios para reverter o processo de reprodução
cultural e social das divisões de classe, evitando, portanto, a uniformização do conhecimento. A proposta multicultural é de
criar e produzir ativamente a cultura dentro do currículo escolar estimulando uma visão não etnocêntrica de mundo. O
currículo, assim pensado, é “um terreno de produção e de política cultural, no qual os saberes que nele se concretizam,
funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão” (NEIRA, 2006 p. 4).
Apesar de sua face transformadora e benevolente o multiculturalismo pode servir a vários e antagônicos objetivos.
Mc Laren (1997) nos alerta que o multiculturalismo precisa ser analisado dentro de um contexto mundial que envolve
grandes corporações apátridas com sua força de trabalho concentrada em minorias étnicas, raciais, sociais e de gênero,
gerando contínuos fluxos migratórios, fazendo surgir culturas subalternas e passageiras.
Segundo as análises de Torres (2001) o multiculturalismo dentro do currículo escolar deveria visar à garantia da
igualdade e da redistribuição de bens materiais e imateriais (valores, saberes...) além de defender a eqüidade e tolerância
cultural nas escolas. Porém o fato de estar vinculado a uma política cultural de diferenças o deixa no fio da navalha entre a
tentativa de homogeneização do “diferente” por aquilo que representa a cultura hegemônica e a tolerância piedosa do
“hegemônico” em detrimento do “diferente”.
Do ponto de vista prático, é possível dizer que sob o rótulo de currículo multicultural existem diversos tipos de
interferências sendo realizadas nas escolas: ampliação do grau de conhecimento histórico sobre as contribuições dos
diferentes grupos étnicos excluídos do currículo; desenvolvimento do orgulho da própria identidade étnica; desafio aos
preconceitos, estereótipos, etnocentrismo e racismo; aprendizagem de como interagir com pessoas diferentes de nós ou
compreender as diferenças culturais; melhoria das habilidades matemáticas e de leitura/escrita de pessoas cujo capital cultural
é diferente daquele predominante nas escolas formais; desenvolvimento do aprendizado através de diferentes culturas e
estilos de aprendizagem; e, fundamentalmente, cultivo nos estudantes as atitudes, valores, habilidades, hábitos e disciplina a
fim de que se tornem agentes sociais comprometidos com a reforma da escola e da sociedade, erradicando as disparidades
sociais das mesmas. Numa análise bem simplista podemos perceber que o discurso do currículo multicultural demonstra a
intenção de pura assimilação ou integração de uma cultura a partir de outra cultura dominante. Muito raramente, afirma
Sacristán (2005), defende-se a compreensão de que as culturas têm a mesma importância, peso e prestígio nas instituições,
nas práticas e nos valores da população, razão pela qual ou se modifica a forma de entender e praticar a cultura dominante no
ensino, ou a integração de outras culturas não dominantes será muito difícil, senão impossível.

237
3. CURRÍCULO MULTICULTURAL NA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Quando as crianças das classes populares, trabalhadoras e mestiças, entram na escola, não deixam apenas os
chinelinhos na porta da sala, deixam também tudo o que sabem sobre o mundo e sobre si mesmas (GARCÍA, 1995, p. 136).

Da mesma forma, quando chegam à aula de educação física acabam sendo convencidas de que não sabem andar,
correr, saltar, arremessar, jogar, dançar... Movimentarem-se enfim. Sua cultura corporal é negada, em detrimento de uma
cultura de movimento sistematizada e difundida, com o intuito de disciplinar e docilizar seus corpos.
O processo de reprodução cultural transforma as escolas em meras provedoras dos conhecimentos e habilidades
ocupacionais – exigências de uma formação tecnocrática e especializada, características da política educacional neoliberal –
necessárias à atuação profissional na sociedade capitalista. O objetivo da escolarização passa a ser o de reproduzir e legitimar
os interesses econômicos e políticos das elites empresariais, ou o “privilegiado” capital cultural dos grupos da classe
dominante. Apoiados nessa visão, testemunhamos, na Educação Física Escolar, o ressurgimento do modelo de formação
esportiva que almeja a construção do “cidadão moderno”.
Para a maioria da sociedade, leiga, a Educação Física está diretamente associada ao esporte sendo, por isso, vista
como um treinamento para a “competição da vida”, ou como catarse e às vezes como mecanismo de “reabilitação” para os
indivíduos tornarem-se cidadãos. O esporte é selecionado como conteúdo do currículo escolar porque possibilita o exercício
do alto rendimento, “educa o homem forte, ágil, apto, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na
sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista” (COLETIVO DE AUTORES, 1992.p.36). Essa Educação Física
Escolar que tem como objetivo desenvolver a aptidão física:
Procura, através da educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o de sua condição de sujeito histórico, capaz
de interferir na transformação da mesma. Recorre à filosofia liberal para a formação do caráter do indivíduo, valorizando a
obediência, o respeito às normas e à hierarquia. Apóia-se na pedagogia tradicional influenciada pela tendência biologicista
para adestrá-lo (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p.36).
Com base nestes pressupostos é importante que busquemos caminhos que apontem para propostas de Educação
Física Escolar que possam realmente considerar as experiências e anseios dos alunos e da sociedade, valorizando seu capital
cultural, além de lhes proporcionar conhecimentos que possam colaborar com a conquista de uma melhor qualidade de vida
no sentido da igualdade e da democracia.
Podemos encontrar oposição e resistência ao modelo neoliberal da Educação Física no currículo sociocultural, cuja
principal preocupação se concentra no processo e na forma de produção da cultura do movimento corporal das diferentes
regiões e culturas, apontando para a necessidade de facilitar a apropriação dos elementos da cultura motora que fazem parte
de cada grupo social por todos os integrantes de uma sociedade.
Pérez Gallardo (2003), por exemplo, defende uma pedagogia da Educação Física que considere e respeite as
práticas corporais do cotidiano (denominadas cultura corporal patrimonial), que ele considera, serem as que fornecem a base
para se pensar como as pessoas dão sentido e significado às suas experiências e vozes. De acordo com Neira (2006), apesar
de mostrar as distinções que existem entre a cultura corporal da família e da rua com a cultura da escola, o professor de
Educação Física necessita articulá-las, sem hierarquizá-las, viabilizando a apropriação da cultura da escola a partir de
contextualização e construção de conhecimento. Cabe ainda ao professor esclarecer que tanto a cultura “popular” como a
“escolar” são partes do que se convencionou chamar de cultura; e que a cultura corporal foi construída historicamente, e
ainda é construída cotidianamente pelos indivíduos como resultado de sua ação. O acesso a ela é direito de todos, cabendo à
escola a função de socializá-la. “Pouco a pouco, convém explicar que o conhecimento é parte da luta pelo poder e que,
portanto, é preciso lutar pela garantia de acesso e apropriação, como parte da luta pela democratização da sociedade, e pela
sua própria emancipação.” (NEIRA, 2006 p.8)
Para isto, os professores têm que estabelecer com os alunos uma relação de parceria na construção do
conhecimento, num trabalho de “síntese cultural” (FREIRE, 2005 p.210), aproveitando a experiência de vida deles,
analisando, criticando e modificando (quando necessário) os conteúdos predeterminados pelos documentos de orientação
curricular. O fato de incorporar os conhecimentos da cultura corporal que os alunos já dominam ao currículo da Educação
Física Escolar possibilita uma melhor compreensão por parte dos alunos sobre o mundo em que vivem e favorece a
percepção da discriminação e exclusão de que são vítimas. Além disso, o professor potencializará a criança para sua luta por
sobrevivência, emancipação e participação social, política e cultural.
Esta proposta de incorporação do universo vivencial das crianças ao currículo da Educação Física precisa ser
trabalhada também nas faculdades e cursos de formação dos professores de Educação Física, na medida em que estes também
priorizam o enfoque da esportivização, com exacerbação da técnica e performance, descolada das condições históricas e
sociais. Os licenciandos são “treinados” a trabalhar com a Educação Física Escolar a partir do esporte como um fim em si
mesmo; como se fosse indispensável para vida de todo cidadão saber dar um saque, ou chutar uma bola, ou fazer um
arremesso na cesta.
De acordo com Neira (2006) o professor de Educação Física deve ser incentivado a transformar sua aula num
espaço de co-construção de conhecimentos, utilizando um esquema de resolução de tarefas de forma coletiva. Neste esquema
todos os alunos e o próprio professor estarão envolvidos num processo de troca e de confronto de conhecimentos, ajudando-
se uns aos outros. Uns aprenderão com os outros e aqueles que num dado momento revelarem saber menos do que outros

238
serão ajudados, pelo professor ou pelos que já sabem. O emprego de tarefas coletivas exigirá do professor outra postura: mais
importante do que suas orientações padronizadas para todos, serão necessárias conversas diferenciadas com os grupos
espalhados no espaço onde se desenvolvem as atividades, no sentido de encontrar a solução para os seus “problemas”. Esta
dinâmica acaba provocando, também, o deslocamento do professor, como única fonte do saber, para o coletivo, do qual
também ele é parte. O professor não terá mais o monopólio do conhecimento, ele sabe tanto quanto os seus alunos.
O professor terá que trabalhar dialetizando as diferentes manifestações culturais produzidas pelos diferentes grupos
que compõem a comunidade escolar – ideologia da cultura dominante e as ideologias das culturas migrantes e da classe
trabalhadora – criando, desta forma, condições para o desenvolvimento da criticidade, indispensável à capacidade de escolha
consciente e, por conseqüência, para a assunção da cidadania.
É preciso lembrar que apenas a criticidade não é suficiente para alcançar o exercício pleno da cidadania. Tão
importante quanto ela, é a criatividade, que reconstrói, após a desconstrução. Santos (2004 p.15) defende que precisamos
“criar condições para ampliar o campo das experiências credíveis neste mundo e neste tempo”, estimulando e acreditando na
capacidade dos alunos enquanto sujeitos criativos dentro do processo educacional. Seguindo esta proposta é de fundamental
importância o trabalho de valorização da criatividade do aluno como forma de estímulo a sua participação nas aulas ou em
outras situações de sua vida cotidiana.
Ainda no tocante à criatividade Nanni (1998) ressalta que esta é de vital importância no processo educacional de
transformação do homem, possibilitando a libertação do indivíduo do poder de dominação das elites e do poder público. Na
medida em que o aluno vai descobrindo formas mais eficientes e/ou adequadas de realizar os diferentes movimentos
corporais, respeitando seus limites e sua individualidade, mas respeitando a relação com o grupo, ele vai sendo incentivado a
continuar criando e modificando. As iniciativas de fazer “melhor” ou “diferente”, ou as adequações das regras de um jogo à
realidade física e material das aulas, devem ser decididas democraticamente pela coletividade, de forma que todos possam
participar das atividades e do processo de construção do conhecimento e da cultura.
Importante ressaltar também a colaboração de Santos (1991, p.188) apontando que “a cultura e o renascimento
cultural constituem por excelência a pedagogia da emancipação”. A cultura citada por Santos é aquela que surge a partir de
um processo de tradução entre as experiências sociais já disponíveis e as experiências sociais possíveis, ou seja, a partir da
interação dos sujeitos sociais, sugerindo assim que “quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo, mais
experiências serão possíveis no futuro” (Santos, 2004, p.27).
Desta forma acredita-se que a elaboração de um currículo multicultural para a Educação Física Escolar depende,
em grande parte, da adoção, pelos professores desta disciplina, de uma postura e metodologia de trabalho que venham
valorizar a cultura do movimento corporal de forma ampla e aberta à participação da comunidade escolar, priorizando o
entrecruzamento e a contextualização das diferentes culturas e conhecimentos que surgirão.

4. PLANEJAMENTO PARTICIPATIVO: UMA PROPOSTA PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR


Este projeto surgiu da necessidade de se pensar na verdadeira importância da disciplina Educação Física Escolar.
Será que o simples conhecimento de regras e técnicas de modalidades esportivas estaria efetivamente contribuindo com a
formação de cidadãos críticos e capazes de interferir na transformação da vida da sociedade? Começou a se pensar numa
alternativa pedagógica aplicável ao cotidiano das aulas de Educação Física Escolar, que possa atuar positivamente no
processo de transição do indivíduo passivo para o cidadão participativo, contemplando amplamente a diversidade cultural dos
sujeitos envolvidos no processo pedagógico e ainda por cima possa colaborar de forma eficaz para:
O desenvolvimento do pensamento crítico e autonomia de escolha: na medida em que se tem a oportunidade de
participação colaborativa e democrática na escolha dos conteúdos a serem vivenciados nas aulas, a reflexão crítica torna-se
indispensável para nortear a análise das possibilidades, propiciando uma tomada de decisão autônoma. Desta forma
experimenta-se também a partilha do poder de decisão, evitando as decisões autoritárias e verticais.
A construção do conhecimento e cultura feita a partir de atividades auto-organizadas que visam o protagonismo e
transformação social, inerente a todo processo que prevê participação coletiva nas tomadas de decisão; implicando na
construção da cidadania ativa.
Com base nestas reflexões, este estudo apresenta uma proposta de trabalho para as aulas de Educação Física
Escolar em que os interesses e as necessidades do aluno são os pontos centrais da elaboração de conteúdos fundamentados na
prática social. Segundo o Coletivo de Autores (1992) “os conteúdos da cultura corporal a serem aprendidos na escola devem
emergir da realidade dinâmica e concreta do mundo do aluno”. É um vasto leque de escolha para eles, que buscam priorizar
as atividades com as quais mais se identificam ou tem curiosidade em aprender, além de adequá-las ao espaço físico e
materiais disponíveis e aos limites e possibilidades de cada turma.
Esta proposta defende a participação efetiva dos alunos na escolha e organização dos conteúdos dentro do
planejamento das aulas, no desenvolvimento destes conteúdos e no processo de avaliação. Desta forma, o aluno terá a
oportunidade de escolher democraticamente os conteúdos que deseja vivenciar nas aulas e se tornará responsável pelas
conseqüências de sua escolha.
Cabe aqui um parêntese acerca das inúmeras críticas que estas idéias vêm recebendo, no que tange a
“incapacidade” e despreparo dos alunos para tomarem tais decisões. Pesquisa realizada por Borges (2004) em escolas
públicas nos EUA, Grã-Bretanha e Brasil, aponta que a maior falha do processo de democratização das escolas (e da

239
sociedade) está justamente na participação. É extremamente contraditório falar de participação igualitária entre indivíduos
desiguais em termos de poder e recursos intelectuais. Cabe então à escola a promoção de uma educação de “qualidades
políticas” (DEMO, 2002) além dos conteúdos formais já existentes. Ou seja, a participação precisa ser ensinada e aprendida
na escola e é esta a intenção deste projeto de planejamento participativo.
O planejamento participativo vem sendo desenvolvido nas aulas de Educação Física Escolar, numa seqüência que
inicia na quinta série e culmina na oitava série do ensino fundamental (porém continua no ensino médio) no C.E. Maria
Pereira das Neves. Seu planejamento tem características bastante peculiares. Por ser participativo, o professor não consegue
construir um planejamento prévio com descrição de atividades, este acaba sendo substituído por um roteiro de ações que ele
deve realizar a fim de estimular a participação e, ao longo dos períodos, buscando um maior envolvimento e
responsabilização dos alunos nos processos de escolha.
Os alunos da 5ª série do ensino fundamental iniciam com uma fase de preparação baseada na utilização e
aproveitamento do movimento natural e criativo dos alunos. Aqui o objetivo é promover uma sensibilização nos alunos, de
despertá-los para a possibilidade de expressar a sua opinião, de ver suas idéias serem valorizadas, de acreditar em si mesmo.
Importante lembrar que na maioria das escolas públicas estaduais o aluno da 5ª série está experimentando a
Educação Física pela primeira vez. Nas séries anteriores ele vivencia a Educação Física através de atividades recreativas sob
a orientação da própria professora regente de sala de aula.
Esta talvez seja a única etapa em que o professor ainda terá algum poder de decisão na seleção das atividades,
porém sem a possibilidade de determinar quanto tempo cada turma permanecerá nela, dependendo exclusivamente do
amadurecimento dos alunos. As aulas de Educação Física com base na criatividade possibilitam a intervenção autônoma na
modificação dos movimentos padronizados, evitando a exploração da técnica e da performance. O professor pode trabalhar a
partir de solicitação de tarefas ou proposição de desafios onde o objetivo final deve ser alcançado utilizando a criatividade e o
raciocínio (respeitando algumas regras que devem ser discutidas pelo grupo antes do início da atividade), ou a partir da
experimentação de brincadeiras sugeridas pelos próprios alunos, aonde vai sendo dada possibilidade de se modificarem as
regras, na medida em que alguma coisa começa a não funcionar bem. Ao professor cabe a tarefa de valorizar o movimento e
capacidade de criação de cada aluno, individualmente, e do grupo como um todo. As regras vão sendo discutidas com os
alunos, respeitando características de cada grupo, sendo assim o professor consegue observar que uma mesma brincadeira
acaba ficando diferente quando aplicada em grupos diferentes e também se modifica de acordo com o local onde acontece.
Esta possibilidade de intervir e modificar uma brincadeira, jogo ou atividade vai dotando o aluno de consciência crítica e
autonomia, além do sentimento de propriedade em relação à atividade que ajudou a construir. A observação do professor
ainda terá um valor muito alto no processo de avaliação, podendo utilizar recursos como propor aos alunos que se dividam
em grupos e criem um jogo, brincadeira ou dança e ficar observando todo o processo de elaboração a fim de avaliar a
participação, criatividade, organização, lideranças, justiça, preconceitos..., indícios importantes para serem discutidos nas
aulas e orientar a avaliação.
Após passar pela preparação inicia-se a fase de escolha. O planejamento agora se resume ao estabelecimento de
alguns temas a serem desenvolvidos nas aulas tais como: brincadeiras de rua, jogos com bola, brincadeiras típicas de
determinada região ou regiões, danças folclóricas... Estes temas devem estar relacionados com o PPP da escola, além de
aproveitar para elucidar contextualizando datas comemorativas (dia do folclore, consciência negra, combate ao fumo...) ou
eventos isolados (Copa do mundo, Olimpíadas...). As atividades são sugeridas inicialmente pelo professor e posteriormente
pela turma, respeitando os temas determinados no PPP. De acordo com o tema, o professor sugere algumas atividades e a
turma vota, elegendo para ser escolhida aquela, que toda a turma deverá concordar em fazer na aula daquele dia. Os temas
podem ser repetidos por um período de tempo ou em outra oportunidade e esta decisão também deve pertencer aos alunos.
Algumas vezes o professor pode perceber que existe a possibilidade de se realizar mais de uma atividade num mesmo dia
(simultânea ou alternadamente), ou porque o tempo de aula permite, ou porque a atividade escolhida é desgastante demais, ou
quando houver empate na votação da atividade.
Com relação à elaboração do Projeto Político Pedagógico o UNICEF (1993, apud Gadotti 2003) defende que ele
deve ser elaborado com a participação da comunidade. Para interferir efetivamente nos problemas educacionais, ele precisa,
além de se preocupar com as questões internas da escola (professores, conteúdos, condições de trabalho...), levar em
consideração reivindicações “externas” como as de: organizações de pais, de alunos, de moradores, etc. a fim de contribuir
efetivamente para melhoria da vida da comunidade. Por isso a presença de toda comunidade escolar é obrigatória no
momento da construção do Projeto Político Pedagógico, a fim de que a escola traga, através de suas ações pedagógicas,
soluções verdadeiras para os anseios e necessidades daquela comunidade. Paro (2002, p.57) argumenta que a escola estatal
deve servir à população que a utiliza, procurando agir de acordo com seus interesses, na medida em que a população é que
mantém o Estado.
A partir do momento que os próprios alunos passam a sugerir as atividades, o planejamento pode começar a ser
feito mensal ou bimestralmente. Tira-se um dia de aula, normalmente no início do mês ou bimestre, para realizar a votação
do planejamento. Neste dia cada aluno sugere duas ou três atividades de acordo com o tema vigente, as atividades mais
votadas são organizadas no cronograma de aulas do mês ou bimestre. Nesta mesma oportunidade o professor pode aproveitar
para fazer uma avaliação das atividades realizadas no mês ou bimestre anterior. É uma espécie de feedback, uma avaliação
para o professor e para turma perceberem o que está funcionando bem e o que precisa ser modificado em todo processo
(escolha, organização e realização das atividades). O professor, se julgar necessário, pode também incluir a auto-avaliação da

240
participação dos alunos nas aulas. Esta fase alia ao desenvolvimento da criatividade e autonomia de escolha, um óbvio
exercício de democracia, na medida em que a atividade escolhida pela maioria deve ser acatada por toda turma.
A proposta do planejamento participativo nas aulas de Educação Física Escolar culminará com a construção do
planejamento anual baseado nas sugestões dadas pelos alunos e votadas em “assembléia” com os mesmos. Isto costuma
acontecer por volta da 7ª/8ª série e deve permanecer por todo ensino médio, quando os alunos já estão acostumados a
expressar suas opiniões, fazer suas escolhas e responsabilizar-se por elas. O importante é ouvir todas as sugestões de cada
turma e tentar, na medida do possível, encaixar todas dentro do planejamento, ainda que seja numa vivência única. Este
planejamento como qualquer outro, pode sofrer modificações desde que solicitadas, discutidas e aceitas pelos alunos.
Na etapa final, a avaliação pode ser diária, mensal ou bimestral, conforme a necessidade demonstrada pela turma. O
professor pode encerrar cada aula com uma conversa breve solicitando alguns comentários da turma a partir do que ele esteve
observando, ou a partir de comentários feitos pelos próprios alunos durante a realização das atividades. Pode ainda promover
auto-avaliações regulares a fim de encontrar subsídios que, junto com suas observações, constituirão as notas bimestrais de
cada aluno. No caso de turmas com maturidade suficiente, o professor pode optar por uma avaliação onde, cada aluno se dará
uma nota, levando em consideração o seu envolvimento e participação nas aulas e esta nota pode ser comentada pelos colegas
de turma que não concordem com ela.

4. ESTABELECENDO RELAÇÕES
No que diz respeito à influência da educação na formação do cidadão, e desta com as decisões políticas em
sociedade, Gadotti (2002) defende a importância da escolarização formal para que o cidadão consiga dar conta do grande
volume de informações e das exigências de decisão próprios da vida democrática. Já Arroyo (2003) acredita que educação
não é precondição para a cidadania, isto é uma construção ideológica das elites. Para ele a luta pela cidadania, pelo legítimo,
pelos direitos é o espaço pedagógico perfeito para a formação do cidadão. Saviani (1989) considera que: toda prática
educativa possui uma dimensão política e vice-versa, são práticas distintas, porém inseparáveis, que caracterizam a prática
social. Santos (1991) afirma que a escola é também um espaço político, onde deve ser suscitada uma luta democrática
específica, no sentido de transformar as relações de poder aí existentes em relações de autoridade partilhada.
Baseado nas idéias destes autores o planejamento participativo pode ser considerado como uma proposta a ser
aplicada tanto na escolarização formal como na informal e se constitui numa excelente oportunidade de exercitar a luta pela
cidadania, ainda que dentro de um grupo reduzido. Segundo esta perspectiva é importante lembrar também a idéia de Silva e
Silva (2004) que atenta para o fato de que os jovens não estão apenas se preparando para a vida ou para a participação na
sociedade, mas já tem uma vida da qual a escola faz parte, e participam ativamente da sociedade com suas responsabilidades
e direitos.
A idéia de estimular a participação dos alunos no planejamento e avaliação das aulas pretende se constituir numa
alternativa curricular mais democrática, com base no fazer cotidiano dentro e fora da escola. Através da exploração da
criatividade e da participação na preparação, organização e avaliação das aulas, os alunos vão construindo conhecimento e
cultura, além de estarem preparando-se para transformar a realidade social e política com consciência crítica, criatividade,
autonomia, auto-organização e protagonismo. Segundo Silva e Silva (2004) a capacidade de auto-organização de um grupo e
a educação para o protagonismo é precondição para o desenvolvimento da cultura (que engloba a cultura do movimento
corporal), e desenvolve a capacidade de trabalho coletivo. Além disso, sabe-se que a produção cultural é realizada
socialmente, portanto é de fundamental importância estimular o trabalho coletivo e de auto-organização dos grupos a fim de
criar condições favoráveis para o desenvolvimento da cultura.
Porém sabe-se que não é tão simples pensar numa Educação Física realmente transformadora de realidades, que
contemple amplamente as diferenças dos indivíduos e ainda por cima possa colaborar com a construção da cidadania. A idéia
é desenvolver no aluno a capacidade de refletir, analisar e criticar os conteúdos (esporte, jogos, lutas, atividades rítmicas e
expressivas, ginásticas e conhecimentos sobre o corpo) prescritos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (MEC/SEF, 1997)
para poder modificar (quando necessário) suas regras, adequando-os a sua realidade e criar ou construir novas atividades com
participação dos diversos sujeitos do processo educacional, ou seja, dentro da prática das atividades desportivas, promoverem
esta vivência democrática. Pistrak (apud SILVA e SILVA 2004, p.39) acredita que as crianças e os jovens não estão se
preparando para entrar na sociedade, mas já fazem parte da mesma interagindo, com ela através de seus problemas, interesses
e objetivos. Concordando com ele deve-se procurar estabelecer dentro das aulas um clima de troca de experiências, síntese
cultural, tradução de idéias fundamental para o desenvolvimento da cultura e construção do conhecimento. Através deste
processo será possível desenvolver com os alunos o senso crítico (analisar o desporto de alto nível e suas arbitrariedades, a
influência da mídia nos esportes...); explorar o potencial criativo (através de atividades ou regras de jogos construídas pelos
alunos); vivenciar situações democráticas (a partir das possibilidades de intervenção dos alunos na escolha, organização e
desenvolvimento dos conteúdos); e, conscientizá-los da responsabilidade que têm sobre as conseqüências de suas escolhas,
incentivando uma participação política ativa em todos os processos sociais.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Aranha, M.L.A (1990). Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna.

241
ARROYO, M.G (2003). “Educação e Exclusão da Cidadania” In: BUFFA, Ester. Educação e Cidadania. São Paulo: Cortez.
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DARIDO S.C. (2003). Educação Física na escola: questões e reflexões. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
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FREIRE, P. (2005).Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra.
GADOTTI, M. (2002). Escola Cidadã. São Paulo: Cortez.
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Coimbra.
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educação da UERJ. (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez. p 777-823.
SAVIANI, D. (1989). Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. São
Paulo: Cortez: Autores Associados.
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_________ . (2006). A nova Lei da educação: trajetórias, limites e perspectivas. Campinas: Autores Associados.
SILVA, J.A.A. & SILVA, K.N.P. (2004). Círculos Populares de Esporte e Lazer: fundamentos para a educação do tempo
livre. Recife: Bagaço.
TORRES, C.A. (2001). Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da cidadania em um mundo globalizado;
tradução Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, RJ: Vozes.

Quando a educação faz a diferença: dilema das famílias brasileiras imigrantes

Lúcia E. Yamamoto
Tohoku University, Japan
GZF06213@nifty.com

Resumo: Quando discutimos a educação das crianças estrangeiras no Japão, um dos problemas que se levanta é a questão da evasão escolar.
O Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia japonês, preocupado com o aumento na evasão escolar, elaborou um
projeto para verificar quais eram as suas causas. Os resultados demonstraram que os motivos mais frequentes eram: o problema financeiro
familiar, a falta de proficiência na língua japonesa e intenções de retorno ao país de origem. Na questão da evasão escolar, ela não se
restringe somente aos problemas individuais, mas também aos sociais, como o contexto social em que as crianças migrantes e seus familiares
estão inseridos, as políticas de educação voltadas às essas crianças. No presente artigo, levantamos os casos das famílias que transitam entre
o Brasil e Japão, e que no momento da pesquisa viviam nas províncias de Aichi, Shizuoka ou Kanagawa, Japão. Analisamos quais as
estratégias de vida tomadas por esses familiares, como a educação das crianças se insere nesse contexto e qual a relação entre as estratégias
de vida e evasão escolar.
Os primeiros resultados desta pesquisa demonstraram que, as crianças vistas como dependentes e deslocadas de seus ambientes por decisões
familiares, tornam-se figuras centrais na elaboração dessas estratégias. São as crianças que, adaptadas ao novo ambiente, resistem às decisões
familiares de retorno. Esta pequena resistência traz para a família com filhos matriculados nas escolas japonesas um grande conflito, a
escolha do futuro dos filhos no Japão ou o futuro dos pais no Brasil.
Palavras chaves: família migrante, educação infantil, evasão escolar

Introdução
Quando discutimos a questão da educação escolar das crianças estrangeiras no Japão, um dos problemas que se
levanta é a evasão escolar. Preocupados com essa questão, as cidades como Kani (província de Gifu), Hamamatsu (província
de Shizuoka), onde há grande concentração de estrangeiros, iniciam o levantamento do número de crianças estrangeiras fora
das escolas. Segundo os dados coletados na cidade de Kani junto às famílias estrangeiras com crianças em idade escolar,
chegou-se a seguinte conclusão. No primeiro semestre de 2003, das 283 crianças estrangeiras em idade escolar, 4,2%
estavam fora das escolas, tanto públicas como particulares. Já no segundo semestre, a porcentagem é de 7,2% das 318
crianças em idade escolar. Ainda segundo esses dados, o número de evasão escolar é maior entre os adolescentes na idade de
14 anos, e os motivos são basicamente, não conseguir acompanhar os estudos e problema financeiro na familia (Kojima, Y.;
Nakamura, Y.; Yokoo, A. 2004).

242
Em 2005, como parte do programa de fomento à educação infantil estrangiera, o Ministério da Educação, Cultura,
Esporte, Ciências e Tecnologia japonês faz o levantamento do núnero de alunos estrangeiros fora das escolas, e suas causas.
Segundo esses resultados, 1% do total das crianças estrangeiras em idade escolar e registradas nas 11 cidades e 1 província
no Japão estavam fora das escolas, 17,5% delas não foram encontradas devido a mudança de endereço, retorno ao país ou
outros motivos. A porcentagem das crianças não identificadas nos faz supor que a proporção dos alunos fora das escolas
talvez seja maior do que a sugerida pelo ministério japonês (vide fig. 1). Ainda segundo esse levantamento, temos dados de
que o abandono escolar ocorre principanemte nos primeiros 3 anos do ingresso ou transferência escolar, e os motivos maiores
são problema financeiro (15,6% do total dos alunos que abandonaram a escola), não compreender a língua japonesa (12,6%),
problemas relacionados ao relacionamento humano nas escolas, como por exemplo, zombaria e maus tratos entre os alunos,
não conseguir fazer amizades, isolamento social, etc. (12,6%), e intenções de retorno ao país de origem (10,4%). As crianças
que abandonaram as escolas passam a maior parte do seu tempo em casa e sem nenhuma atividade, ou realizam trabalhos
irregulares (Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia 2005).

Figura 1 Porcentagem de alunos nas escolas e fora delas

100%
80%
60% Mob. Geográfica
40%
20% Evasão escolar
0% Escola Estrangeira.
Escola Japonesa

Fonte: Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia 2005

O governo japonês tem adotado algumas medidas para dar suporte ao ensino dos alunos estrangeiros, como por
exemplo, introduzindo professores responsáveis pelo ensino da língua japonesa durante o horário das aulas regulares,
contratando tradutores para melhorar a comunicação entre pais, professores e alunos, realizando workshops, grupos de
estudos com os professores diretamente responsáveis pelos alunos estrangeiros, visando a melhorar a sua qualidade de
ensino. Mesmo essas medidas não têm diminuído o número de alunos estrangeiros que abandonam as escolas (Ogawa, I.
2004). Olhando para os dados acima apresentados, somos convencidos da urgência em adotar medidas eficazes que permitam
o exercício do direito à educação a todas as crianças, independentemente da sua nacionalidade de origem, de sua etnia.
Verificando os motivos que levam a evasão escolar, pode-se sfirmar que essa questão não se restringe somente aos
problemas individuais, mas também aos sociais, como o contexto social em que as crianças migrantes e seus familiares estão
inseridos, às medidas de educação voltadas às essas crianças. No presente artigo, levantamos os casos das famílias que
transitam entre o Brasil e Japão, e que no momento da pesquisa viviam nas províncias de Aichi, Shizuoka ou Kanagawa,
Japão. Analisamos quais as estratégias de vida tomadas por esses familiares, como a educação das crianças se insere nesse
contexto migratório e qual a relação entre as estratégias de vida e evasão escolar.

Migração brasileira ao Japão


A migração dos brasileiros ao Japão inicia-se no final dos anos 80s, e nos anos 90s, o aumento desses migrantes
torna-se evidente. Antes da reforma da Lei de Imigração Japonesa (Japanese Immigration Control and Refugee Recognition
Act) os trabalhos desqualificados eram realizados pelos trabalhadores asiáticos ilegais, como os paquistaneses, iranianos e
chineses. Essa nova Lei torna possível somente aos filhos e netos de imigrantes japoneses realizarem esse tipo de trabalho.
Desde então, os brasileiros e outros latino-americanos de descendência japonesa trabalham legalmente nas indústrias de
automóvel e de componentes eletro-eletrônicos.
Atualmente a população brasileira é de 312.979 pessoas (Japan Immigration Association Statistics 2008). Seguida
das duas primeiras maiores comunidades étnicas, coreana e chinesa, a brasileira é a terceira maior comunidade estrangeira no
Japão (15% do total da população estrangeira). Em duas décadas desde o início dessa migração ao Japão, o número de
brasileiros que obtiveram o visto de permanência aumentou, chegando a 25% do total de sua população. Entretanto essa nova
tendência está restrita a um certo número de pessoas. Como os dados da Judicial System and Research Department nos
apontam, os brasileiros continuam a fazer o movimento circulatório entre o Brasil e Japão. Como podemos verificar na tabela
1, entre a população brasileira que entrou no Japão durante o período de 1998 a 2006, metade dela estava retornando ao país
pela segunda ou mais vezes. É esta a população que tem circulado pelos dois países. Esse movimento circulatório feito pelas
famílias brasileiras tem sido descrito pelos pesquisadores como `imigração sem intenções de imigrar` (Teijuka naki teiju).
Takamichi Kajita (2005) indica que, apesar do longo período vivendo no Japão, os trabalhadores brasileiros não têm
intenções de se fixar no país, assim como não sabem por mais quanto tempo permanecerão no país. A instabilidade
econômica e social vivida pelos brasileiros no Japão os desencoraja a se envolverem com a comunidade local, ao mesmo
tempo em que os impele a continuar nesse movimento circulatório.

Tabela 1 Entrada de brasileiros no Japão durante o período de 1990 a 2006

Entradas

Primeira vez Repetidas vezes


1990 94,3 5,7
1992 70,6 29,4
1994 63,4 36,6
1996 64,0 36,0
1998 52,8 47,2
2000 57,7 42,3
2002 46,4 53,6
2004 52,3 47,7
2006 47,8 52,2

Fonte: Judicial System and Research Department, 1991-2007

Sobre o trabalho de campo e os dados coletados


As cidades escolhidas para a coleta de dados foram Tama (nome fictício), província de Aichi; Aka, província de
Kanagawa; e Ozaki, província de Shizuoka. Em 2008, 6,3% da população total da cidade de Tama era estrangeira. Já na
cidade de Aka, 6,4%, e na cidade de Ozaki, 4,7% era estrangeira. (Takahama City 2008; Aikawa Town 2008; Omaezaki City
2008). Na tabela 2 temos dados sobre os vistos de residência dos brasileiros que vivem nas três províncias onde estão
localizadas essas três cidades.
Os dados foram coletados a partir de 3 diferentes fontes. Uma delas foi a minha própria experiência trabalhando
para a secretaria da educação da cidade de Tama, em 2003, como tradutora/orientadora de língua japonesa. Durante este
período tive a oportunidade de participar das atividades escolares, das aulas e observar o envolvimento das crianças
brasileiras na rotina escolar. Este trabalho me permitiu coletar dados sobre a interação entre os professores japoneses e os
alunos brasileiros, pais brasileiros e professores japoneses, e crianças e pais brasileiros. As outras duas fontes de informação
foram: questionário distribuído em 2004 aos professores que tinham em suas classes alunos brasileiros, e entrevistas
realizadas no período de 2003 a 2008 com pais brasileiros.

Tabela 2 Distribuição de vistos entre brasileiros nas províncias de


Aichi, Shizuoka e Kanagawa, Japão

Visto Temporário Cônjuge ou filho Permanente Total


(%) de japoneses (%) (%)
Província
Kanagawa 4.452 3.938 5.253 14.107
(31,5) (28,0) (37,2)
Shizuoka 24.996 9.110 16.913 52.014
(48,0) (17,5) (32,5)
Aichi 36.784 12.884 29.407 80.401
(45,7) (16,02) (36,5)
Fonte: Japan Immigration Association Statistics, 2008

Medidas de apoio escolar às crianças estrangeiras


Em 1992, como medida de fomento à educação infantil estrangeira, o Ministério de Educação, Cultura, Esporte e
Tecnologia japonês inicia a contratação de professores responsáveis pelo ensino da língua japonesa à essas crianças, como foi
anteriormente citado. Quando em uma escola pública primária ou ginasial estiver matriculado mais de 10 alunos que
precisam de apoio na língua japonesa, a secretaria municipal de educação indica um professor responsável (kahai) pelo
ensino desses alunos. Quando há mais de 21 alunos nessa mesma situação, são indicados 2 professores para essa função.
Muitas vezes é delegado a esses professores não somente o ensino da língua japonesa, mas também o ensino das matérias

244
escolares, e o apoio na adaptação dos alunos estrangeiros à escola japonesa. Outra medida tomada pelo governo japonês foi a
publicação dos materiais didáticos JLS (Japanese as a Second Language) voltado aos alunos estrangeiros (como por exemplo
Nihongo wo Manabo 1-3), juntamente com o seu manual voltado aos professores, guia escolar em inglês, português,
espanhol, tagalogo, vietnamita, coreano e chinês.
A nível municipal e das províncias, foram contratadas tradutoras/ orientadoras de língua que auxiliam o professor
responsável no ensino a essas crianças, além de fazer traduções aos pais dos alunos brasileiros. No caso das tradutoras/
orientadoras que trabalham para os municípios, elas são contratadas semestralmente, em alguns casos anualmente. Já as
profissionais que trabalham pela província, elas têm um contrato trianual.
Temos ainda o suporte dado pelas NGO (Non-Governmental Organization), que trabalham fora do sistema escolar,
e que dão apoio aos alunos e pais estrangeiros.
Todas estas medidas parecem responder às diversas necessidades dos alunos estrangeiros, inclusive dos alunos
brasileiros. Entretanto, se analisarmos como essas medidas funcionam dentro das escolas públicas, teremos um outro
panorama. Vamos tomar como exemplo o caso das escolas públicas da cidade de Tama. No final do ano letivo de 2003, nesta
cidade estavam matriculados 32 alunos primários (31 alunos brasileiros), distribuídos nas 4 escolas públicas. Desses, 11
alunos brasileiros precisavam de apoio escolar. Quanto aos alunos ginasiais, estavam matriculados 16 alunos (12 brasileiros),
distribuídos nos dois ginásios do município. Desses, somente 1 aluno precisava de apoio nos estudos. Para ensiná-los, o
professor responsável (kahai) fazia uma visita semanal a cada uma dessas escolas. Já a tradutora/ orientadora contratada pela
secretaria municipal de educação acompanhava o professor responsável, oferecendo-lhe assistência necessária na tradução. O
tradutor/ orientador contratado pela secretaria provincial de educação também dava o apoio escolar às crianças estrangeiras,
mas suas visitas às escolas eram mais esporádicas.
Analisando a qualificação desses professores responsáveis (kahai) podemos dizer o seguinte; os professores muito
raramente estão qualificados para ensinar o alunos estrangeiros. No caso da Tama, quando o número de alunos estrangeiros
matriculados era pequeno, cada escola se reponsabilizava pelos seus alunos estrangeiros. Nesse período, os responsáveis
pelos alunos estrangeiros eram os professores que cumpriam funções burocráticas dentro da escola. Com o aumento desses
alunos, foi feita a indicação de um professor responsável por todos os alunos estrangeiros matriculados nas escolas públicas
do município. O professor indicado tinha uma certa experiência no ensino às crianças estrangeiras, mas a sua formação era no
ensino às crianças deficientes. A falta de profissionais especializados é semelhante em outras escolas municipais. Fukunaga,
A. (2003), fazendo um levantamento das condições de ensino oferecidas pelas várias escolas públicas que recebem alunos
estrangeiros, chegou a conclusão de que os professores que se responsabilizavam por esses alunos não tinham nenhum
preparo para ensiná-los. Alguns dos professores que se tornam responsáveis esforçam-se a sua maneira para melhorar a
qualidade de ensino. Entretanto, com o sistema de transferência de professores, nem sempre esses mesmos professores
continuam nessa função ou se especializam no ensino às crianças estrangeiras.

Dificuldades no ensino aos alunos estrangeiros


Muito dos professores estão conscientes das várias dificuldades que enfrentam ao ensinar um aluno estrangeiro. À
sua maneira esforçam-se em utilizar novos métodos de ensino adequados aos alunos estrangeiros, e através de tentativas e
erros vão melhorando a sua qualidade. Dessa forma, os métodos e livros didáticos utilizados por eles são os mais variados
possíveis. Alguns professores preferem fazer o acompanhamento dessas crianças na classe e durante as aulas. Outros
preferem fazer o acompanhamento do aluno fora da classe, retirando-o da sala de aula durante o horário regular. Alguns
professores introduzem as apostilas preparadas por eles mesmos, outros acompanham os livos didáticos utilizados pelas
escolas.
O número de alunos estrangeiros não é constante durante o ano letivo. Alguns retornam ao país durante o período
escolar, outros são transferidos para outras escolas municipais, devido a mudança de emprego dos pais, outros ainda
transferem-se das escolas japonessa para as escolas particulares étnicas. Essas constantes mudanças dificultam o aprendizado
dessas crianças. No caso de Tama, no primeiro semestre do ano letivo tinham sido matriculados 40 alunos. Antes do término
do semestre, dois alunos são transferidos para a escola particular brasileira e uma aluna vem transferida da escola particular
brasileira para a escola pública japonesa. No segundo semestre, a mesma aluna volta ao Brasil, 1 aluno ginasial abandona a
escola, 1 aluna é transferida da escola particular brasileira para a japonesa e cinco alunos vêm transferidos das escolas
públicas japonesas de outros municípios. Abaixo, ilustro um caso que descreve bem a mobilidade dos alunos entre as escolas.
Estudo de caso 1: Ronaldo veio ao Japão há 6 anos atrás acompanhando a sua família. No Brasil, estava na primeira
série do primário, e logo que chegou ao Japão, foi matriculado nessa mesma série. Tendo dificuldades em se adaptar na
escola pública japonesa, seus pais o transfere para uma escola particular brasileira. Dois anos mais tarde, os pais, sem muitas
condições de mantê-lo na escola particular, o transfere novamente para escola pública japonesa. Em 2003, Ronaldo estava na
quinta série, mas tinha muitas dificuldades na leitura dos caracteres chineses (kanjis) e no entendimento de textos. Apesar do
professor apontar as dificuldades de Ronaldo, sua mãe acredita que seu filho tem condições de melhorar nos estudos, pois
constantemente faz as traduções à ela quando precisa ir ao hospital, à prefeitura, demonstratando assim ter proficiência na
língua japonesa.

245
Estratégias familiares e educação escolar
Essas constantes mudanças dificultam não só o aprendizado dessas crianças como também torna difícil um
planejamento de ensino. Os professores que acompanham esses alunos sentem-se desorientados com as atitudes ambíguas
dos pais em relação ao futuro de seus filhos. A incerteza de que a família vai permanecer ou não no país faz com que alguns
professores não se sintam muito motivados a se dedicar aos seus alunos brasileiros. Como um professor nos colocou; “apesar
dos nossos esforços em ensinar a este aluno, um dia ele vai voltar ao seu país”. Como a pesquisa realizada por Kenise M.
Kilbride (2000) tem demonstrado, a baixa expectativa dos professores em relação ao desempenho de seus alunos reflete na
forma como os mesmos percebem o seu próprio desempenho escolar. Dessa forma, podemos dizer que a baixa expectativa do
professor japonês influencia na falta de motivação de seu aluno brasileiro em se desempenhar bem academicamente.
A falta de incentivo também é vista dentro das famílias brasileiras. Os pais, céticos em relação ao futuro escolar de
seus filhos, muitas vezes não os incentivam a seguir nos estudos. Muitos deles consideram impossível seus filhos ingressarem
numa universidade japonesa. Como disse uma das mães entrevistadas: “Se já difícil para uma criança japonesa passar no
vestibular das universidades japonesas, vai ser impossível para os meus filhos”.
Apesar de terem seus filhos frequentando as escolas públicas japonesas, a expectativa de muitos pais é a de que
seus filhos ingressem na faculade, no Brasil. Essas famílias, mesmo com projetos de retorno ao país, matriculam seus filhos
nas escolas japonesas como uma forma de garantir uma educação contínua e estável. Entretanto, a longa permanenência no
Japão faz com que a família viva uma situação inesperada. As crianças, adaptadas a educação japonesa, recusam-se a
acompanhar seus pais de volta ao Brasil. Essas famílias vivem o constante conflito de estarem sempre prontas a deixar o
Japão, ao mesmo tempo em que vão criando vínculos com esse país.
Outro fator que afeta a educação das crianças brasileiras é o problema de relacionamento entre alunos brasileiros e
japoneses. Em casos extremos, os alunos brasileiros abandonam a escola, evitando maus tratos e zombarias. Um exemplo é o
caso das filhas da família Nakata, illustrado abaixo.
Estudo de caso 3: A família Nakata está no Japão há 8 anos. Acompanhando a família, vieram as três filhas, Rosa
(com 11 anos na época da migração), Sueli (8 anos) e Érika (2 anos). Logo que chegaram ao Japão Rosa é matriculada na 5ª
série do primário, Sueli na 3ª série e Érika, no maternal. Rosa, frequenta a escola japonesa por somente 2 anos. Sofrendo
maus tratos e zombarias, começa a frequentemente faltar às aulas. É transferida para a escola particular brasileira, mas antes
de terminar o ginásio, abandona a escola por completo e vai trabalhar na fábrica. Sueli conclui o primário na escola japonesa,
mas não consegue acompanhar o ginásio japonês. Assim como sua irmã mais velha, é transferida para a escola particular
brasileira. Permanece nessa escola por 2 anos, e também abandona os estudos. Sem atividades, e sem intenções de voltar a
estudar, passa a maior tempo em sua casa. Ao completar 15 anos, começa a trabalhar. Érika, depois de terminar a prè-escola,
ingressa na escola primária do município onde vive. No momento está na 3ª série. A difícil experiência escolar das duas
filhas mais velha faz com que os pais decidam por permanecer no país. Os pais esperam que com essa decisão, a filha mais
nova possa seguir os estudos na escola japonesa sem muitos transtornos.
As incertezas e os conflitos vividos por essas famílias geralmente são interpretados por alguns estudiosos como
uma falta de planejamento. Entretanto, como a pesquisa realizada por Edson Urano (2004) indica, o mercado de trabalho
japonês flexível e instável dificulta o planejamento, sendo os trabalhadores transferidos ou dispensados conforme as
necessidades da produção. Isto torna quase que impossível um planejamento a médio e longo prazo. O relato de dona Maria,
que está no Japão há 14 anos ilustra a instabilidade econômica vivida pelas famílias brasileiras no Japão.
Estudo de caso 2: Perguntado sobre os planos de permanecer definitivamente no Japão, dona Maria responde da
segunite forma:“É como se eu não tivesse...eu não tivesse mais vínculo lá (no Brasil). Tem a família só, mas assim, de
voltar.... De vontade, essas coisas, eu já não tenho mais. Porque eu cheguei com 17 anos, né. Vim nova. Ai...a gente criou
tudo aquilo. Então, por isso eu não tenho mais vontade de voltar para o Brasil. Não tenho mesmo. Quem me perguntar se eu
tenho vontadade de voltar para morar no Brasil, não, eu tenho casa lá, a gente comprou casa lá, mas assim, é uma casa que
está lá, entendeu, se de repente a gente precisar, chegar lá, tem um teto para morar, mas não que eu tenha aquele assim planos
de tantos, de daqui a tantos anos voltar. Não tenho. É engraçado isso. (Vocês pretendem comprar uma casa aqui, começar a
fixar moradia aqui?) Então, comprar uma casa, vontade a gente tem, mas é que é muito difícil, né. Para a gente que é
assalariado, sem bônus, sem essa coisa toda....é uma coisa assim, meia que..se a gente tivesse essa estabilidade de trabalho, aí
sim, aí daria vontade, coragem de encarar, mas como a gente não tem isso, não dá. A gente não sabe se vai ter um emprego
para trabalhar, entendeu. Aí não dá, não dá coragem de enfrentar essas coisas, por isso que a gente mora já nos apartamentos
do governo, porque é um pouco de estabilidade, né. Não é da gente, mas é uma estabilidade”.

Conclusão
Os resultados das entrevistas realizadas demonstraram que, a migração ao Japão inicialmente planejada para um
período curto de um a dois anos, com a contínua instabilidade econômica no país de origem, muitos protelaram o seu retorno,
permanecendo no Japão mais do que planejavam. Outros, após a vinda de seus membros familiares, vão se fixando no país,
apesar de inicialmente não ter sido essa a intenção.
As famílias de classe média entrevistadas, apesar de terem tido uma queda na posição social, acreditam que essa
perda é temporária. A migração ao Japão é vista como uma boa experiência de vida e um bom investimento econômico. Este

246
pensamento é expresso nas palavras de um dos entrevistados. “A experiência de vida é mais importante do que a educação. A
educação não é suficiente para se alcançar uma vida melhor”.
Tendência semelhante é vista na atitude dos pais em relação à educação de seus filhos no Japão. Muitas famílias
brasileiras não vêem a educação japonesa como uma forma de seus filhos alcançarem sucesso profissional na sociedade
japonesa. Dificuldades em relação ao aprendizado e os planos familiares de um dia retornar ao Brasil desestimulam as
crianças de continuar estudando nas escolas japonesas. Para muitas famílias brasileiras a educação nas escolas japonesas não
é vista como uma estratégia das famílias ascenderem socialmente.
Ainda em relação as estratégias familiares, chegamos à conclusão de que as crianças, vistas como dependentes e
deslocadas de seus ambientes pelas decisões familiares, tornam-se figuras centrais na elaboração das novas estratégias de
vida. São as crianças que, adaptadas ao novo ambiente, resistem às decisões familiares de retorno, ou em alguns casos,
deixadas pelos pais no Brasil, recusam-se de acompanhá-los na segunda fase da migração. Esta pequena resistência traz para
a família com filhos matriculados nas escolas japonesas um grande conflito, a escolha do futuro dos filhos no Japão ou o
futuro dos pais no Brasil.

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Portugal. 16-18 de setembro, 2004.

Género, Educação e Desenvolvimento - Manual de Apoio (Faculdade Ciências


Pedagógicas - Moçambique)

247
Maria José Rosário
Escola Superior de Educação de Beja
mrosario@eseb.ipbeja.pt

Maria Inês Faria


Escola Superior de Educação de Beja
mifaria@eseb.ipbeja.pt

Maria Joaquina Nunes


Escola Superior de Educação de Beja
mnunes@eseb.ipbeja.pt

Resumo: As questões de género constituem um fenómeno que ultrapassam as fronteiras nacionais e continentais e constituem um dos
principais desafios que o mundo actual enfrenta. Apesar de todas as mudanças que ao longo dos últimos tempos se têm construído, ainda se
está longe de a igualdade de oportunidades e o tratamento justo e igualitário serem atribuídos a todas as mulheres e homens. Até porque a
questão da igualdade não é uniforme ela engloba diversas expressões da diferença e da desigualdade, nomeadamente entre as mulheres e
entre elas e a multiplicidade das suas condições de vida, para além das existentes entre as mulheres e os homens. Isto pressupõe que mais do
que a luta pela igualdade, a questão do género deve ser perspectivada como um processo sociocultural que envolve mudanças políticas,
sociais, culturais e económicas, simultaneamente estruturadoras de um processo de construção de desenvolvimento social.
Não é possível pensar a igualdade de género e a relação entre género e desenvolvimento sem equacionar o processo contínuo de
democratização das instituições, públicas e privadas, e das relações domésticas e políticas. É no contexto enunciado que o manual da
disciplina Género, Educação e Desenvolvimento, situa as questões de género, tendo como finalidade possibilitar um conhecimento teórico e
conceptual sobre esta problemática, assim como, permitir o desenvolvimento de competências analíticas e reflexivas sobre o objecto de
estudo, de forma a permitir uma compreensão da realidade sociocultural Moçambicana e fundamentar qualquer intervenção, em contexto, no
sentido de promover a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, contribuindo para a construção do processo de desenvolvimento
em Moçambique, a partir da constatação do desfasamento que existe entre as concepções comuns e a realidade concreta. O principal critério
que esteve subjacente à concepção do manual foi o de simultaneamente enquadrar cientificamente a temática e possibilitar uma aplicação
desses conteúdos à reflexão sobre a sociedade em Moçambique.

O conceito de género, torna-se um conceito emergente na agenda científica e política da maior parte dos países
desenvolvidos no final dos anos 70 e no início dos anos 80. Contudo, o contexto sociocultural em que a questão da
desigualdade entre homens e mulheres emerge publicamente está historicamente balizado pelas revoluções burguesas do
século XVIII, há duzentos anos atrás.
Ao longo dos séculos XIX e XX as questões relativas à igualdade foram objecto de questionamento e tentativas de
clarificação quer por parte das Ciências Sociais quer da Política. Assim, duas grandes teses foram construídas, a primeira que
privilegia a igualdade de condições para a livre competição dos indivíduos, ou seja, a questão da igualdade de oportunidades.
A segunda tese orienta-se para a procura de justiça na satisfação das necessidades e dos direitos de cada um,
independentemente da desigualdade existente à partida, na tentativa para que seja reduzida ou eliminada toda a desigualdade
entre todos e todas. Herdeiras dessa tradição são as ideias de justiça social, e as ideias de justiça de género, justiça económica
e justiça ambiental, trazidas para o debate por diferentes correntes de pensamento que enquadram os movimentos sociais.
Os anos 70 do século XX, marcaram o aparecimento de novos temas e luta por novos direitos de que são exemplos
o debate sobre o direito ao próprio corpo e a defesa de uma sexualidade livre e autónoma para as mulheres. Estes temas
foram objecto de tratamento político sob a forma de direitos reprodutivos e de direitos sexuais, tornando-se objecto de
medidas políticas, jurídicas e sociais que constituem a base da elaboração de medidas punitivas para práticas contra as
mulheres, antes consideradas costumes vulgarmente aceites.
A partir de 1975, cresce, na esfera internacional, a presença das questões de género. São marcos desse processo a
Década da Mulher, 1975-1985, instituída pela ONU, e o Ciclo Social de conferências das Nações Unidas, levados a cabo
durante os anos 90, culminando com a IV Conferencia sobre Mulher, Desenvolvimento e Paz, em Pequim (Beijing, 1995). As
questões de género no discurso hegemónico foram, entretanto, crescentemente sendo absorvidas e articuladas apenas ao tema
da pobreza e da participação política, mantendo-se os outros temas/problemas, como a violência e os direitos reprodutivos
ainda um pouco periféricos. Se o mais comum é o género aparecer associado apenas ao tema da pobreza das mulheres, o
problema já de si grave é construído abstraindo-se de qualquer contextualização e averiguação da perspectiva histórica, ou
seja das causas e responsáveis pela produção da desigualdade.
Contudo, apesar de todas as mudanças que ao longo dos últimos tempos se têm construído, ainda se está longe de a
igualdade de oportunidades e o tratamento justo e igualitário serem atribuídos a todas as mulheres e homens. Até porque a
questão da igualdade não é uniforme ela engloba diversas expressões da diferença e da desigualdade, nomeadamente entre as
mulheres e entre elas e a multiplicidade das suas condições de vida, para além das existentes entre as mulheres e os homens.
Isto pressupõe que mais do que na luta pela igualdade, a questão do género deve ser perspectivada como um processo
sociocultural que envolve mudanças políticas, sociais, culturais e económicas.
Actualmente são muitas e contraditórias as possibilidades de se relacionar género com desenvolvimento. Cada uma
dessas possibilidades pode colocar mais ou menos ênfase nos processos de democratização. Parece importante demarcar que,

248
se existem muitas diferenças de perspectivas de género no contexto da cooperação internacional para o desenvolvimento,
estas não são exclusivas desse campo de relações e práticas, mas perpassam também opções e práticas de governos locais e
nacionais, assim como práticas de Organizações Não Governamentais (ONGs) e movimentos sociais. O desenvolvimento,
como processo sociocultural é estruturado pelas relações de poder que articulam instituições, processos socio-económicos,
factores tecnológicos, etc.
Uma abordagem para o problema do Género e Desenvolvimento deve focar não apenas as questões da pobreza e da
reprodução, mas a análise das relações sociais e de poder tal como o conjunto das variáveis socioeconómicas que enquadram
um determinado contexto. Deve valorizar-se o fortalecimento das organizações de mulheres, assim como o empoderamento
(empowerment) individual de cada mulher, nomeadamente uma maior autonomia sobre as decisões relativas a sua própria
vida. Num estudo nos anos 70 de Ester Boserup, intitulado Women's Role in Economic Development, refere-se que se a
modernização na esfera produtiva não é acompanhada pela democratização das relações sociais, dificilmente promoverá o
atenuamento das desigualdades sociais, entre elas, as de género.
A perspectiva de género nas práticas de cooperação para o desenvolvimento num primeiro momento, encarou as
mulheres em situação de desvantagem em relação aos homens, privilegiando-se, em decorrência disso, medidas de correcção
do acesso aos recursos e benefícios do desenvolvimento - as chamadas políticas afirmativas e políticas compensatórias. Mais
recentemente, as mulheres foram avaliadas como potencialmente úteis ao desenvolvimento: não desperdiçam os recursos
nelas investidos, porque, mais do que os homens, sentem-se comprometidas com a economia familiar, o sustento e o bem-
estar dos filhos. Essa preocupação das mulheres - com o cuidado e o bem-estar do grupo doméstico, com a vida das pessoas,
preocupação para a qual foram "treinadas" e disciplinadas ao longo da história da humanidade - tem sido instrumentalizada
em muitos programas governamentais. Portanto, elas passam a ser um recurso importante para programas de
desenvolvimento.
Por fim, destaca-se que a democracia e o desenvolvimento envolvem um nível de fortalecimento das pessoas
enquanto pessoas, enquanto indivíduos e, ao mesmo tempo, exigem a transformação de instituições em que essas pessoas se
inscrevem no seu quotidiano, a fim de permitir a construção da democratização das relações sociais, que simultaneamente
implicam a transformação e reestruturação das organizações e instituições sociais. A família e a escola, constituem duas das
instituições e estruturas sociais em que historicamente se construíram e reproduziram as relações de desigualdade entre os
sexos onde se torna necessário intervir, quando se equaciona a questão da igualdade de género e se entende a sociedade como
um campo de reconstrução permanente. Nesta óptica não é possível pensar a igualdade de género e a relação entre género e
desenvolvimento sem equacionar o processo contínuo de democratização das instituições, públicas e privadas, e das relações
domésticas e políticas.
É no contexto enunciado que o manual da disciplina Género, Educação e Desenvolvimento, situa as questões de
género, tendo como finalidade possibilitar um conhecimento teórico e conceptual sobre esta problemática, assim como,
permitir o desenvolvimento de competências analíticas e reflexivas sobre o objecto de estudo, de forma a permitir uma
compreensão da realidade sociocultural Moçambicana e fundamentar qualquer intervenção, em contexto, no sentido de
promover a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, contribuindo, assim, para a construção do processo de
desenvolvimento em Moçambique, a partir da constatação do desfasamento que existe entre as concepções comuns e a
realidade concreta. O principal critério que esteve subjacente à concepção do manual foi o de simultaneamente enquadrar
cientificamente a temática e possibilitar uma aplicação desses conteúdos à reflexão sobre a sociedade em Moçambique. Os
textos seleccionados que integram o manual, no que se refere ao suporte conceptual e teórico, resultaram de uma revisão
bibliográfica de autores da área das Ciências Sociais, particularmente da Sociologia, e de autores que se debruçaram sobre o
estudo da realidade social de Moçambique. Donde decorre a estrutura que é organizada em torno dos seguintes temas:

A Questão do Género – Enquadramento/ Evolução Histórica e Conceitos Básicos


Género e Desigualdades Sociais
Género e Educação
Género e Desenvolvimento

A estrutura de cada parte inclui um índice de conteúdos, textos, sugestões para reflexão, discussão e exercícios de
aplicação, e por último bibliografia complementar. A utilização do manual pode ser feita seguindo o índice, mas também,
cada uma das partes do manual, assim como cada texto que nela está contido, pode ser utilizada como conteúdo autónomo e
como tal ser explorado independentemente dos outros.

BIBLIOGRAFIA
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249
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Oportunidades e Educação – Formação de professores. Lisboa: CIDM. Universidade Aberta. CEMRI.
Silva, Gabriela. (2007). Educação e Género em Moçambique. Porto: CEAUP. Colecção e-

“Professores da Escola Pública: sentido da aprendizagem”

Cleomar Azevedo
UNIFIEO
cleomar.azevedo@uol.com.br

Resumo: A docência é hoje no Brasil um campo de atuação repleto de conflitos e angustia em especial no ensino fundamental.Este trabalho
é o resultado de uma proposta de reflexão junto a professores da escola pública do ensino fundamental em um município da rede oeste de
São Paulo, com professores de diferentes disciplinas, portanto com formação e proposta de trabalhos diferentes.As queixas comuns aos
docentes eram: “a dificuldade de aprendizagem dos alunos, o comportamento, desinteresse dos mesmos e a violência presente em seu dia a
dia”.Outros fatores apareciam tais como: falta de materiais, acompanhamento da família e melhores salários.Diante da solicitação de uma
proposta de trabalho e reflexão junto aos docentes sugerimos a discussão e reflexão dos seguintes temas: a formação dos educadores e as
implicações para o desenvolvimento da aprendizagem; a proposta de ensino feito à população que freqüenta normalmente este nível de
escolaridade, a busca da igualdade social através de uma aprendizagem significativa que envolve a auto-estima, o reconhecimento do sujeito
como autor da sua produção intelectual e a motivação que faz parte deste processo.A proposta foi aceita e o desenvolvimento do trabalho deu
se na escola nos horários e dias solicitados pelos docentes.O campo de atuação dos professores é marcado pelo conflito, pela dificuldade de
atuação e falta de alternativas para transformar esta situação.A intervenção foi feita através da escuta e do dialogo junto ao corpo docente,
com acompanhamento e tomada de decisões em conjunto em busca de alternativas de atuação diante da realidade vivenciada pelos
docentes.
Palavras Chaves: conflito, intervenção, professores, aprendizagem.

Introdução
Estamos no terceiro milênio, era da globalização, a humanidade vivencia grandes avanços tecnológicos que
possibilitam novos conhecimentos, e para acompanhar essas mudanças a aquisição destes é fundamental. O desenvolvimento
da aprendizagem no processo de escolarização tem encontrado muitas dificuldades, as inúmeras reprovações e a evasão
escolar, que fazem parte deste processo e a preocupação em atender à crescente demanda que acompanhou o processo de
urbanização do país deixou de lado a qualidade do ensino fundamental. Com relação às dificuldades e os problemas
encontrados nesta aprendizagem, é necessário levantar questões como: a formação do educador, o tipo de proposta de ensino,
o material utilizado, a análise do desenvolvimento do processo de aprendizagem do aluno.
Partindo-se da idéia de que a transmissão do conhecimento caracteriza-se por um movimento psíquico que se
mantém internamente, mas vinculado à realidade; conhecer qual a representação de aprendizagem do professor que trabalha
com este processo, e a relação com a sua subjetividade, é o objetivo deste trabalho, que tem como proposta desenvolver uma
pesquisa intervenção buscando alternativas de mediação e quais implicações são importantes neste processo de
aprendizagem.
A possibilidade de desenvolvimento da pesquisa intervenção esta pautada na busca e na compreensão das relações
existentes no processo de aprendizagem, verificando assim a possibilidade de contribuição para o corpo docente no
desenvolvimento de uma atuação que tenha como resultado a aprendizagem significativa dos alunos.
As atividades que venho realizando em escolas junto a professores, diretores, coordenadores, alunos e seus
familiares levaram me a refletir sobre a subjetividade e a representação vivenciada na prática do professor.Pensar que um
modelo de sujeito pode definir a organização psíquica, e orientar as metodologias de intervenção propostas, tornaram se fonte
de preocupação, já que pude acompanhar, nos trabalhos, a subjetividade de cada sujeito e a necessidade de repensar os
procedimentos adotados nas atividades desenvolvidas.
As reflexões propiciadas por essas atividades estimulavam o questionamento da idéia do sujeito moderno - do
indivíduo - como referência a um padrão subjetivo. Assim, focar a atenção e olhar com outras lentes, talvez possa explicitar
algumas relações entre as conformações sociais e as subjetividades, questionando o modelo individualizado que subsidia a
concepção de sujeito universal definido a priori e orienta os métodos sociológicos, psicológicos e pedagógicos.Esta proposta
de pesquisa intervenção é voltada ao desenvolvimento e à implementação de estratégias que possibilitem a escuta dos
professores do ensino fundamental da rede publica de ensino em um município da região oeste do estado de São Paulo.

Contextualizando a Temática
Com as mudanças ocorridas no desenvolvimento histórico do homem, a primeira conseqüência da modernidade na
subjetividade humana é o mecanicismo como modelo exclusivo de racionalidade e à subordinação irrestrita, em todos os
domínios, da qualidade à quantidade.A dessubjetivação e a desteleoligização do objeto da ciência natural moderna está ligada

250
segundo Heidegger à técnica moderna, que, historicamente, se desenvolve de maneira conseqüente só na segunda metade do
século XVIII com a invenção da máquina a vapor, é o motivo secreto da preparação e da transformação cartesiana da
natureza enquanto base filosófica da física moderna.
A trajetória dessa subjetividade dominadora, que responde à essência técnica da ciência moderna e ao seu
construtivismo, pode inverter-se em uma humilhação e, às vezes, numa degradação do homem, que não é apenas a expressão
de seu destronamento cosmológico e ontológico face à imensidão do universo, ou face à entropia do seu habitat natural.
Segundo Adorno & Horkheimer (1985) o homem, como ser vivo, é também natureza, de modo que a dominação
técnica sobre a natureza externa exige, igualmente, a subjugação sacrificial da sua própria natureza interna e a subjugação
violenta do outro homem. Isso porque, à força de se adaptar a essa natureza recriada como um mundo técnico de artefatos, a
fim de assegurar a sua autoconservação num tempo de reprodução social cada vez mais competitivo, o homem reconhece que
a sua subjetividade, retraída a esse ponto focal da dominação cega da natureza e de auto-superação vazia, é tão pouco viva
quanto esse mundo incomensurável de objetos que ela mimetizou para dominá-lo.
Há uma dialética de dominação e subjugação que opera na técnica moderna; por um lado ela mostra a superioridade
do espírito sobre a natureza, pois o trabalho necessário para a construção do instrumento exige a protelação, o adiamento da
satisfação imediata, bem como a separação do objeto do seu meio natural, para lhe atribuir outros fins; mas a técnica libera o
homem da natureza, acelerando e intensificando a satisfação das necessidades, ela gera outras, multiplicando os meios de
satisfazê-las e, com isso, cria meta-necessidades, isto é, necessidades a serem satisfeitas exclusivamente por uma mediação
técnica cada vez mais complexa.
Quando esta dinâmica indefinida da técnica, que corresponde ao infinitismo da ciência moderna é seqüestrada pela
expansão incondicional das forças produtivas, desencadeada pela autovalorização indefinida do capital, fecha-se
historicamente o ciclo da transposição, objetivação e amplificação dos órgãos sensoriais e das capacidades humanas em
aparelhos: primeiro os processos motores, depois os sensoriais e, por fim, os de pensamento.
De acordo com as análises de (Giddens, 1991; 1993) o dinamismo da modernidade deriva da possibilidade de
separação do tempo e do espaço, do desencaixe dos sistemas sociais, e da ordenação e reordenação reflexiva das relações
sociais à luz das contínuas entradas de conhecimento afetando as ações dos indivíduos e dos grupos sociais.
Um contraste com a tradição é inerente à idéia de modernidade. Nas culturas tradicionais a tradição é um modo de
integrar a monitoração da ação com a organização tempo-espacial da comunidade. Ela é uma maneira de lidar com o tempo e
o espaço, que insere qualquer atividade ou experiência particular dentro continuidade do passado, presente e futuro, sendo
estes por sua vez estruturados por práticas sociais recorrentes. A reflexividade (a apropriação reflexiva do conhecimento)
pode ser destacada da tradição designada com o advento da escrita (Giddens, 1991).
“Com o advento da modernidade, a reflexividade assume um caráter diferente. Ela é introduzida na própria base da
reprodução do sistema, de forma que o pensamento e a ação estão constantemente refratados entre si” (Giddens, 1991,
45).

Mesmo assim, a tradição ainda desempenha um papel no mundo contemporâneo, mas apenas enquanto tradição
justificada e, portanto, falsificada, legitimada apenas pela reflexividade do moderno.
Segundo Giddens (1991), a segunda fonte do dinamismo da modernidade diz respeito aos desencaixes do sistema
social. Ao falar de desencaixes o autor se refere ao “deslocamento” das relações sociais de contextos locais de interação e sua
reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço. Os dois sistemas de desencaixe envolvidos no
desenvolvimento das instituições sociais modernas são as fichas simbólicas e os sistemas peritos.
As fichas simbólicas são os meios de intercâmbio que podem ser circulados sem ter em vista as características
específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com elas em qualquer conjuntura particular. A principal é o dinheiro.Em
outras palavras, o dinheiro é um meio de distanciamento tempo-espaço, já que possibilita a realização de transações entre
agentes amplamente separados no tempo e no espaço. Devido a este traço, uma das formas mais características de desencaixe
na era moderna é a expansão dos mercados capitalistas (Giddens, 1991, p.32-34).
Os sistemas peritos são de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos
ambientes material e social em que vivemos hoje. Eles são mecanismos de desencaixe porque removem as relações sociais
das imediações do contexto, pressupondo e, ao mesmo tempo, promovendo a separação entre espaço e tempo como condição
do distanciamento tempo-espaço que eles realizam (Giddens, 1991, p.35-36).
A separação tempo-espaço é outro ponto crucial para entendermos o extremo dinamismo da modernidade porque:
“Tempo e espaço são recombinados para formar uma estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência” (Giddens,
1991, p.29).

A Questão da Subjetividade e a Consciência


É inegável o fato de que formamos imagens mentais e que estas são privadas. Essa concepção sugere algumas
questões intrigantes, tais como: qual a finalidade de experiências que são completamente privadas, como, por exemplo, a
consciência?
Conforme Smith (1995, p. 340), a linguagem privada possui dois sentidos: um epistemológico e outro ontológico.
O primeiro decorrente do fato de que as palavras se referem àquilo que apenas o falante pode conhecer e uma outra pessoa

251
poderia supor; o segundo, decorrente do fato de que ela se refere a sensações imediatas e privadas, isto é, a sensações que
pertencem ao falante e não podem ser possuídas por mais ninguém.
A diferença entre linguagem privada e linguagem comum decorre do fato de que a linguagem privada não dispõe
do comportamento natural do homem para explicar o significado das palavras. Na linguagem privada, o significado da
palavra tem como único referencial à sensação. Isso significa que não apresenta um referencial externo, conforme explica
Smith (1995 p. 341):
Na linguagem privada, naturalmente não dispomos do comportamento ou da expressão natural da dor para explicar o
significado da palavra ‘dor’, pois nesse caso ela não seria privada no sentido exigido, uma vez que o comportamento é
público e acessível a outros homens. O modelo da linguagem privada me permite dispor de somente dois elementos: a
sensação e o nome para esta.

Disso decorre um problema: ao aplicar esse modelo (associação entre palavras e coisas) para o caso das sensações,
transformamos as sensações em coisas, de forma a assimilar a lógica da nossa linguagem para objetos físicos à lógica de
nossa linguagem para sensações. Ocorre assim, segundo Smith (1995, p. 342), uma coisificação das sensações.
Estando a linguagem privada fundamentada no pressuposto de que ‘só o indivíduo que tem a sensação [no caso da
‘dor’] pode formular uma representação desta, temos o caso claro da aplicação do modelo de associação entre palavras e
coisas, o qual supõe, de certa forma, que idéias [representações mentais] e objetos são da mesma natureza, transgredindo se,
assim, a diferenciação de propriedades.
Nesse sentido, Smith (1995, p. 342) admite que “a linguagem privada [...] é uma sofisticação do modelo ‘nome
objeto’ quando aplicado ao caso das sensações”.
Partindo da idéia de sensação coisa, Wittgenstein argumentará que esta se tornará desnecessária para o significado
da palavra. Interpretar a sensação como uma coisa privada para explicar o significado das palavras para a sensação conduz à
própria superação dessa interpretação.
Em suma, poderíamos afirmar que todo o problema está em pensar as sensações a partir do modelo ‘nome objeto’,
ou seja, o modelo que nos permite interpretar uma sensação como sendo alguma coisa e, em não sendo alguma coisa,
necessariamente teríamos que negar a sua existência.
Para Wittgenstein descrever sensações e coisas (objetos) são atividades diferentes: Sem dúvida que eu não
identifico a minha sensação por meio de critérios, mas antes faço uso da mesma expressão. Mas com isso não acaba o jogo de
linguagem: com isso começa o jogo de linguagem. Mas não começa com a sensação que eu descrevo?
A palavra ‘descrever’ pode iludir-nos. Eu digo “Eu descrevo o meu estado de consciência’ e ‘Eu descrevo o meu
quarto’. Não podemos esquecer a diversidade dos jogos de linguagem (WITTGENTEIN, 1995, p. 356)”.

Acredita-se que seja possível que o signo adquira significado a partir de sua associação com a sensação ou, em
outros termos, como sugere o questionamento, que a mera associação com a sensação pode dar significado ao termo.
Nessa hipótese, poderíamos dizer que entender o significado de uma palavra é ser capaz de dar uma explicação que
sirva de definição, de forma tal que, na medida em que uma definição nos dá o significado de uma palavra e na medida em
que eu disponho de uma espécie de definição, eu possa atribuir significado a um signo.
Assim, considerando que uma proposição tem seu significado, segundo o Tractatus, determinado pela bipolaridade,
e considerando ainda que, conforme a hipótese da associação, as palavras e as coisas têm a mesma natureza, então,
certamente uma proposição do tipo ‘tenho dor’ será verdadeira ou falsa.
Considerando dessa forma, pode-se afirmar que é necessário recorrer a algo público e observável, seja o próprio
corpo, sejam objetos físicos, para que possamos ter critérios que nos permitam distinguir entre sensações.
Pois aquilo que chamamos de linguagem só tem sentido em um contexto público, e uma tentativa de, por exemplo,
reduzir ou explicar os estados mentais a partir de estados cerebrais, como se o medo fosse um impulso elétrico do cérebro,
incidiria nos mesmos erros que a teoria da linguagem privada (SMITH, 1995, p. 363).
Mas observa Gianotti que:
A significação sempre possui uma aura de indeterminação que, se permite seu manejo dum determinado espaço lógico,
requer certos comportamentos discriminatórios que apelam para fatos, objetos, e assim por diante, que circundam o ato
concreto de significar (1995 p. 155).

Portanto as representações de estados subjetivos também estão limitados pelo espaço lógico (Wittgenstein).
Essa representação dos estados subjetivos não pode ser concebida aos moldes das representações das coisas
materiais, caso contrário, cairíamos no mesmo erro de conceber os estados mentais como coisas.
Partindo dos pressupostos apresentados, acreditamos ser impossível a elaboração de uma teoria geral e objetiva do
significado, que seja única para todas as instâncias. Ou seja, não se pode construir um único critério para estados de
consciência ‘internos’ e ‘externos’. Isso não significa a defesa da possibilidade de uma “linguagem privada”, porém, é
evidente a impossibilidade de elaboração de um estatuto comum de significação, mesmo considerando a idéia de espaço
lógico.A questão da subjetividade e a consciência trás sua contribuição, mas é importante também ser analisada através de
outra fundamentação teórica que é a teoria das representações sociais.
Esta abordagem psicossocial do conhecimento busca uma compreensão do homem na sua totalidade, ou seja,
enquanto um ser que pensa, age e sente por meio de uma relação dialética com o meio circundante. A Teoria das

252
Representações Sociais suas origens epistemológicas, bem como sua natureza e dimensões metodológicas, possuem
contribuição de vários autores.
Apesar de outros teóricos já terem trabalhado com o conceito representações, foi Serge Moscovici quem, em 1961,
fê-lo ressurgir, a partir de estudos que pudessem explicar como se dá à mediação entre o individual e o social, negando,
assim, explicações essencialmente sociais como em Durkheim, ou as essencialmente cognitivistas, como em Piaget.Assim,
foram, sobretudo, os estudos de Durkheim, Piaget e Freud que levaram Moscovici (1984) a retomar o estudo das
representações, praticamente abandonado durante quase meio século, após ter sido o fenômeno mais marcante da ciência na
França.
Em seu estudo epistemológico sobre o fenômeno das representações, Moscovici (1984) nos mostra que algumas
ciências como a sociologia, a antropologia, a psicologia clínica e a social, desde cedo se preocuparam em compreender o
pensamento e a conduta "irracional" dos indivíduos e suas transformações no tempo. Partindo, pois, dos limites provocados
pela inflexibilidade da própria noção de representação e pela dispersão das pesquisas realizadas pelas diferentes ciências, até
então, Moscovici (1984) conclui que, tanto a sociologia, quanto à antropologia e a psicologia social, têm muitas contribuições
a dar ao estudo das representações. Isso porque, segundo ele, se as representações são geradas no social e reelaboradas pelo
indivíduo, não são os substratos que devem nos interessar, mas a ação, o movimento, ou seja, as interações entre o individual
e o social.
As discussões dos conceitos acerca das representações sociais, não dizem respeito apenas a um fenômeno imediato,
ao contrário, estão, sobretudo, diretamente relacionadas a um contexto histórico social mais amplo. Sendo assim, é de se
supor que o (re) conhecimento da representação social construída pelos sujeitos pertencentes a um determinado grupo social
deve passar, necessariamente, pelo conhecimento da história de construção desse conceito e suas implicações na vida do
sujeito.Estas questões demonstram a importância do re-pensar às representações dos professores acerca de sua aprendizagem
e a relação com sua atuação em sala de aula.

Metodologia
É importante assinalar que esta pesquisa se inscreve em uma perspectiva metodológica que valoriza os processos de
transformação social, de enfrentamento de conflitos e de participação social.
Tomando as ferramentas da Análise Institucional e os indicativos formulados por René Lourau (1993) que
fundamentam o investimento teórico/metodológico aqui assumido, essa pesquisa se assenta em três bases fundamentais.
Inicialmente valoriza a perspectiva da investigação/intervenção, apontando para a construção de um campo de
múltiplos atravessamentos onde, sujeitos e objetos se criam. Colocar em foco, “iluminar” certos processos institucionais
significa, nessa vertente de pesquisa, assumir que a própria investigação produz efeitos, inclusive em si mesma.Essa idéia
está assentada na concepção de instituição enquanto conjunto de relações sociais que se instrumentalizam nas organizações e
nas técnicas, sendo nelas produzidas, reproduzidas, transformadas e/ou subvertidas (Rodrigues & Souza, 1987). A
constituição de um campo de intervenção se afirma na perspectiva de compreensão daquilo que é invisível, ou seja, a
instituição, que atravessa, cria e forma os grupos. Nessa perspectiva se pode pensar em uma pesquisa que, inserida em certas
práticas, se faz atravessada por elas. As práticas pedagógicas e a relação professor/aluno que mediam o cotidiano sobre o qual
se coloca o foco desta pesquisa é igualmente atravessada pelas relações de saber/poder que se instauram em todos os cantos:
escolas, comunidades, ONG, Universidade.
Decorre dessa afirmativa a segunda base metodológica, que diz respeito ao questionamento da neutralidade
científica. Segundo Lourau (1993),
“(...) a Análise Institucional tenta não fazer um isolamento entre o ato de pesquisar e o momento em que a pesquisa
acontece na construção do conhecimento” (p.16).

Isto significa afirmar que sujeito e objeto ganham uma proximidade que deve ser analisada todo o tempo. Capaz de
implicar-se com o campo e com os objetos da investigação, o pesquisador assume ser apreendido pelo próprio
questionamento, assim como todos os atores sociais envolvidos. Afirma-se, assim, a impossibilidade da objetividade
científica positivista.
A terceira base metodológica diz respeito ao que Lourau (1993) chama de maximizar a análise coletiva.Tarefa nem
sempre fácil, a coletivização deve envolver todos os atores na apropriação, não só de resultados frios, mas da dinâmica das
relações sociais, que se tornam visíveis. Ressalta-se a importância da criação de dispositivos que permitam que a restituição
seja na verdade um processo de discussão sobre a encomenda para a investigação/intervenção e das demandas que surgem a
partir do interesse dos diversos grupos.
Esse suporte metodológico é também influenciado pelos questionamentos de Boaventura Santos (2000) a respeito
da revolução científica que atravessamos.Aponta a construção de um novo paradigma, que não pode ser apenas científico,
mas tem que ser também um paradigma social. Indica a necessidade de superação das dicotomias ciências naturais/ciências
sociais, revalorizando os estudos humanísticos, e conclui que “o sujeito (...) regressa investido da tarefa de fazer erguer sobre
si uma nova ordem científica“ (p.43). No paradigma emergente o conhecimento é total, mas é também local, trabalhando com
um objeto que se amplia em busca de novas interfaces, em um caminho que chama de composição transdisciplinar, capaz de

253
funcionar com uma pluralidade metodológica que tem a tarefa de encurtar a distância entre sujeito e objeto. Para Santos, a
ciência não descobre, cria.
A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como limitação técnica destinada a sucessivas
superações, transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem de ser contemplado
(Santos, 2000, p.54).

A proposta e seu desenvolvimento


Esta pesquisa foi desenvolvida em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental da região oeste do Município de
São Paulo.Foi solicitado um trabalho junto ao corpo docente, em busca de novas possibilidades e desenvolvimento de uma
atuação diferenciada que contribuísse com a melhoria de aprendizagem na escola.O primeiro momento foi o levantamento de
dados significativos que poderiam contribuir para a proposta de intervenção junto ao corpo docente.
Agendamos, dento das possibilidades, um calendário de acordo com o horário dos docentes que participam da JEI –
(professores que possuem uma carga horária que envolve as reuniões pedagógicas), em dois momentos com a duração de
1:30 minutos, cada encontro, no total de seis , tendo portanto a pesquisa a duração de 18 horas. Durante os encontros a media
de presença foi de 20 professores.
Nos encontros foram discutidas as seguintes questões: a dificuldade de aprendizagem dos alunos nas series
iniciais,outra questão levantada foi com relação à postura dos professores diante da não aprendizagem dos alunos e a busca
de alternativas para que os mesmos pudessem refletir acerca de sua atuação, revendo suas expectativas e possibilidades de
mudanças.Portanto a reflexão fez parte deste trabalho, onde o dialogo com os professores acerca das questões que fazem
parte do seu dia a dia, assim como as possíveis dificuldades encontradas em sua atuação e a busca de alternativas e mudanças
se fizeram presentes.Levantamos como temática inicial: “A aprendizagem deve ser desenvolvida em um ambiente que traga
ao aluno uma motivação constante” e conseqüentemente, o resultado esperado é de uma mudança de aprendizagem válida
para a transformação do sujeito no seu contexto social.
O encaminhamento das discussões foi diferente, nos dois grupos de professores, mas sempre voltado às questões
que faziam parte do dia a dia dos docentes. Qual a diferença entre ser professor ou educador? Por que a escola tem
dificuldade para ensinar? Os alunos não são competentes?Não são capazes?
Qual a importância do professor em sala de aula e sua atuação?Qual a sua responsabilidade?Falta de motivação
dos alunos, falta de diálogo com a família, a perda do papel social da escola, a tecnologia e a escola e as atividades
burocráticas.
Levantamos com os docentes seu processo de aprendizagem, seu estilo de aulas, definição de aprendizagem e
dificuldade encontrada em sua disciplina e, “que homem queremos formar”.No ultimo encontro solicitamos por escrito: o que
deveria ser trabalhado na escola em todas as séries, que contribuiria com a aprendizagem dos alunos?
O resultado desta proposta intervenção pode ser analisado em dois momentos com diferentes enfoques: o
pedagógico e o psicossociologico que foi voltado à escuta dos professores, buscando assim uma auto reflexão acerca de sua
própria aprendizagem, e de um movimento de construção de conhecimento como sujeito social de relações, que possui sua
subjetividade em um mundo aonde os valores passam por crises e dificuldade de uma auto identificação.Neste artigo iremos
nos deter nas analises que envolvem a reflexão do corpo docente com relação ao seu auto conhecimento e as implicações em
sua atuação docente.

Relato do Corpo Docente: uma analise psicossociologica


Nestes encontros o mais importante foi à relação e a vivencia com os professores, pois a partir de suas angustias,
conflitos e incertezas e sempre com uma proposta de escuta e de reflexão conjunta pudemos neste momento rever questões
importantes na vida do sujeito e em sua atuação como professor.Pois segundo Manzini Covre:
“O sujeito se forma a partir da capacidade de auto-reflexão sobre si próprio, de reflexão continua sobre as próprias
experiências. Auto-reflexão que pode estender-se para a existência também, do sujeito-grupo” (2004:82).

É interessante perceber que muitos não conseguem mais visualizar uma possibilidade de mudança como docente e
nem no sistema de ensino, o que demonstra uma falta de sentido em sua atuação como docente.
Esta postura pode ser conseqüência da modernidade que altera de maneira radical a natureza da vida social
cotidiana afetando os aspectos mais pessoais de nossa experiência, segundo Giddens:
“Assim, as transformações da identidade do eu e a mundialização são os pólos da dialética do local e do universal nas
condições de alta modernidade” (Giddens, 1993).

Em outras palavras, as mudanças nos aspectos mais íntimos da vida pessoal estão diretamente ligados ao
estabelecimento de vínculos sociais de alcance mais amplo.Somos atualmente testemunhas oculares de um processo
transformador impingido pela modernidade, que pode ser observado através das relações pessoais cotidianas, durante o qual
as pessoas estão se tornando livres das formas sociais características da sociedade industrial – classe, estratificação, família,
status de gênero, etc.

254
A dissolução de parâmetros tradicionais da sociedade industrial produz uma onda social de individualização, ocorre
uma dependência destes indivíduos com relação a este mercado de trabalho (e, conseqüentemente, da educação, do consumo,
das leis sociais, de modismos, etc), na medida em que há uma tendência à institucionalização e padronização dos modos de
vida.
Nossa proposta de intervenção necessitou do conhecimento sobre a população, ou seja, sobre sua organização
subjetiva, entendida como articulada ao singular e ao coletivo.O sujeito em constituição no coletivo, pois:
“Aqui ter-se-ia um paradigma do sujeito-em-constituição coletivo.Um outro olhar sobre a realidade,que a nosso ver
propicia a existência desse sujeito coletivo,desde que se faça um preparo para isso nas pessoas,nos grupos
sociais”(Manzine- Covre,2004:83).

O trabalho com grupos foi uma das estratégias adotadas e, nessa atividade, escutei discursos que diziam respeito às
mais variadas situações e contextos.Sobre o aluno que freqüentava, havia anos, a instituição, e não sabia ler e escrever
corretamente, e falava do seu “fracasso” e da sua relação com a impotência e com o desamparo.Sobre a mãe do aluno que
falava sobre seu filho e sobre si própria afirmando que não adiantava insistir, pois ela não havia aprendido mesmo e o filho
seguia o mesmo caminho, sendo melhor colocá-lo para trabalhar.
Escutei, uma professora dizer que no começo do ano letivo ela já sabia os que iriam aprender e os que não o
conseguiriam; não obstante, apesar desse “conhecimento prévio”, ela reafirmava a sua disposição em continuar ensinando a
todos da mesma forma. Ainda, a professora falava sobre as suas tentativas de lidar com os alunos e de atualizar o seu
trabalho, porém deparava-se com situações intransponíveis como a violência na sala de aula, a falta de infra-estrutura e o
descaso do Estado e das famílias em relação à questão da educação.Todas estas questões fazem parte da realidade da escola e
possui um mosaico de representações contraditórias e às vezes sem sentido.Esta fala nos mostra a desvalia social do
professor, assim como a sua subjetividade,
“Como repor o desejo e a auto-imagem de pessoasdesvalidas desorganizadas emocionalmente, quando são, as
vezes,alijadas mesmo do espaço comum!Não se trata mais de problemas de pessoas,mas de um sintoma
social!”(Manzini- Covre,2004:84).

É a capacidade de representar a realidade, de fazê-la de novo mentalmente presente, que as diferentes formas do
conhecimento verdadeiramente humano são construídas: o senso comum, a consciência filosófica, o conhecimento cientifico
como também as representações que os sujeitos possuem de si, e que os levam a interpretar a realidade de uma maneira nem
sempre coerente e lógica.O professor A1.faz seu relato de aprendizagem dizendo que foi:
“Através do método da cartilha.. , em escolinha rural, onde era composta pelas 4 primeiras séries iniciais como era
falado antigamente.A professora era bastante rigorosa, mas não chegava perto da rigorosidade dos meus pais.Minha
irmã mais velha me auxiliava muito nas tarefas de casa e leitura.Aspectos positivos: - disciplina, responsabilidade,
respeito, amizade, gosto pela escola.Aspectos negativos: - medo, timidez, não ter abertura para se colocar”.

Conforme podemos observar sua fala aponta aspectos negativos com relação ao rigor que havia em sua casa e também na
escola, contudo lembra do auxilio da irmã e, levanta vários aspectos que diz terem sido positivos tais como: disciplina,
responsabilidade, respeito, amizade, gosto pela escola.Com relação aos aspectos negativos diz que o medo, a timidez e não
ter abertura para se colocar deixaram suas marcas.No entanto com relação ao seu “estilo de dar aula” aponta as seguintes
questões:
“Em todos os termos, procuro um diálogo com os alunos. A partir disso, apresento o conteúdo, ligando com a sua vida
cotidiana, pegando exemplos que os próprios alunos mostram”.

O conflito existente entre a representação de aprendizagem do professor e sua atuação docente é um dado
significativo que deve ser levado em consideração, pois o aspecto evidenciado foi realmente aquele que lhe deixou marcas
significativas negativamente.É interessante observar que as questões positivas não aparecem como um dado importante em
sua atuação.Segundo Moscovici:
“(...) a estrutura de cada representação aparece desdobrada; possui duas faces tão pouco dissociáveis como o verso e o
reverso de uma folha de papel: a cara figurativa e a cara simbólica. Dizemos que Representação=Figura=Sentido; o
que significa que a representação faz com que à figura corresponda um sentido e a todo sentido corresponda uma
figura” (1978:65).

No entanto sabemos que é com base na capacidade de representação que os homens tornaram possível a
armazenagem do conhecimento e sua transmissão, tanto para outros homens no presente, como para as gerações
futuras.Podemos levantar outro aspecto significativo nesta relação aprendizagem-docencia que é a subjetividade do professor
presente a todo o momento de sua atuação e que poderá trazer algum esclarecimento para esta questão, pois segundo Manzini
Covre:
“... à capacidade de trazer para fora a subjetividade, no sentido de expressa-la no mundo... Na perspectiva interna de
quem sofre o processo, a internalização da racionalidade formal, exigida para se viver... cria na alma do individuo uma
parte morta ou amortizada. Aqui, pode-se vislumbrar o vinculo com a área do desejo. É o desejo que motiva o ser
humano a agir dessa ou daquela forma, como expressão do próprio fluxo de vida” (1991:65).

255
Diante das implicações nas vivencias do professor e a relação com sua atuação não podemos esquecer que esta
classe profissional (professores do ensino fundamental da rede publica) possui neste momento uma desvalorização por parte
da população e dos demais envolvidos neste processo.Portanto estão atravessando uma crise de identificação profissional
com ampla repercussão em seu “status” e conseqüências no próprio contexto social.
Nesta proposta de pesquisa intervenção uma atividade solicitada, me chamou atenção, pois ao solicitar aos
professores que escrevessem o como tinha sido sua aprendizagem, alguns mostraram se desconcertados sem saber por onde
iniciar o seu relato.Acredito que este tenha sido um momento muito significativo, pois estávamos levantando um tema que
talvez há muito tempo os professores não tivessem parado para refletir acerca desta relação com sua atuação.Mesmo
esperando alguns momentos percebi que alguns continuavam com dificuldade para poder desenvolver a atividade foi quando
levantei outra possibilidade que era levantar aspectos positivos e negativos de sua aprendizagem.Alguns professores
elaboraram a atividade com idéias desconexas sem sentido para a questão: Professor A 4:
“Aspectos Positivos: Matemática; História até a 8ª série; Dirigir.

Aspectos Negativos: Cozinhar; Escrever com a mão direita “.

A relação feita com sua aprendizagem deixa muitas duvidas, pois a professora não conseguiu relacionar sua
aprendizagem com um aspecto mais amplo, ou seja, apresentou duas áreas do conhecimento, que lhe foram significativas,
uma delas inclusive foi à escolhida para sua formação.O que podemos observar é que a representação de sua aprendizagem
parece estar envolvida em um contexto que não parece ter sido significativo, deixando sem sentido a própria resposta e
incluindo outros tipos de aprendizagem que na verdade são importantes, mas diante do contexto e do trabalho que estava
sendo desenvolvido não tinham significado.E sua resposta com relação a seu estilo de aula foi:
“Ainda me considero tradicional. Não extremamente conteudista, mas o valorizo bastante. Ainda sofro quando não
consigo atingi-lo. Já faz três anos que não consigo?... mas as questões da sala de aula me afligem. Alunos do 3º ano do
colegial sem noção de parágrafo, pontuação, concordância e etc... e eu, era uma simples professora de historia, formada
pela UNESP para dar aula a alunos alfabetizados. Quando deparo com alunos da 5ª série em diante sem estar
alfabetizados, eu pergunto: E agora? Sinto-me perdida. Sei que preciso alfabetiza-los, mas como? Que sufoco!!!

Em sua descrição de seu estilo de dar aula, afirma que ainda se considera tradicional, mas justifica que não é
extremamente conteudista, mas que o valoriza bastante.Esta afirmação parece demonstrar um conflito em sua atuação quando
diz que sofre quando não consegue atingi-lo, isto tudo com parcimônia como se a escola não valorizasse mais esta
questão..Mas qual é a função da escola?Sabemos que há divergências em termos educacionais de como a escola vem
desenvolvendo a questão da construção do conhecimento com seus alunos.No entanto a escola é responsável enquanto
instituição de transmitir o conhecimento construído pelo homem, ou seja, sua cultura.Função bastante complexa, pois exige
do docente, conhecimentos acerca do desenvolvimento e aprendizagem do sujeito, em determinado contexto social, pois o
homem isolado é simplesmente uma abstração; não existe e, de fato nunca existiu; ele é um ser essencialmente social (Marx e
Engels, 1977), fato que traz como implicação que todas as características humanas são adquiridas na vida em
sociedade.Logo, também sua capacidade de representação bem como todo conhecimento representativo que dela decorre.
Já no segundo momento de seu relato demonstra sua angustia por estar vivenciando dificuldades que não deveriam
fazer parte da aprendizagem dos alunos nas series para as quais desenvolve sua docência e se mostra sem respiração, quando
diz: “que sufoco!!!!”,isto demonstra seu conflito pois suas representações acerca de aprendizagem não estão de acordo com a
realidade de seus alunos,no entanto segundo Loureiro:
“Enquanto encontramos na sociedade setores responsáveis pela produção da ciência, da filosofia, das artes etc; grupos
cuja produção da própria sobrevivência é mediada por essa produção, diferentemente, não há, na sociedade, qualquer
setor responsável pela produção das representações sociais: elas aparecem, reaparecem, transformam-se ou
desaparecem como obra anônima de qualquer membro da sociedade” (2003:111).

No entanto podemos repensar a atuação docente e suas representações, assim como as implicações em sua
subjetividade, e as conseqüências de sua atuação em sala de aula, diante de uma clientela que possivelmente tenha a escola e
seus componentes como referencia para o seu próprio desenvolvimento e construção de normas e valores que fazem parte do
contexto social,
“A promoção de oficinas, com algum propiciamento ao fortalecimento do sujeito nesses professores, cuidadores de
abrigo ou escolas são muito importantes porque são eles que passam a formar, cuidar da população que carece de muita
ajuda para se compor com algum eu, que sinalize, no futuro, poderem ser cidadão. A escola tem de se transformar em
lugar confortável e promissor para se contrapor ao chamamento e ao lugar do trafico e da violência”.(Manzini Covre,
2004:89).

Estas questões devem levar em consideração a atuação docente e os resultados dos discentes, tarefa bastante
complexa e de grande responsabilidade.

Algumas Considerações

256
Nos relatos das intervenções anteriormente citadas, minha preocupação remetia-se à proposta subjacente aos
encontros em busca da relação entre aprendizagem dos alunos e a atuação dos docentes.Pois a escola trabalha com os
aprendizes, as suas famílias e os professores, o lugar de saber que eles ocupam e as relações entre esse lugar e a
subjetividade.Com relação à subjetividade segundo Manzini-Covre:
“Assim vale observar, pelo já exposto, que a subjetividade é muito mais que o individuo, bem como, neste contexto
teórico, a identidade é uma categoria discutível porque diz respeito à representação que faz de si; está limitada pela sua
consciência. Por isso quando do uso da categoria identidade tenha-se em mente uma identidade provisória, ou (mesmo
ilusória), ou em movimento” (1996:97).

O importante é que: as questões que repensam o ser humano, sempre deve envolver a reflexão, pois não podemos
vivenciar situações aonde o mesmo se sinta totalmente fragilizado e contestado, diante de sua própria atuação como elemento
de um determinado grupo social.
Diante das questões vivenciadas com o grupo de professores, se por um lado, havia a problematização da
representação sobre o processo de produção e de aquisição do conhecimento como uma dimensão mágica que, uma vez
alcançada, aplacaria a angústia da condição humana frente ao novo e ao desconhecido.Também discutia se a idéia de que
alguém deteria esse saber, quer fosse o professor, quer os especialistas, quer algum outro profissional investido de autoridade.
Por outro lado, trabalhava-se com a dimensão do saber como um ideal, ou seja, com a perspectiva de que as
vicissitudes relatadas se associavam à adesão das pessoas a certos modelos identificatórios presentes na rede social que
concebiam os lugares institucionais como associados às condições subjetivas daqueles que os ocupam, percepção segundo a
qual quem detém o lugar de professor necessariamente adquiri e produz conhecimento, enquanto quem ocupa o lugar de
aluno adquiri e pode vir a produzir o conhecimento.
Entretanto, para além desses aspectos, chamaram me a atenção as dificuldades encontradas na condução desse
trabalho, decorrente do fato de que essas pessoas ocupam um lugar de desqualificação face à prática educacional, ou seja, o
lugar do não-saber. Assim, a maioria dos alunos e de suas famílias se representa com dificuldades em se perceber como
consumidora e produtora de conhecimento, ainda que fosse no plano do devir, bem como a maioria dos professores se
representa com dificuldade em se constituir como produtora do conhecimento.
Ainda, professores, alunos e suas famílias se equiparam ao se revelarem impossibilitados para propor e
implementar qualquer atividade para alterar esse contexto. Dessa forma, os discursos por eles proferidos encontram-se
quando explicitam a vivência do tempo como um eterno presente, do qual se excluem projetos para o futuro, e revelam a
dificuldade de se representarem como capazes para produzir alterações no seu entorno social e na trajetória das suas
vidas.Nessas falas fica patente o lugar de desamparo ante o processo de aprender ocupado por professores, alunos e pais. O
processo de conhecer envolve o lidar com o novo, o diferente, e mesmo com os limites de cada um de nós.
Nessa perspectiva, faz-se necessário abrir várias frentes de reflexão e de trabalho aonde se sobressaem essas
posições subjetivas ocupadas pelos membros da instituição escolar, levando-me a refletir sobre a tradição cultural e as
práticas sociais presentes no cotidiano dessas pessoas.
Especificamente pergunto: quais as inscrições psíquicas dessas pessoas na ordem da cultura que as levam a se
identificar com o lugar de desqualificação perante a produção de conhecimento, de forma tão arraigada?
Penso o sujeito como constituído pela sua história e pelas suas experiências, o que significa considerar o coletivo e
o singular nessa constituição. Assim, o entorno espaço-temporal, representado pelos valores, conhecimentos e ideais sociais
predominantes em determinado período histórico, articula-se à elaboração de pressupostos coletivos no sentido da sua
predominância em relação às pessoas que vivem nesse período e se singulariza nas idiossincrasias presentes nas experiências
constitutivas das subjetividades dessas mesmas pessoas.
Trabalhar com o singular e com o coletivo, reconhecendo que eles não se separam e que a organização da
constituição psíquica se articula à dimensão histórica e social, explicita a necessidade de conhecimento sobre a tradição
cultural por onde o sujeito transita e sobre a apropriação que ele realiza dessa tradição, necessária a constituição da sua
subjetividade (Castoriadis, 1982).
Nesta pesquisa intervenção junto a professores de escola publica muitos foram os momentos de conflitos e
desabafos entre os componentes do grupo e a pesquisadora, que nestes encontros compartilhava a angustia e a dificuldade de
encontrar argumentos e possibilidades com as quais o grupo pudesse ampliar seu espaço de reflexão e conseqüentemente
visualizar possíveis mudanças em sua atuação.Posso compreender que minha atuação esteve voltada à sociologia clinica pois
segundo Gaulejac:
“Não se pode pensar a questão do sujeito sem inscrevê-lo numa dupla determinação: social e psíquica. Se o individuo é
o produto de uma historia, esta condensa, de um lado, o conjunto dos fatores sócio-historicos que intervêm no processo
de socialização e, de outro, o conjunto de fatores intrapsiquicos que determinam a sua personalidade” (2001:41).

Em outras palavras, é importante saber quais valores sociais e culturais impregnam a rede social, e o como se
configura a produção subjetiva marcada pela modernidade.Muito poderíamos estar relatando deste trabalho desenvolvido que
foi para o pesquisador muito significativo, e que neste artigo enfoca o lado da subjetividade em um grupo com seus conflitos
diante de uma determinada realidade, e a dificuldade de compreender quais as relações existentes em sua aprendizagem e a
sua atuação em sala de aula.Com relação ao enfoque pedagógico, no final dos encontros o grupo elaborou uma proposta de

257
atuação que enfatizou a questão da aprendizagem da leitura e da escrita, com diferentes enfoques em cada serie.Esta atividade
foi para o grupo muito significativa, pois pareciam estar descobrindo algo que podiam estar desenvolvendo para modificar a
realidade.Mas, muito mais do que a parte pedagógica, as questões compartilhadas e as reflexões levaram á mudanças no
próprio grupo.

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Moscovici, S. (1978). A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
....................( 1961).La psicologie, son image et son publique. Paris: PUF.
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Rodrigues, H.de B. C. & Souza, V. L. B.(1987). A Análise Institucional e a profissionalização do psicólogo. Em: Saidon &
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Smith, P. J. (1995). Como distinguir entre estados subjetivos? Manuscrito, v. XVII, n. 2, p. 339-366,
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Wittgenstein, L.(1995). Investigações filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, .

A construção do conceito de educador social em contextos variados de


intervenção

Ilda Freire-Ribeiro
Escola Superior de Educação de Bragança
ilda@ipb.pt

Telma Queirós
Escola Superior de Educação de Bragança
telma@ipb.pt

Maria do Céu Ribeiro


Escola Superior de Educação de Bragança
ceu@ipb.pt

Resumo: Ser educador social no nosso país é uma realidade recente. Só a partir da década de 80 é que se começa a ouvir falar de formação
específica a nível superior. Face às mudanças sociais e à necessidade de lhes dar resposta, cresce por todo o país o número de escolas que
oferecem a possibilidade de formar educadores sociais.
Neste contexto, autarquias e instituições de solidariedade social e educativas recebem este profissional que intervém em diversos contextos, e
com variadas pessoas de várias faixas etárias e a quem se reclama uma participação activa, responsável e interventiva constituindo-se como
um contributo essencial para a construção do cidadão democrático, tão desejado pelas sociedades actuais.
Partimos do pressuposto que não há uma forma única de entender o educador social. Daí que seja necessário contextualizar a figura deste
profissional como alguém que actua em qualquer realidade, com reconhecida urgência social e humanitária.
É nossa intenção avaliar as construções teóricas do conceito de educador social na perspectiva dos formandos dos cursos de formação inicial,
bem como o seu papel em instituições de intervenção diferenciadas.
Ao nível do estudo empírico procedemos à análise de conteúdo dos discursos produzidos pelos formandos.

258
1. Contextualização Teórica
O conceito de educador social surge, actualmente, associado a uma profissão relativamente recente, com formação
específica a nível superior. As sociedades modernas, inevitavelmente complexas, multifacetadas e pautadas por novas
exigências profissionais, têm vindo a solicitar, de modo crescente, o contributo do educador social. A necessidade de dar
resposta a esta situação faz com que se reclame uma formação académica própria vocacionada para a aquisição de
competências profissionais que contribuam para uma participação activa, responsável e interventiva de modo a constituírem-
se como uma mais valia na (re) educação do cidadão democrático, bem como para o desenvolvimento de competências
sociais consideradas necessárias para alcançar a inclusão – estas últimas tornando possível a integração social das pessoas
excluídas o que por sua vez as levará a assumir as normas, valores e atitudes que lhes permitirá uma convivência normalizada
(Petrus, 1997).
Na perspectiva de Diaz (2006), a acção destes profissionais, pauta-se pela procura em solucionar determinados
problemas e necessidades de pessoas ou grupos, que se encontram em situações de risco ou de necessidade social, ao mesmo
tempo que tentam promover a qualidade de vida destes cidadãos.
Posto isto, são vastos os campos de acção deste profissional. Ele intervém em diversos contextos, desde os sociais
aos educativos formais e não formais, passando também pelos culturais. Em todos eles o educador deverá apresentar-se como
um actor e mediador social (Carvalho & Baptista, 2004; Capul & Maurice, 2003), como profissional da condição humana e
como técnico da relação humana (Carvalho & Baptista, 2004), como um revelador / testemunha (Capul & Maurice, 2003)
sempre com o intuito de potenciar uma intervenção esclarecida e rigorosa, em espaços sociais vulneráveis e junto das
populações, no sentido da melhoria da qualidade de vida, da mudança social actuando ao nível da prevenção e da inserção.
O público com o qual irá trabalhar apresenta-se diverso uma vez que o seu domínio de intervenção “não apresenta
limites bem definidos” (Capul & Maurice, 2003: 7). Se há décadas atrás, o educador social apenas lidava com a população
infantil e juvenil que apresentava problemas sociais, hoje o seu domínio de acção é mais abrangente, chegando até à idade
adulta e à velhice (Capul & Maurice, 2003) podendo mesmo ser incluído outro público como: os sem-abrigo, os mais
carenciados economicamente, os toxicodependentes, os desempregados, e outras pessoas excluídas socialmente.
Concomitantemente, existe uma polivalência de espaços interventivos que favorece este profissional ao nível da
empregabilidade, mas que dificulta a delimitação do seu campo de acção. Neste domínio, há quem considere que o educador
social, em termos de identidade profissional, possuiu uma “profissão híbrida” (Baptista, 2000:19) situando-se entre os
educadores/professores, que partilham o seu saber pedagógico e os trabalhadores sociais, que partilham a sua área de
intervenção. Sublinhe-se que o educador social não intervém sozinho. É a partir do trabalho colaborativo entre profissionais
de diferentes áreas de intervenção [psicólogos, médicos, assistentes sociais, professores, entre outros], que se desenvolvem
projectos e programas de acção (Machado, 2008).
Porém, e para que haja sucesso na sua intervenção é necessário que: a) o educador tenha uma percepção clara e
global da realidade social (Carvalho & Baptista, 2004); b) possua conhecimentos sobre a didáctica social com uma função
sócio-comunitária na resolução de problemas com determinadas orientações institucionais (Petrus, 1997); c) a sua
profissionalização seja qualificada e d) mediante a utilização dos recursos necessários e oportunos, ajude a encontrar solução
para determinados problemas e necessidades de pessoas que se encontram em situação de risco ou necessidade social e de
trabalho social educativo (Petrus, 1997). Salientamos que o trabalho destes profissionais deve ser sempre realizado a partir de
uma perspectiva educativa, não se centrando exclusivamente, nas actividades de carácter assistencial.
Assim, é objectivo deste trabalho realizar uma análise dos discursos dos futuros educadores sociais através dos
quais se pretende saber se estes têm uma percepção clara do que é ser educador social e se têm a noção de qual é o seu papel
nos variados contextos de intervenção.

2. Metodologia
A selecção da amostra não foi casual, obedecendo a uma lógica de conveniência, logo não aleatória. Envolveu
educadores sociais do 2º ano do 1.º ciclo de formação dos cursos adaptados a Bolonha, de uma instituição do Ensino Superior
Público. Neste sentido, a amostra propriamente dita foi constituída por vinte educadores sociais, quinze do sexo feminino e
três do sexo masculino.
Assim, e antes de mais, tratando-se de um trabalho de investigação que pretende avaliar as construções teóricas do
conceito de educador social na perspectiva dos formandos do curso de Educação Social, bem como o seu papel em
instituições de intervenção diferenciadas, optou-se por recorrermos à análise documental de relatórios realizados pelos
formandos, uma vez que do ponto de vista técnico a análise documental é igualmente utilizada como um tipo de recolha de
dados com recurso à observação de documentos escritos (Lessard-Hébert et al., 1994).
Neste contexto, e tendo em conta o material documental obtido nesta investigação realizou-se uma análise de
conteúdo, tendo por base todo o processo de categorização (Bardin, 2004). Deste modo, face à análise qualitativa dos
documentos, temos 2 grandes categorias de análise: A. Conceito de educador social e B. Papel do educador social.
Utilizou-se, ainda, uma medida frequencial partindo do pressuposto que a importância de uma categoria ou
subcategoria será tanto mais significativa quanto maior for a sua frequência de aparição (Bardin, 2004). Por conseguinte, os
resultados foram organizados em função das categorias propostas.

259
3. Apresentação, análise e interpretação
Sobre os registos que foram tidos em consideração nesta investigação, e a partir da análise de conteúdo,
designadamente para este tema, destacámos as categorias que se apresentam no quadro seguinte.

Quadro 1 – Distribuição das categorias analisadas

Categorias

A. Conceito de educador social


B. Papel do educador social

De seguida procederemos a uma análise qualitativa de cada uma das categorias tendo em conta a informação
indicada na matriz de análise de conteúdo.

A - Conceito de Educador Social


Do material documental analisado emergem poucas definições que nem sempre se tornam claras para serem
consideradas como conceito. O entendimento sobre o que é um educador social reveste-se de imprecisão e carece de rigor
conceitual, no entanto, é na maioria dos casos remetido para os seus papéis e funções.
No entanto, subjaz a ideia geral de que “(...) o educador social é um profissional em constante processo de
formação que deve adaptar o seu método de trabalho à realidade que encontra”(D15) e como tal “(…) é um profissional
reflexivo pois, na sua intervenção procura conhecer e analisar o que o rodeia, assume uma atitude critica” (D13) tal como
referem Carvalho & Batista (2004) quando fazem alusão à necessidade da reflexão nas actividades do educador.
Sobressai também a ideia de que o educador social deverá ter um “(…) sentido ético e um saber profissional
próprio que ajuda as pessoas a conceber projectos de acção que permitam mudar as suas condições de vida.” (D8).
Assim sendo, os formandos apontam como principais características do educador social “(…) a polivalência e a sua
capacidade adaptativa em relação as várias áreas que tem de gerir, como a prestação de cuidados, a educação, o apoio e o
desenvolvimento social.” (D15), para além “(…) de ter capacidade de se relacionar e de dialogar, e de conseguir trabalhar em
equipa.” (D7), o que vem ao encontro das qualidades definidas por Núñez (2002), nomeadamente, o equilíbrio e a
maturidade, a flexibilidade mental e emotiva, a confiança no grupo de trabalho, o sentido de abertura e a competência
interpessoal e também àquelas que Carvalho & Batista (2004) delinearam, como: a reflexibilidade, a polivalência técnica, a
criatividade, a adaptabilidade e o dinamismo.
À dificuldade de definir o conceito acresce-se ainda a diversidade de contextos de intervenção, sendo que o
educador poderá ser influenciado por aspectos de ordem política, social, educativa, económica e cultural, como se pode
verificar no discurso apresentado: “ O Educador Social realiza um trabalho ao mesmo tempo político, ideológico e
pedagógico, pois tem diante de si diversas necessidades.” (D12).
Sublinhe-se que “O educador social é antes de mais um mediador e o potenciador do desenvolvimento do indivíduo
fazendo a ponte entre o indivíduo e a sociedade.” (D15). Ou seja, poderemos dizer que há uma influência mútua entre o
indivíduo e a sociedade, de onde surge uma relação. Não se trata, portanto, de sobrepor a dimensão social à dimensão
individual, mas sim compreendê-los de forma intimamente relacionada.
Esta será a ponte que nos faz reflectir sobre o seu papel na sociedade actual que, em tempo de reforma social, nos
leva a valorizar a sua acção como agente de mudança nos diversos contextos de intervenção, tal como é referido no seguinte
relato “Como futura educadora social, cabe-me ajudar a cumprir uma responsabilidade social, tentando promover ao mesmo
tempo a intervenção educativa, social e cultural.” (D8).
Em suma, estes formandos, apesar de não apresentarem uma definição objectiva e concreta do que é ser educador
social tendem, ao longo do seu processo de desenvolvimento pessoal e profissional, a percepcionar-se como indivíduos que
ocupam um lugar nobre na sociedade que os incita a ajudarem o outro, mas que ao mesmo se torna árduo, pelos limites e
obstáculos que nela persistem.

B – Papel do Educador Social


A sociedade, hoje em dia, debate-se com diversos problemas que tendem a aumentar se nada for feito. Será neste
sentido que o educador social tem um papel preponderante na medida em que poderá ser considerado um pilar muito
importante na resolução de determinados conflitos que tendem a agravar-se e que marcam a contemporaneidade.
Nos mais variados contextos, institucionais e não-institucionais, formais e não-formais, o educador social enfrenta
enormes desafios para exercer o seu papel e aspira, cada vez mais, a tornar-se numa figura pertinente para equacionar a
pobreza e outras formas de exclusão social e educacional.
Neste âmbito “O papel do Educador Social é bastante abrangente (…)” (D3), assumindo-se “(…) como agente de
mudança.” (D9) e como “(…) um profissional que ajuda a desenvolver as capacidades e prevenir disfunções, mas nem
sempre é fácil, pois as relações entre os seres humanos e o meio onde se inserem por vezes são adversos à mudança” (D9).

260
Assim sendo “(…) o Educador Social é um elemento importante (…) pois pode ter um papel de educador,
mediador, actor e profissional em situações especificas que cada utente pode estar a viver e onde este educador pode
estabelecer uma ligação entre este e a sociedade” (D17).
No contínuo dos discursos produzidos pelos formandos nos seus documentos de trabalho, há, sobretudo,
consciência de que existe uma relação entre a exclusão social e a função do educador social como potenciador de inclusão, tal
como é salientado a seguir: “(…) um futuro educador é uma urgência pois pode ajudar a combater toda esta exclusão social
de hoje e cada vez mais se nota.” (D17); “(…) como futuros educadores sociais vamos ser mediadores entre o individuo e a
sociedade em que este está inserido, de forma a combater a exclusão social.” (D18) tendo “(…) um contributo decisivo a dar
na realização prática do ideal de uma educação para todos” (D8).
Neste contexto, Ribeiro (2006) refere que co-existe uma relação que decorre da necessidade da educação social
encontrar alternativas para a população excluída socialmente, que é uma das características das sociedades sociourbanas do
novo século (Carvalho & Baptista, 2004). Aliás, segundo os formandos, “Um dos grandes desafios que se coloca é enfrentar
as situações limite, obstáculos e barreiras que precisam de ser vencidas.” (D2). Deste modo, “O trabalho profissional do
educador social é orientado para uma intervenção que tem como finalidade ajudar os indivíduos a encontrarem um sentido
para a sua vida, dando valor à capacidade de decisão e de autonomização, desses mesmos indivíduos, construindo assim a sua
própria identidade.” (D16). Encontra-se latente nos seus discursos a preocupação com a trajectória humana, considerando a
importância de ajudar o outro a conhecer-se a si próprio, mostrando-lhes o valor deles próprios na sociedade onde vivem,
sobressaindo assim a relevância de uma intervenção pedagógica responsável e participativa.
Nos seus relatos, os formandos mencionam que um dos principais objectivos do educador social, é a necessidade de
mudança na sociedade para que esta se torne mais justa e igualitária e que “(…) deverá passar pela construção de uma
sociedade melhor, mais ética, mais livre e mais digna, que promove formas de combate contra a exclusão e discriminação e
que defenda os direitos dos humanos.” (D2), para além de “(…) apoiar as populações, aceder com vista a garantirem a
realização dos direitos sociais e a construção da cidadania” (D1). Daqui se depreende que a dimensão humana é assinalada
como uma preocupação, algo que não pode ser esquecido, ao mesmo enfatizam a importância da sua acção na sociedade, em
geral.
Assim sendo e dada a importância do seu papel nesta sociedade mutável é importante que este profissional seja um
pesquisador, seja rigoroso e metódico, seja reflexivo e sobretudo esteja convicto de a mudança é sempre possível desde que
os vários intervenientes sejam verdadeiros agentes de mudança e se mostrem atentos e interessados face “aos défices de
humanização das nossas sociedades” (Carvalho & Baptista, 2004:55).

4. Considerações Finais
Chegados à fase final do estudo, iremos tecer um conjunto de conclusões consentâneas com os indicadores que, ao
longo, do discurso, fomos apresentando, analisando e interpretando. Assim, anotamos: i) os formandos não apresentam um
conceito muito claro de educador social, direccionando os seus discursos para os seus papéis e funções; ii) os formandos
percepcionam-se como sujeitos que sabem lidar com problemas sociais, culturais e educativos, ajudando os indivíduos a
superá-los; iii) os formandos demonstram ser sensíveis às trajectórias humanas, às angústias e inseguranças de indivíduos em
situação de fragilidade social; iv) os formandos evidenciam a importância de serem percepcionados como mediadores entre o
individuo e a sociedade; v) os formandos identificam objectivamente o seu papel nas determinadas instituições o que torna
mais fácil a identificação e levantamento das necessidades mais prementes e o desenvolvimento de um projecto colaborativo;
vi) os formandos constatam a existência de problemas sociais, culturais e educativos e salientam a necessidade de existir
mudanças na sociedade.
Assim, embora tenha sido possível identificar algumas concepções relativas ao conceito de educador social e aos
papéis que o mesmo pode desempenhar em contextos variados de intervenção, entende-se ainda ser necessária uma
apresentação sistematizada e organizada dos mesmos, o que exige uma profunda reflexão sobre esta problemática,
principalmente neste nível de ensino.

5. Referências Bibliográficas
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Baptista, I. (2000). Educador Social - Especialistas de Mãos Vazias. Jornal a Página da Educação, 9(94), 19.
Bardin, L. (2004). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.
Capul, M. & Lemay, M. (2003). Da educação à intervenção social. (1.º vol.) Porto: Porto Editora.
Carvalho, A. & Baptista, I. (2004). Educação social. Fundamentos e estratégias. Porto: Porto Editora.
Díaz, A. (2006). Uma aproximação à Pedagogia – Educação Social. Revista Lusófona de Educação, 7, 91-104.
Gaspar, P. (2000) Profissão Educador Social - "Profissional do triângulo". Jornal a Página da Educação, 9(96), 19.
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261
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Comunitária. II Congresso Internacional de Pedagogia Social. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São
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Núñez, A. (Org.) (2002). La educación en tiempos de incertidumbre: las apuestas de la Pedagogía Social. Barcelona: Gedisa
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Petrus, A. (Org.) (1997). Pedagogía Social. Barcelona: Ariel.
Ribeiro, M. (2006). Exclusão e educação social: conceitos em superfície e fundo. Educação e Sociedade, 27 (94), 155-178.

Os Modos de Significar a Profissão Docente e aquilo que a identifica conforme os


Docentes Ativos

Maria Anita Viviani Martins


Pontifícia Eniversidade católica de São Paulo
vivimart@uol.com.br

Resumo: Reconhece-se que a identidade do agente professor sofreu mudanças pelos determinantes da espacialidade e temporalidade
próprias no desenvolvimento da profissão. A revalorização profissional, compreendida pelos sujeitos como desvalorização, resulta que a
desvalorização profissional está correlatamente vinculada à ruptura com a identidade originária na atribuição desse papel, isto é, àquilo que
foi historicamente determinado como os modos de ser da profissão. Nesse âmbito de conflito, na consciência docente oposições se
confrontam: a designada como identidade especializada, e a identidade específica do professor, aquela historicamente construída, cujo marco
é o entre si de entidades humanas de igual gênese. Este conflito tem suportes axiológicos e teleológicos fundados na tradição escolástica e se
mostra quando essa tradição é cotejada com a intervenção educativa produzida a partir das demandas de educação de massa versus qualidade
de ensino versus formação do professor. Compreende-se assim que emerge o conflito paradigmático no ato do processo de tomada de decisão
para a construção da intervenção. Ou seja: Qual é a essência desse ser–sendo professor que é simultaneamente da sua humanidade? Existe
outra essência que não seja a que existencialmente lhe é própria? Reconhece-se como da natureza do trabalho docente ser formador,
construtor de seres na igualdade de gênese? Identifica-se a mutabilidade e a permanência o movimento como características desse quefazer
humano? Admite-se que a atualidade da construção da intervenção docente trabalha com a ambigüidade do diferente e do comum?
Apreende-se assim a necessidade de recolocar a identidade do professor na sua temporalidade e espacialidade próprias para sua inserção e
desenvolvimento da profissão.
Reconhecidamente, o papel do professor se materializa, historicamente, do onde ele surge e das definições do perfil que lhe foi determinado
socialmente, das expectativas definidas para o produto dessa atuação. Buscamos a superação de adoções semânticas tranqüilizadoras que
acabam por parecer conferir uma atualidade à formação de professores e ao educar na escola em razão de uma pseudo- atualização porque
baseada em um pseudo- problema.
Palavras-chave: identidade-atualidade-conflito-ruptura.

A origem dos significados encontrados


Os achados ora apresentados resultam de pesquisas de modalidade qualitativa fenomenológica hermenêutica da
análise e redução fenomenológica do discurso, pesquisas essas desenvolvidas nos anos de 2003/2007. Participaram
professores em exercício em escolas de ensino fundamental, subordinadas à Secretaria Municipal de Educação da Cidade de
São Paulo ou Escolas de Ensino Fundamental. O grupo de professores participantes tem entre 18 e 25 anos de exercício do
magistério.
O contexto do desenvolvimento o trabalho docente está subordinado às situações de educação de massa de
população predominante de migrantes, com escolas constituídas de classes com, em média, 38 alunos, funcionando em três
turnos diários e com 36 a 40 classes de alunos em média.

A captura dos significados


A forma final dos resultados da pesquisa é produto dos discursos espontâneos dos sujeitos da pesquisa.
Aquilo que apresentamos são as significações originais desses sujeitos, conforme o sentido dos significados atribuídos por
eles quando interrogados acerca da identidade da profissão professor hoje.
Na construção dos resultados necessitamos proceder a um exercício de retomada de alguns dos achados para
completá-lo e ampliá-lo. Por exemplo, a proposição coexistência insistentemente anunciada pelos nossos sujeitos como uma
categoria na constituição da nossa humanidade, também fora destacada, como da atividade docente de forma que foi preciso
retomá-la e revigorá-la para compreender-se melhor a entre si pluralidade, e coexistência, acrescida da ênfase na
individualidade sem omitir-se o coletivo. Assim: pluralidade, coexistência, individualidade, coletivo se reafirmam como
categorias que participam da constituição da identidade do professor como fenômenos autenticamente presentes no educar, e
certamente, porque fenômenos humanos na constituição da nossa humanidade. O exercício entre o que se apreende versus o

262
que se pode lançar prospectivamente nos acompanha na construção dos resultados. Resultados esses que serão expressos em
quatro proposições exploradas a seguir.

A construção da identidade do professor e a atualidade da sua formação face às influências da temporalidade, da


espacialidade e da idéia de lugar.
Esse sentido está manifesto na Proposição III “A perda da identidade originária do professor deve-se à atribuição de
um papel que rompe com a historicidade do seu papel de educador, torna infecundo seu trabalho esvazia e vulgariza a criação
e recriação da ação docente e rebaixa a sua motivação para o desenvolvimento da profissão. Ambiguamente persiste e
persevera a identidade originária da profissão.
A Proposição II nos ensina “Na constituição da identidade do professor reconhece-se: a sua semelhança com o
sujeito que sofre a ação educativa; a presença de valores deduzidos dessa igualdade de gênese; como identidade do
desempenho de papel a humanização do aluno e da vocação para o desenvolvimento do outro.
Admitimos que o entendimento e o significado do desenvolvimento da profissão professor possam ser procurados
no plano das transformações globais operadas no curso da história da constituição desse sujeito social seja sob as influências
de correntes de pensamento seja sob a inevitável atribuição de seu papel de participante - construtor de seres na identidade de
gênese.
A tradição nos assegura que o que se constitui como perene neste grupo de sujeitos profissionais é favorecer e
promover um ser-si (outro) semelhante a si mesmo. Isto é, há o reconhecimento da natureza especifica do trabalho docente
como formador construtor de seres na mesma igualdade de gênese. Igualdade de gênese ou a consideração do ser enquanto
ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres.
Procedamos a um brevíssimo retorno no tempo para compreender a densidade do que foi / é a tradição.
Ao nos referirmos à tradição queremos destacar o ideário que foi hegemônico definiu e enraizou a condição de ser
professor. Se tomarmos por referência o surgimento das escolas que nascem dos séculos X ao XIII ver-se-á que aparecem nas
catedrais e nos mosteiros. Surgem também as escolas leigas que, entretanto, não se igualaram em número às confessionais. A
educação não leiga foi a mais forte instituição educativa pela qual se transmitia a cultura, o ler e o escrever. O empenho
maior dessas escolas é afastar seus discípulos da cultura profana e associar a educação literária, isto é, geral, à educação
religiosa que deveria formar o aluno nas letras e nas virtudes. No professor, o pai espiritual, é que residia a essência mesma
da escola. O saber é um dom de Deus que não pode ser transmitido sob pena de simonia: o ensino deve ser gratuito
(M.A.V.Martins 1994). Essas escolas praticavam a Pedagogia Escolástica impregnadas pelo movimento cristão romano, uns
humanismos cristãos, distintos do movimento historicamente posterior, que foi não mais vinculado ao metafísico, mas, à
física e ao mundo material. O cristianismo é considerado a base ideológica dessas transformações tendo substituído a
concepção de base política do Império romano do Ocidente, a base cívica, ao dissociar a idéia da pessoa humana e de seu
valor, da de cidadão do Império e de sua dignidade. Assim as escolas que surgem nascem sob a pressão das idéias da
escolástica. (in M.A.V. MARTINS 94)
Igualmente, a força da tradição ressalta o cuidar, o cuidar do ser; fortalece e recupera as relações disponíveis no
estar - junto com, homem-homem, conseqüentemente homem-mundo, particulariza as relações entre o desenvolvimento e a
conservação da vida humana. Aponta para o acolhimento da diversidade, da multiplicidade que é manifestação autêntica no
existir, convergentes, a propósito, ao cuidar, ao atentar, ao dirigir a atenção. Trata-se assim, do cuidado humano, cuidado esse
entendido como a sustentação intencional que se dá ao ser aí, entendido como presença, para que seja em suas possibilidades.
Essa mesma tradição agrega a concepção de que o único objeto que deve nortear e legitimar toda atividade educativa é
formar uns homens livres, cultos, ricos, formados nas letras e nas virtudes que pela educação converte o aluno em homem,
como destacamos acima.
Se essa compreensão por tradição alicerçou e consolidou a definição do quefazer dos docentes, outros valores
historicamente foram sendo agregada a essa ética do desenvolvimento da profissão. Embora, esse perfil ainda esteja presente
na identidade atribuída pelos professores à sua profissão, outras explicações, descrições, interpretações foram se associando e
atribuindo ao papel docente, pode-se dizer, uma atualidade que passa a exigir do docentes outras e novas atribuições.
Reconhecemos, por exemplo, as influências das organizações e instituições onde se desenvolve o trabalho e as legítimas
representações dos profissionais da educação como trabalhadores, no estado de consciência coletiva da profissão.
Reconhecemos igualmente as conseqüências da concepção de trabalho-cidadania – participação nos bens da produção
humana em larga escala e sua influência na expectativa do papel social esperado para o professor. Identificamos
historicamente essa transformação quando reconhecemos o abandono da concepção da atividade docente não obrigada ao
trabalho (sinecura), o abandono da noção da atividade docente como confessional e de descrição metafísica, e sua
substituição pela idéia de atividade docente como temporal e leiga. Certamente, não poderíamos deixar de lembrar as
transformações que ocorreram na construção da história da educação que muda seu foco de descrição das instituições
escolares e da história das idéias para desenvolver com maior clareza o fenômeno educar como plural, poliestruturado,
problemático e não mais homogêneo.
Reconhecidamente avançamos nas explicações daquilo que está presente na ação educativa escolar e que ampara o
formar professores. Certamente, poderíamos agregar outros exemplos inclusive àqueles relativos às ciências auxiliares na

263
formulação do discurso pedagógico, como a Sociologia da Educação, a Psicologia da Educação, todavia, os destaques são
suficientes para anunciar a complexidade que é o enfrentamento do educar.
A condição de educar sofreu de complexas influências de paradigmas. Insistentemente, os sujeitos da pesquisa nos
ensinam da ambigüidade do convívio do pluralismo conflituoso dos paradigmas, sobretudo o metafísico, o político social e
científico com a adição de novos elementos interpretativos e explicativos ao ato de educar como o antropológico-filosófico, o
psico-social, o técnico didático. Vê-se a ambigüidade como a existência de uma legítima circunstância de tensão entre dois ou
mais estados de forças em equilíbrio. Ora, esse embate ensinou-nos acerca da não obviedade acerca da atividade docente.
Essa não obviedade explicativa acerca da atividade docente trouxe a exigência de inúmeras re-significações necessárias à
compreensão atualizada do significado e identidade do professor, que solicita uma revisão nos modos tradicionais do
pensamento ocidental que a definiu.
A predominante tradição escolástica que significou a atividade docente e ainda presente na consciência de muitos
educadores professores firmou de modo tão relevante um sistema de valores, que regra geral, ele é considerado, como
incompatível com a existência da tecnologia educativa. Todavia, esta significação permanece como elemento mobilizado de
resistência do docente sem a suficiente explicitação da sua construção historicamente definida no plano da atualidade dos
sistemas de idéias e valores. Esses dois estados, ou seja, o dos valores constituintes da nossa humanidade e a atividade prática
de educar convive no estado de consciência dos professores em igual estado de equilíbrio, mas, como a experiência de
sentimentos opostos em virtude do significado que lhes foi atribuído: como incompatíveis. Esse foi um dos mais
significativos conflitos presentes nos sujeitos professores. Conflito esse relevante para uma adequada compreensão do modo
como, para si, se identificam os professores.
A estrutura do sentido na atribuição de significações da atividade docente, por eles próprios, parte de valores
absolutos, estáveis, preditivos da certeza da prévia compreensão das descrições das ciências em geral favoravelmente à
construção da atividade docente, em contraposição ao caráter da provisoriedade, mutabilidade e relatividade da verdade que é
própria ao seu quefazer docente. A segurança (pseudo-segurança?) do/no seu quefazer está suportada pela compreensão de
que as coisas, o ser dos entes não pode ser exprimido em palavras. O coexistir e o humano no mundo de humanos a fonte da
insegurança do professor acaba por ser lançado fora porque parece quer-se eliminar a insegurança do existir. Tudo se passa
como se, se adotasse o humano, mas sem sua humanidade, privando a sua prática da intimidade entre os homens, seu mundo,
isto é, entre os homens e a experiência que têm de mundo, os homens e sua mundaneidade. Substitui a insegurança do existir
pela segurança da precisão metodológica. O ser das coisas passa a estar na sua mais aperfeiçoada forma de conceituação.
Entende-se o conflito que o professor enfrenta no desenvolvimento do seu papel. Os modos rígidos, fixos nas suas
decisões acerca do seu quê fazer nos ensina quanto a disputas intuídas, mas não suficientemente claras no seu repertório
crítico acerca da relatividade da provisoriedade, da coexistência, da mundaneidade da mutabilidade e da não fixidez que
sendo características do existir também o são do educar na escola. Por certo não se trata de substituir a descrição e atribuição
abstrata à função docente por outra. Mas a inclusão da descrição e compreensão dos atributos da atividade docente como uma
atividade humana desenvolvida no meio de comuns. Desse modo a relatividade que não sendo uma fragilidade ou uma
falsidade de perspectiva ou mesmo uma irrealidade de perspectiva de um ente, passa a ser a condição humana do existir sob a
condição de um horizonte de tempo na provisoriedade das condições em que tudo o que é vem a ser e permanece sendo
(CRITELLI, 1996). Ora, ganhar a nossa humanidade preservá-la, partilhar das criações humanas tem sido a razão histórica da
organização dos sistemas educacionais. Destaca-se nessa razão a íntima coexistência, o entre si, ação educativa-humanização,
o desafio de acolhendo o ente na sua singularidade poder introduzi-lo nas condições da atualidade da nossa humanidade. São
as possibilidades do ser sendo, vir a ser, compartilhando do mundo nas suas múltiplas manifestações.

Engajamento profissional a coexistência o plural e o individual


Aprendemos também que os professores identificam complementarmente à idéia da identidade de gênese a
repercussão macro do seu desempenho, a razão coletiva do seu trabalho “Reconhecem como identidade do professor: O
engajamento profissional; a competência para penetrar pela ação educativa no seio social maciçamente; a clara distinção
entre professor função e o educador; um perfil ousado que se constitui pelo entre si experiência vivida constituída na
atualidade dos fenômenos históricos e o ser do professor” (Proposição IV).
A coexistência, o ser com os outros – como o modo fundamental do aparecer dos entes é da essência da atividade
docente como pública, como envolvente exposta e pertencente a muitos. A produção da vida de cada um de cada eu,
produção do eu mesmo é uma produção coletiva. “Quem alguém é não se constitui como um eu individual, pois o quem é um
eu coexistente. Assim, no seu ser no mundo. A ação de cada homem porque desdobrada sobre sua possibilidade originária de
ser-com-os-outros, não é jamais individual”. (CRITELLI, 1996.p. 63).
Compreender que o homem é dado como ser coexistente, mas igualmente é um em si mesmo e como outro
simultaneamente, como igual e como singular é a manifestação do ser em sua condição originária é a condição anunciada
pelos sujeitos e capturada nas pesquisas desenvolvidas. Ademais, seria embaraçoso omitir-se que o educar é um
acontecimento que se dá num lugar, num certo coexistir entre iguais. A idéia de lugar refere-se à natureza do mundo no qual
o homem existe, lugar tem sentido quando se refere a espacialidade. Isto porque o “o ser humano é espacial, não no sentido
de que ocupa um espaço, mas de projeção, a partir de um aqui e de um agora. À medida que existe, entre um aqui e um ali, o
homem cria uma região para si. Regra esta que tem um diagrama como futuro, passado, presente. É preciso fazer uma

264
diferença entre a região criada pela própria projeção do ser (um aqui e um ali) que define uma ação possível, o para onde.
Este movimento define uma região criada e nessa região o homem existe e preocupa-se com seu mundo”. (MARTINS, 1992,
p.23).
A constituição da identidade primeira do papel profissional do professor sofreu de rupturas em virtude da não
atualização na sua formação frente às mudanças sociais e conseqüentemente nos sujeitos da educação. Quer-se dizer da
relevância pública da atividade docente. O respeito ao papel do professor decorria do reconhecimento e definição clara do seu
papel social. Esse respeito e reconhecimento mudaram em virtude de atualizações correntes nos sujeitos da ação educativa e
assim, conseqüentemente no seio da sociedade. Essas mudanças não acompanhadas na formação e desempenho profissional
do professor produziram alterações nas relações do entre si grupo social x professor x expectativa relativamente ao
comportamento profissional do docente.
A atividade docente como uma atividade pública compartilha com grupos, e seus efeitos ressoam quantitativamente
em virtude da co-relação educação de massa qualidade de ensino e sua penetração no seio social. O respeito e
reconhecimento social à profissão dependem dos efeitos da competência da penetração da ação educativa no seio social
maciçamente. Reencontramos a presença do atributo coexistência, mas agora acrescido da compreensão dos efeitos da ação
educativa no coletivo nos grupos sociais.
Esse impacto contribui para a identificação empírica da repercussão social deste papel, bem como nos ensina
quanto à relevância pública da profissão. O embate na significação da relação individual-coletivo nos atenta para a
particularidade das interações presentes na relação professor aluno. São interações plurais plasmadas na coexistência, na
pluralidade. A coexistência ou pluralidade é a condição ôntica-ontológica presente na constituição da interação professor –
aluno condição bi-valente e sendo condição não é uma característica que resulta da relação dos entes envolvidos, mas um
fundamento do acontecimento entre seres datados, concretos situados, o ser no mundo com os outros (cf.Heidegger, 1974). A
individualidade e a singularidade, a pluralidade e o coletivo convivem sendo correspondentes. A dinâmica da sala de aula
implica simultaneamente o individual e o coletivo. Um carrega, traz consigo, o outro, implica os outros ao mesmo tempo em
que o outro também acontece junto e por intermédio do eu.
Nesse âmbito de conflito no estado de consciência dos docentes oposições se confrontam: a designada como
identidade especializada, e a identidade reconhecida como tradicional, perene, cujo marco é o entre si de entidades humanas
de igual gênese. Regra geral admite-se que esta identidade é indescritível, mas pressuposta, espontânea, fluída, entendida a
fluidez como uma dificuldade, uma impossibilidade de apreensão do existir, do fenômeno educar e assim para a construção
do seu conhecimento. Nesse caso, na constituição da identidade do professor reconhece-se à presença de valores deduzidos
da igualdade de gênese professor-aluno, da atribuição ao docente da humanização do aluno, e da vocação para o
desenvolvimento do outro. Complementarmente a esta significação reconhece-se como identidade do professor o
engajamento profissional, a consciência das conseqüências morais e sociais de seus princípios e atitudes, o entusiasmo que o
mobiliza para o desenvolvimento do seu trabalho.
Como se vê um conflito com suportes axiológicos e teleológicos fundados na tradição escolástica e que se mostra
quando essa tradição é cotejada com a construção operativa, pelo professor, da intervenção educativa produzida a partir das
demandas de educação de massa versus qualidade de ensino versus formação docente.
Recuperemos os conflitos que anteriormente apresentamos para poder prosseguir.
Inicialmente, pudemos identificar a insuficiência da descrição do papel do professor fundada na tradição escolástica
quando cotejada com a intervenção educativa produzida nas situações de educação de massa, ou seja, aquilo que os
professores sujeitos desta pesquisa enfrentam. Nessa circunstância entram no cenário: educação de massa versus qualidade de
ensino, versus docência sob o impacto de uma descrição abstrata de qualidade, sob o domínio exclusivo dos conteúdos
culturais, representado pelas disciplinas escolares que corporificam a condição de humanização.
Identificamos, nos significados dos sentidos atribuídos pelos professores, que sofrem de um precioso momento de
redefinição paradigmática, quando nos apontam para as contradições que vão se tornando visíveis, ou seja:
Apontam para a emergência da recondução da essencialização do que é isto, este ser sendo professor, a razão de ser
da profissão; este ser que sendo professor traz consigo aquilo que é simultaneamente de si mesmo e do outro, a nossa
humanidade;
O reconhecimento da natureza da atividade docente como ser formadora, construtora de seres na igualdade de
gênese, mas não como reprodutora, ou exclusivamente de transmissão;
A identificação da atividade docente como pública que se constrói no movimento, na mutabilidade, na permanência
como características desse quê fazer que convive simultaneamente com a intimidade da coexistência do comum e do
diferente.
As contradições paradigmáticas tornam-se explícitas quando nossos sujeitos perseveram no destaque a
mundaneidade a provisoriedade e a coexistência como fenômenos do educar na escola, fenômenos esses não identificados na
perenidade do perfil de professor predominante.
Dois sentidos significativos ainda nos restam acrescentar: a intervenção docente e a significação da ação docente, a
sala de aula, e o reiterado apelo do suporte das pesquisas no desenvolvimento da aula. Ao penetrarmos na sala de aula é
possível reconhecer-se os impasses na constituição da identidade do professor. Quando da definição da metodologia do
ensino e da didática reencontramos as extensões dos conflitos paradigmáticos.

265
Assim o caráter daquilo que é designado como identidade especializada é significada como identidade instável,
certamente, assim qualificada, porque subordinada ora à competência do domínio de um conteúdo específico da cultura e
propulsor da humanização do sujeito da ação educativa referindo-se ao domínio das áreas de conhecimento, ora, ao domínio
da tecnologia pedagógica. A oscilação entre estes dois pólos conteúdo/ estratégia de ensino ou mesmo o esforço para a
combinação entre eles afastou o docente da mais perene atribuição à profissão o educar como um projeto de desenvolvimento
do outro no sentido clássico do educar, ou seja, naquilo que Marrou (1966) denominou de cultura geral, à semelhança do
humanismo grego-romano. Esse humanismo clássico que se inclinava para uma perfeição imanente, e cultivava
primordialmente as virtualidades da alma, e levaria ao refinamento da experiência interior, aos prazeres delicados, à doçura
de viver, ao “sprit de finesse”. O cultivo deste espírito resultaria de “umas formações estéticas, artísticas, literárias e não
científica” (MARROU, 1966, P.349). Toda esta formação em busca do homem em si opõe-se à do homem empenhado numa
tarefa particular, à formação do técnico.
A significação de identidade instável, atribuída pelos professores à tendência da introdução a pouco e pouco dos
conteúdos, estratégias e planejamento de ensino nas ações docentes como conflitantes com o papel de educador,
historicamente atribuído ao professor, só pode favorecer a uma inconsciência no plano das ações práticas, a uma não
adequação dos meios aos fins e daí a uma inconsistência no plano das interações pesquisa-construção de conhecimento ação
docente. Se a prática docente baseada na tecnocracia pedagógica levou o professor a reproduzir princípios não pedagógicos a
insuficiência do repertório teórico-crítico abandona o professor à sua própria solidão exclusivamente.
As pesquisas desenvolvidas nos dizem da ação educativa cuja trajetória busca articular-se na interioridade do ser, se
expressa por diferentes linguagens, em diferentes lugares, espacialidades1 gerando daí a constituição de um conhecimento
original isto é, singular porque nascido da particularidade de um evento, mas que alcança o plural em virtude de ter-se
constituído na experiência vivida. O conhecimento constituído sofreu do desafio de abarcar: a atualidade, a noção de situado,
a consideração de que a sua ocorrência se dá no movimento e não na fixidez da repetição. Em outras palavras tratou-se do
pensar pensante e não do pensar o pensado. Vê-se, uma mudança nos modos de articular o pensamento pedagógico.
Naquilo que nos é particular trata-se da organização da constituição da ciência da prática. Emergem das pesquisas
desenvolvidas as categorias: coexistência; ação educativa-humanização; intervenção docente; interações teoria-prática,
convergências essas pertinentes a todos que partilham profissionalmente da condição de educar na instituição escola de
qualquer nível e modalidade.

Que nos ensinam quanto às interações teoria-prática?


Aquilo que é comum aos profissionais da educação nos ensina que esta interação preserva na sua constituição a
possibilidade prospectiva de realização (MARTINS, 1996, p. 21). Certamente, se é uma ação para produzir resultados, não se
trata de uma atividade para produzir quaisquer resultados. A construção da intervenção é conseqüente a uma investigação que
regulada pelo ente, isto é, aquilo que constitui a essência mesma de uma coisa, transforma-se em ação, porque penetrou na
fenomenologia da realidade tal como ela se mostra, podendo, por esse banhar-se na realidade, realizar-se.
Seria embaraçoso explicitar-se e compreender-se a profissão docente sem situá-la na sua temporalidade própria, e
nos modos pelos quais a profissão ganhou a sua humanidade. Existencializar a profissão significará mais precisamente
restituí-la à existência, aos modos como se traduz a existência descobrindo a possibilidade do existencial pelo exercício da
singularidade pelo enfrentamento do existir nas vicissitudes do cotidiano. Certamente, pela explicitação do ser da educação
que favoreça a compreensão do que é isto o educar na mundaneidade do mundo. Isto é, não se trata uma atitude puramente
contemplativa, teorética voltada para a captação da verdade e alheia a fins práticos. O vir-a-ser poderá se exprimir mediante o
fenomizar-se do educar na estrutura do que se vive no existente, mediante uma indagação ôntica. Reconhecidamente este
papel se materializa de onde ele surge do lugar que lhe tem sido definido, como permanente, como não permanente.
Nesse sentido altera-se e rompe-se o pensamento pedagógico tradicional centrado num único modelo teórico
explicativo. Aprendendo com o conflito e rupturas vividos pelos docentes no desenvolvimento da profissão, compreende-se a
emergência da necessária atualização e sustentação na re-significação da ação docente recolocando-a na sua temporalidade e
espacialidade próprias para sua inserção no desenvolvimento da profissão.

Referências
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CRITELLI, Dulce Mara. (1996) Analítica do sentido. São Paulo: ed.brasiliense
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HEIDEGGER. M. El ser y el tiempo. México: (1974.) Fondo de Cultura
LALANDE, André. Vocabulario TécnicoY Crítico de la Filosofía. (1966.) Buenos Aires El Ateneo Editorial

1
A idéia de lugar refere-se à natureza do mundo, no qual o homem existe.Lugar tem sentido quando se refere a espacialidade.Isto porque o ser humano é
espacial, não no sentido de que ocupa um espaço, mas de projeção, a partir de um aqui, agora.(cf.MARTINS, 1992, p. 23).

266
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MARTINS, Joel. (1992.) Um enfoque fenomenológico de currículo: educação como poiesis. São Paulo: Cortez
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_______. (1999.) Homens e saber na idade média. São Paulo, Bauru , EDUSC

O processo de formação identitária dos professores por meios pedagógicos/


comunicacionais na docência online

Maria da Conceição Alves Ferreira


UESB/UNEB/UFRN
consinha@terra.com.br

Maria das Graças Pinto Coelho


Universidade do Rio Grande do Norte/UFRN
gpcoelho@ufrnet.br

Resumo: O trabalho apresenta estudo sobre a docência online, o processo de formação identitária dos professores por meio de princípios
pedagógicos/comunicacionais na contemporaneidade. Enfoca a docência e como ela pode contribuir/modificar outras formas de docência, a
saber: o ensino presencial e semipresencial. Analisa, também, o chat, o fórum como interfaces pedagógicas importantes para esse tipo de
atuação docente. Os referenciais teóricos dialogam com aparatos conceituais que tematizam a educação online, interatividade, docência,
identidade e etnopesquisa-formação. Conclui-se que a docência online, além de ser um conjunto de ações de ensino/aprendizagem realizadas
pelos envolvidos na prática educativa, é uma pedagogia fundamentada em princípios educacionais diferenciados que abrigam um conjunto de
ações ensino-aprendizagens por meios telemáticos, como a internet, a videoconferência e a teleconferência, o que permite a participação-
intervenção, a bidirecionalidade-hibridação e a permutabilidade, sendo esses pressupostos da pedagogia comunicacional-interativa, sobre os
quais enfocamos a nossa base teórico-conceitual.
Palavras-chave: Docência online – Identidade – Comunicação – Formação

Introdução
O tema central deste trabalho é a docência online, categoria essencial para a reflexão sobre o magistério no
ambiente virtual. Para realizar o estudo foi necessário investigar a concepção de docência que pode permear a prática
pedagógica em cursos online.
Dessa forma, este trabalho visa refletir sobre a docência mediada pelas Tecnologias da Informação e da
Comunicação, a partir de discussões teóricas e práticas presentes na literatura e no cotidiano docente.
Nas discussões sobre as questões referentes à docência no XVI FORMDIR – Fórum de Diretores das Universidades
Públicas Brasileira, realizado em agosto de 2002, em Cuiabá/MT, observou-se que a tensão acerca da concepção de docência
é algo presente. Como exemplo, devem ser citadas as críticas e reflexões colocadas pela professora Selma Pimenta Garrido,
da USP, sobre a ausência de clareza e consistência teórica do conceito de docência.
Dessa forma, há necessidade de se compreender até que ponto se tem clareza da complexidade do conceito de
docência. Logo, faz-se necessário aprofundar a reflexão e a argumentação em torno da docência como base para a formação
do professor.

267
O público alvo do curso “Tendências da Educação Matemática”, oferecido pela UNESP - Departamento de
Matemática, localizada em Rio Claro/SP, foram professores graduados em Matemática, pedagogos e profissionais de
educação, interessados em processos de formação profissional e pesquisa, a partir de ambientes que utilizam as Tecnologias
da Comunicação e da Informação como vias de diálogo e ambiente de ensino/aprendizagem.
Pensar, nesse estudo, pressupôs uma abordagem etnometodológica, alicerçada na Etnopesquisa Crítica/Formação,
que requer não apenas uma oposição ao positivismo, mas uma possibilidade de construção do foco da pesquisa na relação
entre pesquisador/objeto/contexto/pesquisado, a fim de que, ao longo do processo, este foco se constitua a partir das
interações e negociações entre os envolvidos numa perspectiva dialógica, compreendendo que é na relação que estes se
transformam/formam mutuamente.
A Etnopesquisa Crítica, na formação de professores/pesquisadores, é de fundamental importância, pois
proporciona:
formação contínua do professor;
formação de professores reflexivos-na-ação e sobre a ação (conceito desenvolvido por Schön, 2000);
a contribuição da formação de professores para a pesquisa em educação; oculto nas relações sociais, pois os
etnométodos: “... são os procedimentos que os membros de uma forma social utilizam para produzir e reconhecer seu mundo,
para o tornar familiar, ao mesmo tempo que o vão construindo”, a partir das práticas cotidianas. (GARFINKEL, apud
COULON, 1995, p. 113).

1. Tecendo a noção de docência: pressupostos etimológicos e epistemológicos


Diante de um mundo de múltiplas transformações de cunho político, econômico, social, tecnológico e dos meios
educacionais é que se situa a prática do ensinar/aprender, a docência, complexa, apaixonante, instigante e paradoxal.
Docência é um termo que, etimologicamente, significa ato de ensinar, ensino, magistério, professorado; vem do
latim docere, ensinar, ministrar ensinamentos; está vinculado a docente, do latim docens, docentis, particípio presente do
termo docere.
Atualmente, outras expressões definem e circunscrevem o termo docência e docente, como: professor prático
reflexivo (SCHÖN, 2000), professor como intelectual transformador (GIROUX, 1997), mestre (ARROYO, 2000),
profissional pós-formal (KINCHELOE, 1997), professor animador da inteligência coletiva dos grupos que estão ao seu
encargo (LÉVY, 2000), educador progressista (FREIRE, 1996). Além destas, outras expressões foram ligadas ao trabalho
docente em determinado contexto histórico e tendência pedagógica, com expressões como professor tradicional,
problematizador, mediador, técnico, facilitador, progressista, construtivista.
Assim, o espaço escolar não é um mero depósito de subprodutos culturais da sociedade, mas criador de
configurações cognitivas e de habitus1 originais. E a formação do professor para o exercício da docência assume outro
caráter quando se desloca da formação inicial para a continuada, incluindo pelo menos três eixos de abordagem: a pessoa do
professor e sua experiência, a profissão de professor e seus saberes específicos, e a escola e seus projetos educacionais.
Segundo Pimenta (2002), os conteúdos que compõem o campo da docência estão configurados em quatro
conjuntos, a saber:
1) conteúdos das diversas áreas do saber e do ensino, ou seja, das ciências humanas e naturais, da cultura e das
artes; 2) conteúdos didático-pedagógicos, diretamente relacionados ao campo da prática profissional; 3) conteúdos ligados a
saberes pedagógicos mais amplos do campo teórico da prática educacional; 4) conteúdos ligados à explicitação do sentido da
existência humana individual, com sensibilidade pessoal e social. E essa formação identitária é também profissional, ou seja,
a docência constitui um campo específico de intervenção na prática social. (p.13)
Dessa forma, o saber da docência requer formação numa perspectiva multirrefencial, política, técnica e humana,
pois reúne/articula saberes heterogêneos e plurais, como: saberes pedagógicos, da experiência, científico, tecnológico e
político, num sentido de engajamento com a realidade social; ou seja, o trabalho do professor revela o engajamento político
que este possui em relação à manutenção ou transformação das relações sociais do mundo capitalista.
Arroyo (2000, p.18) se refere à docência enquanto ofício:
O termo ofício remete a artífice, remete a um fazer qualificado, profissional. Os ofícios se referem a um coletivo de
trabalhadores qualificados, os mestres de um ofício que eles sabem fazer, que a eles pertence. Aprenderam seus segredos,
seus saberes e suas artes, uma identidade respeitada e reconhecida socialmente, de traços bem definidos. Os mestres de ofício
carregavam o orgulho de sua maestria. Inquietações e vontades tão parecidas, tão manifestas no conjunto de lutas de
categoria docente.
Além disso, a docência exige interatividade, criatividade, afetividade, além de formação ética, estética, humana,
técnica e política, ligada à trajetória de vida pessoal e profissional do professor.

2. Tecendo um olhar sobre docência online

1
Predisposições de agir segundo determinado código de normas e valores que caracteriza os sujeitos como pertencentes a um certo grupo ou a uma classe; termo
utilizado por Pierre Bourdieu in: A economia das trocas simbólicas, citado por Bárbara Freitag no seu livro Escola, Estado e Sociedade (1986).

268
Refletir sobre a docência online e sua importância, enquanto prática educativa/social, é algo imprescindível, pois os
fenômenos sociais estão cada vez mais dinâmicos e os indivíduos necessitam de mecanismos para acompanhar esta
dinamicidade. Para a docência, seja ela online e/ou presencial, não é suficiente dar ênfase apenas na aquisição de novos
conceitos e conteúdos, fazendo-se necessário uma política de planejamento contínuo e integrado, adequado ao processo de
transformação social e vinculado ao surgimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação.
Apesar do avanço tecnológico, da telemática, do surgimento de novas teorias e experiências educacionais, a razão
cartesiana ainda fundamenta o paradigma educacional, que fragmenta o conhecimento e o condiciona ao discurso das classes
dominantes. Requer de nós outra postura no que se refere à docência, a fim de não reproduzir, em cursos online ou
presencial, a mesma dinâmica de aula fundamentada na lógica do “falar/ditar”, instruir/repetir mecanicamente.
Segundo Paulo Freire (1996, p.158),
O poder dominante, entre muitas, leva mais uma vantagem sobre nós. É que, para enfrentar o ardil ideológico de
que se acha envolvida a sua mensagem na mídia, seja nos noticiários, nos comentários aos acontecimentos ou na linha de
certos programas, para não falar na propaganda comercial, nossa mente ou nossa curiosidade teria de funcionar
epistemologicamente todo o tempo.
A concepção tradicional de educação, que percebe o aluno como tábula rasa, a ser preenchida por um conjunto de
conhecimentos testados, através de provas e exames periódicos, ainda se faz presente nos meios educacionais, sejam
presenciais e/ou online. Existem programas, nos cursos online, que repetem a concepção “bancária” de educação, em que o
conhecimento é algo pronto e acabado, a ser apreendido através da memorização e da reprodução de conceitos ditados pelo
professor.
Segundo Alves (2003, p.6):
Uma grande parte desses cursos é estruturada a partir de uma concepção tradicional de educação (muitas vezes
velada sob uma roupagem mais avançada), em que o objetivo do processo de aprendizagem é apenas a reprodução de um
conhecimento já estabelecido, propiciando poucas condições efetivas para uma construção do conhecimento mais criativa, a
ser realizada pelos sujeitos dessa prática educativa. Reproduz-se, dessa forma, um modelo pedagógico já saturado, impedindo
a exploração dos potenciais trazidos pelas estruturas da comunicação em rede. Os cursos on-line tornam-se, assim, espelhos
daquilo que há de pior no ensino presencial de hoje, com o agravante de estarem sendo apresentados para a população como
uma das grandes inovações educacionais dos últimos tempos.
Refletindo nessa perspectiva, temos que estar atentos aos critérios de operacionalidade desses cursos, não apenas no
que diz respeito aos aspectos tecnológicos, mas também em relação à proposta pedagógica e, fundamentalmente, aos saberes
e à concepção de docência e de educação que permeiam esse universo.
Dessa forma, o pedagógico é algo imprescindível na implementação de cursos online, como coloca Moran (in:
SILVA, 2003b):
Do ponto de vista didático, podemos valorizar o melhor do presencial e do virtual. O que fazemos melhor ou mais
rapidamente quando estamos juntos numa sala de aula. É mais fácil conhecer-nos, criar laços, mapear os grupos, as pessoas.
É mais fácil organizar o processo ensino-aprendizagem, a seqüência de leituras, atividades, pesquisas individuais e de grupo,
o cronograma, a metodologia. É mais fácil também que o professor ajude os alunos a ter as referências de um tema, o estado
da arte de um assunto, os cenários de uma pesquisa. (p.46).
Ao considerar os meios disponíveis para uma proposta de curso online, este poderá dispor de: e-mail, chat ou bate-
papo, grupos de discussão ou fóruns, videoconferência, teleconferência, áudio-conferência, CDRoms, fitas de vídeo ou
DVDs, disquetes e materiais para serem impressos. Todos esses meios são disponíveis a partir do momento que existe um
computador e um modem ligado a uma linha telefônica, um cabo específico ou outro tipo de conexão com a internet.

2.1. A interatividade: uma referência para a compreensão da docência online.


O crescente desenvolvimento da cultura tecnológica, ligada à emergência das tecnologias de comunicação e da
informação, recoloca em pauta o debate sobre o papel da educação na formação dos sujeitos e da docência enquanto prática
social. Destaco aqui a docência enquanto construto, complexo sócio-histórico, que interage com as diversas áreas do
conhecimento, como a antropologia, a psicologia, a filosofia e a pedagogia, e com os meios artificiais como a tecnologia
digital.
Dessa forma, refletir sobre a interatividade na docência online, mediada pela tecnologia digital, é algo
imprescindível para o desenvolvimento desse estudo de forma aprofundada, pois se busca compreender melhor essa prática
educativa que, como no caso da docência, é uma prática social.
A perspectiva que permite a possibilidade de trabalhar com referenciais da modalidade comunicacional interativa,
articulada à docência online, se ampara na idéia de interatividade, esta emergente a partir do advento sociotécnico, a
cibercultura.
Lévy, citado por Silva (2003b, p.262), define assim a cibercultura:
Conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores, que
se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço".
Há muitas controvérsias em relação ao conceito de interatividade. Este surge no final da década de 70, com as
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), nas quais se anuncia a transmutação do termo interação para
interatividade.

269
Segundo Silva (2002, p. 134):
Se é verdade que o termo “interatividade” vem da transmutação sofrida pelo termo interação no campo da
informática, esta transmutação ocorreu certamente a partir de uma mudança conceptual e física no computador. P. Lévy
levantou dados sobre essa mudança. Até acerca de 1975, o computador era uma máquina binária, rígida, restritiva e
centralizadora. Depois, passou a integrar a tecnologia do hipertexto criando interfaces amigáveis e conversacionais (...) o
conceito genérico de interação, busca no termo “interatividade” a nova dimensão conversacional da informática.
Todavia, há muitas controvérsias em relação ao termo, pois os autores interessados na temática se dividem entre os
que defendem o termo interatividade a partir da relação homem-máquina, na qual a mesma só acontece mediada pelos
recursos tecnológicos da informática, e os autores que defendem uma perspectiva numa modalidade comunicacional
interativa, como assinala Silva (2002, p. 99), para quem “... o termo interatividade foi posto em destaque para especificar um
tipo singular de interações e tal atitude se justifica pelo fato de o campo semântico do termo ser tão vasto que não comporta
especificidades, singularidades ...”.
Deste modo, a docência online se institui nesse universo da cibercultura ligada à complexidade dos fundamentos da
interatividade, que pressupõem participação-intervenção, bidirecionalidade-hibridação, e permutabilidade-potencialidade dos
pares envolvidos no processo de ensino/aprendizagem.
Segundo Silva (2003b, p.269),
Participação-intervenção: participar não é apenas responder “sim” ou “não” ou escolher uma opção dada, significa
modificar a mensagem.
Bidirecionalidade-hibridação: a comunicação é produção conjunta da emissão e da recepção, é co-criação, os dois
pólos codificam e decodificam.
Permutabilidade-potencialidade: a comunicação supõe múltiplas redes articulatórias de conexões e liberdade de
trocas, associações e significações.
É importante salientar que a docência online emerge no sentido de oxigenar a docência presencial, ou seja, dar
outros ares, mas que, sobretudo, é docência, alterando os saberes didático-pedagógicos, experienciais, curriculares,
disciplinares e profissionais, independentemente da utilização ou não da tecnologia digital.
Deste modo, entendemos que a docência num ambiente online, a partir dos fundamentos da interatividade, é uma
tarefa complexa, pois se trata de compreender como os sujeitos, co-autores dessa docência, se comunicam nesse ambiente,
lidam com os aspectos didático–pedagógicos, experienciais, profissionais, disciplinares e curriculares, e como eles lidam com
a afetividade, a formação ética, a estética, a criatividade e a formação política.

3. Chat: a interatividade das interfaces


Segundo o professor Marcelo Borba, coordenador do curso e entrevistado por nós, a principal interface de um
ambiente de aprendizagem é o chat. Apesar de apresentar uma desvantagem que exige que todos estejam sincronizados ao
mesmo tempo, o chat “por outro lado permite um ambiente de interatividade interessante, que para mim é fundamental nas
propostas pedagógicas que eu tenho, tanto presencialmente quanto virtualmente, pois você viu a partir do minicurso
presencial e do curso online, que eu levo para um lado e para o outro, isso o chat permite”. Já no fórum, isso fica mais difícil
de acontecer, embora ele também utilize bastante a lista de discussão.
É nesse sentido que o multiálogo acontece. Borba (2004, p. 304) entende:
... por multiálogos o acontecimento de diversos diálogos entrecruzados, como os ocorridos em salas de bate-papo,
com os membros envolvidos em várias discussões, e um dado aluno “saltando” de um para o outro, ou participando de mais
de um diálogo. É esta natureza da sala de bate-papo que modifica a natureza a produção do conhecimento.
Observamos que as experiências anteriores adquiridas na docência presencial também são imprescindíveis para o
êxito da docência online. Podemos ilustrar essa consideração por meio das colocações do professor Borba durante a
entrevista:
Olha! As minhas primeiras experiências foram com aulas de recuperação, semiformal como professor substituto e
depois no quarto ano eu assumi três turmas inteiras de professores de primeira a quarta série, as normalistas, vivia falta de
professor e eles me contratavam a preço de banana com o dinheiro da caixa escolar, eu topava, pois eram aulas de
matemática com professores de 1ª a 4ª série no RJ, na época, as normalistas. Na escola tinha aulas de matemática, eram aulas
interessantes nos três anos do curso normal e nos anos subseqüentes elas dariam aulas para as crianças. Esta foi minha
primeira experiência de nível formal na docência. A minha metodologia era baseada de novo em problemas, tempo para
resolver e depois vinha a síntese. Na seqüência vinha uma experiência na rede particular, eu vivi no RJ sozinho e sobrevivi
dando aula na rede particular quatro anos, isso então era muita aula, eu não pagava aluguel porque o imóvel era do pai, mas
pagava condomínio e despesinhas, montei a minha casa. Eu dava muita aula enquanto fazia a minha graduação de
matemática, depois interrompi com isso porque tive que vir para Rio Claro para fazer o mestrado. Tive outro pedaço de
docência com 5ª a 8ª série e séries do 3º grau e do ensino médio na rede particular. Após o mestrado, essa experiência de 5ª a
8ª série foi interrompida, pois ganhei bolsa da FAPESP. Então foram essas as minhas primeiras experiências e primeiros
contatos com o formal, mas eu tive muita sorte porque eram contatos, embasados com gente que gostava de dar aula em
escolas boas, universidades acima da média e tudo mais, então foi isso!

270
De outro lado, o que nos chamou a atenção durante a observação da prática do referido professor, durante um curso
presencial sobre a docência, é que, segundo ele, na “... docência online não se deve reproduzir ou inventar práticas como na
presencial, pois em algumas situações essas práticas exigem uma forma diferenciada”. Na perspectiva online, o docente
precisa ir além dos saberes que convencionalmente já possui como saberes pedagógicos, fruto da experiência. Sobretudo, há
necessidade de maior familiaridade com as tecnologias digitais.
Assim, durante o curso online, observamos que a aluna Celeste2 sentiu-se inquieta com a dinâmica não-linear
(multiálogos) das aulas no chat:
(19:26:49) Celeste fala para Todos: “Semana passada fiquei bastante cansada com o curso e frustrada também
porque penso que poderíamos ter avançado na discussão. É possível hoje fazermos algo mais organizado. Por exemplo,
discutirmos a realidade das escolas, pensarmos nas possibilidades e por fim o nosso próprio curso e a proposta do prof.
Marcelo. O que acham?”
Educação online é trabalhar com a diversidade das idéias e a velocidade de informações e reflexões que circulam
durante a aula num chat, por exemplo, no qual a lógica comunicacional interativa todos/todos se faz mais presente do que a
do falar/ditar, na qual um fala e os outros só escutam.
Segundo Moran (in: SILVA, 2003, p. 39), a educação online é o “... conjunto de ações de ensino-aprendizagem
desenvolvidas por meios telemáticos, como a internet, videoconferência e a teleconferência.”
Em outro momento, a mesma aluna que se inquietava com a pulverização muito rápida e dispersa de informações
coloca:
Data: 30/03/2004 - (20:07:46) Celeste fala para mborba: “Adoro a desorganização de idéias. Acho fundamental
para aprender”.
O professor Marcelo Borba imediatamente faz uma intervenção, dizendo que é possível aprender, ressignificar além
da lógica do falar/ditar do professor em “sala de aula”.
Data: 30/03/2004 – (20:10:04) mborba fala para Todos: “que bom Celeste que gostas da desorganização, achei que
tinha sido você que tinha reclamado do caos da aula... !!!!!!”
Apesar de brincar um pouco com a questão, o coordenador do curso reconhece que a docência online requer do
professor certa dinamicidade de pensamento para lidar com as tecnologias digitais, com uma equipe de profissionais de
diversas áreas do conhecimento, com o inusitado, além das demandas afetivas e emocionais do grupo.
Assim, durante a entrevista o professor nos relatou que “nas primeiras turmas, havia um clamor muito forte de um
quarto da turma, e talvez isso representasse bem mais gente que em silêncio ficava, na qual eles falavam – professor,
organize esses debates no chat –, porque achavam uma coisa desorganizada e que não levava a nada porque você tem aqueles
diferentes diálogos acontecendo.”
Segundo Silva (2003b, p.65):
... o chat potencializa a socialização online quando promove sentimento de pertencimento, vínculos afetivos e
interatividade. Mediado ou não, permite discussões temáticas e elaborações colaborativas que estreitam laços e impulsionam
a aprendizagem. O texto das participações é quase telegráfico, ligeiro, não linear, próximo da linguagem oral, efervescente e
polifônico num jogo semiótico complexo. Pode ser tomado como documento produzido pelo grupo e enviado para o cursista
que não pôde estar presente.
Um dos desafios colocados por Borba, na entrevista, é que o trabalho de acompanhar essa demanda de
colaborações muitas vezes ficou muito mais complexo:
... às vezes o professor vai para um grupo e para o outro, mas eu insisti que queria que permitissem essa forma, pois
esta transforma a prática da docência em relação à sala de aula usual, onde eu tenho que levantar a mão e dou a palavra para
um ou algum aluno toma a palavra, enquanto lá no chat eu não dou necessariamente a palavra no ambiente no qual estava
trabalhando, eu permitia que a “confusão” se estabelecesse, porém isso demanda uma questão técnica, o professor precisa
estar digitando muito rápido, ele tem que estar administrando, sendo que às vezes eu tinha até um pedaço de papel para
anotar as questões e tentar voltar para algumas questões dos alunos. (Entrevista realizada em, 11/03/2005)
O chat apresenta demandas emocionais muito intensas, pois alguns alunos reclamam e lançam situações como:
“professor, você responde a todo mundo menos a mim”.
Segundo Silva (2003b, p. 65):
Não apenas o estar-junto online na base da emissão de performáticos fragmentos telegráficos, mas o cuidado com a
expressão profunda de cada participante. Não apenas o esforço mútuo de participação para ocupar a cena do chat, mas a
motivação pessoal e coletiva pela confrontação livre e plural. Não apenas a torre-de-babel feita de cacos semióticos caóticos,
mas teia hipertextual das participações e da inteligência coletiva. Mesmo que cada participante seja para o outro apenas uma
presença virtual no fluxo das participações textuais, há sempre a possibilidade da aprendizagem dialogada, efetivamente
construída.

4. Educação online x chat

2
Para divulgar os dados, tive autorização por e-mail do professor Borba, coordenador do curso, enquanto os participantes estavam cientes, através do chat, de que
os dados seriam publicados.

271
Educação online é trabalhar com a diversidade das idéias e a velocidade de informações e reflexões que circulam
durante a aula. Deste modo, é no chat que a lógica comunicacional interativa todos/todos se faz presente, mais de que a do
falar/ditar, na qual um fala e os outros só escutam.
Assim, poderíamos dizer que o chat, enquanto momento síncrono, ambiente virtual de aprendizagem e de uma
pedagogia coletiva e colaborativa no ciberespaço, requer participação, bidirecionalidade e permutabilidade na comunicação,
pois estas criam possibilidades para a construção coletiva e colaborativa do conhecimento. Esta pedagogia requer um novo
pensar da relação professor/aluno e do conhecimento, impulsionando a superação da lógica do falar/ditar, própria da lógica
da transmissão da mídia de massa que separa o emissor do receptor, por uma lógica comunicacional mais interativa, na qual
emissor e receptor dialogam e são co-criadores da aprendizagem.
Segundo Santos (2003, p.90), “...o suporte dos meios de comunicação de massa não permite a interatividade,
apenas interação. Isto é exatamente uma das diferenças entre os meios de comunicação de massa e os meios de comunicação
interativos, a exemplo, o ciberespaço.
Assim, percebe-se que o ciberespaço e os ambientes que o compõem podem proporcionar uma outra perspectiva de
relação professor/aluno, visto que, segundo Silva (2003a, p.263), “O professor construtivista é aquele que cuida da
aprendizagem suscitando a expressão e a confrontação dos estudantes a respeito de conteúdos de aprendizagem.”
Todavia, na mesma entrevista, o professor Borba cita alguns problemas da docência online. Além dos problemas
relacionados ao pedagógico, que são muitos, aponta os problemas técnicos, que às vezes ainda são maiores, e as questões
burocráticas, tais como a validade dos cursos, a freqüência e o lidar com as múltiplas perguntas dos participantes.
Assim, devemos salientar que, além das possibilidades que o ambiente virtual de aprendizagem apresenta na
contemporaneidade com a emergência da cibercultura – segundo Santos (2003, p. 295), “A cibercultura desafia o currículo e
os professores para o exercício de autorias coletivas com seus alunos” – esta, enquanto fenômeno complexo, também
apresenta dificuldades de ordem diversa.
Entretanto, o ciberespaço pode contribuir de forma significativa na elaboração de práticas educativas mais
interativas e emancipatórias, visto que, segundo Santos (2003, p. 295), “... ao contrário das mídias de massa, através da
internet cada espaço ou cenário de aprendizagem pode se constituir como uma agência de notícia” e de interatividade.

Considerações finais
Estudar a docência online é perceber as suas implicações com a nossa história de vida pessoal e profissional. É dar
abertura para compreender uma perspectiva de docência mais colaborativa, sustentada em princípios da interatividade e
aspectos afetivos, éticos e políticos que transformam/formam o ser humano..
Com isso percebemos que a docência online reorganiza e potencializa os saberes da docência que são de ordem
social. São os saberes da experiência, das histórias de vida pessoal e profissional, do pedagógico, tecnológico, afetivo, ético,
estético, criativo e científico, sendo que a docência online cria possibilidades de interatividade com várias mídias, digitais
e/ou não, permitindo formas híbridas, participativas e bidirecionais de construção/difusão do conhecimento, nas quais a
colaboração e a coletividade se fazem presentes na prática educativa, modificando a lógica um/todos para todos/todos.
Assim, a docência online apresenta rupturas e possibilidades para a prática educativa, a saber:
rompe com a lógica comunicacional do falar/ditar, um/todos;
rompe com o paradigma educacional positivista, que separa e dissocia o professor do aluno, o texto do contexto;
rompe com o poder/saber centralizado apenas no professor;
rompe com a educação bancária, a lógica disciplinar e individualizada;
questiona a idéia de cursos de Educação a distância fundamentados no instrucionismo;
Apresenta possibilidades quando:
propicia ao professor o instigar pela pesquisa na internet de textos, sites, bibliotecas virtuais, abrindo possibilidades
de navegar pelo incerto, sem itinerário predeterminado;
requer do professor o domínio da língua escrita e, muitas vezes, uma linguagem mais clara, objetiva, sem muita
prolixidade;
requer familiaridade com as tecnologias digitais;
requer rapidez nos contatos e no retorno, pois os alunos ficam ansiosos e, muitas vezes, até chateados e dispersos se
não forem logo atendidos;
favorece a ampliação dos saberes da docência, como saberes didáticos/pedagógicos, científicos e da experiência
pela inserção do uso da tecnologia digital;
possibilita encontros assícronos e síncronos, como chats, fóruns, utilização do mensseger por parte dos alunos, sob
a justificativa de se sentirem mais juntos, mais “presentes”;
a docência online se constitui enquanto espaço multirreferencializado, no qual o processo de ensinar/aprender se dá
permeado de multiplicidade de profissionais, opções religiosas, sexuais, de gênero, de desejos, projetos, localidades e
histórias de vidas;
constitui-se pelo aprender a lidar com o inusitado a todo instante: são questionamentos, dúvidas, falta de
habilidades com a tecnologia digital;

272
exige conhecimentos sobre a proposta pedagógica e teórica/filosófica dos cursos, bem como os dispositivos
metodológicos a serem utilizados;
amplia a concepção de planejamento enquanto instrumento da prática pedagógica, pois, em educação online, este se
constitui enquanto dispositivo de reflexão, de diagnóstico, de tomada de decisão, de gestão participativa e se transforma em
atividade complexa, pois reúne uma diversidade de profissionais, desde webdesigners, webroteiristas, instructional designers,
analistas de sistemas, técnicos em informática, a profissionais da educação, como professores licenciados, pós-graduados e
pedagogos;
amplia a concepção de relação professor/aluno, sendo que estes são co-autores e parceiros no desenvolvimento das
atividades e da aprendizagem, sugerindo, interagindo uns com os outros e apoiando-se uns aos outros nas dificuldades
encontradas, de cunho pedagógico, tecnológico e científico.
Resumindo, podemos dizer que a docência online é um espaço multirreferencializado, no qual o processo de
ensinar/aprender é permeado pela multiplicidade de profissionais, áreas de conhecimento, localidades, desejos, saberes e
histórias de vida pessoal e profissional. A docência online, além de ser um conjunto de ações de ensino/aprendizagem
realizadas pelos envolvidos na prática educativa online, é uma pedagogia fundamentada nos princípios da educação online,
como conjunto de ações de ensino-aprendizagem por meios telemáticos, como a internet, a videoconferência e a
teleconferência, que permitem a participação-intervenção, a bidirecionalidade-hibridação e permutabilidade, que constituem
os pressupostos dessa pedagogia comunicacional interativa.

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Roberto C. Costa. Porto Alegre: Artmed,.

Sociedade, Educação Básica Pública e Comunicação: responsabilidade, lutas


sociais e direitos no Brasil (1988-2007)

Diones Dias Soares


USCS - Universidade de São Caetano do Sul
vimdafrica@ig.com.br

Resumo: Este trabalho debate o contexto sócio-político-educacional brasileiro entre os anos de 1988 e 2007 abordando as principais leis e
planos educacionais, os sistemas de financiamento e a atuação da sociedade civil no período. A data inicial refere-se à promulgação da atual
Constituição Brasileira. O período de investigação desta pesquisa é caracterizado pelo aumento na oferta de vagas na escola pública, mas
também pela queda no nível de formação dos professores e a precariedade de sua remuneração e de condição efetiva de trabalho. Destacam-
se neste Projeto a relevância da atuação de organizações da sociedade civil, o debate acerca da responsabilidade coletiva na melhoria das
condições sociais de educação e aprendizagem. Feito isso, almeja-se que o trabalho contribua para formação de opinião a cerca da qualidade
da educação pública básica no Brasil.

Introdução
Este trabalho toma como educação de qualidade, aquela capaz de proporcionar a qualquer pessoa a capacidade do
auto-raciocínio, da compreensão da realidade. Tais objetivos são obrigação do governo, conforme determina a Constituição1.
“A educação, (...), será promovida e incentivada (...), visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
O Brasil está longe de atingir esse patamar. Na educação infantil, o Brasil só atendia, em 2000, a 35,4% das
crianças entre 0 a 6 anos (CAMPANHA, 2007), sendo que na creche, período que compreende os três anos iniciais, a
quantidade era de somente 13% em 2005 (ELY, 2007). Em 2003, ao índice de das crianças entre 7 e 14 anos freqüentando o
ensino fundamental era de 97,3%2. Apesar disso, essa inserção foi feita de maneira precária. Como conseqüência, no mesmo
ano apenas 66% dos matriculados concluíram o curso na idade ideal (HADDAD, 2007). No ensino médio apenas 40,1% da
população a freqüentava (CARVALHO; HADDAD; SARAIVA, 2008) em 2000. Em 2005 mais de 15 milhões de brasileiros
com 10 anos ou mais de idade eram analfabetos. O número representa que 10,2%3 da população. Outros 23,6% haviam
estudado menos de quatro anos, metade do que a legislação determina como obrigatória.
O país participou três vezes do Pisa (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes), teste organizado a cada
triênio pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2006, o Brasil ficou em 52º entre 57
países que participaram da prova focada em ciências (GÓIS; PINHO, 2008); em 2003 (matemática) a posição alcançada foi o
38º lugar entre 41 países; e em 2000, penúltimo entre 43 nações em leitura.
Esses dados fazem parte do contexto sócio-político-educacional que o estudo vai debater, abordando as principais
leis educacionais que surgiram entre 1988 e 2007, os planos educacionais do período, os sistemas de financiamento e a
atuação da sociedade civil. Feito isso, almeja-se que o trabalho contribua para formação de opinião a cerca da qualidade da
educação pública básica brasileira.

Capítulo 1
Contexto sócio-político-educacional do Brasil entre 1988 e 2007
O período foi marcado por grandes mudanças na escola básica pública brasileira (planos e leis educacionais,
avaliações, financiamento). Essas mudanças estão intimamente ligadas e são dependentes de ações políticas. É aí que começa
um dos problemas da educação brasileira, na política.
As classes dominantes brasileiras não têm interesse em garantir escola de qualidade para todos por motivos
econômicos, já que não há lugar no mercado de trabalho que comporte a todos (OLIVEIRA, 1995). Aos pobres, o que resta é
a educação básica pública, incapaz de formar cidadãos plenos, gerando mão-de-obra barata e desqualificada e justificando as

1
Artigo 205 da Constituição Federal de 1988.
2
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Pesquisa Nacional por Amostra de DomicíliosPesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2005.
Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=686
3
Idem.

274
diferenças sociais. “... se se elevar o nível educacional de determinada população, os diferenciais individuais de rendimento
no mercado de trabalho não mais poderão ser explicados pela posse de níveis distintos de educação” (OLIVEIRA, 1995, p.
32).
O governo põe em prática, então, seu populismo4 que somado ao ensino oferecido aos pobres ajuda a explicar a
expansão de matrículas no ensino fundamental na década de 1990 que coloca essa etapa da educação básica bem próxima da
suposta universalização, já que 97,3%5 das crianças entre 7 e 14 anos viram concretizado seu direito ao acesso à escola.
Haddad aponta que essa universalização é falsa no sentido em que a baixa qualidade do ensino unida às más condições de
vida geram um novo tipo de exclusão, promovida “pela incapacidade de adquirir a escolaridade, mesmo freqüentando os
bancos escolares” (Haddad, 2007, p. 24).
No governo Lula pode-se identificar o populismo e suas ações assistencialistas6 nos programas Bolsa Família e
Universidade para Todos (Prouni). Não queremos dizer com isso os programas acima mencionados não beneficiem milhares
de pessoas. O problema é a estabilidade econômica e social pretendida por eles se dar mantendo a elite no topo da pirâmide e
a grande população na base, sem capacidade de enxergar os verdadeiros motivos do assistencialismo.
A pobreza política é marcada pela entrega acrítica do próprio destino nas mãos dos algozes, esperando deste a
salvação. (...) O pobre sequer consegue saber, é coibido de saber que é pobre. Não envolve apenas a dimensão do “ter”, mas
do “ser”: mais grave do que passar fome é não perceber que a fome é forjada e fonte de lucro para minorias, donde segue que
acredita mais em “cestas básicas” do que em sua luta. Se não descobrir que a pobreza é injusta e historicamente produzida, o
pobre continua “objeto” de cuidados duvidosos de estados e governos, quando, na verdade, deveria ser a peça-chave de sua
libertação (DEMO, 2005, p. 108).
As palavras de Demo podem perfeitamente ser adaptadas à educação e à conseqüente alienação que sua falta
propicia e de forma alguma se pode culpar o alienado por sua condição submissa, pois, “ele pensa, sente, quer o que todo
mundo ao seu redor quer, sente e pensa” (BAKUNIN apud BARRUÉ, 2003, p. 13). Bakunin chamou essa capacidade dos
dominantes de manter a população sob sua tutela de ciência.
Ciência de tosquiar os rebanhos populares sem fazê-los gritar demasiado e, quando começarem a gritar, ciência de
impor-lhes silêncio, paciência e obediência por meio de uma força cientificamente organizada; ciência de enganar e dividir as
massas populares, de mantê-las sempre em uma saudável ignorância para que nunca possam, ajudando-se e unindo seus
esforços, criar um poder capaz de derrubá-los. (BAKUNIN, 2003, p. 66)
Os “cientistas” descritos por Bakunin obtêm resultados satisfatórios no Brasil. É o que comprova a pesquisa7
realizada em 2007. Segundo o levantamento, a nota média conferida pelos 2001 entrevistados à educação básica pública
brasileira, responsável pelo atendimento a cerca de 48,7 milhões de alunos (BARROS, 2007), foi 7,4, suficiente para aprovar
um estudante em vários cursos. 18% desses entrevistados chegaram a atribuir nota 10, sendo que a média do ensino privado
ficou em 8,3.
E assim, criando mais vagas para o acesso a escola sem acompanhá-las da estrutura necessária para que a educação
seja fornecida com qualidade, os governos brasileiros vêm há anos atingindo seus objetivos: demonstrar uma aparente
preocupação com a educação pública básica e manter seus cidadãos sem formação intelectual. Oliveira cita um trecho que
Anísio Teixeira sintetiza a maneira governista de agir.
Dificultam-se os recursos para o empreendimento; ministra-se educação do tipo inútil e que desencoraje a maioria
em prossegui-la; e se a teimosia popular insistir pela freqüência à escola, abrevia-se o período escolar, oferecendo-se o
mínimo possível de educação, alega-se que tal se faz por motivos democráticos, a fim de atender a todos (TEIXEIRA, apud
OLIVEIRA, 2005, p.28)

Capítulo 2
Piso Salarial para professores
Para obter sucesso em sua estratégia os dominantes lançam mão de algumas manobras, entre as quais está inserida a
participação do professor, principal envolvido no processo educacional (ALVES; LUZ, 2007) ao lado do aluno. Barrué faz
referência a texto onde Bakunin define essa ação. “Os professores (...) tornar-se-ão, uns sem sabê-lo, os outros em pleno
conhecimento de causa, os mestres da doutrina do sacrifício popular para o poder do estado e para o benefício das classes
privilegiadas” (BAKUNIN, apud BARRUÉ, 2003, p. 15).
E por essa ação passa a remuneração do profissional. O Ministério da Educação (MEC) enviou ao Congresso
Nacional, em 28 de março de 2007, o Projeto de Lei (PL) 619/2007 que institui o piso salarial nacional para professores do
magistério público. A ação nada mais é do que o cumprimento de uma norma estabelecida pela Emenda Constitucional (EC)
53/2006 e sacramentada pela Lei 11.494/2007, que, respectivamente, criou e regulamentou o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Mesmo assim o governo incluiu o piso como uma das ações do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE).

4
Maneira de exercer o poder dando atenção ao povo em troca de um suposto autoritarismo consentido (ARAÙJO, 2007).
5
Dados de 2003. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Pesquisa Nacional por Amostra de DomicíliosPesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(Pnad) 2005. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=686.
6
Prática de exclusão que retro-alimenta a miséria (BARBOSA, 2004).
7
Publicada na revista Carta Capital no dia 8 de agosto de 2007.

275
Nesse processo, o MEC cometeu alguns erros de conduta. O primeiro deles foi não incluir todos os trabalhadores
das escolas no projeto, restringindo o benefício apenas àqueles considerados profissionais do magistério (professores,
diretores, coordenadores pedagógicos). Isso pode gerar uma insatisfação ainda maior por parte dos demais funcionários e
funcionárias que atuam nas instituições de ensino. A cinca pode ser corrigida se o PL 6.206/2005 for aprovado igualando
todos os funcionários como profissionais qualificados.
O segundo foi sugerir o pagamento mensal de apenas R$ 850, incluindo todos os benefícios, por uma jornada de
trabalho de 40 horas semanais. É fato que o projeto sofreu importantes modificações em seu conceito e valor, e ainda pode
haver mais mudanças, já que, assim como o PL 6.206/2005, permanecia em tramitação até dezembro de 2007, mas, interessa
a esse trabalho, a intenção primeira do governo, que é de remunerar mal seus servidores.
A falta de consideração fica ainda mais evidente se comparado à intenção do poder executivo, que chegou a ser
cogitada em julho do mesmo ano, mas não vingou, de criar um piso salarial também para policiais. A medida faria parte de
outro plano, esse para a área de segurança e cidadania: o Pronasci8. O valor estaria entre R$ 1.200 e R$ 1.700. Se aprovadas
as medidas nos moldes governistas a diferença de remuneração entre um profissional e outro poderia chegar a 100%.

Verifica-se claramente a intenção do governo de não investir adequadamente na rede pública de ensino básico ao
notar que, na época de seu anúncio, o Pronasci previa a construção de 187 presídios para adolescentes em conflito com a lei,
ao custo aproximado de mais de R$ 1 bilhão - mesmo valor destinado ao PDE entre março de 2007 e março de 2008. Cada
um demandaria cerca de R$ 6,2 milhões. Com o dinheiro empregado para fazer apenas uma prisão que trancaria 245 jovens
entre 18 e 29 anos, seria possível levantar, em 2005, segundo o CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial), estudo realizado pela
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, dez escolas de 1.060 metros quadrados com quadra de esportes, biblioteca,
laboratórios de ciências e informática, com capacidade para atender 400 alunos de 1ª a 4ª9 série do ensino fundamental (2.042
escolas e 816.800 mil estudantes no total).

Além disso, o governo demonstrou um enorme contra-senso ao aspirar dar cursos de alfabetização e formação
profissional para os detentos de suas novas “instituições de ensino”. Seria mais inteligente alfabetizar e educar crianças
descentemente, dando-lhes condição de competir igualitariamente por bons empregos quando chegarem ao mercado de
trabalho. Assim, o governo colaboraria consigo mesmo para atingir os objetivos ambicionados nos dois planos: diminuir a
violência urbana e melhorar a média nacional dos alunos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal
ação do Plano de Desenvolvimento da Educação.

Capítulo 3
O Plano de Desenvolvimento da Educação e o Plano Nacional de Educação
Nesse ponto identificamos mais uma atitude populista do governo. Ao anunciar o PDE no início de 2007 o MEC
incorporou o PL do piso salarial entre suas ações e fez o mesmo com o Fundeb. Ambos começaram a ser debatidos pelo
menos 10 anos antes do lançamento do plano. O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), criado em
1999, na gestão FHC, também entrou como ação governamental. A esse respeito, Campos observou:

Muitas das ações previstas são programas já existentes, e outras envolvem iniciativas compartilhadas com outros
ministérios – propostas que encontram dificuldades para operacionalização (...) Parece então que a grande novidade trazida
pelo PDE se concentra na utilização do Ideb como medida que fundamenta tanto o diagnóstico dos sistemas como os das
unidades escolares (CAMPOS, 2007, p. 6 e 7).
Mesmo que novidade o Ideb apresenta falhas. A maior delas é não considerar as condições em que se dá a
aprendizagem dos alunos antes de realizarem as provas e, por vincular suas notas a um cálculo que considera proficiência e
rendimento escolar, abre espaço para fraudes por parte de estados e municípios na busca de mais recursos, além de basear os
testes somente nas disciplinas de Português e Matemática.
Da combinação de resultados surge uma nota entre 0 e 10 para cada estado e município da Federação e unidade
escolar. O plano se baseou inicialmente em dados de 2005, obtendo uma média nacional de 3,6, sendo 3,8 para 1ª a 4ª séries
do ensino fundamental; 3,5 para 4ª a 8ª; e 3,4 para o ensino médio. A meta é chegar a 5,4; 6,0; 5,5; e 5,2, respectivamente, até
2021, atingindo assim o patamar ocupado hoje pelos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE).
Há ainda uma série de falhas na concepção do plano. Uma delas é que o MEC não considerou Plano Nacional da
Educação (PNE), construído com ampla participação da sociedade e que poderia melhorar a qualidade da educação básica
pública nacional se suas metas programadas para serem cumpridas até 2011 fossem alcançadas, no planejamento do PDE. O
MEC perdeu aí a chance de fazer algo concreto com relação ao financiamento da educação, aumentando a demanda que hoje

8
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. Desenvolvido pelo Ministério da Justiça o projeto articula políticas de segurança com ações sociais.
Disponível em http://www.mj.gov.br/pronasci
9
Em 2006 a Lei 11.274 alterou a LDB e a idade de 6 anos passou a fazer parte do ensino fundamental, reduzindo o atendimento na pré-escola para 4 e 5 anos e
aumentando o ensino fundamental para 9 anos (1ª a 5ª, séries iniciais e 6ª a 9ª séries finais), mas, como o prazo vai até 2010, nem todas as escolas implantaram o
sistema.

276
é de cerca de 4% para 7% do Produto Interno Bruto (PIB), percentual aprovado na construção do PNE, mas vetado pelo
governo FHC e mantido pela gestão Lula.

Capítulo 4
Lei 10.639/2003 – ensino da cultura africana e afro-brasileira
Questões raciais como a implementação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira e
africana em todas as escolas de ensino fundamental e médio também não foram contempladas no PDE. Se o tivesse feito, o
governo poderia ter destinado mais recursos para acelerar a implementação da Lei 10.639/2003, que tem como uma de suas
falhas a falta de um cronograma para essa implementação, deixando-a a cargo da boa vontade das escolas e dos sistemas
educacionais. A própria criação da norma mostra falta de compromisso do governo para com essa parcela da população.
À primeira vista a sanção da Lei 10.639/2003 feita pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva logo no nono dia do
seu primeiro mandato10 parece um comprometimento histórico e inédito de um governo brasileiro para com a população
negra, por tantos anos renegada a segundo plano em todos os segmentos da sociedade. No entanto, esse fato só ocorreu
àquela época como um lenitivo para o movimento negro. Rocha cita trecho em que Dias aborda a questão:
a lei apresentada de imediato teve como função precípua responder a antigas reivindicações do movimento negro ou
distrai-lo com novas preocupações, principalmente com a implantação da mesma. Com isso o governo consegue o
intento de não ser pressionado de imediato por este segmento da sociedade. (DIAS apud ROCHA, 2006, p. 68)

De acordo com Rocha, essa pressão se deu por causa do descumprimento de um acordo firmado entre o futuro
governo e o movimento negro, durante “o processo de transição [de 2002, FHC, para 2003, Lula], para criação de um
ministério, ou de outra estrutura específica, com o objetivo de desenvolver políticas públicas de enfrentamento ao quadro de
exclusão racial brasileiro (ROCHA, 2006, p. 68).
A lei 10.639/2003 é, portanto, resultado de reivindicações do movimento negro anteriores até mesmo à
promulgação da Constituição Federal de 1988 aliada a pressões de organismos internacionais pela diminuição da pobreza.
Sua criação ganhou força com a realização da Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as Formas de
Intolerância da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida em Durban, na África do Sul, entre 31 de agosto e 7 de
setembro 2001.
De maneira geral a lei é um grande avanço no combate ao racismo e à discriminação e busca atuar de maneira
incisiva na escola, mas ainda não causa “impacto significativo no cotidiano escolar” (EDUCATIVA, CEAFRO E CEERT,
2007, p. 42). Outra crítica ao texto da lei e à conduta do governo durante sua sanção diz respeito ao caput do artigo 26-A, que
estende a abrangência da lei apenas às escolas de ensinos fundamental e médio. Aqui mais uma vez o governo não vê a
educação infantil como parte integrante da educação básica e, portanto, importantíssima no desenvolvimento do indivíduo.
Uma pesquisa realizada em 2005 e 2006 por um grupo de entidades da sociedade civil em instituições de ensino de São
Paulo, Belo Horizonte e Salvador, e que deu origem ao livro “Igualdade das Relações Étnico-Raciais na Escola:
possibilidades e desafios para a implementação da Lei 10.639/2003” no ano seguinte, comprovam a prática do racismo desde
as idades iniciais da vida escolar. (EDUCATIVA, CEAFRO E CEERT, 2007). Silva (1999) relata em seu artigo estudos que
reforçam essa idéia.

A tramitação da lei começou em 11 de março de 1999, com a apresentação do Projeto de Lei nº 259, de autoria da
deputada Esther Grossi e do deputado Bem-Hur Ferreira, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). No dia 5 de abril de
2002, ano eleitoral e de Copa do Mundo, o PL chegou ao Senado, sendo plenamente apreciado somente no ano seguinte e
regulamentado em 2004, quando o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer número 03, instituindo as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana no dia 10 de março.

Capítulo 5
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
Disposição A creche
Níveis Etapas Educação Infantil pré-escola
Ensino Fundamental Séries Iniciais
1ª a 4ª séries
Ensino Médio ou 1ª a 5ª séries

Séries Finais
5ª a 8ª séries
ou 6ª a 9ª séries

10
2003-2006.

277
Educação Básica Modalidades Educação de Jovens e Adultos
Educação especial
Educação Indígena
Educação a Distância
Educação Profissional
Educação do Campo
Mestrado
Graduação Doutorado
Educação Superior Pós-Graduação Especialização
Extensão Aperfeiçoamento

Outros

Fonte: LDB (Lei 9.394/1996)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996) é uma espécie de regulamentação do capítulo
referente ao direito à Educação expresso na CF/88 (BORGES, 2005). De fato, ela incorpora diversos trechos presentes na
Constituição. A LDB substituiu uma série de normas anteriores a ela que versavam sobre o mesmo assunto (Lei 4.024/1961,
Lei 5.540/1968, Lei 5.692/1971, Lei 7.044/1982, Lei 9.131/1995 e Lei 9.192/1995).
Com a aprovação da atual LDB, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a educação brasileira passou a ser
distribuída por níveis, etapas e modalidades (veja disposição A), as atribuições dos entes federados foram explicitadas e a
educação de jovens e adultos (EJA) reconhecida. No entanto, a realização de censos próprios para essa modalidade não vem
sendo cumprida pelo governo (HADDAD, 2007).

Capítulo 6
Fundef e Fundeb
Além disso, três meses antes de sua sanção foi promulgada a Emenda Constitucional 14, criticada não só por
inviabilizar a obrigatoriedade e gratuidade da universalização do ensino médio, mas também por criar o Fundo de
Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), vinculação de recursos exclusiva para o essa etapa da educação básica,
deixando as demais desamparadas (HADDAD, 2007).
O Fundef entrou em vigor em 1º de janeiro de 1998. O fundo reservava 15% da arrecadação de uma cesta de
impostos como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Esses recursos eram redistribuídos aos entes
federados para serem aplicados em educação e obedeciam a critérios que envolviam o número de matrículas que
apresentavam. Até 2005 mais de R$ 175 bilhões havia sido movimentado pelo fundo (WEBER, 2006). Nesse mesmo ano a
União descumpria parte de sua responsabilidade no processo, que era a de complementar o investimento faltante em estados
com arrecadação menor. “Este aporte, que deveria ser de cerca de R$ 5 bilhões, foi inferior a 10% deste valor” (HADDAD,
2007, p. 49).
Em 1º de janeiro de 2007 passou a valer o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) com a
expectativa de um investimento anual de R$ 50 bilhões em educação (BRAGA, 2006) e com uma série de avanços em
relação à legislação anterior. Um deles diz respeito à fonte recursos. A porcentagem de arrecadação sobre impostos aumentou
de 15 para 20 e novas taxas, como o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), foram incorporadas à
cesta. Além disso, a Lei 11.494/2007, que regulamenta o Fundeb, fixou novas regras para a complementação da União, que
passou a ser de no mínimo 10% do total angariado pelo Fundeb. Outro avanço é que o fundo passou a cobrir toda a educação
básica, da creche ao ensino fundamental. Porém, essa não era a intenção inicial do Governo, uma vez que a educação infantil
não estava incluída no Fundeb quando este começou a ser debatido, o que prejudicaria cerca de 13 milhões de crianças de 0 a
3 anos, e só vieram a ser depois de muita pressão da sociedade civil.

278
Capítulo 7
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o CAQi
Durante a tramitação do Fundeb, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação coordenou o “movimento Fundeb
pra valer!”, que mobilizou cerca de 200 entidades em defesa do direito constitucional de acesso à educação pública de
qualidade. A atuação da Campanha foi essencial à inclusão das creches públicas e comunitárias nos recursos do fundo (ELY,
2007, p.37).
Como relata Ely, a pressão da Campanha se deu durante todo o processo de tramitação da proposta de criação do
Fundeb no Congresso Nacional e originou ainda outros importantes avanços para a sociedade. O reconhecimento veio por
parte da própria Câmara dos Deputados, que em 2007 agraciou a rede com o Prêmio Darcy Ribeiro, conferido a entidades e
pessoas que se destacam na defesa pelo direito à educação.
A Campanha surgiu em 1999 quando um grupo de instituições da sociedade civil se reuniu para traçar planos de
ação para a Conferência Mundial de Educação do ano seguinte, no Senegal. Outra conquista foi a criação do Custo-Aluno
Qualidade Inicial (CAQi), estudo que leva em consideração todos os aspectos necessários para que uma escola ensine com
qualidade e define valores anuais para isso. Para se ter uma idéia mais abrangente a disposição abaixo mostra os valores para
cada etapa da educação básica em 2005 e a quantidade de alunos por sala considerada pela Campanha como ideal:

Disposição B
Etapa Valor Alunos por sala
R$
Creche 4.139 12
Pré-Escola 1.789 22
Ensino Fundamental – séries iniciais (1ª a 4ª) 1.724 25
Ensino Fundamental – séries finais (5ª a 8ª) 1.697 30
Ensino Médio 1.746 30
Ensino Fundamental do Campo – séries iniciais (1ª a 4ª) 2.390 12
Ensino Fundamental – séries finais (5ª a 8ª) 2.319 25
(CAMPANHA, 2007)

Conclusão
Apesar de o acesso à escola ter aumentado e de a população considerar que o ensino básico público brasileiro é
bom, o aprofundamento na questão mostra que a realidade é mais complexa e carece de análises mais profundas. A escola é
incapaz de preparar o cidadão para a vida e para o trabalho contemporâneos. Não o credencia a exigir e praticar seus direitos
políticos, civis e sociais de forma atuante e decisiva, o que não o torna um cidadão de fato.
Devido a isso, os movimentos sociais, preocupados com essas questões, têm proposto mudanças e apresentado
estudos objetivando evitar que as crianças de hoje tenham uma educação ineficiente e inadequada para a sociabilidade
presente. O mundo globalizado de hoje exige e determina práticas de conhecimento éticas, que construam conhecimento
próprio, mediante a utilização de informações abertas num sistema de comunicação universal, digital e político, viabilizador
de mais liberdade intelectual.
Somente com um povo devidamente educado será possível a construção de uma sociedade política, social e
economicamente justa, o que levará ao desenvolvimento dos demais setores que compõem a vida em grupo. Contudo, os
tramites da história da educação no Brasil relam que desde o período imperial o objetivo do governo é “a formação das elites
dirigentes do país” (PILETTI, 1991, p. 145). E isso ainda não mudou.

Referências
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de problemas matemáticos. In: Revista Contemporânea de Educação – nº 3. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
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<http://www.infoescola.com/politica/populismo/. Acessado em 29 jun 2008.
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BARRUÉ, Jean. Bakunin e a Educação. In: A Instrução Integral. São Paulo: Editora Imaginário, 2003.
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BORGES, Gilberto André. Trajetória da Educação no Brasil - Pensamento Pedagógico Brasileiro. Florianópolis: E-book,
2005.

279
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CAMPOS, Maria Malta. Informativo Ebulição. São Paulo: Ação Educativa, 2007.
CARVALHO, Ludmila; HADDAD, Sérgio; SARAIVA, Sabine. Uma avaliação da sociedade civil e da colaboração
interministerial no Plano de Desenvolvimento da educação – PDE. São Paulo: Ação Educativa, 2008.
EDUCATIVA, Ação, Ceafro e Ceert. Igualdade da Relações Étnico-Raciais na Escola – possibilidades e desafios para a
implementação da Lei 10.639/2003. São Paulo: Editora Peirópolis, 2007.
ELY, Rafael Cristiano. Revista Criança. Brasília: Ministério da Educação, 2007.
GÓIS, Antônio; PINHO, Ângela. Pisa: Brasil é reprovado, de novo, em matemática e leitura. [Internet] s/data. Disponível via
<http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=52820. Acessado em 22 jun 2008.
HADDAD, Sérgio – coord. Educação e Exclusão no Brasil. São Paulo: Ação Educativa, 2007.
OLIVEIRA, Romualdo Portela. Educação e Cidadania: O Direito à Educação na Constituição de 1988. São Paulo: USP,
1995.
PILETTI, Nélson. História da Educação no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1991.
ROCHA, Luiz Carlos Paixão da. Políticas Afirmativas e Educação – a Lei 10.639/2003 no contexto das políticas
educacionais no Brasil contemporâneo. Curitiba, 2006.
WEBER, Demétrio. Fundef: dez anos sem melhorar a qualidade. Jornal O Globo, 2006.

Educação e Formação em São Tomé e Príncipe: Constrangimentos ao seu


desenvolvimento.

Antonio José Martelo


CEA/ISCTE
antonio.martelo@netvisao.pt

Resumo: A República Democrática de São Tomé e Príncipe insere-se no conjunto dos denominados PEID – Pequenos Estados Insulares em
Desenvolvimento, caracterizado por ser um Estado de fraca capacidade, extrema vulnerabilidade, inserido no grupo dos denominados
Estados frágeis. Passadas que são mais de três décadas sobre a independência, o país continua a ser dos mais pobres do mundo, revelando
grandes deficiências estruturais que se vão reflectindo em enormes carências, sobretudo ao nível dos sectores da educação e saúde. A enorme
carência de recursos humanos qualificados (educação/formação) tem sido um sério obstáculo quer ao desenvolvimento económico e social
quer no combate aos elevadíssimos índices de pobreza que caracterizam o arquipélago. Apesar das sucessivas propostas governativas irem no
sentido da tentativa de melhoria da qualidade da educação e a sua eficácia, estas, não têm correspondido aos anseios da juventude, no sentido
de lhes aumentar as qualificações, as competências profissionais e técnicas, de os qualificar para o desempenho profissional. Partindo da
análise do sistema educativo do arquipélago, propomos identificar os constrangimentos e obstáculos que vêm impedindo que este possa
responder às necessidades da sociedade bem como aos anseios da juventude. Por outro lado, propomos caminhos alternativos e reformas
estruturantes no sentido da melhoria da oferta e da qualidade educativa, inadiáveis face aos grandes desafios que se perspectivam para o país.

A República Democrática de São Tomé Príncipe insere-se no conjunto dos denominados PEID – Pequenos Estados
Insulares em Desenvolvimento, é caracterizada por ser um Estado de fraca capacidade e extrema vulnerabilidade, está
incluído no grupo dos denominados Estados frágeis.
Marcado por uma permanente instabilidade governativa, constantes actos de corrupção e uma economia assente
num sector primário com baixíssimos índices de produtividade, o país vem agravando permanentemente os índices de
pobreza extrema das populações do arquipélago.
As deficiências estruturais são extensíveis a todos os sectores da sociedade, sendo, sobretudo, ao nível da educação
e da saúde que se observam as maiores deficiências.
Com uma população maioritariamente jovem, as políticas para o sector educativo têm sido incapazes de dar
resposta às necessidades de educação/formação dos jovens do arquipélago. Quer por graves carências de infra-estruturas
educativas, quer por uma enorme carência de recursos humanos qualificados, um número cada vez mais significativo da
população do arquipélago não tem acesso à educação ou a alternativas de formação. Este tem sido um sério obstáculo ao
desenvolvimento económico e social do país e ao combate aos elevadíssimos índices de pobreza que caracterizam o
arquipélago.
Tendo por meta os ODM, os sucessivos governos, vêm reproduzindo permanentemente o discurso político do
combate à pobreza, invocando a melhoria da educação e da saúde como áreas de intervenção prioritária e necessitadas de
reformas e intervenção profunda. Porém, a frágil capacidade financeira do Estado é um sério obstáculo à concretização
desses objectivos.

280
O país, ao longo destas três últimas décadas, caracterizou-se por depender fortemente das ajudas externas, sendo
cerca de 90% do orçamento de Estado proveniente dos fluxos das dotações da Ajuda Internacional1. Esta vem actuando, de
múltiplas formas, em todos os sectores da sociedade santomense, sendo a educação / formação e o combate à pobreza as
prioridades dessas ajudas.
No entanto, e apesar da proliferação de acordos, projectos e acções levadas a cabo pelos diversos parceiros da
cooperação que actuam no território, os índices que caracterizam o subdesenvolvimento têm vindo a aumentar.

1. CONTEXTO da Política Educativa Santomense


Em 1975, São Tomé e Príncipe “herdou” um sistema de ensino colonial, elitista, discriminatório, cujo objectivo
prioritário era a formação de uma elite nativa, capaz de servir os interesses do regime colonial português e onde apenas cerca
de 20% da população santomense sabia ler e escrever.
O número de escolas primárias não ultrapassava as três dezenas e para o ensino secundário existia apenas uma
escola, o Liceu Nacional D. João II, que compartilhava as instalações com a escola técnica Silva Cunha.
A independência do arquipélago, tal como nas outras ex-colónias, foi acompanhada pelo discurso político, dos
novos dirigentes, que ia no sentido da construção de uma “Nova Sociedade”, do “Homem Novo”, o que de certa forma
preconizava o corte com tudo o que teria a ver com o passado colonial e com o ex-colonizador. No entanto, um elemento
fundamental manteve-se intocável – a língua portuguesa. Esta vai permanecer como factor de integração e coesão da
sociedade santomense.
A nova realidade santomense “exigia” profundas reformas em todos os sectores da sociedade, tendo a educação
sido “eleita” como prioritária pelo recém instituído Estado Nacional.
A destruição do sistema educativo colonial e a sua substituição por um modelo de “educação de massas”, gratuito,
obrigatório e universal, exigia todo um conjunto de estruturas (físicas, materiais, financeiras, pedagógicas) para as quais São
Tomé e Príncipe não possuía meios, nem o antigo colonizador tinha deixado como “espólio” da sua permanência.
A fim de atingir os objectivos políticos e poder ultrapassar os constrangimentos que afectavam a educação e o
ensino no arquipélago, o Estado recorreu à “solidariedade” internacional, apoiando-se para o efeito na assistência técnica e
docente de países como Cuba, Portugal e França.
Os primeiros anos após a independência foram marcados por uma ampla e massiva campanha de alfabetização,
procurando ao mesmo tempo tornar acessível o ensino a todas as crianças em idade escolar.
Sob a administração do Ministério da Educação e Cultura, o sistema educativo santomense, no período que se
seguiu à independência, registou um desenvolvimento significativo, resultando na obtenção de resultados bastante positivos
devido à vulgarização do ensino2.
A partir de meados da década de 80, a crise económica e financeira que afectou o país impôs reduções e cortes
drásticos no orçamento destinado à educação. Estas medidas, tiveram repercussões muito significativas em todo o sistema de
ensino santomense, acabando por comprometer todos os esforços até aí realizados.
O início da década de 90 foi marcado por transformações profundas na sociedade santomense. A introdução do
multipartidarismo e a liberalização económica, permitiram ao mesmo tempo, uma ampla reflexão nacional sobre as
finalidades e objectivos da educação, acabando por ter consequências e intervenções significativas no sector (EPT, 2002:
16)3.
Em 1986 teve início um importante projecto de reforma educativa com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
(FCG), de Portugal e do Banco Mundial. Este apoio incidiu muito significativamente na produção e edição de manuais
escolares e na formação de inspectores da educação. No entanto, o programa não chegou ao seu termo, acabando por vir a ter
consequências negativas no sistema educativo de santomense.
Em 1995 realizou-se no arquipélago uma consulta sectorial com o apoio do PNUD. Por sua vez, em 1996 foi
realizado, no território, o Fórum Nacional da Educação que teve o apoio da UNICEF e da UNESCO, cujo objectivo era
definir o quadro da política educativa para o país.
No ano lectivo de 2002/03 começou a ser implementado, de forma faseada, o novo quadro normativo do sistema
educativo.
Apesar dos fracassos verificados, as decisões adoptadas para a educação têm tido o objectivo de alargar e reforçar a
qualidade do ensino básico obrigatório. São Tomé e Príncipe tem, de certo modo, vindo a subscrever as recomendações dos
principais fóruns internacionais sobre a educação, das conferências regionais e das iniciativas empreendidas pela conferência
dos países de língua portuguesa.

1
Nos últimos dias do ano de 2008 o Parlamento santomense aprovou na globalidade o orçamento de Estado para o ano de 2009. Cerca de 150 mil dólares é o
montante global deste orçamento, do qual 85 por cento provém da cooperação externa. Trata-se do maior orçamento do Estado na história de São Tomé e
Príncipe.
2
O esforço dispendido levou a que, dez anos mais tarde, o nível de alfabetização dos adultos tivesse atingido quase 75%, enquanto a frequência do ensino
primário teria conhecido um incremento na ordem dos 60%. O ensino secundário registou um aumento de cerca de 300%. Por altura deste mesmo período cerca
de 600 bolseiros santomenses teriam já concluído a sua formação no estrangeiro (PNUD, 1998: 50,51). No entanto, estes resultados ficaram muito aquém dos
objectivos preconizados pelo discurso político.
3
Com a II República, mudaram-se os termos da política educacional, passando a colocar-se a questão da participação da população nos custos desse benefício.
Para além disso ficava a possibilidade do exercício liberal de actividades neste domínio.

281
No plano internacional São Tomé e Príncipe subscreveu as propostas da conferência de Jomtien realizada em 1990,
e os compromissos de Dakar, no ano de 2000. Foi com base nestes compromissos, que os dirigentes educativos santomenses,
reconheceram a necessidade da elaboração de um plano nacional de acção com vista à materialização dos objectivos do
milénio, à promoção de políticas de educação de forma duradoura, integrada e articulada, com as estratégias de eliminação da
pobreza e em prol do desenvolvimento sustentado.
Apesar de o sector educativo ter vindo a ser sucessivamente objecto de preocupação prioritária, por parte dos
governos santomenses, as elevadas carências estruturais do sector têm obstado ao aparecimento de melhorias significativas na
educação e ensino.
As reformas educativas levadas a cabo no país, até ao momento, não atingiram as metas propostas, sobretudo
devido a uma certa falta de clareza dos objectivos, de definição de estratégias realistas e capazes de estabelecer a
universalidade de acesso à educação de qualidade a todos os santomenses.

2. Organização do Sistema Educativo da RDSTP


O Sistema Educativo de São Tomé e Príncipe é presentemente abrangido pela nova LBSE 2/2003, que está a ser
implementada de uma forma faseada e estabelece o quadro geral do sistema educativo.
Se bem a lei Nº 2/2003 é o marco legal que rege a educação do país, a realidade mostra que, ainda hoje, a oferta
educativa nacional responde mais à antiga Lei de Base do Sistema Educativo (Decreto-Lei n.º 53/88) que foi sancionada em
2003.
Esta situação constitui um indicador, por si só eloquente, das dificuldades que o Ministério de Educação tem tido
para implementar e impulsionar as transformações previstas pela nova lei da educação.
A nova lei abrange: a organização geral do sistema educativo; apoios e complementos educativos; recursos
humanos; recursos materiais; a administração do sistema educativo; o desenvolvimento e avaliação do sistema educativo e
disposições finais.
A nova organização geral do Sistema Educativo engloba a educação pré-escolar, a educação escolar e a educação
extra-escolar.

2. 1 Educação Pré-Escolar
A educação pré-escolar é facultativa e está destinada a atender as crianças menores de 7 anos. Incumbe ao Estado
apoiar iniciativas no âmbito do desenvolvimento da educação pré-escolar.
Ao ministério compete definir as normas gerais de educação pré-escolar nos seus aspectos pedagógico e técnico.

2. 2 Educação escolar
A educação escolar abrange:
- O Ensino Básico, que tem a duração de seis anos. É universal, gratuito e obrigatório. Compreende dois ciclos
sequenciais, sendo o primeiro de quatro anos (da 1ª à 4ª Classe) e o segundo de dois anos (5ª e 6ª classe).
- O Ensino Secundário que compreende dois ciclos, cada um com 3 anos, e tem duas variantes – cursos
predominantemente orientados para a vida activa ou para o prosseguimento de estudos no 2º ciclo.
- O Ensino Superior que compreende o ensino universitário (são conferidos graus académicos de bacharel,
licenciado, mestrado e doutor) e tem a duração de 5 anos. O Ensino Politécnico tem a duração de 3 anos e confere o grau de
bacharel e licenciado (5 anos).
- Existem outras modalidades especiais da Educação Escolar que abrangem a educação especial, o ensino
recorrente de adultos, a formação profissional e o ensino à distância.

2.3 Educação Extra-Escolar


A educação extra-escolar tem como objectivo permitir a cada indivíduo aumentar os seus conhecimentos e
desenvolver as suas potencialidades, em complemento da formação escolar ou em suprimento da sua carência.

A abordagem que se segue tem por base este quadro legislativo.

3. CARACTERIZAÇÃO e Diagnóstico do Sistema Educativo de São Tomé e Príncipe

3.1 Situação Global


No ano lectivo de 2006-2007 o sistema educativo do arquipélago registou 40.794 alunos, matriculados entre a 1ª e a
12ª classes. Destes, 31.560 frequentavam ao ensino básico (1ª à 6ª classe) e somente 9.234 o ensino secundário. Estes valores
indicam que 78% dos alunos frequentaram o ensino básico e somente 22% o secundário.
Num modelo ideal, os alunos, ao longo de todo o sistema, deveriam distribuir-se em 54% para o ensino básico e
46% para o ensino secundário.

282
Estes dados, e com o auxílio do gráfico 1, permitem verificar a elevada taxa de abandono dos alunos ao longo do
percurso escolar, bem como a perda de recursos devido às altas taxas de repetência.
A superfície contida pelas linhas cor de laranja indica os recursos suficientes para atender a todas as crianças em
idade escolar de primeira à 6ª classe.
A superfície contida pelo triângulo verde mostra os recursos adicionais que é necessário utilizar devido aos altos
níveis de repetência.
Por último, a superfície do triângulo azul, representa os recursos que o Estado deveria adicionar para garantir uma
educação de 6ª a 12ª classe a toda a população com idades entre 13 e 17 anos.
Podemos concluir que existe uma ampla faixa da população que finaliza os seus estudos de educação básica e
depois não prossegue estudos secundários.
A escassez de oferta formativa pós básica, que se restringe à cidade capital, tem sido factor preponderante
impeditivo de a esmagadora maioria dos jovens que vivem noutros distritos de frequentarem o ensino secundário. Estes
esforços de escolarização básica poderão perder-se se o Estado não promover ofertas educativas alternativas após a conclusão
deste nível de ensino.

Gráfico 1: Alunos por classe e alunos com idade ideal, 2006-2007

8000

7000 6744
5810
6000 5546
5214
4740
5000 4481
4239
Alunos
4000
3210 idade ideal
3022
2738
3000 2318 2171
2524
1906 2000
2000 1449
926
1000 694 674 777
240 199
4919
0
1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª 9ª 10ª 11ª 12ª
Alunos 6744 5810 5546 4740 4481 4239 3210 2524 2000 674 777 49
idade ideal 5214 3022 2738 2318 2171 1906 1449 926 694 240 199 19

Fonte: Departamento de Planificação e Estatística do Ministério da Educação da RDSTP.


Relatório sobre a produção, estatísticas e indicadores da educação da RDSTP, 2006.

3.2 Educação Pré-escolar


Em São Tomé e Príncipe a educação pré-escolar é marcada por dois períodos distintos. Nos anos 80 a cobertura era
praticamente universal, sendo o acolhimento das crianças feito de forma preponderante nas creches das empresas agrícolas
pertencentes ao Estado. O funcionamento e a gestão desses estabelecimentos de ensino eram da responsabilidade conjunta
dos Ministérios da Educação e da Agricultura.
Com a liberalização da economia e a privatização das empresas agrícolas (início dos anos 90) surge um segundo
período na educação pré-escolar, caracterizado pelo abandono e encerramento maciço das creches nas empresas agrícolas.
Presentemente os jardins-de-infância situam-se sobretudo em zonas urbanas e subúrbios e aceitam crianças entre os
três e os cinco anos, enquanto as creches situam-se especialmente em zonas rurais (antigas roças) e recebem crianças dos 0
aos 6 anos.
Apesar de os últimos anos revelarem um aumento significativo na capacidade de acolhimento, os indicadores
revelam que esta cobertura está muito aquém da real necessidade das populações do arquipélago4.
O estatuto facultativo conferido pela Lei de Bases, ao não considerar este sector prioritário, justifica a baixa
cobertura da rede do ensino pré-escolar no arquipélago.
Por outro lado, a ausência de um percurso integrado e actualizado para a primeira infância, a carência de material e
de equipamentos educativos, a degradação acentuada das instalações pré-escolares, especialmente as creches, o elevado
número de crianças por sala (50 em 2006 e 43 em 2007) um rácio elevado de crianças/educadores (50 em 2006/2007), a falta

4
Em 1996 existiam 91 creches e 13 jardins-de-infância e estavam inscritas 7.000 crianças. Em 2001 existiam 42 creches e 16 jardins-de-infância, estavam
inscritas 4.699 crianças o que corresponde a 16,6% do total de crianças com idades entre os 0-6 anos (28.257). A ajuda por parte das organizações internacionais
tem vindo a corresponder a um aumento significativo da taxa de cobertura verificando-se que em 2007/2008, 7.045 crianças (21,5%) do total das 32.730 crianças
do país frequentavam este nível de ensino.

283
de uma política de formação regular e sistemática dos quadros, tem-se reflectido de forma acentuada na qualidade da
educação pré-escolar.
Este nível de ensino foi, até aqui, assegurado por educadores de infância e monitores, formados no ex-Centro
Pedagógico Didáctico (CPD). No entanto, apenas 49,4% do total de educadores de infância santomenses possuem formação
específica, enquanto 134 deles (50,6%) não possuem qualquer formação para desenvolver a sua actividade.

Gráfico 2: Evolução de Crianças inscritas nos Jardins e Creches (2002-2007)

Evolução Crianças incritas nos Jardins e Creches

35000
28682 28893 29104 32154
30000

25000 28470

20000

15000

10000
6105 6398 6723
5000
4966 5804
0
2002-2003 2003-2004 2004-2005 2005-2006 2006-2007

Crianças Pré-escolar Crianças País

Fonte: MEC – Boletim estatístico de São Tomé e Príncipe, 2007-2008

3.3 Ensino Básico (1º ciclo)


Apesar de São Tomé e Príncipe continuar a ter das taxas mais altas de escolarização, quando comparada com outros
países em vias de desenvolvimento, este nível de ensino revela graves carências de ordem estrutural, que se têm vindo a
agravar ao longo dos anos.
Com a nova reforma do sistema educativo, LBSE de 2/2003, a educação primária passou a denominar-se 1º ciclo
do ensino básico e conjuntamente com o 2º ciclo (5ª e 6ª classes) passaram a constituir o ensino básico obrigatório e gratuito.
Alargar o ensino básico à 6ª classe, até 2015, constitui assim um dos desafios propostos e em curso que o país se vê
confrontado.
No Ensino Primário no ano lectivo de 2006-2007 existiam no total, 78 escolas primárias das quais 5 delas básica
Integrada.
Isto significa que somente 5,3% das escolas do país leccionam da 1ª a 6ª classe. Estas localizam-se nos distritos de
Mé-Zochi, Lembá, Cantagalo e Caué. Para além dessas existem mais 8 escolas secundárias nas capitais de distrito e 2
preparatórias em Água-Grande, que leccionam a 5ª e 6ª classe. O Ensino Básico está assim longe de estar integrado e a
organização das escolas não obedece à estruturação feita pela Lei de Bases do Ensino.5
Se nos reportarmos ao passado, de 1975 a 1989 a taxa de escolarização passou de 20% para 90%. No entanto, ao
longo da década de 90, assistiu-se a uma regressão destes indicadores.
A diminuição dos efectivos verificados na segunda metade da década de 90 estará de certa forma associada à
degradação das condições socio-económicas das populações e ao alastramento da pobreza, sobretudo quando o Estado deixou
de garantir a ajuda alimentar às escolas.
Os indicadores de acesso e de participação neste milénio têm vindo a revelar uma maior pressão sobre este nível do
ensino.
Esta realidade tem agravado o problema da escassez de instalações, factor que está na origem de muitos
constrangimentos de que o sistema se tem ressentido e perante os quais os governos santomenses não têm dado resposta para
minimizar a situação6.
Além da escassez e más condições das instalações escolares, a carência de materiais didácticos, desde os mais
elementares até aos manuais escolares, a deficiente formação e desmotivação da maioria dos professores, tem vindo a
contribuir para a diminuição da qualidade da educação a este nível de ensino.

5
As escolas ainda estão organizadas segundo o modelo herdado do passado, ou seja 4 anos para o ensino primário (1ª a 4ª classe), 7 anos para o ensino
secundário, o secundário de base (5ª a 9ª) e o secundário pré-universitário (10ª a 11ª).
6
Tais constrangimentos têm a ver com o regime triplo, a suspensão da pré-primária, o desfasamento ao nível da escolaridade obrigatória. Em 1988 o Banco
Africano de Desenvolvimento (BAD) financiou um projecto de reabilitação de 35 das 64 escolas do país, cujo objectivo era minimizar as graves carências de
equipamentos educativos no arquipélago.

284
O baixo nível salarial, a ausência de um apoio pedagógico efectivo, a baixa consciência profissional dos
professores, a não existência de uma carreira profissional estruturada que possa incentivar e compensar uma boa prestação
profissional, são factores que levam a que a motivação e a consciência profissional dos docentes constituam um verdadeiro
obstáculo ao sistema educativo.
Esta realidade leva a que a área de formação de professores constitua uma prioridade, na medida em que a
percentagem de docentes formados existentes no sistema é bastante reduzia.
No início da década de 90 havia 52% dos professores formados, em 2001/02 só 43,2% dos professores tinham uma
formação especializada. Este valor subiu para 47,1% em 2008.
Quando comparada esta média nacional com os respectivos distritos verifica-se uma enorme assimetria no país. Os
distritos de Água Grande e Mé-Zochi têm respectivamente 69,2% e 45,4% dos professores formados, enquanto os distritos
mais afastados da cidade capital como Caué e Lembá registam 13,7% e 6,6% dos professores do ensino primário que têm
formação para a docência.
Este indicador é revelador de falta de equidade, sendo provavelmente as crianças mais pobres e mais sub nutridas
que vivem nos distritos mais afastados da cidade capital, aquelas que acolhem os professores menos preparados e
qualificados.
Por outro lado, a relativa ineficácia deste nível de ensino tem-se reflectido na elevada percentagem (cerca de 22,6%
em 2007/8) de repetições, com reflexos sobre a qualidade do ensino e sobre a magra distribuição dos recursos disponíveis. A
taxa de abandono é igualmente elevadíssima tendo registado o ano de 2005/2006, 9,8% e 15,5% para o 1º e 2º ciclo do ensino
básico.
A falta de estruturas físicas continua a ser um constrangimento impeditivo da melhoria da qualidade da educação
neste nível de ensino. Em 2005 cerca 43% das escolas primárias santomenses funcionam em regime triplo.
Apesar do significativo esforço das medidas tomadas, tendo em vista a sua supressão, este ainda vigora no
arquipélago. No ano lectivo 2006-2007 das 78 escolas primárias 15% funcionaram em regime triplo. Os casos preocupantes
situam-se na Região autónoma do Príncipe e nos distritos mais afastados da cidade capital (Cantagalo, Lobata e Lembá).7

Quadro 1: Resumo dos Principais Indicadores do Ensino Básico (Ensino Público)


(2004-2007)
ANO LECTIVO
INDICADORES 2004-2005 2005-2006 2006-2007
Taxa Bruta de Admissão 1ª Classe 126,5 115,8 119,7
N.º de alunos do Ensino Primário (1ª a 4ª classe) 22721 22376 22799
N.º de alunos do Ensino Básico (1ª a 6ª classe) 30468 30698 31400
Taxa Bruta de Escolarização Ensino Primário (1ª a 4ª classe) 151,2 149,3 144,7
Taxa Líquida de Escolarização Ensino Primário (1ª a 4ª classe) 100 100 100
% de Raparigas Ensino Primário 48,2 48,4 49
Taxa Bruta de Escolarização da 5ª e 6ª Classe 100,9 107,3 115,8
Taxa Líquida de Escolarização da 5ª e 6ª Classe 40,9 43,9 51,8
Taxa Bruta de Escolarização Ensino Básico (1ª a 6ª classe) 134,2 135 135
Taxa Líquida de Escolarização Ensino Básico (1ª a 6ª classe) 81,8 83,1 84,1
Percentagem de Raparigas Ensino Básico 48,6 48,8 49,3
Percentagem de Escolas que leccionam da 1ª a 6ª Classe 5,3 5,3 5,3
Percentagem de escolas que funcionam em Regime Triplo 23 15 15
Taxa Bruta de Admissão 5ª Classe 85,4 89,1 92,2
Taxa de Retenção Primária (1ª - 4ª classe) 82,9 82,7
Taxa de transição (Promoção) 4ª - 5ª) 72,3 73,3
Taxa de transição (Promoção) 6ª - 7ª) 49,7 52,2
Taxa de Repetência Ensino Primário 22,9 24,2
Taxa de Repetência Ensino Básico 23,7 25,1
Taxa de Abandono 4ª classe 11 9,8
Taxa de Abandono 6ª classe 15,1 15,5
Coeficiente de Eficácia Ensino Básico 38,9 37,1
Anos-Aluno/Diploma (1ª a 6ª classe) 15,4 16,2
% de Professores Ensino Primário com formação 40,1 38,1 46,1
% de Professores de 1ª a 4ª classe sem formação 59,9 61,9 53,9

7
A passagem a dois turnos tem, no entanto, dado origem a um aumento do número de alunos por turma, acabando por criar problemas acrescidos ao nível
técnico-pedagógico. Por outro lado, o crescimento demográfico que se regista em São Tomé e Príncipe contribui para agravar ainda mais esta situação.

285
% de Professores do Sexo Feminino Ensino Primário 61,2 52,5 57,6
Rácio Aluno/Turma Ensino Primário 32 32 32
Rácio Aluno/Professor Ensino Primário 35 32 32
Rácio Turma/Sala 2 2,1 2,1
% da Educação nas Despesas Correntes do Estado 12,2 18,62 16,6
% da Educação Básica na totalidade do orçamento da Educação 32,7 14,9 20,3
% da Educação no PIB 4,4 9,9 9,2
Fonte: Fonte: MEC – Boletim estatístico de São Tomé e Príncipe, 2007-2008

Quanto à relação de equiparação a nível nacional entre o número de matrículas dos rapazes e raparigas verifica-se
que a percentagem dos rapazes é ligeiramente superior. No entanto, a situação no Príncipe é mais desvantajosa para as
raparigas (42%), seguida dos distritos de Caué e Mé-Zochi.
Convém salientar o facto das meninas que apareciam em vantagem em relação aos rapazes na Educação Pré-
escolar, aparecem agora em desvantagem no Ensino Primário.
Em termos de cobertura do território existem escolas primárias tanto em zonas rurais como urbanas pelo que este
nível de ensino é assegurado em quase todo o território.
Os distritos de Água Grande e de Mé-Zochi (52% da população do país) acolhem a maioria dos alunos do país
(64%) para 60% das salas de aula. Estes dados revelam a existência de uma forte pressão sobre estes dois distritos, o que
agrava a falta de infra-estruturas. O rácio aluno/sala em Água Grande é de 76, enquanto a média nacional o valor é de 66. E o
rácio aluno/turma é de 35, para uma média nacional de 32.

Ensino Básico (2º ciclo)


A 5ª e 6ª classe são o prolongamento do ensino primário segundo a Lei 2/2003, correspondem ao 2º ciclo do ensino
básico.
No entanto, a estrutura da rede escolar vigente (em que as 5ª e 6ª classes são mantidas apenas nas escolas das
capitais distritais) tem impedido que um grande número de crianças complete o ensino obrigatório e que outro número
significativo o abandone durante estes dois anos escolares.

Quadro 2: Resumo dos Principais Indicadores do Ensino Básico Público 5º e 6ª ano


(2007-2008)
Ano Lectivo
Indicadores
2007-08
. Taxa Bruta de Escolarização 109,7%
. Taxa Líquida de Escolarização 47,9%
. Taxa de Promoção 87,7%
. Taxa de Repetência 28,1%
. Taxa de Abandono 47,4%
. Taxa de Admissão na 5ª classe 84%
. Taxa de Admissão na 6ª classe 71,3%
. Rácio Alunos/ Professor 29
. Rácio Alunos/Turma 43
. % de Raparigas 49,5%
. % de Agente docente c/ Form. Específica 34,5%
. % de Agente docente s/ Form. Específica 65,5%
. % de Alunos fora da idade escolar 56,3%
. Agente docente 330
. Agente docente c/ Formação Específica 114
. Agente docente Formado noutra Área 28
. Agente docente s/ Formação 188
. Crianças matriculadas 9369
. Crianças de 11-12 Anos no País 8537
Fonte: MEC – Boletim estatístico de São Tomé e Príncipe, 2007-2008

Se compararmos a TBA do 1ª ano do 1º ciclo (1ª classe) com a do 1º ano do 2º ciclo (5ª classe), deparamo-nos com
uma drástica redução da taxa, (perto de ¼), e dos 100 alunos entrados na 1ª Classe somente 43 atingem a 6ª Classe.
Isto significa que parte dos indivíduos completa apenas o ensino primário, não dando prosseguimento aos seus
estudos. A falta de escolas ou a enorme distância entre a escola e a zona de residência, a dispersão da população e a própria

286
situação socio-económica da população, principalmente a rural, têm determinado um limitado acesso à educação. Estes
indicadores denunciam que muito falta fazer para se conseguir generalizar o Ensino Básico até 2015.
A qualificação docente neste nível de ensino reduz-se em relação ao anterior, pois apenas 43% dos 330 docentes
(2007-2008) possuem formação pedagógica especializada para a docência.

3.5 Ensino Secundário


O Ensino Secundário encontra-se organizado em 2 ciclos. O 1º Ciclo, secundário de base, que vai da 7ª a 9ª classe,
e o 2º Ciclo, secundário pré-universitário da 10ª à 12ª classe.
A oferta a nível de educação secundária em São Tomé e Príncipe é muito limitada. Só nas capitais de distrito é
possível frequentar o secundário.
Das 8 escolas existentes apenas 2 leccionam da 7ª a 11ª, o liceu nacional na cidade de São Tomé e a secundária do
Príncipe na cidade de S. António. O distrito Lembá só lecciona até ao 8º ano. Apenas no ano lectivo de 2004-2005 Santana
implementou a 9ª classe, seguindo-lhe Mé-Zochi no ano lectivo seguinte e no ano lectivo transacto foi implementada a 9ª
classe no distrito de Caué (Angolares).
A nível privado o ensino secundário é ministrado numa instituição religiosa católica, o Instituto Diocesano de
Formação (IDF), com 269 alunos matriculados em 2007/2008, que promove a formação secundária até ao 12º ano de
escolaridade e possui paralelismo pedagógico com o sistema português.
O ensino secundário tem vindo a debater-se com graves problemas estruturais que acabam por ter consequências
muito significativas na baixa qualidade deste nível de ensino em São Tomé e Príncipe.
Os grandes obstáculos à melhoria da qualidade do ensino detectados nos níveis antecessores reproduzem-se a este
nível, destacando-se os graves problemas na área da formação de professores: 83% dos 415 professores não possuem
formação específica (PNUD, 1998: 55). Da 5ª à 9ª classe apenas 26,9% dos professores possuem formação específica,
enquanto 73% são contratados eventuais (EPT, 2002: 23).
Outros obstáculos detectados têm a ver com:
- A enorme degradação das infra-estruturas escolares, com a escassez de meios didácticos, equipamentos,
laboratórios, manuais, etc.;
- A admissão de crianças e jovens fora da idade “normal” é bastante elevada;
- O elevadíssimo número de alunos por turma.
- O aumento crescente das taxas de retenção (32% em 1999) (EPT, 2002:23) e a elevada percentagem de abandono
escolar. Neste nível de ensino de 100 alunos inscritos para a 5ª classe, 29% chegam à 8ª classe, 26% à 9ª e apenas 18%
atingem a 11ª classe (EPT, 2002: 23);
- A fraca oferta de escolas secundárias (é na região urbana, Água Grande e Mé-Zochi, que estão situadas metade
das escolas (5), frequentadas por 76% do total dos alunos);
- A análise da equidade no género revela que as raparigas estão em situação desfavorável.
Na 5ª e 6ª classes a paridade é quase idêntica, nas 7ª, 8ª e 9ª classes regista-se um predomínio dos rapazes, com
53,8% contra 46,8% das raparigas. Nas 10ª e 11ª classes, a situação é mais crítica com 57% para os rapazes e 42% para as
raparigas (EPT, 2002: 23).
Apesar do sempre renovado discurso político no sentido da abertura da 12ª classe, no arquipélago, a falta de
instalações e a escassez de meios pedagógicos e didácticos tem impedido a concretização desta medida.

Gráfico 3: Evolução dos efectivos no Ensino Secundário

Evolução dos efectivos no Ensino Secundário


8000
7000
6000
Alunoss

5000

4000 Secundário de Base

3000
Secundário Pré-
2000 Universitário
1000
0
2001-02 2002-03 2003-04 2004-05 2005-06 2006-07

Secundário de Base 6063 5462 6022 6677 7100 7515


Secundário Pré- 1284 1254 1345 1335 1429 1382
Universitário

Ano Lectivo

Fonte: MEC – Boletim estatístico de São Tomé e Príncipe, 2007-2008

287
O crescimento das matrículas no Ensino Secundário de Base tem sido positivo com a excepção do ano lectivo de
2002-2003. Para o Ensino Secundário Pré-Universitário (10ª e 11ª classes) a situação é inversa embora com pequenas
variações.
A nível do Ensino Secundário podemos observar a degradação dos indicadores em análise em relação ao Ensino
Básico. As taxas de repetência para a 9ª e 11ª classe apresentam valores mais elevados (superiores a 40%). A 10ª classe
apresenta normalmente a taxa mais baixa (16,7%). A taxa de abandono também é mais alta nas classes em que é mais elevada
a taxa de repetência. Com as altas taxas de repetência e abandono, as taxas de promoção ganham valores muito baixos cerca
de 50% chegando a atingir valores próximos a 30% na 9ª classe.8

3.6 Ensino Especial


Previsto na anterior LBSE, o ensino especial nunca foi implementado. Ocorreram apenas algumas iniciativas a
nível privado, sem êxito, acabando por ser abandonadas. A nível do ensino público houve também algumas tentativas de
experimentação que incluíram a formação de professores. Também estas iniciativas não foram concluídas.
A publicação da nova lei de bases acentua claramente a importância que o sistema educativo passa a conceder à
educação especial. “Incumbe ao Estado promover e apoiar a educação especial”, no entanto, todas as iniciativas a este nível
estão por concretizar, levando a que muitas das crianças ou abandonem muito precocemente a escola ou nem sequer a
cheguem a frequentar.

3.7 Ensino Técnico-Profissional


O sistema educativo de São Tomé e Príncipe apresenta uma enorme deficiência no tocante à sua articulação com o
mundo do trabalho, apesar de ser fundamental para o processo de desenvolvimento sócio económico do país.
A política de formação profissional não tem correspondido às necessidades efectivas do país, onde poderia e
deveria ter um papel preponderante, nomeadamente no domínio das pescas, turismo e artesanato.
A formação técnico/profissional, até muito recentemente, não foi alternativa à via única criada no sistema de ensino
santomense (prosseguimento de estudos), não criando saídas vocacionais ou profissionalizantes. Constitui, assim, um dos
elementos mais deficientes do sistema educativo santomense com consequências muito graves para toda a sociedade do
arquipélago e sobretudo para os jovens que, concluída a escolaridade obrigatória ou a 11ª classe, se vêm na situação de nem
prosseguir os estudos por falta de bolsa, nem de conseguir um emprego condigno por falta de formação específica, criando
situações de grande frustração nos jovens e provocando forte instabilidade social no arquipélago.
Com o objectivo de colmatar esta deficiência foram introduzidos em 2005, com o apoio da cooperação portuguesa,
os cursos secundários profissionalmente qualificantes .Este projecto pioneiro e de carácter inovador pretendeu criar uma
oferta formativa profissionalmente qualificante, ao nível do ensino secundário público, tendo em vista uma dupla perspectiva:
a integração qualificada no mundo do trabalho e/ou, o prosseguimento de estudos no ensino superior.9
O Centro Politécnico, criado em 1987 pela cooperação francesa, constituiu até 2005 a única instituição de ensino
profissional do sistema de educação da RDSTP. A este centro de formação têm acesso alunos de ambos os sexos (com uma
clara predominância dos rapazes). Até ao ano de 2000 ingressavam com a 6ª classe, podendo seguir a formação profissional
em áreas como a mecânica geral, mecânica-auto, construção civil e electricidade a que correspondia o diploma de
equivalência à 9ª classe. A partir de 2000, e após reestruturação, o Centro passou a disponibilizar cursos médios de carácter
tecnológico. O acesso passou a fazer-se com a 9ª classe e após três anos de formação é atribuído aos alunos um diploma
profissional de tipo médio, equivalente à 12ª classe.
A nível do ensino médio existe, desde 1983, a escola de enfermagem que disponibilizou cursos com dois tipos de
formação: nível básico dirigido à formação de auxiliares de enfermagem e nível médio para a formação de enfermeiros
gerais, tendo até 1997 funcionado sem carácter regular.
Após alguns anos a funcionar nas instalações do ISP, a partir de 2003 transitou para instalações próprias, passando
os cursos a funcionar de forma regular, sendo exigida a 9ª classe e três anos de formação.
Para além do CPFP, existem outros centros de formação profissional cuja actividade formadora não é permanente e
são orientados especificamente para a agricultura.
Em 2002 foi criada com o apoio da cooperação portuguesa a Escola de Formação Profissional de Budo-Budo onde
são ministrados cursos variados desde a electricidade, turismo, jardinagem, carpintaria…)
Os principais problemas a este nível de ensino têm a ver com:
- Pouca diversidade no domínio da formação;
- Exiguidade das instalações do CPFP (possui apenas 4 oficinas e 4 salas de aula);
- Centralização das instituições de formação profissional apenas nos distritos de Água Grande e Mé-Zochi;

8
No ano de 2005 matricularam-se no ensino secundário 8.529 alunos dos quais 4.368 do sexo feminino (51,2%) e 4.161 do sexo masculino. No secundário de
base estão matriculados cerca de 83,2% dos alunos e somente 16,7% no secundário pré-universitário devido a escassez da oferta e ao abandono escolar. O
aumento de efectivos escolares no secundário de base (de 6.677 para 7.100) deveu-se ao significativo aumento do nº de alunos na 8ª classe em todos os distritos e
a implementação da 9ª classe nas duas escolas secundárias de Mé-Zochi. A 7ª e a 10ª classe tiveram um crescimento negativo.
9
Os cursos conferem diplomas em Gestão e Administração; Humanísticas e Turismo; Arte e Design; Tecnologias Industriais (electricidade e construção civil).
Com o apoio da Cooperação portuguesa foram recuperados dois pavilhões no espaço do liceu nacional que foram totalmente equipados com mobiliário e material
informático. O corpo docente é maioritariamente composto por docentes portugueses.

288
- Fraca oferta e pouca apetência por esta via de ensino por parte dos jovens santomenses;
- Reduzida percentagem de absorção dos jovens formados por parte do mercado de trabalho santomense, sendo este
um factor preponderante e determinante para a situação que reflecte a formação profissional no país.
A exiguidade do mercado de trabalho interno torna extremamente complexa a problemática da formação
profissional, que leva à desmotivação e alheamento por parte dos jovens que não vêm nesta uma verdadeira saída para os
seus objectivos de futuro.
As carências identificadas reflectem-se claramente na qualidade deste sector de ensino e abrangem:
- Um corpo docente com grande mobilidade e baixa classificação que nem sempre oferece a qualidade exigida;
- A formação ministrada de nível médio e prático, muitas das vezes não se adequa à realidade do mercado nacional;
- A grande escassez de equipamentos no centro de formação.
Por outro lado, a gestão do ensino profissional (feita por vários ministérios) e a sua coordenação tem contribuído
para que o seu nível de qualidade não se eleve.

2.6 Ensino Superior


A introdução do Ensino Superior na RDSTP é relativamente recente. As reduzidas dimensões do país e a oferta
através da cooperação bilateral sempre foram justificações para a não criação de uma instituição de nível universitário no
arquipélago. Daí que, a formação de quadros santomenses sempre se fez no estrangeiro através da atribuição de bolsas de
estudo postas à disposição do país através da cooperação internacional.
Como forma de responder à solicitação de inúmeros jovens que, cada vez em maior número, não tinham acesso a
bolsas de estudo no estrangeiro, foi criado, em 1996, o Instituto Superior Politécnico (ISP/STP), primeira instituição pública
de formação superior em São Tomé e Príncipe.
No sector privado santomense existe, desde 1994, o Instituto Universitário de Contabilidade, Administração e
Informática (IUCAI). No ano lectivo de 2006/2007 surgiu no arquipélago um pólo da Universidade Lusíada estando
matriculados nesse ano 326 alunos.
O Instituto Superior Politécnico iniciou a sua actividade em 1998, com a abertura de cursos de formação de
professores para o ensino secundário, a nível de bacharelato, oferecendo três cursos para o ensino: Português/Francês,
História/Geografia e Matemática/Ciências Naturais. Posteriormente foram introduzidos novos bacharelatos na área de
formação inicial de professores com os cursos de Física/Química e Línguas e Literaturas Modernas, para além dos cursos de
Gestão de Empresas, Secretariado e Línguas e Administração.
O Instituto acabou por se tornar a única entidade claramente vocacionada para a formação de professores. Para
além destes objectivos propunha-se ministrar outras formações e promover actividades de investigação e oferecer prestação
de serviços. Até muito recentemente o número de alunos que frequentava o Instituto era bastante reduzido.
No ano lectivo de 1999/2000 o Instituto contava com 105. No ano lectivo seguinte a população estudantil era de
117 alunos, distribuídos pelos vários cursos e níveis, contando o ISP com 29 professores.
Presentemente, com a significativa redução na atribuição de bolsas para prosseguimento de estudos no estrangeiro,
o número de alunos que passaram a frequentar o instituto subiu muito significativamente (604 em 2007) e estão repartidos
por 16 cursos, sendo que, uma percentagem muito significativa estão no ano zero. O Instituo tem estabelecido algumas
parcerias de cooperação com instituições Universitárias em Portugal.
Nestes anos o ensino superior em São Tomé caracterizou-se por:
- Reduzido número de estudantes que orientam a sua vida profissional para a leccionação no ensino secundário;
- Limitação em termos de oferta de formação;
- Elevada percentagem de abandono (40% dos inscritos), devido sobretudo à partida de alunos com bolsas de
estudo para o exterior;
- Atribuição do grau de bacharel, levando a que grande parte dos alunos acabe por prosseguir os seus estudos fora
do país10;
- Fraca atracção dos jovens santomenses pelo ISP, já que se verifica diferença de tratamento entre os quadros que
terminam a sua formação no instituto e os que vêm do estrangeiro;
- Número significativo de professores com um nível de formação relativamente pouco elevado (a maioria são
licenciados, apenas um reduzido número tem mestrado);
- Corpo docente formado sobretudo por nacionais sem vínculo institucional ao Instituto;
- Investigação inexistente;
- Pouca atenção prestada por parte do governo na afirmação do ISP/STP.
A gestão deste nível de ensino tem-se caracterizado pela ausência de estratégias, levando a que os jovens que
terminam a 11ª classe passem a estar na dependência da atribuição de uma bolsa de estudo para prosseguirem os seus estudos
no estrangeiro. Esta situação tem tido consequências políticas e sociais conflituosas uma vez que, apesar da pressão da
procura, o ministério tem respondido com ofertas muito reduzidas. Por outro lado, o ISP/STP não tem procurado adaptar a

10
Existem alguns acordos no âmbito do prosseguimento de estudos (licenciatura) com algumas instituições universitárias portuguesas. O ISP estabeleceu
recentemente um acordo com a Universidade de Aveiro no âmbito da formação complementar para os bacharéis de matemática e física e química. Este programa
de cooperação já se vem verificando no curso de línguas e literaturas modernas com o apoio do Instituto Camões.

289
sua oferta de formação às necessidades reais do país. As formações dispensadas pelo Instituto são muito onerosas para o
Estado devido ao reduzido número de alunos efectivos e à subutilização das instalações existentes.

2.7 Educação de Adultos


Quando, em 1975, São Tomé e Príncipe ascendeu à independência uma das “bandeiras” do novo regime era o
combate imediato ao analfabetismo reinante entre a população do arquipélago.
O país como tantos outros tinha uma elevada percentagem de analfabetismo. Foi, então, organizada pela Direcção
de Educação de Adultos uma enorme campanha de alfabetização que permitiu a redução da taxa de analfabetismo para 25%
em 1991 (75% mulheres e 25% homens) (EPT: 2002:14)11.
A partir de 1991, a Direcção de Educação de Adultos não mais realizou qualquer actividade, caracterizando-se os
anos seguintes pelo abandono destas campanhas. Esta situação, aliada à reestruturação em curso na Direcção, levou a que se
verificasse um recrudescimento da taxa de analfabetismo no arquipélago.
Nestes últimos anos o Ministério da Educação santomense experimentou algumas iniciativas de alfabetização de
adultos com a ajuda, sobretudo, da cooperação internacional, mas tem falhado sobretudo a definição de uma estratégia clara
de intervenção que possa garantir a sua continuidade (EPT, 2002: 28)12.
Em 2000 iniciou-se o projecto “Alfabetização Solidária” com o apoio da cooperação brasileira.
Algumas outras campanhas esporádicas de alfabetização têm sido organizadas por ONGs, bem como por alguns
sectores da administração central do Estado.

3. Formação de Professores
A formação de professores, apesar de ser uma área fundamental no sistema educativo, não tem merecido por parte
do poder político santomense a atenção exigida e imprescindível para um ensino de qualidade.
Factores de vária ordem têm contribuído para tal, e a inexistência de uma política eficaz, planificada e coerente de
formação de professores tem tido repercussões na diminuição da qualidade do ensino em São Tomé e Príncipe e, com isso,
óbvias consequências ao nível económico e social cujo custo e atraso são de difícil recuperação.
Com o encerramento, em 1990, da escola de formação de educadores e professores do ensino primário (EFSQD), a
formação de docentes no arquipélago esteve suspensa por mais de uma década, contrariando em absoluto, os princípios de
Jomtien, os quais São Tomé e Príncipe se comprometeu a cumprir.
A abertura do ISP e da Escola de Formação de Professores e Educadores (EFOPE), em 200013, como instituições
viradas para a formação de professores para o ensino secundário, e professores para o ensino básico, e educadores de
infância, poderão contribuir, de forma significativa, para minimizar o problema, mas não o resolverão por si só, pelo menos a
médio prazo.
A forte pressão demográfica e o alargamento da escolaridade obrigatória até à 6ª classe exigem cada vez mais
docentes, a que estas instituições terão muitas dificuldades de responder num espaço de tempo limitado. Presentemente 49,2
% dos 708 docentes do sistema de ensino são-tomense não possuem qualquer tipo de formação.
Os cursos de formação de educadores de infância e auxiliares de creches e jardins-de-infância tiveram o seu início
em 1984/5, no ex-Centro Pedagógico Didáctico (CPD). Até final da sua actividade “regular”, em 1993/94, formaram cerca de
75 educadores. Posteriormente, apenas promoveram algumas acções esporádicas de reciclagem, formação de metodólogos de
infância e encarregadas de creches, facto que leva, a que, cerca de metade dos educadores de infância santomenses não
possuam quaisquer habilitações para leccionarem. A partir do ano de 2000/01 a EFOPE passou a assegurar a formação deste
nível de ensino, prevendo-se que os índices de educadores com formação especializada aumentem nos próximos anos.
A formação de professores para o ensino primário foi até à data da sua extinção, em 1990, assegurada pela EFSQD.
Apesar de esta escola ter tido competência legal para a formação de professores do ensino primário e secundário, a sua acção
reduziu-se à formação de professores do ensino primário.
O acesso a estes cursos de formação exigia a 9ª classe. O número de formandos nesta escola foi sempre irregular,
sendo que a maioria destes já exerciam a docência neste nível de ensino e possuíam apenas a 8ª ou 9ª classe.
A posterior suspensão desta formação até 2002, veio agravar ainda mais a situação neste nível de ensino. A
reduzida percentagem de professores primários com formação (45% em 2000 e 46,1% em 2007) lecciona, na sua maioria, em
escolas situadas na capital.
Em 2006/2007 a formação inicial de professores do ensino primário e básico era ainda inexistente, remetendo-se a
EFOPE à formação de professores em exercício sem habilitações própria para a docência.14

11
Um estudo feito em 1989/1990 mostrava que mais de 45% da população com mais de 15 anos era analfabeta (EPT, 2002: 14). As campanhas sucessivas de
alfabetização reduziram esta taxa em 25% (EPT, 2002: 14).
12
A partir de 2001, e com o apoio financeiro da Agência Brasileira de Cooperação, desenvolveu-se no arquipélago um novo projecto de alfabetização
denominado “Alfabetização Solidária”. Acompanhado por técnicos brasileiros iniciou-se a 2ª fase em Outubro de 2002 e estendeu-se a todo o país.
13
Esta escola funcionou nas instalações do ISP até à construção de um edifício próprio que foi inaugurado durante o ano de 2005. Esta escola, para além da
formação inicial de professores, promove acções de formação em exercício para professores não especializados.
Decorreu, em Maio de 2005, um curso de formação de professores primários, à distância, que abrangeu 79 professores primários, da 1ª à 4ª classes.
14
A formação de professores em exercício iniciou-se em 2003. No ano lectivo de 2007/2008 136 docentes realizaram formação sobre a responsabilidade de 11
tutores (9 santomenses e 2 portugueses).

290
O facto da maioria dos professores deste ciclo não possuírem formação adequada para a docência, reflecte-se nas
grandes deficiências reveladas, tanto ao nível pedagógico-científico, como ao nível da própria língua materna, criando,
obviamente, graves repercussões em todo o sistema educativo santomense.
A formação de professores para o 2º ciclo do ensino básico tem-se, igualmente, revelado quase inexistente. Apenas
43% dos professores deste nível de ensino possuem habilitações para a docência (em 2004/05 apenas 39% possuíam
formação).
A EFSQD, que também visou promover a formação de professores para o ensino secundário básico até à data da
criação do ISP, promoveu apenas dois cursos de formação de professores para este nível de ensino, vindo a sua acção a ser
suspensa por falta de recursos.
Em 2006, a leccionar da 5ª a 9ª classe existiam no total 634 docentes mas apenas 116 (18,3%) tinham formação
pedagógica.
Assim, tendo em vista a formação de professores neste nível, as acções foram praticamente inexistentes, com a
excepção de esporádicas formações de curta duração e de programas de formação em exercício de professores de português e
de francês desenvolvidas pela cooperação portuguesa e francesa.
A prática que vem sendo utilizada no recrutamento de professores por parte do ministério santomense faz-se
contratando docentes com a 9ª classe para leccionarem no ensino primário. Para o ensino secundário básico, a selecção é feita
entre jovens detentores do diploma da 11ª classe a quem, posteriormente, é ministrada uma curta formação inicial.
A esmagadora maioria dos professores com formação estão a leccionar em escolas que se situam nos distritos de
Água Grande e Mé-Zochi.
A partir do ano de 2001 começaram a sair os primeiros professores formados no ISP, prevendo-se que a realidade
actual da educação em São Tomé e Príncipe, nomeadamente ao nível da qualidade do corpo docente, possa melhorar nos
próximos anos.
A formação de professores ao nível do ensino pré-universitário (2º ciclo do secundário) não se tem efectivado.
Os professores do quadro de docentes de São Tomé e Príncipe e com formação especializada leccionam
preferencialmente neste nível de ensino.
Dos 157 docentes, 72 possuem formação pedagógica, ou seja 45,8%.
Vemos que 52 (33,1%) têm formação superior. No grupo dos professores com formação pedagógica esta
percentagem é muito significativa, ou seja 45 (62,5%) dos professores têm formação superior.
A falta de docentes habilitados para a docência na 10ª e 11ª classes tem sido, em parte, colmatada com a chegada de
professores cooperantes portugueses. O recrutamento dos restantes professores é feito entre os quadros técnicos superiores
santomenses.
A razão fundamental de, até ao momento, não estar a ser ministrada a 12ª classe no país prende-se com a falta de
docentes habilitados para leccionarem as disciplinas curriculares
As entidades santomenses prevêem que com o regresso dos bolseiros, que se encontram, em elevado número,
sobretudo em Cuba e no Brasil, se possa ultrapassar a situação de falta de docentes qualificados para o ensino pré-
universitário e ao mesmo tempo, permitir pôr em funcionamento a 12ª classe.
A negligência das entidades santomenses, em relação à área da formação de professores, tem sido, sem dúvida, o
mais sério obstáculo à melhoria da qualidade do ensino em São Tomé e Príncipe. A sua deficiência tem sido sobretudo
resultante de uma inadequada gestão e planificação tanto das necessidades como da formação em si.
É evidente que, por si só, São Tomé e Príncipe não tem capacidades para resolver este problema tendo necessidade
de recorrer à ajuda externa, nomeadamente a projectos de cooperação com Portugal. Mas, por diversas razões, que iremos
desenvolver adiante, estes têm tido um impacto muito aquém dos anseios e desejos dos santomenses.

4. Cooperação Externa na Área da educação/formação


A RDSTP tem, desde a sua independência, vindo a beneficiar de um elevado número de acções de ajuda,
assistência técnica e financeira na área da educação e ensino. Esta ajuda, fundamental para o país, tem sido desenvolvida no
âmbito de protocolos e programas de cooperação firmados entre o governo santomense e os governos de diversos países,
assim como diversas organizações internacionais.
Por razões de ordem histórica e cultural a cooperação Portugal / São Tomé e Príncipe tem tido um peso
importantíssimo no quadro da ajuda externa ao arquipélago, nomeadamente no apoio às estruturas educativas santomenses
com o envio de professores, formação de docentes, atribuição de bolsas de estudo e apoio técnico variado. Um exemplo do
peso da cooperação portuguesa na educação traduz-se nas adaptações (e semelhanças) que os responsáveis santomenses têm
feito do seu sistema educativo ao sistema português.
Organizações como a UNESCO, UNICEF, Gulbenkian, têm ao longo destas décadas fornecido um importante
auxílio financeiro, apoio técnico e didáctico às escolas do arquipélago15.

15
Com o apoio financeiro do Banco Mundial, Gulbenkian e ajuda técnica da Escola Superior de Educação de Santarém (Portugal) está a decorrer a
implementação dos novos manuais escolares da 1ª à 6ª classe do ensino básico.

291
A contribuição da cooperação internacional tem desempenhado um papel muito significativo quer no apoio a infra-
estruturas educativas quer na formação de recursos humanos. A fraca capacidade institucional em gerir e aplicar eficazmente
os fundos disponibilizados ou os integrar em projectos ou programas de desenvolvimento tem determinado impactos pouco
positivos, num país que tem sido receptor das mais elevadas ajudas per capita concedidas aos países pobres.

5. PRINCIPAIS constrangimentos ao desenvolvimento da Educação em São Tomé e Príncipe


A melhoria da qualidade da educação e a sua eficácia tem vindo a ser considerada por todos os actores educativos
um dos grandes desafios em São Tomé e Príncipe.
Os últimos anos têm revelado uma fraca melhoria na educação em termos de aprendizagem para a vida, para o
exercício da cidadania e desenvolvimento do país16.
Do ponto de vista da qualidade da educação, o sistema tem-se caracterizado por: fraca oferta educativa a todos os
níveis (incluindo no ensino básico obrigatório); existência de uma percentagem elevada de professores sem formação
específica; carência de manuais actualizados e existência de programas obsoletos; desarticulação dos diferentes níveis de
ensino e pouca flexibilidade estrutural para a progressão escolar.
Quanto à gestão institucional o sistema educativo santomense é caracterizado por ser um modelo de gestão
centralizada, pouco eficaz e sem mecanismos adequados de controlo de supervisão e de apoio.
As carências do sistema são enormes e as escolas sentem permanentemente uma falta de apoio sobre todos os
aspectos, desde equipamentos e mobiliário, material escolar e educativo a recursos didácticos e financeiros que possam
satisfazer minimamente a gestão diária.
Os órgãos centrais de planificação e execução das políticas educativas resumem-se ao exercício de funções muito
elementares.
Para além dos problemas referidos, inúmeros constrangimentos têm vindo a dificultar o desenvolvimento do
sistema educativo santomense:
- A situação económica e social do país tem sido, sem dúvida, um entrave à resolução ou pelo menos à
minimização de alguns deles.
- A instabilidade política tem resultado na interrupção continuada das acções, devido à substituição sistemática dos
quadros que habitualmente acompanham as mudanças ministeriais.
- A ausência de políticas coerentes, ao longo dos anos, conduziu a improvisos e à tomada de decisões de forma
desarticulada e a um grande marasmo, fazendo-se apenas o rotineiro.
A fraca capacidade institucional com a falta, até aqui, de políticas e ausência de um plano de desenvolvimento do
sector. Falta uma estrutura sólida de planificação da educação, destacando-se a flagrante incoerência e falta de
correspondência entre o preconizado pela via da lei e aquilo que efectivamente se observa na prática.
- A fraca dotação orçamental: os valores são muito baixos quando comparados com as necessidades do sistema.
Apesar de se verificar que nos últimos anos as despesas correntes para a educação têm aumentado, continuam, no entanto, a
revelar níveis muito baixos em comparação com os países da região que andam na ordem dos 4% do PIB. Estas verbas
continuam a ser extremamente insuficientes para fazer face à necessária reestruturação do sistema educativo
- O desequilíbrio entre a capacidade de oferta e a procura de espaços de ensino é cada vez maior. A realidade tem
vindo a evidenciar a disparidade entre o sentido decrescente dos recursos estatais e o ritmo sempre crescente da população
escolar. O número crescente de acesso à educação exige a reestruturação do parque escolar, manutenção de equipamentos,
condições de trabalho, salários, qualificação de docentes.
As limitações quantitativas e qualitativas do parque escolar são enormes. O excesso de alunos por turma aliado à
fraca qualificação dos professores e à carência de materiais de suporte ao ensino (manuais e outros materiais didácticos) tem
tido um enorme peso na fraca qualidade de ensino ministrado nas escolas.
- A formação deficiente e forte desmotivação dos professores.
- As restrições orçamentais não estimulam os professores mais qualificados, que são substituídos por professores
com pouca ou nenhuma qualificação, que por sua vez formam mal os alunos, que se convertem em professores com má
qualidade, que formam alunos cada vez mais mal formados.
- A fraca equidade entre rapazes e raparigas, o elevado número de retenções (com uma taxa média de repetências
superior a 30%, atingindo os 44% no ensino pré-universitário) (EPT, 2002: 27), o forte abandono escolar sobretudo das
raparigas, a fraca expectativa familiar em relação à escola (para o que a degradação da educação também muito contribui), a
deficiente estrutura da rede escolar que impede a maioria dos alunos de completarem o ensino secundário, levando a que os
que completam o pré-universitário sejam uma pequena minoria.

16
No entanto, foram dados passos importantes: o analfabetismo diminuiu significativamente, sofrendo uma redução de 43% em 1981 para menos de 17% em
2000. Os níveis médios de escolaridade da população com mais de 25 anos eram em média, em 1980, de 2,3 anos para em 2000 atingir os 5,4 anos. A cobertura
dos serviços de educação primária melhorou sensivelmente. Apesar destes ganhos, no sector educacional persistem graves problemas na qualidade do ensino,
representando uma grande barreira para as oportunidades de desenvolvimento do país e dos seus habitantes (PNUD, 2002: 53).

292
- Um ensino técnico profissional com pouco significado, apesar do interesse que esta modalidade de ensino se
reveste no quadro do processo de desenvolvimento económico. As oportunidades de formação são muito escassas ou quase
inexistentes.
- Uma deficiente articulação entre a escola e o mundo do trabalho, não parecendo a escola ser verdadeiramente útil
ao processo de desenvolvimento económico do país. No entanto, esta também não tem conseguido provar a sua relevância, e
as comunidades comportam-se como se a escola fosse um corpo estranho inserido no seu seio. Daí, o vandalismo atingir um
nível alarmante em algumas comunidades.
O investimento na educação e formação deverá orientar-se para a disponibilidade de recursos humanos com
formação adequada às actividades económicas a desenvolver, apostando na capacitação de homens e mulheres para se
tornarem protagonistas no processo de desenvolvimento, o que exige uma universalidade de acesso à educação.
Atendendo à dimensão do país a oferta de cursos técnicos e superiores terá que ser forçosamente limitada, podendo
ser colmatada com o recurso a bolsas no exterior.
Assim, o investimento deverá centrar-se nos níveis de ensino básico e secundário incluindo o ensino tecnológico de
nível médio.
Segundo o documento presente pelo Ministério da Educação santomense à Conferência dos Ministros da Educação,
realizada em Brasília, em 1999, eram identificados ainda outros constrangimentos, tais como:
- Falta de articulação entre os órgãos, gerando sobreposições, repetições, choque de competências, fuga às
responsabilidades.
- Falta de rigor, transparência, na gestão e tomadas de decisão.
- Incapacidade de controlo e fiscalização do sistema. É o caso da inspecção, levando a que os professores fiquem
entregues à sua própria sorte.
- Fraco nível de organização tanto ao nível da definição dos objectivos, como em termos de capacidade de
realização.
- Excessiva centralidade do poder e fraca participação dos quadros nas tomadas de decisão.
De um modo geral a incompetência, a falta de estabilidade governativa e a falta de objectivos programáticos,
encontram-se na base da fraca prestação ao nível da gestão da educação, factores esses, agravados pela dificuldade de dados
fiáveis que apoiem a tomada de decisões.
Só isto justifica que um país que se caracteriza por possuir uma população jovem tenha sofrido ao longo da década
de noventa um decréscimo do efectivo de alunos e do número de escolarizados logo no ensino primário.
Presentemente, a sociedade santomense encara um futuro próximo de desafios importantes. É necessário que os
santomenses estejam em condições de tirar partido das novas oportunidades e, como tal, que estejam à altura de enfrentar os
desafios com o saber-fazer e o saber-ser  o que não se consegue sem a escola.
Só com uma verdadeira reforma do sector educativo será possível vislumbrar um desenvolvimento durável e
sustentado para o arquipélago.

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Diário da República de São Tomé e Príncipe, (LBSE 2/2003), de 2 de Junho de 2003, nº 7.

A racionalidade da administração da escola pública portuguesa

Maria João de Carvalho


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
mjcc@utad.pt

Resumo: Os últimos anos vieram confirmar a ideia de que a discussão referente à administração da organização escolar não esmoreceu,
antes pelo contrário. As últimas alterações introduzidas pelo DL nº75/2008 vem reconfirmar que a proclamação oficial da gestão democrática
está longe de ser uma prática efectiva, pese embora o facto de ser protagonista no âmbito do plano teórico onde ganha terreno à
administração escolar autocrática. Considerar que a escola se encontra num momento de democratização implicaria uma alteração por parte
da administração em relação aos restantes actores educativos, implicaria não mascarar mudanças morfológicas de mudanças orgânicas. O
controlo vai ganhando terreno sobre a democracia, a participação, a emancipação e autonomia, pressuposto que a figura do Director
corrobora. A ideologia tecnocrática e gerencialista justificam a criação desta figura ficando por demonstrar o motivo pelo qual “uma
liderança individual é superior a uma liderança colegial”, como referiu Licínio Lima em audiência parlamentar, sem deixarmos de por em
causa a duvidosa associação linear entre “liderança forte” e “boa liderança”. O controlo que o Director vai exercer no contexto da Escola faz
de si um gestor dos interesses do Estado. Foi da sociedade actual que importamos para a nossa Escola um modo de racionalidade,
conceptualizada de instrumental, que distancia os sujeitos de uma intersubjectividade caracterizada pela comunicação, pela emancipação e
pela crítica, tem vindo a dar provas da sua incapacidade para defender quer o objectivo próprio da escola pública, quer as condições
pedagógicas que permitem a concretização desse objectivo.

A Crise do Actual Paradigma da Administração Escolar


Recai sobre a administração da escola pública portuguesa, à semelhança do que ocorre em outros quadrantes, uma
certa desconfiança, um por em causa que tem vindo a fortalecer a ideia de crise. Este entendimento é corroborado pelo
questionamento a que são votados os pressupostos e as verdades por si assumidas obrigando à sua reconstrução em forma de
mudança que rompa com as fronteiras impostas pela racionalidade instrumental e permita a “entrada” a outros tipos de
racionalidade. A esta consideração não é estranha a fragilidade com que as verdades absolutas e matematizadas, actualmente,
aparecem e que levaram a uma reviravolta epistemológica nas ciências pelo destaque da importância da subjectividade
humana como inerente à construção do conhecimento dito científico, acabando por evidenciar o postulado de que “tudo é
incerto”, e, neste caso, abre portas à possibilidade de novas concepções de verdade.
A par disto não se duvida das consequências provocadas pelo capitalismo contemporâneo. Se é obvio que “a ideia
de Estado mínimo significa o Estado suficiente e necessário para os interesses da reprodução do capital” (Frigotto, 1995:85),
parece, evidente, que é no próprio Estado que podemos encontrar a justificação, pelo compromisso que mantém com a esfera
da produção e do consumo, para o desenvolvimento da burocratização das relações no interior das instituições, conseguindo
debilitar as relações comunicativas ao mesmo tempo que acelera as contradições sociais, e, consequentemente, reforça a
lógica da exclusão e da competitividade. Assim, a concretização da administração, na qual se inclui a administração da

295
escola, uma vez que esta não existe fora das relações que mantém com o Estado, e, nesse caso, com o mercado, faz-se através
do poder de organização e de controlo ao serviço dos interesses capitalistas.
Apesar de podermos considerar, e de acordo com Habermas, de que é a dimensão económica aquela que mais
reflecte a crise, é importante referir que qualquer crise de natureza económica acaba por ter reflexos na vida social daqueles
que afecta. Na verdade toda a crise económica num instante se transforma em crise social, “(…) pois ao desmascarar a
oposição de classes sociais, fornece uma crítica prática da ideologia da pretensão do mercado de ser livre do poder. A crise
económica resulta de contraditórios imperativos sistémicos e ameaça a integração social. É, ao mesmo tempo, uma crise
social na qual os interesses dos grupos em acção colidem e colocam em questão a integração social da sociedade” (1999: 44-
45).
Esta crise económica, de acordo com o autor supra-citado, é desencadeadora de outras, nomeadamente, da de
racionalidade, de legitimação e de motivação como consequências inevitáveis. Crises a partir das quais parece ser possível
compreender a “crise” na qual a administração escolar parece estar mergulhada. Será, como refere Medeiros,
“(…) uma crise de racionalidade, porque a sua razão de existir - produtividade e eficiência sistémicas – está sendo
posta em questionamento; é uma crise de legitimação, porque a sua razão democrática de ser não se coaduna com a
prática cotidiana em nossas escolas públicas (…); é uma crise de motivação, porque os seus sujeitos descrentes das
possibilidades democráticas se frustram em seus desejos mais profundos” (20007:34).

Na verdade, actualmente, grande parte dos professores vive uma existência permeada pela angústia. Não só porque
de um lado estão os pais querendo que os seus filhos realizem certas ambições que eles próprios não foram capazes de
resolver, por outro, a sociedade que reclama por pessoas capazes e quer, à custa da educação, combater a delinquência e a
ignorância, mas, igualmente, porque as práticas escolares impedem que se realizem como sujeitos, como construtores da sua
própria história, o que se torna evidente no desapontamento pelos golpes infringidos em torno da própria gestão democrática.
Situação que tem criado sentimentos de desconforto, de desmotivação e de uma certa aversão relativamente à escola. Os
últimos acontecimentos em forma de manifestações, polémicas e discussões, verificados no âmbito do contexto educativo
têm colocado a administração escolar num lugar de destaque pelo facto de tomar decisões que, inequivocamente, colidem
com os interesses e com as necessidades dos actores que participam na organização escolar.
A falta de justificação, coerente e transparente, das decisões tomadas, tem feito crescer um sentimento de descrença
e desalento, onde se expressa o feroz ataque à democracia, obrigando homens e mulheres a ficarem excluídos das esferas
decisórias, tornando-os reféns de manobras mercantilistas porque forçados a submeterem-se aos imperativos do
neoliberalismo. Esta situação tem levado à instrumentalização dos próprios sujeitos limitando-lhes a sua liberdade e
possibilidade de emancipação.

A Decisão e o Risco de Decidir


Os estudos de natureza administrativa, quer se relacionem ou não com a educação, têm destacado a tomada de
decisões como elemento essencial, considerando as restantes actividades que têm lugar no quadro organizacional, sob sua
dependência. Toda a especulação criada em torno da tomada de decisões não é indiferente ao problema de tomar as melhores
decisões, na medida em que os êxitos e fracassos organizacionais disso mesmo dependem.
Com regularidade, à semelhança do que acontece em tantas outras organizações, também na organização escolar
são tomadas decisões que, directa ou indirectamente, afectam o modo de a perceber, bem como o seu funcionamento,
alterando, por isso, a própria realidade. As políticas educativas produzidas pela administração das escolas vieram dar ao
conceito de risco visibilidade, diríamos até centralidade, por serem favoráveis à configuração de uma realidade escolar que
muitos daqueles que participam na organização escolar recusam. Esta presença constitutiva dos riscos não se faz, somente,
sentir no presente, é uma presença que se prolonga no tempo, mesmo que esse tempo ainda não tenha tido lugar. Os riscos
dependem das decisões, mais propriamente das consequências inerentes à sua prática. Daqui decorre a sua importância na
medida em que são sempre cruciais, em menor ou maior grau, pelas consequências organizacionais que delas possam
resultar.
Somos sempre grandemente afectados pelas decisões mesmo quando não é uma atitude própria mas concretizada
por outros que a executam em nosso nome pelo poder que lhes é conferido. O risco que é inerente à decisão supõe a
existência de um desagradável peso que muitos preferem não suportar e que pode resultar numa espécie de paralisia perante a
acção quando os potenciais decisores se debruçam sobre as situações decisórias e “su propia lucidez les hace advertir que les
faltam elementos que ellos consideram importantes para tomar la decisión. […] llegan a posiciones de permanente inhibición
y de no compromiso con lo real” (Lara, 1991: 22). Desta feita, como explica Lima no âmbito da participação, “recusam o
preço que para tal poderiam ser forçados a pagar” (1998:188), remetendo esse papel para outros. Apesar de na categoria dos
decisores encontramos aqueles para quem decidir representa uma actividade fascinante por obrigar à eleição de um particular
caminho na encruzilhada dos possíveis, produzindo, à custa da sua intervenção novas realidades, há um outro tipo que se
caracteriza por preferir copiar respostas dos esquemas gerais do comportamento proporcionados pelos paradigmas culturais
em forma de normas ou tradições. Sentirá que a sua responsabilidade se dilui na da organização, motivo pelo qual se sente
mais protegido. A nosso ver, em comum, qualquer decisão encontra a sua razão de ser na acção futura, é nesta que se justifica
a própria decisão que, em si mesma, é também acção intencional, desencadeadora de novas acções, com se a concretização de

296
uma acção implicasse a sua inserção na sucessão sem fim dos fenómenos, tornando-se elemento de uma nova decisão. É um
acto que se concretiza no imediato, contrariamente ao seu impacto por gerar novas realidades.
Apesar de considerarmos a existência de uma grande proximidade entre decisão e acção a verdade é que tomar uma
decisão não implica necessariamente passar à acção. A justificá-lo o facto da acção não ser sincrónica da decisão e porque
passar do “plano das orientações” para o “plano da acção” nem sempre é concretizável (ibid.: 165). Não decidir também se
tem apresentado como uma modalidade organizacional. É comum a existência de “situações importantes que envolvem não
decisões. São elas as situações em que os responsáveis organizacionais pelas decisões decidem não tomar uma decisão e
prosseguir na direcção que vinha sendo seguida” (Hall, 1984, 232). Fazendo uso da conceptualização de não participação
proposta por lima somos levados a identificar a não decisão, também, como aquela que não tem expressão na acção e que é
levada a cabo por homens e mulheres que não a vêm como tarefa cómoda pela responsabilidade que a acção acarreta e pelas
repercussões nem sempre fáceis de suportar. Enfrentar riscos impõe-se como um imperativo que muitos preferem não correr,
o que em rigor legitimará a existência de uma decisão circunstancial, de envolvimento mínimo por parte dos sujeitos que as
tomam. Por isso, sustenta Owens que “La toma de decisiones supone, por supuesto, la selección de una línea de acción entre
las alternativas disponibles. Uno puede considerar por largo tiempo cada posible alternativa y no llegar a tomar nunca una
decisión. Naturalmente, es deseable buscar el término medio que sea eficaz en una determinada situación” (1976:144).
Não restam dúvidas sobre a importância de que se revestem as decisões e os processos decisórios, pois, será a partir
destes que se revela a racionalidade, no caso, da administração da escola pública portuguesa.

A Burocratização da Administração Escolar


É a intensificação do fosso entre o ideal, enquanto “espécie de pulsão, de energia que dá movimento aos sujeitos no
seu fazer-se sujeitos” (Medeiros, op. cit: 34) e o real, enquanto vivência do quotidiano, que se torna mais expressiva a
inexistência de práticas emancipatórias. E é aqui que se torna visível o posicionamento colonialista de negação de diálogo,
que cerceia a iniciativa dos actores educativos, da administração escolar portuguesa e que a racionalidade instrumental
traduz. Esta é uma prática que subsiste pela impossibilidade da transferência de responsabilidade e autoridade que ainda
permite que a política educativa se faça nos gabinetes, sem se deixar contaminar pelas decisões “assumidas” pelos sujeitos
que se encontram nas escolas, contribuindo para a sua alienação, expressão acabada de uma hegemonia cultural que se foi,
paulatinamente, consolidado ao longo dos tempos através de uma herança centralista e burocráticas. Considerações que
encontram corroboração nas palavras de Nóvoa quando escreve que:
“(…) os professores, enquanto corpo profissional, têm tido uma participação reduzida na reforma do sistema educativo
português; os ‘grupos políticos’ e os ‘experts pedagógicos’ - têm liderado este movimento acentuando o fosso que
separa os actores dos decisores (1992:83).

Este facto, que tem excluído os agentes educativos de participar na feitura das leis, tem contribuído para que todas
as tentativas de mudança que se tentam implementar no contexto da educação em Portugal, se, por um lado, não são capazes
de alterar de modo significativo a conjuntura vigente, por outro, têm nesses agentes uma resistência à sua implementação
levando a alguma perturbação na própria organização escolar. É, por isso, importante distinguir entre uma administração
autoritária e uma administração com autoridade, que seja ela própria uma resistência ao autoritarismo que se afirma pela
coisificação, e pela exclusão da liberdade, da participação e da emancipação. De resto, a construção de uma verdadeira
organização democrática, como refere Freire, depende mutuamente da presença da liberdade e da autoridade, sendo que, se
não liberdade sem autoridade, não há também esta sem aquela” (1987: 177).
Parece consensual a ideia de que a organização escolar está a ser conduzida por um processo de intensa
burocratização, ficando a administração incumbida de exercer o controlo (Gimeno, 1985: 67), afirmando-se como repressiva
e como força alienante, impedindo a construção de uma administração verdadeiramente democrática que considere a
participação activa de todos os actores organizacionais. A defesa da tese de que a administração da escola está burocratizada
subentende a ideia de que a burocratização favorece o controlo dos interesses da própria na organização escolar, o que é
corroborado pelas palavras de Félix quando escreve que “ (…) a principal função da administração escolar é, tornando o
sistema escolar cada vez mais uma estrutura burocrática, permitir ao Estado um controle maior sobre a educação, para
adequá-la ao projecto de desenvolvimento económico do país, descaracterizando-a como actividade humana específica e
submetendo-a a uma avaliação cujo critério é a produtividade, no sentido que lhe atribui a sociedade capitalista” (1985:176).
As escolas, tal como sucede com outras organizações, apesar da sua natureza diferenciada, constitui-se como loci de poderes
não democráticos configurados, como escreve Lima, por “estruturas formais fortemente hierarquizadas, por formas de
governo autocrático, pela concentração de poderes nos órgãos de cúpula dos organigramas (em forma de ‘candelabro’) e todo
o tipo de assimetrias estatuárias e funcionais” (op. cit.: 105), atestando a sua configuração antidemocrática ao inibir
comportamentos que resultem do desrespeito às regras e às estruturas burocráticas a que se encontra constrangida, isto,
apesar de a escola ser retoricamente considerada, por excelência, como um espaço privilegiado na constituição de sujeitos
democráticos e autónomos que, a bem dizer, ultrapassa a esfera técnica ou pedagógica, e que se tem apresentado em forma de
projecto. Paradoxalmente, vem-se assistindo a reiteradas práticas que se têm, exactamente, caracterizado por promoverem
valores opostos.

297
É esta a causa pela qual, em Portugal, a maior parte das críticas são endereçadas, explicitamente, ao Ministério da
Educação, aparelho administrativo da escola, que a centralização política e administrativa fomentam desde um passado
demasiado longínquo que teima, no presente, em manter-se inalterado, apesar das continuadas referências à sua
instrumentalidade que o poder da burocracia parece sempre convocar. Acusada de servir os interesses de uma minoria de
burocratas contraria a pretensa neutralidade de que a burocracia se arroga, e adquire uma concepção que traduz uma efectiva
carga negativa que os conceitos de ineficaz, inflexível e ineficiente transportam quando a administração centralizada do
ensino é apelidada de burocrata. Com efeito, a escola portuguesa dos nossos dias ainda se encontra permeada pelo
centralismo das decisões políticas que impede a interferência dos actores educativos no processo de decisões.
Por certo, este modo de ser da administração escolar, que encontra tradução na racionalidade instrumental, serve
para justificar a ausência de confiança sobre homens e mulheres que não parecem estar na posse de capacidades que lhes
permita gerir a sua própria autonomia. Este enfoque permitirá manipular e manejar a acção através de uma organização
escolar estruturada pelas imposição e pelo autoritarismo que coisifica em vez de emancipar. Cumpre-se o que foi imposto e
não deliberado em colaboração mútua, não se negoceia o que está previamente estabelecido, quantifica-se à custa de uma
efectiva padronização e controla-se porque só assim se domina.
Portanto, a racionalidade inerente a uma administração centralizada, apostada na dominação e no autoritarismo,
caracteriza-se por ser instrumental, tecnocrática e monopolizadora. É desenvolvida num quadro de valores que não respeita a
condição humana por não deixar espaço ao emergir da liberdade e da responsabilidade.

A prática colonizadora da Racionalidade Instrumental


Dentro desta lógica, diríamos que todo o sistema de ensino que se encontra subjugado a esta relação de poder,
numa nítida separação entre governantes e governados, consolida um processo marcado por opressões que impedem a
emancipação e a dignificação, antes acolhe o carácter de uma relação de obediência autoritária que impõe e dita valores. A
importância da componente do desempenho reitera a instrumentalização num claro condicionamento do comportamento dos
actores educativos que se encontram cercados pela lógica da preservação do poder mais do que com a sua justificação.
A operacionalização desta racionalidade é feita através de formas de dominação subordinada a enfoques estáticos e
fixos de concepções de formação da individualidade, que alienam o ser humano da realidade e de si próprio. Enclausurado
sobre si mesmo, vê-se transformado numa simples marioneta que age de acordo com ditames pré-estabelecidos que o
obrigam a manter-se na condição de mero espectador de si e como simple receptore dos serviços educativos.
Assim, e parafraseando Fonseca, será caso para dizer que as gestões imaturas e sem firmeza são nefastas e
conflituosas, mas pior ainda são as autoritárias, inflexíveis ou fortemente centralizadores (2000: 141), em que a tomada de
decisões é aspecto harmonizador porque supõe convergência de ideias a título de fórmulas que são dadas em vez de exigidas,
porque nada pode contrariar o pode dominante.
Ficamos, assim, perante formas autocráticas de administração que através do controlo e da centralização se impõem
enquanto poder e enquanto decisão negando a presença do diálogo que a verticalidade das imposições consolida e, desta feita,
acaba por legitimar o domínio de uns sobre os outros, como forma de manter a ordem, num claro assentimento de um espírito
de subordinação e submissão.
Este modo de ser da administração escolar portuguesa não o é por acaso, pois não podemos esquecer que esta vai a
reboque dos princípios da administração empresarial, e, consequentemente, dos interesses do capital interessado em manter
um compromisso com a manutenção do sistema social de dominação e exploração (Fortuna, 2000: 16). Por esse facto
encontra a sua fundamentação em princípios aplicáveis a qualquer organização, as mesmas que, seguramente, têm objectivos
diferentes. Assim sendo, não é estranho que a racionalidade instrumental, tecnocrática, própria do mundo empresarial seja a
mesma da escola. Nesta perspectiva se podemos assumir que existe, por parte da administração escolar, uma séria tentativa
de colonização, pelo facto de manter os sujeitos aprisionados a processos em nada compatíveis com a prática democrática e
emancipatória, (Medeiros, op. cit.: 36), também não podemos deixar de considerar que ela se deixou colonizar, no âmbito da
acção, pelos pressupostos gerencialistas passando, neste caso de colonizadora para colonizada.
A descolonização da administração escolar só terá lugar quando se reflectir verdadeiramente sobre as finalidades de
âmbito social, político e educativo da própria que não pode ignorar as demandas pedagógicas da organização escolar.
Propósito que implica, necessariamente, considerar os actores educativos como agentes activos e de mudança, tornando a
comunicação sinónimo de inter-subjectividade, ao invés de mera transmissões de decisões já tomadas. A relação democrática
exige a supressão de mecanismos de imposição, da negação do direito de participação, impondo-se pela manifestação livre
das convicções e opiniões, por um consenso que não se esgota na ideia de negação de conflitos e das diferenças, mas antes na
crítica e na problematização construtiva do que se diz, de um entendimento recíproco e de uma decisão colectiva. O diálogo
será, então, aspecto fundante de um outro modo de ser racional que encontra a sua fundamentação no pensamento de
Habermas, em clara ruptura com os pressupostos da eficiência económica e da produtividade.

A Racionalidade Comunicativa
Dar possibilidade ao emergir de outras racionalidades é, assim, palavra de ordem. Se a racionalidade instrumental
está em crise, uma vez que assenta em pressupostos da administração empresarial, os quais não fazem face à complexa

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realidade da administração escolar, importa deixar emergir outras racionalidades. Defender a gestão democrática como forma
organizacional das escolas públicas não tem passado de uma retórica cada vez menos credível tal como o atesta a produção
legal, nomeadamente o DL nº 75 - 2008, que inviabiliza a concretização da autonomia, da democracia no interior da escola.
Em essência, a relação e as acções da administração em questão com os homens e mulheres que fazem parte da organização
escolar, não foram alteradas, o que justifica o choque permanente com práticas autoritárias e arbitrárias.
Esta proposta de racionalidade, comunicativa, é fruto da inquietação do autor relativamente à instrumentalização do
ser humano subjugado ao domínio técnico descomedido. É urgente, reaver o sentido da acção e a conivência espontânea, não
monopolizadora, em que o sujeito reconheça a sua acção como dirigida a um fim fundamentado. É necessário romper com
uma racionalidade integradora das técnicas de controlo, de poder e de dominação e dar espaço a uma racionalidade que
integre o aspecto inter-comunicativo da acção, ao mesmo tempo que determine as regras da acção social livre, sem vínculos a
nada que a reprima, e tendo por base uma moral universal que será consequência de um discurso onde os indivíduos se
reconheçam pela linguagem, pelo diálogo. Esta comunicação, na óptica de Cantista, será “não deteriorada, nem por
repressões externas, nem pelas que derivam da própria comunicação. A discussão pública universal oferece-se assim por
igual a todo o indivíduo que pode criticar e tematizar opiniões. Só assim se poderá chegar a uma verdade que se mede por um
autêntico consenso e que implica a ideia de uma vida verdadeira, emancipada, seguindo os ideais de verdade-liberdade-
justiça” (1984: 193), tendo agora no horizonte o sujeito como um fim em si mesmo, rompendo com todas as barreiras
internas ou externas à própria razão, tornando-se fundamental a crítica.
Esta racionalidade admite o falível e estabelece uma relação com o mundo dos factos para julgar com objectividade
o que obriga a que a crítica e a justificação passem a incorporar o ser da racionalidade, aspectos que evidenciam alguma
familiaridade com a racionalidade proposta por Popper pois, também, a encara como “a atitude de estar disposto a corrigir as
próprias crenças. Na sua forma intelectualmente mais desenvolvida, corresponde ao estar disposto a discutir as próprias
crenças de uma forma crítica e a corrigi-las à luz da discussão crítica com outras pessoas” (1996: 219).
A sua racionalidade assenta no carácter subjectivo, pois todos os homens são interlocutores no espaço público, por
isso ela é comunicativa; comunica argumentos, comunica confrontos de ideias esclarecidas e valida a autonomia dos sujeitos
libertos da privação da palavra, exemplo acabado de subjugação. A racionalidade significará a tendência natural do ser
humano apto a falar e a agir, e terá concretização nas formas comportamentais que são a expressão das boas razões. O seu
discurso, mesmo não sendo coercitivo, tem por objectivo alterar a conduta dos indivíduos. É um discurso com efeitos de
transformação nos outros.
E aqui reside o mérito deste modo de racionalidade. No confronto com as práticas não parece corresponder à
verdade a possibilidade de afirmarmos a existência de uma discussão isenta de qualquer obstáculo, de qualquer forma de
coação ou repressão. Então, apesar de podermos assumir esta racionalidade como normativa, por considerarmos que este é
um ponto de vista que peca pela impossibilidade de se realizar na prática em termos absolutos porque, pensar um discurso
reduzido à presença de argumentos, a favor ou contra, como modo de alcançar a verdade, ou uma comunicação livre de
dominação, ou a dissolução da existência de qualquer relação de poder, é um modo de racionalidade que parece só encontrar
validade dentro dos limites dos esquemas teóricos, tem por objectivo alcançar um entendimento mútuo entre os interlocutores
no que respeita aos seus modos de acção.
Este modo de racionalidade, que se assume pela relação inter-comunicativa do sujeito com a acção, com o mundo
dos factos, que é feita através da mesma linguagem assente numa moral universal liberta de constrangimentos e, por isso,
autêntica, livre para criticar e problematizar, não se reconhece como infalível, porém, visa a transformação dos interlocutores.

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O Estado português, as políticas educativas e a sua dependência de uma


Governação multinível

Graça Aníbal
UID-OPECE - Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos
ganibal@netcabo.pt

Resumo: Na história recente de Portugal há um marco incontornável quando se fala de mudança e de progresso – a revolução de 25 de Abril
de 1974. Efectivamente, derrotada uma ditadura anacrónica e isolacionista de 50 anos (1926 -1974), o país pôde viver plenamente em
liberdade a experiência da participação cívica e política que hoje é também traço da sua identidade. Na continuidade dessa transformação
libertadora da Sociedade Portuguesa, 1986 é outra referência fundamental. O protagonismo do Estado tem sido evidente na integração
europeia que se configura como uma questão política e institucional, com uma intervenção diminuta e mesmo um aparente alheamento da
Sociedade. Na educação a comparabilidade interpretada na construção de indicadores comuns e legitimada como mecanismo de controlo
face aos resultados de testes internacionais (Pisa) tem sido factor preponderante na definição das prioridades políticas. Os diversos trabalhos
que investigadores de diferentes países têm desenvolvido sobre as políticas educativas revelam a influência que organizações supranacionais
vêm tendo sobre as políticas nacionais. Essa influência actua como regulação, potenciando a adopção de medidas nacionais que, mesmo que
produto de recontextualização, assumem um carácter de “reforma educativa internacional” hegemónica. Neste artigo procuramos estudar a
evolução das políticas educativas em Portugal na educação obrigatória e secundária pública a partir de 1990, ao longo das reconfigurações
assumidas por uma governação multinível. Pretendemos assim analisar o papel do Estado nacional nas políticas educativas e o grau de
intensidade da sua dependência de uma macro-regulação transnacional, nomeadamente europeia.

1. Enquadramento – A governação multinível


Os diversos trabalhos que investigadores de diferentes países têm desenvolvido sobre as políticas educativas
revelam a influência que organizações supranacionais (OCDE, Banco Mundial, UE) vêm tendo sobre as políticas nacionais.
Essa influência actua como regulação, potenciando a adopção de medidas nacionais que assumem um carácter de “reforma
educativa internacional” hegemónica, mesmo que recontextualizadas.
Esta espécie de parceria entre o Estado nacional e as instâncias transnacionais constitui um processo de governação
em escalonamento supra regional, como é o caso da União Europeia e, num contexto globalizador, as organizações
internacionais ( p.ex. OCDE, Banco Mundial ) A dispersão dos loci de decisão e regulação parece evidenciar, na designação
de Robertson e Dale (2006) a emergência de uma nova geografia de poder. Como assinala Jessop (2006) os processos
multicêntricos, muiltiescalares, multitemporais, e multiformes de “globalização”permitem um escalonamento espacial,
disseminado por hierarquias onde, por sua vez, são levadas a cabo estratégias interescalares por forças económicas e políticas
que na ordem internacional competem entre si. A escala nacional não é mais a escala natural. A global tornou-se, nos
discursos, a escala natural.
Naturalizado, também, o termo governação é hoje frequentemente utilizado nos textos das agências transnacionais,
legitimando-o nos discursos políticos das organizações internacionais e dos governos nacionais. Não se identifica, porém,
com um conceito único e preciso ( Nóvoa, 2002 ). Num documento de 1992 o Banco Mundial introduz o conceito de boa
governação atribuindo-lhe o sentido de mudanças no sector público que se concretizam em medidas de privatização,
mercadorização, new public management, competitividade, maximização dos resultados e se configuram em eficiência. Esta
abordagem tem um cunho marcadamente neoliberal e ao implicar uma agenda política global, tem influenciado os executivos
nacionais com efeitos de ordem política, económica e social nos Estados.
O conceito de governação surge nos documentos da UE, ao tratar da forma de trabalho a desenvolver nos Estados-
membros, como uma construção política que envolve diversos poderes, participação e mútuas responsabilidades e se rege
pela eficácia. (Comissão Europeia 2001). Nas palavras de Nóvoa (2002), os assuntos de governo, a representatividade
nacional são assim deslocados para um nível mais difuso, das redes, dos acordos.
Nas palavras de Bouvier (2007), “la gouvernance , c’ est le”multi”. “Multi” que tem a ver com um novo padrão de
relações entre cada Estado e a sua Sociedade, entre os Estados com as suas Sociedades, entre sistemas macroglobais e
sistemas super regionais, regionais e locais. Surge uma imagem multidimensional e multinível constituída por redes de
poderes e dinâmicas muito diferenciados e com diferente capacidade de conexão.
O que queremos aqui assinalar é que desta complexa teia de poderes, desta governação “multi” fazem parte os
actores do Estado que constroem entendimento próprio sobre as pressões e sobre as respostas às situações dilemáticas, de
acordo com as sua próprias teorias. Como salienta Reis “se é verdade que dominação e hierarquia existem na ordem social e
estimulam deslocações e sujeição a dinâmicas de poder muito diferenciadas, é também verdade (…) que os processos
desenvolvidos in situ, assentes em processos contextuais e capazes de “refractar” a dependência ou a influência exógenas,
existem igualmente e necessitamos deles para interpretar o que se passa à nossa volta.

300
Queremos com isto dizer que os processos regulatórios em escalonamento apresentam-se sob a forma de
organização estruturada em contextos locais que a reproduzem, a adaptam ou rejeitam através da capacidade dos indivíduos
de criarem sentido.
Esta abordagem assenta numa narrativa de governação que implica o modo como as instituições, nos seus
diferentes níveis e com o seu perfil histórico, os actores, na sua racionalidade e capacidade de agência, assumem trajectórias e
respostas às pressões.
“ por sistemas e culturas de governação entendo o modo como se manifestam e organizam os interesses colectivos
(como se formam actores sociais), como se estabelecem entendimentos entre os actores que intervêm na esfera pública
(como se consolidam convenções sociais), como se regula a sociedade e a economia através de políticas públicas (qual
é o papel do Estado e quais são os domínios estratégicos e prioritários da sua intervenção), como a sociedade se dota de
organizações (qual é o desenvolvimento da sua super-estrutura organizacional), como se criam padrões, rotinas e
modos de fazer (quais são os habitus, o capital informal e o conhecimento tácito de que uma sociedade dispõe) – em
suma, que ordem constitucional prevalece” (Reis, 2004)

2. Os executivos nacionais e o caso português face às pressões internacionais


Portugal, política e institucionalmente inserido na Europa, não escapa às pressões regulatórias transnacionais que
internacionalizam normas e reconfiguram as políticas públicas e as instituições. A situação na semiperiferia do sistema
mundial referida por vários autores (Santos, 1985, Reis, 2004 ) como factor que lhe confere especificidades não
negligenciáveis na interpretação das estratégias sociais, pode também explicar os modos como o Estado português se adapta
às exigências do contexto global, nomeadamente europeias e como se revelam processos de rejeição.
Considerando não haver um conceito operacionalmente sustentável de semiperiferia, Santos coloca como hipóteses
de trabalho um conjunto de características comuns às sociedades semiperiféricas do qual destacamos a existência de “classes
de suporte que amortecem os conflitos entre o capital e o trabalho”, “a centralidade do Estado na regulação da economia e na
regulação social”, “Estados com bastante autonomia na definição das políticas e internamente fortes, o que não lhes confere
forçosamente legitimação social”. (Santos, 1985)
Reconhece-se este elencado de características nos trabalhos de alguns analistas sobre Portugal (Reis, 2004,;Afonso,
2001) em que referem que o Estado é fraco perante grupos de interesse, sendo forte, porém, como actor público na definição
e regulação das relações económicas e sociais. O mercado e a comunidade têm com ele uma relação de dependência
considerável. O mercado é débil, sujeito a regulação institucional. É o consumo que o activa e não a produção A comunidade
é fraca, forte em situações defensivas. É notória a debilidade de movimentos sociais
O papel ainda preponderante do Estado na definição e regulação das relações sociais e económicas pode explicar o
reconhecimento de que o poder executivo português demonstra um alinhamento europeu inquestionável e uma adaptação
quase exemplar às exigências macro reguladoras, emanadas nomeadamente da OCDE e da UE. Aliás, uma pesquisa relatada
por Ruiter (2005) verificou que os governos dos Estados Membros percepcionam os desafios colocados à educação pela
economia globalizada como só resolúveis ao nível da UE. Outros trabalhos sugerem ser este posicionamento dos executivos
nacionais como uma estratégia política nacional que possibilita que os governos reduzam o leque de opções perante os
eleitores face aos custos de incumprimento ou mesmo que se protejam com estratégias de “blame-avoidance” ao tomarem
medidas impopulares (Jalali, 2006, Gornitzka, 2005) . Contudo se aceitarmos que os actores sociais constroem o seu
entendimento sobre as pressões com formas que dependem do significado que a sua própria história lhes confere e a partir do
qual desenvolvem acções contingentes, a problematização da noção de governação não se pode ficar pelos inputs e pressões
exógenos.

Uma governação “soft”: o Método de Coordenação Aberto


Na já complexa história das políticas educativas promovidas pela UE o reconhecimento da importância das
respostas dos actores a novas circunstâncias na consecução dos objectivos europeus tem-se feito sentir na reformulação de
metodologias e constituição de estruturas de regulação. Disso é exemplo o Método de Coordenação Aberto escolhido para
aplicação a determinados sectores.
O Método de Coordenação Aberto introduz uma rotura nos mecanismos que até então constituíam a forma de gerir
os processos de transferência de competências nacionais para a União Europeia e que, constituem o Método Comunitário,
também apelidado de lei dura Este baseia-se numa integração pelo direito sob a forma de directivas e regulamentação
europeias em que a União detém o poder de legislar e de sancionar. Os novos instrumentos não se regem por uma integração
pelo direito, mas por uma coordenação assente na comparabilidade e estabelecimento de metas partilhadas e negociadas pelos
membros com base em orientações políticas.
As razões que estão na base da aplicação deste Método são explicadas no texto de Ruiter (2005), Governance and
the shift towards a knowledge-based society: the European Union and the Open Method of Coordination, em que se refere
um trabalho de investigação de 2005 que teve por base a hipótese da existência de uma relação positiva entre o grau de

301
projecção pública (visibilidade pública/percepção pública relevante) do assunto e a emergência da aplicação do MCA.1 Um
grau elevado de projecção pública faria emergir um conflito de interesses a nível nacional entre o desejo de um
enquadramento a nível europeu e a relutância em transferir competências para esse nível. Para estes contextos o MCA
afigurar-se-ia o instrumento apropriado.
A investigação concluiu que, dos dados relativos à educação, se verificava haver conflito entre o desejo e a
relutância em actuar ao nível europeu e que era do interesse dos governos, do Conselho e da Comissão a adopção do MCA.

3. As orientações internacionais, o Estado português e os grupos de interesse em casos paradigmáticos da política


educativa
Acompanhando a evolução das políticas educativas em Portugal na educação obrigatória e secundária pública a
partir de finais de 1990, procurámos compreender, utilizando a análise do discurso, o papel do Estado e o grau de intensidade
da sua dependência de uma macro-regulação transnacional, confrontado com o grau de intensidade de resistência social.
Assim, identificámos, na história recente da educação em Portugal, três casos paradigmáticos da influência, na
governação, dos agentes individuais, colectivos ou institucionais.

Caso 1 – Os currículos alternativos: inclusão ou exclusão regulada


A partir do final dos anos 1990, com a evolução da economia à escala global, as políticas promotoras de “igualdade
de oportunidades” características dos anos 60 e 70 são substituídas por políticas educativas globalizantes imbuídas de lógicas
empresariais de modernização de orientação neoliberal. A UE sofre um processo de reconfiguração que a torna um elemento
do processo global neoliberal, participando nas tendências económicas internacionais, designadamente a economia do
conhecimento. Os finais de 1990 testemunham a criação explícita de mecanismos europeus que permitem o exercício de uma
governação supranacional (Antunes, 2005), alterando o quadro até então marcado pela preocupação de não interferência nas
políticas de educação dos Estados.
É neste contexto que Lawn (2002) considera a emergência de uma nova noção de identidade europeia assente no
indivíduo num espaço europeu no qual só têm lugar os que adquiram conhecimento e competência que sirvam as estratégias
de emprego e produtividade.
Neste enquadramento internacional em que o paradigma dominante é neoliberal, a política educativa em Portugal
no ano de 1995 é objecto de ruptura ideológica com a mudança de um governo conservador para um governo de cariz
socializante.
Em 1996 é tomada uma medida que se assume de política social. São criados os currículos alternativos que
pretendem assegurar “ uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares”aos alunos em risco de
insucesso e de abandono escolares. Esta medida foi fortemente criticada por sindicatos de professores e académicos que a
consideraram integrada numa política apenas aparentemente de contra-ciclo. Este entendimento era suportado por trabalhos
académicos que vinham denunciando a ideologia da modernização que orientava as políticas educativas emanadas das
organizações internacionais. Com protestos organizados em debates e reuniões públicas os currículos alternativos foram
considerados medida descriminatória, segregadora e potencialmente promotora de resultados contrários aos que anunciava
obter. Esta perversidade foi identificada por alguns investigadores como resultado da localização descoincidente no processo
de concretização das políticas.
“A política geral pode surgir localizada no topos emancipatório e, dadas políticas, (…) aparentemente daí derivadas
surgirem com um potencial desenvolvimento localizado num topos regulatório – no caso a gestão controlada da
exclusão”(Cortezão, 2000)
O carácter social da medida, a sua não universalidade, a fraca projecção pública dos grupos que a contestavam
permitiram que a medida fosse implementada.

Caso 2 – A Lei da Educação que não chegou a existir


Em 2000 a OCDE publica, no âmbito de CERI o documento “Knowledge management in the learning society”. Os
textos que o constituem são dominados pela ideia de que o conhecimento é a chave das mudanças económicas e sociais do
séc XXI. Consideram que a nova economia exige a emergência de “trabalhadores do saber”(Bouchez, 2004), salientam que
esses trabalhadores são “proprietários” das suas competências, desenvolvem e incrementam ao longo da vida saberes e
adaptações a novos modos de produzir.
Os sistemas educativos são então responsabilizados por uma resposta adequada a estas novas exigências ditadas
pela economia. O diagnóstico atribui às escolas um carácter obsoleto Preconiza-se mudar as formas de organização, os
conteúdos, os métodos. É posta em causa a capacidade da escola de formar cidadãos que contribuam directamente para o
crescimento económico.
Em 23 e 24 de Março de 2000, o Conselho Europeu de Lisboa reúne extraordinariamente e “ traça as linhas de
orientação (…)” com o intuito de “aproveitar as oportunidades da nova economia” de modo a que “a Europa esteja na

1
No texto em referência consideram-se exemplos de matérias com grau elevado de projecção pública o emprego, a educação, as pensões de reforma, a inclusão
social.

302
vanguarda de todos os sectores nos quais a concorrência se intensifica fortemente” (EU, 2000 ), o que passou a ser conhecido
por Estratégia de Lisboa. No ponto 26 das conclusões da Presidência deste Conselho é solicitado aos Estados –Membros que
“tomem as medidas necessárias nas áreas da sua competência para alcançar (…) metas” das quais salientamos:” – as novas
competências básicas, que serão proporcionadas através da aprendizagem ao longo da vida, deverão ser definidas num quadro
europeu: competências em TI, línguas estrangeiras, cultura tecnológica, espírito empresarial e aptidões sociais; deverá ser
criado um diploma europeu de competências básicas em TI, com procedimentos descentralizados de certificação, a fim de
promover a literacia digital em toda a União (Conselho UE, 2000).
Em Portugal é eleito em 2002 um novo governo conservador que, no repetido processo de stop/go, faz um claro
alinhamento com as proposta internacionais, nomeadamente no que respeita à implementação das Tecnologias de
Informação e Comunicação na perspectiva do produtor, na avaliação das escolas e na alteração do perfil profissional dos
directores das escolas Altera o enquadramento jurídico do sistema e cria as condições para a emergência de uma nova Lei
Quadro que substituiria a Lei de Bases do Sistema Educativo em vigor desde 1986.
Aquilo que eu defendo e que vou consagrar no currículo é a criação de disciplinas dedicadas às Tecnologias de
Informação. A formação que estava subjacente ao ensino das Tecnologias de Informação era na perspectiva do consumidor.
Mas eu quero que estes jovens sejam capazes de produzir, de fornecer informação e não apenas de a consumir. Para
conseguirem produzir, tratar, seleccionar e reconstruir a informação, precisam de dominar outras tecnologias, além das
chamadas ferramentas de produtividade. 2
Estamos a trabalhar numa nova lei de autonomia e gestão mas, para ser exequível, é necessário mudar a Lei de
Bases do Sistema Educativo. O fundamental seria os directores das escolas, nomeadamente aqueles que são nomeados pelo
Ministério [quando os órgãos de gestão não funcionam], poderem ser sujeitos a concurso público e ser escolhidos em função
do seu mérito, competência e experiência.3
No relatório da OCDE de 2004 sobre Portugal (OECD 2004), na sequência de uma análise sobre a situação da
educação são feitas recomendações que se situam na necessidade de aquisição de níveis altos de competência na escola, no
uso das tecnologias e nos processos de produção e gestão. Reconhece como positivas as medidas tomadas na implementação
de formação profissional e técnica, de racionalização, de avaliação das escolas e dos professores, mas considera que estas
reformas se tornarão mais eficazes quando a nova Lei Quadro, designada de Lei de Bases da Educação for aprovada e
implementada:
“Educational Reforms will be more effective when the Framework Law for compulsory education is approved and
implemented throughout the education system”(OCDE, 2004)
Mas a lei não chegou a vigorar. Foi aprovada em Conselho de Ministros e na Assembleia da República. O
desacordo de várias forças políticas, de académicos e especialistas em educação, que veementemente a puseram em causa
acusando o texto de protagonizar um retrocesso em relação à lei vigente, impediram a sua consagração. O Presidente da
República vetou a Lei de Bases da Educação, justificando a decisão com a ausência de um consenso alargado envolvendo os
partidos parlamentares e os parceiros educativos sobre o seu quadro jurídico
Na mensagem enviada ao Parlamento o Presidente referiu que “é importante que uma nova lei de bases assente
igualmente numa fundamentação técnica sólida resulte, tanto quanto possível, de um compromisso político estável que
permita e procure associar ao seu desenvolvimento a generalidade dos parceiros educativos".
O Presidente considerou que "independentemente da legitimidade da Assembleia da República para aprovar uma
alteração global da Lei de Bases, não parecem esgotadas as possibilidades de um preenchimento mais adequado dos
requisitos atrás assinalados, tendo em conta a consciência de que a nova lei, na sua qualidade de lei estruturante, deve ser
uma lei para muitos anos e não um diploma de vigência permanentemente condicionada pela normal alternância
governativa".

Caso 3 – A avaliação dos Professores: o país suspenso


Em 2006 o relatório da OCDE (OECD Economic Surveys Portugal), depois de apontar os aspectos negativos que
atribui à baixa eficiência do sistema aponta a necessidade de aumentar o esforço no apoio ao uso efectivo da autonomia pelas
escola e a urgência de promover liderança nas escolas, atribuindo à forma como os dirigentes são seleccionados e formados, e
criar incentivos para o desempenho de novos papeis pelos professores.
No mesmo ano é publicado pela OCDE um documento sobre Portugal (Guichard, 2006) que retoma os aspectos
críticos do relatório e avança com orientações no sentido de apetrechar as escolas com laboratórios, material de ensino e
computadores de qualidade, reciclar professores para outras actividades escolares, reduzir no ensino secundário os cursos
gerais e aumentar os profissionais, reforçar as áreas fundamentais do currículo (Português e Matemática) e desenvolver o
ensino experimental das ciências que considera inexistente.
O executivo português procurou cumprir escrupulosamente as orientações. Num discurso na Assembleia da
República 4 a Ministra da educação elencou as medidas levadas a cabo onde se incluem a generalização do ensino do Inglês
no 1º ciclo, o lançamento do Plano de Acção para a Matemática, o Plano Nacional de Leitura e os programas de formação de

2
Entrevista do Ministro à Visão 505 de 7 de Novembro de 2002
3
Entrevista do Ministro o jornal Público em 6 de Outubro de 2002
4
Discurso da Ministra na Assembleia da República em 6 de Dezembro de 2007

303
professores no ensino experimental das ciências e na prática de leitura. No Plano Tecnológico cumpriram-se metas
anunciadas.
Porém o objectivo que se percepciona como considerado fundamental, tem a ver com alterações profundas na
carreira e na regulação do desempenho dos professores. Num artigo publicado no Diário de Notícias a Ministra considerava
que
“As escolas só poderão enfrentar este desafio (optimizar a capacidade técnica e de inovação dos professores e de
outros profissionais de educação) se lhes forem proporcionados instrumentos de gestão adequados a um novo mandato
explicitamente orientado para a melhoria dos resultados escolares dos alunos” 5
“O exercício desta autonomia depende da capacidade de liderança e gestão nos planos científico e pedagógico e do
trabalho em equipa, devendo ser exercida no âmbito de uma estratégia clara: a de fazer funcionar as escolas como
organizações estruturadas em torno dos valores do saber, do conhecimento e da disciplina de trabalho e estudo, aumentando o
tempo de trabalho-tarefa dos alunos e diferenciando as ofertas formativas e os percursos escolares”6
No discurso na Assembleia da República afirmava-se que “A revisão do Estatuto da Carreira Docente permitirá não
apenas valorizar e qualificar a carreira dos professores, como permitirá às escolas dispor de um instrumento de gestão mais
eficaz dos seus recursos humanos mais qualificados.”
Uma das medidas “para promover o aperfeiçoamento das práticas, garantir a diferenciação do mérito, definir
regulação rigorosa de progressão na carreira”foi a de instituir a avaliação de desempenho docente através de um novo método
com instrumentos complexos.7
A contestação pelos professores deste método e do estatuto da carreira que restringe alguns direitos antes
consignados (mais tempo de presença no local de trabalho, novas funções), e que criou também diferenciações hierárquicas
no seio da classe docente, fomentando a emergência de uma cultura de competição, tem-se destacado pela persistência e pelo
gigantesco número de professores envolvidos em manifestações regionais e nacionais. A relevância deste posicionamento de
defesa dos interesses e convicções levou a alguns recuos do executivo, à intervenção de várias personalidades da vida política
e da comunidade educativa e à invasão desta questão, altamente mediatizada, no quotidiano dos portugueses.

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5
Ministra da Educação. Melhorar a Escola é Melhorar os resultados. Diário de Notícias de 1 de Setembro de 2006
6
Ministra da Educação. Melhorar a Escola é Melhorar os resultados. Diário de Notícias de 1 de Setembro de 2006
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Mudança Educativa em Contexto Global: Alguns Dados do Sub-financiamento


Português

Vasco Graça
UID-OPECE - Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos
vasco.graca@sapo.pt

Resumo: O nível de financiamento que os Estados atribuem à Educação e as formas de utilização das verbas disponíveis constituem
elementos cuja importância para a análise da situação educativa é relevante ainda que, amiúde, sejam secundarizados em muita da
investigação realizada sobre a Educação.
Na fase actual do sistema-mundo os Estados confrontam-se, em geral, com o dilema de por um lado precisarem de responder às crescentes
expectativas e exigências feitas à Escola e, por outro lado, prevalecerem as teses da menor intervenção estatal e da diminuição dos impostos
cobrados.
Nesta intervenção procura-se caracterizar a evolução do financiamento da Educação em Portugal e proceder a uma análises tendo em conta
as influências e as condicionantes globais e nacionais existentes. Refere-se o histórico subfinanciamento do ensino português e reflecte-se
sobre as críticas de alguns sectores de opinião quanto ao facto de a despesa com a Educação se ter aproximado, no final da década de 90, dos
níveis médios da OCDE.
Traça-se um quadro das perspectivas internacionais sobre a Educação, apresenta-se a actual situação da União Europeia nesta matéria e
abordam-se as perspectivas educacionais da OCDE, nomeadamente para Portugal. Da análise da evolução recente dos orçamentos da
educação reflecte-se sobre a diminuição dos investimentos educativos e a deslocação de verbas entre diferentes rubricas designadamente das
rubricas para pagamento de pessoal para outras que correspondem aos objectivos e metas traçados na União Europeia.

A economia e a sua dimensão financeira ocupam uma visibilidade central nas problemáticas sociais e políticas dos
tempos que correm. Não se trata de ter emergido, agora, um vasto consenso de que a «anatomia da sociedade civil deve ser
procurada na economia » como defendia o velho Marx mas antes porque a própria economia se encarregou de assumir uma
visibilidade e um protagonismo esclarecedores da veracidade da tese desse mesmo autor de que «é o modo de produção da
vida material que condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral» (1973).
Todavia, no campo da investigação educativa, nomeadamente em Portugal, parece-nos que nem sempre se tem
dedicado suficiente atenção aos aspectos da economia da educação. Mesmo no plano da análise das políticas educativas são
relativamente reduzidos os estudos que, por exemplo, abordam as questões do financiamento mesmo quando é reconhecida a
importância que este assume nas opções e nas evoluções ocorridas no campo do Ensino.
É verdade que a análise da realidade educacional portuguesa, nomeadamente no que respeita aos seus aspectos
económico-financeiros , confronta-se com uma significativa dificuldade resultante das estatísticas disponíveis. Os dados
existentes são limitados, com um nível de acessibilidade reduzido e difíceis de trabalhar. De facto parece persistir uma antiga
orientação de dificultar uma visão transparente das realidades educativas não disponibilizando estatísticas actuais, claras e
consistentes. Para as mesmas realidades encontram-se dados significativamente diferentes, a sua organização e agregação
variam constantemente, os próprios indicadores também variam frequentemente e muita informação que seria pertinente não
existe ou não está acessível.
Dir-se-ia existir, em Portugal, uma situação em que as estatísticas educativas são utilizadas de uma forma mais ou
menos incipiente e, sobretudo, para justificar opções políticas previamente determinadas. Ou seja, continua-se a dispor de
uma informação estatística pobre e sob suspeita de algum tipo de manipulação.
Frequentemente para se poder ter alguma informação credível há que recorrer àquela que é disponibilizada pelas
organizações internacionais acerca da realidade portuguesa. Mesmo aí, embora a acessibilidade e o rigor sejam
consideravelmente maiores, continua a verificar-se, que os dados sobre Portugal têm significativas falhas e flutuações para os
mesmos indicadores.
Mau grado estas dificuldades reais quisemos analisar algumas incidências dos processos de globalização educativa
na situação portuguesa actual designadamente no que respeita ao financiamento educacional. Entendemos que este nos
fornece indicadores relevantes acerca das opções, prioridades e estratégias prosseguidas no âmbito da política de Educação
seja no plano nacional seja na articulação deste com as instâncias internacionais.

305
O subfinanciamento do Ensino português parece ter sido uma quase constante desde que o Estado português, em
meados do séc XVIII, foi um dos pioneiros em assumir a responsabilidade pelo ensino popular. Este subfinanciamento
crónico é ainda mais evidente quando comparado com a situação ocorrida noutras países em período análogo.
Em traços gerais, Portugal é um dos países europeus com os mais baixos índices de investimento educativo nos 150
anos que separam o meio do Séc. XIX (1850) e o fim do Séc. XX, período este que foi decisivo na construção dos sistemas
educativos europeus. Na década de1960 Portugal investia na Educação entre 1/4 e 1/3 daquilo que investia a generalidade dos
países europeus situando-se, face a estes, no último lugar das despesas com o Ensino. Foi a ruptura democrática de 1974 que
iniciou uma visível e sustentada alteração nesta situação.
A evolução das despesas com a educação, entre 1974 e 2008, pode ser sistematizada no seguinte quadro:

Ilustração 1
Fontes: 1974 a 1996 Teodoro, A (2001); 1997 a 2004: OCDE, Education at a Glance; 2005 a 2008 Orçamento de Estado.
Nota: Os dados relativos a 2005, 2006,2007 e 2008 não incluem as despesas com o Ensino Superior. Figuram aqui a título meramente indicativo e, para poderem
ser comparados com os dados anteriores, teriam que ser acrescidos em cerca de 1% do PIB per capita.

Verifica-se que a II Republica, nascida da revolução de Abril, aumentou a parte da despesa pública dedicada à
Educação ainda que com oscilações sensíveis ao longo de trinta anos. Relativamente à relação dessa despesa com o Produto
Interno Bruto (PIB) per capita regista-se uma subida mais ou menos constante que quase quadruplicou neste período
Quanto aos anos mais recentes a OCDE apresenta Portugal na quinta posição entre os países que mais aumentaram
as suas despesas com a Educação entre 1995 e 2001.
Todavia, no período seguinte, esse crescimento parece regredir consideravelmente, remetendo o país para a 17ª
posição quanto ao conjunto do crescimento no período compreendido entre 1995 e 2004 De facto entre 1995 e 2000 Portugal
tem um aumento de investimento dentro do seis melhores mas entre 2000 e 2004 tem o pior crescimento.
Isso é claramente visível no seguinte gráfico da OCDE

Ilustração 2

Esta quase paragem no crescimento do investimento na Educação teve provavelmente origem em várias razões. As
dificuldades orçamentais e as medidas decorrentes da subordinação ao "Pacto de Estabilidade e Crescimento" da U.E.
influíram neste processo, assim como a mudança de governo ocorrida em 2002. Todavia parece importante considerar algum
discurso político-ideológico que se afirmou, em Portugal, neste período e que teve importância na fundamentação de medidas
de desinvestimento financeiro na Educação.
Correspondendo ao propósito de limitar as despesas com o sistema educativo foi produzida uma retórica, que
subsiste ainda hoje, assente essencialmente em dois argumentos, o primeiro que Portugal investe muito na Educação, como se
fosse um país europeu rico e, o segundo, que os resultados educativos não correspondem a esse elevado investimento. Alguns
exemplos:
Joaquim de Azevedo, antigo secretário de Estado da Educação, membro do "Compromisso Portugal" e
coordenador do Gabinete de Estudos do PSD para a Educação, no Verão de 2001 insurgia-se contra os gastos com a
Educação.
Por um lado, preocupa tanto cidadãos como partidos políticos o facto da despesa pública em educação e formação
estar a crescer a um ritmo muito rápido, sem que haja indicações fiáveis sobre os necessários ganhos de qualidade (…) Por
exemplo: entre 1990 e 2000, em Portugal, triplicou a despesa pública com a educação, passando de 420 milhões de contos
para mais de 1 .200 milhões de contos, tendo entretanto diminuído o número global de alunos. Que significado teve este
aumento brutal da despesa pública em educação? (Azevedo, 2001)
Entretanto director, José Manuel Fernandes escreveu em 5 de Dezembro de 2001.
De imediato salta à vista que o problema português não é um problema de recursos. Portugal gasta, por cada aluno,
mais do que boa parte dos países com que nos comparamos, e obtém resultados bem piores. O que quer dizer que desperdiça.
O que quer dizer que podia gastar menos e saber mais, como a Irlanda e a Coreia. Fazer aumentar as despesas em Educação,
como foi bandeira inicial da actual maioria, não é solução: é mais importante saber gastar melhor o muito que já se gasta.
(Fernandes, 2001)
Consequentemente quando assumiu a função de ministro da Educação David Justino ilustrava a situação, em
entrevista ao Diário de Notícias de 28 de Abril de 2002, nestes curiosos termos:
Tenho uma visão muito racional da educação. O anterior Governo tratou a educação como uma amante caprichosa,
daquelas a quem se dá dinheiro para estar calada. Foi assim que trataram o ensino: deram-lhe verbas para estar calado. O
saldo desses seis anos não é positivo: a situação está mais calma, mas o preço que se pagou foi o da desqualificação.
Uma análise atenta da realidade não parece, no entanto, coincidir com as teses sobre o despesismo na educação.
De facto considerando-se a despesa pública portuguesa com a educação em percentagem do PIB português por
pessoa verifica-se que, tanto os dados da OCDE como os do Eurostat, colocam Portugal, entre 1997 e 2004, um pouco acima
da média dos países da U.E. e da OCDE.
Todavia, como tem repetidas vezes salientado António Nóvoa essa situação decorre em grande parte do facto de o
PIB per capita português ser dos mais baixos da Europa.
Mais rigoroso é verificar qual a despesa que Portugal tem com cada aluno (desde a educação pré-escolar até ao
ensino superior) comparativamente com a média da OCDE (em USD convertidos para o mesmo padrão de poder de
compra).
Estes dados permitem comparar a despesa que Portugal tem, em cada ano, com a média da OCDE.

Ilustração 3
Podemos, assim, verificar que Portugal continua a investir anualmente, em cada aluno, significativamente menos do
que a média dos países da OCDE.
Tanto em 2004 como em 2003 Portugal, quanto a este indicador de despesa por aluno, ocupava o 23º lugar, em 34
países, com uma despesa por aluno inferior a metade da realizada pelos EUA
Ilustração 4

Utilizar a debilidade do PIB português para argumentar contra um hipotético elevado investimento na Educação
não parece ser adequado embora, como referiremos mais adiante, possa corresponder a uma tentativa de superação de um
dilema essencial das teses neo-liberais para a Educação.
Neste quadro julgamos que não é verdadeiro e, muito menos, útil estabelecer uma relação imediatista e mecânica
entre investimentos, pretensamente elevados e resultados escolares considerados insuficientes.
Os próprios estudos da OCDE, incluindo os do PISA, têm evidenciado que existe uma forte correlação entre os
resultados obtidos nos testes e o nível educativo e cultural das famílias de origem dos alunos e que, nesse aspecto, Portugal é
ainda um país bastante atrasado o que, certamente, contribui muito para a posição ocupada pelos alunos portugueses nos
resultados desses testes.
Mas o PISA também evidencia uma correlação entre o gasto por aluno na Educação e os resultados obtidos. Só que
o faz numa perspectiva inversa daquela que tem recorrentemente sido utilizada pelos que defendem a contenção dos
investimentos na Educação
Existe uma associação positiva entre o desempenho médio dos alunos de cada país e o rendimento nacional ou o
gasto por aluno nesse país. Se ajustássemos o desempenho médio de cada país àquele que seria de esperar se as condições
sociais e económicas fossem médias, Portugal melhorava substancialmente a sua posição relativamente aos restantes
participantes. (Gabinete de Avaliação Educacional, 2004)
Provavelmente para compreendermos a motivação dos que defendem a tese dos gastos “caprichosos” com a
Educação e que acentuam a visão negativa dos resultados obtidos pelos estudantes portugueses teremos que olhar para o
contexto global em que estes discursos se inserem.

O contexto global
Esse contexto é hoje especialmente marcado pela evolução ocorrida desde que, nos anos 80, Thatcher e Reagan,
depois da experimentação dos "Chicago Boys", no Chile do ditador Pinochet, contribuíram decisivamente para o triunfo do
"Consenso de Washington". Esta corrente neo-liberal veio a ter um papel determinante na evolução económica até ao final
do Século XX fazendo aplicar, nomeadamente através da acção das principais organizações internacionais, as suas regras de
disciplina fiscal com limitação dos deficits públicos, de redução dos gastos públicos centrados quase exclusivamente em
infra-estruturas, saúde e educação, de reforma tributária com maior incidência nos impostos indirectos e mínima
progressividade nos directos, de liberalização financeira com afastamento dos Estados deste âmbito de actuação e sem
restrições às instituições financeiras internacionais, de taxas de câmbio competitivas, de abertura comercial, de investimento
estrangeiro directo sem restrições, de privatização das áreas de intervenção estatal, de desregulamentação económica e social
assim como de mercantilização da propriedade intelectual.
A aplicação destes princípios, estreitamente associada à actual fase histórica da globalização, saldou-se,
nomeadamente, pelo aumento da pobreza e da desigualdade no Mundo numa dimensão que só não é mais visível porque a

308
China e a Índia (exactamente dois países que, no essencial, não seguiram a ortodoxia neo-liberal) contrariam esta tendência,
pela crescente dependência das economias nacionais das dinâmicas regionais e mundiais, pelo crescimento do desemprego e
da precariedade laboral, pelo acelerar do endividamento da generalidade dos países, pela estagnação do crescimento
mundial e pelo acentuar de conturbações financeiras, económicas, sociais e ambientais.
Este foi o período a que William Easterly, Professor da Universidade de Nova York que trabalhou no Banco
Mundial entre 1985 e 2001 chamou a esse período " as décadas perdidas" o qual conduziu, directamente, para o descalabro
financeiro que estamos a viver e cujas consequências provavelmente virão a ser de bastante gravidade.
No domínio da Educação as perspectivas neo-liberais corporizaram um conjunto de orientações e práticas que têm
tido uma influência decisiva no evoluir dos sistemas educativos.
A redução da importância e do direito à Educação essencialmente às suas implicações económicas é um traço que
enforma muitas das perspectivas predominantes acerca do Ensino e da Formação. A visão da Educação como uma
necessidade do crescimento económico e um benefício sobretudo pessoal e não como um direito humano e uma dimensão da
cidadania associa-se, em geral, à preocupação com as taxas de rentabilidade que a Educação pode proporcionar. Essa
rentabilidade, na linha das teorias do "capital humano", tem uma dimensão que beneficia mais a sociedade quando se refere à
Educação Básica mas que tem um benefício maior para os indivíduos singulares quando se reporta ao Ensino Superior.
Entretanto a pressão, evidenciada com o "Consenso de Washington" para diminuir os impostos e restringir as
despesas do Estado tem uma consequência directa nas dificuldades de financiamento dos sistemas educativos. As respostas
propostas pelas instâncias do dogma económico e político hegemónico são diversas e têm algumas flutuações na sua
aplicação mas, no essencial, apontam para a aquisição de uma maior eficiência nos gastos com a Educação, no aumento do
investimento privado (pessoal e empresarial) na Educação e na diminuição em despesas com pessoal (professores, quadros e
administrativos dos serviços centrais, funcionários de apoio às escolas, etc).
Simultaneamente com este ascenso da globalização educativa marcada pelos princípios económicos do neo-
liberalismo, Portugal tem conhecido nos últimos anos um acentuado processo de unionização também no campo educativo.
Queremos significar com a utilização deste conceito, enunciado por António Nóvoa, que as políticas educativas prosseguidas
em Portugal integram-se e são crescentemente influenciadas pelas políticas tendencialmente federativas da U.E.
Esta acentuada unionização das políticas educativas não se processa à margem da intervenção de outras instâncias
mundiais. Pelo contrário a integração das políticas educativas no quadro da U.E. tem também significado, por essa mesma via
ou numa base bilateral, um crescente entrosamento educacional com algumas instâncias internacionais nomeadamente a
OCDE e o Banco Mundial (BM).
Certamente que as interacções que crescentemente se têm vindo a estabelecer no plano educativo quer no âmbito da
U.E. quer na relação com outras agências internacionais, não se processam de forma linear, pois elas são mediadas por um
conjunto complexo de factores nomeadamente, no plano nacional, pelas opções e actuações do Estado e pela influência
exercida pelas forças económicas, políticas e sociais em presença.
Todavia, no quadro de uma "agenda globalmente estruturada para a Educação", cuja existência Roger Dale têm
evidenciado, julgamos que Portugal tem conhecido no período histórico recente uma evolução que conduziu a um sensível
acentuar do seu "seguidismo" face às agendas educativas, sobretudo, da U.E. e da OCDE.
Em traços gerais, que não cabe aqui aprofundar, diríamos que no período que medeia entre a aprovação da Lei de
Bases do Sistema Educativo (1986) e o final do Século XX Portugal prosseguiu com uma agenda de política educativa
essencialmente própria que, não obstante contradições diversas, respondia às necessidades de recuperação do atraso
educativo, sua expansão e valorização.
Se, por um lado, na política económica desse período, foram adoptadas orientações inequivocamente neoliberais
(de desregulação, de privatização, de desmantelamento do sector empresarial estatal, de abertura ao mercado, de
vulnerabilização dos direitos ligados ao trabalho), por outro, na política educativa, foi possível tomar decisões em relativo
contraciclo com a ideologia neoliberal e, em alguns casos, como o do ensino básico, chegaram a ser mesmo decisões
congruentes com a expansão de direitos (ainda) referenciáveis ao modelo de estado-providência (Afonso, 2001 p.41)
É, essencialmente, a partir de 2000 que se assiste a uma ofensiva ideológica de um conjunto de forças diversas,
directa ou indirectamente ligadas aos interesses económicos, que defendem uma determinada agenda para a Educação.
Por um lado é um conjunto de iniciativas mais ou menos articuladas que usando o leitmotif da crítica ao "eduquês"
assumem como temas centrais, nomeadamente, o "rigor" com a maior mensurabilidade dos processos educativos, o "esforço"
na aprendizagem com o crescente recurso a exames, o redireccionamento do papel do Estado essencialmente para a função de
avaliador do sistema, a austeridade e a tecnicidade didácticas a par da racionalização de custos. Esta corrente teve expressão,
eventualmente mais retórica do que efectiva, no governo da Educação portuguesa entre 2002 e 2004.
Por outro lado emerge um discurso mais articulado com os interesses económicos directamente referenciados ao
ideário neo-liberal que defende um conjunto de reformas estruturais para a Educação portuguesa.
Dentre estas destaca-se (i) "alterar o papel do Estado" com a "separação do Estado enquanto prestador de serviços
de educação do Estado regulador e garante da qualidade do sistema", (ii) "reforçar o papel das escolas no quadro do binómio
mais autonomia/mais responsabilidade", (iii) "avaliar o desempenho do sistema", (iv) "promover a Liberdade de Escolha", (v)
"alargar o acesso ao Ensino Profissional", (vi) "reordenar o ensino recorrente e o ensino de segunda oportunidade para os
jovens maiores de 18 anos", (vii) "articular melhor as Escolas e Centros de Formação e as Empresas e demais entidades

309
empregadoras". (Joaquim de Azevedo e Joaquim Goes na apresentação das Propostas do "Compromisso Portugal" em 21 de
Setembro de 2006)
É neste quadro que parece acentuar-se a ligação da condução da política educativa portuguesa com as perspectivas
e orientações das instâncias regionais e internacionais ainda que com manifestas ambiguidades e contradições de que se
destaca a afirmação de um discurso político de defesa e de valorização da Escola Pública.
Importa salientar que, no quadro da União Europeia, as matérias relativas à educação e à formação conheceram
uma acentuada modificação na última década, em especial, após a consagração da Estratégia de Lisboa, em 2000.

A União Europeia
Com a definição dessa Estratégia de Lisboa emerge uma nova fase. As questões da educação e da formação
adquirem centralidade nas políticas da União, estabelecem-se áreas prioritárias comuns de intervenção, define-se um
programa articulado e uma estratégia de actuação que possibilita aprofundar o processo de integração educacional mesmo
para além do formalmente previsto no Tratado.
É neste período compreendido entre 2000 e 2004 que são criados os grupos de trabalho de peritos, iniciado o
programa “Educação e Formação 2010” e implementado o “método aberto de coordenação” (MAC). Esta aceleração do
processo de construção do espaço educativo europeu comportou aspectos contraditórios, propiciou tensões diversas e
provavelmente, até 2005, não terá logrado alcançar os resultados pretendidos.
Todavia, parece-nos iniludível que nos anos mais recentes a União Europeia assumiu uma coordenação efectiva e
quase inquestionada de uma política educativa comum e desta como primeira enquadradora das iniciativas educativas
nacionais. Os relatórios bianuais de controle da aplicação da "Educação e Formação 2010" (em
http://ec.europa.eu/education/policies/2010/nationalreport_en.html) são bastante elucidativos sobre o estado actual de
unionização das políticas educativas europeias.
O Programa "Educação e Formação 2010" define um conjunto de objectivos e indicadores comuns aos países da
U.E. cuja execução passou a ser objecto de apertado controle. Os cinco objectivos e indicadores prioritários bem como os
valores e as fontes de referência são os seguintes:

Ilustração 5

Quanto à execução destes objectivos a U.E. faz , em termos gerais, a avaliação de que existe um significativo atraso
na sua concretização.
Portugal é um país que contribui de uma forma negativa para os cumprimento das metas estabelecidas
especialmente na a realização de três dos cinco objectivos da União.
Abandono escolar precoce

Ilustração 6

Quanto ao abandono escolar precoce, cujo valor de referência para 2010 é ficar abaixo de 10%, Portugal
apresentava, em 2000, o valor de 42,6% e em 2006 39,2% e a sua evolução, nestes seis anos, foi inferior à evolução média da
U.E. apresentando-se como um dos países com piores resultados (apenas Malta apresenta piores resultados mas com uma
evolução mais rápida).
Conclusão do ensino secundário

310
Ilustração 7

No que respeita ao terceiro objectivo - conclusão do ensino secundário, o valor de referência para 2010 é de 85%
mas Portugal encontra-se muito longe dessa meta.
Em 2000 a sua percentagem de conclusões do ensino secundário era de 43,2% e, em 2006, passou para 49,6%
sendo este o pior resultados da U.E.
Aprendizagem ao longo da vida

Ilustração 8

Quanto ao objectivo 5 - participação em acções de aprendizagem ao longo da vida, o valor de referência para a U.E.
em 2010 é de 12,5%. Portugal apresentava o valor de 3,4% em 2000 e de 3,8% em 2006
Face a este panorama parece constituir prioridade educativa do governo português contrariar o abandono escolar
(Objectivo 1) e aumentar a formação ao um nível correspondente ao ensino secundário (objectivo 3). Todavia, de acordo
com um estudo quantitativo realizado por Eugénio Rosa, a evolução registada entre o 1º trimestre de 2005 e o 1º trimestre de
2007 indicia que, com o actual ritmo, Portugal necessitaria de cerca de 60 anos para atingir os valores médios da U.E (Rosa,
2008) o que, parece evidenciar a necessidade de um investimento significativo neste domínio.
Em Fevereiro de 2004, na sequência do “relatório Kok” sobre a aplicação da Estratégia de Lisboa, o Conselho e a
Comissão elaboraram um documento que intitularam A urgência das reformas necessárias para o sucesso da estratégia de
Lisboa. Nele consideram que “muito há ainda a fazer em pouco tempo”, pois que “todos os relatórios e indicadores
disponíveis apontam para a mesma conclusão: se se pretende atingir os objectivos em matéria de educação e de formação, o
ritmo das reformas terá que ser acelerado. Subsistem ainda demasiados pontos fracos, que limitam as potencialidades de
desenvolvimento da União.” (Conselho da União Europeia, 2004)
Na realidade a partir de 2005 a União Europeia passou ater um papel bastante mais interventivo e director nas
questões da Educação A integração das políticas educativas nacionais acentuou-se e, objectivamente, dão-se passos para a
convergência dos sistemas educativos.

Recomendações da OCDE
Ao analisar-se a evolução das despesas educacionais em Portugal parece ser também relevante considerar as
perspectivas da OCDE particularmente as suas recomendações para Portugal.
De facto o "Economic Survey of Portugal 2006" publicado em Abril desse ano traça um quadro bastante elucidativo
acerca das perspectivas daquela agência internacional para a educação portuguesa. É certamente um documento de muito
interesse, merecedor de uma análise detalhada. O carácter quase-impositivo de soluções globalmente preconcebidas, a
fragilidade e parcialidade do conhecimento evidenciado acerca das realidades nacionais a par do enorme "auto-
convencimento" implícito na visão "externa" que propõe sobre a realidade educativa portuguesa são aspectos, entre outros,
merecedores de uma atenção que ultrapassa muito as possibilidades desta intervenção.
Todavia, há um conjunto de análises e recomendações que emergem dos dois capítulos que este "Exame" dedica às
questões educativas que merecem ser referidas à luz das suas implicações para o financiamento educativo.
Neste documento a OCDE considera que melhorar a "performance" do sistema educativo constitui o segundo, de
quatro, dos maiores desafios estratégicos a enfrentar por Portugal. Ainda que reconheça que o" ponto de partida" para a fase
recente do sistema educativo foi muito mais atrasado que da generalidade dos países, acentua que os resultado obtidos pelos
aluno (PISA) são fracos e que o abandono precoce do sistema é muito elevado o que, assegura, «não decorre de uma falta de

311
recursos atribuídos à educação mas da ineficiência e má alocação nas despesas bem como das fragilidades da formação dos
professores e dos directores das escolas».
Ao analisar o que considera ser um fraco desempenho dos alunos portugueses reconhece que os factores sociais
são essenciais
O baixo nível, à partida, da população portuguesa (como está reflectido na muito baixa percentagem das gerações
mais velhas , incluindo a de 35-54 anos de idade, que completou o ensino secundário) tem sido o maior obstáculo para a
realização de progressos na educação. Em 2003, 62,8% dos alunos com 15anos avaliados pelo PISA tinham a mãe que não
havia completado o ensino secundário (25,7% na OCDE) . Os resultados do PISA também mostram que as variáveis sócio-
económicas (estatuto ocupacional dos pai, nível educativo dos pais, etc) contam em 21% para a variação dos resultados dos
estudantes, o que é uma das maiores percentagens na OCDE. Uma vez introduzida a correcção relativa à educação dos pais,
os resultados obtidos pelos estudantes portugueses no “ranking” do PISA são comparativamente bons.
Apesar deste reconhecimento das influências sociais é na melhoria da "performence" das escolas que a OCDE
centra a sua atenção defendendo a necessidade de o Estado "gastar melhor" as verbas orçamentadas para a Educação. Um
aspecto que lhe merece atenção é o desperdício de recursos com a rede escolar onde proliferam pequenas escolas com menos
de 10 alunos. O outro ponto a que dedica bastante atenção é o da elevada proporção de gasto com os salários dos
professores.
A afectação geral dos recursos não está optimizada. Apesar do nível da despesa com a educação básica e secundária
estar ao nível dos outros países da OCDE um aspecto saliente nas despesas educativas em Portugal é que na sua maioria
destina-se a despesas correntes e, a maior parte das despesas correntes na educação básica e secundária vai para os salários
dos professores. A despesa salarial representa 93,4% das despesas totais (comparável com 74,4% em média na OCDE) (Fig
3.7). Como resultado, outros itens da despesa que são essenciais para a qualidade do ensino estão bastante abaixo da média
da OCDE. As despesas correntes não salariais pesam apenas 3,2% na despesa total (contra uma média da OCDE de 17,4%) e
as despesas de capital contam apenas com 3,4 % da despesa total (contra uma média na OCDE de 8,2%) Portanto muitas
escolas não têm laboratório, falta-lhes material de ensino e potentes computadores e, por vezes, confrontam-se com
condições pobres para a aprendizagem (por exemplo, não têm alimentação) . Dois factores contribuem para o elevado nível
de despesas salariais. O número de alunos por professor está abaixo da média da OCDE. Além disso, apesar do salário inicial
dos professores (medido em termos da paridade do poder de compra) está abaixo da média da OCDE ele sobe rapidamente
com a experiência dois níveis acima da média (fig 3.8). Em geral, em relação ao rendimento per capita, os salários estão 9%
acima da média dos países da OCDE (p.71)
Na realidade esta atenção aos salários dos professores parece decorrer mais da sua proporção na despesa geral com
a Educação do que do próprio valor desses salários. A OCDE acentua que os salários, na Educação Básica e Secundária,
representam 93,4% das despesas com a Educação por comparação com a média da OCDE de 74,4% para essas despesas.
Todavia, este dado não parece corresponder com rigor à realidade portuguesa pois, consultados os Orçamentos do
Ministério da Educação e os Orçamentos de Estado, os valores apresentados para as despesas com o pessoal dos "ensinos
não-superior" são de 83,4%, 82,5%, 82%, 82,2%, 80,1% e 77,1% nos anos compreendidos entre 2003 e 2008 o que, sendo
elevado, é consideravelmente diferente do referido pela OCDE. Este “pequeno” erro da OCDE certamente mereceria uma
análise aprofundada pois parece-nos que seria de muita gravidade se ele resultasse de uma propositada deturpação para
induzir uma determinada orientação pré-concebida.
Mas, também no que respeita ao nível comparativo dos salários dos professores julgamos que seria acertado haver
uma análise mais aprofundada da realidade por forma a não se verificar a difusão de ideias não totalmente conformes com a
realidade. Pelos próprios dados divulgados pela OCDE neste seu relatório (cf. gráfico seguinte) podemos verificar que os
salários dos docentes , no início de carreira, estão em 24º lugar, em 30 países, sendo apenas mais elevados do que os dos
professores da Nova Zelândia, do México e de quatro países do antigo "bloco da influência soviética". Após 15 anos de
serviço, portanto a meio da carreira, o salário dos professores portugueses continua a ser dos mais baixos da OCDE (20º
lugar) e apenas melhora significativamente no fim da carreira o que provavelmente decorre de se tratar de uma carreira mais
longa do que a generalidade das outras e com os impulsos salariais mais significativos nos dois últimos patamares (8º, 9º e
10º). Um estudo rigoroso teria que considerar quanto é que efectivamente os professores auferem ao longo de toda a sua
carreira e não apenas olhar para o seu ponto mais elevado para daí retirar conclusões, porventura precipitadas.

312
Ilustração 9

Naturalmente que, também aqui, se estes dados forem aferidos em função do PIB , que é, no caso português,
reconhecidamente muito baixo , passaremos a constatar situações bastante estranhas com os professores portugueses a
auferirem elevadas remunerações, quase ao nível dos docentes mexicanos e acima dos "baixos vencimentos" dos professores
luxemburgueses ou suiços. Com esta distorção das realidades salariais situamo-nos na mesma lógica que considera perdulário
um pobre quando compra uma lata de salsichas e financeiramente equilibrado um rico que se abastece quotidianamente com
bifes do lombo.
É neste quadro que a OCDE considera, numa curiosa sugestão, que «uma mudança radical na estrutura das
despesas é difícil a curto prazo, já que os professores graças ao seu actual estatuto, não podem ser despedidos». Então, propõe
a adopção de medidas para aumentar o número de alunos por professor e que sejam feitas alterações no sistema de promoção
dos professores.
Outras das áreas a que o "Exame" da OCDE dedica especial atenção são a formação profissional, a formação dos
docentes e a descentralização. O incremento da formação vocacionada para responder às necessidades das empresas é visto
como a via desejável para contrariar o abandono escolar e alargar a frequência do ensino secundário por contraponto ao
alargamento da escolaridade obrigatória a que a OCDE se opõe («Isso não parece apropriado. Só um pequeno número de
países da OCDE têm 12 anos de escolaridade»). A alteração da formação, inicial e contínua, dos professores é considerado
essencial a par do «enfoque nos resultados (outcomes) e do pôr de pé um bom sistema de avaliação e de prestação de contas
(accountability), essenciais para a eficiência». A descentralização é também considerado um objectivo essencial o que, neste
"exame" da OCDE, significa (i) reforçar o papel das instâncias regionais, (ii) rever o papel e as carreiras dos directores
(principals), (iii) preparar melhor os professores para este novo ambiente em que «o sistema das suas carreiras e de
promoções deve ter em conta a sua iniciativa e uso efectivo da autonomia», (iv) valorizar o papel das equipas pedagógicas e
consequente fixação dos professores, (v) explicar melhor as reformas educativas e (vi) divulgar às famílias as possibilidades
das escolas para que estas possam exercer pressão sobre aquelas.
Em síntese a OCDE apresenta ao governo português 18 recomendações para a Educação :
Continuar a racionalização da rede escolar.
Encontrar um melhor equilíbrio entre as despesas salariais e não salariais.
Adoptar medidas mais radicais para cortar nas despesas salariais para gastar mais nos itens não salariais (…)
Continuar a reforçar a formação inicial e em serviço dos professores (…)
Desenvolver a educação vocacional e técnica
Continuar a modernização do currículo em todos os níveis e monitorizá-lo de perto (…)
Desenvolver e fortalecer os serviços de orientação e aconselhamento profissional para os estudantes
Reformar o sistema de avaliação dos professores e utilizá-lo para as promoções.
Incrementar uma avaliação mais sistemática sobre a concretização das políticas e programas.
Garantir que os resultados da avaliação são utilizados para influir nas decisões políticas, na gestão das escolas e nas
escolhas dos utilizadores.
Garantir que as repetências deixam de ser o instrumento preferido para lidar com os que têm baixos resultados.
Desenvolver ferramentas para identificar estudantes em risco de falhanço escolar
Considerar outras soluções para reduzir a segregação dos alunos pelo seu backgroud sócio-económico
Melhorar a selecção, a formação e as funções dos directores das escolas
Recompensar o uso da autonomia nas promoções dos professores e dos directores
Formar os professores para terem mais iniciativa e fazerem efectivo uso da sua autonomia nas salas de aula e nos
projectos escolares.

313
Tornar mais eficientes os conselhos pedagógicos e promover actividades colectivas dos professores
Informar os pais acerca das possibilidades oferecidas às escolas para que estes possam pressionar as escolas a usá-
las
As quatro primeiras recomendações são as que a OCDE relaciona mais directamente com as finanças educativas
agrupando-as no propósito de «assegurar um melhor valor para o dinheiro»
É neste contexto global que interessa olhar para a evolução ocorrida nos últimos anos em Portugal.

A situação portuguesa
Olhando os dados de financiamento da Educação no período mais recente obtemos algumas indicações relevantes.
Importa reafirmar que os dados apresentam algumas variações conforme os documentos consultados ainda que sejam, em
geral, consistentes entre si. Utilizámos como base os Relatórios dos Orçamentos de Estado e os Orçamentos do Ministério da
Educação.
Os Relatórios dos Orçamentos de Estado contém a indicação da despesa com a "Função Educação" que engloba
todas as despesas do Estado com a Educação em todos os níveis de educação e ensino. Se analisarmos a despesa executada
em cada ano com esta Função verificamos a seguinte evolução

Ilustração 10

As despesas com a função Educação, em termos reais (considerando o valor da inflação indicado pelo INE e, para
2008, pelo Banco de Portugal) cresceram até 2002 tendo vindo a diminuir consideravelmente desde então.
Assim a variação anual verificada neste período de tempo teve uma regressão especialmente acentuada nos três
últimos anos. Importa, no entanto ter em conta, que os valores relativos a 2007 e 2008 são previsões enquanto os anteriores
correspondem ao efectivamente realizado.
A variação anual deste valor pode representar-se no seguinte gráfico

Ilustração 11

Estes dados parecem ser consistentes com as despesas do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior (nas rubricas relativas ao ensino superior) constantes do Orçamento de Estado e aferidas com
os Orçamentos do M.E.
Ilustração 12

Também aqui as variações anuais revelam o mesmo padrão. Um crescimento sensível até 2001 e um decréscimo
nítido a partir de 2002 apenas contido no ano de 2005.

Ilustração 13

Correspondentemente o peso das despesas com pessoal no conjunto das despesas do Ministério da Educação baixou
entre 2003 e 2008 de 83,4% para 77%.
Esta evolução das despesas com pessoal poderia ter como explicação possível um eventual decréscimo do número
de professores os quais constituem o essencial do pessoal do Ministério da Educação.
Todavia as estatísticas disponíveis no”site” do Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação não comprovam
esta hipótese. De facto, considerando o período entre 2003 e 2007, terá existido um ligeiro decréscimo no número de
docentes da Educação Pré-escolar (de 106.44 para 101.23) e do 1º CEB (de 34.516 para 31.209) mas nos restantes ciclos
houve um aumento no número de docentes pelo que globalmente, em todo o Ministério da Educação, o número de docentes
aumentou de 152.340 para 156.522.
Assim, a significativa diminuição verificada nas despesas com pessoal na Educação, num período em que existem
mais cerca de 4.000 professores parece só poder ser explicada com a existência de uma significativa diminuição dos salários
reais dos docentes e outro pessoal da Educação.
Os dados parecem mesmo indicar que esse é o factor determinante para a diminuição global das despesas com a
Educação.

Ilustração 14

Os Orçamentos por Acções do Ministério da Educação fornece-nos mais alguns dados acerca da evolução das
despesas nos últimos anos. Verifica-se que as únicas acções que tiveram algum reforço financeiro são aquelas que dizem
respeito às chamadas “reformas” incrementadas pelo governo. Todas as demais diminuíram consideravelmente.
Poderíamos pensar, se a ingenuidade nos fosse consentida, que a hipervalorização que tem sido feita da
percentagem da despesa com a Educação que está afecta ao pagamento dos professores também se baseia num insuficiente
conhecimento da realidade. De facto a percentagem do orçamento educativo necessário para os salários dos professores é
ligeiramente (1 ou 2%) acima da média da OCDE mas isso tem bastante a ver com o facto de o Orçamento educativo
português ser, em termos reais, significativamente inferior à média da OCDE. Conforme verificámos anteriormente só
quando esse orçamento é relacionado com o baixo PIB per capita português é que Portugal parece ocupar uma situação média
de financiamento educativo.
No entanto o discurso preponderante nos anos recentes tem apontado os vencimentos dos professores como um
factor central no bloqueio do progresso educativo. No dizer de José Manuel Fernandes, director do “Público”, defendia, em
2001, a necessidade de «suspender as progressões automáticas, proceder à avaliação (das escolas e dos profissionais),
distinguir os bons dos maus, premiar os que merecem e quebrar a engrenagem infernal que faz crescer os custos sem
correspondência nos resultados é o mínimo que se poderia exigir a qualquer ministro da Educação »
Igual visão parece ter tido a OCDE que, como referimos anteriormente, recomendou expressamente , em 2006, a
Portugal «medidas radicais para cortar nos salários» ainda que fundamentando-se num valor global desses salários mais de
10% acima da realidade.
Consequentemente, conforme é evidenciado pelos dados orçamentais, os salários reais dos professores tiveram uma
descida muito significativa nos últimos anos. Com isso terão sido poupadas verbas significativas já que noutras áreas parece
ser bastante difícil conseguir “ganhos” acrescidos para o sistema.
Provavelmente, na linha das recomendações da OCDE, algumas verbas podem ainda ser poupadas com a redução e
racionalização da rede escolar mas isso é muito dificultado nomeadamente nos 2º ciclo e 3º ciclos do ensino básico em
virtude da existência de uma pluridocência alargada. Encerrar mais escolas do 1º ciclo e Jardins de Infância provavelmente já
não poderá libertar muito mais verbas relativas ao pagamento dos respectivos professores e comporta outros custos
(transportes, instalações).
Diminuir o insucesso escolar, como também recomenda a OCDE, pode proporcionar algumas economias mas essa
não parece ser uma via fácil de executar ou com resultados de curto prazo além de que poderá contribuir para diminuir o
abandono escolar o que, olhando apenas para os aspectos financeiros, pode acarretar acréscimos na despesa.
Também outras medidas de eficácia, preconizadas quer pela U.E. quer pela OCDE, nomeadamente a mobilização
de investimentos privados (das famílias, das comunidades ou de empresas) parecem de difícil concretização designadamente
nos níveis de educação não superior. Assim como difícil parece ser conseguir rentabilizar recursos por via da
contratualização de orçamentos com as escolas por forma a que estas possam acrescê-los com a obtenção de receitas próprias.
Neste panorama em que não é fácil conseguir reduzir despesas as possibilidades de opção dos governos parecem
reduzidas.
Aliás, um aspecto que julgamos saliente nesta problemática é, precisamente, a cada vez mais reduzida margem de
autonomia para que os países definam as suas políticas educativas o que, no caso português parece bastante evidente.
Como diz, de forma inequívoca, a Comissão da U.E. «os objectivos e indicadores nacionais, (...) terão em
consideração os objectivos e valores de referência europeus. (….) Os princípios comuns, as orientações e recomendações
acordados à escala europeia constituem pontos de referência para a definição das reformas nacionais» (Conselho Europeu
(Educação), 2008p.18). Para tanto, como explicitámos anteriormente, a U.E. prossegue com um detalhado processo de
unionização das políticas educativas que inclui um apertado processo de controle da sua execução.
Também a OCDE considera que «o sistema educativo (português) não foi capaz de limitar a repetição dos baixos
índices de escolarização de uma geração para a seguinte e de fomentar uma mobilidade inter-geracional tão rapidamente
como outros países» e que «os baixos resultados não resultam da falta de investimento na educação mas da baixa eficiência
do sistema». Concomitantemente apresenta um quadro pormenorizado de recomendações (v. p. 46) e, apesar de reconhecer
que «a estratégia das autoridades educativas vai na direcção certa» considera que as escolas fazem inadequado uso da sua
autonomia o que «reflecte, em grande parte, uma falha de liderança nas escolas o que advém, em especial, da forma como os
directores das escolas são escolhidos e formados bem como da falta de incentivos e informação para que os professores
assumam o seu novo papel» pelo que acentua a necessidade «serem feitos esforços para incrementar a avaliação dos sistemas
e canalizar os resultados tanto para os fornecedores dos serviços educativos (professores, directores das escolas) como para
os utilizadores (alunos e famílias)».
Neste quadro a definição e condução das políticas educativas nacionais, designadamente no caso português, parece
cada vez mais cingir-se à execução das orientações das instâncias internacionais também porque estas confluem, objectiva e
subjectivamente, com interesses e perspectivas de sectores específicos, nomeadamente empresariais, da “sociedade civil”
autóctone.
Mesmo que, na gestão de algumas margens de autonomia residuais ou no exercício discursivo, os detentores do
poder político procurem afirmar uma visão educacional própria parece ser difícil prosseguirem uma outra agenda de política
educativa que não aquela que, no essencial, decorre da visão neo-liberal hegemónica.
É por isso que se nos afigura ser, hoje, manifestamente insuficiente analisar a retórica ou mesmo as iniciativas,
mais ou menos dispersas, adoptadas a nível nacional para procurar compreender o sentido da política educativa. É o contexto
global que lhe propícia o essencial da sua racionalidade intrínseca e é deste que emergem determinantes fundamentais.
Ainda que a gestão do financiamento educativo seja matéria importante cujo centro de decisão parece residir na
esfera de poder do governo nacional o que verificamos é que essa autonomia de decisão é muito condicionada.
É neste quadro que parece ser difícil para os governos, nomeadamente para o português, resolver uma das
contradições essenciais da ideologia educativa neo-liberal

316
As agências internacionais mais ou menos fiéis ao "compromisso de Washington" tendem a promover uma retórica
sobre a importância da Educação (ou do capital humano) para o desenvolvimento económico e reconhecem a necessidade de
investimentos nesta área. A União Europeia tem sido prolixa nessa retórica de reforço do financiamento educativo.
Todavia, o ideário neo-liberal, no caso português acentuado pelo espartilho do "Pacto de Estabilidade e
Crescimento", reclama a descida de impostos, a aplicação de regras de mercado ou de quase-mercado aos domínios das vida
social e a diminuição das despesas públicas. Neste quadro os governos teriam que flexibilizar o funcionamento do sistema e
fazer mais e melhor com menos verbas. Em parte isso é o que a U.E. e a OCDE dizem corresponder a ganhar maior eficácia
nas despesas.
Ora, contrariamente ao que vulgarmente é difundido, o sistema educativo português, também em virtude do secular
sub-investimento na Educação, não tem margens significativas de manobra. Como se pode ver pelos dados anteriormente
referidos o essencial das verbas utilizadas assegura as despesas de funcionamento mínimo da educação pré-escolar e dos
ensinos básico e secundário. As verbas para inovações ou para medidas de desenvolvimento curricular são muito reduzidas
assim como o são, efectivamente, as despesas administrativas do sistema.
Então, nestas circunstâncias concretas, como corresponder às orientações e metas globalmente traçadas para o país
sem proceder a um aumento de investimento na Educação ?
A resposta dos governos portugueses nos anos recentes parece ter sido a de poupar nas despesas com os professores
o suficiente para realizar algumas "reformas" mesmo que tal seja dificultado pelo facto de o Ens. Secundário carecer ainda de
se expandir implicando um crescimento no número de docentes.
A análise da evolução das despesas por acções mostra-nos que as “reformas” que mobilizaram algum investimento
entre 2005 e 2008 foram os complementos educativos (ensino de inglês no 1º ciclo), o ensino profissional e as medidas
"Novas Oportunidades" (EFA e CRVCC).
Em conjunto estas três medidas terão custado em 2007 e 2008 cerca de 543 Milhões de Euros (a preços de 2006).
Nos mesmos anos de 2007 e 2008 o Estado poupou relativamente a 2006 (também a preços constantes) cerca de 1099
Milhões de euros em pessoal.
A relação entre os investimentos nestas áreas de política educativa e as economias conseguidas com as despesas de
pessoal nos anos de 2007 e 2008 podem representar-se no seguinte gráfico.

Ilustração 15

Em termos que alguns poderão considerar simplistas mas que julgamos corresponderem à realidade, poderemos
dizer que uma parte significativa dos salários dos docentes portugueses foi mobilizada em favor do cumprimento dos
objectivos educativos (sobretudo os objectivos 1 e 3) traçados pela U.E.
É provável que nos próximos anos a despesa com os professores continue a descer no orçamento da educação pois,
com as alterações introduzidas no Estatuto docente, grande parte dos professores passou a ter uma carreira efectivamente
reduzida em cerca de metade. Mesmo que não se venham a verificar novos congelamentos salariais parece ser claro que o
efeito conjugado da criação de “numerus clausus” para progressão, dos mecanismos de avaliação e da reforma dos
professores no topo da carreira promoverá uma descida do volume de despesa com pessoal.
Mas não é crível que a via de reafectar, tão acentuadamente, as verbas com pessoal para outras medidas, como foi
realizado nos últimos anos, tenha condições para prosseguir. A desvalorização efectiva da profissão docente tem
consequências negativas no que respeita à qualidade educativa (como, aliás, a U.E. reconhece em diversos documentos) e ao
nível da conflitualidade laboral como ficou evidenciado na recente manifestação (8 de Março, 2008) que juntou nas ruas de
Lisboa dois terços (cerca de cem mil) dos professores portugueses.
Provavelmente terá sido atingido um limite a partir do qual qualquer governo, salvo se acontecesse uma situação de
acentuada ruptura social, terá que encontrar novas soluções que, provavelmente, deverão comportar um reinvestimento
financeiro na Educação. Compaginar o cumprimento das metas e das orientações traçadas, nomeadamente a nível da U.E e da
OCDE, para Portugal com um propósito de diminuir a despesa pública, designadamente nos domínios sociais, afigura-se uma
tarefa de difícil viabilidade.
É provável que, neste quadro a verdade, a sobriedade e a concertação constituam elementos mobilizadores e
facilitadores na definição e execução da política educativa.
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Teodoro, A. (2001). A Construção Política da Educação. Estado, mudança social e políticas educativas no Portugal
contemporâneo. Porto: Edições Afrontamento.

A presente intervenção insere-se no projecto de investigação “ Educating the Global Citizen: Globalization,
Educational Reform and the Politics of Equity and Inclusion in 12 Countries. The Portuguese Case ”, que tem o apoio
financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (POCI/CED/56992/2004) e integra-se, também, na Rede Ibero-
Americana de Investigação em Políticas Educativas (RIAIPE) apoiada pelo CYTED.

A Regulação Transnacional das Políticas Educativas: O Papel dos Indicadores de


Comparação Internacional na Construção de uma Agenda Global de Educaçã’

Madalena Mendes
UID-OPECE - Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos
madalena.mendes@netcabo.pt

Carla Galego
UID-OPECE - Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos
cmgalego@gmail.com

António Teodoro
UID-OPECE - Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos
a.teodoro@netvisao.pt

Society’s most important investment is in the education of its people. We suffer in the absence of good education: we
prosper in its presence.

Donald J. Johnston, Secretário-Geral da OCDE

318
Resumo: Neste artigo, os autores, a partir das propostas de Roger Dale, reflectem sobre o papel regulador das organizações internacionais na
construção de uma agenda globalmente estruturada para a educação. Nos contextos da globalização, a OCDE, organização internacional de
pendor económico, tem vindo a assumir uma influência crescente na regulação transnacional do campo educativo através, designadamente,
do desenvolvimento de grandes projectos estatísticos, como Education at a Glance. A partir da análise empírica dos Relatórios Education at a
Glance, produzidos pela OCDE, no período compreendido entre 1993 e 2006, os autores interpelam o papel dos indicadores de comparação
internacional na construção de uma agenda global e na emergência de novas formas de regulação.

Introdução
Nos contextos da globalização, a OCDE, organização internacional de pendor económico, tem vindo a assumir uma
influência crescente na regulação transnacional do campo educativo através, designadamente, do desenvolvimento de grandes
projectos estatísticos, como Education at a Glance. Na senda dos trabalhos de Dale, e a partir da análise empírica dos
Relatórios Education at a Glance produzidos pela OCDE, no período compreendido entre 1993 e 2006, pretendemos
interpelar o papel dos indicadores de comparação internacional na construção de uma agenda global e, simultaneamente,
mapear os seus pressupostos de legitimação.
A finalidade deste artigo é contribuir para um debate sobre as questões relativas à transnacionalização do campo
educativo e ao papel das organizações internacionais, no caso em apreço, da OCDE, na construção de novas formas de
regulação e de governação das políticas educativas.

1. Globalização e Políticas Educativas – Abordagens interpretativas


As relações entre os processos de globalização e as mudanças nos sistemas educativos podem ser analisados a partir
de duas teorias interpretativas: Cultura Educacional Mundial Comum (CEMC), desenvolvida por John Meyer (e pela sua
equipa da Universidade de Stanford, EUA) e Agenda Globalmente Estruturada para a Educação (AGEE), de Roger Dale1.
A primeira perspectiva defende que o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais está construído na base
dos modelos universais de educação, Estado e sociedade rejeitando, assim, os factores distintivos e as criações nacionais
autónomas e únicas. O termo Mundial conota uma sociedade internacional constituída por Estados-Nação individuais
autónomos agregados numa comunidade internacional. Segundo os defensores desta abordagem, as instituições nacionais e o
próprio Estado são modelados por “uma ideologia do mundo dominante” (Dale, 1994) veiculada por normas, ideologias e
culturas universais comuns.
O argumento central dos institucionalistas mundiais é que as instituições do Estado-Nação, e o próprio Estado,
devem ser vistos essencialmente como moldados a um nível supranacional através de uma ideologia do mundo dominante
(ou ocidente), e não como criações nacionais autónomas e únicas. Sob esta perspectiva, os Estados têm a sua actividade e as
suas políticas moldadas por normas e culturas universais. (ibidem, p.136)
A segunda perspectiva, baseando-se em estudos recentes sobre a economia política internacional, admite que as
mudanças ocorridas nos sistemas educativos resultam de uma agenda globalmente estruturada, construída na interface entre
as influências da economia capitalista e os enquadramentos interpretativos nacionais, pelo que os processos de globalização
são desenvolvidos quer a nível nacional, quer supranacionalmente.
Ambas as abordagens - CEMC e AGEE - coincidem na existência de influências externas sobre os processos
educativos e sobre o desenvolvimento de enquadramentos interpretativos a nível nacional e internacional, mas é certo que
correspondem a projectos diferenciados assentes em diversos e divergentes argumentos e pressupostos, sobretudo na forma
como encaram a educação e a globalização e a relação entre ambas.
Acolhendo a perspectiva de Dale, salientamos que o principal argumento diferenciador reside no facto das
influências globalizadoras não conduzirem à convergência entre sistemas educativos nacionais, apesar da partilha de agendas
educativas, tal como é defendido pela CEMC, mas sim, a agendas construídas e reconstruídas supra e nacionalmente,
configurando singularidades e especificidades nacionais.
A AGEE recolhe fundamentos a partir dos estudos de economia política para sustentar que os Estados-Nação têm
que articular os imperativos colocados pelos processos de globalização com o seu posicionamento no contexto internacional.
Sob os auspícios dos constrangimentos e das pressões das relações globais, sobretudo na sua vertente hegemónica
económico-política, “a maior parte das políticas são frágeis, produto de acordos, algo que pode ou não funcionar; elas são
retrabalhadas, aperfeiçoadas, ensaiadas, crivadas de nuances e moduladas através de complexos processos de influência,
produção, disseminação de textos, e, em última análise, recriadas nos contextos da prática (…)” (Ball, 2001, p.102). Tal não
significa que o contexto político-económico global seja determinante, mas que as orientações e medidas políticas adoptadas e
implementadas resultam do processo de entrosamento entre os enquadramentos interpretativos e a mobilização de respostas e
de prioridades face aos recursos políticos, económicos e culturais disponíveis no contexto nacional.
Para Dale (1994),

1
A propósito das relações entre globalização e educação e da regulação e governação em educação, ver Dale (1989, 1994, 2001) e Robertson e Dale (1994).

319
(…) todos os quadros regulatórios nacionais são agora, em maior ou menor medida, moldados e determinados por
forças supranacionais, assim como por forças político-económica nacionais. E é por estas vias indirectas, através da
influência sobre o Estado e sobre o modo de regulação, que a globalização tem seus mais óbvios e importantes efeitos
sobre os sistemas educativos. (p.151)

Uma das formas institucionais mais comummente apontada na construção de uma agenda globalmente estruturada é
a OCDE, organização internacional de pendor regulatório, cujo papel e importância na construção e reconfiguração das
políticas educativas, em termos de legitimação e de mandato, importa analisar.

2. A OCDE – Think Tank, mediador internacional do conhecimento e actor político global

2.1. A OCDE – Background e modus operandi


A OCDE, organização intergovernamental, criada em 1961, sucedeu à OECE, Organização Europeia de
Cooperação Económica, cujo objectivo fundamental era promover a cooperação entre os Estados Membros e coordenar a
distribuição do auxílio norte-americano no âmbito do plano Marshall, através da ajuda na reconstrução europeia do pós II
Guerra Mundial.
Actualmente, a missão da OCDE é alcançar o crescimento económico sustentável e o emprego e assegurar elevados
padrões de vida nos países membros, a par da estabilidade financeira, contribuindo assim para o desenvolvimento da
economia mundial; prestar assistência à expansão económica dos Estados-membros e a outros países no processo de
desenvolvimento e contribuir para o crescimento do comércio mundial numa base multilateral e não discriminatória.
No quadro das suas competências, a OCDE apoia os Governos no exercício de coordenação e definição das
políticas, da comparabilidade de experiências e boas práticas e na busca de soluções para problemas comuns. A OCDE
adopta instrumentos internacionais, decisões e recomendações, para promover regras ou acordos multilaterais necessários
para garantir o progresso dos países dentro de uma economia global. O diálogo, o consenso e a pressão sobre os seus pares
são o verdadeiro centro de actuação da OCDE. Através de processos radicados na transparência, no consensus building, no
peer pressure e no multilateral surveillance (Henry et. al., 2001), a OCDE forma, enforma e conforma as agendas e as
políticas dos Estados. A ligação transversal que permeia a sua estrutura organizativa e a flexibilidade expressa na combinação
de funções de investigação, análise política e administração, a envolver a rede de consultores e investigadores
independentemente dos canais governamentais, ilustram o papel central da OCDE enquanto policy actor (ibidem, 2001).
À pergunta, o que é a OCDE, Henry et al. (2001) respondem com uma mescla predicativa e compósita: Think
Tank, Rich Man’s Club, entidade geográfica, estrutura organizacional, policy-making fórum, rede de governantes,
investigadores e consultores e esfera de influência. Embora reconheçam o carácter de Think Tank desta organização, pelo
facto de ser uma das maiores fontes de dados económicos e sociais do mundo, reunindo análises, controlando tendências e
propalando modelos e previsões, estes autores sublinham a crescente centralidade assumida pela OCDE, enquanto
“international mediator of knowledge and global policy actor” (p.84).
A OCDE, como agência globalizadora e policy player, desempenha um papel fundamental na geopolítica do
conhecimento com influência crescente nas políticas educativas dos Estados, através da construção de uma semântica
discursiva em torno dos imperativos da globalização e da ligação estreita entre capital humano e mercado global.

2.3. A OCDE e o binómio “global economic policy field” – “global educational policy field”
Fazendo jus ao seu carácter de organização de cariz predominantemente económico, a OCDE tem, desde sempre,
subordinado as preocupações com a educação à esfera económica. Na verdade, a emergência da relação entre educação e
crescimento económico, no seio da OCDE, acompanha o aparecimento das Teorias do Capital Humano, enunciadas a partir
da década de 1960, por Schultz (1963, 1971), um dos seus pioneiros clássicos. Nos anos de 60 e 70, a influência da OCDE
nas políticas educativas nacionais foi exercida através de medidas relacionadas com a expansão da escolaridade, com o
planeamento educacional e com a modernização administrativa. A OCDE volta a assumir um papel crucial nas políticas
educativas nacionais, a partir das décadas de 80 e 90, na elaboração das Lei de Bases do Sistema Educativo e no
desenvolvimento de processos reformistas.
No contexto da globalização e da knowledge economy, a OCDE, no seu papel de globalisating agency (Henry et
al., 2001), tem vindo a assumir uma influência, em crescendo, na configuração das políticas educativas e na justificação dos
programas e das reformas educativas, desempenhando um papel central na ligação estreita entre a construção do global
economic field (Bourdieu, 2003) e do global educational policy field (Lingard et. al., 2005)
A importância assumida pela educação, no seio da OCDE, tem vindo a aumentar na razão directa do
desenvolvimento da economia do conhecimento, pelo reconhecimento do seu papel central no alcance de vantagens
competitivas pelas economias nacionais. Na agenda política da OCDE, os indicadores internacionais de comparação dos
sistemas educativos têm-se apresentado como o principal móbil da construção do global educational policy field ou, na
nomenclatura de Dale (1994), de uma agenda globalmente estruturada para a educação.

2.4. A OCDE e os Projectos Estatísticos Internacionais - Education at a Glance

320
É no campo da educação comparada, entendido como processo de construção histórica nas suas ligações aos
espaços de saber e de poder (Nóvoa, 1998), que encontramos o enquadramento para o estudo e análise dos indicadores
estatísticos educacionais desenvolvidos no seio da OCDE. Estes indicadores foram constituídos com a finalidade de apoiar os
Estados membros a clarificar e a comparar as suas próprias posições no âmbito das políticas nacionais, tendo como assunção
aspectos sobre provisão e performance.
O projecto dos indicadores procura dar ênfase à longa tradição na comparação entre países, ao partir do pressuposto
de que os processos educativos e os sistemas educativos são comparáveis. As comparações internacionais, através da
avaliação e do insight sobre o funcionamento dos sistemas educativos, apresentam-se como uma forma privilegiada de
adicionar perspectivas à análise dos sistemas educativos nacionais e como fonte de informação útil para os decisores políticos
e para a tomada de decisão. Os indicadores apetrecham os policy makers com um acervo rico de dados internacionais
contendo informação detalhada sobre os sistemas educativos, os contextos em que são construídos e as relações entre
variáveis educativas e não educativas.
É sobretudo, na última década e meia, que se tem assistido a um crescente interesse multi-dimensional - económico,
político e social - por parte dos Estados-membros, pelos indicadores estatísticos educacionais, que vêem nestes um potencial
instrumento técnico e um forte aliado na promoção de políticas educativas nacionais, capazes de melhorar a qualidade do
ensino e de potenciar o nível competitivo dos países, apresentando a dupla função de mandato e de legitimação. Esta tese
crítica2, defendida, em Portugal, por Teodoro (2003), apresenta como base de argumento, o seguinte:
(…) o recurso ao estrangeiro funciona, prioritariamente, como um elemento de legitimação de opções assumidas no
plano nacional, e muito pouco como um esforço sério de um conhecimento contextualizado de outras experiências e de
outras realidades. Mas, simetricamente, pode-se também considerar que as constantes iniciativas, estudos e publicações
das organizações internacionais desempenham um decisivo papel na normalização das políticas educativas nacionais,
estabelecendo uma agenda que fixa não apenas prioridades mas igualmente as formas como os problemas se colocam e
equacionam, e que constituem uma forma de fixação de um mandato, mais ou menos explícito conforme a centralidade
dos países. (pp.32-33).

Paralelamente a este interesse político pelos indicadores educacionais, assistiu-se também a uma mudança de
paradigma no que diz respeito aos factores impulsionadores do desenvolvimento económico das sociedades. Isto é, a crença
assente no conceito de productivity economic growth, que partia do pressuposto de que a acumulação de bens e produtos
(materiais) conduzia a um crescimento sustentável, deu lugar à ideia expressa pelo conceito de knowledge for long-term
economic growth3, que considera o uso do conhecimento na relação directa com o aumento da produção económica. Neste
sentido, o actual desenvolvimento económico dos países assenta na expansão do conhecimento baseado, em grande parte, nos
indicadores educacionais internacionais.
Como é defendido por Papadopoulos (1994a), o projecto dos indicadores educacionais enquanto instrumento das
políticas educativas, corresponde a uma transformação no papel da OCDE assumindo esta o estatuto de mediador
internacional do conhecimento e o estatuto de actor político global. A OCDE apresenta um longo historial4 em matéria de
informação estatística em educação. No Quadro 1, é apresentada a síntese das preocupações e prioridades da OCDE, em
educação, desde a década de 60 até à presente, que serviram de orientação à construção dos indicadores educacionais.
A atenção da OCDE aos indicadores educacionais antecede a publicação do grande projecto de indicadores
educacionais internacionais que esta organização tem vindo a desenvolver e a divulgar: Education at a Glance. Neste sentido,
o Quadro 1 tematiza as prioridades da OCDE na educação - desde as suas origens até à actualidade - as quais,
consequentemente, se reflectem na construção dos indicadores educacionais. Ressalta-se que, desde o início, as estatísticas
disponibilizadas pela OCDE tiveram sempre como função apoiar os Estados nacionais nas suas decisões a nível da política
educativa.
Na década de 1960 (ver Quadro 1), o planeamento educativo e a atribuição de financiamento para programas de
reforma educativa serviram de leitmotiv para a recolha de informação estatística no seio da OCDE. Por exemplo, foram
recolhidos, dados de cruzamentos nacionais para identificar, a longo prazo, as necessidades do mercado
Quadro 1 –OCDE – A construção de indicadores e as prioridades à educação
Início de 2000
Década de 1960 Década de 1970 Década de 1980 Década de 1990 até à
actualidade
Indicadores de apoio ao Indicadores de medida Indicadores de Indicadores de Indicadores de
planeamento educativo dos contributos da medida da eficácia da testagem e de performance
e ajuda aos políticos na educação na transmissão escola – informações enquadramento em resposta às
atribuição de de conhecimentos, sobre os currículos organizacional demandas da
financiamento ao igualdade de escolares, custos e para o accountability
desenvolvimento de oportunidades, fontes de desenvolvimento

2
Ver ainda Teodoro (2005).
3
Conceitos desenvolvidos pelo Banco Mundial. Ver Derek H. C. Chen and Carl J. Dahlman (October, 19, 2005) The Knowledge Economy, the KAM
Methodology and World Bank Operations. In The World Bank Washington DC 20433.
4
Para uma compreensão mais detalhada sobre a história da OCDE, remete-se o leitor para a obra de Papadopoulos (1994a, 1994b).

321
processos reformistas mobilidade social, financiamento, de trabalho
relacionados com a necessidades da resultados da sustentado,
expansão da economia, aprendizagem, investimento no
escolaridade desenvolvimento tendências no capital humano,
individual e transmissão emprego. life long learning e
de valores. impactos a longo
prazo no
crescimento
económico
Fonte: Adaptado de Papadopoulos, 1994a

laboral, nomeadamente, nas áreas da Ciência e da Tecnologia. Estes dados tinham subjacente a melhoria do
conhecimento público e a avaliação da educação e da ciência para servir de suporte à tarefa de reformar o ensino e a
formação (Papadopoulos, 1994a). É neste período, considerado a idade de ouro do crescimento económico e, no âmago da
OCDE, que as Teorias do Capital Humano ganham destaque no campo das políticas educativas, na medida em que esta
instituição desafiou os países membros a aumentar o investimento na educação como meio de manter o crescimento
económico. Na altura, o apoio prestado pela OCDE ainda não era baseado em comparações estatísticas de performance, isto
porque apenas dispunham de informação resultante de indicadores de input, embora já tivessem na mira questões como
avaliar a eficácia dos sistemas de ensino e medir a eficácia e a eficiência do uso de recursos (Papadopoulos, 1994a).
A década de 1970 (ver Quadro 1) foi marcada por um grande entusiasmo, nos meios académicos, muito
particularmente nas Ciências Sociais, pelas estatísticas em educação e pelas análises quantitativas das fontes de gestão para a
análise dos sistemas e programas orçamentais. A seu favor, tinham já potentes computadores que estavam ao serviço da
OCDE para simulações e previsões económicas. Nessa altura, a ênfase que é dada aos indicadores centra-se na medição do
contributo da educação na transmissão de conhecimentos, na igualdade de oportunidades, na mobilidade social, nas
necessidades da economia, no desenvolvimento individual e na transmissão de valores. É também nesta década, mais
precisamente em 1973, que a OCDE apresenta o quadro geral de indicadores (46 indicadores de input) com a intenção de
medir o impacto da educação na sociedade. Nesta fase, os indicadores apresentados eram orientados apenas para medirem os
inputs (entradas), em educação, o que gerou algumas críticas por parte dos especialistas, nomeadamente, pela ausência de
indicadores de output (resultados), na medida em que reduzia a educação a números. Outra crítica acérrima prendia-se com
questões técnico-metodológicas na recolha e classificação dos dados. Como Papadopoulos (1994a) salientou, as estatísticas
em educação eram tradicionalmente orientadas como inputs e nenhum país mostrou interesse suficiente em se preparar para o
esforço investigativo necessário para os relacionar com indicadores output. O elevado cepticismo sobre a relevância e valor
dos modelos matemáticos em educação, o intenso debate entre as abordagens quantitativas e as abordagens qualitativas
associados a problemas inerentes à recolha de dados e tratamento da informação por parte dos países (e.g., ausência de bases
de informação, fiabilidade e validade dos dados, diferentes formas de recolha de dados) conduziram a que os assuntos
educativos fossem explorados mais em termos conceptuais do que em termos estatísticos. Não obstante, a OCDE publicou
volumes sobre indicadores de input em 1974, 1975 e 1981.
Uma década depois (1980) (ver Quadro 1), e por pressão dos EUA, dá-se um novo passo no lançamento dos
indicadores educacionais. Desta vez, o acento tónico é colocado na eficácia da escola, no que diz respeito, aos currículos
escolares, custos e fontes de financiamento, resultados da aprendizagem e tendências no emprego. Desta iniciativa resulta o
Projecto INES - International Indicators and Evaluation of Educational Systems5, lançado em 1988, pelo CERI, com o
objectivo de realizar trabalho na construção de indicadores baseados em fontes existentes ou em novos dados acessíveis. Este
projecto veio, contra todas as expectativas do CERI, a deter uma grande receptividade política por parte dos países membros
da OCDE, abrindo caminho para a segunda fase do projecto: o desenvolvimento e a construção de indicadores internacionais.
Os anos de 1990 (ver Quadro 1) representam um grande marco de mudança na construção dos indicadores
educacionais de que é prova o relatório anual Education at a Glance, publicado, desde 1992. A década iniciou-se com o
exame de um conjunto de assuntos relacionados com as definições e comparabilidade dos indicadores, no sentido de procurar
resolver alguns dos problemas técnicos relacionados com a organização da recolha e o processamento dos dados, tão criticada
na década anterior. Em termos temáticos, a construção dos indicadores centrou-se em torno das questões de testagem e de
enquadramento organizacional para o desenvolvimento do trabalho sustentado, com especial e crescente ênfase em
indicadores comparativos relativos ao investimento no capital humano, na aprendizagem ao longo da vida e na avaliação dos
impactos, a longo prazo, da educação no crescimento económico. Há por parte da OCDE o reconhecimento explícito da
importância da dimensão económica da educação na valorização da qualidade, equidade e eficácia dos sistemas educativos.
Esta é uma década crucial em termos de mudança patente no extraordinário desenvolvimento dos indicadores em
educação, na passagem dos debates filosóficos e das dificuldades epistemológicas às estatísticas mais fiáveis, no focus em
indicadores de input para indicadores de output, na cobertura de alguns países ao alargamento a quase o mundo inteiro e de

5
Em 1988, eram cinco as redes de trabalho que exploravam indicadores educacionais: sobre circulação de estudantes (Austrália); resultados dos alunos (EUA);
processos escolares (França); custos e fontes (Áustria); e atitudes e expectativas relativamente aos sistemas educativos (Holanda). Em 1990, outra rede foi
constituída, coordenada pela Suécia, com a tarefa de desenvolver indicadores que relacionassem educação e mercado de trabalho.

322
um estatuto meramente experimental a um estatuto central no seio da organização. Segundo Heyneman (1993), este é o
período em que emerge uma nova indústria de educação comparada6, produto de largas negociações e cooperações entre
várias organizações internacionais7 e entre os ministérios da educação de inúmeros países, das quais os indicadores
educacionais comparativos são a expressão mais visível.
Nos primeiros anos da presente década (ver Quadro 1), surge uma paleta de indicadores reagrupada e enriquecida
de modo abordar a qualidade da performance educativa e da oferta de ensino, o investimento na educação, a evolução da
oferta e da procura de formação, a gestão de recursos, a igualdade de oportunidades, etc. A prevalência de indicadores de
performance encontra justificativo nas demandas da accountability. Oakes (1986) havia já sublinhado a importância dos
sistemas de indicadores na medição da eficácia dos sistemas educativos e no seu papel na formulação e avaliação das
políticas.
A acrescentar, também nesta década, o surgimento de uma nova geração de indicadores educacionais orientados
para a medição da performance dos sistemas educativos em termos de desempenho dos alunos de 15 anos, na área da Língua
Portuguesa e da Matemática. Estes indicadores e seus resultados são publicados num novo relatório produzido, no âmbito da
OCDE, chamado PISA – Programme for International Student Assessment - e foram criados para responder às exigências da
accountability8. Alguns destes indicadores estão também presentes no Education at a Glance.
Desta análise história, depreende-se que os indicadores educativos, desde que se constituíram, fazem parte de um
processo em constante transformação, não só no que diz respeito ao seu aperfeiçoamento enquanto instrumento de medida,
como também naquilo que pretendem medir. Será sobre este último aspecto, e centrado no relatório anual Education at a
Glance, que incidirá a análise que se segue, não sem antes se apresentar uma breve definição do conceito de indicador.
Em termos gerais, um indicador educativo descreve os aspectos chave da educação, permitindo avaliar o estado de
“saúde” dos sistemas educativos, na medida em que fornece informações acerca das características significantes dos sistemas
educativos (Ogawa e Collom, 2005). Mas, matematicamente pensando, um indicador educativo é uma medida estatística que
permite descrever, avaliar e monitorizar os fenómenos em educação, quantitativamente, sendo por isso uma medida
“específica, explícita y objetivamente verificable de los câmbios o resultados de una actividad o necesidad” (Morduchowicz,
2006, p.2). No campo da educação, um indicador educativo deve dar conta do progresso do desempenho de determinada
variável, deduzindo-se, por isso, que a missão de um indicador não é somente informativa, mas também desempenha uma
tarefa avaliativa de emissão de juízos de valor. Ou seja, embora, na sua essência, um indicador descreva a situação de um ou
mais sistemas de ensino, espera-se que a sua leitura assinale se o curso dos acontecimentos constitui uma melhoria ou uma
deterioração nos sistemas (Morduchowics, 2006). Dito ainda de outro modo, os indicadores devem prover informação, em
contexto, permitir a análise das tendências e projectar situações futuras. Para que um indicador educacional cumpra a sua
função, é necessário, segundo Ogawa e Collom (2005), que no momento da sua construção, se equacionem cinco
componentes essenciais: descrição, avaliação, monitorização, juízos de valor e relevância política (ibidem, 2005). Neste
sentido, para estes autores, indicadores educacionais são
statistics that describe key aspects of schooling which permit the evaluation and monitoring of schools, programs, and
students. From these activities general assessments (value judgments) of the health of educational systems can be
derived and policy-relevant information provided. (ibidem, 2005, p.5)

Os indicadores educacionais para além da sua condição objectiva (atributos matemáticos) possuem também
condições subjectivas subjacentes (atributos políticos, sociais, económicos, culturais), as visões, as expectativas e a sua
utilização não é neutra. Como referem Ogawa e Collom (2005), os melhoramentos educacionais, realizados com base neste
tipo de indicadores, são tratados como projectos de engenharia cujos dados informam e conformam a construção racional de
políticas. Isto revela que para além da incontornável dimensão técnica, os indicadores educacionais têm também uma
fortíssima dimensão política.
Tratando-se de indicadores educacionais comparativos espera-se que estes, para além de permitirem comparações
temporais entre o mesmo sistema educativo, permitam também a comparação entre diversos sistemas educativos, não com a
intenção de criar um ranking internacional, mas com o intuito de fornecer aos decisores políticos plena compreensão dos
factores que influenciam a qualidade da educação, permitindo-lhes a partir daí explorar o amplo âmbito das opções políticas
(Bottani e Walberg, 1992). Contudo, para que tal possa acontecer estes indicadores educacionais comparativos devem
apresentar uma relativa estabilidade.
A análise, aqui levada a cabo, revela que os indicadores educativos referenciados no relatório anual Education at a
Glance, desde a sua constituição até à actualidade, apresentam, por um lado, a particularidade de estarem em constante
mutação, dificultando assim a sua função comparativa longitudinal e por outro, manifestam uma sobreposição da dimensão
política sobre a dimensão técnica dos indicadores. Isto porque, recorrendo às componentes de Ogawa e Collom (2005), a falta

6
Do original new industry of comparative education (Heyneman, 1993, p.378).
7
Organizações como a UNESCO, EUROSTAT e OCDE juntaram esforços de colaboração na exploração de definições comuns para o uso de critérios para o
controlo da qualidade, tratamento e melhoramento de dados, no sentido de facilitar as comparações estatísticas internacionais em educação, levando à adopção,
por parte a OCDE, do ISCDED-International Standard Classification of Education, originariamente desenvolvido pela UNESCO (Papadoupolos, 1994a).
8
Não existe tradução directa da palavra accountability. No entanto, em sentido lato, este conceito tem subjacente a ideia de prestação de contas (sociais,
económicas, culturais). Trow (1996) define prestação de contas como (…) a obrigação de dar conta a outrem, de explicar, de justificar, de responder a perguntas
acerca de como os recursos são usados e para a obtenção de que efeitos” (p.310).

323
de regularidade não permite que as componentes de avaliação e de monitorização se realizem, havendo apenas lugar para
descrições, juízos de valor e relevância política.

Gráfico 1 – Evolução do número dos indicadores educacionais ao longo dos anos9

60

Número de indicadores
50
43
41
40
33 34
31 29
30

20

10

0
1992

1993

1995

1996

1997

1998

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007
Ano

No Gráfico 1, podemos observar que o número de indicadores educacionais internacionais, publicados no Relatório
Anual Education at a Glance, não é estável. À partida, esta informação nada nos diz acerca das mudanças nos atributos dos
indicadores, a não ser que há uma tendência para a diminuição do número de indicadores ao longo dos tempos. Mas uma
análise mais detalhada revela que, ao longo destes anos todos de publicação, foram construídos um total de 264 indicadores
educacionais dos quais 69,3% (183 indicadores) só aparecem numa única edição do relatório, 14,8% dos indicadores (37)
repetem-se somente em duas edições e 6,4% (17 indicadores) repetem-se em três edições.
De modo a simplificar a análise dos dados, os indicadores educacionais inseridos nos diversos capítulos que os
relatórios assumiram ao longo do tempo, foram distribuídos por quatro (conforme Quadro 2) que, desde 2002, estruturam a
apresentação do relatório, dos quais três mantêm-se inalterados, desde 1997, como podemos verificar no Quadro 3. Esta
simplificação permitiu assim reduzir para quatro o número de dimensões, no campo da educação, patentes neste relatório
traduzidas em a) acesso, participação e progressão escolar, b) recursos humanos e financeiros investidos em educação, c)
resultados das instituições educacionais e impacto no conhecimento, e c) Ambiente de aprendizagem e organização escolar.

Quadro 2 – Percentagem do número de vezes que cada indicador se repete, por capítulo no Relatório Education at a
Glance (1993/2007)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Total
The output of
educational
institutions and 32,6 7,6 3,0 0,4 0,4 0,0 0,0 0,4 0,0 0,4 44,7
the impact of
learning
Financial and
human
Resources 7,2 2,7 0,0 0,4 1,1 1,5 0,4 0,0 0,4 0,0 13,6
Invested in
Education
Access to
Education,
9,5 3,0 2,3 0,8 0,4 0,4 0,0 0,0 0,0 0,0 16,3
Participation
and Progression
The learning
20,1 1,5 1,1 1,1 0,8 0,4 0,4 0,0 0,0 0,0 25,4
environment

9
Nos anos de 1994 e 1999, não foram publicados relatórios.

324
and
organisation of
schools
Total 69,3 14,8 6,4 2,7 2,7 2,3 0,8 0,4 0,4 0,4 100,0

Quadro 3 – Variação no nome dos títulos dos capítulos dos relatórios, desde 1992 até 2007
Título dos capítulos 1992 1993 1995 1996 1997 1998 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
Cost, Resources, and School
X X X
Processes
Results of Education X X X
Context of Education X X X X X
Individual, Social and Labour
Market Outcomes of X X
Education
Learning Outcomes of
X
Education
The transition from school to
X
work
Demographic, Social and
Economic Context of X X X
Education
Costs of Education and
Human and Financial X
Resources
Graduate Output of
X
Educational Institutions
Student Achievement and
X
Adult Literacy
Labour Market Outcomes of
X
Education
School environment and
X X
school/classroom processes
Access to Education,
X X X X X X X X X X X
Participation and Progression
The learning environment and
X X X X X X X X X X
organisation of schools
Financial and human
Resources Invested in X X X X X X X X X X
Education
The output of educational
institutions and the impact of X X X X X X
learning
Student Achievement X X
Student achievement and the
social and labour-market X
outcomes of education
Social and Labour Market
X
Outcomes of Education

3. A construção da agenda globalmente estruturada e os novos modos de governação


Enquanto o projecto desenvolvimentista do pós II Guerra Mundial tinha no espaço nacional e no Estado-Nação a
sua unidade política fundamental, nos contextos da globalização, o Estado-Nação está a ser alvo de revogação pela
emergência de poderosos mecanismos de gerencialismo global protagonizados por organizações internacionais como a
OCDE. Tal não significa que estejamos perante fenómenos de homogeneização e uniformidade ou estandardização de
modelos culturais. Segundo Dale (2001), os efeitos da globalização nas políticas educativas apresentam-se mais diversos e
multifacetados do que homogéneos ou uniformes. E acrescenta, que os efeitos nas políticas são indirectos atentos os

325
processos de tradutabilidade e de reinterpretação em função do posicionamento e localização de cada país no sistema
mundial.
Teodoro (2001) tem vindo a alvitrar a hipótese da agenda globalmente estruturada ter, sobretudo, como centro
nevrálgico os grandes projectos estatísticos internacionais, particularmente, o Projecto INES do Centre for Educational
Research and Innovation da OCDE, a que acrescentamos, o Education at a Glance. Os indicadores constituem uma forma de
expressão da globalização das políticas educativas. Na verdade, o Projecto da OCDE centrado em torno da construção e
recolha de indicadores nacionais tem vindo a desempenhar um papel fulcral na construção das agendas políticas nacionais,
trazendo para o primeiro plano prioridades, linhas de orientação e quadros de referência.
A construção da agenda globalmente estruturada assenta, no contexto da knowledge economy, em novos
pressupostos legitimadores. Por um lado, assistimos ao alargamento da racionalidade tecnocrata weberiana às dimensões
globais. O Projecto dos indicadores de comparação internacional tem subjacente uma racionalidade técnica e instrumental. A
gestão, a medida e a comparação da performance e desempenho dos indivíduos, dos sistemas e dos Estados no seio de uma
economia global de mercado transformou-se na componente central da governação em educação. Há, neste projecto dos
indicadores, dimensões teleológicas e de prospectiva imagética, capazes de veicular modelos ideais de desenvolvimento e de
performatividade dos países. Partindo de preocupações similares, relativamente ao PISA, Smithers (2004) advoga que “the
cloud of data generated becomes a canvas on to which the committed can project what they want to see” (iii).
A construção da agenda globalmente estruturada inspira-se no new public management theory e na revitalização
das Teorias do Capital Humano, agora encaradas numa perspectiva micro (Henry et al., 2001). Enquanto a abordagem macro,
dominante nos anos 60, assentava na relação biunívoca entre mais educação, mais desenvolvimento económico, a perspectiva
micro valoriza o capital humano na perspectiva das competências específicas dos indivíduos, flexíveis e adaptáveis,
consideradas indispensáveis para participar de forma efectiva na economia global do conhecimento. O cerne da mudança
reside, agora, na crença de que numa economia global, as vantagens competitivas das Nações dependem da qualidade do seu
capital humano, entendido na vertente de consumers.
Nestas novas formas de governação, os indicadores de performance servem os mecanismos da accountability e
legitimam a agenda neo-liberal da educação e a sua ênfase na mercadorização dos sistemas educativos, transformando-se
num meio para legitimar e justificar medidas correctivas nas orientações políticas, numa lógica de maquiavelismo (os fins
justificam os meios) e “de abandono ou marginalização dos propósitos sociais da educação” (Ball, 2001, p.99). O projecto
dos indicadores alarga e expande o paradigma da accountability a um estádio global de comparação. Os indicadores são,
simultaneamente, o reflexo e a expressão da nova micro económica abordagem do capital humano na sua estreita associação
com a cultura da performatividade (Henry et al., 2001).
A construção da agenda globalmente estruturada para a educação assenta numa retórica discursiva em torno dos
assuntos da educação e na sua subserviência aos axiomas da competitividade, da adaptabilidade, da flexibilidade, da eficácia
e da qualidade. Este enquadramento acaba por naturalizar e produzir narrativas normalizadoras e instrumentalizadoras das
formas mais eficazes de realização da acção político-educativa. Key-words como “economia do conhecimento”, “sociedade
do conhecimento”, “sociedade de aprendizagem”, apresentam-se como poderosas narrativas prescritivas, geradas no
consenso, a ilustrar a colonização das políticas educativas pelas demandas das políticas económicas (Ball, 2001).
Diversos autores (e.g., Ozga e Lingard, 2007; Henry et al., 2001; Nóvoa e Yariv-Mashal, 2003), têm vindo a
reconhecer que a ênfase nos números e na sua comparabilidade tem contribuído, manifestamente, para acentuar o
protagonismo e a influência da OCDE, enquanto actor político global, consubstanciando, deste modo, novas formas de
governação, ancoradas num novo paradigma de construção das políticas educativas pelos números. O projecto dos
indicadores internacionais de comparação encarna o desenvolvimento de políticas educativas como formas de engenharia
social e de tecnologia política10, através da ligação privilegiada estabelecida entre mercado e gestão, eficácia e qualidade,
performatividade e reforma.
Preenchendo um papel normativo e legitimador, o Projecto dos Indicadores ilustra “a transformação do papel da
OCDE como instrumento das políticas educativas e fórum – catalisadora e facilitadora do desenvolvimento das políticas nos
Estados-membros, centrada na ajuda aos processos de disseminação, adaptação e empréstimo - para assumir o estatuto dum
mediador internacional do conhecimento e um actor político global” (Henry et al., 2001, p.84).

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10
Conforme Ball (2001) acentua, “as tecnologias de políticas envolvem a implementação calculada de técnicas e artefactos para organizar as forças e
capacidades humanas em redes funcionais de poder” (p.105).

326
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327
Novas oportunidades para velhos problemas: o vocacionalismo como ideologia
educativa

Natália Alves
Universidade de Lisboa
nalves@fpce.ul.pt

Resumo: Em Dezembro de 2005, o governo português lança aquele que pode ser considerado como o seu programa mais emblemático no
campo da educação/formação: a Iniciativa Novas Oportunidades. Embora se trate de uma iniciativa destinada a qualificar a população jovem
e adulta, nesta comunicação, pretendemos apenas discutir as medidas e as acções destinadas à população jovem.
A análise desenvolvida incidiu sobre um corpus empírico constituído pelo documento que serviu de suporte técnico à Iniciativa Novas
Oportunidades, pelo documento distribuído aquando da sua apresentação pública, pelo discurso proferido pelo Primeiro-Ministro nessa
ocasião, bem como documentos de orientação da política de educação/formação da Comissão e do Conselho Europeus.
Os resultados da análise documental permitem-nos demonstrar que se, por um lado, a Iniciativa Novas Oportunidades visa responder aos
objectivos traçados pela União Europeia, na Cimeira de Lisboa em 2000, e está ao serviço de um processo de unionização das políticas
educativas no espaço europeu (Nóvoa e de Jong-Lambert, 2003); por outro, a opção portuguesa de eleger a fileira profissionalizante como
alvo privilegiado da sua acção governativa corresponde ao reforço de uma concepção vocacionalista (Correia, Stoleroff e Stoer, 1993; Bills,
2004; Duru-Bellat, 2006) que vê na educação a “chave para mais crescimento económico, mais emprego e mais coesão social”, mas que
descura a discussão do seu papel no processo de democratização selectiva (Garcia e Poupeau, 2003) do ensino secundário e na produção de
formas “doces” de exclusão escolar.

Introdução
Esta comunicação tem por objectivo discutir as mais recentes medidas de política educativa em Portugal,
consagradas naquele que é um dos programas mais emblemáticos do actual governo socialista: a Iniciativa Novas
Oportunidades, lançada em Dezembro de 2005. A escolha deste programa decorre de três ordens distintas de razões. A
primeira razão prende-se com o facto de nele constarem as orientações e as metas das políticas de educação e de formação até
2010, revestindo-se, por isso, de uma importância política incontornável; a segunda razão advém do facto de ele ser a
expressão um novo modo de regulação dos sistemas de educação/formação, que ganha forma na União Europeia, a partir do
início do século XXI; a terceira e última decorre de este programa contribuir para a consolidação do vocacionalismo no
panorama educativo português.

Vencer a batalha da qualificação


«O atraso que nos separa dos países mais desenvolvidos radica, em grande medida, no insuficiente nível de
qualificação da população portuguesa. Esta é uma questão central que temos de enfrentar. A solidez do processo de
modernização do país depende essencialmente de vencermos a batalha da qualificação. É aqui que temos de combater.
É aqui que temos de vencer.».

Estas palavras, proferidas pelo Primeiro Ministro português na sessão pública de apresentação da Iniciativa Novas
Oportunidades, em Dezembro de 2005, sintetizam, de uma forma exemplar, a concepção de educação que se tem vindo a
impor, nas últimas décadas, em Portugal.
Desde os anos oitenta, que a retórica discursiva governamental tem sido atravessada por duas lógicas
argumentativas distintas: a lógica da modernização e a lógica da democratização (Nóvoa, Alves e Canário, 2000; Alves e
Canário, 2004). A primeira, fiel aos postulados da Teoria do Capital Humano, advoga a existência de uma relação de
causalidade linear entre escolarização e desenvolvimento económico e assume a qualificação dos recursos humanos como a
principal missão do sistema educativo. A segunda enfatiza o papel e a importância da educação para o desenvolvimento
pessoal e social dos indivíduos, para a redução das desigualdades sociais e, mais recentemente, para o combate à exclusão
social. Todavia, estas duas lógicas não têm o mesmo peso na retórica discursiva governamental.
Em trabalhos anteriores, defendemos a supremacia da lógica da modernização, nos discursos educativos
portugueses (Nóvoa, Alves e Canário, 2000; Alves e Canário, 2004). No entanto, nunca como na actualidade, a concepção
economicista e instrumental da educação esteve tão presente. As palavras proferidas pelo Primeiro Ministro exprimem a
adesão inequívoca a uma racionalidade instrumental que advoga o papel fundamental da educação nos processos de
modernização económica e apela à subordinação funcional das políticas educativas aos imperativos económicos quer estes
sejam os desafios da internacionalização e globalização económicas, como acontecia num passado recente, ou os que são
actualmente colocados pela chamada “sociedade do conhecimento”.
A lógica da modernização adquire consistência social a partir do diagnóstico “negro” da situação educativa
portuguesa e da comparação sistemática com os países mais avançados da União Europeia e da OCDE. A abordagem
comparativa, baseada em indicadores estatísticos, conjugada com a invocação da caução de entidades supranacionais têm
sido apresentadas como argumentos importantes para justificar e fundamentar as medidas de política educativa, através dos

328
quais se constrói a sua legitimidade política e social. A comparação internacional sistemática tem, assim, servido um duplo
objectivo: ao mesmo tempo que confere visibilidade à distância que separa Portugal dos países mais desenvolvidos da União
Europeia e da OCDE, ela cria também as condições para que as orientações defendidas para a Educação sejam apresentadas
como inevitáveis e legitimas, em nome das exigências da integração europeia e da competitividade económica.
Ora, nem o discurso do Primeiro Ministro nem a apresentação do programa, que se lhe seguiu, nem o documento
mais desenvolvido que lhe serve de suporte técnico1, fogem a este modelo de legitimação das políticas educativas. No
primeiro, fala-se de “atraso”, termo, aliás, recorrente na retórica discursiva dos vários governos, nas últimas décadas, e
procura-se a legitimidade para a acção política nas instâncias internacionais e nos indicadores por elas produzidos, como o
excerto do discurso que a seguir se transcreve, demonstra:
«A importância central da qualificação para o crescimento económico e para a promoção da coesão social está hoje
amplamente demonstrada por diversos indicadores publicados por várias organizações internacionais. Não podemos
continuar a ignorá-los».

Se no discurso proferido pelo Primeiro Ministro, os indicadores não são explicitados e as organizações
internacionais não são nomeadas, o mesmo já não acontece nos outros dois documentos a que nos referimos anteriormente. A
OCDE é a organização internacional omnipresente e os indicadores por ela produzidos são mobilizados para justificar a
pertinência e a necessidade da Iniciativa Novas Oportunidades. Passagens como, «O número médio de anos de escolarização
da população adulta em Portugal é de 8,2 anos, enquanto a média dos países da OCDE se situa nos 12 anos»; «Apenas cerca
de 20% da população adulta completou o ensino secundário»; «Segundo a OCDE, Portugal é um dos países em que ter
educação é mais compensador – um trabalhador sem o ensino secundário ganha, em média, menos 40% do que um
trabalhador que tenha obtido essa escolaridade» são, apenas, alguns exemplos extraídos de um conjunto mais vasto de
indicadores que constam destes documentos, mas que servem para ilustrar o papel que desempenham na estrutura
argumentativa da retórica governamental.
Para superar o défice de qualificação da população portuguesa, diagnosticado com base nos dois primeiros
indicadores acima transcritos, impõe-se, nas palavras do Primeiro Ministro, vencer a “batalha da qualificação”. Há anos que a
Educação vem sendo apresentada como uma prioridade dos sucessivos governos que se socorrem frequentemente da
linguagem metafórica para melhor fazer passar a sua mensagem.
As metáforas são um recurso linguístico frequente no discurso político, como defendem alguns autores
(Bonhomme,1998; Nóvoa e deJong-Lambert, 2003). Elas estabelecem analogias entre termos provenientes de diferentes
campos semânticos e funcionam como «argumentos difíceis de refutar, na medida em que eles se encontram dissimulados
numa imagem que se apresenta como evidente» (Bonhomme, 1998, p. 65). A utilização das metáforas, no campo político,
tem em vista um duplo objectivo: por um lado, destina-se a dificultar o questionamento e a refutação da mensagem política,
como Bonhomme (1998) defende; por outro, o recurso a esta figura de estilo permite facilitar a sua descodificação por parte
da opinião pública, através de imagens mobilizadoras, de analogias que se socorrem de vocábulos da linguagem comum. As
metáforas são, por isso, um veículo de aproximação, no plano comunicacional, entre governantes e governados.
Os discursos educativos têm sido prolíferos no uso deste recurso linguístico. Uma das metáforas mais recentes foi a
utilizada por um ex-Primeiro Ministro que, em meados dos anos 90, se referia à educação como a sua principal “paixão”. Ora
falar da educação como uma “paixão” ou como uma “batalha” que é preciso vencer, como refere o actual Primeiro Ministro,
remete não só para referenciais semânticos distintos, mas também para sistemas de acção diferenciados.
A paixão transporta-nos para o campo dos afectos. A paixão é um sentimento do foro individual, forte, avassalador,
quase “imperialista”, que pode ou não ser correspondido. Assim, falar da educação como uma paixão é afirmar que se está
politicamente investido neste domínio concreto da governação, que este é um investimento com uma forte carga emocional,
mas principalmente que este é um investimento do Eu. Neste sentido, a utilização desta metáfora tem por objectivo dar a
conhecer o compromisso pessoal do chefe de Governo para com a Educação, mas não apela a qualquer tipo de mobilização
colectiva. Em suma, é como se se dissesse que a Educação não é um assunto de Estado, mas sim o resultado de uma vontade
individual à qual o Primeiro Ministro se propõe dedicar de “alma e coração”.
O uso da metáfora bélica da batalha é totalmente diferente. Ao contrário da anterior, o referencial semântico, por
excelência, não são os sentimentos, mas sim a razão. A metáfora bélica remete-nos para o campo cognitivo, para o domínio
do pensamento estratégico e táctico. Além disso, como ninguém combate sozinho, vencer uma batalha exige o esforço e
empenhamento de todos os membros do exército. É verdade que são os generais que arquitectam as estratégias e definem as
tácticas, mas o resultado final, a derrota ou a vitória, é sempre fruto do esforço colectivo. Assim, se a metáfora emocional
tinha como suporte a acção individual, a bélica remete-nos para a esfera da acção colectiva. A primeira pretendia dar a
conhecer o empenho afectivo do então Primeiro Ministro no campo educativo; a segunda pretende congregar as vontades
individuais em torno de um objectivo comum e mobilizador: «vencer a batalha da qualificação».
Mas se o actual Primeiro Ministro está apostado em passar a mensagem de que esta batalha só se vence com a
mobilização colectiva, ele, como general responsável, não pode deixar de alertar as suas tropas para a dificuldade e a dureza
da batalha e incentivá-las a nunca desistir. Por isso, termina o discurso de apresentação do seu programa político dizendo:

1
O discurso do Primeiro Ministro e o documento de suporte ao Programa encontram-se disponíveis, em formato electrónico, no endereço
http://www.novasoportunidades.gov.pt. Os diapositivos utilizados na apresentação pública estiveram também disponíveis tendo sido, recentemente, retirados.

329
«O sucesso da Iniciativa Novas Oportunidades exige o empenhamento profundo de todos – cidadãos, empresas e
instituições – na valorização de uma cultura de aprendizagem e na sua efectivação no terreno. Será, seguramente, um
caminho muito longo, duro e difícil. Esta escolha não admite hesitações.».

“Vencer a batalha da qualificação” junto da população jovem equivale, no plano da acção governativa, à
concretização de dois grandes objectivos: «Fazer do 12º ano o referencial mínimo de formação para todos os jovens»;
«Colocar metade dos jovens do ensino secundário em cursos tecnológicos e profissionais»2. A definição destes objectivos
corresponde a uma inovação no panorama educativo português. É certo que, a partir de meados dos anos noventa, muitos
documentos oficiais começam a fazer referência à necessidade de assegurar o acesso bem sucedido a uma escolaridade de
doze anos e o desenvolvimento de uma cultura de escolaridade prolongada (Nóvoa, Alves e Canário, 2000). Contudo, só com
a actual equipa governativa se elege, de uma forma inequívoca, a conclusão do secundário como o nível de escolaridade
mínimo a atingir, ainda que, do ponto de vista legal, a escolaridade obrigatória se mantenha no 9ºano.
A eleição do 12º ano como referencial mínimo e a manutenção dos nove anos de escolaridade obrigatória configura
uma situação paradoxal que merece uma reflexão. Com efeito, se se pretende fazer do ensino secundário o patamar mínimo
de qualificação para as gerações jovens, por que razão não aumentou o governo a escolaridade obrigatória para doze anos?
Em nosso entender, responder a esta questão exige que mobilizemos dois tipos distintos de argumentos. Com efeito,
aumentar a escolaridade obrigatória para doze anos, teria como consequência, no plano do emprego, o aumento da idade legal
para trabalhar, decisão que, num país como Portugal, não seria certamente fácil, tanto mais que não foram ainda totalmente
resolvidos os problemas do trabalho infantil e do abandono escolar. A valorização do ethos do trabalho em detrimento do
ethos escolar por parte de alguns jovens e respectivas famílias (Azevedo, 1999; Ferrão e Honório, 2001; Azevedo e Fonseca,
2007)), mas, principalmente, a elevada receptividade de grande parte do tecido empresarial português a uma mão-de-obra
jovem e pouco qualificada (Moreno, 1998) são aspectos estruturantes da formação social portuguesa e que dificultariam a
aceitação e cumprimento de uma tal medida. O outro argumento decorre do campo da acção política. Neste caso, o aumento
da escolaridade obrigatória para doze anos teria como consequência a responsabilização directa do poder político pelo seu
cumprimento. Ora, num contexto em que as políticas são objecto de um constante escrutínio público e a prestação de contas
(accountability) se transformou, simultaneamente, num instrumento de governação e de avaliação da acção governativa, este
é um risco a que qualquer governo procura fugir. Assim, ao responsabilizar a sociedade e os indivíduos pela concretização
deste objectivo, o governo não só evita o julgamento político como “privatiza” a responsabilidade pela sua prossecução.
O segundo objectivo exprime a vontade política de fortalecer a fileira profissionalizante3 ao nível do ensino
secundário, reforçando a tendência vocacionalista que se tem vindo a impor nas últimas décadas, no sistema educativo
português. Mas esta é uma discussão que faremos mais à frente. Neste momento, a ideia que pretendemos desenvolver reside
no facto de que ao definir como objectivo «colocar metade dos jovens do ensino secundário em cursos tecnológicos e
profissionais», o governo está a tomar uma posição relativamente à ambiguidade que tem caracterizado este nível de ensino.
Com efeito, o ensino secundário é o segmento do sistema educativo onde a questão da identidade mais se tem colocado
(Fernandes et alli, 1998). Situado entre o final da escolaridade obrigatória e o ensino superior, o ensino secundário vê-se
confrontado com a necessidade de responder a uma dupla finalidade: preparar para o ensino superior e para a vida activa.
Nem sempre facilmente conciliáveis, estas finalidades conferem-lhe um estatuto ambíguo: por um lado, ele é um ciclo
preparatório para o prosseguimento de estudos; por outro, apresenta-se como um ciclo terminal, destinado à inserção no
mercado de trabalho.
Até 2005, esta ambiguidade foi ultrapassada por via da procura social de educação. A opção de quem prosseguia
estudos, depois de concluída a escolaridade obrigatória, recaia maioritariamente sobre as ofertas educativas
predominantemente orientadas para o prosseguimento de estudos de nível superior4. É precisamente esta tendência que o
actual governo pretende inverter. Como?, perguntar-se-á.
A resposta a esta pergunta encontra-se no documento técnico que serve de suporte à Iniciativa Novas
Oportunidades e não podia ser mais clara. O executivo propõe-se “Estimular a procura” através da “Estruturação da oferta”.
A expressão “estruturação da oferta” tem, no que respeita ao ensino secundário, um significado muito preciso. Na verdade, o
que se está a passar neste grau de ensino é mais do que uma estruturação da oferta. O que se está a verificar é um aumento,
sem precedentes, da oferta pública de cursos profissionalizantes que, em três anos, passaram de cerca de 1600 para mais de
2600. O aumento desta oferta educativa teve como consequência um aumento da procura. Nos últimos três anos, o número
de alunos matriculados nesta fileira do ensino secundário não tem parado de crescer e o peso da fileira profissionalizante
situava-se, no passado ano lectivo (2007-2008), em 35,4%. A julgar por estes dados, esta parece ser uma aposta ganhadora do
actual governo, ainda que a meta estabelecida para 2010 – «colocar metade dos jovens do ensino secundário nos cursos
tecnológicos e profissionais» – esteja longe de ser atingida. Com efeito, quer o aumento quer a diversificação deste tipo de

2
Estes foram os dois únicos objectivos que constavam na apresentação da Iniciativa tendo, posteriormente, o se número passado para dezasseis. De entre eles,
vale a pena registar aquele que consiste em «Garantir que até 2010 será proporcionado a todos os jovens em risco de abandonarem o sistema educativo sem
cumprirem a escolaridade obrigatória a integração em vias profissionalizantes que permitam a conclusão do 9ºano de escolaridade» e que define como meta um
acréscimo de alunos de, respectivamente, 2500, em 2006, 5000, em 2007, 7500, em 2008, 10000, em 2009 e 12500, em 2010.
3
A fileira profissionalizante contempla todas as ofertas educativas predominantemente orientadas para a inserção na vida activa. Esta fileira distingue-se da do
ensino geral por conferir uma dupla certificação: atribui uma certificação escolar e outra profissional. Ao nível do ensino secundário esta fileira é constituída
pelos cursos tecnológicos, pelos cursos profissionais, pelos cursos de educação e formação, pelos do ensino artístico e pelos do Sistema de Aprendizagem.
4
Segundo os dados da OCDE, apresentados no documento a que nos temos vindo a referir, em 2001, a percentagem de estudantes que tinha optado pelos cursos
destinados ao ingresso no ensino superior era de 71,7% em Portugal enquanto a percentagem nos países da OCDE era de 48,5%.

330
oferta parecem ter tido o efeito de reter, no sistema educativo, um número importante de jovens. Resta, todavia saber se estas
modalidades irão cumprir a sua principal finalidade – preparar os jovens para a inserção na vida activa – ou se pelo contrário,
se irão converter, à semelhança do que acontece no Reino Unido, nos EUA, ou em França, numa via de segunda
oportunidade para a conclusão do secundário (Bathmaker, 2005, Bills, 2004, Duru-Bellat, 2006) cujo principal objectivo é,
apenas, o de protelar o confronto com um mercado de trabalho. Mas quer esta fileira se venha a assumir como uma “estrada
para o emprego” ou como um percurso educativo alternativo para aceder à formação de nível pós-secundário, como se
verifica no Reino Unido (Bathmaker, 2005), os dados divulgados, recentemente pelo Ministério da Educação, mostram que
este nível de ensino está a viver uma fase de profunda transformação. A oferta diversificou-se, o número de estudantes
aumentou e a taxa de reprovação no ensino secundário que, no ano lectivo de 2004-2005, se situava acima dos 30% desceu,
em 2006/2007, para 25,8%. Apesar desta diminuição, o insucesso escolar continua a ser um dos principais problemas com
que se debate este nível de ensino e que atinge, mais intensamente, os alunos dos cursos tecnológicos. Com efeito, ter um em
cada quatro alunos a reprovar no ensino secundário é não só uma situação socialmente insustentável como poderá colocar em
risco a legitimidade de um Estado que pretende universalizar o ensino secundário, mas que não cria as condições para
universalizar o sucesso educativo.
Aliás, as elevadas taxas de reprovação que se registam no ensino secundário são bem o exemplo da dificuldade
deste grau de ensino em estabelecer um equilíbrio entre duas tendências de difícil conciliação. Enquanto segmento que se
situa após a escolaridade obrigatória espera-se que cumpra, sem concessões, a função selectiva acometida à escola e que, na
sequência do aumento e da generalização da escolaridade obrigatória de nove anos, tem vindo a ser catapultada para os
níveis de ensino secundário e superior; enquanto segmento que se destina a absorver um número crescente de jovens e a
assumir-se como o referencial mínimo de formação, espera-se que contribua para reforçar a democratização do sistema
educativo e para assegurar trajectórias escolares onde o sucesso seja a regra e não a excepção.

A Iniciativa Novas Oportunidades e a unionização das políticas educativas no espaço europeu


A Educação tem sido um dos domínios que mais tem resistido à implementação de uma política comum no quadro
da União Europeia. A construção de um espaço educativo europeu tem sido dificultada pela resistência das opiniões públicas
europeias que defendem a autonomia de cada Estado membro na definição das políticas educativas nacionais. Todavia,
Nóvoa e deJong-Lambert (2003, p.15) argumentam que «desde há algum tempo que se vem a verificar um esforço de
inscrever uma “dimensão europeia” nas políticas educativas nacionais», nomeadamente, através de programas e de
orientações que, sendo da responsabilidade da Comissão Europeia, reflectem a existência de um consenso em torno de alguns
aspectos relativos à Educação. Para estes autores, a primeira fase de cooperação no campo da educação inicia-se com o
lançamento de vários programas europeus financiados pela Comissão Europeia, no início dos anos noventa e corresponde ao
que designam por um «estado líquido das políticas» (Nóvoa e deJong-Lambert, 2003, p. 52). A liquidez das políticas a que
estes autores se referem decorre da tentativa de construir uma convergência no campo da educação através do que Ertl (2006,
p. 12) considera ser uma «abordagem baseada em programas». Legalmente impedida de intervir directamente no campo da
Educação geral, por via do Tratado de Roma, mas com competências para definir «princípios gerais para a implementação de
uma política comum para a educação profissionalizante e para a formação contínua» (Barnard, 1995, p. 20), a União
Europeia vai lançar, principalmente, a partir dos finais dos anos oitenta um conjunto de programas que vai ser decisivo na
construção de um espaço educativo comum. Ao financiar programas destinados à constituição de redes transnacionais, mas
principalmente ao apoiar e incentivar a mobilidade de professores e de alunos, a União Europeia criou as condições para que
«a convergência dos sistemas educativos nacionais se tenha imposto como uma necessidade» (Ertl, 2006, p. 14). A
reconstrução das fileiras profissionalizantes e, mais recentemente, a reforma do ensino superior, levadas a cabo pelos Estados
Membros, são exemplos da estratégia de convergência das políticas educativas e de harmonização dos sistemas educativos
nacionais5. Mas eles são, também, exemplicativos do que Nóvoa e deJong-Lambert (2003, p. 53) defendem ser a passagem
das políticas europeias de um estado líquido para um estado sólido. Aliás, para estes autores, um outro exemplo da
solidificação das políticas é a construção de um sistema estatístico europeu no domínio da educação – Eurydice – o qual
obrigou os Estados a recolher e a organizar a informação estatística, de acordo com critérios e procedimentos similiares.
Quer Nóvoa e deJong-Lambert (2002) quer Ertl (2006) consideram a assinatura do Tratado de Maastrich, como um
ponto de viragem nas políticas educativas europeias, ainda que se socorram de argumentos distintos. Para Ertl (2006, p.10),
este Tratado define as competências da União Europeia no domínio educativo quer no que respeita à educação geral quer no
que se reporta à educação profissionalizante e à formação contínua. Embora relativamente à educação geral, o Tratado exclua
explicitamente qualquer tipo de harmonização de leis ou de regulamentos e consagre a total autonomia dos Estados membros
na definição dos currículos e na organização dos sistemas educativos nacionais, ele atribui, pela primeira vez, à União
Europeia, o papel de apoiar acções e de encorajar a cooperação dos Estados membros, com vista a aumentar a qualidade da

5
Em Portugal, a criação do Sistema de Aprendizagem e das Escolas Profissionais pode ser interpretada enquanto expressão do processo de harmonização dos
sistemas educativos à escala europeia. Referindo-se, especificamente, às escolas profissionais, Antunes (2001, p.194) defende que a sua criação pode ser inscrita
«em dinâmicas de europeização das políticas educativas públicas nacionais, na medida em que se afigura possível identificar relações de interacção e
interdependência fortes entre prioridades e opções políticas comunitárias e a criação de um contexto fortemente indutor de algumas das orientações que
caracterizam tal medida política; por outro lado, a sua viabilização, nomeadamente financeira, é decisivamente devedora da coincidência entre concepções e
finalidades incorporadas nas escolas profissionais e linhas de intervenção valorizadas no contexto das políticas comunitárias».

331
educação. Se a educação geral permanece imune a qualquer tipo de ingerência directa das instâncias comunitárias, o mesmo
não acontece com a educação profissionalizante e a formação contínua. O Tratado de Maastricht reforça as competências da
União Europeia nestes domínios, atribuindo-lhe poderes para definir uma política de formação profissional inicial e contínua
que suporte e complemente as acções dos Estados membros.
Para Nóvoa e deJong-Lambert (2002), a assinatura do Tratado de Maastricht e os anos que se lhe seguiram estão na
origem de uma nova geração de iniciativas na área educativa e de uma fase que apelidam de estado gasoso da políticas.
Mandatada para desenvolver a qualidade da educação, a União Europeia vai criar uma poderosa retórica discursiva em torno
de expressões como a “sociedade do futuro”, a “aprendizagem ao longo da vida”, a “sociedade do conhecimento” que, à
semelhança de um gás, ocupa todo o espaço disponível «deslegitimando formas alternativas de pensamento» (Nóvoa e
deJong-Lambert, 2002, p. 53). A década de noventa vai ser marcada pela construção de uma convergência simbólica na
esfera educativa, para a qual contribuem os numerosos relatórios e documentos produzidos pelas instâncias comunitárias.
Este, não é, todavia, um fenómeno novo. Desde o final da II Guerra Mundial que as organizações internacionais, como a
OCDE, a UNESCO, o Banco Mundial e o FMI, têm desempenhado um papel fundamental na internacionalização e
globalização das políticas educativas. Teodoro (2001, p.128) salienta à sua importância para «normalização das políticas
educativas nacionais, estabelecendo uma agenda que fixa não apenas prioridades mas igualmente as formas como os
problemas se colocam e equacionam, e que constituem uma forma de fixação de um mandato, mais ou menos explícito
conforma a centralidade dos países». Scheriewer (1997), por seu turno, refere-se ao seu papel na construção semântica da
sociedade mundial. O que existe de novo nesta convergência simbólica à escala europeia é que ela cria as condições para que
a Cimeira de Lisboa de 2000, seja considerada, por Nóvoa e deJong-Lambert (2003), como um novo ponto de viragem na
política educativa europeia.
Neste Conselho dos chefes de governo dos Estados membros são tomadas duas decisões cruciais. A primeira diz
respeito à aprovação do objectivo estratégico para a União Europeia. Também conhecido por Estratégia de Lisboa, este
objectivo consiste em «até 2010, fazer da União Europeia a economia do conhecimento mais competitiva do mundo, capaz de
um crescimento económico sustentado, criando mais e melhores empregos e uma maior coesão social» (Council, 2000, p.3).
A segunda decisão consagra a aceitação, por parte de todos os Estados membros, de um novo modelo de governação no
espaço europeu: o método aberto de coordenação. Este método, apresentado como «um meio para disseminar boas práticas e
para atingir uma maior convergência no que respeita aos principais objectivos da Ue» (Council, 2000, p. 18), permite que a
União defina orientações para as políticas dos Estados membros e estabeleça calendários para a sua implementação. Todavia,
a grande inovação introduzida por este método reside na utilização de indicadores e na definição de metas quantificáveis, que
tornam possível a comparação das performances dos vários Estados e a avaliação periódica dos resultados. Estas duas
decisões vão ter implicações profundas no campo educativo, abrindo caminho para a criação de um espaço educativo comum
e para a unionização das políticas educativas na União Europeia (Nóvoa e deJong-Lambert, 2003).
Ora, se a Cimeira de Lisboa cria as condições políticas e ideológicas para o lançamento de uma agenda educativa
comum, a aprovação em 2002, pelo Conselho Europeu de Barcelona de um Programa Comum de Objectivos para a Educação
e Formação é, sem dúvida, um passo decisivo para a concretização de uma estratégia que vê na harmonização das políticas
de educação e de formação um elemento chave para a realização da estratégia de Lisboa.
Este Programa inaugura o que Nóvoa e deJong-Lambert (2003, p.57) apelidam de «um novo tempo para as
políticas educativas europeias». Nele é clarificado o papel da Educação para o sucesso económico europeu - «Fazer da União
Europeia uma economia do conhecimento, líder a nível mundial, só será possível com a contribuição crucial da educação e da
formação como factores de crescimento económico, inovação, empregabilidade sustentável e coesão social» (EC, 2002, p.9)
e são definidos os objectivos que todos os Estados Membros devem alcançar até 2010. Aplicando à Educação o método
aberto de cooperação, neste Programa constam igualmente os indicadores que irão permitir medir os progressos das políticas
educativas nacionais.
Mas, se a construção de indicadores comparáveis constitui, como Nóvoa e deJong-Lambert (2003, p. 59) defendem,
«uma maneira poderosa de formular políticas educativas», a definição de metas precisas corresponde, por seu turno, a uma
estratégia que visa controlar, por via de avaliações regulares, as actuações dos Estados membros. Por isso, tão importantes
quanto os objectivos são as cinco metas aprovadas para 2010 pelo Conselho Europeu em 2003: aumentar para 12,5% a
percentagem de activos que participa em acções de formação; reduzir para 10% a percentagem de jovens que abandona o
sistema educativo sem qualificações; reduzir, para 20%, a percentagem de jovens com 15 anos com resultados negativos nos
testes de literacia; aumentar para 85% a percentagem de jovens com 22 anos que conclui o ensino secundário; aumentar para
15% a percentagem de diplomados do ensino superior nas áreas da matemática, ciências e tecnologia (Council, 2003, p.7).
É precisamente neste contexto de construção de uma economia do conhecimento, de unionização das políticas
educativas e de implementação do método aberto de cooperação que a Iniciativa Novas Oportunidades deve ser entendida.
Quer os objectivos que se propõe atingir quer a definição de metas quantificáveis reflectem a transposição, para o plano
nacional, das orientações e dos procedimentos definidos a nível comunitário.

A Iniciativa Novas Oportunidades e o triunfo do vocacionalismo


O vocacionalismo é o termo que designa a subordinação da educação às necessidades da economia (Bills, 2004;
Hickox e Lyon, 1998) e que está na origem do que Tanguy (1989) designou por um processo de profissionalização do

332
sistema educativo. O vocacionalismo surge no início da década de oitenta, quando a maior parte dos países industrializados
se vê confrontada com a desaceleração do crescimento económico e tem de lidar com elevadas taxas de desemprego juvenil.
Tal como actualmente, também nesse período a Educação foi chamada a desempenhar um papel fundamental para aumentar a
competitividade das economias europeias e para combater o desemprego. Aliás, a crença, como lhe chama Duru-Bellat
(2006), no papel da Educação para o crescimento económico vem de longa data e tem a sua formulação científica mais
consistente na Teoria do Capital Humano. Mas, enquanto a teoria do capital humano não faz qualquer distinção entre
educação profissionalizante e educação geral, a concepção revisitada, que se vai impor a partir dos anos oitenta, postula que é
na primeira que reside a resolução dos problemas económicos europeus (Alves, 2001). Assim, a fórmula que legitimou o
investimento na Educação no período pós II Guerra Mundial, e que consistia em defender que trabalhadores mais
escolarizados são trabalhadores mais produtivos e que auferem salários mais elevados, vai agora ser substituída por uma
outra que conta com o aval dos principais organismos internacionais (FMI, OCDE e UE) e que Weir (1991, p. 127)
esquematiza da seguinte forma: «Mais educação profissionalizante = mais recursos humanos qualificados = mais
competitividade = mais riqueza = redução do desemprego e dos seus efeitos».
A aposta na educação profissionalizante vai impor-se, um pouco por todos os países industrializados, se não como a
única pelo menos como a melhor solução para aumentar a competitividade das economias nacionais e combater o fenómeno
do desemprego.
Contudo, esta tendência vocacionalista, que a União Europeia não tem deixado de incentivar (Leney e Green,
2005), está, em nosso entender, envolta num denso nevoeiro. Com efeito, a aposta na profissionalização do ensino secundário
como um elemento indutor do crescimento económico, por parte das instâncias comunitárias, não deixa de ser surpreendente,
quando é a própria Comissão (EC, 2002) a admitir que este não foi o caminho seguido pelos seus mais directos concorrentes
(EUA e Japão), facto que não os impediu de serem economias mais competitivas. No plano estritamente económico, se já é
difícil demonstrar a existência de uma relação directa entre educação em sentido lato e crescimento económico (Duru-Bellat,
2006; Mingat e Tan, 1996), medir as externalidades da educação profissionalizante, é o ainda mais. Corson (1991) é, aliás,
dos poucos economistas da educação que procurou medir os seus efeitos macro-económicos e as suas conclusões não deixam
margem para dúvida. Defende o autor (Corson, 1991, pp. 123-125) que os elevados custos indexados aos cursos
profissionalizantes, quando comparados com os da formação geral, não têm um retorno equivalente aos seus benefícios para
a sociedade, concluindo que, em termos económicos, eles são comparáveis aos da educação geral.
Relativamente ao retorno individual do investimento nesta modalidade educativa, os dados disponíveis dificilmente
confirmam os benefícios que a retórica discursiva das organizações internacionais e em particular a União Europeia lhe
atribuem. Os dados anualmente publicados pela OCDE6 mostram que entre a educação profissionalizante e a educação geral
não existem diferenças significativas nem ao nível da taxa de actividade, nem da taxa de desemprego, nem em termos de
renda. Aliás, quando existem, elas tendem a ser favoráveis a quem concluiu cursos de educação geral. Para além destes
dados, os resultados dos estudos sobre a inserção profissional não confirmam as teses das vantagens comparativas da
educação profissionalizante (Alves, 2008).
Sem suporte empírico que sustente as mais valias da educação profissionalizante, são várias as questões que se
levantam: Por que continua a União Europeia a advogar o reforço da fileira profissionalizante? Por que o faz quando vários
estudos demonstram que estas fileiras não contribuem para uma efectiva democratização do sistema educativo, mas sim para
uma democratização selectiva por via da manutenção das hierarquias de status internas; que elas introduzem, nos sistemas
educativos, formas de exclusão doce; que não asseguram uma efectiva igualdade de oportunidades no que respeita ao
prosseguimento de estudos, transformando-se, nalguns casos em caminhos sem retorno?
A resposta a estas perguntas não é tarefa fácil. A defesa de uma perspectiva vocacionalista para a educação no
espaço comunitário decorre da aceitação de um conjunto de dogmas. Um desses dogmas é expresso nos seguintes termos por
Leney e Green (2005, p. 262) num artigo recente: «Espera-se que a educação profissionalizante e a formação contínua
contribuam de uma forma positiva quer para o crescimento económico, o mercado de trabalho e os resultados individuais
quer para alcançar uma economia baseada no conhecimento na Europa», assim como, nas palavras de Gurgand (cit in Duru-
Bellat, 2006, p. 61) «não se pode renunciar a acreditar que a educação é indispensável para o crescimento e o
desenvolvimento». O porquê da manutenção desta crença no poder mágico da educação e da formação talvez resida nas
limitações orçamentais e ideológicas com que Estados membros se confrontam quando se trata de dimanizar a economia, por
via da criação directa de emprego. Impossibilitados de o fazer, resta-lhes, intervir num domínio onde mantêm, ainda, alguma
margem de autonomia e acreditar que o seu investimento será recompensado.
Um segundo dogma consiste em defender que a educação profissionalizante corresponde às exigências dos
empresários. Ora o que se verifica é que, como Gleeson e Keep (2004) demonstram, falar dos empresários como uma
entidade singular não passa de uma falácia. Os empresários não só esperam “coisas” diferentes da educação como
protagonizam uma profunda contradição entre os discursos e as práticas: se, por um lado, pressionam para que a educação
responda de uma forma mais eficaz às suas necessidades, por outro, mostram-se cada vez mais relutantes em se assumir
como parceiros efectivos dos processos de formação da futura mão-de-obra juvenil. Com efeito, a dificuldade crescente em
encontrar empresas onde ministrar a componente prática a que a educação profissionalizante está “obrigada”, é algo que se

6
Referimo-nos ao relatório anual, publicado por esta organização, intitulado Education at Glance.

333
encontra sobejamente documentado na literatura (Alves et alli, 2001; Gleeson e Keep, 2004; Stevenson, 2005; Jethcote e
Abbott, 2005). Porquê, então, o recurso a este argumento? Por que são tão poderosas as vozes dos empresários? Talvez
porque, em última instância, é deles que depende o sucesso da Estratégia de Lisboa. Serão eles que criarão mais e melhores
empregos, que contribuirão para o aumento da coesão social, que transformarão a economia europeia na economia mais
competitiva do mundo. Eles são, no actual contexto, os principais actores da mudança e as suas vozes não podem, por isso,
deixar de ser ouvidas.
No entanto, não é apenas no campo económico que os dogmas imperam. Também no campo educativo ganha cada
vez mais peso a ideia de que é necessário encontrar respostas diferentes para públicos diferentes; que é necessário excluir
para incluir e a educação profissionalizante surge, no contexto educativo, como a modalidade de eleição para resolver os
problemas de abandono e de insucesso escolares. Ela é, como defendem Leney e Green (2005), a forma mais eficaz de
assegurar o cumprimento de uma escolaridade que se pretende que abarque os 12 anos. Mas ela é também, para muitos dos
jovens que a frequentam, uma escolha forçada, uma via de exclusão dos percursos nobres, uma espécie de gueto destinado
aos que são protagonistas de trajectórias de insucesso e que, por acaso, são na sua maioria provenientes das classes populares
(Alves, 2008). A educação profissionalizante cumpre, no quadro do sistema educativo, várias funções: sob a égide de um
ensino mais prático, ela apresenta-se como uma oferta suficientemente atraente para um número elevado de jovens,
permitindo-lhes fazer face à desvalorização dos diplomas; ao manter durante mais tempo um maior número de jovens na
escola, a educação profissionalizante contribui para diminuir as taxas de desemprego juvenil; ao ter currículos que só
formalmente permitem o prosseguimento de estudos, ela contribui para manter controlada a base social de recrutamento do
ensino superior.
Em síntese, o triunfo do vocacionalismo, que se faz sentir na maior parte dos países da União Europeia, e que, em
Portugal, está presente nos objectivos educativos traçados até 2010, corresponde à consolidação de uma concepção que mais
do que nunca coloca a educação ao serviço da economia e que deslegitimiza toda e qualquer discussão sobre o seu papel na
produção de novas formas de desigualdade escolar e social.

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Abordagem de uma instituição escolar a partir de um estudo de caso de longa


duração: reflexões metodológicas no campo da sociologia das organizações
educativas1

Leonor Lima Torres


Universidade do Minho
leonort@iep.uminho.pt

Resumo: O estudo das instituições educativas a partir de uma perspectiva diacrónica, que privilegie a análise das estruturas e das práticas
escolares na long durée, constitui uma linha de investigação relativamente ausente no campo educativo. Apesar da relevância deste tipo de
pesquisas orientadas para o conhecimento de realidades escolares concretas, as opções empíricas dos diversos projectos de investigação têm
dado prioridade a estratégias metodológicas de tipo sincrónico, centradas no estudo de parcelas da realidade escolar. Tomando como
referência uma metodologia predominantemente qualitativa e a configuração do método de estudo de caso, desenvolvemos na mesma
instituição educativa três investigações empíricas que integraram, respectivamente, a dissertação de mestrado, a tese de doutoramento e uma
monografia da instituição. Estes três momentos de investigação permitiram realizar uma abordagem evolutiva dos cem anos de vida de um
antigo Liceu, pondo em destaque os momentos e os factores mais significativos na construção da cultura organizacional escolar. Nesta
comunicação pretendemos relançar uma leitura crítica sobre a nossa experiência investigativa, nas suas vertentes metodológica e
epistemológica, fundamentando a nossa reflexão em três dimensões de análise: i) processo de construção do objecto de estudo; ii) articulação
entre o modelo teórico e a metodologia adoptada; iii) especificidades e equívocos do estudo de caso na abordagem de uma instituição
escolar. No debate sobre a relevância desta metodologia de investigação recorreremos a alguns dados empíricos considerados centrais para a
apreensão dos processos de construção e reconstrução da cultura de uma instituição escolar.

1. O ponto de partida
Eleger a problemática da cultura organizacional como objecto de estudo implica, à semelhança de outros objectos
de investigação social, desenvolver um exercício simultâneo de alargamento e estreitamento do campo científico. Num
primeiro momento, interessa conhecer a abrangência teórico-conceptual da problemática e as condições que presidiram à sua
construção, sobrevoando os diversos “feudos” disciplinares e pousando, estrategicamente, em determinados “ramos” do

1
Trabalho de pesquisa desenvolvido no âmbito do Centro de Investigação em Educação (CIEd) da Universidade do Minho.

335
saber, garantindo assim uma visão panorâmica da área de estudo. No decorrer desta primeira incursão, que visa
essencialmente construir um conhecimento extensivo e multidisciplinar do objecto, surge a necessidade de encontrar um
rumo norteador de novas abordagens e de outros enfoques teóricos e metodológicos. Esta segunda fase tem sido
genericamente designada por delimitação do objecto de estudo.
A procura do lugar e do estatuto científico-epistemológico da cultura organizacional em contexto escolar constituiu,
desde o início, um objectivo central do nosso trabalho. Após várias leituras e pesquisas prévias sobre a problemática da
cultura organizacional em contexto escolar, inscrevemos o nosso enfoque numa sociologia das organizações educativas2. O
estudo da escola a partir de uma perspectiva meso-analítica que privilegia a articulação entre as dimensões macro-estruturais
e os domínios micro-contextuais constituiu, efectivamente, o quadro paradigmático de referência à luz do qual as balizas e os
horizontes da investigação se foram definindo e as propostas teórico-empíricas delimitando. A abordagem da problemática a
partir deste registo sociológico e organizacional permitiu não só a circunscrição teórica e disciplinar de um complexo e
abrangente campo analítico, como a especificação da natureza ontológica e epistemológica em que este se inscrevia. E neste
sentido, a convicção inicial de que este objecto de estudo encerrava elevadas potencialidades heurísticas no desvendamento
do funcionamento das organizações3, sem que, contudo, estivessem a ser reconhecidas, ou mesmo, devidamente capitalizadas
nos domínios da prática de gestão e administração organizacional, foi-se consolidando até se transformar num dos mais
desafiadores mobiles das nossas investigações.
De forma muito breve, podemos resumir o objectivo primordial da nossa pesquisa à elaboração de um quadro
compreensivo dos processos de construção e reconstrução da cultura em contexto organizacional (escolar), que permitisse
identificar quer os dinamismos quer as continuidades culturalmente instituídas. Por esta via, provavelmente, tornar-se-ia mais
inteligível para o leitor (gestor, administrador, consultor) o quanto pode ser falacioso investir em políticas de mudança
cultural sem que se conheça antecipadamente a natureza (perene) dos seus processos e das suas condições de construção. Esta
pressuposição torna-se ainda mais significativa quando orientada para o contexto educativo, sobretudo dos países anglo-
saxónicos, onde as perspectivas mais gestionárias da cultura assume um destaque assinalável.

2. Processo de construção do objecto de estudo


Para acedermos às agendas investigativas e metodológicas que dominavam a vertiginosa publicação de estudos
sobre a cultura organizacional no panorama internacional, consultámos algumas das mais prestigiadas bases de dados
electrónicas (UMI, ERIC, ABI-inform, ISI), tendo estas permitido subtrair algumas tendências hegemónicas quanto à
evolução das publicações, às filiações teórico-conceptuais, ao lugar ocupado pela escola enquanto contexto empírico de
investigação, aos autores mais citados, aos contextos sociais e geográficos de produção, entre outros aspectos. Esta primeira
incursão empírica revelou-se fundamental para a construção subsequente do quadro teórico, na medida em que não só veio
destacar o protagonismo da instituição escolar como contexto de investigação teórica e empírica ao nível dos estudos mais
académicos (dissertações de mestrado e doutoramento) sobre a cultura organizacional, como permitir concluir pela sua
complexidade analítica. Quando detectámos que foi no contexto escolar que as perspectivas críticas mais se desenvolveram,
não obstante a maioria dos trabalhos adoptarem registos mais integradores e gestionários, pudemos corroborar uma das
nossas hipóteses de partida.
O nó górdio da nossa investigação estava desde o início ancorado em preocupações de natureza heurística.
Simplesmente, havia que demonstrar a pertinência do estudo da cultura organizacional em contextos educativos, numa altura
em que paradoxalmente a problemática parecia não querer conquistar espaço nas agendas dos investigadores portugueses.
Para sustentar esta perplexidade, bastaria um olhar sobre a pujante produção bibliográfica ocorrida no contexto internacional,
sobre a retórica que se instalou, entre nós, nalguns discursos políticos, sindicais e gestionários, e sobretudo no clima
modernizador que varreu a sociedade portuguesa no decurso da década de noventa. Mais a mais, quando na cena educativa
portuguesa se consagraram propostas (e ideologias) de organização da escola que propiciaram a emergência de estudos sobre
e na cultura organizacional. Insistindo por outras palavras, como explicar a apatia e o desinteresse sobre o estudo do cultural
e do simbólico no contexto das organizações escolares portuguesas, numa altura em que ocorre a expansão das pós-
graduações no âmbito das ciências da educação em instituições do sistema educativo e no mercado mais vasto da formação?
Reflectirá isto o já denunciado subdesenvolvimento de estudos não tanto sobre a escola, mas na escola, com a escola e a
partir da escola (Lima, 1996: 27)?
Sendo declarado o nosso interesse em compreender o funcionamento da organização escolar, mais concretamente
sob orientação de um modelo analítico inspirado nas dimensões culturais dos paradigmas organizacionais e referenciado à
realidade educativa portuguesa, assumimos à partida o pressuposto básico que a escola é em si mesmo um fenómeno cultural,
seja a um nível institucional mais lato, seja a um nível local e comunitário mais restrito. Ao assumirmos esta premissa,
empregando um cunho cultural ao funcionamento do sistema educativo, não poderíamos deixar de considerar também as
dinâmicas de interacção como produto cultural. Dificilmente encontraremos entre as mais relevantes instituições da

2
Consultar a proposta pioneira de Lima (1991) intitulada Sociologia das Organizações Educativas e da Administração Educacional.
3
Já em 1992 António Nóvoa (1992:32) alertava para as possibilidades que a problemática da cultura organizacional encerrava no estudo da escola:
"[...] mas a análise das culturas organizacionais encerra potencialidades heurísticas, podendo ajudar a definir os contornos de um novo tipo de saber, o qual
assume as organizações escolares como um objecto próprio de análise".

336
modernidade um espaço tão intenso de produção cultural, de interacção social e de trocas simbólicas como a organização
escolar, um espaço onde o trabalho humano recobre todo o seu sentido antropológico. O dinamismo institucional ilustrado
pela rotatividade de um número considerável de professores e pela permanência limitada dos alunos nos anos específicos de
escolaridade, transforma a escola num laboratório de sínteses culturais, um entreposto cultural como temos vindo a designar.
Por mais que concebamos esta instituição como uma mera periferia de um centro de controlo escolar, que admitamos o seu
carácter eminentemente reprodutor, ficariam no entanto por esclarecer os distintos modos de ser e de fazer, subjectivos e/ou
colectivos, que se oferecem ao investigador no âmbito do seu labor sociológico.
O conhecimento de uma organização escolar constituiu um aliciante para ulteriormente se pensar noutras
instituições com valências educativas. Ao concebermos um modelo teórico de múltiplas entradas e ao privilegiarmos a
compreensão da realidade educativa a partir dos significados simbólico-culturais dos actores, estávamos consequentemente a
propor uma inversão da perspectiva analítica mais recorrente naqueles contextos educativos, onde as especificidades
organizacionais não tendem a interferir na construção do modelo teórico. Não seria difícil pensarmos, por exemplo, numa
unidade hospitalar, em que as relações entre o dentro e o fora se parecem acentuar cada vez mais numa óptica da prestação
dos serviços, a despoletar o surgimento de comissões de utentes, a manifestar a tensão com o fora comunitário (político,
científico, sindical, ecológico, etc.); por sua vez, a dialéctica entre a estrutura e a acção poderia ser demonstrada pela tensão
resultante da privatização crescente da administração e gestão, pela reacção dos vários segmentos profissionais à ética da
empresarialização dos cuidados de saúde prestados, pelas lógicas do profissionalismo e do funcionarismo, pelas lógicas do
serviço público e as lógicas clientelares, pelas políticas e práticas de formação contínua, entre outros aspectos morfológicos e
organizacionais. Salvaguardadas as devidas e as necessárias especificidades, o estudo da complexidade social e
organizacional da escola pode também contribuir, deste modo, para o desenvolvimento de perspectivas mais interpretativas
de outros figurinos organizacionais.
A reflexão teórico-epistemológica desenvolvida traduziu-se no esboço de uma matriz teórica que carenciava de
categorias analíticas. No fundo, convergimos para o aprofundamento e consolidação de um modelo de análise anteriormente
desenvolvido, privilegiando agora o entendimento dos processos de construção e reconstrução da cultura organizacional,
ampliando o campo investigativo a uma visão mais holística e alargada no tempo, pensado na possibilidade de recurso a
variadas técnicas de investigação empírica. Enfim, o investimento no estudo das regularidades culturais da escola, só possível
num tempo de longa duração, exigiu a demarcação do campo analítico aos eixos teóricos que se revelaram mais pertinentes
para a exploração sociológica desta problemática: os pares estrutura-acção e fora-dentro (cf. figura 1). O regresso à
instituição escolar que foi objecto de investigação empírica para a operacionalização daquele primeiro modelo de análise,
enquadrou-se nessa estratégia de continuidade e de capitalização dos conhecimentos anteriormente adquiridos.

Figura 1
Processo de construção da cultura organizacional escolar: dimensões analíticas

3. Articulação entre o modelo teórico e a metodologia de pesquisa


Os pressupostos básicos em que assenta a nossa proposta teórica exigem a adopção de uma postura investigativa
que contemple necessariamente uma dimensão temporal de longa duração. A compreensão sociológica dos processos de
construção e reconstrução da cultura de uma organização, pressupõe a sua recontextualização histórica, social e política, de
forma a podermos captar a morfologia das continuidades e das descontinuidades. A análise da importância das categorias
estrutura-acção e dentro-fora assume pertinência e validade heurísticas quando apreendidas no seu percurso evolutivo, de
preferência inseridas num contexto temporal alargado, presumindo-se condição estruturante dos processos de solidificação
cultural.

3.1. De um caso em estudo ao estudo de caso


Se há uma década atrás o nosso projecto de investigação, realizado no âmbito de uma dissertação de mestrado,
estava condicionado ao desenvolvimento de uma abordagem de natureza sincrónica, com a tese de doutoramento tivemos a
preocupação, desde o início do processo, de encetar estratégias conducentes ao aprofundamento de um estudo mais de
natureza diacrónica e extensiva. Assim, de um caso em estudo, como então caracterizamos a nossa primeira pesquisa
empírica — uma escola, um ano lectivo, um segmento da sua população (os professores) —, sustentamos
metodologicamente, nas pesquisas posteriores, uma operacionalização empírica que configura um estudo de caso,
investigando inclusive a mesma organização escolar, só que agora desde a sua fundação em 1904 até ao ano de 2004.
Ao longo de um século de funcionamento, marcado por diversas conjunturas políticas, económicas e sociais, e
consequentemente também educativas, procuramos analisar sociologicamente os factores intervenientes no processo de
construção da cultura da escola, a natureza das suas manifestações dominantes e a identificação tanto das regularidades como
dos momentos de ruptura e de descontinuidade cultural. Considerando os actores (em interacção) como os protagonistas da
criação da cultura, um estudo de longa duração permitiu-nos compreender os contextos da sua produção e, correlativamente,
identificar a importância que alguns factores de natureza externa e interna assumiram no condicionamento dos sentidos e das
lógicas de acção individual e colectiva. A apreensão contextualizada do significado cultural da acção humana, por referência
aos constrangimentos estruturais e institucionais, tornou-se assim fundamental à compreensão das especificidades culturais e
simbólicas desenvolvidas no âmbito de um espaço-tempo organizacional.
Atendendo às conhecidas especificidades políticas e organizacionais da escola (designadamente as que decorrem do
seu enquadramento numa administração centralizada, da natureza dos seus objectivos e da sua população), o lugar, a função e
o estatuto dos actores no processo de construção da cultura é desigual, desequilibrado e assimétrico. No quadro da estrutura
governativa e organizativa da escola, os professores detêm um grau de responsabilidade educativa e, consequentemente,
poder a vários níveis (político, organizativo, gestionário e pedagógico) incomparavelmente distinto dos outros actores
(alunos, pessoal não docente, pais e encarregados de educação, entre outros) e, como tal, conferidor de um protagonismo
significativo na construção simbólico-cultural. Apesar de não excluirmos a relevância dos outros actores na definição da
dinâmica cultural, nomeadamente aqueles cuja permanência na organização é semelhante ou mesmo superior à dos
professores (os alunos e o pessoal não docente), no entanto, a sua condição cultural e educativa não deixa de ser periférica
quando confrontada com a centralidade institucionalmente esperada dos professores.
Agentes receptores das políticas centrais, aos professores cabe a missão de as interpretar e executar no contexto
escolar, quer reproduzindo e quer auto-recriando aquelas orientações normativas e culturais hetero-estabelecidas. Nesta
ordem de ideias, elegemos como unidades de investigação empírica, os contextos privilegiados de reprodução e produção
cultural, designadamente os loci de negociação política, de definição de regras organizacionais, enfim, os espaços-tempo de
mediatização simbólico-cultural — os órgãos de direcção e gestão da escola. A partir da análise das dinâmicas de acção
desenvolvidas essencialmente nestes contextos procuramos compreender o processo de construção da cultura na organização
escolar.

3.2. Organização e focalização progressiva do estudo de caso


O desenvolvimento das investigações empíricas recaiu sobre uma escola secundária enraizada num meio urbano,
cujo processo de organização e funcionamento apresentava ainda reminiscências dos traços culturais herdados do modelo
liceal. Os primeiros setenta anos de funcionamento do liceu (compreendidos entre a fundação em 1904 e a revolução
democrática de 1974) constituíram, por isso, uma primeira fase da investigação, mais preocupada com o processo de
reconstituição histórica da vida desta instituição e a consequente compreensão das dinâmicas do seu funcionamento. Dado
tratar-se de um período mais recuado no tempo, recorremos quase exclusivamente à análise documental, cuja diversidade de
fontes consultadas daremos conta mais à frente.
A segunda fase da investigação, aberta com o marco da Revolução de Abril de 1974 e alargada até ao inicio do
século XXI, constituiu o principal momento de exploração e operacionalização empírica do nosso modelo teórico. Tratou-se
de um espaço-tempo mais próximo do ponto de vista histórico, tendo mesmo constituído para nós, num determinado
momento deste período, um dos contextos mais marcantes do ponto de vista da nossa própria socialização — frequentámos
esta escola durante oito anos consecutivos (1978-1986).
A análise documental constituiu o recurso principal da investigação empírica que recobriu este período, ainda que
complementada com os dados recolhidos através das outras duas técnicas: as entrevistas e a observação não participante. A
riqueza e a pertinência da informação deduzida dos Livros de Actas das reuniões do Conselho Escolar, do Conselho
Directivo, do Conselho Pedagógico e das Reuniões Gerais de Professores, sobretudo quando perspectivadas numa dimensão
temporal alargada, convenceu-nos da sua possibilidade na desocultação sociológica das racionalidades e das estratégias de
acção colectiva e individual dos professores. Por outro lado, permitiu-nos recensear os principais acontecimentos que
marcaram o funcionamento da escola através de uma narração oficial e escrita, lida e aprovada pelos actores intervenientes, o
que nos facultou uma versão mais objectiva e factual, supostamente mais isenta e verosímil do quotidiano escolar — facto
nem sempre possível quando utilizávamos a técnica da entrevista, mais dependente de uma memória organizacional limitada.

338
No âmbito da análise documental, recorremos igualmente à leitura de documentos diversos produzidos no contexto
da escola, quer de natureza mais avulsa (circulares, notas de serviço, esclarecimentos, convocatórias, avisos), quer de pendor
mais político-estratégico (projecto educativo, planos de actividades, regulamentos internos, pareceres oficiais, discursos e
homenagens, agenda da escola, entre outros), quer ainda documentos mais ligados à gestão e coordenação pedagógica
(critérios de distribuição de serviço e de funções diversas, normas e regulamentos vários, relatórios de actividades, guiões de
visitas de estudo, balanços pedagógicos, roteiros de procedimentos, regimentos dos órgão da escola, entre outros).
A análise daquelas fontes de informação foi sendo contextualizada e confrontada com os dados de caracterização
dos vários elencos directivos constituídos entre 1974 e 2004, assim como com os dados referentes à mobilidade, rotatividade
e permanência dos professores nesta instituição. Para obtermos uma caracterização dos elencos directivos, procedemos a uma
análise minuciosa dos Processos Individuais dos Professores que os integraram, introduzindo informaticamente algumas
variáveis consideradas pertinentes, para posteriormente efectuarmos um tratamento estatístico em SPSS, de modo a permitir a
construção de um perfil-tipo para cada elenco directivo. Por sua vez, os dados referentes à rotatividade e permanência
efectiva dos professores na escola, resultaram da consulta comparativa entre três tipos de fontes documentais e igualmente
inseridas informaticamente: as Folhas de Vencimento dos professores e do pessoal não docente, relativas ao mês de Agosto
(para os anos de 1974 a 1994); as Listagens Oficiais dos professores cedidas pelo Conselho Directivo/Executivo (a partir de
1994); e as Fichas de Recenseamento da Administração Pública (para o ano de 1999/2000).
Foram também realizadas duas entrevistas em profundidade aos dois protagonistas da gestão da escola, ambos
presidentes dos órgãos de direcção durante vários mandatos consecutivos, com um horizonte temporal de aproximadamente
uma década cada um. Da nossa permanência nesta organização durante o ano lectivo de 1999/2000, resultou igualmente um
conjunto de informações pertinentes, ora advindas das conversas informais com muitos professores, alunos e funcionários,
ora ainda da observação de vários ambientes e de contextos de interacção, como a sala dos professores, a secretaria, a cave
onde esteve provisoriamente instalada a sala dos professores estagiários, o gabinete do Conselho Directivo/Executivo, a sala
dos Directores de Turma, entre outros espaços da escola onde o nosso olhar também se deteve.
Destacamos, por fim, dois dos momentos mais profícuos do ponto de vista investigativo, nomeadamente a nossa
participação activa no projecto "Educar para a Cidadania", como oradora de uma conferência aberta à comunidade; e nas
Comemorações do Cinquentenário do Edifício da Escola, igualmente como oradora noutra conferência aberta à comunidade,
intitulada "Fragmentos sociais e culturais do quotidiano de um liceu". Em ambos os casos, o convívio com alunos,
professores e outros elementos da comunidade educativa (actuais e antigos), propiciaram importantes momentos de
consolidação dos conhecimentos sobre a nossa organização escolar-objecto de estudo.
Enquadrado num paradigma predominantemente qualitativo e interpretativo, o estudo procurou fundamentar-se
pela exploração dos processos de construção da cultura, das dinâmicas e dos imobilismos, das regularidades e das
descontinuidades do quotidiano da escola e dos seus actores. Mais do que o resultado — a fotografia cultural —, interessou-
nos apreender o processo — a forma como a cultura se constrói e reconstrói no devir histórico.

4. Roteiro da investigação: opções e tensões metodológicas


O desenvolvimento das estratégias e opções metodológicas encontra-se profundamente imbricado no processo de
construção do objecto de estudo. Grande parte das opções metodológicas ocorre aquando da delimitação do tema e da
definição do campo analítico e conceptual, exigindo do investigador uma postura de permanente superação de dilemas
simultaneamente teóricos e metodológicos. Mesmo tratando-se de um processo evolutivo e consequente, a componente
estritamente empírica do trabalho desencadeia novas situações e problemas a exigirem opções e a arrastar outras tensões de
natureza muito variada.

4.1. Visão panorâmica versus focagem demarcada


Atendendo à extensão temporal da abordagem desenvolvida, estruturamos o estudo em duas partes essenciais: uma
primeira, centrada na análise da vida do liceu durante o período anterior ao 25 de Abril de 1974; e uma segunda parte,
abrangendo o período compreendido entre o pós 25 de Abril e o ano de 2004.
Um primeiro ponto prévio ao desenvolvimento da incursão histórica prendeu-se com a natureza das fontes
consultadas e analisadas. Utilizamos sobretudo documentos escritos existentes no arquivo do Liceu, ou então, na sua
ausência, informações recolhidas na Torre do Tombo e no Arquivo Geral do Ministério da Educação, via equipa de
investigação que apoiou um projecto em que participamos4. Entre os vários tipos de fontes analisadas, destacamos, em
primeira instância, aquelas que constituem o património arquivístico do Liceu, como sejam os Relatórios Anuais dos

4
Referimo-nos ao Projecto Informatização Normalizada dos Arquivos Históricos dos Liceus (PRÁXIS XXI, nº2/2.1/CSH/765/95), sob a
Coordenação e Direcção Científica de António Nóvoa. O resultado deste trabalho de investigação encontra-se publicado em Leonor Lima Torres (2001). "Liceu
da Póvoa de Varzim: Da Fundação à Revolução", in Boletim Cultural da Póvoa de Varzim, Vol. XXXV, pp. 5-71; Leonor Lima Torres (2003). "Liceu de Eça de
Queirós, na Póvoa de Varzim", in António Nóvoa e Ana Teresa Santa-Clara (Coords.). Liceus de Portugal. Histórias Arquivos Memórias. Porto: Edições ASA,
pp. 687-705; Leonor Lima Torres (2006). Liceu da Póvoa de Varzim. Os Actores, as Estruturas e a Instituição. Um Estudo Monográfico por Altura do
Centenário. Póvoa de Varzim: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

339
Reitores5, os Anuários, os diversos Livros de Actas (Conselhos Escolares, Conselhos dos Directores de Classe, Conselhos
Administrativos, Associações de Professores, entre outros), os Livros de Registo da Nomeação, Movimento e Cadastro do
Pessoal do Liceu, os jornais publicados no Liceu, entre outras. Em segundo lugar, merece registo a relevância encontrada nos
artigos publicados em inúmeros Boletins Culturais, assim como em vários jornais da imprensa local. Por fim, realçamos
ainda a pertinência de alguns Relatórios de Gerência da Câmara Municipal e de diversos documentos avulsos que serviram de
apoio a esta base bibliográfica mais vasta.
Um segundo ponto que merece registo consiste na forma como estruturamos o trabalho. Face à dificuldade
encontrada em estabelecer uma periodização formal para o período em análise, resultante quer da ausência de informações
mais aprofundadas para determinados períodos, quer pelo facto de estar em causa o estudo de um período histórico
relativamente longo (setenta anos), optamos antes pela divisão do trabalho em várias rubricas, sem que estas obedecessem a
qualquer critério a priori, que não fosse o de evitar, o mais possível, espartilhar o sentido e os significados que subjaziam ao
percurso da instituição.
A segunda parte da abordagem evolutiva procurou caracterizar as lógicas de funcionamento da instituição por
referência ao quadro político mais vasto de construção da gestão democrática nas escolas, dos movimentos das reformas
educativas das décadas de oitenta e noventa e do contexto de implementação formal da autonomia. Enquanto numa primeira
fase, se privilegiou a reconstituição histórica das dinâmicas de funcionamento do liceu nos seus primeiros setenta anos de
existência, na segunda fase desenvolvemos o estudo das estruturas de direcção e gestão da escola, nomeadamente a evolução
do perfil dos vários elencos directivos desde 1974 até 2004 e a análise da evolução da população escolar, com particular
ênfase do corpo docente. O conhecimento aprofundado das condições estruturais do liceu nos últimos 30 anos de gestão
democrática, sobretudo no que diz respeito ao acompanhamento das trajectórias de carreira dos actores — ao seu tempo de
permanência no liceu, aos mecanismos de integração e exclusão em diversos cargos, entre outros — constituiu a base sobre a
qual se alicerçou uma abordagem essencialmente interpretativa sobre algumas regularidades verificadas nos domínios
discursivos e das práticas quotidianas, formalmente registadas em reuniões dos órgãos de direcção e gestão da escola.
O processo de construção desta pesquisa exigiu uma postura metodológica de constante conciliação entre uma
abordagem holística e contextualizada da organização escolar e uma focalização circunscrita a determinados aspectos da
escola. Este exercício de focalização progressiva (Stake, 2007) redireccionou a observação para o aprofundamento dos
significados de determinadas situações-objecto, acomodando pelo caminho outras dimensões que acabaram por se revelar em
importantes indicadores de inteligibilidade da realidade cultural. Na medida em que “analisar significa, na essência,
fraccionar” (Stake, 2007: 87), entendemos esta démarche como um exercício simultâneo e iterativo de construção,
desconstrução e reconstrução dos significados inerentes aos fenómenos culturais e simbólicos.

4.2. Reconstituição das cronologias históricas versus restituição dos significados da instituição
Mais centrada na análise das estruturas e dos actores, as abordagens desenvolvidas apoiaram-se sobretudo na
consulta e tratamento informático dos dados biográficos dos professores, recolhidos em várias bases de dados (Folhas de
Vencimento, Processos Individuais e outros registos), na leitura das actas das reuniões dos Conselhos Directivo, Pedagógico
e das Reuniões Gerais dos Professores e numa grande diversidade de documentos produzidos na escola. No sentido de
melhor clarificarmos a natureza das fontes empíricas consultadas, o quadro 1 apresenta um resumo das principais
informações trabalhadas. Muito embora nem todas tenham assumido o mesmo estatuto heurístico, nem tão pouco igual
centralidade na pesquisa desenvolvida, a generalidade das informações contidas neste quadro contribuiu para a compreensão
de algumas lógicas e sentidos da acção organizacional, nalguns casos mesmo para a identificação de ideologias de gestão-tipo
e, consequentemente, para a dedução de algumas especificidades culturais e simbólicas da escola.
Após um primeiro olhar exploratório sobre o percurso de evolução da escola, que permitiu uma apreensão, no
tempo, das principais regularidades e rupturas aos níveis político, organizacional e cultural, o objectivo seguinte centrou-se
no aprofundamento de algumas das pistas ali enunciadas, tendo como matriz de referência os principais pilares teóricos
estruturadores do nosso modelo de análise. Se bem que as preocupações teórico-epistemológicas constituíssem o principal
pilar norteador da estruturação da primeira parte do trabalho, que funcionou como um primeiro momento de filtragem dos
acontecimentos, uma segunda abordagem emergiu como uma espécie de síntese compósita das principais configurações
culturais-tipo observadas nesta escola.

Quadro 1
Resumo das principais fontes de informação analisadas (1974-2004)

Natureza das informações Tipo de Fontes

5
Estes relatórios revelaram-se fundamentais para a reconstituição da evolução da escola de um ponto de vista holístico. Permitindo a contextualização
da "aplicação das normas legais em função da especificidade de cada liceu" (Barroso, 1995: 547), esclarecendo algumas dimensões da sua identidade, esta
primeira análise "quase-etnográfica" revelou-nos informações cruciais relativas ao funcionamento do liceu. Para uma análise mais aprofundada sobre a estrutura
legal dos Relatórios dos Reitores, consultar a segunda parte da dissertação de doutoramento de João Barroso.

340
Livros de actas Conselho Escolar
Reuniões Gerais dos Professores
Conselho Directivo/Executivo
Conselho Pedagógico
Dados sobre população Processos Individuais dos professores e pessoal não docente
escolar Folhas de Vencimento do pessoal docente e não docente (1974-1994)
Fichas do Recenseamento da Administração Pública (1999)
Listagens oficiais do pessoal docente e não docente cedidas pelo Conselho
Directivo/Executivo (1994-2000)
Entrevistas realizadas aos docentes
Base de dados informática constituída pelos últimos 500 funcionários ao
serviço na escola
Resultados do inquérito por questionário ministrado a toda a população escolar,
da responsabilidade da Comissão designada para a elaboração do Projecto
Educativo
Dados relativos à gestão Circulares, notas de serviço, avisos, normas, regras, etc.
quotidiana da escola Distribuição de cargos/funções
Planificações das disciplinas e distribuição de serviço
Organização dos cursos e agrupamentos por ano de escolaridade
Documentos Projecto Educativo (1992/93; 1998/99; 1999/00)
políticos/estratégicos Regulamento Interno (1996-2000)
Planos de Actividades (1994-2000)
Relatórios de Execução dos Planos de Actividades (1999/00)
Agenda da ESEQ (1998/1999)
Guião da visita de trabalho efectuada pelo Director Regional da Educação do
Norte à ESEQ
Dados relativos ao Regulamento das visitas de estudo
planeamento e coordenação Projecto Área-Escola (balanço, planeamento, avaliação)
pedagógica Apoio pedagógico (critérios, regulamentos)
Direcção de Turma (distribuição do serviço, dossiers, normas organizacionais,
roteiros de procedimentos)
Ensino Recorrente (roteiros e procedimentos)
Avaliação (critérios, regulamentos, comissões especializadas)
Homenagens, louvores Discursos de Boas Vindas aos alunos
Discursos de abertura das festas de Natal
Discursos de abertura das Reuniões Gerais dos Professores
Discursos de Homenagens
Correspondência para o Cartas dirigidas à Direcção Regional de Educação do Norte
exterior Cartas dirigidas aos Encarregados de Educação
Cartas dirigidas à Câmara Municipal
Documentos produzidos no Encontros do Secundário (reflexão produzida no Conselho Pedagógico)
âmbito dos órgãos escolares Pareceres do Conselho Pedagógico e da Assembleia
Propostas resultantes do debate público sobre o Regulamento Interno,
elaboradas pela Assembleia
Minutas informativas das deliberações da Assembleia
Modelo de Autonomia e Gestão das Escolas (reflexões, propostas, concepções,
competências dos órgãos, organigramas, estruturas intermédias, regimento dos
órgãos, etc.)

4.3. Interpretação da circunstância única versus busca de padrões culturais


Como consequência, o recurso aos dados empíricos foi metodologicamente orientado para a ilustração daquelas
configurações, sendo objecto de uma meticulosa selecção e interpretação sociológicas. Face à riqueza e às possibilidades do
conteúdo das actas das reuniões dos vários órgãos de direcção e gestão da escola, procedemos à elaboração de uma ficha de
leitura estruturada por conjunto de variáveis pertinentes, onde fomos registando, para cada acta lida, as informações e as
interpretações correspondentes. Procurou-se, deste modo, sobretudo a partir da definição de algumas questões fechadas, obter
tendências do comportamento dos vários órgãos escolares e, consequentemente, a sua visualização no quadro teórico
anteriormente avançado. Os resultados quantitativos foram, sempre que possível, cotejados com o teor factual descrito nas
actas, tendo-se propiciado, subsequentemente, o cruzamento e a intertextualidade das informações existentes relativas aos

341
diversos órgãos da escola. Esta estratégia pretendeu dar expressão àquilo que temos designado por "olhar estereoscópico" da
organização escolar. (Torres, 2004)
O quadro 2 apresenta o número de reuniões lavradas em acta dos diversos órgãos, no período de estudo
considerado. Todo este extenso número de actas lidas e analisadas representaram um suporte empírico fundamental, tanto ao
nível do acesso a um conjunto de ocorrências significativas e a alguns episódios escolares relevantes (de que não há registo
nem memória noutras fontes), como, no plano exploratório, enquadraram a busca de pistas, de pontos de partida para
posteriores indagações (como foi o caso das entrevistas realizadas), assim como orientaram a consulta de outros documentos
organizacionalmente produzidos.

Quadro 2
Número de actas analisadas (1959-1999)

Conselho Reuniões Gerais Conselho Conselho Total


Escolar de Professores Directivo/Executivo Pedagógico
45 58 303 220 626

Conscientes das limitações inerentes ao uso desta técnica de investigação (como de qualquer uma outra considerada
isoladamente) — designadamente os diferentes estilos e linguagens utilizadas pelos relatores (secretários), a natureza política
deste documento, a selecção estratégica dos seus conteúdos, etc. — julgamos, contudo, que a nossa atitude de permanente
vigilância crítica, de comparação e confrontação com uma grande diversidade de fontes de informação e, essencialmente, a
consideração de um amplo horizonte temporal (que percorre vários períodos políticos), permitiu transformar tais
condicionalismos em mais-valias investigativas. A passagem por vários períodos políticos imprimiu uma dinâmica de leitura
das actas mais preocupada com as tendências, as regularidades e os momentos de ruptura, e não tanto com informações
pontuais, conjunturalmente delimitadas, que exigissem uma total fidelidade e veracidade do registo escrito. Diríamos mesmo,
que a não leitura e análise das actas, eliminaria do nosso campo de estudo um considerável rol de acontecimentos pertinentes,
assim como destituiria de sentido (político e estratégico) certas lógicas colectivas de acção na escola, estruturadoras de
algumas regularidades simbólico-culturais.
No prosseguimento da pesquisa, outro dilema metodológico se interpôs com alguma acuidade: atendendo à
multiplicidade de fenómenos observados, qual a melhor forma de estabelecer a relação entre eles? Focalizando o olhar nas
eventuais causas e efeitos ou, em alternativa, explorando os processos multidimensionais da realidade cultural?
À luz de um enfoque interpretativo e compreensivo interessava sobretudo captar acontecimentos, se possível sob a
forma de cronologias, privilegiando a compreensão das complexas relações entre os fenómenos. Por esta via, procuramos
identificar alguns significados a partir da recorrência e da consistência com que certos padrões (culturais) se manifestavam,
não tanto numa lógica de descoberta mas antes numa perspectiva de construção de asserções (Erickson, 1986). Por exemplo,
a análise de mais de seis centenas de actas do Conselho Directivo/Executivo e do Conselho Pedagógico permitiu deslindar
algumas das regularidades e das rutpuras mais significativas ao nível do funcionamento quotidiano da instituição.
Paralelamente, incidimos a nossa abordagem sobre a interpretação de circunstâncias únicas, designadas na nossa pesquisa
como episódios significativos da experiência social. A exploração destes episódios (típicos a atípicos) funcionou tão tanto
como uma estratégia de confirmação de significados tidos como certos, mas muito mais como uma busca de interpretações
adicionais (Flick, 1992) que nos servissem de apoio à triangulação e confrontação de significados contraditórios. Por outro
lado, alguns destes episódios induziram a passagem do micro-acontecimento à meso e macroestrutura, proporcionando uma
leitura tridimensional do quotidiano organizacional.

5. Nota final
O desenvolvimento de um estudo de caso comporta múltiplas tensões teóricas e metodológicas, usualmente
descritas nos manuais de investigação de forma mais ou menos sistematizada (cf. Lessard-Hébert, Goyette & Boutin, 1994;
Stake, 2007; Bogdan & Biklen, 1994; Chizotti, 2006, entre outros). Todavia, a práxis investigativa e as especificidades dos
próprios objectivos de estudo encarregam-se de colocar à prova algumas premissas tidas como metodologicamente válidas e
infalíveis, confrontando o investigador com uma realidade empírica frequentemente framentada e desordenada. A dialéctica
entre a teoria e a prática constitui, na nossa óptica, uma das tensões mais desafiadoras do processo de construção de um
trabalho científico. Neste texto, de carácter ainda preliminar, procuramos ilustrar de que forma a teoria e a prática se
articularam (e por vezes desarticularam) ao longo de toda a pesquisa, gerando em cada momento concreto novos dilemas,
novas interrogações a exigir outras tantas opções. Em qualquer dos casos, parece ficar sempre a sensação de que a
complexidade dos contextos em acção transcende sempre qualquer tentativa de reconstituição dos seus significados.
Interessa, por isso, aprofundar a relação entre o conhecimento e a acção social, numa tentativa de consolidar estratégias
metodológicas e de procurar novas formas de produção de conhecimento.

Referências bibliográficas

342
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Teaching. Nova Iorque: Macmillan, (pp. 119-161).
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Simbólico Numa Escola Secundária. Braga: CIEd/Universidade do Minho.
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Altura do Centenário. Póvoa de Varzim: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

Educação deformada: aventuras da reforma do ensino médio no nordeste


brasileiro

Jean Mac Cole Tavares Santos


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
maccolle@hotmail.com

Resumo: Este trabalho discute o Ensino Médio no interior cearense, sob os impactos da Reforma Educativa implantada pelo Ministério da
Educação do Brasil, a partir de meados dos anos 90. Analisamos, em tese de doutoramento, como o conjunto da Reforma chegou às escolas.
A pesquisa foi realizada através de entrevistas semi-estruturadas com professores e diretores atuantes nas escolas públicas da região e de
análise documental que embasa a reforma. Ela também foi complementada com a observação de campo e com a aplicação de questionários
aos discentes. Nossa tese comprovou que a Reforma do Ensino Médio foi implementada parcialmente, deslocada do contexto do interior
cearense e com financiamento insuficiente, aprofundando a agonia da escola pública de Ensino Médio e acrescendo seus históricos
problemas, como a baixa qualidade na aprendizagem, o descrédito nas intervenções estatais, a política do improviso e a desvalorização dos
profissionais do magistério. Portanto, percebemos que apesar de a escola pública de Ensino Médio do interior cearense não se reconhecer no
discurso oficial que justifica a Reforma, ela serviu para alavancar um série de ´aventuras´ localizadas como a implementação da
semestralidade, contribuindo para a pulverização dos conteúdos, a aprovação do aluno de forma compulsória, tirando o foco escolar da
aprendizagem, e a municipalização do ensino fundamental de forma desorganizada e a mercê dos interesses políticos regionais,
desrespeitando alunos, professores e comunidade escolar.

Introdução
Este trabalho dirige um olhar sobre o Ensino Médio, no interior cearense, para perceber como a reforma dessa
modalidade de ensino chegou às escolas secundárias públicas. Anunciada como uma reforma necessária para atender a
crescente expansão da demanda por vagas, ela apresenta o incremento da gestão democrática e a mudança curricular como
seus principais elementos. No entanto, a questão do financiamento, ponto central de qualquer política pública, é tangenciada
como um problema menor a ser enfrentado. A partir das falas de professores e diretores, atuantes nas escolas de ensino médio
onde essa pesquisa se realizou, pretende-se perceber quais os impactos no cotidiano escolar das ações reformistas
introduzidas pela política do MEC e das secretarias estaduais de educação. Pode-se entender que a fala dos personagens que

343
vivem/convivem na escola é revelador dos limites e das possibilidades das políticas introduzidas para a “transformação”
educacional.
Parte-se do preceito de que a anunciada reforma faz parte de uma reforma mais ampla do Estado brasileiro, cujo
objetivo é aprofundar o receituário neoliberal que vem sendo aplicado no Brasil, visando diminuir a função estatal nas
políticas públicas e nas relações trabalhistas e, ainda, ampliar a participação da iniciativa privada em áreas como a educação,
a saúde e a previdência social.
Entende-se que a ampliação do neoliberalismo vem como resposta político-ideológico a uma profunda crise que
vive o sistema capitalista há, pelo menos, três décadas, em que o principal sinal é o esgotamento do modelo de acumulação
taylor-fordista, levando à bancarrota o estado de bem-estar-social que, mesmo submetendo os trabalhadores à exploração do
regime capitalista, conseguia manter algumas benesses, como o pleno emprego e a previdência social pública. Com a
incapacidade de o capital continuar sua sina acumulativa através do modelo de produção vigente, inicia-se uma ofensiva de
recuperação através da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais. Ambas, irmãs siamesas, nos dizeres de DIAS
(1996), estão no contexto apresentado como motivos para as reformas educacionais e, particularmente, para a do Ensino
Médio.
Vale pontuar que o capitalismo ganha um reforço político-ideológico muito importante quando os países ditos
socialistas entram em colapso. Primeiro, porque apresentam a derrocada daqueles países como prova cabal da
impossibilidade de outros caminhos que não o do mercado; segundo, porque o fim da bipolarização e, por conseguinte, do
medo do comunismo, seja esse medo ideológico ou militar, deixa os países capitalistas sob a hegemonia dos EUA, sem a
necessidade de provar que tem as melhores condições de cuidar do bem-estar da humanidade e do planeta terra.
Desse modo, o estado capitalista está forte o suficiente para implementar as reformas neoliberais, eliminando
direitos sociais conquistados alhures, removendo barreiras comerciais e fiscais, desobstruindo os canais que ainda impedem
que ele se apresente como absoluto. É o Estado mínimo, quando se trata de prestar serviços sociais, e máximo, quando se
trata de proteger o lucro e o acúmulo do capital.
Por fim, esse contexto também possibilita o discurso hegemônico de crise de paradigmas, de fim da história, de fim
do emprego, da inevitabilidade da flexibilização de direitos, de superação do trabalho abstrato, da necessidade de novas
competências e habilidades para estar concatenado às novas maquinarias automáticas e às inovadoras técnicas de organização
do trabalho (conhecidas como ohnismo, toyotismo ou modelo japonês de produção), utilizadas largamente para justificar as
reformas neoliberais e, dentre elas, a reforma do Ensino Médio.
Nesse contexto, a educação é tratada como um serviço a ser prestado, e não, como um direito universal. O Estado,
perante essa máxima neoliberal, age priorizando investimentos, focado em políticas educacionais públicas gerais e sempre
com um custo abaixo do necessário para obter bons resultados, sobretudo, em termos de qualidade. O foco, nesse caso, é o
Ensino Fundamental, tido como de retorno mais rápido e de socialização necessária ao capital. Então, não é de se estranhar
que o discurso que tem em vista uma educação secundária expansiva a todos não passe pelo crivo do financiamento e,
tampouco, no da qualidade.
Para resumir, esta pesquisa tem como referência que o discurso da Reforma do Ensino Médio – da necessidade de
adaptação da escola às profundas transformações no mundo do trabalho – está consoante com o discurso mais amplo que
tenta justificar as reformas neoliberais implementadas pelo Estado brasileiro, com o intuito de eliminar direitos sociais,
desobrigar o próprio Estado com os poucos direitos ainda não atacados e abrir caminho para a iniciativa privada. Tais
reformas neoliberais estão a serviço da ofensiva do capital em busca de recuperar seu domínio.

Currículo do Novo Ensino Médio: reflexos e interpretação da lei no ambiente escolar.


Hélio: O currículo já vem [determinado] pelos órgãos oficiais. Ele vem de cima pra baixo. Acredito até que deva
ser mesmo assim. Só que devia pelo menos ouvir aqueles que convivem realmente na sociedade [comunidade escolar] e
sabem quais são as reais necessidades dos alunos (...). É uma coisa que precisa ser mais bem avaliada, melhor pensada. Tem
disciplina que não existe no currículo que poderia ajudar o aluno a despertar para uma profissão, para ocupar uma vaga numa
empresa. Tem que ser visto esse outro lado, o lado da escola, [o lado] do aluno.
Ao contrário do que acontece na prática, tomando como referência a fala acima, a LDB já apontava a necessidade
do estabelecimento de Diretrizes Curriculares para a educação básica, em substituição ao currículo mínimo anterior. Visava,
com isso, dar maior flexibilidade e autonomia às instituições responsáveis pelo ensino, deixando a cargo do Ministério da
Educação e do Conselho Nacional de Educação a tarefa de orientar o estabelecimento do currículo (MARTINS, 2000).
Dentro da mesma lógica de autonomia e de foco na escola e no aluno, foram instituídas as Diretrizes Curriculares
para o Ensino Médio, através da Resolução número 03/98 de 26 de junho de 1998 que, por sua vez, baseava-se no Parecer
número 15/98 de primeiro de junho de 1998, ambos da Câmara de Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação.
Para relembrar, as formulações das diretrizes curriculares para a reforma do Ensino Médio incluíam quatro pontos centrais:
a) a identificação do Ensino Médio com a formação geral básica, articulada com uma perspectiva de educação
tecnológica e com o mundo do trabalho;
b) o ideário de diversificação e flexibilização curricular, como forma de estabelecer um modelo educacional
flexível de atendimento às diferentes clientelas;

344
c) a autonomia da escola na adequação curricular, favorecendo o processo formativo contextualizado e
interdisciplinar;
d) a definição de diretrizes curriculares nacionais que privilegiassem as competências e as habilidades básicas
voltadas para o trânsito e a complementaridade entre o ensino regular e a formação profissional.
As Diretrizes Curriculares, seguindo os preceitos do Parecer e da Resolução, entendem o currículo como algo que
não deve vir pronto e acabado, definido por especialistas, mas construído pela escola. São os professores que devem definir o
que, como e porque ensinar tal ou qual conteúdo. O ponto central do currículo do Novo Ensino Médio, então, é sua
concepção de participação entre os diferentes segmentos envolvidos no processo de aprendizagem e de autonomia da escola,
construindo a formação geral.
Na expectativa de que a escola compreenda essa sua nova função na feitura do currículo, o Ministério da Educação
e do Desporto, no início de 1999, publica e distribui às escolas os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(PCNEMs – Brasil, 1999), que foram se constituindo como a expressão maior da reforma desse nível de ensino no Brasil.
Segundo o MEC, os parâmetros “foram feitos para auxiliar o professor na execução de seu trabalho, servindo de estímulo e
apoio à reflexão sobre a sua prática diária, ao planejamento de suas aulas e, sobretudo, ao desenvolvimento do currículo da
escola”. (grifos nossos) (PCNEMs 1999, p.11).
Nos PCNEMs são desenvolvidos os princípios pedagógicos, determinados nas Diretrizes Curriculares Nacionais do
Ensino Médio (DCNEMs) delimitadas nas três grandes áreas de conhecimento: Linguagem, Códigos e suas Tecnologias,
Ciências Humanas e suas Tecnologias e Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Dando primazia ao papel da
escola e dos sujeitos na implementação da reforma curricular, o documento dos parâmetros é a carta de intenções
governamentais para o nível médio de ensino; configura um discurso que, como todo discurso oficial, projeta identidades
pedagógicas e orienta a produção do conhecimento oficial (LOPES, 2002).
O investimento na produção e no envio dessa carta de intenções para a escola conota, em si mesmo, a perspectiva
de que a reforma venha a ser conhecida e discutida por uma parte significativa dos professores. A posse, como defende
Chartier (1994), é um primeiro passo para a leitura e para o estabelecimento de uma ordem. Assim, pode-se creditar que
houve certo nível de conhecimento da Reforma além da possibilidade de que esse instrumental tenha vindo a ser usado.
Como afirma Lopes (2002), ainda
que se considere que muitos professores nas escolas lerão o texto dos parâmetros com desinteresse ou descrédito, ou
mesmo abandonarão seus volumes nas gavetas, não entendo ser possível pensar na força de um cotidiano escolar que
se constrói a despeito das orientações oficiais. Certamente existem reinterpretações desses documentos e ações de
resistência aos mesmos na prática pedagógica, assim como permanece em evidência o caráter produtivo do
conhecimento escolar. Todavia, menosprezar o poder do currículo escrito oficial sobre o cotidiano das escolas significa
desconsiderar toda uma série de mecanismos de difusão, simbólicos e materiais, desencadeados por uma reforma
curricular, com o intuito de produzir uma retórica favorável às mudanças projetadas e orientar a produção do
conhecimento escolar (p.387).

O fato de as escolas contarem com o documento oficial que pretende ser o norteador da Reforma, além de dizer do
investimento para que ela fosse implementada, demonstra a intervenção de um órgão geral no cotidiano escolar. Não se sabe,
porém, se tal intervenção surtiu o efeito esperado por seus mentores. Assim, a pesquisa foi centrada no nível de recepção e de
conhecimento do próprio discurso normativo do Estado, das mudanças propostas e do conhecimento e uso de seus
instrumentais, tentando uma aproximação entre o efetivado na escola e o querido pelo Estado.
Considerando esses aspectos, neste tópico, pretende-se discutir, a partir das entrevistas com professores e diretores
selecionados, como os elementos da Reforma foram recebidos nas escolas do Ensino Médio, na Região do Maciço de
Baturité, dando ênfase à formação do currículo já que, como ação intransferível da escola, segundo todos os pressupostos da
Reforma, sua elaboração pode servir de escala para se perceber a capilaridade que os elementos reformistas tiveram nas
escolas dessa parte do interior cearense.
A primeira pergunta, então, diz respeito ao conhecimento, ao acesso e ao uso dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNEMs). Afirma o professor Hélio:
A Reforma não pegou a gente totalmente de surpresa. A gente já sabia que vinha mudanças por aí, tinha visto várias
propagandas e, nas reuniões de planejamento, a direção foi preparando a gente. Mas quando os Parâmetros chegaram à
escola ainda se tinha muita dúvida de como trabalhar com eles. Até a direção da escola também tinha essa dúvida.
Depois foi que a coordenadora pedagógica chamou o pessoal e disse do que se tratavam os parâmetros e que todo
professor tinha que se basear neles. Só que não bastava dizer isso para que acontecesse, foi um processo de
aproximação difícil já que essas novidades demoram a serem realmente postas em prática. Ter o material na mão não
significa usar e nem entender o que significa. [para isso acontecer] Leva tempo.

Todos os professores entrevistados, seguindo a fala do professor acima, admitiram conhecer os parâmetros e ter
acesso a eles em casa ou na biblioteca da escola. Entretanto, a maioria também considerou os textos de difícil entendimento,
e seu uso, limitado às reuniões de planejamento na escola, não havendo tempo para uma leitura e discussão mais
aprofundada, que permitisse dirimir as dúvidas sobre seus aspectos pedagógicos.
Uma professora deu o seguinte depoimento, que vem se somar à idéia de que os PCNEMs são conhecidos e
empregados (mesmo parcialmente), mas sua compreensão não é clara:

345
Eu uso o parâmetros curriculares para preparar as minhas aulas, tirando as habilidades e as competências que vou
trabalhar com o aluno. Lá tem algumas experiências interessantes. Por exemplo, na área de química e de biologia, tem
experiências de como trabalhar na área para diversificar o conteúdo e atingir melhor os objetivos da disciplina. Enfim,
uso para o planejamento. Agora, falta tempo para estudar mais esses documentos. Muita coisa a gente não entende...
não é do nosso tempo. Falta acompanhamento. Às vezes é meio solto. Acredito que se tivesse mais tempo, mais
acompanhamento, poderia ser mais bem aproveitado. (Norma)

Há, na fala da professora, uma mistura do instrumental PCNEM, que contribui para decidir as competências e as
habilidades no processo ensino-aprendizagem, de um outro que contribuiu para determinar os próprios conteúdos. Não é
objetivo dos PCNEMs apresentar exemplos práticos para dinamizar as aulas. Na verdade, a professora misturou partes dos
parâmetros com os guias curriculares que serviam de âncora para a elaboração da proposta dos conteúdos de cada disciplina
antes da Reforma. Com a chegada dos novos instrumentais, foi havendo uma acomodação híbrida no uso do novo e do antigo
instrumental. Do ponto de vista do processo de adaptação, tal conduta é plenamente aceitável. Porém, vendo pela perspectiva
pedagógica e do discurso do Novo Ensino Médio (da luta do novo contra o velho), os antagonismos entre os dois
instrumentais impossibilitariam o convívio com eles.
Portanto, nota-se que a escola foi bombardeada com muitos materiais pedagógicos que visavam implementar a
Reforma e elevar o nível de conhecimento e de leitura dos professores. Todavia, como reforça a reclamação da professora, o
acompanhamento pedagógico e a capacitação não aconteceram com a mesma intensidade. Vários discursos ficaram
misturados, confusos, entre o desejo de utilizar a proposta e a compreensão parcial do que significava essa nova proposta.
Ainda assim, segundo os dois seguintes relatos de diretores, essa professora faz parte da minoria que utiliza os
PCNEMs para preparar suas aulas:
É verdade que a proposta dos parâmetros foi apresentada a todos os professores através da coordenação pedagógica da
escola. Não foi imposição, como muitos falam, foi apresentado e discutido nas reuniões, nos encontros pedagógicos.
Os livros chegaram e a maior parte dos professores teve acesso a eles. Agora poucos [foram os] professores [que]
aderiram, que realmente utilizaram as competências e as habilidades ditadas pelos parâmetros para [preparar] as aulas.
Foram mais aqueles da nova geração [que] tiveram facilidade de aceitarem essas mudanças. Tem muito a ver com a
formação de cada um, com a visão de cada um e, até, com a habilidade de trabalhar com esses instrumentais. Agora,
nós percebemos que os nossos professores não lêem, não têm o hábito da leitura, assim fica muito difícil trabalhar com
os parâmetros ou com qualquer outro instrumental. Só uma minoria realmente leu os PCNEM. (Nayres)

A fala da diretora, além de mostrar que poucos são os professores que utilizam o instrumental para as suas
atividades, reforça a idéia de que tem professores de uma geração, como acredita também a professora Norma, e de uma
geração mais antiga, creditando à nova geração uma facilidade maior para aceitar as mudanças. Apesar de muitas vezes o
próprio professor inculcar que não acompanha as mudanças por ser de outra geração, essa postura não é defensável, à luz de
uma perspectiva que priorize a educação e, em conseqüência, a formação profissional e a valorização do professor.
Justamente pelo descaso histórico e por reformas restritas a alguns aspectos da escola é que se percebem concepções
diferenciadas na mesma instituição escolar. E isso pode ser utilizado pelo professor como justificativa, a si mesmo e ao
conjunto da sociedade, para não entender ou utilizar as novidades que aparecem (numa reação consciente ou não ao que ele
considera novidades efêmeras ou mesmo reproduzindo o pacto da mediocridade), como também são utilizadas pelo Estado
para responsabilizar o professor pelo fracasso escolar do aluno, diminuindo e desviando a questão.
Por mais que pareça uma determinação individual, algo que tenha muito a ver com a formação de cada um, com a
visão de cada um e, até, com a habilidade de trabalhar com os instrumentais, de forma geral, esses aspectos individualizados
sãos construídos socialmente dentro da perspectiva histórica de conformação da sociedade, da escola pública e da educação,
como elemento de direito universal ou de adequação do indivíduo ao mundo do trabalho capitalista. Por isso que, quando a
diretora estipula como verdade que os professores não lêem, não distinguindo mais as gerações novas das velhas, está se
dizendo que não existem condições para que isso aconteça ou mesmo que a condição de atuação do professor impossibilita
que tal necessidade seja suprida. Como resultado, dentro dos próximos dez ou quinze anos, os novos de hoje serão os velhos;
a estrutura contribui, também, para a separação das gerações entre novos e velhos; entre os que lêem e os que não lêem; entre
os que compreendem e os que não compreendem as transformações atuais.
O outro diretor defende que os encontros pedagógicos sejam utilizados como espaço de leitura e discussão dos
parâmetros. O discurso abaixo comprova essa assertiva.
Começa que a questão da leitura dos PCNEM deveria ser feita na semana pedagógica, porque é o único período que
realmente o professor tem tempo pra estudar. Mas devido tentar outras opções [mandar o professor estudar sozinho no
seu horário de planejamento individual ou em casa], o estudo não é feito. Por isso que os Parâmetros Curriculares
Nacionais, ainda hoje, são desconhecidos por muito dos profissionais da educação. A maioria, mais de 50%, não
conhece os PCNEM. Sabe que existe, porque é falado, de forma rápida nas reuniões, nos planejamentos, nas rodas de
conversa do CREDE. Mas a leitura de verdade nunca foi feita. Pelo menos, não do jeito que devia ser feita, com
cuidado, com atenção, com discussão. (Célio)

A fala do diretor é clara em relação ao nível de conhecimento dos parâmetros. Entretanto, um outro dado
interessante defendido pelo diretor é que a tarefa da leitura deveria ser contabilizada como carga horária do professor, no
planejamento. Essa seria a forma de fazer com que o instrumental fosse realmente conhecido e utilizado. Deixar como tarefa

346
de casa, individual, inviabilizaria o conhecimento. Essa idéia do diretor traz de volta a discussão sobre formação do professor
como tarefa individual e como tarefa do Estado.
O planejamento é um tempo remunerado que o professor recebe para preparar as aulas. No Ceará, corresponde a
vinte por cento da carga horária do professor em sala de aula. O uso desse tempo, para estudar os instrumentais da Reforma,
seria impedir que ele fosse empregado para a preparação das aulas, para a avaliação dos alunos e o acompanhamento da
disciplina. Mesmo que se considere que, como diriam alguns, os dois trabalhos pudessem ser compartilhados, o tempo do
planejamento seria insuficiente. Assim, o que pode sugerir a fala do diretor é que o Estado deveria financiar mais tempo de
estudo, mais tempo de planejamento para o professor. Isso acarretaria mais investimento na educação, coisa que nunca ficou
na ordem do dia da Reforma, além de atender a uma reivindicação antiga dos professores do Sindicato Unificado dos
Trabalhadores em Educação – SINDIUTE, o aumento da hora-atividade.
Infelizmente, a abordagem que prevaleceu na implantação dessa Reforma foi a de atribuir ao professor a
responsabilidade de sua atualização e sua capacitação. Assim, os parâmetros foram passados para os professores nas
atividades pedagógicas através dos discursos de técnicos e de pedagogos, nas rodas de conversas, nos debates e nas
atividades pedagógicas. Dessa forma, além de o acesso ter se dado através dos filtros de leitura e de compreensão dos
técnicos, ainda foi de forma corrida, sem tempo para se aprofundar o assunto, questionar a proposta a fim de que ela fosse
melhor assimilada.
De forma geral, segundo os educadores entrevistados, não houve uma capacitação direcionada para a elaboração do
currículo e/ou para o estudo dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. De acordo com a entrevista com os
diretores, essa parte ficou sob a responsabilidade dos coordenadores pedagógicos. As falas a seguir revelam a
superficialidade e o aligeiramento de como as discussões foram realizadas.
A professora Norma relata que os PCNEMs foram tratados durante reunião de planejamento com os professores e a
coordenação pedagógica da escola, mas que não considerava aquele momento como capacitação.
Sempre que aconteciam as reuniões de planejamento, os PCNEM eram falados, mas não propriamente estudados.
Acredito que faltou capacitação diretamente sobre o que eles pretendiam e como utilizá-los para as disciplinas. As
reuniões com um monte de pauta, um monte de assunto para tratar, não dava [sic] tempo para direcionar ao que
precisava dos parâmetros. Que eu me lembre só aconteceu dessa forma: a gente vinha pra cá [Escola Almir Pinto -
sede] planejar as aulas e era falado sobre os parâmetros, mas capacitação não [houve]. (Norma)

No entanto, dois professores que estavam em cargos de direção lembram que, quando de seus mandatos,
participaram, durante o PROGESTÃO, de uma capacitação específica sobre os Parâmetos Curriculares, conforme a fala
seguinte:
No PROGESTÃO, eu recebi algumas informações sobre os Parâmetros Curriculares, mas não foi direcionado para o
currículo, para a transformação do currículo diretamente. Foi direcionado para os aspectos legais da reforma, do Novo
Ensino Médio e do papel da escola. Coisas muito gerais sobre a relação entre a escola e as transformações no mundo.
Serviu para uma visão ampla do mundo do trabalho e da reforma. (Meiryvan)

Porém, como acentua a professora Artemiza, o PROGESTÃO é direcionado para o núcleo gestor das escolas.
Assim, os professores que estavam em cargo de direção, durante o processo de implementação da Reforma, conseguiram
algum tipo de capacitação.
[Capacitação] (...) propriamente direcionado para o professor do Ensino Médio não tive. Já tive oportunidade de
participar do PROGESTÃO, que é direcionado para diretores e [outros membros] do núcleo gestor da escola. Mas daí
estava voltado para aspectos mais gerais da escola na parte de gestão mesmo dos recursos financeiros, para a
preservação do patrimônio, (...) e também do currículo. Mas nada de específico como necessita fazer para o professor
possa entender e usar os parâmetros. (Artemiza)

Assim, a capacitação sobre os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio, quando aconteceu, foi voltada para os
núcleos gestores, e não, para o conjunto dos seus professores. Por mais que fosse tarefa dos gestores a socialização das
informações, fica claro que ela se deu de forma insuficiente. Portanto é impossível pensar na elaboração de um currículo se as
bases não foram dadas, se as pessoas envolvidas no processo não tiveram a compreensão das bases de tais mudanças.
Seguindo a análise das entrevistas, o currículo das escolas é outra abordagem importante para se perceber a
implementação da Reforma. Em relação à segunda pergunta, sobre como o currículo é determinado na escola, veja-se o ponto
de vista de uma das entrevistadas:
Geralmente, quem decide é a escola e o CREDE. O currículo vem da cúpula maior. [A cúpula] (...) chega à escola,
analisa, questiona e decide que nós vamos empregar isso aqui, que nós vamos começar a trabalhar com tal disciplina. A
gente questiona, mas já vem determinado. Eu acredito que é a direção, juntamente com o CREDE que determina as
disciplinas que a gente tem que ensinar. Essas coisas são assim. Eu vejo nesse sentido. (Artemiza)

Apesar da insistência dos documentos oficiais em afirmar a autonomia curricular da escola, o que prevalece é a
idéia de que os professores estão cumprindo ordens superiores, seja dos núcleos gestores das escolas, seja do
CREDE/SEDUC. Junto com essa idéia, tem uma outra que, talvez realista demais, considera que a escola não tem
capacidade/estrutura para assumir tal função:

347
Essa questão do currículo é meio complexa, ultrapassa a questão legal. Qual a escola que tem competência para
estabelecer o seu próprio currículo? Qual é a escola da nossa região, do Maciço de Baturité, que tem realmente
condição de interferir nessa realidade? Qual? Eu não sei. Eu desconheço. (Hamilton)

Ao devolver a pergunta, o professor Hamilton toca em dois pontos primordiais: competência e condições objetivas
para se instituir o currículo. A competência, em tese, é dada pela lei, pela questão legal. Mas fica latente que a lei não basta
para que isso aconteça, Porque competência também deve vir aliada às condições objetivas. Não havendo tal aliança, a
competência transforma-se em incompetência.
Com isso, a primeira fala de que tudo vem determinado também casa com a idéia de que não é competência da
escola se preocupar com isso já que ela não tem condições de responder pela sua execução devido à subordinação aos órgãos
governamentais e às limitações estruturais que enfrenta. A fala abaixo reforça as duas idéias acima:
Realmente, há necessidade de ver a questão da realidade local, a Parte Diversificada é para isso, mas não tem
funcionado. Sempre que a escola sugere uma nova disciplina, a SEDUC e o CREDE não concordam, ficam colocando
dificuldades para aceitar. Nós temos experiência na época dos projetos educativos que inserimos no currículo. Eu tive
que ir à SEDUC conversar com a responsável pela lotação dos professores, tentando comprovar que aquilo fazia parte
da carga horária, que era necessário para a realidade da região, para a nossa realidade. (Naíres)

Apesar de perpassar que, segundo as diretrizes curriculares, a escola deveria ter mais gerência sobre o currículo, as
falas apresentam aspectos estruturais para que a imposição aconteça. Senão uma imposição proibitiva do CREDE e da
SEDUC, já que esses órgãos não impediriam a diversificação do currículo, uma imposição das condições objetivas da escola,
das faltas, dos vazios do investimento estatal. A falta de professores qualificados e de material de pesquisa é o principal
motivo para determinar o currículo. A fala seguinte confirma essa afirmativa:
Eu acho que quem determina o currículo é o próprio sistema educacional representado, no caso, pela Secretaria de
Educação. Dificilmente as escolas fazem o currículo de conformidade com seu desejo real. Não existe. A escola [fazer
o currículo] não existe. A escola que diz que elabora seu próprio currículo [diz] só de fachada. Porque se realmente ela
colocasse as disciplinas que considerasse necessária, ela iria entrar em confronto com determinadas questões
estruturais que ela não pode resolver. Por exemplo, a falta de professores qualificados para o exercício daquela
disciplina. A escola não pode contratar. Quando a gente tenta um contrato temporário para uma disciplina optativa,
para compor a Parte Diversificada do currículo, [a SEDUC, o CREDE] acabam vetando. Conseqüentemente, como não
tem profissional qualificado na escola, acaba prevalecendo aquilo que a SEDUC determina. (Hamilton)

Quer dizer, a suposta autonomia da escola para pensar seu currículo, de forma a atender aos aspectos da localidade,
não encontra respaldo nos órgãos que determinam a parte burocrática e financeira da educação. Nisso, as condições da
implementação da Reforma, instituídas pelos órgãos oficiais, já tinham decretada a sua impossibilidade.
Outra questão é que as falas se referem na intervenção tão somente à parte diversificada do currículo. De forma
geral, professores e diretores de escolas têm em mente que apenas essa parte é passível de intervenção. A Base Nacional
Comum já vem determinada. Faz-se necessário relembrar, então, o que as leis reformistas deixam de específico para as
escolas.
A LDB estabelece que os currículos da Educação Básica sejam divididos em uma Base Nacional Comum e uma
Parte Diversificada. No Artigo 26, a LDB vai estabelecer que a Base Nacional Comum deva constar de estudos da Língua
Portuguesa e de Matemática, do conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do
Brasil, do ensino da arte, para promover o desenvolvimento cultural dos alunos, e da educação física, integrada à proposta
pedagógica da escola. No mesmo Artigo, vai determinar ainda que a parte diversificada do currículo destina-se a atender às
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. Sendo um complemento da Base
Nacional Comum, a Parte Diversificada será definida em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar.
A Resolução 03/98 estabeleceu que a Base Nacional Comum deveria contar com 75% (setenta e cinco por cento) da
carga horária, cabendo 25% (vinte e cinco por cento) à Parte Diversificada. Portanto, ficou cristalizado que a escola poderia
flexibilizar somente uma pequena parte do currículo escolar. Na verdade, os próprios PCNEMs alertam que a fórmula não é
essa:
O fato de estes Parâmetros Curriculares terem sido organizados por disciplinas potenciais não significa que estas são
obrigatórias ou mesmo recomendadas. O que é obrigatório pela LDB e pela Resolução 03/98 são os conhecimentos
que estas disciplinam recortam e as competências e habilidades a elas referidas (PCNEM, 1999, p. 32).

Como se vê, mesmo as disciplinas da Base Nacional Comum podem ser flexibilizadas, contanto que o
conhecimento esteja presente no currículo da escola. A idéia é de que os professores desenvolvam o próprio currículo, de
acordo com a realidade local, e centrados no aprendizado do aluno, contando com o apoio e o acompanhamento dos sistemas
educacionais para fortalecer a condução dessa política educacional. Mas, de fato, é a própria realidade que impõe que o
currículo não seja o desejado, aquele que professores e diretores de escola consideram como mais adequado à realidade em
que atuam.
Numa rápida análise dos instrumentais de acompanhamento das escolas – ficha de avaliação do aluno, quadro de
lotação de professores, diários de classe – percebe-se que a Reforma passou muito longe da sala de aula na região estudada e,
apesar de ter como uma de suas bases a interdisciplinaridade, criando as grandes áreas para estabelecer algumas relações

348
entre as disciplinas, as grades curriculares do Ensino Médio, ainda em vigor, são formadas por componentes curriculares
estabelecidos pela Lei no 5.692/71 e pela legislação complementar. O núcleo comum é composto pelas disciplinas Língua
Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira (quase sempre inglês), Matemática, Biologia, Química, Física, História e
Geografia, que ocupam quase toda a carga horária geral do curso. Na parte diversificada, incluem-se as disciplinas que
podem ser trabalhadas dentro da realidade objetiva da escola, e não, da necessidade do aluno em consonância com a
preparação para o trabalho, de forma integrada com todas as matérias do núcleo comum, como discursam os que propuseram
a Reforma, conforme afirma o discurso seguinte proferido por uma professora:
Na hora de dividir os conteúdos, é difícil relacionar as áreas de conhecimento, não centrar na sua disciplina. Começa
que a lotação do professor é feita por disciplina. A hora de cada professor também é por disciplina. (...) Cada um é
responsável por sua parte, é assim que funciona. A gente até planeja coletivamente, divide os tópicos, mas, na hora de
entrar em sala, é cada um por si (...) Os alunos também não aceitam muito bem as áreas. (...) Acho que eles não
compreendem. Acho que deveria começar com aquelas disciplinas que são mais próximas, tipo história, geografia.
Tipo português e literatura (...). Seria mais fácil de fazer acontecer (...) Mesmo assim seria complicado devido à
lotação por disciplina, por turma, por hora/aula. (Norma)

Caso a reforma viesse acompanhada de uma estrutura realista para a sua implementação (incluindo a parte física da
escola, a capacitação de professores, de núcleo gestor e de funcionários, o redimensionamento da atividade docente e da
hora/aula do professor e uma compensação salarial condizente com a função), alguns aspectos ainda seriam difícil de ser
assimilados pelo conjunto dos professores e pela escola em geral. No quadro de improviso e de tentativa de imputar ao
professor e à escola a responsabilidade por seu sucesso, torna-se inviável sua realização.
Os depoimentos seguintes revelam como os docentes se vêem diante da proposta de Reforma:
Tudo que vem da educação não é planejado com os professores. Não chamam a base para discutir e apresentar
sugestões. Depois somos nós, quer queiram ou não, quem vai ter que fazer as coisas acontecerem. Já que não chamam
a gente para ajudar a pensar a coisa, a gente se sente descompromissado com aquilo. A maioria desses estudiosos traz
um exemplo bem sucedido lá de um país qualquer, de um lugar não sei de onde, de um país que não sei nem onde fica.
Porque foi um sucesso lá, mandam a gente aplicar aqui. Mas será que vai dar certo aqui? Eu não arrisco! Na minha
cabeça não funciona assim. Eu faço! Eu procuro fazer o que me pedem, mas eu sempre critico, e, no final, eu termino é
fazendo do meu jeito, por que se não dá certo, eu sei porque não deu certo, porque foi feito do meu jeito. No final eu
faço do meu jeito. No final eu faço do meu jeito... Eu não concordo, eu não acho certo... Tá errado? No final eu
termino fazendo do meu jeito mesmo. (Norma)

O ex-secretário de educação do Estado do Ceará, Antenor Naspolini, gostava de repetir que a sala de aula é a caixa
preta da educação: lá é onde tudo acontece, ou onde nada acontece. Ele dizia isso com certa maldade. Era uma forma de jogar
a responsabilidade sobre o professor e tirar da ordem do dia a discussão sobre aspectos cruciais do desenvolvimento das
políticas educacionais como valorização desse profissional – capacitação, diminuição de carga horária e salário melhor – e
financiamento da educação. Ora, quando o professor não se considera partícipe da proposta, ele “faz do seu jeito”. E não age
assim para burlar o esquema reformista proposto pelo Estado – porque, para burlar o esquema reformista, é preciso conhecer
profundamente as bases da proposta e, a partir daí, estipular o embate. Assim, toma essa atitude por desconhecimento e por
não acreditar naquela novidade.
A Reforma aparece, então, como uma grande novidade trazida por grandes pensadores e importada de outra
realidade. Mas, quem conhece a sala de aula, segundo o depoimento, é o professor, ele é que conhece as dificuldades da
profissão, do aluno e da realidade que o cerca. O professor sabe que está dentro da caixa preta da educação. E nem sempre é
por falta de compromisso que não atende às iniciativas dos órgãos oficiais. Muitas vezes, é por compromisso com o seu fazer
imediato, com a realidade da sala de aula, com as condições estruturais que ele encontra.
Nesse sentido, a fala de outro professor é ainda mais contundente:
Há 20 anos que ensino. Só no Ensino Médio são 10 anos. Apesar de tudo que se fala, apesar de tudo que se diz, o
programa é a mesma coisa. O primeiro ano é PA e PG. O segundo ano é matriz, determinante, etc. Então (...) é
basicamente as mesmas coisas, com pequenas mudanças que a gente nem consegue perceber. É a mesma coisa que eu
estudei, é a mesma coisa que se ensina. E não é só eu [que pensa assim]. Todos os colegas que eu tenho a oportunidade
de ver, uns com maior maestria, outros com menos, dizem que ensinam as mesmas coisas. A diferença que existe entre
um colégio que a gente considera de ponta, como o LICEU, um colégio de linha, é só na infra-estrutura. Essa infra-
estrutura faz a diferença, as pessoas que têm acesso aprendem mais. Mas o que se faz é a mesma coisa, não vi mudança
do tempo que estudei para agora que ensino. Só tem muito é conversa. (Hélio)

Não é muito difícil cruzar com um professor e ouvir algum relato parecido com o acima citado. Há uma cultura
conteudista na escola, alimentada por um mercado do conteúdo do livro didático, cujo maior representante são as provas do
vestibular o qual, por sua vez, alimenta a indústria dos cursinhos privados. A Reforma, convém reconhecer, veio em parte,
para transcender os aspectos conteudistas do currículo. Isso, no entanto, não se dará sem um profundo envolvimento do
professor, sem um vultoso e duradouro investimento em qualificação e sem uma re-profissionalização do educador. Nesse
ponto, em nada a reforma avançou.

349
Uma outra constatação das entrevistas, também pertinente para mostrar a fragilidade da reforma na região, diz
respeito ao material utilizado no planejamento do conteúdo a ser ministrado em sala de aula. O fato é que o livro didático
continua direcionando os currículos:
Depois de decidir o curriculo, a gente procura um livro que se adapte as nossas expectativas. Às vezes não tem... ai a
gente escolhe outro. O livro é muito importante para que a gente tenha um mesmo percurso... não fique cada um com
um conteúdo diferente do outro. Quando não tem nenhum livro, quem elabora as apostilas é o professor mesmo. Dá
mais trabalho e fica um conteúdo solto. (Meiryvan)

Dessa maneira, os livros didáticos colaboram significativamente para a padronização curricular. O agravante é que,
dada a escassez de material didático, não é o livro escolhido pelos professores que vai guiar as atividades curriculares da
escola, mas – o que é mais sério ainda - o livro disponível nas estantes da biblioteca da escola ou aqueles que os professores
conseguem adquirir.
Como se pode notar, a implantação das diretrizes curriculares nas escolas de Ensino Médio da microrregião de
Baturité ficou entre a SEDUC e o CREDE, e pouca coisa foi realmente efetivada. Portanto, para objetivar a Reforma, seriam
necessários três passos. Primeiro, compreender que o currículo deve ser uma construção coletiva; depois, mobilizar para que
isso acontecesse e, enfim, criar condições para que a idéia e as vontades de fazê-lo pudessem se concretizar. Sem formação,
sem informação e sem base material, o currículo continuou sendo elaborado de improviso, pela (não) vontade do professor,
ditado pela precariedade das condições materiais. Assim, o resultado da pesquisa realizada com os professores e diretores das
escolas de Ensino Médio da região de Baturité revelam que, dos três aspectos necessários para efetivar a Reforma curricular,
nenhum foi posto em prática.
Não se pode dizer, no entanto, que não houve interferência da Reforma no cotidiano escolar. Diversas falas, já
citadas, apontam a preocupação com as diretrizes estabelecidas pelo Novo Ensino Médio. Tem-se claro somente que, entre o
discurso normativo do Estado e a prática efetiva dos atores responsáveis pela operacionalização das diretrizes preconizadas,
há uma distância considerável.
Isso não quer dizer que não tenha havido qualquer interferência na escola. Somente o fato da existência do
movimento reformista legal, que apela para diversas formas de divulgação, dando como certa e inevitável a vinda do NOVO,
estabelece um clima mudancista. Concordando com MARTINS (2000), é possível afirmar que essa
mudança legislativa deflagra um processo que desacomoda os atores e o sistema em que atuam, promovendo
discussões, questionamentos, mudanças na regulamentação das práticas, e, muitas vezes, provocando resistências por parte
daqueles responsáveis pela sua implementação. O produto híbrido gerado desse processo, invariavelmente, expressa um
conjunto de modificações imprimidas pela dinâmica do cotidiano da rede de escolas em relação às diretrizes emanadas
originalmente da lei (p. 67).

Mesmo que o resultado não seja o que os reformistas esperavam ou alardeavam como certo, é patente que houve
uma desacomodação na escola. O que virá depois é algo diferente do pensado inicialmente pelos organismos oficiais, como
se defendeu aqui, mas também diferente do que havia antes.

Aventuras da Reforma
Para a Região do Maciço de Baturité, a Reforma do Ensino Médio representou algumas mudanças singulares, que
tiveram como base a interpretação da LDB bem mais do que as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio.
Da reforma (...), eu sei que desde o ano de 95 mudou muita coisa no Ensino Médio. A primeira foi a semestralidade.
Depois veio a avaliação de AS (Avaliação Satisfatória) e de ANS (Avaliação não satisfatória). O certo é que eu nunca
gostei daqueles AS e ANS. Quando o aluno chega lá no vestibular, se ele não tirar um dez ele não entra na faculdade.
Depois ainda veio o fim das provas, a gente ficou sem poder avaliar o aluno pelo método tradicional, de provas. A
terceira foi a perda da nossa escola, porque os alunos foram todos transferidos para o município. Isso ai é inesquecível.
(Norma)

A professora pontua que o que foi de mais expressivo para as escolas da região, diante da Reforma, foi a
semestralidade, uma das organizações possíveis de modalidades de ensino, e a avaliação diagnóstica, que adota, em
substituição à escala zero a dez, o AS (Avaliação Satisfatória) e o ANS (Avaliação Não Satisfatória), somados com múltiplas
formas de apreensão do aprendizado dos alunos e a municipalização do Ensino Fundamental, que obrigou o fechamento de
algumas escolas estaduais da região.
Os três pontos têm em comum o fato de terem sido aplicados nas escolas de forma sumária, sem nenhuma
avaliação, preparação e convencimento do conjunto dos profissionais da educação, tampouco dos alunos e da comunidade
escolar.
A idéia de semestralidade começou a ser desenhada na Escola de Ensino Fundamental e Médio Brunilo Jacó, no
município de Redenção, em 1998. A diretora da escola, Cristina Soares, baseada no Artigo 23 da LDB, instituiu no Brunilo
Jacó um sistema de contagem de dias letivos e de matrículas, tendo como base um semestre, e não, um ano escolar. Os
duzentos dias letivos anuais foram divididos em dois semestres de 100 (cem) dias. Assim, cada disciplina foi transformada
em módulo I e módulo II. O que seria matemática do ano todo foi transformado em matemática I e matemática II, por

350
exemplo. O sistema funcionava, ou deveria funcionar, muito parecido com o sistema universitário brasileiro, porém sem
deixar o aluno tão à vontade para fazer sua matrícula, que era compulsória em todas as disciplinas, tanto do primeiro semestre
letivo quanto do segundo.
A experiência foi muito bem aceita pelo CREDE 08 e pela SEDUC. Logo, todas as escolas da rede estadual pública
de Ensino Médio da Região do Maciço aderiram à proposta. Todavia, depois de alguns anos de implementação da
semestralidade, vários problemas foram surgindo. Veja-se esta fala de um professor:
Foi um fracasso, primeiro [porque] não se criou vinculo com a turma. Quando a gente estava começando o semestre já
terminava a disciplina. Depois, aquelas dificuldades de aprendizagem que a gente tinha o ano todo para resolver,
passaram a ter que ser resolvidas em um semestre. O problema ficou dobrado. As matriculas ficaram mais difíceis (...)
Para o próprio aluno também tronou-se mais difícil por que ele mal estava entrando no semestre já tinha que concluir a
matéria. Pode até haver algumas vantagens para disciplinas como história, geografia, filosofia que tem carga horária
pequena. Mas aconteceu que se criou uma cultura de não fixação do aluno em um determinado ano, criando um aluno
itinerante entre vários anos. Essa cultura fez com que o aluno não estivesse ligado a nenhuma das três séries [primeiro,
segundo ou terceiro ano] não dando a importância suficiente ao estudo. Assim foi mais fácil do aluno fraquejar nos
estudos já que ele percebia que não tinha conquistado nada ainda. Fazia disciplina no primeiro ano, no segundo e no
terceiro ao mesmo tempo não tendo terminado nenhum ano ainda. Eu acredito que a semestralidade não ajudou a esse
momento educacional. (Hélio)

Em seu discurso, o professor Hélio resume um pouco o sentimento de fracasso da semestralidade na região. Sentiu-
se sentiu solto em relação ao aprendizado do aluno, e este, da mesma forma, em relação ao seu próprio aprendizado. A
semestralidade não conseguiu, ainda, romper com o parâmetro da anualidade, por isso que a sensação da falta de conquista
era tão evidente nos alunos, como demonstrou a fala do Hélio. O fato, também, de a semestralidade adotar uma só matrícula
para o ano todo dificultou que alunos e professores internalizassem o novo funcionamento da escola já que o aluno, mesmo
reprovado em uma disciplina do primeiro semestre (como, por exemplo, a matemática I), continuaria cursando o ano letivo
normalmente (com matemática II). Mas foram os problemas estruturais que denunciaram com mais veemência os limites da
semestralidade, conforme revelam as palavras do professor Célio:
Como a semestralidade poderia dar certo se todos os instrumentais do CREDE, da SEDUC e até do MEC são anuais.
Por exemplo, o Censo Escolar que é feito todo o ano para a SEDUC e para o MEC precisam de informações do ano
todo. Lá não quer saber se o aluno ficou reprovado em uma disciplina. Pede para saber o número de reprovados e o
número de aprovados. Quer saber o número de matriculados no ano todo e não em uma determinada disciplina. Como
se pode avisar ao MEC que um aluno foi matriculado em uma só disciplina. E os alunos que terminaram o Ensino
Médio e estão devendo disciplina, como faz? Manda como concluinte do Ensino Médio ou como reprovado? Outra
questão foram as transferências de alunos durante o ano letivo em curso. Várias escolas não queriam receber o novo
aluno porque não reconheciam a transferência dele. Por último o número de alunos devendo disciplina ficou muito
maior do que a escola poderia suportar. Por tudo no mundo o aluno desistia da disciplina porque sabia que não seria
reprovado no ano e só na disciplina. O próprio professor passou a reprovar mais porque sabia que o aluno teria que
fazer de novo só aquela disciplina. Virou uma bola de neve. Tinha mais alunos reprovados aqui no Almir Pinto
[devendo matéria] do que aprovado. (Célio)

A bola de neve foi percebida a partir da secretaria, mas não ficou só nela. Como se pode ainda extrair do
depoimento do professor Hélio, as reprovações foram levando o aluno ao desestímulo. Havia situações em que o aluno
terminava o sexto semestre (ou terceiro ano letivo), devendo, ainda, muitas disciplinas, que ficaram para trás, e deveriam ser
cursadas novamente. Considerando que o aluno devia disciplinas de todos os semestres, seria necessário mais de que um ano
para poder cursar as pendências. Assim, aquilo que foi apresentado como uma forma de diminuir a repetência e a evasão,
principalmente, acabou sendo a causa maior delas.
Somente a partir do sexto ano de experiência, segundo dados de uma técnica do CREDE consultada e, por
observação participativa do pesquisador, as escolas começaram a voltar à anualidade de seus cursos, assumindo o equívoco
da semestralidade e tentando minimizar seus traumas. Para fazer isso, no entanto, era necessário resolver os problemas
causados pela semestralidade, e isso deve demorar um tempo considerável. Desse modo, pode-se concluir, com certa margem
de segurança, que essa experiência foi danosa para o Ensino Médio da região.
A questão seguinte a ser tratada, considerada também pelos professores entrevistados como um dos motivos por
que a Reforma não obteve sucesso, é a avaliação diagnóstica.
Essa é uma avaliação pedagógica, e não, punitiva, que busca ultrapassar a avaliação clássica representada pela
prova, apesar de não eliminá-la. Através dela, o professor tenta localizar – num determinado momento – em que etapa do
processo de construção do conhecimento encontra-se o estudante e, em seguida, identificar as intervenções pedagógicas que
são necessárias para estimular o seu progresso. Esse diagnóstico, por meio do qual se avalia a qualidade do erro ou do acerto,
permite que o professor possa adequar suas estratégias de ensino às necessidades de cada aluno. A idéia está relacionada com
a abolição da repetência no ensino fundamental, nas escolas públicas, com a chamada progressão continuada, implantada
com base nas recomendações contidas na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996. A avaliação diagnóstica foi pensada pela
SEDUC para todas as escolas de Educação Básica do Ceará.
O novo modelo de avaliação exigia um empenho dobrado do professor para seu entendimento e para a sua
execução. Apesar de sugerir um modelo, os instrumentais precisavam ser elaborados e/ou adaptados pelos professores. No

351
entanto, o aumento do trabalho para elaborar os instrumentais não se compara com o tempo necessário ao preenchimento das
fichas individuais de cada aluno, como demonstra a fala seguinte:
Não é possível fazer um acompanhamento daqueles, da forma como a SEDUC passou a exigir [com] você tendo que
dar aula para quase quinhentos alunos em mais (...), em 16 turmas por semana. Só de folhas de papel, ao invés da
caderneta, era um bolo assim [diz mostrando a abertura entre os dedos polegar e o indicador]. Já era difícil conhecer
todos os alunos pelo nome, imagine conhecer pelo [o] que ele sabe, [o] que ele precisa saber, apontando tudo, tudo.
Duvido [que] quem pensou nisso estivesse em uma sala de aula. Estava nada! Se fosse realmente acompanhar, avaliar
daquela forma não fazia outra coisa na escola, só apresentar as habilidades dos alunos, os avanços desses alunos.
(Norma)

Assim, todas as vantagens que poderiam vir com um acompanhamento do aluno pelo professor, de forma mais
individualizada, percebendo seus avanços e possibilidades de aprendizagem, somem quando a estrutura não é oferecida ao
professor, quando não é levado em consideração que as turmas deveriam conter menos alunos, quando não diminuem a carga
horária do professor em sala de aula para que ele consiga executar a tarefa da avaliação com sucesso.
Por isso que quando eu avaliava, eu fazia era prova mesmo. Muitos colegas ficavam dizendo que não era pra fazer
prova, que não podia mais fazer prova, não é mais pra fazer isso, pra fazer aquilo (...) eu fazia e pronto. Depois
colocava o AS, o ANS, coisa que também acho errado. Errado sim. Eu ter que colocar um AS no aluno que ta melhor
que o outro. Aquele recebeu o mesmo AS que aquele outro, mesmo sabendo que não sabem das mesmas coisas, que
não dominam o mesmo conteúdo. Tem aluno que eu vejo que é bom, ele merece (...), ele consegue responder cinqüenta
por cento, quarenta por cento da sua prova, do seu trabalho de avaliação, mas ao mesmo tempo, tem outro aluno que
responde tudo nua boa e vai receber o mesmo AS. Isso ta certo? Isso não é justo. (Norma)

Segundo as instruções do CREDE 08 para a avaliação do Ensino Médio, a prova não estava proibida. O que o
CREDE determinava era que a prova deveria evitar pegadinhas e, ainda, não poderia servir como único instrumento de
avaliação. Mesmo assim, como se pode perceber pela fala da professora Norma, os professores entenderam a recomendação
como proibição. Numa mistura de destemor e ousadia, a entrevistada diz que dava seu jeito de mediar a situação entre o
estabelecido e a realidade: Primeiro, aplicava a prova e, depois, mantendo a lógica da avaliação numérica (zero a dez),
transcrevia a nota registrando o conceito “satisfatório ou não-satisfatório”. Todavia, isso não eliminava sua indignação contra
a injustiça de que os alunos fossem representados pelo mesmo símbolo, estando em níveis de aprendizagem diferentes.
Ora, o que demonstra a continuação da fala da entrevistada é que não é somente um problema de condições
objetivas de realizar a avaliação diagnóstica, apesar de somente essa insuficiência já apontar para a impossibilidade de
aplicação dessa parte da Reforma aqui na região. Há o fato grave de que a proposta não foi bem apresentada, não foi
devidamente discutida, necessitando, portanto, do convencimento do professor, e não, da sua suposta adesão, e, por isso,
devia vir acompanhada de uma capacitação que pudesse discutir com o professor a justeza de cada tipo de avaliação, que
pudesse ver a avaliação, não como um fim em si mesmo, como uma arma do professor para manter a disciplina ou, ainda,
como uma medalha para premiar os bons, mas sim, enquanto parte do processo para propiciar o aprendizado do aluno
(LUCKESI, 1999). Houve, ao contrário, a determinação para se implantar o que muitos autores consideram a avaliação mais
apropriada. Assim, com uma mentalidade de que a idéia central é a classificação do aluno, da hierarquização do
conhecimento, da competividade, do estabelecimento do melhor, do bom, do regular e do insuficiente, alimentada por uma
estrutura social que estimula a competição, esse processo avaliativo não poderia funcionar.
Nesses termos, independente de uma discussão mais aprofundada sobre a viabilidade de uma avaliação que não
prime pela competitividade, em um sistema que a exige, pontua-se o fato de que a avaliação foi mais um empecilho para a
Reforma na região estudada.

Outras aventuras: municipalização e expansão de vagas


É estranho que, exatamente nas regiões mais pobres, no Nordeste brasileiro, e, mais particularmente ainda, no
Estado do Ceará, haja uma acentuada transferência de oferta de vagas de uma unidade maior para uma menor, do Estado para
o município. Isso pode ser entendido (além do indicativo da Lei) pela necessidade de os estados precisarem centrar força no
atendimento da expansão do Ensino Médio, não podendo perder recursos, espaço físico e pessoal qualificado para um público
que poderia ser mais bem atendido com as condições locais das prefeituras. De acordo com o pensamento dos gestores da
educação da época, como revela a parecerista das Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (DCNEM), Guiomar Namo de
Mello,
É absurdo imaginar que vamos expandir o Ensino Médio construindo uma rede nova. Não podemos fazer isso;
temos de movimentar os alunos que estão no Ensino Fundamental e reorganizar espaços. No Estado de São Paulo, por meio
de simples racionalização de tempo e espaço, cada período ganhou uma hora a mais de aula (MELLO, 1999, p. 36).
Com bom trânsito junto ao Conselho Nacional de Educação, onde também ocupava o posto de conselheiro, o
secretário de educação, responsável pela Reforma no Ceará, Antenor Naspolini, comungava das mesmas idéias. Tanto
pensava da mesma forma que iniciou o processo de redimensionamento da Rede Estadual de Ensino de forma bem mais
agressiva do que o realizado por outros estados brasileiros. Assim, a primeira forma de encontrar espaços para atender à
demanda crescente pelo Ensino Médio foi enviando alunos para a Rede Municipal, desocupando as escolas estaduais. Ao que

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parece, no entanto, esse redimensionamento fugiu do controle governamental a ponto de os alunos serem remanejados, e as
escolas e os prédios, ao invés de cumprir sua função com o Ensino Médio, ficarem ociosos. Tal descontrole teve seu foco na
relação entre os prefeitos dos municípios e a Secretaria de Educação do Estado.
Os gestores municipais, aplaudindo a iniciativa do governo estadual de executar o redimensionamento, faziam cada
vez mais pressão política para que essa transferência acontecesse de forma acelerada, na expectativa de aumentar suas
receitas. Não se trata, então, de buscar um atendimento mais eficiente para as crianças do Ensino Fundamental. Trata-se,
antes, de gerenciar os recursos do FUNDEF. Desde a implantação do Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério, a partir de quando um aluno passou a equivaler (para não dizer mesmo, valer) a certo recurso a
ser administrado pelo gestor da rede onde a matrícula do Ensino Fundamental estava efetuada, que começou a caça às
matrículas. A primeira investida foi logo aos alunos das escolas estaduais que, pela lei, deveriam priorizar o Ensino Médio.
Mesmo sem nenhuma norma legal, que obrigasse o remanejamento massivo de alunos de uma rede para a outra,
mas com a deliberação política do Estado para desocupar carteiras e alocar o aluno do Ensino Médio, que foi sendo
implementada uma política equivocada, acontecida também em várias regiões do país, de remanejamento da rede de ensino
que colocava os alunos do Ensino Fundamental prioritariamente para a gerência dos municípios. Escolas inteiras sumiram do
mapa do Ceará da noite para o dia. Dormia estadual e acordava municipalizada. Acabava um ano letivo com mil alunos e
iniciava o outro com duzentos.
A forma compulsória como os redimensionamentos se deram deixou marcas terríveis nas pessoas, comprometendo
a qualidade do Ensino e causando transtornos administrativos para as duas redes. Os números frios de uma tabela, a
estatística que detecta um deslocamento de uma rede para a outra, não dá conta de perceber o que muda na vida das pessoas,
o que significa pertencer a uma escola e a uma comunidade educativa. As relações que existem para além da sala de aula,
mas que têm como base o pertencimento à comunidade educativa, não cabem dentro de um gráfico. O que muda ao derredor
com as políticas educacionais atinge a vida de quem faz parte dela, como os casos das escolas dos distritos de Vazantes e de
Ideal, em Aracoiaba, de uma escola do distrito de Pernambuquinho, em Guaramiranga, e de outra, no centro da cidade de
Redenção, todas atingidas pela política de municipalização da Secretaria de Educação Básica. Como forma de ilustrar os
problemas causados nas escolas redimensionadas, vale seguir o caso da escola de Vazantes.
A Escola de Ensino Fundamental João Alves Moreira está localizada no distrito de Vazantes, que fica a vinte
quilômetros da cidade de Aracoiaba. Na data da municipalização dos seus alunos, final do ano letivo de 1997 para o início do
ano letivo de 1998, ela contava com cerca de quinhentos alunos matriculados da primeira até a oitava série do Ensino
Fundamental. Em termos de estrutura física, a escola estava equipada com oito salas de aula, uma biblioteca, uma sala de
multimeios, uma sala de laboratório de ciências (química, física e biologia), secretaria, sala para direção, sala de professores,
pátio, cantina, horta, além de uma recém-construída quadra de esportes coberta e iluminada. Tratando-se de recursos
humanos, a escola tinha sete professoras efetivas, cada uma com carga horária de duzentas horas, quatro funcionários
administrativos, para a secretaria, e seis, para serviços gerais. A escola ainda possuía um núcleo gestor, composto por uma
diretora, uma coordenadora pedagógica e uma secretária escolar.
A partir de uma decisão política do governo do Estado do Ceará, os alunos dessa Escola foram transferidos para a
rede municipal - passaram a ser contabilizados no número de alunos do município, sob a responsabilidade da secretaria
municipal de educação, mesmo continuando nas dependências do prédio do Estado. Em outras palavras: o município recebeu
os alunos, mas não havia um espaço naquela comunidade que pudesse alocá-los.
Assim, a Escola Estadual João Alves Moreira deixou de existir, enquanto instituição jurídica, e passou a funcionar
como anexa da Escola de Ensino Fundamental e Médio Almir Pinto. A parte física da escola recebia, nos turnos da manhã e
da tarde, os alunos do Ensino Fundamental, que, a partir de 1998, passaram a ser responsabilidade do município, sob
orientação dos professores da rede municipal. Já no turno da noite, o espaço foi ocupado pelos alunos do Ensino Médio do
distrito de Vazantes e de localidades vizinhas que, anteriormente, deslocavam-se para a cidade de Aracoiaba, para estudar na
Escola Almir Pinto.
Segundo depoimento da professora Norma, isso aconteceu sem nenhuma participação da comunidade. Para ela,
esse ato ficou marcado como sendo o símbolo da Reforma do Ensino Médio.
Para mim o símbolo da Reforma do Ensino Médio, a única coisa que eu não consigo esquecer dessa reforma, foi que
acabaram com a Escola João Alves Moreira de Vazantes. Nós passamos a ser escola anexa (...) da Escola Almir Pinto.
Não é por ser anexo do Almir Pinto, não. É por perder o status de escola e ficar dependendo de outra escola. [É por
ficar] ameaçada de não ter lotação pra gente, ameaçada de a gente ter que se deslocar para outra comunidade para dar
aula. Isso marcou em mim como o símbolo da reforma. Para mim aquilo ali marcou para o resto da vida, (...) a
comunidade perdeu uma repartição pública, um órgão do Estado. Eu, na época, reclamei que não podia entregar os
alunos para o município. Não havia nenhuma lei obrigando a entregar todos os alunos para o município, (...) da
educação infantil até a oitava serie. Alguns professores foram tentar reclamar com a Raimunda Bento, que era diretora
da época. Ainda lembro como se fosse hoje ela dizendo: “não, agora tem que entregar, agora a gestão é da Marilene”.
Fomos até [ao vereador] seu Vicente Maia [perguntar]: Seu Vicente nós vamos entregar tudo mesmo? [Ele respondeu:]
“sim, a vez é dela”. A vez é dela e a desgraça é nossa, foi o que eu respondi. Não esqueço disso nunca porque foi assim
que respondi. Foi muita covardia, baixaram a cabeça para a prefeita e até hoje a gente sente. (...) Ela se aposentou [a
diretora] e nós ainda estamos correndo atrás. Eu dou graças a Deus [com as mãos para o alto]. (Norma)

353
De fato, a professora Norma reconhece que a Reforma está relacionada à municipalização no Ceará pela
interpretação dada à LDB e pela decisão política de passar para os municípios a gerência do Ensino Fundamental. A forma
compulsória e acelerada como aconteceu essa municipalização, revela o caráter autoritário com que a Reforma fora
implantada. A escola já fazia parte do cotidiano da comunidade, não só como estrutura física, já que essa continuou existindo,
mas também como repartição estadual, como um órgão do governo que dá significado e importância à comunidade.
A certeza de que não havia nenhuma lei obrigando que os alunos fossem remanejados não foi suficiente para uma
reação mais vigorosa da comunidade a ponto de barrar a municipalização, como aconteceu em outros casos na Região. Isso
pode ser entendido como uma acomodação da comunidade, já que a diretora aceitou passivamente entregar os alunos, e o
líder comunitário e vereador da localidade, Vicente Maia, mostrou que a vez é dela. A vez é do município, personificado na
figura da prefeita Marilene Campelo, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), correligionária do governador do
Estado.
Ora, esse tem que entregar da diretora e a vez é dela referidos pelo vereador, denunciam a consciência dos
interesses que estavam em jogo e a pressão que a prefeitura estava fazendo para conquistar aqueles números (em forma de
alunos) e, ainda, uma rendição frente aos interesses maiores do município em detrimento dos interesses da comunidade. Por
isso que a professora entrevistada sente que a comunidade foi traída pelos dois representantes (aqueles que tinham as
informações privilegiadas e deveriam assumir o papel de começar as barricadas em defesa dos interesses locais). A covardia,
entendida como medo de enfrentar a ordem instituída em defesa dos interesses da comunidade, trouxe um prejuízo na auto-
estima do vazantense.
As perdas sentidas pela comunidade é uma mistura da falta que a instituição jurídica faz e das lacunas à memória da
própria comunidade, conforme expressa o discurso abaixo:
Primeiro perdeu aquele status de escola do Estado. Porque escola do Estado só tinha [em] Vazantes, fundada por filhos
de Vazantes que tinham prestígio junto ao governo. E a de Vazantes é ainda mais velha que o Almir Pinto. Só existiam
essas duas escolas estaduais aqui em Aracoiaba. Depois é que surgiu a escola de Ideal, caminhando, se arrastando atrás
de ser escola. Depois [de perder a escola] a gente perdeu a base. Você se desestrutura, porque começa a depender de
outra escola. As coisas ficam mais longe, os avisos do CREDE não chegam até lá, fica retido aqui, por conta das
condições. Ano passado eu peguei uma briga porque houve um treinamento, um curso de laboratório, de química e
biologia em Quixadá para os professores da área e eu fiquei de fora. Só foram os professores daqui. Certo que eles
também têm direito, mas sobrou vaga, ficou faltando, mais ninguém lembrou da gente. A gente fica em segundo plano.
Ninguém lembrou de ligar lá pra Vazantes, para Francimeire, para Antonia, para Norma: “ei, qual é o telefone da louca
da Norma, liga lá e diz ela que venha aqui”. Eu tinha pegado meu filho e tinha vindo. A gente perde muito, deixa de
existir, fica sempre em segundo plano, fica mesmo é isolada do mundo. (Norma)

A perda do status da escola é uma perda da história da comunidade que tinha a mais antiga escola pública estadual
do município, fundada por filhos de Vazantes para os vazantenses.
Além disso, a comunicação com o CREDE era feita agora via escola-sede, detentora da estrutura (inclusive, do
núcleo gestor) pedagógica e do poder de decisão de quem participa ou não das atividades, das capacitações, dos
planejamentos e quando e como isso acontece. Como entre a escola-sede e a escola-anexa existem diversos obstáculos
(distância, tempo, pessoas insatisfeitas no trabalho, estrutura física ainda mais debilitada), as informações não chegavam na
hora e na dinâmica que são necessárias para viabilizar a participação nas atividades. Assim, a municipalização causa dois
prejuízos aos princípios da Reforma: dificulta a capacitação dos professores e a participação na tomada de decisões. A escola
estadual é uma instituição que, a partir do ponto de vista da entrevistada, resguarda e intermedia a relação entre os
professores e funcionários e o CREDE.
Outro problema apontado pela professora Norma foi a dificuldade de lotação de professores nas turmas que ficaram
em Vazantes, como mostram suas palavras:
No início era tanta confusão que a gente nem entendia direito o que estava acontecendo, só sabia que a escola seria
municipalizada. Foi um terror! De início a gente pensou que fosse perder o emprego. Na verdade a gente foi ameaçada
de perder o emprego porque não podia dar aula no Ensino Médio. Avisaram que agora só tinha classe do Ensino Médio
e todas as professoras daqui só tinham o [Ensino Médio] Normal. As meninas podiam ser cedidas para o município
(...). E eu que não queria ir pra lá. Ainda bem que houve aquele curso [Licenciatura em Ciências] lá do IMBA. Fui
fazer por minha conta mesmo. Desde que me formei em 2001 que estou mais aliviada. Assim hoje posso ensinar
biologia e química. O meu medo toda vida, de acabar a escola de Vazantes era de enfrentar um outro mundo. (...) Eu
terminei o primeiro grau em Vazantes. Fui depois para a sede e fiz o cientifico, voltei pra Vazantes. Vinha toda noite.
Terminei. Fui a Fortaleza pra fazer a seleção, uma seleção para entrar no Estado. Depois fui fazer o curso da TV para
trabalhar no João Alves Moreira, em Vazantes. A minha vida toda foi em Vazantes. (...) Eu não sei dar um passo se
não for depois voltando para Vazantes. Eu tinha muito medo de sair. Quando tive que trabalhar em Ideal, que eles me
colocaram para lecionar biologia lá, (...) que não teve jeito (...) e eu fui. Fui para não perder meu contrato porque não
tinha lotação para mim. Mas acho um desperdício uma escola daquele tamanho, toda estruturada e a gente sem poder
utilizá-la direito porque fizeram uma besteira daquela. (Norma)

A dificuldade de lotação dos professores e dos funcionários efetivos do Estado, todos moradores do distrito de
Vazantes, reforça a idéia de que o gerenciamento para receber a expansão do Ensino Médio foi equivocado. Além da questão
do desperdício, como refere a Norma, e de o prédio ficar sub-utilizado, os professores e funcionários tiveram que ser lotados

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em outras funções, em outras localidades ou na sala de multimeios, como professores orientadores de ensino (faziam o papel
de direção da escola), ou foram também cedidos, dependendo da conveniência política, parcialmente ao município.
Ainda mais, a fala revela que o Estado não se preparou com a formação dos professores para atender à demanda
crescente. Como o ex-secretário de educação, Antenor Naspolini, afirmava, numericamente, o Estado do Ceará tinha
excedente de professores. O problema é que o professor do Estado estava habituado, por quinze a vinte anos, a atuar nas
séries iniciais, sem formação de nível superior, para que pudesse atuar no Ensino Médio. Assim, não era uma questão de
vontade ou de falta de vontade, mas de história de vida e de formação acadêmica mesmo. Nesse sentido, o Ceará conviveu e
ainda convive com um dilema: sobra de professores do Ensino Fundamental, por falta de salas de aula para lotação, e falta de
professores para o Ensino Médio. Diante disso, várias foram as soluções.
Uma parte de professores se apressou em participar de um curso rápido (em dois anos ou menos), chamado
Pedagogia em Regime Especial, principalmente, numa universidade pública (mas que cobra mensalidade), a Universidade
Estadual Vale do Acaraú ou, simplesmente, UVA. O engraçado (ou trágico?) é que esse curso tem a validade legal de
qualquer outro curso superior do magistério, só que não habilita para nada. O professor continua sem poder lecionar nenhuma
disciplina do Ensino Médio, podendo, no máximo, atender aos alunos das quatro primeiras séries iniciais. Vários professores
ameaçaram entrar na justiça contra a UVA por estelionato. Mas depois viram que o diploma serviu para que eles mudassem
de nível e aumentassem seus salários (que bom!) e o ímpeto da maioria esfriou.
Alguns desses professores, principalmente aqueles que estavam próximos a completar o tempo de serviço para
pedir a aposentadoria, contaram com a flexibilidade e a imaginação das diretoras e dos diretores das escolas para arranjarem
um lugarzinho para eles. Sala de apoio, de multimeios, de vídeo, sala de leitura, sala dos pais. As salas de jogos, de apoio,
dos professores, de reforço e a de aprofundamento serviram para lotar os professores que estavam agora com o nível superior
precário.
Uma parte significativa dos professores excedentes das escolas estaduais que estão sendo pesquisadas foi cedida
para o município para atuar nas classes do Ensino Fundamental. Essa cessão aconteceu com mais freqüência nos dois últimos
anos do terceiro mandato do governo Tasso e serviu para completar o pacote: alunos, escolas e, o que faltava, os professores.
É preciso reconhecer, no entanto, que os municípios cederam também, nessa troca, alguns valorosos profissionais, muitos
deles habilitados e comprometidos com a educação de qualidade. O que se lamenta, porém, é que esse vai-e-vem, na maioria
dos casos, não foi referendado pela busca da qualidade, mas para atender a interesses menores do partido, do cabo eleitoral,
do vereador e do deputado.

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Sociedade, educação básica pública e comunicação: responsabilidade, lutas


sociais e direitos no Brasil (1988-2007)

Diones Dias Soares Saborage


USCS - Universidade Municipal de São Caetano do Sul
vimdafrica@ig.com.br

Resumo: O presente trabalho apresenta o contexto sócio-político-educacional brasileiro entre os anos de 1988 e 2007 abordando as
principais leis e planos educacionais, os sistemas de financiamento em vigor e a atuação da sociedade civil. A data inicial refere-se à
promulgação da atual Constituição Brasileira. O período de investigação desta pesquisa é caracterizado pelo aumento na oferta de vagas na
escola pública, mas também pela queda no nível de formação dos professores e pela precariedade de sua remuneração e de condições de
trabalho. Destacam-se neste projeto a relevância da atuação de organizações da sociedade civil e o debate acerca da responsabilidade coletiva
na melhoria das condições sociais da educação e da aprendizagem. Feito isso, almeja-se que o estudo contribua para formação de opinião
sobre a qualidade da educação pública básica no Brasil.

Introdução
Este trabalho toma como educação de qualidade, aquela capaz de proporcionar a qualquer pessoa a capacidade do
auto-raciocínio, da compreensão da realidade. Tais objetivos são obrigação do Estado, conforme determina o artigo 205 da
Constituição Federal de 1988. “A educação, (...), será promovida e incentivada (...), visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
O Brasil está longe de atingir esse patamar. Na educação infantil, o país só atendia, em 2000, a 35,4% das crianças
entre 0 a 6 anos (CARREIRA; PINTO, 2007), sendo que na creche, período que compreende os três anos iniciais, a
quantidade era de somente 13% em 2005 (ELY, 2007). Em 2003, o índice de crianças entre 7 e 14 anos freqüentando o
ensino fundamental era de 97,3%1. Apesar disso, essa inserção foi feita de maneira precária. Como conseqüência, no mesmo
ano apenas 66% dos matriculados concluíram o curso na idade ideal (HADDAD, 2007). No ensino médio apenas 40,1% da
população a freqüentava (CARVALHO; HADDAD; SARAIVA, 2008) em 2000. Em 2005 mais de 15 milhões de brasileiros
(10,2%2 da população) com 10 anos ou mais de idade eram analfabetos. Outros 23,6% haviam estudado menos de quatro
anos, metade do que a legislação determina como obrigatório.
O país participou três vezes do Pisa (Programa para Avaliação Internacional de Estudantes), teste organizado
trienalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Em 2006, o Brasil ficou em 52º

1
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Pesquisa Nacional por Amostra de DomicíliosPesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2005.
Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=686
2
Idem.

356
entre 57 países que participaram da prova focada em ciências (GÓIS; PINHO, 2008); em 2003 (matemática) a posição
alcançada foi o 38º lugar entre 41 nações; e em 2000, penúltimo entre 43 países em leitura.
Esses dados fazem parte do contexto sócio-político-educacional que o estudo debate, abordando as principais leis
educacionais que surgiram entre 1988 e 2007, os principais planos educacionais e sistemas de financiamento vigentes no
período e a atuação da sociedade civil.

2. Contexto sócio-político-educacional do brasil entre 1988 e 2007


O período foi marcado por grandes mudanças na escola básica pública brasileira (planos e leis educacionais,
avaliações, financiamento). Essas mudanças estão intimamente ligadas e são dependentes de ações políticas. É aí que começa
um dos problemas da educação brasileira: na política.
As classes dominantes brasileiras não têm interesse em garantir escola de qualidade para todos por motivos
econômicos, já que não há lugar no mercado de trabalho que comporte a todos (OLIVEIRA, 1995). Aos pobres, o que resta é
a educação básica pública, incapaz de formar cidadãos plenos, gerando mão-de-obra barata e desqualificada e justificando as
diferenças sociais. “[...] se se elevar o nível educacional de determinada população, os diferenciais individuais de rendimento
no mercado de trabalho não mais poderão ser explicados pela posse de níveis distintos de educação” (OLIVEIRA, 1995, p.
32).
O Estado põe em prática, então, seu populismo que somado ao ensino oferecido aos pobres ajuda a explicar a
expansão de matrículas no ensino fundamental na década de 1990 que coloca essa etapa da educação básica bem próxima da
suposta universalização, já que 97,3% das crianças entre 7 e 14 anos viram concretizado seu direito ao acesso à escola.
Haddad aponta que essa universalização é falsa no sentido em que a baixa qualidade do ensino unida às más condições de
vida geram um novo tipo de exclusão, promovida “pela incapacidade de adquirir a escolaridade, mesmo freqüentando os
bancos escolares” (Haddad, 2007, p. 24).
No governo Lula pode-se identificar o populismo3 e suas ações assistencialistas nos programas Bolsa Família e
Universidade para Todos (Prouni). Ainda que milhares de pessoas se beneficiem desses programas, o problema residente aí é
que a estabilidade econômica e social pretendida por eles se dá de maneira a manter a elite no topo da pirâmide e a grande
população na base, sem capacidade de enxergar os verdadeiros motivos do assistencialismo4.
A pobreza política é marcada pela entrega acrítica do próprio destino nas mãos dos algozes, esperando deste a
salvação. [...] O pobre sequer consegue saber, é coibido de saber que é pobre. Não envolve apenas a dimensão do “ter”, mas
do “ser”: mais grave do que passar fome é não perceber que a fome é forjada e fonte de lucro para minorias, donde segue que
acredita mais em “cestas básicas” do que em sua luta. Se não descobrir que a pobreza é injusta e historicamente produzida, o
pobre continua “objeto” de cuidados duvidosos de estados e governos, quando, na verdade, deveria ser a peça-chave de sua
libertação (DEMO, 2005, p. 108).
As palavras de Demo podem perfeitamente ser adaptadas à educação e a conseqüente alienação que sua falta
propicia. De forma alguma se pode culpar o alienado por sua condição submissa, pois, “ele pensa, sente, quer o que todo
mundo ao seu redor quer, sente e pensa” (BAKUNIN apud BARRUÉ, 2003, p. 13). Bakunin chamou essa capacidade dos
dominantes de manter a população sob sua tutela de ciência.
Ciência de tosquiar os rebanhos populares sem fazê-los gritar demasiado e, quando começarem a gritar, ciência de
impor-lhes silêncio, paciência e obediência por meio de uma força cientificamente organizada; ciência de enganar e dividir as
massas populares, de mantê-las sempre em uma saudável ignorância para que nunca possam, ajudando-se e unindo seus
esforços, criar um poder capaz de derrubá-los (BAKUNIN, 2003, p. 66).
Os “cientistas” descritos por Bakunin obtêm resultados satisfatórios no Brasil. É o que comprova uma pesquisa
realizada pela revista Carta Capital em 2007. Segundo o levantamento, a nota média conferida pelos 2001 entrevistados à
educação básica pública brasileira, responsável pelo atendimento a cerca de 48,7 milhões de alunos (BARROS, 2007), foi
7,4, suficiente para aprovar um estudante em vários cursos. Desses entrevistados, 18% chegaram a atribuir nota 10, sendo que
a média do ensino privado ficou em 8,3.
E assim, criando mais vagas para o acesso a escola sem acompanhá-las da estrutura necessária para que a educação
seja fornecida com qualidade, o Estado brasileiro vem há anos atingindo seus objetivos: demonstrar uma aparente
preocupação com a educação pública básica e manter seus cidadãos sem formação intelectual. Oliveira cita um trecho em que
Anísio Teixeira sintetiza a maneira estatal de agir.
Dificultam-se os recursos para o empreendimento; ministra-se educação do tipo inútil e que desencoraje a maioria
em prossegui-la; e se a teimosia popular insistir pela freqüência à escola, abrevia-se o período escolar, oferecendo-se o
mínimo possível de educação, alega-se que tal se faz por motivos democráticos, a fim de atender a todos (TEIXEIRA, apud
OLIVEIRA, 2005, p.28)

3. Piso salarial para professores

3
Maneira de exercer o poder dando atenção ao povo em troca de um suposto autoritarismo consentido (ARAÙJO, 2007).
4
Prática de exclusão que retro-alimenta a miséria (BARBOSA, 2004).

357
Para obter sucesso em sua estratégia os dominantes lançam mão de algumas manobras, entre as quais está inserida a
participação do professor, principal envolvido no processo educacional (ALVES; LUZ, 2007) ao lado do aluno. Barrué faz
referência a texto onde Bakunin define essa ação. “Os professores [...] tornar-se-ão, uns sem sabê-lo, os outros em pleno
conhecimento de causa, os mestres da doutrina do sacrifício popular para o poder do estado e para o benefício das classes
privilegiadas” (BAKUNIN, apud BARRUÉ, 2003, p. 15).
E por essa ação passa a remuneração do profissional. O Ministério da Educação (MEC) enviou ao Congresso
Nacional, em 28 de março de 2007, o Projeto de Lei (PL) 619/2007 que institui o piso salarial nacional para professores do
magistério público. A ação nada mais é do que o cumprimento de uma norma estabelecida pela Emenda Constitucional (EC)
53/2006 e sacramentada pela Lei 11.494/2007, que, respectivamente, criou e regulamentou o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).
Nesse processo, o MEC cometeu alguns erros de conduta. O primeiro deles foi não incluir todos os trabalhadores
das escolas no projeto, restringindo o benefício apenas àqueles considerados profissionais do magistério (professores,
diretores, coordenadores pedagógicos). Isso pode gerar uma insatisfação ainda maior por parte dos demais funcionários que
atuam em instituições de ensino. A cinca pode ser corrigida se o PL 6.206/2005 for aprovado igualando todos os funcionários
como profissionais da educação com qualificação específica para a área.
O segundo foi sugerir o pagamento mensal de apenas R$ 850, incluindo todos os benefícios, por uma jornada de
trabalho de 40 horas semanais. É fato que o projeto sofreu modificações em seu conceito e valor até a sanção presidencial em
2008, mas o que interessa a essa pesquisa é a intenção primeira do governo de remunerar mal seus servidores.
A falta de consideração fica ainda mais evidente se comparado à intenção do Poder Executivo, que chegou a ser
cogitada em julho do mesmo ano, mas não vingou, de criar um piso salarial também para policiais. A medida faria parte de
outro plano, esse para a área de segurança e cidadania: o Pronasci5. O valor estaria entre R$ 1.200 e R$ 1.700. Se aprovadas
as medidas nos moldes governistas a diferença de remuneração entre um profissional e outro poderia chegar a 100%.
Verifica-se, então, o intento do governo de não investir adequadamente na rede pública de ensino básico ao notar
que, na época de seu anúncio, o Pronasci previa a construção de 187 presídios para adolescentes em conflito com a lei, ao
custo aproximado de mais de R$ 1 bilhão - mesmo valor destinado ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) entre
março de 2007 e março de 2008. Cada um demandaria cerca de R$ 6,2 milhões. Com o dinheiro empregado para fazer apenas
uma prisão que trancaria 245 jovens entre 18 e 29 anos, seria possível levantar, em 2005, segundo o CAQi (Custo Aluno-
Qualidade Inicial), estudo realizado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, dez escolas com 1.060 m², quadra de
esportes, biblioteca, laboratórios de ciências e informática e capacidade para atender 400 alunos de 1ª a 4ª série do ensino
fundamental6 (2.042 escolas e 816.800 mil estudantes no total).
Além disso, o governo demonstrou um enorme contra-senso ao aspirar dar cursos de alfabetização e formação
profissional para os detentos de suas novas “instituições de ensino”. Seria mais inteligente alfabetizar e educar crianças
descentemente, dando-lhes condição de competir igualitariamente por bons empregos quando, no futuro, chegarem ao
mercado de trabalho. Assim, o governo colaboraria consigo mesmo para atingir os objetivos ambicionados nos dois planos:
diminuir a violência urbana e melhorar a média nacional dos alunos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb), principal ação do PDE.

4. O plano de desenvolvimento da educação e o plano nacional de educação


Nesse ponto identificamos mais uma atitude populista do governo. Ao anunciar o PDE no início de 2007 o MEC
incorporou o PL do piso salarial entre suas ações e fez o mesmo com o Fundeb. Ambos começaram a ser debatidos pelo
menos 10 anos antes do lançamento do plano. O Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), criado em
1999, na gestão Fernando Henrique Cardoso (FHC), também entrou como ação governamental. A esse respeito, Campos
observou:
Muitas das ações previstas são programas já existentes, e outras envolvem iniciativas compartilhadas com outros
ministérios – propostas que encontram dificuldades para operacionalização [...] Parece então que a grande novidade
trazida pelo PDE se concentra na utilização do Ideb como medida que fundamenta tanto o diagnóstico dos sistemas
como os das unidades escolares (CAMPOS, 2007, p. 6 e 7).

Mesmo que novidade o Ideb apresenta falhas. A maior delas é não considerar as condições em que se dá a
aprendizagem dos alunos antes de realizarem as provas e, por vincular suas notas a um cálculo que considera proficiência e
rendimento escolar, abre espaço para fraudes por parte de estados e municípios na busca de mais recursos, além de basear os
testes somente nas disciplinas de Português e Matemática.
Da combinação de resultados surge uma nota entre 0 e 10 para cada estado e município da Federação e unidade
escolar. O plano se baseou inicialmente em dados de 2005, obtendo uma média nacional de 3,6, sendo 3,8 para 1ª a 4ª séries

5
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania. Desenvolvido pelo Ministério da Justiça o projeto articula políticas de segurança com ações sociais.
Disponível em http://www.mj.gov.br/pronasci
6
Em 2006 a Lei 11.274 alterou a LDB e a idade de 6 anos passou a fazer parte do ensino fundamental, reduzindo o atendimento na pré-escola para 4 e 5 anos e
aumentando o ensino fundamental para 9 anos (1ª a 5ª, séries iniciais e 6ª a 9ª séries finais), mas, como o prazo vai até 2010, nem todas as escolas implantaram o
sistema.

358
do ensino fundamental; 3,5 para 4ª a 8ª; e 3,4 para o ensino médio. A meta é chegar a 5,4; 6,0; 5,5; e 5,2, respectivamente, até
2021, atingindo, assim, o patamar ocupado hoje pelos países da OCDE.
Há ainda uma série de equívocos na concepção do plano. Um deles é que o MEC não considerou Plano Nacional da
Educação (PNE), construído com ampla participação da sociedade e que poderia melhorar a qualidade da educação básica
pública nacional se suas metas programadas para serem cumpridas até 2011 fossem alcançadas, no planejamento do PDE. O
MEC perdeu aí a chance de fazer algo concreto com relação ao financiamento da educação, aumentando a demanda de
investimento que hoje está em torno de 4,5% Produto Interno Bruto (PIB) para 7%, alíquota aprovada na construção do PNE,
mas vetada pelo governo FHC e mantido pela gestão Lula.

5. Lei 10.639/2003 – ensino da cultura africana e afro-brasileira


Questões raciais como a implementação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira e
africana em todas as escolas de ensino fundamental e médio também não foram contempladas no PDE. Se o tivesse feito, o
governo poderia ter destinado mais recursos para acelerar a implementação da norma, que tem como uma de suas falhas a
falta de um cronograma para essa implementação, deixando-a a cargo da boa vontade das escolas e dos sistemas
educacionais. O próprio processo de criação da lei mostra a falta de compromisso do governo para com essa parcela da
população.
À primeira vista a sanção da Lei 10.639/2003 feita pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva logo no nono dia do
seu primeiro mandato (2003 a 2006) parece um comprometimento histórico e inédito de um governo brasileiro para com a
população negra, por tantos anos renegada a segundo plano em todos os segmentos da sociedade. No entanto, esse fato só
ocorreu àquela época como um lenitivo para o movimento negro. Rocha cita trecho em que Dias aborda a questão:
[...] a lei apresentada de imediato teve como função precípua responder a antigas reivindicações do movimento negro
ou distrai-lo com novas preocupações, principalmente com a implantação da mesma. Com isso o governo consegue o
intento de não ser pressionado de imediato por este segmento da sociedade. (DIAS apud ROCHA, 2006, p. 68)

De acordo com Rocha, a pressão se daria por causa do descumprimento de um acordo firmado entre o futuro
governo e o movimento negro, durante “o processo de transição [de 2002, FHC, para 2003, Lula], para criação de um
ministério, ou de outra estrutura específica, com o objetivo de desenvolver políticas públicas de enfrentamento ao quadro de
exclusão racial brasileiro (ROCHA, 2006, p. 68).
Outra crítica ao texto da norma e à conduta do governo durante sua sanção diz respeito ao caput do artigo 26-A, que
estende a abrangência da lei apenas às escolas de ensinos fundamental e médio. Nesse ponto, os dirigentes não vêm a
educação infantil como parte integrante da educação básica e, portanto, importantíssima no desenvolvimento do indivíduo.
Uma pesquisa realizada em 2005 e 2006 por um grupo de entidades da sociedade civil em instituições de ensino de São
Paulo, Belo Horizonte e Salvador, comprovam a prática do racismo desde as idades iniciais da vida escolar. (EDUCATIVA,
CEAFRO E CEERT, 2007). Silva (1999) relata em seu artigo estudos que reforçam essa idéia.
A lei 10.639/2003 é, portanto, resultado de reivindicações do movimento negro anteriores até mesmo à
promulgação da Constituição Federal de 1988 aliada a pressões de organismos internacionais pela diminuição da pobreza.
Sua criação ganhou força com a realização, por parte da Organização das Nações Unidas (ONU), da Conferência Mundial
contra o Racismo, a Xenofobia e as Formas de Intolerância, ocorrida em Durban, na África do Sul, entre 31 de agosto e 7 de
setembro 2001.
Sua tramitação começou em 11 de março de 1999, com a apresentação do PL 259, de autoria da deputada Esther
Grossi e do deputado Bem-Hur Ferreira, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). No dia 5 de abril de 2002, ano eleitoral e
de Copa do Mundo, o PL chegou ao Senado, sendo plenamente apreciado e transformado em lei somente no ano seguinte e
regulamentado em 2004, quando o Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer número 03, instituindo as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana no dia 10 de março. De maneira geral, a Lei 10.639/2003 é um grande avanço no combate ao racismo e à
discriminação e busca atuar de maneira incisiva na escola, mas ainda não causa “impacto significativo no cotidiano escolar”
(EDUCATIVA; CEAFRO; CEERT, 2007, p. 42).

6. Ldb - lei de diretrizes e bases da educação nacional


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996) é uma espécie de regulamentação do capítulo
referente ao direito à Educação expresso na Constituição Federal de 1988 (BORGES, 2005). De fato, ela incorpora diversos
trechos presentes na Carta Magna. A LDB substituiu uma série de normas anteriores a ela que versavam sobre o mesmo
assunto (Lei 4.024/1961, Lei 5.540/1968, Lei 5.692/1971, Lei 7.044/1982, Lei 9.131/1995 e Lei 9.192/1995).
Com a aprovação da atual LDB, durante o governo FHC, a educação brasileira passou a ser distribuída por níveis,
etapas e modalidades (figura 1), as atribuições dos entes federados foram explicitadas e a educação de jovens e adultos
reconhecida. No entanto, a realização de censos próprios para essa modalidade não vem sendo cumprida pelo governo
(HADDAD, 2007).

359
Além disso, três meses antes de sua sanção foi promulgada a Emenda Constitucional 14, criticada não só por
inviabilizar a obrigatoriedade e gratuidade da universalização do ensino médio, mas também por criar o Fundo de
Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), vinculação de recursos exclusiva para essa etapa da educação básica,
deixando as demais desamparadas (HADDAD, 2007).

7. Fundef e fundeb
O Fundef entrou em vigor em 1º de janeiro de 1998. O fundo reservava 15% da arrecadação de uma cesta de
impostos como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Esses recursos eram redistribuídos aos entes
federados para serem aplicados em educação e obedeciam a critérios que envolviam o número de matrículas que
apresentavam. Até 2005 mais de R$ 175 bilhões havia sido movimentado pelo fundo (WEBER, 2006). Nesse mesmo ano a
União descumpria parte de sua responsabilidade no processo, que era a de complementar o investimento faltante em estados
com arrecadação menor. “Este aporte, que deveria ser de cerca de R$ 5 bilhões, foi inferior a 10% deste valor” (HADDAD,
2007, p. 49).
Em 1º de janeiro de 2007 passou a valer o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) com a
expectativa de um investimento anual de R$ 50 bilhões em educação (BRAGA, 2006) e com uma série de
Creche
Níveis Etapas Educação Infantil Pré-escola
Ensino Fundamental Séries Iniciais
1ª a 4ª séries
Ensino Médio ou 1ª a 5ª séries

Séries Finais
5ª a 8ª séries
ou 6ª a 9ª séries

Educação Básica Modalidades Educação de Jovens e Adultos


Educação Especial
Educação Indígena
Educação a Distância
Educação Profissional
Educação do Campo
Mestrado
Graduação Doutorado
Educação Superior Pós-Graduação Especialização
Extensão Aperfeiçoamento

Outros

Figura 1 - divisão atual da educação brasileira por níveis, etapas e modalidades. Fonte: LDB (Lei 9.394/1996).

melhorias em relação à legislação anterior. Uma delas diz respeito à fonte recursos. A porcentagem de arrecadação sobre
impostos aumentou de 15 para 20 e novas taxas, como o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), foram
incorporadas à cesta. Além disso, a Lei 11.494/2007, que regulamenta o Fundeb, fixou novas regras para a complementação
da União, que passou a ser de no mínimo 10% do total angariado pelo Fundeb. Outro avanço é que o fundo passou a cobrir
toda a educação básica, da creche ao ensino fundamental. Porém, essa não era a intenção inicial do Governo, uma vez que a
educação infantil não estava incluída no Fundeb quando este começou a ser debatido, o que prejudicaria cerca de 13 milhões
de crianças de 0 a 3 anos, e só vieram a ser depois de muita pressão da sociedade civil.

8. A campanha nacional pelo direito à educação e o CAQi


Durante a tramitação do Fundeb, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação coordenou o “movimento Fundeb
pra valer!”, que mobilizou cerca de 200 entidades em defesa do direito constitucional de acesso à educação pública de
qualidade. A atuação da Campanha foi essencial à inclusão das creches públicas e comunitárias nos recursos do fundo (ELY,
2007, p.37).
Como relata Ely, a pressão da Campanha se deu durante todo o processo de tramitação da proposta de criação do
Fundeb no Congresso Nacional e originou ainda outros importantes avanços para a sociedade. O reconhecimento veio por

360
parte da própria Câmara dos Deputados, que em 2007 agraciou a rede com o Prêmio Darcy Ribeiro, conferido a entidades e
pessoas que se destacam na defesa pelo direito à educação.
A Campanha surgiu em 1999 quando um grupo de instituições da sociedade civil se reuniu para traçar planos de
ação para a Conferência Mundial de Educação do ano seguinte, no Senegal. Outra conquista foi a criação do Custo Aluno-
Qualidade Inicial (CAQi), estudo que leva em consideração todos os aspectos necessários para que uma escola ensine com
qualidade e define valores anuais para isso. Para se ter uma idéia mais abrangente, a tabela abaixo mostra os valores para
cada etapa da educação básica em 2007 e a quantidade de alunos por sala considerada pela Campanha como ideal:

Etapa Valor (R$) Alunos

Creche 5.553 12
Pré-Escola 2.402 22
Ensino Fundamental – séries iniciais (1ª a 4ª) 2.317 25
Ensino Fundamental – séries finais (5ª a 8ª) 2.275 30
Ensino Médio 2.346 30
Ensino Fundamental do Campo – séries iniciais (1ª a 4ª) 3.208 12
Ensino Fundamental – séries finais (5ª a 8ª) 3.109 25
Tabela 1 - valor do CAQi para cada etapa da educação básica em 2007 e quantidade ideal de alunos por sala de aula. Fonte: Campanha Nacional pelo Direito à
Educação (2007).

9. Conclusão
Apesar de o acesso à escola ter aumentado e de a população considerar que o ensino básico público brasileiro é
bom, o aprofundamento na questão mostra que a realidade é mais complexa e carece de análises mais profundas. A escola é
incapaz de preparar o indivíduo para a vida e para o trabalho contemporâneos e não o credencia a exigir e praticar seus
direitos políticos, civis e sociais de forma atuante e decisiva, o que não o torna um cidadão pleno.
Devido a isso, os movimentos sociais que se preocupam com essas questões têm proposto mudanças e apresentado
estudos objetivando evitar que as crianças de hoje tenham uma educação ineficiente e inadequada para a sociabilidade
presente. O mundo globalizado de hoje exige e determina práticas de conhecimento éticas, que construam conhecimento
próprio, mediante a utilização de informações abertas num sistema de comunicação universal, digital e político, viabilizador
de mais liberdade intelectual.
Somente com um povo devidamente educado será possível a construção de uma sociedade política, social e
economicamente justa, o que levará ao desenvolvimento dos demais setores que compõem a vida em grupo. Contudo, os
trâmites da história da educação no Brasil revelam que desde o período imperial o objetivo do governo é “a formação das
elites dirigentes do país” (PILETTI, 1991, p. 145). E isso ainda não mudou.

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WEBER, D. (2006). Fundef: dez anos sem melhorar a qualidade. Rio de Janeiro: Jornal O Globo.

Educação de adultos e diversidade cultural

Dulce Sá Silva
Universidade Nova de Lisboa
dulcesasilva@gmail.com

Resumo: A presente comunicação aborda questões relativas ao estudo da educação de adultos e à diversidade cultural. A Educação de
Adultos é necessária para colmatar um déficit de cidadania: falta a muitos portugueses e a muitos estrangeiros residentes, o domínio dos
instrumentos de aquisição da informação escrita e, muitas vezes, até oral. A educação, permitindo o acesso de todos ao conhecimento, tem
um papel bem concreto a desempenhar no cumprimento desta tarefa universal: ajudar a compreender o mundo e o outro, a fim de que cada
um se compreenda melhor a si mesmo.
Uma das principais preocupações da escola está centrada na adequação a situações concretas e ao perfil dos públicos-alvo, na flexibilidade de
comportamentos didácticos e, consequentemente, no abandono da rigidez dos curricula escolares, admitidos como de aplicação geral ao
conjunto de grupos previamente determinados. As diferenças não são obstáculos para o cumprimento da acção educativa: podem e devem,
portanto, ser factor de enriquecimento pessoal e social. A educação ao longo de toda vida é uma construção contínua da pessoa humana, do
seu saber e das suas aptidões, mas também da sua capacidade de discernir e agir. Enquanto professores, devemos procurar meios,
informações e avaliar todo este processo de escolarização, tomando em consideração todo o tipo de diversidade encontrada nos alunos
adultos. Terá de ser possível desenvolver uma atitude de diálogo de conhecimentos ou, melhor, de diálogo entre culturas (interculturalidade).
Terá de se estabelecer uma negociação entre os saberes que as pessoas já possuem e as informações que recebem.

Em sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interacção harmoniosa entre pessoas e grupos com
identidades culturais plurais, variadas e dinâmicas, assim como a sua vontade de conviver.
As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos, garante a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz.
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, Artº 2

INTRODUÇÃO – A ESCOLA
À escola cabe, hoje, mais do que nunca, a responsabilidade de assegurar o domínio dos códigos da linguagem, da
matemática e de muitos outros conteúdos que se ligam às capacidades cognitivas e ao exercício de práticas do quotidiano, de
modo a capacitar todos para o entendimento de situações novas e a solucionar os mais diversos problemas que se colocam.
As técnicas de ensino a integrar um processo de permanente transmissão e aquisição, que se deve estender ao longo
da toda a vida (lifelong education), é um novo desafio educacional.
As novas experiências da vida em sociedade, bem como as do processo produtivo, remetem para os riscos da
exclusão social, incontroversamente perigosa para todos os que nela se encontrem. A condição de estrangeiro, evidenciada
em muitos casos por diferente raça ou língua, desperta não raramente atitudes de xenofobia ou de racismo, tanto mais
prováveis quando se acumulam outras situações de exclusão, de miséria ou de desemprego, que afligem os próprios
nacionais, incentivando sentimentos negativos de egoísmo e calando atitudes de solidariedade, de respeito e de entreajuda.
Uma das principais preocupações da escola está centrada na adequação a situações concretas e ao perfil dos
públicos-alvo, na flexibilidade de comportamentos didácticos e, consequentemente, no abandono da rigidez dos curricula
escolares, admitidos como de aplicação geral ao conjunto de grupos previamente determinados.
Às vezes, pensamos que a escola é eterna. Sempre existiu. Claro que sempre houve lugares de ensino-aprendizagem
organizados. Mas a escola como sistema público de ensino, para todos, legitimadora do exercício profissional, seriada,
hierárquica, com um professor para uma turma até ao 1º ciclo e professores por disciplina a partir do 2º ciclo, é uma
instituição muito recente.
A nível dos países mais desenvolvidos já é antiga a preocupação com a garantia de igualdade de acesso à educação,
mas falar de escola para todos é agora aceite de forma quase consensual. Realmente, nos dias de hoje, não é habitual recusar,
pelo menos ao nível do discurso político e explícito, que a escola constitui um bem a que todo o cidadão tem o direito de
aceder.
Mais recentemente, tem emergido o debate sobre se a escola deverá funcionar com a preocupação prioritária de
identificar e de valorizar algo que possa ser considerado como comum aos alunos, ou se deverá estar sobretudo atenta à
diversidade que alberga dentro dela. Isto poderá corresponder a discutir se a escola tem de, prioritariamente, debruçar-se
sobre o desenvolvimento nos alunos de saberes e capacidades que os ajudem a viver em sociedade e a usufruir dos seus

362
direitos de cidadania, ou se deverá, sobretudo, tentar preservar valores do património cultural do seu grupo de pertença, das
suas subjectividades, ou ainda se estas duas preocupações poderão, ou não, estar simultaneamente presentes na acção
educativa.
De acordo com Pérez (1998), a escola é um cruzamento de culturas. Hoje, a escola está a ser chamada a lidar com a
pluralidade cultural. Cabe à escola contemporânea, o desafio de reescrever o conhecimento a partir das diferentes raízes
étnicas e ancorarem socialmente o conteúdo; analisar a fonte, a sua origem, o contexto social, quais as ideologias dominantes,
tendo, a partir desses questionamentos, elementos para não cair numa aprendizagem sem sentido e empobrecida.
Para promover a inclusão de todas as culturas, atendendo e contemplando as diversas linguagens, é necessário
promover um novo sentido para a aprendizagem escolar e que se expandam os conteúdos curriculares usuais, de modo a neles
incluir a crítica dos diferentes artefactos culturais que circundam e permeiam o universo do aluno e, cremos que, somente no
diálogo, no questionamento, no debate, será possível desenvolver um novo olhar sobre as práticas pedagógicas, conforme
tanto apregoou o grande educador Paulo Freire (1997).
O ano de 2007 foi designado como o Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos. O objectivo era
sensibilizar a opinião pública para os problemas da discriminação e promover a igualdade da diversidade.
Para 2008, a Comissão Europeia propôs o Ano Europeu do Diálogo Intercultural. Neste âmbito, a necessidade de
reflectir a prática pedagógica em contexto multicultural é emergente.

MULTICULTURALISMO
O termo multiculturalismo aparece associado ao domínio da educação nas sociedades actuais fundamentalmente
por duas razões.
A primeira porque traduz um fenómeno social observável, na grande maioria, em espaços a que corresponde um
evidente pluralismo cultural resultante, sobretudo, da intensificação e posterior radicação de correntes populacionais
provenientes das mais diversas origens geográficas, que incluem não só os imigrantes económicos internos e internacionais,
mas também outras categorias de migrantes, como sejam os asilados e os refugiados.
Neste contexto, o termo multiculturalismo é utilizado numa acepção descritiva, no sentido de enfatizar o carácter
heterogéneo das sociedades, advindo da diversidade das respectivas populações.
O multiculturalismo pode também designar um conjunto de políticas aplicáveis em vários sectores da administração
pública, nomeadamente no da educação, formação profissional, emprego e acção social, com o propósito de responder aos
requisitos específicos das sociedades plurais.
O que se chama de multiculturalismo nas escolas é um reconhecimento às diversidades de expressão cultural em
diversas regiões do mundo. No entanto, segundo o filósofo e educador Sarkar (1998), a cultura humana é uma só, fluindo
subterraneamente dentro de cada pessoa, povoado e país. As diferenças são externas, e devem ser apreciadas porque dão cor,
vitalidade e estilo a cada comunidade humana. Mas essas diferenças não nos podem fazer esquecer a nossa condição comum
de seres humanos.
Por exemplo, se na escola os estudantes, crianças, adolescentes ou adultos, provêm de diferentes realidades
económicas, com expressões culturais distintas, com pais que possivelmente migraram de diferentes regiões do país ou do
mundo, com diferentes línguas, costumes, etc, então o currículo de uma escola ideal deve dar espaço para que as diferentes
expressões culturais se manifestem, para que não haja preconceito ou desvalorização de nenhuma pessoa ou população. Ao
mesmo tempo, todos ganham ao conhecer formas diferentes de se expressar. Este tipo de negligência pode afectar
profundamente a auto-estima e o desenvolvimento do potencial de cada estudante, deixando-o num futuro de dependência à
pseudocultura padronizada e comercial que pouco estimula o autoconhecimento, a reflexão e a riqueza existente em cada um.
É por esse perigo que o que então se chamava multiculturalismo (literalmente, o estudo de muitas culturas) se
tornou um movimento para se valorizar a diversidade cultural desde a escola, para que a sociedade, como um todo, a aprecie
mais profundamente.
O sistema de educação chamado Neo-Humanista reconhece a diversidade em unidade da cultura humana. Para isso,
é necessário que o contacto entre grupos diversos se faça num contexto igualitário, sendo este o ponto de partida para o
desenvolvimento de uma vivência entre-culturas (Leite, 2007: 37).
Dentro do currículo escolar, a apreciação da diversidade cultural é fundamental para enriquecer a própria cultura
local, para abrir horizontes e compreender que cada povo oferece contribuições valiosas à humanidade. Quanto mais valor se
dá à cultura de cada região, mais se aprende sobre a riqueza da humanidade que naturalmente se encontra em cada estudante,
professor, escola, comunidade, país ou continente, em qualquer período da história.
Capucho (2007: 314-318) distingue culturas verticais (nacionais, regionais, locais, geofísicas, geodemográficas,
organizacionais, profissionais, geracionais, de género, étnicos e ideológicas) que influenciam, desde o início da vida em
sociedade, a identidade cultural de cada indivíduo e as culturas horizontais tranversais que são compostas de práticas
culturais e discursivas diversas.
As rápidas modificações que presentemente ocorrem nos processos produtivos da actualidade, a impressionante
revolução tecnológica que continuadamente se verifica, a necessidade de revalorizar a diversidade das formas de
relacionamento social que vem surgindo, o novo conceito de cidadania democrática, enfim, tanto o conjunto de vias que se
abrem para o progresso, como os vários impasses que o dificultam ou o bloqueiam, caracterizam a situação deste início do

363
século XXI que posiciona a educação num lugar muito especial, confrontando-a com um significativo conjunto de novas
exigências e de motivantes desafios.

DIVERSIDADE CULTURAL - EDUCAÇÃO INTERCULTURAL


A problemática da diversidade cultural e da construção das diferenças tem sido trazida em uma visão de cidadania
multicultural, legal, concreta, negociada em discursos e espaços dentre os quais a educação e a formação docente emergem,
com força. Conforme Lopes (1999), Moreira (1999) e Silva (1999), estes estudos têm tencionado o campo do currículo,
trazendo novas configurações e propondo novos olhares, voltados ao reconhecimento e à valorização de identidades culturais
apagadas ou negadas em estruturas curriculares monoculturais.
O reconhecimento da diversidade cultural admite diferentes perspectivas.
Assim, os termos multi ou pluricultural indicam uma situação em que grupos culturais diferentes coexistem, um ao
lado do outro, sem necessariamente interagir entre si.
O termo transcultural faz referência a elementos culturais comuns, aos chamados traços universais, aos valores
permanentes nas diferentes culturas. Ou seja, a perspectiva transcultural identifica estruturas semelhantes de relação social ou
de interpretação em culturas diferentes, sem que estas culturas interajam entre si.
Já a relação intercultural indica uma situação em que pessoas de culturas diferentes interagem, ou uma actividade
que requer tal interação. A ênfase na relação intencional entre sujeitos de diferentes culturas constitui o traço característico da
relação intercultural. O que pressupõe opções e acções deliberadas, particularmente no campo da educação.
Alguns autores, por exemplo Miranda (2004), distinguem, de modo particular, a perspectiva multicultural da
perspectiva intercultural de educação. Tanto o multiculturalismo como o interculturalismo referem-se, ambos, aos processos
históricos em que várias culturas entram em contacto entre si e interagem. Mas a diferença entre o multiculturalismo e o
interculturalismo encontra-se no modo de se conceber a relação entre estas diferentes culturas, particularmente na prática
educativa.
A educação intercultural apresenta-se, para Nanni (1998), como um processo, ou seja, um caminho aberto,
complexo e multidimensional, pois envolve uma multiplicidade de factores e de dimensões: a pessoa e o grupo social, a
cultura e a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as expectativas. A educação intercultural não se reduz a uma
simples relação de conhecimento: trata-se da interacção entre sujeitos. Isto significa uma relação de troca e de reciprocidade
entre pessoas vivas, com rostos e nomes próprios, reconhecendo reciprocamente os seus direitos e a sua dignidade. Uma
relação que vai além da dimensão individual dos sujeitos e envolve as suas respectivas identidades culturais diferentes.
A educação intercultural configura-se como uma pedagogia do encontro até às últimas consequências, em que o
encontro/confronto de narrações diferentes configura uma oportuidade de crescimento para o sujeito. No processo
ambivalente da relação intercultural, é totalmente imprevisível o seu desdobramento ou o seu resultado final. Trata-se de
verificar se ocorre, ou não, a transitividade cognitiva, ou seja, a interacção cultural que produz efeitos na própria matriz
cognitiva do sujeito; o que constitui uma particular oportunidade de crescimento da cultura pessoal de cada um, assim como
de mudança das relações sociais, na perspectiva de mudar tudo aquilo que impede a construção de uma sociedade mais livre,
mais justa e mais solidária.
Ainda conforme Nanni (1988), a realização destes objetivos exige, pelo menos, três mudanças no sistema escolar:
1. A realização do princípio da igualdade de oportunidades: A educação intercultural requer que se trate nas
instituições educativas os grupos populares não como cidadãos de segunda categoria, mas que se reconheça o seu papel
activo na elaboração, na escolha e na actuação das estratégias educativas. Além disso, é preciso repensar as funções, os
conteúdos e o métodos da escola, de modo a se superar o seu carácter monocultural.
2. A reelaboração dos manuais didácticos, a adopção de técnicas e de instrumentos multimédia. A educação
intercultural requer grandes transformações no modo de educar. A prática educativa é estimulada a tornar-se sempre mais
interdisciplinar e multimédia. De modo particular, dever-se-á utilizar as técnicas e as metodologias activas, do jogo à
dramatização. Mas principalmente os manuais didácticos deverão sofrer grandes mudanças. Estes são escritos geralmente na
perspectiva da cultura oficial e não para alunos pertencentes a muitas culturas, diferentes entre si, justamente no modo de
interpretar factos, eventos, modelos de comportamento, idéias e valores.
3. A formação e a requalificação dos professores são, talvez, o problema decisivo, do qual depende o sucesso ou o
fracasso da proposta intercultural. O que está em jogo na formação dos professores é a superação da perspectiva
monocultural e etnocêntrica que configura os modos tradicionais e consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os modos
de se relacionar com os outros e de actuar em situações concretas.
Em suma, a educação intercultural pode ser definida operacionalmente, como
um processo multidimensional, de interacção entre sujeitos de identidades culturais diferentes. Estes, através do
encontro intercultural, vivem uma experiência profunda e complexa de conflito/acolhimento. É uma oportunidade de
crescimento da cultura pessoal de cada um, na perspectiva de mudar estruturas e relações que impedem a construção de
uma nova convivência civil. A educação intercultural promove, inclusive, a mudança do sistema escolar: defende a
igualdade de oportunidades educacionais para todos, requer a formação dos educadores, estimula a reelaboração dos
manuais didáticos, assim como a adpoção de técnicas e de instrumentos multimedia (Nanni, 1998: 50).

364
Esta concepção indica que a educação intercultural ultrapassa a perspectiva multicultural. Esta reconhece o valor
intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre diferentes grupos identitários. Além disso, a educação
intercultural propõe construir a relação recíproca entre eles. Uma relação que se dá, não abstractamente, mas entre pessoas
concretas. Entre sujeitos que decidem construir contextos e processos de aproximação, de conhecimento recíproco e de
interacção. Relações estas que produzem mudanças em cada indivíduo, favorecendo a consciência de si e reforçando a
própria identidade. Sobretudo, promovem mudanças estruturais nas relações entre grupos. Estereótipos e preconceitos -
legitimadores de relações de sujeição ou de exclusão - são questionados, e até mesmo superados, na medida em que sujeitos
diferentes se reconhecem a partir dos seus contextos, das suas histórias e das suas opções. A perspectiva intercultural de
educação, enfim, implica mudanças profundas na prática educativa, de modo particular na escola. Pela necessidade de
oferecer oportunidades educativas a todos, respeitando e integrando a diversidade de sujeitos e dos seus ponto-de-vista. Pela
necessidade de desenvolver processos educativos, metodologias e instrumentos pedagógicos que dêem conta da
complexidade das relações humanas entre indivíduos e culturas diferentes. E ainda pela necessidade de reinventar o papel e o
processo de formação dos professores.

EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS


A Educação de Adultos é necessária para colmatar um déficit de cidadania: falta a muitos portugueses e a muitos
estrangeiros residentes, o domínio dos instrumentos de aquisição da informação escrita (quando não mesmo, no caso dos
estrangeiros, da comunicação oral); é insuficiente o conhecimento dos direitos individuais e colectivos, bem como das
obrigações deles decorrentes; existem barreiras culturais ao exercício pleno da participação activa e esclarecida dos cidadãos
no traçado dos destinos da sociedade onde se inserem.
Com os desafios do novo século e do novo milénio, decorrentes quer das novas tecnologias que penetram na vida
quotidiana quer do aumento da competitividade proveniente da globalização económica, torna-se indispensável um
empenhamento coeso na sociedade para não deixar aumentar a injustiça social, por via dos desfasamentos de
desenvolvimento e de qualidade de vida no interior da sociedade portuguesa.
Em situações concretas com seres humanos possuidores de personalidade e de individualidade únicas, não é
suficiente a enunciação de princípios ou a teorização das soluções. A passagem para o terreno, para o contexto escolar ou
extra-escolar é indispensável para que a prática tempere, com o sal do seu esforço, a idealização teórica e institucional.
A V CONFITEA (5ª Conferência Internacional de Educação de Adultos) que, considerando os resultados das
quatro Conferências anteriores sobre o tema1 , encerra, ao mesmo tempo, um ciclo de grandes Conferências da ONU
(Organização das Nações Unidas), sobre os mais variados temas, realizadas na década de 1990. Aliás, aquela década tem
início com o Ano Internacional da Alfabetização cujos eventos marcantes foram a IV Conferência Internacional de Educação
de Adultos promovida pelo Conselho Internacional de Educação de Adultos, organismo da sociedade civil mundial, sob o
lema Educação Popular, Democracia e Desenvolvimento, em Bankok (Tailândia), de 1 a 20 de Janeiro de 1990; e a
Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada, também, na Tailândia, na cidade de Jomtien, de 5 a 9 de Março de
1990, sob o tema da satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, promovida pelo Banco Mundial, UNESCO e
UNICEF.
A abertura da década de 1990 está, pois, marcada pela Educação, cujas exigências são retomadas em outras
Conferências mundiais, realizadas nesta mesma década. Estas foram a Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente (1992),
no Rio de Janeiro; a Conferência Internacional sobre População (1994), no Cairo; a Cúpula do Desenvolvimento Social
(1995), em Copenhaga; a Conferência Internacional sobre a Mulher (1995), em Pequim.
Todas estas Conferências, nos seus documentos finais, contemplam a problemática da educação e referem-se
especificamente à educação escolar de pessoas jovens e adultas.
A V CONFITEA, realizada de 5 a 9 de Julho de 1997, para o campo da educação de adultos, coroa todo esse
movimento, além das conferências regionais preparatórias.
Após a realização da V CONFINTEA2, a educação de adultos adquiriu, em escala mundial, um novo `visual` e
uma maior visibilidade (Melo et al, 2002: 12). O pressuposto desta afirmação é um alargamento da concepção da educação
de adultos e os impactos que veio a desencadear nas políticas educacionais em diversos países. A Agenda para o Futuro da
Educação de Adultos da V Conferência refere-se, no item 50, à necessidade de, através da cooperação e das solidariedades
internacionais, consolidar uma nova concepção de educação de adultos, a qual é, a um tempo, holística, para cobrir todos os
aspectos da vida, e multissectorial, para englobar todos os domínios da actividade cultural, social e económica (ApF, 2000:
198).
Esta nova concepção da educação de adultos deve-se, segundo a Declaração de Hamburgo, no item 8, às profundas
transformações que sofreu essa modalidade educativa na década de 1990,
experimentando um forte crescimento na sua abrangência e na sua escala.
Em sociedades baseadas no conhecimento, que estão surgindo em todo o mundo, a educação de adultos e a
educação continuada têm-se tornado uma necessidade, tanto nas comunidades como nos locais de trabalho. As novas

1
A 1ª em Elsinor (Dinamarca, 1949); a 2ª em Montreal (Canadá, 1960); a 3ª em Tóquio (japão, 1972) e a 4ª em Paris (França, 1985).
2
A VI CONFITEA acontecerá em 2009, no Brasil.

365
demandas da sociedade e as expectativas de crescimento profissional requerem, durante toda a vida do indivíduo, uma
constante actualização dos seus conhecimentos e de suas habilidades (DH, 2000: 165).

Essa mesma Declaração, no item 9, é enfática a esse respeito:


Educação básica para todos significa dar às pessoas, independentemente da idade, a oportunidade de desenvolver o
seu potencial, colectiva ou individualmente. Não é apenas um direito, mas também um dever e uma responsabilidade para
com os outros e com toda a sociedade. É fundamental que o reconhecimento do direito à educação continuada durante a vida
seja acompanhado de medidas que garantam as condições necessárias para o exercício desse direito (DH, 2000: 165-166).

Mas, como reconhece ainda a DH (2000:166),


os desafios do século XX não podem ser enfrentados pelos governos, organizações ou instituições isoladamente; a
energia, a imaginação e a criatividade das pessoas, bem como a vigorosa participação em todos os aspectos da vida são
igualmente necessárias.

Por outro lado,


a educação de adultos é um dos principais meios para se aumentar significativamente a criatividade e a
produtividade, transformando-as numa condição indispensável para se enfrentar os complexos problemas de um mundo
caracterizado por rápidas transformações e crescente complexidade e riscos (ibidem: 166).

E ainda, na Declaração de Hamburgo, no item 3, faz-se uma aclaração importante a ser explorada em relação às
anteriores declarações ao propor uma nova configuração da educação de adultos.
A educação de adultos engloba todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas
‘adultas’ pela sociedade desenvolvem suas habilidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações
técnicas e profissionais, direccionando-as para a satisfação de suas necessidades e da sociedade. A educação de adultos inclui
a educação formal, a educação não-formal e o espectro da aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade
multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática, devem ser reconhecidos (DH, 2000: 163).

Parece, pois, necessário manter uma distinção entre Educação de Adultos e Educação de Jovens e Adultos. A
Educação de Adultos, enquanto um conceito mais amplo, contem a Educação de Jovens e Adultos, mas não se reduz a ela.
Neste sentido, tanto a Educação de Adultos como a Educação de Jovens e Adultos encontram-se desafiadas por
duas afirmações recorrentes tanto nos documentos nacionais e estrangeiros, como em declarações multilaterais. Uma
primeira: entramos na sociedade do conhecimento e, portanto, a riqueza das nações e das pessoas será o seu nível de
escolaridade. Quanto mais um país escolarizar, por maior tempo, a sua população e quanto mais anos de escolaridade possuir
um indivíduo, tanto mais poderão ampliar a sua riqueza e o seu poder. Será verdade?
Afirma-se até que os níveis de escolaridade colectivos e individuais serão o equivalente geral, ou seja, o valor de
troca entre os países e os indivíduos.
Por outro lado, ouvimos diariamente em todos os lugares e lemos em numerosos documentos (a segunda afirmação)
sobre o potencial educativo de todas e quaisquer actividades e situações. Aposta-se no potencial educativo da tecnologia
(educação tecnológica), da sexualidade (educação sexual), da família (educação doméstica), da religião (educação religiosa),
da saúde (educação para a saúde), do ambiente (educação ambiental), do civismo (educação cívica), do desenvolvimento
(educação para a sustentabilidade), da cidadania (educação para a cidadania), da escola (educação escolar), entre tantas outras
adjectivações. Mas que tão educativas podem ser essas realidades ou quão educáveis são essas actividades?
A educação escolar deve, cremos, contribuir para a construção da humanidade de todo o ser humano.
Para isso, terá de ser possível desenvolver uma atitude de diálogo de conhecimentos ou, melhor, de diálogo entre
culturas (interculturalidade) (Souza, 2002). Terá de se estabelecer uma negociação entre os saberes que as pessoas já
possuem e as informações que recebem.
Estes possíveis processos de interculturalidade são marcantes, como não poderiam deixar de sê-lo já que se trata de
diálogo entre culturas distintas ou traços culturais específicos dentro de uma mesma cultura, influenciados pelos costumes de
cada um, pela religião que professa, pelos papéis sociais que desempenha, pelas condições materiais, pela situação de classe,
de género ou de etnia de cada um.
Mas influenciam, também, para a ocorrência dessas atitudes, as relações pedagógicas estabelecidas entre o
professor e o educando, o professor e o grupo de alunos; o estilo de ensinar de cada professor. Por todas essas razões, cada
um recebe a informação e reage de um jeito peculiar. Aprende de uma forma particular.
Por outro lado, a aprendizagem só pode acontecer efectivamente se se estabelecer esse diálogo. É a atitude de ouvir,
de reflectir, de comparar com aquilo que alguém já sabe, que se torna possível uma nova aprendizagem, a aquisição de um
novo conhecimento. Só pela reelaboração do já sabido é que se aprende (maturação), se chega a um novo saber. E está a
apostar que esse novo saber venha ao encontro das possibilidades do nosso crescimento humano, da construção da
humanidade do ser humano, da nossa humanização.
As possibilidades de humanização e desumanização encontram, como nos recorda Paulo Freire (1987), a sua raiz na
inconclusão dos seres humanos, inscrevendo-os

366
num permanente movimento de busca. Humanização e desumanização, dentro da história, são possibilidades dos
homens como seres inconclusivos e conscientes de sua inconclusão. Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos
parece ser o que chamamos vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação
negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça,
de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada. A desumanização, que não se verifica somente apenas
nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação
do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica (Freire, 1987: 30).

Em Portugal, o período pós 25 de Abril foi um momento por excelência onde a educação de adultos esteve na
ordem do dia. Entre 1974-1976 foram desenvolvidas inúmeras iniciativas com vista a promover e a valorizar as
manifestações de cultura popular (Melo e Benavente, 1978). Estas actividades baseavam-se nas ideias de educação popular
de Paulo Freire (1997), procurando criar uma política de articulação entre educação, a construção de uma consciência cívica e
os processos de desenvolvimento local (Canário, 1999: 59). Foi o florescer da ligação entre a educação e a participação
democrática através de associações populares, sindicatos, comissões de moradores, etc. Este facto contribuiu para que, em
iniciativas posteriores, se procurasse interligar a educação de adultos com o desenvolvimento local.
Contudo, hoje a educação de adultos continua a ser uma realidade marginal, sendo-lhe atribuída muito pouca
importância nas políticas educativas que têm sido implementadas ao longo dos anos. Alberto Melo, em entrevista, considera
que
a situação portuguesa caracteriza-se, a meu ver, pela falta de uma política coerente, consequentemente, pela
ausência de estruturas e processos específicos para a Educação de Adultos (Abrantes et al., 1997: 50).

Para este facto tem contribuído, segundo Lima (1996), uma visão neoliberal da educação,
transformando-a numa agência gerencialista racionalmente orientada para o mercado de trabalho, para a criação de
‘vantagens competitivas das nações’, para a ‘competitividade económica’ e a ‘aprendizagem individual’, não para o
aperfeiçoamento social (ibidem: 285).

Nesta linha orientativa, a educação de adultos, como espaço de promoção da cidadania, da participação democrática
e do desenvolvimento local, é completamente desvalorizada.
Apesar da situação marginal para que a educação de adultos foi relegada nas diversas políticas educativas, assiste-
se hoje, em Portugal, a um reflorescimento da investigação neste campo (Canário, 1999).
Lima (2006), partindo de um dos pressupostos da Educação e Formação de Adultos, diz-nos que
a educação de adultos é actualmente o sector mais crítico de um sistema de educação ao longo da vida de Portugal.
Apesar de reconhecer que há problemas noutros níveis, a educação de adultos é o sector mais problemático, mais crítico, um
sector que tem sido objecto de orientações políticas intermitentes, que tem sido marcado por alguns avanços e por fortes
recuos.
Canário (2006:30), por sua vez, diz-nos que
a formação de adultos acompanha as transformações económicas, sociais e políticas, que marcam a transição dos
“trinta anos gloriosos” e do fordismo para as políticas ditas neoliberais, que se afirmam depois dos anos 80. Transitou-se de
uma perspectiva de “humanização” do desenvolvimento e de promoção social, imagem de marca do movimento de educação
permanente pela UNESCO, para uma clara subordinação funcional da formação de adultos a uma racionalidade económica,
em que impera a lógica e o poder das empresas multinacionais.

O PROFESSOR DE ADULTOS
A primeira e a mais importante característica é que o professor é um adulto, igual aos educandos com quem
trabalha.
Existem muitos aspectos da situação educativa que potencialmente podem produzir stress, aos quais se somam
factores laborais, pessoais e institucionais, que o educador leva consigo para a turma. A conjugação destes factores traduzir-
se-á de algum modo nas condutas da situação educativa e, portanto, repercurtir-se-á na aprendizagem dos alunos.
O autoconceito e a auto-estima do educador quando são frágeis ou estão temporariamente baixos, este tenderá a
tomar atitudes rígidas, inflexíveis, aumentando o stress dos educandos (Brundage & Mackeracher 1980: 70). Uma auto-
estima e um autoconceito adequados podem ter um aspecto positivo sobre as relações que o educador estabelece com os
educandos. Neste aspecto, o fundamental é uma atitude de respeito e valorização dos educandos por parte de quem ensina.
Pereira & Farias (1984), baseando-se em Rogers, estabelecem três características gerais que um educador necessita
para desenvolver eficazmente o seu trabalho: autenticidade (o educador necessita de se mostrar como uma pessoa, como um
adulto individual e não só como professor); aceitação incondicional (implica aceitar, assumir o educando como pessoa, sem
fragmentá-lo e respeitá-lo nessa integridade) e compreensão empática (refere-se à capacidade de preocupar-se por entender as
reacções do educando e entre na perspectiva deste).

367
Knowles et al. (2001: 167) resume as características do professor andragógico: habilidades (no poder do
conhecimento e da sua preparação); empatia (faculdade de compreensão e de consideração); entusiasmo (faculdade de
compromisso e de animação); clareza (faculdade de linguagem e de organização).
Estas características só resultam dentro de um contexto favorável (Infante, 2004: 159). Um professor dificilmente
pode ser motivador, apesar das suas características específicas, se está num clima institucional tóxico, se o seu papel social
não está valorizado, se não está bem remunerado ou se não está bem de saúde e / ou stressado.
É necessário, portanto, que o educador se considere como um adulto que também é influenciado pelas
características fisiológicas da sua etapa vital, assim como pelos factores de stress da situação de ensino-aprendizagem.
Facilita o processo educativo que o educador conte com um autoconceito e auto-estima positivos. O professor deve
então relacionar-se com autenticidade com os seus alunos, reconhecendo e compartilhando com eles os seus valores,
objectivos, necessidades e atitudes pessoais. Terá de ser capaz de enfrentar situações conturbadas, de crítica ou de erro, sem
recorrer a condutas de muita ansiedade, de autodefesa ou rigidez, o que aumentaria o stress dos educandos. O respeitar e
aceitar incondicionalmente os seus educandos, valorizando as suas aprendizagens e reconhecendo-se e valorizando-se
também a si próprio, como uma pessoa em processo de aprendizagem. E ainda, o compreender, empaticamente, os seus
alunos.
Também é importante que seja flexível cognitivamente para se adequar às críticas, sugestões e perguntas dos
educandos, assim como ter um autoconhecimento dos seus próprios estilos cognitivos, de aprendizagem e de ensino.
Se bem que estas sejam as condições que favorecem a aprendizagem, muitas vezes a realidade pessoal de quem
ensina é muito diferente: dificuldades pessoais, dificuldades familiares, más condições de trabalho, baixa valorização social
da profissão, etc.
Perante esta situação, surge a ameaça do burnout (Infante, 2004: 160). É definido como um síndroma relacionado
com o trabalho que surge da percepção de uma discrepância significativa entre a inversão do esforço que uma pessoa faz no
trabalho e a recompensa que se obtém. Caracteriza-se por uma progressiva perda de idealismo, energia e objectivos
profissionais, assim como irritabilidade, ansiedade, tristeza e baixa auto-estima. Estas características actuam ainda como
obstáculos aos processos de aprendizagem.

CONCLUSÃO
A escola tende a reflectir as mudanças que surgem na sociedade: nos meios urbanos, particularmente na Zona da
Grande Lisboa, os cursos de adultos tornam-se crescentemente diversificados, acolhendo a população de nacionalidade e de
cultura portuguesa que tradicionalmente necessita desta modalidade de ensino e, nos últimos anos, cada vez mais, um público
muito heterogéneo constituído por trabalhadores migrantes, em idade activa, que necessitam da escolaridade para trabalhar e
de se inserir com sucesso na sociedade em que se estabeleceu.
Assim,
- o aluno adulto é portador de conhecimentos e de saberes muito ricos que devem ser valorizados no processo de
aprendizagem;
- para além de cursos de ensino recorrente e de prever que um número crescente de cidadãos estrangeiros que
necessitam de aprender Português de tal modo que lhes seja permitida a inserção na sociedade portuguesa; há que criar mais
cursos de Português como Língua 2ª para públicos adultos.
Concordamos com Paulo Freire (1997) quando ele relata que é um desafio lidar com os alunos adultos com
experiência de vida, um vasto conhecimento do mundo, mas não encontram trabalho numa sociedade escolarizada. Como
desenvolver um trabalho educacional inteligente e eficaz com um aluno tão heterogéneo, sofrido e, às vezes, desconfiado e
desencantado?
Nós, educadores, não podemos desconsiderar o saber de experiência feito dos nossos alunos. A sua explicação do
mundo de que faz parte para a compreensão da sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou
escondido no que se chama leitura do mundo que precede sempre a leitura da palavra (Paulo Freire, 1996).
Confiança é uma das palavras-chave: conquistar a confiança desses alunos e alunas que não acreditam na escola,
leva algum tempo. Restaurar a confiança, de quem se sente “menos capacitado” ou incapaz, é demorado. Despertar a vontade
de aprender é o primeiro passo. Os alunos adultos, ao retornar à escola, vêm à procura de novas perspectivas e com intuito de
melhorar o seu nível de escolaridade, na expectativa de arranjar um emprego e melhorar de vida.
A educação deve, pois, procurar tornar o indivíduo mais consciente de suas raízes, a fim de dispor de referências
que lhe permitam situar-se no mundo, e deve ensinar-lhe o respeito pelas outras culturas.
A educação, permitindo o acesso de todos ao conhecimento, tem um papel bem concreto a desempenhar no
cumprimento desta tarefa universal: ajudar a compreender o mundo e o outro, a fim de que cada um se compreenda melhor a
si mesmo.
Concordamos com Jacques Delors (2004) quando cita que grandes são os desafios postos à educação num mundo
cada vez mais multicultural, onde se aprende a viver juntos e a viver com os outros.
A actuação do professor em sala de aula, por exemplo, deve ter em conta factores sociais, culturais e a história
educativa de cada aluno, como também características pessoais de deficit sensorial, motor, psíquico, ou de superdotação
intelectual.

368
A escola, ao considerar diversidades, tem como valor máximo o respeito às diferenças – não o elogio à
desigualdade. As diferenças não são obstáculos para o cumprimento da acção educativa: podem e devem, por tanto, ser factor
de enriquecimento pessoal e social.
A atenção à diversidade é um princípio comprometido com a equidade, ou seja, com direito de todos os alunos
realizarem as aprendizagens fundamentais para seu desenvolvimento e socialização.
A temática da interculturalidade, como elemento privilegiado para uma escola inclusiva, plural e efectivamente
dialógica, é muito importante. O tratamento dos conteúdos académicos deve ser encarado como meios para a compreensão
dos temas em estudo e não como fins em si mesmo.
A educação ao longo de toda vida é uma construção contínua da pessoa humana, do seu saber e das suas aptidões,
mas também da sua capacidade de discernir e agir. Enquanto professores, devemos procurar meios, informações e avaliar
todo este processo de escolarização, tendo em considerações todas as diversidades encontradas nos alunos.
A escola terá de rever todo o seu currículo de forma a encontrar eixos favoráveis e satisfatórios contribuindo assim
para uma sociedade com menos discriminação cultural e de etnias.
Em sociedades multiculturais marcadas por desigualdades, racismos e neonazismos que se manifestam, de forma
cada vez mais assustadora, em nosso mundo contemporâneo, a produção de pesquisas que questionem discursos
homogeneizadores e procurem formas alternativas de valorização da pluralidade cultural e desafio a construções discursivas
xenófobas e discriminadoras torna-se uma necessidade vital para a reflexão curricular e educacional, no início do novo
milénio e implementar uma pedagogia intercultural e uma educação para a cidadania, mesmo com alunos adultos, de modo a
tornarmo-nos a todos e a cada um de nós mais gente, como dizia Freire (1994).

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Educação: Uma Oportunidade para Todos - Da Educação Escolar à Educação Ao


Longo da Vida

Maria da Conceição Pinto Antunes


Universidade do Minho
mantunes@iep.uminho.pt

Resumo: Com este breve ensaio procuraremos evidenciar o facto de apesar dos marcos importantes que podiam ter impulsionado
importantes inovações educacionais, o modelo educativo escolar continuar a moldar e orientar grande parte das práticas educativas.
Procuraremos também salientar que só o exercício efectivo de uma concepção de educação ao longo da vida favorece a igualdade de
oportunidades a um processo de autocrescimento e auto-realização de todos os cidadãos, processo incontornável à possibilidade de se
esbaterem diferenças, desigualdades e assimetrias. Assim, num primeiro momento referiremos a Educação Nova e a Educação Permanente
como dois marcos que devem ser entendidos como dois fortes movimentos de contestação ao modelo escolar, não obstante o facto de não
terem conseguido impulsionar o processo de passagem de um modelo de educação escolar a uma concepção de educação ao longo da vida.
Num segundo momento temos a intenção de salientar o facto de o modelo escolar se originar e sustentar na tradição filosófica e cultural que
tendo o seu início longínquo em Platão, se desenvolveu na modernidade. Entendemos que o facto de, ainda hoje, a cultura ocidental
continuar muito marcada e influenciada pelas prioridades ditadas pelo projecto das luzes justifica e explica, em certa medida, a permanência
marcante do modelo escolar. Por último, tentaremos evidenciar o facto de as noções de “razão”, “cientificidade”, “método” “verdade como
correspondência”, etc. que sustentam o modelo escolar terem absolutamente esgotado as suas possibilidades, uma vez que hoje todos
concordamos que a “razão” é algo muito mais abrangente do que raciocínios e inferências lógicas, objectividade e comensurabilidade. Esta

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noção mais abrangente de racionalidade possibilita uma nova visão da cultura e uma nova concepção de educação entendida como um
processo permanente de desenvolvimento integral de todas as capacidades do ser humano. Entendemos, ainda, que só numa perspectiva de
educação ao longo da vida, a educação poderá ser entendida como uma efectiva oportunidade de emancipação e auto-realização para todos.

1. Introdução
Com este breve ensaio procuraremos evidenciar o facto de apesar dos marcos importantes que podiam ter
impulsionado importantes inovações educacionais, o modelo educativo escolar continuar a moldar e orientar grande parte das
práticas educativas.
Procuraremos também salientar que só o exercício efectivo de uma concepção de educação ao longo da vida
favorece a igualdade de oportunidades a um processo de autocrescimento e auto-realização de todos os cidadãos, processo
incontornável à possibilidade de se esbaterem diferenças, desigualdades e assimetrias.
Assim, num primeiro momento referiremos a Educação Nova e a Educação Permanente como dois marcos que
devem ser entendidos como dois fortes movimentos de contestação ao modelo escolar, não obstante o facto de não terem
conseguido impulsionar o processo de passagem de um modelo de educação escolar a uma concepção de educação ao longo
da vida.
Num segundo momento temos a intenção de salientar o facto de o modelo escolar se originar e sustentar na tradição
filosófica e cultural que tendo o seu início longínquo em Platão, se desenvolveu na modernidade. Entendemos que o facto de,
ainda hoje, a cultura ocidental continuar muito marcada e influenciada pelas prioridades ditadas pelo projecto das luzes
justifica e explica, em certa medida, a permanência marcante do modelo escolar.
Por último, tentaremos evidenciar o facto de as noções de “razão”, “cientificidade”, “método” “verdade como
correspondência”, etc. que sustentam o modelo escolar terem absolutamente esgotado as suas possibilidades, uma vez que
hoje todos concordamos que a “razão” é algo muito mais abrangente do que raciocínios e inferências lógicas, objectividade e
comensurabilidade.
Esta noção mais abrangente de racionalidade possibilita uma nova visão da cultura e uma nova concepção de
educação entendida como um processo permanente de desenvolvimento integral de todas as capacidades do ser humano.
Entendemos, ainda, que só numa perspectiva de educação ao longo da vida, a educação poderá ser entendida como
uma efectiva oportunidade de emancipação e auto-realização para todos.

1. Da dificuldade da passagem da educação escolar a uma concepção de educação ao longo da vida


Apesar das revolucionárias e inovadoras ideias pedagógicas ocorridas ao longo do século findo e das alterações a
que foi necessário recorrer para fazer face aos novos desafios das sociedades ocidentais do pós-guerra, pode dizer-se que o
modelo escolar continua a moldar e orientar as práticas educativas.
Como Nóvoa (1988, chama a atenção, estes dois acontecimentos devem ser claramente entendidos como dois fortes
movimentos de contestação ao modelo escolar: o primeiro que acabou por ficar conhecido como Educação Nova e o segundo
que refere o aparecimento da Educação Permanente como forma de fazer face aos desafios impostos por uma Europa do pós-
guerra, em reconstrução.
O Movimento da Educação Nova que marcou o quadro educativo do início do século findo, caracterizou-se por ser
um movimento de reacção ao modelo educativo escolar. Efectivamente, perante o horizonte de uma concepção de educação
marcadamente escolar e instrutiva, as ideias que defendiam uma educação centrada na liberdade; no interesse espontâneo e na
autonomia dos educandos; no apelo à criatividade e no incentivo à participação activa na construção do saber; no estímulo ao
“aprender fazendo” e ao “aprender a aprender”; assim como na procura de estabelecer uma ligação efectiva entre a escola e a
vida e o imperativo de prolongar a educação para além do espaço-tempo escolar, provocaram uma verdadeira revolução
pedagógica.
Não obstante o facto de, nos nossos dias, ninguém ousar questionar os princípios da Educação Nova, decorrido já
um século, a sua efectiva aplicação está, ainda hoje, muito longe de ser considerada satisfatória.
Por seu lado, a Educação Permanente surgiu da necessidade de responder aos desafios educativos exigidos por uma
Europa que vivia sob as condições económicas, sociais e laborais que caracterizaram a revolução tecnológica do pós-guerra,
exigindo novas práticas e novos sabres e num contexto de crítica e de ruptura com o modelo escolar que durante a década de
sessenta desembocou na crise mundial da educação. Estes dois acontecimentos impulsionaram o aparecimento de um novo
sector educativo que se projectasse para além do espaço-tempo escolar e preparasse a população adulta para fazer face às
necessidades que a reconstrução da Europa exigia. A partir desta altura a evolução sócio-económica e tecnológica passou a
exigir, cada vez mais, que os indivíduos fossem capazes de responder social e profissionalmente a mudanças constantes.
Neste sentido, a educação permanente, ou educação ao longo da vida foi-se impondo como uma exigência e uma realidade
inadiável. Assim, o relatório de Edgar Faure, considerado o manifesto da educação permanente concebe que a educação
tem por objectivo a expansão integral do homem em toda a sua riqueza e na complexidade das suas expressões e
compromissos: indivíduo, membro de uma família e duma colectividade, cidadão e produtor, inventor de técnicas e
criador de sonhos. […] a educação para formar este homem completo […] terá que ser global e permanente. Trata-se

371
de não mais adquirir, de maneira exacta, conhecimentos definitivos, mas de se preparar para elaborar, ao longo de toda
a vida, um saber em constante evolução e de ‘aprender a ser’ (Faure, 1981:10).

A educação ao longo da vida pressupõe, então, uma tarefa educativa que se realiza em diferenciados espaços
sociais, pondo em causa um modelo educativo que se confina aos limites da instituição escolar e, defendendo o homem como
um ser inacabado que necessita de uma educação/formação contínua para responder às exigências de um mundo em
constante transformação, rompe com a tradicional divisão entre o tempo de “formação” e o tempo da “acção”.
A nova concepção de educação passa, doravante, a ser entendida como a possibilidade que qualquer pessoa,
independentemente da sua idade, tem de aprender; não importa o quê, quando, onde e porquê. A educação passa a ser
entendida como um processo permanente e comunitário que se realiza ao longo da vida do homem e em todas as situações
vivenciais englobando,
a totalidade dos processos organizados de educação, seja qual seja o conteúdo, o nível ou o método, sejam formais ou
não formais, prolonguem ou substituam a educação inicial das escolas ou universidades e em forma de aprendizagem
profissional, pelas quais as pessoas desenvolvem as suas atitudes, enriquecem os seus conhecimentos, melhoram as
suas competências técnicas ou profissionais ou lhes dão uma nova orientação e fazem evoluir as suas atitudes ou o seu
comportamento na dupla perspectiva de um enriquecimento integral do homem e uma participação no
desenvolvimento socioeconómico e cultural equilibrado e independente. (UNESCO, 1976:16).

Apesar de muito já se ter feito neste sentido e termos muitos e bons exemplos de boas práticas temos de admitir
que a efectivação de uma concepção de educação permanente, ou seja, ao longo da vida, continua, contudo, ao nível das
práticas educativas muito limitada.
Constatamos facilmente que os ideais de uma educação ao longo da vida na prática se reduziram basicamente a
uma concepção de educação de adultos orientada, quase exclusivamente, para os adultos que não tiveram a possibilidade de
frequentar a escola e/ou necessitam de formação profissional.
Por outro lado, em vez da operacionalização dos princípios de uma educação permanente assistimos,
frequentemente, a uma escolarização da educação de adultos que, consequentemente, originou uma desvalorização dos
saberes adquiridos fora do sistema educativo formal.
Em última análise, poderemos dizer que na prática assistimos a “uma expansão quantitativa e ao alargamento a
todas as esferas da vida social das actividades de educação deliberada, com base na continuidade e reforço de uma lógica
escolarizada” (Canário, 2000:89).
É um facto que a educação permanente e comunitária entendida no sentido da “cidade educativa” sonhada por
Faure ou de um processo de autoconstrução participada ao longo da vida, tal como é apresentada nos documentos resultantes
das Conferências Internacionais da UNESCO, onde todos os espaços e todas as experiências são pensadas como “locais” e
“tempos” de aprendizagem/educação/formação, produziu um confronto e uma clivagem com o modelo educativo escolar na
medida em que enfatiza os saberes e as práticas de todos – crianças, jovens, adultos e idosos – e das comunidades de que
fazem parte em detrimento da supremacia de um processo educativo de carácter normativo e instrutivo dirigido apenas aos
mais jovens.
É, também, um facto incontornável que, fundamentalmente, nestas últimas décadas, assistimos a uma explosão de
locais, centros, instituições e acções de educação/formação que têm vindo a permitir avanços importantes no domínio da
educação ao longo da vida e, muito particularmente, no que à educação dos adultos se refere contribuindo, assim, para a sua
autonomização e participação efectiva e activa na vida socioeconómica e cultural.
Deveremos, no entanto, acrescentar que muitos destes processos de educação/formação de adultos se têm vindo a
desenvolver veiculando, frequentemente, uma lógica de educação tipicamente escolarizante. Em grande parte dos casos, a
finalidade destes projectos focaliza-se muito mais no aumento de rendimento e produção que a pessoa possa vir a
desenvolver do que no seu autocrescimento integral, autonomização e bem-estar.
Em síntese, um olhar atento às práticas educativas vigentes leva-nos a constatar, que apesar das concepções
teóricas consagrarem a educação como um processo ao longo da vida que visa potenciar o desenvolvimento integral de todas
as capacidades do homem e de todo o homem, passar da esteira destes ideais para o plano da sua efectiva operacionalização
tem vindo a revelar-se um passo moroso e significativamente difícil.
A prática educativa formal vigente, não obstante o facto de ter vindo a experimentar muitas reformas e algumas
inovações concretiza-se, maioritariamente, nos moldes do modelo educativo escolar instrutivo.
No que concerne às práticas de educação de adultos estas têm vindo a assumir, genericamente, a estrutura, a
metodologia e a lógica de funcionamento do processo de assimilação/repetição característico do modelo escolar

2. A modernidade e o projecto das luzes: génese e sustentabilidade do modelo escolar


Como é do conhecimento de todos, na generalidade dos países da Europa, nos princípios do século dezoito a escola
elementar pública era praticamente inexistente e destinava-se apenas a uma elite de privilegiados.
O modelo escolar edificou-se, efectivamente, durante a Época Moderna consolidando-se a partir da revolução
burguesa dos finais do século dezoito. Doravante, assistimos a uma progressiva intervenção do estado e a função educativa
converte-se numa das suas funções essenciais. Verifica-se, assim, durante este século e ao longo do século dezanove o

372
desenvolvimento de uma forma progressiva da educação pública que, supostamente, seria obrigatória e gratuita para a
totalidade das crianças, assumindo-se como um instrumento de promoção de igualdade (Rodrigues, 2006).
Revestindo-se e incorporando os princípios e os fundamentos epistemológicos da época, que se caracteriza como
um período em que se verificam grandes progressos científicos, o modelo educativo considera a autoridade da ciência a
autoridade epistémica por excelência e, consequentemente, centra-se num processo de educação/formação que tem como
finalidade a transmissão por parte dos educadores e a assimilação por parte dos educandos deste saber científico verdadeiro.
Impregnado do novo movimento cultural (Iluminismo) que se edifica numa crença absoluta nas capacidades do
homem, iluminado pela razão e pelo saber, a educação escolar libertaria o homem do obscurantismo e possibilitaria o
conhecimento absoluto da realidade.
Apesar de científica e epistemologicamente estarmos, hoje, muito longe deste paradigma epistemológico que
entende o conhecimento científico como o conhecimento verdadeiro, objectivo e absoluto, capaz de traduzir com exactidão a
realidade e, por este motivo, ser o conhecimento que devamos passivamente assimilar e transmitir, nada mais havendo a
fazer, já que se trata do “conhecimento verdadeiro”, o facto é que em termos operativos este modelo impõe-se, ainda com
muita força, na nossa cultura ocidental e, de um modo muito particular, continua a ser a base sobre a qual parece organizar-se
e estruturar-se o sistema educativo.
Aqui reside, pensamos, uma das razões mais fortes que tem tornado significativamente difícil e morosa a passagem
da educação escolar a uma concepção de educação ao longo da vida. Compreender a sustentabilidade do modelo escolar
pressupõe pensamos, alargar o nosso horizonte de visibilidade para além do âmbito estritamente educacional e colocarmo-nos
no contexto mais vasto de toda uma tradição filosófica e cultural do mundo ocidental.
A história da filosofia e da cultura ocidental que teve o seu início longínquo em Platão e se desenvolveu com os
filósofos do iluminismo, concretamente Descartes, Locke e Kant, situou as questões da investigação e do conhecimento ao
nível do universal e imutável. Durante os três séculos que se seguiram a “razão” e a “racionalidade”, o “conhecimento” e o
“método” foram entendidos segundo este padrão de investigação que se caracteriza pela busca da certeza. (Rorty, 1979).
Nesta tradição, as noções de racionalidade, objectividade e verdade como correspondência com a realidade têm
andado juntas e as noções de método, racionalidade, objectividade e cientificidade têm sido usadas como sinónimas. Faz-se
equivaler o conhecimento aos saberes científicos, racionais e objectivos privilegiando estes saberes sobre todos os outros,
promovendo uma nítida demarcação entre o racional e não racional; entre o que se pode explicar e o que se pode apenas
compreender.
A ciência entendida como um sistema de conhecimentos certos, universais e objectivos passou a ser considerada
como o conhecimento racional por excelência e, neste sentido, a linguagem científica passou a ser considerada aquela que
melhor se adequa ou representa a realidade (Antunes, 2001: 177).
Esta tradição filosófica e cultural que se construiu na base do pressuposto de que a mente, a razão tem um acesso
privilegiado à realidade e, por esta razão, a representa com exactidão, dita como prioridades centrais a objectividade, a
universalidade e a cientificidade. Pressupõe que o conhecimento científico (traduzido em linguagem matemática) é uma
representação exacta do mundo empírico e que compreendendo o processo de construção do conhecimento, isto é, o modo
como a mente executa o processo de construção das representações, teremos acesso à natureza do conhecimento válido.
Convocando Rorty (1979:3),
conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente, portanto, compreender a possibilidade da natureza do
conhecimento é compreender o modo como a mente se torna apta a construir tais representações.

Esta tradição, pressupõe, em última análise, que a explicação de como a mente constrói as representações da
realidade nos permite justificar o grau de certeza com que o faz, ou seja, que a explicação do funcionamento dos processos
mentais nos permite justificar a natureza e validade do conhecimento (Antunes, 2001).
As prioridades ditadas pelo projecto das luzes que têm vindo a servir de ideário ou princípio norteador das práticas
educativas escolarizadas, ao considerar um tipo particular de racionalidade como método fundamental de investigação da
verdade, baseado na dedução lógica e nas regras da evidência, tem privilegiado os conhecimentos e as experiências
educativas do âmbito da Ciência. Simultaneamente têm oferecido uma certa resistência às experiências de educação-
aprendizagem que não se circunscrevem aos processos estritamente racionais, formais e cognitivos encarando-as como
marginais e/ou subvertendo-as à lógica de funcionamento do modelo escolar.
Apesar de os documentos teóricos referirem uma concepção de educação ao longo da vida que promova um
desenvolvimento integral de todas as capacidades do homem no sentido do seu autocrescimento e auto-realização pessoal,
profissional, social, cultural e cívica, continuamos, precisamente devido à influência deste paradigma epistemológico que
privilegia o objectivo e comensurável, a assistir a uma prática educativa centrada num modelo educativo de intenção
cognitivista que pressupõe que educar é, essencialmente, transmitir, assimilar e memorizar conhecimentos científicos.
Esta noção de racionalidade entendida nos parâmetros das prioridades ditadas pelo projecto das luzes esgotou as
suas possibilidades face a um projecto educativo de desenvolvimento integral de todas as potencialidades do ser humano.
O processo de desenvolvimento e auto-formação participada do indivíduo não se realiza pela simples assimilação
de conhecimentos mas sim pela capacidade poiética de a partir das experiências factuais e culturais com que se confronta,
criar novas redescrições de si mesmo e do mundo.

373
Entendido desta forma o processo educativo pressupõe, certamente, uma noção de racionalidade mais abrangente
que privilegie da mesma forma todas as dimensões humanas e, deste modo, promova o contacto com todo o tipo de discursos,
sejam eles científicos, literários, artísticos, estéticos, éticos, religiosos, etc. (Antunes, 2001).

3. A pós-modernidade e a fundamentação de uma concepção de educação ao longo da vida


Não obstante, a sua presença ainda muito forte na nossa cultura ocidental, nos nossos dias a concepção de
racionalidade, enquanto simplesmente racionalidade formal (episteme), é entendida como insatisfatória dando lugar a uma
concepção de racionalidade mais abrangente, mais complexa e mais integradora (phronesis).
Os filósofos, cientistas e investigadores da pós modernidade têm preferido falar em termos de diferentes espécies
de razão; entendendo que a racionalidade pode ser concebida em termos mais abrangentes e integradores do que
simplesmente em termos de racionalidade formal.
Richard Rorty (1979;1991), desenvolve uma crítica séria e fundamentada a esta concepção de racionalidade,
evidenciando o facto de que a tradição cultural ao privilegiar as funções epistémicas da razão ter deixado na sombra o
domínio das decisões sociais, estéticas, culturais e éticas que são fundamentais relativamente àquilo em que acreditar e de
como agir.
A recontextualização do conceito de racionalidade levada a cabo por Richard Rorty não deve, contudo, ser
entendida como uma rejeição anti-moderna ao projecto humano da busca do conhecimento objectivo. Devemos antes
entendê-la como uma revisão das concepções e pressupostos modernos, uma vez que o inquérito objectivo continua a ser
valorizado mas entendido como sendo um projecto de investigação entre outros e não o único (Antunes, 2001).
Sem pressupor a existência de padrões intemporais e a-históricos, esta nova concepção de racionalidade assegura a
estrutura necessária para o pensamento coerente, quer em assuntos epistemológicos, quer em assuntos práticos. Neste novo
sentido, racionalidade refere virtudes e capacidades e não simplesmente seguir regras e procedimentos formais do
pensamento.
Nas palavras de Rorty “neste sentido, a palavra significa algo como ‘são’ ou ‘razoável’. Nomeia um conjunto de
virtudes morais: tolerância, respeito pela opinião dos outros, vontade de ouvir, mais confiança na persuasão do que na força”
(1991:37).
Assim, ser racional significa ser receptivo a diferentes pontos de vista, ser prudente nas decisões e acções,
reconhecer os próprios erros, ter vontade de ouvir os outros e aprender com eles, etc.
Ora, estas qualidades não se desenvolvem seguindo simplesmente certas regras formais. Elas são aspectos flexíveis
do nosso carácter, fazem parte daquilo que somos, da nossa teia de crenças, desejos, aspirações manifestando-se nas decisões
que tomamos e nas acções que empreendemos e, desde logo, pressupondo a globalidade de cada um de nós e não apenas a
dimensão intelectual e formal dos raciocínios e inferências lógicas. Sem dúvida, a análise, a síntese, a indução e a dedução
são pertinentes operações de racionalidade, no entanto devem ser considerados num contexto mais vasto onde são possíveis
muitas outras fontes de informação e onde apreciando os méritos de outras perspectivas, se torna mais fácil avaliar os
potenciais limites de cada uma delas.
No contexto das prioridades do projecto das luzes, a racionalidade entendida como sinónimo de objectividade e
cientificidade tomou a ciência natural como o paradigma da racionalidade e, consequentemente, esboçou uma fronteira nítida
entre ciência e o resto da cultura, ou seja, entre a dimensão comensurável, objectiva e explicativa e a dimensão
incomensurável, subjectiva e compreensiva. A busca do “claro” e “distinto” levou a separar o racional do emocional e
estabeleceu os bem conhecidos dualismos entre razão e emoção; corpo e alma; conhecimento e experiência; teoria e prática,
etc. (Antunes, 2001).
Entendemos, agora, a razão pela qual o sistema educativo escolar tem optado frequentemente pela razão, pelo
conhecimento e pela teoria deixando para um plano secundário as emoções, os afectos, a sensibilidade e as experiências
práticas e artísticas. Como Richard Rorty (1979,1991), esclarece ao abandonarmos o cânone cultivado desde Platão a Kant
que entende a razão como o método de atingir a “verdade” ultrapassamos a necessidade de estabelecer a distinção entre
ciência e arte.
A distinção entre racional e irracional nada tem a ver com a distinção entre artes e ciências. Nesta construção ser
racional é simplesmente discutir qualquer tópico - religioso, literário, ou científico de uma forma que evite o
dogmatismo, a defensiva, a indignação (Rorty, 1991: 37).

A recontextualização do conceito de razão que Rorty nos apresenta pressupõe virtudes intelectuais e morais como a
pretensão da objectividade, a aceitação do erro, a curiosidade perante o novo e não-familiar, a capacidade de julgar e decidir.
A qualidade chave desta nova concepção de racionalidade reside na capacidade de considerar diferentes
alternativas. Sem estarmos na posse de todas as informações relevantes, respeitar a complexidade das situações, estar
receptivos a novos pontos de vista e considerar as limitações dos instrumentos que temos ao nosso dispor não podemos
pensar ou agir de modo racional.
Pensamos que os hábitos de confiar mais na persuasão do que na força, de respeito pela opinião dos colegas, de
curiosidade e ânsia por novas ideias, são as únicas virtudes que os cientistas têm, e não há nenhuma virtude chamada
‘racionalidade’ acima ou abaixo destas virtudes morais (Rorty, 1991:39).

374
Muitos trabalhos científicos e muitos pensadores da actualidade Rorty (1989; 1991); Damásio (1995; 2003);
Goleman (1997; 2006); Dalai-Lama (2000), e outros, têm vindo a divulgar esta noção mais abrangente de racionalidade que
evidencia uma relação mutuamente constitutiva de razão e emoção, uma profunda interpenetração entre processos lógico-
formais e processos emocionais.
Ser racional não equivale, apenas, a ser capaz de proceder segundo regras formais, mas também de ter
competências de relação, de interacção, negociação e convivência com pessoas e culturas com diferentes pontos de vista. Tal
como as competências cognitivas também estas são passíveis de ser desenvolvidas e cultivadas no confronto com as
experiências culturais e factuais com que o indivíduo se confronta ao longo da vida, sejam experiências de educação formal,
não-formal ou informal.
Neste horizonte de visibilidade, o nosso processo de autoformação participada será tanto melhor quanto maior for a
quantidade e variedade de alternativas que colocar à nossa disposição, ou seja, quantas mais oportunidades nos oferecer de
ouvir, reflectir e considerar acerca de diferentes discursos ou narrativas sobre a realidade.
A aquisição de valores como a tolerância, o pluralismo, o respeito pela opinião dos outros, a negociação entre
diversos pontos de vista, supõe relações pessoais e contextos sociais (de educação formal, não-formal e informal) que
pratiquem e incentivem estas virtudes.
A finalidade do processo educativo deixa de ser a transmissão de um discurso sobre o mundo (discurso científico),
entendido como único e verdadeiro que devamos passivamente assimilar, mas instigar a nossa curiosidade para novas
possibilidades, confrontar-nos com o novo e não-familiar, levar-nos a comparar diversas alternativas e por tentativa e erro
eleger aquela que entendamos como a mais sustentável. Este procedimento entende o reconhecimento do erro como um
processo positivo, no processo de autocrescimento, ou desenvolvimento das nossas capacidades.
O que nos parece importante salientar é que esta recontextualização da racionalidade entendida, agora, como um
conjunto de virtudes intelectuais e morais: tolerância; pluralismo, curiosidade, abertura a perspectivas alternativas, aceitação
da diferença, espírito de iniciativa, atitudes críticas, cooperação e solidariedade apresenta a individualidade e,
consequentemente, a tarefa educativa numa postura muito diferente daquela que é característica do modelo instrutivo de
transmissão/assimilação de informações.
O homem é entendido como um ser inacabado um ser a fazer-se ao longo da vida, um ser cuja especificidade se
revela na capacidade de (auto) e (re)construção das suas competências e virtudes morais Neste sentido, o processo de
autocriação do eu, enquanto um conjunto de crenças, desejos e emoções que se vai recombinando constantemente em função
de uma vivência prática e concreta é, fundamentalmente, um assunto de educação (ou melhor dizendo de autocriação, auto-
educação participada). Diremos que é o resultado de uma praxis intramundana, da rede de relações
intercomunicativas/educativas que vamos estabelecendo ao longo da vida. A nossa individualidade é, sem dúvida, o resultado
daquilo que retrabalhamos internamente fruto de encontros com novas ideias, pessoas, experiências, livros, comunidades,
culturas, etc. Nas palavras de Dominicé (1988:61),
a formação depende do que cada um faz do que os outros quiseram, ou não fazer dele […] corresponde a um processo
global de autonomização, no decurso do qual a forma que damos à nossa vida se assemelha – se é preciso usar um
conceito – ao que alguns chamam de identidade.

O processo de educação, funde-se, assim, com o processo de vida, logo este processo só pode ser entendido como
permanente (realiza-se ao longo de toda a vida do indivíduo) e comunitário (constrói-se na interacção e validação
estabelecidas em todas as comunidades em que o homem vive e age).
Educar, criar condições para a auto-criação e auto-realização pessoal supõe, agora, criar condições para que o
indivíduo seja capaz de exaurir toda a riqueza da racionalidade humana, ou seja, desenvolver todas as potencialidades
humanas: cognitivas, emotivas, artísticas, éticas, cívicas, etc.
A educação surge, então, como um processo contínuo e sequencial que abrange e se dirige a todos os membros da
comunidade.
Sem dúvida, todos concordaremos que face a esta nova postura, o modelo educativo escolar esgotou todas as suas
possibilidades uma vez que se centra numa concepção muito restrita de racionalidade e se focaliza numa determinada faixa
etária da população. Aliás, todo e qualquer projecto educativo, quer se dirija a crianças, aos jovens ou aos adultos é sempre
um projecto comunitário na medida em que a experiência de educação-aprendizagem deve sempre construir-se no
intercâmbio dos vários contextos em que o público-alvo vive e age: familiar, escolar, religioso, cultural, etc. Só partilhando e
confrontando aquilo que aprendemos a partir das nossas histórias de vida com as novas experiências, conseguiremos um
processo de desenvolvimento e enriquecimento em que se torna possível alargar progressivamente o nosso domínio de
familiarização.
Torna-se, então, urgente reestruturar o modelo educativo escolar e integrá-lo num processo educativo entendido
como processo de autocrescimento integral, permanente e comunitário preocupado em satisfazer as necessidades educativas
de todos; um processo educativo que progride no sentido de um cada vez maior confronto e partilha de modos de conhecer,
agir e sentir (Antunes, 2001).
Na tentativa de suprir as necessidades educativas de todos, a escola necessita reestruturar-se, tornar-se
pluridimensional, abrir-se a toda a população e a todo o tipo de actividades no sentido de ir ao encontro dos interesses e

375
necessidades de um processo educativo que contempla da mesma forma, jovens e adultos, a razão e a emoção, a memória e a
criatividade, o saber, o saber-fazer e o saber-ser. Neste sentido, poderemos dizer convocando Patrício (1997:23),
que compete à escola proporcionar e promover a educação dos educandos que a procuram, entendendo por educação o
processo de potenciação e aperfeiçoamento do complexo de capacidades constitutivo da humanidade do homem,
residente em cada pessoa humana.

Pressupõe-se, então, que a educação e a escola passem a preocupar-se não apenas com as crianças e os jovens mas,
também, em dar aos adultos a possibilidade de complementar e prosseguir o seu processo de auto-crescimento. Isto significa
promover, para além dos cursos normais e regulamentares, cursos de educação básica e secundária para adultos, cursos de
formação profissional, actividades desportivas, sociais, de saúde e segurança, recreativas, artísticas, de serviço público, etc.
Teríamos, então, uma melhor utilização das instituições escolares que se transformariam em verdadeiras
comunidades de educação-aprendizagem ao reconhecerem o potencial de cada um e de todos para a construção de uma
realidade social mais justa, mais responsável e mais equitativa.
Esta nova postura exige, certamente, a construção de comunidades de educação-aprendizagem que envolvem,
muito além da colaboração de professores e alunos, a colaboração das famílias e das comunidades locais (recreativas,
profissionais, culturais, etc.), “está a tornar-se importante reconhecer e valorizar novas formas de fluidez e abertura à
aprendizagem em cada etapa do ciclo da vida, em casa, na escola e nos locais de trabalho” (Bateson, 1994: 74).
A educação acontece sempre num contexto historicamente situado e o educador deve começar partindo das
experiências e das necessidades que cada um encerra em si, conhecimentos pessoais e da cultura endógena são importantes e
válidas para a auto-formação participada de cada um e de todos.
Ao educador seria exigida a habilidade e a responsabilidade de dinamizar e orientar os educando no processo de
investigação, comunicação e interacção com novos e alternativos contextos, pessoas, livros, comunidades, experiências, etc.
com a finalidade de se estabelecerem relações de partilha de saberes e experiências que conduziriam ao enriquecimento de
todos.
Se, por um lado, isto significa inter-agir e abrir a comunidade educativa formal e institucional (escola) às outras
comunidades (família, empresas, associações recreativas, culturais e outras, instituições de saúde, etc.) significa, por outro
lado, que a tarefa educativa terá que alargar-se a toda a comunidade e desenvolver-se em projectos de intervenção educativa
de contextos não propriamente escolares.
Para além de projectos educativos formais, a educação deverá lançar mão e concretizar-se, também, em projectos
de desenvolvimento local, de animação socioeducativa, de intervenção comunitária, de formação profissional, etc., apostando
nas mais diversas instituições e nos mais variados agentes educativos estabelecendo, assim, uma rede de parcerias locais e
regionais.
Só abrindo a escola à comunidade e fazendo da comunidade uma comunidade verdadeiramente educativa, a
educação poderá transformar-se numa oportunidade para todos, indo de encontro às necessidades educativas/formativas de
todos e de cada um de modo a todos conseguirem dar resposta aos desafios com que se deparam ao longo da vida,
promovendo processos de autonomia pessoal, de desenvolvimento pessoal e social sustentável e de participação activa e
efectiva na vida comunitária.

Referências Bibliográficas
Bateson, M.C. (1994). Peripheral visions – learning along the way. Nova Iorque: Harper Collins Publishers.
Canário, R. (2000). Educação de adultos. Um campo e uma problemática. Lisboa: Educa.
Dalai-Lama, (2000). Ética para o novo milénio. Camarate: Círculo de Leitores.
Damásio, A. (1995). O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro. Mem Martins: Publicações Europa-América.
Damásio, A. (2003). Ao encontro de Espinosa. As emoções sociais e a neurologia do sentir. Mem Martins: publicações
Europa-América.
Dominicé, P. (1988). O processo de formação e alguns dos seus componentes fundamentais. Nóvoa, A. & Finger, M. (org).
(1988). O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde. (pp. 51-61).
Faure, E. (1981). Aprender a ser. Lisboa: Livraria Bertrand.
Goleman, D. (1997). Inteligência emocional. Lisboa: Bertrand.
Goleman, D. (2006). Emoções destrutivas e como dominá-las. Um diálogo científico com o Dalai Lama. Barcelos: Círculo de
Leitores.
Nóvoa, A. (1988). A formação tem que passar por aqui. As histórias de vida no projecto prosalus. Nóvoa, A. & Finger, M.
(org). (1988). O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde. (pp.107-130).
Patrício, M.F. (1991). A escola axiológica. A escola cultural e os valores In Patrício, M. F. (Org.). Actas do II Congresso da
associação da educação pluridimensional e da escola cultural. Porto: Porto Editora.
Rodrigues, A.M. (2006). História da pedagogia. Aveiro. Texto policopiado.
Rorty, R. (1979). Philosophy and the mirror of nature. Pinceton: Pinceton University Press.
Rorty, R. (1989). Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press.
Rorty, R. (1991). Objectivity, relativism and truth. Philosophical papers. Cambridge: Cambridge University Press.

376
UNESCO. (1976). Recomendación relativa al desarrollo de la educación de adultos. Nairobi.

Alfabetização de jovens e adultos - das políticas públicas à prática docente

Helena Albuquerque
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
helenaalb@uol.com.br

Resumo: Desde a publicação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, a qual considera o acesso ao ensino fundamental
como direito subjetivo de todo cidadão, tem havido grande esforço para inclusão de jovens e adultos na cultura letrada. Esta comunicação
apresenta os resultados de uma pesquisa, que examinou a política pública para alfabetização de jovens e adultos e a prática docente para
efetivá-la. Integrada ao Grupo de Pesquisa em Gestão e Políticas Públicas da Faculdade de Educação de uma Universidade com perfil
historicamente consolidado como produtora de conhecimento teve como apoio teórico Freire, Pinto e Beisiegel, entre outros. Em abordagem
qualitativa de um estudo de caso com características etnográficas, tendo como campo um município da região sudeste brasileira,
desenvolveu-se, sob minha orientação, em duas etapas: 1 revisão da literatura e legislação relacionadas ao tema e estabelecimento de
categorias para análise da prática docente e 2 observação e descrição da formação teórico-prática do professor alfabetizador e de sua ação em
sala de aula. A análise aponta que não há correlação entre a política pública para alfabetização e a prática docente, apesar de sua
intencionalidade para a melhoria do processo de alfabetização de jovens e adultos. Alguns professores desejam a mudança, porém, esta só
ocorrerá se houver continuidade do esforço, enquanto a prática docente de outros contradiz a política educacional do município.

No Brasil, até 1988, a preocupação com a alfabetização de jovens e adultos foi explicitada por ações pontuais dos
governos, como campanhas, movimentos, sempre fruto de interesses políticos e econômicos. Alinhados aos grupos no poder,
pela sua própria natureza transitória, não contribuíram para sistematizar uma ação cotidiana de compromisso e
responsabilidade com a alfabetização de jovens e adultos. Terminadas as campanhas e movimentos, a situação voltava ao que
era.
No início do século XX, a indústria, carente de mão-de-obra especializada, exerce grande pressão para diminuir o
analfabetismo. Vários projetos sociais surgiram com tal intenção, porém, foram os movimentos sociais que propiciaram as
bases para a educação de jovens e adultos que se tem hoje. A ditadura militar (1965 a 1985) procurou abafar as iniciativas
dos Centros Populares de Cultura e o Movimento de Educação de Base, entre outros, propondo o MOBRAL - Movimento
Brasileiro de Alfabetização.
Com a abertura política, a sociedade volta a organizar-se. O Brasil participa da Conferência Mundial de Educação
para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, de 5 a 9 de março de 1990, por convocação da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura- UNESCO, Fundo das Nações Unidas para a Infância- UNICEF e pelo Banco
Mundial. Da Conferência resultou a Declaração Mundial de Educação para Todos, segundo a qual cada pessoa- criança,
jovem ou adulto- deve estar em condições de aproveitar as oportunidades educativas voltadas para satisfazer suas
necessidades básicas de aprendizagem (1990, p. 3).
Neste trabalho apresentamos os resultados de uma pesquisa que orientamos, integrada ao Grupo de Pesquisa em
Gestão e Políticas Públicas da Faculdade de Educação de uma universidade mantida por uma Fundação, com perfil
historicamente consolidado como produtora de conhecimento e na qual se investiga a política educacional de um município
da região sudeste brasileira voltada para a Educação de Jovens e Adultos- EJA, a formação e a prática docente para efetivá-la.
3

A pesquisa, com abordagem qualitativa de um estudo de caso com características etnográficas, foi realizada em
duas etapas. Na primeira as orientandas, efetuaram um levantamento da legislação e literatura relativas à área e estabeleceram
categorias de análise da prática docente, a partir de teóricos como Freire, Pinto e outros. Na segunda etapa procederam à
pesquisa empírica, observando, registrando, discutindo e analisando a prática docente de uma amostra de sete professores,
para implantação da política do município. Os resultados evidenciam a distância entre a intenção e discurso oficial e a ação
educativa em sala de aula.

ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS- A BUSCA POR DISSEMINÁ-LA


Entre os educadores preocupados com a situação do povo brasileiro destaca-se Paulo Freire, o qual, em 1961, inicia
um método de alfabetização de adultos, dentro do movimento de Cultura Popular do Nordeste e que continua no Serviço de
Extensão Cultural da Universidade de Recife (2006, p.17). Tal método articula-se à conscientização do individuo analfabeto
à sua própria condição de oprimido, por uma pedagogia humanizadora, uma prática pedagógica em que o método deixa de

3
Participaram como alunas-pesquisadoras Maria Aparecida Nascimento Almeida e Andressa de Souza Morgado, alunas do último ano do Curso de Pedagogia
em 2007, período no qual desenvolveram o projeto de Iniciação Científica, financiado com verba da Universidade pelo Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação Científica- PIBIC e Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão- CEPE.

377
ser... instrumento do educador( no caso a liderança revolucionária ), com o qual manipula os educandos ( no caso, os
oprimidos ) porque é já a própria consciência (1980, p. 60).
O trabalho, antes que fosse divulgado e implantado em todo o país, foi abortado pelo golpe de Estado de 1964, que
conduziu à prisão Paulo Freire, considerado pelo seu método um subversivo internacional, traidor de Cristo e do povo
brasileiro (2006, p. 18). Paulo Freire pretendia a humanização das pessoas, impossível de ser alcançada sem a superação da
realidade social opressora, sem a extinção dos fatores desumanizantes e conscientização da própria situação, quando
destituída dos direitos básicos de cidadão. Defensor da educação popular, Freire viu-se arrancado do seu país, antes que
pudesse implantar a prática pedagógica que defendia. Ele voltaria ao Brasil somente após a abertura democrática, a partir de
1985.
Em 1988, pela primeira vez, uma lei, a Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 208 afirma: O
dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - Ensino fundamental obrigatório e gratuito,
inclusive para os que não tiveram acesso na idade própria, como direito subjetivo do cidadão.
Em decorrência, a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 afirma no artigo 4º:
O dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:
I-Ensino fundamental obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;
VII- oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas
necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola.
Para implantação da lei o Ministério da Educação e Cultura- MEC articula-se com Estados, municípios e sociedade
civil organizada. Surgem Organizações Sociais Não Governamentais- ONGS e municípios apresentam políticas específicas
para alfabetização de jovens e adultos.
No Estado de São Paulo, em 2007, o Presidente da União Paulista dos Conselhos Municipais de Educação
apresentou a proposta de um projeto que foi encampado por representação dos municípios e por todos os Conselhos. O
Projeto : Compromisso, São Paulo, Analfabetismo Zero foi autorizado em 2007 e está sendo implantado em 2008, financiado
pelo MEC e pela UNESCO. Até março de 2008 pretende atingir 300 dos 645 municípios do Estado por meio de reuniões com
grupos de cerca de 30 representantes municipais onde é solicitado que o novo prefeito que assumirá brevemente o cargo
assine o compromisso de zerar o analfabetismo em seu município durante o seu mandato.
Em 1995, a então primeira dama, Profa. Dra. Ruth Cardoso, assume a presidência do Conselho do Programa
Comunidade Solidária, que tinha como finalidade combater a exclusão social. Em 2002, fazendo uma avaliação, Ruth
anuncia que o Programa havia alfabetizado 3 milhões de jovens e profissionalizado outros 114 mil (Jornal Folha de São
Paulo, p. A6, 25 de junho de 2008). Ela foi uma batalhadora pela diminuição da distância social no Brasil e pelo combate à
exclusão de jovens e adultos não alfabetizados.
Atualmente é desenvolvido no país o Programa Brasil Alfabetizado, o qual deve se constituir num portal de entrada
na cidadania, articulado diretamente com o aumento da escolarização de jovens e adultos (Portal do Programa, 17/10/08).
Apesar dos esforços e de alguma melhora, ainda há muitos desafios. Entre 1997 e 2007, a taxa de analfabetismo
das pessoas com mais de 15 anos caiu de 14,7% para 10%, o que significa um número elevado de pessoas analfabetas: 14,1
milhões, dos quais 9 milhões são pretos e pardos. 52% dos analfabetos de 15 anos ou mais estão na região nordeste, na qual
há predominância de pessoas de baixo nível sócio econômico. Busca-se a universalização da educação nas séries iniciais do
Ensino Fundamental até 2015. A freqüência à escola cresceu, porém a defasagem idade/série persiste (Dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE- 17/10/2008).
Em 1978, a UNESCO sugeriu que se adotassem os conceitos de analfabetismo e alfabetismo funcional. Se a pessoa
é capaz de utilizar a escrita e leitura e habilidades matemáticas para atuar no seu contexto social e continuar aprendendo e se
desenvolvendo ao longo da vida, é considerada alfabetizada funcional. Considera-se analfabeto o sujeito que não consegue
realizar tarefas simples que envolvam decodificação de palavras e frases.
De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional - INAF, em pesquisa de 2001 a 2005, neste último ano
somente 26% da população brasileira possuía domínio pleno das habilidades de leitura e escrita (INAF, 17/10/2008). Em um
país com 191.790. 900 habitantes e com superfície de 8.514.876 km², os altos índices evidenciam o grande número de
brasileiros despojados de um direito básico de sua cidadania em um quadro social esgarçado pela injustiça e desigualdade.
Desde a década de 90 tem sido usada a palavra letramento no discurso educacional, um conceito novo e fluido que,
embora com sentido próximo, é diferente da expressão alfabetização funcional. Pode designar: práticas sociais de leitura e
escrita, eventos relacionados com o uso da escrita, efeitos da escrita sobre uma sociedade ou sobre grupos sociais, estado ou
condição em que vivem indivíduos ou grupos sociais capazes de exercer práticas de leitura e de escrita (SOARES,202, p. 15).
O acentuado número de pessoas que não sabem ler e escrever exige um grande esforço nacional, tanto em termos
de políticas educacionais, quanto compromisso para implantá-las, especialmente do professor. Em 2000, o Brasil possuía
cerca de 49 mil professores atuando no primeiro ciclo do ensino fundamental na modalidade EJA - Educação de Jovens e
Adultos. Para erradicar o analfabetismo em quatro anos seriam necessários 200 mil professores. Há muitos programas para
EJA, porém nem sempre se revestem da qualidade necessária nem quanto à proposta nem quanto ao nível de
profissionalização exigido. Nessa área, improvisação geralmente redunda em fracasso (INEP, 21/10/08). Os cursos de
formação, em geral, não preparam adequadamente para o trabalho docente com jovens e adultos. Todavia, há inúmeras
iniciativas localizadas de educação continuada para docentes com essa finalidade.

378
O MUNICÍPIO E SUA POLÍTICA EDUCACIONAL PARA EJA
O município, campo da pesquisa, é parte da Grande São Paulo e foi selecionado por sua política educacional com
forte ênfase na educação de jovens e adultos. Situado na região nordeste do Estado de São Paulo, emancipou-se em 8 de
dezembro de 1960. Constitui-se num centro industrial com uma população que congrega migrantes especialmente de três
estados: Pernambuco, Minas Gerais e Bahia. Segundo pesquisa do IBGE (2007), é considerado o 13º município mais rico do
País, mas possui paradoxalmente pessoas situadas nos níveis mais baixos de pobreza, sem condições de vida com dignidade.
Desde 2001, o município se empenha na melhoria da educação, construindo prédios escolares, ampliando o número
de vagas nas escolas, oferecendo concursos para professores. Seu projeto pedagógico concebe a educação como direito de
todos que contribui para apropriação dos bens culturais e desenvolvimento integral do ser humano. Considera que todos
devem ter acesso e permanecer na escola, a qual deve oferecer um ensino de qualidade. Os profissionais da educação devem
ser valorizados, o que envolve a democratização da gestão da Secretaria da Educação (Caderno do Educador, 2002, p. 26).
Possui na estrutura organizacional da Secretaria da Educação do município, um setor que cuida especialmente da EJA, o qual
é denominado: Núcleo de Educação de Jovens e Adultos.
O Núcleo tem uma metodologia de trabalho voltada para o aperfeiçoamento da prática docente do professor da
EJA. Ao perceber a necessidade da participação dos educadores da Rede EJA na construção da proposta curricular específica,
sensibilizou-os nas reuniões pedagógicas para a importância da constituição de um grupo de estudos voltado para essa
finalidade. Do trabalho deste grupo resultaria o material pedagógico consubstanciado em um Caderno para o Educando e um
Caderno para o Educador. As idéias dos participantes sobre o currículo de EJA foram desencadeadas a partir da indagação:_
Qual o principal problema na educação de jovens e adultos neste município? A partir das experiências dos educadores,
análise e discussão das respostas dadas à indagação construíram-se cinco categorias: concepção, sujeitos, políticas,
instrumentos e currículo, das quais surgiu outra pergunta: Como os problemas principais estão relacionados à construção
curricular? A identificação dos problemas possibilitaria a criação de consenso sobre as causas: não é falta de algo, mas uma
condição ou situação negativa existente e que se deseja superar (Caderno do Educador, 2002, p.15-16).
O Caderno do Educador, um dos recursos que poderá ser utilizado pelos professores de EJA, consubstancia a
política educacional do município, fundamentada em Paulo Freire. Na sua introdução apresenta o processo de construção
coletiva do currículo. Em seis capítulos abordam-se diferentes temáticas do universo do educador de jovens e adultos, dados
gerais da situação da educação, diagnósticos da educação de jovens e adultos do município, o perfil do aluno da EJA do
município; concepções, métodos, currículo, processos de ensinar e aprender e formação permanente incorporada à proposta.
Em todos os capítulos há textos provocativos de reflexão, às vezes, letras de música, poemas. O Caderno é interessante,
instigante à leitura, tendo ao mesmo tempo leveza e profundidade na forma de abordar os diferentes assuntos.
Segundo os seus elaboradores, muitas vezes, o currículo é visto como
um instrumento, pelo qual os interesses, as definições e as diretrizes das classes dominantes expressam um
determinado modelo de educação, visando perpetuar o status quo, ou seja, manter a escola como instituição para
modelar as novas ou velhas gerações, em busca de uma certa ordenação social. Sob esses aspectos, o currículo seria
uma seleção de conteúdos a serviço de interesses hegemônicos (IBID, p.88).

Para ser coerente com as diretrizes da educação do município, com os seus fundamentos teóricos e especificidade
da educação de jovens e adultos, o currículo é entendido de outra forma pelos autores do Caderno: mediação, conjunto das
experiências sociais, culturais, cognitivas e afetivas e técnicas... buscando a formação integral dos educandos, como sujeitos
protagonistas da sua própria formação (Caderno do Educador, 2002, p. 94). Constitui-se de diferentes áreas do conhecimento:
Linguagem Oral e Escrita, Lógica Matemática, Saúde e Meio Ambiente, Economia Solidária, Tecnologia e Comunicação
(IBID, p.96). As necessidades advindas dos currículos pessoais dos educandos definem os conteúdos, os quais são inter-
relacionados com as diferentes áreas de conhecimento.
A proposta do município quanto à organização da EJA é em dois ciclos ( 1ª e 2ª séries e 3ª e 4ª séries) o que
demanda uma integração maior entre os professores, uma seqüência de experiências e aprendizagens , as quais não são
previamente estabelecidas pelo educador, mas resultam de um contínuo diálogo entre educador e educando e entre os
diversos educadores da escola (IBID. p. 128).
Em pesquisa realizada em 2001, constatou-se que: a maioria dos alunos da EJA são mulheres casadas (60%),
predominam ocupações no mercado informal ou afazeres domésticos, há muitos desempregados, 80% participam de
atividades religiosas e ganham em média 600 reais mensais ou cerca de 200 euros(IBID).
O Núcleo com o grupo de educadores realizou uma pesquisa norteada pelos objetivos de:
conhecer o perfil dos alunos participantes do Programa de Educação de Jovens e Adultos;
investigar os reflexos da experiência de participação no Programa pelos adultos nos aspectos pessoais e
profissionais;
instrumentalizar o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos para aperfeiçoar o trabalho que vem sendo
desenvolvido ( IBID. p. 155)
Entre as estratégias utilizadas na investigação, promoveram a I Mostra Quem é EJA que Apareça, a qual
possibilitou o conhecimento de trabalhos produzidos pelos docentes da EJA e o aprofundamento do debate em torno da
prática pedagógica.

379
O Núcleo planeja as suas ações com base no conhecimento do perfil dos educadores, diagnóstico da realidade antes
da tomada de decisões e prognóstico das ações no futuro. Preconiza que o planejamento deve ser fruto do trabalho coletivo e,
ao mesmo tempo, um instrumento que auxilia na concretização de um projeto, de uma ação, de um objetivo (IBID. p.133).
A avaliação dos alunos será sempre diagnóstica e norteadora da prática docente e só terá sentido, se tiver como
ponto de partida e ponto de chegada o processo pedagógico como um todo, para que identificadas as causas do sucesso ou
das dificuldades, sejam estabelecidas estratégias formativas que auxiliem no enfrentamento dos problemas (IBID. p. 145).
A Secretaria Municipal investe na formação permanente dos professores, por julgá-la condição básica para a
concretização de sua política educacional. Esta não consistiria em cursos pontuais, mas em um processo contínuo de
desenvolvimento técnico, social, ético do ser humano e do grupo (IBID. p. 166), que priorize a criação e não a simples
transmissão de conhecimentos. Tais princípios exigem mudança de posturas, disponibilidade para a reflexão e avaliação
contínua da própria prática, análise dos fundamentos metodológicos e da concepção vivenciada de educação, estabelecimento
de uma relação com a aluna fundamentada no diálogo e no seu respeito como sujeito da própria história e aprendizagem.
Para tal, todos os professores da EJA tiveram uma capacitação intensiva de duas semanas no início do ano letivo de
2001. Para facilitar o processo constante de reflexão sobre sua prática foram criados espaços formativos, setorizados e
realizadas reuniões pedagógicas quinzenais, das quais participam em média 30 professores, que debatem, planejam e
organizam o trabalho, trocam experiências e constroem um trabalho coletivo, considerando as diretrizes políticas, os alunos,
seus interesses comuns,
As reuniões pedagógicas têm como objetivos:
Conhecer a realidade das escolas Municipais e a comunidade local;
Construir um plano de formação permanente com os gestores, professores e formadores;
Possibilitar a construção do conhecimento, a partir de um referencial teórico que dialogue e tenha como referência a
realidade da educação no município;
Constituir um espaço de troca de experiências metodológicas desenvolvidas pelos professores;
Dar condições para que os educadores possam construir uma proposta metodológica que vá ao encontro das
necessidades de aprendizado dos educandos de forma a respeitá-los enquanto sujeitos de um processo educativo;
Contribuir com a reflexão sobre planejamento registro, avaliação e sistematização;
Contribuir para a conscientização da situação do analfabetismo no Brasil, sua história e inserção em políticas mais
amplas de direitos sociais;
Refletir sobre concepção a partir das diferentes realidades de vida dos educandos e das suas experiências refletindo
sobre o ato de educar (IBID, p. 166).
Além dessas reuniões os professores têm uma hora-atividade diária para planejamento, preparação de aula e
estudo. Participam de palestras, oficinas e seminários, dentro do processo de formação permanente proposto pela Prefeitura
Municipal. A política educacional do município é clara e tem uma diretriz incisivamente voltada para a educação de jovens e
adultos.

OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA INVESTIGAÇÃO


Para análise do tema recorreu-se a Freire, Pinto, Beisiegel, Brandão, Moura, Ferreiro. Freire, pelo seu trabalho com
educação popular e Pinto pela sua contribuição teórica facilitadora da análise e compreensão da influência da sociedade na
existência do adulto que não sabe ler e escrever, foram primordiais na fundamentação teórica da investigação Além deles,
Moura contribui com sua análise do conceito de alfabetização de adultos no contexto da história brasileira e Ferreiro com o
seu referencial teórico sobre alfabetização. O estudo dos teóricos foi complementado com a análise da legislação no que
tange à educação de jovens e adultos, especialmente a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96. Textos e legislação foram amplamente discutidos e analisados em
reuniões semanais da orientadora e orientandos. Os Cadernos do Educador e do Educando da Secretaria de Educação do
município também foram examinados e discutidos.
As idéias e propostas de Paulo Freire permeiam a história da educação brasileira. Sua prática educativa é voltada
para a valorização dos conhecimentos dos educandos jovens e adultos, o estímulo à sua participação no processo educacional
e para o desenvolvimento compartilhado da responsabilidade social e política.
Para Pinto, o analfabeto é uma realidade humana enquanto o analfabetismo é uma realidade sociológica (1993, p.
91). A responsabilidade pela condição do adulto que não sabe ler e escrever não lhe pode ser atribuída, mas
primordialmente à sociedade que permitiu a sua existência e sobrevivência no seu seio. Em sua essência o analfabeto é uma
pessoa que não necessita ler e não alguém que não sabe ler.
A espécie e a extensão da educação distribuída por uma sociedade a seus membros são função de seu estado de
desenvolvimento material e cultural. Este é que determina as possibilidades da educação tanto em qualidade (conteúdo e
métodos) como em quantidade (a quem e a quantos será distribuída) (IBID, p. 37)
Uma educação crítica só é possível por meio de uma consciência crítica. Pretende-se por meio da educação a
mudança da condição humana do individuo que adquire o saber (IBID, p.49) . E o preparo do educador não tem fim, é
permanente, é um fato humano que se produz pelo encontro de consciências livres, a dos educadores entre si e destes com os
educandos (IBID,p.48).

380
Pinto e Freire rejeitam uma proposta de alfabetização que inclua exposições verbalistas, recursos didáticos
infantilizados e professores autoritários, enfatizando a importância de uma educação libertadora e não uma educação bancária
que considera apenas o professor como detentor do saber.
Na década de 80, são questionados e revistos pelos educadores os métodos de alfabetização, o que possibilita novas
formulações para a área. Os resultados das investigações de Emília Ferreiro e Ana Teberosky fornecem um referencial que
possibilita mudanças pedagógicas significativas. De acordo com MOURA, Ferreiro iniciou sua pesquisa experimental
sensibilizada pedagógica e politicamente com os problemas sociais do continente latino-americano, entre eles, o
analfabetismo (2004).
Para Ferreiro (1986), a escola ignora o desenvolvimento natural da criança e do adulto e o professor parte do
simples para o complexo, orientado pelo que define como tal e não pelo educando. A necessidade de compreensão do
pensamento do outro é substituída pelo controle motor. Para Ferreiro, a alfabetização
consiste num processo pedagógico e epistemológico que deve possibilitar, ao sujeito, a apropriação do sistema de
representação da linguagem escrita e a sua conseqüente reconstrução e utilização para si como objeto possibilitador da
apropriação de novos conhecimentos e de intervenção em diferentes situações sociais (p.140)
Ferreiro considera importante na alfabetização inicial a preocupação com os aspectos construtivos, sua natureza e
função social, não simplesmente ensinar o código lingüístico.
Para verificar em que medida a intencionalidade da política educacional para alfabetização de jovens e adultos do
município estava sendo vivenciada, estabelecemos categorias e indicadores para nortear a observação e facilitar a análise dos
dados coletados, como mostra a Tabela 1

Tabela 1
Categorias Indicadores
Concepção de Educação como ato Fala, postura e atitude do docente que demonstre preocupação com o
político aprendizado dos alunos articulado ao contexto da sociedade brasileira;
Diálogo Troca de idéias entre professor/aluno, aluno/professor, Disponibilidade do
professor para pronto atendimento às dúvidas dos alunos;
Tratamento do aluno como sujeito Utilização de material didático apropriado ao aluno adulto, respeito ao
saber que o aluno obteve no decorrer de sua vida; considerando-o como ser
que sabe e pensa.
Compromisso com a aprendizagem Plano de trabalho articulado ao Projeto Pedagógico da escola e ao Plano do
dos alunos concretos da classe Curso do Supletivo. Utilização de procedimentos metodológicos, objetivos
do trabalho, formas de avaliação adequadas aos alunos e coerentes com a
teoria analisada sobre alfabetização de adultos.

A PESQUISA
A mediação da orientadora, a apresentação do projeto à Secretaria da Educação e às diretoras das escolas e o
diálogo nos abriram as portas para a observação da prática docente de sete professoras de alfabetização de jovens e adultos
em duas escolas, durante quinze dias. Os dados aqui apresentados constam do Relatório Final do Projeto de Iniciação
Científica(2008).
Foi aplicado um questionário aos professores, o qual foi respondido na presença das alunas investigadoras com o
objetivo de traçar um perfil pessoal e buscar informações sobre a formação acadêmica e atuação profissional dos docentes.
Constituído de 11 perguntas, 2 abertas e 9 fechadas, incluiu questões relativas ao sexo; formação acadêmica; tempo de
docência; formação para atuar com a EJA; curso exigido para a docência na EJA; conteúdo das reuniões pedagógicas; o que
estimula, o que aborrece, o que facilita, o que dificulta a ação docente; a existência de espaços formativos para educação
permanente; as linhas norteadoras da política educacional do município; a participação na construção do projeto pedagógico
da escola, o Plano do curso Supletivo, se o Plano de Ensino é articulado aos anteriores; se é fruto de um trabalho coletivo.
O campo da pesquisa empírica foram duas escolas localizadas em bairros diferentes, com população de baixa renda,
ambos considerados dormitórios, ou seja, abrigam moradores que trabalham em outros locais e voltam ao bairro apenas para
dormir.
O bairro da Escola 1 possui alguns serviços: padaria, farmácia, bares, igrejas, lojas com preços populares, lan
house.
O prédio que abriga esta escola é pequeno, limpo e sem sinais de vandalismo. Tem um pátio pequeno com um
palco no centro, bebedouros e seis banheiros. Há uma sala para a diretora, outra para a vice-diretora e uma para os
professores, uma sala para informática, uma cozinha grande e limpa. Os alunos moram no próprio bairro ou nas
proximidades.
No bairro da escola 2 a maioria dos moradores são migrantes da região nordeste. Conta com um posto de saúde,
igrejas de vários credos, botequins, minimercado, lojas, duas escolas estaduais (ensino fundamental e médio) e três escolas
municipais. A escola fica localizada na praça Estrela, ainda em construção, tendo uma biblioteca recém-inaugurada, um posto

381
da guarda municipal e uma quadra de esportes, único espaço de lazer do bairro. As poucas ruas asfaltadas são transformadas
em áreas de lazer, o que tem provocado acidente.
O prédio é grande e tem duas portas de entrada, uma permanentemente fechada e a outra com um funcionário que
controla a entrada. O prédio tem dois pisos. No inferior fica a sala da diretora, sala de professores, secretaria, banheiros,
cozinha, sala de informática, espaço para a merenda escolar e um pátio coberto. No segundo piso estão localizadas as salas de
aula.
As duas escolas foco da investigação funcionam em quatro períodos: das 7h às 11h; das 11h às 15h, das 15h às 19h
e das 19h às 22h. As classes investigadas são do último período.

DADOS DOS QUESTIONÁRIOS


Na escola 1, foram sujeitos duas professoras e um professor. Dois possuem curso médio de Magistério e superior
em Pedagogia, este obtido por meio de convênio realizado entre o Município e a Universidade de São Paulo USP. Um é
formado em curso superior de Artes. Os professores possuem de 13 a 23 anos de docência e de 1 a 2 anos como professores
da EJA. Apenas dois cursaram uma disciplina voltada para atuarem como docentes de EJA. Todos, como os demais da rede
de ensino do município pesquisado, são concursados. Contudo, de acordo com tempo de serviço e títulos podem lecionar para
a EJA e outros níveis. O concurso é sempre multidisciplinar e os professores podem ser designados para lecionar para as
séries iniciais do Ensino Fundamental, Educação Infantil ou no Curso de Alfabetização de Jovens e Adultos. No momento
da contratação não foi exigido curso de formação para o trabalho com a EJA, porém, todos da escola 1 afirmaram ter passado
por uma capacitação inicial prévia, oferecida pela Prefeitura Municipal.
Todos, dessa escola, afirmaram haver diálogo e trocas de experiências nas reuniões pedagógicas.
O que os estimula para o trabalho com EJA é a troca de experiência entre os professores e alunos e o que os
aborrece é a falta de assiduidade dos alunos.
Todos participaram da elaboração do Projeto Pedagógico da Escola e Plano de Curso que foram articulados entre si.
E com o Plano de Ensino de cada um. O trabalho foi coletivo.
As respostas dadas pelos professores da escola 1 ao questionário mostram coerência com a proposta política do
município.
Na escola 2 foram sujeitos da pesquisa 4 professoras, 3 com curso superior de Pedagogia e uma com curso de
Artes e Informática.
O tempo de docência, dos professores desta escola, é de 6 a 30 anos e com a EJA de 1 a 14 anos. Uma delas
afirmou trabalhar com a EJA praticamente desde a sua instalação no bairro. Afirmam possuir muita experiência em
diferentes áreas bem como na alfabetização de jovens e adultos.
Todas são concursadas e delas não se exigiu formação específica para atuar com EJA. Apenas 1 afirmou ter
passado pela formação específica inicial oferecida pela Prefeitura Municipal.
Todas afirmaram haver diálogo e trocas de experiências nas reuniões pedagógicas e no ambiente de trabalho.
Para duas, há espaços formativos e para duas, não. Estas mostram não ter compreendido que a hora- atividade é um
espaço de formação.
Uma professora reclamou: _Nessa semana eu fui a uma palestra, mas só falavam de educação de criança, nada é
voltado para EJA. Ao ser lembrada que poderia melhorar a sua prática com seu aluno surdo, pois a Prefeitura Municipal
oferece o curso de língua de sinais para os professores, comentou: Seria bom se os cursos fossem no período das aulas, pois
trabalho manhã, tarde e noite. Percebe-se uma inconsistência na fala, pois o que falta não são cursos, mas tempo para a
professora participar. Isto indica que seria necessário além das condições existentes um salário condizente que permitisse o
trabalho apenas em um período.
Outra professora garantiu: Aqui não tem curso de formação.
Três professoras admitiram não conhecer as linhas norteadoras da política de formação de professores do
município. Uma afirmou que é a Pedagogia crítica de Paulo Freire.
Comenta GIROUX:
Por um lado, a linguagem da crítica expressa na obra de Freire incorpora muitas das análises que caracterizam o
que tem sido chamado de nova sociologia da educação. Por outro lado, sua filosofia da esperança e luta tem raízes na
linguagem da possibilidade que está em grande parte calcada na tradição da teologia da libertação. É a partir da mescla destas
duas tradições que Freire produziu um discurso que não apenas dá significado e coerência a seu trabalho, mas também
fornece as bases para uma teoria mais abrangente e crítica da luta pedagógica (1997, p.147)
Mesmo quando confrontadas com o material didático elaborado coletivamente, o Caderno do Educador, que
consubstancia a política educacional do município, comentaram que os textos são muito longos para alfabetizar, expressando
um distanciamento do pensamento freireano.
O que estimula as professoras são os alunos, o interesse deles e os resultados do trabalho dele. Estas respostas
mostram um conjunto de razões para qualquer professor realizar um bom trabalho e para que se sinta estimulado a dar
melhor de si. Duas acrescentaram: a vontade de ser útil, porque assumiram a missão de alfabetizar.
O que mais as aborrecem é a falta de interesse dos alunos. Duas completaram: _ É a falta de assiduidade e outras
duas: _ A falta de compromisso dos alunos com o estudo. No início do ano, não faltam às aulas, mas no seu decorrer desistem

382
por cansaço ou sentimento de inferioridade, julgando que não conseguem aprender. A evasão dos alunos, quando intensa,
leva à perda do posto de trabalho do professor. Observou-se uma professora telefonando para os alunos voltarem com receio
de que isso ocorresse.
Muitos jovens e adultos vão à escola para se socializar. E os conteúdos não despertam o seu interesse.
Para as professoras, o que mais facilita o trabalho é a idade dos alunos, talvez porque alunos mais velhos são mais
dóceis, foram acostumados à obediência por patrões e chefes. A escola repete o modelo social capitalista que coíbe o
pensamento abstrato, a reflexão, não considerando os empregados como sujeitos. Acrescente-se que o aluno, sendo mais
velho, tem melhor definido seus objetivos e mais responsabilidade para aprender, facilitando o trabalho do professor, pois
aprende, quando quer e não quando é obrigado.
A falta de assiduidade atrapalha a continuidade do trabalho e interrompe o processo. Muitas vezes, o jovem faz a
matricula no início do ano, mas falta muito, pois não é obrigatória a freqüência. Alguns faltam devido ao cansaço decorrente
de trabalhos que exigem muito esforço físico, como pedreiros, faxineiros, domésticas.
Alguns apontaram a lentidão da aprendizagem dos alunos. Ferreiro (1990) explica que o processo ensino-
aprendizagem do adulto se torna mais difícil, porque trazem formas cristalizadas para agir, estigmas, medos, bloqueios
psicológicos produzidos ao longo da vida. Muitos elaboram estratégias de sobrevivência no meio urbano sem sentir
necessidade de ler e escrever, o que, segundo Pinto (2007), ainda é possível.
A professora de Artes e Informática aponta a falta de recursos para desenvolver o trabalho, o que, na observação da
pesquisadora, não ocorre.

A PRÁTICA DOCENTE NA ESCOLA 1


Na escola 1, foram observadas as relações professor-aluno, professores/professores, alunos/alunos/funcionários. Os
agrupamentos de alunos são heterogêneos, alguns preparados para freqüentar uma quinta série, enquanto outros ainda não
escrevem bem, não conseguem interpretar os textos e participar adequadamente das atividades propostas pelo professor.
Em uma classe, verificando os cadernos de uma aluna com síndrome de Down, constatou-se que já estava
alfabetizada, escreve bem, participa das aulas e auxilia os professores.
A maioria dos alunos trabalham de forma autônoma (trabalhos informais), entre os quais há aposentados que ainda
trabalham para sustentar a família.
Todos os alunos prestam atenção às aulas, a maioria participa e há diálogo entre eles e professores, tanto na sala de
aula, quanto fora, com colegas, funcionários e diretora.
Todos gostam de ir à sala de informática e percebem a importância da inclusão digital. As aulas são ministradas por
um professor especialista.
Os professores desta escola são muito preocupados com o aprendizado dos alunos, participam das reuniões
pedagógicas, da construção e execução do Projeto Pedagógico, porém, ainda mostram insegurança e medo em relação à
coerência de sua prática com os princípios do curso de formação oferecido pela Prefeitura do Município e isso repercute no
aprendizado dos alunos.
Na ação docente não foi observada nenhuma fala, atitudes ou lições que mostrassem um tratamento infantilizado,
respeitam a realidade do aluno, desenvolvem atividades articuladas ao seu cotidiano, às suas histórias, cultura e
conhecimentos.
A ação docente mostra coerência com os princípios pedagógicos freireanos, que postula oferecer instrumentos para
que o educando se alfabetize, por meio do diálogo sobre situações concretas da sua vida. Os professores conhecem a
realidade dos alunos e constroem espaços para trocas de experiências, respeitam os saberes dos educadores e educandos.
A concepção de liberdade, expressa por Paulo Freire, é a matriz que dá sentido a uma educação que não pode ser
efetiva e eficaz senão na medida em que educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica (2006, p. 59). A alfabetização
deve ser um processo realizado de dentro para fora, pelo próprio educando com a colaboração do educador. A razão dialógica
freireana está na afirmação da vida em sua totalidade para um novo paradigma fundamentado na relação sujeito-sujeito, que
requer a prática do diálogo. Este é uma forma de construção do conhecimento, pois garante o exercício da argumentação
pelos sujeitos e condições de ser ouvida, debatida e avaliada. O processo de alfabetização de FREIRE visa à libertação da
humanidade e não a seu controle. Implica uma atividade de criação e recriação e não memorização visual de palavras
desgarradas de um universo existencial. Daí a importância do diálogo sobre situações concretas e da relação dialógica entre
educador e educando.
Os professores, sujeitos da investigação, conhecem a teoria de Paulo Freire e tentam aplicá-la, perseguem o resgate
da história de vida do aluno, vão além das lições. A preocupação com as dificuldades dos alunos que permaneciam sentados
durante algumas horas da noite, após um dia de trabalho, é transformada em diálogos enriquecedores. Para Freire, não há
aprendizagem sem o uso da criticidade.
Em inúmeras situações ficou visível o tratamento dos alunos pelos professores como sujeitos de sua aprendizagem.
O material didático consubstanciado no Caderno do Educador serve de apoio, mas não é seguido à risca, a não ser nos seus
princípios. As necessidades dos alunos são discutidas nas reuniões pedagógicas.
A escola disponibiliza materiais para a ação docente e, quando não existem, os professores usam criativamente
outros materiais. O compromisso e interesse pela aprendizagem dos alunos concretos da classe são evidentes. Sempre que

383
não há este interesse, o trabalho fica sem significado para o educador e educando, que acaba abandonando a escola. Daí a
importância do aproveitamento dos saberes, experiências e conhecimentos do educando na sala de aula.
Os professores mostram conhecer a importância e significado do Projeto Pedagógico da Escola e da participação na
sua construção e execução. O exame dos documentos evidencia que construíram o Plano do Curso Supletivo e os Planos de
ensino articulados com o projeto e entre si.

A PRÁTICA DOCENTE NA ESCOLA 2.


As classes da EJA desta escola atendem jovens que pararam de estudar na época adequada, adultos que não tiveram
oportunidade de estudar e alunos acima de 15 anos, com deficiência. Os alunos apresentam diferentes níveis de alfabetização,
constituem uma classe heterogênea e não são identificados facilmente como alfabetizados ou não. Alguns demonstram
alegria e satisfação por voltar a estudar e aprender algo novo, como o uso do computador pela primeira vez. Isso é mais
evidente naqueles que nunca haviam estudado antes. Muitos voltam a estudar pelo prazer de aprender e não para conseguir
um emprego melhor. Muitos exercem profissões que não exigem um grau elevado de conhecimento, como pedreiros,
costureiras, domésticas e auxiliares de limpeza. Querem prosseguir os estudos, o que julgam possível nos cursos para adultos
que a escola oferece.
Os professores do ciclo I, o qual corresponde à 1ª e 2ª séries do Ensino Fundamental, consideradas as mais difíceis
para alfabetizar, partem de palavras sem significado para o aluno, com a única preocupação do uso sonoro das letras e grafia,
iniciando do que decidem ser mais fácil para o mais difícil, ou seja, das vogais para as consoantes, silabas até chegar às
palavras.
A postura dos professores na sua ação docente estaria coerente com a concepção da educação como ato político?
Para tal deveria articular o ensino com o contexto da sociedade. De acordo com Freire (1997), o educador é um componente
de um grupo de intelectuais responsáveis pela conscientização do povo. O alfabetizador deve ser o pesquisador que busca e
utiliza os dados da realidade do aluno para transformá-los em conteúdos propiciadores da leitura do mundo, que precede a
leitura da palavra. Tal processo ocorre com o diálogo educador/educando e o ajuda a organizar reflexivamente o pensamento
e a construir uma consciência crítica.
O Caderno do Educador do Município (2002) propõe trabalhar com eixos temáticos: Nosso Educando, Nossa
Cidade, O Desenvolvimento de Nossa Cidade e Nosso Trabalho, com conteúdos decorrentes elaborados pelos professores de
cada classe. Tanto o Caderno do Educador quanto o do Educando não se assemelham às cartilhas, não trazem atividades
prontas. De acordo com Pinto, o método de alfabetização de adultos não pode ser imposto ao aluno, e sim criado por ele no
convívio do trabalho com o educador ( 1993, p. 87).
Nas classes da EJA do ciclo II, 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental, os textos são transcritos na lousa, copiados e
respondidos pelos alunos sem nenhuma reflexão. A preocupação docente é com a ortografia das palavras. As relações entre
professor e aluno são mecânicas e a alfabetização tem abordagem estritamente técnica, esvaziada de consciência crítica,
diálogo e significado.
Já para Freire, alfabetização implica não uma memorização visual e mecânica de sentenças, de palavras, de sílabas,
desgarradas de um universo existencial - coisas mortas ou semimortas - mas uma atitude de criação e recriação (1980,
p.111). A educação de adultos deveria discutir a realidade nacional e suas dificuldades, possibilitar o despertar para a
responsabilidade social e política (IBIDEM, p. 88).
Para Pinto, a escolha do método de alfabetização de adultos é mais difícil do que para a educação infantil, pois
trata-se de pessoas dotadas de consciência, mesmo que, quase sempre, ingênua, devendo ser provocativo do desejo do aluno
de instruir-se e de alfabetizar-se, o que só é possível, se simultaneamente despertar nele a consciência crítica de sua
realidade total como ser humano, fazendo-o compreender o mundo onde vive, seu país,_ com as peculiaridades da etapa
histórica na qual se encontra,_ sua região, despertar nele a noção clara de sua participação na sociedade pelo trabalho que
executa, dos direitos que possui e dos deveres para com seus iguais( IBIDEM, p.86).
Nesta escola, falta articulação com os princípios da política educacional para a EJA do município e não se
percebem indícios de aproveitamento do conhecimento e experiências trazidas pelo aluno, como propõem Freire e Pinto.
O trabalho revela ausência total de diálogo entre educador e educando, que, para Freire e Pinto, é fundamental no
processo de alfabetização de jovens e adultos. Embora não saibam ler nem escrever, não são desconhecedores absolutos.
Ignorar que têm um saber acumulado, diferente do saber escolar, é desconsiderar a sua situação de adulto, é tratá-lo como
criança e direcionar a prática docente a partir de uma consciência ingênua.
Os professores não tratam o jovem e o adulto como sujeitos. Para Ferreiro, os homens, desde que nascem, são
construtores do conhecimento. Para compreender o mundo fazem questionamentos, colocam indagações, problemas,
refletem, buscam respostas. Dessa forma vão se construindo, como afirma Freire, como sujeitos da história, que ativamente
intervêm na cultura, política e economia. Para Pinto, o homem é sempre sujeito da educação e não objeto e não pode ser
considerado pelo educador como um ser que não pensa. O adulto traz e produz idéias, é freqüentemente dotado de alta
capacidade intelectual, que se revela espontaneamente em sua conversação, em sua crítica aos fatos, em sua literatura oral
(IBIDEM, p. 83).
O Caderno do Educador não é utilizado pelos professores desta escola, embora contenha textos problematizadores,
os quais poderiam estimular reflexões e discussões muito enriquecedoras para o aluno jovem e adulto.

384
Quanto à proposta pedagógica da escola, os professores, no início do ano, fazem uma discussão sobre o plano anual
e enviam para a secretaria. Não se percebe um trabalho de construção coletiva do projeto pedagógico, o qual, além de
expressão, deveria ser instrumento de crescimento da autonomia da escola e tornaria viável uma gestão democrática,
facilitadora do diálogo, da participação e compromisso. A prática docente não mostra articulação entre projeto pedagógico,
plano de curso e plano da escola. Tudo indica que a política educacional do município para a EJA é desconhecida pelos
professores, os quais não conseguem expressar sua linha norteadora.

Considerações Finais
Este projeto de pesquisa surgiu em um momento de intenso movimento de volta à sala de aula. Todos que não
tiveram oportunidade para estudar na idade apropriada ou por qualquer motivo abandonaram a escola estão sendo
estimulados a voltar. A população procura concluir a educação básica em diferentes instituições. Em parte isso se deve ao
concorrido mercado de trabalho e à percepção maior de que a educação torna os sujeitos mais conscientes de sua cidadania e
de sua responsabilidade para com os destinos do país. A permanência do aluno na escola é outro desafio que, para ser
vencido, depende em grande parte da prática docente na sala de aula.
A implantação de qualquer processo de mudança exige conhecimento da proposta, disponibilidade e competência.
Comenta SACRISTAN:
La realidad educativa es lo suficientemente compleja para no ser controlable de forma precisa con mecanismos de
intervención sobre ella. Enfrentar-se al problema del cambio en educación sin considerar este supuesto es pecar de
ingenuidad o tener una perspectiva equivocada sobre los sistemas sociales(1998, p.91).
A formação e a prática docente dos professores da EJA foram analisadas, considerando a proposta política do
município. Constatou-se que há oferta de uma formação permanente para os docentes, espaços organizacionais para trocas e
estudos e planejamento do trabalho, materiais didáticos para um ensino de qualidade para jovens e adultos. Esta política
prioriza a criação em oposição à transmissão mecânica e reprodução do saber. Enfatiza que por meio do diálogo é possível
articular e planejar a ação docente, que se respeitem os saberes do educador e do educando e se trate o aluno como sujeito
para não só aprender a ler e escrever, mas construir-se como cidadão.
O município se empenha em contribuir para a diminuição da exclusão social causada pelo analfabetismo com sua
política norteada para o atendimento do direito subjetivo, constitucional, de acesso ao ensino publico obrigatório e gratuito
para todos. Todavia, não se pode negar a distância entre a proposta e a ação docente em sala de aula.
Na escola 1 há indícios de que se deseja a mudança, porém, esta só ocorrerá, se houver continuidade do esforço,
para superar o medo e agir coerentemente com a proposta política para a EJA Os docentes mostram proximidade com uma
consciência crítica, com a concepção da educação como ato político, com o uso pedagógico do diálogo, com o tratamento do
aluno como sujeito e com o compromisso com a aprendizagem dos alunos da classe com as quais trabalham, planejam para
estes educandos e não para estudantes idealizados, porém, enfrentam dificuldades inerentes ao processo de mudança:
cultura enraizada de consideração errônea do adulto como ignorante, ser menor, não ser pensante, com capacidade para
aprender e superar a sua pseudo-ignorância. Com a continuidade do esforço poderão concluir a implantação da política
educacional para a EJA, desde que as circunstâncias internas e externas sejam favoráveis.
Na escola 2, ocorre grande contradição com a política educacional do município. Há indícios de que a conduta
docente é norteada por uma consciência ingênua, apego a uma concepção de ensino e de alfabetização fundamentada em
condutas tradicionais desligadas do contexto social do aluno, metodologias de trabalho para alunos imaginários,
descompromisso com uma ação docente voltada para um ensino com qualidade, crítico e criativo, contextualizado e situado
historicamente. As críticas às condições de trabalho não podem ser ignoradas, conduto, mostram os docentes, alienação,
utilização inadequada do tempo com o aluno e apego a práticas reprodutoras contribuindo para a permanência da
marginalização e exclusão social dos educandos da EJA.
A análise aponta que não há correlação entre a política pública para alfabetização e a prática docente, apesar de sua
intencionalidade para a melhoria do processo de alfabetização de jovens e adultos. A escola 1 exige a continuidade da ação
docente e a escola 2, uma mudança radical para aproximar a ação docente na sala de aula da intencionalidade política. Alguns
professores, apesar das condições favoráveis de trabalho, propiciadas pelo município, ainda relutam em implantar as
Diretrizes da Política Educacional da EJA, para estes ainda se faz necessário, estimular o compromisso com a escola e
alunos.
Ficou evidente a importância da prática docente no processo de implantação de mudança e da sua influência na
implantação ou desvio de uma política educacional, por mais bem intencionada que seja.
Uma concepção de currículo comprometida com uma população excluída dos bens econômicos, sociais e culturais,
defendida pela instância decisória de uma política educacional, alinhada às leis maiores de um país não foi suficiente para
mudar idéias e procedimentos de um grupo de professores. O descompromisso destes professores conduziu-os a um exercício
docente incapaz de provocar alguma transformação no processo educativo. Anulou os princípios da política educacional da
EJA com a sua prática. Tornou o ensino inócuo, improdutivo para o aluno, alijando-o do seu direito de acesso aos bens que
sempre lhes foram negados, reforçando a sua exclusão social e escolar e contribuindo para cristalizar a sua condição
marginal.

385
Todo processo de mudança é lento e o município também inclui professores que mostram uma ação docente
comprometida com a EJA, os quais, mesmo que em pequeno número poderão ser multiplicadores de uma ação
transformadora. O sucesso dos alunos será um argumento forte para provocar mudanças de atitudes e posturas naqueles
educadores conservadores.
Quanto ao Poder Público, há que se reconhecer que propõe e procura desenvolver uma política adequada, calcada
em excelentes e sólidos fundamentos, dialógica, aberta, servindo de exemplo para outros municípios.

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O regresso à escola e o (re)posicionamento social: dois estudos de caso

Carlos Badalo
Escola Secundária Anselmo de Andrade
carlosbadalo@yahoo.com.br

Margarida César
Universidade de Lisboa, Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências
macesar@fc.ul.pt

Resumo: A sociedade portuguesa acompanha mudanças visíveis noutros países, apostando na formação ao longo da vida e na qualificação
escolar e profissional. Numa sociedade dita do conhecimento, o não acesso a uma qualificação pode fomentar diversas formas de exclusão. A
educação de adultos, em Portugal, poderá desempenhar um papel relevante na (re)construção da sociedade e na (re)valorização dos
indivíduos que frequentam o sistema de ensino recorrente por módulos capitalizáveis. A escola deixou de ser apenas um espaço da
aprendizagem para passar a ser um espaço de partilha, de reflexão crítica e de socialização.
Este trabalho faz parte de uma investigação mais abrangente, no âmbito do projecto Interacção e Conhecimento, em que
procurámos dar voz aos estudantes sobre o sistema de ensino recorrente que frequentavam. Procurámos, também, conhecer as dificuldades e
motivações na origem do seu regresso à escola e como este contribuiu para o seu reposicionamento social. Assumindo uma abordagem

386
interpretativa, de inspiração etnográfica, realizámos dois estudos de caso, a dois alunos do ensino recorrente nocturno. Os instrumentos de
recolha de dados foram tarefas de inspiração projectiva, entrevista, questionários, conversas informais. O estudo incluiu um follow up.
Os resultados iluminam que ambos justificam o regresso à escola pelo desejo de seguirem estudos superiores e serem socialmente
reconhecidos e valorizados pelos pares. Este regresso, na idade adulta, é assumido como um passo relevante para a (re)construção pessoal e
social. Também salientam a relevância das práticas e relações interpressoais para o prosseguimento de estudos que exigem muito empenho e
que ultrapassem diversas barreiras.
Palavras-chave: Educação, sociedade, educação de adultos, reconstrução social, qualificação

Introdução
Os desafios que se apresentam no início do segundo milénio são comparáveis com os resultantes da revolução
industrial, em termos de importância e das consequências que podem trazer para o mundo. Estes são apontados como
barreiras – mas também um conjunto de potencialidades - a que a Europa tem de saber enfrentar. A tecnologia digital, que
transforma a vida humana e que exige uma actualização de conhecimentos, assim como os avanços efectuados a nível da
biotecnologia, que abrem os horizontes dos homens e da humanidade, são aspectos que merecem ser ponderados e analisados
por todos os indivíduos. Deste modo, os indivíduos, enquanto elementos essenciais da sociedade do conhecimento, muitas
vezes marcados pelas disparidades que afectam a sociedade em termos das qualificações suficientes para se manterem activas
no mercado de trabalho, devem estar abertos à mudança, procurando meios de actualizar os conhecimentos. A melhor forma
de acompanhar esta mudança é a aprendizagem ao longo da vida (Badalo, 2006; Courela, 2007). Entendida como educação
formal, não formal e informal, a aprendizagem ao longo da vida apresenta-se como um modo de aproximação entre os
indivíduos e a própria sociedade em que (co)habitam, Aprender é, hoje, cada vez mais, uma necessidade e uma imposição.
Uma imposição que resulta da própria conjectura social e profissional que, cada vez mais, obriga os indivíduos a
acompanharem as evoluções técnicas e tecnológicas mais prementes. Uma necessidade porque a vida e a inclusão em
sociedade envolvem uma actualização de conhecimentos teóricos e práticos que, sendo quotidianos e nem sempre
disponíveis, precisam de poder ser mobilizados quando os desafios sociais impelem a tomada de posição, enquanto cidadãos
participativos.
Neste âmbito, regressar à Escola não se reduz ao domínio estrito do indivíduo que, por iniciativa própria ou
interposta, opta por se actualizar cientificamente, mas pode alargar-se, também, a toda uma comunidade escolar que interage
e, ao interagir, constrói com estes (inter)relações sociais. O regresso à Escola, no ensino secundário recorrente por unidades
capitalizáveis (SEUC) ou por módulos capitalizáveis (SEMC) envolve o contacto com novos rostos, com novos modos de
ser, de estar, de compreender e de interpretar o mundo. Este contacto, seja ele entre estudantes e/ou entre estudantes e
professores, vem permitir lançar renovados olhares sobre o mundo, perspectivando-o a partir de lugares ainda não explorados
e que vêm revelar o que, o olhar habituado, não permite: ver de novo e com mais pormenor o que se vê todos os dias. Neste
contexto, consideramos que será tarefa da escola permitir esta abertura de horizontes, sendo para isso necessário derrubar
muros e árvores que, com a experiência (preconceito) de vida se foram levantando e que nos impedem de ver mais além.
Mais do que um simples reconhecimento de competências que, por vezes, pouco acrescenta aos conhecimentos que já se
apropriaram e que raramente permite desenvolver as competências que nos permitiriam ver o que está para além do óbvio,
importa levantar problemas, questionar, investigar, discutir, debater, perseguindo um conhecimento mais pormenorizado do
mundo e de cada um de nós, da sociedade e das regras sociais com que (com)vivemos.
A dimensão social do regresso à escola não poderá ser descurada. A UNESCO (1949, 1960, 1975, 1986 1997) há
longos anos que vem defendendo a importância do incremento da educação de adultos para permitir a renovação e
transformação da sociedade. Uma sociedade que se quer mais equitativa, com indivíduos iluminados e capazes de
interpretarem as mensagens políticas e sociais quotidianas, indo para além das aparências, analisando-as com a profundidade
que faz com que, não apenas os indivíduos possam ter novas perspectivas, mas que também possam, partindo destas,
contribuir para a sua evolução social, política e cultural.
Corroborando a importância do investimento numa educação e formação ao longo da vida, a União Europeia (UE,
2000b, 2001, 2002, 2007, 2008) tem, nesta última década, apelado para que os Estados-Membros invistam mais fortemente
na aprendizagem ao longo da vida dos cidadãos, tornando possível que esta aprendizagem chegue a todos os indivíduos e a
todos os lugares. Além disso, ao reconhecer que os cidadãos são o melhor recurso de que a União Europeia (UE, 2000a)
dispõe para enfrentar os desafios do novo milénio, esta organização destaca a importância que estes têm para se assegurar o
alcance dos objectivos que norteiam a política económica e social da UE. Assim, apela-se aos Estados-Membros que os
cidadãos, nomeadamente os que se encontram em idade activa, possam desenvolver as competências necessárias que
favoreçam o acesso a novos empregos. Só deste modo a Europa poderá responder aos desafios da globalização e garantir a
coesão social tão necessária para a vida democrática e em comunidade (UE, 2007, 2008).

Quadro de referência teórico


Na Conferência da UNESCO, de 1949, assiste-se ao reconhecimento de que a aprendizagem é um processo
progressivo, que acompanha toda a vida dos indivíduos. Esta noção de educação permanente abriu um novo horizonte não
apenas no que refere à educação, realçando que a educação não se limita à escolarização inicial e que contribui, de modo

387
impar, para fomentar a socialização, bem como a troca de conhecimentos e de experiências de vida entre os indivíduos
(Rodrigues & Nóvoa, 2005). A educação de adultos é também um modo de socialização e proporciona, no caso dos sistemas
de ensino secundário recorrente, uma proximidade entre os indivíduos, favorecendo as relações horizontais e verticais entre
os agentes educativos que participam no processo educativo recorrente de adultos.
As recomendações da UNESCO, resultantes das conferências de 1960, 1972, 1985 e 1997, apontam para uma
educação de adultos direccionada para a formação de adultos democráticos e pacíficos, que considerem os outros indivíduos
como seres semelhantes a si mesmos, com iguais direitos e deveres. A educação de adultos promovida pelas declarações
resultantes das conferências da UNESCO, de 1949 e 1960, realizadas em cenário de pós-guerra, sublinharam, de uma forma
particular, a importância da vida pacífica em comunidade, assim como a necessidade de se “(…) criar uma atmosfera de
curiosidade intelectual, de liberdade social e de tolerância, e estimular em cada pessoa a necessidade e possibilidade de tomar
parte activa no desenvolvimento da vida cultural do seu tempo” (UNESCO, 1949, p. 17).
No mundo actual, repleto de desafios e de inovações, a vida em comunidade afigura-se como indispensável para a
educação dos adultos. A invasão das sociedades pelas novas tecnologias da informação e da comunicação exige uma reflexão
acerca dos valores que vão sendo suplantados por uma visão mais individualista da sociedade. Daí ser necessário reconhecer
que a educação, de um modo geral, e a educação de adultos, de uma forma particular, poderão desempenhar um papel muito
relevante na (re)construção de uma sociedade onde imperem as relações e interacções sociais (Conselho da Europa, 1993,
Delors, 1986).
Como é sublinhado no Relatório do Conselho da Europa (1993) sobre a educação de adultos, “(…) para os adultos,
a educação continua a ser um dos instrumentos privilegiados, por meio dos quais as sociedades e os cidadãos podem
estimular, dirigir e controlar as mutações estruturais dos modos de regulação económica, política e social dessas sociedades”
(p. 14). Ao educar um adulto, prepara-se o seu futuro, assim como o futuro da própria sociedade na qual participa. A
educação de adultos é também uma educação socializadora, porque permite que os adultos se actualizem em termos de
conhecimentos e competências, podendo actuar, democraticamente, enquanto indivíduos activos e esclarecidos.
A frequência do ensino recorrente, de nível secundário, torna possível aos alunos uma (re)entrada num grupo de
indivíduos com interesses e necessidades distintas e que se cruzam num mesmo espaço/tempo de aprendizagem. A partilha
deste espaço/tempo impele os indivíduos a viverem juntos e a procurarem, nessa vivência, aprofundar as suas relações sociais
(Comte-Sponville & Ferry, 2000; Delors, 1996). Nesta micro-comunidade, a possibilidade de se estabelecerem relações entre
colegas e com os professores proporciona o confronto de posições e a comunhão de saberes apropriados pela experiência de
vida. Quem partilha os conhecimentos apropriados partilha a sua própria vida e disponibiliza-se a aceitar os outros tal como
eles são.
Em Portugal, o percurso da educação de adultos em pouco tem seguido as orientações e recomendações imanadas
da UNESCO. O analfabetismo, tão sublinhado pela UNESCO como um aspecto a combater com seriedade, foi, durante todo
o período histórico e repressor do Estado Novo, um aliado do poder político, pois não convinha a um governo opressor que
os adultos fossem (muito) escolarizados. Antes pelo contrário, quanto menos conhecimentos, mais possibilidades tinha o
regime político de oprimir os cidadãos. Deste modo, o país permanecia fechado em si e sobre si mesmo, impedindo que as
recomendações da UNESCO (1949, 1960, 1965, 1972) tivessem eco em Portugal, contribuindo para o desenvolvimento da
educação de adultos nacional.
Após o 25 de Abril de 1974, as políticas educativas propostas pela UNESCO começam, progressivamente, a ser
mais significativas no domínio educativo nacional. Em 1985, com a participação de Portugal na Conferência de Paris,
iniciou-se a aproximação entre a educação de adultos nacional e as orientações e recomendações emanadas pela ONU. Um
aspecto que revela a preocupação de Portugal em acompanhar a evolução das políticas educativas internacionais é a
constituição de um Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento da Educação de Adultos, que surgiu na sequência da
Conferência de Hamburgo (1997) e levou à criação de um Documento Estratégico, aprovado na generalidade e adoptado pelo
Ministério da Educação e pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social. Deste Documento Estratégico surge, com a
Resolução do Conselho de Ministros nº 92/98, de 14 de Julho, a formação do Grupo de Missão para o Desenvolvimento da
Educação e Formação de Adultos, a quem ficou confiada a criação a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos
(ANEFA). Para Alberto Melo, o coordenador deste grupo de trabalho, a criação deste grupo denota a vontade política de
posicionar Portugal no caminho das sociedades do conhecimento e de seguir as orientações das políticas educativas da
UNESCO (UNESCO, 1997, preâmbulo da tradução portuguesa).
Antes da implementação do ensino recorrente em Portugal, em meados da década de 90, o ensino nocturno era
preenchido com os cursos gerais e complementares, que vigoraram entre 1976 e 1992. Com a reforma educativa de 1983
estes cursos passaram a funcionar apenas em regime nocturno, tendo sido substituídos, no ensino diurno, pelos cursos
profissionais e técnico-profissionais, que surgiam como a alternativa ao ensino unificado. Em regime nocturno, o ensino
liceal continuou a ser administrado, possibilitando aos alunos trabalhadores-estudantes a possibilidade de ingressar no ensino
superior (Nogueira, 1996).
Esta reforma educativa contribuiu para um aumento do número de alunos inscritos em regime nocturno, aumento
esse que se observou com mais intensidade nos anos lectivos de 1989/90 e 1990/91. Apesar de tudo, a maior procura, no
ensino nocturno, dos cursos gerais e dos cursos complementares não se traduziu na esperada conclusão de estudos por parte
de todos os inscritos, não indo além de 20% o número de alunos que concluía com êxito estes cursos (Grácio, 1981, 1986). O
abandono escolar foi, neste sentido, apontado como uma das causas para a discrepância existente entre o número alunos

388
inscritos e os que realmente concluíam os estudos. Daí até se constatar ser necessário uma reformulação deste sistema de
ensino foi um pequeno passo.
O Despacho Conjunto nº 35/SEEBS/SERE/92, de 22 de Julho, enunciava a necessidade de uma mudança de
sistema no ensino nocturno, que apresentasse uma alternativa ao modelo de ensino vigente. O modelo em vigor em pouco
havia alterado o ensino de adultos em Portugal e não contemplava as mudanças sociais e profissionais a que os alunos adultos
estavam sujeitos. Face à sociedade portuguesa da época, às suas necessidades educativas e formativas, era necessário
implementar um sistema de ensino que fosse adequado ao país, bem como aos contextos social, profissional e cultural, que
fosse devidamente adaptado aos interesses, características e necessidades dos indivíduos que procuram no ensino nocturno
uma forma de valorização pessoal e profissional (Lima, Melo, Estêvão & Mendonça, 1988).
O sistema de ensino por unidades capitalizáveis (SEUC) apresenta-se, na década de 80, como a alternativa esperada
aos cursos gerais e complementares nocturnos. O SEUC é constituído como um sistema de ensino recorrente, aberto a todos
os alunos adultos que procurassem a continuidade dos estudos. Contudo, este, que se esperava ser o sistema de ensino que
traria um novo vigor à educação de adultos, em Portugal, acabou por se manifestar negativamente no que se refere ao número
de estudantes que conseguiam completar o curso a que se proponham.
O Relatório de Avaliação do Ensino Recorrente, realizado em 1998, sob a égide da Secretaria de Estado da
Educação e Inovação (Despacho nº 5017/98, de 3 de Março), tornou visível a existência de um sistema de ensino
economicamente muito dispendioso, com elevadas taxas de abandono, bem como reduzidas taxas de assiduidade e de sucesso
académico. Deste modo, o panorama, depois de uma década e meia de ensino recorrente por unidades capitalizáveis, era
desastroso. No Despacho Normativo nº 36/99, de 22 de Julho de 1999, o governo assume que “(…) os resultados da
avaliação do ensino recorrente por unidades capitalizáveis apontam para a necessidade de serem introduzidas alterações à
organização pedagógica e administrativa desta modalidade de educação, destinadas, por um lado, a criar condições para um
elevado nível de sucesso a todos os que a procuram e garantir a sua plena integração nas dinâmicas da escola e, por outro
lado, a sustentar, a médio prazo, a reestruturação das ofertas educativas e formativas de segunda oportunidade” (ME, 1999, p.
1).
As alterações e ajustamentos, a nível pedagógico e administrativo, sugeridos pelo grupo que realizou a avaliação do
ensino recorrente nacional foram formalmente apresentadas no Despacho Normativo nº 36/99, de 22 de Julho de 1999. No
entanto, estas alterações não dispensam uma reestruturação mais profunda do ensino secundário recorrente. Apesar das
alterações promulgadas pelo referido despacho, os resultados continuaram negativos, o que tornou cada vez mais clara a
necessidade de uma mudança (urgente) no sistema de ensino recorrente, em Portugal.
Ao abrigo do Decreto-Lei nº 74/2004, de 26 de Março, é promulgada a Portaria nº 550-E/2004, de 21 de Maio, que
vem instituir o novo sistema de ensino por módulos capitalizáveis (SEMC) e criar diversos cursos do ensino recorrente a
nível do ensino secundário, aprovando também os respectivos planos de estudos de cada curso. Esta portaria vem, ainda,
aprovar o regime de organização administrativa e pedagógica e de avaliação aplicável aos cursos disponíveis: os cursos
científico-humanísticos; os cursos tecnológicos e os cursos artísticos especializados. Deste modo, a Portaria nº 550-E/2004,
de 21 de Maio, vem estabelecer que um dos objectivos a alcançar, por meio deste sistema de ensino, se prende com a
necessidade dos indivíduos procurarem o seu desenvolvimento integral, podendo para isso recorrerem ao SEMC como forma
de “(…) desenvolver as suas competências no sentido de melhorar as suas qualificações culturais, técnicas, profissionais e
pessoais, de forma a tornarem-se participantes activos no desenvolvimento social, económico e cultural da comunidade onde
estão inseridos” (ME, 2004b, p. 3254).
Num mundo em rápida modificação, cada indivíduo é chamado a assumir diversos papéis sociais, culturais e
profissionais, de acordo com o seu escalão etário e grupos sócio-culturais em que participa. O ensino recorrente por módulos
capitalizáveis é apresentado como um processo escolarizado, que permite aos indivíduos que necessitam de formação
secundária alcançarem a certificação necessária para o desempenho profissional, assim como um modo de desenvolver
competências que lhes permitirão aumentarem e aprofundarem as qualificações pessoais, sociais e culturais. Segundo a
UNESCO (1949, 1960, 1972, 1985, 1997), um indivíduo consciente das suas limitações e que procure, por meio do ensino
recorrente, apropriar-se de novos conhecimentos técnicos e profissionais, poderá acompanhar as permanentes inovações
técnicas e tecnológicas que ocorrem actualmente.
O desenvolvimento social, cultural e económico de uma comunidade ou, de forma mais abrangente, de um país,
depende da capacidade de resposta que os indivíduos que constituem essa comunidade (e esse país) conseguirem dar às
constantes solicitações no que refere à inovação tecnológica e à evolução da cultura e da sociedade. Assim, uma das
finalidades do SEMC consiste em dar uma resposta adequada de formação, em contexto escolar, aos indivíduos que, em
idade própria, não usufruíram da formação escolar, ou para os que, por qualquer impedimento, não a completaram. A criação
dos cursos científico-humanísticos, tecnológicos e artísticos especializados pretende colmatar as necessidades humanas,
técnicas e artísticas, que afectam a sociedade portuguesa e a impedem de ser internacionalmente mais competitiva.
Os princípios orientadores deste sistema de ensino secundário recorrente por módulos capitalizáveis são: (a)
Conceber um modelo de ensino integrado no sistema de educação e formação de adultos, que possibilite aos alunos, obter a
formação que necessitam e, por outro, conciliar a frequência dos estudos com as obrigações pessoais e profissionais inerentes
ao aluno adulto; (b) Procurar definir um modelo de avaliação que torne possível a articulação entre a avaliação contínua e a
capitalização de módulos de aprendizagem; (c) Adequar os currículos à especificidade da educação de adultos, de modo a
saírem valorizados, quer as competências quer os conteúdos curriculares; (d) Possibilitar, através das diferentes modalidades

389
de frequência, presencial e não presencial, que os seus frequentadores possam ver respeitados os diferentes ritmos e
condições de aprendizagem; e (e) Aplicar uma dupla certificação de conclusão de curso secundário, consoante o aluno
prossiga, ou não, para os estudos de nível superior (ME, 2004). Estas disposições/finalidades visam uma Escola onde os
indivíduos adultos encontram uma forma de se actualizarem científica e tecnologicamente. Escola essa que lhes possibilita
uma avaliação contínua, realizada em contexto de turma (no caso da opção pelo regime presencial), que torna possível a
capitalização dos módulos e que permite a aprovação final. Além disto, é relevante a preocupação do SEMC em adequar os
programas curriculares às especificidades dos alunos, de modo a terminar com o desfasamento entre os conceitos e
problemáticas trabalhados e os interesses, necessidades e características dos alunos.
No entanto, e apesar dos objectivos e finalidades enunciadas na Portaria nº 550-E/2004, de 21 de Maio,
continuamos a ter, nas escolas, programas do ensino recorrente nocturno iguais aos do ensino regular diurno, apenas
fragmentados em módulos de aprendizagem, o que revela não apenas a pouca exequibilidade das leis, que parecem não
passar de intenções, não se tendo em consideração, ao nível dos currículos e das práticas, que os operacionalizam, que os
públicos alvo dos diferentes sistemas, diurno e nocturno, são distintos nas ambições, necessidades e características. Para
agravar a situação, e sem qualquer avaliação anterior, observamos um incremento da participação dos estudantes no sistema
de Reconhecimento Validação e Certificação de Competências (RVCC) que, por se tratar do reconhecimento de
competências já apropriadas pelos estudantes, nem sempre lhes confere os conhecimentos e competências que lhes permitem
um enquadramento mais facilitado na vida social e profissional.
No ensino recorrente, em Portugal, teimamos em substituir sistemas por outros sistemas, sem formas sérias e
aprofundadas de avaliação desses mesmos sistemas de ensino. Sem uma análise prévia do que correu bem e menos bem no
domínio da educação de adultos, dificilmente poderemos conceber e implementar um sistema de ensino que consiga cativar
os estudantes para as aprendizagens e contribua para o seu desenvolvimento integral.

Metodologia
Cohen, Manion e Morrison (2000), a nível internacional, e Ponte (1994), a nível nacional, assumem que um estudo
de caso, quando aplicado convenientemente, possibilita um conhecimento pormenorizado e actual do fenómeno empírico ao
qual é aplicado. Ponte (1994) afirma que um estudo de caso “(…) é uma investigação (...) particularística, isto é, que se
debruça deliberadamente sobre uma situação específica que se supõe ser única em muitos aspectos, procurando descobrir o
que há nela de mais essencial e característico (p. 3). Nesta perspectiva, os estudos de caso caracterizam-se pela
particularidade do fenómeno que se pretende compreender, assim como pelo detalhe com que é possível compreendê-lo
(Bogdan & Biklen, 1994; Cohen et al., 2000; Merriam, 1988; Yin, 1990).
No estudo de caso, o investigador assume um papel relevante no desenrolar dos trabalhos, “(…) não havendo nada
que substitua a sua perspicácia observadora, bem como a riqueza e pertinência das suas perspectivas de análise” (Ponte,
1994, p. 15). Para Merriam (1988), os estudos de caso apresentam-se como sendo descrições intensivas e holísticas de um
determinado fenómeno, que contemplam aspectos como as experiências, as vivências, os valores, muitos deles iluminados
pelos relatos dos participantes e pela observação das suas formas de actuação e reacção (Oliveira, 2006). As observações e as
descrições que o investigador desenvolve vão tornar possível que o caso em estudo deixe de ser apenas do conhecimento do
investigador para ser, também, posteriormente, do conhecimento do leitor (Stake, 1994).
De um modo geral, os estudos de caso e, particularmente, os estudos de caso múltiplos (Bogdan & Biklen, 1994),
proporcionam resultados que tornam possível o confronto entre casos. Para que este confronto seja possível, optámos por
realizar dois estudos de caso, sendo ambos referentes a estudantes que frequentaram o SEMC. Neste estudo, por tratarmos
dados de dois participantes, é-nos possível confrontar as suas posições. Assim, torna-se possível a análise comparativa de
situações, perspectivas e posições dos participantes no estudo, contribuindo para uma abordagem mais ampla e diversificada
dos fenómenos (Bogdan & Biklen, 1994).
Este trabalho faz parte de uma investigação mais abrangente, realizada no âmbito do projecto Interacção e
Conhecimento, em que procurámos dar voz a quatro estudantes sobre o sistema de ensino recorrente que frequentavam
(SEUC e SEMC). Neste sentido e assumindo uma abordagem interpretativa, de inspiração etnográfica. Nesta comunicação
apresentamos os dois estudos de caso realizados a dois alunos do ensino secundário recorrente nocturno (SEMC).
Assumimos como objectivo apresentarmos a perspectiva destes estudantes adultos face ao modo como o sistema de ensino
recorrente que frequentaram (SEMC) influenciou, ou não, o seu (re)posicionamento social. Para isso seleccionámos um
estudante do género feminino, a Maria, e um estudante do género masculino, o Tiago. Ambos os nomes são fictícios de modo
a salvaguardarmos a identidade dos participantes no estudo. A primeira encontrava-se a frequentar o 10º ano do Curso
Tecnológico de Informática e o segundo do 11º ano do Curso de Ciências Sociais e Humanas. Constituímos cada um destes
participantes como um estudo de caso.
Os instrumentos de recolha de dados utilizados neste estudo foram duas tarefas de inspiração projectiva (TIP 1 e
TIP2), dois questionários (Q1, Q2), duas entrevistas (E1 e E2), conversas informais (CI), a observação participante (O) e
recolha documental (D). Tanto as conversas informais como os dados resultantes da observação foram registados sob a forma
de um diário de bordo (DB), escrito pelo investigador. Também as reflexões e sentimentos do investigador, face ao trabalho
que estava a ser desenvolvido, foram registados no diário de bordo. Os dados foram sujeitos a uma análise de conteúdo,

390
sistemática, aprofundada e sucessiva, de modo a fazer emergir categorias indutivas de análise (para mais detalhes, ver
Badalo, 2006; Courela, 2007).

Resultados
O caso da Maria
A Maria frequenta o 10º ano do Curso Tecnológico de Informática e vive na região da Grande Lisboa. O seu
regresso à Escola ocorreu no ano lectivo de 2005/2006, tendo sido pressionada (e, posteriormente, convencida) pelo marido,
que decidira regressar à Escola mas que não o queria fazer sozinho. A Maria, que abandonara a escola aos 16 anos,
regressava agora, 26 anos depois, quando completava 42 anos de idade, envolta numa ambição assumida e que se justifica,
em parte, no seu desejo (de sempre, mas reavivado ultimamente) de prosseguir estudos a nível superior.
No ensino regular atingiu o 2º ano do Curso Complementar porque, como o curso que pretendia seguir não existia
nos estabelecimentos de ensino da zona onde residia, os pais não autorizaram que se deslocasse para longe de casa para
prosseguir estudos. À semelhança dos dois participantes que deram origem aos dois casos que não abordamos nesta
comunicação e que frequentam o Sistema de Ensino por Unidades Capitalizáveis (SEUC), também a Maria é uma
trabalhadora estudante, que optou pelo regime presencial porque, segundo ela, só este lhe facilita a aprendizagem. A Maria
está inserida numa turma inicialmente constituída por 31 alunos, onde vem assumindo algum destaque, tanto a nível do
sucesso educativo, que tem vindo a atingir a todas as disciplinas, como também a nível de liderança e do respeito que vai
recolhendo da parte dos colegas.
A nível da carga horária escolar, esta participante tem 3 blocos de 90 minutos diários. A primeira aula inicia-se às
19 horas e o fim das actividades lectivas ocorre diariamente às 23 horas e 50 minutos. O seu currículo é composto pelas
disciplinas de Português, Francês Iniciação, Filosofia, Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), Matemática B,
Física e Química B, Tecnologia Informática, Bases de Programação e Aplicações Informáticas A. No seu total, a carga
horária lectiva semanal é de 15 aulas, de 90 minutos, em regime pós-laboral.
O regresso à Escola da Maria é, em simultâneo, um desafio e a consecução de um objectivo já delineado há longo
tempo. O desejo de regressar à Escola acompanha-a deste o momento em que a abandonou. Contudo, fazendo uso do espírito
crítico que a caracteriza, a Maria sublinha que o regresso à Escola tem sido difícil no que refere, de um modo particular, à
gestão do tempo disponível. Sendo, tal como o Tiago, trabalhadora estudante e com família constituída, a Maria sente que o
tempo de que dispõe para estudar, ou para estar com os seus amigos e familiares, é cada vez menor. Quando regressou à
Escola, a Maria acrescentou mais uma actividade à sua já densa vida profissional, pessoal e social. O marido ter ingressado
com ela no SEMC e serem colegas de escola, curso e turma, minimizou as dificuldades a nível familiar. Esta partilha familiar
de desafios e dificuldades ao regresso à Escola, na idade adulta, proporciona uma maior compreensão e aceitação por parte da
família da decisão de voltar à Escola. Este aspecto, que tem um impacte considerável no sucesso académico dos estudantes,
nem sempre se observa, havendo também alguns estudantes, a maioria do género feminino, que sentem uma forte pressão
proveniente do entorno familiar para que abandonem (novamente) a Escola.
Além da vida profissional, a Maria, partilha (com tantos outros alunos do ensino recorrente) a orientação de uma
casa e de uma família, tarefas que exigem tempo e dedicação. Quando lhe perguntamos o que é que mudou na sua vida desde
que regressou à Escola a Maria refere que “Tanta coisa, tanta coisa (…) a casa por arrumar (…), a roupa por passar a ferro,
(…) os projectos de vida, (…) basicamente são os mesmos, (…) mas também, agora, passam pela escola, e começo a ter, a
cortar em algumas coisas por causa da escola, já não posso ir de férias quando quero (…) está tudo condicionado agora à
escola (…), apesar de outros eu já não posso atrasar tanto como alguma formação no estrangeiro que tenha ou coisa assim,
mas estou sempre a tentar que seja fora do período de escola” (Maria, E1, pp. 26-27). Como podemos observar, além da vida
temporalmente muito preenchida com as actividades inerentes à sua profissão e à sua vida familiar, esta participante
reconhece que os seus projectos de vida começam a “passar pela escola” podendo esta vir a assumir um papel de destaque na
(re)orientação da sua vida pessoal e, possivelmente, também da sua vida profissional.
Um dos aspectos que leva esta participante a afirmar que “(…) eu sou a mulher dos sete ofícios” (Maria, E1, p. 13),
está relacionado com o ter uma vida politica e socialmente muito activa, que envolve muita dedicação e muito tempo
disponível. Deste modo, foge das rotinas, que abomina, preferindo enfrentar desafios e dificuldades, em vez de usufruir uma
vida pacata e mais tranquila, na qual persistiria a mágoa de não ter regressado à Escola.
Apesar da vida profissional e das diferentes actividades que desempenha, tem a mais valia de contar com o apoio
incondicional do marido que, segundo nos refere, mostra compreensão e aceitação face à vida ocupada que tem. Além da
escola, é frequente o marido da Maria acompanhá-la em muitas actividades e partilhar com ela o gosto pela diversidade de
tarefas sociais e culturais. Daí a Maria afirmar que a família está consigo. Esta constatação poderá ter uma dupla
interpretação. Por um lado, o marido acompanha-a quer no regresso à Escola quer nas outras actividades que desempenha;
por outro lado, porque se sente acompanhada e apoiada nas diversas tarefas que desempenha e nas quais está envolvida.
No final do primeiro período do ano lectivo que marcava o seu regresso a esta escola, procurámos saber qual o
primeiro balanço que fazia deste mesmo regresso. A Maria afirmou que “(…) até agora é uma experiência nova mas, muito
agradável (…) francamente positiva (…) agora tenho muita vontade de continuar” (Maria, E2, p. 1). Apesar de o balanço ser,
a priori, de um modo geral, positivo, isso não implica que o seu regresso à Escola tenha sido sempre repleto de facilidades.

391
No entanto, a força de vontade e o carisma, que caracterizam a Maria, ajudam-na a voltar a fazer, no final do ano lectivo, um
balanço positivo deste novo percurso escolar.
Apesar de trazer consigo muitas expectativas em relação às aprendizagens de que poderia vir a apropriar-se com o
regresso a esta escola, afirma que, por enquanto, apenas lhe trouxe a aprendizagem de alguns “(…) nomes específicos das
coisas, que nós no dia a dia em Informática usamos e sabemos que usamos e como usamos, mas não sabemos (…) o nome
correcto daquilo, foi a única coisa” (Maria, E1, p. 5). Assim, ao nível das aprendizagens escolares, nota-se alguma decepção,
por parte da Maria.
Quando procurámos saber se o regresso à Escola contribuiu para a sua valorização Pessoal e profissional, ou para o
seu (re)posicionamento, esta participante refere que, neste momento, não se sente socialmente mais valorizada por frequentar
o SEMC. Como ela relata, “Não sinto (…) que seja por isso que alguém me dê mais valor, apesar dos meus colegas inclusive
(…) acharam todos muito bem que eu viesse (…) mas ainda não, ou seja aquilo que eu aprendi, até hoje, ainda não foi uma
coisa que eu diga assim, foi uma mais valia para (…) mim em termos sociais, [ou] em termos laborais, por enquanto ainda
não, não quer dizer que não venha a ser” (Maria, E1, p. 26). Como podemos observar, a Maria sublinha que, até ao momento,
não sente que frequentar a Escola esteja a contribuir para a sua valorização social. Apesar do apoio da família mais directa,
bem como do apoio e incentivo dos colegas de trabalho, esta participante considera que, socialmente, a sua vida não tem
sofrido alterações significativas. Assim, se juntarmos o desapontamento quanto às aprendizagens que, até aqui, realizou, bem
como a inexistência de uma valorização social directa, podemos compreender a força de vontade necessária para permanecer
na Escola, bem como o papel fundamental que têm de desempenhar as ambições pessoais e a existência de um projecto de
vida futuro que inclua estudos que vão para além do ensino secundário. Deste modo, parece que são os próprios estudantes
quem têm de encontrar formas de ultrapassarem a desmotivação que poderia advir de um sistema de ensino e de práticas
pedagógicas que não se revelam muito adaptadas às suas características, interesses e necessidades.

O caso do Tiago
Tal como a Maria, o Tiago é outro dos participantes nesta investigação. Este aluno vive numa cidade dos arredores
de Lisboa e é trabalhador-estudante. Regressou à Escola no ano lectivo de 2002/2003, depois de um interregno de 23 anos.
No início, ingressou no SEUC, onde esteve durante dois anos, sem obter sucesso educativo, para depois passar para o SEMC.
No SEMC inscreveu-se no Curso de Ciências Sociais e Humanas, em regime presencial, porque assim poderia tirar as
dúvidas que tivesse com o docente da disciplina, o que parecia facilitar o acesso ao sucesso académico, segundo nos relatou
em diversas conversas informais e em entrevista (E1).
O Tiago, com 39 anos feitos em Fevereiro de 2006, apresenta-se-nos como um lutador inconformado, que sonha ser
sociólogo porque não se consegue ver envelhecer no emprego que tem. Aos 15 anos, por razões que se prendem com o
divórcio dos pais, viu-se forçado a abandonar a escola que frequentava, tendo apenas concluído o 8º ano de escolaridade no
sistema de ensino regular. No entanto, sempre acreditou que regressaria para realizar o seu sonho. A opção pelo regime
presencial é por si justificada com a maior facilidade em acompanhar as problemáticas que são trabalhadas nas aulas.
No ano lectivo de 2005/2006 esteve inserido numa turma de 12 alunos, até ao início do 2º período lectivo
(Fevereiro), momento em que abandonou novamente a escola. Durante o tempo que frequentou o 11º ano de escolaridade
tinha uma carga laboral de 8 horas diárias, uma carga horária lectiva semanal de 14 blocos, de 90 minutos cada, o que
equivale a 3 blocos de 90 minutos por dia, distribuída pelas disciplinas de Português, Inglês Continuação, Filosofia, História
A, Matemática Aplicada às Ciências Sociais e Geografia A.
Apesar de todas as adversidades que foram contribuindo para o adiamento sucessivo o seu regresso à Escola, o
desejo de regressar, para concluir o ensino secundário, manteve-se sempre como um objectivo de vida. Para este adiamento
contribuiu a existência de outras prioridades na sua vida, tais como a constituição de família, bem como encontrar um
emprego que pudesse permitir-lhe alcançar a qualidade de vida que ambicionava para a família que constituiu. Além disto,
exigente consigo próprio como é este participante, havia-se comprometido consigo mesmo de que só iria regressar à Escola
quando tivesse o tempo e as condições necessárias para que este regresso fosse bem sucedido.
Ao efectivar-se este regresso inserido no SEMC no ano lectivo de 2004/2005, o Tiago encontrou diversas
dificuldades, de entre as quais se destaca conciliar a frequência desta escola e o trabalho. Não apenas no que concerne à
adequação do horário laboral ao horário lectivo, mas também no tempo que lhe fica disponível para estudar, de modo a
conseguir obter sucesso a nível académico. Há que reconhecer que as exigências de disponibilidade, por parte da escola, se
prolongam para além da frequência dos diversos tempos lectivos (aulas). A necessidade de preparar a realização dos testes de
avaliação, de realizar pesquisas, de elaborar fichas de trabalho, de ler e estudar, bem como a elaboração de trabalhos
temáticos ou monográficos, exige dos alunos bastante mais tempo e disponibilidade. Assim, compreende-se que o Tiago
refira que um dos aspectos que contribuiu para o adiamento do seu regresso à Escola fosse a dificuldade em encontrar tempo
disponível para que tal acontecesse. Para este participante, para que o regresso à Escola aconteça é necessário haver tempo
disponível para se estudar e que o horário laboral permita não apenas a frequência diária das aulas, mas também algum tempo
para o estudo. A par dos elementos anteriormente referidos como cruciais para o regresso à Escola, é também imprescindível
que o aluno tenha “(…) uma grande força de vontade” (Tiago, E1, p. 15). Sem esta “força de vontade”, que o Tiago salienta,
e apesar dos condicionalismos serem favoráveis à frequência das aulas e à procura de alcançar os seus objectivos, os
indivíduos acabam por adiar esse regresso.

392
A vontade e motivação de cada aluno, bem como a determinação em concluir os estudos, são elementos
indispensáveis para que o seu regresso à Escola se concretize e para que seja alcançado o sucesso académico (Tiago, E2). É
sublinhando que a “força de vontade” é um aspecto essencial para quem quer regressar ou para quem já regressou e pretende
concluir os estudos que este participante refere que “(…) temos que ter uma grande força de vontade. Há alguns que ficam
pelo caminho (…) Nós, felizmente a nossa turma, aguentou-se o ano passado praticamente toda e ainda ‘tamos a falar de
noventa por cento da turma aguentou-se. Que é a mesma que está cá este ano (…). O que para nós todos é uma satisfação.
Saber que todos nós nos conseguimos aguentar. Vamos lá ver este ano, vejo pessoal um pouco mais cansado este ano, regra
geral, não sou só eu (Tiago, E1, pp.15-16).
Como podemos observar, o Tiago refere alguns aspectos sobre os quais, pela sua importância no domínio da
educação de adultos, é necessário reflectir. Um destes aspectos são os alunos que “vão ficando pelo caminho”. Aqueles que,
por motivos de ordem pessoal, social, escolar, ou profissional, vão abandonando o ensino recorrente. A turma em que o Tiago
esteve inserido, desde a sua entrada no SEMC, é uma turma particular no que respeita ao número de alunos que abandonaram
o sistema de ensino. No ano lectivo de 2004/2005, abandonaram os estudos 2 alunos e, no ano lectivo de 2005/2006, apenas 1
aluno. Se compararmos estes valores com os valores observados a nível das turmas do SEMC da escola onde se desenvolveu
esta investigação. Segundo dados das estatísticas internas, que nos foram referidos por outros participantes ligados à gestão
da referida escola, cerca de 50% dos alunos desiste logo após o terminus do 1º período do ano lectivo (CI e D). Assim,
observamos que o número de alunos que, na turma do Tiago, abandonou a frequência desta escola, durante o ano lectivo de
2005/2006, é muito inferior aos observados, habitualmente, nesta mesma escola em relação a outras turmas.
Quando procurámos saber se, o seu regresso à Escola, inserido numa turma considerada como “resistente”,
atendendo aos índices nacionais de abandono escolar no ensino secundário recorrente, contribuiu para a sua revalorização
social, bem como para a sua afirmação, enquanto indivíduo, este participante refere que “Não, não senti nem uma coisa nem
outra. Não sei se também é por estar num meio onde já moro há muitos anos e a maior parte das pessoas já me conhecem e
conhecem a minha maneira de estar e de ser, não senti nada, nem de uma sensação nem da outra” (Tiago, E1, p. 26). O Tiago
considera-se um indivíduo socialmente integrado, com um grupo de amigos sólido, bem como com relações pacíficas e
cordiais com os colegas de trabalho. A postura acessível, participativa, directa e bem disposta, permitiram que a inclusão
nesta escola e nesta turma fossem facilitadas e que as relações sociais e afectivas construídas, quer com os alunos quer com
os professores, fossem caracterizadas pela cordialidade e pela sociabilidade.
Na perspectiva que tem sobre si mesmo, sob a sua facilidade de socializar com os restantes indivíduos, bem como
sob os conhecimentos de que se apropriou na escola, este participante refere que continua um indivíduo sociável, pelo que
considera que o regresso à Escola não veio contribuir para a sua socialização ou para o seu (re)posicionamento social.
Contudo, reconhece que, a nível das aprendizagens, estas têm sido uma mais valia para a sua vida, uma vez que lhe têm
permitido fazer uma abordagem mais diversificada e aprofundada a determinadas questões (sociais, ou não) com que se
depara ao longo da vida. Como relata o Tiago, “(…) sempre fui uma pessoa muito directo na minha abordagem das coisas
(…) considero-me uma pessoa em termos de cultura geral uma pessoa até extremamente instruída e realmente o que eu tenho
tido agora tem sido mais valias. Mais valias porque tenho acrescentado a essa minha cultura geral e a esse (…) meu know
how em termos profissional que adquiri na [empresa onde trabalho] (Tiago, E1, p. 26). Além de reconhecer que as
aprendizagens que realizou na empresa onde trabalha há longos anos lhe proporcionaram um enriquecimento em termos de
conhecimentos técnicos e tecnológicos, também reconhece que o regresso à Escola veio contribuir para apropriar mais
conhecimentos científicos, para estar mais actualizado face aos problemas do mundo e para “crescer” um pouco mais. Como
refere, o que aprendeu nesta escola ainda não foi muito mas “(…) estou a acrescentar mais qualquer coisa [ao conhecimento
que já tinha apropriado] porque eu acho que um cérebro parado é um cérebro morto” (Tiago, E1, p. 26).
Para o Tiago, o regresso à Escola, ainda que de modo pouco acentuado, contribuiu para que “crescesse”, segundo as
suas palavras, o que lhe permite reconhecer que “(…) abordo algumas áreas com algum, como outra subtileza que
antigamente não abordava” (Tiago, E1, p. 26). Como podemos observar, o regresso à Escola, apesar de não ter sido muito
relevante ao modo de proporcionar um reposicionamento social do Tiago, contribui para que desenvolva capacidades e
competências diversas, como a capacidade de análise, de síntese, de crítica social, ou de argumentação, entre outras, que lhe
permitem reflectir com mais profundidade e “subtileza” sobre os problemas do mundo, mostrando aos outros, as suas
perspectivas acerca da vida e dos desafios que esta envolve.
Em síntese, para este estudante, o regresso à Escola parece revestir-se de aspectos mais interessantes do que o
regresso à Escola da Maria, pois se, para ambos, a socialização não se alterou significativamente, uma vez que se tratam de
indivíduos com uma socialização alargada e interventiva, há longos anos, no caso do Tiago as aprendizagens escolares
parecem ter mais valor, para o próprio, sendo mais motivadoras e mais susceptíveis de serem utilizadas em outros contextos e
situações, exteriores à escola, como seria desejável. Tratando-se de dois estudantes ambos fortemente motivados, sem
dificuldades de aprendizagem, frequentando a mesma escola, pelo que sujeitos ao mesmo sistema de ensino, legislação e
meta-contrato didáctico, estas diferenças podem ser parcialmente explicadas pelo curso que frequentam, disciplinas que dele
fazem parte, mas também pelas práticas desenvolvidas pelos professores. Quando num mesmo sistema de ensino há alunos,
motivados, que consideram as aprendizagens que fazem na escola úteis e outros que “só aprenderam uns nomes
cientificamente correctos”, então há que repensar o que funciona, num dos casos, e o que não funciona, no outro. Por isso
mesmo, analisar em profundidade casos como estes permitiria, se o poder politico assim o desejasse, compreender melhor

393
como se poderiam mudar os sistema de ensino, a legislação e as práticas docentes, de modo a conseguir promover o acesso
ao sucesso académico, por parte dos estudantes adultos.

Considerações finais
O ensino secundário recorrente em Portugal (infelizmente) não pode ser considerado um sistema de ensino bem
sucedido e que tenha proporcionado – ou proporcione! - aos estudantes meios e modos de acederem aos conhecimentos de
um modo interessante, permitindo-lhes a mobilização e/ou o desenvolvimento de competências necessárias para a vida
pessoal e profissional (Badalo & César, 2008). Atendendo ao número diminuto de alunos que concluem o ensino secundário,
quando inseridos no SEMC, observamos que há questões que têm de ser necessariamente revistas, tais como a carga horária
escolar semanal dos alunos, as quantidades de trabalho que se lhes exigem, bem como a motivação que é imprescindível que
seja estimulada, de modo a que possam continuar os estudos com vista à conclusão do ensino secundário, permitindo-lhes
que alcancem os objectivos pessoais e profissionais estabelecidos mesmo antes de voltarem à Escola. E caso esses mesmos
objectivos não sejam operacionalizáveis, a escola deve ter um papel na (re)elaboração de novos percursos de vida que sejam
viáveis, tal como está previsto na lei, através dos projectos que, individualmente, devem ser delineados com cada aluno e que,
em tantos e tantos casos, não passam de uma norma respondida de forma administrativa, burocrática, mas sem substrato, sem
impactes nos percursos escolares destes estudantes.
Neste estudo, conhecemos as perspectivas da Maria e do Tiago face às dificuldades encontradas no regresso à
Escola, enquanto estudantes adultos. Ambos apontam como um grande entrave à vida escolar a elevada carga horária, bem
como a dificuldade em conciliar as exigências da escola e da família. Como podemos observar, para a Maria, conciliar as
tarefas escolares, familiares e políticas é um desafio constante, que exige criatividade, bem como uma grande disponibilidade
e espírito de sacrifício. Para o Tiago, o regresso à escola é igualmente difícil no que refere à conciliação entre o tempo
dedicado à escola, ao trabalho e à família. Para o Tiago e para a Maria, apesar de o seu regresso à Escola ser positivo,
também é igualmente gerador de dificuldades extra, que eles precisam de saber gerir, para conseguirem continuar o percurso
escolar (re)iniciado com o regresso à Escola. Assim, nestes dois casos, o desfecho acabou por ser diferente: a Maria, concluiu
este ano lectivo com sucesso; o Tiago, não conseguiu gerir as exigências múltiplas e acabou por abandonar a escola, antes do
final do ano lectivo, apesar de estar a experienciar sucesso académico durante o tempo que a frequentou.
A nível social, ambos os participantes referem que o regresso à Escola não contribuiu para o seu
(re)posicionamento social. Contudo, o Tiago reconhece como sendo uma mais valia os conhecimentos apropriados, bem
como as capacidades e competências desenvolvidas, que lhe permitem encarar a vida com uma postura mais activa,
esclarecida e interventiva. O regresso à Escola, na idade adulta, nem sempre proporciona, de uma forma imediatamente
reconhecida, um reposicionamento social, sobretudo quando se trata de adultos que já têm uma postura interventiva e critica,
ou seja, para quem o reconhecimento social já existe. Porém, este regresso à Escola proporciona um encontro entre
indivíduos com objectivos comuns (a conclusão do ensino secundário) e a partilha de experiências de vida que poderão
permitir um enriquecimento social, cultural e pessoal dos estudantes. Resta reflectir sobre como cada escola pode contribuir
para que este encontro e partilha ocorram de formas significativas para estes estudantes, incluindo uma reflexão e discussão
aprofundadas do papel que as práticas, os currículos, os materiais de trabalho ou as formas de avaliação desempenham no
acesso ao sucesso académico, por parte destes estudantes.

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Projetos de vida e regresso à escola na idade maior: quatro estudos de caso

Carlos Badalo
Escola Secundária Anselmo de Andrade
carlosbadalo@yahoo.com.br

Luís Vilela
Escola Secundária de Loulé
luis_vilela@yahoo.com

Margarida César
Universidade de Lisboa. Centro de Investigação em Educação da Faculdade de Ciências
macesar@fc.ul.pt

Resumo: Os ecos da (re)evolução social que se vive internacionalmente chegam a Portugal, sendo urgente que a sociedade portuguesa
repense metas e defina prioridades. A formação ao longo da vida é um caminho que poderá levar a sociedade portuguesa a enfrentar a
mudança, investindo na qualificação pessoal, escolar e profissional dos adultos. Os indicadores nacionais revelam uma população activa
pouco escolarizada, investindo pouco na formação. O regresso à escola poderá ajudar na (re)definição dos projectos de vida, contribuindo
para a literacia e exercício da cidadania critica e participativa.
Esta investigação faz parte do projecto Interacção e Conhecimento. Procurámos conhecer as expectativas e motivações que estão
na origem do regresso à escola de quatro adultos e perceber se este regresso ajuda a (re)definir projectos de vida. Assumindo uma abordagem

395
interpretativa, de inspiração etnográfica, realizámos quatro estudos de caso: dois no SEUC e dois no SEMC. Os instrumentos de recolha de
dados foram tarefas de inspiração projectiva, entrevistas, questionários e conversas informais.
Os resultados revelam indivíduos com motivações e expectativas diversificadas. O seu regresso à escola deve-se à necessidade de
evolução pessoal e social, à procura de actualização científica e tecnológica, que facilite uma mudança para um emprego mais favorável ou a
frequência de um curso superior. Nem todos os participantes consideram que a escola os ajudou a redefinir o seu projecto de vida, chegando
a afirmar que esta deveria ter um papel mais activo e contribuir de forma mais directa e significativa para os seus projectos de vida.
Palavras-Chave: Educação, sociedade, regresso à escola, projectos de vida, educação de adultos

Introdução
A educação de adultos, em Portugal, permanece um campo educativo com pouca relevância (Badalo, 2006;
Courela, 2007), cujos resultados em pouco contribuem para reduzir os índices de analfabetismo e aumentar o número de
indivíduos que terminam o ensino secundário. Os elevados índices de abandono do ensino secundário recorrente nocturno
não contribuem para uma melhor formação profissional nem para um enquadramento social e cultural mais facilitado. Com o
mundo em constante (e célere) mutação, a educação de adultos poderia assumir-se como um modo de promover a
actualização de conhecimentos, bem como a mobilização e desenvolvimento de competências, indispensáveis à vida pessoal,
social e profissional dos nossos dias.
A sociedade do conhecimento que (hoje) se instala entre nós, e que nos coloca desafios de sobrevivência, quer no
que se refere à sobrevivência enquanto indivíduos quer no que se refere à sobrevivência social e profissional, exige uma
actualização constante de conhecimentos e de competências. As inovações tecnológicas que diariamente nos surpreendem
requerem uma resposta adequada por parte de quem, quotidianamente, tem de acompanhar essas inovações para se poder
afirmar como um indivíduo socialmente activo e profissionalmente competente. A info-exclusão (UNESCO, 1997) é
actualmente uma ameaça que permanece pendente sobre um sector da sociedade que, apesar de se manter profissionalmente
activo, tem dificuldade em acompanhar as inovações tecnológicas emergentes e, deste modo, em corresponder positivamente
aos níveis de produtividade que lhes são exigidos.
Estas dificuldades no acompanhamento da evolução do tempo e da tecnologia, pode, em casos extremos, levar os
indivíduos a uma exclusão social, bem como a uma inadequação profissional, sendo estes remetidos ou para tarefas em que o
domínio das novas tecnologias não são exigidas, ou, então, para o despedimento. O processo evolutivo das últimas três
décadas foi de tal modo acentuado e rápido que nem todos conseguiram acompanhar esta evolução, nem apropriar-se dos
conhecimentos e competências que lhes permitam superar os desafios que a sociedade digital exige (UNESCO, 1997).
A Escola tem sido (muito pouco) procurada por indivíduos que procuram actualizar conhecimentos, quer no
domínio científico quer no domínio tecnológico (Badalo, 2006; Badalo & César, 2007). Consideramos que foram três os
principais motivos que não permitiram um acréscimo do número de indivíduos que procura complementar os conhecimentos
e colmatar as dificuldades de inclusão social e profissional: a) a desmotivação dos adultos em idade activa pelas
aprendizagens escolares; b) um fraco investimento no seu desenvolvimento a nível pessoal e profissional, e c) falta de
incentivos empresariais e estatais que despoletassem o interesse dos indivíduos em apropriar novos conhecimentos e em
mobilizar/desenvolver novas competências.
No que refere à desmotivação dos indivíduos em idade activa pela aprendizagem, esta poderá dever-se a algum
comodismo que os atinge e que faz os portugueses permanecerem numa letargia que não é propiciadora da inovação e da
mudança, mas antes do conformismo e da estagnação, bem como à falta de sonhos, de objectivos e de desejos de ser (Badalo,
2006; Badalo & César, 2007; Silva, 2000a; 2000b). Deste modo, as tecnologias da informação e comunicação (TIC) e as
mais valias que estas acarretam passam quase despercebidas, principalmente entre a população adulta activa. Em parte, esta
posição pouco investidora também se deve a haver poucas actividades de educação/formação de adultos, sejam elas de
âmbito formal, não formal ou informal, que motivem os indivíduos para aprender e os motivem para investirem mais na sua
própria formação profissional, pessoal e social.
Quer as entidades empregadoras quer o próprio Estado, poderiam disponibilizar formação (contínua) que permitisse
aos trabalhadores permanecer científica e tecnologicamente actualizados e, deste modo, mais preparados para fazerem face
aos desafios que o mundo coloca. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 1976,
1985, 1997) desde há longos anos que vem defendendo uma posição mais activa e uma (co)responsabilização dos Estados e
das empresas pela formação dos indivíduos. Esta participação poderia passar pela disponibilização de parte do horário laboral
e a sua aplicação na formação dos trabalhadores, ou pelo incentivo financeiro ao estudo e à formação profissional e pessoal.
Na sociedade em que vivemos, a reciclagem profissional e a actualização de conhecimentos e competências é fundamental,
quer para a sobrevivência dos indivíduos no meio laboral quer para a sobrevivência e competitividade das empresas. Mais do
que a valorização dos trabalhadores a nível científico, técnico e tecnológico, incrementa-se a capacidade das empresas
superarem os desafios competitivos que têm de enfrentar.
A União Europeia (UE, 2001, 2002, 2006, 2007, 2008a, 2008b) tem insistido, na última década, na necessidade de
um maior investimento dos Estados e das empresas na formação e na actualização dos trabalhadores, por acreditar que, só
deste modo, se pode garantir que a União Europeia, e todos os Estados-Membros que a constituem, consigam enfrentar os
reptos apresentados pelo novo milénio, garantindo a continuidade do desenvolvimento económico e financeiro da própria
União Europeia. Para a União Europeia (2000a), “(…) uma economia digital e baseada no conhecimento, impulsionada pela

396
existência de novos bens e serviços, constituirá um poderoso motor para o crescimento, a competitividade e a criação de
empregos. Além disso, permitirá melhorar a qualidade de vida dos cidadãos” (p. 1). Contudo, este poderoso motor que
poderá despoletar a evolução e o desenvolvimento, a competitividade e a criação de novos empregos, poderá revelar-se
negativamente se os indivíduos, nomeadamente os indivíduos profissionalmente activos, não souberem munir-se das
ferramentas mentais (Vygotsky, 1934/1964) e das competências necessárias, que lhes permitam ir fazendo parte desta
evolução.
Os projectos de vida dos indivíduos passam, algumas vezes, pelo sucesso profissional e este ocorre quando a
mestria profissional coincide e origina a satisfação profissional, social e pessoal. Com o regresso à Escola, na busca de mais
conhecimentos e da mobilização/desenvolvimento de (novas) competências, os indivíduos trazem consigo expectativas e
motivações que contribuem para a definição dos projectos de vida. Estes projectos de vida, sendo individuais mas
influenciados pelo meio social, económico, profissional e cultural em que os indivíduos se movem, têm em comum a
vontade, partilhada, por aprender e por serem indivíduos mais realizados e mais felizes. O regresso à Escola, por vezes,
também contribui para que os projectos de vida delineados sofram alterações, mais ou menos significativas, consoante o
percurso dos estudantes e as suas expectativas de futuro. No entanto, como consolidação de um projecto de vida já traçado,
ou como (re)formulação do (novo) projecto de vida, o regresso à Escola deverá ser encarado como um modo de cada
indivíduo se superar a si próprio, vencendo limitações, perseguindo sonhos, ou começando (finalmente!) a sonhar (Silva,
2000a, 2000b).

Quadro de referência teórico


Apesar da educação de adultos ter começado a dar os primeiros passos muito tempo antes, é em meados do séc. XX
que, internacionalmente, se inicia uma cruzada pela educação de adultos, com a criação dos múltiplos planos de alfabetização
que incidiam, com mais frequência, nos países ditos em vias de desenvolvimento e nos países designados como sendo pouco
desenvolvidos. A própria história da humanidade, composta de progressos, guerras e conflitos, contribui para que se
(re)descobrisse a necessidade de educar adultos de forma que o progresso suplantasse as feridas que as guerras e os conflitos
(mundiais) foram criando. Muito relevante é que os países que partilhavam as preocupações próprias de uma sociedade em
transformação e mudança, começassem a procurar (também), juntos, uma resposta que permitisse atenuar as complexidades
inerentes à evolução tecnológica e científica, que atravessou o séc. XX. Para que o progresso individual, social e político se
fizesse sentir, era necessário (re)valorizar os indivíduos que, tendo sobrevivido às duas grandes guerras mundiais,
necessitavam de uma (re)orientação e actualização profissional. As atenções internacionais voltaram-se, então, para a
valorização dos adultos, pois era nas mãos destes que o mundo estava (e está) sustentado. A educação de adultos surgiu, no
pós 1ª e 2ª grande guerra mundial, como a chave que permitia abrir as portas da evolução e da modernidade.
Atenta a estes aspectos, a ONU (Organização das Nações Unidas) cria, em 1945, a UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) com o objectivo de se debruçar sobre a educação, em geral, e, em
particular, sobre a educação de adultos. Prova do interesse da UNESCO sobre a questão da educação de adultos é a
conferência realizada em Elsinore (apenas) quatro anos depois do nascimento desta organização. A UNESCO surgiu, assim,
no âmbito internacional, com o objectivo de trabalhar a problemática da educação de adultos, estabelecendo metas e
apresentando propostas de modo a que o caminho fosse sendo percorrido e encontradas soluções inovadoras para os desafios
enfrentados. Reconhecida como um contributo muito relevante para a educação de adultos (Abrantes, 1997; Conselho
Nacional de Educação, 1996; Finger & Asún, 2003; Nogueira, 1996), a UNESCO promoveu, através das suas Conferências
Internacionais (Elsinore em 1949, Montreal em 1960, Tóquio em 1972, Paris em 1985 e Hamburgo 1997), “(…) a
mobilização de recursos e a propagação do conhecimento, a nível mundial, ao mesmo tempo que funcionou como um banco
de dados e documentos, aos quais juntou publicações próprias” (Finger & Asún, 2003).
Da conferência de Elsinore (1949) destaca-se o reconhecimento dos congressistas de que vida humana é sinónimo
de aprendizagem progressiva e contínua. As experiências que cada indivíduo vai vivendo, desde a mais tenra idade, vão-lhe
proporcionando um conjunto de aprendizagens que começa com a apropriação de costumes e formas de adequação ao meio
envolvente, sócio-cultural e familiar, progredindo, em simultâneo, no sentido do seu enriquecimento intelectual, espiritual e
moral. Esta aprendizagem é própria de seres sociais, que partilham experiências de vida social, familiar ou laboral de forma
natural (Savater, s/d; UNESCO, 1949). O reconhecimento, por parte dos congressistas, de que a aprendizagem é progressiva
e acompanha toda a vida dos indivíduos abriu novos horizontes, não apenas no que se refere à educação, sublinhando que a
educação não se limita à escolarização, mas também no que se refere à educação de adultos, apontando-a como meio de
socialização (Rodrigues & Nóvoa, 2005). Nasce, nesta conferência, o conceito de formação contínua de adultos e a formação
escolar, durante os primeiros anos de escolarização, passa a ser designada de formação inicial (CNE, 1996).
Em 1960, a UNESCO promove mais uma conferência, que vem salientar a relevância da educação de adultos,
apelando, de modo particular, para a necessidade de se combater o analfabetismo em todo o mundo. Um dos aspectos que
fica como marco da Conferência de Montreal é a afirmação de que a alfabetização é uma luta imprescindível para garantir a
paz, a harmonia e a cooperação, bem como o progresso científico, político, tecnológico e social de (e entre) todos os povos.
Pois só pela educação e, nomeadamente, pela educação de adultos, se poderá construir um mundo de (em) paz (UNESCO,
1960).

397
Se os conferencistas apontam para os países ditos em vias de desenvolvimento a necessidade de lutarem pela
alfabetização, em relação aos países tidos como desenvolvidos apelam para a necessidade da formação profissional e técnica
adequadas às novas exigências do mercado de trabalho. Tal como na reunião de Elsinore (1949), apela-se à reciclagem e ao
desenvolvimento profissional. Com as céleres transformações que o mundo vive, é necessário que os indivíduos se adaptem,
de modo a poderem acompanhar o desenvolvimento. Para tal, é imprescindível que os Estados membros da UNESCO
invistam uma maior parte dos seus recursos no desenvolvimento da educação de adultos, pois só deste investimento poderá
advir a promoção da paz e da compreensão mundial (UNESCO, 1960).
Por outro lado, na Conferência Internacional da UNESCO (1972), sobre educação de adultos, realizada em Tóquio,
é reforçada a necessidade dos povos dos diferentes Estados atribuírem uma importância acrescida à alfabetização funcional
dos adultos. Acrescentam, no entanto, o princípio de que a alfabetização funcional se deve processar não apenas em função
do desenvolvimento económico, mas também em função do desenvolvimento social e cultural, isto é, em função de um
desenvolvimento integrado do ser humano (CNE, 1996). As bases da alfabetização funcional, lançadas na Conferência de
Montreal (1960), são reforçadas na Conferência de Tóquio (1972), sendo retomada a sua importância a nível da educação e
alfabetização de adultos.
Nesta conferência (UNESCO, 1972) reflectiu-se aprofundadamente acerca dos resultados pouco animadores que
provinham das campanhas de alfabetização funcional implantadas até então. Um dos aspectos mais realçados prende-se com
o reconhecimento de que a alfabetização está relacionada com o desenvolvimento sócio-económico das populações. Em
locais onde as condições sócio-económicas não evoluem, a alfabetização funcional assume resultados pouco significativos,
pois, se não há evolução nem progresso social ou económico, também não se gera a possibilidade dos adultos mostrarem e
aplicarem as aprendizagens. Quando não existe uma aplicação dos conhecimentos apropriados à realidade quotidiana, a
educação funcional torna-se um elemento irrelevante. Aliás, a educação funcional é caracterizada como uma educação em
que os conhecimentos apropriados são aplicados na vida quotidiana, “(…) de nada serve aprender a ler, a escrever ou a contar
se os conhecimentos fundamentais adquiridos não encontram, num determinado meio, uma aplicação quotidiana, concreta,
imediata e benéfica” (UNESCO, s/d, p. 8). Se a formação de base da alfabetização passa pela aprendizagem da leitura e da
escrita, ela só se operacionaliza e dá fruto se os adultos puderem aplicar, nos diversos momentos da vida, os conhecimentos
de que se apropriaram.
Da 19ª sessão da conferência geral da UNESCO (1976) resultou a Recomendação sobre o desenvolvimento da
educação de adultos onde, pela primeira vez, se esboça uma definição para o termo “educação de adultos”. Com esta primeira
tentativa (arrojada e abrangente) de definir educação de adultos, além da preocupação em construir uma definição
suficientemente aceitável para todos os Estados representados na conferência, também existiu o cuidado de dar a conhecer,
de uma forma clara, o que é a educação de adultos, em que consiste e quais as suas finalidades. E porque definir também
implica o delimitar das fronteiras de um determinado conceito, esta definição contribuiu para afirmar que a educação de
adultos vai para além do modelo escolar, e que a sua intervenção se estende a todos os indivíduos, independentemente da sua
condição social, económica e cultural.
Um dos aspectos originais da conferência de Nairobi (1976) reside no reconhecimento da experiência de vida dos
adultos como um elemento relevante para as aprendizagens e para o enquadramento social. Cada adulto pode ser, “(…) em
virtude da sua experiência de vida, (…) portador de uma cultura que lhe permite ser simultaneamente educando e educador
no processo educativo em que participa” (UNESCO, 1976, p. 4). Este saber é reconhecido pelos conferencistas como
indispensável para o desenvolvimento da sociedade. A Escola não pode, por isso, ignorar que, quando os alunos adultos a
procuram, já trazem consigo conhecimentos resultantes da vida familiar e das experiências sociais, e que, por isso mesmo,
são indivíduos que apropriaram conhecimentos que é necessário valorizar. Há neste processo uma aproximação entre a
educação escolar e a educação extra-escolar, quando a educação escolar começa a reconhecer e a valorizar a experiência de
vida. Pensamos que, nesta valorização de conhecimentos apropriados através das experiências de vida, estão os princípios
base que, mais tarde, originariam processos utilizados nos Centros de Reconhecimento Validação e Certificação de
Competências (CRVCC).
A Conferência que ocorreu em Paris (1985) contou, pela primeira vez, com a presença de representantes de
Portugal. Esta 4ª conferência internacional veio reforçar alguns aspectos já delineados em conferências anteriores, tais como
a alfabetização ou a educação formal e não formal, dando continuidade aos princípios renunciados na Recomendação sobre o
desenvolvimento da educação de adultos (Nairobi, 1976). Podemos mesmo afirmar que, apesar de trazer poucos aspectos
inovadores, ou novos conceitos-chave, para a educação de adultos, esta conferência contribuiu para se efectuar um balanço
do percurso já percorrido e da evolução sentida a nível dos diversos Estados, acerca da educação de adultos (CNE, 1996;
UNESCO, 1985). No entanto, também nesta conferência foram desenvolvidas algumas questões que, apesar de já terem sido
afloradas em reuniões anteriores, não haviam sido devidamente analisadas e reflectidas. É o que se observa com a formação
dos educadores de adultos, que assumiu nesta conferência um destaque particular, registado no Capítulo V das
recomendações.
Por fim, os conferencistas, reunidos em Paris, defenderam que deveria ser fomentada a investigação nos domínios
da educação de adultos. A renovação de métodos, a descoberta ou aperfeiçoamento de práticas pedagógicas, poderão
contribuir para uma educação actualizada e à procura de novos e mais eficazes meios de educar adultos. Esta necessidade, de
mais e mais profunda investigação no campo da educação de adultos, é recuperada 12 anos mais tarde, aquando da V

398
Conferência Internacional sobre Educação de Adultos. Aí, sublinhou-se a importância da investigação na procura de
processos de ensino e de aprendizagem inovadores, incluindo as tecnologias interactivas (UNESCO, 1997).
A conferência de Hamburgo, realizada em 1997, vem na sequência das conferências de Elsinore (1949), Montreal
(1960), Tóquio (1972), Paris (1985) e da Recomendação de Nairobi (1976). Todas estas iniciativas, promovidas pela
UNESCO, tiveram em comum a educação de adultos, tendo sido influenciadas pelos acontecimentos históricos e sociais da
época. A conferência de Hamburgo não foi excepção e focalizou a atenção numa educação de adultos adaptada àquela época,
mas preocupada em traçar novos rumos para o futuro. Daí o seu título: Aprender na idade adulta: Uma chave para o séc. XXI.
Este título permite-nos antever a preocupação dos conferencistas em (re)colocar a educação de adultos como condição
essencial para se almejar um futuro social e economicamente enquadrado numa perspectiva de desenvolvimento sustentável.
A educação de adultos poderá “(…) contribuir para a criação de uma cidadania informada e tolerante” (UNESCO, 1997, p.
16).
Um aspecto muito sublinhado na conferência de Hamburgo (1987) prende-se com o acesso de todos os indivíduos
às novas tecnologias da informação e comunicação (TIC), combatendo-se a info-exclusão. Sublinham, os conferencistas, que,
“(…) o desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação traz consigo novos riscos de exclusão social e
ocupacional para grupos de indivíduos, e até para empresas, incapazes de se adaptarem a este contexto” (UNESCO, 1997, p.
22). É por tudo isto que uma das funções da educação de adultos do futuro consiste em encontrar formas de limitar estes
riscos de exclusão, de modo a que seja salvaguardada a participação de todos os indivíduos na sociedade da informação e do
conhecimento. Além disso, ao salvaguardar-se a participação social dos indivíduos, também se está a salvaguardar o
desenvolvimento integral das identidades, nomeadamente individuais e culturais.
Partindo do caminho já traçado pela UNESCO, mas atenta às necessidades sociais e económicas da actualidade, a
União Europeia (UE) tem atribuído, na primeira década do novo milénio, uma importância crescente ao domínio da educação
de adultos, realçando a sua relevância para se conseguir uma UE mais forte e mais competitiva. O Conselho Europeu de
Lisboa (UE, 2000a) alerta para as mudanças técnicas e tecnológicas que, na Europa, e um pouco por todo o mundo, se vivem.
O florescimento económico-financeiro, sendo um elemento fundamental para a sobrevivência da União Europeia, exige um
incremento a nível do investimento nos domínios da formação e aprendizagem dos cidadãos e, de modo particular, dos
cidadãos em idade activa.
De realçar o Memorando sobre a aprendizagem ao longo da vida (UE, 2000b) promovido pela UE, que vem
despoletar a discussão alargada a todos os países da união, sobre as metas, objectivos e prioridades a definir para uma
educação de adultos do futuro. Este documento surge enquadrado numa época em que o progresso económico e social
exigem que os indivíduos invistam na formação de modo a acompanharem as transformações sociais, técnicas e tecnológicas,
que ocorrem a nível (inter)nacional. A estratégia de aprendizagem ao longo da vida apresentado pela UE deverá ser assumida
por todos os Estados-Membros como uma prioridade, porque é partindo desta estratégia que se conseguirá passar para era do
conhecimento, em que o acesso à informação e à actualização científica e tecnológica deverá estar à disposição de todos os
indivíduos. O que se pretende é que todos os indivíduos da UE tenham acesso à informação e ao conhecimento. Assim,
conseguir-se-á uma união mais justa, em que todos os indivíduos tenham acesso, de forma equitativa, às oportunidades
educativas. Reconhece-se, deste modo, a existência de um complexo mundo social e político, onde a diversidade cultural e
étnica exigem uma compreensão integral do mundo e dos indivíduos que o compõem, impelindo-os a despertar do sono
dogmático da inacção e a entrarem no domínio do conhecimento. Para isso, é necessário que a educação e a formação estejam
disponíveis para todos. Assim, a UE (2000a, 2000b) apela para que, tanto as entidades estatais, como as empresariais e
privadas, promovam a educação dos indivíduos, pois acredita que só uma Europa com indivíduos esclarecidos, científica e
tecnologicamente actualizados, que poderá fazer frente aos desafios do presente e do futuro.

Metodologia
Os estudos de caso, aplicados, inicialmente, no âmbito da medicina e do direito, foram sendo, progressivamente,
adoptados em domínios como a antropologia, a psicologia, a ciência política, a gestão e o serviço social (Burns, 2000). No
domínio da educação, esta prática tem um longo historial e, nas últimas décadas, temos encontrado, com muita frequência,
investigações que seguem este design (Courela, 2007; Hamido, 2005; Ponte, 1994). Nos domínios educativos, o incremento
do estudo de caso foi evolutivo, sendo, amplamente, aplicado, na investigação das dinâmicas e práticas de sala de aula
(Merriam, 1988; Ponte, 1994). No entanto, até que os estudos de caso fossem reconhecido e tivessem notoriedade no campo
da investigação em educação, o percurso não foi simples, nem linear ou universalmente aceite. De acordo com Burns (2000),
antes do estudo de caso ser entendido e aplicado como é hoje, começou por ser associado a tudo o que não fosse experimental
ou investigação documental, ou histórica (historical methods). Como sublinha este autor, o termo chegou a ser vagamente
utilizado como sinónimo de etnografia ou de observação participante. Em parte, esta interpretação resulta da associação, que
é comum fazer-se, deste método relativamente à investigação qualitativa, bem como à investigação realizada no domínio da
educação (Burns, 2000; Oliveira, 2006).
Como refere Burns (2000), a sua utilização frequente na abordagem qualitativa/interpretativa contribuiu para que
este tipo de investigação assumisse um lugar de relevo no domínio da educação, actualmente, constituindo-se como um
design adoptado quer por novos investigadores quer por investigadores com mais experiência.

399
Ao focar o interesse nos problemas específicos do quotidiano profissional de determinados grupos, o estudo de caso
aproxima-se das práticas e tenta compreendê-las, interpretando-as, nomeadamente no que concerne às interacções sociais que
se estabelecem. É neste sentido que Stake (1998) refere que a opção por um estudo de caso não deverá ser compreendida
como uma escolha metodológica, mas antes como a selecção do fenómeno que se quer compreender e interpretar, sendo que,
esta compreensão, é precedida e seguida de uma reflexão cuidada.
Burns (2000) refere que o estudo de caso é o design preferido quando estão a ser levantadas questões do tipo “(…)
‘como’, ‘quem’, ‘porquê’ ou ‘o quê’, (…), quando o investigador tem pouco controle sobre os eventos, ou quando o foco está
num fenómeno contemporâneo dentro de um verdadeiro contexto de vida” (p. 460). Em resumo, o estudo de caso permite,
numa investigação, reter as características holísticas e significativas dos acontecimentos ou fenómenos.
Na presente investigação, o fenómeno em estudo, além de ser temporal e tematicamente actual (realizou-se no ano
lectivo 2005/2006) encontrava-se, tal como afirma Burns (2000), inserido no contexto da vida profissional do investigador,
que era docente do ensino secundário recorrente. Neste caso específico, leccionava quer adultos que frequentavam o SEUC
quer o SEMC e, por isso mesmo, estava sensibilizado para a diversidade de problemáticas associadas a cada um destes
sistemas de ensino.
Com este estudo, inserido no âmbito do projecto Interacção e Conhecimento, procuramos, dar a voz a dois
estudantes que frequentaram o Sistema de Ensino por Unidades Capitalizáveis (SEUC), um de cada género, e dois que
frequentaram o Sistema de Ensino por Módulos Capitalizáveis (SEMC), também um de cada género. Os dados foram
recolhidos durante o ano lectivo 2005/2006. Temos, assim, quatro estudos de caso, ou seja, o que Stake (1998) designa por
um estudo de caso múltiplo. Esta investigação decorreu numa escola pública da região da Grande Lisboa, seleccionada por
ser o ambiente educativo que o investigador conhecia melhor, ao ter sido lá colocado a leccionar, e, sobretudo, por ter, em
simultâneo, os dois sistemas de ensino secundário recorrente (SEUC e SEMC).
Os quatro participantes que se constituíram como estudos de caso frequentaram, nesse ano lectivo, o ensino
secundário recorrente em regime nocturno e em modalidade de frequência presencial. Com esta investigação pretendemos
conhecer os projectos de vida que estes estudantes têm quando regressam à Escola, bem como se o seu regresso influencia
uma reformulação do seu projecto de vida. De igual modo pretendemos saber quais as motivações que sustentaram o seu
regresso à Escola inseridos em sistemas de ensino secundário recorrente diversificados, quer no que refere à sua organização
quer no que concerne aos objectivos educativos que os norteiam. Deste modo, constituímos quatro estudos de caso, um por
participante, de modo a podermos conhecer, em profundidade, as suas motivações e expectativas de futuro. De modo a
salvaguardarmos a identidade dos participantes, foram-lhe atribuídos nomes fictícios, que os mesmos escolheram: Sara e
Francisco (SEUC); e Maria e Tiago (SEMC).
Os instrumentos de recolha de dados utilizados foram os questionários (Q1, Q2), tarefas de inspiração projectiva
(TIP 1 e TIP2), entrevistas (E1 e E2), conversas informais (CI) e a observação participante (O), estas últimas registadas sob a
forma de um diário de bordo (DB) onde foram escritas, não apenas as conversas informais, como também reflexões do
investigador. Os dados foram sujeitos a uma análise de conteúdo, sistemática, aprofundada e sucessiva, de modo a fazer
emergir categorias indutivas de análise (Badalo, 2006; Courela, 2007).

Resultados
Apresentamos e discutimos, primeiramente, os casos do Francisco e da Sara (estudantes do SEUC), seguindo-se os
do Tiago e da Maria (estudantes do SEMC). Deste modo, poderemos observar as diferenças/semelhanças existentes entre os
percursos e projectos de vida participantes do mesmo sistema de ensino recorrente, confrontando perspectivas e posições.

Os dois casos do SEUC


A procura por uma vida diferente, “(…) mais ousada e mais feliz” (Francisco, Q2, p. 2), motivou o Francisco a
regressar à escola seis anos depois de a ter abandonado antes de concluir o ensino secundário. O Francisco considera-se um
aluno “(…) assíduo, (…) persistente, (…) compreensivo, certas vezes (…), prestável, se (…) algum colega meu precisar de
ajuda ou isso, eu ‘tou disponível (…) [e] decidido (Francisco, E2, pp. 10-11). As razões que estão por detrás do abandono do
ensino regular prendem-se com o insucesso escolar ocorrido na frequência do 12º ano de escolaridade e com a necessidade de
trabalhar e de procurar uma vida melhor, economicamente mais estabilizada. O regresso, progressivamente adiado durante
seis anos, concretizou-se no ano lectivo de 2005/2006, com a matrícula do Francisco numa escola da região da Grande
Lisboa, na qual optou por completar o ensino secundário, enquadrado no SEUC, frequentando um curso de carácter geral,
porque, segundo ele, este sistema de ensino “(…) lhe facilita as aprendizagens” (Francisco, CI, p. 1).
Os motivos que sustentam o seu regresso aos bancos da escola e ao papel de aluno são “motivos profissionais”
(Francisco, Q1, p. 1) relacionados com a sua necessidade de evoluir numa empresa do ramo automóvel. Com o regresso à
Escola espera, a seu tempo, uma mais valia a nível económico. Como nos refere, é seu objectivo progredir profissionalmente
porque, deste modo, também consegue evoluir “(…) monetariamente, ganhar mais um bocado. E ser (…) alguém, entre
aspas. Ter uma certa formação, (…) e sentir-me realizado (Francisco, E1, p. 2).
Como podemos observar, o Francisco não reduz o seu regresso à Escola, bem como o seu projecto de vida, ao seu
progresso material e económico. Reconhece inclusive que este regresso pressupõe uma evolução pessoal. Para ele, o projecto
de vida não se circunscreve ao desejo de progressão a nível laboral, chegando mesmo a atingir a esfera da sua auto-

400
realização, enquanto indivíduo. Com a observação que fizemos do Francisco, ao longo desta investigação, constatámos que o
seu desejo de evoluir pessoalmente e de se sentir realizado se foi agudizando, com o passar do tempo, e se foi sobrepondo ao
desejo de evoluir profissionalmente. O Francisco foi referindo, com alguma frequência, que o seu maior desejo era mesmo
abandonar o seu emprego e seguir uma carreira académica onde, finalmente, se sentisse realizado. O Francisco assume que o
seu projecto de vida passa por ingressar no ensino superior: “(…) Dentro [da área das] Letras. Não tenho a certeza ainda, mas
(…) tenho tendência para Direito” (Francisco, E1, p. 4). O receio de enveredar por um curso superior que, posteriormente,
não lhe dê uma saída profissional está patente nas palavras do Francisco. No entanto, não o faz demover do sonho de alcançá-
lo. Um dos motivos que ateia o seu desejo de tirar um curso superior prende-se com trabalhar a cerca de 10 km de casa e não
gostar da profissão que tem. Daí resulta uma motivação extra, que o incentiva a continuar os estudos, mesmo com as
dificuldades inerentes a trabalhar durante o dia e estudar à noite (Courela, 2007; Pinto, Matos, & Rothes, 1998).
Com 24 anos, o Francisco sublinha a importância que tiveram os pais (de um modo especial, o pai) e a namorada na
decisão de regressar à Escola. O incentivo, apesar de ser de natureza distinta, e dos argumentos utilizados serem também
diferenciados, sortiu efeito, após alguma insistência. No que respeita à namorada, relata que regressou à Escola, na
modalidade de ensino recorrente, seguindo o exemplo desta. O incentivo da namorada do Francisco não se circunscreveu ao
simples apoio verbal: deu-lhe um exemplo concreto e efectivo de persistência e de luta pelos seus ideais. Além da namorada,
o Francisco também sentiu o apoio dos seus familiares mais directos, isto é, os seus pais e, de um modo especial, da figura
paterna que, no retorno à Escola, por parte do Francisco, assume um papel de relevo em todo o processo. Numa das
frequentes conversas informais que ocorreram entre o investigador e este participante, este último afirmou que o apoio do pai
já remonta desde o tempo em que frequentava o ensino regular e perpetuou-se até ao seu regresso à Escola, alguns anos
depois de ter abandonado o ensino secundário diurno. Actualmente, o Francisco assume que, apesar de todos os conselhos e
avisos, é necessário cometer os erros, vivê-los, para depois se aprender com as suas próprias vivências. Os apelos e conselhos
dos mais experientes são facilmente trocados pela emoção do momento e pela permuta da vida escolar pela vida profissional.
A vida profissional oferece outros incentivos que a vida escolar não oferece. A procura de uma estabilidade
financeira é o móbil que leva muitos alunos do ensino regular a abandonarem a escola procurando, fora desta, melhores
condições de vida (Strecht, 2003a, 2003b). Como se pode observar, o Francisco, antes do seu regresso a esta escola já tinha
bem definido o seu projecto de vida, que se manteve inalterado durante a sua permanência no SEUC. De referir que, neste
caso, a escola não contribuiu para a redefinição do projecto de vida do participante, embora tenha sido importante para que
este alcançasse os seus objectivos mais prementes. O Francisco acabou por conseguir entrar para a universidade, estando
actualmente a frequentar o curso de sociologia, segundo dados que recolhemos nas entrevistas do follow up.
A Sara regressou no ano lectivo 2005/2006 à mesma escola de onde havia saído seis anos antes inserida, tal como o
Francisco, no SEUC. Com uma personalidade forte e decidida, procura, com o regresso à escola, evoluir pessoal, social e
profissionalmente. A Sara considera-se “(…) inteligente, mas preguiçosa (…) boa ouvinte e (…) persistente” (Sara, E2, p.
10). Ao abandonar o ensino regular diurno, com 19 anos de idade e com a frequência do 12º ano, a Sara já pensava regressar
mais tarde à escola, sendo que o regresso à escola e a conclusão do ensino secundário já fazia parte do seu projecto de vida.
No entanto, por motivos que confessa serem mais fortes do que ela mesma, foi adiando sucessivamente este regresso, até à
sua concretização efectiva no início do ano lectivo em que se desenrolou a presente investigação. Tal como sucedeu com o
Francisco, também a Sara foi adiando o seu regresso, convicta, no entanto, de que este se concretizaria, mais cedo ou mais
tarde.
De um modo geral, a Sara faz um balanço positivo do seu regresso à escola. Este balanço deve-se principalmente
ao sucesso académico que tem conseguido através da capitalização de unidades nas disciplinas que frequenta. No 1º período
do ano lectivo em que decorreu esta investigação, a Sara conseguiu capitalizar 11 unidades, movida pelo desejo de conseguir
capitalizar as restantes 17 unidades antes da extinção do SEUC. Unidades essas que se repartem pelas disciplinas de
Português, Inglês, Filosofia, Geografia e História. Se tivermos em consideração que a Sara é trabalhadora-estudante, ainda
sublinhamos mais o ter conseguido capitalizar, em 3 meses, 11 unidades, algo pouco frequente entre os alunos que estudam
no SEUC. No entanto, no 2º período a sua capitalização de unidades tornou-se menos acentuada, conseguindo capitalizar um
total de 6 unidades. Notou-se uma falta de motivação por parte desta participante, que não se manifestou apenas no número
de unidades capitalizadas ao longo do período, mas também na sua assiduidade.
A idade, o passar do tempo e a experiência que se vai construindo contribuem para um amadurecimento dos
indivíduos e para que estes modifiquem a sua perspectiva acerca da vida, procurando alcançar antigos e novos objectivos. A
experiência profissional que vai sendo vivida, mas que nem sempre é a mais favorável para quem a vive, também contribui
para uma mudança de posição dos indivíduos acerca das metas a alcançar e dos objectivos e projectos de vida a perseguir. O
regresso à escola apresenta-se, para a Sara, como um modo de redireccionar a vida e de refazer o seu projecto de vida. A sua
opção pelo ensino recorrente nocturno (SEUC) prende-se com o ter começado a trabalhar e, também, por o seu horário
laboral ser incompatível com a frequência no sistema regular das disciplinas que faltava completar. Como ela refere, “(…)
comecei a trabalhar, e era incompatível fazer as 3 disciplinas de 12º ano que faltavam (…) no regime diurno” (Sara, Q1, p. 1).
A Sara assume como tarefa difícil a decisão de regressar à escola, mas é objectiva quando afirma que o que sustenta o seu
regresso é o desejo (e a necessidade) de completar o ensino secundário. Como ela salienta, “(…) foi difícil [regressar à
escola], eu adiei isto durante algum tempo. (…) o que me fez voltar, [foi] (…) o mundo do trabalho e ver que é difícil até
com o doutoramento. (…) tendo o 12º ano é sempre uma mais valia na altura faltavam-me três disciplinas para acabar, com
as equivalências traduzem-se em seis” (Sara, E1, pp. 4-5).

401
Através das palavras da Sara observamos que a decisão de regressar à escola não foi imponderada nem arbitrária. A
sua decisão foi difícil e para ela contribuíram o ter constatado que se o mundo do trabalho é difícil para quem concluiu graus
académicos superiores, e mais difícil é ainda para quem não conclui o ensino secundário. Apesar de reconhecer que, a nível
profissional, mesmo com o ensino secundário concluído, os problemas não ficam resolvidos, salienta que terminar o ensino
secundário é uma mais valia para arranjar trabalho. A globalização crescente, o desenvolvimento tecnológico e a crescente
abertura das empresas ao exterior implicam uma selecção cada vez maior dos profissionais (Abrantes, 1997; Melo & Rothes,
1998; Sampaio, 2005). Selecção que passa pelo nível de escolaridade alcançado pelos indivíduos, pela sua experiência
profissional e pelo domínio de competências imprescindíveis, tais como o domínio de línguas estrangeiras, o conhecimento
das mais recentes tecnologias da informação e comunicação, ou dos recursos informáticos mais avançados. Daí que a Sara
refira, numa das conversas informais, que um dos seus objectivos é “(…) tirar o 12º ano para poder ter possibilidades de
arranjar um emprego melhor, ter mais competências e alcançar uma maior qualidade de vida” (Sara, CI, p. 6).
O regresso à escola veio proporcionar à Sara uma reflexão mais ponderada acerca da sua vida pessoal e
profissional. Foi dessa reflexão que resultou a intenção de prosseguir estudos a nível superior, ideal abandonado há muito e
que ressurgiu com o regresso à escola e com os resultados académicos conseguidos, nomeadamente com a capitalização das
diversas unidades. Deste modo, por meio do regresso à escola, o seu projecto de vida é modificado e a sua ambição
académica é ampliada. A Sara salienta que “(…) eu vim com espírito de acabar o 12º ano. (…) Mas eu até gostava de tirar
(…) um curso, de Geografia e Planeamento ou (…) ser Assistente Social. (…) mas acho que só vale a pena tirar um curso se
for naquilo que nós gostamos. (…) Eu já não tenho prazer naquilo que faço agora (Sara, E1, pp. 6-7).
No excerto anterior, a Sara refere-nos que, o projecto de vida que tinha antes de regressar à escola se alterou com a
sua passagem pela mesma. Se, no início, apenas pretendia concluir o ensino secundário, a sua passagem pela escola
despertou-lhe o interesse pela aprendizagem e trouxe-lhe a vontade de frequentar um curso superior.
Tal como no caso do Francisco, considera o regresso difícil mas positivo. O regresso implica necessariamente uma
(re)adequação a um tempo e a um espaço que há alguns anos não é frequentado e, por isso mesmo, uma (re)organização da
vida pessoal e social. Com o regresso à escola, o tempo é um dos aspectos apontados pelos participantes neste estudo como
dos mais difíceis de gerir. A escassez de tempo é apontada como uma das principais dificuldades sentidas, sendo também
subscrita pela Sara. A vida pessoal é mais difícil de gerir porque o regresso à escola também exige uma dedicação forte aos
estudos.

Os dois casos do SEMC


O regresso do Tiago à Escola ocorreu no ano lectivo de 2002/2003. Depois de um interregno de cerca de 23 anos,
ingressou no SEUC, onde se manteve durante dois anos lectivos sem, no entanto, se conseguir adaptar a este sistema de
ensino, o que o fez optar por se inscrever no SEMC, onde entrou no Curso de Ciências Sociais e Humanas, alegadamente por
desejar afastar-se do “(…) ambiente repleto de engenheiros e de engenharias” (Tiago, CI, p.1) que, há longos anos, têm
caracterizado a sua vida profissional.
A transição do SEUC para o SEMC não foi uma transição fácil porque, além das diferenças que são características
destes dois sistemas, ocorreu num período de reorganização pessoal e familiar. O Tiago refere, que “(…) foi um pouco difícil
essa transição. Mas depois (…) adaptei-me bem e o suporte dos professores nessa matéria é fundamental” (Tiago, E1, p. 6).
Para o Tiago, os professores, e a postura que estes assumem face aos alunos, têm favorecido não apenas a adaptação ao
sistema de ensino recorrente, mas também tem contribuído para que se mantenham motivado. Este participante é um lutador,
que persegue os seus objectivos, e que teima em fazer com que estes mesmos objectivos também passem pela Escola. Apesar
de reconhecer que o regresso à Escola, na idade adulta, “(…) não é fácil” (Tiago, CI, p. 1), também assume que o regresso à
Escola sempre fez parte do seu projecto de vida sendo que “(…) a vontade de continuar os estudos e de evoluir pessoal,
social e profissionalmente” (Tiago, CI, p. 1) é a fonte de inspiração e de força que o vai ajudando a continuar.
São muitos e diversificados os motivos que o Tiago aponta como os mais significativos e os que mais contribuíram
para o seu regresso à Escola no ensino recorrente e, nomeadamente, no SEMC. Segundo salienta, “(…) o principal motivo
[do regresso à Escola] prende-se com um “sonho” que tenho desde a minha adolescência. Quero conseguir candidatar-me ao
Ensino Superior e licenciar-me em Sociologia” (Tiago, Q1, p. 1). À semelhança dos restantes participantes nesta
investigação, no projecto de vida do Tiago também consta a conclusão do ensino secundário e a continuação de estudos a
nível superior. Neste caso específico, a área escolhida por este participante é a Sociologia. A escolha por esta área do saber
justifica-se “(…) [porque] gosto dessas áreas, acho extremamente interessantes” (Tiago, Q1, p. 1).
O Tiago sublinhou também que o seu regresso à Escola resultou de alguma “(…) pressão familiar, [e] porque acho
que devemos ocupar ao máximo o nosso tempo com coisas úteis e porque sentia que podia e tinha potencial para poder
continuar com os estudos” (Tiago, Q1, p. 1). No caso específico deste participante, a influência da família, personificada na
sua esposa, também contribuiu para este regresso. Como este sublinha, “(…) minha esposa deu-me [força e] incentivou-me.
Foi ela que me deu o suporte, o apoio. Se não, não teria (…) avançado” (Tiago, E1, p. 1). A importância dos familiares, ou
dos indivíduos que estão mais directamente envolvidos com estes alunos adultos, revela-se como muito significativa no
incentivo para regressar à Escola. No caso do Tiago foi a sua esposa que desempenhou este papel incentivador, essencial para
quem está indeciso em regressar, ou não.
Para o Tiago, “(…) o regresso à escola foi, (…) interessante. (…) vinte anos após, o abandono escolar. (…) [decidi
que] tinha de voltar à escola” (Tiago, E1, p. 1). Este regresso à vida académica já havia sido equacionado em outros

402
momentos da sua vida. No entanto, a hesitação e a dúvida em regressar foram constantes, durante cerca de duas décadas. O
principal motivo que derrubou as suas hesitações foi o desejo, cada vez mais marcante, de prosseguir estudos a nível superior.
O Tiago ilumina esta posição afirmando que “(…) podia ter voltado muitos anos antes (…) mas ‘tive naquela “vou, não vou;
vou, não vou; vou, não vou”. Até que decidi mesmo vir com cada vez mais vontade de seguir Sociologia” (Tiago, E1, p. 4).
Depois de regressar e de se inscrever no SEMC, o Tiago recomeçou a estudar e a reestruturar a sua vida familiar e
profissional. Foi necessário adaptar a sua vida pessoal e familiar à vida académica, redistribuir o tempo e reorganizar as
actividades quotidianas. Para o Tiago, à semelhança do que acontece com uma parte muito significativa dos alunos adultos, a
escola vem roubar tempo à família e às actividades de lazer. Neste caso, “(…) o ganho a nível de conhecimentos e de
competências apropriadas pelos alunos envolve muitas vezes uma diminuição acentuada do tempo disponível para a
socialização com amigos e familiares, para a diversão ou para investir em novos projectos ou desafios” (Investigador, DB,
pp. 14-15). Em compensação, a escola permite a socialização entre colegas e professores, a promoção da auto-estima
positiva, a definição e conquista dos projectos de vida e o nascimento da visão de um futuro muitas vezes sonhado e que,
pouco a pouco, se vai vislumbrando ao longe, progressivamente, com mais clareza. No caso do Tiago, o projecto de vida não
foi alterado pela entrada nesta escola uma vez que já estava previamente definido e as linhas traçadas com alguma segurança,
sendo que a sua consecução, apesar de passar pela escola, não dependeu apenas desta mas da sua motivação em prosseguir
estudos a nível superior.
A Maria regressou a esta escola no ano lectivo em que se desenrolou esta investigação e cerca de 26 anos depois de
a ter abandonado. Diferentes conjecturas de ordem familiar, social e política dessa época levaram o seu pai a impedir o
prosseguimento dos estudos, na área que lhe interessava. Como a Maria refere, deixou de frequentar o ensino regular diurno
porque “(…) na altura gostava de seguir Arquitectura, (…) no local onde estudei não existia e tinha que ir para Lisboa e o
meu pai não autorizou” (Maria, Q1, p. 1). Anos mais tarde regressa a esta escola, agora inscrita no 10º ano do SEMC. A
decisão de regressar à Escola já havia sido equacionada, por si, numerosas vezes, mas só se concretizou verdadeiramente
quando o marido resolveu inscrever-se também, fazendo pressão para que a Maria o acompanhasse. Quando procurámos
saber o que tinha influenciado o seu regresso refere-nos que “(…) o meu marido obrigou-me a vir, obrigou-me entre aspas,
pressionou-me a vir” (Maria, E1, p. 3).
Pelo que nos foi possível observar, ao longo desta investigação, nomeadamente através do “posicionamento” e
“postura” da Maria em aula, acreditamos que a decisão de regressar, ao contrário do que nos quer fazer crer, não teve como
base principal a pressão feita pelo marido, mas antes a vontade pessoal. A Maria caracteriza-se como uma mulher “(…)
autónoma, emancipada, ambiciosa e lutadora” (Maria, E2, p. 3), características que se observam no seu comportamento em
aula, na postura que assume nos debates e nas posições reveladas nas conversas informais que decorreram. Por tudo isto, não
cremos que se deixasse influenciar e “obrigar” por quem quer que fosse. Mais tarde, acabou por confessar-nos que não foi
para si difícil o regresso à Escola, até porque “(…) gosto de aprender, não gosto (…) da monotonia, gosto de mudar inclusive
a nível de trabalho também, gosto de estar sempre a mudar e gosto muito de aprender, mas aprender mesmo não é vir e (…) é
mais um desafio para mim e também me dá satisfação pessoal” (Maria, E1, p. 4).
Das palavras da Maria não transpira qualquer relutância ou desagrado em relação ao regresso a esta escola. Pelo
contrário, confessa que, fazendo parte dos seus planos e projecto de vida, sente prazer em aprender e que o regresso também
contribuiu para quebrar a monotonia e as rotinas que, ao longo de tempo, se foram instalando na sua vida. Refere, no entanto,
que não lhe basta frequentar esta escola para que se sinta bem, para que se sinta mesmo realizada. Precisa de aprender e de
alargar os seus horizontes, quer a nível de conhecimentos quer a nível da construção de novos projectos de vida. Quando
procurámos conhecer as dificuldades que sentiu no regresso à Escola, salientou que não sentiu grandes dificuldades. No
entanto, o receio inerente ao regresso a uma vida académica há muito abandonada, trouxe consigo alguma incerteza e receio
de não se conseguir enquadrar novamente nesta escola, no seu ritmo de trabalho. Para este receio inicial também contribui o
medo de não se surpreender a si própria e de se decepcionar.
Para esta participante o regresso à Escola não assenta na necessidade de progressão na carreira ou na procura de
realização profissional. O que procura na Escola “(…) é mais (…) satisfação pessoal do que profissional” (Maria, E1, p. 4). O
desejo de seguir estudos na área da Arquitectura foi, com o tempo e com as funções profissionais, trocado pela Informática, o
que a levou a frequentar o Curso de Tecnológico de Informática, na escola em que se desenvolveu esta investigação. A opção
por esta área do saber prende-se com o seu gosto pessoal e, ao mesmo tempo, pelo trabalho profissional quotidiano implicar
uma actualização constante em termos das novas tecnologias da informação e da comunicação.
Apesar de ter referido que as razões do seu regresso à Escola não se prendem com o seu progresso a nível laboral,
mas pessoal, sublinha que um dos motivos que sustentaram a sua opção pelo curso de informática está intimamente
relacionado com o ser esta a área em que tem mais responsabilidades a nível profissional. Procura, deste modo,
conhecimentos escolares que possam ser aplicados a nível laboral, contribuindo para o seu desempenho profissional. Quando
regressou à Escola, a Maria acrescentou mais uma actividade à sua já densa vida profissional, pessoal, política e social. O
marido ter ingressado com ela no SEMC e serem colegas de escola, curso e turma, minimizou as suas dificuldades a nível
familiar. Esta partilha familiar de desafios e dificuldades ao regresso à Escola, na idade adulta, proporciona uma maior
compreensão, aceitação e colaboração, por parte da família, na decisão de voltar à Escola.
Apesar da vida profissional e das diferentes actividades que desempenha, tem a mais valia de contar com o apoio
incondicional do marido que, segundo nos refere, mostra compreensão, aceitação e partilha face à vida ocupada que tem.
Além de na escola, é frequente o marido da Maria acompanhá-la em muitas actividades e partilhar com ela o gosto pela

403
diversidade de tarefas sociais e culturais. Daí a Maria afirmar que a família está consigo. Esta constatação poderá ter uma
dupla interpretação. Por um lado, o marido acompanha-a quer no regresso a esta escola quer nas outras actividades que
desempenha; por outro lado, porque se sente acompanhada e apoiada nas diversas tarefas que desempenha e nas quais está
envolvida.
Como podemos observar, tal como o Tiago, a Maria também considera que o seu projecto de vida não é
remodelado pela sua passagem por esta escola. A entrada nesta escola, sendo um modo de conseguir a conclusão do ensino
secundário e dando-lhe a possibilidade de poder concorrer para um nível superior de estudos, não lhe impõe um reformular
do seu projecto de vida, mas antes a realização do projecto de vida já delineado antes do regresso à Escola.

Considerações Finais
A educação de adultos, a nível europeu, vive momentos de mudança. De mudança de paradigmas, de objectivos e
de prioridades. Importa, hoje, a formação de indivíduos que sejam críticos e participativos nos domínios sociais e políticos.
Importa, hoje, uma educação de adultos que não apenas ajude a mudar mentalidades, mas que contribua para a inclusão
social, bem como para o desenvolvimento integral dos indivíduos. Na última década, a UE vem sublinhando a necessidade de
um investimento crescente na formação profissional dos cidadãos activos para que, deste modo, o próprio projecto da Europa,
enquanto UE, seja mais fácil de alcançar.
Com esta investigação podemos recolher o testemunho e as perspectivas que os participantes neste estudo nos
foram referindo acerca dos projectos de vida, objectivos, motivações e dificuldades encontradas no regresso à Escola. Além
de sublinharem alguns aspectos paradigmáticos nos domínios da educação de adultos e, de uma forma mais concreta, no que
se refere ao ensino secundário recorrente, também nos revelam um pouco de si mesmos, da personalidade, da história de
vida, dos projectos de vida e das motivações que os fizeram transpor (novamente) os portões desta escola, com o objectivo de
concluir os estudos a nível secundário.
Três dos participantes neste estudo, o Francisco, o Tiago e a Maria, consideram que o projecto de vida não foi
influenciado pela sua passagem por esta escola, porque estes projectos já estavam definidos com alguma segurança e clareza
previamente, sendo as motivações para os conseguirem concretizar muito fortes. Estamos face, como podemos observar, a
quatro participantes, que desde sempre pensaram regressar à Escola. No entanto, a passagem por esta escola, integrados no
sistema de ensino secundário recorrente, apenas influenciou o projecto de vida da Sara. Resta-nos interrogar se a escola está a
desempenhar bem o seu papel de educadora/formadora, abrindo horizontes aos indivíduos adultos, ou se está, apenas, a
depositar conhecimentos (Freire, 1975).
Consideramos que é fundamental repensar a educação de adultos em Portugal, reformulando os seus princípios e
orientações (se é que estes existem!). Contudo, também temos de nos insurgir contra a tendência europeia de canalização da
educação de adultos como modo de se superar as lacunas da Europa, ao nível estrito da empregabilidade. A educação de
adultos não deve ser apenas perspectivada como um modo de preparar indivíduos para um determinado desempenho
profissional. Tem, também, de os preparar para a vida quotidiana, para a participação social e política activas e criticas,
enquanto cidadãos, para a reflexão em torno dos problemas da humanidade. Mais do que apenas formar, importa preparar
indivíduos capazes de enfrentarem e superarem os desafios que a vida em sociedade lhes coloca. Importa prepará-los para a
vida. Importa levá-los a (re)pensar que percurso(s) querem trilhar na sua vida.

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Os Jovens Alunos do “Último Turno”: Produzindo Outsiders

Eliane Andrade
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
elianeribeiro@domain.com.br

Resumo: O trabalho discute o universo que compõe a Educação de Jovens e Adultos - EJA, privilegiando o sentido da escolarização
vivenciada pelos alunos jovens. Aborda esses alunos como outsiders, no sentido de Norbert Elias, considerando que essa ação educativa é
parte de um processo, desigual e excludente, que não existe por forças naturais, mas por mecanismos construídos ao longo do tempo e por
meio de práticas sociais que se desenvolvem dentro e fora da escola, tendo em vista ser essa modalidade educativa direcionada basicamente
para os segmentos mais pobres da população, que carregam uma trajetória educacional marcada pela desigualdade de oportunidades
educativas e sociais. O trabalho resgata o lugar ocupado pela EJA na construção das políticas públicas brasileiras, destacando elementos para
repensar a ação do Estado no âmbito da EJA. O estudo está baseado em pesquisa realizada junto a escolas e alunos vinculados aos cursos
presenciais de EJA com avaliação no processo - ensino fundamental, de 5ª a 8º séries, e ensino médio -, no âmbito do Estado do Rio de
Janeiro. Apresenta características sócio-demográficas e percepções dos jovens alunos sobre as suas vivências escolares e perspectivas
futuras. Este percurso analítico revelou a inadequação do atendimento de EJA face à diversidade das demandas dos que o procuram e a
relação entre as desvantagens escolares neste nível e a origem social, restringindo as escolhas dos alunos de menor renda ao que é possível e
não ao que é necessário.

405
O foco desta comunicação está centrado nas experiências vivenciadas por jovens pobres, alunos de escolas noturnas
de Educação de Jovens e Adultos – EJA, os chamados jovens do “último turno”. O objetivo é compreender como esses
jovens interpretam a educação que lhes é reservada e o lugar que lhes cabe no sistema educacional brasileiro.
O estudo contempla jovens alunos e alunas, entre 15 e 24 anos, que cursavam o ensino fundamental noturno, na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos, em escolas públicas da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, no
ano de 20021. Os resultados indicam que observar práticas singulares, pode oferecer pistas importantes para o entendimento
de questões amplas tais como as desigualdades, os difíceis processos de inclusão da população mais pobre via educação, bem
como conhecer estratégias, disputas, espaços de resistência e caminhos alternativos. Ao valorizar os testemunhos desses
jovens, pretende-se encontrar caminhos mais prósperos para a escola e seus alunos, considerando que as expressões juvenis
podem retratar projetivamente a sociedade, anunciando as esperanças em relação ao presente e às possibilidades de futuro
(Abramo, 1997).

Os jovens da EJA
Na contramão dos discursos que atribuem uma suposta excepcionalidade aos perversos índices de baixa
escolarização observados historicamente no país (tais como indicadores de distorção série/idade, idade/conclusão,
analfabetismo absoluto, analfabetismo funcional, repetência, abandono, desistência entre outros), contata-se que estes não se
configuram a exceção para a juventude oriunda das camadas populares. Na verdade, tais indicadores representam a regra, o
modus vivendi socialmente imposto a milhões de indivíduos. Antes de deformações, constituem partes intrínsecas de um
sistema educacional que tem com uma de suas marcas principais a exclusão. A reduzida parcela daqueles que retornam a
escola noturna e conseguem superar as estatísticas de baixa escolaridade impostas aos jovens das classes populares devem o
feito a um esforço individual sobre-humano, a um maciço e penoso investimento familiar ou à ocorrência de “encontros”, em
sua maior parte, ditados pelo acaso.
Em linhas gerais, a Educação de Jovens e Adultos abarca processos formativos de natureza diversa, cuja efetivação
se dá a partir da interação de uma variedade de atores, envolvendo, de um lado, o Estado, as organizações da sociedade civil e
o setor privado, entre outros, na oferta de determinados serviços educacionais, e, de outro, como receptores dessa oferta, uma
gama de sujeitos tão diversificada e extensa quanto são os representantes das camadas mais empobrecidas da população
brasileira (negros, jovens, idosos, trabalhadores, populações rurais, privados de liberdade etc.)2.
Reconhecendo a complexidade inerente à EJA, a abrangência dos seus processos e a diversidade dos atores
envolvidos na sua oferta, destacam-se aqui os jovens. Vale assinalar que a inclusão dos jovens nessa modalidade de educação
é recente na história do país, acompanhando o próprio crescimento da categoria juventude, enquanto categoria de análise,
categoria social e política:
No Brasil, os jovens que freqüentam a EJA não são um grupo abstrato, mesmo consideradas as suas singularidades,
pode-se afirmar, de forma geral, que são jovens pobres, excluídos, moradores das periferias, favelas e vilas das nossas
grandes cidades, majoritariamente negros, que circulam no espaço escolar inúmeras vezes, após o período da chamada “idade
própria” e reconhecidamente reservado para a vida escolar, ou seja, de 7 a 14 anos de idade. Muitos deles, indicando a
relação entre desvantagens escolares e a origem social dos alunos, são produto de uma escola sem qualidade, destinada aos
mais pobres, à qual o acesso é garantido, mas na qual uma expressiva parcela entra e não aprende, repete ou é empurrada para
as séries seguintes até evadir-se, engrossando a massa de jovens e adultos para os quais foi oferecida apenas uma remota
aspiração de escolaridade. No retorno à escola, via EJA, muitos se agarram aos cursos que prometem garantir chances de
“empregabilidade”, buscando, assim, melhorar a embalagem de uma mão-de-obra que ninguém quer, numa sociedade de
intensa redução dos postos de trabalho (NOSELLA,1987, p.39).
Conforme é destacado na introdução da edição brasileira do livro Os estabelecidos e os outsiders3, de Norbert Elias
e John L. Scotson, outsiders são aqueles que não são membros de uma “boa sociedade”, os que estão “fora dela”. Trata-se,
pois, de um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais extremamente tensos que denunciam situações
de desigualdades e exclusões, tal como as vividas pelos alunos da EJA participantes da pesquisa que deu origem a este

1
Foram realizados 12 grupos focais, com 107 alunos e alunas e 34 visitas para observação de campo em quatro na região metropolitana do Rio de Janeiro,
localizadas nos municípios de Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Belford Roxo e Nova Iguaçu. Cabe esclarecer que grupo focal consiste em uma técnica que tem
como objetivo levantar e explorar questões centrais de interesse para um grupo social com características semelhantes - nesse caso específico, jovens alunos de
escolas públicas noturnas de EJA. Baseia-se na realização, com a mediação de pesquisador, de um debate que permite reconhecer temas polêmicos, diversidade
de perspectivas dos participantes e, principalmente, a emergência das opiniões, preocupações, prioridades, percepções, igualdades e diferenças, tal como se
manifestam.
2
No âmbito da educação escolar, a EJA apresenta-se como modalidade destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino
fundamental e médio, conforme o Art. 37 da nova LDB (Lei nº 9394/96), cabendo aos sistemas de ensino assegurar aos jovens e aos adultos, gratuitamente,
oportunidades apropriadas mediante cursos e exames. Na perspectiva da Declaração de Hamburgo (UNESCO, 1998), essa modalidade se traduz por processos de
aprendizagem, formais ou não-formais, pelos quais “as pessoas cujo entorno social considera jovens e adultos desenvolvem suas capacidades, enriquecem seus
conhecimentos e melhoram suas competências técnicas ou profissionais” (p. 3), de forma a atender suas próprias necessidades e as da sociedade.
3
Os estabelecidos e os outsiders é o resultado de aproximadamente três anos de trabalho de campo, realizado no final da década de 50, em uma pequena
comunidade no interior da Inglaterra. Caracteriza-se por ser um estudo etnográfico, que busca compreender a natureza e os laços de interdependência que unem,
separam e hierarquizam indivíduos e grupos sociais. O livro foi editado pela primeira vez em 1965 e ocupou um lugar singular na história da teoria social do
período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando a sociologia estava dominada pelo modelo estrutural-funcionalista. O trabalho de Norbert Elias consiste em
mostrar que dados empíricos, aparentemente menores e insignificantes, podem se transformar em via privilegiada de análise, contribuindo para a construção da
realidade social e iluminando as formas mais gerais da vida social, o que pode ser chamado de “reflexividade” singular.

406
trabalho. No reverso, a palavra “estabelecidos” (established, em inglês) é utilizada para designar grupos e indivíduos que
ocupam posições de prestígio e poder, “uma identidade construída a partir de uma combinação singular de tradição,
autoridade e influência, fundando o seu poder no fato de serem um modelo moral para os outros” (NEIBURG, apud ELIAS e
SCOTSON, 2000, p. 7).
Por esta linha, compreender como outsiders a grande maioria dos alunos e alunas jovens beneficiários da EJA, no
Brasil, tem como finalidade chamar a atenção para o fato que essa ação educativa faz parte de um engenhoso e perverso
processo desigual e excludente que não existe por forças naturais, mas sim por mecanismos construídos ao longo do tempo,
através de práticas sociais que se desenvolvem dentro e fora da escola, tanto no âmbito do micro como do macrossocial. Toda
esta gama de situações constitui expressão de uma produção de outsiders, considerando ser a EJA uma modalidade educativa
direcionada, basicamente, para os setores mais vulneráveis, do ponto de vista socioeconômico e cultural, e que seus atores
carregam marcas profundas causadas pela desigualdade das oportunidades sociais e educativas. Procuramos, enfim, discutir
como os processos de EJA vividos pelos jovens, explicitam profundos e perversos processos de desigualdades e
desvalorização social.
Contudo, cabe ressaltar, que os processos sobre os quais discorremos são compreendidos como ações em
movimento, não permitindo a construção de análises baseadas em interpretações prescritivas e dogmáticas, como se o atual
estado em que se encontra a ação educativa da qual falamos e os jovens que dela fazem parte não comportassem um potencial
vigoroso de mudanças.

A escola de EJA na visão dos alunos


Os alunos tendem a creditar a essa modalidade de ensino a possibilidade mais viável de conseguir uma certificação,
como recuperação de um “tempo perdido”, como de melhoria nas possibilidades de emprego. O alcance a uma certificação
concreta, aliada às poucas exigências do curso, constitui uma das maiores atrações para boa parte dos alunos: Eu vim pra EJA
porque não precisa estudar muito e eu preciso do diploma bem rápido para conseguir um emprego melhor (Grupo focal com
alunos de EJA, Nova Iguaçu).
A EJA transparece no depoimento dos jovens alunos com uma imagem social negativa. Declaram, inclusive, ter
consciência de que essa visão negativa perpassa toda a sociedade:
Acho que EJA é melhor um pouquinho que as demais ofertas educativas. Quando a gente diz que faz EJA é logo
chamado de “vagabundo”, “burro”, ficam pensando que a gente não sabia nada na escola. (Grupo focal de alunos de EJA, Rio
de Janeiro)
Aqui é muito acelerado e superficial, resumido, não dá para assimilar todo o conteúdo que deveria ser assimilado.
A gente não consegue arrumar um bom emprego se diz que fez supletivo, EJA, sei lá o nome. (Grupo focal de alunos de EJA,
Belford Roxo)
Quem faz EJA está sempre na pior, tem que fazer uns cursinhos pra melhorar. A maioria pensa assim. (Grupo focal
de alunos de EJA, Duque de Caxias)
Alguns alunos do Ensino Fundamental mostraram-se interessados em cursar o Ensino Médio no Ensino Regular
Noturno, como aspiração a um ensino de melhor qualidade: Eu pretendo ano que vem ir para o regular, aqui de noite mesmo,
lá tem mais exigência, é mais sério, pode me preparar melhor para o vestibular, ou até para um concurso público. (Grupo
focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro)
Quando o assunto é a escola, de um modo geral, não restringindo ao atendimento de EJA, uma das referências
importantes para os jovens é o que muitas vezes chamam de “ambiente”, isto é, o modo como se sentem no espaço escolar, a
interação que conseguem ter junto, sobretudo, aos outros alunos. As relações de amizade constituem o foco desses relatos e
são descritas, em especial, nas formas de ajuda mútua que têm lugar durante o período em que o jovem estuda. A
solidariedade é extremamente valorizada, bem como sua falta é apontada como grave problema enfrentado pelo jovem na
escola:
Não tem coleguismo, não tem união. Falta um dia, chega no outro dia você pergunta [...] “Não sei”. “Ah, também
não sei”. “Ah, não sei”. [...] O professor passa um trabalho na sala, ninguém [...]. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford
Roxo).
Constatamos que, de escola para escola, o “ambiente” que os alunos encontram para estudar varia
consideravelmente. As dificuldades de inserção, como a existência de “panelinhas” na turma, são apresentadas, igualmente,
como aspecto fundamental na caracterização da vida escolar, reproduzindo o modelo de escola que carregam de suas
experiências.
Eu acho assim, na nossa sala tem muita panelinha. Sim, porque eles gostam de inferiorizar alguns, [...] de se
exaltar. Eu não sei por que acontecem essas diferenças, só sei que é desse jeito. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de
Janeiro).
Outro modo de os jovens avaliarem o “ambiente” que encontram em sua escola é o que chamam de “animação”. A
escola, para eles, aparece com um espaço bem amplo de educação, que vai além dos rígidos conteúdos escolares: “Você
estuda, não conversa com ninguém e vai embora.” (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias). Desse modo, ter
“pouca gente”, por ser pequena, ou ter poucas festas e atividades, recreios muito curtos, de quinze minutos apenas, são
expressões do “ambiente” que os jovens consideram “um lugar muito parado”, e com o qual não se identificam.

407
De fato, nos depoimentos dos jovens que participaram dos grupos focais, as ênfases nas razões para estudar na
escola que freqüentam recaíram nestes aspectos que compõem um ambiente onde pensam poder sentir-se bem, junto com
outros jovens com os quais convivem e com os professores também.
Sempre gostei de estar enturmada e aqui eu já conheço muita gente. E aqueles que eu não conheço, já é fácil de
conseguir falar, porque estou sempre vendo. (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu).
Fácil inserção, ajuda mútua, harmonia e animação são algumas características buscadas e valorizadas pelos jovens
nas escolas. Isto pode ser constatado mesmo quando enfrentam situações de violência e outros problemas que incidem
fortemente sobre o processo de aprendizagem.
Apesar de muitas vezes os jovens, em seus depoimentos, apresentarem uma única razão para explicar por que
estudam em determinada escola, o que observamos é que a escolha do local em que se estuda é resultado de um cálculo que
envolve diferentes critérios, que, por sua vez, são acionados numa ordem de importância em função da situação vivida por
eles. Dessa forma, os itens acionados pelos jovens para explicar o porquê de estudarem em determinada escola e que estavam
dirigidos para a viabilidade concreta de sua vida escolar, muitas vezes, se relacionam diretamente com as condições materiais
de sobrevivência deles e de suas famílias.
O argumento da proximidade da escola, apresentado em depoimentos de alunos, em alguns casos esteve associado à
economia com passagem de ônibus que proporciona, além de significar, para todos, ganho de tempo e diminuição de esforços
para percorrer o percurso da moradia ou do trabalho até a escola. A localização da escola adquire, ainda, significados
distintos para os jovens que trabalham. A proximidade da escola, para eles, mais que comodidade, é, muitas vezes, condição
para que possam estudar: “Porque quem trabalha, geralmente, não tem tempo de chegar em casa e tomar aquele banho
tranqüilo antes de sair pro colégio. Eu, geralmente, não tenho tempo”. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).
Situar-se perto do local de trabalho ou de moradia do aluno resulta, também, segundo seus depoimentos, em diminuição de
riscos inerentes a deslocamentos em determinados itinerários e áreas da cidade considerados perigosos pelos jovens: “Ficava
um pouco mais longe. Aí, uma vez um cara me assaltou. Aí eu fiquei com medo de ir sozinha. Aí [..] eu escolhi, botei a
primeira, mais importante. Aí eu fui escolhida pra cá.” (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).
A segurança pode ser critério de escolha de uma nova escola mais importante que o critério proximidade, o que
indica a intensidade com que alguns jovens experimentam a violência, o modo como interfere diretamente no seu cotidiano
escolar. De fato, em diversos depoimentos alunos apresentaram questões de segurança como determinantes para a eleição de
uma escola para estudar:
Eu não estudava aqui. Eu estudava em outro bairro. Eu vim para cá porque só aqui eu consegui vaga. Só que tinha
mais próximo de casa. Só que lá é bem mais violento. Aqui tem sua restrição, eles não deixam nem sair nem entrar. E lá não,
é liberado. Lá tem o pessoal que fuma na escola, tem o pessoal que vende droga. Lá [...] tem briga direto, policia vai lá de vez
em quando. Eu já tinha estudado aqui em noventa e oito. Aí eu fiquei aqui, porque não é tão perigoso. O pessoal sempre
falava: “Ah, ele está estudando lá no morro”. Aqui é conhecido como morro. Eu já achei mais segurança aqui do que na
escola municipal. À noite, tudo pode ser mais perigoso aqui na rua (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo).
Por outro lado, é difícil aferir o quanto o local onde a escola se situa interfere efetivamente na escolha, aspecto que
os indivíduos associam de modo direto ao estrato social daqueles que a freqüentam. Indicando que estudar em uma escola
situada em determinado bairro popular, menos valorizado, como dentro de determinadas favelas, pode funcionar como
estigma, jovens comentam que, apesar disso, encontram nesta escola mais segurança que em outras próximas ao seu local de
residência, consideradas por pessoas do seu bairro como mais seguras:
Eu, como moro um pouco mais longe, lá na Barra, vim para esta porque, mais perto, só tinha o [...]. Aí eu fiquei
meio assustada, todo mundo falava: “Lá é bagunça”, e isso e aquilo. Aí eu falei: “Ah, então eu não vou para lá, vou para o
[...]”. Aí eu vim para cá. Quando as pessoas lá do meu bairro perguntavam: “Onde você está estudando?” [eu respondia] “Lá
no [...]”. Todo mundo falava: “Ah, você é louca!”. De noite todo mundo fica assustado. Mas eu não. (Grupo focal com alunos
de EJA, Rio de Janeiro).
Além do item proximidade, há outros ligados à viabilização da vida escolar que incidem de maneira especial nas
escolhas dos jovens que trabalham. É o caso da escola oferecer ou não turmas em determinado turno. Para quem trabalha e
tem disponibilidade de tempo para o estudo apenas em um período do dia bastante demarcado, o horário torna-se critério
fundamental para escolher a escola onde irá estudar, o que faz com que alguns concebam como “falta de opção” estudar
naquele lugar: “Eu, foi falta de opção mesmo. Porque eu não queria fazer curso profissionalizante, técnico, assim não. Eu
queria fazer o básico mesmo. Eu estava na [...], só que lá não tem mais à noite.” (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de
Caxias).
Outro aspecto que incide na decisão a respeito de onde os jovens irão estudar, de fato delimitando o seu campo de
escolha, é a disponibilidade de vagas. Este elemento - vagas disponíveis - apresenta-se como realidade e preocupação: “O
ensino é péssimo, mas estudar aqui é melhor que nada”. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias). Ou, ainda:
“Bom, o ensino é fraco mesmo. Mas o que eu posso fazer, se eu não consegui vaga em outra escola?” (Grupo focal com
alunos de EJA, Duque de Caxias).
Nesse sentido, ter alguém de suas relações que possa conseguir uma vaga em uma determinada escola pode ser
também fator que explica, muito concretamente, a inserção do jovem em uma determinada instituição escolar: “A amiga do
meu pai trabalhou aqui, e como eu tava correndo atrás de escola que tivesse EJA [...], ela resolveu arrumar uma vaga pra mim
aqui.” (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu).

408
Quando escolher a escola não é atribuição do aluno, minoria entre os jovens de EJA, mas dos pais ou de outros
responsáveis, em seus depoimentos, por vezes, os jovens reclamam justamente por não concordarem com os critérios das
escolhas efetuadas sem sua participação e, mais raramente, da escola propriamente dita. A aceitação da escola, mesmo sem a
participação na escolha, confirma, em primeiro lugar, a imensa facilidade de os jovens gostarem das instituições onde
estudam, preferindo enfatizar, nos seus depoimentos, as suas qualidades Em segundo lugar, remarca a sua enorme disposição
para a construção de uma boa sociabilidade no espaço escolar. Além disso, confirma o quanto esses jovens precisam valorizar
o seu ambiente escolar, quase que uma defesa daquilo que lhe resta.
Os debates sobre a aprendizagem nos grupos focais de alunos tratam, principalmente, das questões que eles
enfrentam. Surgem, com freqüência, dois problemas considerados pelos jovens como dos maiores da escola, também
verificados nos dados obtidos junto a eles por meio de questionários da pesquisa quantitativa: o desinteresse dos alunos,
acrescido, ainda, pela falta de assiduidade e de competência docente. De fato, nesses debates, os jovens discutem e enfatizam
sobretudo os procedimentos educativos sob responsabilidade dos professores. Entretanto, muitos dos comentários sobre a
dificuldade de aprender envolvem, mais uma vez, a responsabilização dos alunos. Para grande parcela deles, a aprendizagem
dependeria mesmo apenas do interesse do aluno, e isso diria respeito às características e à vontade de cada um: “A pessoa
quando quer aprender, ela aprende. Agora, quando não quer, não tem jeito. Então, vai de cada um. Se ele se interessar, ele
aprende.” (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro). Essas indicações reforçam as reflexões de Dubet (2001), tanto
sobre a responsabilização dos próprios jovens pelos problemas que enfrentam em relação ao seu fracasso, de modo a
considerarem-se responsáveis pela sua própria infelicidade, deixando-se invadir por aquilo que esse autor denomina de
“consciência infeliz”, quanto pelos comportamentos assumidos com a intenção de “sair do jogo escolar”.
Frente ao desinteresse dos alunos, considerado por muitos jovens como a causa primeira das dificuldades de
aprendizagem, caberia aos professores “cobrar” sua atenção e dedicação, “pegar no pé” deles: “De vez em quando, é bom
pegar no pé de aluno que não se interessa. Às vezes, a professora pegando no pé, ele tem mais interesse.” (Grupo focal com
alunos, EJA, Duque de Caxias).
Em contrapartida, na visão desses alunos, os professores deveriam perceber e valorizar aqueles que imprimem
esforço ao processo de aprendizagem, ainda quando não alcançam resultados muito bons nas provas e outras aferições do
aproveitamento escolar. O depoimento a seguir ilustra bem como o interesse pela aprendizagem é um valor para os alunos,
como também a questão do mérito. Possuir ou produzir interesse, como temos visto, é critério fortemente utilizado pelos
jovens para sua avaliação sobre as razões de sucesso ou não na aprendizagem:
Uma coisa que eu acho também. É em relação aos alunos que tiram nota boa e alunos que não tiram. [...] Por mais
que ela [a professora] esteja dando oportunidade pra gente que às vezes é bom aluno, ela esquece que, às vezes, tem outros
alunos que são muito bons. [...] O professor não percebe, às vezes, que tem alunos interessadíssimos, só que têm dificuldade
de aprender. Tem alunos que são, que eu vejo que, às vezes, ficam mais do que quem tira notas boas. Estudam mesmo,
estudam muito e, mesmo assim, não conseguem obter bom resultado na prova e o professor acha que estão conversando, e
não estão conversando. Estão prestando atenção na aula. Os professores, às vezes, valorizam muito mais nota do que esforço,
que eu acho que é muito mais importante. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).
Gostar ou não de uma matéria não diz respeito apenas ao seu conteúdo ou ao interesse que ele desperta. Está
diretamente vinculado à relação estabelecida pelos alunos com o professor e, nesse sentido, os melhores professores podem
ser tanto os que dialogam, conversam com os alunos como os que pouco conversam, mas são bastante exigentes nas aulas:
Não gosto de matemática. Não por causa da matéria, mas por causa do professor. Não gostamos da professora que
ela é muito metida, torna a aula chata, você não vai com a pessoa, você não quer prestar atenção nela, ela ensina por ensinar,
a matéria é chata, o professor é chato. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo).
Tem um professor que é rígido, exige muito da gente, mas a gente percebe que ele quer que a gente aprenda alguma
coisa. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).

Percebe-se também que o professor mais criticado é aquele indiferente aos alunos:
Tem duas professoras que chegam, ficam bebendo refrigerante no corredor, passam uma tarefa e vão conversar,
mais refrigerante e biscoitinho. Depois vão fumar, aí a aula acabou. Já desenharam elas duas gordas de tanto refrigerante.
(Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro)
Aqui a gente faz um teste pra saber se o professor presta atenção na gente: as meninas trazem os namorados e a
gente espera o que eles falam. Tem umas e uns que nunca perceberam. (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu)
Os alunos gostam quando ele enrola, eu sempre falo: ô professor cadê a aula? Mas na hora H, quem perde somos
nós. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).

Para outros jovens, a falta de interesse dos alunos seria também conseqüência dos procedimentos e estratégias de
ensino predominantes na escola. A indicação de livros para serem comprados e que serão pouco utilizados é um dos
exemplos citados, assim como a prática da cópia – do professor mandar os alunos reproduzirem em seus cadernos um volume
grande de texto colocado por ele no quadro-negro:
Em vez de ela estar no quadro, era pra ela estar ensinando [...]. Quase duas aulas direto só copiando, só copiando.
(Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu).

409
E a professora de português, ela pega, ela escreve mais rápido do que nós. Aí ela fica escrevendo. Aí a gente mal
termina, ela já vai explicar de novo. Aí a gente não entende [...]. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).

Outra prática comum nas escolas de EJA e que influi diretamente na aprendizagem, porque suscita, segundo os
alunos, um intenso desinteresse, é a leitura de textos durante as aulas. Tal prática, criticada pelos alunos como monótona, é,
na visão deles, atribuída ao desinteresse dos professores, que substituem a tarefa de explicar a matéria por esta leitura.
O preenchimento do tempo de aula por deveres passados no quadro negro também é objeto de crítica dos alunos:
“Tem uns que se dão de corpo e alma. Tem outros que chegam na sala mandando os outros passarem dever no quadro e ficam
lá batendo papo. Fala [que] vai explicar, depois lê a matéria todinha.” (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).
A monotonia derivada das escolhas didáticas por professores considerados desinteressados ou sem qualificação
explicaria o desestímulo de muitos alunos, alguns dos quais desistiriam da própria vida escolar por conta disso: “Esse
negócio de três horas você tem aula de noite, direto, você dentro de sala de aula escrevendo, e olhando para quadro, professor
que tem a voz enjoada, você ali escutando aquela voz ‘Nhe, nhe, nhe, nhe’ no seu ouvido...” (Grupo focal com alunos de
EJA, Belford Roxo).
Outra questão criticada pelos alunos e que explicaria parte de suas dificuldades é a rapidez e a superficialidade na
exposição da matéria, pelo professor, reconhecendo que o ensino nessa modalidade, particularmente à noite, é diferenciado:

O que a gente aprende aqui de noite, se for para gente aprender o que eles ensinam para o diurno em um ano... Aqui
a gente aprende em dois meses, três meses, tudo é resumido, é pouca coisa. Então, a gente está pegando aquela coisa, aí já
muda para outra. Se a pessoa não pegou, aquela matéria lá fica para trás. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).

Segundo os alunos, o despreparo dos professores não é apenas percebido por eles em relação às práticas
pedagógicas adotadas, mas à especificidade requerida no ensino para jovens e também ao despreparo do professor em relação
ao próprio conteúdo ensinado:
A professora de matemática, ela é formada em outra coisa aí, mas, e nem tem curso de matemática ela tem, ela
chega na sala e pergunta, ela, no primeiro dia, ela falou, vocês botem o nome, e o que vocês sabem, pra poder ajudara ela a
dar aula, então quem dá aula, é a gente, não é nem ela, a gente ensina a ela. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).
[...] tinha que os professores se qualificarem para dar aula. Lógico que os professores não sabem ensinar assim uma
coisa para os jovens e adolescentes, agora coloca um professor que dá aula para o maternal e dá aula para a oitava série,
depois ficam falando com a gente como criancinha. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).

Mas o que parece mobilizar de fato os jovens, quando avaliam que suas facilidades ou seus problemas de
aprendizagem também decorrem da atuação de professores, é o interesse ou o desinteresse dos docentes: “É, então ficou meio
defasado. Os professores também, acho que estão com pouco estimulo, né, pra ensinar também, eu achei, o ano passado foi
mais proveitoso.” (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu).
Os jovens sublinham o quanto a disposição do professor a estabelecer uma relação de proximidade com eles e a
animá-los com brincadeiras nas aulas resulta em um maior aproveitamento: “Na relação professor e aluno, no caso, nós
somos super amigos, a gente brinca, eu conheço quase todos os professores, tem aquela intimidade mais assim. Por mais que
ela tá ensinando, ela tenta levar na brincadeira. A gente tá aprendendo também.” (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de
Janeiro).
Os alunos afirmam ter dificuldades para dialogar com a escola e para encaminhar soluções para os problemas de
aprendizagem que enfrentam: “[...] Eles falam assim: ‘Vamos resolver’. Mas não resolve nada. Vamos conversar com o
professor, mas aí o professor fica bonzinho, aí volta tudo ao normal.” (Grupo de focal de alunos de EJA, Rio de Janeiro). Ou,
ainda: “A gente, não adianta pedir pro professor ou pelo menos trocar ele por outro professor que dá a mesma matéria que
ele. A gente é peso morto aqui dentro, tudo que a gente fala não é levado a sério.” (Grupo focal com alunos de EJA, Belford
Roxo).
Outros aspectos abordados por alguns dos jovens ouvidos dizem respeito às mudanças contínuas no funcionamento
das disciplinas e da escola de EJA: “Tá meio complicado a educação, né? Todo ano eles mudam o sistema, o jeito de os
professores lidar com os alunos, né? É mudança de papelada, de caderneta, tudo muda, todo ano é diferente.” (Grupo focal
com alunos de EJA, Duque de Caxias ). Do mesmo modo, as greves são avaliadas por alguns jovens como empecilho para a
aprendizagem: “No ano passado foi melhor, aprendi mais. Este ano, eu acho [que] por causa da greve que teve, ficou meio
defasado.” (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).
Enfim, a “marca social” da escola de EJA é bastante visível nos depoimentos dos alunos. De outro lado, são
também presentes indicações da escola como espaço eficaz, tanto de socialização, ressocialização, construção e
ressignificação das identidades dos jovens quanto — e principalmente — de recontextualização de determinações sociais e
políticas. Tais possibilidades se concretizam através do trabalho escolar, nas relações que se estabelecem entre os próprios
sujeitos da escola.
É aqui que eu encontro meus amigos, irmãos, brothers mesmo. Eu saio do trabalho, prefiro vir pra cá do que pra
minha casa. (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu).

410
Nos finais de semana a gente se encontra também, as amigas que eu fiz aqui na escola são as que eu saio pra zoar.
(Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro).
Eu sou de Itaperuna, interior do estado. Quando eu vim pra cá, morar aqui na Baixada, eu chorei muito, porque aqui
eu não tinha amigas. Mas tô no meu segundo ano aqui na escola e todas as minhas amigas são daqui, meu namorado também
é daqui. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias).

A marca do turno na vida dos jovens


No último turno, a duração de cada tempo de aula é menor e nem sempre o que é oferecido durante o dia está
disponível, como vimos. Em função do turno, os alunos podem ter sua circulação restrita a certas áreas, um número menor de
aulas e atividades e, por falta de recursos, não usar livros, apenas apostilas. São escolas diferentes, dentro da mesma escola e
os alunos têm clareza disso:
A quadra nunca vi, porque fecharam a quadra porque pegaram gente fumando maconha. Um negócio assim... O
laboratório, de noite, é fechado. Livro? A única forma que a gente tem para estudar é tirando xerox. A biblioteca funcionava
um dia, não funciona mais, né? Ela funcionava e só tinha um dia... mas ela parou porque a moça ficou doente e nunca mais
ninguém abriu a biblioteca. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo).
Eu acho que a escola é uma escola de mentirinha, não tem professor, não tem livro, não tem laboratório, não tem
atividade. A gente vem aqui encontra os amigos, conversa, bate papo e pega umas xerox e finge que estamos estudando. É
tudo de mentirinha... Porque é noite e porque é supletivo. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo)
Quando chega assim de noite, as salas estão todas sujas, cheias de papel. Na nossa sala, muitas vezes, entra uma
pessoa lá, sai e fala como se nós fôssemos responsáveis porque não tem uma lata pra você botar ali lixo, então tem que jogar
numa cadeira velha. Pó, a gente é culpado de tudo aqui na escola, tudo que acontece a diretora diz que foi o pessoal do jovem
e adulto. (Grupo focal com alunos de EJA, Rio de Janeiro)
À noite, a gente só vem para a aula. Não tem nada de diferente para a gente participar... (Grupo focal com alunos de
EJA, Rio de Janeiro)
Tinha uma porção de gente reclamando que de noite não têm saídas, atividades outras que não sejam aulas e aulas,
que de noite ninguém sai e de dia sim. O professor fala: vamos pra onde de noite, se tá tudo fechado. De noite, nós vamos pra
onde? Qual o museu que abre pro pessoal da noite? Não tem, não tem a gente é mesmo discriminado. (Grupo focal com
alunos de EJA, Belford Roxo)
A escola noturna também pode funcionar, particularmente para os mais jovens, como penalidade, punição. Foi
recorrente encontrar na trajetória de vida escolar dos jovens o seguinte caminho: foi transferido do diurno para o “supletivo”
no noturno, devido a problemas relacionados com a disciplina; mais tarde, é transferido para o “supletivo” noturno de escolas
com menor valor social.
Eu vim estudar de noite porque estava fazendo muita bagunça, aí ela avisou que iria me botar pra noite. Eu gostava
mais de estudar de manhã, a escola é mais irada, tem meus amigos. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo)
Quando fiz 15 anos, a diretora me passou pra noite, depois já me mudaram de escola três vezes. Aí vim pro
supletivo. (Grupo focal com alunos de EJA, Nova Iguaçu)
Esse daqui é o terceiro ano que eu estou no supletivo de noite. Ah, antes disso eu já tinha brigado aqui na escola.
Foi várias brigas que eu briguei aí, por causa dos meus amigos, me metia em briga por causa deles, as professoras queriam
me tirar da escola, me mandar pra outra escola. [...] Então as professoras me deram uma chance no noturno, aí eu desisti.
Voltei, continuei a estudar e desisti de novo. Elas agora me deram esta última chance. Essa eu tô aproveitando, aproveitando
muito bem. Porque elas viram que eu tô indo até o final. Meu irmão tava fazendo aceleração, já desistiu na metade do
caminho, e elas viram que eu tô indo muito bem. (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo)
Na escola tem aula de computação pra comunidade. Tem a aula de computação, mas aí é à noite, e à noite eu tô
estudando; daí eu não posso fazer isso. Pra comunidade isso aí que eles estão fazendo. Podiam colocar um tempo da nossa
aula pra aula de computação, de dia é assim. (Grupo focal com alunos de EJA, Duque de Caxias)
O Estado não paga merenda à noite. É a coordenadora que arruma. Porque muitos saem sete da manhã e só chegam
às onze, às dez e meia da noite, o dia inteiro fora, aí eu venho direto do serviço pra cá, pro Colégio, aí tem que ir em casa pra
comer alguma coisa, aí a gente perde, por causa do horário, a gente tem um lanche pra poder abastecer. (Grupo focal com
alunos de EJA, Belford Roxo)
Vamos fazer o seguinte, cartas na mesa: os alunos de dia utilizam o ginásio, fazem educação física, fazem não sei o
quê, vão ali jogam bola, vêm de noite jogar bola de graça os alunos do dia, e nós geralmente sexta-feira, você deve estar
sabendo que, geralmente... que nós, a nossa turma faz um jogo de bola ali, futebol, faz uma turma contra a outra e tal, nunca
deu briga, negócio saudável, esportivo, só que todo mundo põe dois reais do bolso cada um, é vinte poucos pilas ali pra jogar,
daí sai, entra o cara do dia pra jogar bola de graça, sendo que você também é aluno do colégio, eu não entendo qual é, no quê
que eles se baseiam... não sei no que eles se baseiam pra cobrar, porque se é todo mundo aluno eu acho que nós temos
direitos a atividades esportivas, né? (Grupo focal com alunos de EJA, Belford Roxo)

Considerações Finais

411
Ao se tomar como referência as reflexões dos jovens alunos dos cursos noturnos da escola pública na modalidade
de Educação de Jovens e Adultos da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, constata-se que, longe desta educação
estar servindo à democratização das oportunidades educacionais, ela se conforma no lugar dos que podem menos e também
obtêm menos. Na verdade, a posição ocupada pelo aluno no sistema educacional (turnos, modalidades educativas, escolas,
material utilizado, carga horária, faixa etária etc.) é fruto de uma dada hierarquia, em que o valor de cada um é ditado por tal
posição, refletindo o fato de que, de uma maneira geral, a escola brasileira ainda não conseguiu superar a histórica dualidade
que se materializa em uma “escola para a elite” e outra “escola para os pobres”. No caso da EJA, a dualidade se refaz em
inúmeras distinções, quais sejam: “escola para pobres”, “escola para os mais pobres”, “escola para os que não mais merecem
a escola”, “escola para os que precisam apenas de um verniz de escolarização”, entre outras. As conseqüências dessas
distinções estão refletidas desde a dificuldade de obtenção de recursos para a área, de se concretizar sua institucionalidade, de
se proceder à transformação de seus processos pedagógicos até o estabelecimento dos alunos como sujeitos dos processos
educativos.
No Brasil, a educação para as populações mais pobres, desde a primeira Constituição brasileira, foi tratada não
como direito, mas como um instrumento de regulação dessas populações, consideradas como constituídas por seres humanos
de “segunda classe”, menos humanos do que outros. Na verdade, a educação destinada aos jovens e adultos acabou por ser
direcionada para o campo das políticas compensatórias, de suplência, não conseguindo se estabelecer como uma política
universal de direito, portanto, de cidadania. Observa-se um movimento que foi passo a passo construindo uma educação
desqualificada, porque para pessoas que são desvalorizadas socialmente, expresso na utilização de termos que indicam de
forma recorrente características negativas e desqualificadas. A falta de acesso, que pode ser interpretada como apenas uma
das tantas conseqüências “naturais” de ser pobre, delineia um quadro bastante tenso e se traduz em formas de sofrimento no
cotidiano da vida desses jovens, como mostraram os dados qualitativos da pesquisa.
Nessa perspectiva, a busca por uma educação para jovens e adultos ultrapassa o desejo e a necessidade do acesso ao
mundo letrado. Na visão social, construída historicamente, abrange aspectos mais amplos da existência desses indivíduos, os
localizando como “pessoas que vivem à margem”, “não sabem nada”, “são cegas para o mundo”, “inferiores”, “inúteis”,
sugerindo uma posição subalterna na estrutura social e tendendo a avaliar esta condição como sendo de estrita
responsabilidade desse indivíduo.
Os jovens das escolas noturnas de EJA mostraram-se, em muitos momentos, extremamente maduros, assumindo
tarefas identificadas como características da “vida adulta”: trabalham fora, cuidam de irmãos menores, estão inseridos no
mercado de trabalho, contribuem significativamente com a renda familiar e, em alguns casos, são os únicos provedores dessa
renda. Os jovens aqui apresentados contrariam algumas das características estereotipadas que lhes são atribuídas: a
irresponsabilidade, a impetuosidade desmedida, a violência, o desapego aos valores familiares. Ao contrário, essa juventude
exibe um caráter construído a partir das necessidades que regem seu cotidiano, um cotidiano que lhes impõe assumir imensas
responsabilidades e tarefas. Demonstram também um esforço enorme em retornar ou permanecer na escola, sendo
fundamental que as políticas públicas estejam atentas para a construção de estratégias que sustentem esses jovens na escola.
Esses jovens mostram, também, que, apesar dos dramas cotidianos advindos do fato de vivenciarem, como única
opção, uma escolaridade precária e desvalorizada, em sua grande maioria, insistem em exercitar uma pluralidade de formas e
estratégias em busca da escolaridade, oferecendo pistas importantes para as necessárias e possíveis mudanças.
Ainda que identifiquem a perversa precariedade da escolaridade que lhes é oferecida, tendem a justificá-la,
encontrando explicações para o seu fracasso, criando defesas que possam minimizar o peso de fazerem parte de um grupo
social tratado historicamente de forma tão desqualificada. Afinal, desvalorizar a escola que lhes é admitida significa
desvalorizar a si mesmos. Como aponta Bourdieu (1999):
A escola exclui, como sempre, mas ela exclui agora de forma continuada, a todos os níveis de curso, e mantém no
próprio âmago aqueles que ela exclui, simplesmente marginalizando-os nas ramificações mais ou menos desvalorizadas (...)
Não demoram muito a descobrir que a identidade das palavras (“escola”, “professor”, “vestibular”) esconde a diversidade das
coisas; que a escola onde os orientadores escolares os colocaram é um ponto de reunião dos mais desprovidos; que o diploma
para o qual se preparam é na verdade um título desqualificado (...). Eles são obrigados pelas sanções negativas da Escola a
renunciar às aspirações escolares e sociais que a própria Escola inspira; são obrigados, por assim dizer, a engolir o sapo, e por
isso levam adiante sem convicção e sem pressa uma escolaridade que sabem não ter futuro. (BOURDIEU, 1997, p.485)

É recorrente o fato de os jovens assumirem uma posição de culpa face aos insucessos e fracassos experimentados
no mundo da escola, como se tal situação tivesse um cunho individual e não uma relação direta com a trajetória que marca os
que vivem em condição de exclusão. Também é comum que essa juventude identifique as idéias de “sonhos” e de “futuro”
com uma difícil possibilidade de emprego, sem relacionar tal dificuldade aos aspectos de ordem econômica, política e social
envolvidos em um possível enfrentamento da questão.
A situação é agravada pela marca que carrega todo o ensino noturno, área predominante no universo da Educação
de Jovens e Adultos escolar, que vive em extremo estado de abandono. De um modo geral, os jovens da escola noturna de
EJA são tratados como uma massa de alunos, sem identidade. Reflexo disto pode ser percebido nos procedimentos e práticas
pedagógicas que, de um modo geral, não centram os processos pedagógicos nesses sujeitos.
Contudo, a escola continua sendo um espaço privilegiado de encontro e socialização, apesar de sua inadequação às
necessidades desses jovens. A partir dela e dos locais onde vivem, os jovens se organizam em grupos, vivenciam processos

412
de aprendizagem, sociabilidade e, conseqüentemente, de afetividade. Como um dos seus mais importantes desafios, a EJA
deverá se abrir para incorporar os diferentes modos de ser jovem, compostos de conhecimentos, atitudes, linguagens, códigos
e valores que, muitas vezes, são desconhecidos ou vistos de forma desvalorizada pela cultura escolar e pelos currículos
tradicionalmente oferecidos. Como sinaliza Abramo (2008), ao jovens precisam de uma escola que caibam na vida deles.
Nesse contexto, os educadores precisam estar atentos para as demandas e potencialidades dos jovens hoje,
considerando-os sujeitos em todas as propostas e projetos pedagógicos de EJA. Como nos alerta Carrano (2000, p.10), “ao
dialogarmos como educadores, nos abrimos para a totalidade do processo educativo do qual a escola e seus sujeitos são partes
indissociáveis”. O papel do professor é despertar a curiosidade, indagar a realidade, problematizar, ou seja, transformar os
obstáculos em dados de reflexão para entender o processo educativo, que, como qualquer faceta do social, está relacionado
com seu tempo, sua história e seu espaço.
Por fim, Elias e Scotson (2000) nos ajudam a perceber que o fechamento dos espaços escolares para os alunos
jovens da noite é uma manifestação de legítima superioridade, como se existisse uma escala de valores humanos pela qual se
considera um indivíduo mais digno do que outros, os de menor valor humano. Essa visão de inferioridade também se
transforma em política de Estado. Elias e Scotson (2000) indagam: De que modo os membros de um grupo mantêm entre si a
crença de que são mais poderosos, mas também seres humanos melhores do que os outros? Por esse motivo se atribui para
uns ter mais direito do que o outro, o que a sociedade acaba aceitando, como uma espécie de resignação e respeitabilidade. É
o que acontece com os jovens de EJA, que são penalizados por não terem conseguido concluir a escolaridade na chamada
idade própria, ou seja, por quais motivos alguns têm mais direito do que outros a educação.
Elias e Scotson (2000) referem-se a “hierarquias classificatórias” e lembram que aqueles que vivenciam o status
inferior caminham de mãos dadas com o sofrimento (p.166). Nos alertam também para o fato de que tais práticas têm estreita
ligação com o próprio quadro social (idem, p.169), ou seja, requerem ambientes que possam transmitir continuamente as
desigualdades como naturais e compreensíveis, garantindo a manutenção de “pobres poderes”. Apontam, também, que a
estrutura e a forma de comportamento de um indivíduo dependem da estrutura de suas relações com os outros indivíduos (
idem, p. 104).
Pretendeu-se, conseqüentemente, fornecer instrumentos que possam reformular, alterar o inconsciente social que
governa os nossos pensamentos e práticas, com o objetivo de produzir uma educação de jovens e adultos voltada para os seus
sujeitos, em que “a experiência complexa da vida seja o ponto de partida para o processo de aprendizagem, conjugando essa
necessidade com a função ‘clássica’ da escola: socializar o saber sistematizado que faz parte da herança da humanidade”
(IRELAND, 2004, p. 69).
Podemos concluir afirmando que, diante dos dados aqui apresentados, o atendimento escolar de EJA encontra-se
em estado de abandono, entregue à benevolência de alguns educadores, mesmo que os dados demonstrem que, apesar do seu
baixo nível médio de escolaridade, a população brasileira permanece longo tempo na escola, persiste nela e opta pelo retorno.
A escola não é uma abstração, mas os sujeitos que viabilizam a sua existência, como gestores, professores,
diretores, alunos, familiares etc., e as relações que estabelecem entre si, inclusive as de conhecimento, por meio de suas
propostas pedagógicas, curriculares, metodológicas, acesso a materiais, equipamentos, produção e bens culturais etc.
Mesmo que as oportunidades educacionais para jovens e adultos tenham sido ampliadas na última década, a
realidade ainda é bastante precária. Principalmente, porque a escola permanece reproduzindo uma estrutura de desigualdades
sociais, apontando para a divisão dos sistemas educacionais, à semelhança das diferenças existentes em nossa sociedade. Os
jovens pobres continuam a dispor do ensino noturno e da educação de jovens e adultos, porém ambos se caracterizam pela
sua condição periférica. A escola noturna é discriminada e nela se desdobram “as mazelas do ensino diurno de modo mais
agravado e cumprindo as funções de seletividade e hierarquização social comumente identificadas na escola" (HADDAD et
al., 2002, p.96). Para os professores, de um modo geral, ela é a última opção, ou mesmo funciona como punição, o que,
inclusive, não permite a constituição de uma relação mais estreita com a realidade da escola. Por seu lado, a EJA também
continua a ter condição marginal, seja no interior da unidade escolar, estigmatizada como o turno da “evasão”, seja no
interior das secretarias de educação, pelo falta de institucionalidade, seja no âmbito das políticas públicas de Estado. Trata-se
de um sistema paralelo, independente e inferior em relação sistema regular, que reproduz os mesmos elementos denunciados
em outros sistemas de ensino, isto é, a seletividade, a exclusão, o ensino precário, a centralidade nos conteúdos e a visão do
educando como objeto passivo (GOMES E CARNIELLI, 2003).
Para finalizar, buscamos no estudo aqui apresentado, contribuir para “desnaturalizar” e “desfatalizar” o espaço
escolar, conforme alerta Bourdieu (1999), para estimular condutas por meio da descoberta das causas objetivas e das razões
subjetivas que levam os indivíduos e suas instituições fazerem o que fazem, serem o que são e sentirem da maneira como
sentem.

Referências:
ABRAMO, Helena Wendel. Considerações sobre a tematização social da juventude no Brasil. Revista Brasileira de
Educação. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), nº 5 - 6, 1997.
BOURDIEU, Pierre. A juventude é apenas uma palavra. In: _______. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero,
1983.
_______. A miséria do mundo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

413
BRASIL.Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da
União. Brasília, DF, 1996.
Gomes, C. A., & Carnielli, B. L. (2003). Expansão do ensino médio: temores sobre a educação de jovens e adultos.
Cadernos de Pesquisa, 119, 47-69.
CARRANO, Paulo César Rodrigues. Identidades juvenis e escola. Alfabetização e cidadania. São Paulo: Rede de Apoio à
Ação Alfabetizadora do Brasil (RAAAB), n.10, nov. 2000.
DUBET, François. As desigualdades multiplicadas. Revista Brasileira de Educação. São Paulo: Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), n.17, mai.– ago., 2001.
ELIAS, Norbet. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
HADDAD, Sérgio (coord.). Educação de jovens e Adultos no Brasil (1986-1998). Brasília: MEC/INEP/Conped, 2002.
IRELAND, Timothy. Escolarização de trabalhadores: aprendendo as ferramentas básicas para a luta cotidiana. In.
OLIVEIRA, Inês B.; PAIVA, Jane (orgs.). Educação de Jovens e Adultos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
NOSELLA, Paolo. O compromisso político como horizonte da competência técnica. In: Educação e Sociedade, nº 14, Cortez
Ed., SP, 1987.
UNESCO. Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos. Agenda para o Futuro da Educação de Adultos -
CONFITEA V (Hamburgo, l997). Brasília: MEC, 1998.

A Mediação Sócio-Educativa na Construção da Cidade Educadora: O Projecto


"Massarelos, Freguesia Educadora"

Joana Lúcio
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
joana.lucio@gmail.com

Resumo: Desenvolvido no contexto do Programa Doutoral em Ciências da Educação, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade do Porto (Portugal), o projecto que aqui se apresenta tem como instituição anfitriã (e parceira) a Junta de Freguesia de
Massarelos (Porto). O seu principal objectivo é explorar as potencialidades inerentes a processos de mediação sócio-educativa, num contexto
de Desenvolvimento Local, nomeadamente no que concerne o apoio ao desenvolvimento de um Projecto Educativo Local e de um Conselho
Educativo Local. Considerando que a Freguesia de Massarelos é demograficamente representativa da cidade do Porto, e a recente publicação
da Carta Educativa desta cidade, acreditamos que esta Freguesia pode constituir-se como “tubo de ensaio” de uma “cultura local de
educação” e de uma “Cidade Educadora”. Propomo-nos analisar, no contexto de Massarelos, a existência de circunstâncias favoráveis à
emergência de uma estrutura semelhante ao Sistema Formativo Integrado (Villar, 2001), que facilite o desenvolvimento de “espaços
solidários”: contextos espácio-temporais que favoreçam a mobilização da acção das pessoas, das instituições educativas, das associações
locais, das instâncias de poder local e das empresas, que se pretendem profundamente envolvidos em todo o processo. Este projecto pretende
assumir-se como “estudo de caso”, do qual emergirá um conjunto de instrumentos de um modelo de intervenção possível, com vista à
mobilização, articulação e atribuição de sentido(s) à acção das instituições locais em contextos semelhantes ou mais amplos; é igualmente
um estudo comparativo (porque mobiliza contributos de projectos de investigação desenvolvidos em contextos semelhantes) e longitudinal.

Introdução
O projecto de investigação aqui apresentado tem como principal objectivo a exploração das potencialidades da
mediação sócio-educativa, num contexto de Desenvolvimento Local, nomeadamente no que concerne o apoio ao
desenvolvimento de um Projecto Educativo Local e de um Conselho Local de Educação. Considerando que a Freguesia de
Massarelos é demograficamente representativa da cidade do Porto, e a recente definição da Carta Educativa desta cidade,
entende-se que esta Freguesia pode assumir-se como “tubo de ensaio” de uma “cultura local de educação” e de uma “Cidade
Educadora”. Para este efeito, procurar-se-á auscultar, no contexto da Freguesia de Massarelos, as condições de emergência de
uma estrutura semelhante ao Sistema Formativo Integrado (Villar, 2001), que se entende possibilitar o desenvolvimento de
“espaços solidários”: contextos espácio-temporais de mobilização da acção das pessoas, das escolas, das associações locais,
das instâncias de poder autárquico e do tecido empresarial, que se desejam profundamente envolvidos/as em todo o processo.
Este trabalho pretende assumir-se como “estudo de caso”, a partir do qual emergirão instrumentos de um modelo de
intervenção possível, no sentido da mobilização, articulação e atribuição de sentido(s) à acção das instituições locais em
contextos semelhantes ou mais amplos; é, também, um estudo comparativo - na medida em que mobiliza contributos de
estudos desenvolvidos em contextos semelhantes - e longitudinal.
As cidades actuais crescem baseando-se na especialização e separação dos espaços, funções e destinatários, o que
se traduz num crescente isolamento das pessoas, e na desertificação dos espaços habitacionais mais tradicionais. Pensamos
que a cidade será mais sã, promovendo a qualidade de vida dos seus cidadãos, se a planificação urbanística e dinamização

414
dos espaços públicos tiver em conta a definição do espaço público enquanto prolongamento da habitação, no sentido da
promoção da relação e da convivência de todas as pessoas.
A ideia de “Cidade Educadora” remete para uma acção local orientada pelo entendimento do território enquanto
espaço educativo, sendo simultaneamente envolvente, agente e conteúdo da Educação. Assume-se, assim, que o processo
educativo é complexo e multifacetado, não se restringindo à aprendizagem “escolarizada”.
Entende-se, nesta filosofia de acção, que o local deve deixar de ser um mero recurso pedagógico da Escola, para se
converter num verdadeiro agente educativo, numa fonte de aprendizagem, de sabedoria e de convivência.
Na medida em que, como sabemos, a Educação das crianças e dos/as jovens não se restringe àquilo que são os
conteúdos curriculares veiculados pelas Escola, pensamos que a Escola e as restantes entidades públicas e privadas locais
beneficiariam com o desenvolvimento de um projecto educativo comum, resultado de uma estratégia global e conjunta, em
que participem as instituições potencialmente educativas.
A comunidade local deve ser a primeira responsável na definição de um projecto educativo integral, em que devem
participar a escola, as famílias, as instituições locais, a estrutura produtiva pública e privada e as associações, como principais
agentes educativos.
Embora a ideia de “Cidade Educadora” seja operacionalizável de várias formas, privilegiaremos a constituição de
um Sistema Formativo Integrado (conforme vimos anteriormente), que é, então, o resultado da acção concertada de cinco
agentes territoriais, implicados na acção educativa:
A administração local, que lidera, planifica e catalisa esforços e interesses;
A família, que garante um percurso formativo que não se reduz ao percurso escolar;
As instituições educativas, que transformam a experiência de vida em experiência de cultura;
O sistema produtivo, através do mecenato ao desenvolvimento cultural e educativo do território e da articulação
com as instituições educativas para a inserção no mercado de trabalho;
As associações e colectividades de cidadãos, enquanto plataformas de relacionamento directo entre pessoas, entre
estas e as instituições e os conteúdos culturais; como espaços de solidariedade, cooperação e serviço.
A auscultação das percepções destes actores locais acerca do potencial educativo da sua acção, e das suas
disposições relativamente às possibilidades de concertação local (nomeadamente, no que diz respeito ao potencial papel do/a
mediador/a sócio-educativo/a) serão, assim, o objecto central da investigação a desenvolver.

Enquadramento Teórico-Epistemológico
Baseado nos princípios de acção preconizados pela Associação Internacional das Cidades Educadoras, através da
Carta das Cidades Educadoras, o projecto de investigação que se pretende desenvolver tem como um dos objectivos
principais promover o envolvimento da comunidade local (neste caso, a Freguesia de Massarelos) em torno do objectivo de
trabalhar conjuntamente em iniciativas conducentes à melhoria das condições de vida dos/as membros da mesma e em torno
da causa da Educação (de crianças, jovens e adultos/as).
Neste sentido, importa que o local seja entendido como envolvente, agente e conteúdo do processo educativo,
procurando-se o «estabelecimento de estruturas dinâmicas no acesso aos recursos educativo-culturais» e o desenho de
«estratégias de aproveitamento dos mesmos e na implicação de todos os agentes do território» (Villar, 2001: 20). No entanto,
importa salientar que esta possibilidade resulta de um enquadramento sócio-histórico que tem vindo a sofrer profundas
alterações, especialmente no que diz respeito ao entendimento do papel do Estado relativamente à Educação das pessoas. Se,
actualmente, se vive um período de transferência de poderes1 e funções (em todos os aspectos da vida social, e por isso
também no âmbito educativo) do nível nacional e regional para o nível local, também é verdade que «durante mais de 150
anos o Estado assumiu, no mundo ocidental, a função de “Estado Educador”» (Barroso, 1999: 130).
Num contexto de crise, a diversos níveis, nomeadamente no que diz respeito à legitimidade do Estado enquanto
“guardião” do bem comum, à complexificação e consequente difícil gestão dos sistemas educativos, e à adequação do
modelo escolar à crescente heterogeneidade dos públicos educativos, o local (e a comunidade) emergiu como novo lugar de
gestão da Educação, numa tentativa de «aproximar a tomada de decisão do utilizador desses serviços» (Barroso, 1999: 136).
Em Portugal, e a partir do início da década de 80 do séc. XX, tomaram-se, assim, a nível central, algumas medidas
legislativas no sentido da autonomização dos municípios em termos da planificação, gestão e decisão educativas. Exemplo
disso2 foi a decisão pela criação de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), a partir do Despacho 147-
B/ME/96. Estas e outras medidas de descentralização3 do poder do Estado sobre a Educação foram possibilidades de
«valorização do papel do local na concepção e implementação de políticas educativas e (…) [de] reconhecimento de que os
problemas que actualmente se colocam à escola, passam por ela mas ultrapassam-na» (Barbieri, 2003: 67), inclusive porque
«as questões do insucesso e abandono escolares e da exclusão social e escolar relacionam-se com o choque cultural entre os

1
Numa dinâmica de «policentração, entendido o sistema não como uma cadeia hierárquica de poderes, mas como um sistema onde existem e coexistem vários
centros de poder – (…) autarquias, escolas, associações e grupos da sociedade local e os próprios actores educativos individualmente considerados» (Estaço,
2001: 70).
2
Entre outros, como a criação das Direcções Regionais de Educação (DRE) e das Coordenações de Área Educativa (CAE).
3
Entende-se aqui a descentralização como a atribuição, por parte do Estado, de competências, diversas e complementares, «aos diferentes níveis em que se
exerce a administração da educação» (Estaço, 2001: 68), privilegiando-se a interacção entre esses níveis para uma melhoria da qualidade da sua acção.

415
saberes considerados válidos pela escola e os saberes e experiências culturais dos diferentes» indivíduos e grupos (Barbieri,
2003: 70). Deste modo, emerge como fundamental a auscultação dos sentidos que crianças e jovens, famílias, pessoal
docente e não docente das instituições educativas/formativas, associações locais, autarquias e tecido empresarial atribuem à
Educação, e a participação efectiva de todos/as eles/as (em equilíbrio e paridade) nas decisões respeitantes à vida educativa
das comunidades. Esta participação igualitária só poderá, parece-nos, ser garantida através da adopção de um projecto
educativo local, ou seja, um reforço da autonomia do poder local e da Escola, e um incentivo à participação (e não apenas
representação) democrática e à transformação das práticas educativas.
O Projecto Educativo Local funciona, assim, «como um instrumento de definição e realização de uma política
educativa local, construída (…) pelos actores locais que, tendo em conta políticas mais globais e a possibilidade de recorrer a
apoios exteriores, mobilizam criativamente vontades e recursos, na construção de respostas originais e pertinentes face às
problemáticas que identificam no seu “território”» (Rodrigues, 2003: 78). As entidades locais têm uma visão particularmente
pertinente dos problemas e potencialidades subjacentes à franja de população que servem. À Junta de Freguesia, enquanto
órgão de governo local democraticamente eleito como justo representante e defensor dos interesses dos/as habitantes da
Freguesia, cabe o «(re)conhecimento do contexto, identificando os seus problemas e potencialidades; (…) [o] partilhar de
perspectivas no sentido de criarem uma visão comum sobre a realidade educativa local; (…) [o] delinear de soluções
estratégicas que reflectem a sua linha de orientação (ou seja, as políticas educativas locais construídas); (…) [e o]
desenvolvimento de formas de acção (práticas educativas locais) que concretizam as intenções contidas no plano de acção
colectivamente traçado» (Rodrigues, 2003: 78). Parece-nos, ainda, importante salientar que a prossecução de um objectivo
deste tipo só é possível mediante o entendimento da formação como um processo «que se integra no processo de socialização
e que se desenvolve através da apropriação pessoal (autoformação) das influências de outros (heteroformação) e dos
contextos (ecoformação)» (Rodrigues, 2003: 79).
E porquê, então, a definição de um Projecto Educativo Local? Conforme afirma Filomena Rodrigues (2003), «pela
rede relacional diversificada que configura e pelo papel de regulação e controle social das políticas que faz emergir, [o
Projecto Educativo Local] constitui uma base sólida para suportar o avanço das políticas de descentralização, que se torna
necessário efectuar para melhor adequar as respostas às necessidades concretas das populações» (Rodrigues, 2003: 94). Por
outro lado, Matthias Finger e José Manuel Asún (2003) perfilham a teoria de Ivan Illich de que «logo que as funções sociais
passam a ser monopolizadas pelas instituições, assim se degradam as relações sociais e a própria vida, em termos mais gerais.
Por outras palavras, as instituições criam as necessidades e controlam a sua satisfação e, ao fazê-lo, transformam o ser
humano e a sua criatividade em objectos» (Finger & Asún, 2003: 20). O problema apontado a este processo de
“institucionalização” é o de que destrói as redes relacionais, na medida em que as pessoas passam a relacionar-se apenas com
instituições e não mais com pessoas (por exemplo, com a “Associação de Moradores/as” e não com os/as moradores/as).
Outro dos aspectos fundamentais no âmbito do desenvolvimento de um Projecto Educativo Local, a valorização dos saberes
não-escolares4, foi também preocupação de Illich (citado por Finger & Asún, 2003). No caso da JFM, e considerando a mais-
valia da possibilidade de convívio entre crianças em idade escolar e pessoas idosas, seria de considerar a realização de
algumas actividades através das quais se proporcionasse a partilha de vivências relativas ao local. Propomos, assim, que se
procure a “desescolarização” da Educação, ou seja, a assunção de que a Educação tem, de facto, lugar e tempo para além da
Escola; e, essencialmente, de que não é um indivíduo que educa o outro, mas que é a interacção entre ambos que produz
mudanças de parte a parte.
Verifica-se, nesta dinâmica, que «o conhecimento é criado pelas pessoas, não para as pessoas; e pressupõe uma
“participação descomprometida” e livre» (Finger & Asún, 2003: 22), apelando à responsabilização de todos/as em relação a
todos/as e a cada um/a. Esta crítica à mercadorização da Educação, em que o conhecimento é avaliado pela sua utilidade
instrumental e a sua não posse produz no indivíduo um handicap, remete-nos para a constante necessidade de “reciclagem de
competências” sentida pelos indivíduos nas diversas áreas das suas vidas. Num momento sócio-histórico em que emerge uma
cultura de especialização (existem cada vez mais especialistas sobre determinada área, que se sentem e posicionam enquanto
guardiães/ãs de determinado conhecimento), os indivíduos sentem-se constantemente postos em causa (enquanto
profissionais, pais/mães, cidadãos/ãs...) e desafiados na(s) sua(s) identidade(s). As pessoas já não se afirmam, por exemplo,
exclusivamente pela sua identidade profissional, uma vez que, em muitos casos, não têm uma designação profissional ou
desempenham muitas funções e em muitas instituições ao longo da sua vida activa; o mesmo se processa (com as devidas
diferenças) no que diz respeito à identidade de género, à identidade nacional, etc. «Os mecanismos de descontextualização
que a modernidade tardia radicalizou arrancam o sujeito a uma cadência temporal e a um espaço ritualizados e apropriados
por uma sistemática de símbolos imbricada nos gestos mais mínimos» (Magalhães, 2001: 311); é como se o indivíduo
procurasse emergir como uma entidade una e coerente, num contexto de fragmentação e (re)estruturação.
A Escola surge, aqui, «como material de bricolage de sentido da vida, ora como justificação da actual situação do
sujeito, ora como instrumento de estratégia pessoal de mobilidade social» (Magalhães, 2001: 324). No moderno quadro de
pluralidade e multiculturalidade, face precisamente à impossibilidade de definir o “verdadeiro” caminho da construção da
identidade, parece-nos fundamental que o sistema educativo não se confine à exigência de promover a formação de agentes
competitivos funcionais, exigidos pelas contínuas mutações do sistema económico, mas antes assuma «a invenção de novas

4
Entende-se por “saberes não-escolares” aqueles que não resultam exclusivamente de aprendizagens proporcionadas pela Escola, mas que antes resultam da
experiência quotidiana do indivíduo, nomeadamente ao nível relacional e profissional.

416
formas de sociabilidade (…), e promovendo a pluralidade de poderes e leis, a fluidez das relações sociais e a promiscuidade
entre estranhos e íntimos, entre herança e invenção» (Magalhães, 2001: 333). E porque a Escola é uma instituição de pessoas
e para pessoas, que não acaba ao toque de saída nem se restringe aos muros do recreio (por isso existem associações de
pais/mães e encarregados/as de Educação, e por isso se assinam acordos para a cedência de infra-estruturas para a realização
das actividades de enriquecimento curricular), parece-nos que o local pode assumir-se como instância de referência do
processo de construção identitária dos indivíduos.
Privilegia-se, então, a procura de que «a escola passe a ser todo o território5», no sentido de uma «educação para
uma vida cultural e socialmente multiactiva em qualquer fase do percurso da vida dos indivíduos» (Pinto, 2004: 151).
As competências para o exercício da cidadania ensinam-se, aprendem-se e exercitam-se. A este propósito, Licínio
Lima (2005) considera que «a contribuição de uma educação crítica para a cidadania democrática será relevante no sentido
em que vier também a contribuir para a ampliação dos actores participantes na deliberação democrática e esta ampliação
acarretará, por sua vez, uma ainda maior diversidade cultural» (Lima, 2005: 75). A participação política contribui para que as
pessoas descubram/desenvolvam capacidades comunicativas, que lhes permitem entenderem-se como indivíduos capazes de
exercer influência, e promove o envolvimento na comunidade, visando a autonomização progressiva dos indivíduos,
pressupondo a capacidade individual e colectiva de ir assumindo responsabilidades, o que decorre da partilha de poder.
Quanto mais alargada a participação pública no que diz respeito a decisões políticas, maior a qualidade e quantidade de
informações disponíveis sobre os assuntos em discussão e maior, tendencialmente, a “justiça” das decisões. A esta luz,
Licínio Lima (2005) refere que «é pela prática da participação democrática que se constrói a democracia. É decidindo através
da prática da participação que se aprende a participar e que se adquirem os saberes indispensáveis, a confiança necessária à
expressão e à luta política, a coragem cívica que nos impele a correr os riscos inerentes à participação activa. É este o âmago
da democracia participativa e da educação para a participação democrática» (Lima, 2005: 76). Neste sentido, a Educação
contribui para o desenvolvimento do processo de democratização da democracia, ou seja, é possível ensinar a democracia,
mas, e de acordo com Freire, «é preciso testemunhá-la. Mais ainda, testemunhando-a, lutar para que ela seja vivida, posta em
prática ao nível da sociedade global» (1994, citado por Lima, 2005: 88). Homologamente ao ensino da democracia, torna-se
possível também o ensino da participação, mais uma vez, através da sua experimentação e não só da sua discussão.
Parece-nos evidente que a questão da participação cívica e política das pessoas depende fortemente e só fará
sentido no contexto do estabelecimento de relações consolidadas com o local, seja com o espaço físico, seja com as suas
instituições, seja com as outras pessoas. Neste sentido, levanta-se novamente a questão da utilização do espaço público,
enquanto espaço de comunicação entre os/as diversos/as actores/as sociais. Em alguns contextos, e nomeadamente nas
grandes cidades, a rua deixou de ser um espaço público, no sentido em que «se opõe às regras de educação familiar e
representa uma ameaça para os pais que temem a perda de controle na educação dos filhos» (Zago, 1997: 41). Assiste-se,
assim, ao desenvolvimento de «estratégias de evitar o contacto com os “outros” ou os estranhos» (Zago, 1997: 42),
estratégias estas que se baseiam fortemente na discriminação e, frequentemente, se reflectem em práticas discriminatórias.
Ainda no âmbito da relação que as pessoas desenvolvem com o local, este pode ser entendido enquanto meio,
agente e/ou conteúdo educativo (Machado, 2005). Quando se privilegia o entendimento do local enquanto meio educativo,
adquirem especial relevância os espaços que compõem o seu «mapa educativo», ou seja, as «instituições pedagógicas e
situações educativas ocasionais, programas formativos cuidadosamente desenhados e encontro casuais» (Machado, 2005:
227). Quando se salienta o local enquanto agente educativo, atribui-se-lhe um papel mais proactivo na construção da
formação e da socialização dos indivíduos, tendo lugar um reconhecimento (por técnicos/as habilitados/as) de âmbitos
específicos de intervenção educativa por parte do território sobre as pessoas. Por fim, o lugar enquanto conteúdo educativo
remete para o acto de «aprender a cidade» (Machado, 2005: 225). A propósito da «legibilidade da cidade», Joaquim Machado
(2005) considera que a necessária «pedagogia urbana» abre novas possibilidades de intervenção para os/as técnicos/as de
Educação e, mais especificamente, para os/as mediadores/as sócio-educativos/as.
Segundo Joaquim Machado (2005), «será educadora uma cidade [ou uma freguesia] que assuma a função
educadora com a mesma intencionalidade com que assume as suas funções tradicionais» (Machado, 2005: 248). As
possibilidades de concretização da ideia de Cidade Educadora podem assentar na constituição de um «Sistema Formativo
Integrado» (Villar, 2001: 29 e seguintes). Trata-se de um sistema de relações interinstitucionais e interpessoais baseado no
diálogo e na concertação social, “com os olhos postos” na problemática educativa conforme esta é experienciada pela
comunidade local. Uma das possibilidades é a definição de um Projecto Educativo Local (ou seja, um compromisso entre
os/as vários/as agentes locais no sentido de transformação o território num espaço-tempo educativo para todas as pessoas).
M. Belén Villar (2001) configura o Sistema Formativo Integrado (SFI) como um pentágono, correspondendo cada
um dos vértices a um agente local, e resultando o SFI da implicação destes na construção de um «projecto de
desenvolvimento integrado e consensual do território» (Villar, 2001: 31). À administração local (neste caso, à JFM) cabe,
então, a liderança, a planificação e a canalização de esforços e interesses. As instituições educativas (neste caso, os Jardins de
Infância, as Escolas EB1, EB 2,3 e Secundária e outras instituições de ensino/formação) detêm a função de transformar as
experiências de vida, proporcionadas pelo território, em experiências culturais. Ao sistema produtivo (composto, neste caso,
pela franja empresarial com a qual a JFM tem vindo a desenvolver um contacto extremamente profícuo, através do Projecto

5
O que não equivale a preconizar que todo o território passe a ser a escola, ou seja, que o modelo escolar seja aplicado a todo o tipo de aprendizagens, e o
espaço-tempo escolar seja o único que possibilite a formação dos indivíduos.

417
+Empresas) caberá a ajuda financeira ao mundo cultural e educativo, devendo ser altamente motivado, pelas instâncias de
poder, para o mecenato. O movimento associativo (neste caso, composto pelas Associações de Moradores/as, Associações
culturais, desportivas, etc.) deve contribuir, com a sua acção, para a facilitação da resposta aos interesses das pessoas que
compõem os grupos organizados, estabelecendo relações directas com os serviços culturais, e buscando uma maior
implicação cidadã na gestão descentralizada de serviços e equipamentos. Finalmente, às famílias caberá garantir que o
percurso formativo dos indivíduos não se reduza ao percurso escolar, proporcionando a todos os seus membros oportunidades
de enriquecimento cultural, afectivo e social. É, neste sentido, objectivo do Sistema Formativo Integrado a emergência de
“espaços solidários”: espaços e tempos que mobilizem a acção local para a prioridade às necessidades e interesses públicos
(não necessariamente comuns).
Como já vimos, e conforme explicita A. Sousa Fernandes (2005), «as dificuldades dos sistemas educativos
centralizados em dar satisfação aos problemas surgidos na sociedade moderna conduziram ao reforço das ligações entre os
actores locais», nomeadamente através de «parcerias, projectos conjuntos, redes de colaboração de forma a envolver uma
grande diversidade de actores e movimentos [bem como tempos e espaços] numa intervenção educativa alargada e
envolvente» (Fernandes, 2005: 197). Os órgãos de gestão autárquica têm um papel capital na coordenação e dinamização dos
projectos educativos locais6 e, neste caso, a Junta de Freguesia é chamada assumir esse papel. Não existe, na orgânica da
JFM, a figura do/a mediador/a sócio-educativo/a, não existindo, igualmente, um elemento com formação especializada para o
entendimento e análise da problemática educativa. Interessa então, e buscando-se a relevância de uma intervenção
enquadrada pelas Ciências da Educação no contexto de um projecto de desenvolvimento local, explorar o papel do/a
mediador/a sócio-educativo/a.
J. C. Torrego Seijo (2003) define a mediação como «um método de resolução de conflitos em que duas partes em
confronto recorrem, voluntariamente, a uma terceira pessoa imparcial, o mediador, a fim de chegarem a um acordo
satisfatório», não sendo a solução «imposta por terceiras pessoas, como no caso dos juízes ou árbitros, mas é “criada” pelas
partes» (Seijo, 2003: 5). Parte-se, aqui, do pressuposto de que a mediação apenas é necessária (ou possível) perante uma
situação de conflito (latente ou patente). No entanto, outros/as autores/as defendem uma posição oposta, nomeadamente Mei
Herrero e Ramón París (2003), que consideram que a prática da mediação não se circunscreve à superação de conflitos, o que
implica que «no necesariamente se ha de esperar a que se origine el conflicto para que se produzca la mediación (…), lo que
multiplica las posibilidades de actuación» (Herrero & París, 2003: 155). Embora varie o entendimento sobre a necessidade de
existência, à partida, de conflito, vários/as autores/as concordam que, conforme explicitam Ana Oliveira e Carla Galego
(2005), «a mediação afirma-se como prática informal e como modalidade de valorização [das potencialidades
transformadoras] do conflito» (Oliveira & Galego, 2005: 21). Tendo a mediação sido recorrentemente utilizada como
alternativa ao recurso ao sistema judicial, e para disputas entre um número relativamente restrito de indivíduos, esta é
também uma possibilidade de intervenção no âmbito comunitário, especialmente na superação de situações de
incomunicação, em que não existe conflito, mas também não existe um entendimento de facto, mútuo, sobre as necessidades,
interesses e potencialidades dos/as vários/as actores/as sociais para o desenvolvimento educativo da Freguesia.
Neste contexto, faria sentido a emergência da figura do/a mediador/a sócio-educativo/a7, numa óptica que
transmitisse «a los ciudadanos la seguridad de encontrarse ante alguien verdaderamente independiente de cualquier poder o
interés personal» (Herrero & París, 2003: 153). Essa é, de facto uma das principais características da postura do/a
mediador/a: a imparcialidade e a neutralidade8 da sua actuação (Boldú et al, 2003). Em contexto comunitário, uma
intervenção deste tipo pode ter especial relevância, na medida em que procura apoiar o desenvolvimento de «uma concepção
positiva do conflito (…), o uso do diálogo como alternativa a outras possíveis respostas (…), [a] potenciação de contextos
cooperativos nas relações interpessoais (…), o desenvolvimento de competências de auto-regulação e autocontrolo (…), a
prática da participação democrática (…), o desenvolvimento de atitudes de abertura, compreensão e empatia (…) [e] o
protagonismo das partes na resolução dos seus conflitos» (Seijo, 2003: 8-9).
A mediação caracteriza-se por uma abordagem ao contexto que se situa entre o compromisso – uma atitude de
negociação e busca de soluções de acordo – e a colaboração – «implicação de uns e de outros na busca de um objectivo
comum (…), gerando alternativas comuns que satisfaçam ambas as partes» (Seijo, 2003: 39) –, buscando «fundamentalmente
uma aproximação e um estreitar das relações entre as partes» (Seijo, 2003: 48). Neste contexto, a função dos/as
mediadores/as é o apoio à identificação autónoma dos interesses de cada uma das partes, à compreensão dos pontos de vista
de uns/umas e outros/as e o contributo para o aumento da confiança entre as partes e destas no processo (Seijo, 2003).
Há que referir, neste ponto, que nem todos os contextos/conflitos são propícios a uma intervenção do tipo da
mediação, e uma pessoa com formação e competência para o desempenho de funções nesta área deve ter a capacidade de
discernir da adequação da sua intervenção ou do preferível encaminhamento para outras instâncias de decisão
(nomeadamente, em situações onde se verifique uma clara violação de direitos).

6
Na medida em que possuem «uma perspectiva global da cidade [neste caso, da freguesia]» e têm a possibilidade de «mobilizar recursos técnicos para suporte do
projecto» (Fernandes, 2005: 200).
7
Considerando, conforme C. Moore (1998), que «a mediação (…) deve ser incorporada como um componente importante dos sistemas organizacionais de
resolução de disputa em todos os níveis da sociedade» (Moore, 1998: 322).
8
Entende-se “imparcialidade” como a capacidade de «no tomar partido por uno o outro» (Boldú, et al, 2003: 91) e “neutralidade” como a capacidade, por parte
do/a mediador/a, de não deixar que os seus sentimentos e emoções condicionem o seu papel, evitando identificar-se ou sentir especial empatia por uma ou outra
das partes em conflito (Boldú, et al, 2003). No entanto, e conforme alerta Seijo (2003), «seria uma hipocrisia manter-se assepticamente neutral perante o abuso
descarado de uma parte com muito poder face a outra com pouco poder» (Seijo, 2003: 30).

418
Uma/a mediador/a sócio-educativo/a é também alguém que apoia as partes no desenvolvimento de «recursos
comunicativos de qualidade» (Seijo, 2003: 64), e, nesse âmbito, tendo como referência o contexto da Freguesia de
Massarelos, a função de um/a Licenciado/a em Ciências da Educação poderia ser a criação de condições para a uma escuta
activa e de novos espaços de comunicação entre as partes (neste caso, os/as vários/as actores/as sociais). Isso seria exequível,
por exemplo, através da realização de sessões de reflexão e análise dos problemas sócio-educativos da Freguesia (como, por
exemplo um fórum de discussão virtual, possibilidade que será discutida em maior profundidade mais adiante).
Convém salientar aqui que «os procedimentos de mediação não pretendem substituir ou ultrapassar nenhum órgão
de gestão (…), de representação (…) ou de coordenação (…) mas, pelo contrário, contribuir para facilitar o desempenho das
suas funções» (Seijo, 2003: 122). A mediação é, fundamentalmente, e como se viu, um serviço educativo, «que consiste en
no utilizar ningún tipo de poder o de “capacidad para influir” en la modificación de las opiniones o la conducta del outro. La
posición del mediador es de “tercera persona”» (Herrero & París, 2003: 154). No entanto, o/a mediador/a não é passivo/a; é,
antes, um catalizador: «es [como] una partícula que se introduce en una reacción entre varios productos químicos, que tiene
la particularidad de acelerar el proceso (…). Los productos reaccionam por sí mismos, sin mezclarse con el catalizador»
(Herrero & París, 2003: 166). Mais do que uma “partícula da reacção”, o/a mediador/a é um «profissional reflexivo» (Schön,
1983, citado por Moore, 1998: 58), que incorpora na sua prática aquilo que sabe sobre o que deve ser a mediação (a “teoria
da mediação”) e as experiências que lhe foram sendo relatadas, «de forma que possam ser desenvolvidas abordagens e
intervenções específicas da situação que ajudem as partes a (…) construir relacionamentos respeitosos e confiáveis e a
resolver as questões que as dividem» (Moore, 1998: 58).
No Poder Local, e segundo C. Moore (1998), a figura do/a mediador/a faz sentido, num contexto em que «parece
haver um nível crescente de insatisfação, tanto com as formas de participação que são prescritas ou permitidas, quanto com a
natureza adversa e frequentemente ineficaz dos processos de tomada de decisão», tendo a mediação «sido eficientemente
usada para construir decisões consensuais em uma ampla extensão de questões de política pública, reguladoras, específicas
para o local e organizacionais»9 (Moore, 1998: 324). A acção do/a mediador/a aqui, deve, então, dar prioridade e uso racional
aos recursos e relações existentes ou latentes na organização social, económica e cultural do local, com o propósito de
aprofundar o exercício da cidadania e da democracia participativa.
Este tipo de intervenção, que se encaixa no perfil de competências de um/a Licenciado/a em Ciências da Educação,
e emerge como pertinente no contexto apresentado, «está relacionada com o conceito de empowerment, entendido como um
movimento intencional dinâmico, centrado na comunidade local, envolvendo respeito mútuo, reflexão crítica, participação e
preocupação do grupo em partes iguais na valorização dos recursos, acesso e controlo sobre os mesmos» (Oliveira & Galego,
2005: 28).

Metodologia
O acesso às disposições institucionais relativamente à problemática educativa fez-se, ao longo do ano lectivo
2006/2007 (quando teve início este projecto de investigação), através da realização de entrevistas de cariz semi-directivo às
figuras institucionais da JFM mais ligadas à intervenção de tipo educativo, nas pessoas do Presidente da JFM (por duas
ocasiões) e do vogal do executivo com responsabilidade pela área de Formação, Emprego e Empresas. A partir do momento
em que se decidiu alargar o âmbito de intervenção do estágio, realizou-se um levantamento de instituições de cariz educativo
e associações de cidadãos/ãs (sem restrição quanto ao tipo de actividade levada a cabo) com actividade em Massarelos.
Procedeu-se ao contacto (telefónico) com as pessoas responsáveis pela direcção dessas associações, auscultando a
disponibilidade destes/as para a realização de entrevistas. Assim sendo, realizaram-se igualmente entrevistas semi-directivas
a uma professora com cargos directivos numa Escola EB1, à presidente da direcção de uma Associação de Moradores, à
coordenadora educativa de uma outra Associação de Moradores e ao presidente de uma Associação de cariz cultural e
recreativo.
Optou-se por este tipo de entrevista atendendo ao facto de se caracterizar por deixar ao/à entrevistado/a um grau de
liberdade que parecia adequado à reflexão que se pretendia promover. Pretendia-se, por um lado, permitir «que o próprio
entrevistado estruture o seu pensamento em torno do objecto perspectivado» e, por outro, eliminar «do campo de interesse
diversas considerações para as quais o entrevistado se deixa naturalmente arrastar (…) [exigindo] o aprofundamento de
pontos que ele próprio [possivelmente] não teria explicitado» (Ruquoy, 2005: 87). Considerando que o objectivo de tais
entrevistas era o de explorar, entre outros aspectos, a percepção dos agentes locais relativamente ao papel educativo das suas
instituições e à forma como entendem poder promover explicitamente a formação e a Educação, bem como o seu
entendimento relativamente às possibilidades e potencialidades de uma articulação interinstitucional, consideramos,
conforme Danielle Ruquoy (2005), que «a entrevista é o instrumento mais adequado para delimitar os sistemas de
representações, de valores, de normas veiculadas por um indivíduo» (Ruquoy, 2005: 89).
O que se pretendia era que os/as próprios/as entrevistados/as desvendassem novas possibilidades de cooperação
entre as várias entidades com potencialidade educativa na Freguesia de Massarelos. Não tivemos o pretensiosismo de pensar
que íamos “iluminar” a vida destas instituições e apresentar-lhes uma hipótese completamente inovadora; pretendíamos

9
Entre outras, o ordenamento do território, a gestão do património, as políticas sociais, sanitárias e ambientais, o acesso aos media, as relações intergeracionais, a
gestão da relação com a diversidade, a produtividade das empresas, etc.

419
apenas torná-las (mais) visíveis umas às outras, de maneira a que os/as próprios/as responsáveis reflectissem sobre as
melhores estratégias e percursos de colaboração. Exemplo disso foi quando, por exemplo, na entrevista ao Presidente da
Associação de cariz cultural e recreativo, e perante a prospecção sobre eventuais parcerias interinstitucionais, entre elas com
as Escolas, afirmou: «Com as escolas nunca tentei, francamente nunca tentei (…), mas está-me a dar uma ideia, está a dar
uma boa ideia» (excerto de entrevista).
Iniciámos a segunda fase de abordagem ao contexto (no âmbito do início do Programa Doutoral em Ciências da
Educação da FPCE-UP) através da divulgação à comunidade do Projecto de Investigação. Esta fez-se através da publicação
de um texto de apresentação no Boletim Informativo da Junta de Freguesia de Massarelos (distribuído no mês de
Março/2008) e do envio individualizado de informação semelhante aos órgãos directivos dos estabelecimentos de ensino da
Freguesia e das associações de cidadãos/ãs. Este último formato de contacto, tendo-se baseado num texto produzido pela
pessoa investigadora, foi assumido pelo Presidente da JFM, através do envio de e-mails personalizados. Teve lugar, no final
do mês de Fevereiro/2008, uma reunião colectiva com as direcções das associações de Massarelos, na qual se fez uma
apresentação do Projecto e se solicitou a cedência de um conjunto de dados relativos ao funcionamento das associações,
através do preenchimento de um inquérito por questionário (ver Anexo II). No que diz respeito ao contacto com as Escolas e
instituições de formação, este tem vindo a ter lugar, igualmente, desde Fevereiro/2008, através de reuniões individuais (uma
em cada estabelecimento de ensino), onde tem lugar a apresentação do Projecto e a solicitação do preenchimento de um
inquérito por questionário relativo à população e ao funcionamento institucional (ver Anexo III, como exemplo de inquérito
aplicado a uma instituição educativa; procedeu-se à elaboração de um inquérito específico para cada estabelecimento de
ensino, atendendo ao nível de ensino e às características da sua população). A opção pelos inquéritos prende-se com a
necessidade de, num contacto breve (que assim o é porque, regra geral, tem lugar durante o horário normal de funcionamento
das instituições) recolher alguma informação que permita uma visão “panorâmica” da realidade de cada instituição, em
termos da sua origem, das suas dinâmicas de funcionamento e da interacção com outras instituições locais. O objectivo foi,
desde o início, que o inquérito constituísse um primeiro contacto, prevendo-se um aprofundamento do conhecimento
institucional através, por exemplo, da realização de entrevistas ou de sessões de observação presencial.
Prevê-se, ainda, o recurso a grupos de discussão focalizada, com o objectivo de compreender a percepção dos/as
habitantes e utentes de Massarelos acerca das fragilidades e potencialidades da sua Freguesia enquanto espaço público e
espaço educativo, promovendo, ao mesmo tempo, a discussão e reflexão conjunta acerca destas questões. Elegemos como
públicos preferenciais:
Crianças e jovens em idade escolar (nomeadamente através do contacto com Associações de Estudantes) e suas
famílias (nomeadamente através do contacto com Associações de Pais/Mães e Encarregados/as de Educação) – um e outro
grupo separadamente;
Dirigentes e associados/as das colectividades de cidadãos/ãs localizadas em Massarelos;
Empresários/as associados/as ao Projecto +Empresas da Junta de Freguesia de Massarelos.

Este método consiste na realização de entrevistas de grupo, orientadas por um/a mediador/a, e focalizadas sobre um
ou vários tópicos de discussão, sendo que se constitui como objecto de análise aquilo que as pessoas dizem, acerca do tema,
no decorrer do grupo de discussão focalizada. Segundo Richard Krueger e David Morgan (Morgan, 1998: 1-2), «de um ponto
de vista prático, a verdadeira questão não é aquilo que os grupos de discussão focalizada são mas aquilo que podemos fazer
com eles». Por outro lado, a opção por este método prende-se com um interesse em criar um ambiente favorável à expressão
das opiniões individuais, mas também à confrontação e ao debate de ideias, que entendemos poder constituir um estímulo
para a emergência de atitudes e disposições para agir favoráveis ao desenvolvimento de uma consciência cívica e de um
interesse colectivo relativamente ao desenvolvimento educativo da Freguesia.
Finalmente, no que concerne às opções metodológicas que suportarão o desenvolvimento deste projecto de
investigação, ponderamos a criação de uma plataforma facilitadora da reflexão e análise dos problemas sócio-educativos da
Freguesia, permitindo também a divulgação, junto dos/as intervenientes e dos/as restantes cidadãos/ãs, dos produtos destes
encontros e de materiais relacionados com experiências de intervenção de âmbito semelhante, realizadas noutros contextos.
Um dos veículos para a concretização desta ideia é a criação de um fórum de discussão virtual, um meio de comunicação
muito popular no meio informático. Embora a utilização deste tipo de recurso esteja limitada pela possibilidade de acesso à
internet e pela posse de conhecimentos de utilização de computadores, considera-se esta como uma possibilidade viável,
posto que, hoje em dia, várias instituições disponibilizam gratuitamente o acesso a estes recursos. A mais-valia do fórum de
discussão virtual, para além da sua gratuitidade (seja na criação, seja na manutenção), reside na possibilidade de qualquer
cidadão/ã expor as suas opiniões e sugestões com relação, neste caso, aos problemas sócio-educativos da Freguesia de
Massarelos, contacta com opiniões e sugestões de outros/as utilizadores/as e, finalmente, tem a garantia de que estas serão
recebidas pelas entidades competentes e que essas entidades lhes darão resposta, directa ou indirectamente. Tem também a
vantagem de poder funcionar como uma plataforma de divulgação de actividades desenvolvidas pelas diversas instituições da
Freguesia, facilitando o acesso dos/as utilizadores/as do fórum a esse tipo de conteúdos. Tendo em conta, como já se referiu,
a pertinência da figura do/a mediador/a sócio-educativo/a no âmbito do desenvolvimento de um projecto educativo local, no
contexto de uma Freguesia, parece-nos que a administração deste recurso deveria estar a seu cargo, e este/a deveria assegurar
que os/as vários/as actores/as locais da Freguesia de Massarelos estivessem representados no fórum, de forma a que houvesse
uma eficácia efectiva da comunicação entre os/as cidadãos/ãs e estas instituições.

420
Análise dos Dados Recolhidos
Será objecto da discussão apresentada nesta terceira parte do artigo o projecto de intervenção planificado a partir da
exploração de espaços-tempos interinstitucionais, apresentando-se o percurso de aprofundamento do conhecimento sócio-
institucional do local e os (novos) espaços de intervenção, no âmbito da filosofia da Cidade Educadora, que essa auscultação
desvendou.
Considerando as limitações concretas do trabalho desenvolvido, na JFM, no âmbito do Projecto +Emprego (que
não ressalva a especificidade do trabalho de um/a Licenciado/a em Ciências da Educação), a investigação foi sendo
reorientada no sentido de uma aproximação às entidades e instituições com as quais a JFM tem relações privilegiadas,
procurando a constituição e a análise de um acervo documental baseado em entrevistas aos/às responsáveis por estas
instituições com o intuito de perceber, em traços gerais, qual a percepção destes/as relativamente ao papel educativo das
instituições que dirigem.
Segundo Joaquim Machado (2005), «será educadora uma cidade [ou uma freguesia] que assuma a função
educadora com a mesma intencionalidade com que assume as suas funções tradicionais» (Machado, 2005: 248). As
possibilidades de concretização da ideia de Cidade Educadora podem assentar na constituição de um «Sistema Formativo
Integrado» (Villar, 2001: 29 e seguintes). Trata-se de um sistema de relações interinstitucionais e interpessoais baseado no
diálogo e na concertação social, “com os olhos postos” na problemática educativa conforme esta é experienciada pela
comunidade local. Uma das possibilidades é a definição de um Projecto Educativo Local (ou seja, um compromisso entre
os/as vários/as agentes locais no sentido de transformação o território num espaço-tempo educativo para todas as pessoas).
M. Belén Villar (2001) configura o Sistema Formativo Integrado (SFI) como um pentágono, correspondendo cada
um dos vértices a um agente local, e resultando o SFI da implicação destes no sentido do desenvolvimento de um «projecto
de desenvolvimento integrado e consensual do território» (Villar, 2001: 31). À administração local (neste caso, à JFM) cabe,
então, a liderança, a planificação e a canalização de esforços e interesses. As instituições educativas (neste caso, os Jardins de
Infância, as Escolas EB1, EB 2,3 e Secundária e outras instituições de ensino/formação) detêm a função de transformar as
experiências de vida, proporcionadas pelo território, em experiências culturais. Ao sistema produtivo (composto, neste caso,
pela franja empresarial com a qual a JFM tem vindo a desenvolver um contacto extremamente profícuo, através do Projecto
+Empresas) caberá a ajuda financeira ao mundo cultural e educativo, devendo ser altamente motivado, pelas instâncias de
poder, para o mecenato. O movimento associativo (neste caso, composto pelas Associações de Moradores/as, Associações
culturais, desportivas, etc.) deve contribuir, com a sua acção, para a facilitação da resposta aos interesses das pessoas que
compõem os grupos organizados, estabelecendo relações directas com os serviços culturais, e buscando uma maior
implicação cidadã na gestão descentralizada de serviços e equipamentos. Finalmente, às famílias caberá garantir que o
percurso formativo dos indivíduos não se reduza ao percurso escolar, proporcionando a todos os seus membros oportunidades
de enriquecimento cultural, afectivo e social. É, neste sentido, objectivo do Sistema Formativo Integrado a emergência de
“espaços solidários”: espaços e tempos que mobilizem a acção local para a prioridade às necessidades e interesses públicos
(não necessariamente comuns). Que espaços e tempos poderão ser esses?
Consideramos que o passo inicial seria o desenvolvimento de um Projecto Educativo Local, no qual todos/as os/as
actores/as sociais com expressão local vissem reflectidos os problemas educativos que mais impacto têm na vida na vida das
suas instituições, de forma a que, levados a discussão plenária, pudessem ver-se investidos de relevância comunitária e
objecto de compromissos de resolução. Assim, e de acordo com a auscultação aos/às representantes das várias entidades
locais, deveriam ser objecto de atenção especial: o desemprego, o insucesso, o abandono e o absentismo escolares, a
degradação física das infraestruturas públicas locais, o apoio educativo a crianças com dificuldades de aprendizagem ou de
integração escolar, a descaracterização e desertificação das zonas históricas da Freguesia, a integração sócio-cultural das
comunidades imigrantes, com especial atenção para a integração escolar dos/as seus/suas filhos/as, o impacto social (familiar
e comunitário) do consumo de estupefacientes e da criminalidade, a falta de pessoal não docente nas Escolas, a habitação
precária, o impacto social e urbano (mas também as potencialidades) do envelhecimento generalizado da população, a
organização das actividades extra-curriculares para as crianças em idade escolar e a reabilitação do movimento associativo.
Um outro espaço-tempo passível de transformação na Freguesia de Massarelos seria o âmbito da cultura popular e
da aprendizagem ao longo da vida, relativamente ao qual vários/as actores/as sociais locais concordam que as associações de
cidadãos/ãs poderiam ter um papel determinante: um/a deles/as afirma, inclusive, que a acção destas colectividades permite
suprir «de certa forma, algumas das lacunas familiares, daquilo que a família não sabe oferecer, e até [oportunidades]
culturais», considerando ser evidente e «uma das maiores dificuldades que nós sentimos muitas vezes é (…) a falta do
caldinho cultural em que as crianças crescem, (…) [porque] a vida das famílias é pouco alimentada, tem pouco espaço para
uma vida cultural (…), esse caldinho cultural faz muita falta (…), e ele poderia vir pela via do associativismo» (excertos de
entrevista). Por outro lado, e considerando uma população mais adulta, a Presidente de uma das Associações de Moradores
considerou que o desenvolvimento de algumas iniciativas, nomeadamente ao nível da formação, é fundamental para o
fomento das relações interpessoais, «porque achamos que as pessoas precisam de mais alguma coisa que não seja sair do
trabalho e ir para casa, ou estar em casa o dia todo sem fazer mais nada» (excerto de entrevista). Um aspecto importante desta
problemática é a relação Escola – Família – Comunidade Local. Nesse âmbito, e conforme explicita M. Esther Rodríguez
(2000), não se trata de perguntar aos/às encarregados/as de educação o que querem mudar na Escola, mas sim discernir, em
conjunto, quais são as suas verdadeiras necessidades no que diz respeito à educação das suas crianças e o que estão

421
dispostos/as a fazer para conseguir supri-las (em cooperação com a Escola e a Comunidade). Neste sentido, poderia ser
importante a reflexão sobre a formação para a cidadania que se considera válida (nomeadamente: qual o modelo de cidadão/ã
que pretendemos ensinar? Quais os valores que pretendemos transmitir? Que normas de convivência privilegiamos?). A
intervenção dentro do próprio sistema familiar também é possível, e poderá assumir a forma de incentivo à descoberta, por
parte das crianças, dos/as avós (ou outras pessoas idosas) enquanto fonte de conhecimentos.
Também a democratização do acesso à cultura mereceria a atenção da concertação dos/as actores/as sociais de
Massarelos, nomeadamente no aumento da acessibilidade de algumas iniciativas culturais. Nesse âmbito, pensamos que as
Associações de cariz cultural e recreativo, pela especificidade da sua intervenção no âmbito das artes, poderiam ser um pólo
privilegiado de iniciativas a este nível, nomeadamente através da realização de exposições e do apoio à concepção de peças
de teatro ou filmes de divulgação da história, do património (arquitectónico, cultural e humano) da Freguesia. A problemática
da educação para os media adquire também alguma importância no âmbito da educação cultural dos indivíduos, e deveria ser
alvo de algum investimento, não só no alerta para os seus perigos, mas também no aproveitamento das suas potencialidades.
A questão da educação para a diversidade, tendo surgido, a partir de alguns contactos estabelecidos, como uma
problemática pertinente, deveria também ser objecto da atenção da comunidade educativa de Massarelos. Nomeadamente no
que diz respeito ao público escolar, esta questão é premente, seja pelo fenómeno crescente da imigração, seja pela
convivência quotidiana entre crianças surdas e crianças ouvintes. A sensibilização para a multiculturalidade, a igualdade de
género, a etnicidade e para as necessidades e potencialidades dos/as cidadãos/ãs com deficiência é de importância central na
sociedade actual, e a comunidade local não pode manter-se à margem.
Outra questão importante parece ser o desenvolvimento de uma cultura de civismo e desenvolvimento sustentável,
no sentido da promoção de uma responsabilidade cidadã na preservação do ambiente e dos recursos naturais. Esta
problemática foi já abraçada pela JFM, através do desenvolvimento do Projecto +Ambiente, mas, tendo tido este projecto
uma duração temporal limitada, importaria agora o aproveitamento dos âmbitos de intervenção dos outros parceiros locais
para a continuação do fomento de uma relação sustentável entre a comunidade e o meio ambiente (nomeadamente através do
desenvolvimento de iniciativas junto das Escolas e das Associações).
Embora se tenha já referido a necessidade da reabilitação do movimento associativo, a questão da participação
cívica e política dos indivíduos alcança mas ultrapassa este âmbito de acção. Neste aspecto, a JFM poderia ter um papel
importante, no sentido do incentivo à participação das pessoas da construção da democracia, nomeadamente no levantamento
das disposições dos/as habitantes da Freguesia relativamente às instituições locais e no esclarecimento sobre diversas formas
de participação (para além do voto).
A problemática dos espaços urbanos enquanto espaços educativos emerge também revestida de importância, na
medida em que, conforme afirma J. Teixeira Lopes (2000), «o que caracteriza (…) as sociedades urbanizadas, é,
precisamente, uma nova forma de apropriação do espaço, muito mais marcada pela mobilidade e pelos projectos
individuais», o que conduz a que «o espaço colectivo deixa de ser um espaço público, (…) para o encontro com o Outro»
(Lopes, 2000: 74). Adquire, então, aqui, especial importância a questão da degradação física das infra-estruturas de usufruto
público, na medida em que a ruína das construções reflecte a ruína dessas instituições enquanto espaços da comunidade.
Neste âmbito, e em virtude das (mais que conhecidas) limitações orçamentais inerentes ao funcionamento de uma Junta de
Freguesia, importa a motivação do tecido empresarial para a concessão de apoios à recuperação e manutenção dos espaços
públicos.
Finalmente, e porque todos estes melhoramentos só serão possíveis se emergir, de facto, na Freguesia de
Massarelos, uma comunidade educativa, um último espaço-tempo sob o qual deveria recair a atenção seria o da cooperação
interinstitucional e globalizada. Tendo-se já sugerido a realização de sessões de reflexão e análise dos problemas sócio-
educativos da Freguesia, e a divulgação, junto dos/as intervenientes e dos/as restantes cidadãos/ãs, os resultados das mesmas,
apresentou-se como um dos veículos para a divulgação destes dados a criação de um fórum de discussão virtual. Embora a
utilização deste tipo de recurso esteja limitada pela possibilidade de acesso à internet e pela posse de conhecimentos
informáticos, considera-se esta como uma possibilidade viável, posto que, hoje em dia, várias instituições disponibilizam
gratuitamente o acesso a estes recursos. A mais-valia do fórum de discussão virtual, para além da sua gratuitidade, reside na
possibilidade de qualquer cidadão/ã expor as suas opiniões e sugestões, contactar com opiniões e sugestões de outros/as
utilizadores/as e, finalmente, ter a garantia de que estas serão recebidas pelas entidades competentes e que essas entidades
lhes darão resposta, directa ou indirectamente. Tem também a vantagem de poder funcionar como uma plataforma de
divulgação de actividades desenvolvidas pelas diversas instituições da Freguesia. Tendo em conta, como já se referiu, a
pertinência da figura do/a mediador/a sócio-educativo/a no âmbito do desenvolvimento de um projecto educativo local, no
contexto de uma Freguesia, parece-nos que a administração deste recurso deveria estar a seu cargo, e este/a deveria assegurar
que os/as vários/as actores/as locais da Freguesia de Massarelos estivessem representados no fórum. Outra das funções do/a
mediador/a sócio-educativo/a poderia ser a recolha e divulgação de informação actualizada, aos/às agentes locais e à
população, acerca das iniciativas nacionais e internacionais enquadradas pela filosofia da Cidade Educadora, bem como a
divulgação do projecto educativo local da Freguesia de Massarelos para além dos seus limites geográficos.

Considerações Finais

422
Hoje em dia, mais do que nunca, as cidades, grandes ou pequenas, dispõem de inúmeras possibilidades educadoras,
mas podem ser igualmente sujeitas a forças e inércias deseducadoras. De uma maneira ou de outra, a cidade oferece
importantes elementos para a formação, promoção e desenvolvimento de todos/as os/as seus/suas habitantes. Assim, o grande
desafio que se coloca à Freguesia de Massarelos envolve três investimentos fundamentais:
Investimento na Educação de cada pessoa, de maneira a que esta seja cada vez mais capaz de afirmar e desenvolver
o seu potencial humano, assim como a sua responsabilidade cidadã;
Promover as condições de plena igualdade, para todos/as possam sentir-se respeitados/as e valorizados/as;
Conjugar todos os factores possíveis para se possa construir uma verdadeira sociedade do conhecimento, sem
exclusões.

«Éducatives, toutes les villes le sont, mais éducatrices, elles ne sont que si elles le veulent» (Figueras & Meirieu,
2006 : 23). É esta a essência da Cidade Educadora : a vontade comum (que é mais que a agregação das vontades individuais,
da mesma forma que o todo é mais do que a mera soma das partes) em direcção «à multiplicação das potencialidades
educativas do território e, consequentemente, ao crescimento das condições da realização individual e colectiva dos seus
habitantes» (Pinto, 2004: 148). Um contexto educador, seja uma Cidade ou uma Freguesia, é aquele onde se aprende, ensina
e exerce a cidadania, onde os contextos educativos não formais e informais adquirem importância sobre a Escola, onde se
desenvolvem as potencialidades das pessoas e dos grupos, onde todos/as têm lugar e acção, onde a solidariedade é uma
preocupação de todas as entidades, e onde o ambiente físico e cultural é conservado, mas também humanizado.

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Moralizar ou democratizar a(s) consciência(s)? Equívocos em torno das práticas


e das representações no espaço da formação cívica. Comparação entee duas
escolas

Vera Henriques
ISCTE/CIES
vera.henriques@iscte.pt

Resumo: Nesta comunicação pretendo apresentar os principais resultados da minha tese de Mestrado realizada este ano (2008). Esta
investigação consistiu numa análise comparativa entre duas escolas da Área Metropolitana de Lisboa, que acolhem populações estudantis
muito diferentes em termos de recursos sociais e económicos e de atitudes face à escola. Esta comparação foi feita a partir da Área Curricular
Não Disciplinar de Formação Cívica, porque é uma área que, no nosso entender, tem propósitos bastante ambiciosos nos actuais currículos
escolares. Um dos principais objectivos da Formação Cívica passa por formar alunos esclarecidos para que possam ser cidadãos críticos e
conscientes no futuro. Ao nível dos documentos oficiais, os princípios que esta área preconiza enquadram-se numa tentativa de incutir nos
alunos competências para que eles possam participar de forma mais esclarecida na sociedade. A partir da observação de aulas e da realização
de entrevistas a alunos e professores de Formação Cívica, a finalidade deste trabalho foi analisar as representações que professores e alunos
mobilizam em torno desta área e de que forma estes valores se exteriorizam nos discursos e nas práticas.

Introdução
O presente artigo resulta de uma pesquisa levada a cabo no âmbito da dissertação no Mestrado de Sociologia1, na
qual se procurou comparar duas escolas que acolhem populações estudantis muito diferentes, não só em termos de recursos
sociais e económicos mas também de atitudes face à escola. O mais interessante relativamente a estas duas escolas é que,
apesar de serem tão diferentes, se situam uma em frente da outra. Ambas as escolas se situam numa freguesia do concelho de
Loures, cuja população é de classe média-alta e altamente escolarizada (em comparação com as restantes freguesias deste
concelho).
Esta comparação foi feita a partir da Área Curricular Não Disciplinar de Formação Cívica - que é leccionada em
todos os ciclos do Ensino Básico - , porque é uma área que tem propósitos bastante ambiciosos, nos actuais currículos
escolares. O decreto-lei nº 6/2001, de 18 de Janeiro, cria a Área Curricular Não Disciplinar de Formação Cívica, cuja
responsabilidade é atribuída ao Director de Turma, e define-a como sendo um
“ (…) espaço privilegiado para o desenvolvimento da educação para a cidadania, visando o desenvolvimento da
consciência cívica dos alunos, como elemento fundamental no processo de formação de cidadãos responsáveis,
críticos, activos e intervenientes, com recurso, nomeadamente, ao intercâmbio de experiências vividas pelos alunos e à
sua participação, individual e colectiva, na vida da turma, da escola e da comunidade.” (Dec-Lei n.º 6/2001, de 18 de
Janeiro, art.º 5.º, ponto 3, alínea c).

Como podemos ver, ao nível da definição legal da Formação Cívica, esta procura desenvolver nos alunos
competências para que eles possam participar de forma mais esclarecida na sociedade. Cabe à escola, através deste espaço,
capacitar os jovens de competências pessoais e sociais para intervirem criticamente na sociedade e exercerem a cidadania de
forma esclarecida. Um dos objectivos passa por criar um espaço aberto ao diálogo e ao debate na sala de aula, abordando
temas como a política, a sexualidade, a família, a cultura ou a cidadania (Abrantes, 2002: 13). Por isso, procurou-se perceber
em que valores assenta esta Área Curricular e que legitimidade tem a escola, assim como os professores, para incutir nos
alunos princípios relacionados com a cidadania. Que tipo de práticas são desenvolvidas no âmbito da Formação Cívica? O
que pensam professores, alunos e responsáveis desta área? Para responder a estas questões, procedeu-se, neste trabalho, à

1
Vera Henriques, Moralizar ou Democratizar a(s) Consciências? Equívocos em torno das práticas e das representações no espaço da Formação Cívica. Análise
comparativa de duas escolas da Área Metropolitana de Lisboa, ISCTE (Mestrado em Sociologia), 2008

424
caracterização das representações que professores e alunos mobilizam em torno da Formação Cívica e analisar de que forma
estes valores se exteriorizam nos discursos e nas práticas.
Por outro lado, existe uma associação muito forte entre a Educação para a Cidadania, preconizada por esta área, e
os valores associados à Democracia. Assim, tentou-se perceber também como é que os objectivos desta área curricular se
concretizam em escolas onde ainda persistem situações de desigualdade social, não só no acesso à escola, como também
dentro das próprias escolas. Apesar de grande parte dos objectivos da Formação Cívica se aproximarem fortemente dos
princípios democráticos amplamente proclamados pelos seus principais defensores e responsáveis políticos, esta área
curricular confronta-se com uma escola altamente politizada e onde as desigualdades sociais estão fortemente enraizadas.
Não devemos, por isso, desvalorizar a dimensão política da educação, onde perduram situações de desigualdade e exclusão
no seu interior e que são fomentadas pelo desigual acesso à escolarização (Matos, 2005: 37).
Em relação à metodologia, visto que aquilo que constitui o foco de análise da dissertação realizada são as práticas e
representações dos alunos e professores face a uma área curricular concreta – Formação Cívica –, realizou-se uma pesquisa
empírica nas escolas com observação de aulas, entrevistas a alunos e professores e análise de documentos oficiais das
referidas escolas. Para além disso, entrevistou-se também as Presidentes dos Conselhos Executivos de ambas as instituições,
no sentido de perceber, entre outros aspectos importantes, as especificidades de cada uma das escolas, o estilo de liderança, o
modo de organização, assim como as condições e constrangimentos organizacionais que se impõem ao funcionamento desta
área. Contudo, neste artigo, irão ser abordados apenas os aspectos que dizem respeito à área curricular em si. É importante
referir que a investigação de cariz qualitativo levada a cabo nestas duas escolas, apesar de permitir revelar parte das
realidades que nelas ocorrem, não autoriza que sejam feitas transposições automáticas para outras realidades escolares.
“Precisamente, porque cada escola é única.” (Abrantes, 2003: 4). No entanto, lança algumas pistas de análise para posteriores
investigações feitas no domínio da sociologia da educação.
A escolha de uma turma de 7º ano e outra de 9º ano, em cada uma das escolas, deveu-se à singularidade destes anos
no percurso escolar dos alunos, porque pertencem ao último ciclo da escolaridade obrigatória (3º ciclo). Além disso, este
corresponde também ao último ciclo de ensino onde esta área curricular é leccionada. Deste modo, os alunos poderão ter uma
opinião mais consolidada a respeito dos seus conteúdos. Mas existem diferenças entre 7º e 9º anos, no âmbito desta área, ao
nível dos comportamentos adoptados e dos valores e opiniões veiculados?
A pesquisa empírica realizou-se durante 5 meses, e acabei por me focar em apenas duas turmas de cada escola e
uma de cada ano de escolaridade. Neste período, observei aulas da referida Área Curricular, com o objectivo de deslindar as
representações que vigoram sobre esta área e as práticas dentro da sala de aula2. As turmas, inicialmente, foram escolhidas
aleatoriamente, em função da autorização que alguns professores davam para assistir às suas aulas. Porém, à medida que o
trabalho de campo avançava, centrei-me apenas numa turma de cada ano escolar, de forma a obter dados que se
complementassem e não um conjunto de informação dispersa. Assim, os alunos e professores entrevistados, assim como os
Projectos Curriculares de Turma analisados, pertencem às turmas cujas aulas se observou em maior número.
Como forma de complementar a observação de aulas, realizou-se entrevistas individuais a professores e entrevistas
de grupo a alunos. A forma como Lahire equaciona a noção de disposição, serve de fundamento para a realização de uma
pesquisa empírica que se baseie na complementaridade de metodologias: “A noção de disposição supõe que seja possível
observar uma série de comportamentos, atitudes e práticas que seja coerente; ela proíbe pensar na possibilidade de deduzir
uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento. A ocorrência única, ocasional, de um
comportamento não permite, em nenhum caso, que se fale de disposição para agir, sentir ou pensar dessa ou daquela
maneira.” (Lahire, 2004: 27). A partir de entrevistas mais ou menos estruturadas, foi mais fácil não só perceber as
representações que os professores mobilizam em torno da Formação Cívica e dos seus alunos (pelo facto de não estarem em
presença deles), mas também confrontar as suas respostas com aquilo que exteriorizam na prática da sala de aula.
Analisou-se também documentos das escolas (Projectos Educativos e Projectos Curriculares das turmas estudadas).

Reconstituição histórica dos sentidos atribuídos à Cidadania pela Escola: dos anos 80 aos dias de hoje
Nos anos 80 e 90, as reformas educativas nos países europeus colocam a tónica na “educação para a cidadania”. A
Reforma Curricular de 1989 defende que a formação pessoal e social deve ser transversal a todas as disciplinas do ensino
básico e secundário: da Área Escola, que inclui um programa de educação cívica no 3º ciclo; da disciplina de
Desenvolvimento Pessoal e Social, que se apresenta como alternativa à Religião Moral e Católica; e de todas as actividades
extra-curriculares. Assim, foi introduzida, em todo o ensino não superior no nosso país, uma área não disciplinar chamada
Área-Escola, destinada a acolher projectos de natureza interdisciplinar. Estes projectos deveriam fomentar o desenvolvimento
moral e social dos alunos, envolvendo a participação de todos os professores e explorando as ligações da escola ao seu meio
ambiente. No 3º ciclo, o programa de educação cívica centrava-se essencialmente na formação cívica e política dos alunos,
incluindo o conhecimento das instituições sociais e políticas, a identificação e resolução de problemas e a promoção das
capacidades dos alunos para intervirem na sociedade. Foi criada também a disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social,

2
Partimos do princípio que a sala de aula nunca é estática e que a interacção entre professor e alunos é sempre uma relação de negociação de sentidos (Delamont,
1987: 39-41). Por isso, os sentidos que cada um dos participantes atribui a essa negociação só podem ser entendidos no contexto e através do contexto; ou seja,
dentro da própria sala de aula.

425
obrigatória para todos os que não optassem por frequentar Religião Moral e Católica (ou outra religião), que procurava
abordar temas sobre economia e política, mas também familiares, de saúde, consumo ou ambiente (Menezes, 1995: 16 e 17).
Contudo, o desenvolvimento da Área-Escola foi perturbado, sobretudo no ensino secundário, pela pressão do cumprimento
dos programas. Também só um pequeno número de escolas conseguiu pôr em prática a disciplina de Desenvolvimento
Pessoal e Social, por falta de formação de professores e de oferta das próprias escolas (Benavente, 2000: 61). Além disso, o
facto de ela se apresentar como alternativa à educação religiosa teve profundos efeitos negativos no entendimento que
autoridades, professores e famílias faziam desta disciplina (Figueiredo, 1998; Fragateiro et al., 1994; citados em Figueiredo e
Silva, 2000: 18 e 19). Em 1994, a Área-Escola cai.
Depois de 1994 foi aprovado um “Programa de Educação Cívica para a Participação nas Instituições
Democráticas”: era um programa obrigatório, de carácter não disciplinar, para os 7º, 8º e 9º anos, assente em actividades de
carácter cívico e organizadas por projecto. Assumia que a escola e a sociedade se regiam pelos mesmos princípios e que, por
isso, a escola deveria preconizar os princípios da organização democrática. Por isso deveria desenvolver o conhecimento e a
compreensão das instituições, a capacidade de as questionar e a autonomia crítica nos alunos. Estas competências iriam ser
fundamentais para a sua formação enquanto cidadãos. O programa sugeria, como actividades de carácter cívico, por exemplo,
a eleição do delegado de turma e a realização de Assembleias de Turma. O programa foi experimentado em apenas 6 escolas,
durante o ano lectivo de 1991-1992, acabando por não ter continuação (Figueiredo e Silva, 2000: 27 e 28).
Em 1995 dá-se a formação de um novo governo e em 1996 inicia-se um movimento de Renovação Curricular do
Ensino Básico, que dá origem ao Projecto de Gestão Flexível do Currículo (Despacho nº 9590/99), que tem início com 9
escolas (Benavente, 2000: 67). O currículo procura apostar na diferenciação pedagógica e na adequação e flexibilização dos
conteúdos, por oposição à lógica “aditiva e uniforme” do currículo tradicional, numa perspectiva de desenvolvimento de
competências transversais a todas as áreas disciplinares e não disciplinares. Procura-se fomentar a responsabilidade e
autonomia das escolas e o trabalho colaborativo entre os professores. No Projecto Curricular de Turma, a organização das
áreas e disciplinas, dos tempos lectivos e a distribuição do serviço docente devem ser feitas em função do contexto e dos
problemas concretos da escola. O Conselho de Turma assume um papel fundamental na gestão do Projecto Curricular de
Turma.
A introdução da Formação Cívica enquadra-se na Reorganização do Currículo do Ensino Básico (2001), em que se
criam 3 Áreas Curriculares Não Disciplinares: Estudo Acompanhado, Área Projecto e Formação Cívica, cuja
responsabilidade é atribuída ao Director de Turma. Surge o conceito de currículo nacional e a possibilidade de flexibilizar os
planos de trabalho com os alunos: “ (…) o pressuposto é o de que a presença, nas disciplinas escolares como noutras áreas
curriculares, de objectivos e conteúdos (para além de estratégias, de actividades e de um clima relacional) tendo em vista a
formação cívica e moral dos jovens, é factor de integração cultural e social e condição essencial para a sua formação como
cidadãos conscientes e participativos.” (Carvalho e outros, 2005: 6). Estas áreas têm como objectivos melhorar os
comportamentos dos alunos, os seus resultados escolares, assim como consolidar as aprendizagens, e surgem com o propósito
de combater a lógica “aditiva” de conteúdos do ensino, em que os alunos são confrontados com uma disciplinarização cada
vez mais acentuada. Neste sentido, estas novas áreas não partem de um programa, temas ou métodos específicos, tais como
as outras disciplinas, ficando o seu planeamento ao critério do Conselho de Turma. Esta medida procura promover, mais uma
vez, a autonomia das escolas. Para além do seu carácter não disciplinar, estas áreas assumem uma natureza transversal às
outras áreas curriculares e, por isso, a sua concretização é feita através do desenvolvimento de competências e não por
conteúdos. É neste sentido que não são consideradas disciplinas (Abrantes, 2002: 9 – 11), pois são pensadas como espaços ao
serviço das outras disciplinas. Segundo Matos, a necessidade de criar áreas transversais e de conferir um carácter
interdisciplinar ao ensino, deriva da forte disciplinarização das áreas curriculares que ocupam o espaço escolar, que
funcionam sem qualquer comunicação entre si (Matos, 2005: 41).
A introdução destas áreas nos currículos escolares implica o desenvolvimento de inovações pedagógicas e
organizativas no interior das instituições escolares, na medida em que exige da parte dos professores alterações na
“tradicional concepção de ensinar” e um maior investimento no trabalho colaborativo da parte do Conselho de Turma. Num
artigo de 2002 (escrito nos primeiros anos de implementação destas áreas, quando ainda se chamavam “Novas Áreas
Curriculares”), escrito por Carla Cibele Figueiredo e editado pelo Departamento do Ensino Básico do Ministério da
Educação, a autora reconhece como principal dificuldade sentida pelos professores na sua prática de ensino, o cumprimento
dos extensos programas escolares. Contudo, defende que a lógica da Formação Cívica não se coaduna com esta perspectiva
de “cumprimento de programas”, uma vez que um dos seus objectivos é cruzar saberes de outras disciplinas com a dimensão
social e humana que todos os saberes contêm.
Actualmente existe uma disciplina opcional de Introdução à Ciência Política, leccionada no 12º ano por professores
de Direito, História ou Filosofia, que começou por ser leccionada em 2006 / 2007 em algumas escolas. Marina Costa Lobo
(politóloga, ICS - UL), João Cardoso Rosas (filósofo, Universidade do Minho) e Conceição Moreira (professora do ensino
secundário) foram convidados pela DGIDC (Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular) a redigir o
programa, que contempla as seguintes temáticas: (a) As ideias Políticas no quadro do Estado Moderno; (b) Questões relativas
à organização do Estado; (c) Temas /Problemas políticos do mundo contemporâneo. No âmbito do IV Congresso da
Associação Portuguesa de Ciência Política, realizado nos dias 6 e 7 de Março deste ano na Fundação Calouste Gulbenkian,
João Cardoso Rosas moderou uma mesa subordinada ao tema “A Ciência Política no Ensino Secundário” que contou com a
presença de Marina Costa Lobo e Conceição Moreira. Nesta mesa, os oradores denunciaram as exigências vindas do

426
Ministério da Educação no sentido de transformar esta disciplina num espaço de desenvolvimento de Educação para a
Cidadania, ao contrário das pretensões dos autores do programa, que defendem o estatuto científico da Ciência Política.

Análise das práticas e das representações na Formação Cívica


Antes de se analisar a configuração (ou configurações) que a Formação Cívica vai assumindo nas representações e
nas práticas dos actores em cada uma das escolas estudadas, convém fazer-se uma breve caracterização das escolas, ao nível
das dinâmicas que no seu interior ocorrem. A escola A é sede de agrupamento e funciona com 2º e 3º ciclos, enquanto que a
escola B é a única escola secundária da zona, mas que funciona também com 3º ciclo. A escola A integra turmas de
currículos alternativos, ao contrário da escola B que, para além de não ter turmas de currículos alternativos, é uma escola
pública muito bem posicionada nos rankings das escolas portuguesas, devido aos resultados que os seus alunos obtêm nos
exames nacionais. Por outro lado, a taxa de insucesso referente a 2007/2008 na escola B, nos 7º e 9º anos, foi inferior ao da
escola A. Estes dados permitem perceber que a escola B está mais orientada para o prosseguimento de estudos no ensino
superior. Para os pais, a escola B é, assim, uma escola que, à partida, assegura maiores possibilidades de sucesso aos seus
filhos, acabando aqueles por colocar os seus educandos nesta escola no 7º ano de escolaridade, mesmo que durante os 5º e 6º
anos tenham frequentado a escola A.
Alguns defensores da presença desta área nos currículos escolares (Benavente, 2000; Figueiredo, 2002; Matos,
2005; Silva, 2000) apostam na “educação na cidadania” e não na “educação para a cidadania”. Em 1999, Ana Benavente,
numa conferência subordinada ao tema Educação, Sociedade e Cidadania (organizada pelo Ministério da Educação e pelo
GAERI – Gabinete dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais), no papel de Secretária de Estado da Educação e
Inovação do XIII Governo Constitucional (na altura, o Primeiro Ministro era António Guterres e o Ministro da Educação era
Marçal Grilo), defende que a escola deve “ (…) educar, integrar, construir a cidadania.” (Benavente, 2000: 67). Ana
Benavente refere também a importância que a introdução da Carta dos Direitos e Deveres do Aluno teve para a questão da
cidadania nas escolas: “ (…) a escola não pode ignorar que educa pelo espaço, pelas práticas, pelas reacções, pela
organização, por tudo aquilo que se vive, e tem de estar consciente do que se faz.” (idem: 67); por isso, a formação da
cidadania nos alunos deve fazer-se pela prática e começa na própria instituição escolar. Augusto Santos Silva – que no
Governo seguinte veio a ocupar o cargo de Ministro da Cultura -, na mesma conferência, defende também a “educação na
cidadania” e não a “educação para a cidadania”: “ (…) não se trata de transmitir, mais ou menos formalmente, valores
considerados como pressupostos necessários para o exercício da cidadania. Trata-se de, através do exercício da democracia,
através da nossa relação de uns com os outros e da nossa participação (multiforme) nos assuntos comuns, na res publica,
formarmos e transformarmos quadros de referência aceitáveis pelos participantes. A expressão “educação moral” talvez não
seja adequada para conotar as actividades concretas (…)” (Silva, 2000: 83, 84).
Facilmente verificamos que o conceito de cidadania aparece muito associado à ideia de Democracia, como se só
através dela fosse possível uma cidadania completa e eficaz. Acerca desta estreita ligação que a escola tende a estabelecer
entre os dois conceitos, Pintassilgo afirma que o regime democrático necessita do reconhecimento do homem como cidadão
e, mais do que isso, o reconhecimento da necessidade da sua intervenção no funcionamento da sociedade (Pintassilgo, 1998:
120).
Tendo em conta os valores e principais objectivos associados a esta área - “formar cidadãos críticos e conscientes”
e “educar na cidadania”, como se viu –, a pesquisa empírica realizada permitiu perceber que estes conceitos nunca são
reproduzidos na prática tal e qual como são preconizados pelos seus defensores, gerando-se alguns equívocos à volta do seu
sentido. São esses “equívocos” que irão ser abordados seguidamente. Para isso, partiu-se da tipologia construída por Carla
Cibele Figueiredo, num artigo em que a autora procurou caracterizar as práticas e as representações em torno da Formação
Cívica (2005). No entanto, introduziu-se algumas nuances resultantes das particularidades da pesquisa empírica realizada.
Assim, parafraseando a autora, “(…) ao caracterizarmos as concepções mais comuns associadas à Formação Cívica
procuramos compreender quem as produz, mas ao mesmo tempo cabe-nos desconstruir essas representações, introduzindo
outras interpretações. Contudo, queremos salientar que as concepções não são positivas ou negativas, traduzem simplesmente
um modo de entender um objecto / uma realidade.” (Figueiredo, 2005: 26). Existem orientações do Conselho Executivo para
a Formação Cívica, relativamente a conteúdos e métodos desenvolvidos?
Em primeiro lugar, ao tentar perceber as orientações dos Conselhos Executivos para estas áreas, nas entrevistas
realizadas às Presidentes, percebeu-se que estas aprovam a introdução deste espaço nos currículos escolares, em virtude de
associarem a Formação Cívica ao papel do Director de Turma, apesar de reconhecerem que as questões da cidadania, do
desenvolvimento da consciência cívica dos alunos e do incentivo à participação destes na vida da turma, da escola e da
comunidade estão quase ausentes das aulas:

“Para si, um professor de Formação Cívica deve ter que tipo de competências, para ser um bom professor de
Formação Cívica?
Tem de ser, à partida, um bom Director de Turma, as competências da Direcção de Turma… são aqueles
professores – isso é que na generalidade não acontece – que eu sei como referência que os alunos se aproximam deles
voluntariamente, para conversarem, para exporem coisas.” (Presidente do CE, escola B)

427
“ Qual é para si o perfil indicado para dar Formação Cívica?
Tem que se um Director de Turma que tenha uma boa relação com a turma e que consiga estabelecer um diálogo
bastante próximo com eles, e ao mesmo tempo, que tenha bastante autoridade, que tenha um sentido de justiça e de
autoridade bastante forte; e eu penso que esse é o Director de Turma que consegue depois nessas aulas de Formação Cívica
dar temas aliciantes que os miúdos aderem… assim é que é possível.” (Presidente do CE, escola A)

Após esta breve apresentação das opiniões e posições das responsáveis das escolas sobre esta área, passemos a uma
análise mais aprofundada da mesma, a partir das aulas observadas e das entrevistas realizadas a professores e alunos. É
importante referir que estas categorias não são exclusivas, servem apenas para caracterizar a realidade e na prática podem
coexistir na mesma situação. O objectivo deste trabalho não é ser um manual “ de boas práticas” para os professores e
responsáveis pelas escolas, mas sim caracterizar representações e práticas em torno da Formação Cívica.

1. Formação Cívica como Educação Moral

Esta abordagem caracteriza-se por um posicionamento muito forte do professor na transmissão de valores aos
alunos. O controle e a resolução de problemas de indisciplina são essencialmente feitos através da transmissão de valores. Os
principais objectivos passam por tornar os alunos “boas meninas” e “bons meninos”, através da aprendizagem das regras do
“saber ser e saber estar”; o conflito é visto como algo que é negativo; a função da escola é “preparar os alunos para a vida
adulta. No fundo, a Formação Cívica é encarada como “veículo de capacitação moral”: «(…) nem sempre se apela ao
autoritarismo, rigidez ou supremacia do professor, mas a um “modelo moral”, implicando da parte do docente uma postura de
“tutor”, de “conselheiro” e, como tal, o uso de empatia e mesmo de afecto (…)», porque o modelo de “inculcação de valores”
está a entrar em declínio (Figueiredo, 2005: 30).
Esta é uma categoria muito associada à função do Director de Turma, porque é ele que assume a regulação da
aprendizagem das regras e condutas sociais pelos alunos. A resolução dos problemas da direcção de turma ocupa a maior
parte do tempo das aulas e centra-se, essencialmente, no comportamento dos alunos nas aulas e na escola. As aulas de
Formação Cívica servem de veículo para a figura do Director de Turma se assumir como regulador do comportamento e
atitudes dos alunos. Assim, as funções deste prendem-se com questões administrativas (assunto que irá ser abordado mais à
frente, noutra categoria) e com a resolução de problemas de indisciplina e de aprendizagem. Vamos, então, observar como é
que isto se passa na realidade, a partir da evidência empírica recolhida:

9h20: A professora dirige-se à turma, num tom bastante exasperado: «“Ontem houve reunião do Conselho de
Turma. Mas, primeiro, quero ouvir-vos para saber o que se anda a passar convosco. Para mim, é extraordinário o vosso
comportamento nas últimas semanas! Vou chamar os vossos pais e não se atrevam a faltar, porque eu não vou aceitar fazer
reuniões com os Encarregados de Educação sem vocês estarem ao lado!! Eu ontem ouvi tantas queixas de vocês que disse,
“Eu já não tenho estratégias para a turma!”»
(…) A professora começou a repreender os alunos, referindo o esforço que a Professora de Português tem feito,
apesar dos alunos “serem uma nulidade a Português! Eu admito que estas coisas aconteçam no 7º ano, mas no 9º, não!”. A
professora de Português, conta a Directora de Turma, referiu na reunião do Conselho de Turma que não ia fazer mais esforço
nenhum com a turma e ia começar a dar aulas normais. (…) “A partir dos 16 anos, esta escola já não vos recebe, vocês têm
de ir para outra escola, e pode ser que vos corra melhor!” (aula de 21-02-08, 9º ano, escola A)

Esta Directora de Turma da escola A revela, no momento de observação da aula, não existirem estratégias, da parte
do Conselho de Turma, que procurem ajudar os alunos a ultrapassarem as suas dificuldades. Parece que o conjunto dos
professores “já desistiu da turma”. Há apenas referência à elaboração de um Plano de Trabalho, referido pelos alunos na
entrevista, como forma de organizar o estudo.
Nas escolas estudadas, os professores entrevistados assumem que a “qualidade” da interacção das aulas de
Formação Cívica depende das características da turma; ou seja, se a turma tem alunos “bem comportados” ou “mal
comportados”, como afirmaram alguns professores com quem conversei.
A ideia de que a Formação Cívica serve para tratar dos problemas relacionados com o comportamento da turma, em
detrimento de outras actividades, é também interiorizada por alguns alunos.

Agora vou fazer-vos perguntas mais centradas na Formação Cívica. O que é que para vocês é a Formação Cívica?
(…)

A: Saber comportar-se… Mas não sei bem…


C: Saber comportar-se com as pessoas de fora, saber agir, saber falar, saber estar.
(…)

E vocês? Também concordam com o vosso colega?

428
L: Eu não concordo. Eu acho que se este ano não estamos a falar sobre temas que devíamos estar a falar, é também
devido à nossa turma e aos problemas que a nossa turma apresenta.” (alunos 9º ano, escola A)

As aulas que se enquadram nesta categoria foram mais visíveis na escola A do que na escola B. Para evitar que no
3º ciclo esta área se centre em torno dos comportamentos, o Conselho Executivo optou por atribuí-la, no 8º e 9º anos de
escolaridade, aos professores de História e Geografia, o que abre espaço à realização de outras actividades não centradas nas
questões da turma. Mas no 7º ano, a Formação Cívica é atribuída aos Directores de Turma:

“ (…) a Formação Cívica no 7º ano vai muito ao encontro, realmente, daquilo que o Director de Turma tem que
ensinar enquanto Director de Turma: as regras da escola, porque é que esta escola é diferente da da frente, porque nós não
temos 6º…

Há muitos alunos que vêm da escola da frente?


Da frente e de outras escolas de 2º ciclo. Nós temos que lhes ensinar o que é uma escola secundária; portanto
[Formação Cívica] faz muito jeito no 7º ano.” (Presidente do CE da escola B)

Na realidade, foram visíveis, nesta escola, aulas que se centraram na abordagem e discussão de determinados
temas, tanto no 7º como no 9º ano, apesar de, segundo esta docente, estes não conseguirem despertar muito interesse nos
alunos, “ (…) porque de facto, o fim-de-semana destas criaturas é passado em casa, no centro comercial, ou no computador,
ou a ver aqueles filmes da televisão.” (Professora de 7º e 9º ano, escola B). Assim, apesar de haver uma certa banalização
destes temas por parte dos alunos, alguns assuntos conseguem despertar-lhes um certo interesse, situação que a mesma
professora explica pelo facto destes alunos serem oriundos de famílias mais escolarizadas, o que se reflecte no interesse
manifestado nas aulas3.
Estas representações sobre a Formação Cívica enquadram-se no pensamento durkheimiano, no qual a escola tem a
função de integrar moralmente e especializar os indivíduos, através da transmissão de um quadro de regras e valores comuns.
É a coesão, segundo o autor, que assegura a conformidade de todas as consciências particulares de uma sociedade a um tipo
comum de crenças e normas. Caso este equilíbrio não existisse, as mudanças sociais dariam origem a um isolamento cada vez
maior dos indivíduos – o que pode levar ao suicídio - e uma sociedade conflituosa. As disputas sociais e as lutas de poder
eram, assim, para Durkheim, a antítese da coesão e a anomia social não constituía um factor de progresso (Durkheim, 1970:
16). A escola também participava, deste modo, neste processo de manutenção da ordem social que, fundada numa doutrina
laica e republicana, deveria ensinar uma moral de “cidadão” (idem: 18). Uma vez que a sociedade era atravessada por
mudanças muito profundas, que abalavam o sistema de regras vigente, a função da escola era, então, atenuar estes efeitos,
através da transmissão de valores que substituíssem os valores habitualmente ligados ao sagrado, que, nas sociedades
unifuncionais, cumpriam o papel de controlo e coesão social de base comunitária, de forma a manter a harmonia e a
solidariedade social (Resende e Dionísio, 2005: 664).
Assim, esta área é o reflexo das atitudes, representações e discursos que vigoram na mente de professores e
responsáveis em relação à escola: a função da escola, e nomeadamente desta área, não é apenas a de ensinar, mas é também a
de formar moralmente os alunos. Este espaço deve servir para “integrar moralmente os alunos”, o que se traduz nas “regras
do saber ser e do saber estar”, em detrimento da aprendizagem de outro tipo de competências.
Apesar das Áreas Curriculares Não Disciplinares terem sido pensadas enquanto espaços para resolver os problemas
de indisciplina e insucesso presentes nas escolas, nem todos os docentes fazem uma associação entre a Formação Cívica e os
resultados obtidos nas outras disciplinas. Formação Cívica serve, sim, para resolver os problemas de indisciplina e melhorar
as atitudes nas outras aulas. Apenas uma das professoras entrevistadas – da escola A – estabelece uma relação entre os
propósitos da Formação Cívica e a melhoria dos resultados escolares, através do controle que ela própria faz enquanto
Directora de Turma:

“E acha que a Formação Cívica contribui para eles melhorarem os resultados nas outras disciplinas?
Eu acho que sim. Se não se fizer na Formação Cívica o controle das notas, dos testes, o telefonema para a casa a
dizer “Olhe, tem tantas negativas até este momento.”, como eu faço, aquele controle constante da nota e do teste, então nem
quero imaginar!” (professora de 9º ano, escola A)

2. Problemas da direcção de turma: regulação de problemas administrativos

Esta é uma categoria que surge da evidência empírica. A Formação Cívica confunde-se, em grande parte, com a
administração, na sala de aula, das questões relacionadas com a direcção de turma. Verifica-se que em quase todas as aulas
de Formação Cívica observadas foram tratadas questões da direcção de turma, tais como justificações de faltas, marcações de
reuniões com os Encarregados de Educação, verificação de recados na caderneta, etc.…

3
É importante referir que nesta escola a maioria dos alunos são de classe média-alta.

429
“15h20: Tratamento de faltas para justificar. O professor é bastante enérgico e exige que os alunos lhe entreguem
rapidamente as justificações.” (aula de 11-02-08, 7º ano, escola A)

“Como alguns pais não puderam vir à reunião, a professora pede a alguns alunos para pedirem aos pais para
escreverem na caderneta que querem ver a ficha do seu educando, pois, assim, ela envia. “Os alunos X e Y vou mesmo
convocar para virem cá.” A professora repreende um aluno que alega ter perdido a caderneta.” (aula de 07-04-08, 7º ano,
escola B).

Os alunos manifestam de uma forma geral o seu desagrado em relação à forma como são conduzidas estas aulas,
devido ao seu carácter administrativo:

O que é que vocês já fizeram que acharam interessante?


A: Eu não me recordo bem das aulas de Formação Cívica serem interessantes nesta escola, geralmente são
interessantes para justificar faltas e etc.

Pois, nas aulas em que eu tenho estado, vocês estão sempre a levar raspanetes….
Todos: Pois.
A: É mais as questões da Direcção de Turma.
B: No ano passado nós não tínhamos aulas de Formação Cívica.

Como é que isso funcionava?


D: Utilizávamos as aulas para outras disciplinas.

Para fazer exercícios de outras disciplinas, como se fosse para uma aula de Estudo Acompanhado?
Alunos: Não!
B: A stôra utilizava as aulas para justificar as faltas, e eu aproveitava essa altura para ficar a falar com os outros.
(…)

Então não te lembras de nada interessante que tenham feito em Formação Cívica?
A: Não, é justificar faltas e brincar com as bolas e tal…

Vocês no ano passado já eram colegas?


Todos: Sim, já éramos colegas.
A: Este ano é só justificar faltas e tratar dos assuntos da Direcção de Turma.” (alunos de 9º ano, escola A)

Esta categoria aparece com frequência associada à primeira, uma vez que os docentes aproveitam os momentos em
que estão a tratar de questões da Direcção de Turma para “espetar uns raspanetes” aos alunos.

3. Formação Cívica como espaço de informação sobre a sociedade em geral e sobre outros temas
Assenta no discurso de que “as crianças e jovens sabem cada vez menos sobre a sociedade em que vivem” e, por
isso, as aulas centram-se essencialmente em torno da discussão de temas da actualidade, de direitos e deveres, economia,
cultura, política e da abordagem de datas comemorativas (Figueiredo, 2005). O alinhamento dos temas é casual e vai
ocorrendo ao longo do ano, em torno dos temas que os professores consideram mais relevantes.
A concepção que uma das professoras entrevistadas tem acerca dos seus alunos enquadra-se nesta categoria, porque
considera que os seus alunos não se interessam pelos temas abordados nas aulas:

“Eles ouvem falar em Quercus, em UNICEF, em Greenpeace, não sabem o que é, não fazem a mínima ideia de
como é que aquilo funciona. Eles não sabem o que é a ONU! Eles não sabem neste momento quem é o Presidente da ONU!
(…)

E acha que há temas que despertam mais interesse neles do que outros?
[silêncio] eles acham que é tudo uma seca, “Ai, stôra, que seca!”, para eles é tudo uma seca! Não sei se isto é
problema de gerações, se deixa de ser.” (Professora de 7º e 9º ano, escola B)

Outros professores assumem a postura de conselheiros dos alunos, quando abordam determinados temas na turma,
uma vez que consideram que essa função não é cumprida pelos pais:

“Mas acha importante a introdução desta área?

430
Eu acho que é fundamental! Considero que esta turma, se não tivesse a Formação Cívica, andavam completamente
abandonados, mas em todos os aspectos! Eles não têm uma conversa com os pais sobre relações sexuais, sobre alimentação,
sobre coisa nenhuma; (…) é um bocadinho assustador a maneira como estes miúdos vivem hoje em dia! Não há qualquer
apoio à alimentação posta na mesa, a uma pergunta, “Como foi a escola?” - quando há, não é? (…) E depois eu perguntei,
“Mas vocês não falam destas coisas em casa?! Como é que os vossos pais abordam a questão dos namoros?! Proíbem, não
proíbem, permitem, não permitem?!”; não, tirando alguns alunos, o resto é assunto tabu! Com a informação toda que existe,
eu não percebo!” (Professora de 9º ano, escola A)

Contudo, “esta perspectiva, se demasiado centrada na “informação, tende a ser restritiva por supor que basta a um
cidadão estar informado para poder exercer a sua cidadania de modo activo e consciente.” (Figueiredo, 2005: 32).

4. Formação Cívica como intervenção social


Esta é a categoria que parece que mais se aproxima da definição legal de Formação Cívica (Dec-Lei n.º 6/2001, de
18 de Janeiro, art.º 5.º, ponto 3, alínea c), uma vez que se centra em práticas que procuram promover a intervenção e a
capacidade crítica dos alunos - através de actividades como as Assembleias de Turma - e incentivar a participação e
negociação dos alunos nas decisões da turma. No artigo já anteriormente citado, da autoria de Carla Cibele Figueiredo, esta
identifica, grosso modo, as seguintes competências que devem ser desenvolvidas no espaço da Formação Cívica:
(1) Conhecimento e estabelecimento das regras e valores da “vivência democrática”;
(2) Formação de um pensamento crítico e de uma participação no debate público consciente;
(3) Valorização de cultura de cada aluno e promoção do respeito pelas outras culturas;
(4) Resolução de problemas e consecução de projectos (Cibele, 2002: 56, 57).
A ideia subjacente é a de que o exercício dos valores democráticos não se limita apenas à esfera do Estado e que
passa também pela escola e pelas aulas. Para João Filipe Matos, a Educação para a Cidadania passa necessariamente pela
ideia de democracia. Mas, segundo o autor, antes de tentarmos promover os valores da democracia, através da educação,
devemos questionar em que “grau de democraticidade” se encontram a sociedade e as instituições actuais, como a escola
(Matos, 2005: 42).No entanto, para os professores entrevistados, antes de se atingir esta fase do desenvolvimento da
Educação para a Cidadania, é preciso que os alunos adquiram as regras de “bom comportamento” (como se enunciou
anteriormente), tais como “pôr o dedo no ar antes de intervir”, “não conversar quando os outros estão a falar” ou “respeitar as
opiniões dos outros”.
Procurou-se, então, analisar como se processa a relação entre estes dois valores – Educação e Democracia – nas
escolas estudadas a partir principalmente de duas situações específicas: a eleição do Delegado de Turma e a realização de
Assembleias de Turma.
As Assembleias de Turma, visando a resolução de problemas do grupo, são raras. Observou-se, numa das turmas
estudadas na escola B, a realização de uma Assembleia de Turma para tomar decisões, ultrapassar conflitos, definir regras,
resolver problemas e assumir compromissos, designadamente em matéria de comportamento nas aulas e na escola, apesar da
discordância da Professora:

«A Professora informa-me, antes da aula, que faz Assembleias de Turma por imposição do Conselho Executivo.
Considera que não é proveitoso fazer Assembleias de Turma no 7º ano, porque “os alunos não percebem. Eles nasceram em
Democracia, não tiveram de lutar por nada, por isso isto não faz muito sentido no 7º ano, eles ainda são muito pequenos. Por
isso é que eu pus o meu filho num colégio privado, aí não há democracia e pronto! No 9º ano sim, eles percebem melhor!”»
(10-03-08, 7º ano, escola B)

Em relação à eleição do Delegado e Sub-Delegado de Turma, foi possível verificar que este é um momento comum
a todas as turmas estudadas, que acontece sempre no 1º período. Na escola A, o Professor de 7º ano, a partir da eleição do
Delegado de Turma, procurou que os alunos se organizassem para fazer campanha eleitoral para que, desta forma,
reflectissem sobre o desempenho de funções de representatividade na turma e na escola.

“E em relação à eleição do Delegado de Turma, eles percebem qual é a função do Delegado de Turma, a sua
importância?
Acho que na generalidade percebem…

Faz um trabalho…?
Fizemos, com campanha eleitoral e tudo. Uma coisa a sério! Houve candidatos, e os candidatos tinham de fazer a
sua campanha eleitoral para poderem ser eleitos. Uma coisa simples, claro. Durou uma sessão, mas claro que podiam fazer a
campanha eleitoral fora, depois da Formação Cívica, mas durou uma sessão em que cada um ia apresentar as razões porque
achava que devia ser eleito.” (Professor de 7º ano, Escola A)

Na turma de 9º ano da mesma escola, devido a um incidente ocorrido com o Delegado de Turma, a Directora de
Turma destitui-o:

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«Um aluno pergunta à professora quando é que fazem a eleição do Delegado de Turma, e a professora responde que
hoje já não há tempo: “Isto é uma brincadeira, de eleger um tonto qualquer! Eu é que vou escolher os que são elegíveis, vocês
votam nos que eu vou dizer! Acabou-se a democracia, porque vocês não sabem votar, votam sempre no mais
irresponsável!”» (aula de 28-02-08, escola A)

Este incidente ocorreu porque o ex-delegado de turma não era, segundo a professora, um exemplo para a turma,
porque “faltava constantemente”, “tinha péssimas notas” e “era mentiroso”. Por isso, no sentido de eleger outro Delegado de
Turma, a docente decide que será ela a nomear os potenciais alunos a exercerem as funções inerentes ao cargo.
É interessante observar que existe um desfasamento entre a representação do “bom delegado de turma”, veiculada
pela professora, e aquela que é exteriorizada pelos alunos. Enquanto que para a primeira o delegado de turma “ideal”
corresponde à imagem do bom aluno, que tem um comportamento correcto e é muito cumpridor dos deveres escolares, para
os alunos este cargo deve ser ocupado pelo colega que reúne as características de um “líder”. Alunos e professores mobilizam
imagens diferentes do que deve ser um delegado de turma.
Para finalizar, é importante referir também a representação que alguns dos alunos têm do “cidadão”, que é aquele
que tem atitudes e comportamentos considerados “correctos” e não aquele que tem uma intervenção crítica forte:

“O que é que para vocês é a Formação Cívica?


(…)
A: Formação Cívica, acho que é importante, porque nós aprendemos a ser cidadãos.

Quando saírem aqui da escola (…) vocês vão ser “bons cidadãos, cidadãos conscientes”?
Todos: Sim!

Porquê?
[silêncio]
D: Sim, o que ela [a professora] nos diz….

O que é que ela vos diz?


F: Para estarmos bem sentados, nas aulas…
D: Para termos um bom comportamento, para sermos civilizados…
F: Para estarmos calados…
A: Falamos das coisas más e que não devemos fazer, por isso aprendemos o que não devemos fazer!” (alunos de 7º
ano, escola B)

Conclusões:
O conceito de cidadania é um conceito que se vai moldando às novas formas de intervenção na vida pública e às
instituições que dele se procuram apropriar, como é o caso da escola (apesar de ainda existir uma focalização muito grande
no voto e nos partidos políticos enquanto principais expressões de cidadania). Neste contexto, a escola surge como o locus de
produção de cidadãos e de desenvolvimento de uma consciência cívica nos jovens, como forma de colmatar, segundo alguns
autores, a “apatia cívica”. Tendo em conta os valores e principais objectivos associados à Formação Cívica, procurou-se
perceber como é que estes são abordados em contexto de sala de aula por estudantes e professores. Entre os principais
defensores da presença desta área nos currículos escolares, a Formação Cívica surge associada à ideia de “formar cidadãos
críticos e conscientes”, de “educar na cidadania” e de “educar na cidadania pela prática”. Contudo, os conteúdos da
Formação Cívica que são valorizados pelos professores nunca são neutros do ponto de vista dos valores veiculados e revelam
sempre uma determinada posição ideológica. Por isso, estes conceitos nunca são reproduzidos na prática tal e qual como
preconizados pelos seus defensores, gerando-se alguns equívocos à volta do seu sentido. Foi a partir de um artigo da autoria
de Carla Cibele Figueiredo (2005), que, com base nos ideais-tipo construídos pela autora, se tentou clarificar as concepções
associadas a esta área. É importante referir que a tipologia desta autora constituiu uma grelha de análise muito importante
para a compreensão da realidade estudada neste trabalho, o que significa que a evidência empírica encontrada confirma a
pertinência da utilização destas categorias.
Em primeiro lugar, a Formação Cívica parece não obedecer a estratégias sistemáticas de planeamento de
actividades e temáticas a abordar. Mesmo em situações em que parece haver alguma orientação por parte dos Conselhos
Executivos, os professores preferem planear as actividades de acordo com as necessidades da turma, e a abordagem de temas
ou outro tipo de actividades surge sempre num papel secundário em relação aos assuntos da Direcção de Turma (quer sejam
questões administrativas, quer sejam questões de comportamento), o que significa que tal acontece quando não existem
assuntos da Direcção de Turma para tratar. Esta perspectiva enquadra-se no primeiro ideal-tipo - “Formação Cívica como
Educação Moral” - e é também interiorizada pela maioria dos alunos, que consideram que a principal vocação desta área é
regular os “maus comportamentos”.

432
Consequentemente, foram observadas poucas actividades que procurassem desenvolver nos alunos competências de
cidadania, que se enquadrassem na categoria “Formação Cívica como Intervenção Social”, que ocorrem de forma pouco
organizada e sistemática. Deste modo, os alunos têm noções muito vagas destas aprendizagens (e sempre centradas no
comportamento e na adopção de regras). Não existe, nestas aulas, uma componente forte de desenvolvimento da consciência
cívica dos alunos, tal como preconizado no decreto de lei. Os docentes continuam a sentir dificuldades em trabalhar temas
relacionados com a vivência democrática e com a cidadania, fortemente enraizadas em pré-noções sobre a função da escola.
Como principais obstáculos para a concretização desta área identificou-se a liderança pouco reconhecida do
Director de Turma e as consequentes dificuldades dos professores no trabalho colaborativo.
Em suma, a Formação Cívica é entendida como um espaço de modificação de atitudes - centrada na vivência
escolar do aluno que contribua para o seu “bom comportamento” na escola e nas aulas, e na secundarização da sua formação
enquanto “cidadãos responsáveis, críticos, activos e intervenientes (Dec-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, art.º 5.º, ponto 3,
alínea c) - e não como espaço para a melhoria das aprendizagens. A função da escola é a “socialização para o consenso”
(Durkheim, 1902, 1903, 1911; citado em Seabra, 1999: 22).

Bibliografia:
Legislação:
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Diário da República nº 240, Decreto-Lei nº 208/2002 de 17 de Outubro
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Desenvolvimento sustentável e cultura de paz: a construção de uma interface

433
Simone Barros de Oliveira1

Elisângela Maia pessoa 2

Patrícia Krieger Grossi3

Resumo: Ao relacionar o Serviço Social com o desenvolvimento sustentável, logo se identifica a pertinência dessa relação ao constatar que o
desenvolvimento sustentável presente no contexto ambiental, configura-se como uma das múltiplas expressões da questão social, objeto de
trabalho do Serviço Social. Discutir sobre meio ambiente, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade, é discutir sobre o papel do ser
humano, da natureza, das relações sociais, ou seja, a vida que circula no planeta terra, casa comum da humanidade. Isso pode ocorrer a partir
de intervenções que possibilitem uma consciência crítica e ações voltadas para uma cultura de paz que propõe uma ética de solidariedade que
pode ser construída através do desenvolvimento sustentável a partir da co-responsabilidade. Meio ambiente equilibrado é resultado do
desenvolvimento sustentável, direção possível de um produto final que é a cultura da paz através de um processo de educação. Estas são
preocupações que motivaram a realização de uma pesquisa de Mestrado em Serviço Social, que teve como objetivo identificar a contribuição
do trabalho dos Assistentes Sociais em rede interdisciplinar na perspectiva do desenvolvimento sustentável para o fortalecimento da cultura
da paz.

Introdução
Ao relacionar o Serviço Social com o desenvolvimento sustentável, logo se identifica a pertinência dessa relação ao
constatar que o desenvolvimento sustentável presente no contexto ambiental, configura-se como uma das múltiplas
expressões da questão social, objeto de trabalho do Serviço Social. Discutir sobre meio ambiente, desenvolvimento
sustentável e sustentabilidade, é discutir sobre o papel do ser humano, da natureza, das relações sociais, ou seja, a vida que
circula no planeta terra, casa comum da humanidade. Isso pode ocorrer a partir de intervenções que possibilitem uma
consciência crítica e ações voltadas para uma cultura de paz que propõe uma ética de solidariedade que pode ser construída
através do desenvolvimento sustentável a partir da co-responsabilidade. Meio ambiente equilibrado é resultado do
desenvolvimento sustentável, direção possível de um produto final que é a cultura da paz através de um processo de
educação. Estas são preocupações que motivaram a realização de uma pesquisa de Mestrado em Serviço Social, que teve
como objetivo identificar a contribuição do trabalho dos Assistentes Sociais em rede interdisciplinar na perspectiva do
desenvolvimento sustentável para o fortalecimento da cultura da paz.

O desenvolvimento Sustentável
As definições mais usadas de desenvolvimento sustentável o vinculam ao desenvolvimento social, econômico e
ambiental, no sentido de melhorar as condições de vida da população dentro dos limites da capacidade de sustento dos
ecossistemas. A vinculação do desenvolvimento social com o meio ambiente é necessária para que se possa alcançar o
desenvolvimento sustentável, que articula os elementos ambientais, econômicos e sociais. Atualmente tem se falado muito de
sustentabilidade que nada mais é do que “uma adequação entre as exigências ambientais e as necessidades do
desenvolvimento” (IBAMA, 1999, p. 31). Garantir a sustentabilidade ambiental constitui-se um dos grandes objetivos do
Plano Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), pois segundo as informações desta instituição, um
bilhão de pessoas no planeta ainda não tem acesso à água potável, muito menos saneamento básico. E estes dois fatores são
essenciais para a qualidade de vida da população. Observa-se que sem a adoção de políticas e programas ambientais, pouco
se fará para a conquista da melhoria de vida das pessoas. O desenvolvimento sustentável, para Sachs (1993), tem por
objetivo alcançar um crescimento econômico e social que não dilapide o patrimônio natural das nações sem perturbar os
equilíbrios ecológicos.
Uma das perspectivas da sustentabilidade é o fato de que o desenvolvimento, ao preocupar-se com a geração de
riquezas, tenha por objetivo distribuí-las para melhorar a qualidade de vida da população e conseqüentemente a qualidade
ambiental do planeta. O desenvolvimento sustentável não desconsidera a igualdade, a justiça social e o fortalecimento da
cidadania. Ele preocupa-se com a qualidade de vida e bem-estar da sociedade, ao mesmo tempo em que provoca em cada ser
humano, o sentimento de pertencimento e cidadania. Neste sentido, o desenvolvimento sustentável busca atender às
necessidades presentes da população planetária, mas na perspectiva do cuidado de forma que as ações do cidadão de hoje,
não comprometam as gerações futuras.
Há no contexto atual, uma necessidade da sociedade organizar-se de forma diferente com a natureza e com seus
modos de produção, levando em consideração a sustentabilidade que se refere às maneiras de pensar o mundo e às formas de
prática pessoal e social onde os indivíduos tenham ações norteadas por princípios éticos e comunidades com compromissos

1
Assistente Social, Mestre em Serviço Social, Doutoranda em Serviço Social-PUCRS, integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Violência- NEPEVI,
Professora da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, siboliveira@yahoo.com.br.
2
Assistente Social, Mestre em Serviço Social, Doutoranda em Serviço Social-PUCRS, integrante do Núcleo de Estudos de Demandas em Políticas Sociais/
NEDEPS. Professora da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, elisangela_pessoa4@hotmail.com.
3
Assistente Social, Doutora em Serviço Social. Professora da Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Violência/NEPEVI, pkgrossi@pucrs.br.

434
coletivos baseados na tolerância e igualdade, sistemas sociais e instituições participativas e práticas ambientais que valorizem
e sustentem processos ecológicos de apoio à vida (UNESCO, 2005, p.30). Neste sentido, é necessário “tomar partido por
valores que possibilitem a mudança pessoal e social” (Tuvilla Rayo, 2004, p. 104-105). Para Boff (1999), a sociedade vive
uma crise civilizacional, e a mesma nos leva a um novo paradigma de convivência que funde uma relação benfazeja com a
terra, inaugurando um tipo de respeito e cuidado e preservação de tudo o que existe e vive. Alternativas que representam uma
esperança. O autor fala de um Ethos no sentido originário de casa humana, ou melhor dizendo; “aquela porção do mundo que
reservamos para organizar, cuidar e fazer nosso habitat”(BOFF, 1999, p. 27).
O cuidado é algo que está na raiz primeira do ser humano, mas é preciso saber cuidar, a necessidade do cuidado
tem que passar pelo coração e não apenas pela consciência, pois é o sentimento, aquilo que passou por uma emoção que
provoca cuidado e deixa marcas profundas que podem permanecer definitivamente. Neste sentido, cada ser humano precisa
desenvolver e/ou fortalecer sua dimensão anima, o que significa conceder direito de cidadania à nossa capacidade de sentir o
outro, de guiar-se mais pela lógica do coração e do cuidado, da gentileza, da cordialidade, do que da lógica da conquista do
uso utilitário das coisas, a partir de um relacionamento de humanos entre si e com a natureza articulando uma troca de
saberes. As falas dos sujeitos pesquisados dão visibilidade a essa realidade:
A educação não constitui a resposta para todos os problemas do mundo, mas através dela se pode criar novas
relações entre as pessoas e fomentar maior cuidado e responsabilidade com o meio ambiente e consequentemente com o
planeta terra, casa comum da humanidade. E os educadores podem ser todos os seres humanos, independente do papel que
desempenham na sociedade, todos aqueles que consideram a necessidade de informar e educar sobre as necessidades de um
futuro sustentável. Mas muitas pessoas inseridas de alguma forma em empresas ou instituições sentem a necessidade de
provocar a sensibilização da sociedade para questões diversas consideradas pertinentes na sociedade contemporânea. A
educação tem como uma de suas funções, preparar a sociedade para o futuro. Ela tem um papel fundamental que é manter a
tradição de valores éticos, e nutrir estratégias que se destinem a alcançar a sustentabilidade a nível micro e macro (IBAMA,
1999).

A Cultura da Paz
A cultura de paz vem sendo considerada no mundo acadêmico como um paradigma emergente. Entre os diferentes
conceitos de cultura de paz, há o que reconhece a paz, como algo que tem raízes sociais, econômicas e políticas a partir de
uma base cultural. Compartilhamos do conceito de paz relacionado à justiça social, apresentado por Mayor:
Não pode haver paz sustentável sem desenvolvimento sustentável. Não pode haver desenvolvimento sem educação
ao longo da vida. Não pode haver desenvolvimento sem democracia, sem uma distribuição mais eqüitativa dos recursos, sem
a eliminação das disparidades que separam os países mais avançados daqueles menos desenvolvidos. (Frederico Mayor,
Diretor Geral da UNESCO, 2000).
Na perspectiva de Mayor (2000), a cultura da paz nos leva a uma ação a partir de uma relação entre paz,
desenvolvimento e democracia. Neste sentido, entendemos a paz como algo social, uma vez que ela luta contra exclusão e
busca a eqüidade social e a diversidade cultural. Situar-nos diante da dimensão da paz tem se constituído uma tarefa difícil
em tempos de guerra, de crescente aumento das desigualdades, de corrupção, de injustiça social, entre outros. A paz vem
emergindo cada vez mais como um clamor universal. “A degradação do meio ambiente, da economia e da cultura fazem a
humanidade experimentar o problema do debilitamento do ser e levantar uma agenda ética comum” (GUIMARÃES, 2006. p.
01). O anseio pela paz está presente no íntimo do ser humano que quer uma sociedade de paz, parece que se há algum
consenso na sociedade mundial, esse consenso é o desejo pela paz. No entanto, não adianta apenas desejar , é preciso antes de
tudo se colocar numa posição de buscar estratégias concretas de construir a paz, e cada ser humano pode junto com o desejo
de paz, se perguntar como se pode colaborar com a construção de uma cultura de paz. A consciência da importância não
violência está crescendo cada vez mais e no “horizonte do mundo, desenha-se um novo senso comum emancipatório e uma
prática societal eminentemente não-violenta” (GUIMARÃES, 2006, p. 02).
Todo esse processo levou-nos a concluir que as ações de pequena expressão no cotidiano geram grande impacto no
coletivo por potencializar e fortalecer os reais atributos, sonhos e motivações dos sujeitos, os quais são desvendados a partir
da metodologia adotada, identificando suas necessidades, transformando essas necessidades em metas resolutivas e inserindo
novos atores na rede para concretização dessas metas. A partir de dinâmicas e técnicas de sensibilização, busca-se
desenvolver atitudes que levem os sujeitos envolvidos no projeto a se envolver com o tema, em direção à sustentabilidade,
contribuindo a partir de um processo de educação para a construção de uma cultura de paz.

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internacional de implementação. Brasília: UNESCO, OREALC, 2005.

Observação Etnográfica do Grupo de Atletismo Misto - Meninos e Meninas entre


7 e 17 Anos na Vila Olímpica de Belford Roxo

Daianne Xavier
UFRJ - Univ. Federal do Rio de Janeiro
daiannebx@gmail.com

Resumo: O presente trabalho intitulado Observação Etnográfica do Grupo de Atletismo Misto - Meninos e Meninas entre 7 e 17 Anos na
Vila Olímpica de Belford Roxo, tem como intuito conhecer um pouco mais sobre a prática do atletismo na referida Vila Olímpica, a partir da
observação das relações interpessoais estabelecidas na prática do desporto. Partindo deste pressuposto, conhecer a realidade de um grupo de
crianças e adolescentes praticantes de Atletismo e quais são as dificuldades, anseios e a influência do atletismo na vida física, social,
econômica e cultural deste grupo é que estudo mostra-se importante, podendo contribuir significativamente no processo de formação
acadêmica e cidadã dos discentes do Curso de Licenciatura em Educação Física. Retratanto um pouco da realidade dos habitantes do
Município de Belford Roxo, que encontram muitas barreiras para seu desenvolvimento (desemprego, saneamento básico, precariedade no
atendimento dos postos de saúde, falta de espaços para o lazer entre outros), e as famílias vêem o esporte como uma possibilidade de
mudança de vida almejando um futuro melhor para seus filhos.

Introdução
O atletismo foi a primeira competição esportiva da qual se tem notícia. É considerado o esporte-base de todos os
outros, pois exige habilidades motoras consideradas naturais, ou seja, seus movimentos são característicos das práticas
corporais do ser humano: correr, saltar, lançar e arremessar.
Conta a História que nos Jogos de 776 a.C. foi realizada uma corrida, na cidade de Olímpia, na Grécia, cujo nome
deu origem às Olimpíadas. A prova era chamada pelos gregos de stadium e o corredor tinha que percorrer uma distância de
200 metros, sendo o primeiro vencedor olímpico um homem chamado Coroebus.
O atletismo que conhecemos hoje é disputado desde o início do Século XIX, na primeira Olimpíada da Era
Moderna, em 1896, em Atenas, Grécia. É um esporte bastante popular que atrai a atenção de muitas pessoas em todo o
mundo.
Em 1912 foi criada a Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF), durante os Jogos Olímpicos
na Suécia, mas o Brasil só se filiou a esta Associação no ano de 1914, através da antiga Confederação Brasileira de Desportos
(CBD) que era a responsável por quase todas as modalidades desportivas nacionais. A CBD continuou até 1977, quando foi
criada a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt).
O Atletismo separou-se da CBD, oficialmente, a 2 de dezembro de 1977, quando foi fundada a CBAt, no Rio de
Janeiro, que veio a funcionar, efetivamente, a partir de 1º de janeiro de 1979. A CBAt manteve-se no referido Estado até
1994, quando, por facilidades de apoio a seu funcionamento, a sua sede foi transferida para Manaus.
O primeiro Presidente da CBAt foi Hélio Babo (RJ), que ficou no cargo até a eleição de seu sucessor, Evald Gomes
da Silva (SP), em 1984. Em janeiro de 1987 houve a eleição do atual Presidente, Roberto Gesta de Melo (AM). No
total, a CBAt representa, além das 27 federações, mais de 500 clubes, 20 mil atletas, 900 árbitros e 700 técnicos federados.
A primeira competição de caráter nacional no país foi o Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais, instituído
em 1929. A última edição deste campeonato foi disputada em 1985. O Troféu Brasil de Atletismo (Campeonato Brasileiro de
Clubes), criado em 1945, é a principal competição do calendário brasileiro.

436
Um dos atletas do Atletismo brasileiro mais conhecidos no exterior é Adhemar Ferreira da Silva, filho único de um
ferroviário e de uma cozinheira. Adhemar foi um menino magro de pernas finas e compridas, que ocupava seu tempo livre
ajudando seus pais a engrossar o dinheiro que era pouco, o que o mantinha longe das ruas e de confusões.
Próximo de completar os seus dezenove anos de idade Adhemar conheceu, através de um amigo, uma pista de
atletismo. Entusiasmou-se com a modalidade denominada salto triplo e quando entrou na pista para disputar a prova nas
Olimpíadas de Helsinque na Finlândia em 1952, não esperava bater o recorde mundial que, na época, era de 16 metros e
muito menos repetir o feito por quatro vezes na mesma tarde.
Adhemar foi o único atleta sul-americano bicampeão olímpico em provas individuais. Durante sua carreira – que
durou 15 anos, tendo sido encerrada em 1960 – Adhemar estabeleceu cinco vezes o recorde mundial do salto triplo nos Jogos
Olímpicos de Roma (Itália). Sua melhor marca (16m e 56cm) foi em 1955, na Cidade do México, nos Jogos Pan-Americanos.
Quase cinco décadas depois, a marca ainda o coloca entre os 10 melhores do ranking brasileiro. Certa vez em uma entrevista1
Adhemar deixou registrado:
Eu trabalhava pela manhã, trabalhava à tarde, estudava à noite e treinava na hora do almoço. No meu tempo, não
era possível nem permitido receber um passe de bonde ou um sanduíche, porque se corria o risco de ser considerado
profissional. E ser profissional naquele tempo significava estar completamente fora do esporte.
Outro atleta que se destaca no Atletismo brasileiro é Robson Caetano da Silva. Ele saiu de uma favela carioca para
ganhar as pistas do mundo todo. Disputou finais olímpicas e grandes torneios internacionais com atletas lendários.
Considerado um dos maiores velocistas do Brasil, ele teve que enfrentar o estigma que o acompanhou por muito tempo, em
especial no início da carreira, o período mais crítico para qualquer pessoa: ser taxado de irresponsável, indisciplinado,
inconseqüente.
Muitos treinadores não apostavam nele por causa da rebeldia, mesmo reconhecendo seu talento indiscutível. A
imagem negativa a ele atribuída, a de irresponsável, indisciplinado, inconseqüente, tornava difícil o investimento no atleta
por parte dos patrocinadores, considerando que os treinadores primam pela eficiência, responsabilidade e carisma do seu
atleta. Neste sentido, comparativamente, os atletas assim como os produtos no mercado capitalista são vistos pela qualidade,
eficiência e desempenho, retratados supostamente pela imagem que apresentam para o mundo.
A imagem pública que o sujeito apresenta não representa necessariamente o que ele é – sua identidade social real –
mas abre espaço para que os outros julguem suas características a partir do que acham que ele é, ou daquilo que vêem
objetivamente – sua identidade social virtual. Como afirma Goffman (1978)2,
enquanto um estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente dos
outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável ...
Assim, deixamos de considerá-lo uma criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal
característica é um estigma ... e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade
social real (p.12).

Acreditando no potencial de Robson, o presidente da Coca-Cola, John Shurman ousou em investir no moleque, e
dar um presente ao país. Usando estratégias de marketing esportivo3, ele associou um determinado produto a imagem de
Robson e o adotou como atleta, passando a dar uma ajuda de custo para que ele se dedicasse aos treinos e tivesse uma
alimentação mais balanceada. Antes do referido apoio Robson já tinha desistido da carreira de atleta uma vez para trabalhar
como zelador do prédio em que morava e arrumar um trocado.
Contudo, Robson reconhece o apoio familiar como um dos maiores incentivos durante a sua trajetória profissional e
afirma em uma entrevista4 que "o mais importante eu tive em casa. Mesmo não tendo condições financeiras, meus pais me
deram muito apoio", com ressalvas apenas para o avô, que queria ver o neto trabalhando como estivador no Porto. Robson
afirma, ainda, que "na época, ser esportista era ser vagabundo, por isso ele era contra", mas o atletismo levou atleta
exatamente para o caminho contrário daquele temido pelo seu avô, o caminho da fama.
O esporte na vida de Robson foi um diferencial, embora muitos brasileiros almejem e poucos ascendam neste
campo, seja por motivos socioeconômicos ou motivos ligados ao desempenho físico e técnico, entre outros. Assim, é
importante ressaltar que a busca pela ascensão no campo esportivo não é sinônimo de sucesso, qualidade de vida e garantia
de saúde.
Hoje ser esportista é um sonho para muitos meninos e meninas e não é uma tendência desta ou daquela modalidade
e sim das mais diversas modalidades do esporte. Depois de ver o sucesso de vários esportistas brasileiros em olimpíadas e

1
CASIMIRO, Vitor. Eu trabalhava pela manhã, trabalhava à tarde, estudava à noite e treinava na hora do almoço.
http://www.educacional.com.br/entrevistas/entrevista0038.asp. (Consultado da Internet em 28 de maio de 2006).
2
GOFFMAN, Erving. (1978) Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro:Zahar.
3
“O Marketing Esportivo é um derivado do marketing devidamente aplicado ao segmento de esportes, e como tal o marketing esportivo envolve uma série de
atividades que compõe o tradicional mix de marketing, ou seja: produto, preço, promoção e ponto de venda. O esporte tornou-se um fenômeno cultural
internacional, os grandes eventos esportivos são vistos através da televisão por bilhões de pessoas em mais de 200 países e muito do interesse pelo esporte como
negócio advém da imagem e do prestígio que o mesmo proporciona tanto ao atleta como a indústria. As indústrias movimentam bilhões de dólares anualmente, e
o segmento esportivo é amplo e complexo, tendo em vista que existem mais de 140 modalidades esportivas sendo praticada em todo o mundo. ALMEIDA,
Ricardo de. O marketing esportivo e o mercado: um casamento duradouro! <http://www.futebolinterior.com.br/osite/coluna.php?coluna_id=1995> . (Consultado
da Internet em 22 de maio de 2006).
4
ANDRADE, Claudia. Robson Caetano: o contador de histórias. http://www.gazetaesportiva.net/idolos/andarecorrer/robsoncaetano/ . (Consultado da Internet em
22 de maio de 2006).

437
campeonatos muitas famílias passaram a admirar o esporte como uma arte e, quem sabe, uma das grandes alternativas de
ascensão social. Entretanto, não se questionam se isto é possível a todas as pessoas, talvez pela falta de conhecimento mais
aprofundado acerca do assunto e pela própria propaganda ostensiva feita pela mídia. Para obter o almejado sucesso, o corpo é
colocado à prova o tempo todo; e, por isso, precisa ser muito bem preparado, trabalhado e, muitas vezes, sacrificado. Mais
ainda, é preciso saber que todo esse esforço não é garantia de melhoria da condição econômica e/ou social.
O crescimento profissional de Robson Caetano acompanhou também seu desenvolvimento pessoal e não demorou
muito até que ele fosse convocado para a seleção brasileira principal, participando da primeira edição do Mundial, em
Helsinque-83. O primeiro grande título veio em 85.
O atletismo, atualmente, é um esporte bastante popular. Sua importância é reconhecida por muitos meninos e
meninas brasileiros, que buscam através do esporte uma alternativa que vai além da promoção de saúde e qualidade de vida.
Buscam, em muitos casos, uma oportunidade, como Adhemar Ferreira e Robson Caetano. Em outras palavras, buscam um
lugar ao sol.
Com o intuito de conhecer quais são as dificuldades, anseios e a influência do atletismo na vida física, social,
econômica e cultural de crianças e adolescentes busquei descrever a realidade de um grupo de crianças e adolescentes
praticantes de Atletismo.
Desta forma, analisei, a partir da observação das relações interpessoais estabelecidas na prática do desporto, um
grupo de meninos e meninas com faixa etária entre 7 e 17 anos que praticam Atletismo na Vila Olímpica5 do município de
Belford Roxo. Focalizei a atenção para os valores emocionais expressos nas interações entre o professor e alunos e entre
alunos e alunos que freqüentam as aulas na Vila Olímpica, às terças-feiras no turno da manhã.
A descrição que se segue é o resultado da observação direta e indireta, relatos e declarações de membros da
comunidade presente na Vila Olímpica (professores, alunos coordenadores). Reconheço a amplitude do tema e admito que a
discussão não se finda aqui. Entretanto, esta primeira aproximação apresenta um interessante panorama que expressa os
desafios e sonhos apresentados por esse grupo de jovens cidadãos e, quem sabe, futuros esportistas.
Inicio o trabalho apresentando o local onde foi realizado o estudo. A seguir relato o trabalho desenvolvido pelo
profissional de Educação Física na Vila Olímpica de Belford Roxo, contrapondo com a realidade encontrada na Vila
Olímpica da Mangueira, um outro local onde este profissional trabalha. Depois, focalizo a realidade dos alunos, o
relacionamento intra e interpessoal, seus sonhos e perspectivas. Para levantar essas informações utilizei, além da observação
da prática dos alunos na Vila Olímpica, um questionário (anexo 2). Finalmente, teço algumas considerações finais sobre o
assunto.

A Vila Olímpica de Belford Roxo


A pesquisa de campo foi realizada na Vila Olímpica do Município de Belford Roxo, localizado na região
Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense - Brasil. O primeiro contato com o campo foi realizado
no dia 02 de maio do corrente ano, na própria Vila Olímpica e um dos coordenadores administrativos disponibilizou algum
tempo para me fornecer informações sobre as atividades desenvolvidas na Vila. No total, realizei oito visitas.
A Vila Olímpica está situada próxima ao centro da cidade, no bairro Nova Piam, considerado um bairro de classe
média, em vista de tantos outros da periferia do município, segundo as concepções reinantes entre os moradores. O espaço é
administrado pela prefeitura e atende cerca de 1.450 pessoas por dia, incluindo as pessoas da comunidade, que praticam
caminhadas livres. Oferece as seguintes modalidades esportivas: Voleibol, Vôlei de Praia, Basquete, Futsal, Karatê, Judô,
Atletismo, Handebol, Futebol de Areia, Dança e Capoeira, iniciando as suas atividades às 8h às e concluindo às 17h.
A Vila Olímpica tem entre os seus objetivos disponibilizar aos moradores um espaço para a prática de esportes e
atividades que ofereçam melhores condições de vida para a comunidade local. Percebi, assim, que seria um ótimo espaço
para a realização de um estudo etnográfico.

A professora de Educação Física


Após definir o grupo a ser observado e ter optado pelo turno da manhã, procurei pela professora do grupo em
questão e apresentei o objetivo do trabalho e a forma como pretendia desenvolvê-lo. A professora citada, foi aluna da
UniAbeu6, tem 23 anos e é residente em Belford Roxo. Leciona atletismo na Vila Olímpica de Belford Roxo e na Vila
Olímpica da Mangueira7.

5
“O nome Vila Olímpica ou Villagio Olímpico surgiu com a criação de um espaço para acolher atletas e posteriormente reestruturado como distrito residencial,
em aproximadamente 1960, quando Roma se torna a anfitriã dos jogos olímpicos”. WIKIPÉDIA. Roma moderna.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Roma. (Consultado da Internet em 28 de maio de 2006). Hoje o projeto da Vila Olímpica tem como objetivo
envolver crianças, jovens e idosos da comunidade local em atividades esportivas visando uma vida mais saudável e integração na sociedade, buscando com a
prática de esportes regularmente uma melhor qualidade de vida para seus moradores.
6
Associação Brasileira de Ensino Universitário, localizada no Município de Belford Roxo.
7
Mangueira é um bairro localizado no município do Rio de Janeiro. O projeto Vila Olímpica tem como alicerce: o samba e o esporte que visa também atender à
favela e ao bairro, sobre a “dobradinha” —samba/esporte —. Apresentando o esporte como uma alternativa de socialização do morador de favela e dos bairros
populares sendo o grande responsável pela receptividade do projeto junto ao público infanto-juvenil. REZENDE, Maria A. (2002) A Vila Olímpica da Verde-e-
Rosa: considerações sobre política social de uma escola de samba do Rio de Janeiro. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro
Esta nota continua na página seguinte

438
Segundo a professora, o trabalho desenvolvido na Mangueira é diferente daquele realizado em Belford Roxo, pois é
um projeto chamado Caça talentos. Seu objetivo é encontrar destaques no campo do atletismo e desenvolver um trabalho de
treinamento precoce, que visa formar o atleta desde as categorias de base. Após descobrir os alunos talentosos a professora
conversa com o responsável, solicitando a sua autorização para que o atleta inicie suas atividades de treinamento. Tubino
(2001)8 denomina este tipo de uso da atividade desportiva de esporte-performace, afirmando que esta
traz consigo os propósitos de novos êxitos esportivos, a vitória sobre adversários nos mesmos códigos, e é exercido sob
regras preestabelecidas pelos organismos internacionais de cada modalidade. Há uma tendência natural que seja
praticado principalmente pelos chamados talentos esportivos (p.14).

Ao ser questionada sobre o que pensava acerca deste tipo de prática, a professora reconhece seus limites e afirma
que
criança não tem idade para desenvolver certos movimentos e ritmo de corrida. Quando se faz um trabalho precoce se
puxa ao máximo para que seja campeã deixando de valorizar a saúde, o importante é que seja vitorioso, pois o
profissional só cresce caso seu atleta ganhe nome no mercado esportivo.

A profissional trabalha na Vila Olímpica de Belford Roxo três vezes por semana, totalizando 20 horas semanais,
sendo 4 horas reservadas para a participação em competições. As atividades duram cerca de duas horas e meia e as turmas
são compostas por 50 alunos entre 7 e 17 anos. A carga horária de trabalho na Vila Olímpica da Mangueira é menor,
totalizando 16 horas semanais, distribuídas duas vezes por semana. No que se refere ao planejamento das atividades, a
professora relata que desenvolve um planejamento para cada categoria – pré-mirim, mirim, juvenil (fundista: prova mais
longa e velocista: provas curtas). Segundo ela, não há condições estruturais para separar cada grupo e depois desenvolver o
trabalho.
Ao observar sua atuação junto aos alunos me senti perdida vendo-a dar conta de todos ao mesmo tempo e cada um
fazendo um exercício diferente. A professora também realiza várias atividades, quase ao mesmo tempo: apita para um grupo,
dá um tiro para outro, marca o tempo de um terceiro. Ela disse que “é a prática, experiência de alguns anos e que se tiver
alguém ajudando acaba se atrapalhando”.
As diferenças entre os grupos de alunos da Vila Olímpica de Belford Roxo e da Mangueira são ressaltadas pela
professora:
os daqui são mais educados, moram com a família, apesar da carência tanto afetiva como material, não há incidência
de envolvimento com o tráfico. Os da Mangueira são mais difíceis, por terem envolvimento com o tráfico. Muitos não
moram com a família, são criados por parentes, não estudam. E acham-se “donos” do local, podem fazer o que bem
entendem. Mas dentro da Vila não traficam, não fumam, respeitam.

Durante seu relato, um fato curioso me chamou a atenção. A professora comentou sobre a existência de uma prática
chamada gato original realizada na Mangueira (segundo ela, que ocorre não só lá, mas em todo Rio de Janeiro e São Paulo),
com vistas a incluir na competição, de forma legal alunos que apresentam idade superior à faixa etária determinada pela
categoria. Ela descreve o processo da seguinte forma:
as crianças nascem, porém só são registradas quando acontece alguma ação social, e isso demora dois, três anos.
Quando vão competir com outros atletas com idade biológica correta na maioria das vezes vence. A organização entra
com recurso, pois se nota que a estatura, massa muscular, não são compatíveis com a idade da categoria, porém o que
vale é o documento. Nada podem fazer. E cada vez mais a prática do esporte perde a qualidade, eficiência, o respeito, a
admiração, pois vence aquele que burlou a lei não intencionalmente, mas por falta de responsabilidade dos pais e de
alguns profissionais que se aproveitam do caso.

Outro aspecto relatado pela professora se refere à auto-estima dos alunos, devido a falta de condições familiares,
econômicas e estruturais dentro da própria Vila Olímpica, para oferecer oportunidades de sucesso para os alunos. Segundo
ela,
as grandes dificuldades se encontram na auto-estima dessas crianças, pois elas vão treinar pensando que serão atletas
de alto nível e terão futuro garantido. E quando vêem que outros colegas ganham e não tem condições para isso,
acabam saindo desiludidos, desestimulados com baixa-estima. Falta incentivo para continuar, não há psicólogos e
muitas vezes falta o principal o apoio da família que também quer ver resultados. Algumas ainda percebem que podem
buscar chances em outros desportos, porém muitos abandonam. Sem perceber a importância do esporte para a vida
social e física.

Apesar das dificuldades enfrentadas, a professora relata seu entusiasmo com o trabalho desenvolvido, afirmando
que

Preto, MG: ABEP, 4-8, nov. 2002. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/Com_JUV_ST32_Rezende_texto.pdf>. (Consultado
da Internet em 03 de junho de 2006).
8
TUBINO, Manoel J. G. (2001) Dimensões Sociais do esporte. São Paulo: Cortez.

439
o que não me desanima é ver o quanto o esporte pode ajudar na vida dessas crianças. Ele faz com que se adquira
responsabilidade, pontualidade, cooperação, interação na relação tanto coletiva quanto individual. O resultado é visto
na escola, progredindo a cada dia.

A maior retribuição do seu trabalho, segundo ela, está no desenvolvimento da criança e do adolescente que
“adquire novos hábitos, comportamentos e valores depois da inserção na atividade esportiva realizada na Vila Olímpica, já
que o apoio que deveria surgir das políticas públicas não acontece”.
No que se refere a esse apoio via políticas públicas, um fato interessante a ser observado é o crescimento de
políticas de cunho assistencialista, que pretendem incluir educacional e socialmente os jovens de camadas mais pobres da
população através do esporte de rendimento. Vale ressaltar que tais políticas não podem ser consideradas como políticas de
inclusão, sem refletirmos sobre a forma como são realizadas e a que interesses pretendem atender. Para Tubino (2001)9,
O esporte educacional, com finalidade de formação para a cidadania é aquele esporte apoiado nos princípios, em
que a inclusão de todos reforça a democratização da prática esportiva.(...) o importante é a formação e não tem
responsabilidades diretas com o desenvolvimento de atletas (p.83).
A prática do esporte na Vila Olímpica de Belford Roxo não tem o intuito de formar atletas e entre seus objetivos
está a formação dos alunos para a cidadania. Mas fica a pergunta: o que se entende por cidadania, num projeto como esse? Se
as atividades realizadas visam apenas a retirada dessas crianças e adolescentes da rua, para que não sejam inseridas no mundo
do tráfico e da criminalidade, conforme relata a professora. Que outras questões podem ser trabalhadas com estes grupos para
que exerçam a sua cidadania de forma plena?
Refletindo um pouco mais sobre esta questão, se a proposta é apenas retirar as crianças e adolescentes da rua, o
trabalho do profissional de educação física também passa a ser visto como o de um assistente, que assiste – no sentido de
acompanhar visualmente; ver, testemunhar – e auxilia – mas de que forma? – o seu alunado, mas ainda não está efetivamente
colaborando para a sua formação cidadã e inclusão social. Neste contexto, é preciso também reconhecer quem são estas
crianças e adolescentes e refletir sobre o que o esporte representa em suas vidas, quais são os seus sonhos e perspectivas
futuras, e sobre como ocorrem as relações interpessoais neste ambiente de aprendizagem do desporto. Descrevo a seguir
alguns desses aspectos, com base nos relatos dos próprios alunos e na observação da interação destes na Vila Olímpica.

A prática do Atletismo: a interação entre professor-aluno e alunos-alunos


Durante o trabalho realizado tive alguns contatos diretos com os alunos, onde pude observar seus comportamentos,
a interação com os demais colegas e entre e a professora. Além da observação direta, pedi para que os alunos respondessem
a um questionário que buscou levantar alguns dados sobre a situação socioeconômica e aspectos mais gerais ligados a relação
entre os participantes e prática de atividades físicas. Fiz, ainda, entrevistas informais com alguns alunos. As estratégias
utilizadas durante a pesquisa favoreceram o contato com a realidade desses meninos e meninas, que visivelmente se sentiram
entusiasmados e valorizados com a realização das entrevistas e com o preenchimento dos questionários.
O questionário foi aplicado em um grupo de 20 alunos após o término das atividades em uma das visitas que fiz.
Foi composto por 12 perguntas descritivas que ajudaram na formulação de parâmetros para o melhor desenvolvimento do
trabalho. Neste questionário, 6 perguntas abordavam questões relativas à família e a sua situação socioeconômica de forma
implícita, buscando conhecer o meio familiar no qual estão inseridos, 6 questões referem-se à relação do aluno com o
atletismo, seu interesse pelo esporte e pela atividade realizada na vila. Organizei as respostas em dados percentuais para
facilitar a visualização dos mesmos.
A partir dos dados recolhidos, percebi que o fascínio por alguns esportes faz a alegria dos brasileiros e a prática
esportiva é considerada um excelente incentivo para a criança e o adolescente nos aspectos afetivos, cognitivos e motores.
Entretanto, observei que próximo a Vila Olímpica há uma escola estadual e poucos são os alunos que procuram a Vila para
praticar algum esporte. No grupo observado não há nenhum morador da comunidade local, embora todos sejam moradores de
bairros vizinhos, próximos a Vila Olímpica de Belford Roxo.
Em conversas informais e a partir das respostas dadas aos questionários por esse grupo de jovens pude constatar
que 70% consideram-se negros e os outros 30% brancos; 60% moram com os pais, 30% com a mãe e 10% com os avós. A
família é algo imprescindível à formação do cidadão e contribui muito para a sua atuação na sociedade. Ainda que a
motivação para a prática dos esportes venha, em muitos casos, do estímulo dado pela família, são diversos os motivos que os
levaram a prática do esporte. Alguns afirmam que o esporte é um fator importante para manter a saúde e favorecer o
desenvolvimento físico e mental.
Um percentual significativos dos alunos (90%), já participou de alguma competição, seja em nível municipal ou
estadual. Quando esta oportunidade surge, muitos são os sentimentos que despontam, entre eles a alegria, a satisfação, o
cansaço, como também o medo, não só durante a prova como também no término desta. A cada vitória numa competição a
vontade de se aperfeiçoar é maior, buscando superar cada obstáculo encontrado.

9
Op.cit

440
Os alunos relatam a dificuldade de chegar até a Vila: 99% dos alunos vão caminhando e 1% vai de bicicleta. Outro
ponto ressaltado foi a dificuldade financeira, uma característica comum a todo o grupo. Conforme o relato de A., 16 anos,
que teve o incentivo do pai para praticar o atletismo:
minha casa é pequena em relação a quantidade de pessoas, pois somos oito e tem dois andares, mas o de cima ainda
não está pronto porque meu pai teve que parar a obra. Então damos o nosso jeito até arrumar tudo.
Grande parte dos alunos (90%) precisa ajudar em casa e ficam praticamente sozinhos, devido seus responsáveis
trabalharem fora. Porém ressaltam a necessidade de freqüentar a Vila, pois se não estivessem lá, passariam o tempo todo em
casa e muitas vezes o tempo livre seria usado em atividades mais atrativas características dos adolescentes da atualidade
como: vídeo game, brincar na rua, fliperama etc. Se o esporte não os motivasse nem fosse um diferencial em suas vidas,
provavelmente usariam o tempo livre para ficar à toa e outra possibilidade poderia ser o envolvimento na criminalidade e/ou
no tráfico.
Percebi, também em conversas informais, que muitos deles vêem o esporte como uma tentativa de melhorar sua
condição socioeconômica: a cada vitória de uma competição, brota uma alegria e uma esperança de poder superar seus
limites, daí a vontade de participar dos treinos. Eles têm como exemplo de vida alguns campeões brasileiros e o mais
conhecido citado é Robson Caetano. Mesmo não conhecendo à fundo sua história de vida, mas do pouco que já ouviram
falar, sabem que foi através de sua luta, esforço, garra e determinação que hoje ele é um grande vencedor.
Em contrapartida, existem alguns empecilhos que os levam ao desânimo dentro do próprio grupo: alguns colegas,
os mais antigos, por se acharem superiores aos demais começam a desmerecer e desvalorizar o esforço do outro, não
respeitando sua individualidade, surgindo alguns comentários como o que se segue:
Pô Suelen (professora), não vou treinar ao lado de B. porque ele não corre nada mesmo, fica até sem graça, ai como
vou ver se tô maneiro pra competição de domingo.
Então entra o trabalho da profissional que, além da preocupação com o desempenho físico e técnico dos alunos, é
acima de tudo uma colaboradora na formação humana e social destas crianças e adolescentes. Certa de que a sua intervenção
é algo importante para o bom desenvolvimento destes meninos e meninas e do grupo em geral, utiliza de uma didática
própria e uma linguagem que atinge facilmente o grupo para criar neles o sentido de cooperação próprio de qualquer esporte:
Fala sério, vamos parar com isso! Todo mundo treinando, isso é desculpa, sabe que ele é o cara né? B. olha a
moleza, vai deixar ele te gastar? Nada de um gastar o outro, todo mundo treinando cada um na sua posição! Equipe séria
trabalha junto. Cara para atrapalhar tem de montão, aqui isso não vale.
Assim, o atletismo, como qualquer outra modalidade busca a integração e inclusão de todos, ou pelo menos
deveria. Isso facilitaria o menino e a menina perceberem que não podem trabalhar sozinhos por mais que aconteçam as
competições, com vitórias e derrotas. Quanto mais se acentua a idéia de competitividade em detrimento da cooperação, mais
difícil fica a formação para o exercício da cidadania plena e mesmo a possibilidade de se pensar em uma equipe que
apresente um desempenho satisfatório nas competições, ainda que tais competições se refiram a um desporto individual como
é o caso do atletismo.
Neste sentido, a professora tenta reduzir os riscos de exclusão pela competição através de estratégias próprias,
demonstrando que a cooperação é mais importante que competitividade e que juntos podem fazer com que o trabalho
aconteça de modo mais significativo. Ela explica que as regras existem para manter as práticas sob controle, buscando uma
diminuição dos níveis de violência e fazendo do atletismo, que é um esporte que depende do esforço de cada um, uma prática
prazerosa, harmônica e de solidariedade.
A vontade de participar, de estar no treino supera até mesmo a falta de um material importantíssimo para o
rendimento: o tênis. A maioria dos alunos treina descalço, no sol quente e a pista em péssimas condições estruturais.
O esporte é um atrativo que de uma forma ou outra faz parte da vida da maioria das pessoas em todo o mundo, em
especial dos brasileiros. E sendo assim é um importante colaborador para a questão da inclusão das pessoas na sociedade. A
união, a cooperação, o trabalho em equipe são valores éticos, que precisam ser desenvolvidos e estar presentes no cotidiano
com o intuito de estender uma maior convivência entre o grupo e assim fazer com que essa pratica não seja apenas aplicada
na Vila Olímpica, mas na sua realidade familiar, escolar, ou seja, social. A prática do esporte, quando feita de forma refletida
possibilita, também, o convívio com as derrotas e, acima de tudo, conduz ao caminho da autonomia de forma que os alunos
possam reconhecer os valores positivos para aquele grupo de forma solidária e ética. Aprender a conviver é, além de, viver
juntos, competir e cooperar.

Considerações finais
Visto a amplitude de assuntos que poderiam enriquecer ainda mais esta pesquisa dou-a por concluída devido ao
tempo disponível para sua elaboração. Contudo ficou claro que dentro de uma modalidade esportiva, grupo de alunos, ou
qualquer outro grupo social, percebe-se a projeção de uma sociedade em miniatura.
Contudo no grupo observado há uma intensa influência dos problemas sociais nas condutas e interações humanas,
onde se conjugam problemas relacionados as suas perspectivas, anseios, emoções, decisões, estratégias, dinâmicas de grupo e
práticas cotidianas, tudo isto situado nas ações individuais e coletivas.
Portanto, é importante que a convivência social seja valorizada não só pela prática esportiva e que esta possa
ampliar os laços de amizade, o processo de socialização e a prática do desporto, criando assim, condições sociais que

441
ofereçam oportunidades, para determinadas práticas de cidadania, permitindo que os meninos e meninas de hoje apreciem a
convivência como valioso fator para a sua formação.

Referências
ALMEIDA, Ricardo de. O marketing esportivo e o mercado: um casamento duradouro!
<http://www.futebolinterior.com.br/osite/coluna.php?coluna_id=1995> . (Consultado da Internet em 22 de maio de 2006).
ANDRADE, Claudia. Robson Caetano: o contador de histórias.
http://www.gazetaesportiva.net/idolos/andarecorrer/robsoncaetano/ . (Consultado da Internet em 22 de maio de 2006).
CASIMIRO, Vitor. Eu trabalhava pela manhã, trabalhava à tarde, estudava à noite e treinava na hora do almoço.
http://www.educacional.com.br/entrevistas/entrevista0038.asp. (Consultado da Internet em 28 de maio de 2006).
GOFFMAN, Erving. (1978) Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar.
REZENDE, Maria A. (2002) A Vila Olímpica da Verde-e-Rosa: considerações sobre política social de uma escola de samba
do Rio de Janeiro. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Ouro Preto, MG: ABEP, 4-8, nov.
2002. Disponível em: <http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2002/Com_JUV_ST32_Rezende_texto.pdf>.
(Consultado da Internet em 03 de junho de 2006).
TUBINO, Manoel J. G. (2001) Dimensões Sociais do esporte. São Paulo: Cortez.
WIKIPÉDIA. Roma moderna. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Roma. (Consultado da Internet em 28 de
maio de 2006).

Educação Básicas - Um Desafio para as comunidades desfavorecidas de Micaune

Paulo Inácio
ADEMI- Associação para Desenvolvimento de Micaune
pmauaia@yahoo.com.br

Resumo: Em Moçambique, o direito dos cidadãos a educação, está consagrado na Constituição da Republica e o processo tem os seus pilares
na educação básica de sete anos de escolaridade obrigatória, segundo o Sistema nacional de Educação introduzido em 1983. Hoje são
visíveis instituições, projectos e eventos dedicados a educação infantil, traduzindo esforços do Governo, das ONG´s e da sociedade civil em
geral, a ratificação da Convenção dos Direitos da criança o Compromisso assumido em Dakar sobre Educação para Todos, e a existência de
ONG´s e fóruns vocacionados a criança, constituem algumas evidências orientadas nessa direcção. Porem, os problemas da educação básica
nas comunidades rurais de Micaune na baixa da Zambézia, assentam sobretudo no fraco acesso e na baixa qualidade do ensino. Algumas
causas são extracurriculares e determinantes na crise que afecta as crianças das classes iniciais, já que elas: sofrem uma grande pressão da
educação tradicional; tem profunda fragilidade económicas as famílias, dependem de exíguos rendimentos da agricultura ou da pesca de
subsistência; são em certos casos afectados pelo HIV/SIDA- umas são órfãs, e outras tem pais doentes, obviamente incapazes de sustenta-las;
pertencem a famílias analfabetas, naturalmente sem motivação para assimilação de outro tipo de educação. Reconhecendo que a escola è o
património da comunidade, local formal de transmissão as novas geração das experiências sócio-culturais e cientificas, o Governo introduziu
os Conselhos de Escolas, como estratégia de participação activa e democrática da sociedade na gestão escolar. A medida tomada, não chega
a resolver o problema de fundo; os novos ingressos continuam longe das metas estabelecidas, as desistências frequentes e poucos os
graduados.

O Contexto de Micaune: Situação Socio- Económica


Dados Demográficos e Divisão Administrativa
Micaune é, para além de Luabo, um Posto Administrativo do distrito de Chinde, situado na zona sul da Província da
Zambézia, em Moçambique, conhecida por baixa Zambézia. A zona é limitada a sul pelo rio Zambeze, a Oeste pelo Oceano
Indico, a Este pela Reserva de Maimba e a Norte pelo Rio Abreu que a separa do distrito de Inhassunge, ocupando uma área
aproximada de 394 quilómetros quadrados, com uma população de 8600 habitantes segundo o Censo populacional de 2007
A divisão administrativa de Micaune, inclui Micaune, a Sede do governo local, e as localidades de Magaza,
Mitange, Arijuane e Nhamatamanga. Existem dois grandes grupos étnicos: os chuabos que representam 75% da população e
uma presença insignificante de Maindos.
A principal religião é a Católica e Apostólica Romana, seguida da Islâmica e minorias de igrejas cristas
protestantes, nomeadamente: Evangélica, da Assembleia de Deus e do 7º Dia.
Apesar de situado a apenas 20 km de Chinde, capital distrital, e a 115 kms de Quelimane, cidade capital, Micaune
tem as piores vias de acesso a nível da Província. Com este tipo de obstáculos tem sido muito difícil e longa uma deslocação
de ou para esta região.

História Recente

442
Micaune foi uma das áreas da Província da Zambézia mais afectadas pela Guerra, principalmente depois de 1984.
No período mais intenso da guerra, milhares de pessoas abandonaram as suas terras, a procura de zonas mais seguras Até à
assinatura do Acordo Geral de Paz muitos das suas localidades eram inacessíveis e só se viajava acompanhado de colunas
militares.
A produção agrícola de arroz e copra caiu devido a seca e a fuga precipitada das populações, e como consequência,
diminuíram também os rendimentos em dinheiro obtidos com o trabalho forçado da plantação da empresa Madal a explorar
desde o tempo colonial, a grande parte de terras.

Economia
Como é característica peculiar das áreas próximas do mar, Micaune tem terras aluviais ricas e terras húmidas, área
isolada, com único acesso ao mar e vulnerável a ocorrência de ciclones e cheias.
A maioria das famílias pratica a agricultura de subsistência típica das áreas baixas – arroz, mandioca, feijão e
batata-doce. A principal cultura de rendimento, foi num passado recente o coco (diz-se que a baixa Zambézia teve as maiores
plantações de coqueiros do mundo). Infelizmente, uma praga desconhecida, está a provocar o amarelecimento letal de
coqueiros em grande escala, fenómeno que obviamente ameaça a sobrevivência das famílias.
Existe uma pequena reserva de animais explorada pelo grupo MADAL (que contribui na base da afluência de
turistas com 20% de sua receita anual no desenvolvimento social da população de Micaune.
Os efectivos de gado bovino, bastante substanciais no passado, foram dizimados durante a guerra e a reposição está
sendo muito lenta.
As famílias ao longo da costa dedicam-se a pesca artesanal.

O Sector da Educação em Micaune


1. Principais Actores
“ Na República de Moçambique, a educação constitui direito e dever de cada cidadão”1. Sendo um sector de
massas, a educação sempre ocupou um lugar de destaque nos velhos tempos do socialismo. A primeira Campanha Nacional
de Alfabetização lançada por Samora Moisés Machel é um exemplo elucidativo da atitude dos governantes em relação a
educação.
Hoje, o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta – PARPA, aponta o sector educacional como um dos
grandes desafios na luta contra a pobreza extrema em Moçambique. A educação desempenha um grande papel para a redução
da pobreza através da capacidade humana, pois aumenta as capacidades e oportunidades para os pobres e promove uma
maior igualdade social, regional e também entre homens e mulheres2
É no quadro dessa sensibilidade dos detentores do poder que se nota o desenvolvimento da rede escolar.
Todavia, no seu processo de intervenção, o Estado conta também com a colaboração de outros actores em muitas
áreas do País: ONGs e outras organizações da sociedade civil intervindo como parceiros, sobretudo no apoio a construção de
instalações escolares melhoradas e apetrechadas.
Infelizmente, Micaune com apenas 23 escolas primarias não goza tanto dessa rede de apoio não -governamental,
exceptuando a forte presença da CONCERN uma ONG irlandesa, desde o ano de 2005 e que sozinha não pode dar solução a
todos os problemas que afectam o sector. Cerca de 90% de salas de aula são construídas com material precário (estacas para
as paredes, capim para a cobertura do tecto) e estima-se que 45% de crianças estudam debaixo das árvores, sujeitas a riscos
diversos.

1.1. Os Conselhos de Escola e o processo de democratização da educação


As Zonas de Influencia Pedagógica (ZIPs) constituíram durante longos anos, a esperança para a solução dos
assuntos pedagógicos, particularmente questões de qualidade do ensino. Obviamente acreditava-se que o facto de um
conjunto de escolas geograficamente aproximadas trabalharem em comum, rapidamente fosse possível melhorar o nível de
aproveitamento escolar. Só que isso implica uma boa preparação técnico-profissional dos professores, bem como o
desenvolvimento e aplicação de instrumentos de monitoria e avaliação eficientes e eficazes.
Mas, num passado recente, o governo procurou uma estratégia para um maior envolvimento de pais, e encarregados
de educação nos assuntos da escolaridade básica de crianças e nessa perspectiva deliberou a criação dos Conselhos de Escola.
Com esta medida, a escola deixou de ser entendida pela população como “monopólio” do Estado, passando a ser considerada
de local acessível a qualquer membro da comunidade. Esta foi uma importante revolução no domínio da Educação, na
medida em que a sua introdução gerou um ambiente interactivo da escola com a comunidade, e uniu os pais e encarregados
de educação na busca de soluções especificas que fogem a exclusiva capacidade e responsabilidade da direcção da escola.

Tabela I – Evolução da Participação da Comunidade através dos Conselhos de Escola

1
Artigo 88 da Constituição da Republica de Moçambique.
2
Moçambique sem Pobreza. PARPA, pag. 15

443
2006 2007 2008
Escolas 23 23 23
EP1
Conselhos 12 17 23
de Escola

2. Os grandes desafios do sector


2.1. A influencia da educação tradicional nas crianças
Nas comunidades rurais, as crianças são vítimas de dois tipos de educação distintos: a tradicional e a formal. A
primeira tem uma grande influência no futuro das crianças, em virtude de ser adquirida na base do convívio familiar, assente
na tradição de transmissão de conhecimentos, de hábitos e tabus de pai para filho, de geração para geração. O fenómeno é
complexo, e com uma dimensão ampla no universo das comunidades rurais, e com profundas consequências negativas em
relação a frequência regular dos alunos na escola.
Por isso, as desistências são normais, sobretudo a nível de raparigas com a faixa etária compreendida entre os 13 a
15 anos, seguida dos rapazes dos 14, 15 a 16 anos. No primeiro caso, as raparigas são forçadas pelos pais, a constituir lares
prematuramente. Estabelecidas estas relações, os pais esperam do genro algumas vantagens materiais para fazer face as
dificuldades de sobrevivência. Em relação ao segundo caso, normalmente os adolescentes preferem abandonar a escola entrar
no mundo do comércio informal, como operadores. Para eles, a actividade lhes oferece benefícios imediatos para atender as
necessidades básicas da vida.
De notar que a grande maioria desses adolescentes são obrigados a assumir a função de Chefe do agregado familiar
por serem órfãos afectados pelo HIV/SIDA.

2.2. A profunda fragilidade económica das famílias (vulnerabilidade)


Falar de Micaune é o mesmo que fazer referência a uma região de difícil acesso e de recursos bastante limitados.
As vias de comunicação entre ilhas são em 70% marítimas e fluviais, ligadas através de embarcações e canoas sem u mínimo
de segurança. Na s bermas dos rios se podem contemplar com arrepio e medo, numerosos anfíbios (crocodilos e
hipopótamos) de todos os tamanhos a apanhar um banho de sol, ou na expectativa de pegar uma presa. Não há viaturas em
circulação (carros). Nas artérias que ligam os povoados apenas circulam peões e velocípedes em pisos muito pantanosos.
Durante 16 anos consecutivos, Micaune foi o palco de grandes confrontos da guerra civil que opunha o movimento
da Renamo e as forças armadas do governo, tendo destruído a quase totalidade do mosaico cultural, económico e social. A
rede de infra estruturas comerciais foi destruída, o gado bovino de antigos colonos farmeiros e da população em geral
vandalizado e morto; milhares de famílias abandonaram a zona procurando refugio no distrito vizinho de Inhassunge, onde
não eram intensas as operações da guerrilha da Renamo.
Como se não bastasse, um fenómeno esquisito afectou a quase totalidade da população de coqueiros, a principal
fonte de rendimento económico das famílias: o amarelecimento letal do coqueiro. A praga dizimou a vida daquelas plantas
que desde séculos abasteceram a população em troncos para a construção de canoas, casas, mobiliário, etc; em folhas para a
cobertura de casas, e em copra para a alimentação e comercialização.
Este conjunto de situações e fenómenos adversos limitam bastante o acesso de crianças ao ensino básico.

2.3.Os efeitos do HIV/SIDA


A forte presença de guerrilheiros da Renamo durante a guerra civil caracterizada por actos de terror e intimidação
as comunidades locais, não só destruiu lares, como também permitiu que muitas mulheres, particularmente raparigas fossem
assediadas sexualmente. Este relacionamento forçado, desumano e descontrolado foi determinante para a expansão de
infectados pelo vírus do HIV.
Hoje, as crianças órfãs e que vivem em famílias afectadas pelo HIV/SIDA tem menor probabilidade de matricular-
se na escola, com fortes tendências de ter uma frequência irregular, ou a desistir de estudar devido a pobreza, falta de
assistência e orientação de adultos, e necessidade de contribuir para a renda familiar, ou realizar tarefas domesticas.
Além disso, as crianças órfãs e vulneráveis que frequentam a escola podem ainda apresentar desempenho inferior
em relação as outras, devido a saúde e alimentação deficientes, frequência irregular, sofrimento e ansiedade, isolamento e
afastamento ou estigma e discriminação.
As crianças que vão para a escola mal alimentadas, cansadas, doentes e impossibilitadas de concentrar-se não terão
o mesmo desempenho das demais.
Muitas crianças desistem de frequentar a escola antes da conclusão dos 7 anos de escolaridade obrigatória, devido a
frequência irregular e desempenho abaixo da média, o que traz consequências no futuro.
A educação é importante para o desenvolvimento social, psicológico e emocional das crianças. A escola pode
oferece-las ambiente seguro e estruturado, supervisão de adultos e apoio emocional, bem como a oportunidade de aprender a
interagir com colegas e de criar laços sociais. A educação pode reduzir o risco futuro da criança contrair o HIV, pois aumenta
o conhecimento, a sua consciência e fornece novas habilidades.

444
O analfabetismo
A motivação das crianças na aprendizagem, depende também do nível de escolaridade dos seus educadores. Com
pais analfabetos, as crianças não cultivam o gosto de ir a escola porque os pais não valorizam o processo educativo diferente
daquele que receberam dos seus ancestrais, não só com raízes na tradição e tabus, bem como bastante rico de aprendizagens
do dia a dia. Para a população rural, a pratica tem mais valor do que a teoria, porque aquela oferece resultados imediatos ou
mais rápidos susceptíveis de dar resposta aos problemas.
É neste ambiente ausente do processo de escolaridade formal onde vivem as crianças, e onde elas aprendem na base
do que observam e do que ouvem, construindo deste modo o seu conhecimento para a vida. A medida que o tempo vai
passando, este universo de crianças vai aumentando a camada populacional analfabeta e reduzindo a taxa de ingressos no
ensino básico. Este fenómeno, tem criado atribulação a nível das entidades oficiais dos serviços de educação, e das
autoridades tradicionais, que frequentes vezes são obrigadas a realizar campanhas domiciliarias de inscrição de crianças no
período das matriculas, como forma de cumprir as metas anuais de novos ingressos.

Estratégias para a mudança do cenário


O envolvimento dos lideres locais e das igrejas afigura-se indispensável, na perspectiva de mudar atitudes negativas
vigentes, alcançando os pais e a comunidade.

3.1. Garantir o compromisso da igreja


A igreja pode desempenhar um papel de relevo na mudança do actual cenário. Desde os tempos remotos, a igreja
provou ter um enorme poder de mobilização e de persuasão capaz de arrastar multidões para intervenções de caridade e
carácter humanitário, sem que seja necessário o uso de muitos recursos.
Um estudo feito em Micaune mostrou que grande parte das escolas estão próximas de centros de culto (igrejas ou
mesquitas). Infelizmente, esta vizinhança não está a promover um ambiente de aproximação da comunidade religiosa nas
instituições escolares, muito embora os utentes destas sejam filhos ou parentes dos crentes das instituições religiosas do
mesmo meio comunitário. O fraco relacionamento evidente tem surgido pelo facto de não existir um trabalho constante de
mobilização e sensibilização da parte dos principais actores do processo educativo (o Estado, as ONGs, organizações da
sociedade civil) junto da comunidade religiosa, focalizado nos seus líderes para que estes consigam entender a importância da
escola no desenvolvimento rural. Como tal, é normal que os edifícios dos centros de culto tenham boa cobertura de chapas de
zinco, paredes e o soalho devidamente organizado com material localmente disponível, oferecendo o mínimo de conforto e
segurança. Paradoxalmente, na escola vizinha, as crianças tem estado a estudar sentadas no chão, a escrever por cima do
joelho, debaixo de uma árvore, ou quando muito numa instalação sem tecto e com as paredes degradadas.

3.2. Envolver as autoridades tradicionais


Por outro lado, a mesma falta de sensibilidade em relação aos assuntos da escola, também é forte nos líderes
tradicionais, pelos mesmos motivos a cima expostos.
A autoridade tradicional possui uma legitimidade (direito e aceitação) que lhe é dada pela comunidade, e somente
pela comunidade. Só a comunidade pode tirar esta legitimidade segundo a tradição.
“O poder tradicional é sagrado na medida em que busca a sua legitimidade nas raízes profundas das comunidades,
dada a sua ligação com os ancestrais. De facto, são os chefes tradicionais que, por simbolismos, presidem ou solicitam as
cerimonias que reforçam e tornam mais legitima a sua autoridade”
Apesar de ser o Estado a entidade responsável pelos assuntos de educação de novas gerações, a participação activa
da comunidade é indispensável. Só assim que as pessoas podem assumir a actividade educativa como algo da sua pertença,
sendo considerada a única e melhor janela de esperança susceptível de garantir o mínimo de sustentabilidade ao processo, no
quadro da melhoria do acesso e qualidade do ensino nas áreas rurais. Este paradigma de desenvolvimento social pode
fortalecer a autoconfiança dos líderes e comunidades locais na perspectiva em que pode promover um desenvolvimento
verdadeiramente endógeno.

3.3. Aproximar as crianças mais vulneráveis as escolas


Os programas educativos vigentes deviam ser uma oportunidade para atrair a frequência daquelas crianças que
vivem em situação difícil. Trata-se de crianças na sua maioria órfãs de pais vítimas do HIV/SIDA, ou simplesmente crianças
sem amparo, sem protecção, apesar de ter pais vivos.
O cidadão comum sabe que no âmbito dos objectivos do milénio, os esforços do governo visam atingir as metas
estabelecidas no domínio da escolaridade obrigatória. Só que esta intervenção, parecendo óptima, continua a manter na
exclusão camadas consideráveis de crianças anónimas e desfavorecidas, muitas das quais, órfãs.
A identificação e apoio a este grupo social parece ser uma necessidade urgente capaz de conferir ao processo
educativo uma mudança positiva, orientada para o enfoque dos mais desfavorecidos.
Para atrair estas crianças é preciso também que os professores saibam fazer actividades inovadoras que levem os
alunos a evoluírem nos seus conceitos e habilidades.

3.4. Promover campanhas de alfabetização de adultos

445
Moçambique tem experiência de campanhas de alfabetização, em tempos de tentativa de introdução do sistema
comunista, que teve bons resultados. A primeira campanha alfabetizou 100.000 moçambicanos, tendo sido lançada por
Samora Moisés Machel, então Presidente da Republica ao 3 de Julho de 1978.
Tendo definido o analfabetismo como cancro da sociedade, da humanidade e do desenvolvimento, o processo foi
provando a sua grande importância para dar conhecimentos científicos aos operários e camponeses, de forma a garantir ao
sucesso da batalha pelo desenvolvimento.
Este exemplo poderia ajudar a iluminar alguns pais e encarregados de educação das crianças de Micaune, que ainda
não tem a suficiente sensibilidade da necessidade de mandar os filhos a escola.

Referencias:
Cuhela, Ambrósio (1996). Autoridade Tradicional em Moçambique: autoridade tradicional. Maputo: Projecto
“Descentralização e Autoridade Tradicional”. Ministério da Administração Estatal, pp. (10 – 11)
Machel, Samora (1978). Façamos do Pais imã escola onde todos aprendemos e todos ensinamos. Maputo.pp 7

Figura I –Escola Primaria de Arijuane, Localidade de Mitange construída de material precário e sem mobilario escolar

Fig II – Crianças órfãs cujos pais morreram vitimas do HIV/SIDA, na Aldeia de Deia – Localidade de Mitange

446
Fig. III – Mae solteira, Chefe do agregado familiar cujo esposo morreu atacado por um crocodilo, e os filhos não estudam

Fig IV – Três irmãos órfãos que vivem em extrema pobreza e não conseguem apoio para estudar

Concepções de justiça na escola: um estudo comparativo Portugal-Brasil1

Alice Botler
Universidade Federal de Pernambuco
alicebotler@hotmail.com

Andreza Cordeiro
Universidade Federal de Pernambuco
dezacordeiro@gmail.com

Resumo: A pesquisa ora relatada teve como objetivo geral analisar as concepções de cidadania e democracia a partir da experiência escolar,
com recorte específico na observação das referências práticas à justiça na gestão escolar. Para tanto, desenvolveu análise qualitativa
comparativa a partir de estudo etnográfico em uma escola brasileira (Recife) e uma portuguesa (Braga), considerando a variedade dos
padrões histórico-político-culturais relacionados às experiências de organização escolar, identificando diferenças e semelhanças. Dentre os
resultados obtidos, destacamos o papel das normas escolares e seu cumprimento como referência central para a análise da justiça na
organização escolar. Constatamos que a noção de justiça na Escola Brasileira é associada ao sentimento de alteridade e responsabilidade
social, enquanto na Escola Portuguesa, aproxima-se mais da compreensão de cumprimento cívico com caráter de fidelidade normativa.
Palavras-chave: organização escolar, cidadania, justiça.

1
Pesquisa que contou com apoio do CNPq e da FACEPE.
Introdução
Esta pesquisa foi desenvolvida no período de agosto de 2006 a julho de 2008, na perspectiva da Sociologia das
Organizações Educativas e teve como objetivo geral analisar as concepções de cidadania e democracia a partir da experiência
escolar e, especificamente, procurou aprofundar a temática da justiça na gestão escolar. Insere-se no debate a respeito das
conseqüências vivenciadas nas escolas brasileiras a partir do estabelecimento de normas de gestão democrática no ensino
público conforme os princípios da participação e da autonomia dispostos na LDB 9394/96 (Brasil,1996).

O que diz a literatura


Na literatura contemporânea, tomamos a categorização elaborada por Lima (1998) que enfoca a escola como uma
organização normativa na qual estão presentes as dimensões formal e informal. Como organização democrática, é também
autônoma, o que, para Gadotti (2001) diz respeito a autogoverno, liberdade de ação e participação dos seus segmentos:
gestores, professores, alunos e outros atores educativos. Silva (1997) diz que o exercício da autonomia ocorre em situação
relacional entre sujeitos, com atuações que podem visar objetivos competitivos, cooperativos ou neutros em relação às
propostas de um determinado indivíduo e, nesse sentido, a capacidade de influenciar coisas e pessoas para obter adesão aos
seus propósitos, fazendo parte integrante desse exercício.
Gestores, professores e alunos estão envolvidos no processo de formação escolar, são os sujeitos que têm deveres e
direitos dentro da escola, logo, podem e devem participar de sua proposta político-pedagógica, o que inclui a discussão e
elaboração de currículos, avaliações, normas, escolha de dirigentes, etc. (LIMA 2000). Vale ressaltar que esta participação
não necessariamente reduz a importância da hierarquia para o funcionamento dos afazeres da escola - mesmo sendo ela
democrática, visto que cada participante irá intervir de acordo com seu poder de articulação diante dos demais membros.
Nestes termos, Costa e Silva afirmam que “a democracia não é ausência de poder, mas a presença de poder compartilhado”
(2005, p. 54-55). Benevides (1991) reforça essa idéia quando observa que numa democracia nem tudo pode decidido por
todos e que algumas decisões só cabem aos atores competentes por cada tarefa ou função.
O processo democrático dentro das escolas encontra-se em desenvolvimento, pois a autonomia ainda não é exercida
com muita consciência pelos indivíduos e nem todos os atores educativos conseguem participar efetivamente nas diversas
instâncias institucionais. Naturalmente, pode-se esperar que os limites postos nas diferentes formas de organização
delineiam-se a partir de racionalidade distintas, voltadas para objetivos ora privados (de lucratividade), ora públicos (de ação
social).
É na perspectiva do processo democratizador como uma mudança paradigmática, que procuramos observar as
concepções de justiça, desde que a escola realiza a formação para a cidadania e delineia as formas de cumprimento normativo
que seus egressos disporão como referências sociais mais amplas ao longo de suas vidas.

Justiça
Justiça é um termo que tem significado distinto para cada sociedade, cultura, ou comunidade. É utilizado como fim
social e geralmente encontra-se vinculado a conceitos de bem e de direito legal. Num sentido geral, significa dar a cada um o
que lhe é devido (ou de direito), reparar dano ou ainda, punir um infrator. É entendida também como um dever de obediência
a um acordo, norma ou ordem, sentido atribuído por clássicos como Hume, Hobbes e Stuart Mill. É um conceito normativo e
não descritivo porque regula as relações interpessoais (SILVA: 1987, p.661).
O que em uma determinada época, cultura ou sociedade é considerado justo, em outro contexto é abominado
completamente. Assim, por exemplo, na Antigüidade, a escravidão era considerada como relação social regular, o que nas
sociedades modernas é visto como degradante e desumano. Os capitalistas aceitam a estratificação social e a justificam como
uma conquista individual, na qual o homem deve lutar por sua ascensão dentro da sociedade, enquanto os socialistas não
concordam com a divisão das classes sociais e acreditam que a extinção delas transformaria a humanidade numa sociedade
verdadeiramente justa.
Assim como o conceito de justiça é aplicado de forma singular a cada época, no mundo globalizado as sociedades
democráticas capitalistas e, em particular a brasileira, vêm aplicando esse termo de acordo com a abordagem neoliberal. As
premissas neoliberais de descentralização político-adminstrativa, tendem a desresponsabilizar o Estado do seu dever com
alguns aspectos, tais como a educação. Segundo Estêvão (2004), as tendências neolocalistas transformam a noção de justiça
em algo particular, inerente a cada localidade e, no caso do sistema educacional, intrínseca a cada escola. O sentido de justo
aí, seria o de permitir às escolas autonomia necessária para se autogovernar e angariar recursos financeiros públicos ou
privados para a sua manutenção.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996), garante a todos os cidadãos brasileiros o direito a
escolaridade básica mas não tem conseguido dar conta do direito à educação de qualidade. Por isso, as noções de igualdade e
de competência vem sendo utilizadas para justificar a falta de escolas de qualidade para a maioria da população. Nesse
âmbito, deforma-se o princípio de igualdade educativa e substitui-se a justiça pela noção de eqüidade. (ESTEVÃO: 2004, p.
100)

448
Conforme Arroyo(1987, p.72), “o capitalismo nunca foi nem pode ser igualitário, democrático e participativo; ao
contrário, a desigualdade e o controle do poder são necessários ao movimento de acumulação do capital.” Via de regra, esse
perfil de sociedade não é propício a uma justiça social que beneficie a cidadania plena e não oferece efetiva igualdade de
condições a toda população.
Nessa breve reflexão sobre justiça, educação e sociedade, conclui-se que a tarefa da educação diante desse quadro
poderia ser a de contribuir com a sociedade nas tarefas de enxergar-se enquanto coletividade, já que a desigualdade gera
conseqüências nefastas, afetando a todos, bem como de difundir uma noção de justiça igualitária em termos de distribuição
de renda, poder e condições de vida, visando efetivar o direito democrático.
Por isso mesmo, associamos a justiça na escola à possibilidade de participação nas diversas instâncias de sua
organização. O conceito, no entanto, deve ser mais bem compreendido, conforme o que se segue.

Participação
No modo de vida democrático, a palavra participação é central e tem sentido mais amplo do que integração,
configurando-se em participação política – quando o ator social elege papéis ou decide funções dentro das estruturas
políticas; participação econômica – quando o sujeito interage na partilha de bens públicos e ainda participação social –
quando há uma intervenção do indivíduo nas instâncias da vida social (SILVA, 1987).
A participação social pode ser passiva (resultante dos benefícios já conquistados, na qual o indivíduo simplesmente
exerce os direitos estabelecidos legalmente) ou ativa (cujo princípio é de fazer parte do processo de construção de regras, leis,
e tomada de decisões necessárias ao grupo no qual a pessoa está inserida). LIMA (2001) discorda do princípio da
participação passiva compreendendo que participar não é ser e muito menos usufruir algo conquistado: é fazer. A esse
princípio da passividade ele associa a não-participação.
Atualmente, a participação está relacionada ao conceito de democracia servindo-lhe de instrumento e base ao
exercício da cidadania plena. É dentro das instâncias sociais democráticas que ele se desenvolve. Conforme Lima (2000, p.
39-40), “neste sentido, ao serem assumidos espaços de educação crítica, de participação e de cidadania democráticas, as
escolas poderão contribuir para a criação e a revitalização da esfera pública democrática”. Nestes termos, diz que a
participação é uma das bases fundamentais para a organização das instituições educacionais e, desde que consagrada sob
forma de lei, assume contornos normativos.
Interessava-nos conhecer e compreender como o conceito de justiça vem sendo entendido e aplicado no sistema
educacional no contexto organizacional democrático e, particularmente, na escola.

O estudo empírico
Esta pesquisa etnográfica de cunho qualitativo foi desenvolvida em duas escolas, uma particular de educação
infantil e ensino fundamental em Recife, Brasil e a outra, pública de educação básica de 2º e 3º ciclos, em Braga, Portugal,
ambas caracterizadas por seu reconhecimento enquanto organizações democráticas. Para efeito da análise e apresentação dos
dados coletados, as denominaremos simplesmente de Escola Brasileira e Escola Portuguesa, garantindo assim o anonimato,
bem como procurando oferecer uma referência generalizável.
Esclarecemos, de antemão, que o tipo de clientela da escola pública brasileira inexiste em Portugal, bem como
praticamente inexiste em Portugal uma escola privada nos moldes da brasileira. Nestes termos, nossa investigação tomou
como base padrões sócio-econômico-culturais semelhantes, que foram encontrados, respectivamente, no Brasil, em escolas
privadas e, em Portugal, em escolas públicas. Estes padrões nos interessam particularmente, para analisar as concepções de
cidadania, democracia e de justiça, visto que as clientelas destas escolas trazem perfis semelhantes, a exemplo de acesso à
informação ou acesso a recursos financeiros e materiais. Dentre as semelhanças estruturais, citamos questões físicas e
burocráticas, tais como mobiliário, relação quantitativa de alunos por salas, disposição dos espaços e ambientes escolares,
disponibilidade de funcionários e pessoal de apoio pedagógico, etc.
A Escola Brasileira é de médio porte, está localizada em um bairro de classe média do Recife e atende a uma
clientela de classe média alta, oferecendo educação infantil e ensino fundamental I e II, distribuídos nos turnos manhã e tarde
(alunos de 3 a 14 anos).
A Escola Portuguesa também é de médio porte e encontra-se situada em uma área de construções mais recentes,
que atende a uma camada social com poder aquisitivo análogo ao da classe média brasileira da cidade de Braga. Em termos
do sistema educacional português, ela é parte integrante de um agrupamento escolar de nível básico e possui apenas o 2º e 3º
ciclos de educação básica (faixa etária de 10 a 16 anos).
Visitamos cada uma das escolas semanalmente durante o período de três meses, sendo a brasileira no período de
janeiro a março de 2007 e a portuguesa no período de novembro de 2007 a janeiro de 2008. Utilizamos como instrumentos de
coleta de dados questionários, entrevistas e diário de campo, para registro das observações e impressões, procurando abranger
cada segmento em ambas as escolas (gestores, coordenadores, professores e pais ou responsáveis pelos alunos). Documentos
das escolas e das políticas educacionais também foram analisados.
Visando esclarecer as semelhanças e diferenças em termos organizacionais, preparamos um quadro comparativo,
conforme o que se segue:

449
Quadro 1: Estrutura organizacional das Escolas Brasileira e Portuguesa
Estrutura Organizacional Escola BRASILEIRA Escola PORTUGUESA
Gestão Diretoria (D): Conselho Executivo (CE):
Diretoras pedagógicas (DP) Presidente do Conselho Executivo (PCE)
Diretora administrativa (DA) Vice-presidente(VPC)
Diretora Financeira (DF) 1º Conselheiro (IC)
2º conselheiro(IIC)
Coordenação Pedagógica Coordenador Pedagógico (CP) Coordenadores dos Diretores de Turma (CDT)
Orientação Pedagógica Coordenador de Turma (CT) Diretores de turma (DT)
-Professor responsável pelo acomapanhamento Professor responsável pelo acomapanhamento
pedagógico de uma turma) pedagógico de uma turma
Serviço de Orientação Psicopedagógica (SOP) Psicólogo (PSI)- Profissional Intinerante
Psicólogos dos Ciclos (PSI)
Docentes Professores (P) Professores (P)
Funcionários de Apoio Pedagogos Acompanhantes de Alunos Professora Intinerante de Educação Especial
Pedagógico Especiais (EE) (EE)
Auxiliar de Orientação Familiar (AOF) –
Pedagogas
Funcionários não Profissionais da Portaria e Segurança da escola Profissionais da Portaria e Segurança da Escola
Docentes (SEG) (SEG)
Recepcionista (R) Recepcionista (R)
Secretárias (SEC) Secretárias (SEC)
Profissionais de Limpesa (PL) Auxiliar Administrativo (ADM)
Profissionais de Disciplina (PD) Profissionais de Apoio Disciplinar (AD)
Clientela Pais ou responsáveis pelos alunos (P/R) Utentes (U)– utilizadores da escola (pais ,
Alunos alunos)
Encarregados de Educação - pais ou
responsáveis pelos educandos
Projeto Político- Constituição Escolar Projecto Educativo
pedagógico
Regimento Interno Regulamento Interno (RI) e Projeto de Regulamento Interno (RI)
Convivência
Relação professor/alunos 25 a 30 alunos por turma 25 alunos por turma
ou alunos/sala

O que dizem os dados da realidade

1. Organização e regras
Tanto o Projeto Político-Pedagógico da Escola Brasileira quanto seu equivalente da Escola Portuguesa
(Projecto Educativo) têm como um de seus princípios norteadores a participação dos integrantes da escola em sua proposta
pedagógica como uma construção coletiva.
Na prática, no entanto, na Escola Portuguesa a elaboração desse documento teve participação restrita a pessoas que
ocupam cargos em uma escala hierárquica definida, ou seja, o documento foi elaborado pelo Conselho Executivo com a ajuda
de alguns professores (os mais antigos e que possuem cargos de Diretores de Turma) e houve consulta aos representantes da
associação de pais; funcionários e alunos sequer opinaram. A Assembléia de Escola, órgão superior, ainda fez ajustes e o
aprovou.
Os pais e alunos da Escola Portuguesa apresentam conformidade às questões decisórias da escola, quase não são
chamados a participarem da discussão de questões pedagógicas nem políticas da instituição, tal como explicitam:
Considero a escola relativamente democrática. É democrática no sentido de termos o direito de eleger e “sermos
eleitos”, porém essa democraticidade é restrita porque só algumas pessoas podem se candidatar. (EP P2)

Procuro decidir ou falar apenas sobre as situações que envolvam minha função, as outras são de responsabilidade
do Conselho. (EP PD)

Na Escola Brasileira, a equipe gestora estimula e disponibiliza espaços aos pais, professores, funcionários e alunos
a participar de decisões. Um exemplo pode ser observado quando os alunos foram chamados a combinar datas e horários do

450
calendário escolar. Esta parece ser a rotina, visto que eles procuram o Serviço de Orientação Pedagógica ou a Coordenação
para solicitar alterações no trabalho pedagógico, criticar as decisões da gestão, bem como seus pais.

Na Escola Portuguesa, os quadros de avisos informam sobre eventos, feriados, calendário, encontros ordinários e
extraordinários, mas não trazem as regras do cotidiano, tais como horários do recreio, normas de comportamentos gerais. Os
direitos e deveres dos alunos são esclarecidos através das aulas de Educação Cívica, na qual são ministrados também outros
assuntos referentes à cidadania como hinos e símbolos da República Portuguesa, patriotismo, o que são direitos e deveres,
etc. Isso é resguardado no Estatuto do Aluno que associa valores nacionais à de cidadania.
Já na escola Brasileira as regras estão sendo sempre explicadas dentro e fora da sala de aula, por professores,
coordenadores, pessoal não docente, tal como nos informou a coordenadora do 3º ciclo:

As regras são explicadas, significadas e re-significadas sempre que necessário; e todos os funcionários, professores,
coordenadores, etc., têm o comprometimento de lembrar aos alunos estas normas. Eu trabalho com o Ciclo III, mas se eu ver
um aluno de outro ciclo desrespeitando o que já foi combinado, eu vou conversar com ele, corrigir ou até chamar a
responsável pelo ciclo dele, caso seja necessário. Eles, por sua vez, me respeitam tanto quanto a coordenadora da área deles
(EB C1).

Na Escola Brasileira, observamos que as regras formais estão expostas em quadros de avisos colocados em lugares
estratégicos de ampla circulação e incluem regras de convivência e rotinas (distribuição do uso da quadra coberta e do campo
de areia; locais de acesso exclusivo de funcionários, alunos e pais, bem como acesso de alunos com dificuldades motoras).
O excesso de regras desta escola e, mais ainda, o zelo em seu cumprimento, chamaram nossa atenção.
Todas essas normas eram cumpridas. É esta a forma que o colégio utiliza para fazer com que as crianças e adolescentes
respeitem as regras.
A conseqüência do tratamento dado às regras de convivência nas escolas é observada ora na forma de um ambiente
de liberdade e autonomia, ora na forma de um ambiente de disciplina rígida, explicitando seus níveis de consciência a
respeito de sua importância. As regras de convivência social representam, portanto, um aspecto importante na determinação
dos níveis de autonomia apresentados pelos alunos, bem como n concepção inerente de cidadania.

2. Noções de mérito, igualdade e respeito


As observações da dinâmica organizacional nos ajudaram a refletir sobre as características específicas de
cada escola e a partir dela iremos descrever alguns dos aspectos que denotam as noções de mérito, igualdade e respeito.
A Escola Portuguesa apresenta uma lógica meritocrática no seu cotidiano escolar, bem como legitima a
mesma através de seus documentos. Encontramos situações dentro da instituição na qual os alunos receberam premiações por
desempenho em matemática e foram estimulados a competir em concursos nacionais. Os alunos que participam do concurso
nacional de matemática, por exemplo, tem seus nomes ressaltados por professores, saem como destaque na revista anual da
escola, servem de referência aos demais colegas de turma - como modelo a ser seguido - e os mesmos são os únicos
legitimados a representar sua escola. O Estatuto do Aluno prevê, nesse sentido, que é direito do aluno “ver reconhecidos e
valorizados o mérito, a dedicação e o esforço no trabalho” (p.587) e ressalta que as ações meritórias, em favor da comunidade
educativa, devem receber estímulos para serem praticadas dentro e fora da escola.
O Projeto Educativo da Escola Portuguesa defende uma educação de excelência que atenda as exigências sociais,
culturais e profissionais e, para tanto, os termos eficiência e eficácia são constantemente utilizados dentro e fora das salas de
aula. Durante uma reunião do Conselho de Turma, a exemplo disso, pudemos observar quanto os professores valorizavam os
alunos que tinham maior índice de desempenho nas avaliações escritas.
Já a Escola Brasileira, apresenta uma noção de mérito relacionada ao princípio da igualdade de oportunidades e
estimula o desenvolvimento de todos os alunos. Seus professores tentam explorar o potencial de cada um e buscam ressaltar
nas aulas que todos os alunos têm qualidades positivas. Numa aula da terceira série, mediante uma roda literária, a professora
disse que todos iriam desenvolver a oralidade independente de serem tímidos ou não terem ainda a habilidade de falar em
público. Disse, ainda, que cada um tem seu momento e não havia nada que eles não pudessem aprender. Ressaltou que esses
comportamentos diante do público são aprendidos e que todos terão sua chance de falar e de ser ouvido com respeito. Apesar
de alguns alunos terem se destacado nos concursos nacionais de robótica, eles não têm seus nomes ressaltados nas aulas.
A noção de respeito também é denotada de forma distinta pelos integrantes das escolas pesquisadas. Na Escola
Portuguesa relaciona-se respeito à disciplina, reverência aos adultos, ao professor. As noções de autoridade e hierarquia são
muito presentes. Isso foi constatado diante de diversas situações em que alunos evitavam contrariar os professores em sala de
aula e procuravam obedecer suas orientações sem questionamentos, diferente do observamos em suas relações com os
funcionários não docentes. Numa determinada situação presenciamos desrespeito entre colegas de turma, quando um aluno
xingou a colega. Uma funcionária de apoio presenciou a cena e não interferiu, nem chamou a atenção do aluno pela má
conduta. O profissional não docente parece não se preocupar com a significação das regras, nem com a formação e a
educação dos alunos. Eles limitam-se a realizar suas funções e as determinações dos seus superiores.
Já na Escola Brasileira, todos são respeitados pelos alunos, independente de sua posição hierárquica. Seus
integrantes demonstraram ter uma noção de respeito relacionada à alteridade. Além disso, a própria instituição defende, em

451
seus documentos, o respeito à diversidade e ao ser humano. A postura dos funcionários em relação às crianças demonstra
parceria, afetividade e orientação, não autoritarismo e observa-se um clima de respeito mútuo entre todos os integrantes da
escola.
Quanto à noção de igualdade, os integrantes da Escola Brasileira demonstraram não fazer distinção entre
profissionais, nem entre os alunos; a inclusão do aluno especial na comunidade educativa e na sociedade é tratada como
importante função social. Todavia, a quantidade de alunos negros dentro dessa escola é mínima e a mesma não procura
oportunizar o acesso de mais crianças afro-descendentes, bem como não demonstrou preocupação específica em seu
cotidiano de integração dessas pessoas na sociedade.
Já a Escola Portuguesa, demonstra uma preocupação com a inclusão das diversas etnias existentes dentro da
instituição, bem como a inclusão dos alunos especiais. Encontramos, porém, no Regimento Interno a preocupação em formar
uma identidade de cultural nacional, a despeito das respectivas identidades de origem de cada agrupamento, como africanos,
brasileiros, ciganos.
Registrados aqui alguns exemplos que caracterizam as noções de mérito, respeito e igualdade, visando a
compreensão posterior da vivência da justiça em ambas as escolas, conforme o que se segue.

3. A vivência da justiça na escola


Justiça, como vimos em nossa revisão de literatura, é um conceito normativo que difere de uma sociedade a outra.
A partir desse pressuposto, observamos nas duas escolas, seus respectivos reflexos ou determinações histórico-culturais das
sociedades a que pertencem.
Na Escola Portuguesa, pudemos perceber que a noção de justiça manifestada por seus integrantes espelha o
exercício dos direitos já adquiridos e o cumprimento das normas e deveres cívicos. Isto se deve, a nosso ver, em parte, a
fatores particularmente observados em sua sociedade: a submissão do povo português ao Estado e a pouca desigualdade
social existente no país. Segundo Formosinho (1986), a passividade do povo português e sua falta de iniciativa deve-se à
centralização do poder de decisão nas mãos do Estado, ou seja, uma vez que as decisões são tomadas pelo topo da hierarquia
social, desobriga o povo a participar e ele se acomoda. Percebemos que essa centralidade tem influenciado bastante o
comportamento dos atores sociais da escola investigada em Portugal, pois seus membros têm incorporado em sua prática as
diretrizes nacionais. O Regimento Interno, por exemplo, é um documento construído fora da escola, pelo Ministério da
Educação e decretado como estatuto e artigo de lei nacional. Apenas as escolas que têm “contrato de autonomia”2, podem
elaborar um Regulamento Interno a partir da própria instituição escolar.
Quando questionamos os membros da Escola Portuguesa acerca de sua concepção de justiça, a maioria a associa ao
cumprimento de deveres, conforme o que se segue:

É o cumprimento dos direitos e dos deveres diante da lei. (P3)


Justiça foi um meio que as sociedades arranjaram para tentar limitar os direitos das populações, aumentando os
deveres e tendo em vista atingir uma maior equidade entre os cidadãos. (P4)
Justiça é a realização plena do Estado de Direito, ou seja, cumprimento da lei. (P5)

Lima concorda com o pensamento de Formosinho, associando a subordinação da população à centralização do


poder: “importante traço histórico-cultural da sociedade portuguesa, a centralização promove efectivamente a passividade e a
não-participação e tolhe a iniciativa, embora não a erradique completamente” (LIMA, 2001, p.60). O autor chama a atenção
para a parcela informal de regras produzidas pela escola que foge ao controle da Administração Central, alegando que “as
organizações raramente fazem exactamente aquilo que lhes é dito que devem fazer” (op.cit, p.64). Chamamos a atenção para
o que o autor acrescenta ao debate, quando invoca a “subversão” ao sistema via infidelidade normativa ou regras informais.
Neste caso, a justiça associada ao cumprimento normativo não se tornaria “injustiça” na medida da transgressão, mas seria
vista como uma alternativa de participação não legitimada.
A transgressão às regras, denominada por Lima de “infidelidade normativa” é importante fator de manifestação das
práticas vividas numa organização. Ainda que os conceitos manifestos pelos entrevistados tenham se restringido a aspectos
legal-formais da justiça, na prática efetiva-se uma participação ativa com contornos de “transgressão consentida”(sentido de
tolerância). Observamos que era comum os alunos adentrarem o corredor de exposições da escola no horário da saída, mesmo
sem permissão de professores e profissionais de disciplina. Com isso eles violavam uma regra, pois só era permitida a
utilização desse espaço por alunos em atendimento pelos diretores de turma ou no momento das exposições.
Outro exemplo de infidelidade normativa foi observado sob forma da má utilização dos ambientes da Instituição: o
Regulamento Interno determina que é dever dos alunos “zelar pela preservação, conservação e asseio das instalações,
material didáctico, mobiliário e espaços verdes da escola, fazendo uso correcto dos mesmos” (Estatuto do Aluno, p. 588).
Porém, após o recreio, os alunos deixavam o ambiente do refeitório sempre sujo - com bastante comida, sacos e embalagens
pelo chão e sobre as mesas.

2
O contrato de autonomia é um acordo firmado entre uma escola e o Ministério da Educação ampliando os poderes da primeira em termos da gestão financeira,
administrativa e pedagógica, a exemplo do que pode ser observado na Escola da Ponte, solicitado por iniciativa desta.

452
Já na Escola Brasileira, quase não vimos descumprimento de regras. O processo de incorporação das mesmas era
realizado através da conscientização crítica com permanente exposição visual e a presença constante das regras no discurso
de professores e coordenadores, bem como da atitude ratificadora dos funcionários. Justiça é entendida como cumprimento às
normas desde que todos participaram de sua proposição e concordam, de alguma forma ou, pelo menos, aceitam e cumprem
as regras escolares.
Os membros da Escola Brasileira parecem sentir satisfação de terem seus deveres cumpridos e valorizam as normas
porque as acham importantes à vida social, associando-as à concepção de justiça, conforme nos indicaram seus relatos:

É cumprir com os deveres, é respeitar o direito do outro, mesmo que esse outro esteja em condições físicas ou
materiais diferentes das minhas. É, também saber que direitos existem para serem respeitados e deveres existem para serem
cumpridos.(C1)
Ser ouvido e compreendido em seus direitos de cidadão, sempre numa via de mão dupla. (P4)
O sentimento de justiça é um dos sentimentos mais importantes para a estruturação do ser humano como pessoa.
Precisamos do outro para nos constituir como sujeitos. O olhar no outro e sobre nós, sentir-se escutado pelo outro e a garantia
de um espaço seguro para a defesa e colocação dos pontos de vistas individuais, favorecem o desenvolvimento do sentimento
de justiça que se constrói em cada indivíduo. (D2)

Estas falas expressam não apenas a consciência do dever a ser cumprido, mas também o sentimento de alteridade,
ou seja, o sentido de coletividade, respeito ao outro que significa zelar pelo bem comum. O sentimento de alteridade está
fortemente associado à justiça e é observado tanto no discurso como na prática. Um exemplo disso pode ser visto na
convivência dos estudantes regulares com os alunos portadores de necessidades especiais, em que demonstram respeito
mútuo e uma relação de afetividade. As relações interpessoais dos membros da escola, sem exceção, apresentaram
cordialidade, parceria, respeito ao ser humano e aos seus direitos.
Nesta Escola, o conceito de justiça está também aliado a noção que seus membros têm de cidadania, como
demonstram algumas falas:

Cidadania é sermos pessoas inseridas em uma sociedade, consciente de meus direitos e deveres; Justiça é ver todos
os direitos e deveres cumpridos por todos os integrantes de uma sociedade. (M1)

Na Escola Portuguesa confere-se à justiça o sentido de cumprimento normativo, limitando-se à vivência da justiça
legal-formal, próprio de uma sociedade tradicionalista e hierarquizada, enquanto na Escola Brasileira os sujeitos
entrevistados apresentam uma concepção de justiça social, também associada a aspectos de crítica social, como a forte
desigualdade e a impunidade presentes no país.
Queremos destacar que, apesar da preocupação com a alteridade e cidadania numa perspectiva de justiça social,
quase não encontramos na escola brasileira alunos negros. Este dado deve ser salientado considerando a inserção desta Escola
num país caracterizado por uma colonização escravocrata de base africana. Queremos dizer que os negros ainda ocupam as
camadas econômicas menos favorecidas da sociedade e, por isso mesmo, ocupam menos espaços nas escolas privadas. A
Escola Brasileira trata bem das questões da alteridade, das relações humanas e humanitárias de forma irrestrita, mas não
inclui alunos negros no seu discurso, e muito menos em sua prática.

CONSIDERAÇÕES
A dinâmica organizacional escolar observada nas duas realidades nos permitiu compreender alguns aspectos
relacionados às diferentes perspectivas, ora incorporando na organização escolar os determinantes macro-políticos
instituídos, ora enfatizando a autonomia instituinte.
Consideramos que em ambas as sociedades o pressuposto democrático está presente, o que se reflete sob formatos
diversos na estrutura organizacional das escolas. Assim, por exemplo, na Escola Portuguesa, a democratização está associada
à eliminação da figura do diretor, considerada como elemento indicador da centralização. Os sujeitos entrevistados vêem na
representatividade um símbolo máximo da democracia, garantidora de uma gestão democrática. Na Escola Brasileira, o
diretor permanece no quadro e é visto como elemento dinamizador do processo democratizador. No entanto, mesmo assim,
na Escola Portuguesa, apesar do Conselho Executivo estar em função de comando e liderança, a hierarquia típica de uma
sociedade conservadora se faz presente, tal como afirmam Formosinho e Lima. Os sujeitos portugueses entrevistados
acreditam que a volta do diretor significaria perda de espaço de participação (representatividade) e democracia, denotando as
marcas da cultura do país.
Observamos que em Portugal há uma associação forte de regras a civismo com um sentido explicito de integração
de todos ou, em outras palavras, consolidação da identidade nacional e determinação da nacionalidade (particularmente
consideramos o enorme contingente de “estrangeiros” – ciganos, africanos, brasileiros). No Brasil, por outro lado, a
identidade nacional é formada também por uma diversidade de culturas (negros, índios, imigrantes), mas aqui materializada
como pluralismo cultural, vale dizer, ampla abrangência humana e a contínua formação da identidade coletiva. Vale ressaltar
que o debate a este respeito na Escola Portuguesa só é visto na aula de civismo, ambiente específico para a consolidação de

453
uma determinada identidade e cidadania e restrito a determinados conteúdos curriculares. Contrastando com a realidade
brasileira, este modelo foi bastante criticado no período da ditadura militar, colocando-se em seu lugar, bem mais tarde, outro
tipo de referências ao civismo, com a inserção de sociologia e filosofia; neste caso, além do formato disciplinar, este
conteúdo permeia o cotidiano interdisciplinarmente (Brasil, 1998).
Na trajetória histórico-cultural de ambas as sociedades encontramos alguns avanços substantivos em direção à
democratização da organização escolar, dentre os quais a participação dos pais como um direito não apenas à informação e
acompanhamento do processo de ensino e aprendizagem dos seus filhos, mas também como representatividade em fóruns
decisórios da escola, inclusive na construção do Projeto Curricular e Projeto Educativo/ Projeto Político-Pedagógico.
Entretanto, apesar dos avanços, as políticas educativas adquirem formatos distintos em relação à descentralização,
ora regionalizando, ora municipalizando, considerando as respectivas dimensões nacionais em Portugal e no Brasil, sendo
que no primeiro, ainda enfrentam-se resistências e o governo admite contratos de autonomia, mas deixa as escolas que
aderem a esses contratos em situação de restrição de recursos financeiros. No segundo, a municipalização já é o critério de
distribuição de verbas. Vale lembrar que observamos uma escola brasileira privada, financeiramente independente.
Finalmente, a vivência da justiça na Escola Portuguesa, em comparação com a realidade escolar brasileira nos
mostrou que em ambas esta expressão é associada ao cumprimento de deveres, ora com sentido cívico legal-formal, ora
humano social. Em ambas as sociedades encontramos características que refletem seus respectivos contextos histórico-
culturais, que ora enfatizam o cumprimento de deveres, ora a alteridade. Em ambas as sociedades, a justiça na organização
escolar é relacionada à cidadania, que inclui também o direito de ser humano.
Um último aspecto que queremos trazer para esta reflexão refere-se à justiça no Brasil ser também entendida como
responsabilidade social, devido ao descaso do Estado diante da Educação, no que se refere à igualdade de direitos e deveres.
Esta é uma contradição visível, principalmente se considerarmos a clientela que vai a escolas tão similares: ora toda a
população (Portugal), ora apenas parcela economicamente favorecida (Brasil). A visão de justiça nos pareceu assim ser
influenciada pela necessidade vivida na própria sociedade brasileira, em consideração à enorme desigualdade de classes. O
que difere, em termos substantivos, entre as duas realidades analisadas é, efetivamente, a imersão em sociedades em que os
direitos sociais ora são alcançados plenamente pela população, ora apenas por uma minoria privilegiada.

REFERÊNCIAS
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SILVA, J. M. (1997). A autonomia da escola pública. 2 ed. São Paulo: Papirus.

Dialogando sobre as iniciativas de promoção da cultura de paz nas escolas: a voz


dos educandos

454
Verônica Salgueiro do Nascimento
Universidade de Fortaleza
vsalgueiro@unifor.br

Kelma Matos
Universidade Federal do Ceará
kelmatos@uol.com.br

Resumo: A motivação inicial desse trabalho origina-se da visibilidade social que o estudo sobre a Culturada Paz vem assumindo
mundialmente. A tarefa de investigação se deteve no acompanhamento de processos educativos direcionados para o desenvolvimento da
Cultura de Paz, iniciados por uma escola da rede privada de ensino fundamental, do município de Fortaleza. O objetivo central da
investigação foi o de conhecer quais as impressões e sugestões dos educandos a respeito da promoção da Cultura de Paz no ambiente escolar.
Os educandos tinham em média 12 anos. Utilizou-se da orientação dos estudos etnográficos com observações participantes e a realização de
uma oficina. Nessa oportunidade foram explorados alguns recursos didáticos como textos, figuras, desenhos dentre outros, com a intenção de
promover reflexões e sugestões sobre o tema em foco. Um dos pontos principais trazidos pelos sujeitos da pesquisa diz respeito à de que a
paz deve ser construída através do diálogo e da escuta atenta de toda a escola sobre o que os educandos pensam. Outro ponto observado
refere-se a um bom nível de implicação por parte dos educandos, ou seja, eles demonstraram compreender que podem e devem fazer parte da
construção da Cultura de Paz. Conclui-se que promover a Cultura de Paz expressa um imenso desafio para todos nós, e, em especial, para os
educadores, sendo que estes não podem deixar de incluir os educandos nesse processo.

A temática central do estudo versa sobre a promoção da Cultura da Paz em ambientes educacionais.
Especificamente, investigou-se uma escola da rede particular de ensino do Município de Fortaleza, Estado do Ceará, Região
Nordeste do Brasil. A escola em questão assume conscientemente a responsabilidade de promover a Paz em suas atividades
cotidianas. Observou-se em prática o que Pureza (2002, p.7) salienta “O impossível pode acontecer. Não por passividade
expectante, mas como resultado de compromissos e lutas sérios e continuados”. No caso desta pesquisa, observou-se a
viabilidade da proposta da Cultura da Paz num ambiente escolar. Algo que por muitos ainda é tido como da ordem do
improvável. Com muita dedicação e ousadia, os sujeitos com os quais interagi apontam caminhos para a construção da Paz.
Dentro da perspectiva da viabilidade da Paz anunciada no parágrafo anterior, julgo necessário esclarecer do que
estou tratando ao abordar o conceito de Cultura da Paz. Adoto como referencial para tal definição, a resolução da UNESCO
(A/RES/53/243, 1999). De acordo com esta, uma Cultura de Paz constitui-se dos valores, atitudes e comportamentos que
refletem o respeito à vida, à pessoa humana e à sua dignidade, aos direitos humanos, entendidos em seu conjunto,
interdependentes e indissociáveis. Viver em uma Cultura de Paz significa repudiar todas as formas de violência,
especialmente a cotidiana, e principalmente promover os princípios da liberdade, justiça, solidariedade e tolerância, bem
como estimular a compreensão entre os povos.
Temos pleno conhecimento de que a cultura predominante, hoje podendo ser considerada mundializada, gira em
torno do poder que se traduz por vontade de dominação do outro, da natureza, dos povos e dos mercados (BOFF, 2006). Esse
contexto traduz valores que se articulam estruturalmente para consolidar a cultura da violência que nos desumaniza a todos.
A esse movimento há de se opor a Cultura da Paz. Sua promoção é tarefa de todos, hoje ela se torna imperativa.
Milani (2003) afirma que construir tal cultura significa promover as transformações necessárias e indispensáveis
para que a paz se torne o princípio regente de todas as relações humanas e sociais. A construção da Cultura de Paz passa por
transformações na qualidade das relações sociais (MILANI, 2003; GUIMARÃES, 2004). O respeito e acolhimento às
diferenças, a promoção da cidadania e o combate a todas as formas de exclusão. Essas são ações que devem estar presentes
em todas as nossas experiências educacionais, sejam formais ou informais.
Entendo que promover a Cultura de Paz é em síntese promover condições concretas para que o homem possa se
constituir humano em toda a sua plenitude; com todas as contradições possíveis que o exercício da convivência humana
contempla. Em outras palavras, é poder assegurar, a cada um, condições plenas de se dizer, de se perceber na relação com si
mesmo, com o outro, com os outros, com outras culturas, com o planeta e com o que transcende a materialidade da vida.
Indico como central a definição de Educação para Paz sistematizada por Jares, (2007; 2004; 2002). Ele descreve tal
educação como um processo educativo, dinâmico, contínuo e permanente, fundamentado nos conceitos de paz positiva, na
perspectiva criativa do conflito, no conceito de desenvolvimento e na tarefa de se assegurar o respeito aos direitos humanos.
Estes elementos são tidos como significativos e definidores, e que, mediante a aplicação de enfoques socioafetivos e
problematizantes, pretende desenvolver um novo tipo de cultura: a Cultura da Paz. Ressalto, sobretudo, sua afirmação de que
a educação para a paz é “como uma encruzilhada de uma educação afetiva, uma educação sócio-política e uma educação
ambiental” (JARES, 2002, p.11).
Um ponto primordial a ser assinalado nesse trabalho trata-se da exploração da polissemia inerente ao conceito de
paz. Tal aspecto sugere o posicionamento que defende a postura problematizadora acerca da idéia de Educação para a Paz.
Como afirma Guimarães (2004), esta educação revelou-se como um campo plural. Ele indica a possibilidade de se falar em
educações para a paz. Acrescenta, ainda, que abordar o conceito de paz significa evocar um universo, ao mesmo tempo,
plural e conflitivo.
Ainda sobre o conceito de Paz, uma outra necessidade que se apresenta diz respeito à urgência de se compreender
melhor a complexidade acerca do conceito Paz. Há vários mitos que precisam ser problematizados. Um deles refere-se, como

455
assinala Jares (2002), ao entendimento do que seja a paz como ausência de conflito bélico ou apenas como estado de não-
guerra. Nessa perspectiva, tal conceito passa a ser um conceito negativo. Além disto, associa-se também a este a idéia de
serenidade e passividade. Segundo esse autor, tal concepção é pobre, classista e interessada politicamente e até mesmo
perversa, em certo sentido, pois mantém o status quo vigente. Problematizar tal idéia assume uma importância significativa
diante da necessidade de promoção da desmistificação em torno do conceito Paz.
Por outro lado, quero ressaltar o conceito de Paz positiva desenvolvido por Jares (2002). A Paz é aqui
compreendida não como o contrário de guerra, mas sim o de sua antítese, que é a violência, dado que a guerra é apenas um
tipo de violência e não o único. Esse conceito está relacionado à idéia de justiça social e de desenvolvimento, mas também
aos conceitos de direitos humanos e democracia. Fica, então, o entendimento de que a Paz é, portanto, um processo dinâmico
que exige a participação de todos em sua construção.
A partir de tal concepção, instaura-se o imperativo de comprometimento e mobilização para que a Paz seja
construída, ou seja, esta não vai surgir ao acaso e tão pouco aparecerá graciosamente. Sobretudo, a Paz deve ser
compreendida como viabilidade a ser construída no contexto social, concreto e fruto da convivência social e política entre as
pessoas. Quero enfatizar que, assim como Paulo Freire (2000), não acredito em nenhum esforço de Educação para a Paz sem
que antes esteja instaurada a justiça social.
Refletindo sobre o conceito de Paz, é válido tomar também como parâmetro a idéia de Paz como equilíbrio do
movimento, construída por Boff (2007). Interessante a relação estabelecida com as idéias de equilíbrio e movimento. O
desafio é buscar a justa medida entre esses dois pólos. Acrescento, contribuindo com tal reflexão, a seguinte ênfase, não seria
possível um projeto de Educação para a Paz sem estar fundamentado em uma consciência ecológica que tenha como uma de
suas diretrizes as ações comprometidas com o conceito de sustentabilidade. De acordo com o documento Carta da Terra1, a
Paz está definida como a plenitude que resulta de relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas,
com outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte. Tal definição nos convida a pensar que estar em Paz
é conseguir estar em relação harmoniosa e amorosa com todas as instâncias de convivência. Chacon (2004) nos chama
atenção para a interligação dos problemas enfrentados atualmente pelos habitantes do planeta Terra. Ela ainda acrescenta que
a discussão sobre tais problemas deve eleger como centro as relações do homem com os seus semelhantes e destes com a
natureza. Uma palavra chave nos chama atenção: interligação. Tal aspecto, bastante enfatizado pelos estudiosos da área
ambiental encontra-se também salientada nos posicionamentos balizadores da Educação para a Paz. Na ótica da Cultura de
Paz, há claramente a construção de uma visão de homem em sua integralidade, onde todos os aspectos do seu ser de relação
são compreendidos de forma interligada, ou seja, quebra-se com o posicionamento dicotômico responsável por um a visão
dissociada da realidade.

COMPONDO O CENÁRIO DA PESQUISA


O cenário da escola foi o palco escolhido para encontrar os atores da pesquisa. A escola é aqui entendida como
espaço de construção sociocultural (DAYREL, 1996), o qual é vivenciado por vários sujeitos sociais. “Acreditamos que a
escola pode e deve ser um espaço de formação ampla do aluno, que aprofunde o seu processo de humanização, aprimorando
as dimensões e habilidades que fazem de cada um de nós seres humanos” (DAYRELL, 1996, p. 160).
A escola, sobretudo, deve ser vivenciada como um espaço de convivência entre sujeitos em desenvolvimento.
Espaço para desenvolver habilidades de conviver com a diversidade, com os vários modelos de pensar, sentir, agir e interagir.
Nesse contexto, as pessoas devem ser estimuladas a construir sentidos sobre os conhecimentos já sistematizados e sobre a
relação destes com a vida, nas instâncias do individual e do coletivo. “No hay posibilidad de vivir sin convivir, los humanos
somos seres sociales y precisamos de los demás para la propia subsistencia (JARES, 2006, p.11).
Percebo uma extrema coerência com o posicionamento defendido pelos autores acima citados e as discussões sobre
a promoção da Cultura de Paz. De acordo com tais discussões, entendo que a paz precisa se fazer presente em toda proposta
educacional, sendo ainda mais necessária nestes tempos, “em que as diversas formas de violência e de fundamentalismos
tentam estabelecer-se como “naturais” nas relações humanas” (JARES, 2007, p.13).
Segundo Jares (2005), os processos sociopolíticos, a globalização neoliberal, a guerra preventiva, a violência social,
dentre outros, têm tal penetração que, gostemos ou não, estão afetando diretamente o processo educacional. A partir disto, as
investigações na área educacional não podem se eximir da responsabilidade de cada vez mais produzir conhecimentos e
propor caminhos de enfrentamento de atos violentos, tão mais presentes na sociedade e no meio escolar também. Entendo
que a repressão não é o melhor caminho, podemos e devemos explorar alternativas.
Jares (2002) indica um aspecto prioritário para enfrentar o desafio que nós educadores temos de encontrar soluções
para o trânsito de uma cultura de violência - na qual a guerra continua tendo uma relevância particular - para uma Cultura da
Paz. Ele afirma que devemos recuperar a paz desde os primeiros anos para o conjunto das/os cidadãs/ãos; viver a paz para
todas e todos como um processo ativo, dinâmico e criativo que nos leve à construção de uma sociedade mais justa, livre e
democrática e sem nenhum tipo de exclusão social. Tal “aprendizagem deve realizar-se com base na vivência de normas e

1
Documento universal que se destina a salvaguardar a dignidade da Mãe Terra e de todos os ecossistemas, aprovado no ano de 2000 nos espaços da Unesco em
Paris.

456
dos valores da democracia, sistema que traz consigo o respeito aos direitos humanos, mas também o cumprimento das regras
e dos deveres inerentes” (JARES, 2007, p. 12).
A escola pesquisada foi escolhida devido ao seu percurso histórico, ao longo de 27 anos. Ela ocupa uma posição de
destaque já consolidada no cenário educacional do município. A escola VILA foi fundada no ano de 1981. Teve esse nome
escolhido por uma de suas sócias fundadoras que significa Vivência Infantil Lazer e Aprendizagem. É uma escola particular,
funciona em dois turnos e possui o nível de ensino que vai da educação infantil até o final do ensino fundamental.
Atualmente a escola conta com 356 alunos matriculados. Há duas supervisoras, uma que acompanha os trabalhos da
educação infantil até a terceira série do ensino fundamental e a outra supervisora que é responsável pela orientação da quarta
até a nona série. Existe também uma psicóloga e uma psicopedagoga. As salas de aula funcionam pela manhã. No turno da
tarde é oferecido o serviço da creche.
O seu corpo docente é formado por 50 professores, dentre eles, professores de música, arte, yoga. Segundo
depoimento da diretora pedagógica, os professores recebem uma atenção especial. Eles podem fazer atividades corporais
gratuitamente como medida profilática. A escola também oferece constantemente cursos e treinamentos para que esses
profissionais sejam capacitados em serviço.
Ser professor da VILA é ser: sensível, reflexivo, crítico, consciente, compromissado, criativo, dinâmico, intuitivo,
ecológico, acolhedor. Ser comprometido com o desenvolvimento do ser humano e com a procura de um futuro sustentável no
planeta. “Tudo no universo está interligado, nada é independente. Somos integrantes do meio e este é um reflexo das nossas
ações. Sendo co-responsáveis pela construção da própria realidade, atuamos no cuidado do indivíduo, da sociedade e da
Natureza” (Caderno do Professor, parte I, página 03).
O trabalho envolve o currículo obrigatório aliado a questões sociais, tecnológicas, ecológicas, políticas e
econômicas do planeta, além de todas as atividades que possam contribuir para o desenvolvimento do SER na sua totalidade.
Primeiramente realizei quatro visitas à instituição. Todas tiveram o objetivo de iniciação ao ambiente escolar. O
contato foi através da diretora da escola. Ela me acolheu com muita atenção e disponibilidade. Por meio de uma entrevista,
que se apresentou como um agradável encontro, a diretora me relatou com riqueza de detalhes sua trajetória, que se confunde
com o caminho até então percorrido durante 26 anos de existência da Vila.
Houve oportunidade, em uma outra visita, de conhecer as dependências físicas da escola, no turno da manhã,
quando encontrei as salas de aula, com os alunos e professores em pleno andamento. Todo o pulsar humano pôde ser sentido
num espaço muito acolhedor. Aula de corpo em uma sala bem ampla; aula de laboratório no meio das plantas verdes onde
tive dificuldade de identificar o professor que se encontrava no meio de seus educandos.
Em meio a tudo isso, de repente, ao passarmos pela quadra surge um conflito. Os horários de duas turmas
utilizarem esse espaço estavam chocando. Os alunos se dirigiram à diretora da escola com muita intimidade e ela escutou a
todos. Chegou-se a um acordo onde todos participaram decidindo o que poderia ser feito para contribuir para a solução do
problema. Esse fato me chamou muita atenção, particularmente no que diz respeito à postura de uma escuta qualificada dos
educandos por parte da direção.
Nessa mesma ocasião, fui convidada para participar, em outro dia, de uma explanação para alguns interessados, da
comunidade em geral, em conhecer a metodologia e o material didático produzido pela própria editora da Vila. O referencial
metodológico principal adotado é o da transdiciplinaridade. Os conteúdos são trabalhados de forma contextualizada e
transdiscplinar através da pedagogia dos projetos. O objetivo é o de desenvolver seres humanos íntegros, para a construção de
uma sociedade menos fragmentada e mecanicista, mais tolerante e aberta.
Um antigo professor da escola, que agora se dedica exclusivamente à composição desse material, relatou quão
enriquecedor para ele e para os seus alunos, vivenciar a integralidade dos conteúdos. Foi percebido como o material visa
desenvolver a autonomia, criticidade e também a criatividade dos educandos. Todo o corpo docente é sensibilizado e investe-
se na contínua capacitação para que o professor seja habilitado para vivenciar essa metodologia revolucionária em sua vida
pessoal e profissional.

AS DESCOBERTAS CONSTRUÍDAS EM CAMPO


A perspectiva adotada para o desenvolvimento da pesquisa e conseqüente parâmetro para definição dos
instrumentos de investigação segue o enfoque qualitativo. Este se mostra como o mais adequado aos propósitos do presente
trabalho. As metodologias qualitativas derivam da convicção de que a ação social é fundamental na configuração da
sociedade (HAGUETE, 2000). A abordagem qualitativa responde a questões particulares e preocupa-se com um nível de
realidade que não pode ser quantificado. Ela trabalha com o universo de significados, motivações, crenças e valores, o que
corresponde a uma dimensão relacional mais profunda, não apropriada a quantificações.
Dentre o universo de possibilidades de pesquisa relacionadas ao enfoque qualitativo, escolho o referencial da
etnografia, mais precisamente o que na área da educação passou a ser nomeado como estudo do tipo etnográfico (ANDRÉ,
1995). Este se caracteriza pelo envolvimento e identificação do pesquisador com as pessoas pesquisadas. Ele também ajuda a
romper paradigmas predefinidos e tradicionais como a regra do não envolvimento do pesquisador com o universo
pesquisado. Neste caso, o pesquisador é o instrumento principal na coleta e análise dos dados. Há também a ênfase no
processo e não no produto ou nos resultados finais (ANDRÉ, 1995).

457
O instrumento escolhido, para o primeiro momento da pesquisa de campo, foi a observação participante, com
intuito de facilitar uma aproximação inicial de todo o universo da pesquisa e a construção de um grau maior de interação com
a situação estudada, afetando-a e sendo afetada por ela. A partir dessas observações produziu-se um diário de campo, fruto do
registro contínuo das experiências vivenciadas pelo pesquisador durante todo o processo de pesquisa. Todo o conjunto das
observações ajudou de maneira significativa para a construção do sentimento de intimidade com a realidade observada, senti-
me muito bem acolhida por todo o grupo de educandos e os demais integrantes da escola. Acredito também ser importante
para a interpretação dos dados de forma contextualizada.
Num segundo momento, realizou-se uma oficina para explorar com mais riqueza e profundidade as experiências
compartilhadas através das falas dos educandos. Entendo ser necessário esclarecer resumidamente o que vem a ser a
atividade da oficina para assim explicitar o porquê da escolha desse instrumento de pesquisa.
A idéia das oficinas da paz2 encontrou fortes contribuições a partir das reflexões sistematizadas por Guimarães
(2005) utilizando como um dos referenciais o trabalho da Ofinartes3. A oficina passa a ser entendida como um lugar
favorável à troca e compartilhamento dos saberes. É, sobretudo, um espaço de criação e recriação de conhecimentos. A idéia
da construção de novos saberes assume papel central nessa proposta metodológica.
Um aspecto da prática das oficinas que merece destaque diz respeito ao desenvolvimento da condição de
protagonista dos sujeitos pesquisados, ou seja, a ênfase é colocada nos saberes que o grupo possui e neste movimento, cada
um passa a se reconhecer com produtor de conhecimento. A sensação de “ser capaz” é um caminho, no contexto educacional,
a ser resgatado e enfatizado; essa dimensão está presente na proposta da Educação para a Paz. Tal ponto revela-se como
determinante na escolha por desenvolver uma oficina no contexto pesquisado.
Um outro elemento extremamente relevante oportunizado pela oficina refere-se ao retorno concreto que o
pesquisador pode oferecer ao contexto pesquisado num rápido espaço de tempo. A troca estabelecida possibilita que algum
benefício imediato seja oferecido aos participantes da pesquisa, ou seja, não só o pesquisador é beneficiado com a coleta de
dados de seu interesse, mas concretamente os pesquisados podem construir e compartilhar saberes que servirão de referencial
futuro para tomada de consciência e para futuras ações acerca do tema trabalhado. Desta maneira, fica claro o quanto a
oficina oportuniza a apropriação teórica e prática de uma determinada temática (GUIMARÃES, 2005).
A partir de tal compreensão sobre a proposta da oficina, foi explorada a perspectiva do educando sobre a promoção
da Cultura de Paz e o papel da escola nessa ação; pude registrar as falas dos educandos (MATOS, 2003) e o que eles têm a
dizer sobre a promoção da Paz no ambiente escolar, assegurando um espaço em que cada um pôde exercitar a condição de
sujeito, favorecendo a expressão dessa voz historicamente, tantas vezes, silenciada (FREIRE, 2001). É válido salientar que a
opção por escutar os educandos consiste principalmente na crença que estes são sujeitos importantes e essenciais para pensar
e repensar as práticas educativas e que, na maior parte das pesquisas, não são incluídos como foco pesquisado.
Além disto, perceber o educando como sujeito sociocultural (DAYREL, 1996) implica compreendê-lo na sua
diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escalas de valores, sentimentos, emoções,
desejos, projetos com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios. O ambiente escolar deve avançar em direção
ao exercício inclusivo do desenvolvimento de relações respeitosas entre os diferentes segmentos que compõem o universo
escolar. A educação para paz assume o compromisso de procurar caminhos concretos para se realizar o que acima foi
descrito.
Nessa busca de caminhos possíveis, os educandos precisam ser reconhecidos como protagonistas (MATOS;
NASCIMENTO, 2006). Deve ser possibilitado a eles sair da posição de vítima, espectador ou agente da violência para que
possam assumir o papel de agente promotor da paz (MILANI, 2006). Para tanto, é necessário que possamos resgatar o papel
humanizador do espaço escolar (DAYREL, 1996). O caminho é a construção de relações mais respeitosas consigo mesmo,
com o outro, com os outros e com o planeta, ou seja, resgatar a paz como princípio regulador de todas as nossas ações.
Após este breve esclarecimento sobre os principais aspectos da metodologia adotada e os sujeitos pesquisados,
apresento agora os resultados parciais da pesquisa Todo o processo de imersão no campo de pesquisa foi repleto de ricas
descobertas e prazerosas vivências. As reflexões que apresentarei nesse espaço são frutos especificamente do
desenvolvimento de uma oficina com os integrantes da oitava série da escola visitada. No dia do encontro estavam presentes
quinze dos dezenove educandos. Nesse encontro foram explorados alguns recursos didáticos, como músicas, textos, figuras,
com a intenção de promover a reflexão e discussão sobre o tema em foco. É também objetivado que nessas oficinas sejam
produzidos materiais feitos pelos próprios sujeitos. Abordarei nesse espaço o material produzido acerca do ponto: como a
escola pode contribuir para a construção de uma Cultura de Paz.
Julgo muito pertinente trazer o registro das falas dos educandos, dessa forma passo agora a abordar alguns pontos
formulados a partir do que foi colhido em campo junto com os participantes da pesquisa. Um primeiro aspecto presente no
material formulado pelos educandos diz respeito à dimensão da importância de se falar sobre a paz. No início, o grupo
apresenta uma relativa surpresa em falar sobre o assunto, para logo depois, animadamente apresentar vários pontos de vista
de maneira muito participativa. É como se houvesse um estranhamento sobre o tema (a paz) e a descoberta de que é preciso

2
Guimarães (2005) compreende a proposta das oficinas como espaço propício para o desenvolvimento da competência comunicativa de crianças e jovens e
representam um solo fértil para a construção do protagonismo infanto-juvenil.
3
Ofinartes é uma assessoria pedagógica criada em 198.., sua sede está situada no Município de Fortaleza. O grupo de educadores trabalha com a metodologia de
oficinas. Entende o espaço da oficina como momento de construção e reconstrução de saberes. Tive a oportunidade de participar de várias atividades dessa
instituição como assessora.

458
se conhecer e debater mais sobre as várias possibilidades de se construir a paz. Em resumo, percebi claramente a necessidade
de falar sobre a paz, pensar, sentir a paz, para se construir a paz.
Para ilustrar esse primeiro aspecto, quero apresentar uma das vozes dos participantes da pesquisa que registra sua
opinião sobre como a escola pode contribuir no processo de construção da Cultura da Paz: Pode desde cedo passar o conceito
de paz, e mostrar porque é tão importante, para cada aluno tirar suas próprias conclusões. Sabiamente nosso colaborador
aponta algo de extrema importância. Devemos nos apropriar da complexidade em torno do conceito de paz, principalmente
para desmistificá-lo. O ambiente da escola revela-se como um espaço indispensável para o desenvolvimento dessa tarefa.
É importante salientar a urgência de se compreender melhor a complexidade do conceito Paz para que todos os
atores envolvidos no processo de formação de homens e mulheres possam contribuir efetivamente para a vivência da Cultura
da Paz. Segundo Jares (2002), nos encontramos numa situação de certa confusão sobre o termo Paz. Há uma grande profusão
no seu uso e falta uma maior clareza e unicidade em sua definição.
Devo lembrar ainda que, a paz não nasce por ela mesma e deve ser cultivada desde a tenra idade, como abordado na
resposta de nosso colaborador da pesquisa. Isto nos leva a apresentar o próximo elemento trazido pela pesquisa. Este se
concentra na dimensão de que a paz deve ser entendida como um processo, algo a ser construído, e feito coletivamente. Os
educandos revelam-se interessados em aprender e afirmam que a escola deve trabalhar: Ensinando aos alunos como construir
a paz.
Nessa afirmação, fica indicada a compreensão que o educando possui sobre o que já ressaltamos no início do texto,
a paz não nasce pronta, é necessário que haja ações intencionais para que esta seja desenvolvida. O mais animador é que tal
concepção já se encontra presente no discurso do entrevistado. Isso em si é um dado extremamente relevante.
Além disto, eles também apontam um caminho muito importante para nossa reflexão sobre como construir a paz e a
importante contribuição da escola na direção de uma educação voltada para o desenvolvimento da condição humana
(TUVILLA, 2004). Ensinando a seus alunos não só conteúdos, mas ensinando-os a serem humanos, amigos, solidários.
É bastante significativa essa resposta do educando. Aprender a viver juntos, a conviver, este é o grande desafio
atual traduzido nas palavras do sujeito pesquisado. Como nos indica Serrano (2002), tal exercício de convivência é prioritário
para o desenvolvimento das potencialidades do ser mais profundo e originário da pessoa. “Dessa ótica, podemos criar e
recriar uma cultura genuína da paz, da tolerância e da democracia.” (SERRANO, 2002, p.11).
Um outro ponto extremamente relevante trazido pelos sujeitos da pesquisa diz respeito à concepção de que a paz
deve ser construída através do diálogo e da escuta atenta de toda a escola sobre o que os educandos pensam (FREIRE,
2005b). Sendo mais compreensivo e escutando os alunos.
Inicialmente quero expressar minha concordância com o que foi trazido pelo sujeito pesquisado enfatizando que a
relação dialógica de escuta verdadeira e facilitação da expressão da fala do educando (FREIRE, 2005b) é fator fundamental
para o desenvolvimento da Cultura de Paz nas escolas.
A Educação para a Paz configura um espaço privilegiado para operar o consenso para a paz, espaço este que facilita
o debate, não mascara os conflitos e estimula nos seus componentes a postura de negociação e tolerância. “Nesse contexto, a
linguagem torna-se, por excelência, o lugar onde operar a paz” (GUIMARÃES, 2004, p. 23). Ainda segundo este autor, a
prática do diálogo é fundamental para a construção da paz no ambiente escolar. Esta atitude vem do reconhecimento da
alteridade, reconhecimento da existência do outro e da possibilidade de convivência pacífica entre formas de pensar, agir,
sentir diferente.
Para Guimarães (2004) deve-se pensar a paz como uma realidade intersubjetiva. Sendo a paz entendida como
produto a ser construído e vivenciado entre pessoas, não apenas isoladamente e internamente, mas a partir do encontro com o
outro e outros; a relação dialógica apresenta-se como um caminho necessário a ser estabelecido. Para se efetivar este
caminho, de acordo com Freire (2005a), o diálogo deve estar pautado na humildade, no amor, na fé intensa no ser humano e
na leitura crítica da realidade.
Este autor é enfático ao afirmar que o diálogo é uma necessidade existencial. Ele ressalta que para existir o diálogo
precisa de humildade e não pode significar um ato de arrogância. O mesmo autor deixa claro o seu posicionamento contrário
a uma idéia de Paz a ser atingida individualmente ou isoladamente. A Paz deve ser atingida neste mundo e com o mundo. Um
dos caminhos para se viver em Paz se dá através da relação dialógica. Para Freire, os homens se encontram por meio do
diálogo. No entanto, não há diálogo se não há um profundo amor ao mundo e aos homens.

“El diálogo implica tolerancia y el respeto a las diferencias como clave esencial de la práctica democrática en la que
los actores prestan atención activas con su pensamiento y acción a las diferentes opiniones, creencias y valores que difieren
de los propios. Y es, por otro lado, elemento imprescindible de la cooperación y constituye la esencia de la Cultura de Paz
que reside primeramente en el encuentro entre las personas y sus realidades históricas y éticas diversas.” (TUVILLA, 2004,
p. 228).

A partir do que foi exposto, devo ainda salientar que educar para a paz requer a vivência da educação dialógica.
Essa prática significa romper com o silêncio, pronunciar o mundo, ocupar o lugar de sujeito crítico, capaz de promover
transformações sociais, a partir do conhecimento dos processos dos quais homens e mulheres fazem parte (FREIRE, 2005a).
Um último aspecto a ser salientado refere-se ao bom nível de compreensão sobre a importância de implicação por
parte dos educandos, ou seja, eles demonstraram compreender que podem e devem fazer parte da construção da Cultura de

459
Paz. Os educandos demonstraram interesse pela temática e um ótimo nível de reflexão e leitura da realidade. Eles
apresentaram uma habilidade valiosa e pouco comum nos ambientes escolares, o convívio em grupo.
Acredito que esse movimento é uma importante iniciativa que precisa ter continuidade, pois aprender a viver em
paz é, basicamente, um exercício de transformação, de mudança. É uma mudança significativa na maneira de perceber o
“outro” (VINYAMATA, 2005) e de se perceber como elo de uma corrente interdependente. Inclui o desenvolvimento de
valores que servirão de norte para a construção de habilidades como o diálogo com a diversidade, a tolerância com o
diferente, ou seja, como essencialmente aprender a lidar com o conflito pela prática do respeito mútuo (GUIMARÃES,
2004).
Ressalto a relevância do aprofundamento dos estudos sobre os pontos até aqui abordados e a responsabilidade
social das escolas e educadores. Estes devem se apropriar melhor de tudo o que envolve os diversos entendimentos sobre a
Paz. Desta maneira, poderão efetivamente contribuir para a vivência de uma educação que prepare os sujeitos para construir a
Paz. “O sistema educacional, como espaço de aprendizagem e convivência, deve fornecer instrumentos necessários à
aprendizagem de uma cultura de paz e não-violência oposta a qualquer forma de fundamentalismo” (JARES, 2007, p. 12).

ALGUMAS REFLEXÕES FINAIS


Para toda a sociedade, e particularmente a escola, o grande desafio se refere à construção das mudanças necessárias
que nos aproximem de uma educação centrada no desenvolvimento da condição humana (TUVILLA, 2004). Devemos
entender que tais mudanças não dependem apenas da ação dos governos nem somente de uma mudança de postura
individual.

“La Cultura de Paz es un proceso colectivo y una tentativa cargada de futuro y de esperanza que encuentra en la
educación – centrada en la condición humana – uno de sus mejores instrumentos para superar los retos de un nuevo milenio
no exento de peligros”. (TUVILLA, 2004, p.13).

Deve-se ressaltar que a construção da Cultura da Paz não pode ser vista apenas como mais um modismo
educacional, ou algo que se vende e que se consome isoladamente no tocante apenas a dimensão da paz interior. A
experiência da escola acompanhada revela um esforço coletivo e intencional, consolidada por mais de vinte e cinco anos na
aplicação da educação libertadora. O que percebi foram atores (gestão, professores e educandos) em busca do ser mais
(FREIRE, 2005a).
Sendo assim, através dos resultados dessa pesquisa, percebo uma experiência educativa que atua na direção do
fortalecimento de um movimento crescente assumido por vários segmentos da sociedade comprometidos em mostrar os
sinais de mudança de uma cultura de violência para uma cultura de paz. Acredito que caminhos estão sendo construídos para
que a promoção da Cultura de Paz seja fortalecida e para que mais pessoas possam empoderar-se dela (GUIMARÃES, 2006).
Desejo também reafirmar meu compromisso em poder fortalecer um movimento que a cada dia ganha novos
colaboradores no sentido do desenvolvimento e da divulgação de experiências positivas que concretamente indicam a paz
como um inédito-viável (FREIRE, 2005a).
Assim como Brenes (2006), acredito no poder que têm o povo de gerar transformações culturais e com isso criar
estratégias de reforma educativa comprometidas com a edificação de sociedades justas e solidárias. Além disto, é necessário
que todos nós estejamos implicados, assumindo o papel ativo na garantia e promoção do desenvolvimento sustentável; dos
direitos e liberdades humanas; a igualdade, justiça, paz e não violência.

“podemos afirmar que convivir en paz no es, pues, sólo una posibilidad, sino una realidad que poco a poco,
despacio, de manera imperfecta, suma de tentativas y ensayos, construimos día a día con el apoyo de la ciencia, la cultura, la
educación y la comunicación” (TUVILLA, 2004, p. 57).

Um outro aspecto relevante que merece nosso destaque indica que a proposta da Educação para a Paz traz em si o
desafio de romper com o medo, o isolamento e a competitividade impostos pela cultura bélica da violência. Esta proposta
educacional indica que devemos concentrar esforços na direção da construção de relações pautadas no respeito às diferenças
e no exercício de uma participação efetiva, onde todos possam sentir-se responsáveis e construtores da Paz.
A realidade trazida pelos educandos da escola pesquisada indica que algo já está sendo feito na direção acima
descrita. O discurso e a prática educacional se irmanam na direção da construção de relações respeitosas consigo, com o
outro e com o planeta. O caminho está sendo percorrido e dentro do que pude acompanhar a experiência se revela bastante
exitosa. A experiência observada se aproxima do que Boof (2006, p.26) indica como as dimensões da “paz que resulta dos
valores da cooperação, do cuidado, da compaixão e da amorosidade vividos cotidianamente”.
Ao finalizar o presente texto, espero que as reflexões construídas ofereçam subsídios para novas idéias e
principalmente sirvam de inspiração para a viabilização de novos caminhos. Percebo de forma extremamente clara que
devemos assumir nosso papel de promotores de uma nova era, uma nova forma de viver, que pode ser traduzida na proposta
da Cultura de Paz. Enfatizo ainda que a complexidade de promover a Cultura de Paz é um imenso desafio para todos nós, e

460
em especial para os educadores (MATOS; NASCIMENTO, 2006). Além disto, no cenário educacional, tal empreitada não
pode ser efetivada sem a abertura respeitosa para a experiência do educando.

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Educação e Cidadania: uma reflexão sobre o Ensino Superior no Brasil

Rosane Aparecida de Sousa Martins


Universidade Federal do Triângulo Mineiro
moreiramartins@terra.com.br

Resumo: A discussão sobre a educação e cidadania advém do propósito de contribuir para o debate sobre as perspectivas do ensino superior,
estabelecendo uma relação efetiva e dinâmica entre a educação como política social e a formação iniciada por meio do ensino da graduação.
Percebe-se que as discussões e mudanças curriculares propostas para a década de 1990 apresentam o pensamento hegemônico da categoria
de assistentes sociais em bases materialistas-históricas, na perspectiva de captar a especificidade da totalidade histórica da sociedade. Busca-
se compreender o homem a partir de suas relações sociais e produtor de sua condição sócio-histórica e cultural, conforme o compromisso

461
com a classe trabalhadora e com uma sociedade justa, igualitária na qual todos os cidadãos possam alcançar o acesso aos direitos sociais,
inclusive de acesso ao ensino superior e à cidadania.
Palavras chave: educação, ensino superior, cidadania

A discussão sobre a educação e cidadania advém do propósito de contribuir para o debate sobre as perspectivas do
ensino superior, estabelecendo uma relação efetiva e dinâmica entre a educação como política social e a formação iniciada
por meio do ensino da graduação, fortalecendo e contribuindo para o projeto de formação e exercício profissional.
Nesta ótica cabe analisar: o que vem a ser educação? Qual a concepção de formação profissional para os alunos,
docentes e coordenadores de cursos diretamente envolvidos no ensino superior? Qual o impacto da educação no ensino
superior sobre a realidade social brasileira?
Em linhas gerais, o pensamento predominante direciona a análise da realidade social brasileira para o acirramento
da desigualdade e exclusão social, aumento da concentração de renda nas mãos de uma minoria, fortalecimento das
proposições neoliberais, ampliação da ideologia da globalização da economia, diminuição do acesso a direitos sociais e
aumento da barbárie humana.
Assiste-se, cotidianamente, ao aumento do desemprego/subemprego das grandes massas, aumento da exclusão
social e das desigualdades no desenvolvimento mundial. A ideologia que prevalece é a do crescimento econômico a todo
custo, tensões e guerras constantes entre grupos étnicos, países vizinhos e nações distantes. A globalização da economia e da
informação trouxe a tensão entre o global e o local. As pessoas estão perdendo a referência e a identidade diante de suas
raízes enquanto membro de sua comunidade ou país ou, ainda, partem para a radicalização destes valores não aceitando as
diferenças ou escolhas dos outros.
No campo da educação1 a situação não é diferente. Constata-se que as políticas educativas são relegadas, muitas
vezes, para a última posição na indicação de prioridades. As questões econômico-financeiras normalmente são privilegiadas
em detrimento das questões educativas e sociais.
Neste sentido a política educacional tem papel importante na construção de uma sociedade onde prevaleça o
desenvolvimento sustentável, a busca pelo desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas das pessoas; o
respeito às tradições, valores e culturas dos povos, direito à liberdade e autonomia e a garantia de acesso aos direitos sociais a
todos.
Nesta perspectiva a educação é entendida como parte importante do processo de superação das mazelas sociais
existentes. Porém, não deve ser encarada como a única responsável pela transformação social necessária. Há outras questões
tão importantes quanto a política educacional. Entre elas pode-se citar as políticas econômicas e as políticas sociais em todos
os âmbitos. Há que se estabelecer o propósito de desenvolvimento sustentável e a conseqüente repercussão disso no cotidiano
das populações em especial daquelas de baixa renda. É imprescindível que o Estado e a sociedade civil se organizem para
garantir o incentivo ao desenvolvimento de potencialidades e talentos humanos, formação e capacitação que permitam aos
homens a realização de seus projetos pessoais e profissionais, rumo à garantia de acesso à cidadania.
Na tentativa de delimitar as questões que referenciam a reflexão sobre a formação profissional e o projeto
educacional em Serviço Social, faz-se necessário retomar alguns pontos básicos neste percurso.
O primeiro ponto refere-se à conjuntura e à realidade da educação brasileira. A reflexão e análise sobre a educação
exige a retomada de dados sobre a legislação referente à política de Educação no Brasil e seus reflexos sobre sua qualidade
no contexto atual.
A implantação do ensino superior no Brasil foi objeto de resistência da classe dominante durante várias décadas.
Segundo Jorge (1999:135)

No Brasil, até 1808 , com a chegada da família real, os luso-brasileiros faziam seus estudos superiores na Europa,
principalmente em Coimbra, Portugal. Desde então, institui-se na colônia o ensino superior, instalando-se na Bahia a
faculdade de medicina (1808) e no Recife e em São Paulo, faculdades de Direito (1854). A Escola Politécnica do Rio de
Janeiro é fundada em 1874, com a separação dos cursos civis dos militares, e logo depois, em Ouro Preto, funda-se a Escola
de Engenharia. A partir de 1930, reorganizam-se tais cursos em ajuntamentos de faculdades, dando origem às universidades
de Minas Gerais (1933), São Paulo (1934), quando na década de 60 se expande o sistema universitário nos ditames da
reforma prevista na Lei nº 5.540/68.[...]

Neste período, o ensino superior - voltado para a formação de massas críticas, para o desenvolvimento de
habilidades para a pesquisa, para a produção de conhecimentos e para o avanço cultural, político e aprofundamento do
conhecimento humano - sofre os mais variados “golpes”, resistências e ações de contenção, desvalorização e
enfraquecimento por parte do Estado, da igreja e de grupos dominantes vinculados a escolas profissionais.
Tais fatos contribuem diretamente para a presença maciça de contratos de docentes em regime horista, despreparo
docente para a pesquisa, baixo ou nenhum investimento em projetos de extensão e de pesquisa, tempo docente dedicado
quase que totalmente ou totalmente às atividades de ensino, organização administrativo-acadêmica (inclusive projeto

1
“Semanticamente educação tem sido compreendida restritamente como resultado de, todavia, quando cotejada com sua origem etimológica, reconhece-se a sua
limitação a apenas ao resultado, omitindo-se aquilo que produz o resultado, a intervenção, o verbo" (MARTINS, 2001, p. 243).

462
pedagógico) com ênfase na formação de profissionais, ausência de incentivo à produção e divulgação científica e baixo
número de docentes com titulação.
Neste contexto predomina o ensino superior de baixa qualidade em termos de formação intelectual generalista e
crítica ou a prevalência de uma educação determinada e direcionada pelos interesses de mercado. Estas características
indicam a dicotomia existente entre a realidade da educação brasileira e o que prevê o artigo 207 da Constituição Federal
(CF) – “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial entre
ensino, pesquisa e extensão.”
Outro aspecto importante refere-se à acessibilidade ao ensino superior. Apesar do artigo 205 da CF dispor que “A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”,
prevalece ainda uma política para a educação superior que não tem garantido a inserção dos discentes, principalmente aqueles
oriundos das camadas populares, no ensino superior.
Na atualidade, com a globalização da economia, estado neoliberal e a subalternização aos interesses econômicos e
às indicações de países/organizações internacionais, a educação superior assume papel decisivo na qualificação de
profissionais para o mercado de trabalho e as IES passam a ser vistas como empresas comerciais que “geram” lucros e
devem ser competitivas nesse mercado.
Na tentativa de garantir a exeqüibilidade das “indicações” propostas para as IES, o Estado tem criado leis, decretos,
medidas provisórias voltadas para a avaliação da qualidade do ensino por meio de instrumentos de avaliação das
universidades (PDI), do ensino ofertado (ENADE). Porém, ainda permanece distante a implementação de ações que
realmente contribuam para a autonomia universitária, para o fortalecimento da indissociabilidade entre pesquisa-ensino-
extensão, incentivo à formação de pesquisadores e, principalmente, para a ampliação e garantia/consolidação dos direitos
sociais conquistados.
Por isso, abordar a questão da Educação exige também reflexões acerca da Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB, ou também denominada Lei Darcy Ribeiro. Esta lei, sancionada durante o governo Fernando
Henrique Cardoso, foi fruto de movimentos dos educadores de todo o Brasil em luta pela educação pública de qualidade
diante dos interesses de grupos dominantes.
A LDB tinha como eixo central a defesa do ensino público em âmbitos municipais, estaduais e federal, garantia de
universalização do acesso à educação desde o ensino fundamental até o ensino superior e a ampliação da qualidade do ensino
em todas as modalidades de ensino. Neste sentido, havia uma expectativa de que a LDB contemplasse as demandas e
necessidades da sociedade brasileira no que tange à política de educação brasileira.. Após intensas discussões e debates
acerca de educação na década de 80 buscou-se a efetivação da construção dos atores sociais no encontros e movimentos em
luta pela educação pública de qualidade por meio da sensibilização do executivo e legislativo a partir da aprovação de nova
legislação para normatizar a política de educação nacional. PINO (2005, 19)

A ocorrência desses processos, concomitantemente ou com prevalências, depende de vários fatores, entre eles as
concepções que os atores sociais envolvidos – oriundos do Estado, dos partidos políticos, do campo educacional e de outros
grupos da sociedade – têm da sociedade, Estado e educação e das suas relações; dos interesses, das estratégias e dos
mecanismos de controle social desenvolvido pelos diferentes protagonistas e das dinâmicas sociais que darão forma aos
diversos níveis de relações sociais.

Assim, o movimento para discussão, debates e normatização da educação no país é derivado da constatação de
crises no sistema e políticas educacionais cujos impactos estão sendo observados na qualidade do ensino e da formação
ofertados. Constata-se um hiato entre a expectativa dos educadores e entidades representativas dos movimentos em luta pela
educação pública e de qualidade e a ideologia e ação do Estado por meio de seus representantes.
Percebe-se que a educação tem como prioridade a preparação para o mercado de trabalho, voltado principalmente
para a qualificação da mão-de-obra segundo a determinação de habilidades e competências para o desempenho de funções.
Esta concepção é fortalecida a partir da forte influência da ideologia neoliberal e da ampliação da globalização da economia,
que “determina” a ação do Estado para garantir a inserção dos países subdesenvolvidos no cenário mundial. Segundo
SEVERINO (2005, 62)

A LDB trata especificamente da educação escolar que é entendida, no entanto, como diretamente vinculada ao
mundo do trabalho e à prática social. Entendida também com dever da família e do Estado, inspira-se nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana e visa o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Com isso, a educação assume o compromisso com a preparação para o trabalho, atendendo diretamente aos
interesses de segmentos privilegiados em detrimento das camadas populares. Perde-se a concepção de garantia de direitos, de
universalização do acesso, de qualidade do ensino e da formação. Nesse sentido amplia-se a proposta de Estado mínimo,
prevalecendo interesses particularizados em detrimento de interesses e direitos coletivos.

463
É neste cenário que se estabelecem as discussões e votação da LDB. De um lado grupos representantes dos
interesses da sociedade civil e de entidades vinculadas à educação lutando pela educação pública, pela ampliação do acesso a
todos os níveis e modalidades de educação. De outro lado representantes de segmentos dominantes cujos interesses estão
pautados na permanência e/ou ampliação de seus privilégios no mercado de prestação de serviços na área de educação.
Após intensas lutas, debates e apresentação de propostas, fortalecidas durante a aprovação da Constituição de 1988,
busca-se a normatização da política de educação no país. Mediante as articulações do executivo por meio da influência e
pressão sobre os relatores do projeto de lei, mudanças dos representantes políticos no legislativo e mudanças, inclusive, de
representante no executivo tendo em vista que a discussão sobre a política de educação ocorreu no Governo Itamar Franco e
foi sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, aprovou-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Para
SEVERINO (2005, 67)

Impõe-se reconhecer que o texto final da LDB é o resultado histórico possível frente ao jogo de forças e de
interesses em conflito no contexto da atual conjuntura política da sociedade brasileira. O que realmente pesa é a própria
condição histórico-cultural dessa sociedade, a sua trama constitutiva, a teia de suas relações econômico-sociais que definem,
previamente e com força total, os lugares políticos de cada indivíduo ou grupo.

Constata-se, ainda, lacunas quanto à determinação dos responsáveis pela fiscalização e acompanhamento do
cumprimento da LDB por parte das instituições, principalmente as instituições privadas de ensino. Observa-se, também, o
compromisso do Estado somente com a educação básica deixando claro que a educação superior será garantida conforme a
capacidade de cada um, mantendo-se implícita a necessidade de exames vestibulares para o ingresso, principalmente nas
universidades públicas.
Quanto ao financiamento da educação superior a LDB mantém a possibilidade de uso de recursos públicos em
instituições privadas de ensino, inclusive ensino superior, por meio das distinções de sua natureza. Podem ser contempladas
com recursos públicos as instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas, desde que atendam às exigências
apresentadas no art. 77, parágrafo I a IV da LDB . Por outro lado o controle e acompanhamento do uso dos recursos públicos
não estão claramente definidos, demonstrando fragilidades na fiscalização .
A LDB centraliza a definição e formulação da política educacional, em especial a educação superior, na alçado do
executivo. Desta forma a proposta de inserção do Fórum Nacional de Educação como espaço de discussão, consulta e
articulação com a sociedade civil fica debilitada. Observa-se a fragilização da participação política da sociedade civil nas
discussões e deliberações diante da política de educação, estabelecendo que tais prerrogativas sejam de competência do
Conselho Nacional de Educação e do MEC.
Outro aspecto a ser apreciado refere-se à manutenção do caráter profissionalizante da educação enfatizado no artigo
1º, & 2º e no artigo 2º da LDB.

No entanto, constata-se, também, o salto alcançado com a promulgação da LDB por meio da proposta de revisão da
política educacional brasileira. Assim, considera-se que a “legislação não garante a concretização dos grandes objetivos
educacionais, mas pode ser um instrumento favorável ao seu encaminhamento, particularmente quando se trata da educação
pública voltada para a formação da cidadania da maioria da população.” (BELLONI, 2005:129)

Tal perspectiva reforça a proposta de que a educação é um processo contínuo que deve estabelecer não só o acesso
ao conhecimento formal como também todas as formas de conhecimento capazes de contribuir para o desenvolvimento
humano.
Neste contexto, o Serviço Social contemporâneo que tem seu objeto de ação permeado pelas diferentes expressões
da questão social, também vive situações semelhantes à análise de conjuntura citada por Wanderley. Várias são as
concepções, visões, olhares sobre conjunturas, realidade social, questão social. Mesmo sendo profissionais da mesma
categoria, a “opção preferencial” de cada assistente social influencia nesta análise. Ainda segundo Wanderley (1993, p. 13)

É na Universidade onde se encontra o lugar por excelência de discussão da teoria, já que ela é discutida também em
outras esferas. É nela que se deveria produzir os novos conhecimentos, para essa realidade concreta, para esse projeto novo
de país. Mas esses conhecimentos são mínimos na Universidade, não estão aparecendo. Então, essa crise de teoria é algo hoje
fundamental.

Tal situação repercute na caracterização da universidade brasileira e suas linhas de pensamento. O espaço de
discussão dentro das Universidades ou mesmo dos cursos depende da visão de educação que o país tem. A partir do momento
em que a educação torna-se objeto de ação concreta daqueles que direcionam / administram o país, com certeza o ensino terá
outra referência. A formação profissional está intrinsecamente ligada ao projeto de educação geral. O investimento deve se
iniciar desde o ensino fundamental até a formação e capacitação permanente dos profissionais já habilitados.
Wanderley (1993, p. 13) afirma:

464
A Universidade brasileira, pela sua estrutura histórica, está descolada e desligada da realidade social, local, regional
e nacional, com raras exceções de alguns professores, estudantes e funcionários que são capazes de captar esta realidade e
estão tentando movê-la. Mas a Universidade como um todo está muito distante da realidade brasileira. Ora, uma universidade
só tem sentido histórico, se ela responde aos desafios postos pela realidade[...].

Refletir sobre formação profissional remete-nos à discussão sobre a Universidade e educação brasileira visto que as
diretrizes curriculares ainda direcionam os projetos pedagógicos das universidades. Por outro lado a situação da educação
superior no país reduz as perspectivas de torná-la acessível a toda população e de posicioná-la no tripé ensino, pesquisa e
extensão. Wanderley (1993, p. 15) diz:

A universidade tem que formar o homem de cultura, o intelectual, tem que formar o técnico e o profissional
responsáveis, aqueles que irão questionar e intervir na realidade. Tudo isso requer uma sólida formação geral que capacite as
pessoas para a vida, que forneça espírito, que imprima responsabilidade individual e coletiva, uma dimensão ética, e uma
formação profissional adequada para o desenvolvimento. Ensino com pesquisa sistemática, individual e coletiva, que
aproveite as metodologias e técnicas dos pesquisadores clássicos e contemporâneos, que aprofunde as reflexões sobre a
pesquisa participante, e cujos resultados sejam amplamente divulgados.

Para alcançar o propósito de trabalhar a partir do tripé ensino, pesquisa e a extensão exige investimento na
educação, mudança de visão sobre seus objetivos - superando perspectivas unicamente mercadológicas e financeiras da
educação pelos seus dirigentes principalmente das universidades privadas, superação do sucateamento das universidades
públicas e projetos educacionais que possibilitem a interlocução direta das universidades com a realidade nacional, regional e
local. Assim como valorização daqueles diretamente responsáveis pela formação de futuros profissionais — diretores,
coordenadores, docentes e demais funcionários do setor educacional.
Ora, um professor sem estímulos, sem vontade, pelas precárias condições de trabalho, não vai fazer nada disso. Ele
vai lutar pela sua sobrevivência. Essas são condições necessárias, indispensáveis. Sem recursos substantivos, sem condições
de trabalho, nem o professor, nem o funcionário vão ter condições para poder se desenvolver.2
Além da influência do projeto de educação do país, da situação das universidades brasileiras, da própria questão da
valorização dos trabalhadores da educação, educadores; há ainda outro fator importante na discussão sobre formação
profissional. Este fator é a concepção de formação profissional e especificamente do ensino da prática dos envolvidos neste
processo.

O projeto pedagógico como componente do processo ensino-aprendizagem


A formação profissional está inter-relacionada com a realidade social vigente, com os projetos societários dos
vários segmentos (políticos, sociais, econômicos, históricos, etc); com as demandas e mudanças no contexto da própria
profissão e com as diferenças de realidade e diversidade de condições vividas pelos cursos em seus respectivos locais de
desenvolvimento. Para Carvalho(1993)3,

a concepção de formação profissional é um processo amplo de preparação científica de quadros profissionais para
responder às demandas sociais que se colocam para o Serviço Social; produção de conhecimentos, ou seja, de investigação;
capacitação continuada da categoria em termos de atualização para o exercício da prática profissional [...] Logo, a formação
profissional .... É, sim, um projeto educacional que articula ensino/pesquisa/extensão orientado por diretrizes básicas.

Assim a formação profissional compreende uma discussão em âmbito geral através da análise da situação da
educação no Brasil, o espaço e realidade vividos pelas universidades e o projeto educacional do Serviço Social neste
contexto, Iamamoto (1995, p. 204) diz:
O desafio pedagógico central está em articular elementos teórico-metodológicos e históricos, transmitidos e
aprofundados no decorrer das várias disciplinas do curso, resgatando-os seletivamente, atualizando-os e aprofundando-os em
função da explicação e do encaminhamento prático de situações particulares e singulares, capazes de elucidá-las e sugerir
criativamente formas de seu enfrentamento no campo profissional.
Quanto ao projeto educacional do Serviço Social, este está direcionado pela aprovação das diretrizes curriculares
para os cursos de graduação em Serviço Social a partir de julho de 2001. Esta aprovação permite a superação do currículo
mínimo, porém mantém um direcionamento do eixo-matrizes teóricas que subsidiarão a organização dos currículos nas suas
diretrizes, conteúdos, projetos pedagógicos e estratégicos de ação.
Carvalho (1993)4 apontou o avanço significativo no processo de formação profissional do assistente social, que
ainda hoje tem relevância para a análise. São eles: processo de redefinição de currículos nas diferentes escolas e cursos;

2
Ibid. p. 15
3
CARVALHO, Alba Maria Pinho. O projeto da formação do assistente social na conjuntura brasileira. Cadernos ABESS, São Paulo, n. 1, 1993.
4
Idem p. 19

465
participação do Serviço Social no contexto universitário, aumento significativo da produção teórica no processo de
investigação; busca de alternativas de capacitação continuada pelos profissionais diretamente vinculados ao exercício
profissional; avanço no movimento estudantil como uma força expressiva no projeto educacional da formação profissional e
participação das entidades representativas da categoria no processo de redefinição da formação profissional.
Todos estes aspectos apontados por Carvalho estão novamente na pauta de discussão sobre o processo de formação
dos assistentes sociais mediante as indicações das diretrizes curriculares aprovadas em 2001, e também pelas entidades
representativas da profissão: ABEPSS, CFESS/CRESS e ENESSO, assim como pelas novas demandas postas para o Serviço
Social.
Prevalece no contexto da grande maioria das unidades de ensino em Serviço Social o projeto profissional
comprometido com os interesses dos usuários procedentes dos segmentos dominados, refletindo a disseminação do projeto
hegemônico proposto por grande parcela dos intelectuais brasileiros. Este contexto reforça a idéia de que o Projeto de
Formação Profissional nos cursos deve ter uma direção social, em geral pautada pelo compromisso com a classe
trabalhadora.
Tem-se claro como premissa analítica em termos de concepção de formação profissional que o processo é, de fato,
uma luta pela hegemonia, afirmando-se, pois, na definição da direção do curso, a tendência de se mostrar hegemônico [...]
como, então, convive democraticamente, num clima de respeito e liberdade de expressão, com as posturas e posicionamentos
divergentes sem comprometer o projeto de formação profissional na sua direção social? Como garantir a direção social do
curso sem incorrer no perigo do autoritarismo e da repressão que se concretiza no dogmatismo que leva a um fechamento
radical do currículo?.5
Aliada à questão hegemonia da direção social e pluralismo estâo as condições de trabalho para docentes e o
comprometimento das dimensões da formação profissional por intermédio do ensino, pesquisa e extensão. Isto repercute na
organização e implementação do projeto pedagógico dos cursos. Este projeto pedagógico tem como objetivo direcionar a
organização curricular apontando o perfil do profissional que se quer formar naquela unidade de ensino, as habilidades e
competências adquiridas durante o processo de ensino-aprendizagem, conteúdos e propostas pedagógicas deste processo.
Enfim, o projeto pedagógico do curso irá refletir a concepção de formação profissional do assistente social proposta naquela
instituição de ensino superior.
Nesta perspectiva é fundamental repensar a prática pedagógica no interior das unidades de Ensino de Serviço Social
para que, de fato, propicie o debate crítico ao nível de ensino, da investigação e da extensão, envolvendo professores,
estudantes, supervisores e profissionais. Concretamente, é preciso repensar o encaminhamento das aulas, das tarefas
acadêmicas, do estágio e do desenvolvimento do processo da investigação e da extensão buscando a criticidade em termos de
desvendamento da realidade enquanto fundamento da opção profissional.6
Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, instituiu-se a necessidade de elaboração e
apresentação do projeto pedagógico das instituições de ensino, apontando as ações acadêmico-administrativas de cunho
político e pedagógico. O projeto pedagógico oportuniza discussões sobre a política educacional, sobre o projeto de formação
profissional da universidade, sobre as dimensões e possibilidades do processo ensino-aprendizagem no contexto do curso de
graduação.
Assim, por meio do projeto pedagógico poder-se-á criar canais de interlocução entre os sujeitos envolvidos no
processo de formação profissional na graduação de forma que todos - direção de curso, corpo docente, corpo discente,
técnicos-administrativos e categoria em geral representada pelos profissionais que recebem estagiários – reflitam, discutam e
se apropriem de conhecimentos relativos ao processo ensino-aprendizagem e compartilhem as responsabilidades na
construção de propostas condizentes com as deliberações e expectativas da categoria profissional.
Desta forma, o projeto pedagógico traz as possibilidades de promover reflexões acerca das propostas pedagógicas,
das etapas que envolvem o processo de formação profissional, como também contribui para discussão sobre os objetivos que
circundam estas propostas e qual o perfil de profissional que os sujeitos pretendem formar. Circunscreve-se neste âmbito as
perspectivas de preparar profissionais autônomos, críticos, criativos, propositivos e comprometidos com o processo de
formação e com o próprio projeto profissional.
No bojo deste movimento, apreende-se que o projeto pedagógico como instrumento de registro, constituído por
diretrizes construídas coletivamente, dinâmico e passível de revisões e mudanças conforme as novas demandas apresentadas
mediante as transformações societárias e seus impactos no contexto do Serviço Social e, especificamente, no exercício
profissional do assistente social. Neste sentido SILVA (2000:. 30) afirma

A necessidade dos cursos de graduação contarem com projetos pedagógicos coerentes, explícitos e assumidos por
professores e alunos, estamos nos opondo à idéia do mero formalismo ou exigência burocrática que, em alguns momentos,
vêm das Comissões Verificadoras de autorização e reconhecimento de Cursos, e defendendo a idéia de um projeto que seja
referência para a avaliação que tais comissões realizam, um projeto que foi elaborado para ser vivido e não para expor diante
das exigências formais.

5
Ibid. p. 27
6
Ibid. p. 37

466
Esta dimensão de construção do projeto pedagógico indica a importância de valorização do corpo docente e sua
sensibilização para a participação nas discussões acerca do projeto de formação referendado pela categoria profissional, e sua
articulação com a proposta de formação profissional do curso de Serviço Social daquela IES.
Tais atitudes contribuem diretamente para a criação de espaços de debates, revisões e reconstruções do projeto
pedagógico. Isto colaborará para o estabelecimento de uma rotina de reflexões e avaliações acerca da proposta de formação
profissional na graduação, bem como para o amadurecimento decorrente da relação teórico-prática vivenciada no cotidiano
da sala de aula e nos espaços de discussão e planejamento da proposta de formação e da própria educação. Neste contexto,
SILVA (2000:. 38) afirma que

Um curso de graduação é produto de um fazer coletivo. Sua existência e seu funcionamento, a maneira como ele se
apresenta hoje e no futuro, relaciona-se às ações daqueles sujeitos que o constituem, da sua competência, da sua práxis.
Como já referimos, enquanto projeto, não toma forma definitiva, acabada; algo que jamais é: ele se torna. É projeto político
porque estabelece e dá sentido ao compromisso com a formação do cidadão e da pessoa humana para um tipo de sociedade;
porque revela a intencionalidade da formação e os compromissos deste profissional com um tipo de sociedade. [...] É
pedagógico porque define as ações educativas e as características necessárias ao cumprimento dos propósitos e
intencionalidades do curso, tendo a ver, portanto, com a organização do curso como um todo, com a organização do trabalho
pedagógico na sua globalidade.

Saliente-se então que a elaboração do projeto pedagógico constitui-se de discussões e proposições acerca da
realidade social nacional, regional e local, a realidade de mercado de trabalho, o projeto de formação profissional, a proposta
de implantação em determinada IES, a proposta de educação daquela instituição de ensino superior e a vivência e o
conhecimento dos sujeitos envolvidos. De posse destas informações e análises procede-se ao planejamento e construção do
projeto pedagógico do curso.
O projeto pedagógico constitui-se de propostas de ações, diretrizes e estratégias no âmbito da formação profissional
do curso de graduação. Traduz a intencionalidade de formação dos sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem por
meio da justificativa, objetivos, diretrizes e fundamentos metodológicos do projeto pedagógico, indicação dos núcleos
temáticos, conteúdos e currículo, ementário das disciplinas, conceituação e definição da proposta de avaliação do processo
ensino-aprendizagem, normas e diretrizes para estágio e para o trabalho de conclusão de curso e, ainda, apresenta os demais
componentes inovadores de ensino utilizado em cada IES.
Desta forma o projeto pedagógico torna-se um projeto coletivo daqueles sujeitos envolvidos na sua construção e
sua concretização se dá por meio da participação e debates de todos em torno de um mesmo objeto: o projeto de formação
profissional. Assim, a implementação do projeto pedagógico se estabelece mediante a adesão e compromisso daqueles que
contribuíram diretamente para esta construção pois traduz a própria identidade destes sujeitos: corpo docente, corpo discente,
supervisores de campo e categoria em geral.
O projeto pedagógico carrega uma concepção de formação profissional derivada de uma prática coletiva
estabelecida por meio de consenso entre os sujeitos, possibilitando uma concepção hegemônica do processo de formação
naquele curso. Neste sentido, poder-se-á afirmar que este projeto está fundado numa concepção de educação, de universidade
e de formação profissional conforme as reflexões e discussões coletivas. Estabelece propostas e diretrizes para o cotidiano da
sala de aula e para as atividades que envolvem a formação como estágios, trabalho de conclusão de curso, atividades
complementares entre outros. Portanto, o projeto pedagógico expõe a visão de mundo, a visão de homem e a intencionalidade
destes sujeitos coletivos em contribuir para a formação não só acadêmica (preparação para o mercado de trabalho), mas
contribuir também para a formação do homem cidadão, formação da pessoa humana. Na mesma direção Silva (2000:. 50)
ressalta que

Ao contrário do que às vezes se imagina, não se espera da universidade que ela forme especialistas capazes de
responder a exigências bem específicas e limitadas do mercado de trabalho. Pelo contrário, a sociedade atual está a exigir a
formação de indivíduos que se assumam, ao mesmo tempo, como cidadão e como profissionais capazes de pensar a realidade
existente e as respectivas áreas de conhecimento e de ação. Esses indivíduos certamente terão melhores condições de
enfrentar crítica e responsavelmente a sociedade na qual vivem e atuam como cidadãos e profissionais, bem como o mundo
do trabalho.

Para tanto, faz-se necessário que o projeto pedagógico possibilite a elaboração de uma proposta de formação
pautada na idéia de unidade do conhecimento, visão de totalidade do processo ensino-aprendizagem e ações coerentes do
corpo docente articuladas às intenções deste projeto.
É mister que se fortaleça o diálogo, debates sobre a proposta de formação, respeitando as diversidades e tornando
contínua sua avaliação e acompanhamento. Pressupõe-se também o compromisso dos gestores da IES no sentido de
estabelecer claros princípios e regras para as políticas e atividades acadêmicas. Tais questões ratificam a idéia de que o
projeto pedagógico deve ser “produto” de uma prática coletiva que contribua diretamente para a criação de um sentimento de
identidade e compromisso com a proposta de formação profissional na graduação.

467
Observa-se que a discussão sobre a formação profissional desde 1985 até a atualidade é permeada pela perspectiva
de análise das propostas de atuação profissional na realidade social, tendo como eixo articulador a organização desta
formação através do ensino, investigação e a extensão, com embasamento teórico crítico, consistente e articulado ao
momento histórico vivido.
Assim, é indispensável na formação profissional do assistente social uma sólida base teórico-metodológica para que
o profissional possa responder às exigências do exercício do Serviço Social, efetivando, reconstruindo e recriando a prática
profissional dentro das condições objetivas de trabalho que colocam para a profissão. Assim é que o processo de formação,
através do ensino, da pesquisa e da extensão precisa instrumentalizar o profissional para o exercício cotidiano da profissão.7
Esta base teórico-metodológica sólida é conseqüência do avanço da profissão no aspecto da produção de
conhecimentos. Tem-se produzido muito, possibilitando à categoria uma reflexão contínua sobre as questões teórico-
metodológicas, ético-políticas e técnico-operacionais. Toda esta produção tem se pautado na busca pela hegemonia de um
pensamento social que dê direção à formação do assistente social.
Com base neste raciocínio constata-se que a profissão é resultado da construção e da vivência dos sujeitos, seus
modos de atuar, de refletir e produzir conhecimentos. Para Iamamoto (1998, p. 58):

[...]a realidade social e cultural provoca e questiona os assistentes sociais na formulação de respostas, seja no
âmbito do exercício profissional, seja das elaborações intelectuais acumuladas ao longo da história do Serviço Social, os
saberes que construiu, as sistematizações da prática que reuniu ao longo do tempo.

Com certeza a realidade social brasileira, caracterizada pelo acirramento das desigualdades sociais, marcada por
contrastes e diferenças entre as pessoas determina a preocupação dos assistentes sociais com a visão macro. E o Serviço
Social, como profissão de intervenção nesta realidade, conseqüentemente, necessita que seus profissionais tenham “domínio”
do conhecimento sobre tais aspectos.
Desta forma, o processo de trabalho do Assistente Social exige de profissionais, docentes e discentes a apreensão
das múltiplas facetas da questão social para decifrá-las, distingui-las e habilidades e competências para participar, junto com
os diversos segmentos, de seu enfrentamento. Para Iamamoto (1998, p. 59) “decifrar a questão social é também demonstrar as
particulares formas de luta, de resistência material e simbólica acionados pelos indivíduos sociais à questão social”.
Tal proposição ressalta a perspectiva de um novo olhar para os projetos pedagógicos em Serviço Social, bem como
a necessidade de assumir o desafio do próprio preparo e capacitação dos bacharéis em Serviço Social para a atuação docente.

O processo de Formação profissional em Serviço Social


A proposta de ampliação das perspectivas da formação profissional remete à uma revisão e atualização sobre as
teorias sociais, necessidade de pesquisa e capacitação permanentes, leituras atualizadas e acompanhamento das “constantes
transformações e movimentos” no âmbito do conhecimento e da ação e disponibilidade interna para conhecer diferentes
referenciais teóricos, apreendê-los e relacioná-los de acordo com as matrizes de pensamento que eles representam. Além
disso, ter a condição de analisar todo este processo não só como representante do processo ensino-aprendizagem mas também
como sujeito inserido em um contexto social complexo e contraditório, porém aberto à intervenção e contribuição daqueles
que se propõem a agir para uma nova sociedade. O projeto ético-político da profissão segundo Iamamoto (1998, p. 180):

[...] exige que a formação profissional possibilite aos assistentes sociais compreender criticamente as tendências do
atual estágio da expansão capitalista e suas repercussões na alteração das funções tradicionalmente atribuídas à profissão e no
tipo de capacitação requerida pela ‘modernização’ da produção e pelas novas formas de gestão da força de trabalho, que dê
conta dos processos que estão produzindo alterações nas condições de vida e de trabalho da população que é alvo dos
serviços profissionais, assim como das novas demandas dos empregadores[...].

Nesse sentido é que a reflexão sobre a atual produção de conhecimentos em Serviço Social e a conseqüente direção
social dada à formação profissional do assistente social ganha respaldo. O processo ensino-aprendizagem de hoje referencia o
perfil de profissional que será “entregue” à sociedade no futuro. Se este processo não possibilita a convivência do novo, do
diferente do contraditório e do antagônico, corre-se o risco do “aprisionamento do saber” a um único plano. De acordo com
SILVA(1998, p.161):

Considerando o próprio processo de construção do conhecimento profissional, somos levados a ressaltar a


impossibilidade de uma ‘ortodoxia’ no campo do saber profissional. Não existindo na profissão uma autoridade superior
(como tem a Igreja na figura do Papa), que diga a última palavra quanto ao que é ‘certo’ ou ‘errado’ – tanto no plano do
saber, como no plano das práticas profissionais – o reconhecimento da legitimidade desses saberes e práticas se dá no terreno
das intersubjetividades. O que é ou deixa de ser, válido no plano do saber e da prática profissional, aquilo que

7
Ibid. p. 40

468
‘objetivamente’ constitui o Serviço Social, emerge no processo de luta interna à própria profissão e nas relações que esta
mantém com a sociedade mais ampla.

Segundo Batista (2001, p. 135) “Pensar formação se torna fecundo quando desvelamos sentidos e significados que
são construídos em tempos e espaços diferentes, complexos e culturalmente situados.” A conceituação dada pela autora vai
ao encontro do percurso proposto neste estudo, que é entender a formação como um processo em construção na perspectiva
do conhecimento do novo. Levanta-se neste processo a influência de diversas dimensões da vida humana na correlação com a
formação profissional.
Batista (2001, p. 135) diz ainda que:

[a] formação traz em si uma intencionalidade que opera tanto nas dimensões subjetivas (caráter, mentalidade)
como nas dimensões intersubjetivas, aí incluídos os desdobramento quanto ao trajeto de constituição no mundo do trabalho
(conhecimento profissional). Portanto, não se trata de algo relativo a apenas uma etapa ou fase do desenvolvimento humano,
mas sim de algo que percorre, atravessa e constitui a história dos homens como seres sociais, políticos e culturais.

Neste sentido, este estudo tem o propósito de analisar a formação discente em Serviço Social na Universidade de
Uberaba, refletindo sobre aspectos como a história, influências e experiência de vida dos envolvidos e sua relação com o
processo desta formação, como componentes indispensáveis neste percurso.8 Para Batista (2001, p. 136)

“Formação implica, ainda, reconhecimento das trajetórias próprias dos homens e mulheres, bem como exige a
contextualização histórica destas trajetórias, assumindo a provisoriedade das propostas de formação de determinada
sociedade.”

Portanto, aqueles que estão envolvidos no processo ensino-aprendizagem balizados pelo compromisso com a
formação profissional estão imbuídos do desafio de trabalhar com questões inacabadas, contornadas por ambigüidades e
contradições, vivendo as incertezas do conhecimento e a reflexão contínua sobre a verdade absoluta da ciência. Tudo isso tem
como pano de fundo a visão do educador, do coordenador de curso, dos organismos, entidades e intelectuais que dão direção
social aos projetos de educação em Serviço Social e que direcionam a formação profissional. Neste contexto, Batista (2001,
p. 136):

Situa o desafio de que formação é algo inacabado, lacunar, mas profundamente comprometido com uma maneira de
olhar, explicar e intervir no mundo — vir a ser não é tributário da neutralidade, pelo contrário, revela uma posição, uma
direção, enfim o lugar de onde se fala.

Nesta mesma linha de raciocínio, Iamamoto (1998, p. 169) afirma que “pensar a formação profissional no presente
é, ao mesmo tempo, fazer um balanço do debate recente do Serviço Social, indicando temas a serem desenvolvidos, pesquisas
a serem estimuladas para decifrar as novas demandas que se apresentam ao Serviço Social”.
Desta forma questões como ética, conhecimento, ciência, valores, estética, compromisso profissional, verdades
absolutas e relativas, intenções próprias, análise e reflexão compõem o arcabouço que articula a formação profissional num
dado momento e contexto social de forma a mantê-la no percurso ou transformá-la de acordo com as demandas sociais.
Batista (2001, p. 137) enfatiza ainda que o “entendimento de formação como processo plural e singular, social e pessoal,
permanente e vivido em momentos, humanamente presidido pelos valores, crenças e saberes, humanamente transformador
dos conhecimentos.” É por este caminho que se buscará a compreensão da categoria - formação profissional no contexto do
Serviço Social articulada à questão da identidade profissional.

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8
Considerar os atores envolvidos nas relações que tecem o palco do ensino da prática é da maior importância, porquanto esses atores são sujeitos que
estabelecem limites e possibilidades à qualidade do processo formativo (IAMAMOTO, 1995, p. 205).

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Educação cidadã: o reconhecimento de identidades coletivas através da educação

Ana Lúcia Bentes Dias


Universidade Federal do Pará
bentesana@ig.com.br

Cláudia do Socorro Gomes da Silva


Universidade Federal do Pará
claudias@ufpa.br

Carmen Lúcia Furtado dos Santos


Universidade Federal do Pará
claudiamazonic@hotmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados desenvolvimentos no projeto “Educação cidadã: construindo uma reforma agrária
sustentável”, que foi implementado pelo Campus Universitário de Castanhal, da Universidade Federal do Pará (UFPA). O lócus da
intervenção foi o município de Viseu, no nordeste do Pará, junto aos assentamentos (Âmago de Pau, Igarapé do Ubi, Cristal, 14 Voltas e
Cupim de Ferro) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, com objetivo de estimular a organização e permanência
de ações educativas no e do campo, na tentativa de contribuir para o desenvolvimento sustentável. Pautado no paradigma da educação
popular de Paulo Freire (1921 – 1997), a abordagem do currículo se deu em torno da história de vida e identidades dos assentados; cultura e
valores coletivos; trabalho e relações sociais; cooperação e alfabetização de jovens e adultos e suas singularidades na reforma agrária. A
história de vida e as experiências dos assentados integraram de forma significativa os conteúdos pedagógicos com um olhar voltado às
necessidades da comunidade, estimulando assim, a participação dos discentes em diálogo aberto com os docentes e a comunidade local. A
história de vida nos permitiu dar voz a quem, durante muito tempo, não tinha ou tinha poucos canais de comunicação para expressar a sua
própria experiência humana. Neste sentido, o projeto representou a possibilidade de alfabetização e/ou escolarização, contemplando as
dimensões prática-teórica-prática na construção de um currículo integrado, envolvendo educação básica, profissional e sócio-política
articulada à afirmação de identidades e à auto-sustentabilidade responsável e solidária.

Embora o Brasil fosse um país de predominância agrária, a educação do campo ficou praticamente esquecida
durante muito tempo, em conseqüência temos grandes problemas quanto ao funcionamento da escola do campo pela falta de
elementos disponíveis para o trabalho pedagógico, falta de infra-estrutura e por fim ausência de uma formação inicial e
continuada adequada ao exercício docente no campo, currículos inadequados em relação a realidade, a própria distância das
escolas.

471
Esse panorama condicionou o fraco desempenho escolar da educação básica na zona rural que apresenta um grande
número de evasão; tendo como um dos fatores a distorção idade-série. Diante disso a população do campo reflete altos
índices de analfabetismo principalmente, em alguns estados brasileiros mais pobres, como é caso do Pará.
O Pará é o segundo estado brasileiro em extensão territorial com 1.247.689,511 Km², em termos comparativos é
equivalente a extensão de Portugal multiplicada por doze. É um dos mais ricos em recursos minerais (ferro, cobre, ouro,
manganês, entre outros) e possui também grande potenciacidade agroflorestal. Os projetos de mineração – metarlugia e
siderurgia – tiveram grande estímulo durante os governos militares (1964 – 1985), criaram-se órgãos específicos para o
desenvolvimento da região, como por exemplo a SUDAM (Superintendência para o desenvolvimento da Amazônia), o
BASA, (Banco da Amazônia) e também o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). No entanto,
alguns projetos criados (Carajás, Albrás - Alunorte, Serra do Navio, Tucuruí, etc), por um lado, provocam o desenvolvimento
econômico e a concentração de renda para poucos, e, por outro lado, provocaram significativos conflitos sociais e problemas
ecológicos na região.
O projeto Grande Carajás, por exemplo, que cobre uma áreas de 900 km², no sul do estado do Pará, com
administração da Companhia Vale do Rio Doce detém o direito de lavra, exploração e concessão da maior jazida de ferro do
mundo. Em visita técnica ao projeto observamos a exploração “organizada” e um núcleo habitacional que segue o modelo
norte-americano com escolas, agências bancárias, áreas de lazer e casas climatizadas com jardins, no entanto, o que se vê
(repara) no sopé da Serra de Carajás, na cidade chamada Parauapebas é a miséria, a pobreza e a violência, mais lucro para a
empresa e mais danos ambientais para a região deixada pela exploração dos minérios que lacra seus rastros pelos
desmatamentos, gigantes buracos, poluição dos rios e do ar, etc.
O Estado do Pará não se caracteriza apenas pelas suas riquezas naturais e pelos seus conflitos, mas também pela
diversidade de formas culturais, econômicas e sociais, existentes nos seus mais variados povos, como os indígenas, os
ribeirinhos, agricultores e seringueiros – as comunidades tradicionais que vivem nas matas, nas florestas e no campo, para
não dizer nos ambientes naturais, pois esses já não são tão naturais assim como eram outrora em decorrência dos múltiplos
processos de deteorização que têm passado nas últimas décadas.
No que se refere a parte conhecida como nordeste paraense é a área de colonização mais antiga do estado, onde a
ocupação planejada remontam historicamente a segunda metade do século XIX, em resposta às necessidades de
abastecimento da economia da borracha. As lavouras agrícolas exploradas por emigrantes, adivindos de outras regiões do
país, para a integração da Amazônia ao restante do país, sob o lema “integrar para não entregar”, desconheciam o habitat da
região, levaram a um desmatamento tão grande, que hoje o nordeste paraense é conhecido como a região mais afetada em
termos ambientais no Estado do Pará, mesmo assim, a região ainda detém a maior produção de grãos do Estado, ao lado da
maior densidade de trabalhadores pauperizados da Amazônia.
O acesso à educação, nas áreas de assentamentos1, continua sendo um desafio, seja pelo alto índice de
analfabetismo dos trabalhadores, seja pelas grandes distâncias (geográficas e estruturais) enfrentadas pelas pessoas que vivem
nos mesmos. Esta situação nos possibilita compreender as maneiras como a educação, ao invés de ser contribuidora para a
libertação e esperança e para a conquista dos direitos sociais, humanos, culturais, ao contrário, acentua o processo de
exclusão social: além de ser excludente em si mesma, as escolas excluem os homens e mulheres da participação social, das
oportunidades de emprego, das condições pessoais e familiares importantes. Entre as inúmeras situações de exclusão,
resultantes da ação de nosso sistema de ensino focalizamos o analfabetismo2, por considerá-lo um dos fenômenos mais
graves e dolorosos que aflige nosso país e, especialmente na regiões Norte e Nordeste com 10,8% e 19,9 respectivamente,
onde se apresentam o maior percentual de pessoas não alfabetizadas. A problemática da educação na zona rural tem,
portanto, o analfabetismo como sua face mais perversa, é inegavelmente um entrave para transformação da realidade
brasileira.
Nesse sentido, a Educação de Jovens e Adultos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária -
PRONERA, representa para os/as assentados a possibilidade de alfabetização e/ou escolarização, uma oportunidade livre, por
se tratar de uma proposta que já apresenta em seus pressupostos a base da “educação popular” como um vasto campo de
investigação e ação, compreendendo dimensão prática-teórica-prática para a construção de um currículo integrado,
envolvendo educação básica, profissional e sócio-política articulada à afirmação de identidades e a compreensão do
desenvolvimento sustentável e solidário, levando em conta aspectos da diversidade da comunidade e dos recursos
disponíveis.
Este trabalho apresenta os resultados do projeto do PRONERA desenvolvimento durante 02 anos em cinco
assentamentos no município de Viseu no nordeste do Pará, realizado pelo Campus Universitário de Castanhal junto aos
assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, FETAGRI e Fundação da Amparo e
Desenvolvimento da Pesquisa – FADESP. Em seu projeto “Educação cidadã: construindo uma reforma agrária sustentável”.
Ele teve como meta a capacitação pedagógica de educadores locais e a alfabetização de jovens e adultos. A abrangência do

1
Os assentamentos rurais são terras ocupadas pela população, com ações de intervenção e autorização legais efetuadas pelo poder público (Estado).
2
Conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada peloIBGE, em 2007, havia 14,1 milhões de analfabetos com 15 anos ou
mais de idade no país. “A taxa de analfabetismo brasileira tem variações significativas entre as grandes regiões do País. Em 2007, chegava a 19,9% no Nordeste,
enquanto não ultrapassava 5,4% no Sul. No Sudeste era de 5,7%, no Norte de 10,8% e no Centro-Oeste, de 8,1%. Houve diferença também, no ano passado,
entre a taxa apurada para os homens (10,2%) e para as mulheres (9,8%)” (grifo nosso). Cf.
http://www.agenciaestado.com.br/institucional/ultimas/2008/set/18/1533.htm.

472
projeto alcançou cinco assentamentos: Âmago de Pau, Igarapé do Ubi, Cristal, 14 Voltas e Cupim de Ferro, com objetivo
alfabetizar fortalecer a implementação de uma reforma agrária, estimulando a organização e permanência de ações educativas
no e do campo, contribuindo dessa forma para o auto-sustentabilidade ambiental, social e humana.
Pautado no paradigma da educação popular e de um currículo estruturado a partir da valorização das pessoas e dos
saberes locais, respeitando o conjunto de crenças, valores, símbolos, conhecimentos oriundos de sua formação pessoal, da sua
prática de trabalho, de suas vidas e suas identidades como cultura e valores coletivos; trabalho e relações sociais;
desenvolvimento sustentável; cooperação e a alfabetização de jovens e adultos e suas singularidades na reforma agrária.
A história de vida e as experiências dos assentados também integram os conteúdos pedagógicos com um olhar
sempre voltado às necessidades da comunidade, estimulando assim, a participação dos discentes em diálogo aberto com os
docentes e a comunidade local. A história dos alunos nos permitiu dar a palavra a quem, durante muito tempo, não tinha ou
tinha poucos canais de comunicação para expressar a sua própria experiência humana.
O calendário adotado foi baseado na Pedagogia da Alternância, que se caracteriza por alternar a formação do aluno
entre momentos no ambiente escolar e os momentos no ambiente familiar/comunidade. A proposta é desenvolver um
processo de ensino-aprendizagem contínuo em que o aluno percorre o trajeto comunidade – escola – comunidade. Em um
primeiro momento os alunos se voltam para observação, descrição e reflexão dos elementos da realidade e relaciona-os com
os conteúdos curriculares para em seguida fazê-lo de forma reflexiva e contextualizada, ou seja, na comunidade aplicar os
conhecimentos adquiridos como: relação meio ambiente e trabalho, saberes da comunidade e educação, etc. Em consonância
com o surgimento de novos conteúdos e novas questões para trabalhar no contexto escolar dos próprios sujeitos em questão,
os alunos, como afirma Freire (1980, p 43).

A partir das relações do homem com a realidade, resultante de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação,
recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominanda realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a
ela algo de que ele mesmo é fazedor.

A pedagogia da Alternância está sendo uma alternativa para a educação no campo, já que o ensino nesse contexto
não contempla as especificidades e as necessidades da população que vive no meio rural. Surge como proposta aos problemas
educacionais encontrados nas escolas do meio rural e como uma proposta específica para o campo, pois obedece a
necessidade dos alunos passarem períodos como o de plantação e colheita nos seus locais de trabalho com a família.
De maneira geral a Pedagogia da Alternância trabalha com a experiência concreta dos alunos, com a o
conhecimento empírico e a troca de conhecimento com atores do sistema tradicional de educação, e também, com membros
da família e comunidade, o que nos leva a crer em caminhos importantes à medida que compreende a educação como algo
que coloca a experiência dos sujeitos e que também busca uma relação mais completa entre educação e trabalho pois o aluno
vive durante um período o processo educacional e o processo de produção em sua comunidade. Sintetizando a carga horária
fica assim: tempo escola, quando ao aluno está na sala de aula e tempo comunidade, que oportuniza o desenvolvimento de
estudos na comunidade.
O PRONERA apontou mudanças significativas na vida dos educandos que participaram da alfabetização no que diz
respeito a participação social, autonomia, segurança pessoal e envolvimento nas discussões técnicas e políticas. A
participação como parceira desse programa de extensão traduz o compromisso social da Universidade Federal do Pará
(UFPA), Campus Universitário de Castanhal e se apresenta como uma alternativa para as comunidades do e no campo dos
cinco assentamentos do município de Viseu, local de muitos conflitos entre fazendeiros e pequenos agricultores na luta pela
terra, quando muitos deles foram obrigados a deixar suas terras para que fossem exploradas madeiras ou transformadas em
pasto para gado .
O Campus de Castanhal através de seu projeto buscou reafirmar o seu objetivo educativo de ajudar no
desenvolvimento mais pleno do ser humano, na sua humanização tendo como base do trabalho a “pedagogia do oprimido” de
Paulo Freire (1921 – 1997), entendo que são os oprimidos os sujeitos de sua educação, de sua própria libertação, da sua
própria cultura.
Em se tratando da realidade dos assentamenos, o projeto apresentou alguns aspectos que foram marcantes durante
os meses de sua execução. Muitos fatores atuaram de maneira intensa, complexa como a falta de infra-estrutura (energia
elétrica, local para a realização das aulas, falta de óculos, longa distância que tinham que percorrer para o local de estudo,
etc.).
Os alunos do projeto apresentavam idade variada de 25 à 65 anos na grande maioria pequenos agricultores que
nunca foram para a escola ou que passaram um tempo bem curto devido às necessidades apresentadas no período de
escolaridade, ou seja, o tempo da escola foi interrompido devido as dificuldades entre elas o calendário escolar, a distância
roça e escola, o currículo. Os que nunca foram a escola ler e escrever o seu próprio nome tem um significado especial, outros
já querem ir além do simples ato de ler e escrever demonstraram vontade de ter acesso ao mundo até então desconhecido, o
mundo letrado. Muitos alunos expressaram suas dificuldades, seus sonhos, suas histórias de vida durante o convívio da sala
de aula.
Apesar das dificuldades a maioria dos alunos apresentaram-se interessados nas aulas o que nós faz lembrar Brandão
quando diz que: “…em sala de aula não se experimenta um novo método, mas um novo sentimento de mundo, uma nova
esperança no homem, uma nova crença, também, no valor e no poder da educação...” Pela educação é possível criar

473
ferramentas que ajude o “…homem a começar pelo começo, por um jeito mais humano de ensinar-aprender a ler e escrever
(BRANDÃO, 2001, p.16).
Refletindo a fala do autor, podemos fazer uma breve comparação com trechos das narrativas dos alunos dos
assentamentos:
Para mim essa aula, além de aprender a ler e escrever serve de ocupação, quando chego aqui, logo consigo dormir,
antes eu ficava pensando na vida e não tinha sono agora me sinto melhor, só acho ruim a iluminação e o diacho da vista.

Trabalho na roça lavo roupa, Estou muito feliz, porque não sabia nem assinar meu nome. Escola é um lugar muito
divertido, sinto falta quando não venho.

Um dia bonito nessa minha vida foi quando pude escrever meu nome na carteira de identidade que antes só tinha o
dedão.

Aqui aprendi a ler e intendi que o povo daqui também pode aprender e não é só o da cidade.

A participação no projeto nos levou a acreditar que a situação dos jovens e adultos do campo é uma luta de todos
que acreditam na construção de uma sociedade com menos desigualdade social. O projeto é apenas uma das alternativa que
se apresenta para tentar diminuir o histórico processo de exclusão educacional do homem rural, tendo como referência
políticas públicas que defendam melhorias das condições de vida dos assentados e da comunidade local, uma saída para re
(invertar) a educação cidadã e reconhecer as identidades coletivas como potencializadoras de suas próprias lutas e processos
de emancipação.

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UQAM/REVUE/vol4/editorial.htm. (Consultado na Internet em 25 de maio de 2007).

La construcción de la ciudadania participativa por meio de la educación1

Emilio Lucio-Villegas
Universidade de Sevilha
elucio@us.es

Resumo: Presentar la experiencia realizada durante dos anos en la ciudad de Sevilla en relacion a la aplicacion de los Presupuestos
Participativos y las tareas educativas ligadas a los mismos en el campo de la educacion de personas adultas.

Sobre la ciudadanía y la democracia.


La condición de ser ciudadano – nunca ciudadana – comienza, como la conocemos en Occidente, con la Grecia
Clásica, en la Atenas de Pericles y continúa durante el Imperio Romano. La condición de ser ciudadano siempre ha estado

1
Es imposible entender este trabajo sin nombrar, al menos, a las siguientes personas: Ana García; Esther Aguilera; Louise Cowe; Andrea Castaño y Daniel
García.

474
asociada a la exclusión de otras personas que no eran ciudadanos – en el caso de la antigüedad clásica, los esclavos y las
mujeres principalmente. Esta es una de las enseñanzas que podemos extraer de una moderna lectura de la Historia de la
Decadencia y Caída del Imperio Romano de Gibbon: el Imperio creó una diversidad de situaciones de ciudadanía en la que
unas personas tenían una serie de derechos y otras estaban exentas en algún grado, o en su totalidad, de estos derechos, lo
cual no sólo creaba diferencias entre los que eran ciudadanos romanos y los que no lo eran, sino entre las diversas clases de
ciudadanos.
Heller y Thomas Isaac (2003) plantean que la ciudadanía – junto a un derecho – es una forma de relación. De esta
manera, los autores consideran la ciudadanía no sólo un derecho político, sino que es necesaria una equidad en las relaciones
en las que se enmarca la ciudadanía, porque el ejercicio de las mismas, igual que en el Imperio Romano, es subvertida por las
diferencias sociales. De esta forma, continúan, el pleno ejercicio de la ciudadanía y las nuevas relaciones sociales que ésta
lleva aparejada, recuperan para la arena política a colectivos y personas que estaban excluidos o marginalizados.
El trabajo de Edward Said (1990) sobre del Orientalismo puede ser una buena descripción para valorar el
mecanismo de exclusión que conduce a la pérdida de la ciudadanía y la situación en los márgenes que ello supone.
Al comienzo de Orientalismo dice Said: “El Orientalismo se fundamenta en la exterioridad, es decir, en el hecho de
que el Orientalista, poeta o erudito, hace hablar a Oriente, lo describe y ofrece abiertamente sus misterios a Occidente… Lo
que dice o escribe, en virtud de lo que está dicho o escrito, pretende indicar que el orientalismo está fuera de Oriente tanto
desde un punto de vista existencial como moral” (1990, p. 41).
Lo que Said plantea para el orientalismo, su propio proyecto de investigación, la forma de acercarse a la temática,
de considerar las realidades – y sobre todo las representaciones que construyen y obstruyen la visión de esas realidades –
plantea y demuestra que los discursos sobre los otros – como el que se construye o puede construir desde la educación – se
edifican desde realidades y significaciones diferentes. La propia cita que Said extrae de El dieciocho de Brumario de Luis
Bonaparte, de Carlos Marx, para encabezar su libro, no puede ser más clarificadora del esfuerzo que se pretende realizar: No
pueden representarse a sí mismos: deben ser representados.
Con independencia de cualquier otro planteamiento o distinción, lo esencial de Orientalismo es como consigue
explicar, de forma casi cruel, y en todo caso absolutamente implacable, la construcción del otro, el robo de la subjetividad de
las otras y los otros, como esencia para su destrucción y el mantenimiento del orden imperial. Dicho de otra forma,
Orientalismo es un buen ejemplo para poder valorar y ver como el discurso dominante ha construido unas determinadas
formas de ciudadanía que son excluyentes.
Raymond Williams, al igual que antes Antonio Gramsci, o que después Freire, planteaban que un aspecto
fundamental para la educación era el de las representaciones culturales: el dibujo, por así decir, que nos hacen de la realidad.
Esta realidad marcada y construida para pensar de una determinada manera, se encuentra en las construcciones simbólicas
que delimitan toda la realidad y las relaciones entre las mujeres y los hombres. Williams lo señalaba con claridad: “Creo que
el sistema de significados y valores que la sociedad capitalista ha generado tiene que ser derrotado en general y en los
detalles por una forma de trabajo educacional e intelectual sostenido. Este es el proceso cultural que he llamado ‘Larga
Revolución’ y cuando lo llamo ‘Larga Revolución’ quiero significar que es una genuina lucha que forma parte de la necesaria
batalla por la democracia y la victoria económica de la clase obrera organizada”(en McIlroy & Westwood, 1993, p. 308).
Como Hardt y Negri (2005) han señalado, uno de los elementos esenciales de la situación social actual, que ellos
denominan Imperio, tiene que ver con la explotación que envuelve toda la vida social y personal, toda la vida laboral y
afectiva de todas las mujeres y hombres. Una explotación que no es sólo física – como en el caso del esclavismo – que no es
sólo económica – como en la sociedades fordistas tradicionales – sino que es, sobre todo, alienadora de la capacidad de
creación que tienen las mujeres y hombres. Pero, de la misma forma que ocurre con el orientalismo, el Imperio nos crea, nos
dice como reproducirnos, y luego como morir – incluso en vida. Y, por supuesto, presenta una determinada visión de lo que
es y supone ser ciudadano: una especia de etiqueta sin derechos.
La creación de Oriente por Occidente lleva aparejada la creación de una identidad y una ideología mediante la cual
Oriente es conocido en Occidente. Oriente se convierte, de esa forma, en una creación, en una serie de representaciones de
Oriente que “a) llevan su impronta distintiva, b) ilustran su concepción de lo que Oriente puede ser o debe ser, c) rebaten
conscientemente las opiniones sobre Oriente, d) ofrecen al discurso orientalista lo que en ese momento parece que más
necesita y e) responden a ciertas exigencias culturales, profesionales, nacionales, políticas y económicas de la época” (Said,
1990, p. 323). Por tanto, estamos ante la ingente tarea de construcción del otro/a para – cuando menos – desvirtuar su
realidad.
Esta construcción es básicamente un proceso educativo que se fundamenta en una determinada relación de poder –
ya hemos señalado antes que la ciudadanía es, de alguna forma, una relación. Fejes y Nicoll (2008) han recogido una serie de
trabajos cuyo elemento común es la relación entre algunas de las ideas de Michel Foucault y las teorías – y sobre todo las
prácticas – del aprendizaje a lo largo de la vida. En la línea de lo estamos planteando, podemos señalar algunas cuestiones. La
primera tiene que ver con la afirmación de Rose “El nuevo ciudadano es requerido para tomar parte en un incesante trabajo
de entrenamiento y reentrenamiento, desarrollo y redesarrollo de herramientas, mejorando sus credenciales y preparándose
para una vida de incesante búsqueda de empleo: la vida se convierte en una constante capitalización del yo” (en Edwards,
2008, p. 29).
De esta forma, la educación no se convierte sólo en una mercancía, sino que el biopoder hace que la educación se
convierta en una mercantilización de la propia persona. El aprendizaje se individualiza, se convierte en un motivo de

475
competencia y no de cooperación, y se consigue construir la concepción de lo que la educación debe ser y no de los las
personas y las multitudes desearían que fuera.
Este mando imperial se construye y se mantiene – entre otras formas - a través de lo que Fejes y Nicoll (2008)
llaman la confesión. Tomando como ejemplo el modelo sueco, estos autores explican cómo se conforma la subjetividad
según este modelo de confesión: cualquier persona adulta que desee acceder a procesos de educación, debe reunirse con su
consejero educativo para discutir asuntos tales como: ¿qué tipo de educación? ¿en qué lugar? ¿con que organizador
educativo? ¿durante cuántas horas al día? De esta forma, a partir de este proceso de confesión, la subjetividad de la persona
es conformada, creada y recreada. Así, las formas de ciudadanía se encuentran sujetas a las presiones homogeneizadoras de
un sistema de ciudadanía que a veces no es coherente con las formas tradicionales de organización comunitaria (Avritzer,
2003).
Podemos apreciar como los niveles individuales y sociales se reproducen constantemente. El proceso de
construcción de las subjetividades por medio de la confesión no es sino una forma de expresar que uno no puede
representarse, sino que tiene que ser representado. “El cuarto dogma [del orientalismo] se refiere a que Oriente es, en el
fondo, una entidad que hay que temer (el peligro amarillo, las hordas de mongoles, los dominios morenos) o que hay que
controlar (por medio de la pacificación, de la investigación y el desarrollo y de la ocupación abierta siempre que sea posible)”
(Said, 1990, p. 354).
De esta forma, la ciudadanía y las formas de democracia participativa se convierten, por desconocidas – o
demasiado conocidas para algunos – en peligrosas ya que están, y se construyen – según el esquema de significados
hegemónico – sobre formas extrañas que no tienen relación con el ideal de democracia.
Por ello, para terminar este apartado, nos parece interesante resaltar la diferencia que Torres (2005), siguiendo a
McPherson, propone entre democracia como método: representación política, separación de poderes, etc.; y democracia como
contenido: participación política en los asuntos públicos, derechos para todos, etc. Lo sustantivo parece, en este caso, el
contenido de la democracia.

La Investigación Participativa como metodología.


Budd Hall entiende que es necesario recuperar el ethos participativo (2001). Esto significa que la participación se
convierte en elemento prioritario y definitorio. No puede existir Investigación Participativa (en adelante IP) sin participación.
Esto puede parecer redundante – efectivamente lo es – pero la experiencia nos demuestra que en muchas ocasiones – y bajo
el paraguas de cualquier denominación – se dice una cosa y se hace otra. Por ejemplo, el currículum para personas adultas de
1985, elaborado por la Junta de Andalucía en España indicaba que la metodología a utilizar debía ser la IP, pero ni se
formaba a los profesores, ni se flexilizaba el currículum – y ese era más flexible que los posteriores – ni se abrían los caminos
institucionales que permitieran a los profesores hacen un trabajo desde una óptica diferente. Tal es el caso también de algunas
prácticas participativas en las cuales la ejecución no es participada, sino que pasa a poder de los técnicos. Y la propia
participación es reglamentada, compartimentalizada a determinados momentos y no es, como sí pretende el ethos
participativo, una actuación hecha bajo otros parámetros, ideas y concepciones.
Podemos ligar la IP con el trabajo educativo en la comunidad, pero sin olvidar que, al menos desde Freinet, si no
antes, sabemos que las cosas de la escuela, de la comunidad, de la vida personal y colectiva están relacionadas y que no se
puede cerrar la puerta del aula y proponer el normal discurrir de los acontecimientos. Porque, como decía Lenin: la realidad
sale por la puerta y entra por la ventana.
Para situarnos, convendría hacer un pequeño repaso a las grandes definiciones y caracterizaciones de la IP que han
propuesto dos figuras bastante indiscutibles por su trayectoria: Orlando Fals Borda y Budd L. Hall, y también las conexiones
con la educación popular que realizaron personas como João Francisco de Souza.
Para Hall (1981, 2001) la Investigación Participativa se puede definir por una serie de características:
1.- El problema nace en la comunidad, que lo define, lo analiza y lo resuelve.
2.- El fin último de la investigación es la transformación radical de la realidad social y la mejora de la vida de las
personas involucradas. Los beneficiarios de la investigación son los mismos miembros de la comunidad.
3.-La Investigación Participativa exige la participación plena e integral de la comunidad durante todo el proceso de
investigación.
4.- La Investigación Participativa comprende toda una gama de grupos de personas que no tienen poder:
explotados, pobres, oprimidos, marginados, etc.
5.- El proceso de Investigación Participativa puede suscitar en quienes intervienen en él una mejor toma de
conciencia de sus propios recursos y movilizarlos en vista a un desarrollo endógeno.
6.- Se trata de un método de investigación más científico que la investigación tradicional, en el sentido de que la
participación de la comunidad facilita un análisis más preciso y autentico de la realidad social.
7.- El investigador es aquí un participante comprometido que aprende durante la investigación. Adopta una actitud
militante y no se refugia en la indiferencia.
Por otro lado, Fals Borda (1986) también plantea una serie de características para la IP. El habla de cuatro en
concreto:
La investigación es colectiva. Todos los procesos de investigación son realizados por el grupo de forma dialógica

476
Es un proceso de recuperación crítica de la historia
Valora, particularmente, el empleo de la cultura y los saberes populares
Busca producir y difundir nuevo conocimiento, desde el convencimiento que existe una forma de producción
alternativa al conocimiento científico tradicional.
Queremos destacar algunos elementos. El primero es que la investigación es colectiva, esto es: su método sólo
puede ser aquel que es dialógico y se fundamenta en la colaboración y cooperación entre las personas.
Otro elemento a destacar tiene que ver con la creación de conocimientos. En esa dirección Souza (2006) se
pregunta: ¿Qué conocimiento producir? ¿Para qué producirlo? Esta cuestión del conocimiento – olvidada a veces – es muy
importante ya que nos conecta, entre otras cosas, con la Educación Popular. Nuevamente Souza (2006) nos cuestiona sobre la
necesidad de que el conocimiento producido y las acciones emprendidas sirvan para cambiar las relaciones sociales en las
que vivimos y que no nos permiten construir determinados tipos de relaciones cooperativas frente a las dominantes
competitivas. Este planteamiento de Souza conecta, por ejemplo, con los trabajo de Raymond Williams y la importancia de la
batalla cultural que debe dar la escuela – y no sólo la escuela – para cambiar las relaciones sociales que encontramos, y el
papel que en esta batalla tiene la educación en general y la de personas adultas en particular.
Es en este último sentido que nos parecía entonces, y lo seguimos creyendo ahora, que las escuelas para personas
adultas y la misma educación para personas adultas tienen algo muy importante que decir en todo el proceso de la democracia
participativa y la ciudadanía.

El contexto de actuación y algunas prácticas concretas.


Las practicas que vamos a presentar derivan del trabajo realizado entre Noviembre de 2005 y Diciembre de 2007 en
la ciudad de Sevilla. Ellas fueron posibles en virtud de un acuerdo entre el Instituto Paulo Freire de España (en adelante
IPFE) y el Ayuntamiento de Sevilla, y en concreto con el área de Participación Ciudadana que era la responsable de la
implementación de los Presupuestos Participativos.
Lo primero que debemos señalar son las causas que llevan a dicho acuerdo. La idea central era que las personas
tenían una gran dificultad para comprender lo que ocurría en las asambleas donde se deliberaba y se tomaban las decisiones
relativas a la distribución que eran objeto de la decisión popular. Por tanto, el problema primero que se enfrentaba era un
problema de formación para participar. La dificultad de las personas para participar venía limitada por una cierta forma de
analfabetismo. En esa dirección, entendemos que las enseñanzas derivadas del modelo de Kerala (Heller & Thomas Isaac,
2003; Thomas Isaac & Franke, 2005) son muy estimulantes.
El programa de formación que intentamos construir estaba dirigido a personas adultas. Es importante destacar aquí
que durante mucho tiempo los Centro de Educación de personas adultas han sido un referente fundamental en los territorios
en la ciudad ya que ejercían no sólo un trabajo educativo dentro de los centros y escuelas, sino un trabajo de dinamización
cultural y comunitaria en los barrios. Era esa vertiente la importante para trabajar en el terreno de la democracia y la
ciudadanía.
En fin, debemos señalar que la ciudad de Sevilla es la cuarta ciudad del estado español en número de habitantes,
capital de la Comunidad Autónoma de Andalucía. Sólo por aportar un dato relacionado con la educación, con informaciones
del propio Ayuntamiento de la ciudad podemos afirmar que el porcentaje de analfabetismo – absoluto y funcional –
sobrepasa el 50% de la población. Como es evidente, esto crea una situación muy complicada en el momento de implementar
cualquier propuesta democrática. Aun más, teniendo en cuenta que, como ha señalado Sousa Santos (2003) para el caso de
Porto Alegre, parece existir un proceso de complejización de las reglas de participación al mismo tiempo que la democracia
directa se profundiza.
Dentro de este contexto que hemos definido vamos a presentar cuatro prácticas concretas: la primera está en
relación con la reivindicación organizada de un grupo de mujeres en una escuela de educación de adultos; la segunda con
prácticas contra- hegemónicas que nos sitúan en la contradicción de estar ‘en y contra el estado’; por último vamos a
presentar las propuestas de formación llevadas a cabo dentro del ámbito formal de las escuelas de adultos y del no formal de
los Movimientos Sociales, que derivan en la elaboración de materiales didácticos.

El ascensor del Centro de educación de personas adultas ‘Polígono Norte’.


En este primer ejemplo podemos ver la estructura organizativa de un grupo de mujeres que reivindicaban un
ascensor para poder ir a clase. Es importante una aclaración. Muchas de las escuelas para personas adultas se encuentran
situadas en centros escolares para los niños y jóvenes y comparten las instalaciones con ellos. No necesariamente comparten
las peores instalaciones, aunque en ocasiones el proceso de compartir es bastante complicado. Por otro lado, en España
existen aún importantes lagunas a la hora de adecuar los espacios y edificios a personas con algún tipo de discapacidad
motora. Y, como final, las personas mayores tienen – como es lógico – unos problemas de movilidad de los niños y jóvenes
no suelen tener. El Centro del que hablamos es un centro compartido, donde gran parte de las salas de clase que utilizan las
personas adultas se encuentran en el primer y segundo piso.
Por otro lado, el principio de trabajo con este grupo fue bastante problemático. Durante los primeros encuentros se
establecieron una serie de limitaciones en el trabajo que derivaban de la interpretación de que el objetivo de la trabajadora del

477
IPFE era sólo introducir al grupo en la dinámica de los Presupuestos Participativos. Ante esta situación, sus palabras textuales
fueron: “eso no va con nosotras, bastante tenemos con la Asociación y los problemas del barrio.” Tras aclararles la función y
considerar sus preocupaciones, hubo que dedicar varias sesiones a reconocer cuáles eran todos aquellos problemas que las
afectaban como colectivo y determinar así las soluciones oportunas.
Uno de los principales obstáculos se manifestaba en la escasa participación que percibían entre las personas y las
dificultades que tenían para que se involucrasen en las actividades del centro. Se comenzó a analizar colectivamente cuáles
podían ser las causas de esa falta de implicación llegando a algunas evidencias: la acomodación de la gente, las excesivas
facilidades que ofrece la directiva y la falta de lectura de los paneles informativos.
Pero el foco de gran parte de la actividad de este grupo de mujeres se había forjado en los años de lucha por un
ascensor en el centro. Este fue, desde ese momento, el eje de la actividad y del trabajo del grupo de mujeres acompañado por
la trabajadora del IPFE.
Vamos a analizar el proceso centrándonos en los siete pasos que hemos definido con anterioridad al hablar de la IP.
1.- El problema nace en la comunidad, que lo define, lo analiza y lo resuelve. En este caso el problema, la
necesidad de un ascensor, es definido por las mujeres comprometidas en el proyecto. Ellas reflexionan sobre su realidad más
cercana y descubren que una de las más importantes dificultades que tienen las personas para asistir al centro, tiene que ver
con la dificultad para moverse dentro de él. De alguna forma, las mujeres sustituyen un modelo individual de deficiencia, por
un modelo social (Oliver, 1990).
2.- El fin último de la investigación es la transformación radical de la realidad social y la mejora de la vida de las
personas involucradas. Los beneficiarios de la investigación son los mismos miembros de la comunidad. El ascensor
permitirá a las personas venir a la escuela. Se trata, entonces, de un beneficio general para la comunidad, constituido, en este
caso, por las personas que forman parte, o quieren formar parte, del Centro de Educación de Personas Adultas.
3.-La Investigación Participativa exige la participación plena e integral de la comunidad durante todo el proceso de
investigación. En este caso, implicó el compromiso y la participación de las personas desde la construcción social de las
necesidades hasta la presentación de la propuesta a las asambleas de barrios y distritos.
4.- La Investigación Participativa comprende toda una gama de grupos de personas que no tienen poder:
explotados, pobres, oprimidos, marginados, etc. Polígono Norte es un barrio del extrarradio de la ciudad. Es un medio
socioculturalmente deprivado con altos índices de paro, analfabetismo, etc. Tiene, en algunas de sus zonas, una alta presencia
de inmigrantes. A todo ello, hay que sumar que las personas más comprometidas en este proceso eran mujeres, por lo general
amas de casa.
5.- El proceso de Investigación Participativa puede suscitar en quienes intervienen en él una mejor toma de
conciencia de sus propios recursos y movilizarlos en vista a un desarrollo endógeno. En el proceso de preparación y
presentación de la propuesta, las mujeres descubrieron sus posibilidades de hablar en público, de explicar a otras personas sus
sueños, realidades y deseos. En general, se hicieron más conscientes de sus recursos personales y colectivos.
6.- Se trata de un método de investigación más científico que la investigación tradicional, en el sentido de que la
participación de la comunidad facilita un análisis más preciso y autentico de la realidad social. De alguna forma, lo que
hicieron las mujeres fue un proceso de codificación y descodificación de la realidad en orden a conseguir una mejor visión de
la misma, y de los medios y recursos – entre ellos los municipales – que las ayudaran a sus logros. Su proceso investigador
consiguió alcanzar lo que Crowther (2006) llama ‘conocimiento realmente útil’.
7.- El investigador es aquí un participante comprometido que aprende durante la investigación. Adopta una actitud
militante y no se refugia en la indiferencia. El papel y el trabajo de la investigadora externa son fundamentales en este caso.
Ella adquirió un fuerte compromiso con el grupo y siempre estuvo en todas sus acciones. El elemento indispensable para
comprender esto es que ella siempre partió de la situación de vida real de las personas.
Finalmente deseamos destacar que esta propuesta fuera votada en las asambleas - ha sido la más votada en todo el
distrito. No obstante, la situación actual es bastante frustrante ya que: i) los técnicos municipales sólo han encontrado
dificultades a la hora de llevar a cabo el estudio técnico; y ii) el Ayuntamiento, tras las últimas elecciones, decidió no renovar
el Convenio con el IPFE, lo que ha supuesto, en la práctica, que la trabajadora que acompañaba el proceso de estas mujeres
no haya podido seguir con esa labor.

Los vecinos de San Bernardo en lucha por una casa digna.


Sevilla, como ya hemos indicado, es la cuarta ciudad del país por número de habitantes, y la mayor del Sur.
También es capital de una de las Comunidades Autónomas más pobres, como todo el Sur, que podemos considerar como una
zona semiperiférica. Comenzando con la Exposición Universal de 1992, Sevilla ha ido sufriendo un proceso de especulación
urbanística muy profundo que ha afectado a los barrios más tradicionales e históricos de la ciudad: el norte del Casco
Antiguo; Triana o San Bernardo. En este proceso de especulación urbanística es donde se contextualiza nuestro trabajo con
algunos vecinos del barrio de san Bernardo, en una práctica contrahegemónica y, en ocasiones, frente al propio
Ayuntamiento.
San Bernardo es un distrito popular en Sevilla, que se remonta a la Sevilla árabe de los siglos X y XI. Desde
entonces la extensión de este distrito, como el resto de los suburbios de Sevilla, fue poblada principalmente por los
trabajadores de Andalucía occidental que emigraban del campo, huyendo del desempleo estacional y del hambre endémica, y

478
atraída por la demanda de trabajo para la industria y la construcción. Por lo tanto es un distrito poblado históricamente por la
clase obrera que vivió cerca de su trabajo en las industrias metalúrgicas, de gran tradición en la ciudad.
La mayoría de la población vivía en régimen de alquiler y pocas personas eran propietarias de viviendas. El tipo de
vivienda, muy característico de esa y otras zonas de la ciudad, era un tipo de casa llamado patios de vecinos. Estas casas
colectivas se presentaron como un intento para solucionar el problema de la carencia de viviendas en la ciudad (García
Bernal, 2005). Esta solución consistía en subdividir una casa en muchos cuartos y alquilar cada sitio de forma
independientemente. Los inquilinos por lo tanto, tenían solamente una habitación para toda la familia y compartían cocina,
baño, patio – un lugar importante por significar el espacio de reunión – y el acceso al agua. Este tipo de vivienda se ha
mantenido hasta la actualidad, marcando una manera distintiva de la vida y de la identidad de las personas.
Con el crecimiento de la ciudad hacia el este, este suburbio, en un área muy cercana al centro de Sevilla, se
convirtió en lugar apetecible como residencia de la burguesía. El proceso del gentrificación comenzó alrededor de la época de
la Exposición Universal celebrada en 1992. Los intereses desarrollados durante los años ochenta y los años noventa en el
distrito han destruido casi totalmente la composición social del área y derivando del envejecimiento de la población y de los
edificios, los desahucios son factibles y baratos, con declaraciones sucesivas de edificios en ruina.
El trabajo de la revitalización que algunos vecinos comenzaron a desarrollar en el distrito dio lugar a la formación
de un grupo, llamado Asamblea de los vecinos San Bernardo 52. Es este grupo el responsable de la ocupación de un edificio
de viviendas sociales construido por el Ayuntamiento y que se encontraba desocupado en el momento concreto de la
ocupación. Es con ese grupo con el cual el IPFE ha trabajado.
El trabajo del IPFE ha tratado de conectar elementos de reflexión – para ayudar a las personas a pensar que
significa ser ciudadano – el acompañamiento de las prácticas del grupo, y la ayuda – por medio de las herramientas
necesarias – para que el grupo pudiera expresar su voz. Esto último ha quedado muy conectado con la llamada alfabetización
gris. Por tanto, el trabajo desarrollado ha sido, por un lado, apoyar las tareas diarias del grupo en San Bernardo. Esto ha
implicado, en ocasiones, ayuda para escribir cartas al ayuntamiento, escribir a los periódicos o redactar los acuerdos tomados
por el grupo. No obstante, el trabajo más interesante y estimulante llevado a cabo ha sido el comienzo de la recuperación oral
de la historia del barrio.
Creemos que la recuperación de su historia les permitirá expresar su palabra y poder situarse en el contexto de su
propio proceso histórico. Todo el proceso se está realizando por medio de entrevistas De esta forma, esperamos que los
propios vecinos – que ya lo vienen haciendo – puedan ir construyendo los elementos históricos de resistencia frente al
proceso de gentrificación. Este proceso está teniendo un impacto cultural – no sólo urbano – en la vida cotidiana de las
personas. Veamos un ejemplo para terminar:
El cambio de moradores del barrio ha significado la pérdida de la cultura popular y de la identidad de clase que el
barrio tenía, y que estaba muy delimitada por la propia estructura urbana - patios de vecinos – que eran, de alguna forma,
potenciadores de la comunicación y la interacción social. En esta dirección, es muy habitual que en las noches de verano los
vecinos y las vecinas saquen sillas a la calle, alguna cerveza, quizás vino y algo para comer y pasen dos o tres horas
compartiendo. Un nuevo vecino – evidentemente alejado de las tradiciones de la clase obrera en los barrios populares de
ciudad – denunció – en los tribunales – esta práctica como anticiudadana y antisalubre. Por tanto, los vecinos se encuentran
ahora frente al reto de mantener sus costumbres tradicionales – que han demostrado ser muy útiles cuando no se tiene aire
acondicionado para combatir el tórrido calor del verano en Sevilla.

Los materiales de trabajo y la escuela Ciudadana y Participativa.


Los trabajos específicos de formación se han llevado en dos grandes direcciones. Durante el primer año de duración
del Convenio, uno de los objetivos fue la elaboración de un material que permitiera trabajar la participación y la ciudadanía
ligada a las tareas cotidianas de las clases de educación para personas adultas y profundizara, al mismo tiempo que en la
democracia, en el dominio de las herramientas para vivir en la sociedad: lectura, escritura, cálculo y habilidades
comunicativas. El producto de todo ello fue un material titulado Educando en Ciudadanía desde, por y para la participación.
Este material está disponible en www.institutpaulofreire.org en el apartado de publicaciones y fue registrado libre de
derechos para que pudiera ser utilizado libremente por todas las personas interesadas. El material se organiza en función de
tres grandes apartados:
Mi entorno y yo. Se intenta, con este apartado, animar a las personas a reflexionar sobre sus necesidades. Las
necesidades son construcciones sociales que las personas van haciendo en el proceso de ser más conscientes de su propia
realidad. De hecho, podemos decir que la construcción de las necesidades permite a las personas descubrir cuáles son sus
derechos en relación a su entorno más cercano, constituido por su barrio.
Más que una palabra. Los sueños pueden ser alcanzados. Pueden ser cambiados por realidades a través de la
participación. De esa forma se puede romper el sentimiento de soledad e inseguridad y conocer los recursos que permiten y
facilitan poder cambiar la situación de nuestra realidad actual.
Presupuestos Participativos. Es muy importante presentar a las personas un camino para poder resolver sus
demandas en una forma colectiva. En este sentido los Presupuestos Participativos se presentan como una oportunidad y un
reto para participar.

479
Durante el segundo año ampliamos el ámbito, planteando un nuevo trabajo de formación ligado, de una forma más
profunda, a los Movimientos Sociales. La idea fundamental era extender la formación a un ámbito no formal y poder
aprovechar la potencia reivindicativa, y formativa, del movimiento asociativo de la ciudad. Esto es muy importante ya que
permite que los ciudadanos y ciudadanas pasen de una posición de beneficiarios a otra muy diferente de ciudadanos que
toman parte en las decisiones con sus derechos y sus responsabilidades (Gaventa, 2006). Además, siguiendo el esquema del
llamado modelo de Kerala (Thomas Isaac & Franke, 2005), la formación se convierte en un elemento estratégico
fundamental que debe potenciar y reforzar el tejido social.
Hemos diseñado una actividad de formación de 40 horas dirigida a personas que se encontraban en alguna
asociación o Movimiento Social, pero no eran dirigentes de la misma. El lugar para llevar a cabo la formación era también
especialmente significativo: los centros comunitarios que el Ayuntamiento tiene distribuidos a lo largo de toda la ciudad y
que se encuentran en casi todos los barrios. Es importante destacar que las últimas diez horas hacían relación a la gestión
administrativa de los proyectos, y que la decisión tomada fue que ese apartado fuera realizado por los propios técnicos del
ayuntamiento. El esquema de los cursos era el siguiente
Antes del principio: del sueño a la construcción participativa de necesidades. Nuevamente, lo que queríamos era
insistir en el proceso de construcción colectiva e las necesidades para romper definitivamente con el esquema tecnológico
que supone que las necesidades están presentes en una situación y, como los síntomas de una enfermedad, pueden ser
diagnosticadas.
Construyendo la ciudad desde la participación de las vecinas y los vecinos. Reflexionar sobre la construcción de la
ciudadanía y la democracia participativa. Este es un apartado claramente teórico Se trata de reflexionar sobre la construcción
de la democracia con personas que tienen ya una importante experiencia asociativa.
Los presupuestos participativos como oportunidad: Cómo hacer propuestas para mejorar la realidad. La destreza
que nos parece fundamental es convertir lo anterior en proyectos concretos que puedan ser presentados y discutidos.
¿Cuánto cuesta?: Cómo presentar las propuestas; Cómo pedir las subvenciones; Cómo administrar el dinero; Cómo
justificar las subvenciones. Este apartado es claramente administrativo y era impartida por los técnicos. No obstante,
entendemos que es fundamental, ya que supone la adquisición de unas herramientas prácticas que pueden permitir acceder a
gran cantidad de recursos.
Se han impartido doce cursos en un trimestre. En general los cursos siguieron el esquema previsto. Se realizó un
primer material provisional y en este momento se está elaborando un material similar al que hemos explicado anteriormente
con una diferencia significativa: el elemento central es la elaboración de un proyecto. Por otro lado, el material no va a
considerar su conexión con las herramientas de lecto escritura, ya que se dirige a un grupo de personas que podríamos
considerar letradas y con mayor experiencia asociativa.

Conclusiones.
Vamos a situar nuestras conclusiones en los siguientes aspectos: i) nuestra posición ‘en y contra el Estado’; ii) la
importancia de la formación - pero de una determinada formación, con unas metodologías también determinadas; iii) el papel
de los agentes sociales; iv) el futuro.
En y contra el estado.
La experiencia de San Bernardo nos sitúa en una contradicción muy importante. Hemos trabajado dentro de una
institución – el ayuntamiento de la ciudad – y hemos apoyado a grupos y colectivos que – en su camino hacia la ciudadanía –
se han enfrentado, en ocasiones frontalmente, al mismo ayuntamiento.
La definición de ‘en y contra el estado’ es planteada originalmente por el London Edinburgh Weekend Return
Group (Crowther y Martin, 2007) para señalar la posición contradictoria de los profesionales relacionados con los Servicios
de Salud, educativos, sociales, que trabajaban para un gobierno conservador – en Gran Bretaña – e intentaban realizar
prácticas progresistas que ampliaran el Bienestar Social de las personas.
En el caso de San Bernardo esta es claramente nuestra contradicción, que no obstante no era contradicción ya que
nuestra opción personal y política era acompañar a las personas y los colectivos en la construcción de su propia ciudadanía,
aunque ello nos enfrentase con el propio poder. Además, el caso de San Bernardo es un claro ejemplo de cómo la lucha por la
ciudadanía y la democracia va indisolublemente ligada a la lucha por una democracia redistributiva (Sousa Santos, 2003) y
una mayor justicia social.
La importancia de la formación.
La experiencia del estado Indio de Kerala ha sido un elemento de inspiración en nuestro trabajo. Resumidamente,
podemos decir que la experiencia de Kerala no puede entenderse sin los procesos de formación a ella asociados. En Kerala, la
formación es un elemento estratégico en la construcción de la democracia participativa, de la democracia como contenido
(Torres, 2005).
En nuestro caso concreto hemos efectuado propuestas de formación, pero dichas propuestas han estado
acompañadas de un cierto carácter. Veamos dos ejemplos. Primero, en cuanto a los materiales Educando en Ciudadanía
desde, por y para la participación. Estos parten de la experiencia acumulada en nuestro trabajo en las escuelas, buscan ligar el
trabajo cotidiano de lecto escritura con las propuestas participativas, no intentan derivar hacia una forma de democracia

480
participativa – en este caso el Presupuesto Participativo – y se proponen libres de derechos de autor para que puedan ser
usados por todas las personas en todos los contextos que consideren oportunos y esos materiales le sean útiles.
Con respecto a la Escuela Ciudadana y Participativa, la condición para participar en los cursos – no siempre
cumplida – era formar parte de alguna asociación, pero no ser dirigente de la misma. Con ello pretendíamos organizar
acciones que implicaran procesos de cambio en el seno de las propias organizaciones, procesos de sustitución de unas
personas por otras y una dinámica que extendiera la democracia al seno de estos Movimientos.
El papel de los agentes sociales.
La potenciación de la democracia y la participación supone que los agentes sociales no pueden ser directivos.
Hemos planteado un proceso de acompañamiento, donde el punto de partida estaba siempre en la situación de partida de los
diferentes colectivos. El caso del ascensor es clarificador de este tipo de propuesta.
La trabajadora del IPFE no propuso, simplemente acompaño a las personas en su camino por construir socialmente
sus propias necesidades. Primero, al intentar definir cuáles eran las dificultades que enfrentaban y luego, una vez definidas,
cuáles eran los caminos que permitían dar una respuesta a esas necesidades. De la misma manera, en San Bernardo el
trabajador de IPFE acompaño a los vecinos y vecinas en su recorrido reivindicativo, prestando su ayuda y su colaboración
cuando era preciso y situándose en un segundo plano siempre.
Entendemos que para construir una auténtica democracia participativa y unas relaciones de ciudadanía más plenas
es necesario que el protagonismo esté siempre en las personas y no en los agentes sociales que trabajan con ellas. De no ser
así, el esfuerzo está, en nuestra opinión, condenado al fracaso.
El futuro.
Definir el futuro de esta experiencia concreta es muy complicado. El IPFE ha seguido trabajando con algunos de
los colectivos y experiencias que hemos presentado aquí, si bien el cambio en el gobierno municipal producido a lo largo de
2007 ha provocado importantes modificaciones en la estructura de organización de los presupuestos participativos. En esa
dirección, y aunque es pronto para hacer algún juicio definitivo, creemos que – aunque se trata del mismo partido político -
los nuevos responsables del Presupuesto Participativo entienden que debe existir un mayor peso partidario que rompa con las
contradicciones de ‘en y contra el estado’ y entienden que el poder, que los políticos están facultados para atender las
reivindicaciones y los sueños de los ciudadanos y ciudadanas sin contar con ellos.
Nos parece claro que no puede existir democracia participativa si no hay una renuncia expresa del poder por parte
de quien lo tiene. En esa línea creemos que otro de los elementos importantes que debe ser considerado es el poder de los
técnicos que asumen y sustituyen las competencias de los ciudadanos y ciudadanas que pretenden hacer política – como en el
caso del ascensor – escudados en una supuesta racionalidad técnica que respalda a los políticos profesionales que no
pretenden obedecer a los sectores populares.

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Preparação Básica para o Trabalho: O olhar dos docentes do Ensino Médio no


meio rural da Amazônia

Carlos Renilton Freitas Cruz


Universidade do Minho (PT); Universidade Federal do Pará¡ (BR); Programa ALBAN.
renilton@ufpa.br

Resumo: O estudo analisa como os docentes compreendem e materializam a preparação básica para o trabalho exigida pela Lei 9.394/96
para o nível médio, bem como qual relação desenvolvem entre o que ensinam na escola e a realidade camponesa na qual vive a maioria de
seus alunos. Utilizou-se como locus da investigação uma escola que oferta o Ensino Médio no meio rural do município de Igarapé-Açu,
estado do Pará, localizado na Amazônia brasileira. A entrevista semi-estruturada foi utilizada como instrumento de coleta de dados, sendo
que dez docentes foram entrevistados. Compreende-se que uma formação sólida cientificamente e ancorada ao mundo do trabalho e às
práticas sociais deve ter o Ensino Médio como a etapa em que a ciência e a técnica podem colocar diante dos jovens urbanos e rurais as
possibilidades e os desafios do mundo produtivo e da participação social. Todavia, não basta o simples estabelecimento de uma nova
concepção que integre conhecimento científico e tecnológico sem que haja de fato a possibilidade de todos terem acesso à escola. A
democratização para além da garantia da vaga, passa pelo direito a uma escola com a infraestrutura adequada ao bom funcionamento do
ensino, com profissionais qualificados e motivados. No campo, portanto, o problema não se resume à elevação do número de escolas, mas no
estabelecimento de outras bases sobre as quais a aprendizagem será efetivada, onde se perceba que além de estar no campo a escola é
verdadeiramente do campo. Assim, uma formação de nível médio que garanta aos estudantes do campo uma base científica consistente e
uma compreensão alargada do mundo produtivo, requer docentes tecnicamente qualificados e politicamente comprometidos com uma
formação que extrapole os limites do mercado de trabalho, reconhecendo o direito dos sujeitos a uma educação vinculada ao seu cotidiano, a
sua identidade cultural e ao seu ambiente geográfico. Todavia, esta vinculação parece não ser o que orienta a ação docente na escola
investigada. Como é possível verificar no depoimento dos professores, não só a escola, mas também a comunidade se mostra desenraizada do
contexto rural.
Palavras-chave: Trabalho; Educação; Ensino Médio; Rural.

As análises que compõem este texto integram uma pesquisa mais ampla ora em desenvolvimento que objetiva
investigar como acontece a preparação para o trabalho no âmbito da família camponesa e no interior da escola rural de
Ensino Médio no interior da Amazônia brasileira. No presente trabalho apresenta-se análises, ainda preliminares, em torno da
seguinte questão: como docentes do Ensino Médio que trabalham em uma escola rural no interior da região amazônica
percebem a formação básica para o trabalho naquele contexto?
Em primeiro lugar procura, rapidamente, debater o envolvimento do Ensino Médio com a preparação para o mundo
do trabalho, e consequentemente as carências que ainda afetam esse nível de ensino na cidade e no campo. Posteriormente,
após uma ligeira caracterização do locus da pesquisa, analisa-se as falas dos docentes entrevistados, enfatizando as questões
que envolvem a relação da formação dos jovens com o contexto no qual vivem. Por fim, expõem-se algumas considerações
que apontam para os desafios impostos aos docentes e alunos da escola investigada.

Algumas palavras sobre a formação em nível médio para os que vivem do trabalho e os desafios à sua concretização.
Nas últimas décadas o capitalismo vem passando por profundas transformações em sua base produtiva,
incentivadas dentre outras causas pelo esgotamento do modelo taylorista/fordista que orientou a produção de mercadorias nos
três primeiros quartéis do século passado e pela revolução observada no âmbito da ciência e da tecnologia. Essas alterações
buscam consolidar um modelo flexível para a produção capitalista, marcado pelo elevado incremento tecnológico, alta
produtividade, introdução de novos mecanismos de organização do trabalho, onde se destaca a exigência de trabalhadores
com uma sólida formação básica, versáteis, dispostos a trabalhar em equipe e a continuar aprendendo.
Ao mesmo tempo verifica-se uma diminuição dos postos de trabalho no setor fabril e uma elevação da oferta de
vagas no setor de serviços, sem que haja, todavia, uma absorção de força de trabalho por este, capaz de compensar o
estreitamento da oferta de trabalho naquele. No campo, cada vez mais percebe-se o avanço da agricultura de negócio, onde a
grande propriedade suplanta a agricultura camponesa, alargando o contingente de proletários rurais, acirrando o conflito
agrário, a degradação ambiental e a pobreza extrema. É nítido, portanto, que a classe trabalhadora presencia uma poderosa

482
ofensiva por parte do capital que a coloca diante de um mercado de trabalho menos permeável, porém mais exigente quanto a
formação do trabalhador (Antunes & Alves, 2004).
Neste contexto, há um discurso que cobra das instituições formativas, quer as especificamente voltadas à formação
profissional, quer as escolas de educação básica, uma formação atrelada a uma forte base científica e a manifestação de
atitudes flexíveis quanto ao mundo do trabalho, rompendo com o modelo formativo predominante na era taylorista/fordista.
No Brasil, este discurso ganha força nos anos de 1990, momento em que instaura-se um movimento reformador
amplo que visava a reconfiguração do conjunto do aparelho do Estado e da lógica que conduzia suas políticas, no sentido de
adequá-lo ao modelo de gestão compatível com a “qualidade” própria do mercado. Tal movimento, no que tange ao setor
educacional, tinha como suporte técnico e financeiro agências multilaterais como Banco Mundial, UNESCO1, CEPAL2, que
naquela altura buscavam influenciar no processo de adaptação subordinada das nações periféricas ao novo formato da relação
econômica e política mundializada. No campo da educação, as reformas são, geralmente, apoiadas por grupos sociais
internos, principalmente aqueles vinculados ao capital (Batista, 2006). Tais grupos, e seus representantes nos postos de
comando do aparelho estatal, além de seguirem as orientações externas, adicionam peculiaridades que provocam “paradoxos
conceituais” que impedem um alicerce mais seguro para transformações verdadeiramente significativas, fato que leva Bueno
(2000) a afirmar que com relação a reforma realizada no Ensino Médio no Brasil na década de 1990, “o problema está menos
no seguimento de tendências mundiais e mais no seu dimensionamento em nível nacional”(p. 09).
No que diz respeito ao Ensino Médio, a sua reforma buscava atender às exigências do novo momento econômico e
social que o País e o mundo atravessavam, como reflexo das velozes e vorazes alterações provocadas pela mundialização do
capital no transcurso das últimas décadas.
De fato, como salienta Zibas, era nitidamente visível a necessidade de uma reforma no Ensino Médio,
especialmente em seu aspecto curricular, sendo esse fato reconhecido por analistas de todas as filiações ideológicas. Essa
clareza resultava da constatação de que a demanda por esse nível de ensino estava crescendo repentinamente, face a uma
maior democratização do acesso, o que culminava com uma maior heterogeneidade do corpo discente que, por conseguinte,
“reforça a crítica a conteúdos enciclopédicos e descontextualizados, bem como a métodos tradicionais de ensino” (2005, p.
25). Também era flagrante a necessidade de uma maior aproximação da escola média com a vida social e produtiva, pois o
novo contexto sócio-econômico demanda uma melhor preparação dos jovens para enfrentá-lo com firmeza e autonomia.
No ano seguinte à promulgação da LDB3, o Decreto 2208/97 força a separação entre o Ensino Médio e a formação
profissionalizante, e esta passa a ser oferecida paralelamente ou após a conclusão daquele. Assim, o Decreto buscou dotar o
Ensino Médio de uma identidade desvinculada de qualquer integração com a formação profissional. Consequentemente, a
formação profissional ofertada de maneira integrada ao nível médio foi paulatinamente substituída pela oferta concomitante,
onde o estudante necessitava ter duas matrículas, ir à escola em dois horários e, em alguns casos, frequentar dois
estabelecimentos de ensino ao mesmo tempo. Tendo em vista que por imperativo de sobrevivência muitos jovens necessitam
ingressar precocemente na vida produtiva, as dificuldades impostas por essa medida poderia significar o abandono do
processo de escolarização, comprometendo a possibilidade de uma melhor colocação no mercado de trabalho.
Frigoto e Ciavatta (2003) argumentam que a reforma promovida pelo Decreto 2208/07 guarda uma indiscutível
coerência com o ideário neoliberal não só na concepção mas também na prática. Por isso, os desdobramentos advindos dele e
de outros textos normativos que o complementam, oriundos do próprio Ministério da Educação ou do Conselho Nacional de
Educação, não atendem às demandas da classe trabalhadora, pois não atacam a histórica dualidade que envolve o nível
médio.
Ora, em países como o Brasil, situados na periferia do centro decisório do capitalismo globalizado, mesmo uma
formação assentada nos limitados preceitos do mercado, não pode ser garantida a todos, especialmente aos jovens em idade
de cursar o Ensino Médio. Ou seja, a não democratização do acesso e permanência com sucesso na educação básica, como as
pesquisas têm mostrado, restringe significativamente as oportunidades de acesso ao conhecimento cintífico-tecnológico, não
permitindo sequer o atendimento às demandas da tão propalada empregabilidade4.
Como bem salienta Kuenzer (2007), a verdadeira democratização da educação só será factível quando a sociedade
também for democratizada, fundada em outro modo de produção, onde os bens culturais e materiais socialmente produzidos
forem colocados a disposição de todos os cidadãos. Porém, mesmo com a globalização neoliberal dando claros sinais de
rachaduras inreversíveis em suas bases, a alternativa ao modelo atualmente hegemônico ainda não se apresenta consolidada,
fato que obriga a busca de soluções democratizantes por dentro da estrutura segregadora que tem marcado a história da
educação na periferia do capitalismo.

1
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
2
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe.
3
Na LDB o Ensino Médio recebeu dois artigos (35 e 36) onde é identificado como a etapa final da educação básica, com duração nunca inferior a três anos. Suas
principais finalidades estão relacionadas com: o aprofundamento dos estudos realizados no ensino fundamental; preparação para o trabalho vinculada à conquista
da cidadania e à necessidade de continuar aprendendo, tendo em vista as atuais condições de ocupação; a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico; assim como, a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos a partir da interação da
teoria e da prática no processo de ensino (art. 35). O artigo 36 trata das diretrizes que deverão orientar a organização desse nível de ensino, destacando a
valorização da educação com base na ciência e na tecnologia, nas artes e nas letras, tendo em vista todo o processo de transformação da sociedade. Verifica-se a
possibilidade do Ensino Médio preparar para o trabalho através de habilitações técnicas, desde que atendida a formação geral do educando.
4
Esta compreendida na ótica do capital como a capacidede necessária para enfrentar novos desafios no mercado de trabalho, e na ótica dos trabalhadores como a
capacidade de sobreviver sempre preparado para o emprego incerto, para o fato do desemprego eminente.

483
Kuenzer chama a atenção para o fato de que mesmo por contradição, a globalização econômica e a reestruturação
produtiva trazem consigo elementos positivos. Em primeiro lugar é visível a necessidade de uma escolarização de pelo menos
11 anos para que o cidadão possa de fato participar ativamente da vida social, política e produtiva, situação em que o Ensino
Médio deixa de ser apenas a intermediação da educação fundamental com o ensino superior, passando a ser visto como etapa
final da educação básica. Em segundo lugar, já não se mostra viável uma formação profissionalizante desatrelada de uma
sólida base de educação geral, fato que determina uma ruptura com o modelo formativo tecnicista tão arraigado nas
instituições formadoras. Porém,
O objetivo a ser atingido é a capacidade de lidar com a incerteza, substituindo a rigidez pela flexibilidade e rapidez, de
maneira a atender demandas dinâmicas, que se diversificam em quantidade e qualidade, não para ajustar-se, mas para
participar como sujeito na construção de uma sociedade na qual o resultado da produção material e cultural esteja
disponível para todos, de modo a assegurar qualidade de vida e preservar a natureza (Kuenzer, 2007, p. 34 – grifo
nosso).

Diante da nova configuração da realidade social e econômica, o desafio a ser vencido pelo Ensino Médio passa
necessariamente por democratização, verdadeiramente colocada como meta a ser buscada pelo Estado, e pela formulação de
outra concepção, capaz de enfrentar a histórica dualidade que marca esse nível de ensino, integrando formação científica e
sócio-histórica com uma consistente formação tecnológica (Kuenzer, 2007).
Portanto, a instituição de uma identidade ao Ensino Médio apenas no plano legal e restrito ao campo pedagógico,
como buscava o Decreto 2208/07, fundado na desvinculação do Ensino Médio com a formação profissional, não enfrenta
verdadeiramente a desigual realidade da educação brasileira.
Como mostra a autora, a questão da dualidade que acompanha a história do Ensino Médio é política e não
pedagógica, pois está intimamente relacionada com o modelo de organização da sociedade, com a relação travada entre
capital e trabalho. Por isso, também não será suficiente o simples estabelecimento de uma nova concepção que integre
conhecimento científico e tecnológico sem que haja de fato a possibilidade de todos terem acesso à escola. Todavia, a
democratização para além da garantia da vaga, passa pelo direito a uma escola com a infraestrutura adequada ao bom
funcionamento do ensino, com profissionais qualificados e motivados.
Preocupada em discutir a construção de um Ensino Médio “para os que vivem do trabalho”, Kuenzer chama a
atenção para o fato de que a desigualdade marca o cotidiano dos que frequentam a escola pública de nível médio, o que
obriga a adoção de medidas capazes de atender as diferenças dos estudantes. Nesse sentido, argumenta que
Não há que se fazer concessão ao caráter básico do Ensino Médio, supondo ser possível sua substituição pela educação
profissional independente de escolaridade. Contudo, já no Ensino Médio, a formação científico-tecnológica e sócio-
histórica deverá ser completada, na parte diversificada, por conteúdos do mundo do trabalho, sem que se configurem os
cursos profissionalizantes típicos do taylorismo-fordismo (2007, p. 37).

E continua a autora,
Para a maioria dos jovens, o exercício de um trabalho digno será a única possibilidade de continuar seus estudos em
nível superior; o Ensino Médio, portanto, deverá responder ao desafio de atender a estas duas demandas: o acesso ao
trabalho e a continuidade de estudos, com competência e compromisso (2007, p. 38).

Uma formação sólida cientificamente e ancorada ao mundo do trabalho e às práticas sociais deve ter a educação
básica como patamar mínimo, e o Ensino Médio como a etapa em que a ciência e a técnica podem colocar diante dos jovens
estudantes as possibilidades e os desafios do mundo produtivo e da participação social, seja no campo ou na cidade, sem
prejuízo da continuidade dos estudos em nível superior. Para tanto, a superação da dicotomia entre formação propedêutica e
formação profissionalizante nesse nível de ensino torna-se imperiosa e urgente, do contrário muitos jovens que precocemente
necessitam trabalhar, até mesmo para poder continuar estudando, estarão desprovidos de uma formação que lhe possibilite
trilhar um caminho mais firme no solo movediço do mundo produtivo.
Atualmente, o Decreto 5154/04, que revogou o Decreto 2208/07, prioriza a formação integrada entre educação
geral e profissional, sob uma sólida base científica e tecnológica. Mesmo ainda sendo marcado por contradições oriundas da
diversidade de posições que buscou atender no processo de sua construção (Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005), este
documento legal tem servido como orientador das medidas mais recentes do governo federal no que tange ao Ensino Médio e
a educação profissional, onde a integração tem aparecido como o objetivo a ser alcançado nas políticas já divulgadas, como é
o caso do Programa Brasil Profissionalizado5, lançado em dezembro de 2007 através do Decreto 6302/07.
Todavia, em que pese ser o Ensino Médio a última etapa da educação básica e ter importantes finalidades
estabelecidas na LDB, a legislação brasileira não obriga a matrícula por parte dos cidadãos, nem a oferta por parte do Estado
ao conjunto da população. Infelizmente somente o ensino fundamental tem a oferta obrigatória garantida pelo poder público

5
Instituído no âmbito do Ministério da Educação, o Programa Brasil Profissionalizado busca “estimular o Ensino Médio integrado à educação profissional,
enfatizando a educação científica e humanística, por meio da articulação entre formação geral e educação profissional no contexto dos arranjos produtivos e das
vocações locais e regionais” (Brasil, 2007).

484
e, mesmo assim, no final da primeira década do século XXI esse nível ainda não foi universalizado6, demonstrando um atraso
considerável do País em relação às nações mais desenvolvidas. Em 2006 a média de anos de estudo dos brasileiros não
chegava aos oito anos obrigatórios7, fato que revela o grande desafio ainda por enfrentar no que diz respeito à garantia do
direito à educação de milhões de cidadãos.
Não parece complicado verificar o tamanho e a dificuldade da batalha ainda por ser vencida pelas políticas públicas
quanto à garantia do acesso ao Ensino Médio para o conjunto da população. Dados da PNAD8 divulgada em setembro de
2007 pelo IBGE9, mostram que naquele ano 82,2% da população de 15 a 17 anos – faixa etária adequada ao nível médio -
frequentava a escola, mas apenas 48% cursava pelo menos o Ensino Médio.
Se a realidade sócio-econômica no espaço urbano não favorece à grande maioria dos jovens estudantes uma
caminhada educacional segura e estimulante, aos jovens do campo descortina-se a cada dia um cenário marcado pela negação
do direito ao acesso10 e a permanência com sucesso na escola, especialmente a de nível médio11.
Diante desse quadro, o princípio legal que garante a “igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola” (inciso I do art. 3º da LDB), base sobre a qual o Estado precisa cumprir o dever de garantir ao conjunto da população
a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao Ensino Médio” (inciso II do art. 4º da LDB) mostra-se muito
distante do mundo real em que se desenrola a existência de milhões de brasileiros radicados para além dos limites do urbano.
No Ensino Médio, em que pese o aumento das matrículas verificadas entre 2000 e 2005, “é evidente que o quadro
de carência da oferta ainda está longe de ser superado, principalmente se considerarmos a demanda potencial represada”
(INEP/MEC, 2007, p. 25). Como reconhece o Ministério da Educação, há uma grande quantidade de jovens que não
conseguem acesso ao Ensino Médio pela inexistência ou insuficiência de escolas no campo. E mesmo os que conseguem
estudar, o fazem em condições muito mais precárias que os estudantes dos centros urbano, uma vez que os “serviços e
insumos básicos presentes na maioria das escolas urbanas são escassos ou inexistentes nas escolas rurais”. Assim, é possível
verificar que “enquanto 75,9% dos estabelecimentos urbanos estão equipados com microcomputadores, apenas 4,2% dos
estabelecimentos rurais de ensino contam com este recurso”. Diante de tanta escassez, o que é básico passa a ser visto como
artigo de luxo pois “equipamentos como biblioteca, laboratório e quadras de esporte não fazem parte da realidade das escolas
rurais” (INEP/MEC, 2007, p. 29).
Portanto, o desafio das políticas para o Ensino Médio não se circunscreve apenas ao âmbito do alargamento da
quantidade de vagas, mas abarca também o problema da qualidade da educação ofertada, que passa necessariamente pelo
enfrentamento da histórica dualidade estrutural a que esse nível está submetido.
Nesse sentido, parece claro que uma formação de nível médio que garanta aos estudantes uma base científica
consistente, aliada a uma compreensão mais acurada do mundo do trabalho contemporâneo, requer a atuação de docentes
tecnicamente qualificados e politicamente comprometidos com uma qualificação que extrapole os estreitos limites do
mercado de trabalho, e que reconheça o direito dos sujeitos a uma educação vinculada com o seu modo de vida, sua
identidade cultural e seu ambiente geográfico.

O que pensam os movimentos sociais do campo sobre a educação do trabalhador


Esse debate já não se encontra restrito ao mundo acadêmico ou mesmo aos especialistas responsáveis pelas
políticas do Estado, há tempos que os movimentos sociais discutem a necessária articulação entre trabalho e educação.
O MST12, por exemplo, tem acumulado um profundo debate sobre a educação dos sujeitos do meio rural. Morigi
(2003) mostra que na educação defendida pelo MST, trabalho e educação, prática e teoria, ciência e técnica são percebidos de
maneira articulada e interdependente. Assim, dentre os princípios pedagógicos que sustentam as ações educativas do
Movimento encontra-se um que busca “a educação para o trabalho e pelo trabalho”, sendo que este é entendido a partir de
duas dimensões que se complementam: a educação ligada ao mundo do trabalho, e o trabalho como método pedagógico13.
Há, portanto, também nos movimentos sociais, com destaque para aqueles que lutam em prol dos sujeitos do
campo, uma compreensão da imperiosa necessidade da articulação entre ciência e tecnologia, no sentido de possibilitar uma
inserção dos jovens ao mundo do trabalho provida da necessária flexibilidade cobrada pelo novo contexto produtivo, bem
como de uma autonomia intelectual capaz de garantir uma participação ativa na dinâmica social na qual estão postos.
Todavia, há no movimento social a certeza de que tal educação ainda dever ser conquistada como um direito dos
trabalhadores e um dever do Estado.

6
A PNAD aponta que 97,6% da população de 7 a 14 anos de idade estava matriculada na rede de ensino em 2006.
7
De acordo com a PNAD 2006, o número médio de anos de estudos completos da população com 10 anos ou mais de idade era de 6,8 anos. (IBGE, 2007).
8
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilio.
9
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
10
A precária e escassa oferta de matrículas no Ensino Médio no Brasil não consegue atender nem mesmo a metade dos jovens de 15 a 17 anos, sendo que no
campo o atendimento é de apenas um quinto da população dessa faixa etária. As escolas rurais de Ensino Médio ofertam apenas 2,5% da matrícula nacional
nesse nível (INEP/MEC, 2007).
11
A distorção idade/série é um exemplo da frágil qualidade da educação oferecida nas escolas do campo. Se a média nacional já é elevada no ensino fundamental
onde os índices do ano de 2004 chegaram a 41,4%, no Ensino Médio a situação é ainda mais grave, uma vez que 59,1% dos alunos apareceram cursando uma
série diferente da adequada a sua idade (INEP/MEC, 2007).
12
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
13
Não constitui objetivo deste texto detalhar os princípios pedagógicos do MST.

485
Para os movimentos sociais do campo está claro que as atuais condições de oferta da educação básica como um
todo ou do Ensino Médio em particular às populações do meio rural, são resultado de um processo histórico mais amplo e
complexo, que extrapola o campo educacional e adentra os meandros da formação social e econômica do Pais, que envolve a
concentração da terra, pelo trabalho escravo, pela ideologia do progresso urbano-industrial e pela hegemonia de uma elite
econômica preconceituosa internamente e subserviente no plano externo. Da mesma forma, têm clareza de que não se pode
prescindir do contributo da educação formalmente organizada para o estabelecimento de outras bases para o desenvolvimento
do campo e da cidade.
Por isso, desde meados dos anos 90 os movimentos de trabalhadores rurais14 têm intensificado ações no sentido de
forçar a introdução da educação dos habitantes do campo na pauta nacional. Com isso, alertam para a necessidade de se
“pensar uma política de educação que se preocupe também com o jeito de educar quem é sujeito deste direito, de modo a
construir uma qualidade de educação que forme as pessoas como sujeitos de direitos” (Caldart, 2002, p.27). Aqui fica
evidente que o problema a ser enfrentado não se resume à elevação do número de escolas construídas nos espaços rurais, mas
está ligado principalmente ao estabelecimento de outras bases sobre as quais a aprendizagem será efetivada, onde se perceba
que além de estar no campo a escola é verdadeiramente do campo.
A educação deve ser buscada como direito de homens e mulheres do campo, e não deve se limitar às fronteiras da
escola. Todavia, a escola deve ser organizada para responder às necessidades daqueles sujeitos. Por isso, “[...] a escola do
campo tem que ser um lugar onde especialmente as crianças e os jovens possam sentir orgulho desta origem e deste destino;
não porque enganados sobre os problemas que existem no campo, mas porque dispostos e preparados para enfrentá-los,
coletivamente” (Caldart, 2002, p.35). O que está em jogo é a construção de uma educação que reconheça e busque fortalecer
a identidade dos povos do campo, estabelecendo um estreito vínculo com a produção econômica, as manifestações culturais,
as necessidades ambientais e as lutas políticas vivenciadas pelos sujeitos sociais que vivem e trabalham no meio rural.
O direito a uma educação verdadeiramente atrelada a um projeto mais amplo de formação humana e
desenvolvimento local deve estar assentado em uma concepção educativa que bebe na fonte da Educação Popular, esta
identificada com uma formação ampliada que não se limita a atender ao mercado de trabalho, embora não o negue.
Diferentemente, ao extrapolar os limites do espaço escolar e adentrar no quotidiano dos sujeitos do campo, a escola
reconhece e valoriza os saberes construídos e utilizados pelos camponeses, levando-os em consideração no processo de
desenvolvimento da aprendizagem sistematizada que a caracteriza. Desta forma, é possível enfrentar a tão arraigada cultura
escolar que ao virar as costas aos saberes populares dificulta ou mesmo inviabiliza um enraizamento do currículo na
experiência pessoal e social dos estudantes.

O olhar dos docentes sobre o mundo do trabalho e a formação escolar no meio rural: o caso da Vila Caripi.
O lócus da investigação foi a vila Caripi, mais conhecida como comunidade de São Luis, localizada na zona rural
do município de Igarapé-Açu15, nordeste do estado do Pará, na Amazônia brasileira16. Os dados de campo foram coletados
através de entrevistas semi-estruturadas com 10 professores ligados ao Ensino Médio, residentes na vila ou na cidade. As
considerações expostas a seguir resultam de análises ainda preliminares, mas que apontam para o caminho trilhado
diariamente por docentes em uma escola de Ensino Médio fincada no interior da Amazônia.
Fundada ainda no período de construção da extinta estrada de ferro que ligava a capital Belém à cidade de
Bragança, São Luis, com aproximadamente 2.500 habitantes, concentra hoje a maior aglomeração populacional da zona rural
de Igarapé-Açu, sendo a agricultura é a sua principal atividade econômica. Todavia, da mesma forma como ocorre nas outras
vilas agrícolas do município, São Luis é marcada pela carência de infraestrutura básica nas áreas de saúde, educação,
saneamento básico e incentivo à produção agrícola.
No centro da vila encontra-se a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio João Batista de Moura Carvalho,
que em 2007 matriculou 89 alunos no Ensino Médio nos turnos da tarde e noite17. A estrutura física da escola apresenta-se
em precárias condições, onde paredes sujas, piso esburacado, carteiras mal conservadas são vistas com facilidade. A sala
destinada à biblioteca encontra-se em reforma18 e por isso o pequeno acervo está encaixotado, não sendo possível a consulta
pelos estudantes no momento. O destaque na escola é a sala do laboratório de informática, que foi reformada e equipada com

14
Movimento Por uma Educação do Campo
15
O município de Igarapé-Açu fica distante 110 km de Belém, capital do estado do Pará, e atualmente conta com uma população de 32.400 habitantes, dos quais
12.928 estão radicados na área rural (IBGE, 2000). Encontra-se localizado na primeira fronteira agrária da Amazônia (Hurtienne, 1999, 76), e teve considerável
importância no âmbito da produção de alimentos nas primeiras décadas do século XX, principalmente no período compreendido entre a construção e os anos em
que esteve em funcionamento a Estrada de Ferro Belém-Bragança.
16
Em que pese a Amazônia exibir uma grande riqueza mineral, florestal e hídrica e cultural que a coloca no centro das atenções do planeta neste início de
milênio, é, contraditoriamente, habitada por uma população que majoritariamente vive à margem do progresso econômico. O modelo de desenvolvimento
imposto à Amazônia ao longo do último século, com destaque especial para as décadas de 1960 e 70, gerou esta situação paradoxal. Nesse contexto, a carência
de condições básicas de sobrevivência no campo e na cidade, é uma marca nitidamente visível da região.
17
O turno da tarde, que funciona das 13:00 às 17:00 horas, possui turmas do 1º e 2º anos. Já no turno da noite, onde as aulas ocorrem de 19:00 às 23:00,
funcionam uma turma de supletivo e outra do 3º ano.
18
Durante os dias em que estive na escola entrevistando os professores não encontrei nenhum operário trabalhando na obra da biblioteca.

486
refrigerador de ar19, mas que infelizmente após quase dois anos da chegada dos computadores, os mesmos ainda não foram
instalados e estão guardados num canto da sala20.
Os estudantes da escola são majoritariamente filhos de camponeses que vivem nos ramais próximos à vila e/ou de
trabalhadores rurais que já não possuem terra e residem na vila, mas trabalham em propriedades rurais no entorno da mesma.
Todos os professores que trabalham na escola investigada possuem formação em curso superior de licenciatura,
atendendo, portanto, a exigência legal para o magistério no Ensino Médio. A grande maioria dos docentes atua em disciplinas
diretamente relacionadas com a sua qualificação universitária, uma realidade relativamente recente, uma vez que em anos
anteriores muitos professores se dividiam em várias disciplinas devido à carência de profissionais habilitados em algumas
matérias.
Diferentemente de alguns anos atrás, quando todos os docentes do Ensino Médio residiam na comunidade de São
Luis, hoje a realidade é outra. Devido à efetivação de professores aprovados no último concurso público realizado pela
Secretaria Estadual de Educação, alguns docentes que eram servidores temporários ou que atuavam em disciplinas que não
condiziam com sua área de formação foram substituídos. Graças a isso, no ano de 2008 dos 11 professores lotados no Ensino
Médio, apenas 5 residem na vila. Os docentes que vêm da cidade têm lotação recente na escola, e com exceção de um
professor, que tem mais tempo na escola, os demais foram contratados no segundo semestre de 2008.
A maioria dos docentes entrevistados acredita que o mundo do trabalho vem se tornando mais complexo
especialmente devido ao notável avanço do conhecimento científico, que possibilitou o desenvolvimento de modernos
recursos tecnológicos que ao serem introduzidos nos diversos setores econômicos inauguraram uma fase do capitalismo em
que a ciência se transformou em força produtiva.
Fica evidente ainda a compreensão dos professores quanto a maior competitividade que atualmente se verifica no
mercado de trabalho, com os postos de trabalho cada vez mais sendo reduzidos em alguns setores, ao mesmo tempo em que
eleva-se a exigência por formação profissional básica dos atuais e futuros trabalhadores. Como mostram as falas a seguir, há
uma ligação direta, na visão dos docentes, da elevação da escolaridade com a perspectiva de emprego:

A gente sabe que o mercado é seletivo, então, essa nova fase, vamos dizer assim, do processo técnico, científico e
produtivo também é uma outra situação colocada enquanto dificuldade para muitas pessoas, não é só para o homem do
campo, mas outras pessoas na sociedade hoje (Prof. B).

Eu sinto que o mercado de trabalho hoje cada dia ele fica mais competitivo, principalmente quando se trata de
formação profissional, isso aí torna-se mais ainda complicado. Antes as pessoas conseguiam emprego com mais facilidade,
com uma 5ª série, com a 8ª série. Hoje com o Ensino Médio você encontra dificuldade (Prof. C).

Hoje em dia tá mais complicado ainda [...] já que a demanda vai aumentando, mais gente disputando o mercado de
trabalho, fica mais difícil pra quem não investe na educação (Prof. A).

É possível notar através das falas dos professores que as transformações vivenciadas pelo capitalismo nas últimas
décadas, de uma forma ou de outra são percebidas mesmo nas pequenas localidades rurais do interior da região amazônica.
As consequências dessas transformações não são verificáveis apenas pela chegada de recursos tecnológicos como o telefone
celular ou a internet, mas também devido às condições mais severas em que os postos de trabalho são buscados e pelas novas
exigências quanto a formação dos trabalhadores.
Questionados se a escola em que trabalham está preparando os alunos para o mundo do trabalho, tendo em vista as
exigência que se descortinam diante dos trabalhadores no momento da busca por emprego, a maioria dos entrevistados
manifestou-se afirmando que era muito frágil a formação, como pode-se verificar nas falas abaixo:

Diante de todas essas dificuldades, nós formamos muito mal nossos futuros trabalhadores (Prof. I).

Nós já tivemos uma boa escola, hoje eu acho que a nossa escola está meio complicada, está meio regular, porque
nós perdemos alguns profissionais bons e agora, nessa reta de mudança com concurso, atrapalhou muito (Prof. D).

Olha, eu não sei se ela está dando conta. (Prof. C).

Ao admitir que a escola não prepara suficientemente o aluno para que ele dispute uma vaga no mercado de
trabalho, os docentes estão confirmando o que uma visita à escola poderia revelar. Com uma precária infraestrutura física,
ausência de laboratórios de ciências, impossibilidade de acesso à rede mundial de computadores graças à burocracia de sua
mantenedora, professores desestimulados devido a falta de comando administrativo e um currículo totalmente distante do
contexto sócio-econômico da comunidade, certamente a escola enfrenta alguma dificuldade para mostrar e problematizar

19
Luxo que nenhuma outra dependência da escola possui.
20
Segundo um dos professores entrevistados, o laboratório de informática não está funcionando devido a Secretaria Estadual de Educação não ter enviado de um
técnico para montar os equipamentos e conectá-los à internet.

487
com seus alunos um mundo que a cada dia se transforma, condição essencial para um ingresso com autonomia no mundo do
trabalho.
Como foi visto em outra parte deste texto, a LDB de 1996, em seu artigo 35, aponta como uma das finalidades do
Ensino Médio “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser
capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores” (Inciso II), fato que
cobra uma ação pedagógica da escola que objetive apresentar e problematizar a vida produtiva e as relações de trabalho que a
sustenta.
A ação da escola deve, portanto, favorecer “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina” (Inciso IV) de modo a introduzir, a partir de
variados ângulos, os jovens estudantes no ambiente sócio-econômico mais amplo, sem necessariamente enveredar por uma
especialização de caráter restritivo, focada em uma única técnica e voltada a atender de forma rígida as características de uma
determinada ocupação cobrada pelo mercado.
Portanto, a preparação básica para o trabalho no nível médio depende, dentre outras questões, da compreensão por
parte dos docentes, de que ela estará ocorrendo no momento em que cada disciplina realizar o aprofundamento teórico
necessário ao alargamento da visão dos estudantes acerca dos fundamentos da ciência, tendo por base a prática da
experimentação. Ganha importância nesse processo a figura do docente, não pela autoridade que impõe, às vezes como forma
de esconder sua fragilidade intelectual, mas sim pela possibilidade de orientar de forma planejada e segura a criativa busca
pelo conhecimento por parte de seus alunos e alunas.
Interessa ressaltar que quando admitem que a preparação básica para enfrentar o mundo do trabalho ainda é frágil,
os docentes estão se referindo ao mundo do trabalho urbano e não ao trabalho no campo, pois trabalhar no campo, segundo os
entrevistados, não parece ser o desejo de seus alunos,

[...] o objetivo dele é procurar sair dali o mais rápido possível. Ele quer terminar os estudos e partir para uma nova
etapa diferentemente daquela vida do campo, para buscar outra coisa. Então, essa é a maior perspectiva. Ninguém chega na
escola dizendo assim: vou me qualificar aqui, porque vou ter o conhecimento que eu vou utilizar lá no campo. E vou
desenvolver minha vida no campo. Ninguém chega com essa perspectiva na escola. Se você perguntar para um filho de
agricultor se ele chega com essa perspectiva ele vai dizer que não, com toda a certeza (Prof. B).

A expectativa é essa. É emprego urbano, a universidade também é um sonho para alguns [...] a maioria sonha com
concurso para garantir a estabilidade e fazer a vida (Prof. H).

Parece haver, segundo os docentes, uma descrença por parte dos jovens estudantes quanto a possibilidade de terem
uma vida estável e socialmente significativa desenvolvendo profissionalmente alguma atividade no mundo rural. A condição
concreta em que seus pais garantem a sobrevivência da família é um fator decisivo na hora da opção profissional. Trabalho
pesado, com pequeno rendimento financeiro e baixo reconhecimento social, a agricultura não tem atraído a geração que cursa
o Ensino Médio na comunidade de São Luis.
Aliado a isso, encontra-se o fato da escola não estar voltada ao contexto do campo. Apesar de estar erguida e
funcionando em uma vila situada no campo, ser frequentada majoritariamente por filhos de camponeses e trabalhadores
rurais, a escola não é do campo, ela apenas está no campo. Há um desenraizamento da realidade sócio-econômica na qual ela
funciona, que é profundamente marcado pela ideologia do atraso rural manifestada na crença de que para ser “alguém na
vida” o sujeito deve sair do campo e ir em direção ao progresso da cidade.
A escola vista pela lente da ideologia do atraso rural seria a porta pela qual os jovens habitantes desse espaço
chegariam à modernidade do mundo urbano, no qual encontrariam as oportunidades prosperidade não encontradas no campo.
Construiu-se no Brasil um processo de dicotomização entre campo e cidade, onde esta é a síntese do avanço e da
modernização e aquele representa o passado a ser superado (Arroyo, 2007). Mas o campo não é definitivamente esquecido
pelas políticas públicas ou pelos textos legais. Quase sempre a necessária adaptação às condições do meio rural aparece nos
documentos de políticas ou nas legislações, mostrando que existe uma compreensão da diversidade que marca aquele
ambiente. Entretanto, tendo sempre o urbano como referência, as adaptações condenam o campo às medidas paliativas e
insuficientes oriundas da cidade. Como consequência, argumenta Arroyo, “os profissionais urbanos, médicos, enfermeiras,
professores estenderão seus serviços ao campo. Serviços adaptados, precarizados, no posto médico ou na escolinha pobres,
com recursos pobres […] sem vínculos culturais com o campo, sem permanência e residência junto aos povos do campo”
(2007, p.2).
O desenraizamento dos profissionais que materializam a ação do poder público no campo constitui-se num dos
ingredientes que alimentam a fragilização identitária dos camponeses, bem como servem como canal de disseminação da
ideologia da modernização e do progresso do urbano.
Aqui fica evidente que o problema a ser enfrentado quando se pensa na educação dos povos do campo, não se
resume à elevação do número de escolas construídas nos espaços rurais, mas principalmente ao estabelecimento de outras
bases sobre as quais a aprendizagem será efetivada, uma vez que para colaborar com o fortalecimento da identidade
camponesa, a escola deve estar no campo fisicamente, mas acima de tudo deve se identificar com sua cultura.

488
Apesar de reconhecerem o campo como um lugar bom para viver, quando os entrevistados, especialmente aqueles
que residem na própria comunidade, se reportam ao mundo do trabalho no meio rural acreditam que há uma dificuldade para
os camponeses, pais de muitos de seus alunos, manterem a sobrevivência da família com o trabalho na agricultura:

[...] se você olhar a perspectiva da tranquilidade, daquilo que oferece, enquanto não stress, vamos dizer assim, a
vida do campo é excelente, mas quando você leva para um outro campo, que é o campo econômico da família, aí você vai
perceber que a situação é bem diferente. Essa situação de certa forma leva algum desespero para as famílias, o cara não ver
condições econômicas mínimas para construir uma casinha melhor, para organizar sua vida de uma forma melhor, isso tem
feito com que muita gente tenha vendido as suas terras (Prof. F)

Eu acho que a vida no interior pra quem tem um emprego aqui na zona rural, não tem outra coisa melhor, o cara
vive na maior tranqüilidade, hoje o cara não pode reclamar que, ta longe da evolução da modernidade porque não ta, os
transportes são rápidos tem a internet, que aproxima tudo [...] agora o problema é quem não tem emprego, quem não tem
emprego na zona rural, aí é complicado, porque o sujeito fica ocioso e pode tender pra criminalidade, enfim, então a vida na
zona rural seria uma maravilha pra quem tem emprego (Prof. C).

As condições precárias com as quais a agricultura camponesa convive demonstram a insensatez do modelo de
desenvolvimento praticado na Amazônia. Não é necessário ser especialista para verificar que, dentre outros fatores,
corroboram para desestimular a prática da agricultura camponesa na região as péssimas condições das estradas que servem às
comunidades rurais, a insuficiência e em muitos casos a ineficiência da assistência técnica colocada a disposição dos
camponeses, a escassa assistência à saúde e a restrita oferta educacional no meio rural e as dificuldades enfrentadas no
momento de comercializar a produção. Por outro lado, não são raras as políticas governamentais direcionadas aos grandes
proprietários rurais, onde vultuosos recursos alimentam uma produção tecnificada, que geralmente demanda um número cada
vez menor de trabalhadores, mesmo ocupando grandes áreas, onde os produtos são quase sempre direcionados ao mercado
externo.
A maioria dos docentes acredita que a escola deveria buscar um maior envolvimento com a vida da comunidade,
direcionando o projeto pedagógico à realidade do meio rural, pois sabem que a saída dos jovens para a cidade enfraquece
cada vez mais a cultura e a economia local e nem sempre garante uma vida melhor para eles. Todavia, argumentam que
sentem dificuldades nessa questão devido haver uma rejeição por parte dos alunos e de muitos pais ao mundo rural. As falas a
seguir são bastante significativas:

Dificulta o trabalho do professor, porque a gente também acredita que a agricultura ainda é uma alternativa, se todo
mundo ficasse com sua terra, e tentasse produzir com sua família, ainda é uma alternativa de sobrevivência, mas a gente não
tem discurso para convencer eles de que isso é importante, porque para eles fica um pouco complicado em função de que eles
não querem aquele mundo, porque os pais por exemplo, não tiveram uma formação adequada e passaram a vida toda naquele
trabalho e não têm uma condição [...]são uns meninos rural, com pensamento urbano, e aí você tentar envolver eles num
trabalho da escola na comunidade rural, eles acharam que não é uma alternativa. Não sei se eles ouviram isso dos pais, para
procurar outra vida. Não sei se trouxeram esse conceito de casa, mas sempre foi uma barreira, entrar nesse projeto que é esse
campo da agricultura, a gente sente uma rejeição forte (Prof. D).

A gente tem uma grande dificuldade de conscientizar eles de trabalhar no lugar deles, com a agricultura
principalmente. Em São Luis a gente tem esse problema, existe uma certa discriminação com relação ao aluno que é
agricultor (Prof. C).

Ao exporem a resistência dos alunos com relação à vida no meio rural, os entrevistados parecem defender a tese de
que a escola seria desprovida de um projeto educacional identificado com os sujeitos do campo devido a visão urbanocêntrica
de parte de seus alunos. Porém, cabe questionar até que ponto essa visão centrada na cidade manifestada pelos estudantes
também é resultado do desenraizamento sócio-cultural da principal escola da comunidade, uma vez que a escola por onde
passa quase a totalidade dos jovens que cursam o Ensino Médio em São Luis, poderia interferir no processo de autoafirmação
dos sujeitos que habitam aquela comunidade. Ao ceder ao apelo urbanocêntrico, a escola estará contribuindo para perpetuar o
círculo vicioso responsável pela saída de vários jovens da comunidade todos os anos.
Kolling, ao discutir a necessidade de superarmos o paradigma da escolinha rural, marcada pela precariedade e
ausência de identificação com os sujeitos do direito à educação, sintetiza a compreensão que vem se construindo para a
escola do campo:

Entende-se por escola do campo aquela que trabalha desde os interesses, a política, a cultura e a economia dos
diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, nas suas diversas formas de trabalho e de organização, na sua
dimensão de permanente processo, produzindo valores, conhecimentos e tecnologias na perspectiva do desenvolvimento
social e econômico igualitário dessa população. A identificação política e a inserção geográfica na própria realidade cultural
do campo são condições fundamentais de sua implementação (1999, p. 56 ).

489
Ainda segundo Kolling, dentre outra questões, a escola do campo necessita assumir compromissos com o respeito
às pessoas humanas envolvidas no processo socioeducativo, com a intervenção social através da direta ligação com projetos
de desenvolvimento regional, com a valorização da memória histórica que identifica pessoas e grupos fortalecendo-os na
construção do futuro, bem como com uma formação estreitamente atrelada ao mundo do trabalho.
Nessa concepção o trabalho é tomado como categoria fundamental no processo educativo, elemento articulador do
currículo e da ação docente, sempre em sintonia com as condições econômicas, ambientais, sociais e geográficas nas quais
sobrevivem aqueles e aquelas que usufruem do direito à educação.

Considerações finais
Ainda fortemente marcado por uma formação propedêutica, onde prevalece a desvinculação da ciência com a
técnica, o Ensino Médio não atende aos interesses dos jovens filhos da classe trabalhadora, uma vez que em grande parte dos
casos, o ingresso no mundo do trabalho é um imperativo de sobrevivência, ou mesmo condição necessária à continuidade dos
estudos. Sem uma possibilidade de preparação básica para o trabalho já no Ensino Médio, esses jovens chegam fragilizados
na disputa por uma colocação no mercado, podendo ver comprometidas as suas oportunidades de continuar estudando.
Aos jovens do campo esse modelo é ainda mais comprometedor. Além de pouca expectativa quanto à qualificação
básica para o trabalho, a escola média é ofertada em quantidade insuficiente e desvinculada do contexto sócio-econômico dos
estudantes, assim como de possíveis projetos de desenvolvimento centrados no local e articulados ao contexto global da
sociedade e da economia. Descomprometida com o ambiente no qual está posta, a escola média rural acaba contribuindo para
alimentar êxodo rural, uma vez que se coloca como a porta pela qual os jovens deixam o “atraso do campo” (esvaziado de
alternativas de sobrevivência para além da dramática subsistência que tem marcado a vida de seus pais e avós) e buscam um
espaço no “progresso da cidade”.
No momento onde a sociedade cobra dos jovens uma sólida escolaridade básica, capaz de possibilitar uma ampla
compreensão dos princípios fundamentais que movimentam as forças produtivas e as relações sociais e econômicas que as
determinam, constata-se que há ainda um longo caminho a ser percorrido até que os povos do meio rural amazônico tenham
assegurado o direito a uma educação capaz de reconhecê-los como sujeitos com identidades e valores próprios.
Na realidade pesquisada, em que pese a percepção da dedicação da maioria dos docentes para garantir uma
educação com qualidade aos jovens do Ensino Médio, destacando-se nessa tarefa aqueles que são radicados na própria vila, é
nítido o desenraizamento da escola com o mundo rural. Parece clara ainda a ausência de um projeto político-pedagógico que
favoreça uma preparação básica para o trabalho e o desenvolvimento local, por mais que se verifique na fala da maioria dos
docentes entrevistados a preocupação com o futuro emprego do jovem estudante.
O mundo do trabalho reconhecidamente relevante para a escola, conforme pode ser percebido nas entrevistas, é o
urbano, destino certo para aqueles que buscam estabilidade financeira e trabalho menos penoso. O trabalho no campo, base
de sustentação econômica local, não figura como suporte da ação educativa da escola, pois segundo os docentes, é
desvalorizado pelos jovens e pouco incentivado pelos pais, o que dificulta o direcionamento do fazer pedagógico para esse
contexto.
Toda essa situação também colabora para a manutenção de desenvolvimento para a Amazônia intimamente
associado à urbanização, à industrialização, à introdução cada vez maior dos valores urbanos e de mercado no meio rural, ao
fortalecimento da grande agricultura de negócio em detrimento da agricultura camponesa, à exploração desenfreada do meio
ambiente. A escola, que funciona em uma região predominantemente rural, acaba não contribuindo para a construção de
práticas coletivas e individuais capazes de superar a dicotomia campo-cidade e de afirmar a importância do trabalho do
sujeito do campo para o desenvolvimento sócio-econômico-ambiental da Amazônia.
Por fim, cabe ressaltar que o momento pelo qual passa a humanidade demanda a superação de práticas educativas
descontextualizadas, ao mesmo tempo em que cobra a implementação de pedagogias comprometidas com a formação de
seres humanos tecnicamente capazes, socialmente engajados e politicamente conscientes. Esse é o desafio a ser enfrentado no
campo.

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2008).

Formação de profissionais em saúde e inclusão social: o desafio de uma proposta


de curso de mestrado profissional

Maria Rita Aprile


Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC/SP,
docente da pós-graduação e graduação da Universidade Bandeirante de São Paulo – Brasil
ritaaprile@hotmail.com

Célia Aparecida Paulino


Doutora em Patologia Experimental e Comparada pela Universidade de São Paulo – USP,
docente da pós-graduação e graduação da Universidade Bandeirante de São Paulo – Brasil
celiapaulino@uol.com.br

Patrícia Raphael Unger Bataglia


Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo - USP
Docente da pós-graduação e graduação da Universidade Bandeirante de São Paulo – Brasil
patriciabat@terra.com.br

Resumo: No Brasil, os cursos de pós-graduação stricto sensu denominados Mestrados Profissionais (MP) são relativamente recentes, posto
que há apenas uma década foram oficialmente reconhecidos pela Portaria N 80/1998, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), órgão do Ministério da Educação. Além de constituírem um fato novo, os MP crescem e ganham corpo no atual
contexto da educação superior brasileira: em 2007, dos 3.855 cursos de pós-graduação stricto sensu, 224 eram mestrados profissionais e a
estimativa da CAPES para os próximos cinco anos é que passem a representar 25% da oferta nacional dos cursos de stricto sensu. Inúmeros
debates vêm sendo realizados nos meios acadêmicos especialmente quando se questiona o papel da pesquisa e a formação profissional
proposta nesses cursos. Este estudo - inserido no rol da pesquisa qualitativa – analisa o curso de Mestrado Profissional Reabilitação
Vestibular e Inclusão Social, desenvolvido pela Universidade Bandeirante de São Paulo (UNIBAN), desde 2007. Partindo do discurso
oficial, traduzido nas políticas públicas, identifica as características e estratégias de interdisciplinaridade e de mestrado profissional
empregadas na concretização da proposta investigada. O estudo indicou que a CAPES ainda busca uma definição mais precisa para os MP e
que a proposta da UNIBAN – em fase de consolidação – assume a interdisciplinaridade na composição do corpo docente e na denominação
do próprio curso e se revela inédita ao conjugar a reabilitação de pacientes com desequilíbrio corporal e a sua inclusão social, ou seja,
questões específicas da área da saúde com propósitos mais amplos da sociedade.

491
Palavras-chave: educação superior – mestrado profissional - saúde

Introdução
Na atual configuração do ensino superior brasileiro, dados de julho de 2007 divulgados pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), órgão vinculado ao Ministério da Educação, indicam que o país
conta com 3.855 cursos de pós-graduação stricto sensu, distribuídos em 2319 (60,1%) mestrados acadêmicos; 1312 (34%)
doutorados e 224 (5,9%) mestrados profissionais. Os mestrados profissionais foram reconhecidos pela Portaria CAPES N.
80, de 16 de dezembro de 1998, sendo, portanto, relativamente recentes. Segundo estimativas do referido órgão, nos
próximos cinco anos, os mestrados profissionais deverão representar 25% do total dos cursos stricto sensu. Constituem um
tipo de grau acadêmico no nível de pós-graduação stricto sensu destinados à formação de profissionais pós-graduados aptos
para acompanhar e incorporar a produção de saberes, de gestão de processos e de utilização de inovações tecnológicas
necessários à formulação de respostas para os problemas identificados em suas áreas específicas de atuação, avaliando,
inclusive, os impactos sociais das intervenções realizadas. A principal diferença entre o mestrado acadêmico e o mestrado
profissional refere-se ao seu produto final. Enquanto o Mestrado Acadêmico se volta à formação do pesquisador, o mestrado
profissional, mesmo supondo a imersão do aluno na pesquisa, visa formar profissionais que saibam reconhecer, identificar e
utilizar a pesquisa de modo a agregar valor as suas atividades profissionais. Essa particularidade dos Mestrados Profissionais
vem se constituindo em uma questão bastante polêmica nos meios acadêmicos. Em 2005, durante o Seminário Nacional
“Para além da academia – a pós-graduação contribuindo para a sociedade”, promovido pela CAPES, foram retomadas as
discussões sobre o produto final dos mestrados profissionais. Nos debates realizados, considerou-se que as propostas para
implantação desses cursos devem levar em conta as exigências da sociedade atual em relação à formação de pessoal
qualificado requeridas pelos vários setores da economia que não lidam com a docência e nem com as pesquisas de ponta. Em
conseqüência, alguns pontos foram destacados, entre eles, o fato de nas próximas décadas poder ocorrer uma confluência da
oferta de mestres e doutores para além da academia e uma demanda significativa desses profissionais oriunda das empresas,
portanto, uma demanda de mestres e doutores fora e além da academia. Por outro lado, o aumento das titulações de mestres e
doutores, no país, constitui um sério indicador de que, em poucos anos, possivelmente haverá uma redução em termos
relativos - ainda que não absolutos - da absorção de mestres e mesmo de doutores pelo setor acadêmico. Esse fato certamente
exigirá das diferentes áreas de conhecimento – o que já é exigido de algumas delas – a apresentação de nova proposições para
destinação de seus titulados ao trabalho. Haverá, portanto, uma oferta de doutores e mestres para fora do âmbito da
academia. Em fins da década de 1990, pesquisas realizadas pela CAPES sobre o destino dos mestres e doutores do Brasil
indicavam que dois terços dos doutores se dirigiam para a docência acadêmica e que um terço deles já tomava outro destino.
Em relação aos mestres, apenas um terço seguia a carreira universitária enquanto que os dois terços restantes já se
profissionalizavam de distintas maneiras, o que reforça a necessidade da formação de destinação não-acadêmica ser
considerada na concepção dos cursos de pós-graduação de stricto sensu. O discurso oficial traduzido em documentos e
pronunciamentos recentes da CAPES enfatizam a inexistência de preconceitos por parte do referido órgão quanto à
transferência de conhecimentos científicos para as empresas ou para o mercado, mas ressalva que é fundamental para a
sociedade que o setor público e os movimentos sociais também sejam beneficiários dessa transferência de conhecimentos.
Tomando por base esses referenciais e as possíveis demandas do mundo do trabalho, em 2007, a Universidade Bandeirante
de São Paulo (UNIBAN), que já tinha aprovado pela CAPES o Mestrado Profissional em “Farmácia Produtos Naturais e
Sintéticos Bioativos”, encaminha a proposta de Mestrado Profissional em “Reabilitação Vestibular e Inclusão Social”, que foi
aprovada naquele mesmo ano.

Objetivo
Levando-se em consideração o exposto, este estudo analisa o curso de Mestrado Profissional Reabilitação
Vestibular e Inclusão Social, desenvolvido pela UNIBAN, desde 2007, buscando identificar suas características enquanto um
mestrado profissional e as estratégias utilizadas para a construção da interdisciplinaridade já presentes na composição do
corpo docente e na própria denominação do curso.

Metodologia
Este estudo se insere no rol da pesquisa qualitativa. Tem como ponto de partida a análise do discurso oficial,
traduzido nas políticas públicas estabelecidas pela CAPES para concepção, proposição e aprovação de propostas para este
tipo de curso de pós-graduação stricto sensu. Em seguida, analisa a proposta do referido curso Mestrado que consta de
documentos, relatórios de trabalho, produção do corpo docente e projetos de pesquisas de professores e alunos, discutidos em
“reuniões científicas”, além de entrevistas realizadas no laboratório do curso, todas com assinatura de termo de
consentimento livre e esclarecido.

Resultados

492
O estudo realizado indicou que desde a sua construção, a proposta do curso de Mestrado Profissional “Reabilitação
Vestibular e Inclusão Social” constituiu um grande desafio haja vista que a sua equipe de docentes é multidisciplinar, ou seja,
é integrada por professores doutores com formação, experiência profissional e referenciais teóricos e práticos diversificados:
médicos, psicólogos, farmacólogos, fonoaudióloga, fisioterapeuta, gerontóloga, lingüística e pedagoga. Assim constituída, a
equipe se viu diante do desafio de buscar uma concepção de trabalho interdisciplinar que superasse os “limites” colocados
pela visão tradicional de ciência que delimita de forma rígida os campos dos saberes, dos procedimentos e das metodologias
de trabalho e resultasse em uma proposição orgânica de trabalho. Para além de uma junção ou somatória de professores
doutores, a proposta buscava uma efetiva atuação interdisciplinar que, por sua vez, resultasse em um trabalho de verdadeira
simbiose profissional que se refletisse na concepção, metodologia e procedimentos de trabalho e principalmente no
encaminhamento dos conteúdos das disciplinas e nas práticas de laboratório. O estudo também indicou que a proposta, assim
concebida, além de incorporar práticas destinadas à reabilitação de pacientes com distúrbios do equilíbrio corporal que, por
sua vez, poderão apresentar incapacidade parcial ou total de realizar atividades domésticas, escolares e/ou profissionais, a
proposta também incorpora práticas destinadas à sua inclusão social. Nesse sentido, a proposta se coloca para além da
reabilitação vestibular destinada à recuperação do equilíbrio corporal de pacientes com labirintopatias, concretizada por meio
de exercícios repetitivos de olhos, cabeça e corpo, realidade virtual, métodos de substituição sensorial que estimulam a
plasticidade do sistema nervoso central e manobras corporais. A proposta focaliza também conhecimentos sobre os aspectos
psicológicos, as práticas educacionais e sociais que contribuem para o conhecimento mais amplo do paciente considerando as
suas especificidades e as relações que estabelece com os demais indivíduos e grupos da sociedade. Esses conhecimentos
deverão fundamentar a identificação de medidas, procedimentos e/ou proposição de projetos de intervenção que - articulados
à reabilitação vestibular - concorram para a melhoria da saúde e da qualidade de vida desses pacientes. Assim, o curso se
propõe a capacitar profissionais pós-graduados para incorporar os processos de produção do saber científico e acompanhar os
avanços tecnológicos referentes à reabilitação vestibular, bem como as proposições para a inclusão social dos portadores de
distúrbios do equilíbrio corporal; para formular projetos e desenvolver técnicas e processos demandados em diferentes níveis
de sua atuação, seja em instituições públicas quanto de natureza privada e avaliar os impactos das intervenções realizadas.
Para dar conta dessa proposta, o estudo revelou que o mestrado profissional em Reabilitação Vestibular e Inclusão Social
vem se utilizando dos seguintes procedimentos e estratégias de trabalho em uma perspectiva interdisciplinar: (1) articulação
entre conhecimento científico e prática profissional por meio de (a) projetos de pesquisa com propostas de intervenção; (b)
práticas interdisciplinares no laboratório de reabilitação vestibular e inclusão social. A estrutura do laboratório e a formação
dos docentes permitem um atendimento interdisciplinar dos pacientes diagnosticados ou não com vestibulopatias, que são
atendidos por docentes e alunos do curso, sob a supervisão e acompanhamento desses docentes. Na fase inicial, os pacientes
que buscam o laboratório são submetidos a um diagnóstico, que envolve docentes principalmente com formação
em Medicina, Fisioterapia e Fonoaudiologia. Na fase complementar, esse diagnóstico é acrescido de informações referentes à
história de vida dos pacientes; aos seus hábitos alimentares; sentimentos; rotinas; lazer; atividades físicas e intelectuais;
relacionamentos interpessoais; expectativas e avaliação de vida, estresse, entre outras. Deste momento, participam os
docentes com formação em Psicologia, Farmacologia, Educação, Lingüística e Gerontologia. Durante a fase de Reabilitação
Vestibular, os pacientes continuam a ser alvo de atenção dos vários profissionais por meio da prática de exercícios de
reabilitação propriamente dita e de acompanhamento por meio de entrevistas e de outras dinâmicas. Para o desenvolvimento
de todas essas atividades, o laboratório é constituído de 12 salas de orientação, 02 salas de atendimento médico, 01 sala de
avaliação fisioterapêutica, 01 sala para avaliação do processamento auditivo central, 01 sala para atividades relacionadas à
inclusão social, 10 cabines de audiometria, 01 sala de vestibulometria, 01 sala para avaliação da audição, 01 sala para
reabilitação vestibular com equipamentos em solo e 01 balance rehabilitation unit (BRU), aparelho de tecnologia de ponta
destinado à reabilitação por realidade virtual, sendo um dos únicos aparelhos do Brasil; (c) reuniões científicas periódicas
com discussão de casos clínicos atendidos e resultados de oficinas e entrevistas realizadas com pacientes; (2) capacitação de
profissionais em uma perspectiva inter e multidisciplinar para atuação no mercado de trabalho por meio de (a) participação de
docentes com formação e experiência profissional diversificadas no desenvolvimento de uma mesma disciplina, concorrendo
para uma visão mais ampla do paciente com vestibulopatia; (b) desenvolvimento de práticas interdisciplinares no laboratório;
(c) orientação e co-orientação de uma mesma dissertação por professores doutores com formação e experiências
diferenciadas; (d) discussão de casos clínicos em reuniões científicas com a participação de docentes, alunos e professores
colaboradores; (e) proposição e elaboração de instrumentos de coleta de dados com a participação conjunta de vários
docentes, como é o caso de instrumento de pesquisa sobre qualidade de vida e inclusão social para portadores de distúrbios
do equilíbrio corporal visando subsidiar o levantamento de dados para projetos de docentes e mestrandos; (3) consolidação
de um locus institucional de produção de conhecimentos e de utilização de tecnologias que incidam sobre a identificação de
problemas referentes à reabilitação vestibular e inclusão social e, em decorrência, a proposição de novas abordagens e
estratégias para a sua solução por meio de: (a) divulgação da produção científica de docentes e alunos em eventos; artigos
científicos e outros meios, como é o caso do livro, no prelo, que conta com a participação dos docentes do curso e de outros
convidados; (b) assinatura de convênios com instituições públicas e privadas destinados ao desenvolvimento de trabalhos
conjuntos; (c) intercâmbio com empresas que produzem equipamentos para reabilitação vestibular com emprego de
tecnologia de ponta; (4) desenvolvimento de projetos de pesquisa em uma perspectiva de interdisciplinaridade, ou seja, por
meio da participação expressiva dos docentes também nos projetos de seus companheiros de equipe, o que concorre para a
construção e consolidação de uma equipe interdisciplinar e o entendimento mais amplo dos processos de reintegração social

493
de pacientes acometidos por vestibulopatias; (5) trabalho integrado dos docentes na execução das disciplinas por meio da
interação dos docentes na realização de aulas e de seminários especiais com o objetivo de fomentar o debate entre as diversas
linhas de pesquisa; (6) reuniões científicas periódicas com o propósito de (a) analisar e debater os projetos de pesquisa dos
docentes, sugerindo, quando necessário, medidas destinadas a sua melhoria; (b) analisar e debater os projetos dos mestrandos,
indicando, se for o caso, pontos a serem reformulados; revisões de metodologia; bibliografia etc. e proceder a sua aprovação;
(c) analisar e casos clínicos atendidos no laboratório e de interesse comum ao Programa; (d) discutir textos e realizar
seminários que permitam o aprofundamento de questões relacionadas aos projetos de pesquisa dos docentes e discentes; (7)
estreitamento do relacionamento com a graduação por meio da inserção dos alunos em projetos de iniciação cientifica e de
sua participação em reuniões científicas; bem como da participação efetiva dos docentes em eventos da graduação.
Conclusões
O estudo revelou que a CAPES - mesmo sendo o órgão responsável pela definição e/ou disseminação das políticas
públicas para os mestrados profissionais - ainda busca uma definição mais precisa em relação ao produto final dos MP.
Revelou ainda que a proposta da UNIBAN - em fase de implantação e consolidação - exige o repensar constante de suas
metodologias e procedimentos de trabalho para que ajustes sejam realizados no sentido de seu aperfeiçoamento. E, por fim,
revelou que a perspectiva da interdisciplinaridade configura um traço vigoroso da proposta e aponta para dois focos de
estudo: (1) o específico, que decorre de cada área de conhecimento e, portanto, permite a compreensão do paciente em
aspectos localizados; (2) o global, que resulta da compreensão do paciente em sua totalidade e complexidade, a partir da
articulação das várias áreas de conhecimento. Além desses aspectos, o estudo apontou que a composição multidisciplinar da
equipe concorre para o ineditismo da proposta na medida em que são conjugados procedimentos de reabilitação de pacientes
com desequilíbrio corporal e práticas sociais destinadas à sua inclusão social, ou seja, há uma articulação entre questões
específicas da área da saúde e os propósitos mais amplos de uma sociedade democrática.

Bibliografia
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Paulo: Augurium,

Organismos Internacionais e a Educação de Jovens e Adultos Trabalhadores no


Brasil1

Sonia Maria Rummert


Universidade Federal Fluminense
rummert@uol.com.br

Jaqueline Ventura
Universidade Estácio de Sá
jaqventura@uol.com.br

Resumo: Serão abordados o papel e a influência dos organismos internacionais – em particular o Banco Mundial e a Unesco – na
formulação de políticas de educação básica e profissional de jovens e adultos trabalhadores no Brasil, nas décadas de 1990 e 2000. Para
tanto, procederemos à análise das propostas apresentadas para a área por essas agências multilaterais – tal como expressas nos documentos
por elas divulgados –, de modo a evidenciar a lógica de dominação que as fundamentam, bem como os conceitos que dela derivam e que são
largamente difundidos na sociedade com o objetivo de atender às demandas do sistema do capital, no atual quadro da hegemonia
internacional. Será evidenciado que tais iniciativas se apresentam como respostas à nova materialidade do capitalismo internacional,
ressaltando-se suas influências nos debates e nas formulações relativas à educação da classe trabalhadora. Para tanto, nos deteremos,
principalmente, em dois aspectos fundamentais: o primeiro refere-se aos reais significados das teses acerca da "educação ao longo da vida"
para os países semi-periféricos, adotadas de forma acrítica por diferentes forças sociais; o segundo, contempla as efetivas intencionalidades
políticas presentes nos acordos e declarações internacionais bem como na defesa de seus princípios pelas forças dominantes no país.

Introdução

1
Este artigo foi elaborado a partir da pesquisa para a Tese de Doutorado Educação de jovens e adultos ou educação da classe trabalhadora? Concepções em
disputa na contemporaneidade brasileira, vinculada a pesquisa Educação básica e profissional de trabalhadores. Políticas e ações do Estado, do trabalho e do
Capital, ambas apoiadas pelo CNPq.

494
Em que pesem as peculiaridades de cada país e as diferenças produzidas pelo desenvolvimento econômico desigual,
podemos destacar dois momentos histórico-econômicos como referências gerais para a contextualização do cenário de
reestruturação mundial do capitalismo. Um primeiro que corresponde aproximadamente ao período de 1945 a 1975, sob o
padrão de acumulação fordista-taylorista; e um segundo que, correspondente ao período posterior a crise da década de 1970,
impõe a necessidade de criação de novos métodos de expansão do capital, consolidados, sobretudo, a partir da década de
1990, sob o padrão de acumulação flexível-toyotista.
Em linhas gerais, o padrão de acumulação fordista caracterizava-se pela racionalização do processo de trabalho,
pela produção e consumo em massa de bens padronizados, por máquinas de produção em série, pela rigidez no exercício do
trabalho e pela separação entre concepção e execução do trabalho. Dos trabalhadores, exigia-se basicamente obediência a
normas e procedimentos operacionais e a prescrições na realização das tarefas; como conseqüência, o trabalhador é destituído
do seu saber na medida em que este é decomposto em saberes e gestos parcelares; e, como conseqüência ainda, podia-se,
utilizar um número reduzido de trabalhadores qualificados e uma grande quantidade de trabalhadores semiqualificados e, até
mesmo, sem nenhum tipo de qualificação. Quanto à preparação da força de trabalho, esta se relacionava diretamente com a
formação profissional do trabalhador em uma perspectiva de coletividade.
Já no padrão de acumulação flexível, cuja principal referência é o toyotismo, predomina a produção flexível e o
capital financeiro, destacando-se como principais características as seguintes: automatização flexível da produção, produtos
menos padronizados, produção em séries restritas de produtos diferenciados e variados, um sistema de trabalho integrado em
equipe, menor hierarquia com a organização por células ou grupos de trabalho, reaproximação do trabalho de concepção com
o trabalho de execução. Dos trabalhadores, passa a ser exigido iniciativa e criatividade na resolução de problemas, ocorrendo,
com isso, um processo de desespecialização dos profissionais para transformá-los, não em operários parcelares como
anteriormente, mas em trabalhadores polivalentes, com múltiplas funções. Quanto à preparação da força de trabalho, passa a
predominar a lógica das competências como principal estratégia de formação/adaptação às novas necessidades do sistema
produtivo, em outras palavras, difunde-se a idéia da necessidade de um trabalhador flexível, sempre disposto a se adaptar, em
uma perspectiva individualista, diante das transformações do novo contexto do mundo do trabalho.
No atual contexto de acumulação flexível atribui-se grande importância à formação contínua, de modo que o
indivíduo no cenário de desemprego, por exemplo, busque, ele mesmo, soluções para tal situação, ou seja, o indivíduo é
responsável pelo seu sucesso ou fracasso. Trata-se, portanto, da hegemonia de uma perspectiva de adaptação individual ao
contexto social. É nesse contexto de responsabilização individual pela formação que surge a perspectiva da “aprendizagem ao
longo da vida”.
Observa-se por um lado, que tal perspectiva foi cunhada e disseminada em declarações e eventos internacionais
patrocinados por organismos internacionais, como a Unesco e o Banco Mundial, na década de 1990. Seu conteúdo refere-se à
defesa de que diante das mudanças em andamento em nível mundial, a educação contínua é pré-requisito para o processo de
inserção social no século XXI. Por outro lado, observa-se nas últimas décadas a ampliação do poder e da influência dos
organismos internacionais (instituições supranacionais e multilaterais2) na tomada de decisões dos governos de países
periféricos. A totalidade dos Estados situados na semiperiferia, vêem sua dependência e subordinação externa ampliadas na
configuração da divisão internacional do trabalho (Arrighi, 1997).
Neste trabalho pretendemos traçar uma breve análise sobre o papel e a influência dos organismos internacionais na
formulação de políticas de educação de jovens e adultos (EJA) trabalhadores no Brasil. Tomaremos como mote para nossas
reflexões a seguinte questão: quais os significados das teses acerca da aprendizagem ao longo da vida para países
semiperiféricos? Para elucidarmos essa questão, trabalharemos a partir de dois pontos: a) as propostas políticas presentes nos
acordos e declarações internacionais; b) as visões contidas na tese da aprendizagem ao longo da vida.

Os Acordos e Declarações Internacionais – aproximações


Dentre os organismos internacionais, a Unesco e o Banco Mundial, destacam-se por serem importantes agências de
formulação de concepções e políticas de EJA no Brasil3.
A Unesco atua, em grande medida, como produtora de informação e conhecimento, assim como produz assessoria e
orientação, balizando a atuação dos governos nacionais com “princípios” e “necessidades” formulados em escala global. O
Banco Mundial, por sua vez, destaca-se no direcionamento das prioridades e estímulo à produção por meio dos
financiamentos a projetos afinados com as suas proposições para a educação nos países periféricos. Nesse sentido, no que se
refere a política educacional, verifica-se que o Banco Mundial atua como instância financiadora de projetos, construindo
uma forma estratégica de intervenção e indução nas políticas dos Estados nacionais. Sendo este, atualmente, a principal
instituição envolvida na reconfiguração da educação dos países periféricos, exercendo grande influência sobre as políticas
2
Neste cenário, os organismos financeiros internacionais, principalmente o Banco Mundial e o FMI, passam a ter o papel de tutorear às reformas implicadas no
modelo de estabilização econômica imposto aos Estados nacionais, em particular as de países do capitalismo periférico. A UNESCO assume o papel de assessora
técnica no plano pedagógico, realizando eventos e produzindo um grande número de documentos “orientadores” de prioridades na educação. A OMC, no plano
jurídico-econômico, vai traçando uma legislação cujo poder ultrapassa o domínio das empresas transnacionais, e cada dia mais exerce, também, grande influência
na educação. Regionalmente, há ainda, no plano econômico, a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e, no plano educacional, a
OREALC (Oficina Regional para a Educação na América Latina e no Caribe).
3
Tal recorte não significa que não reconheçamos a atuação coadunada do FMI com o Banco Mundial e com a UNESCO, nem sua importância, principalmente,
no que se refere à gestão do endividamento externo.

495
desses países, principalmente com seus diagnósticos e recomendações de políticas públicas e ações governamentais,
impondo, assim, temáticas prioritárias para acesso aos recursos.
No período histórico posterior à Segunda Guerra Mundial, o campo da formação de adultos é afirmado e
desenvolvido mundialmente. As Conferências Internacionais de Educação de Adultos (CONFITEAs) realizadas ao longo da
segunda metade do século XX, que tiveram a Unesco como sua principal agência promotora, coordenando a preparação das
reuniões, representam o pensamento da Unesco para a área de educação de adultos, configurando-se como um espaço que
catalisa e articula matrizes teóricas e perspectivas políticas internacionais no âmbito da educação de adultos.
As CONFITEAs vêm sendo realizadas desde 1949, com doze anos de intervalo em média. Assim, até o momento
houve cinco Conferências: I – Dinamarca, 1949; II – Canadá, 1960; III – Japão, 1972; IV – França, 1985; V – Alemanha,
1997. Cada CONFITEA reflete as inquietações e as tendências mundiais dominantes na década anterior à sua realização. A
última CONFITEA realizada até este momento (Hamburgo, Alemanha, 1997) teve como principal perspectiva conceber a
educação de adultos dentro do contexto da educação continuada ao longo de toda a vida.
A V CONFITEA, ressaltou a defesa de duas vertentes complementares: a escolarização e a educação continuada,
resultaram dois documentos: a Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro (Unesco, 2004), que sistematizaram e
divulgaram os conceitos de educação continuada ao longo da vida e de necessidades de aprendizagem, calcados nas
perspectivas da cooperação e a solidariedade internacionais para um novo conceito da educação de adultos. Assim, para
analisarmos as formulações que estão postas neste importante e recente marco, é preciso problematizar seu conteúdo
implícito quando, por exemplo, a Agenda para o Futuro da Educação de Adultos da Declaração de Hamburgo assinala que
“A cooperação e a solidariedade internacionais devem consolidar uma nova concepção de educação de adultos” (Tema X).
Dessa forma, segundo a Declaração de Hamburgo (2004), o conceito contemporâneo da educação de adultos, “O
reconhecimento do “Direito à Educação” e do “Direito a Aprender por toda a vida” é, mais do que nunca, uma necessidade”.
(Art. 12). Ou seja, a V CONFITEA reafirmou a necessidade de alargar o conceito de educação de adultos para além da
questão da escolarização, destacou que a alfabetização deve ser tratada como a primeira etapa da educação básica,
ressaltando que esta não pode ser separada da pós-alfabetização; enfim, discutiu o conceito de educação de adultos como um
direito, que é associado à possibilidade de processos formais e informais de aprendizagem e à educação contínua. Todavia,
associando a globalização à “Sociedade da Informação” ou “do Conhecimento”, numa perspectiva de negação da luta de
classes e de adoção das teses do fim do trabalho, a Conferência relaciona a educação de adultos com a complexidade da tal
Sociedade da Informação e com a necessidade da construção de uma espontânea harmonia social em prol de uma abstrata
solidariedade universal, afirmando-se, por exemplo, que “É de fundamental importância a contribuição da educação de
adultos e da educação continuada para a criação de uma sociedade tolerante e instruída, para o desenvolvimento
socioeconômico, para a erradicação do analfabetismo, para a diminuição da pobreza e para a preservação do meio ambiente.”
(Art. 4)
Deve-se destacar ainda que à Declaração Mundial de Educação para Todos foram acrescidas, além da V
CONFITEA, novas referências orientadas pelas agências internacionais para o campo da educação, como o Marco de Ação
de Dakar (Unesco, 2000). Nesse encontro, realizado em 2000 em Dakar/Senegal, as metas de Educação para Todos foram
avaliadas e redimensionadas, foi acordada uma redução do analfabetismo em 50%, e prolongado o compromisso até 2015. O
Marco de Ação de Dakar estabelece objetivos prioritários4 e reafirma que a educação é a chave para o desenvolvimento
sustentável e para assegurar a paz e a estabilidade em cada país.
Além das iniciativas já mencionadas, podemos destacar a Declaração de Nova Delhi5 (Unesco, 1993) e a
Declaração de Cochabamba (Unesco, 2001)6. Ambas retomam as propostas já acordadas de universalizar a educação primária
e de reduzir o analfabetismo, em consonância com o princípio da eqüidade. Dentre os atuais documentos que expressam
compromissos, podemos ainda ressaltar: a Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-2012), as Metas de
Desenvolvimento do Milênio e o Programa Iniciativa para o Empoderamento. Em comum, todos apontam, com maior ou
menor ênfase, o acesso à educação como base para a eqüidade, a inclusão e a coesão sociais e a solidariedade entre os povos,
requisitos para enfrentar os desafios da “sociedade do conhecimento”. A imperiosa necessidade de “adaptação às mudanças”
é o foco convergente em todos os documentos (acordos e declarações), tanto os oriundos do Banco Mundial quanto os da
Unesco.
A predominância no Brasil de uma determinada tendência expressa a correlação de forças entre as agências
financiadoras. É notório que, apesar de a Unesco ter sido recomendada como “a instituição líder do processo, o Banco
Mundial foi assumindo o controle na condução das políticas educacionais, colocando as instituições da ONU e seus objetivos

4
São seis os objetivos: 1) expandir e melhorar a educação e os cuidados na primeira infância; 2) assegurar o acesso de todas as crianças em idade escolar à
educação primária completa, gratuita e de boa qualidade; 3) ampliar as oportunidades de aprendizado dos jovens e adultos; 4) melhorar em 50% as taxas de
alfabetização de adultos; 5) eliminar as disparidades entre gêneros na educação; e 6) melhorar todos os aspectos da qualidade da educação.
5
Na Declaração de Nova Delhi, os países se comprometem a “buscar com zelo e determinação as metas definidas pela Conferencia Mundial sobre Educação para
Todos” (Unesco, 1993, art.1). O documento reconhece e aponta que “os conteúdos e métodos de educação precisam ser desenvolvidos [...] proporcionando-lhes o
poder de enfrentar seus problemas mais urgentes – combate à pobreza, aumento da produtividade, melhora das condições de vida e proteção do meio ambiente”
(idem, art. 2.4, grifo nosso). Ao final, o documento convoca os colaboradores das instituições financeiras internacionais para que, “sob o prisma de ajustes
estruturais, reconheçam a educação como investimento crítico isento da imposição de tetos preestabelecidos, e que promovam um clima internacional capaz de
permitir aos países sustentar seu desenvolvimento socioeconômico” (idem, art. 4.2).
6
Não foram consideradas declarações mais específicas, apesar de estarem no mesmo contexto, como, por exemplo, a Declaração de Salamanca, sobre Princípios,
Política e Prática em Educação Especial, de 1994, e a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: visão e ação, de 1998.

496
em uma posição subordinada.” (Siqueira, 2001b: 3). Dessa forma, análises do tipo custo-benefício continuaram sendo o
instrumento privilegiado no campo das políticas educacionais.
Apresentando como inevitável à adequação subordinada dos países periféricos à mundialização financeira, os
documentos elaborados pelos organismos internacionais ao longo da década de 1990 apresentaram como idéia central a
associação entre educação e “adaptação às mudanças”, como forma de inclusão das massas que estivessem à margem do
processo de modernização. Assim, as agências internacionais e os organismos nacionais a elas relacionados, buscaram uma
fórmula que permitisse às massas adquirir os elementos básicos da modernidade, bem como inserir-se, no suposto novo
tempo da “sociedade do conhecimento”.
Nesse sentido, o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001. Luta contra a pobreza “propõe uma
estratégia para atacar a pobreza em três frentes: promover oportunidades, facilitar a autonomia e aumentar a segurança”
(Banco Mundial, 2001: 6). Outro aspecto central que esclarece o “como ajudá-los (aos pobres)” aparece, por exemplo,
expresso no recente documento UNESCO. O que é. O que faz (Unesco, 2007), onde afirma-se que, para acelerar o alcance
das metas da educação para todos, atualmente a Unesco prioriza três iniciativas em áreas estratégicas:

. A iniciativa da alfabetização para o empoderamento (LIFE – Literacy Iniciative for Empowerment) programa
destinado à pessoas sem conhecimentos suficientes de leitura e escrita, implementado em 33 países;
. A iniciativa Global de Educação para a prevenção do HIV/AIDS (EDUCAIDS) que promove a ampliação da
educação preventiva para a população jovem vulnerável;
. A iniciativa de formação de professores na África Sub-Saariana que visa suprir a carência de professores
(ocasionada pela HIV/Aids, conflitos armados, entre outros). (p. 6)

Nesse cenário, dentre as três áreas chave, o “empowerment” ou “Iniciativa para o Empoderamento” nos chama
particularmente a atenção. Trata-se de um programa específico criado pela Unesco, no marco do Decênio, para países com
altas taxas de analfabetismo, em que o enfoque, considerado inovador, é dado na “alfabetização para o empoderamento dos
excluídos”7, sem articulações políticas mais amplas (como partidos políticos ou sindicatos), pregando o incentivo às
potencialidades dos indivíduos para melhorarem suas condições imediatas de vida, promovendo a integração das frações mais
destituídas da classe trabalhadora a um mínimo de serviços e bens elementares à sobrevivência.
A forma naturalizada com que os documentos8 tratam as causas da pobreza e apontam medidas para reduzi-la,
predominando claramente à concepção de que se deve “ajudar” os pobres a perceber e a adaptar-se às mudanças sociais,
econômicas e culturais. Para os organismos internacionais, há uma circunstância social a ser administrada, sendo preciso
abrandar as conseqüências do modelo político-econômico adotado. Neste sentido, o cinismo com que o Banco Mundial
lamenta o crescimento exponencial da pobreza no mundo é acompanhado de incentivo a políticas focalizadas; dentre elas,
políticas focais na educação, utilizadas como controle social, ao contribuir para mitigar tensões sociais decorrentes da
pobreza e suas conseqüências.

A Aprendizagem ao Longo da Vida e a Educação de Jovens e Adultos no Brasil


A associação, no Brasil, entre educação de jovens e adultos (EJA) e aprendizagem ao longo da vida tornou-se
comum na última década. Tal fato, identificado como a emergência de um novo paradigma, estaria redefinindo a identidade
da área em oposição ao (suposto) paradigma anterior de educação compensatória. Esse processo de transição de referências
(ou paradigmas) é justificado, nacionalmente, pela necessidade de crítica a uma visão redutora e escolarizante, que aborda a
EJA apenas no sentido de reposição de estudos via escolarização, e também pela necessidade de uma oposição às ações de
curta duração e baixa escolaridade que caracterizam historicamente as políticas para a área.
A concepção predominante de grande parte da literatura atual da área de EJA no Brasil é consoante com a afirmada
internacionalmente. A atual ênfase na aprendizagem ou educação continuada ao longo da vida, que tem como pressuposto a
“sociedade do conhecimento”, permeia tanto os documentos das agências internacionais, advindos principalmente das
parcerias com a Unesco, como aparece, de forma recorrente, na literatura especializada e em documentos governamentais. A
consideração do tema apredizagem ao longo de toda a vida como um novo paradigma da EJA tem sua origem em
documentos como a Declaração de Hamburgo (proveniente da V CONFITEA), e é referendada, em documentos legais como
o Parecer nº 11/2000 do Conselho Nacional de Educação, que instituí a função qualificadora, atribuindo à EJA a função de
“atualização de conhecimentos por toda a vida”.

7
“Na região da América Latina existem dois países que foram considerados nesse Programa: Haiti (por suas altas taxas de analfabetismo) e Brasil (por ter mais
de 10 milhões de analfabetos)”. Disponível em:
<http://www.campanaderechoeducacion.org/news.php> Acesso em: 10 out. de 2007.
8
Dentre outros, destacamos, especialmente os seguintes documentos: Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000/2001 – Luta contra a pobreza. Panorama
Geral (Banco Mundial, 2001) e Desenvolvimento e Redução da Pobreza (Banco Mundial, 2004).

497
Não obstante o seu tom inaugural, o discurso sobre a necessidade de uma educação ao longo da vida não é novo9.
Em 1972, a Comissão Internacional para o Desenvolvimento da Educação, criada pela Unesco, apresentou o Relatório
Aprender a Ser (Relatório Faure), enfatizando o conceito de educação permanente. Em 1996, mais de vinte anos depois do
Relatório Faure e, portanto, num contexto totalmente diferente, o Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre
Educação para o Século XXI, elaborado de 1993 a 1996 e divulgado no livro Educação: Um tesouro a Descobrir (Relatório
Delors), apresentou os desafios aos quais a educação, em âmbito mundial, deveria responder no próximo milênio.
A partir do Relatório Faure (Faure, 1981), novos pressupostos para a educação foram elaborados nos anos 1970.
Um dos objetivos do Relatório Faure foi analisar a crise mundial da educação, resultante dos acontecimentos do final da
década de 196010 e da expansão dos sistemas educacionais após a Segunda Guerra Mundial. O documento manifestou
apreensão com relação à grande disparidade, nos níveis econômico e social, entre os países industrializados e os em
desenvolvimento, e com a questão da marginalização de muitas pessoas em todo o mundo, acarretando um processo de
desumanização da sociedade e pondo em xeque a democracia. A finalidade do Relatório era propor uma educação capaz de
possibilitar e garantir a democracia, dentro de uma referência de desenvolvimento social.
Assim, a partir de um enfoque no sujeito, o Relatório Faure enfatiza a adequação da sociedade à modernização, ou
seja, baseia-se na idéia de expansão do progresso e no impedimento de possíveis conflitos gerados pelos que não eram
incorporados ao suposto desenvolvimento. Relacionando as idéias de progresso e educação, a educação permanente,
inspirando-se nas teorias do Capital Humano e da Modernização, pretendia suprir necessidades de formação educacional para
a segunda metade do século XX. A educação permanente e a Cidade Educativa seriam os agentes de uma formação mais
adequada para a sociedade do trabalho, dentro de um projeto de sociedade em que o Estado-nação exerceria um papel central,
destacando-se no Relatório a recomendação para que o Estado ampliasse seus gastos com a educação pública.
O Relatório Delors, pôs ênfase no respeito à diversidade e aposta na defesa do pluralismo como forma de melhorar
o entendimento entre os povos e a construção de um mundo melhor, além de reafirmar as idéias de educação continuada. O
relatório parte da constatação de que mudanças na estrutura social, decorrentes das transformações no mundo do trabalho,
teriam gerado a “nova sociedade da informação” e, a partir daí, estabelece quatro pilares considerados indispensáveis para
educação: aprender a ser, aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a viver juntos (Delors, 2004: 90).
Observa-se, conforme estudos de Silva Jr. (2002), o aporte teórico para pedagogias instrumentais e adaptativas, por
meio da naturalização das desigualdades sociais. A idéia de constante adaptação a um mundo que passa por rápidas
mudanças é central no Relatório Delors. Dessa forma, tomando a realidade social como algo dado, a educação passa a
expressar o novo paradigma político, centrado na busca do consenso e da harmonia social; toma ainda as realidades social e
natural como dadas, sem qualquer questionamento sobre as contradições que, por meio das relações sociais, produzem a
realidade.

Aprendizagem ao Longo da Vida: uma perspectiva ao encontro da acumulação flexível


No quadro de mundialização (Chesnais, 1996) e internacionalização da economia no contexto imperialista (Harvey,
2004) intensificam-se os conflitos sociais e a pobreza, colocando em risco a estabilidade e a administração do capital11. Em
outras palavras, é necessário não só diagnosticar os problemas sociais como criar os mecanismos para controlá-los.
O conceito de Aprendizagem ao Longo da Vida se apresenta como uma resposta à atual fase capitalista de
acumulação flexível12. Pode-se notar que sua adoção tem se prestado a um duplo objetivo: 1) atender às demandas da nova
materialidade do sistema capital e 2) administrar a pobreza e suas conseqüências.
Quanto ao primeiro objetivo enunciado, a aprendizagem ao longo da vida trata a nova fase capitalista de forma
naturalizada e evoca a adaptação/preparação dos indivíduos como forma de responder ao novo quadro hegemônico
internacional. Nesta perspectiva, é possível perceber que do primeiro objetivo geral derivam objetivos específicos (ou sub-
objetivos) sob a forma de discursos e iniciativas que apresentam em comum a orientação de uma adaptação funcional dos
sujeitos e da educação à economia. Defende-se, assim que: 1.1. os problemas de inserção ou permanência no mercado de
trabalho são decorrentes da pouca ou inadequada qualificação das pessoas justificando-se a adoção desta perspectiva pela
necessidade de maior qualificação para lidar com o mundo do trabalho na dita complexa “sociedade da informação”; 1.2.
diante do caráter restritivo do mercado de trabalho na atualidade, cabe as pessoas adquirir ou ampliar competências e

9
Em 1968 a UNESCO publicou o documento A crise Mundial da Educação – uma análise sistêmica, no qual Philip H. Coombs, diretor do Instituto Internacional
de Planificação da Educação (IIPE) da UNESCO, se apoiava em trabalho desse Instituto para analisar os problemas da educação no mundo e recomendar ações
inovadoras (cf. Delors, 2004: 268).
10
Referindo-se, entre outros, à experiência francesa de ocupação das universidades pelo movimento estudantil, e de formulação cultural de contracultura, que
ficou conhecido como Maio de 1968.
11
Vivemos por um lado, uma acentuação da concentração de capital, dos processos de precarização da força de trabalho e de fragmentação do mundo do
trabalho. Por outro, vivemos um aprofundamento do processo de internacionalização do capital, com forte predomínio do financeiro. Nesse contexto de
reordenamento, ampliam-se o poder e a influência dos organismos internacionais na tomada de decisões dos governos de países periféricos. Os Estados situados
na semiperiferia vêem ampliadas sua dependência e subordinação externa na atual divisão internacional do trabalho (Arrighi, 1997).
12
O processo de reestruturação produtiva denominado por Harvey (2004) de capitalismo de acumulação flexível, é definido em confronto direto com a rigidez do
fordismo. O atual projeto societário foi assim nomeado tanto pela criação de novas formas flexíveis de gestão e organização da produção e do mundo do trabalho
– cuja principal conseqüência é restrição de postos de trabalho (desemprego estrutural) –, bem como, pela sua característica de coexistência de formas diversas e
heterogêneas de produção e de relações de trabalho, da artesanal à alta tecnologia, do trabalho infantil e escravo a equipes semi-autônomas em empresas de
ponta.

498
habilidades para a empregabilidade, justificando-se a aprendizagem ao longo da vida pela necessidade de competitividade e,
por fim, 1.3. que diante mesmo da inexistência de postos de trabalho para todos é preciso buscar alternativas de sobrevivência
(auto-geração de renda) justificando a aprendizagem ao longo da vida pela necessidade de aquisição de uma atitude
empreendedora.
O quadro traçado coaduna-se com a concepção formulada pelas agências multilaterais – expressa por seus
documentos – em especial o Banco Mundial e a Unesco. Neste sentido, podemos destacar, por exemplo, o Relatório sobre o
Desenvolvimento Mundial de 1995, intitulado O trabalhador e o processo de integração mundial, em que o ajustamento dos
trabalhadores ao modelo de desenvolvimento imposto é assim apresentado:

As transformações implicam profundas reformas estruturais, criando novas oportunidades e novos riscos que
naturalmente geram vencedores e vencidos. Contudo, ao transferir a mão-de-obra para usos mais produtivos, a mudança
estrutural acaba por aumentar a produção e a renda do trabalho.
A mão de obra tende realmente a sofrer, talvez mais do que o capital, durante o período inicial do ajustamento. Em
geral, porém, esse sofrimento se deve não a falhas no planejamento das políticas de ajustamentomas ao fato de ocorrer esse
ajustamento simultaneamente com a crise econômica – ou ser provocado por ela –, acompanhada de acentuada queda da
demanda global. (Banco Mundial, 1995: 118)

Nesse contexto, a educação é hiperdimensionada, tratada simultaneamente como causa e solução para o
desemprego e a pobreza. Ilustrativo dessa lógica é o documento conjunto Banco Mundial-Unesco em que se afirma: “bilhões
de pessoas ainda vivem na escuridão de pobreza DESNECESSARIAMENTE… isto é em parte porque elas não podem ligar
o ‘interruptor da luz’ que é a educação.” (The task force on higher education and society, 2000:19, Apud Siqueira, 2001a: 4).
Observa-se na realidade brasileira, a recorrência ao discurso sobre a pobreza e a centralidade conferida a soluções
individuais, dentre elas preferencialmente a educação, como forma de superar esta condição social. Nesse sentido, há um
conjunto de programas e projetos (políticas de governo) que atribuem à educação o papel de superação de desigualdades e
defendem como solução para o enfrentamento da baixa escolaridade da população, políticas focais, – “simulacros de
processos educacionais [...] anunciados como portadores potenciais de inclusão” (Rummert, 2007: 37-38) –, traduzidas
atualmente como educação para inclusão e eqüidade social.
Quanto ao segundo objetivo enunciado, de que o conceito de aprendizagem ao longo da vida contribui para a
administração da pobreza e suas conseqüências, defende-se que esta aprendizagem trata a pobreza de forma naturalizada e
atribui à educação uma função paliativa. Nesta perspectiva, é possível perceber que deste segundo objetivo, derivam outros
sub-objetivos que apresentam em comum a promoção da ordem e do controle social através de ações educacionais de caráter
compensatório dirigidos aos chamados excluídos, aproxima-se do conceito de aprendizagem ao longo da vida os sub-
objetivos de: 2.1. evitar convulsões/conflitos sociais, ou seja, há a intenção de preservação da paz através da enunciação de
luta contra a chamada exclusão social; 2.2. incutir o conformismo e a não capacidade de leitura crítica da realidade social,
uma vez que a nova economia é apresentada como inelutável e 2.3. formar colaboradores e parceiros pro-ativos prontos a agir
em conjunto ou mesmo substituindo o Estado (em alguns casos verdadeiros agenciamentos dos pobres).
O cenário acima traçado pode ser corroborado ao avaliarmos os documentos do Banco Mundial, que de forma
recorrente omitem as características estruturais do modo de produção capitalista geradoras da pobreza. Tratando-a como
situação social limite que precisa ser administrada – e apontam medidas para “ajudar” os pobres a perceber e a adaptar-se as
mudanças sociais, econômicas e culturais em um contexto dominado pela velocidade da informação. Nesta perspectiva é que
o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1997, defende que é preciso “dar voz ao povo”, note-se:

Os governos são mais eficientes quando escutam as empresas e os cidadãos e trabalham em parceria com eles na
decisão e implementação de políticas. [...]
Uma parceria requer que a voz dos pobres e dos grupos marginalizados seja levada ao próprio centro do processo
de formulação de políticas. [...]
Os programas governamentais funcionam melhor quando buscam a participação dos usuários e quando aproveitam
a reserva comunitária de capital social. (Banco Mundial, 1997: 29).

A necessidade de ações de redução da pobreza e proteção dos grupos sociais mais vulneráveis fundamenta-se no
argumento de que estes constituem uma “terra fértil para a violência e a instabilidade” (idem, p. 6). A influência do
pensamento dos organismos internacionais na formulação de políticas no Brasil pode ser comprovada considerando, por
exemplo, o Programa Agente Jovem, executado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
criado e 2001 e o ProJovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária), criado
em 200513. Os programas citados associam a “ameaça à ordem”, que a juventude pobre potencialmente representa à
relevância de se estimular o protagonismo juvenil, ao exigir do jovem uma atuação em ações comunitárias nas denominadas
“comunidades carentes” da qual fazem parte; desenvolvendo trabalho voluntário, - como, por exemplo, recreação com as

13
Acerca desses e outros projetos de ações focais, ver, por exemplo, Rummert (2007) e Ventura (2008).

499
crianças, esclarecimento na questão das drogas ou na questão da atividade sexual, pintando a escola, fazendo uma calçada
etc. –, enfim, preenchendo a ausência do poder público em troca de um pequeno valor sob a forma de bolsa, mensalmente
recebida.
Em suma, constatamos os reais significados das teses acerca da aprendizagem ao longo da vida na realidade
brasileira, ao confrontarmos as propostas apresentadas pelas agências multilaterais – tal como expressas nos documentos por
elas divulgados e as ações (programas e projetos) concretas propostas nas décadas de 1990 e 2000, pelo governo federal.
Como dois vetores de uma mesma matriz o duplo objetivo da aprendizagem ao longo da vida, coaduna-se a um objetivo mais
amplo de atender às demandas do sistema do capital, no atual quadro da hegemonia internacional.

Aprendizagem ao Longo da Vida – uma perspectiva conformadora à lógica do capital


É visível a subordinação da perspectiva da aprendizagem ao longo da vida à reorganização da produção e
acumulação do capital, resultantes da resposta do capitalismo mundial à crise da década de 1970. Evidencia-se uma
convergência entre os interesses dos disseminadores dessa proposta - as agências internacionais – e os do capitalismo atual.
Tal convergência de interesses estaria, conforme demonstrado anteriormente, na adequação do indivíduo às mudanças
contemporâneas no mundo do trabalho e na minimização da pobreza e os seus efeitos. Parece-nos evidente que a proposta de
aprendizagem ao longo da vida atende aos interesses da atual fase capitalista, e, portanto, não teria como horizonte um
rompimento com a lógica social posta.
Tanto o Relatório Faure quanto o Relatório Delors construíram princípios de educação capazes de responder à fase
de acumulação do sistema capitalista, na qual foram produzidos. Apresentavam, nesse sentido de conformação à ordem, mais
continuidade do que ruptura no encadeamento de suas lógicas estruturantes relacionadas ao projeto de sociedade capitalista
que estava sendo posto. Como podemos depreender, o Relatório Faure formulou uma proposta educacional capaz de dar
respostas à sociedade industrial capitalista, que se tornou hegemônica ao longo do século XX. Através de uma proposta
humanista, os estudos do Relatório Faure pretendiam garantir ao Estado nacional o papel de coordenador das relações
capitalistas através das idéias de “educação permanente” e de “sociedade educativa”. E o Relatório Delors, nos anos 1990,
em linhas gerais, cumpriu o mesmo objetivo, ou seja, o de construir uma proposta educacional capaz de dar respostas à atual
fase de acumulação flexível do sistema capitalista (Almeida, 2007).
Cabe sublinhar, por fim, que não desconsideramos a dimensão de luta (mesmo que contraditória) que este conceito
possa vir a representar para alguns na especificidade da realidade brasileira. Particularmente, se considerarmos o esforço (no
sentido de disputas e correlações de força na sociedade) que os movimentos sociais, em particular do campo, mas não só,
vêm empreendendo pela ampliação do acesso a educação. Todavia, nos parece evidente que a proximidade da noção de
aprendizagem ao longo da vida com a Educação de Jovens e Adultos construída de forma hegemônica no Brasil, a partir da
segunda metade dos anos de 1990, apesar de aparentemente mostrar-se associado a conceitos e políticas de matriz avançada e
democratizantes para a área, adequa-se, perfeitamente, à ordem e ao “tom” do momento internacional. Proposta e difundida
pelos Organismos Internacionais, o paradigma da aprendizagem ao longo da vida como princípio norteador das políticas
educativas, ao apresentar como pressuposto e realidade dada a “sociedade do conhecimento”, encontra-se coadunado aos
interesses do capital (internacional), visto que se orienta numa lógica utilitarista de preocupação com o aumento da
empregabilidade individual.
No Brasil, chegamos aos anos 2000 aderidos (de forma rápida e pouco crítica) à proposta educacional formulada e
disseminada pelas agências internacionais, que privilegia a importância estratégica – para a competitividade do país – da
educação ao longo da vida (e seus corolários implicitamente associados: empregabilidade, competências, certificações etc.),
nos conformando ao consenso implementado globalmente de que esta seria a melhor (e única) alternativa para as nações
semiperiféricas e a mais emancipadora para o aluno da EJA.
A noção político-ideológica de educação ao longo de toda vida, norteadora da educação para o século XXI,
materializado no Relatório Delors (e na Declaração de Hamburgo) não é neutra, nem desprovida de intencionalidades. Pelo
contrário, é uma contribuição fundamental para tecer e manter a hegemonia14 através do controle ou amenização das
insatisfações, ao prometer e proclamar a educação como única via possível para mudanças sociais, percebidas
exclusivamente como ascensão individual nos limites do sistema; e, ao mesmo tempo, ocultar e/ou negar as possibilidades de
transformações estruturais da sociedade capitalista, as contradições e os conflitos de classes e a exploração da força de
trabalho, ao adotar a renda e o consumo como os fundamentos da hierarquização social.
Enfim, a aprendizagem ao longo da vida funciona simultaneamente como um dos mecanismos de resposta aos
desafios econômicos contemporâneos, como um dos principais instrumentos de moderação dos efeitos mais extremos da
mundialização e como artefato de hegemonia. Em outras palavras, trata-se de subsumir a educação ao capital, vigorando a
velha perspectiva produtivista da educação, na perspectiva conformadora à ordem, agora adequada ao “tom” do momento
internacional.

14
Sobre a necessária construção do consenso para obtenção da hegemonia, é importante destacar que “O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se
leve em conta interesses e grupos sobre os quais a hegemonia se exerce, que se forma certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça
sacrifícios de ordem econômica corporativista; mas é evidente que tais sacrifícios e tal compromisso não podem dizer respeito ao essencial. Porque se a
hegemonia é ético-política, ela não pode deixar de ser econômica, ela não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce
nos setores decisivos da produção” (Gramsci apud Buci-Glucksmann, 1990: 100, grifo do autor).

500
Referências Bibliograficas
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http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decnovadelhi (consultado na internet em 07 de abril de 2008).
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contemporaneidade brasileira, Tese de Doutoramento, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.

Educação e Formação de Adultos: do modelo formativo aos impactes nos


públicos abrangidos

Elsa Pegado
Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE)
elsa.pegado@iscte.pt

Sandra Palma Saleiro


Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE)
sandra.saleiro@iscte.pt

Resumo: Apesar dos progressos alcançados nos últimos anos em matéria de qualificação escolar e profissional da população adulta
portuguesa, Portugal continua a apresentar um padrão qualificacional deficitário se comparado com os seus congéneres europeus. Criados em
2000, os cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA) procuram responder a um duplo desafio: por um lado, assegurar o aumento da

501
participação dos adultos em processos de educação e formação contínua, combatendo baixos níveis de qualificação inicial e promovendo a
actualização de competências profissionais; e por outro, desenvolver modelos educativos/formativos adequados aos perfis dos públicos
visados.
A comunicação tem como ponto de partida os resultados da avaliação dos cursos EFA, produzidos no âmbito do Estudo de Actualização da
Avaliação Intercalar do Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS) do Quadro Comunitário de Apoio
III, financiador de boa parte desses cursos. Recorreu-se a uma estratégia de investigação plurimetodológica, que combinou a utilização de
dados quantitativos, resultantes do Sistema de Informação do POEFDS e de inquérito por questionário a ex-formandos, com a realização de
estudos de casos intensivos de um conjunto diversificado de acções de formação.
Partindo da identificação dos aspectos inovadores que caracterizam a estratégia e o modelo formativo dos cursos EFA, avança-se para a
caracterização do perfil dos adultos que acederam à formação no período 2000-2004, e finalmente, para uma reflexão centrada na
sustentabilidade das aprendizagens do ponto de vista da conquista de melhores níveis de escolaridade e de qualificação profissional, das
competências adquiridas e da melhoria do posicionamento no mercado de trabalho.
Palavras-chave: Educação de adultos; Aprendizagem ao longo da vida; Competências; Formação profissional; Empregabilidade.

Introdução
Esta comunicação tem como ponto de partida o Estudo de Actualização da Avaliação Intercalar do Programa
Operacional do Emprego, Formação e Desenvolvimento Social (POEFDS), realizado pelo Consórcio Quaternaire
Portugal/CIES-ISCTE em 2005, no âmbito da qual os cursos EFA mereceram uma análise intensiva e aprofundada (Cf.
Figueiredo, 2005).
A estratégia metodológica empreendida para a avaliação destes cursos passou pela combinação de fontes e
instrumentos de recolha de informação de natureza quantitativa, como o sistema de informação do POEFDS e um inquérito
telefónico a uma amostra representativa de ex-formandos1, com instrumentos de natureza qualitativa, designadamente através
da realização de um conjunto de estudos de caso de cursos EFA, no decurso dos quais se entrevistaram os responsáveis da
entidade promotora da formação, os mediadores, os responsáveis de entidades empregadoras de ex-formandos e se
mantiveram conversas informais com estes últimos.
Partindo da apresentação do modelo formativo que os cursos EFA preconizam, avança-se para uma caracterização
sociodemográfica dos seus públicos, bem como para a discussão sobre os resultados que têm permitido alcançar em três
domínios: o das qualificações, o da relação com o mercado de trabalho e o das competências sociais e pessoais.

Estratégia e modelo formativo: uma abordagem inovadora


Os cursos de Educação e Formação de Adultos (EFA) surgiram pela primeira vez em Portugal, no ano 2000, ainda
em regime de experimentação, promovidos pela então denominada Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos
(ANEFA). Constituíram a primeira oferta integrada de educação e formação profissional no contexto nacional dirigida a
adultos com baixos níveis de qualificação escolar e profissional, proporcionando uma dupla certificação, escolar e
profissional. A certificação escolar confere equivalência ao 1º, 2º ou 3º ciclo do ensino básico ou ao ensino secundário,
enquanto a profissional poderá ser de nível I, II ou III.
Surgem como resposta ao elevado défice e longo distanciamento dos níveis de escolaridade e de qualificação
profissional da população adulta portuguesa quando comparados com os outros países da União Europeia e da OCDE. Em
2001 cerca de ¾ da população adulta portuguesa possuía no máximo o 3º ciclo do ensino básico, correspondente à
escolaridade obrigatória. Embora sejam as pessoas adultas de idade superior as mais afectadas pelos baixos níveis de
habilitações escolares, estes atingem igualmente gerações que permanecerão ainda muito tempo em idade activa. Acresce o
facto dessa situação não ser compensada pela participação mais intensa em actividades de aprendizagem ao longo da vida,
cujo valor tem ficado sistematicamente bastante aquém da média europeia (Capucha, 2005).
Os cursos EFA procuram assim cumprir um duplo objectivo: (i) combater os baixos níveis de qualificação inicial,
através da oferta de uma segunda oportunidade aos adultos que não realizaram um percurso formativo ou escolar adequado
quando eram jovens e (ii) combater a obsolescência dos conhecimentos e competências dos indivíduos, quer os que se
encontram afastados do mercado de trabalho (inactividade ou desemprego), quer os que se encontram a exercer uma
actividade profissional.
Constituindo-se enquanto instrumento de operacionalização de uma nova geração de políticas de educação e
formação de adultos, os cursos EFA introduzem um conjunto de elementos inovadores, essencialmente a três níveis: i)
instituições envolvidas; ii) profissionais mobilizados; e iii) modelo formativo.
Ao nível das instituições envolvidas, verifica-se um alargamento da educação de adultos a entidades para além dos
estabelecimentos escolares. Cabendo aos organismos públicos competentes a concepção e a monitorização dos cursos, a sua
implementação depende da iniciativa de entidades potencialmente promotoras devidamente acreditadas, que podem ter
natureza diversa (pública, privada ou pertencente ao “terceiro sector”).

* Investigadora do CIES-ISCTE.
1
Foram inquiridos 262 ex-formandos dos cursos EFA, dos quais 179 foram abrangidos pelos EFA para grupos desfavorecidos.

502
Ao nível dos profissionais mobilizados, para além dos formadores, esta nova abordagem à educação e formação de
adultos conduziu à emergência de profissionais dedicados, entre outras funções, ao reconhecimento e validação de
competências prévias dos adultos, denominados, no contexto dos cursos EFA, de mediadores pessoais e sociais.
Ao nível do modelo formativo privilegia-se uma abordagem que valoriza as competências prévias dos indivíduos.
Tal traduz-se num processo de avaliação, reconhecimento e validação das competências de cada adulto participante, quer
resultem de aprendizagens formais – acções de formação profissional -, quer de aprendizagens não formais – adquiridas
através das actividades profissionais exercidas -, quer ainda informais – originadas por actividades desenvolvidas no
quotidiano (Comissão Europeia, 2000).
Este processo apoia-se num Referencial de Competências-Chave, que identifica as competências “desejáveis” para
quatro áreas - Matemática para a Vida, Linguagem e Comunicação, Tecnologias da Informação e Comunicação e Cidadania e
Empregabilidade. Segundo a Comissão Europeia, competências-chave são um conjunto articulado, transferível e
multifuncional, de conhecimentos, capacidades e atitudes indispensáveis à realização e desenvolvimento individuais, à
inclusão social e ao emprego (Comissão Europeia, 2004). Recorrendo a metodologias que apelam à mobilização das
competências prévias dos adultos nestas áreas, os mediadores pessoais e sociais confrontam as competências evidenciadas
pelos indivíduos com o Referencial, daí resultando a identificação das necessidades de formação. Para além da formação nas
áreas de competência-chave, é promovido o desenvolvimento de competências profissionais através da frequência de
formação profissionalizante.
Os cursos EFA contemplam ainda a valorização de uma componente de desenvolvimento pessoal e social. A
inclusão de um módulo de formação denominado “Aprender com Autonomia” é disso um exemplo, na medida em que se
pretende que o adulto aprenda a aprender, apelando ao desenvolvimento da capacidade de realizar auto-formação e auto-
aprendizagem em diversos contextos, à gestão dos seus próprios projectos de vida, bem como ao aperfeiçoamento das suas
competências pessoais e sociais.

Perfil social dos públicos


O POEFDS financia uma parte considerável dos cursos EFA realizados2, através de três medidas dirigidas a três
públicos distintos: a formação inicial para candidatos ao primeiro emprego; a formação contínua para activos empregados; e
a formação social e profissional para grupos desfavorecidos. Entre 2001 e 20043 foram abrangidos através deste Programa
uma média anual de cerca de 4800 formandos, com uma distribuição muito desigual pelas três tipologias de formação. A
destinada a grupos desfavorecidos foi responsável por cerca de 68% do total de pessoas que frequentaram estes cursos, a
formação contínua para activos abrangeu 25% e a direccionada para os que se encontram à procura do primeiro emprego
limitou-se a 7% (cf. Figura 1).
A focalização dos cursos EFA nos adultos socialmente desfavorecidos, em situação de desemprego, muitas vezes
de longa duração, tem o lado muito positivo de estar a trazer para o sistema de educação e formação um conjunto
relativamente vasto de pessoas que, em muitos casos, se encontravam afastadas há longos anos dos processos de qualificação
escolar e profissional e de experiências de trabalho que, para uma parte significativa, nunca chegaram a ocorrer. É nos
formandos dos EFA para grupos desfavorecidos que, doravante, centraremos a nossa atenção, quer pela sua predominância
nos cursos, quer pelo previsível maior alcance dos impactes em termos de empregabilidade e desenvolvimento social e
pessoal.
A análise da evolução do número de formandos abrangidos revela um crescimento exponencial desde que os cursos
foram criados (cf. Figura 2), demonstrativo quer da forte adesão deste tipo de públicos a este modelo formativo, quer da
abertura e boa capacidade de adaptação das entidades promotoras.

Figura 1. Formandos abrangidos nos cursos Figura 2. Formandos abrangidos nos cursos EFA para
EFA por tipo de públicos (média 2000-2004) grupos desfavorecidos (2000-2004)

2
A outra parte é financiada pelas medidas desconcentradas dos PO’s Regionais.
3
Os dados de caracterização dos formandos dos cursos EFA, sistematizados no âmbito da Actualização da Avaliação Intercalar do POEFDS realizada em 2005,
têm como fonte o Sistema de Informação do POEFDS e respeitam, regra geral, ao período compreendido entre 2000/2001 e 2004.

503
68 5000
80 4500

Formandos abrangidos
60 4000
25 3500
%40
3000
7
20 2500
2000
0
1500
1000
Desfavorecidos 500

Activos empregados 0
2000 2001 2002 2003 2
Candiadatos ao 1º emprego
Fonte: Sistema de Informação do POEFDS. Fonte: Sistema de Informação do POEFDS.

No período em análise foram aprovados 5872 formandos, reprovados 289 e abandonaram 879. A taxa de
reprovação (4,1%) é bastante baixa e a taxa de desistência cifra-se em quase 12,5%, o que revela um panorama globalmente
positivo em termos de taxa de conclusão destes cursos.
A observação do perfil social dos formandos abrangidos mostra-nos, em traços gerais, tratar-se de um público
maioritariamente feminino, relativamente jovem, possuidor de baixos níveis de escolaridade e, na sua grande maioria, em
situação de desemprego de longa duração.
As mulheres constituem 82% do total de formandos. A predominância do sexo feminino está associada a uma
maior vulnerabilidade a situações de desfavorecimento, designadamente pelas dificuldades acrescidas de inserção no
mercado de trabalho, como demonstra o facto das taxas de desemprego feminino serem persistentemente superiores às do
masculino. Além disso, nas gerações menos jovens, as mulheres são menos escolarizadas do que os homens. Segundo os
estudos de caso realizados estão também elas mais disponíveis para a aprendizagem, nomeadamente aquela que não se
direcciona exclusivamente para a aquisição de competências profissionais. Pelo contrário, em determinados contextos sociais,
as entidades promotoras de cursos EFA revelavam a dificuldade sentida em trazer homens para os cursos, deparando-se com
resistências associadas à vergonha de frequentar a formação. Tal dificuldade acaba por se traduzir na aposta em cursos cuja
área de formação profissional se relaciona com profissões tradicionalmente femininas, gerando assim um círculo vicioso que
não favorece a entrada da população masculina pouco escolarizada nestes processos de aprendizagem, e que é preciso
contrariar.
Os formandos dos EFA constituem uma população relativamente jovem: um pouco mais de metade tem menos de
35 anos e cerca de 80% não ultrapassa os 44, o que vem demonstrar a pertinência do esforço de elevação das qualificações
escolares e profissionais, dado o previsível longo período de permanência em situação de actividade face ao mercado de
trabalho.
Quanto a graus de qualificação escolar possuídos à entrada no curso, como seria de esperar de uma oferta formativa
que conferia à data do estudo no máximo o nível correspondente à escolaridade obrigatória (9º ano), eles são muito baixos:
38% das pessoas abrangidas possui apenas o 1º ciclo do ensino básico.
A situação face ao emprego dos formandos dos cursos EFA para desfavorecidos tem uma correspondência directa
com os requisitos de selecção de formandos, pelo que se trata de indivíduos desempregados. Entre estes prevalece de forma
acentuada o desemprego de longa duração, que atinge cerca de 70% dos formandos. Em muitas situações trata-se mesmo de
um desemprego desencorajado, em que os indivíduos não se classificam como desempregados nem efectuam já (ou nunca
efectuaram) diligências para encontrar emprego. Este é o caso sobretudo de mulheres que nunca tinham ingressado
formalmente no mercado de trabalho, como as chamadas “domésticas” e, nas zonas rurais, as trabalhadoras agrícolas,
nomeadamente em regimes de trabalho familiar.

Impactes nas qualificações


O aumento das competências escolares e profissionais é obviamente o efeito mais directo dos cursos EFA.
Significou para a esmagadora maioria das pessoas que os frequentaram a subida de um patamar no grau de escolaridade
formal e, no mínimo, a certificação profissional de nível I. Concretiza-se por esta via a intervenção de pendor mais
“reparador”, no sentido de corrigir as desvantagens educativas e formativas da população portuguesa com maiores défices de
qualificação4. Sendo importante para a população em geral, espera-se que no caso das pessoas desempregadas a certificação
escolar e profissional funcione como uma alavanca no concorrido mercado de emprego.

4
Tal como consta do programa governamental “Novas Oportunidades” e está traduzido nos Planos de Acção, tanto o PNE, como o PNAI.
Já a literatura que se centra especificamente nas problemáticas da exclusão social5 tem vindo a identificar o défice
de qualificações como o problema central que caracteriza grande parte das “categorias sociais mais vulneráveis”, propiciando
experiências negativas no mercado de trabalho e gerando atitudes de “desencorajamento”, tanto na busca de um emprego,
como de novas oportunidades de formação. Reconhece-se por isso que “o regresso a acções de formação reconhecidas pelo
sistema de certificação escolar, a modernização do trabalho de modo a permitir a formação contínua e a facilitar processos de
aprendizagem prolongada em contextos informais e não formais, constituem as principais vias para a inserção social”
(Capucha, 2005:168).
Mas se o aumento das qualificações escolares constitui um efeito directo e esperado da formação, a avaliação
permitiu ainda captar um efeito diferido que não pode deixar de se considerar bastante significativo, que é a intenção ou a
concretização do prosseguimento dos estudos por parte das pessoas que frequentaram os cursos. Na realidade, segundo dados
do inquérito aos ex-formandos, no momento da inquirição 32% afirmam ter ingressado no sistema de ensino para prosseguir
estudos e 10% tencionavam vir a fazê-lo a curto prazo (cf. Figura 3), o que significa que para parte dos formandos não está
terminado o processo de elevação das qualificações. Os estudos de caso permitiram verificar que o prosseguimento dos
estudos acontecia para os ex-formandos que tinham frequentado cursos que dão equivalência ao 6º ano, privilegiadamente
por via dos processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências. É pois legítimo esperar que no
presente momento a proporção encontrada seja ainda superior, dado o alargamento dos processos de RVCC ao 12º ano,
podendo constituir a via considerada mais adequada para o prosseguimento dos estudos também para os ex-formandos que
obtiveram a equivalência ao 9º ano.
No caso das acções de formação profissional, a respectiva frequência após a conclusão do curso EFA é bastante
inferior (5%), estando sobretudo patente no plano das intenções (39% referem tencionar frequentar formação profissional).

Figura 3. Situação dos ex-formandos quanto à frequência do sistema de ensino e formação profissional

50
38,8
40 32,4

30
% Já frequentou
20 Tenciona frequentar
9,5
10 4,5

0
Sistema de ensino Formação profissional

Fonte: Inquérito CIES a ex-formandos (n=179).

Ainda segundo dados do inquérito a ex-formandos dos cursos EFA, constituem apenas 15% os que não tendo
ingressado no sistema de ensino, nem frequentado acções de formação desde o final do curso até ao momento da inquirição,
não tencionam igualmente vir a fazê-lo nos próximos anos. Tratando-se muitas vezes de adultos que já tinham saído do
sistema de ensino há largos anos, e de percursos nem sempre de sucesso escolar, este é um resultado que se salienta como
muito positivo, podendo mesmo identificar-se como um efeito da frequência deste tipo de cursos o despertar da maioria das
pessoas que por eles passaram para a aprendizagem ao longo da vida.

Impactes na obtenção de emprego


Para além do contributo que os cursos EFA têm vindo a dar para a melhoria dos níveis de educação dos adultos
abrangidos, têm-se constituído como um instrumento das políticas activas de emprego para grupos sociais com particulares
problemas de inserção no mercado de trabalho.
O estudo de avaliação permitiu aferir um contributo, ainda que moderado, dos cursos para a obtenção de emprego.
De facto, no momento de aplicação do inquérito 41% dos ex-formandos encontravam-se empregados e 58% desempregados,
sendo que destes a maioria não tinha ainda conseguido qualquer experiência de emprego após a realização do curso (cf.
Figura 4). Ainda assim, este resultado acaba por ter alguma expressão face à conjuntura económica desfavorável vivida no
período avaliado. Do ponto de vista dos ex-formandos a utilidade do curso para “ter mais oportunidades de emprego” é
reconhecida, embora não tão valorizada como os efeitos aos níveis das qualificações escolares e das competências sociais e
pessoais (cf. Quadro 1).

5
Veja-se, por exemplo, como obra de síntese do estado da arte, Capucha, 2005.
Figura 4. Situação actual perante o emprego dos ex-formandos

57,5
70

60

50

%40 22,3
18,4
30

20
1,7
10

Está desempregado
Está a trabalhar no mesmo emprego onde estava um mês após o curso
Está a trabalhar noutro emprego
Outra

Fonte: Inquérito CIES a ex-formandos (n=179).

Constatou-se igualmente que à medida que o tempo pós-formação decorre, diminuem as probabilidades de
colocação dos ex-formandos no mercado de trabalho: dos que obtiveram emprego cerca de 2/3 conseguiu-o até seis meses
após a realização do curso. Tal reforça a necessidade dos apoios à integração pós-formação, que, quando existem, são
sobretudo realizados de modo informal, pouco sistemático, sem obedecer a uma estratégia definida.
De referir que se registaram situações muito diversas entre as acções de formação no que se refere à taxa de
colocação dos ex-formandos no mercado de trabalho. As integrações plenas ou próximo disso acontecem quando as acções
de formação profissional são pensadas com o propósito de inserir as pessoas formadas em equipamentos da própria entidade
promotora da formação ou entidades bastante próximas desta. Outros casos relativamente bem sucedidos são aqueles em que
os promotores da formação são entidades próximas dos empregadores e o diagnóstico das necessidades de determinada área
de formação se faz através dessas ligações. Porém, existem casos em que as acções de formação profissional parecem estar a
funcionar como substituto, quer de alternativas do emprego que dificilmente se conseguirá, quer da obtenção de subsídios
(caso do Rendimento Social de Inserção).
Em regiões caracterizadas por um tecido económico estagnado, as possibilidades de integração são praticamente
nulas, ainda mais no contexto de crise económica vivido e consequente retracção do mercado de emprego. Para fazer face a
esta situação, algumas instituições formadoras incentivaram a criação do auto-emprego, com recurso aos instrumentos de
política existentes (por exemplo, o micro crédito), registando-se, no entanto, uma baixa taxa de concretização dos projectos,
pelo receio de endividamento por parte dos ex-formandos, em paralelo com a ausência de estruturas de apoio técnico
associadas à implementação e execução dos projectos.
Mas foram também identificadas situações em que, face a esses constrangimentos, acrescidos de características dos
formandos, como a idade avançada, o isolamento geográfico ou o praticamente nulo contacto com o mercado de trabalho, a
integração profissional acaba por não ser o principal objectivo prosseguido pelas entidades promotoras da formação,
valorizando-se a componente escolar em detrimento da profissional, cuja área é sobretudo determinada pelo interesse pessoal
dos formandos e não por necessidades reais do mercado.
São ainda de referir casos em que a integração não ocorreu, não por motivos de escassez da oferta de colocações no
mercado de trabalho, mas por recusa dos próprios formandos, por vezes associada à possibilidade de exercício de actividades
sazonais melhor remuneradas do que o emprego conseguido (sobretudo em zonas turísticas) ou por impedimentos,
geralmente ligados à deslocação para o local de trabalho.

Impactes no desenvolvimento pessoal e social


Um terceiro grupo de efeitos da frequência dos cursos EFA que foi possível detectar foi a elevação das
competências aos níveis pessoal, social e relacional que, embora sem um diploma formal que as permita confirmar, surgiu
como um efeito de grande relevo para os que a frequentaram ou com eles lidaram (caso dos mediadores e dos formadores).
Outros estudos têm identificado igualmente a elevação da auto-estima como um dos principais efeitos da obtenção
de certificações fora do sistema de ensino formal no caso de adultos (Ávila, 2005). Reconhecem também a relação que se
estabelece entre a elevação das qualificações e o aumento da auto-estima. A experiência de prosseguir um processo de
aprendizagem com sucesso e de ver os seus conhecimentos reconhecidos, a posse de certificações formais com peso no
mercado de trabalho mas, mais alargadamente, no mercado social6 não deixa de produzir efeitos consolidados a nível da auto-
imagem dos indivíduos. Ou seja, as certificações obtidas não têm apenas um valor formal, adquirem igualmente um valor
simbólico.
Para uma parte considerável das pessoas abrangidas, as exigências associadas à sua participação nos cursos
constituem uma mudança muitas vezes radical em termos de rotinas e experiências de vida, fazendo com que a pessoa se
perspective e perspective a sua vida e o seu futuro com uma atitude mais optimista e dinâmica. Isso acontece com aspectos
como cumprir horários, auferir uma remuneração, deslocar-se geograficamente, encetar novos relacionamentos, incluindo
com pessoas com mais elevados capitais escolares e sociais (como o caso dos mediadores e dos formadores), ou passar por
uma experiência de desempenho de competências profissionais.
Os dados do inquérito revelam que os aspectos mais valorizados pelos ex-formandos quando se pediu que
avaliassem a utilidade do curso são precisamente aqueles que remetem para o desenvolvimento pessoal e social, como a
“melhoria da autonomia, confiança e capacidade de relacionamento com os outros”, a “motivação para aprender” e a
“valorização e reconhecimento das próprias competências” (cf. Quadro 1). Também no âmbito dos estudos de caso estes
aspectos foram amplamente referidos e fortemente valorizados. A melhoria da auto-imagem e da auto-estima, o aumento da
autonomia pessoal, a saída de situações de isolamento ou o maior acesso a informação constituem resultados de grande
importância, no caso da formação para grupos desfavorecidos, cujos objectivos não se limitam à aquisição de competências
estritamente profissionais para a integração no mercado de trabalho, justificando-se intervenções que trabalhem a montante
(veja-se Capucha, 2005: 169).

Quadro 1. Avaliação da utilidade dos cursos pelos ex-formandos

Muito útil Útil


Aprender uma profissão 54,7 40,2
Ter mais oportunidades de emprego 33,7 46,1
Ficar mais motivado para aprender 68,2 30,2
Valorizar e reconhecer as minhas competências 69,8 29,6
Melhorar a minha autonomia, confiança e capacidade de relacionamento 68,0 30,2
com os outros
Fonte: Inquérito CIES a ex-formandos (n=179).

Tratando-se, nos cursos EFA em análise, de um público maioritariamente feminino, um dos seus efeitos manifestos
foi o de estar a retirar de situações de inactividade que muitas vezes camuflam um desemprego desencorajado, mulheres que
ficam capacitadas para a procura e o desempenho de uma actividade profissional. Esse efeito não advém apenas das
competências formais entretanto adquiridas, mas em grande parte da elevação da autonomia pessoal e da auto-estima.

Bibliografia
Ávila, P. (2008). A Literacia dos Adultos: Competências-Chave na Sociedade do Conhecimento, Oeiras: Celta.
Bernardo, J. (2004). “Da educação e formação à educação-formação – Dois mundos complementares ou concorrentes?”,
Cadernos Sociedade e Trabalho, IV, 57-75.
Boterf, G. (2005). Construir as Competências Individuais e Colectivas – Resposta a 80 Questões, Porto: ASA.
Capucha, L. (2005). Desafios da Pobreza, Oeiras: Celta Editora.
Capucha, L.; Pegado, E. & Saleiro, S. P. (2007). “Políticas de desenvolvimento social: emprego e segurança social” In J. M.
Viegas, H. Carreiras & A. Malamud (orgs.), Portugal no Contexto Europeu: Instituição e Política, Oeiras: Celta, (pp. 77-105).
Comissão Europeia (2000). Memorando sobre Aprendizagem ao Longo da Vida, Documento de Trabalho dos Serviços da
Comissão - SEC(2000) 1832, Bruxelas.
Comissão Europeia (2004). Key Competences for Lifelong Learning. A European Reference Framework, Working Group B
"Key Competences”, Bruxelas.
Gomes, M. C. e outros (2006). Referencial de Competências-chave para a Educação e Formação de Adultos – Nível
Secundário, Lisboa: DGFV.
Figueiredo, A. (coord.) (2005). Actualização da Avaliação Intercalar do Programa Operacional do Emprego, Formação e
Desenvolvimento Social do QCA 2000-2006 – Relatório Final, Lisboa: Quaternaire/CIES.
Figueiredo, A. (coord.) (2006). Actualização da Avaliação Intercalar do Programa Operacional do Emprego, Formação e
Desenvolvimento Social do QCA 2000-2006 – Sumário Executivo, Lisboa: Comissão de Gestão do QCA III/Observatório do
QCA III.
OCDE (2006). Education at a Glance – OECD Indicators 2006.

6
Refira-se as situações identificados através realização dos estudos de caso, de formandas, sobretudo mulheres mais velhas, que passaram a ser as possuidoras do
nível de escolaridade mais elevado no seu círculo de relações, ultrapassando os da sua geração (inclusivamente o cônjuge) e até os da geração posterior
(incluindo os filhos).

507
OCDE (2001). Thematic Review on Adult Learning – Portugal.
Trindade, S.; Saleiro, S. P. & Pegado, E. (2007). “Cursos EFA: Que contributos para as competências, a qualificação e o
emprego?”, Cadernos Sociedade e Trabalho: Aprendizagem ao Longo da Vida, X, 175-192.

Comunidades de Aprendizagem: a diversidade a favor da potencialização da


aprendizagem.

Raquel Moreira
Universidade Federal de São Carlos
raquelzinhamoreira@ig.com.br

Resumo: O presente texto é fruto de uma pesquisa de Mestrado em Educação, em fase de desenvolvimento, que pretende investigar como a
diversidade entre as pessoas presentes na sala de aula - alunos/as; professores/as e outros agentes - pode tornar-se um fator favorável e
potencializador do ensino e da aprendizagem no contexto escolar. Tal pesquisa está sendo realizada junto a uma das três escolas que
atualmente são Comunidades de Aprendizagem no município de São Carlos/SP/Brasil. Vislumbrando que as unidades escolares, ao se
transformarem Comunidades de Aprendizagem, assumem o compromisso de buscar desenvolver uma educação apoiada na racionalidade
comunicativa e nos princípios da aprendizagem dialógica, entendendo, pelo menos em tese, a diversidade na escola como vantagem
educativa. Apoiados na Metodologia Comunicativa Crítica de pesquisa, que toma o diálogo e a transformação social como seus eixos, tendo
como embasamento teórico a ação comunicativa de Habermas e a dialogicidade de Freire, utilizamos os seguintes procedimentos de coleta
de dados: a) observação comunicativa, com anotações em diário de campo e filmagem de situações de aula; b) entrevistas em profundidade,
com professoras, familiares de estudantes, estudantes e voluntários da escola; c) grupo de discussão comunicativo, com os mesmos agentes.
Para a análise dos dados, estruturaremos o quadro recomendado pela própria Metodologia, identificando aspectos exclusores e
transformadores presentes na realidade estudada. A partir destes recursos, espera-se analisar situações, atividades, encaminhamentos e
elementos que favoreçam a criação de respaldos para a instrumentalização didática dos/as professores/as para o trabalho com a diversidade.

O presente texto faz referencia à pesquisa de mestrado1 iniciada em 2008 e ainda em andamento, que possui o
intuito de investigar como a diversidade cultural entre as diferentes pessoas presentes na sala de aula (alunos(as), professora e
outros agentes) pode tornar-se um fator favorável e potencializador do ensino e da aprendizagem no contexto escolar.
A pesquisa pauta-se em estudos teóricos sobre a temática diversidade cultural, destacando a concepção
comunicativo-dialógica como forma de pensar a realidade, as relações sociais e culturais, ganhando ênfase o conceito de
aprendizagem dialógica, do Centro de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA, da
Universidade de Barcelona/Espanha). Tal conceito está baseado na ação comunicativa de Habermas e na dialogicidade de
Paulo Freire, afirmando que a construção de significados se dá através das interações. Para tanto, parte-se da realidade social
como construção humana, na qual o significado se constrói entre todos os atores através do diálogo intersubjetivo em
condições de igualdade. Assim é composto por sete princípios que se articulam nas formulações teóricas permitindo
descrever o que, na prática, se dá como unidade. A saber:
Diálogo Igualitário: as falas e as proposições de cada participante são tomadas por seus argumentos e não pelas
posições que ocupam (idade, sexo, profissão, classe social etc).
Inteligência Cultural: cada pessoa tem uma inteligência que é reportada ao contexto em que vive, podendo seguir
aprendendo ao longo de toda a vida.
Transformação: a forma de aprender, gerada pela aprendizagem dialógica, acaba por transformar as pessoas e o
conceito que têm de si mesmas, alterando suas relações com o entorno.
Dimensão Instrumental: trata-se da aprendizagem, por meio do diálogo, de conhecimentos acadêmicos e
instrumentais.
Criação de sentido: a vivência por meio da aprendizagem dialógica gera transformação e cria novo sentido de vida
para as pessoas.
Solidariedade: As pessoas aprendem conjuntamente por meio da participação.
Igualdade de diferenças: Todas as pessoas que participam do diálogo têm o igual direito de ser diferentes.
Por partirmos de tais pensamentos é que estamos desenvolvendo o projeto de pesquisa junto a uma instituição
escolar que é “Comunidades de Aprendizagem”. Comunidades de Aprendizagem (C.A.) é um projeto que tem por objetivo a
transformação social e cultural da escola e da comunidade de entorno, visando potencializar as relações de aprendizagem e a
convivência respeitosa entre todos(as). O projeto nasceu a partir de experiências realizadas nos Estados Unidos e na Espanha,
na década de 1980 e a fim de dar resposta a ineficácia da escola tradicional, em especial nos bairros com altos índices de
fracasso escolar.

1
Pesquisa financiada pelo CNPq e que integra o projeto “Comunidades de Aprendizagem: aposta na qualidade da aprendizagem, na igualdade de diferenças e na
democratização da gestão da escola”, financiado pela FAPESP e pelo CNPq, inserindo-se no eixo de aprendizagem dialógica.

508
Tal projeto é resultado de uma linha de investigação desenvolvida pelo Centro de Investigação Social e Educativa
(CREA) da Universidade de Barcelona, que parte da intenção de investigar, analisar e atuar para promover uma igualdade
educativa e social.
Valls (2000, apud Mello 2003), explica que uma Comunidades de Aprendizagem implica numa transformação
social e cultural da escola e do entorno, posto que baseia-se na aprendizagem dialógica e que portanto envolve mudanças de
hábitos e atitudes das famílias, profissionais da educação (incluindo-se professores e professoras), alunos e alunas e de toda a
comunidade em torno da idéia de construir uma escola onde todas as pessoas aprendam.
Segundo Mello (2003), a transformação de uma escola em Comunidades de Aprendizagem envolve duas grandes
etapas: a primeira é o processo de ingresso que compreende as fases de sensibilização, tomada de decisão, sonhos, seleção de
prioridades e planejamento. E a segunda é o processo de consolidação que envolve investigação, formação e avaliação, sendo
esta etapa constante.
Como bem cita Mello (2003), o projeto busca o respeito à diversidade,

“... em que cada pessoa, constrói novas compreensões sobre a vida e o mundo e reflete sobre a sua cultura e sobre
as demais, podendo escolher com maior liberdade sua maneira de viver e se relacionar, bem como desenvolver o senso de
que este processo ocorre com outras pessoas, criando-se respeito aos diferentes modos de vida, ou seja, a igualdade de
diferenças ou como define Freire (1991, apud Mello 2003), a unidade na diversidade”. ( p.6)

Desta forma, o “Comunidades de Aprendizagem” vem ao encontro dos atuais debates sobre interculturalidade,
diversidade e respeito às diferenças, posto que o projeto propõe-se a apoiar mudanças culturais e sociais na escola,
embasando-se na racionalidade comunicativa e nos princípios da aprendizagem dialógica. O diálogo igualitário integra as
vozes de toda a comunidade com o objetivo de desenvolver um projeto plural e participativo em função do contexto social,
histórico e cultural dos(as) alunos(as). Isso permite definir em conjunto, profissionais da educação, familiares, estudantes e
pessoas do entorno, os rumos a tomar na instituição.
Ainda, na perspectiva comunicativo-dialógica, reconhece-se que o(a) professor(a) sozinho não dá conta de articular
todos os elementos de contexto que condicionam os processos de ensino e de aprendizagem numa escola, necessitando da
colaboração intensa das famílias, de outros profissionais, de entidades, de voluntários(as) para proporcionar a todos(as) os(as)
alunos(as) a qualidade educativa desejada.
É neste contexto que estamos refletindo sobre a necessidade de criar instrumentos didáticos para o trabalho com a
diversidade, pois, como afirmam Moll, González & Amanti (2005), a presença de diversidade de estudantes nas escolas é
insuficiente para provocar mudanças positivas na educação. Daí a importância de estudarmos a diversidade com vista à
construção de vantagens pedagógicas para a potencialização das aprendizagens.
Neste sentido, Moll, González & Amanti (ibid) destacam a importância de que os(as) professores(as) se dêem conta
dos recursos e oportunidades que a diversidade possibilita para a potencialização das aprendizagens ao se estabelecerem
diferentes relações sociais. Para que isto se realize, o autor e as autoras tratam do conceito de fundos de conhecimento, o qual
está baseado no princípio de que todas as pessoas possuem competências e conhecimentos, posto que todos(as) vivem
experiências e adquirem conhecimentos com estas. Sendo assim, caberia aos profissionais da educação estar dispostos a
conhecer e reconhecer os diferentes saberes que compõem o fundo de conhecimento dos(as) alunos(as) e, a partir disto,
valorizá-los(as) como seres históricos mais amplos do que o papel de alunos(as) que ocupam na escola, visto que agem em
diferentes contextos e a partir de diferentes princípios.
Para tanto, o autor e as autoras complementam que é importante aprendermos a pensar a cultura como dinâmica e
variável e não fixa ou estática, visto que até em grupos de uma mesma sociedade/comunidade há distintas particularidades.
O grande desafio, partindo-se disto, é pensar práticas que beneficiem o trabalho com a diversidade, auxiliando na
instrumentalização didática com a finalidade de se conhecer e reconhecer as diversidades e utilizá-las como forma de
potencialização das aprendizagens.
Cabe ainda destacar que a educação, nos moldes atualmente aplicados em nossos sistemas de ensino, só tem levado
em conta as interações produzidas dentro do meio escolar, a partir de uma visão hierárquica na qual são os coletivos de
profissionais os que possuem o conhecimento valorizado socialmente. Esta concepção provoca interações e dinâmicas
educativas exclusoras, com base em relações assimétricas (Elboj, 2001) entre o professorado e o alunado e, obviamente,
reduz o potencial educativo da interação intercultural entre iguais. As conseqüências deste modelo são numerosas e possuem
relação com vários aspectos educativos, tanto quanto sociais. Limita as possibilidades de aprendizagem, reduz as relações
educativas entre culturas e reproduz as relações de poder similares às de outros âmbitos da sociedade, em que o
conhecimento especializado da cultura dominante se impõe ao conhecimento não-especialista das culturas minoritárias.
É conveniente deixar claro que, como indica Flecha (1997), o diálogo não se opõe ao conhecimento instrumental,
ao contrário, a dimensão instrumental se intensifica e se aprofunda quando se situa em um marco dialógico. Enquanto que
tradicionalmente se separam as crianças por ritmos de trabalho e de aprendizagem, uma educação pautada nos princípios da
perspectiva comunicativo-dialógica se embasa na cooperação entre todos e todas, incluindo as pessoas adultas, que entram na
sala de aula para apoiar a busca por uma aprendizagem igualitária para todo o grupo de alunos e alunas.
É, portanto, seguindo esta concepção que a questão de estudo desta pesquisa é:

509
“Como a diversidade entre as pessoas presentes na sala de aula – alunos/as; professores/as e outros agentes – pode
tornar-se um fator favorável e potencializador do ensino e da aprendizagem no contexto escolar?”.

Tendo como objetivos:

Identificar como a diversidade é compreendida e trabalhada em diferentes situações de ensino e de aprendizagem


na sala de aula, numa escola que é Comunidade de Aprendizagem;
Identificar e analisar quais práticas favorecem e quais são obstáculo para o trabalho em sala de aula com a
diversidade, numa escola que é Comunidade de Aprendizagem;
Identificar e analisar os elementos transformadores da prática didática para uma educação pautada na diversidade,
em vista à potencialização de aprendizagens.

É diante disto que a pesquisa está sendo realizada junto a uma turma de primeiro ano do Ensino Fundamental, de
uma escola do município de São Carlos/SP/BR, que é “Comunidades de Aprendizagem” – CA, delimitando o período de
agosto de 2008 a maio de 2009 para a coleta de dados.
Para podermos definir em qual das três “Comunidades de Aprendizagem” existentes no município de São Carlos a
pesquisa seria desenvolvida, realizamos uma apresentação do projeto às três escolas durante a Atividade Curricular de
Integração de Ensino – Pesquisa – Extensão (ACIEPE) sobre “Comunidades de Aprendizagem”, que vem sendo executada
com os(as) professores(as) destas unidades, envolvidos(as) com o projeto FAPESP, Ensino Público, “Comunidades de
Aprendizagem: aposta na qualidade da aprendizagem, na igualdade de diferenças e na democratização da gestão da escola”.
Foi nesta apresentação que juntos(as) decidimos em qual das escolas o projeto possuía maior relevância.
Tendo esta definição, passamos para a apresentação do projeto aos(às) professores(as) da “Comunidades de
Aprendizagem” escolhida. A partir desta apresentação definimos, coletivamente, em qual das salas de aula a pesquisa seria
realizada, englobando: o(a) professor(a) da classe; os(as) alunos(as) da sala de aula; os familiares destes(as) e os(as)
voluntários(as) que exercem atividades nesta sala. Contudo, vale destacar que nem todos os(as) estudantes da sala estão
envolvidos na pesquisa, servindo como critérios para esta seleção a manifestação de interesse em participar da pesquisa e o
cuidado para que o grupo a ser analisado seja constituído por alunos(as) que apresentem aspectos que os(as) diversifiquem
entre si, tendo como diretrizes: origem de classe social, cultural, econômica, étnica, gênero, raça.
Neste processo de definição de “Comunidades de Aprendizagem”, de turma a participar da pesquisa, iniciei estudos
teóricos sobre o assunto abordado, bem como sobre temas relevantes que estão diretamente ligados à temática estudada.
Com a fixação do grupo que participará da pesquisa, iniciei o processo de coleta de dados, utilizando as seguintes
técnicas: diário de campo a partir da observação comunicativa, relatos comunicativos, grupo de discussão comunicativo, além
de quadro de análise dos dados.
Para a realização destas técnicas, a pesquisa se faz pautada na Metodologia Comunicativa Crítica, que tem como
apoio teórico a Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas e a Dialogicidade de Freire.
Para Habermas (2001), a ação comunicativa é aquela em que os sujeitos são capazes de interagir e chegar a um
consenso. Os sujeitos podem ter a mesma ou distinta opinião sobre um fato, mas entenderem que para aquele determinado
momento e situação, podem tomar uma postura que satisfaça as necessidades de ambos e principalmente as da situação em
questão, chegando a um consenso, mesmo que provisório. Para que isto ocorra, Habermas (ibid) defende a validade de
argumentos em detrimento do argumento de poder. Nas pretensões de validade o que está em jogo são os argumentos, que
podem e devem ser discutidos, debatidos, questionados, para se chegar a um consenso. (Mello, 2002).
Sobre a Dialogicidade apresentada por Freire (1979), podemos destacar o falar com as pessoas e não falar por ou
para elas. Na teoria da Dialogicidade, não há um sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado, mas sim sujeitos
que se encontram para a pronúncia do mundo, para a sua transformação.
Neste sentido, a Metodologia Comunicativa Crítica é evidenciada pela postura realizativa do(a) pesquisador(a), que
assume sua posição em relação à pesquisa com o compromisso de discuti-la com os(as) pesquisados(as) apresentando suas
interpretações pela validade de argumentos e assim construírem, pesquisador(a) e pesquisados(as), a pronúncia do mundo.
Atualmente a pesquisa encontra-se em fase de desenvolvido, estando justamente no processo de coleta de dados,
não sendo possível a apresentação de resultados e análises detalhadas e bem estruturadas. Muitos momentos de diálogo, de
trocas de saberes e de estudo teórico ainda estão por vir. Portanto, o que se podem destacar como considerações do percurso
percorrido até a presente data, são as trinta e uma observações comunicativas realizadas em diferentes situações de ensino e
de aprendizagem. Com este procedimento de coleta vivenciei ricos diálogos com os(as) alunos(as), professora e
voluntários(as), sobre a presença da diversidade cultural em nossas constantes aprendizagens. Podemos apresentar algumas
considerações que fazem parte destes momentos de diálogo, a saber:

Ao explicarmos como aprendemos determinado conhecimento, ajudamos as outras pessoas a aprenderem, ao passo
que refletimos melhor sobre o que sabíamos;
Os passeios escolares às fazendas, centros de estudo, a vivência em outros espaços ajudam na aprendizagem dos
conteúdos escolares;

510
O diálogo sobre o tema a ser estudado em sala de aula possibilita a troca de diferentes saberes sobre o mesmo tema
e a ampliação de nossos saberes, ao passo que nossos fundos de conhecimento vêem a tona;
Sentar em duplas e grupos facilita a realização das atividades, posto que podemos nos entre ajudar e conversar
sobre a realização das atividades;
A conversa sobre outros assuntos que não os do conteúdo de estudo atrapalha a aprendizagem. Para melhorar isto
alguns combinados e constantes lembranças destes se fazem necessário para que possamos nos organizar e nos respeitar;
Um momento para bate-papo é muito importante para o processo de aprender e de ensinar. È neste espaço que
dialogamos, apresentamos explicitamente nossos fundos de conhecimento e construímos novas aprendizagens, como por
exemplo, o ouvir ao outro;
Com os Grupos Interativos2 temos a oportunidade de aprendermos a fazer a mesma lição de formas diferentes, pois
cada pessoa tem um jeito de ensinar;
Todas as situações que vivenciamos na escola influenciam em nossas aprendizagens de sala de aula. Algo que tenha
ocorrido no momento do recreio sempre repercute na sala de aula, podendo influenciar tanto de forma positiva como negativa
para o nosso ensino e aprendizagem.

Tais considerações ainda precisam ser categorizadas conforme indicações da própria metodologia que estamos
seguindo e dialogadas com os pensamentos teóricos que venho estudando, bem como com os(as) participantes da pesquisa.
Vale ainda ressaltar que já foram realizados dois grupos de discussão com as crianças e dois com os(as) voluntários(as); dois
relatos comunicativos com familiares, um com uma voluntária e o relato com a professora. Todos os dados coletados,
segundo estas duas últimas técnicas, estão sendo transcritos e organizados, segundo a própria proposta da metodologia aqui
abordada, em quadros de categorias que classificam os fatores transformadores e os exclusores tendo como parâmetro a
questão e os objetivos da pesquisa; para serem apresentados aos(às) participantes a fim de chegarmos às definições das
interpretações que temos e assim estruturar a apresentação dos dados.

Referências:
Elboj, C. S. (2001). Comunidades de aprendizaje. Um Modelo de Educación Antirracista en la Sociedad de la Información.
Tese de Doutorado. Departament de teoria sociológica, filosofia del dret e metodologia de les ciències socials. Universitat de
Barcelona.
Flecha, R. (1997). Compartiendo Palabras: El aprendizage de lás personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Paidós.
Freire, P. (1979). Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Habermas, J. (2001). Teoria de la Acción Comunicativa. I Racionalidad de acción y racionalización social. Madrid: Taurus.
Mello, R. R. de (2002). Aprendizagem dialógica: base para a alfabetização e para a participação. Centro de Investigação
Social e Educativa. Universidade de Barcelona.
Mello, R. R. de (2003). .Aprendizagem Dialógica: base para a alfabetização e para a participação. Seminário de Educação de
Jovens e Adultos, 2003
Moll, L. C., González, N. & Amanti, C. (2005). Funds of Knowledge: theorizing practices in households, communities and
classrooms. Edited by Norma González, Luis Moll and Cathy Amanti. Lawrence Erlbaum Associates, Publishers. Mahwah,
New Jersey.

2
Atividade que ocorre em sala de aula uma vez por semana. A professora prepara atividades referente aos estudos já realizados, como forma de fixação de
conteúdo, e divide os(as) alunos(as) em grupos heterogêneos – por sexo, classe social, cultural, etnia, raça – para realizar a atividade. Contudo, quem coordena a
realização destas atividades são pessoas voluntárias – familiares, pessoas da comunidade, da universidade – que escolhem uma das atividades elaboradas,
recebem uma orientação da professora sobre a forma de realização e têm vinte minutos com cada grupo para a realização da tarefa. Assim a professora controla o
tempo, os(as) voluntários(as) interagem com os meninos e meninas da classe e estes com seus pares e juntos exercitam o conteúdo que vêem estudando, segundo
os princípios da aprendizagem dialógica.

511
Formação profissional: perspectivas e desafios no século XXI

Nanci Soares1

Resumo: Na fase atual da globalização chamada por alguns especialistas como a “era do conhecimento” – a educação é tida como o maior
recurso de que se dispõe para enfrentar a nova estruturação do mundo, uma vez que dela depende a continuidade do processo de
desenvolvimento econômico e social, ou a “era pós-industrial”, que evidencia o declínio do emprego industrial e a multiplicação das
ocupações em serviços diferenciados como a comunicação, a saúde, o turismo, o lazer e a informação. Face ao exposto são muitos os
desafios para o profissional das ciências sociais, como o assistente social, que busca descobrir ou re-descobrir as possibilidades e alternativas
para o exercício de suas habilidades e competências profissionais neste cenário, ou seja, formular propostas que façam frente às questões
sociais, sem perder de vista à leitura do mundo, com a convicção de que mudanças são possíveis e os cidadãos com os quais se trabalha são
os atores principais deste processo. Para compreender melhor os caminhos da educação do futuro, estamos realizando no Brasil, no estado de
São Paulo, nos principais centros acadêmicos, uma pesquisa intitulada “Formação profissional: perspectivas e desafios no século XXI”, com
base em pressupostos teóricos e metodológicos de autores significativos para esta temática, com o objetivo de discutir a formação como
suporte determinante para o enfrentamento dos novos desafios societários para o trabalhador social.

O estudo apresentado é resultado de pesquisas empíricos e reflexões teóricas a respeito da educação, no mundo
globalizado e sociedade do conhecimento, que trouxeram mudanças significativas, na formação e na educação profissional,
dentre elas alguns autores destacam: a intelectualidade (valorização das atividades cerebrais em detrimento às atividades
braçais), a criatividade (tarefas repetitivas e chatas serão feitas pelas máquinas); a estética (o que distingue hoje não é mais a
técnica, e sim a estética, o design). Além destas mudanças citadas também farão parte dos processos educativos do futuro a
subjetividade, a emotividade, a desestruturação e a descontinuidade.
Na fase atual da globalização chamada por alguns autores como a “era do conhecimento” – a educação é tida como
o maior recurso de que dispõe para enfrentar essa nova estruturação do mundo, uma vez que dela depende a continuidade do
atual processo de desenvolvimento econômico e social, ou a era pós-industrial, evidenciando um declínio do emprego
industrial e a multiplicação das ocupações em serviços diferenciados: comunicação, saúde, turismo, lazer e informação.
Para compreender, os caminhos da educação do futuro, estamos realizando a pesquisa intitulada “Formação
profissional: perspectivas e desafios no século XXI”, com base em pressupostos teóricos de autores significativos dentro
desta temática.

Educação no século XXI


Na fase atual da globalização chamada por alguns autores como a “era do conhecimento” – a educação é tida como
o maior recurso de que dispõe para enfrentar essa nova estruturação do mundo, uma vez que dela depende a continuidade do
atual processo de desenvolvimento econômico e social, ou a era pós-industrial, evidenciando um declínio do emprego
industrial e a multiplicação das ocupações em serviços diferenciados: comunicação, saúde, turismo, lazer e informação.
Para compreender, os caminhos da educação do futuro faremos uma análise tendo como base os pressupostos
teóricos dos seguintes autores: “A educação no contexto da globalização” autor Prof. Elian Alabi Lucci; “Globalização e
educação: idéias para um debate” autor Moacir Gadotti; “A formação profissional no século XXI: desafios e dilemas”
autoras: Edna Lucia da Silva e Miriam Vieira da Cunha e finalmente “Os sete saberes necessários à educação do futuro”
autor Edgar Morin.
Segundo Prof. Luci a educação é o mais vital de todos os recursos. O investimento na educação é necessário, pois
na sociedade globalizada a maior riqueza nacional passou a ser a mão de obra qualificada. No mercado de trabalho o tipo
profissional exigido no século XXI será o homem “global”, que terá que estudar durante toda a vida para se manter
atualizado e membro da sociedade do conhecimento.
Entre as mudanças que deverá haver na educação, o autor destaca a aprender a aprender e a informalidade.
Afirma ainda que nesta sociedade do conhecimento as pessoas precisam aprender como aprender. Mostra que nesta
sociedade as matérias podem ser menos importantes que a capacidade dos estudantes para continuar aprendendo e a sua
motivação para fazê-lo. A sociedade pós-capitalista exige aprendizado vitalício, para alcançar isto é necessário disciplina,
além de ser atraente, deve trazer satisfação.
Outra mudança para este autor, refere-se à informalidade é o lúdico, que faz parte da terapêutica para a cura de
muitos males do ensino. Recorda São Tomaz de Aquino (século XIII) “o homem é um ser que esquece”. Portanto, ele precisa
ser constantemente lembrado, principalmente do essencial, uma vez que o acidental o homem sempre traz na lembrança.

1
Docente do Curso de Serviço Social da UNESP/Franca-(SP) Brasil; Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente – GEPECA e do
Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação Profissional em Serviço Social – GEFORMSS, nancisoares@netsite.com.br.

512
Para Luci (2008) a missão profunda da educação não é de apresentar-nos o novo, mas algo já experimentado e
sabido, que, no entanto, permanecia inacessível. Precisamente o que se expressa com a palavra lembrar.
Outro autor que estuda sobre os efeitos do mundo globalizado na educação é Moacir Gadotti. O autor menciona que
os principais promotores da globalização capitalista para o setor da educação na América Latina:
Noção de governo – a globalização capitalista trabalha com a noção de governo (aparatos administrativos/ separado
da noção de Estado. O estado além de “governo” tem uma dimensão simbólica que inclui a noção de cidadania. O estado não
apensas financia a educação, mas também constrói valores, sentido (direitos, cidadania). Para o “globalismo” o cidadão é
reconhecido apenas como cliente, como consumidor, que tem uma “liberdade de escolha” entre diferentes produtos. O
cidadão precisa apenas ser bem informado para “escolher”. Por isso ele precisa saber das principais escolas. Esse cidadão não
precisa ser emancipado. Precisa apenas saber escolher. A globalização é uma tendência internacional do capitalismo que,
juntamente com o projeto neoliberal, impõe aos países periféricos a economia de mercado global sem restrições, a
competição ilimitada e a minimização do Estado na área econômica e social. Algumas questões que aparecem em decorrência
disso são a exclusão social, o desemprego e o aumento da miséria.
Equidade: os governos devem ser eqüitativos nos gastos, privilegiando os mais pobres e delegando a função de
educar aos pais. Para os pobres a filantropia, os ricos devem pagar pelo ensino. Para as políticas neoliberais, o Estado deve
abandonar a idéia de igualdade (socialização) para assumir a equidade (atenção para a com as diferenças). Considera-se a
educação como um serviço e não como um direito.
Instrucionistas – os princípios que orientam as reformas neoliberais na América Latina são essencialmente
instrucionistas, ou seja, estão centradas no ensino e não na aprendizagem. Entre suas propostas: defende-se o aumento de
tempo para instrução e não qualidade da formação escolar. Ensina-se muito, aprende-se pouco. Aprender é identificar
informações e saber utilizá-las em algum momento. Ensinar se reduziria a aplicar uma receita, manejar um repertório de
técnicas.
Docentes – na concepção neoliberal os docentes não precisam ter conhecimento científico, assim seu saber é inútil,
e consequentemente não precisam ser consultados, eles só precisam receber receitas, programas instrucionais. Na
globalização capitalista encontramos uma proliferação em larga escala de classes superlotadas e a promoção do “ensino a
distância a baixo custo”. Essa seria a educação para todos.
Educação bancaria – o docente é apenas um “aplicador” de um texto, que devem ser “explícitos” pensados,
criativos e revistos de acordo com certos parâmetros nacionais do Banco.
Elites – haveria necessidade de professores, para formá-los como “governantes”. Na escola pública, na concepção
neoliberal o professor deve ser apenas um repassador de informações educação para todos – para a concepção neoliberal o
professor da escola pública deve ser apenas um repassador de informações.
O sistema de ensino – na globalização capitalista o sistema de ensino deve propor pacotes de ensino para serem
“aplicados”, para as pessoas aprenderem a resolver seus problemas. E como a referência da educação neoliberal é o mundo,
não a cidadania, os princípios que orientam as reformas neoliberais na América Latina estão muito mais voltados para a
compra de equipamentos. Não são projetos educativos em seu sentido estrito.

Enfim, para Moacir Gadotti tudo esta submetido a uma lógica, a lógica do mercado. As “políticas de ajuste”
promovidas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, impõem à necessidade de adequar a educação às
exigências da “sociedade de mercado”. Considera a Escola como uma empresa, que precisa se submeter à lógica da
rentabilidade e da eficiência da empresa, principalmente os conteúdos, a avaliação a gestão da educação, portanto consideram
atrasados não respondem às novas exigências do mercado, e cita as principais:

conteúdos mínimos e socialmente necessários, verificados através de exames nacionais;


redução dos benefícios dos trabalhadores e diminuição do salário e dos professores, necessidade do professor
trabalhar em dois lugares, com isso:
afeta a qualidade de trabalho;
a saúde do docente;
dificulta a sua atualização e reflexão crítica continuada;
Centralização curricular e pedagógica, exemplo disso é a avaliação nacional;
Descentralização das responsabilidades e municipalização do ensino fundamental;
Padrões de gestão mercantis das escolas.
Enfatiza o autor que ao contrário a esta proposta neoliberal a todo um trabalho por parte dos sindicatos de
trabalhadores na educação pelo movimento de educação popular (Paulo Freire):
Direito à educação;
A democratização do acesso (cobertura);
A reorientação curricular valorizando a experiência popular e a autonomia da cultura latino-americana (contra a
penetração ideológica e cultural da visão neoliberal de mundo: consumismo, individualismo, competitividade).
Outra proposta são os movimentos revolucionários, exemplo disso é o Movimento dos Sem Terra (MST), são novas
formas de fazer revolução. Estas revoluções surgirão na medida em que mantemos a esperança de uma sociedade melhor. Na
época de Marx a “associação livre de produtores”, portadores de uma nova civilização frente ao velho capitalismo. Uma

513
maneira de se fazer política é através dos sindicatos, partidos, governo, participando de campanhas eleitorais. Outra maneira,
pode ser através de organizações não-governamentais, fortalecendo a sociedade civil.
Segundo Gadotti (2003) não basta combater o capital. É preciso organizar-se para construir a alternativa.
Organizar-se não apenas em partidos e sindicatos, mas organizar-se ao lado dos desempregados, dos trabalhadores
temporários, dos moradores de rua, dos estudantes, dos imigrantes, das mulheres, dos indígenas, dos movimentos de
homossexuais, de negros, ou seja, de minorias, associações religiosas, entidades sem fins lucrativos, organizações não-
governamentais, entre outras.
O autor mostra as várias formas de fazer política, ressaltando que organizar-se com as novas multidões, organizar-
se em torno de um sentido da “história como possibilidade”. Enfatiza a forma de organizar segundo Paulo Freire – em torno
de um sentido que o neoliberalismo quer destruir; organizar-se em torno dos desejos e necessidades desses novos
movimentos e não apenas organizar-se em partidos e sindicatos.
Frente a “globalização capitalista” devemos nos organizar para uma outra globalização cuja proposta baseia-se em
educar para a humanidade, educar para uma sociedade sustentável. Fundada em princípios éticos que não são os baseados na
exploração econômica, na dominação política e na exclusão social. Um exemplo disto é o próprio planeta: a forma como
vamos lidar com este planeta, decidirá sobre sua vida ou sua morte.
É necessário mudança dos “paradigmas clássicos”, pois atende primeiro as necessidades do capital e depois às
necessidades humanas.
Segundo Gadotti (2003) o novo paradigma filosófico se funda em (Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastião Salgado,
Boaventura de Souza Santos, Milton Santos), propõe um conjunto de saberes e valores interdependentes. Destacaremos:
1) educar para pensar globalmente – nesta era da informação, não adianta acumular informações, é preciso saber
pensar, pensar a realidade. Não pensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o tema do
conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organização do trabalho na escola.
2) Educar os sentimentos – Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com sentido em cada
instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e não apenas porque pensamos. Somos parte de um todo em
construção.
3) Ensinar a identidade terrena – A identidade para o autor é ao mesmo tempo individual e cósmica. Consiste em
educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.
4) Formar para a consciência planetária - A terra é uma só nação e nós, os terráquios, os seus cidadãos. Separar
primeiro de terceiro mundo, significa dividir o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão globalista
entre globalizadores e globalizados, o contrário do processo de planetarização.
5) Formar para a compreensão – Formar para a ética do gênero humano, não para a ética instrumental e utilitária do
mercado. Educar para comunicar-se. Não comunicação para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo
melhor. Inteligente não é aquele que sabe resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem projeto de vida
solidário. Porque a solidariedade não é hoje apenas um valor. É condição sobrevivência de todos.
6) Educar para a simplicidade e para quietude – Nossas vidas precisam ser guiados por novos valores, tais como:
simplicidade, auteridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver junto, compartilhar, descobrir e fazer juntos. Alerta o autor
que simplicidade não se confunde com a simploriedade2 e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A
simplicidade tem que ser voluntário como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude
é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.

Outro autor que mostra os caminhos da educação do futuro é Edgar Morin, em seu livro intitulado “Os sete saberes
necessários à educação do futuro”, apresenta reflexões a respeito de questões fundamentais para melhorar a educação no
Século XXI.
Para Jorge Wertheim, Representante da UNESCO no Brasil, ao escrever a apresentação do livro acima
mencionado, salienta que:

Os sete saberes indispensáveis enunciados por Morim – As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; Os
princípios do conhecimento pertinente; Ensinar a condição humana; Ensinar a identidade terrena; Enfrentar as incertezas;
Ensinar a compreensão; e A ética do gênero humano  constituem eixos e, ao mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos
os que pensam e fazem educação, e que estão preocupados com o futuro das crianças. (MORIN, 2001, p.12)

Para melhor compreensão dos sete eixos enunciados por Morin (2001), segue breve apresentação:

As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão – a escola deve ser preparar a mente humana, pois a mesma esta
sujeita a falhas de memória, enganos “Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo a lucidez” (MORIN, 2001, p. 14).
Para isso, a escola deve preparar a mente humana para conhecer o que é conhecer com forma de estar apta para o combate e
identificação permanente de erros. Morin (2001) enfatiza que a educação devera introduzir e desenvolver o estudo das

2
Simplório significa muito crédulo, ingênuo.

514
características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das disposições
psíquicas e culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão.
Os princípios do conhecimento pertinente – segundo o autor sempre se ignora a necessidade de promover o
conhecimento capaz de apreender problemas globais e fundamentais para neles inserir os conhecimentos parciais e locais.
Para superar o conhecimento fragmentado deve-se ter um conhecimento capaz de apreender os objetos em seu contexto, sua
complexidade, seu conjunto. O ser humano deve ser capaz situar todas as informações em um contexto e um conjunto. Para
Morin (2001, p. 14) “é preciso ensinar os métodos que permitem estabelecer as relações mutuas e as influências recíprocas
entre as partes e o todo em um mundo complexo”.
Ensinar a condição humana – mostra que a educação do futuro deverá ser centrada no ser humano, que é a um só
tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico. Esta unidade do ser humano não pode ser desintegrada na
educação por meio das disciplinas, como é hoje, pois é impossível desta forma aprender o que significa ser humano. Cada um
deve tomar conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua identidade comum a todos os
outros humanos. Segundo Morin (2001,p.15)

(...) é possível, com base nas disciplinas atuais, reconhecer a unidade e a complexidade humanas, reunindo e
organizando conhecimentos dispersos nas ciências da natureza, nas ciências humanas, na literatura e na filosofia, e põe em
evidência o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade de tudo que é humano.

Ensinar a identidade terrena – O autor afirma que o destino planetário do gênero humano é ignorado pela educação
até o momento. Assim a educação do futuro deverá estar comprometida em ensinar a “identidade da terra”. Este ensinar
inicia-se com o estabelecimento da comunicação entre todos os continentes no século XXI, mostrando que todas as partes do
mundo se tornaram solidárias, sem, contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram a humanidade e que ainda
não desapareceram.
Enfrentar as incertezas – Edgar Morin enfatiza que as ciências permitiram que adquirisse muitas certezas no século
XX, mas também inúmeras incertezas. Na educação do futuro a educação deve ensinar “princípios de estratégia que
permitam enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza e modificar seu desenvolvimento, em virtude das informações
adquiridas ao longo do tempo”. (MORIN, 2001, p.16)
Ensinar a compreensão – Considerando a importância da educação para a compreensão em todos os níveis
educativos e em todas as idades, na educação do futuro o desenvolvimento da compreensão pede a reforma das mentalidades.
O autor considera a compreensão mútua fundamental para a educação no futuro.
A ética do gênero humano – Morin afirma “a ética indivíduo/espécie necessita do controle mútuo da sociedade pelo
indivíduo e do indivíduo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie convoca, ao século XXI, a cidadania
terrestre” (MORIN, 2001, p.17). Para ele a ética tem três dimensões: uma do indivíduo, uma social e outra da espécie. Estas
três dimensões estão inter-relacionadas e deveriam ser vistas de maneira integrada. Salienta que para o novo milênio haverá
duas grandes finalidades ético-políticas: 1) estabelecer uma relação de controle entre a sociedade e os indivíduos pela
democracia e 2) conceber a humanidade como comunidade planetária. “A educação deve contribuir não somente para a
tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a
cidadania terrena”. (MORIN, 2001, p. 17-18).

Em síntese, podemos afirmar, tendo por base os pressupostos teóricos dos autores arrolados, que a educação no
Século XXI estará atrelada ao desenvolvimento da capacidade intelectual do aluno e a princípios éticos, de compreensão e de
solidariedade. Portanto, caberá a educação capacitá-los para trabalhar com as mudanças e diversidades tecnológicas,
econômicas e culturais, possibilitando qualidades como: iniciativa, atitude e adaptabilidade.
O papel da universidade é decisivo neste século XXI, frente a este mundo globalizado deverá reforçar os valores
éticos e morais da sociedade, bem como o espírito cívico e participativo dos seus graduandos.

Referências
MORIN, Edgar.(2001). Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução de Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne
Sawaya. Revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. 4. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO.
YASBEK, Maria Carmelita. (1980). A Escola de Serviço Social no período de 1936 a 1945. Cadernos PUC, Educ: Cortez,
n.6, dez. (pp. 11-60).
LUCCI, Elian Alabi. (2008). A educação no contexto da globalização. www.hottopos.com/mirandum/globali.htm
(consultado na Internet em 18 de Agosto de 2008).
SILVA, Edna Lúcia da; CUNHA, Miriam Vieira. (2002). A formação profissional no século XXI: desafios e dilemas.
Ciências da Informação, Brasília, v. 31, n.3, set/dez. ( pp. 77-82).
GADOTTI, Moacir. (2003). Globalização e educação: idéias para um debate. Foro social mundial temático. “democracia,
Derechos Humanos, Guerras y Narcotráfico”. Colômbia, junio, 16 al 20 de 2003.
HARGREAVES, Andy. (2004). O ensino na sociedade de conhecimento: educação na era da insegurança. Tradução Roberto
Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed.

515
SERBINO, Raquel Volpato et al. (Orgs.) (1998). Formação de professores. São Paulo: Fundação Editora da UNESP.
(Seminários e debates)

Formação de Professores da Rede Municipal de Fortaleza na perspectiva da Lei


10.639/03

Maria Auxiliadora Soares Fortes


Prefeitura Municipal de Fortaleza
aucyfortal@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho caracteriza um estudo, ainda em andamento, acerca da formação de professores da rede municipal de Fortaleza
(ocorrida no ultimo semestre de 2007) para o cumprimento da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Vale ressaltar que, os cursos de formação continuada podem fornecer subsídios
teóricos e práticos aos professores na concretização das propostas educacionais, desde que seja oferecida a estrutura necessária. Portanto,
apenas a capacitação dos professores não é a garantia de tirar a Lei 10.639/03 do papel e torná-la viva na sala de aula. Nesta perspectiva, a
pesquisa fundamenta-se em uma análise reflexiva que aborda a prática escolar, historicamente desenvolvida, no que se refere à presença do
negro na sociedade brasileira, com base nos seguintes eixos temáticos: diversidade étnico-cultural, formação continuada de professores e
currículo.

Introdução
Os dados que apontam as desigualdades entre brancos e negros na educação brasileira, bem como ações do
movimento negro levaram o governo a adotar medidas, algumas muito polêmicas como é o caso da criação de cotas para
negros nas universidades públicas, com vistas a reverter este quadro.
Desde a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988 que o país vem dando ênfase na cidadania e na
dignidade da pessoa humana. Desde lá a legislação da educação traz em seu bojo esses pressupostos. O governo do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva recolocou a questão do negro na pauta, adotando políticas públicas de combate a
discriminação racial.
Dentre outras medidas alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/96) para a promulgação da
Lei 10.639/03 em 09 de janeiro de 2003. Outro aparato é a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004 que instituiu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.
Desse modo, o presente trabalho caracteriza um estudo, ainda em andamento, acerca da formação de professores da
rede municipal de Fortaleza ocorrida no ultimo semestre de 2007 para o cumprimento da Lei 10.639/03, que estabelece a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.
Nesta perspectiva, a pesquisa fundamenta-se em uma análise reflexiva que aborda a prática escolar, historicamente
desenvolvida, no que se refere à presença do negro na sociedade brasileira, com base nos seguintes eixos temáticos:
diversidade étnico-cultural, formação continuada de professores e currículo.
As reflexões acerca do currículo na perspectiva de política cultural podem entrelaçar-se ao debate da organização e
construção/aquisição do conhecimento nas relações étnico-raciais, portanto, contribuir para desvelar os avanços e entraves
encontrados na presença do negro na escola pública municipal de Fortaleza.
Essa análise torna-se importante, porque atribui um caráter político ao aspecto pedagógico, sugerindo a construção
de uma postura na condução do processo escolar, a qual valoriza a voz dos atores sociais que compõem o dia-a-dia escolar.
Tudo isso leva em conta a produção cultural como uma referência na educação, bem como um evento político como parte das
distribuições objetivas do capital cultural dominante da escola.
Vale ressaltar que, os cursos de formação continuada de professores merecem destaque nessas reflexões, uma vez
que é no dia-a-dia da sala de aula que as políticas educacionais tomam forma e corpo.

Formação Continuada de Professores para o Ensino de História, Cultura Afro-Brasileira e Africana


A literatura acerca da educação brasileira tem demonstrado que as ações para a formação continuada de
professores, ao longo dos anos, têm sido pouco valorizadas. Referidas ações intensificaram-se a partir da década de 1980 e
somente na década de 1990, passou a ser considerada como uma das estratégias fundamentais para o processo de construção
de uma política de ensino que realmente promovesse a qualidade na educação.
Com a implantação da Lei 9.394/96 a formação de professores vem assumindo papel de destaque no que se refere
às políticas públicas. As reformas promovidas desde a década de 1990 evidenciam uma associação da formação continuada
aos processos de melhorias das ações docente, desenvolvidas no seu dia-a-dia escolar, como forma de promover a inclusão
social.

516
Essa perspectiva de educação, assumida no sistema educacional público brasileiro, incorpora a discussão de que
nenhuma formação inicial é suficiente para o desenvolvimento profissional (Candau, 2001). Nesse sentido, evidencia-se a
necessidade de se pensar uma formação continuada que valorize tanto a realização do trabalho pedagógico no cotidiano da
escola, como do conhecimento acadêmico, de modo a articular teoria e prática na formação e na construção do conhecimento
profissional do professor.
Refletir acerca da formação de professores nos remete entender a escola como espaço privilegiado dessa formação.
É nos cursos Normais e/ou nos cursos de Pedagogia que o docente realiza sua formação inicial, seja ela em nível médio ou
superior, mas, é o dia-a-dia da escola que promove sua formação continuada, seus saberes de experiência.
Com base nessa perspectiva, o estudo objetiva compreender a formação continuada dos professores da rede
municipal de Fortaleza para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, articulando as experiências
formalizadas de educação continuada com as experiências apreendidas no cotidiano escolar.
Contudo, cabe realçar que a sobreposição de brancos sobre negros, historicamente, faz parte das relações
desenvolvidas na escola e usualmente são tratadas de forma dissimulada, ou seja, são enfatizadas como harmoniosas,
singulares ou normais pela comunidade escolar.
Essas concepções de superioridade, dentre outras, de cultura, de cor da pele são passadas pela escola em todos os
níveis de ensino e, por conseguinte, introjetadas por professores e alunos. A matriz africana de nossa cultura, história e
sociedade nunca foi reconhecida, apesar da resistência e luta de vários grupos sociais.
Portanto, a discussão acerca da formação do professor ganha novos contornos ao ser associada a obrigatoriedade,
na educação básica, do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, mediante a promulgação da Lei 10.639/03.
Não se pode desconsiderar o avanço do governo municipal de Fortaleza, ao colocar o tema na pauta do professor.
No entanto, referida lei já completou cinco anos e até agora as ações voltadas para a efetivação dessa realidade nas escolas
publicas municipais é muito lenta.
Apesar da rede municipal de Fortaleza ter oferecido um curso de Especialização em História da África, bem como
uma formação continuada de professores de Cultura Afro-Brasileira não conseguiu atingir metade do contingente docente.
Diante disso fica a preocupação com a dificuldade de realização do trabalho pedagógico na perspectiva do combate
à exclusão e discriminação, visto que a formação continuada dos professores é capaz de oferecer subsídios teóricos e práticos
que os auxiliarão no grande desafio que é tornar viva a Lei 1039/03 na sala de aula.

Escola, Currículo e a Diversidade Étnico-Cultural


A promulgação da Lei 10.639/03, a qual altera a Lei 9.394/96, estabelece a inclusão no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004 institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (Brasil, 2005).
Esse conjunto de medidas prevê que as escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas, devem incluir o
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística, Literatura e História do Brasil na perspectiva da produção de conhecimentos que promovam o reconhecimento e a
valorização das identidades.
Diante do proposto cabe enfatizar que é crescente a discussão em torno da educação na perspectiva da diversidade
cultural, porém, é muito mais complexa e multifacetada do que pensamos. Significa muito mais do que a apologia ao aspecto
pluriétnico e pluricultural da nossa sociedade.
O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da diversidade cultural coloca-nos frente a frente,
dentre outros, com a luta do movimento negro e outros grupos em prol do respeito à diferença.
A escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é possível o encontro das diferentes
presenças. Ela é também um espaço sociocultural marcado por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos (Dayrell,
1996). Essas possibilidades do espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua riqueza, no seu real poder transformador.
Autores como McLaren (1977), Giroux (1987), Apple (2000), ao trabalharem categorias socioculturais e políticas
como parte do processo de escolarização; entendidas como o conjunto das práticas sociais, segundo as quais vão sendo
construídos os diferentes tipos de conhecimento, de experiências e de subjetividades; permitem uma visão mais ampla do
universo escolar; servindo de fio condutor nas complexas teias de relações desenvolvidas na escola.
Dentro desse contexto, o currículo é visto como uma construção que envolve significados e valores culturais, uma
vez que não está simplesmente relacionado com a transmissão de fatos e conhecimentos objetivos.
Nessa perspectiva curricular, a escola não pode ser compreendida como um ambiente neutro, desconectado da
sociedade mais ampla e das desigualdades sociais e econômicas, visando única e exclusivamente a integração social e o
consenso. Além disso, permite compreender que a escola tem vida própria e, por conseguinte, existe uma longa distância
entre o currículo prescrito e o currículo praticado.
De acordo com Apple (2000), no currículo são produzidos e criados significados sociais, por isso, é necessário
considerar as relações sociais, políticas e culturais. É importante sempre fazer leituras mais amplas e contextualizadas,
desprovidas de estereótipos e, notadamente, construir relações sociais, nas quais sejam consideradas as diferenças
individuais.

517
A complexidade dessas relações e conexões na organização de conhecimentos se traduz na diversidade de situações
e experiências acontecidas na escola, impondo a necessidade de desconsiderar as diferentes dimensões que envolvem o
ensino-aprendizagem.
Portanto, não se trata apenas de fazer valer as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A situação de exclusão escolar desde a
Colônia, notadamente do negro, até hoje é suficiente para se constatar a inocuidade de determinadas ações governamentais.

Algumas Considerações
Apesar da Lei 10.639/03, ainda não ser uma realidade no ensino público municipal de Fortaleza faz-se necessário
considerar alguns aspectos.
A concepção de currículo, pressuposta nas Diretrizes \Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é apresentada na perspectiva de transformação do
ensino/aprendizagem, ou seja, a escola trabalharia numa perspectiva de transformação do entendimento e da prática
pedagógica, acerca do papel do negro na nossa sociedade.
A complexidade dessas relações e conexões na organização de conhecimentos se traduz na diversidade de situações
e experiências acontecidas na escola, impondo a necessidade de considerar as diferentes dimensões que envolvem o ensino e
aprendizagem.
As experiências com pesquisa englobando a efetivação de políticas educacionais no cotidiano escolar permitem-me
arriscar a dizer que, os efeitos dessas novas experiências correm o risco de não favorecerem a participação dos professores,
na efetivação da proposta, caso a formação desses profissionais deixe a desejar.
Dentre outros fatores, essa formação deve atingir a todos os docentes da rede. Não deve apresentar-se com
características de “receita” e sim como uma articulação entre a proposta e os problemas do cotidiano escolar. Sem estes
cuidados, dentre outros, os professores podem sentir medo, insegurança e, por conseguinte, rejeição para o desenvolvimento
das atividades escolares.
A educação inclusiva, ao promover o respeito pelas diferenças e a qualidade educativa pela diversidade é uma
concepção indispensável para o combate a exclusão escolar. Contudo, cabe ao poder público instituir, dentre outras, políticas
efetivas de formação continuada dos professores capazes de fornecer subsídios teóricos e práticos para a concretização das
propostas educacionais, bem como investimentos financeiros reais e objetivos para tornar a Lei 10.639/03 viva na sala de
aula.

Referências Bibliográficas
Apple, M. (2000). Política cultural e educação. São Paulo: Cortez.
Brasil (1999). Constituição Federal de 1988. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia. Centro de
Estudos Estratégicos.
Brasil (1997). LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas.
Brasil (2005). Diretrizes\Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação.
Candau, V. M. (2001). Magistério: construção cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes.
Dayrell J. (199). Múltiplos Olhares sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: UFMG.
Giroux, H. (1987). Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez.
Mclaren, P. (1977). A Vida nas Escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação. Porto Alegre:
Artes Médicas.

Culturas Juvenis e Escola: desafios à formação docente na contemporaneidade

Sandra Tosta
sandra@pucminas.br

Resumo: Culturas Juvenis e Escola- desafios à Formação Docente discute sobre a formação de professores na sociedade contemporânea
considerando que todo ato de educar implica a relação com o outro e com o mundo; portanto, passa pelo reconhecimento e exercício da
alteridade. Reconhece que o foco central da formação continua sendo no docente, no ensino, no como ensinar e nos currículos, pouco atento
ao aluno, seu mundo e suas aprendizagens. Resultado de inúmeras pesquisas, o texto trata, especificamente, de jovem e suas múltiplas
expressões culturais e como tais expressões se manifestam no cotidiano escolar.

518
Professores e jovens: desafios à formação docente
A escola encontra-se, atualmente, diante de uma diversidade de sujeitos que nela se inscreveram ou irão se
inscrever. Pensando nas adolescência e na juventudes presentes neste espaço, a situação é bastante recente. No Brasil, a partir
da busca da democratização do ensino e das políticas de inclusão de todos os alunos na escola data de 1988, com a
Constituição Federal e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). São dez anos apenas, em que a
legislação toma como pressuposto que todas as camadas da população têm direito à escolarização e, para mais além, abriu a
possibilidade de organização dos tempos e espaços escolares por idade e não somente por rendimento como no regime
seriado. Sinalizando, assim, com alternativas de se trabalhar com diferentes sujeitos na escola, por um lado, e, por outro,
evitando a sua permanência em séries pela via reprovação pura e simples, mas historicamente enraizada na educação
brasileira. Duas grandes e abrangentes conquistas, sem dúvida, e que interpelam a instituição escolar e a formação docente,
ainda pouco sintonizada e preparada para enfrentar os desafios que tais mudanças provocam.
A partir desta nova realidade tornou-se essencial melhor compreender quem são os “novos” sujeitos que
adentraram na escola evidenciando a necessidade deste espaço e seus profissionais encararem de frente os universos que eles
trazem para a escola, sob pena desta instituição se confinar em estruturas envelhecidas e distantes do mundo. De um mundo
cujas tecnologias de comunicação alteraram profundamente seu perfil e asseguraram, senão de modo integral, mas bastante
grande, o livre fluxo de informações, de conhecimentos e de culturas. Mais que isso, esta mídia passa a se constituir
gradativamente antes e em velocidade incomensurável hoje, em mais uma das instâncias de informação e de formação dos
sujeitos. Em outros termos, a mídia é, ao lado da escola, uma das instituições que também ensinam, com a qual nós também
podemos aprender CARVALHO, (2007).
Nesta conjuntura, adolescentes e jovens são os sujeitos que colocam de nodo mais contundente na vitrine mundial
que, na condição de alunos ou não. Mas de alunos adolescentes e jovens regularmente matriculados e presentes em escolas
que enfocaremos neste artigo. Os resultados apresentados e discutidos resultam de estudos que tiveram como objetivos
investigar a partir de pesquisas de abordagem qualitativa, na perspectiva sócioantropológica, como diferentes sujeitos que
encontram-se na fase da juventude e da adolescência se relacionam e significam: 1- tempos e espaços escolares externo à sala
de aula, A opção pelo espaço escolar fora de sala de aula deve-se ao fato de quê considera-se que neste espaço os corpos
adolescentes encontram-se mais soltos. Conforme McLaren (1991) em sala de aula as posturas são mais rígidas de acordo
com as normas da escola – estado de estudante; enquanto em espaços e tempos onde a presença de figuras disciplinadoras é
menos constantes, os sujeitos ficam no chamado estado de esquina de rua, e podem se expressar mais livremente; 2- jovens
em grupos de cultura juvenil e as possíveis articulações com o espaço escolar; adolescentes e o que fazem com seus
uniformes considerando-o como um artefato identitário; e jovens trabalhadoras domésticas e alunas da modalidade de EJA-
Educação de Jovens e adultos.

Cultura, Culturas na Escolas.


A temática sobre a formação docente e juventude nos provoca e desafia a pensar sobre a escola e as relações que a
instituição estabelece com a sociedade, Ou seja, o que essas relações produzem são ou não incorporadas nos processos de
constituição da escola e nos percursos de formação docente. Desde suas propostas pedagógicas passando pelas relações de
aprendizagem, de elaboração de saberes, de definições curriculares e outras tantas que configuram o cotidiano escolar.
Como formar professores considerando que todo ato de educar implica a relação com o outro e com o mundo,
portanto, passa pela questão da alteridade, quando o foco central da formação continua sendo no docente, no ensino, no como
ensinar e nos conteúdos que são distribuídos em grades curriculares, pouco se atentando para o aluno que deveria ser o foco
no processo da aprendizagem.
Fato é que ainda estamos formando professores nos marcos da reforma universitária de 1968 e da Educação Básica
de 1970, com sua concepção de conhecimento cientificista, pragmática e positivista sedimentada na disciplina e no
disciplinamento, cuja tradução pode ser vista nas grades curriculares compartimentadas, monodisciplinares e desarticuladas
do conhecimento em sua dimensão de globalidade.
Evidências que nos diz que, se queremos uma formação integral do sujeito- docentes e discentes, é preciso romper
velhas e renovadas dicotomias que permeiam propostas de formação, como, por exemplo, o distanciamento entre ciências
exatas e ciências humanas, teoria e prática, pensamento (representação) e ação, formação e vida profissional.
Porém, ao que parece, ainda não conseguimos estabelecer as pontes necessárias ao conhecimento social e
culturalmente necessário e favorável às mudanças sociais. Ou como diria Canclini, ainda não conseguimos “demolir divisões
e pavimentos e insistimos numa compreensão do mundo e da cultura como ‘camadas’ Em lugar de dar conta de uma
compreensão mais híbrida cuja ressonância na formação docente implica assumir uma perspectiva nova e inventiva; um
pensar e um agir referenciados pelo entendimento de que precisamos de “ciências nômades, capazes de circular pelas escadas
que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente”
(CANCLINI, 1996)
Para tanto, arrisco a sugerir que precisamos de um trabalho conjunto de áreas de conhecimentos que pode gerar
outros modos de conceber o mundo do humano, suas culturas e aprendizagens, superando o isolamento e a pretensão de que

519
formar professores é uma tarefa que se restringe aos limites das escolas e das escolhas que essas fazem em seus cursos de
licenciatura.
O olhar transdisciplinar ou inspirado no “transconhecimento”1 sobre a formação docente, demanda extrapolar
escolas e currículos hermeticamente fechados em si mesmos. Dado que, se a instituição educacional continua sendo, por
excelência, o lugar de formação, não podemos mais, sob pena de sermos extemporâneos ou estrangeiros no nosso próprio
tempo e espaço E mais, desconsiderando que outras instâncias de formação e de socialização agem concomitantemente ao
escolar, como a mídia, em uma concepção ampla de meios eletrônicos e tecnologias digitais Mais ainda, agem como
dispositivos discursivos que formam e conformam identidades e não apenas como recursos técnicos dos quais nos servimos
para substituir antigos recursos didáticos.
O transconhecimento assim posto, nos obriga a admitir que existem campos onde não são encontradas dimensões
do humano em suas redes de relações como a miséria, a dor e o sofrimento, a violência e a transgressão que, definitivamente,
não cabem em grades curriculares. Grades que, de acordo com Arroyo, aprisionam e “quem está dentro não sai e quem está
fora não entra” (ARROYO, 2007). Ou seja, existem dimensões culturais, psicossociais, éticas e políticas da vida humanas
para muito além daquelas que nos são familiares; e buscar conhece-las é não descolar as ciências e as tecnologias como
eventos históricos e historicizados na sociedade.
Desse complexo cenário, minha contribuição com este artigo é a de pensar a formação docente considerando que
professores estão imersos em dinâmicas de aprendizagem e não de ensino simplesmente, mediados pelo conhecimento e
tendo como parceiros sujeitos. Sujeitos adolescentes e jovens que, indiferente à cultura da escola, organizam modos de pensar
e de agir, vivem suas culturas. Seja na participação em grupos juvenis, nos modos como se apropriam e fazem usos de
códigos escolares como o uniforme, os espaços temporais e materiais dos quais se apropriam muito subjetivamente, dos
modos como retornam à escola, entre outras tantas dimensões e expressões que compõem as culturas no ambiente escolar.
A escola, por seu turno, pensada como lugar de formação, será vista e refletida como parte da totalidade social,
reconhecendo-se, porém, a presença de vários e diferentes sujeitos e processos que impedem qualquer simplificação ou
perspectiva homogênea nas explicações ao seu respeito. Mais do que isso a pretensão é buscar entender a escola como uma
instituição que, historicamente, carrega em seu cotidiano, marcas significativas dos sujeitos que dela participam ou
participaram. Marcas nem sempre coerentes, mas expressões controversas da existência concreta de diferentes e desiguais
grupos sociais.
Dessa maneira, como (re) conectar saberes, formação e prática docente, necessários à tão complexa realidade? Mais
precisamente, em nosso ângulo, à realidade de adolescentes e jovens alunos com seus saberes e lazeres, experimentos e
vivências, seus movimentos, medos e perplexidades, seus sonhos e frustrações, desejos e expectativas?
Enfim, como dar conta de formar professores que se relacionam com sujeitos mergulhados em processos de
aprendizagens e não, meramente com indivíduos?2. E sem perder o olhar crítico sobre instituições de ensino que se têm
mostrado mais preocupadas com o mercado e menos comprometidas com a formação ética, estética e técnica orientada pelo
senso de uma humanidade que parece esvair-se de conteúdo e significado no tempo e no espaço contemporâneos?

Reflexões sobre adolescência e juventude como construções culturais


Isto posto e sem nenhuma intenção de oferecer receitas, creio que o primeiro desafio é buscar uma compreensão
nada fácil de quem e do que sejam adolescentes e jovens ou o que pode significar adolescência e juventude na sociedade
contemporânea. Essa é, sem dúvida, uma empreitada bastante complexa, dado que são termos densamente polissêmicos e
atravessados por dimensões e mediações de múltiplas origens e datação histórica. Desde a biológica, que emite sinais claros
da passagem dos tempos da vida à dimensão cultural, que, articulada à natureza, exige sempre um pensar mais atento e aberto
às diferentes realidades. Porém, como em pesquisa desafios são para ser enfrentados e não contornados, vamos à questão!
Em que pese a história já se ocupar da questão da juventude desde a idade média pelo menos (DAVIS, 1990, em
MAIA, 2008), fica claro que pensar adolescentes e jovens no contexto atual apresenta configurações distintas e complexas
que trazem questões próprias da época, principalmente quando se toma como referência as grandes metrópoles. Em termos
legais e de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ser jovem é estar na faixa etária entre 12 e 18 anos.
Entretanto, estudos na Europa e no Brasil deslocando o foco da linha jurídica preferem trabalhar com uma faixa bastante mais
alargada, que chega aos 30 anos ou mais. Tais estudos baseiam-se em pesquisas que buscam a percepção dos sujeitos e
consideram o contexto em que vivem. Nesta perspectiva o ser adolescente se apresenta muito mais como um sentimento de
pertença e de experiência, de “estado de espírito” do que propriamente corresponde a um dado cronológico e biológico.
A esse propósito, a psicanalista Maria Rita Khel diz que cada vez mais, aqueles sujeitos que outrora, nas décadas de
1920- 1930 no Brasil, já eram considerados plenamente adultos com seus 20 anos, pensados a partir de hoje, estariam em
plena juventude. O que significa dizer que, para além de documentos normativos, tenhamos que enfrentar noções datadas
como essas as colocando sempre em “situação”, numa feliz expressão do antropólogo Rúbem César Fernandes
(FERNANDES, 1994) que chama a atenção para os riscos de usar conceitos fora de seus contextos de produção e de falar de
sujeitos fora da análise de situações concretas em que se encontram.
Desse modo é que pensar a constituição da puberdade desde a Grécia clássica às sociedades indígenas em qualquer
tempo, só é possível a partir do entendimento de mecanismos simbólicos que essas sociedades engendram para dar conta de
explicar e controlar os fenômenos da natureza em relação aos sociais. Assim, são conhecidos e já bastante estudados os

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rituais de passagem que marcam a transição, a reinscrição simbólica do corpo infantil para as tarefas da idade adulta, seja de
meninos ou meninas (TURNER, 1974). Isto é, as mudanças físicas precisam ser celebradas e controladas para que se
inscrevam na norma social ou de cada cultura, e isso vai depender do entendimento que se tem delas: do corpo, da função do
corpo, da procriação, do trabalho e tantos outros aspectos, associados ao lugar que a criança tornada jovem deve ocupar no
mundo dos adultos.
Já o conceito de adolescência é próprio da contemporaneidade, onde pensá-lo, segundo Khel, “tem o sentido de
uma moratória, período dilatado de espera vivido pelos que já não são crianças, mas ainda não se incorporaram à vida adulta”
(KHEL, 2004: 91) Essa juventude estendida implica, por um lado, na imaturidade sexual e intelectual, no despreparo para o
casamento, para o ingresso no mercado de trabalho, enfim, para aquisição da autonomia. Principalmente quando se constata
que, cada vez mais, crescem as exigências para a entrada e permanência nesse mercado e, por conseqüência, o período de
formação também se alarga para atender a rapidez e variações das demandas de mercado.
Por outro lado, e como decorrência dessa implicação, em lugar do jovem ser tratado como sujeitos imersos em uma
conjuntura histórica na qual traduzem dialeticamente suas contradições e possibilidades, de modo simplificado e reducionista
passa ser pensado nos estreitos limites de uma idade crítica, instável, “aborrescente”. Discursos que por vezes são
oportunamente aproveitados no ambiente escolar orientando, inclusive, investigações educacionais.
Mas esse jovem não podia viver impunemente esses lugares e papeis sociais indefinidos na perspectiva de uma
sociedade pragmática e utilitarista regulada pelo mercado: era muito ócio e pouco negócio! E não data de muito tempo,
meados dos anos de 1980, que adolescentes e jovens são tomados de forma mais prestigiosa pela indústria cultural e por
outros setores da economia:
É Rita Khel quem nos lembra que eles

começam a sair de uma certa obscuridade culposa e obediente aos quais discursos médicos [higienistas,
especialmente na escola, acrescento eu] e morais os haviam relegado para se transformarem em uma faixa da população
privilegiada pela indústria cultural; (KHEL, em NOVAIS E VANUCHI, 2004, p. 90).

E, também por isso, mas não só, tornam-se sujeitos que vêm ocupando espaço na pesquisa acadêmica. Com a
indústria cultural plenamente sintonizada com o capitalismo- regime que favoreceu sua criação, o estado e o status que esse
setor da economia desfruta hoje, o jovem entrou definitivamente em cena. Comenta a psicanalista:
[...]como na economia capitalista, do boi se aproveita até o berro, essa longa crise que alia o tédio, a insatisfação
sexual sob alta pressão hormonal, a dependência com relação à família e a falta de funções no espaço público, acabou por
produzir o que as pesquisas de marketing definem como uma nova fatia de mercado. A partir daí - viva o jovem! Passou a ser
considerado cidadão porque passou a ser consumidor em potencial. (KHEL, em NOVAIS E VANUCHI, 2004, p. 91)

Situação também já anteriormente analisada de modo bastante consistente pelo antropólogo, Nestor Garcia
Canclíni, em seu livro “Cidadãos e consumidores” (1996), no qual defende a tese de que, no capitalismo, cidadania se mede
pela capacidade de consumo dos sujeitos. Esse segmento jovem da população que já fora visto como portador de valores de
rebeldia, de contra-cultura, de afirmação de sentidos muito próprios - marcas emblemáticas da década de 1960, é,
posteriormente, convertido e transformado em consumidor cidadão em um duplo e antropofágico sentido: o ser jovem como
objeto de desejo e de consumo - como target. Estratégia político-mercadológica inaugurada nos EUA e velozmente difundida
pelo mundo capitalista que enfoca o jovem e tudo que se refere ao tempo da juventude como uma mercadoria a ser desejada,
cultuada e consumida. Mas como sugere o próprio Canclini, essa não é uma situação isenta de tensões, contradições e
hibridismos (CANCLINI, 1997). Deste modo, alguns matizes precisam ser esboçados de modo a capturar mais atentamente o
quadro acima delineado.
Se trazer o jovem à visibilidade social capitaliza inegáveis benefícios- como o de se recuperar, em outra conjuntura
histórica evidentemente, um certo protagonismo juvenil3 essa publicização midiática tem resultados no mínimo
questionáveis: a associação jovem e consumo favorece um ethos hedonista em que o conceito é tomado pela imagem; o real
pelo aparente, a realidade pelo simulacro e outras tantas e engenhosas simulações como aquelas que se referem à violência no
estado quase bárbaro que ela nos atinge hoje. E que, coincidência ou não, são os jovens, em qualquer grupo social, o mais
atingido; seja agredindo ou sendo agredido, matando ou sendo morto (ABRAMOVAY e RUAS, 2002).
A mídia é, em grande parte, responsável por este processo, pela difusão de mercadorias postas no imaginário
coletivo aberto ao “novo” como objetos de desejo e de necessidade. Pela publicidade, principalmente, a mídia aproximou o
universo de diferentes e desiguais classes na sociedade, tornando-os membros de um mesmo sistema simbólico. E nesse
contexto, o consumo passa a ser um tipo de condição para construções identitárias ainda que fugazes e exercício da
cidadania, É cidadão quem é consumidor. E Baudrillard afirma que o consumo “surge como uma conduta activa e colectiva,
como coacção moral, como instituição” (BAUDRILLARD, 1991, p.81), que se coloca como um sistema de valores com a
função de integração dos indivíduos na sociedade.
Neste cenário me refiro ao jovem pertencente a qualquer camada da população, pois, na sociedade mediatizada, a
elaboração de sentidos e de identificações se constrói, sobretudo, à imagem e semelhança de elementos que a mídia oferece,
pauta, agenda. E se são muitos poucos, pouquíssimos os jovens que materialmente têm capacidade de consumir todos os
produtos que lhes são ofertados, paradoxalmente, a imagem do adolescente difundida pelas redes midiáticas em todo o

521
mundo, “oferece-se à identificação (e consumo) de todas as classes sociais” (KHEL, em NOVAIS e VANUCHI, 2004, p. 93).
Ou seja, a carência material acaba se repondo na dimensão simbólica. E ambas, dimensões materiais e simbólicas, a exemplo
de significantes e significadas, não podem ser pensadas de modo cindido.
Mas é evidente que esse quadro não pode ser apresentado como se fosse único, homogêneo e homogeneizante, com
capacidade de se projetar para todo e qualquer grupo em qualquer sociedade igualmente. Se concordo com as análises feitas
acima, a elas devo acrescentar senões, ou melhor, problematizações, que tornam mais complexo e desafiador compreender a
dinâmica cultural na sociedade contemporânea. Que adolescentes e jovens de qualquer camada social constroem identidades
e identificações sob a magia do consumo de modelos estéticos e técnicos emitidos pela mídia, principalmente, é fácil
constatar. Como não se duvida de que essa difusão em massa de valores que tentam impregnar e desenhar um mesmo querer
da sociedade seja parte de estratégias de reestruturação econômica e geopolítica hegemônicas oriundas do mundo ocidental.
Contudo, também é necessário analisar processos de identificação juvenil como dinâmicas de reestruturação
simbólica com que grupos populares ou não, mas principalmente estes, recriam e adaptam seus saberes, experiência e estilo
para viver em meio a desigualdades sociais e diferenças culturais. Para fazer frente às tecnologias de produção e de
circulação de bens simbólicos sem abrir mão de crenças, da tradição e de suas idiossincrasias, usando esses artefatos para
ampliar o raio de emissão e de escuta de suas reivindicações e problemas como bem mostra Hermano Vianna (VIANNA,
1987) em seu estudo pioneiro sobre jovens do funk carioca.
Então, a esta realidade é interessante trazer a noção levi-straussiana do bricoleur como uma imagem que pode dar
conta de mostrar como códigos culturais que estimulam o consumo, são eles mesmos recodificados e colocados em um outro
cenário, que não aquele de origem, com outras atribuições e significados. Dito de outro modo e frente a essa conjuntura de
globalização econômica e de transnacionalização de bens materiais e simbólicos, penso que o movimento que se coloca para
nós pesquisadores e formadores de professores é o desafio de, dialeticamente, entender que, se esta mesma sociedade
adquire, por um lado, ares de mundialização, assiste, por outro, ao crescimento da reivindicação pela autonomia contra
formas de massificação e do desejo de afirmação de singularidades de cada região, língua, etnia, crença ou geração. Isto é, “...
longe de impor uma hegemonia monótona sobre o planeta, a globalização (amparada em estratégias midiáticas) tem gerado
uma diversidade de formas e conteúdos culturais historicamente sem precedentes”, como afirma Sahllins (SAHLLINS,1997,
citado em TOSTA, 1999).
Neste contexto histórico, cultural e informacional, entender educação, escola, práticas pedagógicas, currículos,
formação e profissão docente e jovens alunos, exige, então, um outro tipo de entendimento das dinâmicas sociais. (TOSTA,
1999). Pois, tal realidade social nos obriga a uma certa reinvenção de noções para dar conta de analisar a complexa trama de
mediações que se tece na contemporaneidade. Como aquelas que dizem respeito aos múltiplos pertencimentos dos sujeitos
como elementos definidores de sua constituição identitária e de suas ações sociais. O que nos permite alargar a compreensão
do lugar destes sujeitos na sociedade e as próprias possibilidades de mudança que nela se anunciam.
Refiro-me as análises de natureza antropológica que buscam incorporar essa dimensão simbólica da sociedade e
que não tomam a cultura como um evento simplesmente; ou muito menos como apêndice das relações econômicas ou
modismos. E nem tão pouco tomam a diferença cultural como um fenômeno que pode ser explicado pela dimensão de
categorias únicas ou descolada das desigualdades sociais.
Considerando, portanto, que noções teóricas vêm se redefinindo a luz de práticas que traduzem uma
heterogeneidade social maior e mais matizada. Que é fruto da coexistência harmoniosa ou não de uma pluralidade de
tradições, cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, familiares, geracionais, políticas e religiosas, sem que,
necessariamente, uma exclua a outra (TOSTA, 2005).
Pressuposto que parece ser compartilhado por estudiosos de vários campos de conhecimento, que não apenas da
antropologia, notadamente na educação. Haja vista a difusão em grande quantidade de pesquisas que têm adotado tal
perspectiva no estudo da diversidade cultural e da escola4.
Desta maneira é que levando em conta a origem de classe, mas sem toma-la, a priori, como determinadora da
constituição de sujeitos, reconheço que adolescentes e jovens que vi e ouvi pertencem a diferentes e desiguais camadas da
população, mas nem por isso vivem mundos incomunicantes. Ao contrário, suas ações e representações são, muitas vezes,
atravessadas por expectativas, desejos, percepções e projetos que dizem de leituras muito parecidas sobre eles, a escola e o
mundo.
Portanto, no debate das culturas de adolescentes e de jovens com o cuidado que a temática exige; fazendo um
recorte vou me ater aos modos ou estilos que grupos expressam e que revelam atitudes, valores que às vezes nos deixam
perplexos no ambiente escolar ou fora dele Por nos faltar âncoras teóricas para compreender o diferente e com ele dialogar.
Mobilizada por esses desafios espero contribuir nesse debate trazendo indagações e percepções que nos possibilitam pensar
em jovens sujeitos em suas escolas elaborando mecanismos simbólicos e materiais em que comunicam situações de
sociabilidade. Sociabilidades estas que nos permitem problematizar como a formação docente tem se mostrado insuficiente
para subsidiar o professor na compreensão necessária para interagir com estes jovens em suas escolas e em seus modos
singulares, “estranhos”, muitas vezes, de se apresentarem e participarem dos processos de aprendizagem.
E, ao tomar a categoria sociabilidades, faço-o para distinguir da categoria socialização, a qual está, historicamente,
na base dos processos educacionais como uma atribuição da escola, juntamente com a instrução. Em Simmel (2006), o ponto
de partida de cada formação social é dado pelas interações sociais- entre pessoa e pessoa, do encontro e das relações entre os
vários indivíduos da sociedade. Como uma forma peculiar de sociação: apresenta-se emancipada de qualquer conteúdo que

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não seja apenas a própria forma de convivência com o outro e para o outro. Se uma sociação implica o agrupamento em torno
da satisfação de interesses, na sociabilidade a finalidade é a própria relação, o estabelecimento de laços os quais têm em si
mesmos suas razões de ser. Assim, a sociabilidade pode ser vista como símbolo da vida que surge no fluxo de um jogo como
expressão simbólica da realidade.
Dialogando com Simmel, Mafesolli formula o conceito tão usado atualmente, de tribos, para designar a formação
de agrupamentos de adolescentes e jovens no mundo do urbano, e define a sociabilidade como redes de sociabilidades
díspares com contornos nebulosos, intensos, exigentes, afetivos e sensíveis. Redes onde os sujeitos vão formando novas e
renovadas redes de sociabilidade que se constroem e reconstroem na medida em que, segundo uma perspectiva nômade,
intinerante, caminham, traçam e trançam suas trajetórias.

Adolescentes e Jovens em escolas


O que pensam e como pensam a vida na escola, a aprendizagem, a relação com os professores? E o tempo (como
também o espaço), pois este surge como uma categoria que lhes é fundamental na lógica de pensar e se organizar na escola e
fora dela. Com esta indagação retomo mais diretamente a temática deste artigo- formação de docentes e culturas juvenis
formulando algumas reflexões com base em pesquisas que venho desenvolvendo na PUC- Minas, desde 1997.
A releitura destas pesquisas, diálogos impertinentes no EDUC- Gripo de pesquisa Educação e Culturas, e em outros
fóruns de pesquisa na educação e em outras áreas. Ao lado disso, o exercício constante da transdisciplinaridade, pelo qual
busco afirmar que a temática professores, adolescentes e jovens exige um olhar atento e aberto para a uma realidade
multifacetada e plural em relação ao conhecimento, a formação e escola.
Falo de adolescentes e jovens de camadas pobres e ricas e suas estratégias de sociabilidade e de sobrevivência
material e simbólica. Sobre eles compartilho da idéia de que adolescência e juventude, assim como a vida adulta, a velhice, a
infância, são construções sociais, em que pese as intensas transformações biopsicológicas que caracterizam essas fases da
vida e que aparentemente são universais. E que da construção desse entendimento requer a compreensão de que elementos
culturais que variam no tempo e de uma sociedade para outra ou mesmo dentro de uma mesma sociedade e de um mesmo
grupo para outro dele tomam parte.
Portanto, ao propor ouvir os adolescentes e jovens, buscamos compreendê-los em sua(s) identidade(s) nos espaços
escolares e identificar traços culturais comuns entre estes sujeitos. Um dos traços marcantes dos alunos pesquisados é a
atração pelo “ter”. O uso constante de celulares, aparelhos eletrônicos, os comentários sobre corpo, cabelo, tênis e acessórios
ouvidos durante as observações confirmam que o adolescente contemporâneo é atraído pelo consumo. Conforme considera
Tosta (2005, citada em CARVALHO, 2007), o adolescente sente a necessidade de poder comprar, sair, enfim, fazer tudo o
que é proposto pela mídia e que lhe pareça prazeroso. Assim, o desejo de “ter” independe da classe em que se está inserido e
de seu poder econômico, pois a dimensão do consumo passa pelo sistema simbólico e o não acesso aos bens materiais é
parcialmente resolvido por alternativas de consumo, por exemplo, de produtos que imitam marcas usadas pelas pessoas com
maior poder aquisitivo ou consideradas como “originais”. No espaço escolar, é comum ver alunos usando tênis ou chuteiras
“falsificadas”. Também observamos uma outra forma de satisfação simbólica deste desejo de consumo: o empréstimo. Os
alunos trocam bonés, blusas de frio e aparelhos eletrônicos, demonstrando a necessidade de usar objetos que muitas vezes
não podem comprar.
Eles também buscam grupos de pares para conviver, organizando-se em torno de certas características eou
interesses comuns. A formação desses grupos é base para a formação da identidade, pelo menos aquela expressa no espaço
escolar e no seu entorno. Ao mesmo tempo em que o grupo é um suporte, ele provoca ansiedade quanto à aceitação ou não do
adolescente e do jovem em seu interior. Daí a necessidade de adesão e compartilhamento dos jogos, das brincadeiras, dos
objetos.
Desta maneira, a família, a escola, a mídia e o grupo são os principais espaços de aprendizagem de normas e
valores. Embora os valores e crenças da família já tenham influenciado na formação da identidade, é na adolescência que o
sujeito reestrutura estes valores fazendo projetos de vida a partir das relações e experiências vividas em outros grupos
(BALLEIRO, 1999 citado em CARVALHO, 2007).
Portanto, lendo e analisando fragmentos orais, textuais e imagéticos de adolescentes e jovens sujeitos em escolas
nas várias pesquisas que desenvolvemos busquei depreender sentidos que contam de sua história e de seus percursos
escolares, colocando em cena o bricoleur como expressão das ricas e diferentes tramas que são tecidas e rearranjadas nas
diversas realidades. Elejo, então, alguns eixos que têm sido recorrentes nas falas dos sujeitos jovens, com os quais procuro a
articulação entre saberes e formação docente.
Ouçamos alguns deles:
A noção de tempo nas pesquisas revela que para os jovens essa compreensão de faz atravessada pelo aqui e agora e
pelo jogo lúdico da experimentação, do “descompromisso”, do novo e da transgressão, sendo que esta não é percebida
sempre como um valor moral. Os jovens conseguem produzir uma certa conexão entre o tempo presente e o futuro. Por um
lado, o futuro depende do presente, dedicado à preparação para uma vida melhor pela via da escolarização e do trabalho; por
outro, é preciso, na imediatez do agora, ser jovem; reafirmar e viver intensamente essa fase da vida que se traduz na busca do
lazer, das relações afetivo- sexuais e de amizade.

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Adolescência e juventude são marcadas como uma condição específica de ser e estar no mundo que entrelaça-se ao
pensar e passar do tempo, como fases da vida que são significadas comunicando que infância, adolescência, bem como
juventude, são tempos muito curtos e interrompidos pelas precárias condições materiais de existência em que vivem
determinados grupos sociais. A adolescência é também e fortemente expressa na relação de construção de grupos de
identidade; não grupos fixos, muito permanentes ou únicos.
São “pedaços”6 como os amigos cujas panelinhas se organizam em torno de estilos culturais, da remodelagem do
uniforme e outras afinidades no pátio do colégio; como os meninos e meninas que freqüentam os mesmos espaços como
shoppings e lan houses, sendo que esta última não é apenas local de acesso à internet e os múltiplos usos que a rede propicia;
pois esses usos são atravessados e constituídos por interações e linguagens que ultrapassam o aspecto técnico ou utilitário
desta tecnologia (TOSTA et al. 2006).
Neste tempo presente que aponta para o futuro, a escola tem importância central em suas vidas. Atribuem à
escolarização um meio de mobilidade e ascensão social que possibilitará o emprego, a ocupação de bons postos de trabalho e
a percepção de bons salários. Neste sentido, é inevitável a comparação com o passado (da família) pobre e carente que, no
caso dos jovens de camadas desfavoráveis economicamente, continua no presente. Não querem ser como seus pais! Mas, a
exemplo deles, jovens independentemente dessa condição econômica, querem constituir família, ter filhos, casar. Mas, é
preciso ressaltar, a escola é boa, antes de tudo, para ir, para conversar, fazer amigos, sociabilizar, nem sempre para aprender,
mas também para isso (TOSTA et al. 2006).
Contudo, ao mesmo tempo, são tempos e espaços que demarcam diferenças tais como: a escola é lugar de normas,
de hierarquia, de controle, de definições das quais não compartilharam e nem sempre concordam e a elas aderem. É bastante
evidenciado o descontentamento com regras que tentam colocar a todos obrigatoriamente iguais, como se a pretensa e
histórica homogeneização que e escola assume como parte de seu ideário e expectativa pudesse ser alcançada por decreto!
Na relação com a própria escola é perceptível a existência e quase fruição de outros espaços de aprendizagem,
especialmente os exteriores à sala de aula e à coordenação que são tidos como espaços onde vigoram normas e hierarquias
como marcadores de lugares sociais. Já os locais de passagem - as entradas e saídas, o pátio, o entorno, o jardim e os bancos,
as atividades culturais, o trabalho, o lazer e a mídia, enfim, as múltiplas vivências cotidianas são vistas e usufruídas pelos
jovens como tempos e lugares que eles se apropriam ao seu modo de inserção e interação social, de formação e de
identificação. Portanto, são espaços educativos, relacionais e significativos na elaboração de seus sentimentos de pertença
(FREITAS, 2004; CARVALHO, 2007).
Assim, a casa e a escola, principalmente, em seus espaços liminares e a cidade são lócus por eles escolhidos; o
acesso e o consumo da tecnocultura ou de linguagens midiáticas, a participação em movimentos culturais são fontes de
informação e de formação pródigas no estabelecimento de laços e na formulação de códigos que presidem uma lógica de
pensar e de agir; comportamentos que são apreendidos e convenientemente aplicados conforme a situação e objetivos desses
jovens alunos.

Considerações Finais
Que contribuições essas reflexões trazem para pensarmos a formação docente, adolescência a juventude na
contemporaneidade?
Um primeiro e importante aspecto que as pesquisas permitem- nos entender é a apropriação que os adolescentes e
jovens fazem dos tempos e espaços escolares externos à sala de aula e estipulados pela escola, sem a prévia consulta aos ditos
sujeitos da aprendizagem. Ou seja, que adolescências e juventudes estão presentes na escola atual? E, ao que parece, a escola
não as reconhece e, acreditamos que, ao considerar seus alunos como sujeitos que, em tal condição, não se deslocam de sua
outra condição- adolescente e jovem, poderá contribuir para redimensionar os tempos e espaços escolares em vista de uma
escola mais sintonizada com o tempo presente.
Um segundo e igualmente importante aspecto que as pesquisas suscitam é que pensar sobre alunos adolescentes e
jovens é evocar personagens de pedaços que se integram a uma rede que se tece de relações inegavelmente mediadas pelas
interações com o professor e a experiência escolar em geral, mas não só! Os pedaços possuem, ainda, uma dimensão
simbólica que forma e informa os espaços públicos e privados que se condensam nos seus grupos. Eles podem ser
interpretados como espaços intermediários entre a escola (o privado), a rua (o público) e seus grupos (privado/público), onde
desenvolvem relações sociais que se fundam em pelo menos três elementos constitutivos de formas e conteúdos distintos,
mas nem sempre divergentes: sociabilidades, aprendizagens e interdições. São relações de mediação de que se nutrem
mutuamente, as quais estão ancorados a uma transação cotidiana de sentimentos, trocas, informações e conflitos entre jovens
nas escolas onde é preciso estar situado numa particular rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança,
procedência, escola e geração”. (MAGNANI, 1984, p 137); e ao contrário do que o pedaço pode sugerir, a proximidade ou
pertencimento espacial não é suficiente. Ou seja, se a territorialidade escolar atravessa a formação dos pedaços, ela não os
assegura, pois, seu espaço é muito mais amplo, simbolicamente mais abrangente, extrapola a escola e alcança outras
paragens.
Nestes pedaços que se juntam, ao mesmo tempo em que separam, a escola, a rua, os grupos constituem mecanismos
simbólicos que se instituem no entrecruzamento de interesses e relações nem sempre recíprocos, mas também de disputa, de
não reconhecimento do outro, de não alteridade. Jovens que ritualizam o cotidiano, que se mantém através de acordos e se

524
sustenta no compartilhamento de determinados princípios: certamente a pertença a uma mesma geração e o que daí decorre é
um deles; a condição de estudantes também. Mas nem sempre os professores parecem conhecer e reconhecer estes princípios
como mecanismos simbólicos de agregação, desagregação e reagregação que perfazem as lógicas de aprendizagem que se
entrecruzam na casa, na escola, nos grupos, na exposição à mídia e nos usos que dela fazem.
Assim, e apesar da estreita conexão estabelecida historicamente entre adolescência, juventude, professor e escola, e
de todos serem partes indissociáveis do processo sócioeducativo, esta relação se apresenta conflituosa, por vezes quebrada.
Como por vezes é evidente o distanciamento entre as culturas da escola, com seus saberes, valores, regras e regulamentos, o
professor cuja formação se estrutura e é estruturante da instituição escolar, e as culturas dos alunos, com seus valores,
experiências e interesses.
Um terceiro que diz a escola e a persona professor são importantes para os jovens, mas eles também o são. Aparar
as franjas, buscar simetria nas relações, no jogo das negociações em torno das diferenças, das desigualdades faz parte das
expectativas dos alunos, e não obstante suas diferentes e desiguais formas de entrada e de vivência nesse tempo da vida, a
vontade e a intensidade de vive-lo é a mesma.
São algumas reflexões apenas, na tentativa de responder a indagação posta. Certo é que essas leituras revelam uma
acentuada ausência dessas realidades na formação de professores, tornando - se mais difícil, ainda, a tarefa de conformar com
jovens um território comum de diálogo- base das aprendizagens. Jovens que sonham, claro, todos eles quase igualmente,
indiferentes às possibilidades ou impossibilidades que a vida lhes oferece. Contrariando expectativas já historicamente
construídas e tidas, geralmente, como irreversíveis, eles almejam a continuidade dos estudos e projetam o futuro expressando
saber que são sujeitos. Sujeitos de direito!

Notas
1- Expressão do prof. Miguel Arroyo, em conferência sobre a formação de professores na PUC- Minas, em
06/12/2007
2- Indivíduos em sua acepção funcionalista muito usada no pensamento sociológico dessa matriz, como amorfo e
contido na massa da população
3- Quero dizer que a juventude nos anos de 1960 e 1970 foi efetivamente protagonista nas discussões e ações
sociopolíticas engendradas, inclusive, por movimentos de certos setores da igreja católica. A esse respeito conferir TOSTA
(2005)
4-Conferir, por exemplo, o acervo da ANPED- Associação Nacional de Pesquisa e Pós- graduação em Educação e
do ENDIPE- Encontro Nacional de didática, dos anos 2000 em diante.
5- Pesquisas realizadas sob minha coordenação e ou orientação no âmbito da Linha de Pesquisa: Educação,
Cotidiano e Diferenças Culturais e no EDUC- Grupo de pesquisas sobre Educação e Culturas, do Mestrado em Educação da
PUC- Minas
6- Designação dada pelo antropólogo aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o publico, onde se
desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e
estável do que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade (MAGNANI, 1984, p. 138).

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Precarização do trabalho, tecnologias, formação de professores - caminhos para a


efetivação da cidadania

Márcia Silva
Universidade Estadual de Ponta Grossa
marciauepg@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo discute o papel da tecnologia na sociedade atual, sua relação com a educação e com a formação de professores no
Brasil. Parte-se das mudanças ocorridas no mundo do trabalho, do fordismo até o atual estágio de globalização do capital e os reflexos dessas
mudanças na educação. Para isso tomou-se por base autores como Braverman, Castells, Clarke, Boaventura Souza Santos, entre outros. As
análises feitas no nível macro-social servem de pano de fundo para a compreensão do papel das tecnologias na atualidade, no Brasil, sua
relação com a educação, e daí pensar a formação de professores. O estudo apontou alguns desafios que o professor enfrenta em sua prática
com a precarização da sua situação de trabalho. O modo desagregador com que as políticas educacionais introduzem as tecnologias na
formação e na prática pedagógica dos professores enquanto categoria profissional. Ao mesmo tempo em que esse mesmo professor é
convocado a ensinar o aluno a superar os mesmos problemas de precarização do trabalho e constituir uma cidadania ativa. De que maneira
lidar na formação de professores com uma visão crítica das políticas educacionais, trabalho e tecnologia, sem que com isso se forme um
sentimento de aversão às tecnologias o que seria igualmente desastroso para a educação e a formação de professores? Nesse sentido, o
trabalho aponta ainda, alguns caminhos a respeito da relação entre educação, tecnologia, formação de professores e efetivação da cidadania,
tomando-se por base autores como Freire, Dale, Chauí, Andrade e Pretto.

As transformações do trabalho
O trabalho é um fator central na organização da vida humana, através dele o homem obtém as condições materiais e
simbólicas para a sua sobrevivência e para a constituição de sua humanidade.
Dentre as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, serão destacadas neste artigo três grandes transformações do
ponto de vista do capital. A primeira delas se situa no início do capital industrial quando um grande número de trabalhadores
é empregado por um único capitalista (Braverman, 1977). Nesse momento o trabalhador ainda detinha o controle sobre o
processo de produção. Contudo a necessidade de gerenciamento deu origem à organização do trabalho tal como a
conhecemos hoje. O que marca a segunda grande transformação: com a fragmentação do processo de produção e a sua
expropriação do trabalhador, ou seja, o trabalhador não tem mais o controle sobre o processo de produção, esse controle
passa a ser externo. Por fim, a terceira transformação destacada nessa análise diz respeito às modificações ocorridas com a
introdução das novas tecnologias de comunicação e informação (TIC) tornaram esse processo ainda mais complexo.

O modelo Taylorista-Fordista
No início do século passado, o inglês Frederik Winslow Taylor implanta modelos de organização do trabalho
visando a maior eficiência na produção. Junta-se a essa mudança, a contribuição de Henry Ford - dono da famosa fábrica de
automóveis - que introduz a linha de montagem e a fabricação seriada de carros no processo de produção. A combinação
dessas filosofias de organização do trabalho vai contribuir para uma brutal fragmentação do processo produtivo e para a
separação entre gestão e produção, o fazer e o pensar. A racionalização do trabalho se apresenta em função da maior
produtividade possível. A diferença entre Taylor e Ford é o empresário baseia sua forma de trabalho não somente em
princípios da produtividade, mas também na formação do consumidor introduzindo a idéia do entrelaçamento entre produção
e consumo. Ford tentou aplicar a sua filosofia com seus funcionários. Desse modo, cada um deveria ter o seu automóvel,
além disso, procurava controlar os operários através de incentivos de produtividade, utilizando normas fundamentadas em
uma moral rígida. Embora o projeto Ford não tivesse êxito na esfera pessoal - levando-se em conta que sua fábrica quase foi
à falência – a filosofia que criou sobreviveu a ele na medida em que foi apropriada e incorporada historicamente ao sistema
capitalista.
A produção no modelo Taylorista-Fordista caracteriza-se por uma

526
(...) produção em massa de produtos homogêneos, utilizando a tecnologia rígida da linha de montagem, com máquinas
especializadas e rotinas de trabalho padronizadas. (...) Isso dá origem ao trabalhador de massa, organizado em
sindicatos burocráticos que negociam salários uniformes que crescem em proporção aos aumentos na produtividade.
(CLARKE, 1991:119)

Por conseqüência, a constituição da organização social e do trabalhador se baseia na homogeneidade e na


especialização. Nesse momento o capital está voltado particularmente para o aumento da produção. Modelo favorecido
principalmente pela adoção de políticas de proteção social criadas nos países mais ricos, o chamado Estado de Bem Estar
Social, do qual se tratará mais adiante.
No modelo fordista aparece a preocupação com a formação de um consumidor massivo, o que gerou a seu tempo,
conseqüências comportamentais, reorganizativas do modo como o homem e as sociedades se concebiam enquanto tal
(Harvey 1993). Com o esgotamento desse modelo, o capital se reorganiza em torno do consumo diferenciado. A produção
massificada dá lugar a uma produção segmentada e a um consumo segmentado, estabelecendo uma nova relação entre formas
de execução, estocagem e venda de produtos visando a otimização do binômio produção/consumo. Diminui o tamanho das
fábricas e aumenta a presença das tecnologias.
Máquinas flexíveis requerem trabalhadores flexíveis, ou seja, trabalhadores altamente qualificados, mas que
tenham ao mesmo tempo facilidade de readequação a novas exigências, que se capacitem para o uso de tecnologias cada vez
mais sofisticadas e se apresentem com respostas eficientes frente aos problemas que possam surgir. A nova configuração do
capital gerou outras formas de organização do trabalho, na verdade o que houve foi a extinção de milhares de postos de
trabalho, sem reposição, uma desarticulação da organização existente e a progressiva perda de direitos conquistados, sendo a
manutenção do emprego considerada, na atualidade, como o maior bem a ser preservado pelo trabalhador.

O papel do Estado e a globalização


Após as crises de desemprego ocasionadas pelas duas guerras e pelo esgotamento do modelo focado na produção,
houve a necessidade de uma reorganização do sistema capitalista. O mercado por si só não respondia às necessidades de
reprodução do próprio capital. Foi nesse momento que o Estado exerceu um papel importante como regulador das relações de
trabalho e também de proteção ao capital, uma vez que através dessas regulações se garantiria o funcionamento do próprio
mercado (Castells, 1999; Santos, 2001). Isso propiciou o surgimento do chamado Estado de Bem Estar Social que atuou na
implementação de políticas de proteção social que proporcionassem ao trabalhador uma condição mínima de bem estar para
que pudesse movimentar o crescimento econômico. Com isso o Estado cresceu e assumiu ele mesmo algumas funções
empresariais.
Manuel Castells aponta que o declínio do modelo de Bem Estar Social coincide com a crise do petróleo nos anos
1970, mas também com o surgimento de novas tecnologias de informação e comunicação que vão ajudar a modificar
radicalmente a face do capitalismo. As novas tecnologias proporcionaram ao capital a viabilização de uma nova organização
espaço-temporal. Com isso as empresas já não se localizam num lugar restrito, mas podem agora se expandir num espaço
simbólico com sua cadeia de produção fragmentada e espalhada por diversas partes do planeta, onde o capital possa articular
maior produtividade e mão-de-obra a baixo custo. A própria localização física da sede burocrática da empresa pode diminuir
ainda mais, no entanto a sua expansão no campo da produção passa por um espaço virtual criado pelas e nas novas
tecnologias de informação e comunicação.
No novo modelo o Estado exerce um papel fundamental: o da autodesregulamentação. A necessidade de
gerenciamento da crise econômica provocada pelas duas guerras mundiais forçou um crescimento do Estado que acabou se
tornando um concorrente do capital. Interessado no campo de serviços públicos que traria grande fonte de lucro ao capital,
este reage e pressiona pela diminuição do tamanho e do alcance do Estado sobre o mercado. Não se tratou, no entanto, de um
enfraquecimento do Estado, pelo contrário, é necessário um Estado forte para atuar na desregulamentação do mercado e na
regulamentação de políticas que favoreçam a privatização e o aumento da lucratividade. Isso é tanto verdade que na atual
crise do mercado, o Estado é chamado a cumprir novo papel regulador. (Santos 2001, 2008).
A esse modelo, convencionou-se chamar de Globalização. Ele se apresenta ideologicamente como a única forma
possível de estruturação da sociedade. Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, porém, sempre existiu globalização, o
que se têm hoje são vários tipos de globalização que coexistem. Segundo este autor, longe de ser consensual, a globalização é
um campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos.
O modelo de economia globalizada reorganiza o capital em nível transnacional, envolvendo as empresas
multinacionais e o seu poderio frente aos governos de países periféricos. As empresas multinacionais interferem nesses
governos através de manipulação da ajuda internacional e de controle da dívida externa. O que obriga os países periféricos a
seguirem políticas de privatização e, em nome do crescimento econômico, vão se pauperizando ainda mais.
A globalização tem se mostrado até o momento a forma mais acabada de exploração do capital. Isso acontece não
somente na relação entre capital e trabalho, mas entre nações ricas e pobres, uma vez que a nova forma sistematizada de
capital ocasionou o aumento drástico das desigualdades entre esses países, impôs a fragmentação da classe operária, a
aceleração da degradação do meio ambiente, gerou a globalização do crime organizado entre outros.

527
Na perspectiva neoliberal capitalista que emerge no campo da política, o governo torna-se governança, ou seja, o
Estado deixa de ser o provedor para ser o controlador desses serviços que passam a ser executados por concessionárias (ongs,
ou prestadoras de serviço, o Estado teria unicamente o papel de estabelecer normas e fiscalizar). O conceito de cidadania é
substituído pelo de consumidor e os direitos passam a ser solvência, os pobres são insolventes – consumidores que
ultrapassaram a capacidade de endividamento. (Santos 2001). No campo das relações sociais o simbólico, o imaginário, a
emoção tornam-se mercadorias, engendrando novas formas de consumo e de produção da cultura, da sociedade.
Embora o quadro esboçado aqui sobre as questões do trabalho e das transformações sociais e econômicas sejam
abordadas numa perspectiva macro-social do ponto de vista do capital para efeito da análise pretendida, nada disso, porém,
acontece no vazio. Pelo contrário, todos esses fatos se desenvolveram e estão se desenvolvendo no cenário da luta de classes.
No Brasil, as transformações descritas foram marcadas por condicionantes históricos. O fato de estar na periferia
das economias dominantes do planeta, fez com que o país vivesse, por exemplo, a desregulamentação do Estado no governo
Fernando Henrique, sem ter passado pelo Estado de Bem Estar Social. Por outro lado, já no governo Lula, vai formar junto
com a China e a Índia o principal bloco de oposição à política implantada pelo Fórum Econômico Mundial, e encabeçar uma
luta contra a fome, numa antecipação do quadro que está em evidência na atualidade com a crise de alimentos. Do ponto de
vista do trabalhador as transformações ocorridas custaram vidas. Os movimentos sociais de resistência e de proposição de
outras formas de organização social coexistem e estão em disputa formando o que Boaventura Sousa Santos chama de
globalização contra-hegemônica.
A crise financeira pela qual passam os países de economias centrais na atualidade traz para a cena alguns fatores
diferentes dos registrados no século passado. Hoje a crise financeira apresenta profundas raízes simbólicas e traz alguns
outros elementos para análise. Certamente a explosão das torres gêmeas de Manhattan anunciaram uma outra muito maior,
que não diz respeito somente à explosão do capital virtual das bolsas em 2008, cujos estilhaços atingiram também a economia
européia. Iniciou-se ali uma implosão da hegemonia do modo de vida americano com “o facto de ela ocorrer ao fim de trinta
anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por
eles controladas, FMI e o Banco Mundial.” (Santos, 2008).
Escancarou-se o cinismo da doutrina neoliberal de imposição de pacotes econômicos aos países de economia
periférica e que tinha como modelo de sucesso a própria economia norte-americana.
À luz disto, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o
direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si,
racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-
destruição; o capital tem sempre o Estado à sua disposição e, consoante os ciclos, ora por via da regulação ora por via da
desregulação. (SANTOS, 2008)
Nesta história que está sendo escrita por todos nós, a disputa pelos sentidos que terão esses fatos, deve ocupar um
lugar de destaque na reordenação do capital e das lutas contra-hegemônicas por uma outra ordem social. Os discursos que
validavam procedimentos de exclusão, que desqualificavam países como povos de segunda linha, de “terceiro mundo”, e
interferiam em vidas, estão sendo destroçados. O realinhamento político em nível global em outros patamares já está em
curso, uma vez que esses mesmos países chamados periféricos já vinham se organizando de uma forma alternativa
reivindicando autonomia, voz e voto nas decisões político-econômico-sociais transnacionais.
O papel das novas tecnologias de comunicação e informação e as mudanças no processo produtivo e na
reconfiguração social
A tecnologia sempre esteve presente como impulsionadora de transformações no processo produtivo. Foi assim com a
passagem dos artesãos às oficinas e depois às fábricas. O que difere o papel desempenhado pela tecnologia hoje do
papel desempenhado em outros tempos é que a informação tornou-se “o produto do processo produtivo” (CASTELLS,
1999). Além de proporcionar ao capital as condições de sua nova configuração, a tecnologia também influencia a vida
cultural, a forma como as pessoas se percebem como sujeitos – senhores de si ou sujeitados – nas relações com o outro,
com o mundo, consigo mesmo. Para Castells a busca pela identidade individual ou coletiva, atribuída ou consentida
torna-se fonte básica de significado social. Segundo este autor, no ambiente das redes globais de comunicação as
relações são substituídas ou vividas como conectividade e “(...) quando já não existe comunicação (...) surge uma
alienação entre os grupos sociais e indivíduos que passam a considerar o outro como um estranho, finalmente uma
ameaça” (op. cit. p 23).

As próprias interações sociais se transformaram nesse processo através da conectividade em rede, da


instantaneidade na difusão das informações e da criação de territórios virtuais de relacionamento. Com certeza é no campo do
simbólico que as tecnologias têm o maior impacto, quer seja pela viabilização de um número incalculável de informações
quer seja pelas possibilidades de desenvolvimento de uma nova cognição baseada em habilidades adquiridas no trato com a
tecnologia.
Tem-se nesses dois aspectos um terreno de disputa de poder pelo controle significados - produzidos e circulados -
através do que se oculta, do que se mostra, de como se mostra, de como se enfatiza este ou aquele aspecto da informação.
Nesse sentido as elites se colocam numa posição privilegiada, já que por um lado detém os meios de produção e circulação de
informação, por outro aprendem a lidar com as tecnologias fazendo e com isso modificam as suas aplicações, enquanto a
maior parte das pessoas aprende usando e, assim, permanecem dentro dos limites do pacote da tecnologia (CASTELLS,
1999:55, destaques do autor)

528
A produção de bens simbólicos
As empresas de comunicação sempre produziram mercadorias, primeiro produziram bens simbólicos que podiam
ser consumidos diretamente como livros e mais tarde o consumo requeria que se comprassem aparelhos como condição de
acesso, o que aumentou consideravelmente as desigualdades entre os consumidores. Quanto maior a renda, maior a
possibilidade de escolhas. (GOLDING e MURDOCK, 2004)
O Estado como regulador das atividades das empresas de comunicação e também como gestor de redes de
comunicação estatal exerce, ele mesmo, um grande poder. No Brasil, o Estado tem se alinhado aos interesses das elites, seja
pela concessão de canais de rádio e TV prioritariamente ao setor político/privado, seja na adoção de políticas de
aparelhamento das escolas com equipamentos tecnológicos, sem as devidas condições de continuidade através da
manutenção e apoio técnico. Outro fator que influencia essa situação é a ausência de programas de formação para o uso
dessas tecnologias para a produção de significados próprios das comunidades de baixa renda.
Para Golding e Murdock, no entanto, a produção de informações não reflete apenas os interesses do capital já que
essa produção passa por homens e mulheres de diversas origens sociais e que podem articular as mensagens produzidas de
acordo com seus próprios interesses. Ainda que isso possa ser assimilado e de certa forma neutralizado pelo capital.
Segundo esses autores:
A história atual dos meios de comunicação não é somente uma história econômica de crescente interface com o sistema
econômico capitalista, mas também a história política da crescente importância da mídia no exercício da cidadania
plena. (GOLDING e MURDOCK, 2004, p3)

Nesse sentido a educação exerce um papel fundamental.

O cenário educacional
No recorte traçado neste texto percebe-se que as transformações sofridas no âmbito do trabalho, são na verdade
transformações na vida humana, no modo como os homens se organizam no social, na forma como se relacionam com o
planeta, como se humanizam e se desumanizam de acordo com as experiências vividas. O exame do processo de degradação
do trabalho e de transformação do simbólico em mercadoria dinamizado pelo uso das tecnologias de informação e
comunicação/mídias e seus reflexos para o exercício pleno da cidadania traz para a educação vários níveis de reflexão:

a formação para a cidadania – passando pelo resgate do seu sentido original e diferenciando-o das práticas
neoliberais que procuram substituir o seu significado pela idéia de consumidor.

a formação para o trabalho - ultrapassando a instrumentalização técnica e colaborando para a recuperação de sua
humanização. Uma formação desvencilhada das receitas neoliberais que colocam para o sujeito a responsabilidade pelo seu
sucesso profissional, deixando intocadas as relações de exploração e de miserabilidade produzidas pelo sistema capitalista.

a formação para o uso das tecnologias/mídias pelas classes desfavorecidas como forma de oportunizar a circulação
no social de outros valores, outras visões de mundo e novas cognições colaborando para o que Santos (2002) chama de
“globalização contra-hegemonica”.

O quadro traçado acima implica numa reflexão a respeito da formação do professor uma vez que ele está
diretamente responsável pela implementação desses princípios na formação dos seus alunos.

Desafios para a formação do professor


No âmbito das políticas públicas de formação de professores na sociedade brasileira, o que se tem verificado nos
últimos tempos é um alinhamento com as políticas internacionais de cunho neoliberal que no fundo levam à desqualificação
da educação nos países periféricos como forma de manutenção de uma dominação cultural.
As agências internacionais de fomento condicionam seus financiamentos à adoção de políticas que se concentram
no ensino fundamental e colaboram para o desmonte do ensino superior. Incentivam a criação de centros de tecnologia em
detrimento de uma formação mais abrangente (CHAUI, 2003).
Há uma espécie de ressurgimento da teoria do capital humano, na qual o conhecimento passa a ser um valor
incorporado à força de trabalho. Os índices de escolaridade se tornam, cada vez mais, indicadores de crescimento econômico.
Porém, o conhecimento agregado à mão de obra dos países periféricos não é aquele que lhe dê autonomia, não é o que lhe
proporcione o instrumental crítico para o desvendamento das relações de expropriação, nem mesmo aquele necessário para a
superação dessa situação. O conhecimento é terreno de disputa e a educação passa a ser alvo de controle via financiamentos
internacionais para a manutenção da dependência econômica desses países.
Nesse contexto as agências internacionais impõem pacotes tecnológicos de formação em serviço do professor -
preferencialmente na modalidade de educação a distância - nos quais as tecnologias não são consideradas objetos de estudo,

529
mas sim meios de realização da formação do professor. Isso restringe as possibilidades de avanço reflexivo do professor e de
transformação de sua própria pratica educativa (BARRETO, 2001)
Dessa forma o professor tem que lidar na sua atuação profissional e na formação em serviço com processos de
degradação do seu trabalho, de perda de direitos conquistados, de desqualificação e ao mesmo tempo construir uma prática
pedagógica que leve seus alunos a superar essas mesmas condições em busca do exercício da cidadania.
Como foi dito antes, nada disso acontece de uma forma linear e sem resistências ou conflitos. No âmbito da
formação os embates sobre a identidade do pedagogo se constituem num exemplo significativo de como as diferentes forças
em disputas vão a cada tempo avançando e recuando.
Outro dado significativo é que o fato do capital estar interessado na tecnologização da sociedade através da
facilitação do acesso aos meios tecnológicos – ainda que por motivos puramente mercadológicos: o estimulo ao consumo dos
aparelhos – esse acesso proporciona às classes trabalhadoras uma fruição e a possibilidade de produção de novos
significados, de circulação de outros sentidos. Um exemplo disso é que mesmo a partir de propostas neoliberais de educação
a distância na formação de professores, universidades públicas brasileiras vêm assumindo a responsabilidade de atuar nesse
segmento como uma maneira de oferecer uma formação para além dos pacotes prontos e das pressões das políticas
neoliberais.
É importante pensar que nesse cenário a educação com, pelas e para as mídias/TIC devem ser incluídos como
objeto de estudo nos currículos de cursos de formação inicial e continuada de professores. Isso é importante dado o papel que
as mídias vêm ocupando na contemporaneidade uma vez que quando a sua função social deixa de ser fonte de discussão e
reflexão, torna-se fonte de manipulação das classes dominantes.

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http://www.ces.uc.pt/publicacoes/opiniao/bss/206.php (acessado em 19/10/08).

Regulação das políticas de formação docente no Brasil e as intrerências do Banco


Mundial

Diana Ferreira
Universidade Federal do Pará
d-lemes@uol.com.br

Resumo: O texto ora apresentado trata da regulação das políticas de formação docente no Brasil, bem como da interferência do Banco
Mundial nas mesmas. È fruto de parte de pesquisa bibliográfica que realizo no meu doutoramento em educação na Universidade Federal do
Pará, bem como estudos realizados no primeiro semestre letivo do ano de 2008 no Grupo de Estudos sobre Trabalho Docente
(GESTRADO/UFPA). Objetiva identificar e analisar processos de regulação das políticas de formação docente e a interferência do Banco
Mundial nas mesmas. O estudo bibliográfico, em andamento, evidencia que: as regulações das políticas de formação docente sofrem
influências dos organismos internacionais que aqui destaco o caso do Banco Mundial. Tais regulações têm aligeirado o processo de formação
docente, bem como tendem a priorizar a Educação a Distância como estratégia para realização desta; somatiza a prática pedagógica como
mais importante que a teoria (como se as duas não fossem intimamente ligadas e igualmente importantes para o processo de formação);
supervaloriza a formação em serviço (formação continuada) em detrimento da inicial desconsiderando que estas fazem parte de um mesmo
processo educativo de formação docente. Como contraponto a tais regulações vislumbra-se que construir o debate teórico/político contra
hegemônico se constitui nossa tarefa enquanto educadores.

530
1 – Introdução
O processo de mudança que vem ocorrendo na estrutura da sociedade e do capitalismo em nível mundial, em
especial na relação de produção do trabalho, exigem novas e sofisticadas tecnologias e requer um trabalhador (a) mais
qualificado (a). Ou seja, um (a) trabalhador (a) com um grau de escolaridade mais alto, que tenha um conjunto de habilidades
e competências que o (a) torne mais competitivo e capaz de maior empregabilidade no mundo do trabalho: capacidade de
raciocínio e de abstração, comunicabilidade, criatividade, eficiência, flexibilidade, iniciativa, polivalência, responsabilidade e
versatilidade. Esse contexto delineia um ‘novo’ papel para a Educação e, conseqüentemente, para a Escola.
Até então, a Escola preparava um trabalhador (a) para um tipo de processo produtivo balizado no paradigma do
Fordismo, o qual separava trabalho manual do trabalho intelectual, o planejamento da execução. A Escola então passou a
sofrer severas críticas. Essa escola passou a ser criticada e responsabilizada pelo insucesso escolar, pelo despreparo dos
alunos ao término dos estudos, pela desvinculação dos conteúdos ensinados e das novas demandas oriundas do mundo do
trabalho assentado no paradigma informacional (MAUÉS, 2003, p.3). Os professores, conseqüentemente, também foram
alvos de críticas, principalmente no que se refere à sua formação. Alegava-se que a formação destes era muito ‘teórica’,
desvinculada das demandas da sociedade. MAUÉS (Ibid) afirma que estas análises realizadas por alguns organismos
internacionais parecem apontar para um só caminho:
O sistema educacional precisa passar por uma reforma, visando qualificar melhor as pessoas para enfrentarem um
mundo mais competitivo, mais afinado com o mercado, um mundo globalizado, entendendo-se por tal um processo sócio-
histórico que apresenta dimensões ideológicas, que cria uma nova ordem econômica e um outro processo civilizatório,
representando uma nova etapa do capitalismo mundial (p.03).
Diante desse cenário, os Organismos Internacionais de Financiamento começaram um processo de maior
intervenção direta e indireta na Educação. Segundo MAUÉS (2003 b), as Políticas Educacionais Brasileiras, enquanto
políticas consentidas pelo Governo em relação às exigências dos organismos internacionais, têm colocado destaque no
Aperfeiçoamento Docente, na Eqüidade, no Financiamento, na Gestão e na Qualidade. A autora indica que, para o Ministério
da Educação e Cultura (MEC), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, Lei N° 9394/96), representa um
“marco político - institucional” que se inclui na primeira geração de reformas educacionais iniciadas no começo dos anos de
1980, tendo também como outro grande marco a Constituição Federal de 1988. A segunda geração das reformas inclui a
Formação dos Profissionais da Educação responsáveis pela gestão e pela docência. Os professores, os coordenadores
pedagógicos, os gestores, eles têm sido apontado pelos organismos internacionais como os protagonistas das reformas em
curso.
Destaco aqui o papel que o Banco Mundial tem desempenhado nas configurações das políticas educacionais
brasileiras. TORRES (1996) aponta que, para esta Instituição Financeira, a qualidade do Ensino depende da presença de
alguns fatores determinantes para um processo mais efetivo de aprendizagem. Dentre estes fatores, o Banco prioriza três: o
aumento do tempo de instrução, a melhoria do livro didático e a capacitação dos docentes em serviços. Vale ressaltar que o
termo em Inglês training tem em espanhol duas acepções: formação e capacitação. A autora usa o termo formação para se
referir ao processo global e permanente de formação do professor e capacitação para se referir à capacitação em serviço.
(grifos meus).
No campo educacional temos assistido certa ‘política do consentimento’ às orientações dos organismos
internacionais (SILVA, 2002). O sistema educacional brasileiro vem sendo alterado em todos os seus níveis e modalidades.
Isto tem delineado uma série de reformas educacionais que se materializam em leis, pareceres, resoluções e planos de
educação.
Neste contexto, os órgãos governamentais apontam a necessidade de adequação do trabalho docente às novas
exigências profissionais das inovações tecnológicas e da mudança do trabalho pautado nos princípios de flexibilidade e
eficiência. Para concretização disto o Estado tem intervindo no sentido de instituir mecanismos que conduzam os docentes a
adequarem as atividades próprias a profissão aos resultados estabelecidos pelos interesses mercantilistas com projeções de
novas regulações para as políticas educacionais. E, nesta linha de raciocínio a formação docente se caracteriza como peça
fundamental.
Estudos Maués (2008) e Oliveira (2005) indicam que essas novas regulações das políticas educacionais estão
diretamente relacionadas á reforma que o Estado Brasileiro tem vivenciado no sentido de se adequar á globalização e a nova
fase do capitalismo, na qual estabelece regulações com o intuito de adequar a educação ao mercado. Vale ressaltar que este
processo acontece mundialmente com impactos maiores nos países em desenvolvimento.
Lessad (2007) ao discutir a regulação nas políticas educacionais aponta três “modelos”: o primeiro seria a
“burocrática-estatal” que volta suas atenções para os resultados e a eficiência; a segunda nomeia de “profissional” que se
caracteriza nas ações dos protagonistas da educação, são eles: diretores, professores e especialistas. A terceira se refere ao
“mercado” que objetiva atender a lógica do setor privado. Esses modelos se complementam entre si e estão presentes na
política educacional, o que o autor denomina de “Regulação Múltipla”.
Barroso (2006) indica três tipos de regulação para a educação: a primeira “Transnacional” que se configura nos
discursos e instrumentos que são produzidos nos fóruns de decisão e consulta internacional, que Maués (2008) aponta como
materialização desta, os programas de cooperação desenvolvidas por organismos internacionais que fazem diagnósticos e
sugerem soluções.

531
O segundo tipo de regulação indicado pelo autor é a “Regulação Nacional”, ou seja, o modo como o Estado e as
autoridades instituem o controle no sistema educacional, por meio de estabelecimento de “normas, injunções e
constrangimentos”. Este tipo de regulação é exemplificado por Maués (op cit) citando as políticas educacionais para a
educação superior no Brasil, traduzidas, por exemplo, por meio da lei do SINAES (10.861/04) e o decreto que cria o REUNI
(6.096/07) que podemos ver mais claramente no trecho da autora:
A Lei que cria o Sistema Nacional de Avaliação do Educador Superior – SINAES estabelece a avaliação da
instituição, de cursos e dos alunos (ENADE) numa concepção somativa e punitiva. E mais recentemente o REUNI que
propõe a expansão de vagas, o aumento da relação professor-aluno e a elevação para 90 % do índice de conclusão de curso,
sem o correspondente aumento de recursos financeiros. Esses são alguns dos casos que retratam as novas formas de
regulação, ou seja, é a regulação por ‘contaminação’ como indica uma pesquisa realizada na Europa cujo sentido é a
transposição de medidas, soluções e práticas que deram certo em outros países. (p.07)
O terceiro tipo regulação discutido por Barroso (op cit) seria a “Micro Regulação Local”, que se caracteriza pela
forma com que os atores sociais que compõe o contexto da escola, por exemplo, ajustam as normas ao local no qual as
mesmas devem ser aplicadas. Como materialização deste tipo de regulação, podemos citar como os professores adequam os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) aos contextos escolares que trabalham.
Essas novas regulações impulsionam nova abordagem à formação e trabalho docente. Pois, chegam à escola de
forma impositiva e por mais que os professores procurem adequar tais regulações ao contexto escolar que trabalham as
marcas do processo de regulação ficam, impregnam e infiltram o dia a dia do docente Neste sentido, interessa-me focar
atenção nas reformas que envolvem as regulações na formação docente.
Identificar e analisar alguns processos de regulação das políticas de formação docente, bem como a interferência do
Banco Mundial nas mesmas é objetivo central deste texto. O qual é fruto de parte de pesquisa bibliográfica que realizo no
meu doutoramento em educação na Universidade Federal do Pará, bem como de estudos realizados no primeiro semestre
letivo do ano de 2008 no Grupo de Estudos sobre Trabalho Docente (GESTRADO/UFPA) do qual faço parte como aluna do
curso de doutorado.

2 - O Banco Mundial e as Políticas Educacionais Brasileiras


Segundo Silva, Azzi e Bock (2008) o Banco Mundial (BM) foi fundado na conferência de Bretton Woods em
1944, após o término da Segunda Guerra Mundial. O Grupo Banco Mundial é hoje composto por um conjunto de
organismos, dentre os quais o principal é o BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento), que abrange
cinco outras agencias: a IDA (Associação Internacional de Desenvolvimento), a IFC (Cooperação Financeira Internacional),
o ICSID (Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos), a MIGA (Agência de Garantia de
Investimento Multilaterais) e o GEF (Fundo Mundial para o Meio Ambiente). (p. 17)
No início de sua história o BM exercia um papel de reconstrutor das economias devastadas pela guerra e de credor
para empresas do setor privado. Mais tarde com a emergência das tensões com a União Soviética e a escalada da Guerra fria,
a década de 1950 marcou uma reorientação das políticas do Banco na direção da incorporação dos paises do Terceiro Mundo
ao bloco ocidental (não comunistas), por meio de programas de assistência econômica. Como podemos ver na citação abaixo
o Banco defendia a tese de que a pobreza desapareceria como conseqüência do crescimento econômico desses paises: no
entanto o próprio Banco percebeu, anos mais tarde, que esta tese não se sustentava, e tratou de reorientar suas ações de
maneira que sua tese não caísse por terra:
De meados da década de 1950 até o inicio dos anos de 1970, o perfil de 70% dos programas de empréstimos do
Banco era voltado às políticas de industrialização dos países do Terceiro Mundo, visando sua inserção, ainda que
subordinada, no sistema comercial internacional. A tese central que regia essa orientação era a de que a pobreza
desapareceria como conseqüência do crescimento econômico desses paises. Diante do fato de que, mesmo apesar de duas
décadas de crescimento econômico continuado, a pobreza não apenas persistiu, como também se aprofundaram as
desigualdades sociais entre países ricos e pobres, o Banco se viu obrigado a ampliar o leque de setores nos quais devia
investir, incluindo aí principalmente investimentos na agricultura e nos setores sociais, para além dos projetos de
infraestrutura e industrialização já existentes. È a partir do decênio 1970-80 que se acentua, no discurso do Banco, uma
preocupação mais recorrente com a questão da pobreza (SILVA, AZZI e BOCK, 2008, p.17-18).
Esta nova orientação é decorrente ao conjunto de reformas consensuais entre os principais organismos multilaterais
sediados em Washington, a partir do final dos anos 1980, conhecido como Consenso de Washington.1
Segundo Relatório do Banco Mundial (2005) o Grupo Mundial é parceiro do Brasil há mais de 55 anos, no apoio a
programas de gestão econômica, investimento no capital humano, desenvolvimento de áreas urbanas e rurais, construção de
infra–estrutura e preservação dos recursos naturais. E aponta como meta/missão:

1
A expressão Washington Consensus foi usada pela primeira vez por John Williamson, pesquisador do Institute for International Economics, um dos mais
célebres think tanks norte-americanos. O programa de ajuste e estabilização proposto no marco desse ‘consenso’ inclui dez tipos específicos de reforma que,
como assimila Williamson, foram quase sempre implementados com intensidade pelos governos latino-americanos a partir da década de oitenta: disciplina fiscal;
redefinição das prioridades do gasto público, reforma tributária; liberação do setor financeiro; manutenção de taxas de cambio competitivas; liberação comercial;
atração das aplicações de capital estrangeiro; privatização de empresas estatais; desregulação da economia; proteção de direitos autorias. (PORTELA FILHO,
1994, IN GENTILI, 1998, p.14).

532
Em consonância com sua missão global, a assistência do Banco Mundial ao Brasil está dirigida a apoiar iniciativas
de longo prazo que irão promover a redução da pobreza e o crescimento sustentável. Essa assistência implica investir nas
pessoas (através da saúde, educação, melhores serviços públicos e transferências de recursos), promover a inclusão social
(mediante estimulo à participação e ao aprimoramento dos mecanismos de direcionamento dos programas), a administração
dos recursos naturais, o aumento da produtividade e a estabilização da economia. (BANCO MUNDIAL, 2005, p.02) (grifos
meus)
No referido relatório o Banco aponta que o Brasil tem feito seu “dever de casa” com sucesso. Tal dever de casa faz
parte das condicionalidades para concessão dos empréstimos. O Banco sinaliza como avanço brasileiro:
O Brasil continua a progredir na área das políticas sociais e em seus resultados, que são o foco do trabalho do
Banco. As matriculas no ensino primário aumentaram de 86% em 1990 para 97% em 2002. A redução dos índices de
mortalidade infantil foi significava, passando de quase 50 em 1.000 nascidos vivos, em 1990, para 33 por 1.000, em 2002.
(IBID. p.06)
Outro ponto apontado nos avanços pelo Banco é o fato do governo Brasileiro em 2003, instituir o Programa Bolsa
Família para apoiar a redução da pobreza e da fome. O referido programa é configurado como “a união de quatro grandes
programas (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e o Auxilio Gás).” (grifos meus). Retrata tal programa
como “o maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil”. E isso tem justificado o apoio do
Banco a Bolsa Família com um financiamento de US$ 572,2 milhões. (BANCO MUNDIAL, 2005, p.06) (Grifos meus) e em
documentos de 2007 aponta que tal programa tem contribuído para que o Brasil atinja as metas e objetivos para o
Desenvolvimento do Milênio e cita como exemplo “A pobreza, medida pelo salário mínimo, caiu de 32,9% em 2003 para
25,6% em 2006” (BANCO MUNDIAL, 2007, p.01). Neste documento o Banco ressalta alguns avanços que considera
importante:
*Distribuição de renda: em 2004, os 10¢ mais ricos da população concentravam 44,6% da renda nacional. Em
2007, essa proporção foi reduzida para 43,2%;
*Analfabetismo: 10,4% da população acima de 15 anos no Brasil era analfabeta em 2006. Em 2007, esta população
caiu para 10%;
* Mortalidade infantil: diminuiu de aproximadamente 50 por 1000 nascidos vivos em 1990 para 21,1 por mil em
2005;
* A matrícula escolar no ensino fundamental aumentou de 85% em 1990 para 97% da população entre 7 e 14 anos
em 2005. (p.02) (grifos do original).
Em “Notas sobre o Brasil” o Banco Mundial (2007), reafirma os avanços do Brasil e pontua o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC)2, lançado em 2007 pelo governo federal para aumentar os investimentos em infra-estrutura
e dar incentivos fiscais para encorajar um crescimento maior e mais ‘robusto’, como um programa que já vem mostrando
bons resultados, responsabilizando-o inclusive como um dos fatores para o crescimento de 5,4% do PIB atingido em 2007.
Nesta perspectiva o Banco aponta como objetivo principal da sua parceria com o Brasil “ajudar o país a sustentar e aumentar
se crescimento” (p.01).
No campo da educação além do aumento das matriculas, a Bolsa Escola, o Banco aponta também como positivo o
Fundo de Fortalecimento Escolar (FUNDESCOLA)3. No entanto o Banco afirma que o principal desafio para melhorar a
qualidade do ensino não é só a matricula, e também a permanência das crianças na escola e o estimulo para que concluam o
ensino fundamental. E acredita que o FUNDESCOLA contribui para a melhoria da freqüência e o resultado escolar no ensino
fundamental. “Milhares de escolas progrediram devido a esta atuação” (p.12). No entanto em 2007 o Banco aponta que
apesar dos avanços o Brasil ainda tem desafios a enfrentar:
A pobreza e a desigualdade se mantêm em níveis altos, e é grande o déficit no acesso ao ensino pré-escolar e médio
(particularmente entre os pobres). Embora os indicadores da educação mostrem que as matrículas no ensino fundamental se
aproximam de 100%, a freqüência no ensino pré-primário e médio permanece baixa, se comparada a outros paises de renda

2
O PAC é coordenado pelo Comitê Gestor do PAC (CGPAC), composto pelos ministros da Casa Civil, da Fazenda e do Planejamento. Há também o Grupo
Executivo do PAC (GEPAC), integrado pela Subchefia de Articulação e Monitoramento (Casa Civil), Secretaria de Orçamento Federal e Secretaria de
Planejamento e Investimentos Estratégicos (Planejamento), além da Secretaria Nacional do Tesouro (Fazenda). O GEPAC busca estabelecer metas e acompanhar
a implementação do PAC. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) vai aplicar em quatro anos um total de investimentos em infra-estrutura da ordem
de R$ 503,9 bilhões, nas áreas de transporte, energia, saneamento, habitação e recursos hídricos. A expansão do investimento em infra-estrutura é condição
fundamental para a aceleração do desenvolvimento sustentável no Brasil. Dessa forma, o País poderá superar os gargalos da economia e estimular o aumento da
produtividade e a diminuição das desigualdades regionais e sociais. O conjunto de investimentos está organizado em três eixos decisivos: Infra-estrutura
Logística, envolvendo a construção e ampliação de rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias; Infra-estrutura Energética, correspondendo a geração e
transmissão de energia elétrica, produção, exploração e transporte de petróleo, gás natural e combustíveis renováveis; e Infra-estrutura Social e Urbana,
englobando saneamento, habitação, metrôs, trens urbanos, universalização do programa Luz para Todos e recursos hídricos.
Para a Infra-estrutura Logística, a previsão de investimentos de 2007 a 2010 é de R$ 58,3 bilhões; para a Energética, R$ 274,8 bilhões; e para a Social e Urbana,
R$ 170,8 bilhões. Mais que um plano de expansão do investimento, o PAC quer introduzir um novo conceito de investimento em infra-estrutura no Brasil. Um
conceito que faz das obras de infra-estrutura um instrumento de universalização dos benefícios econômicos e sociais para todas as regiões do País.
(http://www.brasil.gov.br/pac/conheca/infra_estrutura/. Acesso em 27/10/2008)
3
O Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA), é um programa do Departamento de projetos Educacionais da Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação (SEIF/MEC), desenvolvido em parceria com as secretarias estaduais e municipais de educação das regiões Norte, Nordeste e Centro-
oeste. Tem por objetivo promover um conjunto de ações para a melhoria da qualidade das escolas do ensino fundamental, ampliando a permanência das crianças
nas escolas públicas, assim como a escolaridade nas regiões citadas. È financiado com recursos do Governo Federal e de empréstimos do Banco Mundial e
implantado em zonas de atendimento prioritário formadas por microrregiões e municípios mais populosos definidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). (www.fundescola.mec.gov.br. Acesso em 24/07/2004).

533
similar. Não obstante avanços, a qualidade do sistema de educação ainda é deficiente nos níveis fundamental e médio...
(BANCO MUNDIAL, 2007, p.02) (grifos meus)
O BIRD que faz parte do BM em Relatório de Progresso da Estratégia de Assistência ao País (2006) também
aponta alguns avanços do Brasil bem como sinaliza alguns desafios para o país atingir até 2011. Um dos desafios seria “tirar
benefício dos avanços alcançados, assegurando a sustentabilidade dos ganhos” e para tal seria necessário:
* Investir no crescimento, especialmente através do setor privado, inclusive com maior ênfase no aumento da
competitividade e no investimento em infra-estrutura; o crescimento impulsionado pelo setor privado terá um enfoque
fundamental, por meio de uma ESP integrada do Grupo Mundial;
* Aumentar a sustentabilidade ambiental nas agendas verde e marrom;
* Tornar o ajuste fiscal sustentável, melhorando a qualidade do gasto público, com vistas a oferecer melhores
serviços com mais eficiência, liberando também recursos para investimentos, e melhorando a gestão do setor público;
* Criar capital humano para aumentar a equidade e o crescimento; e
* Desenvolvimento regional nas áreas urbanas e rurais, com enfoque especial na região Nordeste e em algumas
áreas urbanas selecionadas. (BANCO MUNDIAL, 2006, p.13) (grifos do original)

Um ano depois (2007) o BM reafirma os desafios apontando que:


A Estratégia de Parceria para 2008-2011 focalizará ainda mais o trabalho direto com estados e municípios, e a
contribuição do Banco sobre alguns dos principais desafios paradigmáticos enfrentados pelo Brasil, onde o valor agregado do
Banco Mundial pode ser mais importante para o desenvolvimento e crescimento do País no longo prazo: Reforma fiscal e do
setor público [...]; desenvolvimento do setor privado [...]; infra-estrutura para promover o desenvolvimento e reduzir a
pobreza; [...]; Desenvolvimento humano [...]; desenvolvimento rural e agrícola [...]; Amazônia: desenvolvimento econômico
e sustentabilidade ambiental. (BANCO MUNDIAL, 2007, p.03)
O Banco aponta nas orientações finais do referido documento que o Brasil precisa ser: “Um Brasil mais
competitivo: estimulando o crescimento sustentável”; “Um Brasil mais Eqüitativo: investindo em pessoas”, “Um Brasil mais
sustentável: fornecendo serviços locais e administrando os recursos naturais para uma melhor qualidade de vida” (p.3-4)
O que se pode inferir é que se o Brasil quer continuar ter a parceria do BM ele precisa fazer um ajuste fiscal,
aperfeiçoar a “governabilidade”, gastar os recursos com “responsabilidade” (Lei de Responsabilidade Fiscal), vivificar a
Teoria do Capital humano4, pensar melhor a sustentabilidade ambiental e claro, buscar a diminuição do índice de pobreza.
Vale ressaltar que, no tocante às Políticas Educacionais Brasileiras, o BM tem um papel fundamental entre os
Organismos Internacionais, pois
A partir dos anos de 1980, o Banco Mundial tem sido o principal Organismo Internacional de financiamento para a
Educação na América Latina e, em especial, no Brasil. Neste, o Sistema Educacional está sob a égide das políticas setoriais
estabelecidas pelo BIRD, que prescrevem políticas, estratégias, programas e reformas a fim de consolidar a hegemonia
ideológica, militar e financeira comandada pelos Estados Unidos. (SILVA, 2002, p. 70-71).
Ao discutir a intervenção do BM na Educação Brasileira, HADDAD (1998) aponta que o referido banco vê a
Educação como balizadora do desenvolvimento econômico em curso:
A prioridade pela Educação vai de encontro às tradicionais demandas da sociedade brasileira por este setor.
Particularmente, no contexto atual, estamos vivendo momentos de significativa revalorização social da Educação. Vários são
os motivos e os aspectos que podemos tomar para compreender esta afirmação. Um deles é o fato de que as novas tecnologias
e o desenvolvimento da Ciência vêm colocando a informação e o conhecimento como relevantes no atual estágio do
capitalismo contemporâneo. Gradativamente, a força física vem sendo substituída pelas máquinas e os trabalhadores se vêm
valorizados muito mais por suas habilidades intelectuais. São os novos valores da época dos computadores e das novas
organizações da produção. (p.45)
Esta revolução tecnológica se desenha como “uma faca de dois gumes”, pois, ao mesmo tempo em que desafia o
ser humano nos seus aspectos intelectuais, desencadeia um processo de desemprego, fazendo com que,
[...] a instrução passe a ser um dos fatores de seleção para ingresso, permanência e progressão no mercado de
trabalho. Ou seja, a formação escolar, valorizada como fator significativo na formação do novo trabalhador na nova
‘sociedade da informação’ é, ao mesmo tempo, fator de seleção e exclusão social em um contexto de desemprego e exclusão,
provocada pelas políticas neoliberais. (HADDAD, 1998, p.45-46).
A partir da análise de documentos estratégicos do BM5 e BIRD6 e continuando o debate, HADDAD (op cit), afirma
que os referidos Bancos alocam problemas de ordem econômica para a Educação quando, por exemplo, apontam que devido
à necessidade simultânea de criar empregos, especial atenção deve ser dada ao treinamento profissional e à recapacitação.
Nesta linha de raciocínio, o desemprego passa a ser um problema da Educação e não da Economia. Assim sendo, os referidos

4
A Teoria do Capital Humano (TCH) surge a partir de pesquisa em escala mundial desenvolvida pela UNESCO e coordenada por THEODOR SCHULTZ na
década de 1950. Nesta pesquisa é feito um levantamento sobre a situação da educação dos paises pobres e ricos. Schultz constata que: Quanto maior a riqueza de
um país, maior o nível de instrução de sua população, e melhor consequentemente a sua situação do nível educacional; a educação então passa a ser fator de
medição no que diz respeito a riqueza de um país. Ou seja: Há relação entre escolarização e riqueza; Quando há aumento de qualificação profissional
consequentemente há uma diminuição da pobreza; Quanto mais anos de estudo maior a tendência para que o sujeito acumule um patrimônio individual, surge
então o capital humano. (SCHULTZ, 1967) (grifos meus).
5
Documento do Banco Mundial sobre Estratégia de Assistência ao País (Country Assistance Strategy – CAS) -Do Brasil. 1997
6
Documento de País Brasil (Brazil Country Paper), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 1997.

534
Bancos entendem que a falta de Educação Escolar é um dos causadores dos elevados índices de pobreza que culminam com o
processo de emperramento do desenvolvimento nacional e de eqüidade social. Ou seja, ao individualizar e justificar a falta de
escolarização devido à pobreza dos indivíduos desencadeia um processo de desresponsabilização das causas econômicas, dos
determinantes dos elevados índices de concentração de renda, desemprego e baixos salários, reduzindo para o plano
educacional as causas do empobrecimento da maioria da população.
Dentro desta perspectiva, o BM apresenta uma proposta ideológica articulada a um projeto de sociedade que
abrange aspectos vinculados à Educação voltada para o mundo do trabalho. Uma Educação economicista:
[...] nossa percepção sobre o conjunto de propostas educacionais do BM como um discurso de economistas para ser
implementado por educadores. A perspectiva do custo-benefício, a consideração das leis do mercado, a aproximação entre as
imagens da escola e da empresa são traços comuns daquele discurso. Afinal, trata-se de um banco, um banco mundial,
representante da racionalidade científica e da eficiência técnica. (LUDKE et al., 1999, p.283).
O discurso preconizado pelo BM aponta para a necessidade de adoção de medidas econômicas mais duradouras,
como indução da produção voltada para a exportação, a abertura dos mercados, a redução do apoio estatal para políticas
sociais, a privatização, e a compreensão da Educação como mercadoria no qual a Escola se assemelha a uma empresa que
deve produzir o cidadão com perfil adequado ao mundo do trabalho. Ou seja, o BM credita à Educação a responsabilidade na
redefinição do quadro social existente.
Ao discutir as políticas educacionais do BM Silva, Azzi e Buck (2008) apontam que a concepção de educação do
referido banco é a seguinte:
A educação é encarada pelo Banco como a prestação (pública ou privada) de um serviço, e não como um direito de
todos à transmissão e troca de saberes, culturas e valores. Nessa perspectiva, a educação deve ser avaliada com base no
desempenho dos professores em fornecer o mais eficiente serviço aos seus ‘clientes’, os pais. O fortalecimento dos clientes,
que deverão avaliar a escola pela utilidade mercadológica do produto que o aluno demonstrar ter adquirido, é a apresentado
pelo Banco como um dos pilares para a melhoria da educação, seja pública, seja privada. (p.27) (grifos meus)
O que se pode inferir desta concepção de educação do Banco é um forte estreteitamento da relação escola X
empresa, pais X consumidores, aprendizagem X produto e sistema educacional X sistema de mercado.
É a partir desta concepção que o BM vem desenvolvendo um processo rigoroso de avaliação da eficácia de seus
investimentos em educação primária desde 1990. Um comitê, supostamente autônomo, constituído pelo Banco, do qual faz
parte o ex-ministro da educação do Brasil, Paulo Renato Souza, está encarregado de analisar a eficácia dos projetos em
educação financiados por essa instituição, que somam mais de dez bilhões de dólares. (SILVA, AZZI e BUCK, 2008, p.19)
TORRES (1996), afirma que apesar de a visibilidade do BM no setor educacional ser recente, o mesmo vem
trabalhando de forma mais direta neste setor há mais de trinta anos:
Ampliando cada vez mais seu raio de influência e ação e abrangendo atualmente as atividades de pesquisa,
assistência técnica, assessoria aos governos em matéria de políticas educativas, assim como prestando ajuda para a
mobilização e coordenação de recursos externos para a Educação. (p. 128)
Reafirmando esta questão, SILVA (2002) aponta que a origem da estratégia política do BM para a problemática
educacional e na formulação de critérios de financiamento se deu nas décadas de 1960/1970, quando,
[...] ocorreu a acelerada expansão da Educação e aumento dos índices de matrícula nos países devedores, o que era
explicável em decorrência do movimento de independência política dos Estados na África, do rápido crescimento econômico,
da ascensão dos governos autoritários na América Latina, da explosão demográfica e do êxodo rural para os centros urbanos,
da disseminação da idéia de melhoria do status social, vinculando-o à Educação, e da concepção de que a Educação geraria
empregos e desenvolvimento econômico. (p.63).
Nessa perspectiva, após intervenção na política do Continente Africano, o BM dirigiu seus olhares para a expansão
das matrículas na América Latina na década de 1970 e começou a traçar seu projeto de intervenção buscando controlar a
expansão das matrículas, discernir os problemas, propor medidas, induzir políticas e estratégias de menor custo (ibid.).
Ou seja, o contexto educacional na América Latina, naquele período, apontava uma deficiência na qualidade e uma
ineficiência do Sistema Educacional, o que balizou o BM a formular políticas e estratégias de racionalização dos custos para
a Educação Pública, a reformulação curricular, investimento em equipamentos técnicos, para o desenvolvimento de instrução
programada e para a criação de novas fontes de financiamento.
Silva, Azzi e Buck (2008) afirmam que o BM vem investindo na priorização da Educação Básica (no Brasil
correspondente as 4 séries iniciais do Ensino Fundamental) e implementando estratégias de ação com um marco de
referência alternativo ao das duas cúpulas internacionais de educação, notadamente as Metas de Desenvolvimento do Milênio
(MDM). Ressaltando que “Das 18 MDMs, apenas duas se referem à educação, focadas na universalização da educação
primária – restrito ao primeiro ciclo do ensino fundamental – e na equidade de gênero.” (p.22) As metas são:
- a de nº 3 – Garantir que até 2015 todas as crianças, de ambos os sexos terminem um ciclo completo de ensino
primário;
- a de nº 4 – Eliminar a disparidade entre os sexos no ensino primário e secundário, se possível até 2005, e em todos
os níveis de ensino, a mais tardar até 2015.
As metas de Jomtien e de Dacar são abrangentes, abordando o conjunto da educação básica, incluindo a educação
de jovens e adultos, a questão de gênero e a dimensão da qualidade.

535
As MDMs se constitui referência para iniciativa Via Rápida (IVR), mecanismo de financiamento da cooperação
internacional para a área educacional, encabeçada pelo BM que se constitui como principal ação concreta efetivada no
contexto pós Dacar. A IVR está focada na educação primária.
Tendo em vista a meta do milênio relativa á universalização do ensino primário o BM tem elogiado o Brasil com o
Programa Bolsa-Escola a qual é também financiada pelo referido banco.
È interessante chamar nossa atenção para seguinte questão refletida por Silva, Azzi e Buck (op cit):
Sob o argumento de envolver a comunidade, maximizar a eficiência e obter resultados palpáveis, o Banco propõe
que os fundos sejam administrados o mais diretamente possível pelas instituições escolares, ao invés do controle pelo
governo. Mais do que isso, sugere que a responsabilidade por arrecadar recursos deve ser compartilhada com a comunidade
local, relativizando a responsabilidade do estado em garantir o financiamento da educação. (p. 26)
Sobre a questão educacional vale ressaltar que a educação foi reafirmada como direito pela Conferencia Mundial de
Educação para Todos (ocorrida em, Tailândia, em Jomtien, em 1990) e pela Cúpula Mundial de Educação para Todos
(ocorrida no Senegal, em Dacar, em 2000), ambas promovidas por UNESCO, UNICEF, PNUD e BM. No caso brasileiro a
Constituição Federal de 1988 (a qual completou este ano 20 anos) aponta a educação como “direito de todos e dever do
Estado e Família”, que se configura em um direito público subjetivo. A LDB 1996 (com quase 12 anos de existência) aponta
a educação também como direito, no entanto no texto da lei a família tem maior responsabilidade que o Estado. “A educação,
dever da família e do Estado...” (LDB art. 2º) esta inversão da ordem não é só terminológica é conceptual. Ou seja, reforça a
idéia de diminuir a responsabilidade do Estado para com a Educação.
Silva, Azzi e Buck (2008) afirmam que o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, e várias
outras constituições nacionais fazem referência ao direito à educação como um direito fundamental de cada cidadão. No
entanto esta meta está longe de ser alcançada, pois,
Assumir a educação como direito humano significa afirmá-la como uma necessidade intrínseca ao ser humano e
como um direito universal (para todos e com igual qualidade), indivisível e interdependente com relação aos outros direitos
humanos destinados a garantir a dignidade para todas as pessoas. Cabe ao Estado a responsabilidade pela efetivação deste
direito. (HADDAD, 2008, p.95)
Percebe-se que a concepção de educação como um direito conflita com aquela que apresenta a educação como
serviço, como mercadoria, defendida pelo BM, a qual sustenta a idéia de que as necessidades básicas dos cidadãos seriam
supridas de forma mais eficiente pelas instituições privadas, em razão dos mecanismos de mercado. Uma vez que “O setor
privado incentivaria a competição e diminuiria a burocracia e a inércia supostamente inerentes ao sistema publico.” (SILVA,
AZZI e BUCK, 2008, p. 96).
Mais uma vez vamos presenciar a aproximação da escola a uma empresa, pois,
Entender a educação como serviço comerciável reduz o aluno cidadão a cliente, o que tem profundas conseqüências
na qualidade educacional. No Brasil, essa concepção reflete-se no crescente e visível investimento em marketing educacional,
que invade propagandas de TV, outdoors, jornais e rádios e na profusão de eventos sobre a temática. Durante o 9º Seminário
de Marketing Escolar, realizado em 2003, em São Paulo, Ryon Braga, consultor em marketing educacional, atribuiu o
sucesso do grupo Objetivo/UNIP à sua postura comercial; ‘ aqueles que entraram na educação com uma visão mais
empresarial e profissional desde o início, como o caso do Di Gênio [um dos proprietários do grupo], obtiveram resultados
melhores do que aqueles que entraram com visão muito acadêmica, pouco profissional. (SILVA, AZZI e BUCK, 2008, p.96)
A educação vista como serviço interfere na discussão sobre soberania nacional e autonomia dos Estados para
definirem a política educacional mais adequada. “A capacidade do setor público de elaborar políticas publicas de educação é,
portanto, inseparável da liberdade que cada país tem de elaborar um projeto de desenvolvimento humano, social e
econômico, ou seja, da soberania nacional.” (SILVA, AZZI e BUCK, 2008, p.97).
Sobre esta questão Frigotto (1996) afirma que no plano ético-político, a educação deixa de ser um direito para,
paulatinamente, transformar em um serviço, uma mercadoria.
Pode-se inferir, então, que a política do Banco Mundial caracteriza-se como uma ameaça ao caráter público da
educação e da compreensão da educação como um direito humano.

3 - O desenvolvimento das relações de consentimento às orientações do Banco Mundial nas políticas educacionais
brasileiras: as políticas de formação docente em questão
Registra-se na década de 1990 um grande volume de reformas educacionais. No caso específico do Brasil, pode-se
citar o Plano Decenal da Educação (1993), a Lei 9394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997), a disseminação e consolidação de Programas de Formação continuada para docentes em
serviço, implantação de Sistemas Nacionais de Avaliação como SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica, ENEN –
Exame Nacional de Ensino Médio e SINAES – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, bem como, encerrando
a década e iniciando o “novo milênio” o Plano Nacional de Educação (PNE) em 2001.
Os processos de mudanças impulsionados pelas reformas vem concedendo uma maior ênfase à formação dos
professores. Esses passaram a ser vistos como agentes fundamentais na materialização das políticas educacionais. Neste
sentido, a formação docente tem sido destacada como um dos pontos centrais para o “sucesso” das mudanças em curso.

536
Movimentos Sociais Nacionais e entidades acadêmicas ligados à formação docente, dentre eles a Associação
Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação - ANFOPE, Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em
Educação – ANPEd, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE e o Fórum Nacional em Defesa da
Educação Pública têm propiciado um sólido debate teórico e político, nos quais evidencia-se que as políticas públicas de
formação docente foram construídas, historicamente, pelos gestores da política educacional brasileira, a partir da
identificação das insuficiências e/ou deficiências da educação formal, associadas ao papel e função do professor; atribuindo a
estes a responsabilidade dos problemas da educação. Referendando assim o individualismo e uma educação que atende aos
apelos do mercado e dos objetivos e metas dos organismos internacionais.
Ainda na década 1990, presenciamos a efervescência de um forte movimento de luta dessas entidades, as quais têm
demonstrado e registrado suas memórias e histórias por meio de debates, seminários, anais de suas reuniões, publicações e
documentos, nos quais vêm apontando os (des) caminhos das políticas de formação inicial e continuada de professores e os
elementos possíveis de superação das condições atuais em que se encontra a educação e, em particular, a formação de
professores “campos assolados pelas determinações dos organismos internacionais que impõem aos diferentes países seus
fins e objetivos, tornando-os subordinados às orientações políticas neoliberais e mais bem adequados às transformações no
campo da reestruturação produtiva em curso” (FREITAS, 2002).
Os Organismos Internacionais de Financiamento tem buscado cada vez mais intervir direta e indiretamente na
Educação do nosso país. Alguns dos Organismos que estão à frente deste processo de intervenção são: Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (BM), Comunidade Européia (CE), Organização de Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), Organização dos Estados Americanos (OEA), Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), e Programa de Promoção das Reformas Educativas da América Latina e Caribe (PREAL).
O BM tem um papel fundamental entre os Organismos Internacionais no tocante às Políticas Educacionais.
A partir da leitura dos estudos de Torres (op cit) direciono análise sobre as políticas de formação docente para cinco
pontos básicos:
O primeiro é que o BM prioriza a Formação Continuada (capacitação em serviço) em detrimento da Formação
Inicial;
O segundo é que as orientações do Banco são de que na Formação Continuada deve-se enfatizar os conteúdos e não
a prática docente;
O terceiro é o indicativo da modalidade Educação à Distância tanto para Formação Inicial quanto para Formação
Continuada;
O quarto diz respeito à questão da ausência dos professores na construção e na definição das Políticas e Programas
Educacionais;
O quinto é o fato de o Banco Mundial ancorar sua política em estudos e pesquisadores de países desenvolvidos,
sem se preocupar com as peculiaridades dos países que onde será implantada esta ou aquela política.
Em relação ao primeiro ponto, a ênfase na Formação Continuada, isto se dá em virtude de interesses que
privilegiam aspectos econômicos, pautados no custo-benefício que esta formação pode oferecer para o mundo do trabalho.
Nesta perspectiva, a Formação Continuada apresenta-se como uma forma mais vantajosa, barata e eficiente para a política de
formação docente do BM.
Estudos (e a própria experiência prática) demonstram que docentes com maior número de anos de estudo e maiores
qualificações não necessariamente conseguem melhores rendimentos com seus alunos. Sobre esta base, o BM desaconselha o
investimento na Formação Inicial dos docentes e recomenda priorizar a capacitação em serviço, considerada mais efetiva em
termos de custo [...] e recomenda que ambas aproveitem a modalidades à distância, também consideradas mais efetivas em
termos de custo que as modalidades presencias. (TORRES, 1998, pp.161-62).
Esta ênfase na Formação Continuada tem sido balizada em pesquisas realizadas pelo Banco Mundial nos últimos
vinte e cinco anos; como exemplo, citamos as afirmações de pesquisadores do referido Banco: “Em geral, a capacitação em
serviço é mais determinante no desempenho do aluno que a formação inicial”. (LOCKHEED and VERSPOR, apud
TORRES, 1998, p. 162);
Balizando nesta linha de raciocínio e com foco no custo-benefício, tais pesquisas apontam que este tipo de
formação, capacitação em serviço, renda mais com menos investimento financeiro:
A Formação Inicial consiste em Educação Geral e Capacitação Pedagógica. Esta combinação a torna muito cara,
especialmente devido ao tempo investido na Educação Geral [...] Esta Educação Geral – o conhecimento das matérias – pode
ser fornecida no ensino secundário a mais baixo custo, entre 7 e 25 vezes mais barato do que a Formação Inicial. A
Capacitação Pedagógica, pelo contrário, é muito apropriada para as Instituições de Formação Docente. Para os professores da
escola de primeiro grau, portanto, o caminho que apresenta melhor relação custo-benefício é uma educação secundária
seguida de cursos curtos de formação inicial centralizados na capacitação pedagógica. (Banco Mundial, apud TORRES,
1996, p.165).
No Brasil, esta estratégia política de enfatizar a Formação em Serviço se materializa quando observamos um
aumento considerável no investimento de todas as esferas públicas (Federal, Estadual e Municipal) em Programas de
Formação Continuada para Docentes em Serviço. Temos como exemplo os Programas do Ministério da Educação
Informática na Escola (PROINFO), o Programa de Formação de Alfabetizadores (PROFA), TV Escola e “Um Salto Para o
futuro”; Pro Letramento (Curso de formação continuada do professor onde o foco é Leitura e Escrita), Pro Licenciatura

537
(Curso a distância para professores que atuam nas séries finai do ensino fundamental e no ensino médio e que ainda não têm
habilitação específica), Pro Infantil (formação a distância de professore sem nível médio modalidade normal), em Minas
Gerais, que é um do Programa de Capacitação de Professores – PROCAP (1998), que era um programa voltado para as
escolas das Redes Estadual e Municipal do Ensino Fundamental e, São Paulo o Programa de Educação Continuada – PEC
(1998), que igualmente se volta para professores do Ensino Fundamental. E, a nível local, em Belém do Pará cito na Rede
Municipal de Ensino (RME), o Programa de Formação Continuada do Projeto Político Pedagógico “Escola Cabana” (1998 –
2004) e mais recentemente o Programa de Formação Continuada, também da RME chamado de ECOAR – Elaborando o
Conhecimento para aprender a Reconstruí-lo, que teve início em 2005 está em andamento.
O segundo ponto de análise sobre a política de formação docente do Banco Mundial é a questão de que ele vem
privilegiando a Formação Continuada e o conhecimento do conteúdo das matérias em detrimento do conhecimento
pedagógico que os professores podem vir a desenvolver.
Essa ênfase nos conteúdos reforça o Modelo Educativo Convencional, no qual a Educação é vista como um
processo de transmissão, assimilação e acumulação de informação/conteúdos (enciclopedismo), proporcionados por um
professor e um livro didático, ao invés de um processo de construção e apropriação de conhecimentos, habilidades, valores e
atitudes que acontece não somente na Escola nem apenas a partir do professor e/ou do livro. Ou seja: a Educação baseia-se
em um modelo frontal e transmissor de Ensino, em que ensinar equivale a falar e aprender equivale a escutar. Esse modelo se
aplica tanto aos alunos como aos professores em sua formação e capacitação docente, em que ambos ocupam papel
intelectual passivo em seu processo de formação (TORRES, 1996, p.178).
Nesta perspectiva o Ensino está centrado na figura do professor, voltando-se para o que é externo ao aluno: as
disciplinas, o conteúdo, o professor e o programa. Não se dá importância para o processo e sim para o produto final, ou seja,
os Programas de Formação Continuada elaborados nesta concepção priorizam o conteúdo a ser transmitido/adquirido e não
como ensinar melhor tal conteúdo, o que fazer o com conteúdo aprendido, para que ensinar/aprender tal conteúdo, por que
devo ensinar/aprender determinado conteúdo.
A questão de enfatizar os conteúdos está presente também nas formações iniciais nos cursos de licenciaturas. Sobre
esta questão Freitas (2007) aponta que:
A redução do espaço dos fundamentos epistemológico e científico da educação nos campos formativos, e a
prevalência de uma concepção conteudista e pragmática de formação de professores, ancoradas na epistemologia da prática e
na lógica das competências, vem produzindo novas proposições para as licenciaturas que se desenvolvem no interior dos
programas de educação à distancia. É nesse contexto que se insere a criação do programa Pró-Licenciatura, em 2005...
(p.1211-1212)
Quanto ao terceiro ponto, o BM vem preconizando que, por ser maior o custo das modalidades de Educação
Presencial, a Instituição potencializa a Educação à Distância (EAD); mais uma vez enfatizando o custo-benefício, o Banco
Mundial prioriza de maneira específica esta modalidade, em conjunto com o uso e programas de rádio interativos para
instrução na sala de aula, particularmente em Matemáticas, leitura e escrita, e ainda para o ensino de uma segunda língua,
opções recomendadas como alternativa de baixo custo (entre outras, já que requer certa capacitação mínima).
No entanto, TORRES (ibid.) nos chama atenção para duas questões. A primeira é a fascinação com tecnologia, a
qual pode ser mal utilizada e mal aproveitada. A segunda é que a EAD pode reproduzir o modelo de ensino tradicional de
transmissão de conhecimentos.
A modalidade a distância se configura nos dias atuais como uma tendência/estratégia para a realização da formação
docente em serviço, a qual pode se dá não só via as secretarias de ensino, mas também, nas universidades como nos mostra
Freitas (2007):
A institucionalização da formação superior em programas de educação a distância, na concepção continuada, aliada
à utilização de novas tecnologias, é hoje o centro da política de formação em serviço. A criação do Programa Pró-
Licenciatura, em 2005, e da Universidade Aberta do Brasil (UAB), pelo Decreto n.5.800/06, em 2006, institucionaliza os
programas de formação de professores a distância como política de formação. (p.1210)
Sobre esta questão a ANFOPE aponta uma preocupação em relação à utilização indiscriminada da modalidade
Educação à Distância na Formação dos Profissionais da Educação. A referida entidade tem reafirmado que os programas de
Educação à Distância para a Formação de Professores deverão, sempre que possível, ser suplementares e antecedidos pela
Formação Inicial de Professores e quanto ao uso de novas tecnologias de comunicação e informação. No entanto,
A Educação à Distância necessita de uma estrutura básica consistente tecnologicamente, além de profissionais
capazes de elaborar o material impresso ou eletrônico que chegará até os alunos. Assim, bibliotecas, computadores, salas de
multimeios, diferentes softwares são algumas exigências fundamentais para cursos de EaD. Portanto, se bons, não baratos.
Somado a isso, os tutores ou monitores devem ser professores que dominem a metodologia e os conteúdos para que
estabeleçam uma mediação competente junto aos alunos. (ANFOPE, 2002, p.29)
Segundo a ANFOPE (2002) os cursos de formação EaD no Brasil contrariam todos os requisitos citados e acabam
por se configurar como uma forma de aligeirar e baratear a formação.Pois a Educação à Distância, no Brasil, tende a ser
pensada mais como uma política compensatória que visa suprir a ausência de oferta de cursos regulares a uma determinada
clientela, sendo dirigida a segmentos populacionais historicamente já afastados da Rede pública de Educação Superior. A
ANFOPE também se posiciona preocupada com a gravidade da situação da formação dos professores, principalmente quanto
ao grande número de professores leigos, o que tem levado o Ministério da Educação a propor ações articuladas com as

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Secretarias de Educação Estaduais/Municipais no sentido de formar devidamente os professores leigos. No entanto, a
Associação defende uma política de reforço às Instituições de Ensino Superior (IES) Públicas para que as mesmas tenham
condições de promover uma expansão qualificada do Ensino Superior.
Neste sentido, os educadores reunidos no XI ENCONTRO ANUAL DA ANFOPE apontaram a necessidade de
divulgar, acompanhar e avaliar as experiências em andamento nas diferentes IES e nos vários estados, criando espaços para o
aprofundamento da temática, por entender que este é um campo extremamente complexo e que envolve novas concepções de
ensino e aprendizagem (ANFOPE, 2002).
O quarto ponto, que merece destaque, é a ausência dos professores na Construção e Definição de Políticas e
Programas Educacionais. Este fato pode ser identificado no processo de Reforma Educativa em desenvolvimento no nosso
país. Existe um sentido distanciamento entre a reforma implementada e a reforma desejada pelos educadores e seus
movimentos sociais. Além de os professores (as) historicamente não se constituírem sujeitos nesse processo, eles via de regra
não são preparados para tal reforma.
O quinto ponto de análise sobre a Política de Formação Docente do Banco Mundial trata do fato de que grande
parte de suas propostas sobre a Educação Básica dirigidas aos países em desenvolvimento (terceiro mundo) balizam-se em
pesquisas e autores de países desenvolvidos (primeiro mundo) e dos Organismos Internacionais. A maior parte dos estudos
em que se fundamentam as propostas do BM e das referências bibliográficas que se mencionam em suas publicações (pelo
menos para a Educação Básica) referem-se ao Terceiro Mundo; porém, a maioria desses estudos e publicações provém de
autores do Primeiro Mundo e dos Bancos e Agências Internacionais (TORRES, 1996, p.144).
Esse fato ocasiona um distanciamento entre o que preconiza o discurso internacional e o discurso educativo
produzido regional e nacionalmente. Nesse sentido, problemas, soluções e modelos de desenvolvimento educacionais são
pensados e balizados nos modelos dos países desenvolvidos, desconsiderando as realidades específicas de cada país,
causando assim o desencadeamento de um processo de homogeneização da política educacional, sobre o que postulam já
terem obtido “êxito” em experiências já realizadas em outros países.
TORRES (op cit.) aponta que seria muito importante que tanto o BM como outras Agências Internacionais
passassem a assumir como parte de suas funções colocar à disposição do Terceiro Mundo informações atualizadas e
sistematizadas sobre as experiências e os Processos de Reforma Educativa nos Países Desenvolvidos, não para fixar modelos
do possível ou desejável, mas, sobretudo, para antecipar problemas e evitar erros já cometidos por esses países.
Como podemos ver da década de 1990 e o início deste século tem sido marcado por debates sobre a política de
formação docente, os quais deixam seus traços históricos na Legislação Educacional Brasileira: Em 1996 a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação (LDBEN) dedica um capítulo sobre esta questão, em 2001 o Plano Nacional de Educação (PNE) destina
vários artigos sobre este assunto e mais recentemente em 2007 o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) aponta como
um dos principais pontos a formação docente. Valendo ressaltar que o PDE cria a “Nova CAPES” (Lei 11.502/07) com o
intuito de torná-la agência reguladora da formação docente. Em que a Educação a Distância se configura como “carro chefe”
que podemos exemplificar pela Universidade Aberta (Lei 5.800/06).
Apesar de não ser o enfoque do texto ora aqui apresentado gostaria de destacar que não só a formação docente
passa por mudanças o perfil do trabalho docente também é afetado e isto tem relação direta com sua formação em especial a
“formação em serviço.” O trabalho do professor nos dias atuais ultrapassa o trabalho da sala de aula e dos muros da escola:
Os professores têm de encarregar-se de um maior numero de funções: gestão econômica, busca de recursos
econômicos (sobretudo para as atividades extra-acadêmicas), elaboração de uma política educativa própria por meios de
projetos de cada escola e de sala de aula [...], publicidade da escola, atenção a novos conteúdos culturais e problemas sociais;
educação contra drogas, prevenção de Aids, educação no trânsito, educação para o consumo, educação para a saúde,
manutenção do patrimônio cultural e ecológico, etc.” (SANTOMÉ, 2003 p.44)
È acrescentado ao trabalho do professor a gestão da escola, o planejamento, a elaboração de projetos, a
responsabilidade em cumprir o currículo e melhorar os índices de avaliação da escola. Pois, as regulações educacionais se
pautam também nos processos de avaliação externa que se faz da escola via exames nacionais de avaliação.
Paralelamente ao exposto percebe-se, também, uma desvalorização contínua da profissão docente:
A desvalorização social de um posto de trabalho como a docência é realmente preocupante; uma boa prova disso é
que essa carreira não desperta grande interesse nas novas gerações, o que é constatado todos os anos nos momentos de
escolha das carreiras universitárias. A partir de meados dos anos 80, esse tipo de opção universitária poucas vezes fez parte
das opções principais; ao contrário, é freqüentemente que a maioria dos que se matriculam na Faculdade de Educação o
façam por terem sido reprovados nas faculdades em que realmente desejariam estudar, onde já não há vagas, pois alunos e
alunas com melhores resultados esgotam o número de vagas disponíveis. (SANTOMÉ, 2003 p. 70)

Agravando esta situação os professores sindicalizados são vistos como um “problema” para os capitalistas. E isto
tem contribuído para o enfraquecimento dos sindicatos e isolamento do trabalho docente no cotidiano das escolas

[...] Esse isolamento no trabalho cotidiano em sala de aula combina-se com as mudanças de perspectivas sobre o
que é considerado aprender, que já tinham sido fortemente criticadas nas décadas passadas. Pretende-se reduzir, novamente, a
avaliação dos processos de ensino e aprendizagem apenas ao que é evidenciado pelos testes de medição quantitativa

539
aplicados às avaliações externas. Pretende-se impor nas escolas e, portanto, no trabalho dos professores e dos alunos, a lógica
da produção industrial, dos controles dos produtos que competem nos mercados. (SANTOMÉ. 2003, p. 67)

Isto pode ser exemplificado no Brasil, como controle avaliativo: Provinha Brasil, Prova Brasil, SAEB, ENEN,
SINAES. E como produtividade/prêmio; Bônus docente, bolsa produtividade, etc.
Observa-se uma obsessão pelo controle dos conteúdos escolares a serem trabalhados nas escolas. Tal obsessão
“pode ser vista claramente entre os membros do governo que tentam aprovar e controlar os livros-textos permitidos, [...]
tentam impor um conhecimento oficial que legitime as estruturas de poder existentes na sociedade.” (SANTOMÉ, 2003 p.
43)
Aqui no Brasil podemos exemplificar com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que são de certa forma
impostos nas escolas brasileiras, e consequentemente os livros didáticos que são adequados aos mesmos e classificados pelo
Ministério da Educação (MEC) em 5, 4 e 3 estrelas e “podem” ser utilizados pelos professores. Por outro lado é importante
salientar que não pensou na formação dos professores, não se pensou em preparar os professores para “executar” tais
políticas muito menos em “planejar”, ser agentes sócio-históricos no processo de construção da política curricular a ser
trabalhada. Na verdade o que acontece é uma diminuição da autonomia do trabalho docente e alto controle do que se deve
trabalhar e como deve desenvolver seu trabalho.
No entanto vale ressaltar que muitos professores procuram adaptar os conteúdos aos contextos em que as escolas
estão localizadas, procuram adequar a seleção de conteúdos com os quais trabalham às peculiaridades da comunidade e ao
grau de desenvolvimento e nível de conhecimento de cada aluno e aluna... ainda assim... não consegue fugir totalmente da
regulação curricular. Isto só referenda que:

[...] É preciso ser consciente de que o Estado intervém e controla, mas também que os professores – mais
concretamente, os diferentes grupos de professores e professoras – reagem, relêem e enfrentam os obstáculos com que se
deparam na hora de realizar o seu trabalho. (SANTOMÉ, 2003, p. 71)
Assim sendo, é preciso apostar na autonomia dos professores o significa tratar de “[...] abrir espaços mais próximos
aos cidadãos e às cidadãs, em que haja verdadeiras possibilidades de comparar opções de trabalho nas escolas, dialogar sobre
as diferenças existentes sobre o significado, os conteúdos e a forma de educar.” (idem, p.50). Mas construir a autonomia dos
professores é preciso levar em conta que:
a) A autonomia requer professores com boa formação e atualização psicopedagógica e cultural, assim como
recursos econômicos; dessa maneira, poderão atrever-se a tomar decisões mais reflexivas e a envolver-se em inovações de
seu interesse. b) A autonomia implica ter coragem para exercê-la [...] e c) Além disso, o exercício da autonomia exige
condições de trabalho que a possibilitem. (SANTOMÉ, 2003, p.55)

4 – Para não concluir


Diante da Política Educacional instaurada pelos Organismos Internacionais, em especial do Banco Mundial, pode-
se inferir que esta possa contribuir para a descaracterização profissional do docente (crise de identidade), aligeiramento e
flexibilização de sua formação, baixa auto-estima do profissional da Educação, somando-se a tudo isto, temos ainda as
precárias condições de trabalho e a perda crescente do poder aquisitivo (salário), o que tem possibilitado a trilhagem e o
desenhar do processo de proletarização docente, tanto no sentido de empobrecimento quanto no sentido principal de perda do
domínio e controle dos meios de trabalho. A situação docente passa por um processo de mudanças em sua formação, em seu
trabalho, bem como na sua visibilidade como profissão na sociedade.
É possível perceber na legislação educacional brasileira uma flexibilização da formação docente e concomitamente
um aumento das faculdades particulares e Institutos Superiores com vistas à formação dos professores que estão no mercado
de trabalho e que ainda não tem curso superior o que tem contribuído para o empresariado da educação e para o
aligeiramento dos cursos de formação docente.
Tendo em vista a relação custo-benefício percebe-se uma tendência na supervalorização da Educação à Distância
para realização da formação docente tanto para formação inicial quanto para a continuada (formação em serviço). Sendo que
esta última é vista como mais eficaz uma vez que esta tem maior interferência na aprendizagem do aluno e no “chão da
escola”. E, tem-se priorizado os conteúdos a serem ensinados e aprendidos reforçando o ensino tradicional de transmissão de
conhecimentos.
Logo, a regulação das políticas de formação docente educacionais perpassa por: Priorizar a modalidade à distância
tanto para a formação continuada como para inicial; Enfatizar a formação continuada em detrimento da inicial não
compreendendo as mesmas como parte de um mesmo processo educativo de formação. E, Somatizar a prática em detrimento
da teoria.
Assim sendo afirmo minha concordância com Meszaros (2005) que caminha na lógica gramsciana de educação em
que a mesma tem o papel de resgatar o seu sentido estruturante e sua relação com o trabalho, no sentido da construção da
emancipação humana. Este papel vai muito além das salas de aulas, dos gabinetes e academia. O autor nos alerta que o acesso
à escola é extremamente necessário, mas não e suficiente para acabar com a exclusão social e educacional. E que muitas
vezes, a exclusão pode ser aflorada dentro da própria escola. Mas não nos tira a esperança, e nos convoca a reflexão e a luta:

540
[...] Portanto, a nossa tarefa educacional é, simultaneamente, a tarefa de uma transformação social, ampla e
emancipadora. Nenhuma das lutas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social
emancipadora radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no seu sentido amplo, tal
como oi descrito neste texto. E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser
articuladamente e redefinida constantemente no seu inter-relacionamento dialético com as condições cambiantes e as
necessidades da transformação social emancipadora e progressiva em curso. (p. 76-77) (grifo meu)
Assim sendo, nossa tarefa como educadores é a luta e a construção da contra hegemonia do que está posto. O
caminho é longo e difícil. Mas não podemos perder as perspectivas e a utopia. A utopia está no horizonte. Ando dez passos e
ela avança dez passos. Mas, afinal para que serve a utopia? Serve para isto para que eu não deixe de caminhar. (GALEANO,
1971).

5 - Referências:
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Documento Final do XI Encontro Nacional. Florianópolis, 2002
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(consultado na internet em 03 de outubro de 2008).
__________________. (2005). Relatório de Progresso da Estratégia de Assistência ao país para 2004-2007 Republica
Federativa do Brasil. Washington. www.bancomundial.br (consultado na internet em 03 de outubro de 2008).
__________________. (2005).Notas sobre o Brasil. Washington. www.bancomundial.br (consultado na internet em 03 de
outubro de 2008).
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estratégias dos bancos multilaterais para o Brasil: análise crítica e documentos inéditos. Brasília: Instituto de Estudos Sócio-
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541
Multiculturalismo e Etnicidade – A formação de professores indígenas.

Ubiratã Antonio Moreira de Araújo


Centro Universitário FIEO - UNIFIEO - São Paulo, Brasil e Universidade Técnica de Lisboa - UTL - Portugal
araujofa@uol.com.br

Resumo: O nosso tema trata especificamente da formação de professores indígenas, no Brasil, na ótica do multiculturalismo e da etnicidade.
Estes, como campos e problemas de pesquisas da Antropologia da Educação, especificamente no Brasil, são ainda objetos muito recentes de
averiguações, estudos, investigações e de publicações. Abordaremos estes os conceitos na perspectiva de documentos oficiais internacionais
e brasileiros. Nesse sentido buscaremos traçar o perfil do professor indígena inserido num contexto educacional multicultural e interétnico.

Cultura e multiculturalismo no Brasil


Iniciamos com a discussão, que hoje é considerada fundamental, sobre o multiculturalismo e etnicidade e
sobretudo voltada para os povos indígenas brasileiros que apresentam identidades culturais singularizantes.
Dado ao caráter polissêmico que as expressões – multiculturalismo e etnicidade – apresentam, seria lógico
iniciarmos a nossa reflexão por elas, mas optamos com a finalidade única de equalizar a nossa apresentação por determinados
autores que serão abordados ao longo desse trabalho.
Para a nossa discussão iniciaremos com o conceito de cultura elaborado por Darcy Ribeiro [1991], para o qual a
cultura
é a herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de
adaptação à natureza para o provimento de subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos
de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam suas experiências, exprimem sua criatividade artística e a
motivam para a ação. Assim concebida, a cultura é uma ordem particular de fenômenos que tem de característico sua
natureza de réplica conceitual da realidade, transmissível simbolicamente de geração para geração, na forma de organização e
de expressão a uma comunidade humana.
Assim entendida percebemos que cada povo, comunidade, sociedade ou grupos sociais apresentam culturas
próprias e que o multiculturalismo é a representação da sua multiplicidade e da sua diversidade. Nesse sentido pensamos que
o multiculturalismo refere-se as diferenças ou dessemelhanças existentes entre os diversos povos, comunidades, sociedades
ou grupos sociais, ou mesmo no interior de cada um deles. Mas, temos a consciência que termo multiculturalismo é
polissêmico e que possui diversas abordagens, como já demonstrou Canen, tais como as seguintes perspectivas básicas:
assimilação, reprodução, aceitação e conscientização cultural. Dentre estas abordagens nós nos identificamos com a que a
autora denomina de perspectiva da conscientização cultural, também denominada por outros autores de perspectiva
intercultural crítica, pois contextualiza-se “em termos das relações desiguais de poder entre grupos socioculturais e a busca de
estratégias que desafiem preconceitos e legitimem os discursos e as vozes daqueles cujos padrões culturais não correspondem
aos dominantes.”[CANEN,2001]
Nesta perspectiva gostaríamos de reforçar a idéia de que o multiculturalismo segundo o art.1 da Declaração
Universal da Diversidade Cultural é
[...] Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão
necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve
ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.
É a singularidade de cada cultura que permite e facilita esse intercâmbio desde que não tomemos essa singularidade
como uma divisão ou esquadrinhamento da realidade de cada cultura em grupos fechados e isolados.
No mundo globalizado em que vivemos e que é notório as desigualdades sociais, a dificuldade de acesso aos
direitos sociais mínimos e que o pluriculturalismo e o interculturalismo são evidentes torna-se cada vez mais necessário
“garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e
dinâmicas, assim como sua vontade de conviver.” [Declaração Universal da Diversidade Cultural]
A sociedade brasileira apresenta, devido a sua formação histórica, econômica, política e social, uma construção
sociocultural bastante complexa e diversificada. Mesmo que sentindo o peso dessa complexidade e diversidade o
multiculturalismo brasileiro caracteriza-se pela sua permeabilidade, plasticidade e entrelaçamento, que são desvelados através
da incorporação, criação e recriação de culturas locais, regionais, nacionais e internacionais sem no entanto cada qual perder
a sua identidade, mas muito ao contrário reelaborando e redefinindo as suas singularidades.
Dentro desse quadro destacamos os povos indígenas que no geral da sociedade brasileira apresentam suas
peculiaridades e que ao mesmo tempo dentro da comunidade indígena, que é complexa, cada povo apresenta suas
singularidades. Relembramos que hoje no território brasileiro convivem cerca de 400 mil indígenas, divididos em 250 etnias,
falando 180 línguas indígenas, distribuídas em 41 famílias, dois troncos lingüísticos e dez línguas isoladas guardando, cada
uma delas, identidade e singularidade próprias, representando, em si, uma riquíssima diversidade sociocultural.
Dentro dessa primeira perspectiva – multiculturalismo - é que olhamos a questão da formação de professores
indígenas, pois entendemos que os povos indígenas brasileiros apresentam identidades culturais singularizantes. Daí a

542
necessidade do processo educacional ser conduzido pelos próprios indígenas. Entendemos aqui a educação como uma das
instituições responsáveis pela endoculturação e socialização dos indivíduos na sua cultura.
Para a realização desses pressupostos encontramos na Constituição Brasileira de 1988 elementos que determinam a
sua consecução, tais como o Artigo 210 parágrafo 2. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. O
Artigo 215, parágrafo 1 que define como um dos deveres do Estado a “proteção das manifestações culturais indígenas”, e no
Artigo 231 que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam […]”
A partir daí se estabelece uma nova forma de pensar as relações com os povos indígenas reconhecendo serem eles
coletividades culturalmente diferenciadas. Tornou-se necessário, para atender as essas exigências, a formação de recursos
humanos adequados, isto é, a formação de professores indígenas que pudessem atender a essas especificações culturais e
educacionais. E que pudessem desenvolver metodologias, conteúdos, práticas e processos educacionais próprios de ensino e
aprendizagem, de calendários diferenciados e de materiais didáticos específicos que refletissem suas realidades e desta forma
atendessem suas características étnicas. Assim os povos indígenas poderiam manifestar acerca do que pensavam e do que
esperavam da educação escolar. Como exemplo dessa discussão foi proposto o seguinte eixo para o direcionamento das
propostas, pelos professores indígenas do Estado de São Paulo, Brasil, “Da Educação que temos para a Educação que
queremos.” Desta forma, praticamente, em todos os estados brasileiros foram constituídos fóruns e comissões envolvendo as
comunidade indígenas, os representantes governamentais, notadamente das Secretarias de Educação e os representantes da
sociedade civil com a finalidade de elaborarem as diretrizes, os planos estaduais, um “Projeto Político” ou um Programa de
Educação Escolar Indígena.
Nessas abordagens ficou claro a questão que a educação escolar indígena deveria ser multicultural e respeitada a
etnicidade de cada povo indígena em consonância com Constituição brasileira. Mais tarde isto foi consolidado e detalhado
pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB de 1996 que estabeleceu, ainda, a articulação dos sistemas de
ensino para a oferta da educação escolar de qualidade bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, de modo que lhes
propiciasse a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas
línguas e ciências e o acesso às informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais
sociedades indígenas e não-índias como podemos verificar nos seguintes artigos:
Art. 32 […]
§ 3º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a
utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Art. 78 - O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de
assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta de Educação escolar bilíngüe e
intercultural aospovos indígenas, com os seguintes objetivos:
I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de
suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da
sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Art. 79 - A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural
às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º- Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.
§ 2º- Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes
objetivos:
- fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;
- manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades
indígenas;
- desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às
respectivas comunidades;
- elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.

E com o Referencial Curricular Nacional para Escolas indígenas – RCNEI – de 2002 que estabelece uma educação
indígena pluricultural e intercultural de qualidade e com a finalidade de se construírem novas formas de relacionamento com
os demais segmentos da sociedade brasileira.
Destacamos, também, na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho – OIT – de 1989 e
promulgada no Brasil em 2004, os seguintes artigos:
Artigo 26
Deverão ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos interessados a possibilidade de adquirirem
educação em todos o níveis, pelo menos em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional.
Artigo 29

543
Um objetivo da educação das crianças dos povos interessados deverá ser o de lhes ministrar conhecimentos gerais e
aptidões que lhes permitam participar plenamente e em condições de igualdade na vida de sua própria comunidade e na da
comunidade nacional.

Os professores indígenas – quem são?


A partir das especificações acima discutidas como deve ser o perfil do professores indígena?
Para respondermos a esse questionamento analisaremos, inicialmente, alguns desafios que foram detectados. Em
primeiro lugar verificaremos como foi tratada a questão do nível inicial de escolarização dos professores indígenas. Estes
apresentavam uma enorme diversidade de situações de escolarização e de condições para a atuação como professores
“profissionais”. Não raras vezes os professores indígenas foram designados pelas lideranças de suas comunidades mas estes,
em muitos casos, não apresentavam uma escolarização suficiente para o exercício do magistério. E, também, não
apresentavam um domínio suficiente da língua portuguesa e de outros conteúdos pedagógicos para que pudessem concluir o
ensino fundamental e dar continuidade no ensino médio e superior. Então o grande desafio era o de formar professores
indígenas, membros de suas respectivas etnias, para que assumissem a docência e a gestão das escolas em suas próprias
comunidades.
Para tanto e inicialmente cada sistema educacional estadual organizou o seu próprio processo de formação dos
professores indígenas, preocupados em responder às necessidades particulares de cada situação. Assim ofereceram cursos
especiais de complementação do ensino fundamental e o ensino médio foi revestido de um caráter especial, o Magistério
Indígena. Para a continuidade da formação educacional profissionalizante e para cumprir a legislação em vigor –
Constituição Brasileira e a LDB – os estados ofereceram cursos superiores na modalidade de licenciatura e em situações
especiais.
Um outro desafio foi a questão da formação dos professores indígenas para o exercício do magistério voltado para
uma educação multicultural e principalmente intercultural. A preocupação centrou-se na formação em nível médio e superior.
Ema busca de soluções para essa questão foram arroladas algumas perguntas, tais como: como deveria ser a matriz
curricular de cada curso que seria oferecido aos alunos/professores indígenas? Haveria professores não-indígenas com
formações adequadas para ministrarem as disciplinas desses cursos e que pudessem atender as especificidades requeridas?
Estas foram algumas dentre muitas as perguntas que deveriam ser respondidas. Nesse sentido os estados, através de suas
secretarias de educação, principalmente, organizaram fóruns, seminários, encontros envolvendo as comunidades indígenas,
profissionais ligados a educação, representantes governamentais e a sociedade civil com a finalidade de chegar a um
consenso nas respostas dessas perguntas. Por esse caminho foi possível estabelecer de forma legal a estrutura, a organização
e o funcionamento dos cursos de nível médio e superior para uma formação profissionalizante dos professores indígenas.
Nesse sentido temos, ainda, o Plano Nacional de Educação de 2001, que assegura reivindicações importantes para a formação
de professores indígenas no que se refere a sua formação em nível superior e estabelece que cada Estado brasileiro deve criar
programas especiais para essa situação.
Neste caso, mais especificamente, não restam dúvidas que as discussões giraram em torno da formação dos
professores indígenas com qualidade para o desempenho qualificado da sua importante função, que atendesse as exigências
legais e que o eixo fosse a educação multicultural, intercultural e valorizando a etnicidade.
Assim através desse trajetória permitiu que aos professores indígenas atuassem, de forma crítica, consciente e
responsável, nos diferentes contextos socioculturais nos quais as suas escolas estão inseridas. Desta forma, também, permitiu
que a educação ministrada aos alunos indígenas fosse uma educação de qualidade, isto é, específica, diferenciada, bilíngüe,
intercultural.
Nessa perspectiva a qualificação profissional dos docentes indígenas é condição fundamental para que de fato as
comunidades indígenas possam assumir suas escolas, integrando-as à vida comunitária.
Como resultado dessas discussões apresentamos os seguintes dados do Censo Escolar INEP/MEC que em 2006
apontavam a existência de 2.422 escolas funcionando nas terras indígenas atendendo a mais de 174 mil estudantes em cursos
que vão da educação infantil ao ensino médio. Nestas escolas trabalham aproximadamente 10.200 professores, 90% deles
indígenas. Para ser ter uma idéia desse crescimento em 2002 havia 1706 estabelecimentos escolares com 117.171 alunos
freqüentando escolas indígenas em 24 unidades da federação.
Um outro desafio foi constado no que se referia as funções sociais que o professor indígena deveria assumir dentro
da sua comunidade e na sociedade envolvente. Pelo seu “novo” status social deve cumprir o papel de interlocutor das
relações sociais que se estabelecem dentro e fora da sua comunidade. Esta interculturalidade apresenta-se de forma complexa,
difícil e ingrata pois confere-lhe responsabilidades e tarefas nem sempre simples e fáceis de reconciliar e de intermediar
interesses muitas vezes conflitantes que envolvem duas sociedades distintas.
Estas condições conflitivas são próprias à natureza intercultural da educação escolar indígena. Para tanto a sua
formação deveria incluir os conhecimentos, valores, modos de vida, orientações filosóficas, políticas, econômicas, artísticas e
religiosas próprias à cultura de seu povo e os provenientes da sociedade nacional.
Neste caso, o professor indígena, assume responsabilidades diferentes, novas, ambíguas e específicas que na
sociedade nacional não cabem ao professor.

544
Consideramos as questões aqui analisadas como as mais relevantes para um rápido entendimento da formação
multicultural e intercultural do professor indígena.
Temos a consciência que outras questões foram abordadas em fóruns, seminários, encontros e discussões, mas que
nesse estudo específico não serão comentadas.

A etnicidade e a formação de professores indígenas


A expressão etnicidade apresenta, também, um caráter polissêmico que nesse trabalho não teremos condições de
discutir as suas várias abordagens. Adotaremos um conceito que consideramos suficiente para as nossas discussões. Assim
entendemos a etnicidade como um procedimento de auto-consciência que os agentes sociais de uma determinada cultura
possuem sobre a sua cultura e na qual se sentem culturalmente ligados e pertencentes a esse grupo particular. Os agentes
sociais se identificam culturalmente e se distinguem de outras culturas. Isto não significa que vivem num mundo isolado,
enclausurados ou segregados. Muitas características diferenciadoras facilitam a coesão e a solidariedade social e ao mesmo
tempo servem para distinguir de um outro grupo étnico, dentre elas podemos destacar: a língua materna, a crença religiosa
professada, valores, o modo de produção que garante a sobrevivência, a organização política, o seu percurso histórico, bem
como sua alimentação, o modo de vestir, os adornos, os enfeites e as suas tradições. Como podemos verificar o conceito de
etnicidade é exclusivamente social não se apresentando de forma fechada, estática, segregada ou imutável, ou mesmo
relacionado com as características físico-biológicas dos seus agentes sociais, mas apresenta sim de forma aberta, dinâmica,
variável, renovável, intercambiável e relacionado com a formação étnico-cultural de cada comunidade.
Como já referimos, o mundo globalizado em que vivemos apresenta uma forte tendência às padronizações,
estandartizações e homogeneizações culturais e nesse sentido a etnicidade passa ser um elemento importante para o
reconhecimento, a preservação e o respeito pelas diferentes culturas, principalmente pelas minorias étnicas. A isto deve-se
associar à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos.
Isto pode-se constatar na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, de 2001, que preconiza que esses
elementos são as melhores garantias para a paz e para a segurança internacionais.
O Brasil é formado por uma sociedade multicultural, como já dissemos, bastante complexa e diversa e nesta
diversidade e complexidade destacamos os povos indígenas que ao longo de suas histórias de resistências tem conseguido
manterem as suas culturas. Acrescentamos, agora, a esse multiculturalismo e interculturalismo a pluriétnicidade da sociedade
brasileira.
Destacamos, também, a importância da educação escolar indígena como um fator fundamental no que diz respeito
ao reconhecimento e a preservação da cultura indígena e, nesse sentindo, queremos somar outro elemento importante porém
pouco discutido quando se fala de educação “escolar” indígena – a etnicidade.
Ela esta latente em todas as discussões e muitas vezes relacionadas com a questão da “educação indígena”, pois é
aqui que a etnicidade se manifesta. É através da “educação indígena” que ocorre o processo de endoculturação do indivíduo a
sua cultura. Como o assunto, ainda, é muito pouco discutido a questão da “educação indígena” fica englobada na educação
“escolar” indígena.
Nos documentos oficiais – nacionais e internacionais - já citados, vamos extrair alguns exemplos elucidativos.
O artigo 231 da Constituição Brasileira deixa claro a questão da etnicidade indígena – quando garante que “São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Da Convenção 169 da OIT, 1989, o artigo 1 esclarece a quem se aplica a referida legislação
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de
outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições
ou por legislação especial;
e completa sobre a auto-consciência que os agentes sociais de uma determinada cultura possuem sobre a sua cultura
e na qual se sentem culturalmente ligados e pertencentes a esse grupo particular: “2. A consciência de sua identidade indígena
ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente Convenção.”
E o artigo 5 da Convenção reafirma essa proposta quando diz que:
a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos
povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto
coletiva como individualmente;
b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos;
No artigo 7 percebemos que esses povos tem o direito de regerem seus próprios destinos e suas autonomias
1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo
de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as
terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento
econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e
programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.

545
No parágrafo 2 do artigo 231, da Constituição Brasileira temos que “As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios, dos lagos nelas
existentes. E no parágrafo 5 temos que “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras” exceto em casos
excepcionais.
Quanto ao sistema educacional destacamos o artigo 210 da Constituição Brasileira que afirma que o ensino
fundamental regular pode ser ministrado na língua materna e a de utilizarem processos próprios de aprendizagem.
Da convenção destacamos o artigo 27 onde afirma que
1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e
aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história,
seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais.
Dentro do quadro apresentado como pensar a formação do professor indígena, pois este terá que lidar a) com o
multiculturalismo – ensinando tanto a cultura nacional quanto a sua própria; b) com o interculturalismo – onde muitas vezes
entra em situações culturais conflitantes e c) com a etnicidade – que deve preservar e fazer respeitar os seus valores étnico-
culturais.
Pensamos que isto tem sido um dos maiores desafio para a formação de professor indígenas que assumem no
exercício de sua profissão uma multifuncionalidade educacional.
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI – propõe que “é fundamental que o
professor considere sua comunidade educativa de origem.” Isto é, o ponto referencial para as suas soluções, decisões e
atitudes deve focar para os interesses primeiros da sua comunidade. Para tanto deve envolver a sua comunidade educativa e
não se considerando o único detentor dos conhecimentos, mas ao contrário deve exercer o papel de facilitador, articulador e
ao mesmo tempo intervindo, orientando e problematizando em busca de soluções para os problemas gerados pela situações
de culturalidade, interculturalidade e etnicidade.
Por fim o professor-índio tem como compromisso o de conscientizar sua comunidade que a educação é uma
responsabilidade de todos.

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Unesco.(2001) Declaração Universal da Diversidade Cultural.Paris.

O papel do professor na formação da criança e do jovem em situação de


vulnerabilidade social1

Marisa Irene Castanho


Centro Universitário do Fieo - UNIFIEO
marisa.irene@unifieo.br

Resumo: O objetivo é apresentar alguns resultados de estudos realizados no espaço de um projeto de educação não-formal na periferia de
São Paulo, junto a crianças e jovens que trazem elementos significativos para a identificação do sentido da escola e do papel dos educadores
nos processos educativos por eles vivenciados. Trata-se de crianças e de jovens oriundos de contexto social marcado por índices de pobreza,
desemprego e violência. Para eles, a escola e a educação assumem um valor especial como porta de acesso ao espaço social e ao mundo do
trabalho. No entanto, os dados revelam um sofrimento ético-político advindo de uma vivência cotidiana no espaço escolar marcada pelo
tratamento como inferiores, problemáticos, desinteressados, incapazes. Por outro lado, no Projeto, embora reconhecido como um espaço
significativo onde foi possível fazer amigos, ser valorizados e aprenderem em um ambiente destacadamente mais receptivo do que o

1
Este trabalho decorre da experiência como coordenadora de um Projeto Social voltado ao atendimento de crianças e de jovens na periferia de São Paulo.

546
ambiente escolar, as contribuições efetivas sobre o futuro desses jovens mostram-se tênues. Conclama-se, portanto, para a permanente
reflexão a respeito de políticas educacionais que efetivamente coloquem o professor como mediador de processos onde os sujeitos possam se
sentir atuantes e encontrem canais de expressão de seus conhecimentos, afetos e interesses.
Palavras-chave: criança, jovem, educação não-formal, escola, papel do professor.

Introdução
O debate sobre a Educação envolve vários segmentos da sociedade no panorama da realidade mundial atual. As
agências financiadoras do desenvolvimento pressionam os governos a investirem em planos educacionais com metas e prazos
definidos quanto aos índices esperados de alfabetização da população em geral e do desempenho escolar das crianças e dos
jovens inseridos nos sistemas educacionais. As várias provas de desempenho escolar realizadas tanto em nível local, regional
e mundial pretendem monitorar, a partir dos resultados alcançados, as políticas públicas e a implantação de programas
voltados à diminuição das desigualdades de acesso aos sistemas educacionais e à elevação do grau de desenvolvimento dos
indivíduos e dos grupos.
O Índice de Desenvolvimento Humano - IDH não se mede sem a participação dos indicadores de acesso à
educação, de desempenho educacional e de inserção e participação da população no mercado de trabalho. De acordo com
Gohn (2001), parece haver um consenso em torno da idéia de que a cultura e o conhecimento se transformaram no acesso a
um mundo globalizado, para todos os indivíduos, dos mais variados grupos sociais e culturais, bem como no mais importante
espaço de resistência e de luta social.
A partir dos anos 90 ocorre uma mobilização de vários setores da sociedade, de iniciativas particulares de grupos,
de empreendimentos e de organizações não-governamentais, em decorrência da expansão do setor informal da economia e
das atividades do chamado terceiro setor a elas ligadas. Há uma reestruturação do velho modelo assistencialista e filantrópico
e, em seu lugar, surgem iniciativas de ações em espaços de educação não-formal resultantes de parcerias que se estabelecem
entre as organizações privadas, as comunidades e o estado. Tais iniciativas têm, dentre vários objetivos, os de apoiar e
empreender programas de desenvolvimento e processos de aprendizagem em grupos, em direção à valorização das culturas
em uma sociedade regida pelas mudanças econômicas e no mundo do trabalho, segundo Gohn (2001).
Nesse sentido, as ações se expandem em vários campos e direções, da saúde, da educação, da conservação
ambiental, das artes, da cultura e da preservação de valores e costumes de minorias. Concordo com a autora que a
participação desses vários atores nas políticas sociais de implemento a ações educacionais se tornou “um elemento vivo e
atuante nas sociedades modernas” (Gohn, 2001, p. 83).
Fui protagonista da implementação de uma proposta político-pedagógica (CEC, 2002) dentro de um Projeto Social
resultante da parceria de uma universidade, por meio de sua Diretoria de Extensão, de uma Associação de Moradores de uma
comunidade na periferia de São Paulo e de uma empresa automobilística do Grande ABC, em São Paulo, por meio de seu
Instituto voltado para a responsabilidade social. Tal parceria, firmada em janeiro de 2002, cresceu no desenvolvimento de um
trabalho educacional ao lado dos educadores locais, para o atendimento de cerca de 250 crianças e adolescentes na faixa
etária de 7 a 14 anos com o objetivo de desenvolver habilidades, competências e atitudes pessoais, de participação
democrática e de socialização em um contexto marcado por expressivos índices de pobreza, desemprego e subemprego.
Assumi, em janeiro de 2002, a coordenação das ações dentro desse Projeto e dos trabalhos da equipe que incluía
técnicos, professores e alunos dos cursos de graduação da universidade, e os coordenadores e educadores da comunidade
local. Para o desenvolvimento da proposta, partimos de um levantamento junto aos dirigentes e educadores locais, visando
contemplar conteúdos e estratégias de aprendizagem, com foco nas expectativas da própria comunidade. A proposta incluiu,
desde o início, um programa de capacitação continuada de todos os participantes. O termo “capacitação” foi uma
denominação geral para todos os encontros promovidos com o intuito de realizar o planejamento das atividades a serem
desenvolvidas junto às crianças e adolescentes e, sempre que possível, envolvendo as escolas, as famílias e a comunidade
como todo.
Esse trabalho se estendeu até dezembro de 2005, passou por vários momentos de planejamento e replanejamento
das ações, sempre em termos de participação coletiva. Tais momentos incluíam a discussão da efetividade das ações de
capacitação, de execução, de acompanhamento e de avaliação desenvolvidas ao longo dos quatro anos; o levantamento de
indicadores sobre o impacto do trabalho na formação dos educadores em direção ao seu próprio desenvolvimento na direção
de uma ação educacional coletiva; por fim, o levantamento de indicadores sobre o impacto do trabalho no desenvolvimento,
aprendizado e inserção das crianças e dos jovens nos espaços da família, da escola e do meio social circundante.

Problematização
O contexto social onde o Projeto se insere apresentava, na época da implantação da proposta as seguintes
características, de acordo com dados do IBGE (2000) e da PMSP (2003): - alto índice de analfabetismo; -renda média
familiar em torno de R$ 250,002; - baixa escolarização da população, com média de quatro anos de escola; - população

2
Na época, segundo fonte do DIEESE, o valor do salário mínimo nacional era de R$ 200,00 correspondentes a menos de 100 dólares e o valor da cesta básica era
de 70,53% do valor do salário mínimo. Fonte: http://www.condsef.org.br/links_f_ut_dieese.htm. Acesso em 29/10/2008.

547
predominante de migrantes nordestinos e seus descendentes, com baixa qualificação profissional; - população de jovens
acima da média da população de São Paulo.
A população específica atendida no Projeto era de cerca de 250 crianças e adolescentes na faixa etária de 7 a 14
anos, cujas famílias tinham o seguinte perfil, de acordo com o relatório de avaliação (CEC, 2003): - nível sócio econômico
com renda familiar abaixo de R$ 600, 00, sendo que 60% deles se localizavam na faixa salarial entre R$ 200,00 a R$ 599, 00,
de 16% a 17% das famílias se constituíam de população sem renda ou com renda abaixo de R$ 200,00; a maioria morava em
casa própria e utilizava como meio de transporte ao Projeto a caminhada, num percurso de até 30 minutos; as crianças e
adolescentes eram nascidos em São Paulo, seus pais e avós migrantes nordestinos; a expectativa das famílias em relação ao
Projeto era de complementação escolar; as crianças e adolescentes apresentavam bom quadro de saúde, sem a presença de
doenças crônicas irreversíveis ou relevantes; a escola que freqüentavam era a escola pública situada na abrangência da
comunidade.
A Associação de Moradores, no início da década de 80 tinha como foco a luta pelo direito à moradia e, em meados
dos anos 90, ampliou sua atuação para as questões relacionadas com o combate à pobreza, com a urbanização da favela e, em
especial, com programas educacionais dirigidos à criança e ao adolescente. O Projeto Social resultou dessa iniciativa local e,
nesse sentido, foi considerado pelos representantes da comunidade, no momento do estabelecimento da parceria com a
Universidade, um esforço legítimo de luta em direção ao "empoderamento" da comunidade, que vinha explícito em suas
falas: a presença da Universidade no espaço da comunidade legitima a busca pelo conhecimento e pela educação de
qualidade.
Consideramos, desde o início da parceria, a importância do trabalho com o educador como figura central nesse
processo, visto, de um lado, como elemento potencialmente capaz de desenvolver uma proposta de educação em sintonia com
a realidade do contexto; de outro, fazendo parte da própria comunidade e submetido às mesmas condições culturais, sociais,
políticas e econômicas, o educador deveria superar os limites da própria formação, para dar conta de desenvolver um trabalho
diferenciado e complementar ao das escolas freqüentadas pelas crianças e adolescentes.
De acordo com Basso (1998), a atividade pedagógica do professor é um conjunto de ações intencionais,
conscientes, dirigidas para um fim específico. A finalidade do trabalho docente consiste em garantir aos alunos acesso ao que
não é reiterativo na vida social. Dito de outra forma, o professor tem uma ação mediadora entre a formação do aluno na vida
cotidiana cuja apropriação da linguagem, dos objetos, dos usos e dos costumes é mais espontânea e a formação do aluno nas
esferas não cotidianas da vida social cuja apropriação do conhecimento se dá de maneira sistematizada e formal.
No caso dos educadores locais, os mesmos pressupostos eram válidos e com o acréscimo do que seria específico da
educação não formal. A concepção de educação não formal encontra em Gohn (2001) uma referência significativa como
conjunto de práticas que capacitam os indivíduos para: a organização em função de objetivos comunitários e solução de
problemas coletivos; a aprendizagem de habilidades e/ou o desenvolvimento de potencialidades para o trabalho; a
aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; e a aprendizagem dos conteúdos da escolarização
formal, desenvolvidas com ênfase nas modalidades alternativas e adaptadas à realidade da população atendida.
Nesse sentido, a educação não formal disponibiliza aos sujeitos instrumentos para a inserção na sociedade, no
mundo do conhecimento e do trabalho e sua condição de não formalidade não concorre, não subtrai, não compete, não anula,
mas compõe com a educação formal um direcionamento rumo a uma educação de qualidade, em especial para a população
que dela se encontra excluída.
O desafio da formação do educador local implicou em capacitá-lo para uma atividade educacional, ao mesmo
tempo, semelhante à do professor, considerando-se a prerrogativa do trabalho pedagógico por meio do planejamento e do
desenvolvimento de ações intencionais, conscientes, dirigidas para um fim específico; mas diferente, por não se pautar pelos
currículos formais da escola. Sendo o educador local, um mediador entre os acontecimentos da vida cotidiana na comunidade
e o conhecimento não formalizado pelos planos escolares, cabia-lhe identificar os conhecimentos relevantes, de maneira a
alcançar, no conjunto das atividades, o salto qualitativo no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças e dos
adolescentes.

Hipóteses e Objetivos
Este trabalho tem como objetivo mais amplo apresentar dados de duas pesquisas realizadas junto a crianças e
jovens desse Projeto de educação não-formal, que trazem elementos significativos para a identificação do sentido atribuído
ao papel dos educadores e aos processos educativos por eles vivenciados. O objetivo específico é refletir sobre o papel do
professor como figura central no desenvolvimento e na aprendizagem de sujeitos em situação de vulnerabilidade social.
Os escritos inovadores de Bourdieu (1999), a partir dos anos 1960, referentes à realidade escolar da França
denunciavam os obstáculos cumulativos aos quais as crianças e jovens das classes populares estavam submetidos e que
engendravam as condições objetivas determinantes das reais possibilidades de acesso aos bens culturais e simbólicos, o que
fazia desses sujeitos excluídos sociais, mesmo quando no interior da escola.
É forte sua denúncia ao funcionamento conservador da escola que, a despeito de medidas democráticas de expansão
das vagas ocorridas “na primeira metade do século XX”, não se mostrava aberta suficientemente para a difusão do capital
cultural a todos, mantendo o acesso ao conhecimento segregado aos que, pelo que o autor denominava de “herança cultural”
a ele já tinham acesso (Bourdieu, 1999:57).

548
Tendo como base uma leitura dos fenômenos psicológicos e educacionais orientada pela abordagem sócio-histórica
de Vygotsky (1998), considero que o desenvolvimento e a aprendizagem são dois processos distintos, mas dialeticamente
interligados, assim como os processos de ensino e de aprendizagem. Nesta perspectiva, os homens são vistos como
constituídos historicamente nas e pelas relações concretas promotoras do desenvolvimento. É pela mediação das
aprendizagens, por meio de instrumentos psicológicos, signos e relações mediatizadas com os objetos culturais que os
homens avançam no desenvolvimento enquanto indivíduos e grupos.
Ao estabelecer a unidade, mas não a identidade entre os processos de aprendizagem e os processos de
desenvolvimento, Vygotsky (1998) abre uma importante perspectiva para a análise do papel da escola e do professor como
mediadores dos processos de desenvolvimento da criança.
Vygotsky (2003: 79) discute a natureza psicológica do processo de ensino-aprendizagem, pois, segundo ele, tanto
o professor, como o aluno e o meio existente entre eles são ativos, o que implica em considerar que em seu interior trava-se
“uma luta muito complexa, na qual estão envolvidos milhares das mais complicadas e heterogêneas forças, que ele constitui
um processo dinâmico, ativo e dialético”.
Por todas essas considerações, é possível supor que, embora a escola seja, do ponto de vista de sua relevância
psicológica e social, um importante lugar de transmissão e de produção de conhecimentos, a escola tem sido questionada na
efetividade de suas ações e dos resultados alcançados. Não se trata apenas de abandonar métodos obsoletos de educação, mas
de criar as condições mínimas de igualdade para que a convivência e o compartilhamento das diferenças no interior da escola
ganhem legitimidade; e que se possa estabelecer, efetivamente, uma ponte entre o que está em circulação no interior da
escola e o que está sendo produzido no conjunto da sociedade.
No caso da comunidade aqui estudada, a escola e a educação assumem um valor especial como porta de acesso ao
espaço social e ao mundo do trabalho. Nesse sentido, espero poder contribuir para a permanente reflexão a respeito de
políticas educacionais que efetivamente coloquem o professor como mediador de processos pelos quais os sujeitos sejam
atuantes e encontrem canais de expressão de seus conhecimentos, afetos e interesses e de atendimento de suas necessidades.

Procedimentos metodológicos
Retomo, neste trabalho, duas pesquisas realizadas no período em que coordenei a equipe de professores, de
educadores e de colaboradores dentro do Projeto. A primeira trata-se de uma pesquisa de Iniciação Científica realizada por
Patrícia Batista Marques (Marques e Castanho, 2007), no período de 2005-2006, então aluna do curso de Psicologia, cujo
objetivo era o de investigar o sentido atribuído à escola freqüentada pelas crianças e adolescentes do Projeto Social. A
segunda refere-se a uma pesquisa realizada junto a adolescentes egressos, com o objetivo de verificar qual o sentido atribuído
ao Projeto pelas crianças e adolescentes que dele participaram (Castanho e Nébias, 2008). Uma traz elementos significativos
a respeito do papel do professor e o lugar que ele ocupa na relação pedagógica. A outra destaca os processos educativos e a
relação com os educadores locais vivenciados pelas crianças e pelos jovens quando de sua permanência no Projeto.
A apresentação e discussão dos resultados dessas duas pesquisas têm como foco a reflexão sobre a importância do
papel do professor na formação da criança e do jovem em situação de vulnerabilidade social. Para tanto, procede-se a um
recorte desses resultados, destacando-se os conteúdos que possibilitam colocar em contraste a escola e os professores em
comparação com o Projeto e os educadores.

O sentido da escola
Conforme já informado, uma pesquisa de Iniciação Científica (Marques e Castanho, 2007) propôs-se a investigar,
junto a um grupo de crianças e adolescentes do Projeto, o sentido atribuído por eles à escola entendendo-se que é na vivência
concreta das relações cotidianas no interior da escola, que esse sentido é construído. Foram participantes da pesquisa 23
crianças e adolescentes do Ensino Fundamental II, com idades entre 10 e 13 anos, que freqüentavam o Projeto pela manhã e
iam para a escola à tarde, sendo 12 meninas e 11 meninos que cursavam a 5ª e 6ª série em sua maioria e nenhum referiu
histórico de repetência. Por meio do questionário caracterizou-se o perfil das famílias: a maioria dos pais provenientes da
região Nordeste (11 pais e 19 mães); idades entre 31 e 40 anos; quanto à escolaridade, quatro semi-analfabetos, 19 cursaram
o ensino fundamental, 15 o ensino médio e um, o curso superior; oito não souberam informar o nível de escolaridade dos
pais. As profissões dos pais variavam entre: pedreiro, motorista, gráfico, padeiro, marceneiro, metalúrgico, e as mães eram:
domésticas, costureiras, do lar.
As perguntas orientadoras do estudo foram: Qual a visão de alunos das classes populares sobre a escola? Qual o
lugar da escola em suas vidas, o que ela significa para eles? Se havia uma resistência da escola em relação aos alunos,
igualmente haveria uma resistência à escola por parte deles? O estudo seguiu os moldes de uma pesquisa participante, com
intervenções desenvolvidas pela pesquisadora no campo de estudo, por meio de diferentes formas de expressão, como
entrevistas individuais e coletivas, desenhos, colagens e questionários.
As respostas e produções a partir das atividades propostas resultaram em volume grande de informações que, após a
análise apresentaram-se nas seguintes categorias e núcleos de significação:
Visão Geral da Escola

549
Integraram-se nesta categoria tanto os núcleos de significação positiva, como negativa e de indiferença em relação
à escola. O Quadro 1 apresenta tais núcleos com a freqüência de indicadores que se aglutinam na composição dos mesmos.

Quadro 1: Visão geral da escola


- Insatisfação quanto à escola e reconhecimento de dificuldades que a mesma apresenta (ruim, muito
ruim, insatisfatória). 47
- Satisfação com restrições (mais ou menos boa, boa com restrições). 30
- Satisfação quanto à escola e reconhecimento do valor da mesma (boa, muito boa, satisfatória,
importante). 17
- Ausência de sentido, indiferença, quanto à escola (escola como nada ou simples lugar de objetos). 13

As falas e várias formas de expressão foram marcadas pela negatividade, crítica e até indiferença, sendo visível que
a escola não atendia às suas expectativas, indicando que a qualidade do ensino nas escolas, no caso desses sujeitos, ainda era
um desafio a ser cumprido. As condições apontadas pelos alunos sugeriam um ciclo de exclusão que pode, na verdade, estar
na lógica da inclusão perversa, em que a baixa qualidade escolar é uma estratégia de manutenção dos sujeitos num patamar
subalterno, conforme Cagliari (1997).

Visão da finalidade da escola


Integraram-se nesta categoria os núcleos de significação sobre para que serve a escola apresentados no Quadro 2.

Quadro 2: Finalidade da escola


- Para aprender (matérias em geral, ler e escrever, fazer conta e troco, a trabalhar). 80
- Para conseguir emprego (saber trabalhar, ter uma formação profissional). 18
- Para nada 2
- Para a promoção de socialização secundária 1
- Para falir os alunos 1

Destacou-se que, para a maioria, a finalidade da escola era o aprendizado. Esse resultado contrasta com o número
reduzido de sujeitos, na categoria anterior, que reconheceram que aprenderam algo de fato na escola.
Quanto à presença significativa de respostas em relação à possibilidade de colocação no mercado de trabalho,
ressaltou-se que este olhar pode estar impregnado por uma ideologia pela qual a escola apareceu envolta de uma concepção
pragmática voltada para a produção de mão-de-obra qualificada.

Evocações sobre a escola


Esta categoria contemplou algumas e associações feitas por eles frente à palavra escola, as lembranças que lhes
vinham à mente. Por serem resultado de uma associação livre, compuseram essas evocações vários tipos de conteúdos
permeados pelas contradições presentes. Os resultados dessas evocações apresentam-se no Quadro 3.

Quadro 3: Evocações sobre a escola


- Coisas negativas (insatisfações/falhas acompanhadas de desejo de destruição) 13
- Coisas positivas (satisfações) 6
- Desejos de como a escola deveria/poderia ser 4
- Coisas negativas que para eles têm valor positivo 2

As evocações negativas, em maior número, referiram-se ao que não agradava ao aluno, ou à situação de fracasso,
acompanhadas por desejo de destruição. No entanto, houve também referências positivas, como as aulas de educação física e
de educação artística, ou negativas, que para eles tinham valor positivo, como por exemplo, o excesso de aulas vagas.
Tal ambivalência reforçou a ambigüidade presente nas falas e formas de expressão dos sujeitos, desde o início da
pesquisa. Vygotsky, de acordo com Oliveira (1992) propõe uma visão global do ser humano indicando as necessidades, os
interesses, os impulsos, os afetos e emoções como fundamentais na vida e conduta de uma pessoa. A partir desses
pressupostos foi possível apreender uma ambivalência entre o quanto a escola despertava o interesse dos alunos, o afeto pelo
ambiente escolar, a necessidade pelo ensino e o não reconhecimento do que efetivamente ela lhes oferecia e quanto ao que
deveriam aprender.

Visão do cotidiano da escola e das práticas educativas

550
Integraram-se nesta categoria as respostas a respeito das práticas cotidianas vividas por eles na escola e que se
agruparam sob dois núcleos de significação: das práticas pedagógicas e do gerenciamento da escola pelos seus agentes,
conforme Quadro 4.

Quadro 4: Visão do cotidiano e das práticas pedagógicas


- Práticas pedagógicas (cópias e lição de casa excessivas) 50
- Forma como a escola é gerenciada (aulas vagas, qualidade dos materiais, qualidade do trabalho dos professores).
23

A despeito da literatura que patologiza a pobreza e culpabiliza o indivíduo e sua família por suas falhas, os alunos
apresentaram outros argumentos para o fracasso escolar; referindo-se ao pouco investimento do professor, aos materiais não
adequados e à dinâmica da aula não favorecedora da aprendizagem.

Sobre os agentes institucionais


Esta categoria incluiu as referências feitas aos professores, diretores, inspetores e aos próprios alunos, bem como ao
papel de cada um no ambiente escolar. As respostas agrupam-se no Quadro 5.

Quadro 5: Sobre os agentes institucionais


Sobre o professor
Relação de amor e ódio, decorrente de questão pessoal de gosto do aluno. 26
Abuso de poder (desrespeitosos, autoritários, não agüentam a situação). 24
Qualidade do trabalho do professor (ambivalência quanto ao domínio do conteúdo e à qualidade do
que e como ensinam) 11
Sobre o diretor
Qualidade do trabalho do diretor 3
Abuso de poder 3
Uma questão pessoal de gosto do aluno 2
Sobre o inspetor de alunos
Uma questão de injustiça 1
Uma questão da qualidade do trabalho do inspetor 1
Sobre o próprio aluno
Desrespeito aos professores e às regras 7

Como se apreendeu da leitura dos dados, o maior número de referências dizia respeito ao professor e se
apresentaram como opiniões decorrentes de uma relação de amor e de ódio, de observações sobre a atitude autoritária de
alguns e sobre a qualidade do ensino que ofereciam.
Para Vygotsky (1998) a mediação social na aprendizagem é fundamental, pois é nas inter-relações que o
conhecimento se produz, ele ocorre primeiro entre as pessoas para depois ser internalizado, assim, o papel dos professores é
importante para a ativação do desenvolvimento. Entretanto, grande parte das falas dos alunos desta pesquisa apresentou uma
realidade de desrespeito e dificuldade de mediação aluno-conhecimento.

Visão do outro (pais e colegas) sobre a escola


Esta categoria integrou as significações que os colegas e os pais davam à escola, na visão dos sujeitos entrevistados.
O Quadro 6 apresenta essas percepções.

Quadro 6: Visão dos colegas e dos pais sobre a escola


Quem está fora do ambiente escolar qualifica a escola 9
Quem está dentro do ambiente escolar critica a escola 5

Os colegas, no caso, eram os próprios alunos, que viviam a mesma situação e tinham igualmente críticas à escola,
já os pais, talvez pela maioria não ter terminado os estudos, provavelmente depositavam na escolarização dos filhos um
futuro melhor que o seu.

Visão das condições sociais

551
Nesta categoria agruparam-se as respostas que os sujeitos deram a respeito de questões macro-estruturais, éticas e
sociais que permeiam a escola. No Quadro 7 apresentam-se essas falas agrupadas em dois núcleos de significação: do
descaso de autoridades e do preconceito social.

Quadro 7: Visão das condições sociais


Há um descaso das autoridades políticas com a escola 9
Há um preconceito entre classes sociais 3

As questões relacionadas a falhas no investimento tiveram como foco o descaso dos políticos, o desvio de verbas
que levavam às deficiências materiais e de equipamentos. Referiram-se aos políticos que deveriam oferecer condições
adequadas, e manifestaram a percepção de que, em uma sociedade dividida em classes, só quem tem condições de pagar tem
direito à educação de qualidade.
Os alunos assinalaram que não eram iguais, não tinham direitos iguais e tampouco eram respeitados e isso gerava
um sentimento de raiva em relação àqueles com melhores condições sociais.
Em síntese, as respostas às perguntas orientadoras daquele estudo possibilitaram apreender o sentido da escola para
os alunos e o lugar ocupado em suas vidas. Os sujeitos a perceberam como necessária, importante para o aluno aprender,
conseguir emprego e ser alguém na vida. Entretanto, denunciaram um funcionamento precário, aquém do que deveria,
tampouco como gostariam.
Em relação à suspeita de uma resistência à escola por parte dos alunos, como resposta de reciprocidade à resistência
da escola em relação aos alunos, ela se confirmou. Os sujeitos não esconderam o quanto eles detestavam os professores e os
agentes institucionais, e que não os respeitavam.
Considerando-se o valor do papel mediador do professor no favorecimento das aprendizagens dos alunos,
apreende-se desses resultados, que a distância entre o professor e o aluno abre um fosso, distanciando o aluno de uma real
aproximação com o conhecimento.
De forma complementar a esta pesquisa, realizei, em parceria com outra professora da universidade, um estudo
com egressos do Projeto, cujos resultados nos levariam, como educadores, a ampliar a reflexão a respeito das relações
interpessoais em seu interior e do sentido atribuído pelos próprios favorecidos à educação ali desenvolvida.

O SENTIDO DO PROJETO SOCIAL


Algumas observações desenvolvidas no interior do Projeto e o acompanhamento de algumas rotinas e cenas
chamavam a atenção dos profissionais que nele atuavam. Embora a organização dos espaços, dos horários, das rotinas e das
normas lembrasse a de uma instituição escolar, o envolvimento das crianças e adolescentes, a sua disponibilidade, a vontade
de estarem no local e a convivência com os colegas pareciam mais positivas. Alguns ex-participantes e outras crianças eram
freqüentemente vistos solicitando a sua entrada ou o seu retorno ao local.
A partir dessas observações, é que decidimos, eu e uma professora da universidade (Castanho e Nébias, 2008),
realizar um estudo junto a participantes egressos do Projeto, a partir das seguintes questões: o Projeto atrai as crianças e os
adolescentes? Por quê? As experiências vividas no Projeto são as mesmas vividas na escola? Quais as diferenças? O que se
aprende nele? É o mesmo que se aprende na escola?
O objetivo desse estudo foi o de verificar qual o sentido atribuído ao Projeto pelas crianças e adolescentes que dele
participaram. Foram sujeitos do estudo, 16 adolescentes que haviam freqüentado o Projeto até 2002, 2003 e 2004, sendo
cinco do sexo feminino e 11 do sexo masculino, com idades entre 14 e 17 anos, todos filhos de migrantes de outros estados
brasileiros, com escolaridade até o Ensino Fundamental, em sua maioria, e ocupações para as quais não se exige qualificação
especializada.
Tais características configuram o perfil de famílias das classes populares, submetidas a condições objetivas
determinantes das reais possibilidades de sua inserção social, na visão de Bourdieu (1999). De fato, desprovidas de condições
materiais para o acesso a bens culturais e simbólicos, criando seus filhos no espaço de uma comunidade emergente em grande
centro urbano como São Paulo, as mães em especial, buscavam no Projeto Social a segurança (contra a violência) e a garantia
de uma educação de qualidade (e acompanhamento escolar) para os filhos, enquanto trabalhavam.
Para o levantamento de informações foram realizadas entrevistas coletivas, aplicação de questionário e consulta aos
prontuários.As entrevistas seguiram um planejamento previamente definido por meio de questões que tinham como objetivo
estimular que os participantes falassem sobre sua própria experiência no Projeto, bem como se sentissem provocados a emitir
julgamentos sobre a validade dessa experiência em suas vidas. As perguntas foram elaboradas da forma como seguem: “Se
alguém lhe perguntasse o que você achou do Projeto, o que você responderia?”; “Se um amigo(a) quisesse freqüentar o
Projeto, o que você lhe diria?”; “O que você aprendeu no Projeto é diferente do que você aprende(u) na escola? Em que é
diferente?” “Quem decidiu que você participaria do Projeto?”; “Se você não tivesse participado do Projeto, o que teria feito?
Teria sido melhor?”; “Do que você aprendeu no Projeto, o que serve hoje para a sua vida?”.
Na entrevista coletiva e pela forma dialógica adotada, os sujeitos puderam expressar-se. Suas falas manifestas
foram tomadas no contexto de suas condições sócio-históricas constituintes e por elas foi possível captar os sentidos
atribuídos à sua participação no Projeto. Pela análise de conteúdo foi possível levantar indicadores e organizar “núcleos de

552
significação” de acordo com Aguiar e Ozella (2006), pelos quais se chegou aos vários sentidos e significados similares,
complementares e/ou contraditórios a partir de um processo metodológico construtivo-interpretativo, segundo Gonzalez Rey
(2003).
São os seguintes, os núcleos de significação e seus respectivos conteúdos:

O ingresso no Projeto e as primeiras impressões


O ingresso dos adolescentes no Projeto não foi uma escolha deles, mas uma decisão dos pais como possibilidade de
maior segurança aos seus filhos. A indicação se deu por meio de pessoas amigas, aparentadas, tias, madrinhas e, em um caso,
uma empregada da casa que conheciam o trabalho lá realizado. Todos relataram a resistência inicial que tiveram.

Permanência x resistência
Tal resistência foi sendo superada, ou não, ao longo de sua convivência naquele espaço, de tal forma que houve
diferenças na apreciação do Projeto: para alguns, ele se tornou fundamental, para outros, gerava dúvidas e contradições, em
especial o fato de se sentirem presos, em espaço parecido com o da escola, mas a atenção dos educadores e o cuidado
dispensado a eles os levavam a se convencerem de que ali alguém se importava com eles.

Parceiros e escola: aproximações e distanciamentos


As atividades realizadas e as normas seguidas no Projeto aproximavam-se das presentes nas escolas. No entanto, os
adolescentes perceberam e valorizaram como estas eram trabalhadas no Projeto e, principalmente, valorizaram a postura e as
relações que os educadores estabelecem com eles. Referiram-se a um tratamento diferenciado, aos cuidados e atenção
recebidos e à preocupação real com seus processos de aprendizagem.

Amizades
Os adolescentes atribuíram uma grande qualidade ao Projeto, o de possibilitar novas amizades, bem como o
estreitamento de antigas relações na comunidade. O próprio reencontro com amigos, colegas ou companheiros que não se
viam há algum tempo, no momento da pesquisa, foi propiciador de manifestações e apreciações de afeto e amizade.

O que aprenderam
Para os adolescentes, foi no Projeto que aprenderam a serem educados, a se comportarem socialmente, a assumirem
compromissos, a respeitarem os outros e a se comunicarem, até a comer de garfo e faca. Considerando que estes adolescentes
são, o tempo todo, “seduzidos a ações de desvio de conduta”, pensar que muitos adquiriram força para assumir posições
adequadas e cidadãs, de convívio saudável, coloca-os em um lugar diferenciado e meritoso. Mesmo apontando todo o
aprendizado obtido no convívio, reconheceram a defasagem de conhecimento para o enfrentamento da vida e do mercado de
trabalho. Haja vista, a dificuldade que vinham encontrando em obter um emprego de qualidade e em serem aprovados em
processos seletivos. As maiores dificuldades: de leitura e escrita.

Um olhar retrospectivo
Muitas vezes, é o distanciamento das situações que permite uma apreciação mais objetiva sobre ela. No caso, assim
se manifestaram os adolescentes, afirmando que só perceberam com profundidade o valor da experiência vivida depois que
saíram do Projeto.

Como fechamento: a indignação contra rótulos e assistencialismo


Embora reconhecendo as contribuições para mudanças significativas em suas atitudes e conhecimentos, recusaram-
se a aceitar a atitude assistencialista por parte daqueles que sustentavam o Projeto. Aproveitaram o momento da pesquisa para
indignar-se contra as visões de que, não fosse pelo trabalho ali realizado, eles estariam, fatidicamente, destinados a serem
marginais. Reconheceram que a vida é a dura e que é necessário muita força de vontade para não enveredar por caminhos
perigosos.

Os dados de perfil dos participantes mostrou que, dos dezesseis jovens, apenas quatro deles permaneceram no
Projeto até atingir quatorze anos e completar a 8ª série, dois quais dois informaram estar no 3º colegial no momento das
entrevistas e os outros estudavam, mas não informaram a série. Não relatam ou fazem referência a anseios futuros. Três dos
jovens, dois do sexo masculino e uma do sexo feminino informaram sobre o fato de serem pais e mãe e da necessidade de
assumirem trabalhos para os quais não se exige qualificação (“bico” em loja, entregador em fábrica de colchões, colocador de
persianas, metalúrgico), para o sustento de suas próprias famílias. Um deles aproveitou-se de sua experiência no Projeto e de
sua habilidade como músico para trabalhar como educador em oficina de percussão em outro projeto social da comunidade.
Nas falas dos participantes é inegável o valor que atribuíram às aprendizagens e aos conhecimentos adquiridos
pelas práticas pedagógicas que se organizavam no Projeto em modalidades alternativas e melhor adaptadas à sua realidade,
pela valorização do convívio social, da liberdade de expressão, do desenvolvimento das potencialidades para as
aprendizagens em geral.

553
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados dessas duas pesquisas favorecem um reflexão a respeito dos processos educativos, quer formais ou
não-formais oferecidos às crianças e aos jovens das classes populares. Enquanto tais processos não oportunizarem o real
acesso aos bens e sistemas simbólicos da cultura, não se poderá falar em “aprendizagem política dos direitos dos indivíduos
enquanto cidadãos”, de acordo com a concepção de Gohn (2001) trazida no início deste trabalho.
Em relação às crianças e adolescentes do primeiro estudo, o que se destaca é uma denúncia à situação da educação
pública que vivenciam, bem como o fato de se perceberem negligenciados pela escola, discriminados porque não têm
condições financeiras favoráveis, tendo seu direito à educação de qualidade violado. Os alunos sugerem que os professores
não agüentam as condições de trabalho e são produtos de uma formação insuficiente. O aluno vai para a escola, deposita nela
a esperança de um futuro melhor, mas não consegue aprender, e acaba por desenvolver atitudes negativas em relação à escola
e aos professores, colaborando para a aula não acontecer.
No caso da pesquisa junto a egressos do Projeto de educação não formal do qual participaram, destaca-se o sentido
positivo atribuído por eles à participação em um projeto social, com destaque para a forma como se percebiam tratados pelos
educadores locais. No entanto, aparece também a indignação pela forma assistencialista como por vezes ele é identificado
como recurso que põe a salvo dos riscos da marginalidade um certo contingente de jovens. Procedem as observações contra a
prevalência equivocada da idéia de muitos de que pobreza é sinônimo de marginalidade e de que há uma pré-destinação para
a delinqüência se não houver uma intervenção externa.
Pelo entrelaçamento dos indicadores levantados nas duas pesquisas destaca-se como principal núcleo de
significação a contradição entre o valor atribuído à escola, que não atende às necessidades dos alunos o valor atribuído às
propostas de educação não formal que, no entanto, acabam por expor uma das feridas sociais mais graves: a exclusão pela
manutenção da diferença de acesso ao conhecimento.
Dar voz às crianças e aos jovens possibilitou apreender as raízes de um sofrimento ético-político como decorrência
dos rótulos e atribuições a que estão sujeitos. De suas falas evidenciam-se as limitações dos processos educacionais a eles
oferecidos e da importância do lugar do professor e do educador nesses processos.
Projetos de educação não-formal podem se constituir como possibilidades positivas para a complementação da
educação de jovens em situação de vulnerabilidade, mas não têm o papel e não devem substituir a escola - direito de todos,
que tem o dever não só de atender a demanda, mas elevar qualitativamente os seus jovens para o enfrentamento e a
superação das suas condições sociais e econômicas.

Referências
Aguiar, W. & Ozella, S. (2006). Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos.
Psicologia e Profissão: Ciência e Profissão. Brasília: Conselho Federal de Psicologia - CFP. Ano 26, nº 2, (pp.222-245).
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Trabalho Docente e Processos de Aprendizagem. Analise de uma Política de


Formação Docente no Nordeste do Brasil.

Francisco Alencar Mota


Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
alencarmota@uol.com.br

Ana Joza de Lima


Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
anajoza@yahoo.com.br

Sandra Regina Moraes


Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
sandrinharm@gmail.com

Mayra Fernandes Lima


Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA
mayrinhafs_3@hotmail.com

Resumo: O presente trabalho aborda uma experiência de política de formação docente levada a cabo no município de Sobral, estado do
Ceará, região nordeste do Brasil, cujas políticas públicas educacionais, como um todo, receberam o reconhecimento do Ministério da
Educação desse país, como uma experiência exitosa. Parte desse reconhecimento se deu em função da obtenção de resultados de
aprendizagem, mensurados em termos de um percentual de alfabetização, foco principal das referidas políticas, para isso tendo-se em conta o
trabalho e a formação docente realizada. Os resultados pretendidos se orientam sob a forma de “metas”, mensuradas em termos de
habilidades e competências de leitura e escrita a serem dominadas pelos alunos, em uma determinada quantidade de tempo, sendo tal
processo mensurado quantitativamente sob determinados critérios previamente estabelecidos e avaliado posteriormente. A pesquisa que
embasou esse trabalho, no entanto, após entrevistas com professores envolvidos e análise das políticas educacionais e do trabalho docente,
como um todo, concluiu por apontar determinadas contradições no processo educacional em voga, sobretudo quanto aos sentidos das
palavras “educação” e “aprendizagem”, as questões de autonomia e reconhecimento do professor, enquanto trabalhador social, trazendo à
tona subsídios que contrariam o caráter “exitoso” obtido oficialmente.

Introdução
O presente trabalho enfoca o trabalho docente vividos por professores da rede pública de ensino no Município de
Sobral, Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, cujas políticas públicas (municipais) enfocaram os processos de aprendizagem,
pautadas sob a lógica de “obtenção de resultados”, traduzida em termos de “metas”, que cada professor (e escola) deveria
atingir a fim de que tenham seu desempenho avaliado pelas referidas políticas.
O presente trabalho decorre de uma pesquisa realizada pelos autores, ainda em desenvolvimento, no âmbito do
programa de iniciação científica da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA (PIBIC/CNPq/UVA), sediada no
município e Sobral, Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, onde as políticas públicas educacionais em nível municipal se
pautaram sob a lógica referida acima, que, em muito, reproduz no âmbito da esfera pública, modelos de gerenciamento
oriundos da esfera privado-competitiva.
Tem-se, assim, um exemplo particular de uma apropriação da cultura privado-competitiva oriunda dos setores
privados na esfera pública pelas políticas educacionais que, a despeito de se apresentarem como uma experiência exitosa,
tendo sido assim reconhecida pelo próprio Ministério da Educação do Brasil, evidenciaram também determinadas
contradições que este trabalho aborda.
No que concerne ao trabalho do professor mais especificamente, enquanto trabalhador social, pôde-se perceber
determinadas implicações sentidas quanto às condições gerais do trabalho, a autonomia e os níveis de satisfação.
O reconhecimento do trabalho docente sob essa orientação faz o professor oscilar quanto aos seus sentimentos, e de
uma forma permanente, entre medos, incertezas e expectativas quanto aos resultados pretendidos, dependendo de sua própria
performance individual tal reconhecimento, obtendo “prêmios”, sobretudo pecuniários, quando as metas são alcançadas,

555
numa clara reprodução no âmbito da esfera pública de uma cultura gerencial e de trabalho individualizado da esfera privado-
competitiva.
Por outro lado, as condições precárias da maioria das escolas e, de certa, forma, do próprio sistema educacional,
propiciando situações diferenciadas entre as próprias escolas, somadas a outras determinações, corroboram para que as metas
estabelecidas – concernentes à “alfabetização” – foco central das políticas educacionais, não sejam atingidas por grande
parte dos docentes e das escolas, recaindo sobre o professor individualmente uma grande parte da responsabilidade pelos
resultados, com implicações diretas na sua auto-estima, na estabilidade do seu emprego e na satisfação do trabalho.
Desenvolveremos este trabalho a partir do seguinte percurso: após a introdução, apresentaremos, de forma
abreviada, o contexto histórico-social das políticas públicas no município de Sobral que, dentre outras ações, estabeleceram
um perfil para a formação e trabalho docente, bem como do desempenho. Em seguida, trataremos dos sentimentos alternados
de angústia e reconhecimento vividos pelos professores a partir do que podemos auferir de suas próprias falas quando da
realização da pesquisa, que utilizou sobretudo de entrevistas como os mesmos. Por fim, faremos algumas considerações de
natureza teórica acerca do tema, seguida da conclusão.

Marco histórico inaugural de novas políticas públicas


A década de 1990 foi de grandes desafios para o País, sobretudo quanto à necessidade de se recobrar da
desestruturação sócio-econômica e política, herdada da década anterior por ocasião da redemocratização. O Brasil, desde
então, vinha convivendo com um quadro marcado pela instabilidade política e econômica (ondas inflacionárias,
desaceleração do desenvolvimento econômico, crise fiscal), acentuação das desigualdades sociais, precariedade
administrativa, corroborando uma crise em todos os setores, inclusive na de legitimidade do Estado frente à sociedade
(Oliveira, 1998; Pereira, 1996).
Já no início da década de 1990, quando do Governo de Fernando Collor de Mello, a crise não só se perpetuava,
como também foi agravada, função da opção desmedida por um modelo econômico-administrativo marcado pelas seguintes
características principais: abertura do País a uma concorrência desigual com o mercado internacional, enxugamento
inconseqüente da máquina administrativa e redução predatória do papel do Estado, centralização e intransparência das
decisões e ações governamentais, resultando, como salientou Eli Diniz, na “imposição de sacrifícios drásticos, sem retorno
previsível e sem prazo definido” (Diniz, 1999, p. 184).
Passado o governo de Itamar Franco, que cumpria, sem desmerecimento, um mandato “tampão”, onde diversos
acontecimentos foram significativos, é a partir da segunda metade da década, sob o Governo Fernando Henrique Cardoso, ao
longo de dois mandatos consecutivos, beneficiado pelo instituto da reeleição, que presenciaremos, pela primeira vez, depois
da redemocratização política, uma relativa continuidade de uma política governamental e administrativa, ainda que passível
de análise crítica.
Foram nesses anos, mais precisamente a partir de 1995, que as políticas educacionais no Brasil (e no Estado do
Ceará) se reconfiguraram, sob certas condições de sistematização e regularidade, evidenciando-se, se não a transformação de
fato dos padrões educacionais do país, ponto esse passível de discussão e crítica, pelo menos sua amplitude e efetividade de
várias ações, em caráter nacional, sobre isso estando de acordo até mesmo os ferrenhos críticos da referida política.

Com vistas à consecução desses objetivos, o Governo Fernando Henrique


Cardoso (1995-2002 – grifo meu) , ancorado na ampla hegemonia
conquistada pelo voto, realizou uma mudança abrangente no arcabouço
normativo da educação escolar, no conteúdo curricular e na forma de gestão
do sistema educacional e da escola, utilizando-se majoritariamente da força,
mas também recorrendo ao emprego de mecanismos de busca de consenso.
(Neves, 1999) 1

Vale ressaltar que nesse mesmo período, sob a gestão FHC, o Estado do Ceará atravessa uma semelhante
reorganização de seu sistema educacional, sob o segundo mandato do então governador Tasso Jereissati (1995-2002), tendo
como secretário da educação, o professor, técnico e ex-assessor educacional junto ao MEC, além de ex-coordenador do
Unicef no Ceará, Antenor Naspolini.
Foram os seguintes os elementos característicos principais da recente política educacional brasileira, extensivos aos
estados federados: universalização, financiamento, avaliação, reforma da gestão (descentralização), não sendo difícil concluir
que a educação no País constitui um capítulo da forma como o Estado transformou-se para gerir o desenvolvimento e as
políticas públicas, sob seu mais recente paradigma de gestão – gestão pública gerencial (Pereira e Spink, 2006).

1
“Durante a campanha eleitoral de 1998 para a Presidência da República, as críticas ao Governo FHC nos órgãos de comunicação apontavam para um total
descumprimento (grifo nosso) de quatro das cinco metas do seu primeiro mandato – emprego, segurança, saúde e agricultura. Apenas um dos dedos da mão
direita (as cinco metas de Governo de FHC foram visualmente apresentadas ao eleitor, em 1994, através de uma mão direita espalmada, onde cada dedo
representava uma dessas metas) – o da educação – foi poupado de uma crítica radical. Sabia-se que nessa área alguma coisa havia sido feita, mas não se tinha
uma idéia clara quanto aos seus propósitos e resultados”. (Neves, 1999)

556
A despeito de todo um movimento por parte das entidades organizadas da sociedade civil, em nível nacional,
quando da elaboração de propostas educacionais, sobretudo na década de 1980, destacando-se as lutas e movimentos sociais
em prol da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e do PNE (Plano Nacional de Educação), 2 o Estado
conseguira implementar, de certa forma a revelia de tais entidades, medidas de políticas educacionais, a partir da segunda
metade da década de 1990, sob o governo de FHC, que redefiniram o quadro da educação no país, conferindo os contornos
que temos atualmente.
Isso já se evidencia quando, no primeiro ano de mandato, o governo FHC redimensiona todo o aparato jurídico
escolar, através da criação do Conselho Nacional de Educação – CNE que, a despeito de estar previsto no projeto de LDB,
em tramitação no Congresso Nacional, foi criado, como defende Lúcia Maria Neves, na “contra mão” do processo histórico e
das propostas democráticas, oriundas das entidades representativas da sociedade civil, tendo em vista, na Lei 9.131, de 24 de
novembro de 1995, que o criou, o referido órgão se constituir num órgão de Governo e não num órgão de Estado, com
profundas implicações de sua autonomia (Neves, 1999). Para isso, o Governo FHC recorreu à utilização de PECs, Decretos e
Vetos, fazendo valer e funcionar as medidas educacionais que se sucediam sem que integrassem um projeto educacional mais
amplo, de que carecia o governo (Peroni, 2003, p. 89).
Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) conferem à educação por todo o País uma relativa unidade,
possibilitando o cumprimento da missão do Estado, sob seu novo papel, quanto ao trabalho de coordenação, supervisão e
avaliação educacional, ficando a cargo dos estados e municípios, através das secretarias educacionais e das próprias unidades
escolares, sua utilização, de forma descentralizada, com vista ao aprimoramento da prática pedagógica.
A avaliação tornara-se um item fundamental da política educacional, consistindo numa exigência dos próprios
organismos internacionais que condicionaram seus empréstimos financeiros aos países, mediante avaliação do desempenho
educacional (Soares, 1996). A partir de 1995, com o aperfeiçoamento do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB,
a avaliação sofre mudanças em seu caráter e significado, passando a averiguar o sistema educacional (ao invés de projetos,
como prevalecia em anos anteriores), acerca de alguns itens fundamentais, ligados à nova lógica de gestão das políticas
públicas, em geral, sob o papel de coordenação geral Estado.
No que concerne ao financiamento educacional destacamos o primado da lógica “custo-benefício”, em que se
avalia o custo-aluno-ano, segundo padrões econômicos de mercado, modelo, esse, sugerido pelo próprio Banco Mundial, em
suas políticas educacionais. Tal modelo diz respeito tanto ao FUNDEF (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e Valorização do Magistério), seguido posteriormente pelo FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica),
como ao PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola). O primeiro, constituindo-se a partir de um percentual (15%),
aumentado por ocasião do FUNDEB, da receita oriunda dos principais impostos de estados e municípios, destinado
exclusivamente para a manutenção e desenvolvimento do Ensino Fundamental público, mediante um valor obtido a partir do
custo/aluno/ano, redistribuído entre estados e municípios em função do número de matrículas (Mota, 2005; Pinto, 2000).
O segundo, oriundo do Salário Educação e distribuído através do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação), diretamente para a escola, em função também do número de matrícula, para custeio e manutenção de suas
atividades, dando cumprimento ao preceito “autonomia escolar”, adotado pelo Banco Mundial.
Mais do que o repasse de dinheiro para a escola, pois esse é insignificante, o
programa (PDDE – grifo nosso) objetiva, atualmente, a montagem de uma
estrutura paralela ao estabelecimento para a captação de recursos, o que pode
vir a se adequar à proposta de organizações públicas não-estatais do programa
de reforma do Estado. O projeto de autonomia da escola é uma das estratégias
para que se reduza a ação estatal, através da descentralização do processo de
tomada de decisões e da gestão, movimentando-se em direção à ponta do
sistema para a instituição responsável diretamente pela prestação de serviços.
Aproxima-se, assim, o consumidor do sistema, de forma a este responder às
expectativas do usuário com mais agilidade. Diminui-se, desse modo, a
estrutura hierárquica do sistema, reduzindo-se a distância entre concepção e
execução e assumindo-se a lógica do mercado em sua abordagem neoliberal.
(Peroni, 2003, p. 102)

No Estado do Ceará, a política educacional no período, que tinha como lema “Todos pela Educação de Qualidade
para Todos”, se centrou, na prática, em cima dos seguintes tópicos principais, em consonância com as políticas nacionais,
constituindo-se as prioridades do projeto educacional: 1. mobilização social pela educação; 2. universalização do ensino, na
faixa etária obrigatória, que corresponde ao Ensino Fundamental (7 a 14 anos); 3. permanência na escola (diminuição da
evasão, repetência e reprovação, além da correção das distorções idade/série); 4. financiamento e 5. gestão escolar, com
destaque para os processos de descentralização e municipalização. Os resultados obtidos, se não corresponderam a processos
qualitativos concernentes à aprendizagem, na arena educacional propriamente dito, superaram praticamente todos os

2
Citaremos apenas algumas da principais dessas entidades, dentro das quais várias outras se fizerem representar: Conferência Brasileira de Educação – CBE,
sobretudo por ocasião do Congresso Constituinte, em 1988, e início dos anos 1990; Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública – FNDEP, por um longo
período, inclusive todo o processo de tramitação da LDB, sendo a mais representativa entidade dos movimentos em prol da escola pública, juntamente com o
Congresso Nacional de Educação – CONED; a Federação Nacional de Estabelecimentos de Ensino – FENEM, entidade representativa das escolas privadas;
Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas – ABESC e Associação da Educação Católica – AEC, representativas da educação confessional.

557
indicadores “quantitativos”, e, ainda, corroborando no plano político, para a reordenação das formas de controle, intervenção
e legitimação social pelas elites no poder, através das políticas públicas educacionais.
Assim, já em 1998, ano considerado pelas autoridades governamentais como o da “grande virada” dos indicadores
educacionais no Estado, tendo sido superada as metas propostas no início da década de 1990, o Estado do Ceará alcançava a
universalização do Ensino Fundamental, com o registro de dados que ultrapassam as médias obtidas no Brasil e no Nordeste.
3

Com a modificação de tais indicadores educacionais, até então considerados nos planos nacional e internacional,
como incompatíveis com a perspectiva do desenvolvimento, o Estado do Ceará aparece na mídia nacional e internacional
como uma referência de “ações exitosas”. Isso não significa, porém, que tais resultados atenderam, de fato, às necessidades
educacionais, quanto à transformação dos padrões de qualidade, compreendidos em termos de “satisfação das necessidades
de aprendizagem”, meta internacional deflagrada na Conferência Mundial de Educação para Todos, na Tailândia, em 1990,
que orientou as políticas educacionais nos países mais populosos do mundo, como condição para o desenvolvimento desses
países.
A meta de desenvolvimento econômico-social, a que o “governo das mudanças” se propusera atingir, tendo a
educação como um instrumento estratégico, enquanto “vetor de capacitação da população”, ampliando as possibilidades de
trabalho, reduzindo a pobreza e promovendo a inclusão social e a cidadania, acabou por se limitar às “intenções”
governamentais, contidas nos planos de governo, conforme dados qualitativos e quantitativos que essa pesquisa levantou.
As ações educacionais se centraram, predominantemente, nos aspectos formais, de controle, monitoramento e
gerenciamento da educação, com resultados quantitativos que, a despeito do investimento midiático que tiveram, quando de
sua propagação nos meios de comunicação, se evidenciaram insuficientes para modificar os padrões educacionais, em termos
do fator “aprendizagem”.
Assim, a despeito de as políticas educacionais terem se centrado discursivamente no tema da qualidade, esta teve
seu significado reduzido à função do paradigma da excelência da gestão administrativa e da obtenção de resultados formais e
quantitativos, como sinônimo de eficiência, que acabaram por inverter a ordem da relação ‘fins e meios’, transformando, na
prática, tais resultados em fins, com sérios prejuízos da “vertente” pedagógica, propriamente dita, fato esse evidenciado em
muitas das avaliações de qualidade do processo ensino-aprendizagem, oficiais e não oficiais.
Ainda que a educação viesse a ter sua função ligada às metas de desenvolvimento econômico, conforme explicitado
nos planos de governo, tal perspectiva não se concretizou, pelas seguintes razões principais: primeira, as contradições do
próprio modelo de desenvolvimento, de caráter concentrador e elitista, em quase nada demandando novos padrões
educacionais, que chegassem a visualizar a importância e necessidade da escola pública, sobretudo em termos de preparação
para o trabalho; segundo, o fato de a educação pública no Estado ter fracassado quanto à reversão dos padrões educacionais,
em termos qualitativos, concernentes à satisfação nas necessidades de aprendizagem.
É nesse sentido que este trabalho se debruça sobre as políticas educacionais no município de Sobral, com ênfase
nas condições de trabalho docente, que se explicam e se compreendem em função do que significou tais políticas no contexto
histórico nacional e regional mais amplo, razão de termos traçado o presente percurso expositivo.
Ao longo do período 2001 a 2004 e continuidade nos anos seguintes, o município de Sobral, situado a 230 km da
capital do Estado do Ceará, Fortaleza, Nordeste do Brasil, foi palco de determinadas iniciativas em termos de políticas
públicas de educação, cujas ações, quando comparadas com as das políticas educacionais em nível do Estado, implicaram
num modelo diferenciado, marcado em termos políticos, administrativos e sociais pela ênfase na obtenção de resultados
efetivos de aprendizagem, mensurados em termos de “metas de alfabetização”, sobretudo por ocasião das duas primeiras
séries iniciais, principal foco das referidas políticas.
Esse período correspondeu, em termos políticos e administrativos, ao segundo mandato do então prefeito, Cid
Ferreira Gomes, que atravessava uma fase de estabilização e consolidação administrativa, iniciada por ocasião de seu
primeiro mandato (1997-2000), após um período de crises e instabilidades políticas e administrativas, sob a gestão anterior,
contra a qual emergiu a candidatura de Cid, prometendo administrar a cidade de Sobral, de uma forma moderna, propiciando
as bases de seu desenvolvimento social e econômico.
As ações educacionais sob tais políticas públicas evidenciaram por um lado, aspectos de aparente descontinuidade
com as políticas educacionais no Estado do Ceará (e do Brasil, de uma maneira geral), vigentes no período 1995-2002, ao
enfocar o aspecto qualitativo – a “aprendizagem” – ao contrário das políticas vigentes, com enfoque predominante no
“acesso, 4 ganhando notoriedade e reconhecimento perante o próprio Ministério da Educação, como uma experiência exitosa,
conforme a publicação “Vencendo o Desafio da Aprendizagem nas Séries Iniciais. A Experiência de Sobral, CE,” publicação
esta que abriu a Série “Projetos Boas Práticas na Educação” (citação na referência bibliográfica).

3
Entre 1992 e 1999, a taxa de escolarização das crianças com idade de 7 a 14 anos saltou de 80,8 % para 95 %. Para os jovens com idade de 15 a 17 anos, o
resultado é semelhante, colocando o Ceará como o Estado do Nordeste que possui maior proporção de jovens na escola: 79,3 %. (Ceará. Governador, Mensagem
à Assembléia Legislativa, 2002, p. 17). De acordo com o Unicef, o Estado do Ceará destaca-se ao assumir a 18a. posição no ranking nacional do Índice de
Desenvolvimento Infantil. (UNICEF, Situação da Infância Brasileira, 2001) Em comparação com os demais Estados nordestinos, o Ceará é referência no Ensino
Fundamental com a maior taxa de escolarização líquida, a maior taxa de promoção, a menor taxa de repetência, a menor taxa de abandono e a menor taxa de
distorção idade-série.
4
As políticas educacionais no Estado do Ceará no período 1995 a 2002 são analisadas na pesquisa de doutoramento junto à Universidade Federal do Ceará –
UFC , do autor deste Projeto (citada na Referência Bibliográfica).

558
Enquanto as contradições das políticas educacionais vigentes em nível do governo estadual irrompiam, sobretudo
no ano de 2004, com a crise em torno do problema do “analfabetismo escolar” 5, as políticas públicas educacionais no
município de Sobral ganhavam notoriedade e reconhecimento pelas ações e resultados realizados em prol da alfabetização.
Foram as seguintes as principais ações educacionais que marcaram as políticas públicas no município de Sobral:
Ações voltadas para a alfabetização escolar, sobretudo na primeira série do Ensino Fundamental, desdobrada em
duas (1ª Série Básica e 1ª Série Regular, que antecedem à 2ª Série) a partir do estabelecimento de métodos e teorias
pedagógicas definidas, além de material didático específico para cada uma dessas séries;
Ações de gestão escolar, que implicaram no reordenamento das escolas (junção de escolas para melhor supervisão),
processos de autonomia escolar, escolha meritocrática de seus diretores e coordenadores;
Antecipação da extensão do Ensino Fundamental para 9 (nove) anos, com a entrada no ensino fundamental de
crianças de 6 anos na Primeira Série Básica;
Subordinação do processo educacional a processos de monitoramento, avaliativos (avaliação interna e externa),
com foco na obtenção de metas previamente estabelecidas, destacando-se o acompanhamento individual do aluno,
capacitação e incentivo docente, sobretudo em termos de premiação para o professor alfabetizador e as escolas que obtiverem
melhores resultados, dentre outras ações.
Um marco distintivo fundamental que caracterizou a lógica de gestão dos processos educacionais sob as políticas
de educação no município de Sobral é o “trabalho de resultados”, com foco na alfabetização, definida segundo critérios
objetivos de mensuração e avaliação mediante métodos e teorias pedagógicas estabelecidas, cujas metas de aprendizagem
deveriam ser cumpridas pela escola, para isso tornada “autônoma”, sob permanente capacitação, monitoramento e avaliação
de resultados, com implicações diretas na formação e trabalho docente. 6 A escola passa a perseguir metas estabelecidas em
meio a formas de reconhecimento e premiação mediante incentivo financeiro aos diretores e vice-diretores de escolas,
coordenadores pedagógicos e professores alfabetizadores pela performance no trabalho de alfabetização, sendo acrescido
mensalmente em seus salários determinados valores pecuniários.
Sendo a alfabetização 7 o ponto central das políticas educacionais de Sobral, para o qual convergiam todas as
demais ações educacionais – o reordenamento das escolas, processos de autonomia escolar, escolha meritocrática de diretores
e coordenadores escolares, processos de avaliação interno e externos e formação e capacitação docente –, destaca-se o
trabalho docente pela seguinte razão principal: constituir (o professor) o “principal” elemento (humano), enquanto
“trabalhador”, desse processo, daí nos debruçarmos sobre suas condições gerais de trabalho, enquanto “profissional da
educação”, recortando os aspectos concernentes aos sentimentos e expectativas vividas no trabalho, em meio às relações
sociais e de reconhecimento.
O interesse pelo trabalho docente neste paper se justifica, ainda, pelo fato de as recentes políticas de educação
terem priorizado o trabalho docente a partir da LDB e legislação complementar (Conselho Nacional de Educação) não só re-
significando-o, conceitualmente, como também lhe conferindo políticas específicas quanto à formação, reconhecimento
profissional, dentre outras, nos possibilitando averiguar a partir de um caso localizado – a experiência de Sobral como se
estabelece a relação entre das políticas educacionais nesse município, sob uma lógica específica de implementação pautada
na obtenção de resultados (metas) e o trabalho docente, enquanto trabalho social.

A Alfabetização como foco central das políticas educacionais e as implicações para o trabalho docente.
A alfabetização, conforme já mencionado, tem sido o ponto central das políticas educacionais em Sobral, estando,
assim, diretamente relacionado com o trabalho docente. Nesse sentido, a capacitação docente esteve quase que
exclusivamente voltada para formar o professor “alfabetizador”, daí a aceitação de que para esse objetivo se deveria
constituir uma formação específica, no âmbito da própria Secretaria Municipal de Educação, de forma complementar a que
era ministrada, por exemplo, nas universidades com os cursos de pedagogia e de licenciatura, julgada insatisfatória. Nesse
sentido, uma série de ações e métodos foram implementados visando à efetivação dessa capacitação, culminando com a
criação da “Escola de Formação Permanente do Magistério”. A referida capacitação tem sido ministrada mensalmente,
através de um encontro com 08 (oito) horas de duração, além de em outros eventos especiais. Nesses encontros, os

5
Foi criado, no âmbito do Estado do Ceará, em 2004, o Comitê Cearense para a Eliminação do Analfabetismo Escolar, formado pela Assembléia Legislativa do
Estado e o Unicef, tendo ainda como parceiros várias entidades da sociedade, dentre as quais a Undime, Inep, as universidades Unifor, UFC, UECE, UVA,
URCA, que se mobilizaram, sob a presidência do deputado estadual Ivo Gomes, no sentido de atuarem em prol da solução desse problema. Uma das ações, nesse
sentido, fora um diagnóstico, ao longo de oito meses, realizado em 303 escolas, distribuídas em 49 municípios cearenses, com crianças de 7 a 14 anos, cujos
resultados, apresentados no Plenário da Assembléia Legislativa do Estado, no dia 30 de novembro de 2004, evidenciaram que 41 % dos estudantes, nesse faixa
etária, são analfabetos, ou seja, não conseguem ler escrever ou entender qualquer texto. (Diário do Nordeste, 01 de dezembro de 2004)
6
Desde a década passada (década de 1990), quando se deflagrou novos modelos gerenciais para as políticas públicas, dentre estas as educacionais, articulados os
níveis internacional, nacional e regional, presenciou-se, dentre outras características desses modelos, a importação para a esfera pública, no contexto da reforma
dos estados nacionais, dos aspectos culturais de gestão oriundos da esfera privada-administrativa, servindo como exemplo, no campo das políticas educacionais,
a adoção da “perspectiva de resultados”, mensurada e avaliada, sob a lógica liberal (ou neoliberal) da racionalização, da eficiência, do controle e “custo-
benefício” (Silva, 1994; Gentili, 1995; Oliveira, 2003; Barreto e Leher, 2003).
7
O tema “alfabetização” vem ganhando, nas últimas décadas, um destaque especial, dentre outras questões educacionais, enquanto objeto de especialização
teórica e de análise empírica, destacando-se, dentre outros autores que se debruçaram mais especificamente sobre esse tema, os nomes de Emília Ferreiro, Ana
Teberosky e Magda Soares, cujas obras se encontram na referência bibliográfica.

559
professores eram familiarizados com material didático específico adquirido junto à própria Secretaria Municipal de
Educação, e que deveria ser obrigatoriamente utilizado pelo professor em sala de aula.
Inicialmente, quando da implementação das novas políticas educacionais no município, em 2001, a política
educacional de Sobral teve sua ênfase nas primeiras quatro séries do ensino fundamental e, mais especificamente, nos dois
primeiros anos, alvo de investimentos em prol da alfabetização. Com o passar do tempo e, a partir dos resultados obtidos nas
primeiras séries, a Secretaria Municipal de Educação passou a intensificar a atenção nas séries seguintes. Considerando-se a
ampliação do Ensino Fundamental de 8 para 9 anos, e a entrada da criança de 6 anos nesse nível de ensino, os dois primeiros
anos correspondem à primeira série, desdobrada em 1ª série Básica, para crianças de 6 anos, e 1ª série Regular, para crianças
de 7 anos. A essas séries foram dispensados atendimentos especiais tais como: programa de material didático específico (por
exemplo: programa “Alfa e Beto”, na primeira série básica, e “Letra Mundo” para a Primeira série Regular), treinamentos
intensivos (mensais) com professores alfabetizadores, sobretudo acerca da aplicação desse material nas escolas, além do
reconhecimento dos professores com melhor desempenho, através de incentivos e premiações, bem como da escola, para seus
diretores e coordenadores, processos avaliativos regulares internos (realizado por coordenadores pedagógicos) e externos
(realizado pela Secretaria de Educação do Município) da aprendizagem.
No caso do Município de Sobral, a rede pública só progressivamente vem assumindo o Ensino Fundamental, nível
de ensino no Brasil de competência dos municípios, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996) e Constituição Federal, dadas as condições infra-estruturais e financeiras disponíveis, em acordo
com a Secretaria de Educação Básica (do Estado), ficando ainda as três últimas séries (6ª, 7ª e 8ª ) a cargo da rede estadual, e
a 5ª série tendo sido municipalizada somente em 2001. 8
Conforme depoimentos auferidos de gestores das referidas políticas educacionais, através das entrevistas, o
investimento nas primeiras séries iniciais, com a alfabetização corroboraria para a criação das condições básicas de
aprendizagens nas séries seguintes, tornando tal processo mais facilitado, considerando-se que as dificuldades nestas últimas
séries deviam-se predominantemente às dificuldades de leitura e compreensão advindas das séries iniciais.
Todo esse processo se fez acompanhar de dois tipos de avaliação – interna e externa, sendo a primeira realizada no
âmbito da própria escola, enquanto que a segunda, realizada pela Secretaria Municipal de Educação, através de uma equipe
formada por especialistas de fora da própria escola, orientada para tal fim com periodicidade variada, dependendo da série,
que visitava a escola para, munida de instrumentos avaliativos, auferir os resultados da aprendizagem (e, consequentemente,
do professor). Por ocasião da avaliação externa são auferidos dados concernentes à fluência do aluno (ritmo de leitura
equivalente a pelo menos 60 palavras por minuto, sem gaguejo), obtido mediante a gravação da leitura, e ainda, a
compreensão de texto e conhecimentos de matemática (este último a partir das séries seguintes às séries iniciais). Hoje, para
fins de premiação e divulgação dos resultados obtidos, a Secretaria estabelece a meta de 90 % dos resultados gerais até o
último ano, após progressiva ampliação, tendo-se iniciado pelas duas primeiras séries, mais especificamente alvos de
investimento na alfabetização. 9

Trabalho docente entre o reconhecimento e a angústia


Pode parecer no mínimo surpreendente que uma política educacional reconhecida pelo próprio Ministério da
Educação do País como uma experiência exitosa possa favorecer a sentimentos tão aparentemente díspares como os de
angústia e reconhecimento, vividos em meio ao trabalho docente. Relatos de professores sob as referidas políticas nos dão
elementos para esta conclusão, quando dos resultados da pesquisa que embasou esse trabalho acerca do trabalho docente –
reconhecimento, autonomia, estabilidade, condições para realização. Por outro lado, tal disparidade de sentimentos se
justifica, ainda, em função da contraditoriedade das próprias políticas educacionais, como um todo, como as que passaremos
a expor agora:
Uma dessas contradições diz respeito à perpetuação, sob as referidas políticas públicas, das desigualdades (sociais,
econômicas e pedagógicas) existentes entre as diversas escolas, sobretudo quanto à diferenciação entre escolas rurais (dos
distritos) e urbanas (na Sede), mas também dentro do próprio município, com implicações diretas na performance de cada
uma delas e, consequentemente do professor, quanto à obtenção das metas educacionais estabelecidas. As escolas ainda se
diferenciam individualmente nos aspectos didático-pedagógicos (condições das salas de aula, biblioteca, convênios,
programas, etc), obtendo as que estão melhor aparelhadas, nesse sentido, vantagens no ranking de premiações pelos
resultados alcançados. Segundo depoimento de um dos diretores de uma escola pertencente a um dos distritos – uma escola
com características predominantemente rurais – sua escola ainda demoraria bastante para alcançar as metas estabelecidas,
dadas as condições infra-estruturais humanas, pedagógicas e didáticas existentes.

8
Registre-se que um novo processo de municipalização da educação pública no Estado do Ceará tem início em 1995, antes mesmo da aprovação da Lei
Diretrizes e Bases da Educação – LDB, com a aprovação da lei nº 12.452, de 06 de junho de 1995, estabelecendo, dentre outros, responsabilidades progressivas
para com o ensino público por parte do município, em “acordo com o Estado”. Desde 1995, o Estado do Ceará tem obtido crescentes indicadores de
municipalização, no que concerne às séries do ensino fundamental que passam para o município. Registre-se, ainda, que tal processo despertou várias críticas de
setores educacionais que alegaram ter se dado de forma apressada, sem debates e participação democrática, incorrendo em vários prejuízos para o próprio
município.
9
Em maio de 2008 deu-se a premiação das escolas que obtiveram a meta dos 90 % de aproveitamento, sendo 15 escolas premiadas, de um total de mais de
quarenta escolas.

560
Destacamos, ainda, o centralismo das políticas educacionais implementadas no município de Sobral como mais um
elemento através do qual determinadas contradições são reproduzidas, colocando-se aqui o problema da democratização e
autonomia escolar. Em várias entrevistas, professores confidenciaram o caráter impositivo da política de metas às escolas e
ao trabalho docente, bem como o distanciamento existente entre as equipes de avaliação externa e sua prática pedagógica no
interior da escola, a despeito da proximidade dos gestores municipais da educação com professores e as próprias escolas,
através dos encontros de supervisão sistemáticos, e, ainda, a progressiva adesão às referidas políticas por parte das escolas, ao
longo do processo. Vale destacar que tais políticas nasceram no âmbito das próprias instâncias governamentais, ou seja, no
âmbito da esfera político-administrativa ganhando ao longo do processo, e de forma progressiva, adesão significativa por
parte das escolas e da própria comunidade escolar, o que não minimiza o fato de terem sido centralizadoras. Não foram
políticas que, por exemplo, nasceram de dentro da escola, através de um processo de discussão ampliada com a comunidade
escolar, mas elaboradas por equipes de assessores externos, vários destes contratados de fora da própria cidade, mesmo que a
partir dos problemas educacionais existentes.
Nesse sentido, e como decorrência das contradições acima, o tão propalado processo de “autonomia” das escolas,
divulgado como exemplo positivo de gestão e democratização escolar, estabelecida a “nucleação” 10 das escolas, na realidade
se tornou um critério de eficácia para que as escolas pudessem melhor corresponder às exigências das políticas educacionais,
adquirindo para isso “liberdade” quanto à gestão dos recursos financeiros e pedagógicos, sob um modelo típico da nova
gestão de resultados que adentrou nas últimas décadas os setores administrativos e gerenciais da esfera privado-competitiva.
Tem-se, aqui, um modelo que apesar de público, torna-se privado-competitivo em sua cultura de gestão, ou, ainda, em sua
lógica de ação. (Afonso, 2000, p. 49; Silva, 1994)
E, por fim, as contradições concernentes mais especificamente ao trabalho docente, como se segue: a despeito de os
professores reconhecerem a atuação da administração pública educacional quanto a algumas iniciativas, tais como a
supervisão e capacitação do trabalho docente, revelaram, no entanto, profundas insatisfações quanto aos seguintes aspectos
principais relacionados às condições de trabalho: baixos salários, além de desproporcionais ao aumento das novas
responsabilidades e obrigações decorrentes da política de metas; elevado índice de professores temporários; sentimento de
insegurança quanto à obrigatoriedade de obtenção das metas, e isso pelas seguintes razões: o adicional ao salário na forma de
premiação e incentivo pecuniário em função da obtenção de metas não se torna uma garantia permanente de valorização
salarial, tendo em vista não se constituir valores permanentes incorporado aos salários, permanecendo esses ainda muito
baixos. Quanto ao número significativo de professores temporários, de baixa remuneração, com salários inferiores ao de
outros municípios vizinhos, inclusive com renda per capita mais baixa, indica-nos tratar-se de uma precarização do trabalho
docente, enquanto trabalho social. Em várias escolas o número de professores temporários chega a ser maior do que o
número de efetivos. A política de metas propicia ficar a cargo do próprio professor a ampliação de seu salário, na forma de
premiação pela obtenção das metas individuais, nem sempre isso sendo possível, dadas, como já mencionadas, as condições
infraestruturais pré-existentes diferenciadas de cada escola. Tal política reproduz no âmbito da esfera pública modelos
gerenciais do ethos competitivo e da cultura gerencial sob a ótica de resultados.
A co-existência de sentimentos de busca de reconhecimento e angústia vividos pelo professor, se deve a uma maior
aproximação em termos de controle do trabalho docente, sob uma lógica gerencial de resultados em que escolas e
professores, mais especificamente, são reconhecidos individualmente pelos resultados que apresentam no processo de
alfabetização estabelecido pelas políticas educacionais. Nesse sentido, o trabalho docente é recebido por uma porção
significativa de professores como que submetido a uma “vigilância” de resultados, razão pela qual a avaliação, sobretudo a
avaliação externa, passa a causar momentos de fortes expectativas, inclusive emocionais, tendo em vista que é em função
desta que a performance da escola, e de cada professor, individualmente, é avaliada. Existe como que uma tensão, em forma
de “dever” a cumprir, “meta” a realizar, propiciando uma subjetivação dos resultados educacionais como dependendo da
eficiência individual de escolas e professores, cujos resultados dependem de uma maior eficiência destes. O trecho abaixo,
correspondente á fala de um dos professores entrevistados, nos dão uma aproximação do que sentem parte dos professores:
... É uma coisa que eu sinto; isso é até um desabafo que estou fazendo, pois
existe uma cobrança muito grande em cima dos professores. Os avaliadores
externos parecem conhecer pouco da realidade das escolas, mas são eles que
avaliam, que colocam um resultado no relatório, muitas vezes sem saber
realmente o que acontece nas escolas e na nossa própria prática (...)

... No meio do ano passado a avaliação deu muito baixo; não era o que nós
esperávamos. Alguma coisa deve ter acontecido, pois estávamos muito
otimistas com o nosso desempenho. Mas um avaliador de fora não tem que
conhecer a nossa prática, apenas conferir uma nota no relatório. Isso no dá
uma angústia muito grande. 11

10
A nucleação consistiu-se na transformação de escolas dispersas, embora com estrutura administrativa própria, em anexos de uma escola denominada “Pólo”,
onde se concentraria a gestão, o que implicou na imediata perda de autonomia administrativa dessas escolas dispersas. Tratava-se, em última instância, da forma
através da qual a gestão municipal da educação garantisse um melhor controle do processo educacional, o que implicou também no controle da área educacional
como um todo.
11
Depoimento de um dos professores entrevistados

561
Muito embora as metas propostas para a escola não se consistissem em “normas” que se devessem cumprir, na
prática funcionavam como critérios de reconhecimento de sucesso, obtendo cada escola, Diretor, coordenadores pedagógicos
e e professores que atingissem as metas o “reconhecimento” público e solene pelo êxito, além de premiações, como a
gratificação pecuniária correspondente a uma percentual de seus respectivos salários. 12 Da mesma forma, com relação às
escolas e professores que não atingissem as metas, tais casos soavam como que ainda insatisfatório, independentemente de
uma avaliação mais ampla das referidas políticas que compreendesse o significado da educação sob perspectivas mais amplas
que a concernente meramente aos resultados estreitos da performance de leitura e de escrita individual dos alunos.

Conclusão
Destacamos nesse trabalho, conseqüência de uma pesquisa que vem, ainda, sendo realizada acerca do trabalho
docente no município de Sobral, as ambigüidades experienciadas por professores da rede pública de ensino quanto aos seus
sentimentos acerca de seu próprio trabalho, sobretudo quanto ao reconhecimento profissional, segurança e condições de
realização. Salientamos as ambigüidades em torno de dois sentimentos básicos e contraditórios: reconhecimento e angústia,
vividos pelos professores na busca de atingirem metas previamente e externamente estabelecidas quanto aos resultados do
trabalho de alfabetização de alunos. Ao mesmo tempo, situamos o trabalho docente em meio às políticas públicas
educacionais implementadas no município de Sobral que, como iniciativa político-governamental estabeleceu as referidas
políticas sob uma lógica de “resultados”, definida em termos de “metas”, típica da que comanda, hoje, parte da esfera
privado-competitiva dos atuais modelos gerenciais.
A constatação que este trabalho momentaneamente chegou foi a da existência de uma tensão vivida pelo professor
ao longo de seu trabalho entre, de um lado, se obrigar a atingir as metas de alfabetização estabelecidas pelas políticas
educacionais, no âmbito da escola, como meio de ter seu trabalho e esforços reconhecidos, e, de outro, o risco, em função
sobretudo de dois fatores principais: primeiro, as condições infra-estruturais que dispõem para isso, considerando-se as
diferentes realidades entre as escolas e, ainda, a persistência de contradições inerentes às próprias políticas educacionais,
mencionadas no trabalho; segundo, o próprio processo educacional que, enquanto processo social, possui seu próprio ritmo,
nem sempre coincidente com o ritmo das políticas públicas governamentais, em muitos casos, implementadas em meio a
interesses mais imediatos.
A tensão vivida pelos professores da rede pública municipal de Sobral deve-se, ainda, à centralidade que o trabalho
docente adquire nas políticas educacionais, segundo as quais cabe ao professor novamente o peso maior de responsabilidades
educacionais, em meio ao redimensionamento que o trabalho docente sofreu sob tais políticas, se não em seu todo, pelo
menos em parte, em volta em processos heterônomos, subsumidos em seus objetivos mais explícitos a determinados
resultados de aprendizagens, sob critérios de avaliação previamente estipulados.

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12
Gratificação de R$ 100,00 (cem reais), correspondendo em média a 30 % do piso salarial do professor, instituída por Lei Municipal, aos professores da 1ª série
básica que alfabetizasse 75 % de seus alunos ao final do ano letivo; professores da 1ª série regular que alfabetizasse 90 %; e professores da 2ª e 4ª série que
alfabetizasse 100 %. Tais resultados eram averiguados por avaliadores externos. Além disso, se institui o “Prêmio Escola Alfabetizadora”, através do qual
diretores, vice-diretores e coordenadores pedagógicos e professores era premiados com valores em dinheiro pelas metas alcançadas, como se segue: RS 1.500,00
para diretores, R$ 1.250,00 para coordenadores pedagógicos e vice-diretores e 1.000,00 para professores alfabetizadores

562
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O desafio da aprendizagem contextualizada e as suas implicações na formação do


professor: entre o universal e o particular

Fernanda Lourdes Almeida Leal


Universidade Federal de Campina Grande
lealfernanda@uol.com.br

Márcio Caniello
Universidade Federal de Campina Grande
caniello@ufcg.edu.br

Resumo: O presente trabalho se propõe a discutir os resultados obtidos a partir de uma experiência de extensão, ensino e pesquisa
universitária, realizada no Cariri da Paraíba, situado na região Nordeste do Brasil. Trata-se do Projeto Unicampo, que contribuiu para
expandir e aprofundar a discussão em torno da Educação do Campo no território do Cariri paraibano, modalidade de educação
contextualizada que ainda não se construiu de maneira consolidada no sistema educacional brasileiro. Um dos resultados desta experiência
foi a conquista de um campus da Universidade Federal de Campina Grande, que abrigará em sua estrutura um Centro de Desenvolvimento
Sustentável e formará professores para atuar nas escolas do campo, tendo como referencial a aprendizagem contextualizada. Assim, a
formação do professor deverá ser pensada no sentido de promover um ensino e uma aprendizagem que se voltem à construção do
conhecimento a partir também da realidade dos educandos. Esta perspectiva configura-se como tendo uma clara posição política, pois
defende que a realidade local, particular, deve ser considerada no processo de ensino-aprendizagem como uma estratégia de conhecimento e
reconhecimento da realidade na qual os sujeitos se encontram e a partir da qual podem pensar modos de intervenção e superação de seus
dilemas sociais, econômicos, políticos e mesmo subjetivos. Com esta perspectiva, no entanto, não se nega a importância do conhecimento
universal, sendo que a interface entre este e um modo de construção do conhecimento particular apresenta-se como um desafio à formação
do professor. Este é um dos aspectos que pretendemos desenvolver neste artigo.
Palavras-chave: Aprendizagem contextualizada – Formação do professor – Educação do Campo

Introdução
Em setembro de 2003, iniciou-se na região do Cariri da Paraíba – situado na região semi-árida do Nordeste
brasileiro – uma experiência de extensão, de cunho comunicativo-educativo, denominada Projeto Unicampo. Ela se
caracterizou por reunir professores da Universidade Federal de Campina Grande, pesquisadores nacionais e internacionais,
professores convidados de outras instituições, representantes de entidades locais e de Ongs interessadas em ações educativas,
e, sobretudo, jovens alunos, em sua maioria agricultores, que desejavam pensar o Cariri e desenvolver estratégias de inserção
e intervenção na referida região, com vistas a provocar mudanças estruturais em vários espaços de organização coletiva por
eles identificados, tais como: associações, sindicatos, fóruns etc.
A experiência - que começou pela via da extensão universitária - produziu resultados expressivos, extrapolando o
alcance inicialmente pensado e tomando contornos capazes de trazer para si o olhar de várias instituições – brasileiras e
estrangeiras – interessadas em aprender com ela. Dentre estas, destacamos a Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura – CONTAG -, o Projeto Dom Helder Câmara - filiado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário/FIDA – e o
Cirad – Centre de Coopération Internationale em Recherche Agronomique pour le Dévélopment.
A perspectiva pedagógica adotada pelo Projeto baseia-se no pensamento de Paulo Freire, e extrai deste pensamento
princípios fundamentais à condução do processo ensino-aprendizagem: a postura dialógica como condição para a construção

563
do conhecimento; o entendimento de que extensão é, fundamentalmente, comunicação; a idéia de que o processo de
conhecimento deve ser movimentado pela problematização das questões e não por respostas prontas dadas a ela. No que
tange a este último princípio, vale dizer que se adotou, em lugar da “pedagogia da resposta”, a “pedagogia da pergunta”.
Também, constituiu-se como espinha dorsal do processo educativo a adoção de um conhecimento contextualizado, ou seja:
um conhecimento que leva em conta, de maneira muito relevante, os saberes e fazeres realizados pelos alunos participantes
do projeto. Isto no sentido de proporcionar uma reflexão conseqüente aos dilemas e as prováveis saídas a estes postos pelos
alunos.
Do ponto de vista político-educativo, esta experiência em torno do que se chama “Educação do Campo” –
perspectiva de educação que vem se consolidando no Brasil nesta última década e que reclama para o campo um olhar, uma
política educativa, uma consideração de sua cultura que reconheça o campo como lugar de vida e, logo, de produção dos
meios de existência: econômico, social, cultural, político e subjetivo. Há neste reclame uma chamada para a especificidade do
campo e, neste sentido, a questão da particularidade indicada para ser discutida neste artigo ganha volume1.
Assim, após situarmos brevemente alguns aspectos que conformam a experiência da qual partiremos para produzir
esta reflexão, exibiremos a organização do presente trabalho: num primeiro momento, apresentaremos uma versão do
processo de constituição da Política de Educação do Campo que vem se instaurando no Brasil há pouco mais de duas
décadas. Depois, refletiremos os efeitos ou as conseqüências desta Política naquilo que diz respeito à demanda de uma
especificidade na organização do trabalho escolar, especialmente no que tange às implicações desta especificidade para a
formação do professor.

1. A Política de Educação do Campo – marcos históricos de um processo em construção2


No Brasil, tem sido empreendido um esforço coletivo, de maneira mais consistente desde a década de 1980, para se
implementar o que se denomina Educação do Campo. Esta perspectiva educacional tem seu gérmen já nos anos 1960, quando
ocorreu um vigoroso movimento de educação popular, que buscava, na contramão de modelos educacionais
instrumentalistas, tecnicistas e excludentes, fomentar a participação política das camadas populares, inclusive as do campo, e
criar alternativas pedagógicas identificadas com a cultura e com as necessidades nacionais (Ribeiro apud Brasil, 2007, p. 11).
Tal movimento, embargado pela ditadura militar de 1964, reapareceu, de maneira renovada, a partir dos anos 80 do século
passado. A constituição de 1988 expressa parte do resultado de toda uma luta de movimentos sociais e sindicais que
demandaram, dentre outras coisas, a incorporação do princípio da participação direta na administração pública e também a
criação de conselhos gestores como forma de controle popular nas definições políticas do país (Brasil, 2005, p. 8).
Na esteira deste processo, é importante marcar que, no campo educacional, algumas conquistas ganharam ênfase
com a discussão e conseqüente aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei no. 9.394 de
dezembro de 1996), que, no que tange à Educação do Campo, propõe, por exemplo, em seu artigo 28, medidas de adequação
da escola à vida do campo, questão que até então não havia sido contemplada3. Do ponto de vista das organizações
diretamente vinculadas ao campo, que tiveram papel importante na definição de uma nova agenda educacional que
compreendesse a Educação do Campo, deve-se destacar: organizações e movimentos sociais do campo, a experiência
acumulada pela Pedagogia da Alternância, a pauta de reivindicações do movimento sindical dos trabalhadores rurais etc
(BRASIL, 2005, p. 8). Um outra conquista de fôlego neste percurso, realizada pelos movimentos articulados ao campo
(sobretudo pela Articulação Nacional de Educação do Campo, criada em 1998), foi a aprovação, pela Câmara de Educação
Básica, do Conselho Nacional de Educação (CNE), em 2002, das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo (Resolução CNE/CEB no. 1, de 3 de abril de 2002). Em 2003, o MEC instituiu o Grupo Permanente de
Trabalho Educação do Campo (GPT Educação do Campo) e, em 2004, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD, que contém em sua estrutura a Coordenação-Geral de Educação do Campo.
Dentre as atribuições da referida Coordenação destaca-se: a responsabilidade de articular as ações do Ministério
pertinentes à Educação do Campo, divulgar, debater e esclarecer as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo, junto às instituições que integram os diversos sistemas de ensino e apoiar a realização de seminários
nacionais e estaduais para a implementação dessas ações (Brasil, 2005, p. 8).
Além destes marcos histórico e legal e de se verificar a criação de condições para se avançar no sentido de
implementação de ações pertinentes à consolidação de uma política educacional para o campo, compreende-se como sendo
fundamental para esta política o fomento de uma educação pensada a partir do campo e para o campo. A compreensão que se
tem tido a esse respeito é que se faz importante a mobilização e o questionamento de pressupostos, idéias e conceitos que há
muito foram estabelecidos pelo senso comum em relação ao campo. O questionamento à perspectiva urbanocêntrica, bem
como o cultivo de conceitos relacionados à sustentabilidade e à diversidade, fundamentam, segundo documento produzido
pela SECAD recentemente (2007), a educação do campo, promovendo condições para o estabelecimento de novas relações
entre as pessoas e a natureza e entre os seres humanos e os demais seres dos ecossistemas (Brasil, 2007, p. 13).

1
Para maiores aprofundamentos sobre o que se constitui como Educação do Campo, ler Brasil (2007) e Brasil (2005).
2
Parte do texto que se encontra neste item 1 se encontra em outros trabalhos de nossa autoria, como por exemplo, em Leal (2008).
3
Além do artigo 28, os artigos 3º. , 23, 27 e 61 reconhecem a diversidade sócio-cultural e o direito à igualdade e à diferença, possibilitando a definição de
diretrizes operacionais para a educação rural (Brasil, 2007, p. 16)

564
Dentre as revisões conceituais e paradigmáticas e a conseqüente necessidade de criação de novos paradigmas, mais
pertinentes ao conjunto de preocupações conceituais e estruturais necessárias à construção de uma educação voltada para os
sujeitos do campo, destacam-se algumas diretrizes apontadas no documento Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
das Escolas do Campo: reconhecimento e valorização da diversidade dos povos do campo, formação diferenciada de
professores, possibilidade de diferentes formas de organização da escola, adequação dos conteúdos às peculiaridades locais,
uso de práticas pedagógicas contextualizadas, consideração dos tempos pedagógicos diferenciados etc (Brasil, 2007, p. 17).
Neste sentido, pode-se afirmar que, vinculada à política de educação para o campo, encontra-se também se delineando uma
política para a diversidade, o reconhecimento, o respeito e o incentivo à convivência com a diferença.
A partir destas considerações e da necessidade de se instituir uma política pública educacional voltada aos povos do
campo, condizente com toda uma concepção pedagógica e cultural específica, algumas estratégias têm sido postas em
marcha, sobretudo pela Coordenação-Geral de Educação do Campo, da SECAD/MEC. Estas estratégias podem ser assim
descritas: publicação do caderno Referências para uma Política Nacional de Educação do Campo, em 2003; realização de 25
Seminários Estaduais de Educação do Campo; criação, nestes Seminários, de Comitês Estaduais de Educação do Campo; e,
ações dirigidas à formação inicial e continuada e ao ensino superior. Dentre as ações dirigidas ao ensino superior, destaca-se
o Curso de Especialização em Desenvolvimento Rural Sustentável, que está em fase de conclusão, ação executada em
parceria com a Universidade Federal de Campina Grande.
Enquanto indutora e coordenadora da Política de Educação do Campo4, a SECAD/MEC, nos últimos dois anos,
vem – numa estratégia de ação continuada - empreendendo programas, projetos e atividades com vistas a melhorar a infra-
estrutura física e de equipamentos das escolas do campo; promover a formação contínua de professores, técnicos e gestores
que atuam no Governo Federal, nos estados e municípios; complementar e revisar as normas legais em vigor que dizem
respeito à Educação do Campo e fomentar a pesquisa e a produção acadêmica sobre Educação do Campo nas universidades
brasileiras (Brasil, 2007, p. 24).
Decorrentes destas várias estratégias e ações que desenvolve, os resultados divulgados pela SECAD/MEC apontam
no sentido de afirmar que: a) houve ampliação da consciência do direito por parte dos indivíduos que vivem no campo e,
paralelamente, do cumprimento do dever público por parte de seus gestores; b) temos no país um processo de ampliação da
democracia participativa através da organização da sociedade para o controle social e; c) a política de gestão compartilhada
entre governos e sociedade está sendo firmada, nas três esferas públicas, para condução da Política Pública de Educação do
Campo (Brasil, 2007, p. 25).
Em primeiro lugar, é preciso destacar que o movimento em prol da Educação do Campo é relativamente recente e
está em franco processo de expansão e consolidação. Muitas e avançadas leis estão asseguradas na legislação brasileira. Estas
conquistas se devem a um processo no qual a sociedade inegavelmente está implicada, sendo, pois, também conseqüência de
sua participação ativa na construção de políticas de Governos. A própria Constituição de 1988, bem como a LDB e o Plano
Nacional de Educação dão mostras das ressonâncias da sociedade em ações de Governos, manifestas em dispositivos legais,
políticas públicas e, sobretudo, na efetivação destas políticas, que se dão, por exemplo, através da criação de estruturas, como
a SECAD, e de financiamento destinado a Programas5 e Projetos. Ou seja, para a formulação de uma Política Nacional de
Educação do Campo – democrática, participativa e inclusiva - tem sido fundamental o debate entre Estado e sociedade,
proporcionando a multiplicidade de interlocutores e o respeito às singularidades do campo (Brasil, 2007, p. 24).
Em segundo lugar, a construção de uma Política Pública para a Educação do Campo se fundamenta no
reconhecimento da especificidade do campo, sobretudo dos sujeitos que nele habitam. Esta questão está presente nas
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo, que falamos acima, e na revisão conceitual e
paradigmática necessária à construção de uma educação a partir do campo e para o campo. Assim, as questões da diferença,
da diversidade, da singularidade são fundamentais à consecução dos objetivos pretendidos pela atual perspectiva de Educação
do Campo. Como dissemos, há uma relação intrínseca entre a Política de Educação do Campo e uma Política para a
Diversidade.
Em terceiro lugar, já são percebidos, por parte da Coordenação-Geral de Educação do Campo, da SECAD/MEC,
resultados da Política de Educação do Campo que vem sendo implementada, de maneira mais contundente, desde 1998,
quando foi criada a Articulação Nacional por uma Educação do Campo. Estes resultados, apresentados anteriormente, têm ou
devem ter ressonância na sociedade, sobretudo na realidade dos sujeitos que vivem do e no campo e, particularmente,
daqueles que de maneira direta estão implicados com uma experiência formal de educação: alunos, professores, diretores,
pais.

2. Conseqüências da Educação Contextualizada para a Formação do Professor


Neste espaço, queremos aprofundar o segundo aspecto que destacamos logo acima e que diz respeito à atenção que
é dada pela Política de Educação do Campo brasileira a questões relacionadas ao debate sobre a diferença, à diversidade e

4
Conforme o leitor já deve ter observado, utilizamos as expressões Política de Educação Campo, Política Pública para a Educação do Campo e Política Nacional
para a Educação do Campo. Em conformidade com os documentos que orientam esta discussão, estas expressões, apesar de diferentes, representam apenas
maneiras diversas de falar de um mesmo processo, que diz respeito à Política Pública de Educação do Campo, atualmente em curso no Brasil (Brasil, 2007).
5
O PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária é um bom exemplo de financiamento destinado ao fomento de uma educação
contextualizada à realidade do campo.

565
mesmo à singularidade que envolve os processos de constituição de uma prática político-pedagógica concernente à realidade
do campo.
Pensar tal realidade naquilo que ela tem de específico, de particular, é mexer, dentre outras coisas, com a própria
formação do professor, sobretudo na formação daqueles que deverão atuar em escolas do campo. Por quê? Podemos nos
perguntar. Para responder a esta indagação, queremos, inicialmente, colocar a problemática que envolve pensar o específico,
o singular, a diferença, como categorias que atraem para si complexidades teórico-conceituais que podem se revelar
problemáticas na prática. Ou seja, o que é, ou, o que estamos entendendo, como algo que é da ordem do particular, da
diferença? Para trazer ao debate olhares sobre tal questão, exibiremos posicionamentos de alguns autores que discutem as
tensões que envolvem a compreensão do sentido de diferença.

2.1. O conceito de diferença e as complexidades que o envolvem


Pensar uma educação contextualizada, que atine para a questão do específico, do particular, passa pela discussão,
tão efervescente nos dias atuais, do problema da diferença. Logo a seguir veremos que este debate não é pacífico e que, mais
ainda, o fato de estarmos levantando a bandeira em prol da diferença e da diversidade não garante que atinjamos os objetivos
que idealmente estão postos numa aposta desta natureza. Ou seja, podemos produzir, ao invés da igualdade de condições
pretendidas na educação, por exemplo, processos de classificação, segregação6 e, logo, contribuindo para a manutenção e
acirramento das condições de desigualdades que queremos combater.
Neste sentido, Longman (2002), em seu estudo, ao problematizar a leitura da diferença como deficiência e ao
indicar a produção de padrões classificatórios, que identificam determinados segmentos em suas particularidades – por
exemplo, uma educação voltada para surdos, pessoas com paralisia cerebral etc - revela as “trapaças ideológicas” contidas
nos modelos classificatórios de uma certa “pedagogia da exclusão”. Ela aponta o equívoco de se entender diferença como
deficiência, “tendo como base os padrões normativos hegemônicos” (Longman, 2002, p.4). Seu questionamento incide sobre
os modelos classificatórios que, segundo ela, têm razão de existir no sentido de produzir paradigmas excludentes. Apontar as
diferenças, classificá-las a partir de traços, marcas, faltas, sexos, cor, tem como fundamento a produção da exclusão.
Blanco (1998, p. 7), por sua vez, traz para o debate questões que partilham conosco o cerne da questão aqui
estudada. Ela coloca como um desafio duplo aquilo que a escola precisa enfrentar na atualidade:

conseguir que todos os meninos e meninas de um país adquiram essas bases da cultura que lhes permitam inserir-se
com maior igualdade de condições e, ao mesmo tempo, conseguir conciliar as diferenças individuais; conseguir que todos os
meninos e meninas tenham acesso a essa aprendizagem básica, respeitando as diferenças culturais, sociais e individuais.

Em sua análise, a autora expõe, de maneira expressiva, o difícil caminho a ser enfrentado pela escola, mas também
pela sociedade, de um modo geral, no que tange à relação entre geral e particular, universal e contingente. Ou seja, a escola e
a sociedade, se encontram num momento no qual a discussão sobre o que é da ordem do geral e do que é da ordem do
específico está em pauta. Como respeitar e reconhecer o diferente, a diferença, sem, com isso, tornar esse diferente alheio à
cultura comum de uma sociedade, provocando, assim, uma alienação do sujeito em relação a esta? Por outro lado, de que
maneira favorecer um ambiente propício à promoção de condições de igualdade a todos, sem, com isso, perder de vista as
singularidades de cada um, o específico que possibilita ao sujeito manifestar-se a partir de bases culturais, sociais e subjetivas
próprias?
Numa direção mais filosófica, Santos (2001) estabelece uma articulação entre ética e educação, compreendendo ser
esta uma saída para se produzir uma educação que respeite as diferenças e, como conseqüência, minimize a violência. A
autora retorna à proposta de formação pensada pelos gregos, a paidéia, e enxerga neste horizonte uma possibilidade de saída
aos dilemas que enfrentamos hoje na educação.
Pensar a correlação entre ética e educação na sociedade brasileira significa pensar a sociedade como um todo e
todos os espaços públicos como agentes de educação que devem ser livremente acessados pelos diferentes componentes da
esfera pública, em toda a sua diversidade. A educação para a ética ou uma educação ética pressupõe a construção de
sociedades verdadeiramente democráticas (Santos, 1998, p. 167).
Na perspectiva de Santos, o caminho para o respeito à diferença, bem como a convivência com toda a diversidade
social, estaria alicerçada na educação ética do homem, o que deve ter como condição “a construção de sociedades
democráticas”.

2.2. Do conceito à ação: a formação do professor como processo de articulação entre o universal e o particular
Dos autores acima indicados, destacamos a questão levantada por Blanco (1998) que, como os demais autores,
revela os percalços que se colocam no horizonte educacional quando este se propõe a refletir e enfrentar os dilemas
colocados pela relação universal/particular, igualdade/diferença naquilo que diz respeito a todo um conjunto de elementos
que se fazem presentes no processo educativo, sobretudo escolar. Ou seja, é preciso pensar tais relações no contexto dos
conteúdos escolares, da organização da escola, do debate entre escola e comunidade e da própria formação do professor.

6
Para maiores aprofundamentos sobre a relação educação/segregação, ler Leal e Gorski (2007) e Leal (2007).

566
Entendendo que esta formação – inicial e continuada - não deve se furtar a refletir sobre em que consiste o que é da ordem do
particular e do universal no tratamento das questões que se apresentam na sala de aula - desde os conteúdos até a relação
entre os alunos, por exemplo -, esta formação deve cuidar ainda da “amarração” entre particular e universal – tarefa complexa
já em seu início.
A experiência do Projeto Unicampo, retratada acima, produziu um modo de fazer educativo, orientado para
aprendizagens dos educandos e dos educadores e ofereceu caminhos inspiradores na condução de um modo de operar
educativo capaz de engendrar articulações entre conhecimento universal e particular, possibilitando o diálogo de diferenças
colocadas por seus atores – especialmente educadores e educandos. Os primeiros caracterizados por estar inseridos no
ambiente acadêmico, mais relacionado a conhecimentos de cunho universal. E, os educandos, inseridos na realidade local, de
cunho agrícola, camponês, mais relacionados aos saberes particulares, produzidos pela cultura específica na qual se
encontram, e que é, ainda, caracterizada como tradicional.
O desafio no caso do Projeto Unicampo foi fomentar o diálogo entre estes conhecimentos, provocando a
emergência de um modelo educativo focado na produção de uma saber significativo, porque relacionado à experiência local,
mas, também, porque redimensionado, em termos de reelaboração deste saber, a partir do diálogo com o saber acadêmico.
A escolha por uma relação dialógica como base para movimentar o processo de ensino-aprendizagem do Projeto
Unicampo deveu-se ao fato de se reconhecer que a sua proposta deveria primar pelo incentivo e reconhecimento da expressão
dos “saberes e fazeres” de todos os envolvidos. Neste sentido, pôde-se verificar, de maneira clara, a convivência e efetiva
troca de conhecimentos diversos, podendo estes serem sintetizados na forma de conhecimento acadêmico e conhecimento
“local”, este último próximo do que comumente denomina-se “senso comum”. Mas, por muitas vezes este termo carregar
consigo um sentido menor quando comparado ao saber acadêmico ou científico, optamos por marcar este saber com as
características do lugar onde é produzido. E, além de marcar este saber pelo lugar onde ele se produz, partiu-se do princípio
de que ele é tão legítimo como o é o saber produzido na Universidade.
“Assim, no que diz respeito ao modo como o conhecimento é construído, salienta-se a necessária atenção ao
‘capital cultural’ existente, o qual é continuamente produzido no espaço pedagógico. O conhecimento, nessa perspectiva, não
‘aparece’ importado de uma fonte universitária, cujo veículo seria o professor, mas produz-se continuamente como resultado
da interface entre o saber já consolidado, que é re-significado a cada encontro pedagógico, e o saber que se produz”
(Caniello, Tonneau, Leal et all, 2004, p.8).
Esta perspectiva tem clara influência da estratégia freireana de educação, “que se apresenta não como um ‘manual
ortopédico’ sobre como ensinar, mas como um processo pedagógico, cuja preocupação fundamental consiste em saber ‘o que
significa conhecer’” (Silva, 1999, p. 48). De sua parte, o educador deve saber que conhecer não é transferir conhecimento,
mas criar as possibilidades para a sua produção ou própria construção (Freire, 1999). Assim, em vez da educação bancária,
tão comum nos processos pedagógicos “convencionais”, o educador opta por uma educação problematizadora, a partir da
qual o mundo não é simplesmente comunicado, mas educador e educando produzem, através do diálogo, um conhecimento
do mundo (Silva, 1999).
O diálogo aparece aqui como possibilidade efetiva de vencer o desafio de “amarrar” conhecimento universal e
particular numa construção de conhecimento passível de incorporar o geral e o específico, o igual e o diferente.
Concordando que o diálogo constitui-se como princípio fundamental de relação entre o conhecimento universal e
particular, o Projeto Unicampo ampliou o seu alcance a partir das interfaces que produziu com outras entidades educativas
nacionais e internacionais – como dissemos antes – e, no momento, apresenta-se como “modelo inspirador” dos processos de
formação que serão instaurados no ano de 2009 no campus da Universidade Federal de Campina Grande que será instalado
na cidade de Sumé, situada no Estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil. Neste Campus irão funcionar sete cursos superiores,
distribuídos em duas Unidades Acadêmicas, que irão “dialogar” através de NEPE’s – Núcleos de Ensino, Pesquisa e
Extensão. Esta é uma primeira modalidade de diálogo, que irá fazer interagir professores e conteúdos trabalhados por eles.
Além deste modelo interativo, os próprios cursos primarão, em sua arquitetura curricular, pela ênfase dialogal dos conteúdos
gerais e específicos, expressos tanto nos componentes curriculares, como na articulação entre escola
(Universidade)/comunidade.
Para esta última articulação, será fundamental a utilização do modelo pedagógico denominado Pedagogia da
Alternância, método criado na França em 1935, no povoado de Lot et Garonne. Este método caracteriza-se por fundamentar-
se no tripé ação-reflexão-ação ou prática-teoria-prática. Segundo Silva (2008),
A alternância, enquanto princípio pedagógico, mais que característica de sucessões repetidas de seqüências, meio
escolar e meio familiar, visa desenvolver na formação dos jovens situações em que o mundo escolar se posiciona em
interação com o mundo que o rodeia. Buscando articular universos considerados opostos ou insuficientemente
interpenetrados – o mundo da escola e o mundo da vida, a teoria e a prática, o abstrato e o concreto – a alternância coloca em
relação diferentes parceiros com identidades, preocupações e lógicas também diferentes.
Assim, a Pedagogia da Alternância se apresenta, também, como mais uma aposta metodológica, no sentido de
promover espaços de diálogos entre os saberes originários da realidade de cada sujeito envolvido no processo educativo-
escolar e a própria realidade do conhecimento característico do universo educacional formal. Neste sentido, alguns destes
cursos assinalados acima funcionarão nesta modalidade metodológica, provocadora, sob nossa perspectiva, do diálogo entre
realidade vivida e sistematização desta, possibilitando, assim, que o particular de cada realidade possa emergir para, no
processo de reflexão e sistematização, ganhar estatuto de cunho geral.

567
Este é, pois, um desafio que se coloca à formação do professor que busca ser capaz de acolher a diferença sem
negar o acesso ao universal e, por outro lado, transmitir os saberes conquistados por cada cultura, sem privar os sujeitos da
aprendizagem de expor suas próprias experiências e seus próprios modos de construir conhecimento.

Considerações Finais
No intuito de abrirmos um espaço à reflexão dos efeitos provocados pelo Projeto Unicampo, no sentido de que o
mesmo promoveu um debate em torno da construção do conhecimento, sobretudo dos elementos a serem considerados nesta
construção, especialmente os que dizem respeito aos conteúdos particulares e universais, que sempre estão envolvidos na
referida construção, é que propomos este trabalho. Embora ainda não haja no Brasil um consenso e mesmo uma consolidação
em termos de políticas públicas no que tange à Educação do Campo, há, já, uma considerável produção teórica e uma vasta
experiência prática de iniciativas que colocam como elemento importante à discussão, dentre outros aspectos, o que se
denomina de educação contextualizada. Esta traz em seu cerne a reivindicação de que os conteúdos particulares a cada
realidade das pessoas envolvidas sejam considerados no processo de construção do conhecimento. É sobre esta questão que
colocamos um acento, no sentido de fazer emergir dela um debate fundamental: a relação entre conhecimentos particulares e
universais e os seus efeitos na formação do professor.
Como pode ser observado, apresentamos o Projeto Unicampo e sua perspectiva pedagógica como uma experiência
educativa que se desenvolveu à luz da busca pela interação entre saberes locais e científicos, considerando ambos como
dignos de validade e de importância. A aposta dialógica, fundamentada em Paulo Freire, ofereceu-se como precioso recurso à
experimentação do processo ensino-aprendizagem. Desta experiência, retiramos como um dos resultados a convicção de que
é possível relacionar teoria e prática, universal e particular, geral e contingente no processo de construção do conhecimento.
Para isto, é preciso formar e formar-se nesta perspectiva. Ou seja, entendemos que trabalhar com educação contextualizada
exige, como condição sine-qua-non, uma formação de professores capaz de oferecer aos atuais ou futuros docentes condições
e perspectivas sistematizadas que lhes dêem condições de operar com uma lógica de produção do conhecimento que
possibilite a constante interação entre os conhecimentos universais e disponíveis no repertório produzido pela cultura humana
e aqueles que têm como uma de suas características o frescor da novidade que brota no contingente, na experiência única e
particular de cada sujeito, na relação com sua própria vida. Este desafio é provocador, mas, ao mesmo tempo, instiga à
formulação de novas e melhores formas de produzirmos conhecimento.

Referências
Blanco, R. (1998) Aprendendo em la Diversidad: implicaciones educativas In: III Congresso Ibero-americano de Educação
Especial. Conferência. Foz do Iguaçu, Paraná, (pp. 7-18).
Brasil. (2007). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Educação do
Campo: diferenças mudando paradigmas. MEC, SECAD.
Brasil. (2005). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Referências para
uma Política Nacional de Educação do Campo: Caderno de Subsídios, 2.ed. Brasília: MEC, SECAD.
Caniello, M & Tonneau, J-P. & Leal, F.; Lima, J. P. de & Araújo, A. E. de. (2004) Projeto UniCampo: Uma Universidade
Camponesa para o Semi-Árido Brasileiro. Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande.
Freire, P. (1999). Pedagogia da Autonomia: saberes necessários á prática educativa. 13ª edição. São Paulo, Paz & Terra.
Leal, F. de L. A. (2008). Elementos constitutivos da formação de uma política de educação do campo no Brasil. Campina
Grande: Universidade Federal de Campina Grande, monografia inédita.
Leal, F. de L. A. (2007). Diversidade adversa: efeitos da classificação no contexto contemporâneo da educação. Trabalho
apresentado na VII Jornada da Delegação Paraíba. Campina Grande. Inédito.
Leal, F. de L. A. & Gorski, G. (2007). Nossa diversidade possível: o avesso do avesso?. 13º Encontro de Ciências Sociais
Norte-Nordeste: Maceió: Alagoas.
Longman, L. V. (2002) Classificação: uma pedagogia da exclusão. In: Gestão em Rede. Recife, (pp.11-16).
Santos, Gislene A. dos. (2001). Ética, formação, cidadania: a educação e as nossas ilusões. In: Santos, Gislene A. dos. (org.)
Universidade, Formação, Cidadania:. São Paulo: Cortez.
Silva, L. H. da. (2008). Os Centros Familiares de Formação por Alternância no Brasil.
https://www2.cead.ufv.br/espacoProdutor/scripts/verArtigo.php?codigoArtigo=4&acao=exibir (consultado em 30 de
novembro de 2008).
Silva, T. T. da. (1999). Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias do Currículo. 2ª edição. Belo Horizonte,
Autêntica.

O espaço do professor no cenário global.

568
Dirce Camargo Riani
UNIFIEO-Centro Universitário FIEO
camargoriani@uol.com.br

Resumo: O contexto histórico marcado pelas conquistas das ciências aplicadas e pelas inovações tecnológicas contínuas tem indicado a
educação como um dos fatores decisivos para eclosão e suporte das mudanças, desde a economia e a produção de conhecimentos até o
controle e o processamento de informação. Contudo, o mundo tem descortinado um universo cheio de contradições, intolerâncias,
sobreposição das culturas, agressividades e um acirramento das diferenças (de toda ordem), provocando sérios problemas e desafios para o
campo educacional. Nessa perspectiva, a sociedade tem exigido profissionais mais críticos, com profundos conhecimentos sobre a
problemática da educação, esta, inserida no movimento da globalização, a fim de se evitar um discurso vazio e estático e uma prática
educativa desorientada. Isto solicita a todos: refletir criticamente sobre as crises do professor, sua imagem, valorização, campo de trabalho,
qualificação profissional, entre outros; compreender o significado das suas práticas educativas; desvelar o sentimento de pertença ao cenário
educacional e as possibilidades da construção de sua identidade. Nesse percurso, destacam-se as questões: Quais valores são atribuídos aos
professores pela sociedade contemporânea? Qual a imagem que os professores têm de si mesmos. Qual é o espaço do professor no cenário
atual? Qual o perfil do novo professor? Das investigações realizadas verificou-se a necessidade da reavaliação das ações do sujeito educativo
e do seu espaço no cenário global. Redesenhar o processo de formação do professor, a partir de uma educação, uma ética e uma cultura para
a diversidade, como pontos básicos, conhecimento das inovações tecnologias e capacitação para atuar, face às exigências dos novos tempos.

INTRODUÇÃO.
O contexto histórico da globalização, que se apresenta marcado pelas conquistas das ciências aplicadas e das
grandes inovações tecnológicas contínuas, tem indicado a educação como um dos fatores decisivos para eclosão e suporte das
mudanças desde a economia e produção de conhecimentos até o controle e processamento de informação. Por outro lado, o
mundo tem descortinado um cenário cheio de contradições, intolerâncias, culturas sobrepondo-se a outras, agressividades e
acirramento das diferenças (de toda ordem), resultando em novos desafios aos profissionais da educação e à escola, enquanto
instituição formadora.
Essa situação tem exigido muitas e contínuas pesquisas, em especial sobre a questão da formação dos professores e
educadores em termos internacionais, em razão das novas exigências da sociedade e da identificação do espaço desses
profissionais no cenário mundial.
Com o objetivo de poder compreender essa situação, desenvolvemos uma investigação, a partir do discurso dos
sujeitos, em que são anunciados os encontros e desencontros da profissão, sentimentos e crises que permeiam todo um
trabalho educativo, repercutindo na práxis de cada um. O centro das nossas preocupações tem como foco a questão sobre o
espaço e a valorização dos professores e educadores no mundo globalizado, em meio às adversidades que se apresentam.
Acreditamos que uma política de formação, em âmbito internacional, garantido espaços e valorizando a profissão,
poderá abrir caminhos de solução para os problemas, mas terá que estar revestida de muita seriedade, compromisso e de
decisões conjuntas, entre todos os países. Não é uma proposta nova e nem revolucionária, mas que exige constante revisão e
busca de alternativas, se desejarmos uma educação de qualidade para todos.
Em nossa trajetória de investigação pudemos colher dados sobre as falas dos professores e educadores, por um
longo tempo, que nos permitiram construir o discurso dos sujeitos, numa abordagem interacionista, em que foram
desvelados paradoxos, conexões, idéias, anseio, obstáculos e saídas, entre outros, reafirmando a urgente necessidade de se
redesenhar a proposta e o processo educacional, referente à formação e desempenho dos profissionais da educação para
atender aos reclamos dos novos tempos.

I- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A metodologia aplicada foi a qualitativa com uma abordagem “construcionista”, na linha da Psicologia Social.
Esse trabalho organizado por Lefévre, entre outros, refere-se uma nova abordagem da pesquisa qualitativa, que propõe a
construção do “Discurso do Sujeito Coletivo” (20:2000). Nela foi possível mergulhar nas falas do sujeito, denominado em
nosso trabalho “sujeito interacionista”, por entendermos que as falas dos pesquisados representam ações de reciprocidade, de
interação da linguagem e, também, de fatores subjetivos e objetivos que contribuem para o entendimento das ações que
provocam o repensar e o caminhar juntos.
O tema provocador das investigações girou em torno da questão sobre o espaço e a valorização dos professores e
educadores no mundo globalizado, em meio às adversidades que o mundo apresenta.
Nossa trajetória de investigação durou um longo tempo, visto ter como proposta ouvir as falas dos acadêmicos,
nossos alunos na universidade, que já atuam na área docente e que buscam em continuidade uma formação superior, somados
àqueles iniciantes no processo. Percebemos que mesmo sendo profissionais da educação falavam dos problemas, como se
estivessem de fora, não se identificando nessa situação.
Caminhamos por fora do convencional das técnicas de pesquisa, uma vez que o nosso problema, não se constituiu
em uma definição apriori e distante do pesquisador. Não era nossa intenção apenas relatar passivamente, visto que por uma
questão de coerência, como já nos encontrávamos imersos no cotidiano e familiarizados com os acontecimentos diários, em
contatos diretos com os nossos pesquisados, procuramos estabelecer uma relação dinâmica, viva, entre o observador e o

569
observado, o pesquisador e o pesquisado, o sujeito e o objeto, buscando entender uma teia de significados das representações
e discursos, que contribuem para a construção do conhecimento, no contexto da globalização.
Foi um trabalho exaustivo, mas trouxe um resultado gratificante e revelador, aos nossos questionamentos.
Segue o mapeamento das falas dos sujeitos para atingir as práticas discursivas e poder construir o discurso do
sujeito interacionista e a categorização de análise.

II- DESENVOLVIMENTO
Priorizamos as falas dos acadêmicos que já atuam na área educacional e que têm demonstrado uma certa
conscientização sobre as intenções pedagógicas projetadas para a sua formação, pelas Instituições de Ensino Superior, não
raro, distante do cotidiano.
Conversamos com, aproximadamente, 300 docentes formados em nível médio, em continuidade de estudo no nível
superior, bem como daqueles iniciantes, no período de 2.001 a 2005. Eram acadêmicos de todas as áreas do conhecimento,
mas cursando as licenciaturas, estas voltadas à formação de professores e educadores.
Falávamos de tudo: leis da reforma educacional; situação das escolas; violência; papel da mulher; “status” do
professor; qualidade do ensino; direitos e deveres; conscientização sobre as políticas de educação; salários dos professores;
globalização e exigências atuais; as questões sobre valores; remanescências da cultura; as questões éticas; reciclagem dos
professores; relação aluno-professor; novas tecnologias; mídia etc.
Nessa abordagem metodológica do tipo qualitativa, foram utilizadas técnicas híbridas, passando por história e
relatos de vida, análise de dados do cotidiano, depoimentos escritos, observações nos debates, manifestações orais sobre o
sentido dado às coisas, comportamentos e atitudes, que foram utilizados para a construção do discurso dos sujeitos
interacionistas.
A seguir uma amostragem do trabalho realizado, visto que para um evento desta natureza fica inviável a
apresentação na íntegra dos dados.

1- CONSTRUÇÃO DO DISCURSO DO SUJEITO INTERACIONISTA


1.1- Palavras em destaque do discurso crítico da situação do professor hoje: remanescências, valorização, salários,
desinteresse, respeito, jornada de trabalho, desânimo, extensão, descrédito, relação aluno/professor, depositante de
conhecimento, semi-deus, didática, qualificação, formação.
1.1.1.- IDÉIA CENTRAL:
“O professor perdeu muito o seu valor na sociedade... percebemos essa falta de valores na sociedade em
geral”
1.1.2- Discurso do Sujeito Interacionista (amostragem)
a-“Os baixos salários vêm causando a crescente desprofissionalização dos docentes, descaracterizando a carreira...,
o déficit de professores em algumas regiões facilita o ingresso de profissionais de outras áreas para exercerem a docência.”
b-“Resgatar valores dos professores em um país que não se leva a sério a educação, é constrangedor”.
c-“São inúmeros os problemas que os educadores sofrem para desempenhar sua função, por exemplo: desgaste
físico e mental, salas de aula superlotadas, falta de espaço físico, merenda inadequada, administradores sem compromisso e
mal funcionamento do sistema escolar...”
d-“A imagem do professor é uma unanimidade nacional: estudou pouco, ganha pouco, não tem condições e chance
de melhorar sua formação, nem as aulas que dá. Trabalha muitas horas por semana e lê pouco.”
e-“Hoje com a abertura dos meios de comunicação e a mídia, os pais trabalhando fora o dia todo, o professor
perdeu a sua força e o seu apoio.
1.2- Palavras em destaque do discurso da nova ordem mundial que repercute na ação do professor: globalização,
transformação, culturas, conhecimento, saber, historicidade, transversalidade, desafios, papel da escola, modelos de educação
e ensino, modicabilidade do homem...
1.2.1- IDÉIA CENTRAL:
“ Frente à rápida transformação de uma economia mundial – globalização, a humanidade está adentrando em uma
nova era, repercutindo na ação educativa.”
1.2.2- Discurso do Sujeito Interacionista (amostragem)
a- “Devemos aprender a conviver com o conhecimento informatizado, através da informática, mas não devemos
aprender a viver somente em função dele, ou seja, novo conhecimento não deve ser apenas mecânico, mas também crítico e
interativo.”
b-“É preciso exigir a preparação de um professor mais dinâmico e investigativo.”
c- “Há necessidade que as escolas possuam professores especialistas e demais profissionais que atuem na escola
com a idéia de que o saber é saber fazer.”
c- “o aluno deverá ser capaz de ter habilidades de raciocínio, aptidões e valores, para tanto o professor deverá focar
na aprendizagem e não no currículo, como tem sido.”
e-“Será que as escolas dão oportunidades para que os professores possam se reciclar?”

570
2- As 6 categorias de análise do discurso dos sujeitos interacionistas:
2.1. Discurso das causas da desvalorização
2.2- Discurso da imagem social do professor
2.3. Discurso dos problemas enfrentados e das crises do professor
2.4. Discurso da mudança de imagem
2.5. Discurso da auto-imagem (tomamos aqui dados dos próprios docentes da pesquisa)
2.6. Discurso do papel do professor
Na evolução deste trabalho, tivemos momentos reveladores da situação vivenciada pelos professores e educadores e
a expectativa em realizar seus desejos profissionais, em meio às adversidades.
A análise desses dados revelou a carência de investimentos para formação, capacitação, valorização profissional,
resgate dos valores e atualização didático-pedagógica e tecnológica dos profissionais da educação pelo poder público, face
às novas exigências da globalização. Tudo isso tem feito com que a sua imagem seja depreciada, seus conhecimentos
colocados em dúvida e sua autoridade ferida.
Entretanto, a dimensão dada ás questões da formação e atuação dos professores e educadores é bem mais ampla,
sugerindo uma discussão com teóricos da educação para poder compreender melhor o contexto e dar respostas às questões de
pesquisa.

III- RECOLOCANDO A QUESTÃO FORMAÇÃO : CONVERSA COM ALGUNS TEÓRICOS


Buscamos algumas idéias dos teóricos Fernando Gil Villa (1998-Portugal), Moacyr Gadotti (1990-Brasil) e Celso
dos S. Vasconcellos (1996-Brasil), a fim de discutir e delinear algumas bases para a formação de um novo professor, que a
sociedade planetária está a exigir.
A partir dos argumentos de Villa, o processo de mudança sócio-cultural atual afeta o ensino e os docentes, sendo
difícil falar de profissões no sentido tradicional, visto que segundo a sociologia das profissões, o grupo dos professores não
se identifica com algumas das características da ideologia do profissionalismo. Além disso, o fator “status” das profissões
modelares é questionável, depende de complexos valores sócio-culturais e não é manipulável. Isso mostra que a efetiva
profissionalização dos docentes não garante uma melhoria de sua condição social.
Entretanto, a tendência à especialização no ensino tem recebido críticas negativas uma vez que poderia tirar o
caráter geral da profissão e a perda da visão em conjunto, com demasiada importância às técnicas didáticas, à razão
instrumental como meio de alcançar os fins propostos, ou seja, o sucesso escolar; a focalização na tarefa, com conceitos
estatísticos e inflexíveis, perdendo a intencionalidade ou a expressividade.
Citado por Villa, Perez Gomes sugere que os professores devam ser pesquisadores e que reflitam constantemente
sobre sua prática, melhorando-a, e, Lopez Herrerías acredita que o professor deve enriquecer-se tanto social quanto
culturalmente, usando sua “mestria”, sua “experiência” como retroalimentação.
Na visão de Villa, a formação de futuros professores deveria considerar:
colaboração com os clientes;
comunicação e empatia com os clientes;
ênfase na compreensão holística das situações;
auto-reflexão.
Quanto ás novas especialidades no ensino há opiniões divergentes: alguns acreditam no esvaziamento das
atribuições tradicionais do professor, enquanto outros crêem na contribuição, no acréscimo prestado pelos novos
especialistas. No que se refere às listas de novas funções docentes, percebe-se que é apenas um desmembramento das tarefas
de sempre, uma racionalização e sistematização do que já era feito (transmissão de conhecimentos, auto-avaliação, tornar os
alunos capazes de auto-avaliar-se, avaliar as interações na sala de aula, e as da sala com a família e a comunidade).
Vale citar que para Villa, a especialização deveria atender às necessidades dos estudantes antes que as disciplinas
artificiais existentes; e a função do professor seria fundamentalmente mediadora e flexível.
No passado, o professor era valorizado socialmente e um bem escasso, pois o estudo não era um bem de fácil
acesso. No contexto moderno, o professor (intelectual) integra um grupo profissional da erudição, que possui duas funções
básicas; a pesquisa e a transmissão da erudição.
O acesso das massas à educação (Segunda metade do século XX) ocasionou o declínio das ocupações intelectuais,
dedicadas à transmissão do saber. As críticas às conquistas científicas, às teorias e aos conceitos absolutos como a verdade e
a razão causam a erosão da autoridade docente enquanto intelectual. Os professores são sustentáculos e divulgadores de
determinados valores culturais e morais e, enquanto intelectuais, a razão é a peça mais importante.
Atualmente a multiplicidade de objetivos das pessoas e as muitas maneiras de avaliá-los, a interpretação subjetiva
de qualquer ato, situação ou objeto, faz com que a autoridade intelectual (atributo de “saber Algo”) seja questionado. Isso
provoca uma mudança na imagem do professor – simples profissional que exerce uma função. Nas últimas décadas, a
massificação – ou democratização – da cultura, da arte, da erudição fez com que o conhecimento deixasse de ser um bem
escasso e o professor perdesse sua veneração. Há mais adiante, o progresso tecnológico não consegue impedir as guerras
mundiais, nem satisfazer o questionamento da existência humana.

571
Diante de toda a descrição realizada até aqui, torna-se necessário uma nova definição das relações entre professor e
aluno. Deve-se atentar para as estratégias de resistência (termo surgido no Brasil em 70) que ocorrem na sala de aula. O
descontentamento com a relação pedagógica e a falta de motivação para impulsionar reformas educacionais são reações do
professor frente á perda de sua autoridade intelectual e à desmotivação dos alunos. A procedência social diversa dos alunos, a
perda da autoridade do professor e a fé na ideologia da mudança ilustrada da sociedade utópica, influenciam a educação
pretendida.
A atividade estudantil de anotar as explicações do professor possui uma função defensiva, pois acredita (desenhar
traços) fornece a si próprio um certo relaxamento, um meio para se desligar da atividade acadêmica, inibindo a capacidade
mental e deslocando a energia da mente para a mão. Outra função dessa atividade é do tipo ofensivo, e consiste em fornecer
um meio de contestação da autoridade do professor, pois as mensagens emitidas pelo professor não obtêm respostas do
receptor (ocupado em escrever), e isso pode provocar um conflito interior no professor.
Concordamos com o argumento de Vila quando diz que a escola e o professor não são alheios ao processo de
tecnificação vivido, e novos métodos didáticos são buscados, como os audiovisuais. No seu uso está suposto incremento do
prazer no aprendizado, o que nem sempre é verdadeiro. A razão para os estudantes não reivindicarem com força uma
mudança nos método tradicionais, pode ser o fato de se verem então obrigados a procurar novas formas de resistência à
autoridade (novas relações de subordinação).
Os métodos audiovisuais não resolvem a crise de autoridade do professor e ainda a agrava. Ao deslocar sua
autoridade do campo dos conhecimentos para o dos meios, o professor encontra a concorrência da mídia. Alguns autores
propõe a aliança entre a escola e o lar, através de programas educativos televisionados (nova fórmula para os “deveres de
casa”), controlados a partir das escolas. A questão é que os métodos audiovisuais alteram a imagem tradicional do professor
como líder carismático e transmissor de conhecimentos; o professor deixa de ser imprescindível para os alunos.
As novas técnicas impulsionadas pelos meios audiovisuais, como vídeo e4 computador; que também conta com
vários aspectos a seu favor como motivação do aluno e adaptação da aprendizagem ao ritmo pessoal, podem relegar a tarefa
do professor a tutorias para resolução de dúvidas, e não exigiriam a presença do professor e dos alunos num determinado
espaço. Schaeffer enumera algumas conseqüências: um amplo “declínio” do “poder docente”, o encurtamento do período de
estudos, o recorde do conteúdo dos programas e a redução dos orçamentos.
Deve-se lembrar a dificuldade do aluno para se identificar com o professor. A figura do professor como intelectual
deixa de ser atraente para o jovem estudante. Os estudantes do nível superior preferem identificar-se com eles mesmos
(grupos de iguais), do que com o professor. O aluno universitário de hoje reflete a brecha entre a geração jovem e as gerações
de adultos precedentes.
Nessas circunstâncias, a resistência tem como efeito, embora involuntário, a desestruturação do papel docente
tradicional e da autoridade que lhe correspondia. Mas, apesar da tendência geral, não é fácil chegar a conclusões simples,
visto que a desigualdade global, a necessidade de prestígio e a dependência das origens podem variar em direções diversas.
A escola possui uma certa função reprodutora, sobretudo, através dos professores, pois seleciona os alunos de
acordo com a origem social, concentrando o fracasso escolar nas classes inferiores. O aumento nas taxas de escolarização e o
fato de que o diploma ter que servir para desempenhar vários trabalhos e a denúncia dos mecanismos que fomentam a
desigualdade sócio-educativa, pode ter efeitos positivos para a formação e aperfeiçoamento do professorado.
As pesquisas, de modo geral mostram que as gerações deste século vêm se tornando menos materialistas,
importando-se mais com a participação nas tomadas de decisões, com a proteção da liberdade de expressão, com a
consecução de uma sociedade mais amigável, na qual as idéias tenham mais valor que o dinheiro. Entretanto, seria utópico
deduzir disso um homem ideal completamente desafeiçoado pelo material, solidário e altruísta.
Para Villa, na visão de Durkheim, o aspecto positivo dessa relação com o mundo é a libertação de qualquer
servidão aos modelos do homem, com o ser social existente em cada um que o professor e o intelectual se encarregavam de
inculcar aos alunos. Há uma superposição de identidades. Dessa forma, a função do professor como agente socializador e
como intelectual organizador da experiência no aprendizado, em direção à maturidade dos alunos, torna-se mais difícil.
Contrapondo às idéias de Villa, apontamos o brasileiro Celso dos S. Vasconcellos, estudioso e pesquisador sobre a
formação do educador, o qual em suas escritas, por volta de 1995, já discutia sobre a visão de totalidade de ação educativa
escolar (1995:13).
“Por que há a necessidade de se fazer análise do ponto de vista social e político (macro) com o educador se a sua
atuação imediata é pedagógica, local? Ocorre que sua ação tem a ver com uma opção política, tenha ele consciência disto ou
não, uma vez que, através dela está interferindo no destino da polis, contribuindo para a continuidade do que vem sendo
historicamente, ou para superar algumas de suas contradições, em direção a uma sociedade mais justa, livre e solidária”.
O professor poderia dizer: “Ah, mas eu nunca pensei sobre isto...” Se você não pensou, outros pensaram e se não
tomar consciência e lutar contra, estará reforçando o sistema excludente, ainda que involuntariamente...
A organização do ensino, para a formação do professor precisa basear-se em percepção mais global para poder
ressignificar a respectiva ação educativa. As resistências no desenvolvimento de uma prática transformadora são muitas, e o
professor precisa compreender “...que não se trata apenas de buscar diferentes técnicas pedagógicas”, mas poder escolher a
melhor opção de ensinar, de forma democrática, politicamente significativa.
O autor comenta sobre vários problemas enfrentados pelos professores, no ensino brasileiro, tais como:

572
a) falta de condições de trabalho: péssima remuneração, necessidade de sobrecarregar a jornada de trabalho, muitas
aulas, várias escolas, muitos alunos. Falta de tempo para estudo, para preparação das aulas, para confecção do próprio
material didático, para reciclagem, falta de materiais de apoio etc. falta de recursos para aquisição de livros e revistas ou
participação em cursos de atualização profissional.
b) Formação deficitária; dificuldade em articular teoria e prática: a teoria de que dispõe, de modo geral, é abstrata,
desvinculada da prática e, por sua vez a abordagem que faz da prática é superficial, imediatista, não crítica.
c) Falta de clareza e de definição de uma concepção e postura educacional (fundamentos, princípios, fins da
educação). Ausência de compreensão de como se dá o conhecimento.
d) Desesperança, descrédito na educação; acomodação; descompromisso, falta freqüente. Clima necrófilo de “deixa
disto”, “você não ganha para isto” etc. Falta de companheirismo e de ética profissional. Não engajamento em lutas políticas e
até mesmo sindicais, ou, por outro lado, fechamento corporativista.
e) Dificuldade em “nadar contra a corrente” (conflito de valores, visões de mundo).
Aqui está toda uma situação que o desanima o professor com relação ao bom desempenho da profissão.
A partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, nº 99394/96, evidencia-se a
necessidade de desburocratizar a Educação, promovendo a descentralização do sistema e imprimindo maior autonomia aos
estados, municípios e às escolas. Tais medidas facilitarão o alcance de alguns objetivos, como: promover a integração do
aluno na rede cultural e tecnológica da atualidade, à medida que procura oferecer condições que potencializem as
capacidades individuais e disponibilizem recursos para uma escola mais eficaz.
Dispõe, ainda, sobre a responsabilidade da escola em promover amplas condições e oportunidades de
aprendizagem, estabelecendo a possibilidade de avanço nos cursos e nas séries, escolas de tempo integral, capacitação de
profissionais da Educação, aceleração para alunos com atraso escolar, estudos de recuperação e maior autonomia das escolas
de Ensino Básico e das Universidades. A necessidade de propiciar a todos a formação básica comum, confere maior
flexibilidade no trato dos componentes curriculares.
O acesso de todos os recursos culturais, faz com que a escola atenda a esses objetivos, Para tanto, é necessário uma
proposta educacional que expresse a busca da qualidade da formação a ser oferecida a todos os estudantes. A escola, mais do
que nunca, é um espaço social privilegiado de construção de conhecimentos, significados éticos necessários e constituitivos
das ações de cidadania.
Para o professor, é necessária uma aprendizagem contínua, que lhe possibilite acompanhar a dinâmica do
movimento científico e cultural em que está inserido, para que dele possa participar e nele interferir.
Fazendo uma comparação do texto de Celso dos S. Vasconcellos, as intenções da LDB, e a realidade em que
vivemos, podemos dizer que muita coisa mudou com relação ao ensino, mas não com relação ao professor. Percebemos as
várias mudanças no processo de ensino-aprendizagem, várias aberturas com a flexibilidade no planejamento escolar, novas
formas de avaliação, um acompanhamento contínuo nas recuperações, uma maior liberdade de expressão, tanto do professor ,
como do aluno, melhores condições de trabalho no que se refere a sala ambiente, e tantas outras coisas, porém, com relação
ao que venha a estimular o trabalho do professor pouca coisa foi mudada, nem mesmo quanto á sua formação.
Os professores encontraram-se perante vários paradoxos. Por um lado são olhados com desconfiança, por outro, são
bombardeados com uma retórica cada vez mais abundante que os consideram elementos essenciais para a melhoria na
qualidade de ensino. Pede-lhes quase tudo, dá-lhes quase nada. É por meio destas contradições que os professores têm de
refazer uma identidade profissional, ao nível individual e coletivo. Durante muito tempo os poderes da comunidade e do
professor estiveram em conflito, novos moldes desta relação implica uma compreensão do que hoje se exige da escola, e a
afirmação de que estes poderes são se excluem, mas se incluem para o mesmo projeto de democratização da escola. A escola
e os professores não podem limitar-se a reproduzir um discurso tecnocrático, culturalmente descomprometido.
Para muitos professores, o heroísmo consiste apenas em sobreviver, em não se deixar arrastar pela descrença e pelo
desânimo. Mas quantos dentre eles se mantêm de corpo inteiro, com a consciência de que na profissão docente é impossível
separar o eu profissional e o eu pessoal, sem ilusões que o tempo presente não está para tal, mas a certeza que ser professor é
uma profissão que só assim vale a pena ser vivida. Uma educação de qualidade aumenta a produtividade econômica,
desenvolve um moral social e psicológico mais elevado e proporciona um senso maior de participação social e política, à
medida que a população conquista seus direitos. Essa participação gera um “desenvolvimento mais profundo”, abrindo
caminho para mudanças estruturais de longo prazo, sustentadas pela capacidade das pessoas de melhorar suas próprias vidas.
Os ideais dos professores estão perdidos nas teorias e nos sonhos que ele possui. O próprio sistema educacional,
através da Lei de Diretrizes e Bases, abriu inúmeras chances de o aluno crescer como pessoa, porém nada se observa no lar,
na escola e na mídia, que o estimule ou o ensine a aproveitar esse tempo escolar para se dedicar à sua formação cultural e
profissional. O professor poderia pôr em prática todos os seus sonhos através de uma grande dedicação ao ensino-
aprendizagem, pois estaria tendo um retorno satisfatório, uma vez que todos estariam falando a mesma linguagem, a de
manter a ética, a moral e os bons costumes. Teríamos uma sociedade saudável, comprometida com o seu próprio futuro, bem
como o de seus filhos, visando um crescimento econômico, onde não tivéssemos mais índices tão altos de criminalidade,
desemprego e desajustes familiares.
Mas para se ter um professor e educador com novo perfil é preciso delinear uma nova postura pedagógica que
permita fluir com mais qualidade e competência das ações educativas, voltadas para a interação desses sujeitos, no sentido de
produzirem um trabalho mais eficiente. Quer nos parecer que a pedagogia interacionista, na visão de Gadotti, com seus eixos

573
fundantes no pensamento dialético e na psicogenética, pode ser o caminho certo, pois não centra o ato pedagógico, como
requer a pedagogia liberal do nosso tempo, no professor ou no aluno, mas numa pedagogia que considera o homem enquanto
ser político, trabalhando a libertação histórica na contemporaneidade.
Revendo as tendências pedagógicas, na história da formação de professores e educadores, temos a chamada
“Pedagogia Tradicional” que é uma educação centrada no professor e sua metodologia na exposição oral dos conteúdos,
seguindo passos pré-determinados e fixos em que a prática pedagógica é caracterizada por sobrecarga das informações
passadas aos alunos, tornando o conhecimento pouco significativo e burocratizado. Aqui o professor ocupa papel central no
processo de ensino e aprendizagem, organizando os conteúdos e estratégias de ensino.
A Pedagogia renovada ligada ao movimento da Escola Nova ou da Escola Ativa, assume um mesmo princípio
norteador de valorização do indivíduo como ser livre, ativo e social. O centro da atividade escolar não é mais o professor,
nem os conteúdos disciplinares, mas sim o aluno ativo e curioso. A postura do professor é o facilitador no processo de busca
de conhecimento do aluno, organizando e coordenando as situações de aprendizagem.
O chamado “tecnicismo educacional”, inspirado nas teorias behavioristas da aprendizagem e da abordagem
sistêmica do ensino, na década de 70, define uma prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor com
atividades mecânicas inseridas numa proposta educacional rígida e passível. O professor passa a ser um mero especialista na
aplicação de manuais e sua criatividade fica dentro dos limites possíveis e estreitos da técnica utilizada.
No início de 80, constituíram-se as denominadas Pedagogia Libertadora e Pedagogia Crítico- Social dos conteúdos,
ambas propondo uma educação crítica a serviço das transformações sociais, econômicas e políticas para a superação das
desigualdades existentes no interior da sociedade. A Pedagogia Libertadora, com origens no movimento da educação popular,
no final dos anos 50 e início dos anos 60, interrompida pelo golpe militar de 1964, e retomada no início dos anos 80, temos
uma proposta pautada em discussões de temas sociais e políticos e em ações sobre a realidade social imediata, analisando-se
os problemas, os fatores determinantes e estruturando-se uma forma de atuação para que se possa transformar a realidade
social e política, em que o professor é um coordenador de atividades, que organiza e atua conjuntamente com os alunos.
Quanto à Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, sugerida no final dos anos 70 e início dos anos 80 tem-se uma
reação de alguns educadores, que não aceitam a pouca relevância que a pedagogia libertadora dá ao aprendizado do chamado
‘saber elaborado’, historicamente acumulado, e que constitui o acervo cultural da humanidade, compreendendo que não basta
ter como conteúdo escolar as questões sociais atuais, mas é necessário que se possa ter o domínio de conhecimentos,
habilidades e capacidades para que os alunos possam interpretar suas experiências de vida e defender seus interesses.
Retomando as preocupações do projeto de investigação, estabelecemos relações com os pensamentos dos teóricos
estudados, com a fala dos sujeitos e com a nossa visão crítica de profissional da educação, em que pudemos evidenciar que
essa situação sempre se manteve no mesmo universo de constatação e de perspectivas. Ficou claro, também, o anseio de
todos por uma renovada e verdadeira política de formação e valorização dos profissionais, em âmbito mundial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesses estudos realizados fica claro que a oposição às tendências tradicionais, para além da linha progressista
construtivista, é a pedagogia interacionista que propõe a formação do homem pela elevação da consciência coletiva. Aí, a
educação pode ser identificada com o processo de humanização.
A pedagogia toma novos caminhos quando se volta para os interesses da maioria da população, não só no sentido
da formação de sua consciência, enquanto ser que existe, mas no sentido da convivência, do interacionismo, do coletivo.
Como afirma Gadotti (1990-150):
“ela supera a velha teoria sociológica da educação fundada no determinismo social, teoria conservadora segundo a
qual a educação reproduz apenas as condições de classe de cada indivíduo, predestinando-o aos planos e destinos de sua
classe. A escola não é um feudo da classe dominante; ela é um terreno de luta entre a classe dominante e a classe explorada.
Ela é o terreno em que se defrontam as forças do progresso e as forças conservadoras. O que se passa na escola, reflete a
exploração e a luta contra a exploração. Ela é simultaneamente reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão
da ideologia oficial; mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de libertação. A escola é uma instabilidade,
mais ou menos aberta a nossa ação".
Este trabalho demonstrou a urgente necessidade de uma política renovadora, de todos os paises, voltada à formação
dos profissionais, a partir de uma pedagogia criativa, progressista e interacionista, visando uma atuação com competência
tanto no ensino como na gerência da escola pública, na atualidade, sob um novo olhar, isto é, de uma educação, uma ética e
uma cultura para a diversidade, como pontos básicos, inserindo-se aí o domínio das novas tecnologias. Vale dizer que os
próprios professores e educadores, quando entrevistados, se colocavam por fora do processo, tecendo severas críticas sobre
esses profissionais como se fossem pessoas diferentes e não eles próprios os sujeitos da ação educativa. Criticavam as
próprias práticas sem assumirem o respectivo papel de sujeito. Será que sentiam vergonha da profissão?
Concluímos ser imprescindíveis a valorização, definição do espaço no cenário mundial e elevação da auto-estima
dos profissionais da educação para poderem sentir-se reconhecidos e motivados a realizar um trabalho ousado e de
qualidade, conquistando o seu espaço no cenário mundial.

574
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Libertad,

Dimensão utópica no ensino: representações e memória

Antonio Almeida Neto


Faculdades Integradas Campos Salles
toninhosaneto@uol.com.br

Resumo: Considerando que a educação escolar tem por pressuposto uma visão projetiva, uma vez que supõe ou adota determinada
perspectiva de homem e/ou sociedade no ato educativo, tratamos das representações de professores de ensino fundamental e médio acerca da
dimensão utópica, ou seja, a maneira como representam certa concepção prospectiva ao lecionarem suas disciplinas. Tal temática insere-se
no atual debate da chamada crise da modernidade e re-significação das relações temporais, a oscilar entre uma postura de pensar o ensino
como inexorável instrumento de transformação sócio-política ou vã ilusão, simulacro projetivo. Adotamos como perspectiva metodológica a
teoria crítica das representações de Henri Lefebvre, que possibilita uma compreensão da noção de utopia não como simples devaneio ou
quimera, mas como manifestação do descontentamento e desejo de transformação, representações reais e existentes que possuem força e
apontam o porvir, que se constituem no cotidiano, na relação dialética entre o concebido e o vivido. Coaduna-se a esse intento, a utilização
da memória – expressa em relatos orais de dois grupos de professores que lecionaram nos anos 1960/70 e 1980/90, períodos de intensas
mudanças na sociedade brasileira (ditadura militar e redemocratização, respectivamente) e no mundo, e concomitantes transformações na
educação –, que se manifesta como uma trama de variáveis envolvidas no ato de lembrar, selecionar fatos, valorar, analisar, atribuir
significado, re-significar, representar o passado filtrado pelo presente. Representações que se sobrepõem às representações do período
rememorado, constituindo-se como sucessivas relações de presença/ausência que resistem ao tempo, representações sobre o que realizaram
os professores, sobre o que pensavam realizar, o que realizam, pensam realizar e o que pensam hoje que realizaram no passado.

1. As discussões sobre as quais nos deteremos1 referem-se a dimensão “utópica” presente no ensino, mais especificamente na
disciplina escolar História. Via de regra, o ensino desta disciplina tem, por décadas, trabalhado com uma virtual capacidade
de através de um resgate pretensamente crítico do passado, apostar numa transformação positiva e projetar um novo futuro.
Em tempos de transformações significativas como a que vimos atravessando nas últimas décadas, os anseios por
mudanças promissoras são proporcionais às angústias geradas pela falta de soluções e respostas a problemas sociais,
econômicos e políticos. Não poderia ser diferente na educação, já que é inerente às atividades do professor, seja lá qual for a
disciplina escolar, o ato de operar com projeções, uma vez que prevê um fim a atingir com seus alunos, seja de ampliação do
conhecimento, seja de formação de valores.
No ensino de História, tal questão se faz sentir com maior evidência, já que os professores lidam com o tempo
passado e desta maneira têm como matéria-prima uma vastidão de temas intrincados com suas variantes e contradições a
serem exploradas e explicadas que podem iluminar o presente, dando-lhe algum sentido, algum significado e,
inevitavelmente, serem lançados nas projeções do ato educativo, considerando que os ensinamentos desta disciplina seriam
capazes de contribuir para uma sociedade melhor que a passada e aquela que se está vivendo.
Essa dimensão utópica, no entanto, não se constitui como um todo coerente, dotada de sentido único. As referências
a esta concepção presentes no ensino de História variam desde as posturas marcadamente revolucionárias até
posicionamentos mais diluídos ou mal definidos. Podemos observar ainda, a existência de uma espécie de desejo de

1
Esse artigo é um desdobramento de minha Tese de Doutorado intitulada “Dimensão utópica nas representações sobre o ensino de história: memórias de
professores”.

575
transformação qualitativa nesta dimensão utópica, de construir novas utopias. Como se algumas antigas bandeiras
empunhadas no passado não mais servissem diante das novas problemáticas sócio-econômicas que estão postas. Temos
ainda, discursos que possuem uma dimensão utópica, elaborados em períodos diferentes, que se assemelham em alguns
aspectos, tratando de temas nem sempre iguais, fazendo abordagens diversas. Consideramos que o ensino de História não
possa ser tratado como uma equação de fáceis resolução e resultado, mecanicamente, já que, com o desvelamento de suas
intenções e práticas, distinguimos um verdadeiro emaranhado de questões que envolvem a disciplina, podendo, algumas
dessas, levar a grandes e desastrosos equívocos relativos a concepção da área e suas reais possibilidades, tornando o seu
ensino inócuo, quando não danoso para o aluno.

2. Para o debate acerca da proposição apresentada foi utilizada a “teoria crítica das representações” de Henri Lefebvre (1983),
que procura resolver o impasse imobilizador, que nos impede de aprofundar análises das vivências concretas e de concepções
sobre elas formadas dada a inerência sólida e fluida, permanente e transitória, mobilizadora e paralisante, presente e ausente
da temática proposta. Discutir a dimensão utópica presente no ensino de História, entendida como “representação”, implica
entendê-la como sendo nem falsa e nem verdadeira, mas “...verdadeiras como respostas a problemas ‘reais’ e falsas como
dissimuladoras das finalidade ‘reais’.” (Lefebvre: 1983, p. 62)2
Devemos, então, compreender as representações sem a pretensão e ilusão de rechaçá-las, entendendo o processo
pelo qual se formam, ganham força, circulam, deslocam e se sobrepõe ao representado. Para o autor, somente através da
análise poderemos escapar das representações enganosas que ocorrem nos processos de representação e que são sua força,
resultando em simulacros, repetições e situações miméticas.
Para o autor, somente através da análise poderemos escapar das representações enganosas que ocorrem nos
processos de representação e que são sua força, resultando em simulacros, repetições e situações miméticas. Sintetizando esta
noção em Lefebvre, Lutfi afirma que:
“... papel da teoria crítica das representações não é destruí-las, pois não é possível viver e compreender uma
situação sem representá-la. A filosofia, tradicionalmente, quer eliminar as representações. Sem elas, entretanto, só restam a
morte e o nada. A teoria deve expor o poder da representação no mundo contemporâneo, deslindar os mecanismos de sua
produção e permanência, e ao fazê-lo anunciar ‘um pensamento novo e ativo já em marcha’.” (1996, p. 96)
Para Lefebvre as representações formam-se no cotidiano, entendido como um nível da realidade social onde
ocorrem a construção e transformação da sociedade, sendo que o desvelamento desse nível é a chave para a compreensão das
representações. Estas se constituem como resultado das formulações teóricas – o concebido – e das experiências da vida
social e prática, no plano individual e coletivo – o vivido. Desta maneira, as representações apresentam-se como
manifestações da relação do concebido com a vivência, emergindo da consciência individual e da correlação com as
condições históricas particulares e gerais, é fruto do ser individual e social. Assim, entende-se que a representação é inerente
ao viver e sua compreensão.
Mas se é no cotidiano que se formam as representações capazes de dissimular o vivido, é aí que se formulam as
críticas, também na forma de representações, que combatem a homogeneidade e a unidade pretendidas pelas representações
hegemônicas. Isso significa dizer que o cotidiano contém tanto as representações enganosas, que encobrem questões
relevantes, como aquelas que apontam para o porvir, a utopia. Não as utopias abstratas, que ele trata de atacar, mas a utopia
do possível, manifesta no descontentamento e desejo de transformação. É no cotidiano que se encontra, portanto, tanto a
dissimulação como o gérmen da mudança.
Pensar a utopia no ensino de História tendo como referência a teoria crítica das representações, redimensiona a
questão em novas possibilidades, para além da visão limitadora e simplicadora do certo/errado, existe/não existe,
falso/verdadeiro, de modo a compreendermos seu poder motivador e inibidor, clarificador e mistificador, presentes nas
atividades que envolvem a ação escolar, pensada num sentido mais amplo.

3. Nossa proposta de discutir uma disciplina escolar apreendendo processos de transformação do que vimos chamando
“dimensão utópica”, encontrou no recurso do relato oral uma necessária e importante fonte para a recuperação dos aspectos
do cotidiano escolar e a investigação das representações acerca do ensino de história, pelo olhar dos professores dessa
disciplina.
O relato oral tem por esteio a memória, que se apresenta como uma espécie de trama cerzida fio a fio, que se gasta
ao mesmo tempo em que se constitui, e requer uma abordagem cautelosa e criteriosa, pois que possui evidentes limitações e
imprecisões para as quais devemos estar atentos, não como fatores impeditivos ou fraquezas, mas como especificidades a
serem estudadas e tornadas assertivas.
É bastante conhecida certa desconfiança que recai sobre a história oral, dado o fato de a memória, seu suporte, ser
seletiva, não lembrar detalhes que consideraríamos imprescindíveis para a reconstrução da história de um período, localidade,
grupo social. Tratando-se de uma leitura em que o sujeito situado no presente faz do passado, teremos inevitavelmente não
uma reconstituição dos fatos como eles se deram, mas uma (re)interpretação dos fatos do passado, uma (re)leitura feita com
olhos que, agora, distanciados pelo tempo, permitem uma (re)avaliação dos acontecimentos, das perdas, das contradições, dos

2
Tradução minha da edição “La Presencia y la Ausencia: Contribuición a la Teoria de las Representaciones. México: Fondo de Cultura Económica, 1983.

576
acertos e equívocos do passado. Desta maneira, podemos afirmar que, como sugere Hall, o relato não é a experiência, mas o
que a memória fez dela. (Hall, 1992, p. 157)
Mais que um simples mecanismo de produzir lembranças, a memória é o que possibilita estarmos no mundo,
situados nos grupos sociais, estabelecendo relações. Esta trama da memória se constitui com fios de significados que se
entretecem, como um “processo ativo de criação de significações” (Portelli, 1997, p. 33) e re-significações num constante
processo, já que novos fatos vão sendo lembrados e reavaliados em função dos acontecimentos do presente.
Aquele que rememora tem um presente a zelar que se funda em seu passado, sua trajetória, sua história. Este
comportamento, para Pollack, apresenta forte relação com o “sentimento de identidade”, (...) “o sentido da imagem de si,
para si e para os outros. (1992, p. 204). A lembrança se constitui como forma de dar sentido e organização à vida, afirmando-
se pessoalmente e deixando uma espécie de legado público, um testemunho para o grupo do qual faz parte. (Thompson, 1998,
p.p. 288-9)
Atrelado a este, um outro aspecto que chama a atenção é a ocorrência de certa transferência de memória, que pode
ocorrer do presente para o passado, pois se tratando de uma interpretação da memória, não é incomum aquele que rememora
transferir opiniões atuais sobre o passado como se estas fossem do período em questão. (Hall, 1992, p. 158). Mas pode
ocorrer um outro tipo de transferência, como uma projeção de outros eventos sobre o evento rememorado ou projeção do
grupo social sobre a lembrança individual. Pollak observa que a memória é em parte herdada, sendo que nem tudo se refere a
vida concreta da pessoa. (1992, p. 201-202)
Desta maneira, o relato oral não pode ser entendido como uma expressão exclusiva da experiência individual do
depoente do período histórico a ser pesquisado. Não sendo exclusivamente individual, a memória resulta, para Hall, de
“determinações sociais complexas”, pois nós “pensamos, lembramos e exprimimo-nos em forma social e culturalmente
determinadas.” (1992, p. 157)
Contudo, embora possa ser vista como manifestação de um grupo social, Pollak alerta-nos para o equívoco de
considerarmos a memória como sendo a expressão de sua essência (1992, p. 205), pois se trata de um fenômeno concebido
como uma construção feita em torno de conflitos e disputas, já que está em jogo a própria identidade do grupo e, portanto,
aquilo que se deseja conservar, a imagem que se deseja perpetuar e transmitir para as gerações seguintes garantindo uma
continuidade e coerência de condutas e posturas (idem, p. 204-205), ou seja, a permanência e a conservação de uma história
desejável.
Frente a tais aspectos, Emília Viotti da Costa aponta para o risco de um tratamento indevido deste tipo de fonte,
pois se pode...
“...transformar tudo em mera subjetividade e a história apenas numa simples coleção de testemunhos e
depoimentos. Neste caso, a história cede lugar a memória. O historiador renuncia a um discurso totalizador que incorpore as
múltiplas subjetividades e as transcenda conferindo-lhes significado.” (1988, p. 9)
Seria preciso, pois, transcender as subjetividades dos depoentes, o que poderia ser feito com a não utilização de
entrevistas como única fonte de informação e com o chamado cruzamento de dados com outras fontes documentais. Percebe-
se que desta maneira, para essa autora, a utilização de relatos orais acaba por não possuir uma confiabilidade intrínseca,
sendo de antemão tomados como potencialmente limitados, devendo ser relacionados e confrontados com outros documentos
que indiquem as relações com outros sujeitos.
Os pesquisadores de história oral têm superado essa questão tratando as fontes orais como documentos orais em sua
especificidade, e não como documentos escritos ou iconográficos. Para Alessandro Portelli, em texto denominado “O Que
Faz a História Oral Diferente”, a
“... primeira coisa que torna a história oral diferente é aquela que nos conta menos sobre eventos3 que sobre
significados. (...) Mas o único e precioso elemento que as fontes orais têm sobre o historiador, e que nenhuma outra fonte
possui em medida igual, é a subjetividade do expositor. (...) Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que
queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez.” (idem, p. 31) Para ele, fontes orais “... são
aceitáveis mas com uma credibilidade diferente. A importância do testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao
fato, mas de preferência em seu afastamento dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso, não há
‘falsas’ fontes orais.”. (idem, p. 32)
Desta maneira, o que pareceria fragilidade torna-se asserção. Portelli não descarta o uso de outras fontes ou a
verificação da credibilidade factual do conteúdo dos relatos, mas isso não invalida as informações emitidas pelo depoente,
sua visão dos fatos, seus anseios, suas frustrações, representações que possuem significado para o entrevistado, pois
produziram ações e inércia, dores e alegrias, sonhos e descrenças. Tal enfoque coaduna-se com nossa proposta e perspectiva
de trabalho, já que não temos a pretensão e a expectativa de encontrarmos verdades factuais em depoimentos absolutamente
objetivos, mas sim de analisarmos as representações de professores de história acerca da dimensão utópica que transparece
em sua visão de história, sobre sua própria prática e sobre sua disciplina, através de seus relatos.

3
Grifos do autor.

577
4. O tratamento da questão apresentada requereu escolha de períodos passíveis de serem pesquisados, que pudessem ser
reveladores de intenções e práticas mais significativas e bem delineadas, de modo a tornar possível a percepção e análise de
sua formação e transformação.
Dessa maneira, trabalhamos com seis professores de História de duas gerações em que as posições sobre esse
aspecto fossem mais evidentes, dois grupos de períodos distintos em que a questão da utopia se apresentasse de maneira
diferenciada: professores que lecionaram entre os anos 1965-1975 e 1985-1995. Os professores do primeiro grupo
vivenciaram a experiência do regime militar brasileiro, período no qual houve um acirramento de posições em setores do
professorado e a identificação de certa dimensão utópica configurada em uma militância contrária à ditadura (Almeida Neto,
1996). Já os professores do segundo grupo, que ainda atuam na rede de ensino, passaram pela ditadura como alunos, sofrendo
seus reveses de maneira menos direta, tendo começado a lecionar em torno do último ano do regime militar ou início da
chamada redemocratização. Entretanto, respiraram ares do autoritarismo e herdaram as mazelas provocadas pelos governos
militares das duas décadas anteriores. Soma-se ao segundo grupo o fato de terem sido alunos dos professores da geração
anterior, no 1º e 2º graus e na universidade, passando a lecionar no período identificado como o da falência das utopias, um
período de desencanto e fim do que seria uma “mera ilusão”.
Ao relatarem suas lembranças através das entrevistas propostas, os professores narraram uma trajetória pessoal e
profissional, discorriam representações sobre seus próprios processos de transformação, como chegaram ao que são hoje,
suas vitórias e derrotas, conquistas e decepções. Esse exercício da memória constitui-se em verdadeira tomada de posição
frente aos outros e a si mesmos, na medida em que se fala de seu devir, de seu próprio processo de vir a ser.
Nesses relatos, direta ou indiretamente, se apresentam as maneiras como os professores representam a história e seu
ensino, a visão da história como uma espécie de fornecedora de exemplos a serem seguidos, sejam eles cívicos ou de
militância política, a história doutrinária, conscientizadora ou crítica. Da mesma forma, ocorrem as representações sobre a
prática escolar, lecionando história, implementando e participando de atividades, arriscando novos métodos e técnicas de
ensino, organizando projetos, relacionando-se com colegas, alunos e direção.
Compreendermos essas representações – sobre a história e seu ensino, e sobre a própria prática – possibilita-nos o
entendimento daquilo que os professores fizeram ou julgavam fazer, fazem ou julgam que fazem e ainda, o que julgam que
fizeram, pois que são relatos do presente sobre o passado. Nessa busca observamos os desejos de mudanças, as promessas do
novo contidas em seus projetos e como representam esses processos de mudança, a dimensão utópica que se manifesta no
ensino de História – provocando e estimulando, bloqueando e inibindo – em representações que se formam, transformam,
desaparecem, agregam novas idéias e assimilam novas formas.
O possível e o impossível, o lugar e o não lugar, a existência e a busca, a presença e a ausência. A dimensão utópica
nas representações sobre o ensino de História manifesta-se como incompletudes, projetando desejos à procura de realização e
plenitude, revelando nuanças e uma complexa densidade.

Apresentamos algumas conclusões advindas dessa pesquisa:


4.1. Primeiramente, observamos nos relatos a predominância de uma visão de História em que os conteúdos são
pensados como exemplos a serem seguidos, variando o enfoque sobre como seria esse “exemplo”: conduta heróica,
lideranças, patriotismo, civismo, valores, militância política, movimentos sociais, revoltas populares. Além de exemplar, este
passado acaba por servir como justificativa para o presente, legitimando nossas ações. Por outro lado, o ensino denominado
doutrinário, identificado com os grupos políticos de esquerda, não é muito bem visto, embora os professores não se furtem a
emitir suas opiniões e valores, às vezes de maneira contundente.
Essa visão atribui ao ensino da História um poder bastante grande de desalienar, politizar, conscientizar, desnudar,
dar sentido. Mas, curiosamente, as ações mais significativas implementadas neste sentido foram efetuadas em atividades
extra-classe, manifestações políticas ou em OSPB e EMC, denotando o peso de um ensino mais tradicional da disciplina e
um importante foco de resistência para a efetivação de reformas em História, já que essa é tomada como um rol de conteúdos
sacralizados, projetando as mudanças e alterações para fora da disciplina.
Outro aspecto que chama a atenção nesses relatos é o destaque dado ao homem como agente histórico das
transformações que, no entanto, parece não ter influído nos próprios processos relatados, como se a história possuísse uma
lógica e vontade próprias. Nesse sentido, o próprio professor acaba por colocar-se como não tendo maior participação ou
influência nos processos históricos, inclusive nas mudanças da educação e da disciplina, que ocorreriam à sua revelia.

4.2. Como elemento mais evidente de distinção entre os dois grupos de professores, está a referência ao uso de
documentos históricos como recurso didático e a utilização de diferentes fontes de textos, de modo a propiciar diferentes
interpretações sobre o assunto trabalhado. Na postura de não aceitação de uma única visão no entendimento da história, no
entanto, misturam-se noções de documentos históricos com seu uso, diferentes visões com diferentes documentos, diferentes
interpretações com diferentes livros didáticos.
Atrelada a essa postura, também os professores mais novos, falaram de seu trabalho com o uso de eixos temáticos a
orientar o desenvolvimento dos conteúdos, embora nem sempre sejam claros os critérios de escolha dos temas, que muitas
vezes resvala nos conteúdos tradicionalmente trabalhados nos livros didáticos. Essa disposição manifesta, para a utilização de
temas, é claramente identificada com a intensificação das discussões sobre o ensino de História que teve lugar no final dos

578
anos 70/início dos 80, quando esses professores cursavam sua graduação, não chegando a atingir mais diretamente os
professores mais velhos.

4.3. Têm lugar na memória dos professores entrevistados as referências de formação intelectual que tomam para si,
conformando não só um perfil, mas também um significado para a própria trajetória, para a imagem que têm de si e desejam
deixar registrada. No caso dos professores mais velhos, a menção, quando houve, foi a autores clássicos lidos ainda na
juventude e aos grandes mestres, citados com grande deferência. Os mais novos referiram-se a publicações que propuseram
renovação no trato do ensino de História, particularmente “Repensando a História” e “O Ensino de História: Revisão
Urgente”4. Atenção deve ser dada à grande e crescente importância do livro didático, orientando conteúdos, didática,
atividades e textos a serem trabalhados em sala de aula.

4.4. Quando nos debruçamos sobre as representações da própria prática escolar, notamos que os professores,
independente da idade, tenderam a referir-se a um passado sempre melhor – escola, alunos e professores – que seu presente.
Em alguns momentos notamos que não necessariamente as vivências apresentadas nos relatos ocorreram efetivamente e, em
alguns casos, eram relembradas com intensidade desmedida, revelando a valoração das representações, as disputas
negociadas no território contestado da memória e a imagem que estes professores querem deixar registradas de si.
Por outro lado, apontam para aquilo que no vir-a-ser não se realizou, as promessas que não se cumpriram, as
irrealizações do presente, que agora se projetam no passado idealizado. Tal situação acaba por gerar uma sensação de
impotência para superar os diversos problemas que vão se erguendo frente aos professores, embora todos tenham buscado
formas de superá-los, provocando a não percepção da perspectiva histórica e, em alguns casos, a incapacidade de reflexão
crítica sobre a própria atuação.

4.5. Através de seus ensinamentos de História, os professores consideram que formaram ou formam alunos mais
conscientes, cidadãos críticos. Essa seria a grande contribuição da disciplina, que muitas vezes é repetida como jargão. No
entanto, os termos “cidadão”, “crítico” e ”consciente” sofrem variações de entendimento de acordo com a perspectiva política
do professor, podendo ter um caráter cívico-patriótico, militante de esquerda, não sectário, atento para os problemas sócio-
econômicos, negativista. Também podemos observar, além dessa preocupação com a formação crítica, o cuidado com a
relação estabelecida com os alunos, o desvelo, utilizado como elemento didático, gesto de afeição e poder.
Afora essa perspectiva de formação de aluno e, portanto, construção de uma outra sociedade, o ambiente escolar
mostra-se nos relatos como sendo bastante conflituoso, a ponto de impedir propostas e projetos de mudanças, gerando uma
perspectiva individualizada de atuação e uma percepção de que a superação dos problemas, sejam eles escolares ou sociais,
não se dá pelo grupo.

4.6. A busca de soluções para os problemas e dificuldades do ensino de História foi uma preocupação de todos os
entrevistados. Nota-se ainda, entre os mais novos – não foi observada entre os mais velhos – a aversão pelo termo
“tradicional”, identificado com o que há de mais negativo no entender dos professores, demonstrando explicitamente o que
não querem para si, como não querem ser vistos. Porém, também a palavra “tradicional” aparece nos relatos de maneira
difusa, que pode ir desde aquele que segue livro didático até ao que não é militante, do conteudista ao seqüencial, do
autoritário ao que aplica questionários.
Ser identificado como um professor de História “tradicional” é algo indesejado, dando àquele que repudia o rótulo,
um caráter de inovador e crítico. Porém, alguns professores assumiram que acabam deslizando para o que chamam de
“tradicional”, ficando subentendido novamente que a postura de afeto e desvelo talvez seja mais importante que essa alcunha.
Chama a atenção, no entanto, que afora as disputas em torno das representações sobre o que seja “tradicional” ou não, as
ações implementadas, inovadoras ou conservadoras, deram-se mais no Centro Cívico Escolar, em OSPB, nas feiras culturais
e reivindicações, que no exercício da disciplina História.
Ser tradicional ou não, crítico ou não, mostra-se mais complexo do que se supõe, as duas posturas não só são
difusamente definidas, como se misturam na prática escolar. Mais importante é notar que a valoração da representação faz
com que o professor invista-se dessa postura “tradicional” ou “crítica”, adotando uma postura mais ou menos engajada, uma
ação conservadora ou de vanguarda.

4.7. A concepção de história, área de conhecimento, da disciplina escolar História e a prática no cotidiano escolar,
apontaram-nos a dimensão utópica presente nas representações dos professores no ensino desta disciplina. A visão
prospectiva que primeiro se manifesta, independente da idade e da postura política, é aquela que deseja o resgate daquele
passado ideal, o retorno a algo que se perdeu. Em alguns casos, mais que o resgate, deseja-se a restauração e conservação do
passado.
No ensino de História, essa postura acaba por ensejar uma volta ao passado, um regresso ao que se perdeu, a
regeneração do que se dissipou. Mesmo nos professores supostamente mais críticos e engajados politicamente, os

4
SILVA, Marcos Antonio da (org.). Repensando a História. RJ: Marco Zero. ANPUH. e CABRINI, Conceição e outras. O Ensino de História: Revisão Urgente.
SP: Brasiliense, 1986.

579
movimentos sociais do passado surgem como exemplos a serem retomados, lutas a serem resgatadas e continuadas,
produzindo um efeito de descolamento de seu próprio tempo, suas transformações e singularidade.

4.8. Outro aspecto dessa dimensão utópica no ensino de História é a proposta de ruptura com o passado, suas
heranças e permanências. Nesse caso entra em ação o “professor crítico” que promove a “consciência crítica”, em que pese
os diferentes entendimentos do que seja “crítico” e os vários meios para se atingir esse objetivo: ação política, desfiles
cívicos, leituras de clássicos, trabalho com documentos históricos. Percebe-se também que a postura prospectiva de ruptura
com o passado apresenta-se não muito bem delineada, convivendo com a perspectiva de conservação, hospedadas nos
mesmos professores.
Esse modelo e postura de professor conscientizador e crítico é fortemente identificado com o modelo da pedagogia
“moderna” – a qual se opõe às posturas denominadas pós-modernas – que se baseia na confiança de que o pensamento, a
informação e a cultura serão capazes de promover as transformações desejadas, cabendo, portanto, ao professor um papel
fundamental nesse processo. Os professores de História parecem se investir desse ideal, o que, no entanto, com a não
realização das promessas desejadas e o vazio pós-moderno, tem gerado mal-estar e desalento, acompanhado de um discurso
que expressa as esperanças da modernidade, ainda que de maneira vazia ou como forma de sentir-se atuante.

4.9. A dimensão utópica nas representações sobre o ensino de História forma-se entre o vivido e o concebido,
estimulando ações e gerando imobilismo. A propalada crise da educação, em seus vários aspectos, produzem não só o desejo
de mudança, como a frustração diante das dificuldades ou impossibilidade de transposição dos obstáculos que se apresentam.
As promessas de satisfação, tão afeitas ao mercado, incorporadas à educação produzem a sensação de fáceis realizações, que
ao não se cumprirem, provocam novos mal estar e frustração.
Banalizada a crítica e a postura prospectiva, torna-se o professor de História um simulacro de si mesmo,
embarcando em projetos que não são seus, investindo contra alvos que desconhece, pronunciando palavras que não acredita e
não entende. Afora o desencanto, nota-se que a dimensão utópica na disciplina parece sofrer um deslocamento, surgindo
entre a conscientização e a militância: a poiesis, a criação, a formação, o ato criativo. Mais que a imposição de uma
“consciência crítica”, o que parece despontar é o desejo que o outro deseje a transformação.

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580
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Exército Nacional. in Projeto História – Cultura e Representação. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História. SP: Educ. nº 16, Fevereiro/1998.

Reformas do Estado e da educação no Brasil impõem novos marcos à formação


docente

Aleksandre Saraiva Dantas


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
aleksandre.dantas@bol.com.br

Maria das Graças Pinto Coelho


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
gpcoelho@ufrnet.br

Resumo: O trabalho analisa as reformas do Estado e da educação no Brasil e suas implicações para a formação docente em um contexto
caracterizado pela reestruturação produtiva, pela globalização e pela hegemonia do discurso neoliberal. Para tanto, dialoga com autores que
relacionam a reforma do Estado e a reforma da educação nas últimas décadas, e investe na legislação que aborda a temática da formação
docente. Percebem-se diversos problemas inerentes à formação docente, com destaque para a falta de articulação entre formação no conteúdo
específico e no conteúdo pedagógico; preocupação maior com produção científica, pesquisa e pós-graduação, considerando-se a formação de
professores uma atividade secundária; surgimento de uma hierarquia acadêmica; formação nos Institutos Superiores de Educação, o que
afasta a formação docente da formação dos demais profissionais da educação e da pesquisa; rebaixamento das exigências das licenciaturas;
reconfiguração do trabalho docente; prioridade para a capacitação em serviço e uso inadequado da educação a distância na formação de
professores. Destacam-se alguns aspectos positivos, tais como: associação entre teorias e práticas e exigência de todos os docentes da
educação básica em nível superior. Apesar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96) colocar o professor como
eixo central da qualidade da educação e enfatizar a formação e a profissionalização docente, a regulamentação dos seus artigos evidencia a
precarização do trabalho e da formação docente e o descompasso entre as novas exigências requeridas, hoje, para o profissional da educação
e a formação pretendida pelo MEC.

1 Introdução
Durante as três primeiras décadas do pós-guerra a economia mundial viveu um período de relativa estabilidade,
combinando altas taxas de crescimento com a extensão dos benefícios da produção e do consumo de massa, elevando os
padrões materiais de vida para a massa da população dos países capitalistas avançados.
Harvey (1993) considera que
[...] o longo período de expansão de pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de
práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse
conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período
de rápida mudança, fluidez e de incerteza. (HARVEY, 1993, p. 119)
Além da crise do modelo fordista-keynesiano, o acelerado desenvolvimento tecnológico ocorrido a partir da
segunda metade do século XX, com verdadeiras revoluções na microeletrônica, na microbiologia e na produção energética,
configurando o que Schaff (2007) identifica como a segunda revolução industrial, transformou profundamente o sistema
econômico mundial, haja vista que a redução dos custos com transporte e comunicação tornou a economia muito mais
integrada e competitiva.
Em um novo cenário caracterizado pela globalização, que pode ser entendida como sendo “[...] a intensificação das
relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados
por eventos ocorrendo a milhas de distância e vice-versa.” (GIDDENS, 1991, p. 69), os estados nacionais tornam-se mais
frágeis, devido à perda de autonomia e a pouca efetividade das políticas econômicas desenvolvimentistas.
Diante do esgotamento do modelo fordista-keynesiano tornou-se necessário redefinir o padrão de relação entre o
Estado e a sociedade, já que a crise do sistema capitalista foi acompanhada, tanto por uma crise do modelo de Estado
interventor, quanto por uma crise da concepção do papel do Estado.
De acordo com Pereira (1998), Ministro da Administração e Reforma do Estado no primeiro governo Fernando
Henrique Cardoso,
Aos poucos foi se tornando claro que o objetivo da intervenção deixara de ser a proteção contra a concorrência,
para se transformar na política deliberada de estimular e preparar as empresas e o país para a competição generalizada.
Estado e mercado não mais podiam ser vistos como alternativas polares para se transformarem em fatores complementares de
coordenação econômica. (PEREIRA, 1998, p. 53)

581
A recente história política do Brasil tem se caracterizado pelo debate acerca da necessidade de redefinição do papel
do Estado e pelas inúmeras tentativas de implementação de reformas objetivando a sua reforma/reconstrução. Expressões
como: reforma administrativa, reforma da previdência, reforma tributária, entre outras reformas, passaram a fazer parte do
discurso dos mais diversos analistas políticos e econômicos e da agenda política nacional.
Todas essas reformas têm como objetivo, modificar o papel do Estado e adequá-lo à nova realidade mundial.
Segundo Pereira (1998), a reforma/reconstrução do Estado é a grande tarefa política dos anos 90. Para esse autor
A reforma do Estado envolve quatro problemas que, embora interdependentes, podem ser distinguidos: (a) um
problema econômico-político – a delimitação do tamanho do Estado; (b) um outro também econômico-político, mas que
merece tratamento especial – a redefinição do papel regulador do Estado; (c) um econômico-administrativo – a recuperação
da governança ou capacidade financeira e administrativa de implementar as decisões políticas tomadas pelo governo; e (d)
um político – o aumento da governabilidade ou capacidade política do governo de intermediar interesses, garantir
legitimidade e governar. (PEREIRA, 1998, p. 49-50)
Nesse contexto,
O debate sobre o papel do Estado que então se configurou foi acompanhado pela formulação de propostas de
Reforma do Estado, tanto no que se refere à sua relação com a economia e à intervenção nas áreas sociais, como no que diz
respeito ao próprio funcionamento da máquina estatal, isto é, ao “Estado por dentro”. (FARAH, 1995, p. 20)
Além da necessidade de reforma do Estado, a tentativa de incorporar as inovações tecnológicas e de gestão ao
sistema produtivo, a abertura econômica proporcionada pela tentativa de inserção no mundo globalizado e a hegemonia do
discurso neoliberal vêm marcando esse período de transição do modelo Taylorista/Fordista para o modelo de acumulação
flexível, com implicações para a educação escolar e para a formação de professores.
De acordo com Silva Júnior (2003) a reforma do Estado está inserida em um ajuste econômico mundial decorrente
da universalização do capitalismo. Além disso,
[...] o compromisso assumido pelo Brasil em sua agenda econômica e política foi seguido de outros numerosos
compromissos na esfera social, particularmente na esfera educacional, tais como os que se fizeram por meio de documentos
políticos: Declaração Mundial de Educação para Todos, de Jomtien (UNESCO, 1990), e Declaração de Nova Delhi
(UNESCO, 1993), que tiveram sua primeira expressão orgânica do movimento reformista mundial, na esfera da educação, no
Brasil, com o Plano Decenal de Educação para Todos e, na esfera executiva, no Planejamento Político-Estratégico do
Ministério da Educação 1995/1998, tornado público em 1995. (SILVA JÚNIOR, 2003, p. 80)
Nesse novo cenário, torna-se necessário conhecer o papel assumido pela educação institucionalizada, ou seja, a
prática educativa efetuada nas instituições escolares, pois, o desenvolvimento das habilidades requeridas para o atendimento
às necessidades oriundas deste momento remete diretamente à educação.
Não sem motivo, torna-se absolutamente fundamental proceder a um conjunto de alterações no atual sistema
educacional e de formação profissional. Justamente porque a fase de transição da economia tradicional para uma nova
economia exige uma educação geral ampliada e formação continuada ao longo do ciclo de vida ativa das classes
trabalhadoras condizente com o estágio de desenvolvimento econômico e o avanço da expectativa média de vida da
população. (POCHMANN, 2004, p. 391)
É importante ressaltar que todo o discurso acerca da necessidade de níveis mais elevados de formação da classe
trabalhadora está intimamente vinculado às necessidades de mão-de-obra qualificada para atender as demandas do setor
produtivo, fato que denuncia um grave reducionismo nos objetivos da educação que, ao invés de formar o cidadão em uma
perspectiva integral, forma o indivíduo apenas para o que se convencionou chamar de empregabilidade e para a gestão da
pobreza.
Passa a ser um imperativo dos sistemas escolares formar os indivíduos para a empregabilidade, já que a educação
geral é tomada como requisito indispensável ao emprego formal e regulamentado, ao mesmo tempo em que deveria
desempenhar papel preponderante na condução de políticas socais de cunho compensatório, que visem à contenção da
pobreza. (OLIVEIRA, 2004, p. 1129)
Nesse sentido é importante ressaltar a influência do ideário neoliberal e dos organismos internacionais, com
destaque para o Banco Mundial, na elaboração das políticas educacionais implementadas no Brasil.

2 As mudanças na educação
De um modo geral, o neoliberalismo defende a transferência de elementos como saúde, previdência, educação, etc.,
da esfera dos direitos sociais para a esfera do livre mercado, afirmando que esses elementos só funcionarão bem em uma
sociedade que valorize a competição entre pessoas e instituições e a competência individual.
A proposta neoliberal de “reforma” dos serviços públicos, como se sabe, é orientada por uma idéia reguladora: a
idéia de privatizar, isto é, de acentuar o primado e a superioridade da ratio privada sobre as deliberações coletivas. Daí suas
diferentes maneiras de manifestação. Privatizar, no sentido estrito do termo, é apenas uma delas: transferir a agentes privados
(empresas) a propriedade e gestão de entes públicos. Mas há outros modos de fazer valer o mandamento. Pode-se delegar a
gestão, sem necessariamente transferir a propriedade. Pode-se ainda manter na esfera estatal a gestão e a propriedade, mas
providenciando reformas que façam funcionar os agentes públicos “como se” estivessem no mercado, modelando o espaço
público pelos padrões do privado. Diferentes modos de descentralização e dispersão de operações – com a correspondente

582
centralização e o insulamento dos âmbitos de definição das grandes políticas, das práticas de avaliação de desempenho, de
distribuição do bolo orçamentário – são pensadas como formas de introduzir o ethos privado (dinâmico, purificador) do
mercado no reino das funções públicas. (MORAES, 2002, p. 20)
Analisando, especificamente, a questão educacional, Gentili (1996) afirma que o neoliberalismo considera que a
crise educacional vivida atualmente seria uma crise de eficiência, eficácia e produtividade, fruto de uma desordenada
expansão do sistema educacional ocorrida nos últimos anos, da interferência do Estado e de instituições sociais como os
sindicatos e, ainda, dos indivíduos diretamente envolvidos no processo educativo (professores, alunos, etc.).
Silva (1996) ressalta que a proposta neoliberal para resolver os problemas da educação parte da premissa de que
tais problemas se devem essencialmente a questão da má administração dos recursos que lhe são destinados e a ausência de
um mercado educacional que incentive a competição, não só entre instituições de ensino, como também no seu interior.
Desse modo, somente a criação de um mercado educacional que incentive a competição e valorize o esforço individual
poderia tornar essa administração mais eficiente e, assim, produzir uma educação de maior qualidade.
Percebe-se que a reforma da educação no moldes da proposta neoliberal está inserida em uma estratégia global que
busca fortalecer a participação do setor privado, bem como adequá-la às necessidades do mercado, deixando de lado
elementos essenciais para a formação integral do indivíduo e minimizando o papel da educação escolar, pois
[...] globalmente, todo um leque de agências multilaterais, cada qual a seu modo, está trabalhando arduamente para
criar outros espaços para a “privatização” e a participação do setor privado na prestação de serviços públicos, incluindo a
educação. (BALL, 2004, p. 1113).
De acordo com Santos (2004), órgãos multilaterais de financiamento como o Banco Mundial (BM) e de cooperação
técnica (UNICEF e UNESCO) exercem grande influência no financiamento e na definição das diretrizes que orientam as
políticas educacionais brasileiras.
A análise das propostas do Banco Mundial para a educação ajuda a entender como vem se dando a transmissão do
discurso neoliberal para o contexto educacional, pois
O Banco Mundial constitui-se no grande definidor da filosofia, dos valores, das políticas educacionais e das
concepções de conhecimento, não só para o Brasil, mas para o conjunto de nações que devem se ajustar ao rolo compressor
da globalização. (FRIGOTTO, 1996, p. 89).
Segundo Torres (1996), a atuação do BM no âmbito educacional se dá a partir da elaboração de um pacote de
medidas que, segundo o próprio Banco, visam melhorar o acesso, a eqüidade e a qualidade das escolas, como também,
reduzir a distância entre a reforma educativa e a reforma das estruturas, e que o BM vê a reforma no sistema educacional
como uma ação que trará, não só benefícios sociais e econômicos, como também um desenvolvimento sustentável e a
redução dos índices de pobreza.
Dentre os princípios que fundamentam a reforma educacional nos países latino-americanos (fortemente
influenciada pelas recomendações do BM), Cabral Neto e Castro (2004) destacam a focalização (ênfase sobre o ensino
básico, com destaque para o ensino fundamental), a descentralização (democratização do Estado e a busca de maior justiça
social), a privatização (transferência de responsabilidades públicas para entidades privadas) e desregulamentação (criação de
um novo quadro legal diminuindo a interferência do poder público sobre os empreendimentos privados).
É importante ressaltar que
[...] dentre os critérios que fundamentam as orientações do Banco Mundial para a educação destacam-se: a
elaboração de currículos sintonizados com as demandas do mercado; centralidade para a educação básica, com a redução de
gastos com o ensino superior; ênfase na avaliação do ensino em termos dos produtos da aprendizagem e do valor
custo/benefício; centralidade da formação docente em serviço em detrimento da formação inicial; autonomia das escolas com
o maior envolvimento das famílias; desenvolvimento de políticas compensatórias voltadas para os portadores de necessidades
especiais e para as minorias culturais. (SANTOS, 2004, p. 1147-1148).
A análise das propostas do Banco Mundial para a educação dos países da América Latina, permite identificar
[...] o conjunto de propostas educacionais do BM como um discurso de economistas para ser implementado por
educadores. A perspectiva do custo-benefício, a consideração das leis do mercado, a aproximação entre as imagens da escola
e da empresa são traços comuns daquele discurso. (LÜDKE, MOREIRA, CUNHA, 1999, p. 283)
De acordo com Krawczyk (2002), o balanço da reforma educacional na América Latina na década de 1990, feito
pelo PREAL e pelo OREALC, destaca
[...] entre os resultados positivos da década, os pactos estabelecidos e a presença bem mais ativa do setor privado na
reforma político-educacional, o que permitiria pensar, segundo esses organismos, que estão se desenhando “políticas de
Estado, e não políticas de governo”. (KRAWCZYK, 2002, p. 45)
Esse é o caso do Brasil, onde a política educacional permanece em sintonia com as recomendações dos organismos
internacionais, mesmo com uma mudança de governo e com a chegada ao poder de um partido com orientação ideológica
diversa do governo anterior.
Para atender as demandas do setor produtivo, adequar-se às recomendações dos organismos internacionais e ao
modelo educacional neoliberal, o Brasil vem desenvolvendo diversas ações (o Plano Decenal de Educação, os Parâmetros
Curriculares Nacionais, o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental, os Programas de Avaliação da Educação
Básica e do Ensino Superior, as mudanças na Educação Profissional, a reforma do Ensino Superior, o Fundo de
Desenvolvimento da Educação Básica, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, entre outras).

583
Dentre esses elementos, deve-se destacar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB No 9.394/96).
Palco de inúmeros debates e enfrentamentos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei no 9.394 de
dezembro de 1996) integra o conjunto de reformas – econômicas, sociais e políticas – estabelecido pelo modelo neoliberal
que hegemonicamente, vem sendo implantado no Brasil desde o início dos anos 90. Esta lei deu condições ao Ministério da
Educação e Cultura para a formulação e o desenvolvimento de políticas públicas para a educação de cunho fortemente
homogeneizador. Entre elas, pode-se citar o tripé – o Fundo do Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), os
programas de Avaliação dos Sistemas de Ensino (educação básica e ensino superior) e a Formação dos Profissionais da
Educação – como marcas do modelo regulador do Estado. (CAMARGO, PINO, MANFREDI, 1999, p. 7)
A importância dada a LDB 9394/96, no momento em que se discutem a relação entre as políticas educacionais e as
novas demandas do mundo do trabalho, da cultura e das relações sociais e suas implicações para a formação docente, deve-se
ao fato de que
A partir da concepção adotada pelo governo desde a LDB para explicitar seu modo de compreender essa relação,
um grupo de especialistas, identificados com o discurso oficial, elaborou pareceres e parâmetros curriculares para a Educação
Infantil, fundamental e média que adotam uma concepção de educação e de escola que deverá orientar os processos de
formação de professores. (KUENZER, 1999, p. 164-165)
Parece claro que as transformações sociais, políticas e econômicas que vêm ocorrendo nas últimas décadas estão
impondo novas necessidades para a educação e, conseqüentemente, para os professores, elevando os níveis de complexidade
da atividade docente e impondo novas demandas para a formação docente.
Para Freitas (1999, p. 18), é nesse contexto onde “A ‘qualidade’ da educação e da escola básica passa a fazer parte
das agendas de discussões e do discurso de amplos setores da sociedade, e das ações políticas do MEC, [...]” que se insere as
discussões acerca da formação de professores, de modo que “A importância dada à questão da formação pelas políticas atuais
tem por objetivo equacionar o problema da formação para elevar os níveis de ‘qualidade’ da educação [...]”.

3 A formação inicial de professores no Brasil no contexto atual


Para Melo (1999), a Conferência Mundial de Educação para Todos e a LDB 9.394/96 colocam a formação de
professores como tema obrigatório nos debates nacionais.
Apesar disso, Gatti (1997) considera que o impacto da nova LDB nos cursos de formação professores levará alguns
anos e que esta formação terá, neste período, a marca da legislação anterior.
Esta autora afirma que a expansão das redes de ensino no Brasil ocorreu num curto espaço de tempo, trazendo
conjuntamente a necessidade de um número maior de docentes que não obtiveram na sua formação a qualificação desejada, e
que reverter o atual quadro da formação docente levará muito tempo, décadas, pois “Não se fazem milagres com a formação
humana, mesmo com toda a tecnologia disponível.” (GATTI, 1997, p. 4)
Analisando a problemática que envolve os cursos de licenciatura no Brasil, Candau (1997) afirma que a
inexistência de um modelo global, unitário e integrado para estes cursos, é um problema que os acompanha desde a sua
criação até os dias de hoje. Desse modo, não se consegue resolver, de modo satisfatório, a questão da articulação entre a
formação no conteúdo específico e no conteúdo pedagógico.
Destacando alguns elementos que podem ser indicativos desta problemática, a autora considera que dentro das
universidades existe uma preocupação maior com produção científica, pesquisa e pós-graduação, considerando-se a formação
de professores uma atividade secundária, digna de menor atenção e que, se envolver com esta questão, supõe remar contra a
corrente. Em conseqüência disto, constata-se o surgimento de uma hierarquia acadêmica onde os cientistas detêm maior
prestígio, seguidos daqueles que conseguem aliar pesquisa e ensino, deixando em último lugar os profissionais ligados
somente às atividades de ensino.
A autora aponta ainda a falta de atividades de caráter interdisciplinar e da articulação entre a universidade e o
sistema de ensino básico como elementos complexos que, desenvolvidos satisfatoriamente, poderiam contribuir para a
melhoria da qualidade dos cursos de formação docente.
Como vem sendo demonstrado, desde o início da década de 1990 estão surgindo propostas de reforma que
procuram adequar a educação brasileira e a formação docente às necessidades oriundas da inserção do país no mundo
globalizado. Para que se possa entender as mudanças que estão ocorrendo na formação docente, torna-se necessário analisar
como a legislação educacional brasileira aborda essa questão, pois essa legislação é a referência para as políticas de formação
docente no início deste milênio.

4 A legislação e a formação inicial de professores


Para que se possa analisar os objetivos da atual legislação acerca da formação docente e as conseqüências dessa
legislação para a profissão, para a educação, ou ainda para a sociedade como um todo, procurar-se-á discutir, com base na
literatura da área, tanto os artigos da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB No 9.394/96), quanto os
pareceres e as resoluções que abordam esta temática, procurando destacar o que são considerados como aspectos positivos ou
negativos desta legislação.

584
Melo (1999) considera que existe um descompasso entre as políticas de formação e os objetivos de melhoria da
qualidade da educação pública. De acordo coma autora, para que se possa compreender melhor esta questão, deve-se
considerar: os espaços de formação previstos na LDB 9.394/96, a concepção de professor oriunda destas políticas de
formação e como os programas de formação estão se difundindo.

4.1 Os espaços de formação


Com relação aos espaços de formação, a LDB 9.394/96 determina em seu título VI, fundamentos, conceituação,
níveis e espaços de formação. Neste título fica definido que a formação docente deverá se dar em nível superior, em cursos
de licenciatura plena, oferecidos por universidades ou Institutos Superiores de Educação (ISE)1.
De acordo com o parecer 115/99
Os Institutos Superiores de Educação deverão ser centros formadores, disseminadores, sistematizadores e
produtores do conhecimento referente ao processo de ensino e de aprendizagem e à educação escolar como um todo,
destinados a promover a formação geral do futuro professor da educação básica. (BRASIL, 1999, p. 313)
Souza Júnior (1998), Brzezinski (2001) e Freitas (1999), tecem críticas à criação dos ISE, pois esta medida afasta a
formação de professores da formação dos demais profissionais da educação e das atividades de pesquisa, que se tornam um
imperativo na formação docente, haja vista que os ISE não têm a obrigação de desenvolver atividades de pesquisa.
A universidade, por seu caráter de instituição pluridisciplinar, comprometida com a produção e a divulgação do
saber, não pode deixar de lado o compromisso de continuar sendo a principal agência formadora de recursos humanos para a
educação. (SILVA, 1999, p. 193)
Kuenzer (1999) considera que as novas exigências feitas ao professor justificam a necessidade de uma formação
inicial ao nível de graduação, que deve ainda ocorrer na universidade, devido à necessidade de formação interdisciplinar, que
só pode ser proporcionada pela universidade.
Para a autora,

[...] não há como formar o professor de novo tipo senão preparando-o para a pesquisa em educação, o que só é
possível pela graduação em universidade, e sempre ligada à extensão e às práticas, como forma de articulação entre a teoria e
intervenção na realidade. (KUENZER, 1999, p. 174)
Tomando como referência a experiência internacional, Saviani (1999) acredita que se deve ter muita cautela com
relação à criação dos ISE, pois, em outros países, instituições que têm atuado de forma semelhante vêm sendo extintas ou,
ainda, consideradas de 2a ordem.
Talvez para confirmar a preocupação do autor, Freitas (1999) afirma que os ISE são “[...] uma instituição de quinta
categoria, segundo a própria hierarquização formulada pelo MEC para as IES [...]” (p. 20).
Os ISE seriam responsáveis pelo Curso Normal Superior2, que deve formar os professores para a educação infantil
e séries iniciais do ensino fundamental, e pelos programas de formação pedagógica para portadores de diploma que queiram
atuar na educação básica. Esta possibilidade aberta pela legislação nos leva ao segundo item, que é a concepção de professor
oriunda destas políticas de formação.

4.2 A concepção de professor oriunda destas políticas de formação


Enquanto outras profissões buscam estabelecer critérios mais rigorosos de profissionalização, a LDB 9.394/96 e a
resolução 02/97, estabelecem a regulamentação de cursos seqüenciais e a possibilidade de que portadores de diploma de
curso superior possam atuar na educação básica sem a devida formação, elementos que, aliados à possibilidade de redução da
carga horária do curso de 3200 horas para 1600 horas, através do aproveitamento de estudos anteriores, e a baixa exigência
de qualificação do corpo docente – 10% de mestres e doutores, em contraste com os 30% das universidades – caracterizam o
rebaixamento das exigências de um curso superior, contrariando toda a luta em favor da profissionalização e da valorização
social da profissão, pois, provocam o aligeiramento e a desqualificação da formação que, segundo Freitas (1999), passa a ter
um caráter técnico-profissional, o que evidencia uma concepção tecnicista do educador (neotecnicismo).
Além disso, não se pode esquecer da formação em nível médio na modalidade normal, para os professores da
educação infantil e das primeiras séries do ensino fundamental, que é contraditória à exigência de formação em nível superior
para o exercício da docência.
Ao analisar as construções teóricas e ideológicas relativas ao trabalho e à formação docente, Barreto (2004) afirma
que os documentos que tratam da formação de professores para a educação básica explicitam a aposta na reconfiguração do
trabalho docente caracterizando-se pela troca da categoria trabalho pelas categorias da prática e da prática reflexiva, dando
sustentação a expressões como atividades e tarefas docentes.
É a materialização discursiva do esvaziamento desse trabalho, com a restrição do professor à escolha do material
didático a ser usado nas aulas, durante as quais lhe cabe controlar o tempo de contato dos alunos com os referidos materiais,
concebidos como mercadorias cada vez mais prontas para serem consumidas. (BARRETO, 2004, p. 1186)

1
Regulamentado pelo Parecer no 115/99 da Câmara de Ensino Superior do Conselho Nacional de Educação.
2
Regulamentado pelo parecer 970/99 da Câmara de Educação Superior.

585
Apesar da LDB 9.394/96 colocar o professor como eixo central da qualidade da educação e enfatizar a formação e a
profissionalização docente, a regulamentação dos seus artigos através de documentos como as Diretrizes Curriculares para a
Formação de Professores da Educação Básica, evidencia a precarização do trabalho e da formação docente. Essa precarização
também pode ser percebida, quando se analisa a difusão dos programas de formação.

4.3 A difusão dos programas de formação


De acordo com Melo (1999), existe uma tendência em se investir na educação básica, porém, atendendo às políticas
defendidas pelo Banco Mundial. Estas ações consistem basicamente em: habilitar professores leigos, realizar o
desenvolvimento profissional dos professores em exercício e treinamento em serviço.
A ressalva a essas duas modalidades de formação – “em serviço e através de treinamento” – denota que a política
delineada no instrumento legal está mais preocupada com os aspectos pragmáticos da formação do que com a formação de
professor capaz de agir sobre a sua prática a partir de suas próprias reflexões. A opção por essa modalidade de formação
atende aos princípios de flexibilidade, eficiência e produtividade dos sistemas de ensino. (CABRAL NETO, CASTRO, 2004,
p. 113)
A prioridade para a capacitação em serviço, em detrimento da formação inicial, contempla as recomendações do
Banco Mundial que, de acordo com Torres (1996) considera a formação inicial de professores muito dispendiosa, chegando a
considerá-la um beco sem saída, recomendando os investimentos na formação continuada, mais viável economicamente,
através da educação a distância (que seria outro fator de viabilidade econômica).
Cabral Neto e Castro (2004) consideram que o uso da educação a distância na formação de professores para a
educação básica, a partir da década de 1990, está ocorrendo de forma inadequada, estando permeado por inúmeras
fragilidades. Além disso, essa utilização está articulada com as orientações dos organismos internacionais e com as
estratégias neoliberais, não sendo capaz de resolver os problemas da educação brasileira em termos qualitativos.

5 Considerações finais
As mudanças nos processos produtivos e sociais revelaram a necessidade de um novo tipo de educação, de uma
nova proposta pedagógica e, conseqüentemente, de um novo perfil de educador, com implicações diretas para a formação
docente. Porém, a formação docente apresenta problemas que estão colocados há décadas, sem conseguir resolvê-los.
Como foi demonstrado, no momento em que novas e diversas exigências de escolarização estão tornando a
atividade educativa mais complexa, no Brasil, vem ocorrendo um empobrecimento cultural aliado à redução das metas e dos
objetivos atribuídos à formação docente, o que evidencia o descompasso entre as políticas de formação e os objetivos de
melhoria da qualidade da educação pública.
Entre avanços e contradições, parece claro que, após uma década de nova LDB, pouco se pode perceber em termos
de melhoria na qualidade da formação de professores. Na verdade,
Ao analisar mais detalhadamente os artigos da Lei de Diretrizes e Bases, no que se refere à formação do professor,
verifica-se um descompasso entre as novas exigências requeridas, hoje, para o profissional da educação e a formação
pretendida pelo MEC. Em contrapartida, percebe-se que ela está articulada com as diretrizes propostas pelos organismos
internacionais, preocupados mais com o imediatismo, com a relação custo benefício, em detrimento da qualidade de ensino e
de investir consistentemente na formação do professor. (CABRAL NETO, CASTRO, 2004, p. 119)
É importante ressaltar que, apesar dos seus aspectos negativos, a LDB 9.394/96 apresenta alguns elementos que
podem contribuir para a melhoria da formação docente, dos quais pode-se destacar a associação entre teorias e práticas, a
exigência de todos os docentes da educação básica em nível superior e a indicação da experiência docente como pré-requisito
para quaisquer funções do magistério.
De acordo com Pereira (1999), as leis que vêm sendo formuladas para regulamentar a formação de professores no
Brasil demonstram o interesse em romper com o modelo da racionalidade técnica, onde a preparação desse profissional é
fornecida através de um conjunto de disciplinas científicas e outro de disciplinas pedagógicas que lhe fornecerão os
conhecimentos necessários às atividades em sala de aula e que serão aplicados no estágio supervisionado.
A exigência de, no mínimo de 300 horas de prática de ensino em qualquer formação docente, feita pela LDB
9.394/96, pode ser mais uma evidência da tentativa de superar a dicotomia entre teoria e prática na formação docente.
Deve-se ter clareza de que o rompimento com o modelo da racionalidade técnica não pode ser convertido em um
modelo que supervaloriza a prática em detrimento da formação teórica. Além disso, deve-se ter cuidado contra os riscos de
improvisação, aligeiramento e desregulamentação na formação docente.
O simples fato de essas conquistas estarem apontadas na lei é muito importante, haja vista que a legislação serve de
referência para a cobrança e para a avaliação de como as políticas educacionais serão tratadas pelo poder público. Porém, é
importante ressaltar que estas são conquistas pelas quais se deve lutar objetivando sua implementação de forma efetiva, pois,
até agora, poucas foram as ações realizadas pelas autoridades responsáveis pela educação brasileira que se refletiram em
melhora efetiva da qualidade da formação inicial do professor.
Basta observar, por exemplo, o parecer 970/99, aprovado em 10/11/99 que, segundo Freitas (1999), estabeleceu a
formação dos especialistas separada da docência, trazendo as habilitações de volta ao curso de pedagogia, contrariando o

586
movimento real, a produção teórica na área e a própria LDB 9.394./96 que, em seu artigo 67, estabelece a experiência
docente como pré-requisito para que se possa exercer as demais funções do magistério.
Este fato aponta para a necessidade de que todos os envolvidos no processo educativo permaneçam alertas às
regulamentações dos artigos da LDB 9.394/96, para que os seus aspectos positivos, frutos das muitas reivindicações dos
professores, sejam realmente efetivados.
Talvez assim, a formação deixe de ser uma iniciativa individual, tornando-se um direito do professor e se
encontrando inserida nas políticas públicas para a valorização profissional, ajudando o professor a responder aos problemas
do cotidiano da escola, em uma sociedade caracterizada pelas mudanças tecnológicas, sociais, políticas, econômicas e
culturais.

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Trabalho, Educação e Prática Docente

Eliana Monteiro Moreira Moreira


Universidade Federal da Paraíba
emmoreira@uol.com.br

Maria da Salete Barboza de Farias Farias


Universidade Federal da Paraíba
runasluz@gmail.com

Resumo: Diante do mundo globalizado que vem transformando e marcando a realidade social nas duas últimas décadas, tornando o trabalho
cada vez mais flexível e precarizado, surgiu o interesse de conhecer as reverberações desse processo no âmbito da formação e da prática
docente. O nosso estudo incide sobre os docentes do ensino superior com o objetivo de analisar o cotidiano do trabalho desses profissionais,
buscando compreender as estratégias e ações utilizadas para o enfretamento dos desafios encontrados, bem como apreender de que forma as
condições de trabalho vem interferindo na qualidade da prática educativa e da reflexão acadêmica. A metodologia a ser utilizada pauta-se
pela abordagem qualitativa priorizando a entrevista com roteiro temático por esta viabilizar o acesso ao universo de significado, motivações,
aspirações, valores e atitudes dos sujeitos envolvidos no trabalho docente. A importância desse estudo se situa no possibilitar a utilização do
material apreendido durante a pesquisa de campo como contribuição para repensa-lo na formação dos profissionais da educação e no seu
rebatimento qualificado no processo de aprendizagem. As categorias trabalhadas se referem a participação, autonomia, condições de
trabalho, formação e pratica.

Introdução
São abundantes as pesquisas e estudos que vêem se centrando na atualidade no enfatizar os efeitos perversos
provocados pelo atual processo de globalização no que se refere a precarização do trabalho docente. Contudo, diante da
complexidade e da mutabilidade que envolve tal tema, à medida que nos reaproximamos dele, sentimo-nos cada vez mais
instigadas a nos debruçar diante das novas frentes de busca, sinalizando veredas inexploradas ou ainda não suficientemente
trilhadas exigindo assim do pesquisador uma parada no sentido de melhor apreender os efeitos que a globalização vem
provocando no mundo trabalho e suas reverberações sobre o campo pedagógico.
Dentro do cenário de globalização que vem marcando a realidade nas duas últimas décadas surge a imposição da
reformulação do papel do Estado para fazer face ao ritimo célere com que ocorre transformações que se capilarizam nos mais
distintos setores (CARNOY, 2002). No bojo dessa dinâmica se inscreve o setor educacional, que, como os demais passa a
experimentar toda uma série de reformas, programas e ações respaldada pela importância do conhecimento no enfrentar essas

588
mudanças. Novas questões trazidas ao debate e as discussões sobre os processos de flexibilização e precarização do mundo
trabalho chegam também às políticas e práticas de formação dos profissionais da educação. Essas trarão reflexos marcantes
sobre a organização do trabalho docente quer no âmbito da educação básica como no âmbito da educação superior.
Os educadores formulam críticas ao modelo de formação docente que recebem e as condições em que
desempenham as suas atividades pedagógicas: muitas vezes o que recebem, não corresponde às exigências e aos desafios da
sociedade contemporânea demarcada por radicais transformações no setor produtivo e as diversas dinâmicas de precarização
das condições de trabalho vivenciadas também pelos docentes cada vez expressam os impactos dessa nova realidade na sua
formação e na sua prática. Entretanto é consensual dizer que esse contexto de nova configuração social provoca
sociabilidades e exigem das agências formadoras novas competências e habilidades a fim de que os educadores possam vir a
atuar com qualidade e criticidade, bem como, paradoxalmente a indicação da lógica da integração em função de necessidades
e demandas de caráter coletivo para fazer face ao rítimo de concorrência e competitividade estimulado por esta onda de
transformações.
No Brasil, estudos de Oliveira (2003), e entre outros, destacam que as reformas educacionais recentes têm
repercutido sobre a organização escolar, provocando reestruturação no trabalho pedagógico. Este discurso faz-se também
ecoar na literatura que aborda a formação dos profissionais da educação e a sua atuação no processo pedagógico, tendo na
escola o espaço privilegiado de ensino e aprendizagem (PIMENTA, 1999; WEBER, 2000). Weber (2000) enfoca que “a
escola como lugar de ensino, de aprendizagem, de organização do pensamento, de acesso à cultura, de incorporação de
conteúdos básicos, de desenvolvimento de habilidades e de competências, enfim, de socialização das novas gerações” (p.13).
A aproximação do debate entre estes autores reside no reconhecimento da preparação científica, técnica e pedagógica
assumindo como compromisso maior a busca de uma efetiva interferência na realidade educacional por meio do processo de
ensino e de aprendizagem, núcleo básico do trabalho docente social.
Numa perspectiva mais ampla, Kuenzer (1998) adverte que as configurações do novo cenário econômico-político-
social, dimensionado pela flexibilização do mundo do trabalho, exige continuamente a aquisição e domínio de competências
reestruturadas em face às inovações tecnológicas. Vale sublinhar que a formação docente para a qualidade da educação e
como mecanismo facilitador legítimo para o ingresso dos alunos no mundo do trabalho é reconhecido e inclui-se no cerne das
discussões educacionais.
As ações governamentais do Ministério de Educação e Cultura - MEC, ao interferir nas estruturas das instituições
superiores que formam professores, sobretudo das universidades públicas para atuarem na educação básica, indicam a
necessidade de uma formação do sujeito como participante de um mundo globalizado e complexo. Esta discussão traz
também em seu cerne o problema da qualidade na formação docente, ou seja, formar não somente para saber ministrar
conteúdos, mas também para estimular a reflexão, a crítica e o aprendizado mais amplo do aluno. Nesse sentido, Pimenta
(1999) coloca que a educação, não só retrata e reproduz a sociedade, mas também projeta a sociedade desejada. Por isso, a
educação vincula-se profundamente ao processo civilizatório e humano. Nessa direção, ela afirma que: “enquanto prática
pedagógica, a educação tem, historicamente, o desafio de responder às demandas que os contextos lhes colocam”(PIMENTA,
1999, p. 13).
A exigência de formação superior para todos os professores da Educação Básica, estabelecida no artigo 62 da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - DB nº 9394/1996, vem consolidar tal preocupação: “A formação de docentes
para atuar na Educação Básica far-se-á em nível superior, em curso de Licenciatura de graduação plena em Universidades
{...}”.
Entendemos que o trabalho docente na nossa sociedade tem se apresentado de forma aproximada ao modelo de
organização capitalista prevalecente conforme nos faz refletir Oliveira (1998) que apesar de suas especificidades “no
processo de trabalho capitalista os insumos, objetos e meios de trabalho não se apresentam de forma aleatória, eles,
juntamente com a força de trabalho, estão submetidos à uma orientação bastante específica que é a finalidade da produção
sob o signo do capital”.
Ao nos aproximar desse quadro surgiu o interesse em desvendar e compreender os desafios da realidade do trabalho
que os docentes dos cursos de licenciatura da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, situado no município de João Pessoa,
(capital da Paraíba, um dos estados do nordeste do Brasil), enfrentam no seu cotidiano, no sentido de apreender o que de
novo vem interferindo sobre a prática docente, em que os conteúdos ofertados nos Projetos Político-Pedagógico têm se
mostrado adequados na formação dos futuros profissionais da educação diante desse novo mercado de trabalho que, dada as
exigências da pauta de mudanças impostas pelo ideário neoliberal têm cobrado das instâncias formadoras, um novo perfil de
qualificação dos sujeitos.
Dentro dessas orientações legais é que se assiste na Universidade atualmente a oferta de 23 cursos de licenciaturas,
sendo 3 (três) Cursos de Licenciatura em Pedagogia, distribuídos respectivamente nos campus I, III e IV, formando e
preparando profissionais para o exercício da docência, esta aqui entendida de acordo com as Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCNs) “como atividade de ensino e de gestão”. O estudo pretende na seqüência abranger todas as Licenciaturas
dos demais cursos, pois o nosso interesse é o de verificar em que as modificações ocorridas no mundo do trabalho em nível
macro, vêm interferindo na qualidade e na prática docente cotidiana, considerando a realidade local.
Este texto resulta, pois, das primeiras reflexões acerca desta investigação, tendo como suporte uma pesquisa que
vem sendo realizada junto aos docentes dos Cursos de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba, campus I, situado na
capital João Pessoa e dos campi situados no interior do Estado: campus III (Bananeiras) e campus IV (Mamanguape).

589
Contextualizando a intensificação das condições de precarização da formação e da prática docente
Globalização, mundialização é um tema que há muito vem ocupando o centro dos debates dos campos de estudos
os mais diversos, uma vez que seus efeitos se capilarizam por todas as dimensões da vida das sociedades. Não sem
perplexidade acompanham-se, através das falas de autores os mais renomados, as análises sobre a onda avassaladora de seus
impactos marcando a realidade dos povos. Nenhuma sociedade tem sido poupada das suas conseqüências que se espraiam em
nível planetário. O que faz a diferença é a diversidade com que estas se manifestam, pois uma das características desse
processo é a quebra das fronteiras espaço/tempo como muito bem lembra Harvey (1992), fazendo-as assim onipresentes e,
por isso mesmo, “unificando” as histórias das sociedades quer próximas, quer as mais distantes. Sobre essa diversidade
Santos (2002) adverte que o impacto causado nas estruturas e práticas nacionais e locais, se aparentemente monolítico, é de
fato, contraditório, desigual e heterogêneo.
“Trata-se de um processo complexo que atravessa as mais diversas áreas da vida social, da globalização dos
sistemas produtivos e financeiros [...] e ao aumento exponencial das desigualdades sociais [...] das novas práticas culturais e
identitárias aos estilos de consumo globalizado” (p.11).
Nesta mesma linha de ponderação sobre o processo de globalização, assim argumenta Ianni (2000) como sendo,
[...] São vários e encadeados os processos que caracterizam a globalização do capitalismo desde a acumulação
originária à concentração e centralização do capital; do desenvolvimento quantitativo e qualitativo das forças produtivas ao
desenvolvimento e à modernização das relações de produção; da nova divisão internacional do trabalho e da produção à
constituição do mercado mundial, influenciando ou articulando mercados nacionais e regionais; das formas singulares e
particulares do capital ao capital em geral (P. 180).
O contexto social, político e econômico da década de 1990 caracteriza-se pelo quadro de transformações decorrente
do processo de globalização anunciado pelos autores acima, interferindo sobre os padrões de sociabilidades tanto no nível
nacional quanto no nível mundial resultante do avanço tecnológico do mundo do trabalho. Boaventura (2002) Harvey (1992)
argumentam que esse processo exige produção de conhecimento cada vez mais rápida, consumidores específicos e mão de
obra com formação para a multifuncionalidade.
A educação neste contexto é considerada estratégia política relacionada ao desenvolvimento econômico e à
integração social, conferindo em tese, a capacidade de proporcionar aos indivíduos as ferramentas necessárias para participar
da economia moderna. Numa perspectiva mais ampla, Kuenzer (1998) adverte que as configurações do novo cenário
econômico-político-social, dimensionado pela flexibilização do mundo do trabalho, apontam para novos desempenhos dos
professores, onde seriam sujeitos participativos, flexíveis respondendo aos interesses da nova ordem capitalista [...]. Os
estudos vêm demonstrando que os efeitos da globalização econômica não se refletem apenas no nível macro da realidade.
Eles penetram igualmente de forma perversa o universo mais íntimo das subjetividades através do comprometimento das
sociabilidades, nas desvinculações/desinserções provocadas pelo nomadismo ocupacional, no descompromisso com o outro,
na falta de afeto, ética e solidariedade.
Druck (2002) analisando o processo de transformação que vem marcando o mundo trabalho a partir do ideário
neoliberal que dá sustentação ao processo de globalização em curso, demonstra que neste cenário de desenvolvimento e
modernização, surge paralelo e paradoxalmente a ele expansão crescente do trabalho flexível e precarizado em todos os
lugares e instituições, afetando a dinâmica e as subjetividades dos sujeitos trabalhadores. Castells (1998, p.157) adverte que
nesta fase do capitalismo é imperante o clima de inquietação e medo em relação à manutenção do emprego, mesmo que as
condições de trabalho sejam precarizadas. Neste sentido, cabe-nos registrar que a perda dos direitos sociais da classe
trabalhadora neste período de acumulação flexível remonta da falência do bem-estar social cujos modos de organização
inspirados nos princípios do taylorismo e do fordismo reaparecem com nova roupagem, a da flexibilização, levando os atores
sociais à vivenciar um quadro crítico e complexo.
Segundo esta mesma autora, um dos aspectos destacado deste cenário é a “dupla transformação do trabalho
aparentemente paradoxal”. De uma parte, os novos modelos de organização e gestão exigem estabilidade e envolvimento do
sujeito no processo de trabalho, envolvendo autonomia, iniciativa, comunicação, integração e, de outra, os vínculos
empregatícios se tornam precários, expressos na proliferação de trabalhos parciais e temporários, nos conteúdos do trabalho,
da rotinização, o excesso de ênfase no produtivismo etc. Este quadro, em todo o mundo, é característico da ofensiva
capitalista sobre o trabalho, tendo nas exigências de flexibilização, eficácia, excelência e da polivalência as principais
demandas do mundo do trabalho tecnologizado.
Sem dúvida com a pulverização das atividades laborais, a flexibilização do tempo segundo o volume de produção
tem trazido conseqüências para os sujeitos envolvidos no processo. A esse embate competitivo entre o mundo individual e o
mundo social, entre o produzir mais, e mais muitas vezes em detrimento da ética e da solidariedade Frigotto (2002) denomina
de “canibal individualismo”. Trazendo-se para o campo pedagógico pode-se verificar que o produtivismo tem levado os
professores tanto da educação básica como da educação superior, a se preocuparem mais com a quantidade do que com a
qualidade dos trabalhos, o que vem contribuindo para a fragilidade dos processos reflexivos e conseqüentemente o seu
impacto sobre o empobrecimento do ensino.
Conforme anunciado, a educação não ficou imune a estas mudanças tendo sua expressão maior na materialização
das reformas educacionais iniciadas na década de 1960 e aprofundadas na década de 1990 no âmbito das políticas de
formação e das práticas educativas, cujo principal marco de mudanças no mundo do trabalho “situa-se numa crise de

590
acumulação do capital ocorrida em âmbito internacional, por volta do inicio da década de 1970” (BOSI: 2007, p. 1505).
Dessa forma concordamos com este autor que a precarização e a flexibilização do trabalho já eram componentes cruciais na
equação do desenvolvimento do capitalismo no Brasil (p. 1506).
No processo de constituição da referida precarização do trabalho docente, a partir da década de 1990 destaca-se o
papel assumido pelas agências internacionais de fomento e financiamento de auxiliar no desencadeamento das reformas nos
sistemas educacionais de vários países da América Latina e de financiar em parte esse processo. De acordo com Frigotto,
As novas demandas de educação explicitadas por diferentes documentos dos novos senhores do mundo - FMI,
BIRD, BID - e seus representantes regionais - CEPAL, OREALC - baseadas nas categorias sociedade do conhecimento,
qualidade total, educação para a competitividade, formação abstrata e polivalente, expressam os limites das concepções da
teoria do capital humano e as redefinem sobre novas bases (FRIGOTTO, 2003, p. 19).
Assim, podemos dizer que o desmonte do trabalho docente pode ser definido como conseqüência do contexto
neoliberal - globalização, novas tecnologias de informação e comunicação, nova reordenação do processo de automação em
nível internacional, que modificam a estrutura produtiva e a organização do trabalho.
Nessa situação, no âmbito das políticas públicas para educação, avulta a importância da Universidade Brasileira,
para dar conta da formação de pessoal da mais alta qualificação, inclusive para coordenar e dinamizar os níveis de ensino.
Seguramente, formar recursos humanos de boa qualidade, gerar e difundir conhecimentos científicos e tecnológicos é a
estratégia essencial para o desenvolvimento nacional, regional e local, nesta era de mundialização da economia.
Se o trabalhador em geral vem sofrendo diretamente os reflexos desta nova dinâmica de trabalho, exigida pela
acumulação flexível, o que se tem observado é que no campo educacional não tem sido menores este reflexos. Outros
aspectos a serem considerados dizem respeito a escassez dos recursos materiais, as restrições das condições de trabalho, a
desvalorização social do professor e a proletarização da profissão docente são alguns dos sinais que impactam a prática e a
formação dos profissionais da educação.
Estas constatações que vem permeando o cotidiano dos espaços de ensino superior também são analisadas por
Mancebo (2005) ao observar como a situação do trabalho docente nas instituições de ensino público, comenta como esta se
efetiva através das:
[...] (sub) contratações temporárias de professores. Sobre esse aspecto é necessário destacar que a precarização
intensifica o regime de trabalho, aumenta o sofrimento subjetivo, neutraliza a mobilização coletiva e aprofunda o
individualismo, atingindo, obviamente, não somente os trabalhadores precários, mas carreando grandes conseqüências para a
vivência e a conduta de todos aqueles que trabalham nas IES (p.11).
E neste sentido algumas questões afloraram e nortearam as nossas buscas. Em que os aspectos provocados pelo
processo de precarização e flexibilização vêm cindindo o cotidiano acadêmico, no controle e autonomia do docente em
relação ao seu trabalho; nas oportunidades que se abrem para as atividades de formação, atualização de conteúdos; nas
possibilidades de participação em eventos etc. Em que este cotidiano tem zelado pela maior valorização de suas práticas e de
maior reconhecimento social? Em que tem possibilitado uma melhor qualidade nas relações entre pares e nas relações dos
docentes com o público alvo de suas práticas? Que empodeiramento o docente tem tido para intervir na modificação desse
cotidiano eivado de privações e desafios? Como o docente vê as suas condições de trabalho? Elas se apresentam adequadas?
Que recursos técnicos didáticos ele conta como suporte para a fixação dos seus conteúdos acadêmicos? a sua carga horária
vem se apresentando adequada para atender as exigências do trabalho acadêmico de qualidade? É o que passaremos a
considerar na seção seguinte como resultado parcial de nossa investigação.

Reverberações das condições do trabalho docente: produção ou (re)criação?


O primeiro momento da pesquisa foi realizada com os docentes do campus I. A metodologia que utilizamos
pautou-se pela abordagem qualitativa tendo nas entrevistas com roteiro temático o instrumento priorizado, de um lado pela
possibilidade de dar ao entrevistado um “clima” de mais espontaneidade do se colocar diante das questões e, por outro, por
atender ao interesse de se trabalhar com o espaço “das relações, dos processos e dos fenômenos”, ou seja, o universo de
significados, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes. (RICHARDSON, 1999; TRIVINÕS, 1990). Esta postura se
aproxima das reflexões metodológicas feitas por Minayo (2000), quando realça o abarcamento do significado e da
intencionalidade das práticas sociais pela pesquisa qualitativa.
As pesquisas qualitativas são entendidas como aquelas capazes de incorporar a questão do ‘significado e da
intencionalidade’ como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu
advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas (MINAYO: p.10).
No roteiro das entrevistas procuramos dar destaque exatamente aos elementos que explorassem o dia –a- dia do
docente, para exatamente apreender como eles se colocavam diante das exigências e dos impasses apresentados na sua prática
acadêmica: carga horária, sua compatiblidade com o conjunto das atividades requeridas, participação em eventos, tempo,
acesso a recursos didáticos para enriquecer a sua prática, autonomia pedagógica, reconhecimento do docente em relação a sua
formação e lugares efetivamente ocupados, a questão da remuneração, enfim, elementos estes que pudessem dar um perfil da
precarização vivenciada.
As primeiras aproximações com as entrevistas vêm sinalizando na sua maioria o quanto que este cotidiano é
permeado pela lógica produtivista, onde o tempo do docente é prioritariamente absorvido pelo volume de atividades,

591
produções, perseguindo o tempo todo pontuações determinadas pelos órgãos de fomento de ensino. Através disso é feito as
avaliações e estabelecidas a eficácia do docente. O tempo passa a ficar a serviço dessa dinâmica. E o que é pior precarizando
a dimensão mais significativa das subjetividades dos sujeitos, das suas dificuldades pessoais de desenvolver as suas
sociabilidades por correr e atender essas exigências impostas pela academia hoje. Você vale pelo que você pesa em números
de produção em detrimento da qualidade e da criatividade. Nesta corrida desenfreada que o individualismo alimenta fica-se
muito mais atrás dos recursos tecnológicos que vem fragilizando a reflexão e a crítica do que o aprofundamento sobre a
realidade social e sua articulação com a prática pedagógica. Outro aspecto que aparece nas falas denuncia a exigência de mais
tempo para se avançar na produção em todos os espaços mediante os recusos do computador e da internet.
O aviltamento não vai apenas sobre as questões matérias e estruturais mas sobre a questão da falta de
reconhecimento e de valorização profissional que ronda os profissionais da educação. Norteando toda essa coreografia por
um individualismo exacerbado responsável pela minação dos relacionamentos pela busca de competitividade e concorrência,
que muitos professores não têm participado de discussões pedagógicas por sobrecarga de trabalho. O excesso de alunos por
turma parece ser um dos fatores desagregadores da autonomia e satisfação dos docentes.

Considerações finais
Essas foram algumas das constatações que sinalizaram veredas ricas a serem aprofundadas para nos dar um
primeiro perfil de como vem se dando o aviltamento do cotidiano do trabalho docente, diante desses impasses, desafios,
provocados pelo desmonte maior que o trabalho vem conhecendo nesses últimos anos.
O sentido deste trabalho vai na direção de que seus resultados possam servir de elementos de reflexão e de ações
concretas e políticas que incidam sobre a superação dos impasses apresentados. O trabalho coletivo e interdisciplinar
proposto neste estudo mediante o olhar sociológico e educacional decerto fortalecerá a criação de novas metodologias de
ensino, instigará o pensamento crítico e reflexivo do processo pedagógico, portanto, oportunizará novas formas de
aprendizagem, de avaliação e de conhecimento.

Referências
BRASIL (2001). Lei 9394/96 de 20.12.96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília (DF): Diário Oficial da
União, nº 248 de 23.12.96.
BOSI, A. P. (2007) A precarização do trabalho docente nas instituições de ensino superior no Brasil nesses últimos 25 anos.
Educação e Sociedade, 101 (28), 1503-1523.
CARNOY, M. (2002)Mundialização e Reforma na educação: o que os planejadores devem saber. Brasília: Unesco.
CASTELLS, M. (1998), A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra. Vol. 1.
DRUCK, G.(2002) “Flexibilização e precarização: formas contemporâneas de dominação do trabalho”. In: Caderno
CRH/UFBa.
FRIGOTTO, G. (2003). Educação e a Crise do Capitalismo Real. 5ª edição. São Paulo: Cortez.
HARVEY, D. (1992). Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola.
IANNI, O. (2000). Teorias da Globalização. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
KUENZER, A. Z.(1998) As mudanças no mundo do trabalho e a educação: novos desafios para a gestão . In FERREIRA, N.
S. C. (org) Gestão Democrática da Educação: atuais tendências, novos desafios. São Paulo: Cortez.
MANCEBO, D. (2005). Trabalho docente: subjetividade e sobreimplicação. Reflexão & Crítica. Porto Alegre: UFRGS.
MINAYO, M. C.de S. (2000). O Desfio do Conhecimento. Pesquisa qualitativa em Saúde. ed. São Paulo/Rio de Janeiro:
Hucitec/Abrasco.
OLIVEIRA, D. A. (2003) As reformas educacionais na América Latina e os trabalhadores docentes. Belo Horizonte:
Autêntica.
PIMENTA, S. G. (1999) (org). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez..
RICHARDSON, R. J.(1999). Pesquisa Social. 3ª ed. São Paulo: Atlas.
SANTOS, M. (2000). Por uma outra globalização - do pensamento único à consciência universal. São Paulo: Record.
SANTOS, B. S. (2002). A Globalização e as Ciências Sociais. 2ª.ed. São Paulo: Cortez.
TRIVINOS, A. N. S.(1990) Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais. A pesquisa qualitativa em Educação. São Paulo:
Atlas.
WEBER, S. (2000). “Como e onde formar professores: espaços em confronto”. Educação e Sociedade, 70. Campinas, SP:
CEDES. pp. 129-155.

Construção de identidades profissionais

Zenólia Figueiredo

592
Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação Física e Desportos
zenolia@proteoria.org

Resumo: Desenvolvemos uma investigação cuja temática está circunscrita entre a disciplina Educação Física em escolas de ensino
fundamental, o professor e a profissão. Essa triangulação foi explorada nas idéias/ações analisadas a partir das memórias, dos tempos e dos
espaços praticados nos cotidianos de sete escolas municipais investigadas em duas fases da pesquisa. Na primeira, por meio de entrevistas e
questionários, buscamos nas memórias dos sujeitos experiências positivas e/ou negativas construídas na e com a Educação Física, bem como
as posições desses sujeitos sobre a disciplina praticada/vivida hoje nas escolas investigadas. Na segunda fase, por meio de observações,
focamos o ser professor de Educação Física, os espaços e tempos das aulas e a maneira como eles entendem a profissão. Vimos que as
posições apresentam diferentes modos de subjetivar a Educação Física e que constituem uma cultura escolar que influi, diretamente, nas
aulas que acontecem e que não acontecem nas escolas investigadas. Percebemos algumas ações intrínsecas e extrínsecas à Educação Física
propriamente dita; algumas pertencem aos modos de ser professor e as próprias subjetivações da área, outras aos modos que os sujeitos da
escola significam a Educação Física no cotidiano. Esses carregam histórias de vida, formações, vitórias/fracassos que essencialmente os
diferem e, conseqüentemente, possuem modos particulares de subjetivar. Em que pese essa subjetivação ser de ordem particular, está em
diálogo permanente com questões objetivas como condições de trabalho, descaso com a escola pública etc., e nessa relação percebe-se a
conformação de situações recorrentes passíveis de uma construção identitária.

Introdução
Essa temática de investigação representa a possibilidade de ampliação das análises construídas na pesquisa
intitulada “A Educação Física no Espaço/Tempo da Escola,” desenvolvida entre os anos de 2005 a 2007, pelos integrantes do
Práxis – Centro de Pesquisa de Formação Inicial e Continuada em Educação Física1. Buscou-se compreender as ações do
professor no espaço/tempo da escola, remetendo para questões relacionadas com a Educação Física escolar e com a profissão
docente. Consideramos que a cultura escolar, os modos de subjetivar a Educação Física como componente curricular e a
cultura docente constituem elementos para entender melhor a construção das identidades profissionais.
Na pesquisa, espaço/tempo foi tomado no sentido de indicar a necessidade de analisar os desafios da prática
docente na perspectiva das subjetividades da Educação Física e da condição de ser professor, entendendo que o professor, ao
executar sua atividade, necessita de espaço e tempo determinados, a fim de tornar “lugar” o espaço por ele ocupado. Lugar
que não é estático, mas que relaciona, sofre e promove modificações (VEIGA-NETO, 2001). O espaço escolar não seria,
então, uma estrutura neutra onde deságua a ação escolar, mas sim um constructo social que expressa e reflete determinados
discursos. O tempo do qual falamos é o tempo humano, “[...] percebido e significado pela experiência humana e como é
usado no transcurso dessa experiência” (VEIGA-NETO, 2006, p. 122).
Ao decidirmos investigar o cotidiano escolar, centrados na Educação Física e na condição de ser professor,
assumimos os riscos, os absurdos e as possibilidades de investigar a e na escola (GERALDI, 2006). Há singularidades, nesse
cotidiano, que constituem a própria cultura da instituição escolar. A escola produz, desenvolve e reproduz uma cultura
específica, ligada à sua própria origem como instituição. Não como um conjunto de normas que definem os saberes a ensinar
e os comportamentos a inculcar, mas como uma cultura que não se adquire a não ser na escola, gerada e transmitida na e pela
escola.
A cultura da instituição, da comunidade, das políticas educacionais e curriculares e dos docentes como grupo social
e profissional perfaz um conjunto de crenças, valores, hábitos, formas de fazer as coisas e normas dominantes que
influenciam e determinam o que os docentes consideram valioso no seu contexto profissional e, ainda, os modos
politicamente corretos de pensar, de sentir, de atuar e de se relacionar entre si (MORGADO, 2005).
Propusemos pesquisar os cotidianos onde se produzem as subjetividades e as diversidades que circundam a
Educação Física no ensino fundamental, muitas vezes, indicados pela cultura escolar e pela cultura docente.
Nos primeiros sub-títulos que seguem, apresentamos uma espécie de síntese dessa pesquisa “concluìda” e; em
seguida, indicamos algumas possibilidades futuras de ampliação das análises realizadas, em torno da temática construção das
identidades profissionais.

As Escolhas Metodológicas e os Registros Iniciais da Primera Fase da Investigação


Tratou-se de um estudo qualitativo que utilizou instrumentos como: entrevista, questionário, observação, diário de
campo e registro fotográfico para proceder ao trabalho de campo. O lugar da pesquisa foi constituído por sete das 41 escolas
do Sistema de Ensino Municipal de Vitória, representativas das sete sub-regiões educacionais do município. Cada escola
deveria atender aos seguintes critérios: a) ofertar a Educação Física nos três turnos ou projetos relacionados; b) no caso de
oferta em apenas um ou dois turnos, ter o maior número de alunos matriculados.
Definido o lugar, selecionamos os sujeitos. Na primeira fase da pesquisa, os sujeitos foram os diretores, o corpo
técnico-pedagógico, os professores de outras disciplinas, alunos, pais e mães dos alunos participantes da pesquisa que

1
Localizado no Centro de Educação Física e Desportos (CEFD) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e registrado no Diretório Grupos do CNPq. A
pesquisa foi realizada por dois professores da Instituição, uma professora de ensino superior da rede privada, uma professora do ensino fundamental do
município de Vitória e por quatro alunas em formação, sendo três bolsistas e uma voluntária.

593
convivem na mesma escola. O objetivo na escuta desses sujeitos foi apreender de que maneira eles vivem/praticam a
Educação Física no espaço/tempo da escola. Em cada escola, fizemos opção de escutar o diretor e dois professores que
compõem o corpo técnico-administrativo.
Paralelamente a esse trabalho de campo, realizado no segundo semestre do ano de 2005 e no primeiro de 2006,
transcrevemos os diálogos e nos aproximamos dos professores de Educação Física de cada escola investigada. A segunda
fase dessa pesquisa foi dedicada aos professores de Educação Física.
Os registros iniciais realizados com os sujeitos das escolas permitiram ao Grupo PRÁXIS algumas reflexões. A
mais profícua foi a possibilidade de interpretar as posições dos diretores, do corpo técnico-pedagógico, dos professores das
outras disciplinas que compõem o currículo escolar, dos alunos e das mães, como diferentes modos de subjetivar a Educação
Física, modos que constituem uma cultura escolar que influi diretamente nas aulas que acontecem e que não acontecem nas
escolas investigadas.
Não é possível “olhar” para a disciplina e para a área e ver o professor do ponto de vista do isolamento profissional,
como único responsável pela hierarquização, desvalorização ou outras tensões complexas que têm acompanhado a Educação
Física escolar ao longo dos tempos.
Registramos, sinteticamente, as posições-de-sujeito de forma descritiva e, quando necessário, agrupamos em
questões complementares; em seguida, analisamos de que maneira essas posições influenciam a construção de uma cultura
escolar positiva e/ou negativa com os alunos e como se relacionam com as aulas de Educação Física e com o ser professor.
O diálogo, com os diretores de escola; com o corpo técnico-administrativo; e com professores de outras disciplinas,
permitiu apreender algumas posições-de-sujeitos sobre a Educação Física vivenciada por eles. Buscamos ouvi-los sobre as
experiências que ficaram registradas na memória de cada um, quando tiveram aulas de Educação Física nos tempos em que
cursaram o ensino fundamental e médio, e, também, sobre as aulas desenvolvidas e o professor de Educação Física das
escolas em que trabalham. Em seguida, ouvimos mães e alunos. Tentamos contatar todos os pais e mães dos alunos
entrevistados e, mesmo não tendo conseguido êxito total, descrevemos e analisamos as conversas realizadas.
Os diretores tiveram experiências diferentes com a Educação Física, apesar de terem vivido momentos históricos
aproximados em função das suas idades. Os registros indicaram dois pólos inversos no que diz respeito às aulas: um no
sentido de não ter vivido nada que tivesse marcado muito e outro no sentido de terem tido experiências fortes não com a
Educação Física, mas com o esporte.
Passado o registro do vivido nos tempos escolares, direcionamos os diálogos para o que vivem hoje. Buscamos
saber a opinião de cada um sobre as aulas desenvolvidas na escola, a disciplina com relação ao ensino e à aprendizagem
dos/as alunos, o papel da Educação Física como componente curricular e a prioridade das disciplinas que compõem o
currículo da escola.
As experiências das pedagogas, diferentemente das experiências dos diretores, parecem ter sido positivas. Nenhuma
pedagoga disse ter vivido algo negativo na/com a Educação Física no ensino fundamental ou médio. As experiências
estiveram mais associadas a outras práticas corporais, para além do esporte, como a ginástica e jogos recreativos.
Ao conversarmos com as pedagogas sobre a aula desenvolvida, a disciplina com relação ao ensino e à
aprendizagem dos alunos, o papel da Educação Física como componente curricular e a prioridade das disciplinas que
compõem o currículo da escola hoje, tivemos posições bastante diferenciadas. As mais recorrentes dizem respeito à questão
disciplinar, ao cumprimento do horário das aulas, ao controle dos alunos em quadra e ao desenvolvimento das aulas sem
maiores transtornos para a coordenação.
As subjetivações construídas pelos professores das demais disciplinas são mais diversificadas do que as elaboradas
pelos diretores e pedagogos. Revelam um maior estranhamento com a Educação Física a partir de questões, como sentimento
de vergonha com relação ao corpo, auto-exclusão e o trabalho de preparação física desenvolvido.
Sobre a posição dos professores, com relação às aulas vividas nas escolas em que trabalham, houve uma
recorrência, independente da escola em que atuam e da disciplina que ministram, quando disseram que as aulas deveriam ser
mais diretivas e que os alunos deveriam participar da mesma maneira que participam nas suas disciplinas.
O diálogo com as mães e com os alunos teve como referência um roteiro diferenciado daquele utilizado nas
conversas com os diretores, pedagogos e professores de outras disciplinas. Com as mães, a questão comum referiu-se à
experiência que tiveram com a Educação Física nos tempos em que eram alunas; depois, dialogamos sobre o conhecimento
que tinham acerca do que o filho aprende nas aulas, se sabiam o que o professor de Educação Física precisa estudar para ser
professor, quais disciplinas consideravam mais importantes para a formação dos filhos e o que gostariam que os filhos
fizessem nas aulas.
Para elas, Português e Matemática são as disciplinas mais importantes da escola. Apenas uma mãe, formada em
Magistério, disse que todas as disciplinas têm importância para a formação integral do aluno.
As conversas realizadas com os alunos foram mais próximas do roteiro utilizado com as mães. Perguntamos a eles
o que aprendem nas aulas, do que gostam de fazer, quais as disciplinas de que mais gostam, as que consideram mais
importantes e se sabem o que o professor de Educação Física precisa estudar.
Muitos conteúdos foram citados pelos alunos quando perguntamos sobre o que aprendem: ginástica, jogo, pular
corda, futebol, basquete, handebol, dança, técnicas e regras dos esportes, queimada, exercícios, fazer brinquedos,
informações do corpo humano. Disseram ainda que aprendem a respeitar e a tratar o colega e primeiros socorros.

594
Os meninos gostam de jogar futebol e as meninas gostam de jogar vôlei e queimada. Perguntamos aos alunos qual
ou quais as disciplinas de que mais gostam. Todos listaram mais de uma disciplina. Quatorze incluíram a Educação Física na
lista das disciplinas de que mais gostam. 21 citaram Português; Matemática foi citada por 27; Ciências por oito; Artes por
cinco; Inglês por três; História por quatro e Geografia por sete alunos. Um aluno da 7ª série do noturno citou a informática.
Quais disciplinas consideram mais importantes? A Educação Física foi citada por quatro dos 41 alunos
entrevistados; Português por dezessete; Matemática por vinte; Ciência por seis; História por quatro; e Geografia por dois;
Inglês por um aluno da 8ª série. A disciplina Artes não foi citada por ninguém.
Mais da metade dos alunos escolhidos disse que não sabia o que o professor de Educação Física deve saber para ser
professor. Uma síntese das respostas dos que disseram saber indica: conhecer/praticar jogos, regras, exercícios, corpo
humano, esportes, lidar com as pessoas.

A Segunda Fase da Investigação: olhares na Educação Física


A segunda fase da pesquisa focou olhares no ser professor de Educação Física, nos espaços/tempos das aulas e na
maneira como eles entendem a profissão. Nesse texto, selecionamos sínteses da imersão que fizemos em duas escolas.
Na primeira escola, optamos por conviver com e no espaço/tempo vespertino. Entrevistamos um professor e uma
professora atuantes nesse turno, bem como acompanhamos as aulas das turmas de quinta, sétima e oitava séries2 em dois dias
semanais. Encerrada essa etapa, organizamos os registros por série e data em um diário de campo e apresentamos cópia aos
professores para leitura, análise e retorno pessoal, em uma reunião previamente agendada. Após uma semana, retornamos à
escola a fim de que comentassem as próprias práticas, relatando sentimentos, inquietações e posicionamentos.
Na segunda escola, optamos pelo turno vespertino, focando aulas de um único professor (Daniel) atuante nas séries
iniciais e finais do ensino fundamental. Observamos as quintas, sétimas e oitavas séries, conforme ocorrera na primeira
escola investigada. Ao final, deixamos Daniel ciente de que retornaríamos à escola para que ele conhecesse o material
coletado e refletisse conosco sobre as aulas.
As observações realizadas na Escola “São José” ocorreram em várias circunstâncias, algumas sem que pudéssemos
prever. Acompanhamos aulas ministradas em quadra, coordenadas pelos dois professores entrevistados, responsáveis por
duas turmas simultaneamente.
Em determinado momento, a professora Cíntia, incomodada com as dinâmicas das aulas coletivas, decidiu separar
suas aulas das aulas do professor Nilmar, por isso presenciamos aulas ora em sala, ora em quadra, resolvendo a cada
observação onde ocorria melhor contribuição à prática pedagógica do professor de Educação Física.
Ao contrapor as entrevistas com as observações, foi possível entender que a fala expressa pode retratar um desejo
de ser ou de fazer, entretanto, ao longo das ações, é que pudemos nos aproximar dos acontecimentos cotidianos.
O período em que permanecemos na Escola foi suficiente para compreendermos a rotina estabelecida e, talvez,
automatizada por todos que a constituem.
Durante as aulas, foi nítida a presença dominante do esporte como conteúdo. Mesmo que, segundo os professores,
tal prática não seja direcionada à eficiência, sim, mas à saúde física-mental, integração/socialização, os docentes pautavam
suas aulas no ensinamento de fundamentos e execução dos jogos, permitindo aos alunos um aprendizado parcial, com
constantes correções quanto à execução de determinados fundamentos.
De acordo com a dinâmica das aulas, seria possível imaginar que proporcionariam desenvolvimento e socialização
dos indivíduos, mediante as vivências grupais, com caráter criativo. Todavia, durante a excitação do esporte, os próprios
alunos excluíam seus colegas ou se auto-excluíam por causa do baixo grau de habilidade de alguns, particularmente daquele
que naturalmente não participava das aulas, julgando-se incapaz de executar as manobras de determinado esporte, afirmando
não gostar da modalidade.
Nas aulas em quadra, observamos uma rotina internalizada. Os alunos vinham das salas com os professores, lá se
acomodavam na miniarquibancada, configurando grupos compostos por meninos e meninas. Nas atividades, a separação
ocorria da mesma forma. Em instantes, essa disposição era comandada pelos professores, em outros, pelos próprios alunos.
Na Escola “Maria Maia”, observamos alguns conflitos pessoais e profissionais devido ao curto tempo de atuação do
professor, ao mau comportamento dos alunos, à desobediência às regras escolares e à autoridade dos professores.
O professor Daniel propôs trabalhar as modalidades esportivas coletivas, entretanto percebeu que os alunos
queriam apenas futebol e vôlei e isso o desestimulou, mas afirmou que “[...] a aula seria o que ele quisesse e não o que os
alunos querem”. Para o professor faz aula quem quer, mas, ao final do bimestre, há trabalhos escritos para quem não fez aula
prática.
Daniel divide as modalidades por bimestres e, a cada mês, troca de modalidade. Na observação vimos o final da
prática do basquete, um mês de handebol e o último bloco com vôlei e futebol.

Modos de Subjetivar a Educação Física

2
Determinamos, como critério de observação, assistir às aulas de turmas coincidentes. Nem todas as aulas eram ministradas para as mesmas séries. Havia, por
exemplo, 5ª série C com 6ª série A.

595
Buscamos compreender os cotidianos investigados, partindo da idéia de que os modos como os sujeitos constroem
seus significados podem contribuir para a produção de uma cultura que influencia a Educação Física que se vive em cada
escola e, particularmente, nas duas em que concluímos o trabalho de campo.
Nos registros do vivido pelos diretores e pedagogas, percebemos significações confusas que podem repercutir no
modo como os alunos vivem suas aulas. Uma é a confusão entre Educação Física e Esporte. Outra diz respeito à falta de
clareza do objeto de ensino. Isso faz com que lhe atribuam o trabalho de formação de valores, de reforçar conteúdos de outras
disciplinas no espaço/tempo das aulas e de ocupar os tempos livres dos alunos quando outro professor se ausenta.
Significativa para a interpretação crítica, é a posição das pedagogas quanto ao processo ensino-aprendizagem.
Cumprir horários, saber lidar bem com os alunos, controlá-los em quadra, desenvolver as aulas sem transtornos, para a
coordenação da escola, são motivos de elogios ao professor. Quanto ao objeto de ensino da Educação Física, não houve
posição.
Professores das outras disciplinas expressaram posições enfáticas quanto ao trabalho desenvolvido, no sentido de
que as aulas deveriam ser mais diretivas e os alunos deveriam ser cobrados a participar. As mães não sabem o que os filhos
aprendem nas aulas de Educação Física e chegaram a expressar posição de que não aprendem nada. Os alunos que se
identificam com as aulas gostam de praticar esportes e os que não se identificam ficam sentados.
Essas e outras posições confusas no entorno da Educação Física, identificadas nas entrevistas, parecem estar
relacionadas com significações que hierarquizam as disciplinas e que reconhecem a Matemática e o Português como as mais
importantes e, também, como as que os alunos mais gostam. Essas posições identificadas nas duas escolas contrariam a idéia
bastante generalizada na área de que, em meio a todas as disciplinas escolares, os alunos gostam mais da Educação Física.
Há de se considerar que as posições dos diretores, pedagogas, professores das demais disciplinas e mães se
materializaram na Educação Física das duas escolas quando: a) da recusa de um aluno em participar das aulas por não gostar
ou por não considerar importante; b) da prioridade de certos saberes escolares em detrimento de outros; c) da valorização do
saber utilitário; d) do estereótipo esportivo atribuído ao professor.
Nas observações das aulas, percebemos algumas ações intrínsecas e extrínsecas à área. Algumas pertencem aos
modos de ser professor e às próprias subjetivações da área, outras aos modos como os sujeitos da escola significam a
Educação Física no cotidiano.
A convivência na Escola “São José” permitiu observar dois professores e suas práticas. Esses carregam histórias de
vida, formações, vitórias/fracassos que os diferem e, conseqüentemente, possuem modos particulares de subjetivar.
Não comparamos os dois professores. Entretanto, enfatizamos que um deles se empenha em elevar a Educação
Física como prática sistematizada, propõe um pensamento reflexivo e se importa com a qualidade do ser professor. Sofre
dificuldades resultantes de sua formação, mas investe na autoformação. O outro professor apresenta uma constância de ações,
além de expor uma interiorização de formas estabelecidas, rejeitando discretamente o inovador.
Ficou claro que um deles, em função do tempo de magistério, acredita que já contribuiu com sua prática docente
para a Educação Física, enquanto o outro ainda investe na diferenciação pedagógica e na qualificação do ser e como ser
professor.
Por exemplo, veja-se uma situação registrada em nosso diário de campo: “Nilmar iniciou uma nova atividade. Ele
explicou algumas regras e tornou a demonstrar como fazer um drible, bandeja e arremesso à cesta. Ao fim de sua
demonstração a professora Cíntia perguntou: ‘Como a gente pode fazer pra acertar a cesta?’”.
Nesse exemplo, há dois modos de agir diferenciados: enquanto o professor demonstra o movimento dos
fundamentos do basquetebol na tentativa de fazer com que os alunos o reproduzam, a professora busca utilizar uma forma
dialógica, colocando uma situação-problema para os alunos pensarem.
Ambos compartilhavam o mesmo espaço/tempo de aula, duas turmas numerosas sob coordenação simultânea.
Ressaltamos que o professor atuava naquela comunidade há muitos anos e a professora há um ano.
Devido à diferença desse convívio na escola, tanto com os profissionais quanto com os alunos, em muitos
momentos da aula, restava à professora duas opções: a adaptação aos modos do professor ou a diferenciação. Modos de
subjetivar que não se adequaram. Assim, as aulas de Educação Física passaram a ser realizadas separadamente e como toda
atividade pressupõe um espaço adequado à sua prática (VEIGA-NETO, 2001), surgiu a dificuldade: onde estaria um dos
professores e sua turma, quando a quadra fosse utilizada pelo outro?
Sem muita alternativa, tentou-se a utilização de um pátio, situado próximo às janelas das salas de aula. Decorrente
dessa mudança “[...] alguns professores reclamaram com a coordenadora sobre as aulas de Educação Física que ocorriam
próximo às salas de aula, dizendo que o barulho os incomodava. A coordenadora comunicou a Cíntia as reclamações,
impedindo que a turma permanecesse no pátio. A professora contrariada adaptou seus planos, se dirigindo para outro espaço,
atrás do refeitório [...]”.
Confrontando a situação de intervenção da pedagoga com sua posição na entrevista “A Educação Física é
indispensável”, há contradição. Essa indispensabilidade relacionada com a organização escolar é pedagogicamente preterida
na relação espaço/tempo com as outras disciplinas.
Apesar da utilização da quadra sob a forma de rodízio ter incomodado os professores, consideramos como positivo
o fato de ambos terem que replanejar as suas aulas para além do esporte. A professora iniciou um trabalho no refeitório da
escola com o conteúdo ginástica e o professor com yoga.

596
Mesmo assim, essa diferenciação no conteúdo, “forçada” pela mudança de espaços, não se sobrepôs ao esporte e à
valorização dos mais habilidosos. Por parte da professora ainda havia uma maior preocupação quanto à inclusão dos alunos.
Cíntia dialogava com eles estimulando a integração acima do rendimento, por meio de atividades adaptadas que implicassem
a inclusão. Percebemos, então, outros modos de significar a aula, ora em prol da inclusão, ora da exclusão ou mesmo da auto-
exclusão, particularmente, quando os próprios alunos desistiam de participar das aulas por não apreciar a modalidade
esportiva ou por não sentir capacidade em executar tal atividade.
Essa exclusão e/ou auto-exclusão quase sempre esteve ligada à questão de gênero. Percebemos, na observação das
aulas, que meninos geralmente executavam as atividades somente com meninos; e que as meninas procediam da mesma
forma.
Na Escola de “Maria Maia”, observamos um professor de Educação Física. Esse, assim como na primeira escola,
carrega consigo histórias de vida, vitórias/fracassos e, conseqüentemente, possui modos particulares de ser professor.
Parte das recorrências registradas no cotidiano da Escola “São José” se repete no cotidiano da segunda escola.
Entretanto algumas outras ações são particulares. Um exemplo de ações e significações diferenciadas foi a ausência constante
do professor nas aulas, bem como os consecutivos adiantamentos de aulas das turmas que haviam ficado sem outras
disciplinas, devido à falta de professor. Nesse caso, Daniel unia duas ou três turmas ao mesmo tempo para que as aulas dos
alunos terminassem após o recreio.
As vezes em que Daniel se encontrava em quadra, ficava encostado na lateral observando os alunos. Em alguns
momentos marcava falta nos jogos. Normalmente, ele entregava a bola. Em vários momentos, os alunos reclamavam porque
não queriam jogar basquete, mas o professor mantinha a proposta e dizia que só quando terminasse o tempo daquele esporte é
que mudaria de modalidade.
Nesse caso, observamos duas significações bastante interligadas ao ser professor e à aula. A ação de não intervir
nas aulas, ao mesmo tempo em que indica um certo desinvestimento da carreira, também pode expressar um modo subjetivo
de não atribuir significado às aulas de Educação Física.
Nessa escola, o lugar da Educação Física é “ocupado” por parte dos alunos. Todos saem da sala de aula em direção
à quadra, mas nem todos participam efetivamente. Uns ficam pelo caminho, no pátio, na sala da coordenação, conversando
ou andando pela escola. Os que chegam à quadra se reúnem, tiram par ou ímpar para escolher os times e para ver quem fica
esperando para jogar. Curioso e diferentemente da primeira escola é que, na maioria das vezes, os times são mistos. Parece
não haver problemas com a prática esportiva coletiva entre meninos e meninas. Vimos interação entre os alunos e alunas da
oitava série com um aluno, declaradamente, homossexual.
Durante os jogos “esses” alunos atuam como “juízes” das partidas, recorrendo ao professor no caso de dúvidas.
Eles mesmos se organizam quanto à entrada e a saída dos times da quadra. Enquanto uns jogam, os outros aguardam
conversando sobre o jogo, namoros, brincando e cantando funk. Consideramos que, nessa escola, os significados atribuídos à
Educação Física estão intrinsecamente relacionados com os modos como vem sendo praticada pelos alunos. É possível
verificar influências externas a partir do que conseguimos apreender do diálogo com os outros profissionais da escola, mas
não há como negar a produção de posições negativas na e com a Educação Física, devido ao não trabalho do professor.
Parece que as posições e ações desses sujeitos produzem e reproduzem significados que definem uma cultura
escolar específica e voltada à Educação Física. Posições essas construídas e pautadas mais a partir das próprias experiências
corporais dos que vivem a escola do que em experiências construídas no pensar, no sentir, no atuar e no relacionamento entre
si na prática docente.

Em Busca do Aprofundamento Teórico Sobre a Construção de Identidades Profissionais: possibilidades de ampliação das
análises
Se retomarmos o processo da investigação em busca de tentar compreender melhor as ações do professor no espaço
e tempo da escola e as questões relacionadas com a disciplina Educação Física e com a profissão docente, podemos
considerar que os “velhos” dilemas da área podem e devem ser tomados em processo contínuo de estudo. Não é demais
pensar nas seguintes problemáticas: o professor de Educação Física permanece com dificuldades de tornar lugar o espaço por
ele ocupado no ensino fundamental? De que maneira se produz e reproduz experiências negativas na e com a Educação
Física? É possível “olhar” para a disciplina e enxergar apenas o professor e para área como únicos responsáveis pela
hierarquização, desvalorização ou outras tensões que têm acompanhado a Educação Física escolar ao longo dos tempos?
Outras possibilidades de análise subjacentes a essas questões nos chamaram a atenção: os diferentes modos de o
professor subjetivar a educação física; o isolamento profissional; a constituição de uma cultura escolar que influi nas aulas de
educação; a condição docente; as situações de ensino: tipos de opções metodológicas, conteúdos culturais, estrutura física e
de materiais, dentre outros.
Percebemos que algumas dessas problemáticas pertenciam aos modos pessoais de ser professor e outras às próprias
subjetivações derivadas e construídas na/pela educação física enquanto área de conhecimento. Ou seja, questões ligadas a
identidade pessoal imbricadas aos dilemas epistemológicos da área, aos lugares da educação física no currículo das escolas e
aos problemas que dizem respeito a condição docente no contexto educacional mais amplo. Na realidade, trata-se de
múltiplos contextos – pedagógicos, profissionais e sociais.

597
Em retomada a essa análise fui “obrigada” a considerar que ainda há muito para compreender. Daí a iniciativa de
enveredarmos pelos caminhos teóricos da noção de identidade incluída numa perspectiva sociológica, na qual “(...) a
identidade não é mais do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e colectivo, subjectivo e objectivo,
biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as
instituições (grifos do autor)” (DUBAR, 1997, p. 105) e da problemática das profissões, também em uma perspectiva
sociológica. Esses caminhos estão em construção.

Referências
DUBAR, Claude (1997). A Socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Editora Porto.
GERALDI, C. M. G. (2006). Desafios da pesquisa no cotidiano da/na escola. In GARCIA, R. L.; ZACCUR, E. (Orgs.),
Cotidiano e diferentes saberes. Rio de janeiro: DP&A, (pp. 181- 222).
MORGADO, J. C. (2005). Currículo e profissionalidade docente. Portugal: Porto Editora.
PIMENTA, S. G. (2000). Formação de professores: identidade e saberes da docência. In PIMENTA, S. G. (Org.), Saberes
pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, (pp. 15- 34).
PIMENTA, S. G; ANASTASIOU, L. M. C. (2005). Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez,.
VEIGA-NETO, A. (2001). Currículo espaço e subjetividade: A arquitetura como programa. Rio de Janeiro: Editora DP&A.
VEIGA-NETO, A. Memória, tempos e cotidianos (2006). In GARCIA, R. L.; ZACCUR, E. (Orgs.), Cotidiano e diferentes
saberes. Rio de janeiro: DP&A, (pp. 111-124).

Democracia e Gestão da Organização Escolar: os conselhos escolares e a


construção da democracia na escola pública

Luciana Rosa Marques Luciana Marques


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
lmarques66@gmail.com

Resumo: O trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa realizada em três escolas de um município pernambucano que teve por objetivo
analisar a atuação do Conselho Escolar na construção de práticas democráticas na gestão da escola pública. Para análise dos dados empíricos,
utiliza o arcabouço teórico-metodológico da teoria do discurso, proposta por Ernesto Laclau, que considera o discurso como prática social,
que tanto pode manter como transformar as relações sociais. A partir de entrevistas com catorze Conselheiros e observações de reuniões dos
Conselhos Escolares busca verificar como se dá a participação das pessoas no Conselho, qual sua importância, os limites e possibilidades da
autonomia do Conselho Escolar, os temas que são discutidos, a postura do diretor frente às decisões tomadas, além das mudanças que a
implantação do Conselho Escolar gerou nas escolas. Com base nestes elementos, analisa como a democracia vem se construindo na escola
pública, considerando, ainda, que as práticas discursivas constroem significados à gestão de cada escola, que seriam constitutivas de sua
cultura. Verificou, nas escolas estudadas, que a democracia vem se solidificando como uma prática política, baseada em relações horizontais,
contribuindo, assim, na formação política dos sujeitos sociais pertencentes ao espaço escolar, que podem colaborar, também, no processo de
democratização da sociedade.
Palavras – Chave: Gestão Escolar; Democracia; Conselho Escolar

INTRODUÇÃO
A reforma do Estado brasileiro, implantada na década de 1990, tem como um de seus pressupostos centrais a
descentralização, que é entendida, na perspectiva adotada, como uma forma de gerenciar com maior eficiência as atividades
do setor público. Neste sentido, são introduzidas uma série de ações visando à descentralização do Estado.
Essas mudanças encontram reflexos na forma de gestão da educação pública. Com a adoção dos pressupostos
neoliberais pelo poder central começam a ser implantadas diretrizes no sentido de democratizar o sistema escolar e a gestão
das escolas.
Cumpre ressaltar, no entanto, que a discussão sobre a democratização da gestão escolar ganha força na década de
1980, com o processo de redemocratização do país, como forma de garantir a construção de uma escola pública de qualidade
que atendesse aos interesses da maior parte da população brasileira.
Percebe-se que a descentralização pode ter sentidos diferenciados. Tanto correntes políticas colocadas à direita
quanto as de esquerda destacam as ações descentralizadoras na reforma do Estado, embora que sob fundamentos
diferenciados. Para uns (Friedman; Hayek; Bresser Pereira) a defesa da descentralização se fundamenta nos preceitos do
liberalismo político, que reclamam instrumentos de proteção das liberdades individuais contra a ameaça de um Estado
invasivo, enquanto que, para outros (Borja; Santos; Souza), essa nova forma de gestão dos assuntos estatais favorece o
aprofundamento da vida democrática, viabilizando a participação dos cidadãos nas decisões públicas.

598
Assim, é preciso considerar que os princípios e valores políticos se materializam em instituições políticas concretas.
Portanto, a realização do ideário democrático não pode prender-se apenas a uma modalidade participativa dos cidadãos nos
processos decisórios, mas na concretização dos princípios democráticos em suas instituições, cuja natureza e formas de
funcionamento devem ser compatíveis com os preceitos democráticos que norteiam os resultados que se espera produzir.
Partindo deste entendimento, o presente trabalho teve por objetivo apreender os significados da democracia na
gestão da escola pública, a partir da análise do discurso dos membros do Conselho Escolar. A coleta de dados foi realizada
em 03 (três) escolas da rede municipal do Cabo de Santo Agostinho – região Metropolitana do Recife. Parte-se do princípio
de que as relações democráticas se consolidam a partir das práticas “cotidianas” 1, construindo a cultura da escola, podendo,
portanto, se constituir de forma diferenciada em cada escola. Nesta perspectiva, buscou-se verificar como a gestão
democrática se materializou nas escolas estudadas.

O DISCURSO DA DEMOCRACIA NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA


O discurso da democracia vem permeando os debates e estudos na área da educação no Brasil, embora com
significados diferenciados em cada momento histórico. A partir da década de 1930, a democratização da educação referia-se,
principalmente, à garantia de acesso à escola pública às crianças de 7 a 14 anos, observando-se recorrência aos temas do
acesso à escola, da seletividade, da repetência e da evasão (WEBER, 2004).
Na década de 1980, com o restabelecimento do sistema democrático no país e a realização de eleições para
prefeitos e governadores, observa-se mudança em relação ao sentido da democracia no debate sobre a educação2, embora a
discussão da universalização da educação básica continuasse presente. Consolida-se, assim, o debate e demandas pela
democratização do sistema educacional e das Unidades Escolares, que têm como pontos centrais, respectivamente, a
descentralização/municipalização, a eleição direta para dirigentes escolares e a criação dos Conselhos Escolares. Observa-se,
neste período, a implementação de mecanismos que assegurassem a participação da sociedade civil na formulação da política
educacional em Estados como o Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e
Pernambuco, neste último Estado exemplificado pelos Fóruns Itinerantes de Educação. Realiza-se, também, a mobilização
sindical e acadêmica em movimentos pela democratização da escola pública, além da organização coletiva de Secretários
Municipais e Estaduais de Educação com a criação da UNDIME3 e do CONSED4 em 1986.
Oliveira e Teixeira (1999) demonstram, a partir de revisão bibliográfica, que em determinados períodos históricos
(1950, 1980 e 19905), o tema da municipalização do ensino, tendo como matriz a descentralização, foi mais discutido,
identificando no processo de construção da educação municipal no Brasil a tendência à associação entre ações locais
descentralizadas à democracia e políticas públicas de cunho mais centralizador do ideário autoritário (SOUZA e FARIA,
2004).
No período que particularmente nos interessa neste estudo, as décadas de 1980 / 1990, observa-se que a defesa da
descentralização, que, na maior parte das vezes, pode ser traduzida em municipalização, tem como suporte a possibilidade da
democratização da gestão do sistema de ensino, considerando que as pessoas estando mais próximas do município, poderiam
participar mais ativamente na definição e fiscalização de sua política. Esta abordagem aponta para a concepção de
municipalização como democratização do ensino, entendimento que se expressa no depoimento da Secretária de
Desenvolvimento Social do Cabo de Santo Agostinho, à época, Secretária de Educação deste município e uma das
articuladoras da criação da UNDIME.
[...] E aí nós começamos a nos organizar, os municípios da região metropolitana e aqui começamos a discutir
caminhos democráticos para as prefeituras e naquele momento nós já achávamos que a democracia necessariamente passava
pela participação popular, também novos conhecimentos da população, da juventude que possibilitasse pensar o município de
forma diferente [...] e aí nós temos algumas premissas que eram: a universalização do ensino, a descentralização, que na
época, já falávamos em municipalização dos recursos públicos e a democratização das escolas, eram os três fundamentos que
a gente tinha aí.
Observa-se que a democratização da gestão da escola pública é uma demanda presente neste momento, entendida,
principalmente, como eleição de diretores escolares, luta que se constitui quase como uma unanimidade nacional. Na própria
agenda do CONSED, estava presente
a visão da importância do envolvimento da sociedade nas questões educacionais, sendo discutidas formas de
descentralizar, desconcentrar, flexibilizar, coordenar ações das Secretarias de Educação. Eleições, Colegiados, Grupos
Gestores e tantas outras formas de tornar a escola participante ativa no debate educacional e da execução de políticas
educacionais tiveram destaque em diferentes pautas de reuniões (WEBER, 1996, p. 33).

1
Cotidiano, neste trabalho, refere-se a dia a dia e não à teoria do cotidiano desenvolvida por Henri Lefebvre, Agnes Heller e Michel de Certeau, entre outros.
2
Segundo Weber (1993, p. 16) “a centralização extrema, com a conseqüente expansão de estruturas técnico-burocráticas, no interior das quais eram definidas as
políticas públicas, ao longo do período autoritário, foi cedendo lugar, desde o final dos anos 70, em decorrência do grau de organização obtido pela sociedade
civil, a processos participativos de planejamento e de gestão de políticas educacionais e da própria escola”.
3
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
4
Conselho Nacional de Secretários de Educação
5
Segundo elas, de 1991 a 1993 os trabalhos abordavam mais as políticas de municipalização do ensino e sua implantação, e de 1995 a 1997 os trabalhos
focalizavam a gestão do ensino municipal.

599
Interessante considerar, ainda, que a implementação da eleição direta em alguns Estados e Municípios foi
demonstrando, pela prática, a impossibilidade deste mecanismo, por si só, tornar a gestão da escola democrática. Em análise
da experiência de implantação de políticas educacionais no governo de Pernambuco, no período de 1987 a 1990, Oliveira
(1991) demonstra que diretores nomeados conseguiram implantar uma gestão colegiada, enquanto alguns eleitos
desenvolveram práticas centralizadoras e clientelistas em sua gestão. Dessa forma, conclui que “a democratização da escola
não se reduz ao processo de escolha de seus dirigentes”.
No mesmo sentido se coloca Paro (2001) ao analisar vários estudos e experiências sobre a eleição direta de
diretores escolares. Ele considera que “com a eleição, esperavam que a escola se encaminhasse rapidamente para uma
convivência democrática e para a maior participação de todos em sua gestão. Todavia, as experiências mostraram que havia
mais otimismo do que realismo nestas previsões” (p.66).
O trabalho de Costa e Silva (1998) nos demonstra, também, que apesar de as eleições diretas terem sido encaradas
pelos profissionais da educação como expressão máxima de democracia na gestão escolar,
experiências concretas evidenciaram que a repetição de práticas autoritárias e de relações sociais antidemocráticas, mesmo a
partir da adoção das eleições diretas, continuaram a coexistir no dia-a-dia da escola. Levantamentos empíricos constatam que
a repetição de tais práticas vem resistindo, sobretudo, quando a figura do diretor encarna o poder, centralizando as decisões
sem a participação do coletivo da escola, justamente, pela ausência de mecanismos institucionais que viabilizem o controle
de sua ação gestionária [...] Assim, em que pese as eleições evidenciarem avanços, revelam também, conforme os dados
indicam, limites que parecem intransponíveis, ratificando que a ampliação da participação da comunidade escolar não
decorre exclusivamente da realização de eleições para diretor, necessitando-se de outros mecanismos de democratização, a
exemplo dos conselhos escolares (p. 106 – 107, grifo nosso).

Nos anos 1990, o foco do debate sobre a democratização da educação é direcionado para as relações internas da
escola, que deveriam ser democráticas, com a participação da comunidade escolar em sua gestão, sendo regulamentada,
inclusive, pela LDB6 e tornando-se um dos princípios da educação na Constituição Federal de 1988. Dessa forma, a
democratização das relações na escola torna-se uma exigência legal, que a comunidade escolar deve assumir.
A gestão democrática das Unidades Escolares públicas brasileiras ganha terreno institucional quando passa a ser
defendida pelo Estado neoliberal7, como forma de garantir a eficiência e eficácia do sistema público de ensino. Isso não tem
significado, contudo, considerável avanço na construção de uma escola pública de qualidade, que atenda aos interesses da
maioria da população brasileira.
Percebe-se, neste modelo, a correlação entre as novas formas de organização produtiva e a implantação de políticas
educacionais direcionadas à descentralização / desconcentração da gestão das Unidades Escolares8. A administração
descentralizada faz-se necessária em função da inoperância da máquina burocrática, conferindo autonomia às escolas,
inibindo, assim, riscos de perturbações indesejadas ao sistema, já que a participação do coletivo na gestão da escola aumenta
à medida que aumentam suas responsabilidades (BRUNO, 1997).
Constata-se, também, a intervenção de organismos internacionais, como Banco Mundial, UNESCO, CEPAL, entre
outros, nas políticas educacionais latino americanas, a partir da implantação de reformas que seguem o receituário destes
organismos, que
apesar de distintos em termos de suas prioridades e focos, evidencia-se a defesa: da descentralização como forma
de desburocratização do Estado e de abertura a novas formas de gestão da esfera pública; da autonomia gerencial para as
unidades escolares e, ainda, da busca de incrementos nos índices de produtividade dos sistemas públicos, marcadamente sob
inspiração economicista e neoliberal (SOUZA e FARIA, 2004, p. 927 – 928).

No entanto, apesar de implantada com base no modelo neoliberal, a institucionalização da gestão democrática pode
representar avanços na forma de condução do dia-a-dia da escola, tendo em vista que as políticas educacionais ganham
materialidade no lócus de sua implementação.
Desde 1980, as forças progressistas reivindicam que a gestão das Unidades Escolares se dê de forma democrática,
combatendo o centralismo que tem caracterizado a política educacional brasileira. Com a participação na definição dos rumos
da escola, os que compõem a comunidade escolar têm a possibilidade de vivenciar um processo diferenciado de gestão da
coisa pública, que passa a ser também de sua responsabilidade, contribuindo, assim, na construção de sua cidadania.
Neste cenário, nas décadas de 1980 e 1990, parece ganhar força, tanto em nível acadêmico como no das políticas
educacionais, a discussão da democracia participativa como forma de garantia da democratização das relações que se
estabelecem na escola, particularmente em sua gestão. No entanto, percebe-se que o tema não se apresenta de forma
consensual. Se para os defensores da agenda neoliberal, a defesa da participação se coloca com o fito da desresponsabilização

6
Conforme evidenciam os artigos 14 e 15.
7
De acordo com Martins (2002, p. 121) “[...] a pauta defendida por setores progressistas e de esquerda a partir dos anos 1980 – necessidade de redistribuição do
poder, maior atenção aos segmentos excluídos das políticas sociais, descentralização e autonomia de decisões às instâncias locais – emergiu com a legitimidade
política necessária para ser efetivada nos anos 1990, paradoxalmente vinculada, porém, a uma nova dinâmica de gestão do Estado. A partir daí foram propostas
novas formas de articulação com o setor privado lucrativo ou não lucrativo para que o Estado pudesse focar suas ações estabelecendo prioridades”.
8
Segundo Lima (2002b, p. 24), na perspectiva neoliberal “a democratização, a participação e a autonomia, a idéia de ‘projecto educativo’ e de ‘comunidade
educativa’, são idéias que não desaparecem pura e simplesmente; pelo contrário, ressurgem com maior intensidade e freqüência, mas concentrando novos
significados que decorrem das orientações acima referidas (escola como “empresa educativa” ou “indústria de mão de obra”).

600
do Estado para com as políticas sociais, para os setores progressistas a democracia participativa é entendida como forma de
alargamento dos direitos sociais.
Compreende-se, portanto, que as políticas que visam implementar a democracia participativa em escolas da rede
pública não podem ser consideradas como um movimento de mão única. Se por um lado, os preceitos do neoliberalismo nos
indicam a intenção privatista destas políticas, por outro, elas podem ser colocadas no campo progressista, buscando a
construção de um espaço público democrático9, tendo em vista que a democratização do Estado brasileiro sempre esteve na
pauta das lutas da sociedade civil.
Assim, o sentido de democracia participativa na escola se daria a partir das práticas articulatórias construídas no
espaço escolar, se constituindo, portanto, como uma prática política, que pode ir em uma direção ou na outra, dependendo do
projeto que se constitui como hegemônico nas proposições da política educacional e no espaço escolar em que ela se
concretiza.
Segundo Bastos (2002), a gestão democrática da educação abre a perspectiva do resgate do caráter público da
administração pública, estabelecendo o controle da sociedade civil sobre a escola pública e a educação, garantindo a
liberdade de expressão, pensamento, criação e organização coletiva e, ainda, facilitando a luta por condições materiais para a
aquisição e manutenção dos equipamentos escolares, bem como de salários dignos para os profissionais da educação.
No entanto, a nosso ver, o interesse pelos atos governamentais, que se materializaria através da participação da
população em instâncias decisórias, não surgirá “do nada” ou de “um dia para o outro”. Para que as pessoas compreendam a
relevância de seu interesse pela ação dos governantes elas precisam percebê-la como importante. Se em um espaço menor, no
caso a escola, essas pessoas têm oportunidade de vivenciar uma gestão participativa, onde suas vozes são escutadas e seus
interesses pela gestão da instituição apresentam algum tipo de resultado, elas começam a perceber a importância de sua
atuação política.
Desta forma, a gestão democrática de escolas públicas pode ser incluída no rol de práticas sociais que podem
contribuir para a consciência democrática e a participação popular e, portanto, para a democratização da própria sociedade. O
estudo da democracia na gestão de escolas públicas poderia, portanto, contribuir no entendimento da democratização da
sociedade, na medida que visa a esclarecer como mudanças geradas pelas políticas de democratização sobre ela repercutem.
Tendo em vista tais elementos, consideramos que a discussão sobre a democratização da gestão da escola pode ser
inserida nas novas concepções da teoria democrática10, que defendem o aprofundamento do campo político em todos os
espaços de interação social, “levando” a democracia a todos os lugares.
O Conselho Escolar, que é um dos principais mecanismos de institucionalização da gestão democrática na escola,
pode ser considerado como um espaço de democracia participativa, no qual os diferentes segmentos da comunidade escolar,
através de seus representantes, têm oportunidade de defender seus interesses e aspirações, a partir de relações dialógicas,
podendo, portanto, ter participação e responsabilidade na definição dos rumos da escola. O Conselho traz vozes diferentes e
discordantes para dentro da escola, fazendo refletir sobre a heterogeneidade da comunidade escolar e do movimento da
realidade.
Em seu estudo sobre “A organização escolar e democracia radical”, Lima (2002a) demonstra, a partir da obra de
Paulo Freire, que o Conselho Escolar representaria a verdadeira instância de poder na criação de uma escola diferente, espaço
para a construção da democracia participativa, constituindo-se como um órgão político, uma instância organizadora da
escola, um centro de deliberações, através do qual educadores, pais, alunos e comunidade têm o direito de exercer a gestão,
tomando decisões, encaminhado-as e as avaliando e, assim, o projeto pedagógico da escola seria fruto do debate e confronto
de posições e interesses de todos.
O Conselho seria um órgão deliberativo e coletivo, que não estaria envolvido na gestão “cotidiana” da escola, a
cargo do diretor, mas que seria responsável pela tomada de decisões referentes ao seu funcionamento, projetos, significados e
práticas. O processo de tomada de decisões democráticas na escola envolveria a participação de sujeitos conscientes,
responsáveis e livres, que interfeririam nas decisões tomadas. Dessa forma, autonomia e responsabilidade seriam,
simultaneamente, condição e conseqüência da democracia e uma educação para e pela democracia, que envolveria práticas
dialógicas e antiautoritárias e processos participativos, lócus de produção de discursos, regras, orientações e ações em direção
à autonomia e substantividade democrática, construiriam uma educação para a responsabilidade social e política.
No mesmo sentido se coloca Cury (2002), para quem a gestão democrática, baseada em um processo decisório
participativo e na deliberação pública, expressa um anseio de crescimento dos indivíduos como cidadãos e da sociedade
como sociedade democrática. Afirma, portanto, a escola como um espaço de construção democrática, em que deve ser
respeitado, contudo, o seu caráter específico de lugar de ensino / aprendizagem. A gestão democrática é, dessa forma, uma
gestão de autoridade compartilhada.

9
Tal entendimento direcionou a escolha de um município cuja gestão se colocava no campo progressista à época da coleta de dados, para a realização de nosso
estudo empírico.
10
Particularmente a Democracia Radical proposta Ernesto Laclau e Chantall Mouffe e a Democracia Participativa de Boaventura de Sousa Santos, que se
fundamentam nas idéias de que a vivência democrática nos diferentes espaços sociais leva à democratização da sociedade; de que a democracia se consolidaria
enquanto prática social “cotidiana”, através de processos de formulação e renovação de uma cultura política nos diferentes espaços sociais, realizando uma
repolitização global das práticas sociais e criando novas oportunidades ao exercício democrático e de que a democracia participativa é um dos campos sociais e
políticos da emancipação social.

601
Werle (2003, p. 10), em seu estudo sobre os Conselhos Escolares, trata-os como espaços de relações de poder que
envolveria a autorização e influência entre as partes. Segundo ela,
não há poder, a priori, nos Conselhos Escolares, mas como decorrência do exercício da palavra, da capacidade de
argumentação nas reuniões, do nível de escolaridade dos participantes e da politização da comunidade escolar, as percepções
que os diferentes atores desenvolvem sobre o poder real influem nas relações de poder.
Do ponto de vista etimológico, o termo Conselho é de origem latina “tanto significando ouvir alguém quanto
submeter algo à deliberação de alguém, após uma ponderação refletida, prudente e de bom senso” (CURY, 2000, p. 47).
Historicamente, as origens dos Conselhos podem ser encontradas no mundo greco romano, como forma de gestão
dos grupos sociais, precedendo a organização dos Estados modernos e originando os parlamentos. No século XVIII, o
aperfeiçoamento deste mecanismo de controle social do poder consagrou as modernas democracias nas res publica, que se
caracterizaram pelo processo de participação popular na eleição dos parlamentos.
No Brasil, mesmo com o advento da república, a concepção patrimonialista de Estado continua a ser a prevalente, o
que levou à adoção de Conselhos de Notáveis. No entanto, os movimentos popular e sindical desenvolveram, nos anos
1970/80, de modo informal, experiências que tinham como objetivo organizar a sociedade civil, tais como Conselhos
populares de saúde, na cidade de São Paulo, comissões de fábrica e Conselhos comunitários de bairro (OLIVEIRA, 2003).
Nos anos 1980, com o processo de redemocratização do país, a sociedade civil começa a reclamar a participação na
gestão pública. Dessa forma, “os conselhos gestores de políticas públicas legalmente instituídos são fruto do processo de
democratização do Estado no trato das políticas públicas” (OLIVEIRA, 2003, p. 78) e o poder local, que está no centro das
transformações que envolvem a descentralização, a desburocratização e a participação emerge como forma de controle social,
se expressando pela criação de diversos Conselhos setoriais, como os de saúde, criança e adolescente, entre outros.
Com a Constituição de 198811 há a introdução da institucionalização da participação no país, que será
posteriormente regulamentada por leis federais específicas, conforme cada política pública, como a Lei nº. 8.069, de 31 de
julho de 1990, que cria os Conselhos Nacionais, Estaduais e Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente e a Lei nº.
8.742, de 07 de dezembro de 1993, que estabelece como sistema descentralizado e participativo de assistência social o
Conselho Nacional de Assistência Social, os Conselhos Estaduais de Assistência Social e os Conselhos Municipais de
Assistência Social.
Assim, os Conselhos seriam uma estratégia privilegiada de democratização da ação estatal, tornando-se a expressão
de uma nova institucionalidade cidadã, representando um importante espaço de luta para alargar os direitos daqueles que
historicamente os tiveram negados, sendo, ainda, um espaço de luta política, que qualifica a democracia, por meio da efetiva
participação da sociedade na formulação, execução e fiscalização de políticas públicas.
Nesta perspectiva, este estudo analisa a atuação de Conselhos Escolares de três escolas da rede pública, a fim de
apreender os sentidos da participação e da democracia. Para tal, utiliza o arcabouço teórico metodológico da teoria do
discurso, exposto a seguir.

A TEORIA DO DISCURSO COMO FORMA DE APREENSÃO DA REALIDADE


O crescimento do interesse pela análise do discurso é ao mesmo tempo conseqüência e manifestação da “virada
lingüística”, precipitada por críticas ao positivismo, pelo prodigioso impacto de idéias estruturalistas e pós-estruturalistas e
pelos ataques pós-modernistas à epistemologia. Sua origem como crítica à ciência social tradicional significa que ela possui
uma base epistemológica diferenciada das outras metodologias, o que é denominado construcionismo social, construtivismo
ou construcionismo. Mesmo existindo diferentes abordagens de análise do discurso, todas partilham da rejeição da noção
realista de que a linguagem é um meio neutro de refletir ou descrever o mundo e da convicção na importância central do
discurso, que é uma forma de ação no mundo, na realidade social que ele constrói.
Embora com muitas proximidades, tanto conceituais como metodológicas, Teoria do Discurso (TD) e Análise do
Discurso (AD) não são exatamente uma mesma estratégia intelectual.
A TD trabalha a dimensão da linguagem na análise de objetos empíricos pela sua inscrição numa problemática
clara de implicação política e ontológica[...] enquanto a AD – embora não seja um ramo da lingüística – pode ser
inteiramente realizada no âmbito desta [...] sem maiores pretensões de fazer intervir hipóteses sobre como se constituem e
transformam o social ou os atores sociais, ou de explicar o social a partir do discurso. A despeito de haver muitas definições
de discurso na AD, é importante admitir uma importante diferença entre estas e a TD [...] trata-se da rejeição que a TD faz da
distinção entre discursivo e extra-discursivo e de sua definição formal de discurso que transcende o domínio da linguagem tal
como trabalhada na lingüística e pressuposta como um dado empírico pelo mainstream das ciências sociais. (BURITY, 2007,
p. 74-75, grifo nosso)

11
De acordo com Frigotto, no prefácio do livro “Conselhos Participativos e Escola” (2005, p. 08) “os anos 1980 foram de um intenso debate e embate no
processo constituinte entre um projeto de desenvolvimento nacional de cunho restrito e conservador e um projeto de desenvolvimento com ampla participação
popular, centrado em reformas estruturais capazes de diminuir o fosso que separa ricos e a imensidão de pobres e miseráveis de uma das citadas como das mais
desiguais do mundo. Mesmo que se possa afirmar que o resultado, em termos do texto constitucional fruto deste processo, seja de um empate político–social,
efetivou-se um enorme exercício de participação e de institucionalização de mecanismos de controle do Estado pela sociedade e do destino, especialmente, do
fundo público. É nesse contexto que foram criadas, em algumas áreas, as câmaras setoriais e, mais amplamente, conselhos nos diferentes níveis da gestão pública
e, como mostra este livro, também, em diferentes fundos públicos para programas específicos”.

602
Neste trabalho, o discurso é tomado enquanto uma prática social, ou seja, como forma de construção social, cuja
condição ontológica é a política, o que implica em considerá-lo como uma forma de ação das pessoas sobre o mundo e sobre
os outros, expressando as relações sociais que se colocam na sociedade. Constitui-se, portanto, em ações, seleções, escolhas,
linguagens, enfim, todas as produções sociais das quais é expressão, podendo ser um caminho para o entendimento dos
sentidos produzidos no “cotidiano”. “O discurso, como um sistema de relações (entre significante e significado, entre
linguagem e ação, entre elementos de diferentes outros discursos, etc.) encerra uma articulação orgânica entre língua e ato,
entre o lingüístico e o extra lingüístico” (BURITY, 2007, p.75).
O foco do trabalho são as práticas discursivas que correspondem a momentos ativos no uso da linguagem,
momentos de re-significação, de rupturas, de produção de sentidos e, portanto, de linguagem em ação, ou seja, como as
pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais “cotidianas”. Segundo Fairclough (2001, p. 66), em sua
análise da obra de Foucault,
o que é de maior significação aqui para a análise do discurso é a visão do discurso como constitutiva – contribuindo
para a produção, transformação e a reprodução dos objetos da vida social. Isso implica que o discurso tem uma relação ativa
com a realidade, que a linguagem significa a realidade no sentido de construção de significados para ela.

A análise de uma prática discursiva focaliza os processos de produção, consumo e mudança textual, o que exige
referência aos ambientes econômicos, políticos e institucionais particulares nos quais o discurso é gerado. Porquanto,
[...] não há como dissociar o processo de apreensão do real de processos de significação, os quais, por sua vez,
implicam tanto em redes argumentativas quanto nas práticas concretas e nas instituições através das quais tais representações
podem tornar-se significativas, compartilhadas ou impostas (conforme o façam por via democrática ou autocrática). Enfim,
significa admitir uma acepção do termo que indica sua dinamicidade, o jogo das diferenças num sistema que altera os limites
de sua própria configuração: discurso (BURITY, 1994, p.149, grifo do autor).
Desta forma, todas as configurações sociais são significativas e os significados das palavras e práticas dependem do
espaço discursivo, que é construído por práticas articulatórias12, em que se colocam. Segundo Fairclough (2001, p.91),
o discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o
moldam e restringem: suas próprias normas e convenções como também relações, identidades e instituições que lhe são
subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e
construindo o mundo em significação.

O autor identifica três funções da linguagem e dimensões de sentido que coexistem em todos os discursos. A
primeira é a função identitária, que se relaciona aos modos pelos quais as identidades sociais se estabelecem no discurso. A
segunda função, a relacional, diz respeito à maneira como as relações sociais entre os participantes de processos discursivos
são representadas e negociadas. E, por fim, a função ideacional é referente aos modos pelos quais os textos significam o
mundo e seus processos, entidades e relações.
Enquanto prática social, o discurso é tomado como prática política, que transforma, mantém e estabelece as
relações de poder e as entidades coletivas em que tais relações se colocam, havendo, portanto, uma competição para fixar
sentidos13 a configurações significativas particulares. Segundo Laclau e Mouffe (1989, p.113),
discursos são estruturas descentradas onde os sentidos são constantemente negociados e construídos. Esta estrutura
descentrada, ou ‘totalidade’ estruturada, ou ainda, discurso, é o resultado de práticas articulatórias estabelecendo relações
entre elementos com diferenças não articuladas discursivamente.

Esta perspectiva de discurso abre a possibilidade para reativação da origem política contingente do que é fixado e
objetivamente apresentado, abrindo espaço para novos antagonismos e fixação de novos conteúdos e formas que não se
colocavam até então, tornando possível, assim, a articulação de uma multiplicidade de discursos concorrentes e,
conseqüentemente, da transformação dos agentes e práticas sociais. Assim, a prática de articulação, como deslocamento /
fixação de um sistema de diferenças penetra a densidade inteiramente material da multiplicidade de instituições, rituais e
práticas através das quais uma estrutura discursiva é estruturada (LACLAU, 1985). Dessa forma, a prática discursiva tanto
pode contribuir para a reprodução da sociedade, como para sua transformação.
À medida que os produtores e os intérpretes combinam convenções discursivas, códigos e elementos de maneira
nova em eventos discursivos inovadores estão, sem dúvida, produzindo cumulativamente mudanças estruturais nas ordens de
discurso: estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens de discurso, novas hegemonias
discursivas. Tais mudanças estruturais podem afetar apenas a ordem de discurso ‘local’ de uma instituição, ou podem
transcender as instituições e afetar a ordem de discurso societária. O foco de atenção na investigação da mudança discursiva
deveria manter a alternância entre o evento discursivo e tais mudanças estruturais, porque não é possível avaliar a
importância do primeiro para os processos mais amplos de mudança social sem considerar as últimas, da mesma forma que

12
Para Laclau, uma estrutura discursiva não é uma entidade meramente "cognitiva" ou "contemplativa"; é uma prática articulatória que constitui e organiza as
relações sociais. Uma prática articulatória consiste na “construção de pontos nodais - “fixações parciais que limitam o fluxo entre significado e significante”
(MOUFFE, 1996, p.103) - que fixam parcialmente sentido; o caráter parcial dessa fixação procede da abertura do social, resultante, por sua vez, de um constante
transbordamento de todo discurso pela infinitude do campo da discursividade” (LACLAU & MOUFFE, 1985, p. 113).
13
Sentidos que são fixados de forma contingente, ou seja, são provisórios.

603
não é possível avaliar a contribuição do discurso para a mudança social sem considerar o primeiro (FAIRCLOUGH, 2001,
p.128).

Tomando por base esta perspectiva de discurso buscamos apreender, através de entrevistas com catorze (14)
Conselheiros Escolares e com três (03) diretores, além da observação de três (03) reuniões dos Conselhos Escolares, os
sentidos da democracia na gestão das escolas e sua possível contribuição na democratização da sociedade.

OS CONSELHOS ESCOLARES E A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA ESCOLA PÚBLICA


Os Conselhos Escolares de todas as escolas estudadas são formados por representantes dos diferentes segmentos
que compõem a comunidade escolar. No entanto, em alguns deles, estes representantes não foram eleitos, mas sim indicados,
tendo havido, inclusive, em uma das escolas, uma pré-seleção dos alunos que seriam apontados para concorrer à eleição, em
função de seu comportamento, utilizando-se, portanto, de uma postura classificatória e excludente, fundamentalmente,
antidemocrática, para subsidiar a participação dos alunos no Conselho. Este episódio nos mostra como a democracia pode ser
impregnada de contradições.
É consenso, entre os Conselheiros, que a importância do Conselho está na divisão de responsabilidades, tornando as
relações da escola mais horizontais, deixando de haver uma concentração de poder na mão do dirigente. Parece, assim, estar
sedimentada a concepção do Conselho como instrumento e, mais ainda, como condição de democratização da gestão, que é
de responsabilidade coletiva e não centrada na figura do diretor.
Percebemos ainda o destaque dado pelos Conselheiros, quando indagados sobre a importância do Conselho Escolar,
à maior integração entre pais e escola. Assim, através do Conselho, a escola também cumpre uma de suas incumbências
determinadas pela LDB, no artigo 12, item VI, que é a de “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de
integração da sociedade com a escola”. Via democratização, a escola assumiria o seu caráter público, no sentido da oferta de
uma educação de qualidade que atenda aos interesses da maioria da população brasileira.
Observamos muitas diferenças nos temas14 tratados nas reuniões dos Conselhos Escolares o que reforçou nossa
hipótese de que a democracia se constrói de forma diferenciada em cada escola, a partir da ação das pessoas, constituindo a
sua cultura. Enquanto em uma das escolas se discute apenas questões financeiras nas reuniões do Conselho, na outra se
discute as financeiras e as administrativas e na terceira são discutidas as questões pedagógicas, financeiras e administrativas
no Conselho Escolar. Percebemos que os assuntos tratados diferem de uma escola para a outra, representando, portanto,
avanços maiores ou menores na democratização de sua gestão.
No mesmo sentido a própria dinâmica das reuniões nos indicam diferenças no processo participativo em cada umas
das escolas. Em uma delas, as pessoas parecem estar “mais à vontade” nas reuniões do Conselho Escolar, na outra
percebemos uma centralização na figura da presidente do Conselho (uma professora) e na do diretor da escola, enquanto que
na terceira escola as reuniões não são sistemáticas.
Verificamos, ainda, que em todas as escolas a participação dos diferentes segmentos no Conselho Escolar se dá de
forma igualitária e que as diferenças existentes são provenientes de características pessoais e não do segmento que a pessoa
representa. Todos os conselheiros entrevistados consideraram que as opiniões de todas as pessoas eram respeitadas da mesma
forma, com o mesmo peso, sem haver a prevalência de opinião em função do segmento representado, assim como há o
respeito do dirigente pelas decisões do Conselho, que são colocadas em prática pelo mesmo, o que indica que a participação
envolve a distribuição de poder e não apenas a colaboração.
Um estudo sobre democracia não poderia desconsiderar a questão da autonomia, na medida em que estes dois
conceitos têm uma extrema inter-relação. Assim, “só a autonomia garante o poder, os recursos e a capacidade de decisão
colectiva necessários ao funcionamento democrático de uma organização” (BARROSO, 2004, p. 74).
A matriz discursiva em que se apóia a maior parte da entrevistas é a que aborda a autonomia em sua dimensão
administrativa, com especial ênfase à determinação da aplicação de recursos financeiros recebidos pela escola, que, no
entanto, muitas vezes, já vem com sua utilização pré-determinada (custeio, capital, material permanente, material de
consumo), o que restringe a liberdade da escola, e, leva-a, por exemplo, a realizar campanhas de arrecadação de verbas para
compra de equipamentos ou materiais dos quais realmente necessite. Ainda, para os conselheiros a autonomia não pode ir de
encontro ao cumprimento da legislação, envolvendo, portanto, liberdade, mas não independência. Dessa forma, pode-se fazer
“tudo”, dento do limite que é imposto pela legislação.
Por fim, buscamos identificar as mudanças geradas na gestão da escola após a implantação do Conselho Escolar.
Os discursos dos conselheiros sugerem que houve muitas mudanças após a implantação dos Conselhos Escolares como
órgãos gestores da escola, assim como houve também conflitos em seu processo de construção, embora se perceba que, na
maioria dos discursos, os aspectos enfatizados são diferentes.
O primeiro sentido da mudança destacado refere-se à horizontalização das decisões na escola, que deixam de ser
concentradas na pessoa do diretor e passam a ser de responsabilidade coletiva, inclusive havendo a participação na definição
da utilização dos recursos financeiros e divulgação para todos sobre a aplicação dos mesmos. Assim, tanto os acertos quanto

14
A importância de analisar os temas abordados nas reuniões dos Conselhos Escolares reside em que os assuntos tratados indicarão a distribuição de poder
realizada no Conselho. Assim, a análise dos temas discutidos, objeto de decisão coletiva, nos ajudou a entender como se dá a participação no Conselho Escolar.

604
os erros passam a ser de responsabilidade coletiva, sendo compartilhados por toda a comunidade escolar. Este é o sentido que
parece estar mais fixado nos discursos sobre as mudanças geradas pelo processo democrático da gestão da escola, via
Conselho Escolar. Percebemos, nestes discursos, o destaque da mudança das relações de poder na escola.
Além disto, no discurso dos Conselheiros sobre as mudanças na gestão da escola, é destacado também o
compromisso coletivo com a escola, que é possibilitado pela participação. Assim, a participação passa também pelo
comprometimento das pessoas com projetos coletivos, em que cada um tem suas responsabilidades que se não forem
cumpridas comprometem o trabalho como um todo. Além disto, a prática participativa proporciona uma maior integração dos
pais e da própria comunidade na escola.
No discurso dos Conselheiros aparece, ainda, a melhoria do ensino como uma mudança proveniente da ação do
Conselho, possibilitada pela maior aproximação dos pais com a escola e com a própria direção e corpo docente. Esta
aproximação fez com que as reivindicações dos pais fossem atendidas, uma vez que, anteriormente, estes não eram sequer
recebidos pela direção ou pela Secretaria de Educação. Assim, a democratização possibilitou que a escola passasse a estar a
serviço da comunidade que atende, respondendo a seus interesses e demandas, concorrendo para que ela cumpra efetivamente
o seu caráter público.
Da mesma forma, contribuindo com a melhoria da qualidade do ensino aparece a recuperação / ampliação /
reformas da estrutura física da escola, que, inclusive, possibilitou a ampliação da oferta de ensino em uma das escolas. No
entanto, reforçando a idéia de que as políticas educacionais democráticas são essenciais para que a democracia possa ser
construída nas Unidades Escolares, nesta escola, especificamente, após muita luta e conflito para a consecução da
implantação de turmas de quinta a oitava série, houve o fechamento destas mesmas turmas, quando ocorreu a mudança de
governo, o que provocou um arrefecimento do próprio Conselho Escolar, que se percebeu impotente. A dirigente, que havia
sido eleita, encampou e defendeu as novas determinações da Secretaria de Educação, visando à sua permanência no cargo.
Este episódio pode demonstrar quão difícil é o processo de construção democrática e, principalmente, a sua solidificação, que
só poderá se dar com a confluência de vários fatores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pesquisa demonstrou que nas escolas estudadas a democracia vem se solidificando como uma prática
política, baseada em relações horizontais, contribuindo, portanto, para a formação política dos sujeitos sociais pertencentes ao
espaço escolar. As entrevistas e observações realizadas nas escolas nos demonstraram que efetivamente a gestão vem se
construindo de forma democrática, com a participação dos representantes dos diferentes segmentos da comunidade escolar
que são tratados de forma igualitária, com respeito a suas diferenças, que têm direito à voz, e que são, portanto, reconhecidos.
Também percebemos que, independentemente do segmento que representa, os Conselheiros têm suas argumentações
respeitadas de igual forma.
Entretanto, cumpre considerar que nosso estudo se desenvolveu em um município do campo progressista, o que nos
leva a refletir se, em outro município, com orientações políticas de cunho neoliberal, os atores escolares subverteriam o
instituído, transformando a realidade que as políticas educacionais visam constituir e, assim, construiriam uma nova
realidade. O contraponto realizado com outros estudos (Santos, 2004; Lima, 2002; Werle, 2003; Souza, 2005) nos leva a
inferir que poderiam ou não fazê-lo.
Percebemos marcantes diferenças e várias semelhanças entre o que acontece nas escolas que estudamos e o que se
verificou em outros espaços escolares. Tal achado reforçou nossa suposição de que a democracia se constrói como uma
prática articulatória, ganhando diferentes sentidos nos diversos espaços sociais. Desta forma, ela é uma construção das
pessoas que formam a escola e não da escola como instituição em si. Assim, podemos considerar que a construção de
relações democráticas na escola se dá a partir da cultura de cada escola, o que demonstra a existência de um campo político
nas mesmas, pois verificamos que, em cada uma das três (03) escolas estudadas, a democracia está sendo construída de forma
diferenciada, apesar de todas elas estarem submetidas à mesma política educacional. Cumpre ressaltar, ainda, que
verificamos práticas democráticas em todas as escolas, embora estas se construam de forma diferenciada, alcançando também
diferentes avanços.
Consideramos, ainda, que os conteúdos democráticos das práticas e discursos, verificados nas escolas estudadas,
contribuem com o processo organizativo dos atores escolares, estimulando, assim, a organização social. Na escola, além de
conteúdos, aprendemos valores e práticas. Portanto, a institucionalização de práticas democráticas na gestão escolar forma
sujeitos democráticos. Supomos que estes sujeitos não serão democráticos apenas na escola, mas em todos os espaços sociais
aos quais pertençam, podendo, desse modo, contribuir na democratização dos mesmos e, conseqüentemente, da sociedade.
Dessa forma, podemos inferir que as práticas discursivas em mutação, como as obseravadas neste trabalho, podem ser um
elemento importante na mudança social.
A construção de relações horizontais, coletivas e compartilhadas contribuiria na formação democrática, tendo em
vista que quanto mais se individualizam as relações, mais se estaria contribuindo com a formação de sujeitos
antidemocráticos. Assim sendo, a prática democrática não deveria ser adotada apenas na gestão escolar, mas em todas as
relações que se constroem na escola como, por exemplo, na sala de aula, nas relações interpessoais e nas relações laborais,
entre outras.

605
Consideramos, ainda, que a construção de relações democráticas nas escolas públicas pode contribuir para a
transformação e emancipação social. Vivemos em um momento histórico em que o discurso hegemônico prega a ausência de
alternativas ao neoliberalismo, tendo em vista que elas, da forma como foram implantadas, se mostraram ineficientes e, por
conseguinte, ruíram. Possivelmente, não exista “A” alternativa, mas sim pequenas alternativas que vão se realizando na
prática social e, assim, contribuindo com a mudança da sociedade. Desta forma, quanto maior a possibilidade de vivências
democráticas nos diferentes espaços sociais, maior a possibilidade de inclusão e emancipação social, tendo em vista que não
há emancipação em si, mas relações emancipatórias que podem criar um número cada vez maior de relações igualitárias.
Assim, embora a realização de um estudo de caso como o nosso não possa ser generalizado, ele indica que
alternativas são possíveis. É importante, portanto, dar visibilidade às experiências contra-hegemônicas15, construídas na
experiência, pela prática social.
Especificamente na gestão da educação existem experiências positivas de construção de relações democráticas no
espaço escolar, de construção de uma escola emancipatória, como a estudada neste trabalho. Estas experiências, apesar de
incipientes e minoritárias, precisam ser pesquisadas, publicizadas e reveladas, pois a diversidade e multiplicidade de práticas
sociais não hegemônicas é que possibilitarão a construção da mudança social, de um outro mundo possível. É importante
destacar, ainda que, à medida que uma tendência particular de mudança discursiva se solidifica, tende a se expandir, criando,
assim, novos discursos, podendo, portanto, transcender as organizações / instituições e afetar o discurso societário,
estabelecendo, assim, novas hegemonias.

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15
No sentido utilizado por Boaventura de Sousa Santos.

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Aprendizagem dialógica e gestão escolar: a participação dos familiares dos


estudantes na escola

Profa. Dra. Maria Cecília Luiz


Universidade Federal de São Carlos
cecilialuiz@ufscar.br

Resumo: Com base na aprendizagem dialógica e na metodologia comunicativa crítica, esta pesquisa origina-se da parceria entre o
NIASE/UFSCar e o CREA/UAB-Barcelona. Está em andamento, e realiza-se em três escolas municipais do Ensino Fundamental que são
Comunidades de Aprendizagem (CAs), no Brasil. Pretende-se construir com os sujeitos da pesquisa conhecimentos e ações que contribuam
para a transformação das suas realidades, com ênfase na gestão democrática. Hoje, o paradigma de gestão escolar, amplia a antiga visão de
administração, que delimitava as suas concepções apenas em controlar ações de pessoas e cobrar resultados. Tal mudança alterar a conduta
da gestão escolar para uma interatividade social, com a participação de toda comunidade local e escolar. O estudo tem como objetivos:
descrever como acontecem as formas de participação (conselho de escola, comissão gestora e comissões mistas); caracterizar os familiares
que participam nas escolas com tomadas de decisões; e analisar o que eles entendem por participação. Foi aplicado um mesmo questionário
com diversas informações, nas três escolas, e os dados estão sendo lançados em um sistema de informação criado para permitir o cruzamento
de variáveis. As categorias de análise serão criadas conforme a percepção de vários olhares e discussões que melhor expressem a realidade
em estudo. Seus resultados nos permitirão compreender, através do olhar dos investigadores e dos sujeitos investigados, quais seriam os
possíveis obstáculos que dificultam essa participação e alguns pressupostos para sua melhoria (em escolas CAs).

Com o mundo globalizado, as transformações ocorridas nas últimas décadas resultaram na produção de várias
análises explicativas, e em diferentes configurações sociais modificadas conforme os padrões de organização da produção.
Com o desenvolvimento das forças produtivas, a ciência e a tecnologia tornaram-se cada vez mais importantes no processo
de produção e na sobrevivência da espécie humana. O constante progresso dessas forças tornou-se vital para a própria
dominação do capitalismo, que se posiciona ora hegemônico, ora sob forma de luta de classes no interior das formações
sociais capitalistas. Faz-se necessário analisar o potencial explicativo que defende a ruptura radical destes padrões sociais, a
partir da descentralidade do trabalho produtivo, no qual se evidencia as crises estruturais de emprego e o uso de novas
tecnologias, que representaram, e ainda representam uma nova divisão, e um novo conteúdo no e do trabalho.
Esta nova sociedade, denominada da informação e do conhecimento tem propiciado (em vários setores) diversas
mudanças na sociedade, e conseqüentemente nas esferas educacionais. As reformas educativas planejadas em vários países
do mundo europeu e americano, nos últimos vinte anos, coincidem com a recomposição do sistema capitalista mundial,
ambas decorrentes de necessidades e exigências geradas pela reorganização produtiva.
As atuais políticas educacionais brasileiras devem ser compreendidas neste contexto em que as transformações
econômicas, políticas, culturais e geográficas tomam conta do mundo contemporâneo. Estas se caracterizam por uma
regularidade que unifica estratégias na reforma escolar, como: utilizar-se de mecanismos de controle e avaliação da qualidade
dos serviços educacionais, e de subordinar a sua produção às necessidades estabelecidas pelo mercado.

607
A proposta da construção de um sistema educacional inclusivo encontra-se amparada legalmente e em princípios
teóricos fundamentados em ideais democráticos de igualdade, eqüidade e diversidade. No entanto, algumas práticas se
distanciam sobremaneira das proposições teóricas e legais.
Com a economia mundial centrada no conhecimento, a sociedade coloca a escola no cerne das atenções: passa a ter
valor estratégico para o desenvolvimento de padrões sociais, devendo adequar-se a nova forma mundial de lidar com o saber.
Em face de um mundo globalizado e no qual as interações acontecem cada vez mais em rede, a escola deixa de ser a única
referência de educação, e também, de ser responsabilidade apenas dos governos e/ou da equipe administrativa.
Diante deste quadro, o presente estudo tem como objetivo abordar duas perspectivas: a primeira (levando em conta
o delineamento de políticas públicas educacionais), constitui-se em uma síntese de reflexões acadêmicas sobre gestão
democrática, na qual vários autores da área são mencionados. Logo após, por meio de referenciais teóricos abordados na
proposta de Comunidades de Aprendizagem (CA), analisaremos como estas referências (destes autores da área de gestão)
desenvolvem reflexões diferentes sobre as questões da gestão democrática, principalmente no que tange às formas de
participação.
A segunda reflexão é sobre dados parciais de uma pesquisa que está sendo desenvolvida na área de gestão, com
base na aprendizagem dialógica e na metodologia comunicativa crítica. Ela realiza-se em três escolas municipais do Ensino
Fundamental que são Comunidades de Aprendizagem, em São Carlos/SP. Intentamos responder na visão dos familiares dos
estudantes, quais foram as transformações e os empecilhos, quanto à sua participação ou não nestas instituições, com vistas a
promover um ensino de qualidade e diminuir a exclusão de quem não tem o conhecimento científico sistematizado. Neste
texto apresentaremos alguns dados tabulados, mas sem categorias de análises, devido à falta de tempo na articulação entre
pesquisadores e participantes da pesquisa, como prevê a metodologia comunicativa crítica.

As mudanças na sociedade e as Políticas Sociais e Educacionais Brasileiras


As políticas sociais influenciam os rumos da coletividade, com a tensão e os conflitos próprios de uma sociedade de
classes que anseia por interesses diferentes. Na perspectiva das reformas educacionais, entende-se que a educação tem como
tarefa a formação de indivíduos socialmente competentes e eficientes, o que significa dizer que cabe à escola formar um
quadro utilitarista de pessoas para atuarem neste mundo.
Para Popkewitz (1997), por vias diretas e indiretas, a ciência e os intelectuais passam a exercer uma função,
mediada pela escola, de formação do indivíduo, em face do processo de naturalização do social. As práticas sociais e
escolares, neste âmbito, têm na cultura e na ideologia de mercado sua sustentação, legitimando as relações sociais, marcadas,
então, pela desigualdade de classes.
A sociedade do conhecimento ou da informação nos força a admitir que a educação tem um papel essencial no
desenvolvimento das sociedades humanas, mas não está construindo garantias de cumprimento desta função (ou que dela se
espera). A procura de algumas parcerias em prol da educação tem esvaziado as atribuições do Estado, e não a busca de um
gesto de “solidariedade”.
Na interpretação de Montaño (2005), podemos observar que em termos globais, há uma tendência internacional de
se rever o papel do Estado na oferta e na gestão da educação, enquanto política social indispensável para o desenvolvimento
de diferentes países. Ao analisarmos este processo, tomando como ponto de partida as políticas educacionais, temos no final
da década de 1980, a necessidade de enfrentamento das crises geradas pela superacumulação de capital, tendo em vista o
estabelecimento de reformas capazes de reduzir gastos públicos, promovendo um vasto movimento de privatização das
empresas estatais, bem como diminuindo a intervenção do Estado no controle de preços.
A aceleração e a intensificação das mudanças que a sociedade experimenta atualmente têm traduzido novas
expectativas em relação à escola, fazendo com que essa busque transformações não apenas em sua organização, mas,
especialmente, em seus aspectos pedagógicos, tecnológicos, metodológicos, e culturais. Se a escola está sendo reformulada
ou já se reformulou, para estar correspondendo à perspectiva de novos modelos e para as novas tecnologias do século XXI,
necessita-se verificar o que está por trás destas políticas que visam beneficiar uma pequena classe social e que tem forte
influência na política educacional, objetivando assim os rumos que essa deva ter.
As novas tecnologias da informação e os meios de comunicação estão presentes nos espaços sociais ou
incorporados ao cotidiano da vida de pessoas, de maneira que modificam hábitos e necessidades. O conhecimento e a
iniciativa constituem matérias-primas para o desenvolvimento social e formação política do cidadão, para tanto, precisamos
que todos tenham garantido a aprendizagem do ensino elementar, do domínio dos códigos básicos da leitura e escrita.
Segundo Garre (2002), muitos se sentem fascinados ou pressionados a participar da “cultura digital”, assim adquirir
computadores é sinônimo de modernização, sob pena de tornarem-se obsoletos ou serem excluídos das atividades que
realizam. A revolução informacional está na base de uma nova forma de divisão social e de exclusão, de um lado os que têm
o monopólio do pensamento, e de outro os excluídos desse exercício.
No Brasil, os eventos nos revelam que o despertar de uma nova conjuntura política a partir da década de 1980,
aparecem como característica primordial à redemocratização da sociedade com vistas a participação, e a legitimação deste
ideal se efetua com a Constituição Federal de 1988. Neste movimento de democratização, a escola enquanto instituição
formadora de identidades individuais e coletivas tende a repensar o seu contexto. Na esfera política, a necessidade de
articular Estado e Sociedade Civil possibilitou a criação de Conselhos. Podemos definir, segundo Gohn (2001), a partir do

608
século XX, os conselhos em três tipos: na década de 70, eles foram instituídos pelo poder executivo, para intervirem nas
relações com os movimentos e com as organizações populares. Na década de 80, foram concebidos por movimentos
populares ou setores organizados da sociedade civil e suas relações com o poder público, sendo designados “populares”. E os
que se formaram depois, a partir da década de 90, foram institucionalizados, criados por leis originárias do poder Legislativo,
e surgidos após pressões e demandas da sociedade civil.
As formas de participação em diferentes estâncias sempre foi uma questão polêmica. Na história podemos ressaltar
que ela tem início no processo de negociação coletiva entre patrões e trabalhadores, nas organizações empresariais. E, estes
acordos mediados por centrais sindicais e associações de classe, já se apresentavam como insuficiente no mecanismo efetivo
de representação, devido à exclusão da participação destes trabalhadores. No âmbito das organizações a participação
administrativa, baseada na formação de comissões de funcionários eleitos como representantes por tempo determinado, foi
um modelo para os órgãos colegiados sujeitos a mudanças em função da legislação e de normas.
Percebe-se que a participação (com tomadas de decisões nas organizações e/ou nas políticas dos regimes
democráticos), influenciada pelo sistema capitalista (que se apropria dela), limita-se à construção de comissões e os órgãos
colegiados, em que os limites entre a participação real – com pessoas se posicionando e modificando concretamente as
decisões em favor da coletividade – e a manipulação por parte daqueles que detêm o poder (utilizando-se dos mesmos
mecanismos) são muito sutis. Neste sentido, percebemos dois pontos de vista: uma diz respeito à população que acaba se
engajando em órgãos colegiados e obtém mudanças (ao menos parcialmente), em algumas decisões que emanam de órgãos
centrais; a outra está relacionada a estes órgãos que conseguem “atrair ajuda” (devido a estes colegiados), ou ganham
legitimidade para cumprir seus objetivos. O “discurso da participação” ganha novos motes, assim, a sociedade e o Estado
despertam para a necessidade de pensar o papel destes colegiados, e a atuação do diretor e sua equipe nestes espaços.

O paradigma de Gestão democrática: perspectivas conceituais


Para alguns autores que produziram e, ainda produzem teorias na área de gestão democrática existem pelo menos
duas maneiras de posicionamento para a escola: conforme o ideário capitalista (aqui já apresentado), colocando a instituição
escolar como centro das políticas e liberar boa parte das responsabilidades do Estado, dentro da lógica do mercado. Ou na
perspectiva sócio-crítica, que valoriza as atuações concretas de profissionais da educação, ações estas decorrentes de suas
iniciativas, de seus interesses, de suas interações (autonomia e participação) em função do interesse público, sem com isso
desobrigar o Estado de suas responsabilidades.
No Brasil, de acordo com os estudos realizados sobre a teoria de administração escolar toda a fundamentação
teórica utilizada por autores clássicos, como Alonso (1976), Carneiro Leão (1939), Lourenço Filho (1963) e Ribeiro (1978),
se utilizou dos pressupostos da Teoria Geral da Administração, que tinha como modelo a administração empresarial. Daí
surge à comparação entre gerir uma escola e a administrar uma empresa, que por muito tempo deu significado à
administração escolar (que se apoiava em conceitos da administração empresarial), tendo um paradigma que defendia o ato
de dirigir uma escola com a lógica fordista, do sistema capitalista.
Essa concepção de administração escolar pautada no autoritarismo, na centralização, e no conservadorismo, teve
como conseqüência o direcionamento do ser humano para fragmentação e alienação. Fica claro que a administração foi
considerada uma técnica, aplicável a qualquer organização, com o objetivo de alcançar de forma mais eficiente os resultados
esperados. Este modelo de administração escolar, para Luck (2006b), empregou à figura do diretor como aquele que deve
zelar pelo cumprimento de normas, determinações e regulamentos segundo ordens vindas dos órgãos centrais.

“(...) a ênfase da atuação do administrador em controlar a ação de pessoas e cobrar resultados. O controle é
exercido de cima para baixo e de fora para dentro, de forma objetiva, a partir de um poder funcional.” (ibidem, p.58).

Na época, algo que movimentou a adesão ao modelo burocrático empresarial foi a escola começar a ser analisada
como uma organização competente para a produção. As instituições escolares herdam desta perspectiva a separação dos
processos educativos, com funções específicas para cada especialista, e lugares pré-determinados, justificando-se que a
prioridade estava em proporcionar mais rendimento escolar.
Para Motta (2008), o papel social das organizações burocráticas se manifesta concretamente no exercício do
controle social que se torna possível pelas relações de poder, que são sempre relações desiguais. A organização é entendida
como um conjunto de idéias verdadeiras ou falsas sobre a realidade, que tem como função: aprimorar as relações sociais
desiguais do trabalho, tornando-as mais eficazes. Assim, esta se torna um ato de submissão, um comportamento ou uma
prática socialmente aceita, tida como natural, ela detém as fontes de poder e controle social. Segundo o autor (ibidem, 2008),
a organização empresarial viveu sempre o conflito instaurado no antagonismo entre capital e trabalho. Para atingir os
objetivos econômicos e políticos, as empresas procuram antecipar e prevenir o aparecimento de novos conflitos, como forma
de mediação dessas contradições oferecem vantagens materiais e psicológicas aos trabalhadores individualmente, por meio
da individuação.
A organização da escola, igualmente, é voltada para retratar uma determinada cultura e para a reprodução da
estrutura de classes, descrevendo um determinado tipo de relação entre os meios de produção e os trabalhadores, dando uma
formação diversa para os que serão dominantes e os que serão dominados. É importante lembrar que o problema não está na

609
empresa, na escola, na prisão ou no manicômio. O problema está no capitalismo burocrático que lhes atribui funções
estratégicas de acordo com sua lógica e suas necessidades. (Motta, 2008)
A partir da segunda metade da década de 80, tem inicio um movimento contrário a este modelo, surgindo novas
tendências e “modernas exigências”. No Brasil são instalados os princípios de igualdade de condições para o acesso e
permanência dos(as) alunos(as) na escola, por meio da Constituição Federal de 1988, acompanhada pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), o que
representou o direito à educação como dimensão de direito social, como direito humano fundamental, direito público
subjetivo (Liberati, 2006).
A educação começa a ser entendida como fator de realização da cidadania, com padrões de qualidade de oferta e
produto, na luta contra a superação das desigualdades sociais e da exclusão social. O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), ao reproduzir o princípio acima citado, não só confirma como materializa a garantia do direito público subjetivo à
educação, determinando a eliminação de toda e qualquer forma de discriminação para a matrícula ou permanência na escola.
Isso significa garantir ao estudante brasileiro o direito de aprender, de prosseguir em seus estudos com um ensino de
qualidade.
Para Luck (2007), devido a estas mudanças que ocorreram ao longo do desenvolvimento histórico e das diferentes
mobilizações sociais que requereram a participação democrática nas políticas organizacionais, existiu a necessidade de
mudança de paradigma, passando do entendimento de administração escolar, para a concepção de gestão educacional. Esta
troca não resultou apenas na substituição do nome, de administração para gestão, mas em uma nova compreensão de
organização educacional, que surge para:

(...) superar as limitações de enfoque fragmentado, simplificado e reduzido. Para ser efetiva, a gestão baseia-se na
administração e a propõe como uma dimensão e área da gestão que possibilita o bom funcionamento das demais dimensões.
(Luck, 2006a, p.53).

Todas as questões teóricas e as bases das discussões sobre gestão escolar incorporaram a necessidade de
democratizar as decisões no ambiente escolar, com o aperfeiçoamento nas relações internas e externas. A escola deve ser um
lugar que articula a sua estrutura e o seu funcionamento em prol da comunidade que está ao seu redor. O paradigma de gestão
educacional amplia a antiga visão administrativa, dando foco na interatividade social, que antes não era considerada. Mesmo
assim, sabemos que as ações administrativas ainda fazem parte da instituição escolar, como o controle de tempo, espaço,
recursos, condução rígida na organização da escola etc., e contestar este modelo não tem sido tarefa fácil. Este novo modelo,
mais democrático implica em obter dos diferentes segmentos da escola (professores, diretores, supervisores, funcionários,
pais e estudantes) participação coletiva, por meio de colegiados. Mas, para esta participação ser realmente efetiva precisam
existir parcerias entre: o gestor, sua equipe escolar e seus colegiados, criando um ambiente propício de igualdade a todos.
Segundo Paro (2003), “não basta, entretanto, ter presente a necessidade de participação da população na escola. É
preciso verificar em que condições essa participação pode tornar-se realidade.” (p. 40). Para o autor (ibidem, 2003), a
participação da comunidade torna-se vital, mas para isso temos que nos disponibilizar a ouvir e acatar o que pensa essa
coletividade. O alcance da participação dos indivíduos nas decisões das organizações e/ou nas políticas dos regimes
democráticos, como já foi dito, não pode se restringir à construção de mecanismos de distribuição do poder. Para alguns
autores, qualquer gestão deve ser participativa:

Ao referir-se às escolas e sistemas de ensino, o conceito de gestão participativa envolve, além de professores e
funcionários, os pais, os alunos e qualquer outro representante da comunidade que esteja interessado na escola e na melhoria
do processo pedagógico. Destaca-se que o entendimento do conceito de gestão já pressupõe, em si, a idéia de participação,
isto é, do trabalho associado de pessoas analisando situações, decidindo sobre seu encaminhamento e agindo sobre elas, em
conjunto. (Luck, Freitas, Girling, Keith, 2007, p.17).

Modificar esta prática educativa compreende (re)construir um currículo não burocrático, mas de forma
participativa, além de um planejamento flexível e aberto às mudanças da comunidade local e global e da própria dinâmica
escolar. Nesse contexto, a equipe de gestão e/ou os professores não são mais executores de tarefas, e nem um canal entre as
relações de poder implícitas no currículo. Os estudantes não se restringem às suas obrigações curriculares formais, passando
a ser, como afirma Hernandez (1998), um agente problematizador e conscientizador da sua prática escolar.
A equipe escolar (gestor, professor etc.) deve exercer democracia social e consentir novos padrões, possibilitando e
criando meios educacionais que permitam aos alunos uma participação efetiva na escola, que conseqüentemente, propiciará
uma ação também sobre seu contexto social e cultural, de maneira mais consciente. Sob essa perspectiva, considera-se que a
instituição escolar possui um papel importante, de modo a tornar o conhecimento universalmente válido, acessível a todos os
cidadãos.
A condição para que ocorra uma efetiva participação dos sujeitos relacionados acima, é que além de se criar
espaços de participação, como por exemplo: Associação de Pais e Mestres (APM), Conselho de Escola, Conselho de Classe,
entre outros; é necessário que haja uma formação destes sujeitos, com a intenção de instrumentalizá-los para que estes
possam contribuir nos processos decisórios da escola, e não apenas assistir ou serem assistidos nas decisões tomadas somente

610
pela comunidade escolar (Conti; Luiz, 2007). Para estes autores (ibidem, 2007), é fundamental que haja na escola, além de
um espaço para o exercício da gestão democrática, uma formação instrumental dos sujeitos envolvidos neste processo, pelo
menos naqueles tipos de participação que envolve conhecimentos específicos como, por exemplo: normas, legislação, etc.
Pois a partir daí conseguiremos construir uma escola que garanta a melhoria do ensino e da aprendizagem dos alunos, por
meio de uma ação conjunta, correspondendo assim, uma opção política adotada pelos envolvidos.
Paro (2003) e Dourado (2001), – que refletem sobre estas questões – compartilham a idéia de que um dos
colegiados que deveria concretizar esta gestão democrática (com a opinião de diferentes segmentos da escola e da
comunidade) é o Conselho de Escola (CE). Este se constitui em um dos caminhos institucionalizados para a prática da
democracia representativa, com garantia de paridade. Enfrentar o desafio de construir uma gestão democrática, frente a uma
série de limites impostos pela forma como a sociedade está organizada exige deste colegiado a compreensão e a interpretação
do sentido e do significado da democracia.
Democracia é um regime político defendido por muitos teóricos e pode ser determinada, como: “governo do povo
para o povo”, é nela que a população detém o poder soberano, sobre o legislativo e o executivo. Para Bobbio (2000) a
democracia em que está prevista a extensa participação dos interessados, deve ser direta, na qual o povo pratica o poder sem
intermediários, o oposto da democracia representativa. Sobre essa questão o autor (ibidem, 2000, p. 31) afirma que “na
democracia dos modernos o povo passa a ser apenas titular do poder, no sentido em que o governo se diz legitimado pelo
povo em nome do qual exerce o poder”. Mas na verdade, quem tem o poder de decisão é o representante indicado.
Muitas pesquisas são realizadas a respeito do funcionamento efetivo do Conselho de Escola e de outros colegiados
dentro das instituições, entre estas investigações, citamos a de Luiz e Conti (2007), realizada em São Carlos/SP. Para estes
autores (ibidem, 2007), o trabalho com o CE encontra algumas dificuldades prática na escola, de ordem estrutural, legal ou
mesmo relacionadas ao dia-a-dia da escola: reduzido número de reuniões ordinárias e extraordinárias, sentimento de
despreparo técnico (principalmente, por parte da comunidade), insegurança na tomada de decisões (por não saber o grau de
autonomia do CE) etc.
Assim, as reuniões ordinárias dos conselhos se ocupam de assuntos relacionados ao cotidiano, como organização de
festas e outros eventos, deixando de lado questões importantes da vida escolar (Luiz, M.C.; Conti, C., 2007, p. 8).

A participação não significa apenas estar presente nas reuniões ordinárias e/ou na decisão dos eventos e festas da
escola, segundo Freire (1991), participar,

(...) implica, por parte das classes populares, um ‘estar presente na História e não simplesmente nela existir
representada’. Implica a participação política das classes populares através de sua representação ao nível das opções, das
decisões e não só do fazer já programado. Por isso é que uma compreensão autoritária da participação a reduz, obviamente a
uma presença concedida das classes populares a certos momentos da administração (p.75).

Paulo Freire (1994) propõe uma aprendizagem da democracia através do seu exercício e da sua própria existência,
“aprendendo democracia pela prática da participação” (p. 117). Uma proposta de pedagogia democrática, por meio de
práticas dialógicas e anti-autoritárias, do exercício da participação contra passividade e para a decisão – “uma educação para
a decisão, para a responsabilidade social e política.” (Freire, 1967, p. 88).
A democratização dos sistemas de ensino e da escola implica o aprendizado e a vivência do exercício de
participação e tomadas de decisões. Trata-se de um processo a ser construído coletivamente, que considera a especificidade e
a possibilidade histórica de cada sistema de ensino (municipal, estadual ou federal), de cada instituição. O importante é
compreender que esse processo não se efetiva por decreto, portarias ou resolução, mas é resultante, sobretudo, da concepção
de gestão e de participação (de espaços que criamos) dentro do ambiente escolar. Com base na afirmação de Freire (1991),
compreendemos que o ato de participar está estritamente relacionado com a possibilidade de ação da comunidade local e
escolar dentro deste ambiente. O agir é fundamental para estabelecer uma efetiva participação e, quando possibilitarmos aos
pais, alunos, professores e funcionários da instituição o desenvolvimento de atividades coletivas estamos ampliando o
entendimento do significado de participação.
Antonio Candido (1983), ao analisar a estrutura da escola, já nos acenava que esta não se limita apenas a uma
estrutura administrativa regida pelo poder público na qual existem relações oficialmente previstas, mas na existência de algo
mais amplo do ponto de vista das relações sociais que se estabelecem entre seus componentes. Este algo mais se converte em
um diferencial entre as escolas, mesmo que elas sejam regidas por um mesmo código específico de normas.
É no sistema de organização e gestão da escola, com princípios relacionados ao planejamento do trabalho
pedagógico, racionalização de recursos e coordenação das pessoas envolvidas no âmbito escolar e fora dele, que percebemos
as diferenças das escolas. Para Libâneo (2003), é a cultura organizacional da escola, no conjunto de suas ações, meios e
procedimentos, que propicia condições para o alcance da formação da cidadania, valores e atitudes. Há uma característica das
organizações escolares que é relevante para a prática de gestão: a cultura organizacional ou cultura da escola. Não podemos
compreender o funcionamento da escola apenas pelo que vemos: as formas de gestão, as reuniões, a elaboração do projeto
pedagógico e do currículo, as relações sociais entre os integrantes da escola e a comunidade etc. Existe um mundo de
significados, valores, atitudes, modos de convivência, formas de agir e resolver problemas que vão definindo uma cultura
própria de cada escola e que tende a permanecer oculta, invisível.

611
Para Libâneo (2001), as práticas e os comportamentos das pessoas na convivência diária de uma organização
influem nas práticas e comportamentos dos professores nas salas de aula. Assim, a cultura organizacional influencia o pensar
e o modo de agir das pessoas que convivem em um ambiente escolar. As escolas que possuem melhores resultados de
avaliação, segundo Nóvoa (1999), são as que também se relacionam mais intensamente com a comunidade, com relações e
comunicações que se dão por meio da participação de espaços criados,

(...) normalmente, aquelas que conseguem criar as condições propícias a uma colaboração das famílias na vida
escolar. É preciso romper, de uma vez por todas, com a idéia de que as escolas “pertencem” à corporação docente. Os pais,
enquanto grupo interveniente no processo educativo, podem dar um apoio activo às escolas e devem participar num conjunto
de decisões que lhes dizem directamente respeito. Numa perspectiva individual, os pais podem ajudar a motivar e a estimular
os seus filhos, associando-se aos esforços dos profissionais do ensino. (p. 27).

Deste modo, uma escola pública não pode limitar-se apenas a informar conhecimentos, mas deve ser a síntese entre
a cultura experienciada que acontece na cidade, na rua, nas praças, nos pontos de encontro, nos meios de comunicação, na
família, no trabalho, etc., e a cultura formal, que é o domínio dos conhecimentos, das habilidades de pensamento.

Comunidades de Aprendizagem: Gestão democrática e participação


Com o panorama mundial descrito, as reformas e políticas públicas educacionais nos incitam a pensar sobre a
questão da democratização da escola, e nesta expectativa a gestão escolar tem papel fundamental, devendo-se articular à
comunidade que está ao seu redor. Esta necessidade implica em democratizar as decisões, com aprimoramento nas relações
internas e externas, na estrutura e no funcionamento da instituição escolar, que deve estimar e fomentar a presença desta
comunidade. Sabemos que a modificação de um paradigma nem sempre contempla o cotidiano escolar, por isso
consideramos que a concepção de gestão educacional, ou mesmo o entendimento de gestão democrática são conceitos que,
sozinhos, não garantem a democratização dos sistemas de ensino.
Se pensarmos na sociedade atual, em que o individualismo e a concorrência são características predominantes, fica
difícil concebermos um espaço no qual a democracia efetiva, a participação e o diálogo sobrepujam. A escola é vista como
um ambiente educativo, como um espaço de formação, construído pelos seus segmentos, um lugar em que a equipe escolar,
juntamente com os estudantes e seus familiares podem decidir sobre o trabalho pedagógico (dentro da escola) e aprender
mais sobre a comunidade de entorno (fora da escola).
É importante assinalar que para alguns autores (Meister, 1981; Crozier, 1963; Giddens, 1995; Touraine, 2001), a
definição de processos de participação constitui-se como aquela que opera concomitantemente por uma dinâmica individual e
coletiva. Para estes sociólogos, ao praticar a ação todo indivíduo preserva uma oportunidade relativa de autonomia,
conferindo à sua participação significados que mudam de acordo com os contextos sociais, políticos, econômicos da
sociedade e da organização da qual ele faz parte. Este ponto de vista tem recebido algumas críticas, por supor que esta
atuação do sujeito, realiza-se antes de ações políticas e/ou do Estado; mas de qualquer forma, os regimes democráticos têm
permitido a participação destas pessoas (seja no âmbito político ou das organizações), por meio de espaços legitimados,
como: eleições livres, conselhos administrativos, conselhos representativos (deliberativos e/ou consultivos), etc. Sendo a
escola uma organização social, estes mecanismos formais (que fazem parte do seu contexto), ficam subordinados a diversas
normativas que impõem regras e delimitam níveis e formas de funcionamento, que são designados, como: participação
organizada e imposta (Meister, 1981).
Outros referenciais (Ball, 2006; Tardiff; Lessard, 2005; Lima, 2003) – embora inseridos em contextos teórico-
metodológicos distintos – analisam os mecanismos da participação com toda a complexidade que existe na sua interpretação
(feita por todos que estão envolvidos na escola), a respeito do formato legal e normativo, o que resulta em processos
organizacionais inesperados.
Considerando que professores, diretores e coordenadores de escolas públicas exercem suas profissões conforme o
contexto no qual atuam e/ou em que são formados há diferentes formas de interpretação deste conjunto de normas,
constituindo-se assim, um campo de tensão, com comportamentos como os de: negligências, “aparências”, resistências, ou
apenas o cumprimento formal das regras. Assim, a escola ordenada por regulamentos e estatutos pode sofrer situações de
conflitos, neste sentido são poucas as pesquisas sobre o tema, geralmente, esta discussão está associada à questão da
violência entre os alunos, entre estes e os professores, entre a direção e os alunos etc.
A proposta do Projeto Comunidades de Aprendizagem é de incentivar a transformação da escola, com a realização
de alguns objetivos importantes, como: propiciar a aprendizagem de todos, superar obstáculos da aprendizagem por meio do
diálogo igualitário, garantir a aprendizagem máxima das crianças, e promover mudanças sociais e culturais no entorno em
que está inserida, a fim de estabelecer relações, práticas e aprendizagens positivas e democráticas.
No momento são três escolas municipais que compõem o Projeto Comunidades de Aprendizagem, em São
Carlos/SP. A finalidade maior é de gerar melhoria na qualidade destas escolas municipais, com a democratização de seus
espaços educativos (Mello, 2004).
Segundo Mello (2002), o Centro de Investigação em Teorias e Práticas Superadoras de Desigualdades (CREA),
elaborou por meio de estudos sobre a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, e a Dialogicidade de Paulo Freire a

612
concepção de aprendizagem dialógica. Este conceito se aplica por meio do diálogo igualitário, como base para todas as
relações, em que todas as idéias têm o mesmo valor.
A diferença entre a gestão democrática de uma escola C.A. e as demais (baseando-se em referenciais apresentados),
é que em qualquer momento de tomada de decisão coletiva, a melhor proposta é aquela que tiver o melhor argumento. Para
Flecha (1997), devemos considerar as diversas perspectivas em função da validade dos argumentos, procurando não
considerar os cargos ou funções que as pessoas exerçam. Diferentemente da conduta que estamos acostumados, este critério
de escolha torna-se distinto das relações em geral, em que sempre se aceita a proposta de quem procede de um órgão público
ou de destaque e/ou de um indivíduo que ocupe lugar de poder, ou ainda, como na democracia, a que foi mais votada.
Ao compartilhar diferentes concepções e decidir diversas situações por meio do diálogo conduzido pela força dos
argumentos, configura-se uma ação de mudança com duas perspectivas: uma com transformação interna de cada participante,
e a outra externa, com vistas ao benefício de todos.
Segundo Freire (1967), sem ter assimilado e/ou vivido o exercício da participação e tomadas de decisões não
obtemos mudança na realidade; julga-se que o processo deve ser idealizado coletivamente, por meio deste diálogo igualitário.
Decidir conjuntamente deve resultar em mudanças nos currículos e nas formas de avaliação, além da direção de recursos
financeiros. Quando vivenciamos uma prática de aprendizagem dialógica possibilitamos que todos e todas tenham direitos
iguais, e de que existam maneiras diversas para cada pessoa exercer plenamente seus direitos.
Esta idéia de Freire (1967), que hoje, nos parece “comum” foi pioneira, antecedeu as teorias de Habermas, e
oportunizou em sua época novidades na área educacional. Foi Freire (ibidem), que estabeleceu as relações educacionais a
partir de uma concepção dialógica, e com este pressuposto passou a existir a possibilidade de transformação da escola.
A gestão nas escolas Comunidades de Aprendizagem, segundo Mello (2007), deve dispor-se ao diálogo igualitário,
promovendo esta transformação, por meio da participação dos familiares, alunos e a comunidade de entorno. Podemos
cotejar a forma como encaramos a vida, a sociedade e os indivíduos com a ação da dialogicidade, e quando a escola reflete
sobre estas relações existentes (muitas vezes tão pautadas no modelo técnico e instrumental), passa a integrar formas mais
democráticas em seu ambiente, privilegiando a participação em processos decisórios.
Para a autora (ibidem, 2007), devemos mudar a concepção de educação escolar, de prestadora de serviço público
para protagonista na gestão popular. O conceito de participação é fundamentado no de autonomia (capacidade das pessoas e
grupos conduzirem suas vidas), e no de organização escolar, com objetivos coletivos e compartilhados. Esta busca do
envolvimento da equipe profissional e da comunidade (alunos e seus familiares) para decidir suas metas comuns mobiliza as
pessoas para uma atuação conjunta.
Uma escola pode ser diferenciada pela sua autonomia, pela forma como descentraliza a sua gestão, como delibera e
executa um planejamento compatível com as realidades locais, todos e todas devem acreditar que o processo educacional é
algo a ser construído por meio de participação ativa. Se aumentarmos as possibilidades de tomadas de decisão dos estudantes
e de seus familiares, conseqüentemente, melhoraremos a força de diversas ações, de aprendizagem e de alterações da
realidade.

Para Freire e Nogueira (2001):


É preciso termos em mente que os grupos populares são perfeitamente capazes de apreender a significação do
discurso teórico. E isso é aprendido em outra linguagem, com outra vestimenta; o que eles não vão entender é a linguagem
difícil e complexa. (p.37-38, grifos nossos).

Apesar de procurar formas de interação comunicativa, discussão pública dos problemas e soluções, conforme o
consenso e o diálogo intersubjetivo, a organização escolar deve ser acompanhada de um procedimento administrativo
democrático, com avaliação das atividades, responsabilizando a cada um por seu desempenho em prol do coletivo.
Diversas ações devem ser concretizadas para que se intensifiquem a participação e a conversa nos processos
decisórios da escola, diminuindo o individualismo. Quando existe este diálogo, as pessoas com diferentes culturas possuem
igual valor e dialogam entre si construindo novos saberes a partir da inteligência cultural, considerando que estas diversas
culturas são apenas diferentes umas das outras – não havendo uma cultura melhor que outra.
A escola faz parte de uma unidade social que possui uma cultura regional e local que influi nas várias atividades
escolares (que faz diferença). A presença da diversidade humana na sociedade resulta na multicultura, no sentido de que toda
cultura é plural. Um comportamento multicultural significa reconhecer o pluralismo cultural, aceitar a presença de idéias de
várias pessoas, e por conseqüência, de diferentes culturas.
Para realizar propostas pedagógicas com qualidade, a escola deve ter o propósito de incluir e não de excluir pessoas
com perfis econômicos, culturais e pedagógicos diferentes. No contexto da sociedade contemporânea, ela tem uma grande
responsabilidade: ser capaz de gerar conhecimentos e desenvolver a ciência e a tecnologia, com o intuito de preparar todos os
cidadãos para compor a sociedade de forma mais justa. Para garantir a gestão democrática nas escolas que são Comunidades
de Aprendizagem, faz-se necessário estabelecer a comissão gestora. Esta deve ser formada pela direção, coordenação,
professores, funcionários, pais, alunos e representantes das comissões mistas1. Nas palavras de Braga (2007):

1
As Comissões mistas são formadas por integrantes dos grupos que trabalham com a aprendizagem dialógica na escola, co
Esta nota continua na página seguinte

613
A comissão gestora é uma representação de todas as comissões que funcionam no centro e tem como função
selecionar as prioridades da escola, elaborar estratégias para consegui-las, criar e formar as comissões que se estabelecem
apoiá-las, motivá-las e aceitar suas propostas, trabalhar conjuntamente com a equipe diretiva etc. (p. 80)

Diferente da composição do conselho de escola não há paridade e nem representatividade para formar esta
comissão. O critério para os interessados em participar é ser integrante de algum trabalho de aprendizagem dialógica
(comissões mistas), ou ser da comunidade escolar e/ou da comunidade de entorno. Aqueles que estiverem dispostos a fazer
parte deste ambiente decisório podem discutir as ações que estão acontecendo na escola, com objetivo de potencializar o que
está sendo positivo e solucionar as dificuldades que possam advir.
Nessa perspectiva, a instituição trata os familiares e voluntários como sujeitos que compõem o seu espaço, assim
como os alunos, funcionários, professores, etc. Deve superar a concepção de que as administrações e os especialistas
entendem o que é bom e o que não é para a escola.
O princípio das escolas CA é o funcionamento e a participação igualitária das pessoas de todos os grupos e níveis,
bem como uma gestão pautada na democracia deliberativa. A entrada dos voluntários nas escolas nada tem a ver com os
projetos existentes no Brasil como “Amigos da escola”, “dia da família na escola”, ou “escola da família”. Entende-se que a
participação destes voluntários, em programas como estes, não é a mesma para todos os agentes sociais envolvidos, e suas
relações com o cotidiano da escola nem sempre envolve um compromisso de decisão. Assim, a forma como estas tomadas de
decisões acontecem são por meio de assembléias, ou pelo conselho de escola, ou pelas comissões mistas ou a comissão
gestora (como já foi dito).
Para os órgãos governamentais, infelizmente, os estabelecimentos escolares se diferenciam entre si, somente, pelo
grau em que conseguem promover a aprendizagem de seus alunos, considerando apenas as estatísticas. No entendimento
dessas políticas públicas e de alguns referenciais teóricos, as escolas devem investigar quais estratégias que levam os seus
estudantes a aprender, e como conduzi-los para isso. Acreditamos nessa concepção, de que os alunos devam aprender cada
vez mais, e isso é extremamente importante, mas cremos que o diferencial nas escolas é muito mais do que isso, está
relacionado à forma como as instituições se transformam a partir de idéias que estabelecem para si e para a população que
atendem.

Comunidades de Aprendizagem: participação dos estudantes e seus familiares


Com base nesta perspectiva, iniciamos em agosto de 2007 uma pesquisa denominada “Comunidades de
Aprendizagem: aposta na qualidade da aprendizagem, na igualdade de diferenças e na democratização da gestão da escola”,
da qual a investigação que abordaremos faz parte integrante.
A frente de trabalho que apresentamos está ligada ao eixo gestão escolar, que junto com os outros quatro eixos
(aprendizagem de leitura e escrita, práticas de aprendizagem dialógica, condições socioambientais do entorno e condições de
trabalho), constituem um estudo que está sendo financiado pelas agências de fomento: FAPESP e CNPq.
Neste contexto, o eixo gestão escolar objetiva descrever e analisar, em conjunto com agentes educativos e
estudantes, o desenvolvimento e o impacto de situações de participação da comunidade nas decisões das escolas (conselho de
escola, comissão gestora, comissões mistas). No que se refere ao processo metodológico utilizamos duas formas de coletas de
dados: a quantitativa e a qualitativa.
Na perspectiva quantitativa foram previstas a preparação e a aplicação de um questionário de caracterização
socioeconômica para os familiares dos estudantes.
Na qualitativa existe a programação de realização de entrevistas com gestores/as das escolas, buscando saber como
vêem a participação da comunidade na construção da escola, perceber que tipos de ações têm dado pouco resultado e quais
são mais bem sucedidas ao se tentar superar o fracasso escolar e os problemas de convivência. Além das entrevistas, foi
previsto, também, a análise de documentos teóricos e legais, sobre a situação atual do sistema educativo brasileiro e a
situação educacional das crianças e jovens.
Relatamos neste texto a pesquisa que vem acontecendo no eixo gestão, na perspectiva quantitativa. Entre as
diversas metas deste estudo, pretende-se caracterizar quem são os familiares dos estudantes (participantes da investigação)
quanto à idade, sexo, grau de escolaridade, cor etc. Além de identificar o grau de participação de cada um (bastante, às vezes,
pouco), com situações que descrevam conforme as suas percepções, o que tem facilitado e o que tem dificultado a
participação nas suas instituições. Buscamos delinear, na visão destes, o que entendem por participação, a fim de captar os
aspectos transformadores da realidade destas escolas C.A.
Este estudo tem a intenção de perceber as dificuldades e os pressupostos que favorecem e obstaculizam a
participação de todos e todas nas tomadas de decisões, com vistas à intersubjetividade e a reflexão que são as marcas centrais
do processo de investigação comunicativa crítica.

Não há fontes bibliográficas no documento atual.


Não há fontes bibliográficas no documento atual.mo: tertúlia literária, biblioteca tutorada, grupos interativos, etc.

614
Segundo Gomez (2006), a investigação é comunicativa porque supera a dicotomia objeto/sujeito, mediante a
categoria da intersubjetividade, e é crítica porque parte da capacidade de reflexão e de auto-reflexão das pessoas e da
sociedade.
A comunicação intersubjetiva e a reflexão crítica são aqui as bases para uma geração de conhecimento que
contribua para a superação de desigualdades sociais (Gomez, 2006), o que evidencia a consistência desta metodologia com a
teoria da aprendizagem dialógica, ambas acatadas nesta pesquisa.

A metodologia comunicativa crítica, baseia-se em um referencial teórico que implica que a investigação se abre em
torno do diálogo entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa para dar respostas a questões da sociedade contemporânea, na
perspectiva de uma sociedade dialógica, segundo Gómez e colaboradores (2006).
Para alcançarmos os objetivos propostos começamos com a preparação do questionário (conjuntamente), como já
foi dito, para as famílias dos estudantes. Selecionamos cinco turmas, em cada escola C.A., e conforme prevê a metodologia
comunicativa crítica, por meio do diálogo igualitário entre todos e todas (professores e gestores das escolas municipais,
professores da universidade, alunos bolsistas, etc.) se estabeleceu os critérios de escolha para a elaboração das questões
destes questionários.
Depois estes foram aplicados, no âmbito da escola, com horários agendados. Com as respostas recolhidas passamos
a digitar os dados para serem tabulados, e até o momento obtivemos sua parcialidade.
Na tabulação de alguns dados referentes ao questionário destes familiares, notou-se que as três escolas tiveram uma
amostra diferenciada, quanto ao número de participantes da pesquisa. Duas escolas obtiveram quase a totalidade das
respostas e a outra ficou muito próxima de consegui-lo.
Apresentaremos dados parciais para caracterizar algumas questões relevantes, mas sem a intenção de criar
categorias de análises. Quanto à caracterização destes familiares, evidenciamos que a grande maioria que respondeu os
questionários foi mulher, tanto no 1º e 2º anos, quanto nas 3as e 4as séries, das três escolas.

Tabela 1: Do total de participantes da pesquisa de familiares de estudantes de 1º e 2º anos quanto ao sexo

1º e 2º anos Escola A Escola B Escola C

Sexo F M F M F M
28 02 20 04 11 01
Total 30 24 12

Tabela 2: Do total de participantes da pesquisa de familiares de estudantes de 3ª e 4ª séries quanto ao sexo

3ª e 4ª séries Escola A Escola B Escola C


Sexo F M F M F M

Existem 28 04 17 01 15 0 outras características


que ainda não foram Total 32 18 15 devidamente
tabuladas, por isso não serão apresentadas neste texto. Ao perguntarmos, segundo a percepção destas famílias, quanto ao
grau de participação na escola, obtivemos os resultados:

Tabela 3: A percepção das famílias participantes de estudantes de 1º e 2º anos quanto ao grau de participação na
escola

1º e 2º anos Escola A Escola B Escola C


Participação Famílias % do total Famílias % do total Famílias % do total

Participo bastante 12 40% 6 25% 6 50%


Participo às vezes 7 23% 5 21% 2 17%
Participo pouco 10 33% 0 0% 3 25%
Não participo 1 3% 0 0% 0 0%
Não quis responder 0 0% 0 0% 1 8%
Não respondeu 0 0% 13 54% 0 0%
Total 30 100% 24 100% 12 100%
Percebemos que as famílias da Escola B, deixaram de responder esta questão em específico – 54%, mas não
analisamos este fato devido a metodologia comunicativa crítica, pretendemos refletir sobre o assunto em conjunto com a
comunidade, inclusive esclarecendo os motivos de não terem respondido.

615
Tabela 4: A percepção das famílias participantes de estudantes de 3ª e 4ª séries quanto ao grau de participação na
escola

3ª e 4ª séries Escola A Escola B Escola C

Participação Famílias % do total Famílias % do total Famílias % do total

Participo bastante 9 28% 5 28% 2 13%


Participo às vezes 9 28% 7 39% 10 67%
Participo pouco 12 38% 6 33% 2 13%
Não participo 2 6% 0 0% 1 7%
Total 32 100% 18 100% 15 100%

De maneira geral, os familiares acreditam que estão participando entre as categorias “participo bastante” e
“participo às vezes”. Dessa perspectiva eles concebem a idéia de que participar é comparecer às reuniões de pais, falar com a
professora quando necessário, ajudar os filhos nas atividades e comparecer aos eventos. Nas palavras de um dos familiares:
“(...) Vindo em todas as atividades propostas/oferecidas”. Principalmente nas respostas dos familiares das 3ª e 4ª séries,
encontramos idéias referentes ao “participar” como um processo coletivo: participo como voluntário; ou nas atividades do
projeto Comunidades de Aprendizagem; ou do Conselho de escola.
Neste contexto não analisaremos estes dados, embora nos chame a atenção o fato de que, em suas percepções, os
familiares acreditam que estão participando na escola, segundo também o que entendem por participação. Uma próxima etapa
deste trabalho será analisarmos estas tabulações com os participantes da pesquisa, segundo propõem Valls (1999) e Yeste
(2004). Faremos um levantamento dos obstáculos e das estratégias que poderemos realizar daqui para frente para que todos e
todas estejam dialogicamente aprendendo, ainda mais, uns com os outros.
Os obstáculos para estes autores (ibidem, 1999; 2004), são as experiências escolares negativas que dificultam a
participação das famílias, às vezes são caracterizadas como vivências prévias ruins dos familiares. Podemos definir, também,
como a continuidade de práticas na instituição que não se ajustam ao aumento de diversidade das famílias, ou a falta de
dinamizar as relações entre os profissionais e os familiares.
As estratégias (ibidem, 1999; 2004), são as formas que buscaremos para aprimorar essas relações, começando por
evidenciar os melhores horários para que ocorra a participação de todos e todas. Também, manter as famílias sempre
informadas sobre serviços que estas possam usufruir em sua comunidade, além de possibilitar uma comunicação mais aberta
e igualitária entre a equipe escolar e familiares independente de suas qualificações.
Diante de diferentes possibilidades de escolha e de valores, como tomar decisões, ou participar de forma melhor na
escola? Fica impossível definir-se uma única maneira para todos os coletivos ou pessoas. Nesse sentido, por meio da
aprendizagem dialógica, o que facilitaria seria a criação de sentido pelas pessoas e pelo grupo, com um diálogo igualitário,
em que cada pessoa poderia refletir criticamente sobre estas possibilidades, fazendo suas próprias escolhas.
Por meio da aprendizagem dialógica, cada sujeito mobiliza compreensões sobre a vida e o mundo, repensando
sobre a sua cultura e as demais. A idéia é que com mais liberdade o indivíduo pode se relacionar e desenvolver com a certeza
de que vários processos que ocorrem com ele, também acontecem com outras pessoas, ou não, criando respeito aos diferentes
modos de vida ou como define Freire (1994), a unidade na diversidade.

Alguns caminhos, algumas considerações


O projeto Comunidades de Aprendizagem tem como proposta possibilitar mais diálogo, a “descolonização do
mundo da vida” (Habermas, 1987), no sentido de construir uma escola que receba todas as pessoas e que considere o
entendimento da realidade de cada um, proporcionando um ensino de qualidade.
Freire (2006), nos alerta que a relação dialógica é percebida como uma prática fundamental à natureza humana e à
democracia:

A dialogicidade não pode ser entendida como instrumento usado pelo educador, às vezes, em coerência com sua
opção política. A dialogicidade é uma exigência da natureza humana e também um reclamo da opção democrática do
educador. (ibidem, 2006, p.74)

Urge a necessidade de processos emancipatórios de educação conduzidos pelo diálogo e pela reflexão; e segundo
Beck e Giddens (1997), que estes permitam novas formas organizacionais, mais democráticas. Para Saso (2001), a proposta
de Comunidades de Aprendizagem deve ter a família como um elemento extremamente importante no processo de
transformação, suprindo os problemas educacionais a partir de suas carências. O ambiente escolar deve mudar a relação
oponente que sempre existiu entre familiares e equipe da escola, promovendo espaços para a participação de destes e dos
voluntários na escola, de modo a estabelecer o diálogo igualitário.

616
Marini (1999), em sua pesquisa conclui que a escola, de forma geral, afasta os familiares dos espaços que eles
podem participar (reuniões, conselho de escola e APM). Os laços entre ambos não são estreitados devido à responsabilidade
que a equipe escolar atribui aos pais com relação ao fracasso escolar de seus filhos. Estas relações entre escola e família
costumam ser conflituosas e acusativas, e isso acontece devido à falta de diálogo que não é incentivado, dificultando a
participação deles, principalmente dos que não possuem conhecimentos científicos e/ou fazem parte de culturas
marginalizadas.
A pesquisadora (ibidem, 1999) afirma que os familiares têm interesse em que seus filhos aprendam para possuírem
uma vida melhor, assim, preocupam-se com suas vidas escolares, desmistificando a lógica de que as famílias dos estudantes
não possuem interesse pelos estudos de suas crianças. O espaço escolar é, também, de socialização humana, mesmo que
cheias de mecanismos de adaptação e de reprodução, ele pode ser um lugar de transformação, por ter como meta a promoção
de conhecimentos. Não podemos entender este processo como único, ou de uma forma singular, assim, como não
encontramos um tipo de família, mas diversas que compõem a diversidade das relações que existem na sociedade.
Apesar do discurso da gestão escolar ser relacionado algumas vezes a gestão democrática, sabemos que os espaços
coletivos e dialógicos nos processos escolares ainda estão se formando. Toda uma cultura brasileira de não participação e de
medo ainda se faz presente nas nossas relações sociais. As famílias participantes da pesquisa afirmaram (em sua maioria) não
fazer parte de sindicatos ou de ter ligações políticas (com movimentos políticos). Os tabus e preconceitos, também são
significativos, principalmente com relação aos sujeitos que se manifestam ou que questionam muito, pensando em um país
que permaneceu sob regime de ditadura militar e repressão por mais de 20 anos.
Freire (1993), nos desafia a construir projetos de educação com pretensão libertadora, que implique em postura
dialógica como base desse processo libertador. Segundo o autor (ibidem, 1993), a educação começa pelo exemplo do
educador, pelo seu “jeito de ser”, dando testemunho prático de suas convicções. A tarefa é difícil, mas também não é
impossível, podemos sonhar com escolas mais abertas com maior participação de todos e todas, efetivada pelo diálogo crítico
em relação a toda uma existência humana real, com tudo que temos de bom e ruim.

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618
Organização e Gestão das Escolas Secundárias de Cabo Verde: Entre o
centralismo e a autonomia

Arnaldo Brito
Escola Secundária Amílcar Cabral
arnaldobrito@yahoo.com.br

Joaquim Machado
Universidade do Minho
machado@iec.uminho.pt

Resumo: Para responder à demanda social do século XX, a escola abriu-se ao ensino de massas e massificou-se através de um processo
conduzido a partir do topo do sistema escolar. Entretanto, enquanto organização, a escola ganhou maior centralidade nos processos de
decisão e acção e a sua reconfiguração foi pensada a partir do desenvolvimento de um projecto educativo próprio que mobiliza ideologemas
como democratização, participação e autonomia. Esta reconfiguração traduz uma reconceptualização da escola, não já como serviço de
administração periférica do Estado, mas como comunidade educativa.
Nesta comunicação, procuramos dar a conhecer o novo regime de organização e gestão das escolas em Cabo Verde, introduzido através do
Decreto-Lei n.º 20/2002, de 19 de Agosto, e como este é percepcionado pelos seus actores locais. No estudo, desenvolvido em 2007/2008
numa escola secundária do arquipélago, segue-se uma metodologia qualitativa e os dados foram recolhidos através da observação, da
pesquisa documental e da entrevista.
Volvidos seis anos de organização e gestão das escolas segundo o novo regime jurídico, continua forte a presença do centralismo e gestores e
professores fazem incidir o debate na participação, cujo desenvolvimento associam à criação de incentivos e à melhoria de condições
laborais e salariais, e no processo de escolha do director da escola.

A autonomia da escola
Durante os anos 70 e 80 do séc. XX, dominou a tendência para conceber e introduzir nas escolas inovações, a partir
de cima com base quer no poder coercivo da administração quer na racionalidade intrínseca da inovação proposta. Os
resultados alcançados não foram brilhantes, o que levou ao questionamento dos fundamentos de estratégias verticais de
inovação, cuja lógica subestima a especificidade e a singularidade de cada escola, o papel desempenhado e a inter-relação dos
vários actores sociais, o potencial criativo de cada escola, as suas virtualidades endógenas enquanto ponto de apoio para a
produção de inovações (Canário, 1992:166).
Assim, a partir dos anos 80, as instituições educativas são marcadas, em termos de investigação e de política
educativa, pelo que se pode designar a “descoberta da escola” enquanto organização e o reconhecimento da crescente
importância estratégica do nível local na gestão e produção de mudanças no sistema escolar. O estabelecimento de ensino é
reconhecido como unidade estratégica crucial de uma política de inovação educativa. Nessa perspectiva, na organização e
gestão das escolas são aplicados e desenvolvidos conceitos-chave como a autonomia escolar, o alargamento e participação
dos actores educativos e o projecto educativo da escola enquadrados na política de democratização da gestão escolar e, ao
contrário do modelo centralizado, a escola passa a ser concebida como comunidade educativa e não apenas como um serviço
local do Estado, ou seja, uma unidade estatal de administração directa periférica. O “comando” da escola descentralizar-se-ia
e passaria para a comunidade educativa, com autonomia científica, pedagógica, curricular, organizativa, financeira e
administrativa, assegurando tanto as decisões técnicas (gestão) como as decisões políticas (direcção) (Formosinho, 1989:56).
Nesta concepção, os actores educativos gozam de autonomia para decidirem sobre os recursos e meios, mas também decidem
sobre as finalidades, as opções fundamentais e valores expressos através de um projecto educativo assumido. Dessa forma, a
autonomia afigura-se como um constructo instrumental de organização e gestão escolar que se processa, não apenas através
de condições objectivas (financeiras, organizacionais, estruturais, humanas, etc.) para viabilizar as metas, contendo os anseios
e aspirações colocados num nível macro e/ou microestruturais, mas também, e principalmente, pela existência e manutenção,
no âmbito escolar, de mecanismos de participação efectivos que representem os diferentes actores sociais e segmentos
envolvidos. Tudo isso desenvolve-se numa lógica de entendimento de que a administração democrática é aquela que
desenvolve processos e objectivos democráticos, tanto na delimitação de suas políticas como na elaboração de seus
planeamentos e no desenvolvimento de sua gestão (Barroso, 1995:17).
A complexidade de que enforma o processo de instauração de autonomia exige procedimentos adequados para que
ela seja construída e não apenas imposta por decreto-lei. Assim, o cumprimento ou não dos procedimentos poderá definir
dois tipos de autonomia: a autonomia construída e a autonomia decretada.
A autonomia decretada acontece quando o processo de autonomia se limita à criação de um quadro normativo
(Decreto-Lei) que define as competências que os órgãos de gestão da escola têm para decidir sobre matérias importantes
relativos à definição de objectivos, às modalidades de organização, à programação de actividades e aplicação de recursos.
Nestas circunstâncias, há um quadro normativo geral que se aplica uniformemente em todas as escolas e se espera os mesmos
resultados para todas as escolas. Neste tipo de autonomia marcada pelos princípios jurídico-administrativos, todos os

619
procedimentos são detalhadamente definidos e a instituição é fortemente supervisionada, quer pelos serviços centrais, quer
pelos serviços locais (autarquias) no quadro de um processo de descentralização. Por outro lado, muitas vezes o decreto não
passa de retórica oficial que é sistematicamente distorcida pelas normas regulamentares, nomeadamente na definição dos
recursos e meios bem como pelas práticas de diversos actores na administração central ou local que contrariem os princípios
de autonomia da escola.
Em contrário, a autonomia construída é vista como um processo em que a preocupação incide mais sobre a criação
de condições para que ela seja “construída” em cada escola tendo em consideração as especificidades locais, os princípios e
objectivos que enformam o sistema público nacional de educação. Neste sentido, para além da perspectiva jurídico-
administrativa, privilegia-se a perspectiva sócio-organizacional, em que a autonomia é vista como uma construção social com
objectivos próprios e colectivamente assumidos. Assim, a autonomia da escola é percepcionada como uma confluência de
várias lógicas e interesses (políticos, gestionários, profissionais e pedagógicos) que é preciso saber gerir para que ela se
afirme como expressão da unidade social que está para além da acção dos indivíduos. Nesta ordem de pensamento, uma
política destinada a promover a autonomia das escolas não pode limitar-se à produção de normas e regras de funcionamento
das instituições, mas sim valorizar a criação de condições que permitam a afirmação de autonomias individuais e dar-lhe um
sentido colectivo (Barroso, 1997:17-21).

A participação como expressão de afirmação da autonomia


A autonomia é um processo que ganha sentido prático através da participação dos actores organizacionais. Assim, a
questão da participação e as formas que ela assume na dinâmica escolar constituem-se num dos eixos fundamentais, podendo
ser considerada condição sine qua non para a construção da gestão democrática e do projecto educativo da escola. Na
verdade, a maior parte dos estudos, efectuados a partir dos finais da década de 70, mostraram a importância dos factores
organizacionais no rendimento escolar dos alunos, em particular os relacionados com a sua gestão. Entre estes factores
destaca-se a existência de um estilo de gestão que promova a participação dos professores na planificação das actividades, o
trabalho em equipa, formas de gestão colegiais e uma cultura de reforço mútuo na resolução de problemas e no
desenvolvimento profissional. Neste sentido, a importância da participação é reconhecida, na medida em que, por um lado,
proporciona um melhor conhecimento do funcionamento da escola e de todos os seus actores e, por outro lado, permite um
contacto permanente entre professores e alunos, o que leva ao conhecimento mútuo e, em consequência, aproxima também as
necessidades dos alunos e os conteúdos curriculares (Gadotti & Romão, 1997:35).
Quando a participação é efectivada em forma de cultura participativa significa que a organização é assumida pelos
seus actores e consequentemente há o efeito sinergético na definição de políticas, na operacionalização das acções e na
resolução de problemas. Todavia, segundo João Barroso (1995), a efectivação da participação requer a implementação de um
estilo de gestão participativa suportado nos seguintes princípios:
A participação não é um ritual que serve para os grandes momentos. Ela deve ser entendida como um procedimento
que permite resolver favoravelmente a tensão sempre existente entre o individual e o colectivo na organização;
A gestão participativa demanda a existência de um espaço real de autonomia da escola e o reconhecimento das
diferentes competências e atribuições dos actores da organização. A participação deve ser entendida como um processo
dinâmico de estabelecer equilíbrio entre os vários interessados na educação: o Estado, os profissionais (professores e
funcionários), os alunos e os pais;
A gestão participativa implica uma aprendizagem colectiva, pelo que exige um forte comprometimento dos seus
responsáveis em promover formação contínua das pessoas que participam na organização;
O objectivo último de gestão participativa deve ser sempre o de partilha de poder de tomada de decisão;
O espírito de negociação deve prevalecer na gestão participativa, com vista a valorizar as ideias dos diferentes
actores organizacionais;
A gestão participativa deve aplicar-se à organização no seu conjunto, desde a definição das políticas, até à sua
planificação e execução, passando pelo ambiente físico e social, pelos modos de trabalho e organização das tarefas.
Por outro lado, a implementação de gestão participativa requer também algumas estratégias adequadas, quais
sejam:
Uma liderança empreendedora capaz de fazer diagnóstico, dar impulso inicial, criar ruptura com a situação
anterior, gerir, animar o processo de mudança, introduzir correcções necessárias, e garantir a participação activa dos actores
educativos;
Ter em conta os contextos em que se aplica a gestão participativa. É preciso saber se na escola existe um ambiente
favorável à participação. Não sendo possível, é preferível começar a trabalhar com pequenos grupos em abordagem de
assuntos específicos e vai-se alargando gradativamente até a criação de condições para a abordagem, por exemplo, do
projecto educativo que exige a participação efectiva de todos. O fomento da participação tem que ser um trabalho a prazo, na
medida em que visa a mudança de mentalidade.
A gestão participativa não se compadece com atitudes autoritárias. O acto de participar não deve ser imposto. Os
responsáveis devem orientar suas acções para fazer emergir junto dos actores a necessidade de participar. As pessoas devem
estar conscientes do acto de participar como um acto de cidadania e devem ser preparadas para que a participação seja
qualitativa ou seja profunda e extensa, como refere Carl Cohen (1975) na sua abordagem sobre a participação democrática;

620
A introdução da gestão participativa na escola exige, por um lado, a criação de condições como recursos, formação
e motivação, isto é, dar às pessoas condições de trabalho para que, de forma autónoma, possam agir de acordo com as suas
iniciativas e, por outro lado, exige a criação de condições de trabalho ao nível de estruturas que permitem quebrar o
isolamento das pessoas e fomentam o espírito de equipa para o maior entrosamento entre as pessoas dentro da organização
(Barroso, 1995:31-34).

O projecto educativo como instrumento político de gestão escolar


A autonomia e a participação, enquanto expressões práticas da vivência democrática, são expressões de cidadania
que, no caso da escola, ganham corpo através do projecto educativo enquanto instrumento político que tem um rumo, um
norte e é um processo inconclusivo, uma etapa em direcção a uma finalidade que permanece como horizonte da escola
(Gadotti & Romão, 1997:34). Nessa perspectiva, o projecto educativo vai além de um simples agrupamento de plano de
ensino e de actividades educativas diversas. Esse instrumento não é construído exclusivamente pela direcção da escola e, em
seguida, arquivado ou encaminhado às autoridades educacionais como prova do cumprimento de tarefas burocráticas. Ao
contrário, numa gestão democrática, a direcção é escolhida a partir do reconhecimento da competência e da capacidade de
liderança de alguém capaz de executar um projecto colectivo. A escola (comunidade educativa) escolhe primeiro um
projecto e depois a(s) pessoa(s) que pode(m) liderar a sua execução. Neste sentido, quando se escolhe uma direcção, escolhe-
se um projecto educativo que implicitamente já foi concebido e assumido pela comunidade educativa.
O projecto educativo constitui um instrumento institucional da organização e gestão de médio e longo prazo que
deve incluir o diagnóstico interno e externo da situação da escola, expressar as decisões estratégicas colectivamente
assumidas e os contornos da identidade procurada, sistematizar os fins e objectivos estratégicos da instituição escolar,
assegurando-lhe ao mesmo tempo coerência interna e externa (Estêvão, 1998:19). Para a sua implementação, é importante
que haja vontade política por parte das autoridades centrais e que em decorrência se produzam documentos normativos e de
procedimentos para o concretizar, mas esses procedimentos não devem ignorar os aspectos respeitantes à natureza e razão de
ser do projecto educativo, os seus porquês e para quê, assim como outros elementos importantes e que o projecto reflecte
como o sentido da autonomia, o conteúdo e o carácter de participação a que apela, ou o valor do consenso que é
indispensável, bem como o conflito que costuma criar. Neste sentido, como questões primeiras e anteriores aos
procedimentos de “como elaborar o projecto”, é importante que a escola se debruce sobre as razões que poderão conferir
novos sentidos, significados e valores à sua acção na sociedade e processos que estão em jogo nas dinâmicas da elaboração
do projecto (Formosinho & Machado, 2000:122).

Um estudo qualitativo
A nossa investigação visa saber como são organizadas e geridas as escolas secundárias em Cabo Verde (Brito,
2008). Neste estudo, optamos pela metodologia de investigação qualitativa na medida em que ela parte do pressuposto básico
de que o mundo social é um mundo construído com significados e símbolos, o que implica a procura dessa construção e dos
seus significados. Por isso, procura compreender e descrever em detalhe os meios através dos quais os sujeitos empreendem
acções significativas e criam um mundo seu (e dos demais).
Segundo Bogdan e Biklen (1994:16), investigação qualitativa é um procedimento de investigação que agrupa
diversas estratégias cujas características são as que se seguem:
1) Os dados recolhidos são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativos a
pessoas, locais e conversas de complexo tratamento estatístico;
2) As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de variáveis, mas sim formuladas com
o objectivo de investigar o fenómeno em toda a sua complexidade e em contexto natural;
3) Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da
investigação;
4) Os dados são recolhidos, normalmente, em função de um contacto aprofundado com os indivíduos, nos seus
contextos ecológicos naturais.
Neste sentido, as estratégias mais representativas da investigação qualitativa e aquelas que melhor ilustram as
características referidas são a observação participante e a entrevista em profundidade. O objectivo do investigador é o de
compreender, com bastante detalhe, o pensamento do entrevistado e como é que desenvolve o seu quadro de referência.
A investigação realizou-se entre Setembro de 2007 e Maio de 2008 numa escola secundária de Cabo Verde situada
na ilha de Santiago que designamos aqui de “Escola Secundária Alfa” (ESA). Esta investigação visou perceber a forma como
são organizadas e geridas as escolas secundárias cabo-verdianas e atingir cinco objectivos:
1º Compreender o modelo de organização e gestão das escolas secundárias em Cabo Verde;
2º Distinguir o plano da acção organizacional e o das orientações para a acção organizacional;
3º Perceber a representação dos professores sobre a organização e gestão das escolas secundárias;
4º Compreender aspectos da implementação do Decreto-lei 20/2002, de 19 de Agosto, na Escola Secundária Alfa;
5º Contribuir para o estudo das escolas secundárias em Cabo Verde.

621
Como instrumentos técnicos de recolha de dados, aplicamos a observação, a entrevistas e a pesquisa documental.
Os dados recolhidos foram analisados em torno de cinco categorias: 1) Autonomia escolar; 2) Participação dos actores
educativos; 3) Democratização da organização e gestão escolar; 4) Projecto educativo; e 5) Estruturas e órgãos de gestão
escolar.

O regime de organização e gestão das escolas secundárias de Cabo Verde


O novo regime de organização e gestão das escolas secundárias em Cabo Verde, configurado no Decreto-Lei nº
20/2002, de 19 de Agosto, é um instrumento legal que se fundamenta nos princípios de autonomia, participação e afirmação
do projecto educativo, visando a prestação de um serviço educativo de qualidade. Neste sentido, consagra o alcance da
autonomia administrativa e financeira outorgada às escolas e define novos órgãos e estruturas de gestão com destaque para a
Assembleia da Escola e a Subdirecção para os Assuntos Sociais e Comunitários, visando a promoção da cultura democrática
na organização e gestão escolar.
Com a sua implementação no ano lectivo 2002/03, pelo Ministro Victor Borges, e volvidos cinco anos lectivos, os
actores educativos entrevistados reconhecem que o quadro legal do regime de organização e gestão das escolas melhorou na
medida em que proporcionou às escolas alguma autonomia. Contudo, reconhecem que essa autonomia se cinge aos domínios
administrativo e financeiro e, mesmo assim, com limitações uma vez que, por exemplo, as direcções das escolas não são
totalmente autónomas para a realização de despesas de montante financeiro significativo ou seja superior a 150.000$00. A
área pedagógica continua dependente do Ministério, cabendo às escolas apenas a execução dos programas e curricula
definidos centralmente. A essas circunstâncias, os entrevistados associam a falta de formação contínua, sensibilização e
criação de condições estimulantes como o aumento de salário para que possam assumir de forma efectiva a educação nas suas
escolas e construir a autonomia necessária. Neste sentido, o quadro existente é apresentado como pouco propício à promoção
de autonomia e o Ministério no seu relacionamento com as escolas continua a ser visto como orientador central e, de certo
modo, “Director” das escolas quando persiste no envio sistemático de orientações detalhadas para o funcionamento das
escolas.
A “construção” da autonomia significa a assunção da responsabilidade de dirigir a escola no quadro do seu meio
envolvente e tendo em conta o desígnio educativo nacional. Esta responsabilidade materializa-se na definição de políticas
educativas e numa gestão eficiente e eficaz para a escola asseguradas pelos actores educativos locais mediante um projecto
próprio designado por Projecto Educativo da Escola (PEE). Assim, o PEE é um instrumento que corporiza a autonomia
quando, embora articulado com as políticas nacionais de educação, emana da vontade dos actores educativos locais.
No Decreto-Lei 20/2002, fez-se referência ao aparecimento do PEE no quadro da autonomia das escolas e a sua
elaboração como uma das competências do Conselho Directivo. Da investigação efectuada, os actores educativos dizem estar
cientes da importância do projecto educativo na afirmação individual das escolas e na melhoria da qualidade educativa. No
entanto, declaram que não existem condições para o aparecimento desse instrumento político da escola, na medida em que as
escolas ainda não dispõem de margem de autonomia pedagógica, o centralismo ainda é forte, há défice na formação contínua
dos professores e faltam os incentivos salariais e a regulamentação da formação contínua. Assim, o projecto educativo
escolar é tido como uma espécie de “modismo” presente no regime de organização e gestão das escolas secundárias e não
como importante instrumento de autonomia das escolas, valorizando os actores educativos locais como agentes educativos
com capacidades para planear e assegurar, de forma descentralizada, a educação em cada escola e em cada comunidade.
Democratizar a organização e gestão das escolas é criar condições para que os actores educativos locais participem
das decisões da escola. Da investigação realizada, os actores educativos reconhecem a melhoria do quadro legal do regime de
organização e gestão das escolas secundárias em Cabo Verde, mas destacam dois aspectos que precisam ser melhorados: 1) a
autonomia das escolas e 2) o figurino da escolha do director. Em relação ao primeiro, consideram que é preciso alargar a
autonomia ao domínio pedagógico e, quanto ao segundo aspecto, a maioria considera a eleição pelos professores como o
procedimento que melhor traduz a democratização da organização e gestão das escolas. A questão da escolha do Director da
escola apresenta-se como uma questão muito importante para os professores no âmbito da democratização da gestão e
organização escolar.
A participação é um acto que consubstancia a democracia. No entanto, a sua efectivação é uma construção social
que resulta de um trabalho a ser feito numa perspectiva a prazo visando a formação de consciência cívica para o exercício da
cidadania.
A participação na organização e gestão escolar efectiva-se num quadro de descentralização e de autonomia onde os
actores educativos se assumam como verdadeiros co-responsáveis pela política educativa e pela educação dos seus
educandos. Para o efeito, cabe ao Estado criar condições que estimulem os actores a assumirem as suas responsabilidades
sentindo-se parte importante das decisões que se tomam em benefício da educação.
Da investigação efectuada, constatamos que a participação dos actores educativos na ESA é fraca tanto da parte dos
professores como por parte dos alunos, funcionários, pais e comunidade no geral. As causas apontadas vão desde a falta de
formação, de incentivos e estímulos aos professores até ao figurino de nomeação utilizado para a escolha de director e a falta
de consciência cívica.
As estruturas e os órgãos de gestão são suportes políticos e administrativos que asseguram o funcionamento de uma
organização, neste caso a escola. Com a alteração do regime de organização e gestão escolar em 2002, introduziu-se a

622
Assembleia de Escola e a Subdirecção para os Assuntos Sociais e Comunitários nos órgãos da escola. Decorridos cinco anos
lectivos da sua implementação, os actores educativos envolvidos nesta investigação consideram interessante a ideia da
criação dos mesmos, mas em relação à Assembleia da Escola, opinam que este órgão não tem funcionado convenientemente
e, por conseguinte, não tem dado o resultado que se esperava e que consistia na criação de uma instância na escola onde os
representantes dos diversos agentes educativos decidiam e monitorizavam o funcionamento da escola. A razão principal
apresentada para o seu não funcionamento é a falta da vontade de participação dos diferentes agentes educativos. No entanto,
em relação à Subdirecção para os Assuntos Sociais e Comunitários é reconhecida a sua importância e enaltecido o trabalho
realizado no domínio da acção social escolar.

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A acção das políticas supranacionais e a construção do sucesso escolar em


Portugal

Joaquim Santos
Universidade do Minho
joaquimsantos@linguafranca.pt

Resumo: Quando, em 2000, foram lançadas as linhas mestras do que ficou sendo conhecido por “Estratégia de Lisboa” em que se pretende
transformar, até 2010, a Europa «na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um
crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social», dava-se um dos mais importantes passos
para que as políticas educativas dos vários Estados membros fossem condicionadas por esse pressuposto básico tanto mais que a sua
prossecução implica que a Educação e Formação sejam «domínios-chave prioritários» dessa estratégia. Sabendo-se que, por outro lado, os
normativos da União Europeia obedecem ao princípio do primado, consegue-se perceber a força que estratégias concebidas a nível
supranacional têm na aplicação prática das políticas nacionais de educação. No caso português, a obsessão mostrada pelas políticas
educativas do XVII Governo Constitucional, nomeadamente no que diz respeito ao sucesso escolar, revêem-se nos pressupostos acima
enunciados sendo que a ‘corrida’ para atingir as metas apontadas para 2010 obriga a que a forma como as medidas de política educativa são
implementadas nem sempre tenham como prioritária a qualidade que deveria estar subjacente ao acto de ensinar e de aprender. Baseada em
investigação empírica resultante do Mestrado em Sociologia da Educação e Políticas Educativas, a reflexão enunciará ainda de que forma
professores e alunos, nas suas práticas diárias, interpretam, nas escolas, as imposições de um Ministério de Educação de tradição largamente
centralista.

E pur si muove!
Galileu Galilei
(Pisa, 1564 – Arcetri,
1642)

623
Introdução
Um dos documentos centrais da História do Século XX, a Carta das Nações Unidas, assinada a 26 de Junho de
1945 mostra, logo no seu Preâmbulo, a intenção das nações signatárias de «preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra…», de «promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade»
comprometendo-se, «para tais fins» «a empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social
de todos os povos.» (Nações Unidas, 1995: 1,2). Importante intenção que a história e os relatórios do World of Work Report
mostram, sessenta e cinco anos depois, continuar longe de se concretizar: «Entre 1990 e 2005, aproximadamente dois terços
dos países registaram um aumento na desigualdade de rendimento (valor medido por alterações no índice de Gini). Por outras
palavras, os rendimentos dos agregados familiares mais ricos aumentaram em relação aos rendimentos dos agregados
familiares mais pobres». (ILO, 2008: 1).
A união das nações a que o título da Carta alude vai-se concretizando, segundo alguns, através de um fenómeno a
que é recorrente dar o nome de “globalização”. Fenómeno incontornável na compreensão do mundo moderno e, para nós,
relevantíssimo na compreensão do que é hoje a Educação, esse sistema de poder mundial influi de forma determinante sobre
todas as áreas sociais, tal como refere Boaventura de Sousa Santos, em texto de 2001, pois se trata de «conjuntos de relações
sociais que se traduzem na intensificação das interacções transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas
globais ou práticas sociais e culturais transnacionais» (Santos, 2001: 63). Tem, porém, uma prevalência no domínio
económico e, por essa razão, engloba, transversalmente, todas as áreas que enformam uma sociedade, um país, o mundo,
visto que: «o leitmotiv do capitalismo é a acumulação incessante do capital» (Wallerstein, 2004: 8) (sublinhados do autor),
tendo tal repercussões sobre todos os aspectos da vida, desde o simples acto de respirar (cada vez mais o ar é um bem escasso
de consumo) até às mais complexas acções de engenharia genética passando, inevitavelmente, pela Escola e pela Educação.
Fazemos, a este propósito, apelo a Immanuel Wallerstein que afirma a: «…divisão entre o económico, o político e o sócio-
cultural. Dizem-nos recorrentemente que se trata de três domínios bastante diferentes, bastante separados, que seguem regras
próprias. Ou, pelo menos, que isto é verdade para o mundo moderno. Mas não é verdade. Trata-se quando muito de três
aspectos de uma única realidade muito imbricada, na qual não é possível compreender o que se passa num destes assim
chamados domínios sem se dar conta da totalidade. Cada decisão “económica” depende das suas consequências políticas e
sócio-culturais, e é também resultado de elementos políticos e sócio-culturais. E assim sucessivamente.» (Wallerstein, 2004:
16).
No tocante especificamente à educação será relevante considerar duas abordagens que podendo parecer sinónimas
(e têm efectivamente vários pontos de contacto) apresentam diferenças que se assumem como mais importantes que as
similitudes. Por um lado, autores como John Meyer, Kamens, Benavot, Cha e Wong têm sido os porta-vozes de uma corrente
que pretende ver a Educação como um fenómeno de “Cultura Mundial Comum” (Cultura Educacional Mundial Comum ou,
no original, “Global Common Educational Culture”) e, por outro, Roger Dale que pugna pelas ideias de que a Educação é o
resultado de uma “Agenda Globalmente Estruturada” (tendo desenvolvido a teoria de uma Agenda Globalmente Estruturada
para a Educação – “Globally Structured Agenda for Education”). Enquanto a primeira defende que a haver uma política
mundial para a educação ela resulta de acordos tidos pelos Estados que os subscrevem e numa lógica de soberania nessa
tomada de decisões por parte dos implicados, isto é, as decisões só são implementadas porque os parceiros envolvidos assim
o decidem livremente podendo de outra forma rejeitar essas propostas, a existência de uma agenda estruturada de forma
global para a educação pressupõe que a tomada de decisões é feita supranacionalmente com o ‘agrément’ dos países que as
implementam ou ‘malgré eux’. A escolha deixa de ser possível implicando isto uma clara transferência de poder de decisão
da esfera nacional para um âmbito supranacional de decisão de acordo com «…uma dinâmica radicalmente nova de mudança
educacional e de elaboração de políticas educativas, em que os governos definem e assumem compromissos políticos em fora
supranacionais». (Antunes, 2008: 31). E, no entanto, todas estas organizações são criações dos Estados e não produto de
imposições contra a vontade dessas mesmas soberanias não obstante a realidade de uma cada vez maior alienação das
capacidades decisórias nacionais em benefício de organizações de âmbito supranacional. E disso nos dá conta Gomes
Canotilho quando refere que «“O exercício em comum de poderes necessários à construção europeia” (CRP, artigo 7º/6)
implica naturalmente a deslocação de competências soberanas específicas do estado Constitucional para a Comunidade
Jurídica Europeia. Não está em causa a dissolução do Estado nacional (a “República Portuguesa é um Estado”) nem a
aniquilação da essentialia da Constituição, mas o Estado constitucional passa a ter de compreender a “soberania” e a
“competência de competências” de forma radicalmente diversa da que Bodin e Hobbes descreveram nas “vésperas do
Leviathan” (nascimento do Estado moderno)» (Canotilho, 1998: 228). Pensamos que se poderá ver aqui uma
frankensteinização do poder – agora já incontrolável – de um capitalismo feroz que se ergue contra o criador que o foi
construindo lenta e inexoravelmente, não obstante todos os indicadores que foram sendo dados ao longo da história, em
metamorfoses cuja materialização se faz através de auxílios de ordem financeira que são trocados por contrapartidas que se
reflectem numa retirada do poder de decisão dos Estados transferindo-a para a sede das Organizações Internacionais.
Portugal pode ser visto como paradigmático exemplo da influência que – há mais de cinquenta anos – várias Organizações de
carácter supranacional têm tido sobre o país.

Os veículos da globalização para a educação: as Organizações Internacionais

624
Criada sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial e como estratégia inserida no European Recovery Program
(Plano Marshall) de ajuda à Europa, a OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica), foi constituída em 1948,
dela fazendo parte apenas dezoito países europeus. Com a alteração, a 14 de Dezembro de 1960, do estatuto do Estados
Unidos da América e do Canadá de membros observadores para membros de direito e com a entrada do Japão, a OECE passa
a denominar-se Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) mantendo sempre, até no seu nome, o
carácter manifesta e intrinsecamente económico da sua actuação. Esta organização, foi inicialmente vista pelo chefe do
governo António Oliveira Salazar – por volta de 1947- 48 – como intentando posicionamentos, relativamente à política
interna e externa de Portugal e dos restantes países membros, que seriam uma forma dissimulada de influenciar e controlar as
posições dos vários Estados na política com as colónias em África, que levaram a que Portugal inicialmente rejeitasse a sua
ajuda. Porém, e porque a OECE era fundamentalmente uma organização cuja missão era «…assegurar a expansão económica
nos estados-membros e ajudar os países em vias de desenvolvimento» (Gerbert, 1977: 170) rapidamente a atitude do estado
português se alterou tendo a organização tido um papel decisivo nas opções de carácter educativo entre 1955 e a Revolução
de Abril de 1974, constituindo dezanove anos que a socióloga Sacuntala de Miranda, de forma feliz, designa por ocedeísmo
(Miranda, 1981: 31). E essa influência tanto no caso português como europeu e no período em causa teve a ver com a
necessidade de promover e influenciar políticas de ajuste na racionalidade da utilização da mão-de-obra tendentes a arrancar
o ocidente da crise causada pela guerra. Em Portugal esse trabalho implicou a «expansão da escolaridade obrigatória pós-
primária, planeamento educativo, modernização da administração, criação de novas universidades e reforma do ensino
superior» (Teodoro, 2003: 35). De realçar de forma particular, que será posteriormente explanada, que tais estratégias
encontraram bom acolhimento junto de uma franja considerável dos sectores «industriais, tecnocratas e liberais do Estado
Novo» (Teodoro, 2003: 35) que viam como muito necessária esta expansão da escolaridade para o desenvolvimento do país e
que davam assim carta verde às propostas resultantes das estratégias supranacionais da OCDE que se tornavam também razão
de legitimação das soluções defendidas internamente.
Só com a Revolução dos Cravos a OECE/OCDE vê a sua preponderância em Portugal ser trocada pela da United
Nations Educacional, Scientific and Cultural Organization (UNESCO – Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura),
uma agência intergovernamental especializada, que, como o seu nome original indica, está relacionada com as Nações
Unidas apesar de ser uma organização separada e autónoma cuja relação com a ONU é articulada pelo Conselho Económico
e Social. A participação da UNESCO na educação em Portugal foi breve: 1974 – 1975, mas particularmente importante pois
da sua cooperação resultou a redacção de um extenso relatório designado Éléments pour une politique de l’éducation au
Portugal, redigido por uma equipa que, de acordo com «o desejo manifestado pelas autoridades portuguesas de reorientar o
sistema de educação no sentido de uma verdadeira democratização e de o transformar num instrumento real de
desenvolvimento dos homens…» (Unesco, 1982: 9) e, não obstante «…a necessidade de transformar um sistema de educação
arcaica e elitista num instrumento de progresso da Nação…» (Unesco, 1982: 11) se constituiu como verdadeiro manual de
boas práticas para o período revolucionário. Porém, e apesar de toda uma retórica que, pela construção de uma sociedade
«que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático
do poder pelas classes trabalhadora1» (Constituição da República, 1976: 17), pugnava por uma escola verdadeiramente
democrática, na prática, e de acordo com o mesmo relatório, as coisas não se passaram exactamente dessa forma. A
UNESCO propôs que «a fim de ultrapassar as limitações da acção ao nível nacional (peso da burocracia, administrações
tradicionalmente autocentradas, insuficiência de imaginação criadora) e de facilitar a resposta às necessidades da população e
a sua participação na gestão dos seus trabalhos, foi lançada a ideia da regionalização. Porém, e: «na realidade, os
responsáveis pelos serviços centrais não parecem ter pressa em transmitir os seus poderes a nível regional» (…) [e a]
«determinação de um quadro global, onde as actividades descentralizadas dos diferentes ministérios se encontrassem
reunidas em cada uma das regiões, facilitaria a adesão e estimularia a imaginação dos responsáveis» (Unesco, 1982: 26 - 28)
(sublinhados nossos). É, porém, claramente consensual que a missão dessa agência para a Educação e a Cultura se reveste de
importância central como mecanismo – mais do que de mandato e de imposição – de legitimação de opções ideológicas e
políticas vividas nesse período e em manifesta e perversa atitude – já acima referida – (e como exemplo da necessidade de
terem sido os próprios Estados a gerar e a manter essas organizações) de legitimação no plano internacional das suas políticas
através de, nomeadamente, “aconselhamento” técnico e que mais tarde se assumem como agências impositoras de mandatos
aos quais dificilmente é possível escapar.
A colaboração da UNESCO em Portugal é, no entanto, de muito curta duração. A partir de 1976 e devido, em
grande medida, à situação económica do país, – que Sacuntala de Miranda designa como sendo de «profunda crise
económica» (Miranda, 1981: 38) – foi entendido como necessário recorrer-se à “ajuda” do Banco Mundial. Esta alteração no
“parceiro” supranacional legitimador de políticas nacionais no âmbito da educação explica-se pela necessidade dos tempos de
que a instituição a prestar a “ajuda” tivesse mais uma forte vertente financeira e não tanto, como é o caso da UNESCO, se
ficasse por consultadoria a nível da Educação, da Ciência e da Cultura. Esse organismo, que actualmente inclui cinco
instituições, foi criado em 1944 pelo Estados Unidos da América com a designação inicial de Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (IBRD – International Bank for Reconstruction and Development, no original) e
justificando-se, tal como a OECE, como apoio ao Plano Marshall de reconstrução europeia. As finalidades das instituições

1
Constituição da República Portuguesa, Artigo 2º, na sua redacção primitiva, aprovada pela Assembleia Constituinte, reunida em sessão plenária de 2 de Abril de
1976.

625
que o constituem passavam e passam por «ajudar a melhorar o nível de vida em países em desenvolvimento canalizando, para
esses países, meios financeiros oriundos dos países desenvolvidos2» (United Nations, 1993: 234). Como daqui decorre, a
única e explícita finalidade do Banco Mundial é o auxílio monetário a quem a ele recorrer. Significa isto que a influência de
uma instituição financeira na área da educação pode parecer, no mínimo, bizarra. No entanto, é esta a agência internacional
que de 1976 a 1978 vai não só, e de novo o referimos, impor um mandato para as políticas educativas nacionais, como, num
período de governação interna do Partido Socialista português, legitimar a credibilidade externa de um Portugal abalado pelo
processo revolucionário e também de «significativo abrandamento da despesa pública e de cortes nas áreas sociais»
(Teodoro, 2003: 46) e legitimar opções a fazer no domínio da educação. De referir aqui, no entanto, que se começa a fazer
sentir de forma marcadamente explícita a força de determinações emanadas das instâncias internacionais – neste caso do
Banco Mundial, que impõe que o país desenvolva o «ensino técnico e ensino superior em vez de ensino básico e de apoio aos
docentes» (Azevedo, 2007: 78 – 79) como era intenção primeira dos responsáveis políticos nacionais.
Porém, dois anos volvidos sobre o início da colaboração com o Banco Mundial e com a alternância partidária
verificada no país (a Aliança Democrática num primeiro momento – de que faziam parte o Partido Popular Democrático
(PPD – actualmente PSD), o Partido do Centro Democrático Social (CDS) e o Partido Popular Monárquico (PPM) e, numa
segunda fase, o Bloco Central formado pelo Partido Socialista e pelo Partido Popular Democrático) e «na sequência da
decisão de solicitar a integração de Portugal no grupo de países da OCDE que participavam no programa do exame às
políticas educativas nacionais» (Teodoro, 2007: 49) faz-se de novo apelo à OCDE que já tinha na altura a postura que a tem
vindo a definir ao longo das décadas e que, de acordo com Joaquim Azevedo, é «no plano da recolha, tratamento e
divulgação de indicadores sobre a educação que a OCDE mais marca a agenda internacional e nacional de educação e mais
influencia as próprias políticas nacionais e locais» (Azevedo, 2007: 76). Esta influência que é quase exclusiva até à data da
adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, mantém-se até aos dias de hoje, nomeadamente, pela
importância de que se revestem para o nosso país os dados publicitados pelo Programme for International Student
Assessment – PISA que «constitui hoje o exemplo mais conhecido e um dos mais poderosos da acção institucionalizada do
sistema educativo mundial» (Azevedo, 2007: 77). Este programa, lançado pela OCDE em 2000, começa a ser gizado em
1995 por pressão do Estados Unidos quando «na sequência da publicação, em 1983, do relatório “A nation at risk”, que
alarmou a Administração Regan e fez recorrer à OCDE para que fosse possível elaborar estudos internacionais comparados
que permitissem avaliar a posição norte-americana no contexto mundial» (Azevedo, 2007: 76), foi mostrando e marcando
que, como afirma Almerindo Afonso, «a centralidade da economia capitalista no processo de globalização (…) [desenvolve]
processos que levam à imposição de prioridades por parte de alguns estados sobre outros» (Afonso, 2001: 40).
Importa deixar agora uma palavra relativamente à postura dos Estados nacionais quanto à presença de organizações
supranacionais e transnacionais nas políticas de ordem interna no domínio da educação. Como já sugerimos e, apesar de
serem claras as imposições que, em caso de não observância, implicam a “denúncia” dos contratos de colaboração obrigando,
assim, a que se fale de mandatos «ou seja, daquilo que é considerado desejável que os sistemas educativos realizem»
(Afonso, 2001: 40), é de crucial importância perceber que nunca pode ser deixada de parte a circunstância de que a
ingerência externa é, não só pedida como fundamental na validação e legitimação de propostas políticas, económicas e
sociais que de outra forma teriam grande dificuldade em se imporem tanto a nível da política interna quanto da visibilidade
externa que essas opções de ordem nacional têm. Em todos os momentos em que as várias agências supra e transnacionais
intervieram em Portugal verificou-se, por um lado, haver sempre margem de interpretação e de adaptação desses mandatos
num fenómeno de “indigenização” ou, como Fátima Antunes refere, ser «a “agenda política nacional” para a educação (…)
ainda modelada pelas condições, interpretações, e recursos sócio-institucionais nacionais e específicos de uma dada formação
social (Antunes, 2008: 16) para além de tal «correspond[er] inteiramente ao que o poder político nacional (…) queria escutar.
(Teodoro, 2003: 50).
Há, porém e realmente, todo um ‘modus faciendi’ que, de forma mais ou menos directa, obriga os países a
seguirem as indicações/imposições emanadas desses fora de decisão. Aliás, Dale é claro quando afirma que «…as
organizações internacionais não confinam as suas intervenções apenas à área dos mandatos políticos; elas também, e de uma
forma crescente, tratam de questões quer de capacidade, quer de governação. A governação tornou-se no objectivo chave de
organizações como a OCDE e o Banco Mundial nos anos mais recentes.» (Dale, 2001: 161), indo ainda mais longe ao
afirmar que «o Banco Mundial (…) tem tornado o financiamento educacional dependente da adopção de ênfases e
abordagens específicas. Ainda mais claramente afectando a educação surgem os programas de ajustamento impostos pelo
Banco Mundial e o FMI que frequentemente exigem que os países alterem a ênfase que colocam na educação e
especialmente na forma como se procede ao respectivo financiamento» (Dale, 2001: 164), corroborando a opinião do
britânico o que, já em 1980, Stephen Stoer afirmara, relativamente a Portugal: «No que diz respeito à formação de
professores dos ensinos pré-escolar ou pré-primário, o Banco [Mundial] declara que não a apoia, porque “uma tão rápida
expansão e uma tão grande despesa não parecem justificar-se tendo em vista outras áreas dentro do sector de formação que
podem fornecer um rendimento imediato maior num investimento dessa amplitude”. Em vez disso, argumenta que o Governo
deveria ser encorajado a investir os escassos recursos disponíveis nos sectores de formação de grande prioridade». (Stoer,
1982: 50). Leitores menos informados e mais optimistas poderiam ainda argumentar com o facto de que apesar de tudo, o

2
Tradução do autor.

626
Banco Mundial existe para ajudar países em dificuldade, emprestando verbas e permitindo assim um desenvolvimento que,
de outra forma, não se faria. De novo fazemos apelo a Stoer que nos indica que «… o Banco [Mundial] anunciou a sua
participação no projecto de ensino politécnico em Portugal através da oferta de um empréstimo com juros de 7,5% pelo
período de 15 anos.» (Stoer, 1982: 49), perguntando mais adiante «…poderá considerar-se auxílio um empréstimo que tem
juros de 7,5%? (Stoer, 1982: 54). Global, sim, mas de acordo com as regras de apenas uma das partes. Esta postura que
acarreta consequências de quase ‘esquizofrenia’, com o ‘outro’ a ser dominante relativamente ao ‘eu’, leva a uma espécie de
‘embotamento’ que se manifesta numa desadequação entre aquilo que é feito e o que deveria ser operado como Fátima
Antunes mostra em A Nova Ordem Educacional quando refere que «Este é, então, um processo de elaboração que
redesenha a arquitectura das políticas educativas, (…), remetendo o espaço e as instituições nacionais para uma subordinada
e imposta posição de cumprimento das orientações definidas em plataformas supranacionais. (…) e que tende a produzir um
duplo efeito paradoxal de quase-irrelevância/inelutabilidade percebidas das decisões, por parte dos actores nacionais, que são
colocados perante a obrigatoriedade de implementar medidas e procedimentos que surgem de forma arbitrária e fragmentada,
cujos sentido e alcance se apresentam nebulosos, sendo justificados e legitimados com base num mandato oriundo de um
processo supranacional incontornável.» (Antunes, 2008: 32 – 33).

II

A Europeização da educação
E quais as causas directas que a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia – agora renomeada União
Europeia – tiveram sobre o país? Continuaremos a tentar demonstrar, mas agora relativamente à U. E., que «…a política
delineada pelas instâncias comunitárias nos domínios da educação e formação é dominantemente inspirada, e mesmo
colonizada, por orientações vistas como imperativas, que decorrem das prioridades ou necessidades percepcionadas com
origem na economia.» (Antunes, 2008: 20) (sublinhados nossos) independentemente da vontade e/ou das prioridades dos
Estados-membros. Será que a soberania do país não permite pôr em causa tais orientações quando estas se mostrem
contrárias aos interesses nacionais? Fátima Antunes deixa perceber, que ainda haverá alguma margem de manobra e a
possibilidade de contrariar decisões da U.E. quando afirma que «…sem ainda haver lugar a partilhar a soberania [em
educação, entenda-se], já que os compromissos não são formalmente vinculativos…» (Antunes, 2008: 36). Importa que aqui
seja aberto um parênteses pois, apesar de haver poucas directivas em educação há, por um lado, várias com implicações para
esta área sendo de prever, por outro lado – e tendo em conta o que se passa em termos globais em todos os domínios da
União – que rapidamente a regulação se faça sentir também aí3. Nesses casos, de facto e de direito, as decisões comunitárias
têm aplicabilidade directa na ordem jurídica nacional4 e o Direito Comunitário tem prevalência sobre o Direito Português5
através do “princípio do primado”6 que faz parte do Tratado Constitucional no seu artigo I – 6º e «foi sendo elaborado pelo
Tribunal de Justiça ao longo da sua jurisprudência [e] é, desde há muito, reconhecido como um princípio de base e um dos
elementos centrais do funcionamento da União.7», consagra a prevalência daquele sobre este e retira aos Estados membros
qualquer hipótese de contrariar juridicamente decisões não favoráveis às políticas internas desses países.
Tendo em conta o pressuposto a que aludimos no parágrafo anterior, importa a esse respeito vermos que estratégias
mais se destacam a nível comunitário e quais os objectivos que pretendem atingir. Desde 2000, aquando da realização, em 23
e 24 de Março e em Lisboa, do Conselho Europeu extraordinário, que foi definido um ambicioso plano que tem como
finalidade tornar a União Europeia «…na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz
de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social» (Ministério
da Educação, 2006: 2). Esse Conselho, que fica para a história com a designação de Estratégia de Lisboa, define a Educação
e a Formação como “domínios-chave prioritários” dessa estratégia. Relativamente à Educação, os ministros dos (então) 15
definem um programa tendente a atingir o grande objectivo estrutural de toda a União Europeia e solicitam à Comissão a
definição de objectivos que virão a ser plasmados no programa «Educação e Formação para 2010», em Março de 2002, na
sequência do lançamento do Processo de Copenhaga. São treze esses «objectivos comuns para a melhoria dos sistemas de

3
No programa de televisão Negócios da Semana, de 02 de Outubro de 2008, no canal SIC Notícias, o economista e actual presidente da Associação Portuguesa
de Bancos, João Salgueiro afirmou que: «…eu acho que a regulação neste momento são milhares e milhares de páginas por ano, informação, informação,
informação. E a União Europeia é useira e vezeira nessas coisas, quer sempre mais informação, mais regulações e tal.» A título de curiosidade e ainda quanto à
profusão de documentos de carácter regulatório se refere como exemplo dessa manifesta ‘epidemia’ o «Regulamento (CE) nº 2257/94 da Comissão de 16 de
Setembro de 1994 que fixa as normas de qualidade para as bananas».
4
«O princípio da aplicabilidade directa impõe a vigência directa das normas de direito comunitário no ordenamento jurídico dos Estados membros sem
necessidade de qualquer mediação do legislador nacional. Embora esteja expressamente consagrado apenas em relação aos Regulamentos, este princípio vale
também para o Direito Comunitário Originário, ou seja, para os tratados, cujas disposições devem ser aplicadas como tais pelas autoridades administrativas e
jurisdicionais dos Estados membros, e para todos os outros actos de Direito Comunitário Derivado, inclusive para as Directivas.» (Sousa, 2004).
5
«A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, em 1986, e em particular à Comunidade Económica Europeia (redenominada Comunidade Europeia pelo
Tratado de Maastricht), dotada de amplos poderes normativos, implicou a sua subordinação a uma nova ordem jurídica – o direito comunitário –, regida por
princípios próprios, cuja característica mais marcante é a supremacia de todas as suas fontes de direito sobre o direito português.» (Sousa, 2004).
6
«De acordo com o princípio do primado, criado e desenvolvido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, as normas de direito comunitário
(tratados, actos normativos de direito derivado [directiva, decisão], etc.) prevalecem sobre qualquer norma de direito português, anterior ou posterior, de natureza
legal ou constitucional.» (Sousa, 2004).
7
Consultado em http://europa.eu/scadplus/constitution/objectives_pt.htm, em 21 de Setembro de 2007).

627
educação» e «pretende[m] fazer dos sistemas de educação e formação na Europa “uma referência mundial de qualidade, até
2010”». (Ministério da Educação, 2006: 2). O programa Educação e Formação 2010, adopta, para tal fim, como “instrumento
de acção”, o Método Aberto de Coordenação (MAC) que vai estabelecer «indicadores e valores de referência» (Comissão
Europeia, 2007: 3) tendentes a, justamente, controlar e facilitar a troca de experiências entre os diversos Estados-membros de
acordo com a lógica «objectivos comuns para sistemas diferentes». (Ministério da Educação, 2006: 2). Um dos princípios
amplamente proclamados por todos os órgãos de decisão da União Europeia é que tudo tem de ser feito numa base
amplamente democrática, na acepção mais ampla que o conceito pode ter, e que, por isso mesmo, «A organização de
sistemas educativos segundo os princípios da universalidade, da equidade e da qualidade constitui uma condição da
preservação do modelo social europeu e uma exigência do nosso tempo.» (Rodrigues, 2007: 1). De acordo com o definido a
nível do Conselho e da Comissão Europeia a necessidade de transformar a União na mais competitiva e, logo, mais
importante economia do mundo vai entroncar na realidade que é a existência de uma economia mundial e no facto,
decorrente desta, de, para esta universalização, contribuírem decisivamente as tecnologias da informação e da comunicação.
Esta dupla vertente implicaria a aposta na necessidade de uma maior e melhor preparação a esse nível para um número tão
lato quanto possível de cidadãos que se traduziria – pensava-se – num acréscimo de postos de trabalho e, portanto, numa
redução do número de desempregados e, obvia e consequentemente, num aumento do bem-estar social. Ora acontece desde
logo que existe uma imensa investigação académica de base empiricamente sustentada que mostra que isso não é verdade. A
propósito do verdadeiro mito que constitui a ideia de que mais formação é por si só sinónimo de mais e melhor emprego,
Christina Hughes e Malcom Tight afirmam que: «a função do mito da sociedade da aprendizagem é criar uma imagem e
argumentos convenientes e simpáticos para as actuais e futuras políticas dos diferentes grupos de poder no seio da sociedade.
Como tal, tem pouco impacto na natureza, no conteúdo ou na execução destas políticas, mas fá-las parecer diferentes e mais
interessantes, dando a impressão às pessoas de fora interessadas no assunto que as coisas estão a melhorar. Globalmente,
podemos concluir que a sociedade da aprendizagem é um conceito ideológico ao serviço de propósitos ideológicos». (Hughes
& Tight, 1995: 302), sendo que, para além disso: «muitos políticos, industriais e educadores parecem partilhar agora a
convicção fundamental de que a sociedade da aprendizagem – que coloca a educação, a aprendizagem e a formação no centro
das suas preocupações – não é a resposta aos actuais problemas económicos, políticos e sociais» (Hughes & Tight, 1995:
290). Internamente, Licínio Lima, em artigo de opinião, resume irónica e lapidarmente que «se continua a afirmar que “temos
doutores a mais”, em vez de empregos a menos». (Lima, 2008: 5). As previsões apontam para que em 2010 «somente 15%
dos novos empregos se[jam] adaptados a pessoas que tenham apenas a escolaridade obrigatória, ao passo que 50% exigirão
trabalhadores altamente qualificados.» (Ministério da Educação, 2006: 5) e para que «…entre 2000 e 2010, metade dos
empregos criados na Europa tenham origem directa nas tecnologias da informação, à semelhança dos empregos que foram
gerados pelas vantagens comparativas da UE na telefonia móvel». (Conselho Europeu, 2000: 2). Para isso o caminho a seguir
implica que «…todos os cidadãos possuam conhecimentos básicos de matemática, ciências e tecnologia». (Ministério da
Educação, 2006: 6). Continua-se no campo pantanoso do sofisma pois também aqui se constata que «os investigadores
científicos que estudam estas questões não possuem um verdadeiro conhecimento sistemático que demonstre, por exemplo,
que a instrução em matemática e em ciências facilite o crescimento económico, que a instrução em estudos sociais facilite a
integração política, ou que qualquer tipo de conteúdo educacional facilite efectivamente a legitimidade e a posição dominante
da elite económica ou política». (Meyer, Kamens, Benavot, Cha, Wong, 1992: 8). A retórica institucional da União Europeia
tenta fazer passar a ideia de que a prossecução das políticas acima mencionadas pressupõe um balanço equitativo entre a
«responsabilidade da Comunidade e a dos Estados-membros» (União Europeia, 1997:1) em que aquela «apenas intervém se e
na medida em que a acção activa não possa ser realizada pelos Estados-membros». (Ministério da Educação, 2006: 2). Por
outro lado, isso deverá – dizem os documentos oficiais – ser feito «…em função das suas prioridades nacionais…»
(Ministério da Educação, 2006: 3) afirmando-se ainda que «A União Europeia acompanha e apoia os esforços nacionais...
mas é a nível nacional que reside a chave do sucesso. Só os Estados-membros podem realizar as reformas que irão permitir
que a educação e a formação desempenhem o seu papel fundamental na realização da Estratégia de Lisboa». (Ministério da
Educação, 2006: 3). Mas de acordo com o que atrás foi dito, há metas a atingir e, mesmo que as sugestões emanadas da
União Europeia não tenham carácter vinculativo são os Estados-membros que assumem compromissos reveladores de
atitudes de boas práticas em que «as decisões tomadas nas conferências ministeriais são transpostas para os sistemas
educativos nacionais, constituindo um expedito processo de alteração das estruturas, peça a peça, dando corpo ao programa
definido ao nível supranacional». (Antunes, 2008: 32). Face ao que dissemos claramente se entende que o “apoio” da União
Europeia toma contornos de ingerência ao definir políticas e ‘objectivos’ a atingir. Curiosamente, porém, em todos estes
processos não se consegue perceber que sejam apontados ou sugeridos caminhos para que tais fins sejam atingidos. Essa é,
aliás, uma das questões que mais abundantemente é referida pelos estudiosos das políticas educativas como crítica a uma
política de construção de um edifício educativo comum em que se está gizando o telhado sem haver indicações de como será
construído o travejamento que o sustentará. Manuel António Silva esclarece que, uma das razões pelas quais devem os
trabalhos investigativos ser profícuos em citações de referência, (e que aproveitamos como justificação quanto ao que se
passa neste mesmo texto): «é devida fundamentalmente ao facto de muitos dos documentos oficiais com que muitos de nós
têm de se confrontar quotidianamente serem completamente omissos quanto às suas referências teóricas, situação que
reputamos, no mínimo, como eticamente condenável. Por outro lado, conduz a que muitos dos técnicos que se encontram
envolvidos na construção das “ofertas” de formação não passem de meros tecnocratas ao serviço de políticas que lhes são
alheias mas que têm de implementar, muitas vezes acriticamente, mas detendo um poder tal que passam a constituir uma

628
espécie de coluna avançada a disparar em todas as direcções» (Silva, 2007: 226). O que se passa na realidade e nesta ordem
de ideias é que não se trata de ser a União Europeia que acompanha o caminho decidido pelos Estados-membros mas que são
estes que têm de ir a reboque das decisões comunitárias, ‘malgré eux’. E quando documentação europeia refere que «os
tratados limitam-se a especificar os domínios em que, subsidiariamente, a União pode apoiar e completar a acção dos
Estados-membros no sentido de promover a qualidade e de criar uma mais-valia europeia…» (Rodrigues, 2007: 2) não creio
poder haver hesitações quanto ao carácter demagógico, sensacionalista e de verdadeira propaganda veiculado pelos gabinetes
de comunicação dos 27. Quando a Ministra da Educação de Portugal, Maria de Lurdes Rodrigues, apresenta no Parlamento
Europeu «as prioridades e o programa da Presidência Portuguesa para a área da Educação e da Formação à comissão de
Cultura e Educação», no dia 17 de Julho de 2007, e afirma que «é possível identificar desde já alguns domínios em que, estou
certa de que concordarão comigo, as soluções encontradas a nível nacional ou regional podem beneficiar muito da
cooperação europeia.» (Rodrigues, 2007: 3) tenderíamos a concordar com ela se, por um lado, a ordem dos factores tivesse
como ponto de partida “as soluções encontradas a nível nacional ou regional” e se, por outro, essa ‘cooperação’ o fosse de
facto e não um instrumento de fiscalização da implementação das directivas comunitárias, «um importante papel de
controlo…» (Comissão Europeia, 2007: 2).
Ora, tendo em conta a necessidade de uma supremacia económica em tão curto espaço de tempo (2000 – 2010) o
Programa de Trabalho, Educação e Formação 2010 propôs 13 objectivos8 que todos os Estados-membros se deveriam (e
fizeram) comprometer a tentar alcançar. Desses treze mini-programas de trabalho incontornáveis queremos aqui destacar três
que resumem, quanto a nós, a aposta em torno da qual todos os esforços se congregam: «Assegurar que todos possam ter
acesso às TIC», «Apoiar (…) a igualdade de oportunidades» e «Desenvolver o espírito empresarial». A melhor forma de o
fazer é, no seguimento da Estratégia de Lisboa – apesar de já desde 1996 ser uma das prioridades da União Europeia – e, de
acordo com o celebrado no Tratado de Amesterdão, de 2001, a “Aprendizagem ao Longo da Vida”9, «assumida como
princípio orientador subjacente à política comunitária em matéria de educação». (Ministério da Educação, 2006: 3). De facto,
essa era, e continua a ser, a grande prioridade da União Europeia mostrada de forma inequívoca no discurso de Maria de
Lurdes Rodrigues a que já aludimos10, com o fim de que haja «…cidadãos preparados para as necessidades e para os
constrangimentos do desenvolvimento sustentável, de trabalhadores mais qualificados e por isso mais capazes de participar
activamente nesse desenvolvimento e mais protegidos das inevitáveis incertezas do mercado de trabalho» (Rodrigues, 2007:
1). Pena é que a investigação académica aponte esmagadoramente para ideias diametralmente opostas à da ideologia
dominante. Refira-se neste particular, e por todos, a seguinte afirmação de Manuel Silva: «quando as pessoas, nomeadamente
os jovens, começarem a perceber que a formação não permite, por si só, resolver os problemas de emprego com que se
defrontam, isto é, que o desemprego e/ou a precariedade laboral, não têm como causa principal a falta de qualificações mas
resulta de factores que ultrapassam os sujeitos individualmente considerados; quando perceberem que a formação poderá ser
utilizada como forma de controlo e selecção social e não como promotora de bem-estar e de mobilidade social e profissional
(como tradicionalmente tem vindo a ser perspectivada); quando começarem a emergir processos de avaliação das pessoas e
dos processos de formação em que participam (que, presentemente, se encontram em fase que podemos considerar
embrionária), os consensos certamente passarão à história.» (Silva, 2007: 218).

III

O Caso Português
Em Portugal, como veremos, é muito curioso perceber como as políticas educativas se constroem em três vértices
cuja relação entre si permite considerar uma espécie de triângulo escaleno (de lados e ângulos desiguais). Por um lado, é
fulcral perceber de que forma é feita a gestão dos documentos europeus que se constituem como um mandato tendo por fim a
europeização da educação. Por outro, esse mandato acaba por legitimar as políticas de ordem interna que não perdem de vista
uma intencionalidade marcadamente mercantilista e gerencialista, de cunho pós-fordista, assente numa retaguarda
economicista, sinal de um tempo global numa consonância atípica com alguma da retórica que enforma o projecto político-
educativo europeu. Abordaremos, relativamente à terceira vertente, a materialização dessas mesmas políticas nas escolas do
país. Essa decisão de políticas nacionais tem vindo a marcar, em nossa opinião, um perigoso desvirtuamento da retórica

8
São os seguintes os 13 objectivos definidos: agrupados em torno de 3 objectivos estratégicos: Objectivo estratégico 1: Melhorar a qualidade e a eficácia dos
sistemas de educação e de formação na Eu: 1.1.: Melhorar a educação e a formação dos professores e dos formadores ; 1.2.: Desenvolver as competências
necessárias à sociedade do conhecimento; 1.3.: Assegurar que todos possam ter acesso às TIC; 1.4.: Aumentar o número de pessoas que fazem cursos técnicos e
científicos; 1.5.: Optimizar a utilização dos recursos. Objectivo estratégico 2: Facilitar o acesso de todos aos sistemas de educação e de formação: 2.1.: Ambiente
aberto de aprendizagem; 2.2.: Tornar a aprendizagem mais atractiva; 2.3.: Apoiar a cidadania activa, a igualdade de oportunidades e a coesão social. Objectivo
estratégico 3: Abrir ao mundo exterior os sistemas de educação e de formação: 3.1.: Reforçar as ligações com o mundo do trabalho, a investigação e a sociedade
em geral; 3.2.: Desenvolver o espírito empresarial; 3.3.: Melhorar a aprendizagem de línguas estrangeiras; 3.4.: Incrementar a mobilidade e os intercâmbios; 3.5.:
Reforçar a cooperação europeia.
9
«Toda a actividade de aprendizagem em qualquer momento da vida, com o objectivo de melhorar os conhecimentos, as aptidões e competências no quadro de
uma perspectiva pessoal, cívica, social e/ou relacionada com o emprego formação, integrando-o noutras áreas adjacentes, como a do emprego». (Ministério da
Educação, 2006: 4).
10
«A Presidência está por isso firmemente convencida de que é necessário reforçar o papel da aprendizagem ao longo da vida no próximo ciclo da Estratégia de
Lisboa – que se iniciará no próximo ano [2008] – e começar a preparar, desde já, o seu desenvolvimento para além do horizonte de 2010. Essa será a nossa
prioridade. » (Rodrigues, 2007: 2).

629
consubstanciada no primeiro aspecto. E esse desvirtuamento é tanto maior quanto é grande a carência de rigor e de qualidade,
com consequências dificilmente previsíveis mas marcadamente negativas para o futuro das crianças, jovens e adultos que
frequentam a Escola e, logo, para o futuro do país.
A implementação das políticas europeias em Portugal faz-se de acordo com três vertentes estruturais: «a
participação no processo europeu; a estratégia nacional de divulgação, sensibilização e reflexão; a estratégia nacional de
qualificação» (Ministério da Educação, 2006: 3). Esta última linha de actuação materializa-se a partir do designado Programa
Nacional de Acção para o Crescimento e o Emprego 2005/2008 (PNACE) que tem como finalidades primeiras «identificar e
implementar soluções para os problemas críticos que decorrem da aplicação dessas orientações [do Conselho Europeu e às
prioridades identificadas pela Comissão Europeia para Portugal] no contexto socioeconómico do País e tendo em conta a
estratégia e a agenda de modernização que se visa prosseguir» (Ministério da Educação, 2006: 11). De todos os desafios que
são colocados ao país, «o reforço da qualificação dos portugueses» (Ministério da Educação, 2007: 1) assume-se como o
mais importante. Os actuais responsáveis pela educação, afirmam que «nas últimas décadas, Portugal tem feito um enorme
esforço de qualificação escolar da população, que se traduziu em progressos substanciais em matéria de educação. Contudo, o
país continua a apresentar um défice estrutural de formação e qualificação da população que exige uma aposta clara e
persistente na resolução dos problemas que têm impedido a convergência com os actuais padrões da União Europeia,
nomeadamente os níveis de insucesso e abandono escolares e o défice de qualificações da população activa». (Ministério da
Educação, 2007: 1). Para colmatar tal défice, «o PNACE tem como grandes desígnios, entre outros, apostar na qualificação
dos portugueses, com avaliação e certificação, promovendo uma cultura de aprendizagem ao longo da vida e aumentar a
eficiência do sistema educativo e reduzir drasticamente as taxas de saída precoce [essa taxa de abandono, por parte do total
de alunos com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos, não deverá ser superior a 10%11] e insucesso escolar [e, para
tal,] reduzir para metade o insucesso escolar nos ensinos básico e secundário até 2009; tornar obrigatória a frequência de
ensino ou formação profissional para todos os jovens até aos 18 anos até 2009 [pelo menos 85% dos jovens deverão concluir
o ensino secundário e deverá haver uma redução de pelo menos 20% - no número de alunos que frequentam o sistema de
ensino ‘geral’ – do nível de maus resultados em termos de proficiência de leitura]; [aumentar o número total de licenciados
em matemática, ciências e tecnologias em, pelo menos, 15% a par de um aumento do número de jovens do sexo feminino que
concluam esses cursos]; aumentar a proporção de jovens de 22 anos com o ensino secundário superior, de 49% em 2004, para
65% em 2010; abranger cerca de 650 mil jovens em cursos técnico-profissionais de nível secundário até 2010, prevendo-se
abranger 365 mil até 2008; aumentar a taxa de participação da população dos 25 aos 64 anos em acções de
educação/formação para 12,5% em 2010 (4,6% em 2005); qualificar 1 milhão de activos até 2010, dos quais 435 mil até
2008, através de cursos de educação e formação ou de reconhecimento, validação e certificação de competências…»
(Ministério da Educação, 2006: 11). Mas, como estão sendo implementados tais objectivos?
Quando a Ministra da Educação do XVII Governo Constitucional português, Maria de Lurdes Rodrigues, afirmou,
na sede do Parlamento Europeu, em Julho de 2007, que «a organização de sistemas educativos segundo os princípios da
universalidade, da equidade e da qualidade constitui uma condição da preservação do modelo social europeu e uma exigência
do nosso tempo…» (Rodrigues, 2007: 1) poder-se-ia perguntar se ela se dirigia aos parlamentares europeus referindo-se a
todos os países mas se tinha precisamente esquecido Portugal nesse contexto. É que as noções de universalidade, de
equidade12 e de qualidade começam por ser incompatíveis, parece-nos, com a lógica mercantilista–consumista que implica o
recurso cada vez mais generalizado ao ensino privado arredando desse acesso todos aqueles que não podem – por não terem
condições económicas – pagar uma educação com a qualidade da que pode ser oferecida em algumas escolas privadas. É
curioso notar que a União Europeia reconhece «que o futuro da economia europeia depende, em grande medida, das
competências dos seus cidadãos que (…) necessitam de se actualizar continuamente, (…) apela[ndo] a um aumento anual nos
investimentos per capita em recursos humanos» (Ministério da Educação, 2006: 7), mostrando, assim, a sua preocupação com
a importância que a qualidade tem para que se atinjam os objectivos propostos. A opção das verbas a cabimentar para a
educação em cada país membro é uma das questões em que, claramente, a decisão cabe a cada Estado-membro. Em Portugal,
paradoxalmente, estas indicações ou não são seguidas, ou são-no de forma incompreensível. Desde 2005 tem-se vindo a
assistir ao encerramento de várias centenas de escolas obrigando cada vez mais os alunos a deslocarem-se vários – muitos, de
qualquer forma – quilómetros para conseguir ir à escola.13 Para conseguirem frequentar escolas com um número cada vez
maior de alunos por turma e com a inerente degradação da qualidade pedagógica da relação professor/aluno, por o docente

11
«Fracção da população com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos que possui apenas o nível mínimo do ensino secundário ou um nível inferior e que
não frequenta qualquer estabelecimento de ensino nem segue qualquer formação». (Ministério da Educação, 2006: 2).
12
«Tal como sublinhado na comunicação sobre a eficiência e a equidade, avaliar a equidade na educação e na formação significa analisar “o grau em que os
indivíduos podem beneficiar da educação e da formação, em termos de oportunidades, acesso, tratamento e resultados”». (Comissão Europeia, 2007:4).
(Sublinhado nosso).
13
O encerramento verificou-se sobretudo em escolas do 1º ciclo do Ensino Básico com o argumento de que o insucesso escolar é elevado em escolas com menos
de vinte alunos. Afirma a estrutura sindical da FENPROF (Federação Nacional de Professores) que «as escolas com menos de vinte alunos são exactamente
aquelas que se situam nas regiões e localidades mais desfavorecidas económica e culturalmente, onde as taxas de escolarização das famílias são menores»
referindo que «neste domínio, falta ao ME uma visão estratégica e uma ideia para a renovação do 1º CEB, assumindo uma orientação centrada na navegação à
vista e no cego corte nos custos da educação» e perguntando se «saberá o ME que, por exemplo, em algumas áreas dos distritos da Guarda, Viseu, Castelo
Branco, Vila Real, Bragança ou no Alentejo o encerramento dos estabelecimentos de ensino com menos de 20 alunos, se não for acompanhado da construção de
novas escolas, implica o transporte de crianças de 6 anos de idade durante uma hora de manhã e outra à tarde?». Artigo da página em linha da FENPROF.
Consultado a 25 de Novembro de 2008 em http://www.fenprof.pt/?aba=27&cat=59&doc=1129&mid=115 (FENPROF, 2008)

630
não conseguir desmultiplicar-se em turmas com 25, 28 alunos14. Escolas que se vêem cada vez mais privadas de pessoal
docente15 – o número de professores desempregados em Portugal não deixa, porém, de aumentar todos os anos16 -, que não
conseguem ter a colaboração e o apoio de um profissional da área da saúde psicológica17, que se queixam sistematicamente
de falta de pessoal auxiliar – na melhor das possibilidades a falta de técnicos auxiliares de educação é suprida com recurso
aos centros de emprego com as implicações de contínua entrada e saída de efectivos e inerente impossibilidade de se criarem
raízes e trabalho de equipa sólido e eficiente. Tem-se ainda vindo a assistir a uma constante redução das verbas a atribuir às
escolas dos vários níveis de ensino e destacamos, pela importância de que se reveste, a redução dos montantes com que são
dotados os estabelecimentos de ensino superior e consequente inevitabilidade de cessação de contratos com docentes,
investigadores, bolseiros18, sem se perceber que realmente «o investimento na educação e na formação tem um preço, mas os
elevados benefícios humanos, económicos e sociais alcançados a médio e a longo prazo ultrapassam os custos». (Ministério
da Educação, 2006: 7).
Como já referido acima e aqui reafirmado através de outra fonte, o Conselho Europeu define como uma das metas a
atingir «…um valor de referência segundo o qual, pelo menos 85% dos jovens deverão ter concluído o ensino secundário até
2010.» (Comissão Europeia, 2007: 5). Este elemento é definido de forma ideal e se pensarmos que o mesmo significa que em
cada 100 jovens 85 deverão concluir os seus estudos secundários não ficamos alarmados. Sobretudo se se tiver em conta que,
em 2005, a percentagem – já com 27 países contabilizados – de jovens com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos
com o ensino secundário terminado era de 77,4%. Em termos globais está-se a falar de um esforço que permita recuperar
7,6%. Difícil, porventura, mas exequível. Dos 27 países em questão, 8 já tinham atingido essa meta em 2005 e 7 estavam a
menos de 5%. Mas em Portugal as coisas são muito diferentes. De acordo com os mesmos indicadores o nosso país encontra-
se em último lugar com apenas 49% dos alunos nessas condições que terminam o ensino secundário. Mesmo Malta, o
penúltimo país do ranking, encontra-se 4,7 pontos à frente de Portugal. Aquilo que nos é pedido é que, no mesmo espaço de
tempo, recuperemos 36%. E isso explica, em grande parte, a forma como a educação se processa no nosso país. A
necessidade de fazer cumprir objectivos implica uma redução da qualidade inerente aos timings exigidos. Tudo serve para
que os alunos fiquem na escola até ao fim do curso mesmo que não queiram e a escola nada lhes diga. Portugal é um país
onde, historicamente, a escola é um corpo estranho aos cidadãos. Onde desde há apenas 34 anos a educação passou a fazer
parte do quotidiano da totalidade dos jovens. É um país cuja taxa de analfabetismo, em 197019, rondava os 20,5%, e que
mesmo em 2000 apresentava – ainda! – 8% de pessoas que não sabem ler e escrever. Falamos de um país onde as famílias
não perceberam ainda completamente a importância de ir à escola. Portugal tem ainda nichos populacionais (muito poucos é
verdade) onde não há luz eléctrica, com extensas bolsas habitacionais onde o saneamento básico não está ligado em rede,
com pessoas nas zonas mais isoladas do interior para quem a vida continua a ser feita na base de uma agricultura de
subsistência. Este é um dos países da União Europeia onde se verificam das maiores assimetrias – entre o litoral e o interior,
entre as zonas mais densamente urbanizadas e aquelas onde (e parece cada vez mais), de novo, se faz sentir o êxodo rural e a
desertificação). E é neste país que, a ritmo acelerado e por decreto, se querem mudar as mentalidades e resolver, em 10 anos,
o que não foi conseguido em 20020, sem se querer perceber que, da mesma forma que não se pede a uma árvore que cresça e
frutifique num ano, também não se reduz para metade o insucesso escolar nos ensinos básico e secundário até 2009 sem
comprometer a qualidade com consequências gravosas para o processo “ensino-aprendizagem” e para todos os actores nele
envolvidos. Aliás, a retórica governamental aponta precisamente nessa direcção quando afirma que: «a superação destes

14
Fazemos aqui referência ao despacho nº 14 026/2007, de 3 de Julho, que estabelece, entre outras, as normas relativas à “constituição de turmas”, estipulando no
seu ponto 5.2 que «as turmas do 1º ciclo do ensino básico são constituídas por 24 alunos, não podendo ultrapassar esse limite», e, no ponto 5.3, que «as turmas
dos 5º ao 12º anos de escolaridade são constituídas por um número mínimo de 24 alunos e um máximo de 28 alunos». (Despacho nº 14 026/2007).
15
A título de exemplo referimos uma Escola de 3º Ciclo / Secundária do Distrito do Porto que investigamos. Essa escola dispôs, durante 1 ano, do apoio de um
professor de Educação Especial. A escola tem mais de 1.000 alunos e havia alguns que tiravam proveito desse apoio. A partir do ano lectivo 2005/2006, o
professor deixou de poder exercer funções docentes nessa escola. Neste momento se um aluno da cidade onde a escola se situa precisar do apoio de um
profissional especializado na área do ensino especial terá que mudar para uma escola da cidade de Braga, que fica a 33 quilómetros daquela, tendo como opção a
cidade do Porto a 30 quilómetros também.
16
O Jornal de Notícias refere o seguinte número relativo a desemprego docente: «Fenprof calcula que o número de professores que efectivamente está no
desemprego é de 40 mil, um número superior ao do ano passado – cerca de 35 mil.». (Jornal de Notícias, de quarta-feira, 8 de Outubro de 2008, p. 3).
17
A mesma escola a que aludimos na nota 15, recorreu, durante 7 anos, aos serviços de uma psicóloga, paga “a recibo verde” pelo PRODEP. A partir de
Dezembro de 2007, data em que cessou esse IIIº quadro de apoio, essa profissional passou a ser paga em 50% pela Associação de Pais e Encarregados de
Educação e, no restante, pela própria escola no valor de um salário mínimo. Essa verba era conseguida no orçamento privativo da escola e resulta dos lucros do
bufete, da papelaria e da cedência de instalações. Quando recebeu uma proposta de trabalho de uma outra entidade com garantias de maior estabilidade
profissional optou por sair, não obstante ter tudo feito para que o seu vínculo passasse a ter alguma garantia, mais a mais a forma séria e profissional como –
consensual e aclamadamente – realizou o seu trabalho durante todos os anos em que aí trabalhou.
18
No «Discurso de Abertura do Ano Académico», proferido a 12 de Novembro de 2008, o Reitor da Universidade de Lisboa comunicou que, de acordo com o
Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, interromperia o seu mandato. Durante o seu discurso António Nóvoa referiu que «pelo quarto ano
consecutivo, o Governo aumenta o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino superior, e pelo quarto ano consecutivo este é distribuído de forma
a favorecer a Ciência e a prejudicar as Universidades. Como se a formação de base dos portugueses fosse um tema menor. Como se fosse possível fazer
germinar, em instituições depauperadas, focos de excelência científica. O Governo que nos dá dinheiro – e bem – para contratar, num único ano, quase 100
investigadores doutorados para a “Ciência” é o mesmo Governo que nos impede de recrutar um único professor para o “Ensino”, que nos impede de renovar um
corpo docente cada vez mais envelhecido. (…) Portugal tem de decidir, de uma vez por todas, se quer ou não quer ter grandes Universidades, se quer ou não quer
ter instituições de referência no Espaço Europeu do Ensino Superior. Ou se prefere, como sempre aconteceu no passado, ter umas instituições remediadas,
sofríveis, mais parecidas com “escolas secundárias” do que com Universidades do conhecimento e da ciência que nos habituámos a admirar por esse mundo fora.
(…) Foram sempre os governantes que, perante o fracasso das suas reformas, procuraram nela o conforto, para não dizer a desculpa, para os seus insucessos. E
também o pretexto para uma inaceitável ingerência na vida interna das instituições». (Nóvoa, 2008: 4 – 5).
19
De acordo com o censo realizado nesse ano.
20
Desde, pelo menos, a governação do Marquês de Pombal com vários diplomas referentes à instrução: «O país tinha a convicção da fraqueza das condições
práticas do seu ensino e da urgência de as modificar. Pombal compreendeu esta necessidade de equipamento educacional e prestou-lhe uma atenção, para o
tempo, invulgar.» (Dicionário de História de Portugal, 1992: 119).

631
obstáculos só é possível através da concretização de medidas que coloquem a escola no centro da política educativa,
qualificando-a, melhorando o seu funcionamento e a sua organização e os resultados escolares dos alunos.» (Ministério da
Educação, 2007: 1). No entanto, e ao arrepio do que historicamente é proposto por toda a investigação realizada neste
domínio, Portugal tem e mantém um dos mais centralistas sistemas de controlo hierárquico da Europa, apesar de toda a
(des)informação que é sistematicamente passada para a opinião pública quanto aos processos de autonomia da escola21. O
Ministério da Educação define a sua política de acordo com critérios concebidos fora das fronteiras do país, juntamente com
lógicas nacionais, ambas baseadas maioritariamente em valores de ordem economicista, já o dissemos, e fá-la chegar às
escolas via legislativa e por intermédio das Direcções Regionais de Educação. No tocante ao ensino, a verticalidade
hierárquica das decisões é de tal forma grande que é impensável que uma escola possa postergar relativamente ao que lhe é
imposto. A “autonomia” existe basicamente em relação a questões que, de tão banais, não são susceptíveis de que haja
margem para erros. A liberdade de decidir acontece também, e mais frequentemente do que se possa pensar, quando as
Direcções Regionais não sabem que opinião propor e que informações veicular. Nesse caso, passam a responsabilidade da
tomada de decisões para a hierarquia máxima local das escolas que, por receio, a mais das vezes se sentem manietados não
decidindo ou agindo de forma tímida e pouco consistente e ‘envergonhada’. Sendo ainda que existe sempre a possibilidade de
se alterar o que foi anteriormente decidido pois fica em aberto a possibilidade de, a todo o tempo, mais avisada opinião poder
vir no dia seguinte pôr em causa o que no dia anterior era viável22. Ora, este tipo de estratégias assumem-se não como
verdadeiras medidas de descentralização mas de simples delegação e forma diferida de imposição de medidas questionáveis e
impopulares que, não fosse o espectro da penalização a quem não as siga, tenderiam a não ser cumpridas ou sê-lo com
grandes reservas. Percebe-se assim, como afirma Licínio Lima (2008: 2), «um programa de despolitização da administração
escolar para manter ou reforçar o domínio político do centro sobre as periferias. As “medidas de política educativa” não
s[endo], afinal, exclusivo do centro, cabendo às periferias a sua execução diligente e eficiente».
Diz-nos o sítio do Ministério da Educação, na página relativa à “Presidência Portuguesa do Conselho da União
Europeia – Políticas, Educação e Formação”, e como já atrás mostrámos, que «uma segunda área-chave de intervenção da
política educativa tem como objectivo generalizar o nível de ensino secundário (12 anos de escolaridade) enquanto
referencial mínimo de qualificação. Este objectivo tem vindo a concretizar-se na expansão e na diversificação da oferta
formativa profissionalmente qualificante, nomeadamente através do aumento de vagas em cursos profissionais nas escolas
das redes pública e privada, pretendendo-se que as vias profissionais de nível secundário atinjam metade do total de vagas
neste ciclo de ensino» (Ministério da Educação, 2007: 1). Porém, à imagem de outros aspectos da implementação das
estratégias propostas pela União Europeia, a materialização de tais procedimentos levanta questões assaz complicadas. Todas
as pessoas podem e devem matricular-se para concluir o 12º ano. Isso só lhes traz vantagens. Porém, a motivação pela escola
é manifestamente reduzida num número crescentemente grande de alunos. A propósito, usamos aqui uma passagem
sustentada em dados fiáveis, que, embora reportando-se a Inglaterra, deixa perceber a importância de que a escola se reveste
para a formação das pessoas até em países de tradição escolar bem mais avançada do que o nosso: «o instituto oficial de
formação contínua para adultos de Inglaterra e País de Gales (National Institute of Adult Continuing Education - NIACE)
encomendou um inquérito que indicou que apenas 10% das pessoas com idade igual ou superior a 17 anos estavam nesse
momento a estudar alguma matéria. Cerca de 24% tinham estudado no período de três anos anterior ao inquérito, mas a
maioria, 52%, referiram que não tinham estudado de todo depois de abandonarem a escola». (Hughes & Tight, 1995: 300 –
301). A escola vai-se tornando um viveiro de problemas potenciados pelo facto de que é consensual que todos concluirão
com sucesso esse patamar da escolaridade independentemente dos conhecimentos adquiridos e/ou da forma como os
atinjam23. E isto continua a marcar o status quo da educação portuguesa. Os alunos que frequentam a escolaridade obrigatória
e o ensino básico têm um percurso académico cada vez mais frágil. Portugal, como membro da OCDE, tem vindo a participar
numa monitorização, levada a cabo por esse organismo, através da realização de provas tendentes a despistar o nível de
literacia em Leitura, Matemática e Ciência de jovens de 15 anos que frequentem o 7º ano de escolaridade ou mais. Esses
testes que fazem parte do PISA, realizam-se todos os 3 anos (2000, 2003, 2006) e têm vindo a incluir, a cada ciclo que passa,

21
A propósito da autonomia das escolas, Virgínio Sá, investigador da Universidade do Minho, conclui o seu artigo em «A Página da Educação» afirmando a esse
propósito que «apesar da usurpação de algumas das competências antes atribuídas às escolas, e de não se vislumbrar nenhuma competência verdadeiramente
nova devolvida às escolas, os proponentes desta proposta ainda nos querem convencer que um dos objectivos da mesma é “o reforço da autonomia da escola”! É
certo que o termo está abundantemente semeado pelo texto [projecto de dec.-lei intitulado “Regime Jurídico de Autonomia, Administração e Gestão dos
Estabelecimentos Públicos da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básicos e Secundário”] (contabilizamos cerca de meia centena de referências ao mesmo).
Contudo, a construção retórica da realidade tem as suas limitações. (Sá, 2008: 35).
22
Consideramos espantosa a nota de pé-de-página que frequentemente consta de e-mails emanados das Direcções Regionais: «NB: Esta mensagem traduz a
opinião do seu autor e de modo algum deve ser tomada como representativa de entendimentos da administração escolar ou vinculando deliberações da tutela,
excepto quando expressamente mencionados.». Este e-mail foi enviado do “GEEASE - Gabinete de Educação Especial e Apoio Sócio-Educativo” mas é apenas
um de muitos.
23
A propósito de duas alunas de um CEF (Curso de Educação e Formação) com muito elevado número de faltas, quando o Conselho Executivo da escola
perguntou o que deveria ser feito, tenha-se em linha de conta o seguinte texto redigido de acordo com indicações fornecidas pela DREN: «Deverá ser
estabelecido entre o formador de cada domínio e as formandas em questão um contrato pedagógico (não é necessário que seja formalizado e assinado, basta que
sejam reduzidas a escrito algumas orientações dos formadores, utilizando o caderno diário), no sentido de atribuir às alunas um conjunto de tarefas/actividades
que lhes permitam atingir resultados de aprendizagem iguais aos dos restantes formandos. Esta recuperação das horas perdidas pode fazer-se até ao final da
formação, ou seja, até Maio de 2008. O trabalho a desenvolver pelas alunas pode ser feito nos seguintes espaços: - Escola: biblioteca, clubes, salas de
informática, sala de estudo, etc…. – Em espaços exteriores à escola: biblioteca municipal, residência das alunas e outros espaços públicos de cariz
educativo/cultural que se entendam adequados para a realização das tarefas propostas. Todas as horas cumpridas pelas formandas no âmbito do contrato referido
deverão ser registadas em cópia de folha de livro de ponto, por domínio, devidamente datadas e assinadas pela formanda e pelo formador respectivo. Estas folhas
devem ficar no processo técnico pedagógico e ainda no processo individual das formandas.» (os sublinhados são nossos).

632
um número crescente de países. Estes testes têm servido como elemento de análise à União Europeia para perceber o estado
da educação entre os 27. Portugal participou em todos os momentos de avaliação e em todos eles a prestação dos alunos
envolvidos foi manifestamente insuficiente. No sítio do portal do Governo relativamente ao ciclo PISA 2003 podem
encontrar-se dados relativos a Portugal cujas conclusões são ainda mais preocupantes quanto é notória a discrepância entre a
retórica governamental sobre o assunto e as medidas que, diariamente, são tomadas para que, supostamente, este estado de
coisas se altere ao arrepio das opiniões dos intervenientes em todo o processo educativo: «1 - Em todos os domínios
avaliados - leitura, matemática, ciências e resolução de problemas - os alunos portugueses de 15 anos tiveram um
desempenho modesto24, uma vez comparado com os correspondentes valores médios dos países do espaço da OCDE. (…) 3 -
Na literacia matemática, área predominante no PISA 2003, verificou-se existir uma percentagem demasiado elevada de
alunos portugueses de 15 anos com nível de proficiência inferior a 1, o que configura uma situação grave para cerca de 1/3
dos nossos estudantes. (…) 6 - Na resolução de problemas, os alunos portugueses de 15 anos têm um desempenho médio
significativamente inferior ao da média da OCDE. (…) 7 - Existe uma associação positiva entre o desempenho médio dos
alunos de cada país e o rendimento nacional e o gasto por aluno neste país. Se ajustássemos o desempenho médio de cada
país aquele que seria de esperar se as condições sociais e económicas fossem médias, Portugal melhorava substancialmente a
sua posição relativamente aos restantes participantes. (…) 13 - Na literacia matemática verificou-se a existência de diferenças
entre os perfis das famílias dos alunos com alto nível de literacia e dos alunos com baixo nível de literacia. Os melhores
resultados do PISA tendem a identificar-se com alunos provenientes de famílias em que os bens culturais, os recursos
educacionais, os níveis de educação e o status profissional são mais elevados. (PISA, 2005). Com a convicção de que os
dados existentes aqui referidos são, por si só, suficientemente preocupantes para que as soluções a encontrar no domínio da
educação possam continuar a ser determinadas pela lógica empresarial do curto prazo ou baseadas em relações contabilísticas
de deficit e de superávit, queremos agora equacionar de que forma as estratégias até agora apresentadas têm eco na classe
docente.

Da Educação, da Formação e dos Docentes espartilhados entre ambas


Independentemente da época em que a investigação se centre, qualquer que seja a teoria, sociológica ou outra, em
que se baseie a abordagem a fazer, a Escola é um espaço de Educação25. Acreditamos, na esteira de Agostinho Reis Monteiro
(2000: 16) que «na verdade, só se aprende – efectivamente – afectivamente[, e que] o sucesso da função dos professores
depende da qualidade da relação pedagógica [pois] (…) o ser humano pode ser definido como um animal pedagógico».
Vivem-se tempos de grande ansiedade pelas rápidas alterações tecnológicas que vieram obrigar a redefinir a relação humana
com o mundo do trabalho, pelo aumento exponencial do desemprego e pelas cada vez maiores crises sociais daí decorrentes.
A escola é questionada e a sua importância é posta em causa. Para que serve uma instituição que supostamente deveria
permitir encontrar – pela transmissão de melhor preparação para o trabalho – emprego e estabilidade – quando a realidade
mostra que, bem pelo contrário, a falta de saídas profissionais potencia a exclusão social e gera insegurança a vários níveis?
A autoridade é posta em causa. A do Estado, a da sociedade, a da família, a do professor. Este «é chamado a tornar-se cada
vez mais um conselheiro, um interlocutor; mais o que ajuda a procurar em comum os argumentos contraditórios do que
aquele que tem todas as verdades preparadas» (Faure, 1981: 141). Ora, essa “qualidade da relação pedagógica” acima
referida «visa o pleno desenvolvimento da personalidade do aluno no respeito pela sua autonomia e, deste ponto de vista, a
autoridade de que os professores estão revestidos tem sempre um carácter paradoxal, uma vez que não se baseia numa
afirmação de poder mas no livre reconhecimento da legitimidade do saber» (Delors, 2003: 135). Vem isto a propósito de nos
documentos oficiais da União Europeia sobre educação ser recorrentemente utilizado o termo “formação” para dar conta de
algo que choca com as noções de Educação (poucas) que é possível encontrar em textos, digamos, seminais, sobre o assunto
como sejam o “Relatório Faure” (1972), o “Livro Branco” sobre “Crescimento, Competitividade, Emprego” (1993), o
“Relatório Delors” “Educação, um tesouro a descobrir” (1999), o “Livro Branco” sobre “a Educação e a Formação” (1995).
Essa literatura emprega de forma privilegiada o termo “formação”. E as conotações que lhe estão associadas pouco ou nada
têm a ver com noção de Educação acima citada, antes se transforma «num objecto meramente instrumental, caracterizado
apenas pela dimensão técnica e facilmente apropriada, como treino e adestramento, ao serviço de objectivos que lhe deveriam
ser exteriores» (Silva, 2007: 209). E esses objectivos têm uma profunda relação com o mundo do trabalho na lógica que todo
o nosso texto tem revelado, com a finalidade de acentuar as clivagens existentes em termos económicos e, logo, sociais em
detrimento dos postulados retóricos que se propõem, justamente, se não fazê-las desaparecer, pelo menos esbatê-las
consideravelmente. Caminha-se no sentido de tornar a Educação não num meio de emancipação dos cidadãos, tal como
proposto pelo Relatório Faure (1981: 172) quando afirma que «o homem que as sociedades têm de formar é o homem da
democracia, do desenvolvimento humanizado e da transformação», mas num aríete do mundo do trabalho, uma extensão da
máquina, desumanizado, embrutecido mesmo, «dada a articulação que [no pensamento neoliberal] é efectuada entre
competitividade, produtividade e excelência das organizações e a responsabilização, o mérito e as competências de sujeitos
individualmente considerados e que competem entre si por posições raras no mercado, ou seja num contexto que lhes é

24
Nesta passagem todos os sublinhados são nossos.
25
Não significa isto, porém, que a Educação seja um exclusivo da Escola, que quando se fala de Educação só se possa ou até se deva falar apenas de e da Escola,
nem sequer que seja a Escola o local ideal de Educação.

633
hostil» (Silva, 2007: 231). Esta deslocação da tónica da área emancipatória da Educação para o domínio redutor da
“formação” é estrategicamente acompanhada por um aumento crescente de trabalho burocrático em que o professor deixa de
ser alguém motivado para formar homens e mulheres dinâmicos e interventivos, para se transformar numa espécie de
amanuense, de funcionário administrativo, embrutecido e «exangue» (Lima, 2008: 3). E isto tem consequências
particularmente gravosas em termos da «qualidade dos serviços» (Lopes, 2008: 6), pelo ritmo alucinante a que a sua
actividade tem que se alterar para responder às solicitações, sempre novas e diferentes, que vão surgindo, materializadas em
«reformas [que] se sucedem a um ritmo rápido, incoerente e desconcertante» (Jorge Lima, 1996: 55). Aliás, a profissão
docente que requer que o professor tenha «cada vez mais o papel de despertar o pensamento» (Faure, 1981, 141) adultera-se
pelo alargamento das suas funções que «os compele[m] a possuírem ainda um outro conjunto de qualidades (…):
competências de marketing, de relações públicas, de advocacia e de negociação.» (Jorge Lima, 1996: 57). Esta polivalência
que cada vez mais é exigida tem repercussões sobre a imagem pública dos docentes que, muitas vezes por manifesta falta de
preparação nas áreas em que cada vez mais são chamados a intervir, vêem a sua imagem posta em causa sentindo-se
envolvidos numa rede de opiniões que não só não contribui para criar condições ao desempenho das funções para que são
chamados como “legaliza” em termos de opinião pública as atitudes que possam vir a ser tomadas pois, tal como Amélia
Lopes (2008: 4) afirma «os discursos sobre a profissão constroem a própria profissão, nomeadamente ao nível simbólico do
estatuto profissional» sendo que «este conjunto de factores está na origem de fortes pressões públicas sobre os professores. A
principal assenta no argumento de que eles são responsáveis pelo mau funcionamento do sistema de ensino, o que nem
sempre é justo, porque muitas vezes eles são as primeiras vítimas das disfunções deste» (Jorge Lima, 1996: 61). Isto é porém
conveniente para facilitar a implementação de políticas baseadas numa lógica exclusivamente economicista como é a
legislada pelo Despacho nº 20 131/2008, de 30 de Julho que estabelece percentagens máximas para a atribuição de
classificações de mérito de Excelente (5%) e de Muito Bom (20%) aos docentes de cada escola com clara incidência nas
progressões individuais na carreira e passando a ideia de que há a necessidade de joeirar “os bons professores dos menos
bons” porque, de facto, e de acordo com a retórica ministerial, sendo os professores responsáveis pelo estado do ensino em
Portugal há que fazer reformas que incidam sobre eles e contra eles e não sobre o sistema de ensino, até porque como a
Ministra Maria de Lurdes Rodrigues contrapõe «tem-se dito que não se fazem as reformas sem os profissionais, mas a
história ensina-nos que não se fazem com» (Sanches, 2008: 5). Manuel Matos tinha já a esse respeito deixado perceber a
intencionalidade punitiva subjacente à reforma em curso ao dizer que: «ninguém contestará que o modelo de avaliação, que
foi recentemente consagrado na legislação, deve a sua eficácia à condição de ameaça implacável sobre o quotidiano da
carreira da classe docente, não tanto pelos seus efeitos materiais directos como, sobretudo, pelos mecanismos psicológicos
que acciona e pelas fantasmatizações simbólicas que desencadeia» (Matos, 2008: 8). E essas fantasmatizações têm como uma
das principais consequências a promoção de um tipo de sucesso alicerçado na passagem automática dos alunos – não
explicitamente decretada através de algum articulado legislativo mas praticada também devido às pressões que enxameiam o
quotidiano docente – e de que o estabelecimento de quotas para a classificação de docentes se assume, por todos, como
paradigma do modus faciendi dessa construção. A retórica oficial aponta a necessidade desse sucesso como uma forma de
democratizar a escola esbatendo discrepâncias não só de acesso, como também de sucesso. Afigura-se-nos justamente o
contrário e não podemos deixar de invocar, neste particular, o que já em 1998 Almerindo Afonso afirmava a esse propósito:
«Nada deverá, no entanto, contribuir para justificar […] que a escola básica se tenha tornado uma escola mais injusta e
selectiva: não há pior selectividade do que aquela que permite uma transição ou aprovação escolar com défices de
aprendizagem em conhecimentos essenciais quando se sabe que, mantidas as mesmas condições e causas que lhe deram
origem, elas serão necessariamente cumulativas ao longo de toda a escolaridade, muito provavelmente, irreversíveis»
(Afonso, 1998: 317).
Por tudo o que acima fica dito, atrevemo-nos a considerar o concertado modelo reformista que actualmente
perpassa a escola portuguesa como uma clara situação de mobying institucional generalizado que tem tido como reflexo
imediato e evidente o esmagador número de docentes que mensalmente pedem a sua reforma antecipada26 em manifesto

26
O Jornal de Notícias de 8 de Outubro de 2008 apresenta no parágrafo guia da notícia intitulada «Ritmo das aposentações docentes duplicou» o seguinte: «Em
2008 já se reformaram quase quatro mil professores e educadores de infância. E, apesar de perderem regalias, cada vez mais optam pela reforma antecipada. Só
no mês passado houve 510 docentes a reformar-se» (Jornal de Notícias, 2008: 2).

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Esta nota continua na página seguinte

634
estado de burnout, sendo, no dia seguinte, substituídos por algum dos 40.000 candidatos a professores que se encontra no
desemprego, mas cujas consequências a longo prazo estão longe de poderem ser agora percepcionadas. José Madureira Pinto
em artigo de opinião de 9 de Março de 2008 conclui uma breve análise da situação da escola portuguesa dizendo já nessa
altura que «a obsessão ”gestionária” do Governo no modo de conceber a actividade docente (actividade relacional por
excelência) tem o seu quê de anacrónico – e pode vir a ter consequências muito negativas, se não forem revistos alguns dos
seus fundamentos e modos de concretização» (Pinto, 2008: 41). Também António Nóvoa no seu discurso, a que fizemos
referência na nota 4, afirma, desta feita relativamente ao Ensino Superior, que «a estratégia da arrogância e do medo, do
controlo e da ameaça, até poderá ter sucesso a curto prazo, infelizmente, mas destruirá por muitos anos as forças vivas que
existem nas Universidades». Essa estratégia de dimensões que ultrapassam o espaço de que aqui dispomos foi por António
Barreto ironicamente denominada “Milagre”. «O ano lectivo de 2007/2008 ficará para sempre na história da educação em
Portugal. (…) Como foi possível? Tanto melhoramento em tão pouco tempo? De um ano para o outro? Melhores
professores? Melhores alunos? Novos métodos? Programas renovados? Mais tempo de aulas? Manuais mais bem elaborados?
Nova organização curricular? Professores mais empenhados e disponíveis para passar mais horas a ensinar Matemática? Mais
explicações privadas? Todas estas perguntas têm necessariamente resposta negativa. Nada disso era possível num ano, nem
para a maioria dos alunos e das famílias. (…) As expectativas criadas não são satisfeitas. As capacidades presumidas são

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Despacho nº 20131/2008, de 30 de Julho. Diário da República nº 146, II série.
Avaliação de Desempenho

635
falseadas. O desperdício social e económico é enorme. (…) Para tranquilidade dos contemporâneos e para desgraça das
gerações futuras» (Barreto, 2008: 41).

IV

Conclusão
Os tempos que se vivem são dos mais conturbados em termos de Educação que já em alguma época foram vividos.
Das tentativas de, no mundo, se padronizar a Educação, não obstante as diferenças culturais e até civilizacionais, à forma
administrativo-burocrática de criar mecanismos de colagem a essas manifestações de uniformização por imitação de
experiências de sucesso noutros países, Portugal vê-se transformado num imenso tubo de ensaio de conteúdo explosivo. Não
são real e devidamente tidos em conta ritmos nem níveis de desenvolvimento apesar de a Escola ser chamada a unir em si e
paradoxalmente o rigor da transmissão de conhecimentos pré-definidos e a necessidade da inclusão de crianças e jovens
oriundos das mais diversas proveniências sociais e económicas com vista ao «pleno desenvolvimento da personalidade do
aluno no respeito pela sua autonomia» (Delors, 2003: 135). Os desafios são, por essas razões, demasiado complexos para que
se pretenda incluir ainda uma outra valência, a de qualificar profissionalmente para um mundo do trabalho, onde esse
elemento é manifesta e crescentemente escasso. Com Stoer afirmamos - apesar de o texto a que nos referimos aqui ser de
1986 - que «a escola deveria ser o lugar onde professores e alunos conjuntamente tentam compreender como a sua sociedade
age sobre ela própria através do conhecimento» (Stoer, 2008: 109). A escola em Portugal não o tem conseguido fazer mas
passa crescentemente a noção – por via administrativa – de que o vem a conseguir. «As escolas dão diplomas e não
qualificações. Argumentar que deveriam dar tais qualificações é não só ingénuo como discriminatório» (Stoer, 2008, 110).
Isso é preocupante e, além de tudo, diz António Barreto, «o problema é que ninguém acredita!» (Barreto, 2008).

Paradoxos da “Autonomia” consagrada dos Agrupamentos de Escolas -Um olhar


sociológico-organizacional a partir das representações dos docentes de um
Agrupamento de Escolas.

Daniela Silva
Universidade do Minho
dsilva@iep.uminho.pt

Resumo: Esta comunicação enquadra-se num registo disciplinar da sociologia das organizações educativas no qual procuramos desenvolver
algumas dimensões teóricas do modelo político de análise das organizações. A partir dos contributos desta agenda, pretendemos analisar o
campo das relações entre as escolas/Agrupamentos de escolas e o Ministério da Educação. O estudo desta relação constitui objecto de estudo
numa perspectiva situada no plano mais macro-analítica. No entanto, na nossa comunicação, procuraremos analisá-la a partir das
representações dos docentes de um Agrupamento de Escolas do Ensino Básico estudado. Assim, o que procuramos centralizar no estudo
apresentado é, sobretudo, a análise de como os actores escolares, isto é, os professores percepcionam essa relação, e que lógicas presidem às
acções dos professores no contexto organizacional escolar, num contexto de autonomia consagrada no Decreto-Lei nº 115-A/98. A partir da
investigação empreendida, podemos constatar que o processo de implementação do “regime de autonomia” ainda se encontra mergulhado
num centralismo administrativo que bloqueia e inibe as iniciativas docentes.

Introdução
O estabelecimento das relações entre as escolas/Agrupamentos e o Ministério da Educação constitui um objecto de
estudo situado numa dupla perspectiva: no plano mais macro e micro analitico. Nesta comunicação pretende-se analisar esta
relação a partir sobretudo das representações dos docentes de um Agrupamento de Escolas (plano micro). Assim, o que
procuramos centralizar no estudo apresentado é, sobretudo, a análise de como os actores escolares, isto é, os professores
percepcionam essa relação e que lógicas presidem às acções dos professores no contexto organizacional escolar1.
O estudo da autonomia como instrumento potenciador de um maior poder político na organização escolar, coloca
novas pistas teóricas sobre o próprio conceito, sobretudo quando o Decreto-Lei n.º 115-A/98 se institui como “apologista” da
autonomia “consagrada” (Lima,1998) ou “decretada”(Barroso,1997). Contudo, também não é indiferente que este decreto se
encontre sob a alçada de uma administração centralizada, o que pode restringir e, no limite, anular a autonomia.

1
As metodologias de investigação utilizadas incluíram: inquérito por questionário aos docentes do Agrupamento, entrevistas aos docentes dos órgãos de
administração, observação do quotidiano escolar e das reuniões do Conselho Pedagógico e Assembleia do Agrupamento, conversas informais e análise
documental.

636
Na investigação empreendida, as relações entre o agrupamento Alfa com o Ministério da Educação são as que se
revelaram mais paradoxais. Integrado no âmbito da aplicação do “regime de autonomia” do Decreto-Lei n.º 115-A/98, o
Agrupamento Alfa tem vivenciado movimentos contraditórios em relação à materialização do conceito de autonomia.

1. Breves Considerações sobre o modelo político


A abordagem mecanicista, própria do modelo burocrático e das teorias racionais e funcionalistas de análise
positivista, não dá resposta à análise da complexidade da natureza humana no estudo das organizações. Como resultado, a
abordagem mecanicista nega a existência de qualquer liberdade de acção por parte dos actores organizacionais e crê numa
racionalidade funcional das organizações. Assim sendo, é necessário o recurso a outros modelos teóricos de análise para
compreendermos melhor toda a hermenêutica organizacional.
O modelo político concebe as organizações como “sistemas de actividade política” (Morgan, 1996:152), onde os
valores e a diversidade de interesses fervilham no quotidiano da actividade das organizações dando origem por vezes a
conflitos e à concepção de jogos de poder. Estes jogos de poder encontram-se escondidos no interior das organizações, sendo
por vezes ocultados pelos actores, que procuram mascarar e dissimular os seus interesses, estratégias e até conflitos. A
análise da actividade política não é transparente, encontrando-se mergulhada nos meandros da estrutura informal da
organização, ou nas palavras de L. Lima (1998), na “cripto-estrutura” organizacional. Decorrente da ruptura com a visão
unitária da organização, este modelo centraliza o papel político dos actores organizacionais na configuração da estrutura
informal organizacional. Nesta linha, L. Bolman & T. Deal (1989:109) referem que
“numa perspectiva estruturalista, as organizações são concebidas como sistemas racionais. A questão central é
saber como se desenha uma estrutura que seja apropriada para a persecução das propostas organizacionais. Os recursos
humanos também vêem as organizações como intencionadas para serem racionais mas enfatizam o mau funcionamento que
ocorre por uma má articulação entre as necessidades da organização e as necessidades individuais”.

Neste sentido, o “debate” e as “lutas” políticas protagonizadas pelos actores organizacionais desenham uma outra
estrutura paralela à estrutura formal, como referem L. Bolman & T. Deal (1989:109): “os objectivos organizacionais e as
decisões emergem de atitudes/processos de regateio, negociação e intriga de posições entre indivíduos e grupos”. Assim
sendo, a organização na perspectiva política é constituída por “ligações de indivíduos e grupos” (ibidem), que condicionam o
funcionamento organizacional.
O conflito constitui uma das vertentes mais estudadas no modelo micropolítico. Ignorado, sobretudo, na teoria
clássica da administração (Taylor, Fayol) e na teoria Weberiana, é com o desenvolvimento das perspectivas da sociologia
organizacional que o conflito se transforma no objecto de análise privilegiado.
Na perspectiva tradicional de conflito este é conotado de maneira depreciativa, negativa, associado frequentemente
ao conceito de violência, confusão, funcionando como um mecanismo prejudicial ao funcionamento eficaz e eficiente das
organizações.
É, sobretudo, na década de 70 que esta perspectiva negativa do conflito cede lugar a uma perspectiva positiva do
conflito, como refere L. Bolman & T. Deal (1989:119): “duma perspectiva política, o conflito não é necessariamente um
problema ou sinal que algo está errado na organização”. Esta mudança de perspectiva é acompanhada das vantagens oriundas
do conflito entre os actores organizacionais, visto como “um fenómeno natural” (Bush, 1995:73) e “inevitável” (Bolman &
Deal, 1989:119). Além disso, o conflito “não é um sintoma de desmembramento da organização” (González González,
1987:39).
Na mesma linha de pensamento, G. Morgan (1996:159) considera que “o conflito aparece sempre que os interesses
colidem” propondo até uma certa omnipresença do conflito no seio das organizações, podendo este “ser pessoal, interpessoal
ou entre grupos rivais e coalizões. Pode ser construído dentro das estruturas organizacionais, nos papéis, nas atitudes, nos
estereótipos, ou surgir em função de recursos escassos. Pode estar explícito2 ou implícito. Qualquer que seja a razão e
qualquer que seja a forma que assuma, a sua origem reside em algum tipo de divergência de interesses percebidos ou reais”
(ibidem). A própria origem do conflito é complexa, uma vez que os actores organizacionais encontram-se mergulhados numa
espécie de “sistema competitivo implícito na hierarquia” (ibidem) formal das organizações. T. Bush (1995:75) comunga
também desta posição, sobretudo quanto à origem do conflito, recordando que os “grupos de interesses perseguem os seus
objectivos independentes, que podem contrastar bruscamente com os objectivos de outras subunidades na instituição e que
levam a conflitos entre elas”.
Nesta acepção de conflito, podemos vislumbrar algumas das vantagens deste fenómeno no seio das dinâmicas
organizacionais. Na perspectiva de L. Lima (1998:66) “a conflitualidade [...] pode marcar os seus interesses e as suas acções
e, até, para o seu potencial de intervenção e mudança”. Esta visão é também partilhada por outros autores como C. Estêvão
(1998:186) ao afirmar que “os conflitos são normais e se constituem em factores significantes da promoção de mudança”. Em

2
Acrescenta ainda G. Morgan (1996) “Algumas vezes os conflitos gerados serão bem explícitos e abertos para que todos vejam, enquanto outras vezes
permanecerão sob a superfície de acontecimentos do dia-a-dia. Por exemplo, os relacionamentos em reuniões podem ser governados por diversas intenções
ocultas sobre as quais nem mesmo os participantes têm consciência. Em algumas organizações, as disputas podem ter longa história, fazendo com que decisões
ou acções no presente sejam delineadas por conflitos, rancores ou diferenças que os demais acreditavam esquecidos ou resolvidos há muito tempo”.

637
relação às diferentes manifestações do conflito, Gronn, citado por J. Blase (1991:9), considerou a existência de três tipos de
conflitos na análise organizacional: o conflito encoberto, o conflito manifesto e o conflito latente.
A definição complexa de tomada de decisões, onde a disputa constitui o motor para desencadear todo um
processo de forças e mobilização de diferentes tipos de recursos, a(s) estratégia(s) configuram-se como meios, caminhos a
que os actores recorrem para a prossecução dos seus interesses. Esta perspectiva, através do contributo conferido pela análise
estratégica, mobiliza as (des)articulações entre os jogos de influência manifestados pelos actores, que se desenvolvem
paralelamente com o jogo de autoridade formal da organização. No campo político da acção estratégica, os actores podem
mobilizar “estratégicas individuais, de grupo ou coligações no sentido de influenciarem o processo de tomada de decisões
para uma escolha preferida” (Gomes, 1993:68). Os actores organizacionais são considerados, nesta linha teórica, como
“actores políticos com as suas próprias necessidades, objectivos e estratégias para alcançar esses objectivos” (Bacharach,
1988:279).

2. As Relações entre Agrupamento de Escolas e Ministério da Educação: Constrangimentos Burocráticos e Resistência


Docente
Numa primeira instância, reflectir sobre a implementação da “autonomia” (tal como proclama o Decreto-Lei n.º
115) implica analisar o poder conferido (ou devolvido e não delegado) às escolas/Agrupamento pelo Ministério da Educação
nos diferentes domínios: administrativo, financeiro, pedagógico.
O estudo das concepções e lógicas de autonomia pressupõem a desocultação do conceito. Do ponto de vista
etimológico, autonomia deriva do conceito francês autonomie, que significa “direito de se reger pelas próprias leis”
(Machado, 1977:354). Esta definição vai ao encontro dos contributos de M. Weber (1983:108, negrito do autor) ao considerar
que, numa perspectiva sociológica, uma organização/associação pode ser “autónoma ou heterónoma; [...] Autonomia
significa, ao contrário de heteronomia, que a ordem da associação não é outorgada – imposta – por alguém fora da mesma e
exterior a ela, mas pelos próprios membros e nessa qualidade qualquer que seja a forma em que tal tenha lugar”. A
capacidade de os actores definirem a “ordem” numa organização e desta forma terem o “poder de se autodeterminar, de auto-
regular os próprios interesses - ou o poder de se dar a própria norma. [significa que em] sentido amplo, o ente público
autónomo exerce o seu poder de autonomia muito especialmente quando elabora os seus próprios estatutos e emana os seus
regulamentos” (Machado, 1982:8).
Esta ideia está também ligada à concepção de “auto-governo” (Barroso, 1997) de uma determinada organização.
Desta forma, entender a autonomia das escolas públicas básicas e secundárias corresponde linearmente à capacidade da
organização escolar produzir as leis pelas quais se rege, a qual implica a transferência de competências dos diferentes níveis
de administração para os órgãos da organização escolar. Neste sentido, entendemos, seguindo J. Barroso (2000:24) que a

“autonomia é sempre relativa e desenvolve-se no quadro de múltiplas dependências, de que se destacam: a tutela
dos diferentes serviços centrais e regionais do Ministério da Educação, as atribuições e competências das autarquias, os
direitos dos cidadãos (em particular dos alunos e suas famílias); os saberes, competências e direitos profissionais dos
professores”.

Então, na perspectiva do autor, o conceito de autonomia encerra em si diferentes dimensões, entre elas a dimensão
“ética, social e política” (ibidem) de forma a alargar o “campo de decisão” dos actores organizacionais, já que a redução da
autonomia à existência de um “diploma legal” será negligenciar a dimensão social da capacidade de agência dos actores
organizacionais.
A autonomia constitui o chavão do Decreto-Lei nº 115-A/98, sendo definida como “o poder reconhecido à escola
pela administração educativa de tomar decisões nos domínios estratégico, pedagógico, administrativo, financeiro e
organizacional, no quadro do seu projecto educativo e em função das competências que lhe estão consignados” (ibidem). Este
poder “reconhecido” (e não “devolvido”) à escola é auxiliado pela produção dos instrumentos de autonomia, nomeadamente
o projecto educativo, regulamento interno e plano anual de actividades.
Tendo em conta a investigação desenvolvida no âmbito do mestrado em Educação num Agrupamento de Escolas de
Braga (Silva, 2004), no inquérito aplicado aos professores, colocávamos a seguinte afirmação: “O Agrupamento aumentou o
poder de decisão em matérias relevantes face ao Ministério da Educação?”; à qual os inquiridos teriam de se posicionar em
relação ao seu grau de anuência. Assim, os dados obtidos foram expressos no sentido em que a maior parte dos docentes
(47,6%) discordavam da afirmação, contra apenas 21,2% de professores que concordavam. De acordo com os dados obtidos,
os discursos dos docentes revelam alguma ambiguidade relativamente ao poder de decisão do Agrupamento. Por um lado, os
professores consideram que há autonomia, sobretudo pelo Agrupamento produzir os instrumentos de autonomia. Por outro
lado, reconhecem que a construção da autonomia é boicotada pelos órgãos administrativos do Ministério da Educação.
Observemos, então, alguns dos discursos dos professores relativos à relação entre o Agrupamento e Ministério da Educação:

“Por um lado há autonomia, mas por outro não temos autonomia. Estou-me a lembrar de um exemplo em que
estivemos no passado a trabalhar no nosso projecto curricular de Agrupamento. Houve muitas reuniões e decisões analisadas,
debatidas e reflectidas por todos, tomamos uma série de opções a nível da escola, depois saíram umas circulares em Junho e

638
simplesmente não podemos fazer nada do que tínhamos pensado, foi tudo por água abaixo. Sinto e acho que quem trabalha
sentiu-se completamente desfraldado com essas situações. Foi todo um projecto que foi trabalhado, pensado e que toda a
escola participou, foi ouvida, tomamos opções e depois não podemos pôr nada em prática [...]. Abandonamos um bocado o
projecto porque o que tínhamos definido anteriormente teve de ser alterado. […] Portanto tudo o que tínhamos pensado foi
impossível de pôr em prática, houve uma série de questões e directrizes superiores que surgiram à última da hora. Isto foi o
que senti mais na pele” (Excerto da entrevista n.º1).

Este discurso sublinha o débil poder de decisão das escolas, bem como o forte pendor legislativo sobre as escolas
que impede as iniciativas dos docentes. A mesma realidade “sofreu” o regulamento interno do Agrupamento. Após ter sido
homologado pela Direcção Regional de Educação, surge o Decreto-Lei n.º 30/2002, de 20 de Dezembro, que define um
conjunto de alterações a introduzir no regulamento interno. Desta maneira, o processo de implementação da autonomia das
escolas, sobretudo através da constante reformulação e posterior aprovação do regulamento interno por parte dos organismos
desconcentrados do Ministério da Educação, “boicota a escassa autonomia”, como refere este actor:
“O CAE toma um papel que se compreende como estrutura intermédia, toma um papel boicotando um pouco a
autonomia. Na alteração do regulamento interno, penso que já se sofreu uma alteração e vai sofrer outra” (Excerto da
entrevista n.º 3).

Outros actores identificam as relações entre Agrupamento e Ministério da Educação sobretudo como “disfunções”
burocráticas. A demora, a lentidão das decisões a que a própria lei obriga a que sejam tomadas pelos organismos do
Ministério da Educação constitui também um factor disfuncional no próprio sistema, como observa o seguinte entrevistado:
“Depois há situações que nós vemos realmente que a própria CAE não sabe, mas também a própria DREN muitas
vezes mostra-se indecisa, demorada, demora muito tempo a decidir. Aquele aluno por causa de uma nota que foi contestada
por causa de Educação Física. [...] Nessa altura falou-se [no Conselho Pedagógico,] duma situação que já está em trânsito do
ano lectivo anterior, uma contestação de uma nota. Ainda não estava resolvida. Entretanto não sei mas também não é de
admirar nos últimos tempos tem estado na ordem do dia a celeridade da resolução de problemas. Isto agora não é excepção,
não é. Mas sinto assim esta situação” (Excerto da entrevista n.º 3).

A impessoalidade e o carácter normativo, típicos da burocracia no domínio destas relações, também são registados
por outro actor:
“O Ministério da Educação não conhece as escolas que tem, esta é a primeira coisa porque não há duas escolas
iguais e por isso é impossível o Ministério conhecer... Mesmo agora, com os Agrupamentos, é impossível conhecer como as
coisas são. Portanto, a partir daí faz leis iguais para todos e depois as escola têm que se adaptar. Há muitas situações em que
eu preferi interpretar aquilo da maneira como entendia e decidir, entendia que uma pessoa razoável, não é?. Não ia entrar por
caminhos de choque directamente com o CAE, a DREN, os serviços centrais de uma maneira geral, mas dentro daquilo que
era possível eu sempre lutei... Havia colegas que quando queriam uma coisa iam perguntar ao CAE e quanto mais se pergunta
para o CAE pior é, porque o CAE ou não sabe ou então não pode sair estritamente daquilo que está escrito. [...] Eu,
pessoalmente, sempre evitei obter informações e esclarecimentos.”(Excerto da entrevista n.º 8).

Todavia, e como se depreende deste discurso, nem sempre os professores agem de acordo com a própria lei. L.
Lima (1998) demonstrou claramente esta posição, sobretudo quando propôs o conceito de “infidelidade normativa” no
domínio organizacional. Segundo esta linha, podemos concluir que os docentes, por um lado, seguem um registo marcado
por uma dependência em relação à administração central mediada pelas constantes “perguntas” dirigidas às estruturas
intermédias, procurando reproduzir as normas e procedimentos estatais. Por outro lado, podem adoptar comportamentos mais
congruentes a “autonomia clandestina” (Barroso, 1997), que os actores organizacionais mobilizam para a produção de novas
regras organizacionais.
Na linha que temos vindo a seguir, a autonomia do Agrupamento em relação ao Ministério da Educação era, por
um lado, esperada como uma das esperanças potenciadoras de maior politicidade no campo escolar, embora, por outro lado,
poderia constituir factor de resistência, sobretudo quando esta autonomia se encontra, paradoxalmente, hiper-regulamentada
por parte do Ministério da Educação.
O excesso de normativos a que a administração já habituou os professores não deixa também de estar presente no
processo de autonomia. A “autonomia” hiper-regulamentada pela administração central também faz parte do quotidiano do
Agrupamento observado. Daí que os docentes entrevistados consideraram de forma unânime que o Decreto-Lei n.º 115-A/98
não desenvolveu, do ponto de vista prático, mudanças significativas no quotidiano do Agrupamento, conforme esclarece um
docente:

“Não teve assim grande impacto, no meu ponto de vista. O impacto do aparecimento do 115 foi interessante! Nós
acreditamos que íamos ter autonomia, acreditamos que a escola ia poder decidir mais por si própria. Só que logo a seguir ao
115 apareceram não sei quantas explicações ao 115, e a pontos do 115 e mais leis, e logo começou a perceber-se que a dita
autonomia estava muito controlada, que ia haver sempre muito controlo sobre aquilo que se poderia decidir nas escolas. Mas,
inicialmente pensou-se que vinha aí qualquer coisa de diferente, foi a primeira ideia que tivemos, uma expectativa assim mais

639
positiva em relação às decisões [...] Logo a seguir, veio tudo controlado, através decretos-lei que saíram e vieram
complementar as ideias do 115. E depois havia também uma comissão de acompanhamento da autonomia nas escolas, quer
dizer, acompanhavam as decisões. No fundo, quando não concordavam, lá vinha uma carta a explicar que aquilo não estava
de acordo com o modelo, etc. Foram mais expectativas, penso eu, do que propriamente conclusões práticas” (Excerto da
entrevista n.º 9).

A denúncia de uma “autonomia” altamente controlada constitui um dos obstáculos ao processo de implementação
da mesma, reforçando o pendor burocrático através da formalização das normas e procedimentos a adoptar pelos professores.
A legislação subsequente ao Decreto-Lei n.º 115-A/98 veio interferir nas dinâmicas que os docentes começavam a
empreender. Um exemplo destes bloqueios, o qual observamos no ano lectivo de investigação, refere-se ao processo de
ordenamento da rede escolar, que vem redimensionar a constituição dos Agrupamentos. Nesta linha, a regulamentação por
parte do Ministério da Educação, sobretudo no final do ano lectivo, aquando da publicação do Despacho Conjunto n.º 13
313/2003 de 8 de Julho3, vem redefinir e até reiterar o domínio da administração central face às escolas.
A publicação deste despacho originou distintos focos de resistência entre os docentes do Agrupamento que
denunciam a existência de um conflito explícito e manifesto entre Agrupamento e Ministério da Educação. Para além da
inclusão de mais uma escola do 1.º ciclo no Agrupamento, as indicações fornecidas pelo CAE iam no sentido de, na
sequência dessas alterações, se dissolvesse o actual Conselho Executivo para dar lugar a uma Comissão Instaladora, que
como ironicamente referiu a presidente do Conselho Executivo, seria “para instalar os desinstalados” (Notas de campo do dia
18 de Junho 2003, reunião do Conselho Pedagógico). As reacções a esta medida revestiram a forma de uma resistência
manifesta, declarada. Vários diálogos foram tecidos numa reunião do Conselho Pedagógico, onde ainda a intranquilidade e o
desagrado iam ganhando cada vez mais expressão, como demonstra o seguinte desabafo da presidente do Conselho
Executivo, registado nas “notas de campo”:

“temos de dar inicio a isto! Se me perguntarem o que eu queria agora era apresentar a minha demissão. Quando eu
me propus, [à presidência] foi para dar estabilidade à escola e chegar ao fim dos três anos e ter de haver mais alguém em
termos de presidência. O meu mandato vai ser interrompido... Parece uma brincadeira. [...] Vão ter de me exonerar”.

A perplexidade, a “revolta” em relação ao Ministério da Educação e a solidariedade para com a presidente do


Conselho Executivo eram os sentimentos que iam sendo expressos pelos diferentes membros do Conselho Pedagógico.
Começaram, então, a delinear algumas propostas para o processo de fusão entre o Agrupamento e a escola do 1.º ciclo. Além
disso, decorrente da aplicação do Despacho, os órgãos de administração do Agrupamento vão ser alvo das mudanças
previstas pela introdução de mais uma escola do 1º ciclo no Agrupamento. Os órgãos que sofrem estas mudanças são,
sobretudo, o Conselho Executivo e a Assembleia do Agrupamento. Em relação a estas alterações, uma das professoras
entrevistadas afirma:
“deixa de existir Conselho Executivo, a Assembleia de Escola foi dissolvida. Depois o Conselho Executivo teria
que arranjar uma situação para que alguém fosse nomeado para avançar para a comissão executiva instaladora. A nossa
posição, das quatro, foi que nós não avançaríamos para a comissão executiva instaladora. A Assembleia de Escola foi extinta,
dissolvida [...]” (Excerto da entrevista n.º 4).

A dissolução destes dois órgãos vem lançar a instabilidade no Agrupamento conforme observamos. Das conversas
informais que mantivemos com alguns professores nesta altura surgiam várias exclamações de desilusão, apontando para o
défice democrático4. Por exemplo, um docente afirmou que “o projecto democrático mata-se a si próprio!” (Diário de Campo,
10.07.2003).
No Conselho Pedagógico também se verificou a existência de comportamentos de resistência face a esta medida do
Ministério da Educação5. Na penúltima reunião deste Conselho, em Julho, foi apresentada, por parte de um professor

3
O ordenamento da “rede educativa” previsto para o ano lectivo 2003/2004, tinha sido anteriormente anunciado já por uma reunião existente entre os
coordenadores do CAE de Braga e os presidentes dos Conselhos Executivos que teve lugar a 18 de Junho de 2003. Na reunião de 11 de Junho do Conselho
Pedagógico, a presidente do Conselho Executivo informou os restantes membros do órgão sobre a possibilidade de alargamento do Agrupamento, incluindo mais
uma escola do 1.º ciclo, conforme registamos nas “notas de campo”. No entanto, o facto é que na reunião do dia 18, uma semana após, esta hipótese transformou-
se em realidade, ainda que de um ponto de vista que os professores consideravam “informal”, ou seja, sem suporte legal. De acordo com os dados recolhidos pela
observação, e como se pode ler na acta dessa reunião, “no que diz respeito à reorganização do Agrupamento, a informação prestada refere que o processo teve
início a 13 de Abril, embora sem qualquer documento escrito ou assinado” por parte do Ministério da Educação. Na mesma reunião do Conselho Pedagógico, a
presidente do Conselho Executivo afirmou que “temos que nos preparar para receber a escola do 1.º ciclo neste Agrupamento”(Notas de campo, reunião do
Conselho Pedagógico, 11 de Junho de 2003).
4
As propostas definidas pelo CAE não tinham aceitação. Conforme registamos no “diário de campo”, um dos docentes referiu que “o CAE para redimensionar o
Agrupamento propôs eleições e a constituição de uma comissão instaladora. [...] Devíamos tomar uma atitude”. Os professores constatam e reconhecem que “não
temos a nossa autonomia!”. O projecto de construção de autonomia saía defraudado: “Tudo está em causa e os documentos que elaboramos. [...] Todos os
instrumentos de autonomia perdem a validade a partir da inclusão de outra escola. [...] Tudo se dissolve... e a Assembleia também” (Diário de Campo,
11.06.2003).
5
A oposição a esta medida era unânime entre os membros do Conselho Pedagógico e do Conselho Executivo. Nesta reunião questionou-se o próprio poder do
Ministério de Educação, bem como a legalidade destas medidas, conforme comprovamos pelos seguintes registos no “diário de campo”: “quem manda, pode; há
decisões que têm de ser tomadas”; “Eu não conheço lei que anule o presidente do Conselho Executivo”. Mas a resignação acaba por tomar conta, sobretudo na
fase final, constatando que “depois disto tudo... vem aí uma comissão instaladora para depois ainda vir o gestor. Então, que venha já” (ibidem). Finalmente, ficou
decidido, conforme observamos e ficou registado em acta, que: “o Conselho Pedagógico manifesta o seu desagrado pela forma como se pretende fazer a
Esta nota continua na página seguinte

640
pertencente a este conselho, uma proposta de demissão geral dos elementos do órgão como forma de oposição activa. No
âmbito da justificação apresentada pelo professor estava presente a solidariedade para com os outros órgãos. A proposta foi a
votação mas não teve a aceitação por parte dos restantes elementos. Este resultado é assim justificado por uma das
professoras presentes do seguinte modo:
“[...] o Conselho Pedagógico tomou a posição, no início. [...] Portanto, houve uma proposta do professor [nome]
para que o próprio Conselho Pedagógico se demitisse. Só que a proposta chumbou porque as pessoas achavam que tinham
sido eleitas pelos colegas e que a extinção do Conselho Pedagógico não iria dar em nada, antes pelo contrário, iria erradicar o
trabalho da comissão executiva instaladora que entrasse. Achavam que a proposta podia ser entregue ao CAE, à DREN mas
numa situação não de demissão mas de dizer que estavam contra todo o processo” (Excerto da entrevista n.º 4).

Apesar de a proposta não ter vingado, este facto não impediu que esse membro se demitisse do cargo que estava a
ocupar. Contudo, e apesar da autonomia ser altamente controlada, os professores desenvolvem simultaneamente estratégias
de protecção face à relação de dominação do Ministério da Educação. Nesta relação entre Ministério da Educação e
escolas/Agrupamento, os docentes adoptam um conjunto de estratégias de forma a contrariar a tendência hegemónica do
Ministério da Educação.
No âmbito das estratégias desenvolvidas pelos docentes, estes consideram que a Assembleia do Agrupamento
enquanto órgão congregador de diferentes representantes e actores da comunidade educativa, constitui o órgão com mais
legitimidade no processo de tomada de decisões, conforme registamos:
“A divisão do poder, portanto, se não queremos que a escola continue a ser mais um departamento do Ministério da
Educação, eu penso que é interessante [a existência da Assembleia]. É por isso que achei que devia participar na assembleia,
achei que dividindo as decisões e reforçando, no fundo, a tomada de decisão, dando peso aos representantes, portanto, o facto
de ter pais, pessoal não docente, autarquia, etc., a dar peso às posições, no meu ponto de vista, era interessante e poderia
reforçar as decisões que íamos tomar, perante o Ministério da Educação, perante a DREN. […] penso que a tomada de
decisão era mais fundamentada, tinha outra representatividade e reflectia muito mais a vontade das pessoas que trabalhavam
no Agrupamento” (Excerto da entrevista n.º 9).

A diversidade de actores presente na Assembleia do Agrupamento vem reforçar o poder dos docentes na relação
com o Ministério da Educação, nomeadamente através da participação dos representantes dos pais e encarregados de
educação e dos representantes da autarquia e juntas de freguesia. A integração destes elementos vem contribuir para a
afirmação da Assembleia do Agrupamento enquanto órgão político no quadro das relações estabelecidas com o Ministério da
Educação. Desta forma, as decisões tomadas na Assembleia do Agrupamento ganham uma outra dimensão, como nos elucida
o seguinte docente:
“Na prática, as coisas continuam na mesma... Se os órgãos se entenderem, se houver uma mesma linha de ver as
coisas, talvez o executivo fique com as costas mais salvaguardadas em algumas decisões que venha a tomar. Nós,
anteriormente, apoiávamo-nos no Conselho Pedagógico, agora o executivo tem as costas salvaguardadas pela Assembleia de
Escola e portanto também a DREN ou o CAE não querem levantar assim muito certas questões... porque na Assembleia de
Escola estão os pais, está a autarquia. O Ministério também mede até que ponto pode esticar as coisas. Eu acho que no dia-a-
dia também não noto grandes diferenças antes e depois do 115” (Excerto da entrevista n.º 8).

O discurso que apresentamos testemunha uma certa tendência para considerar que a participação dos representantes
das juntas de freguesia e dos pais e encarregados de educação constituem parceiros aliados dos professores nas relações com
o Ministério da Educação. Contudo, no âmbito desta relação, estes protagonistas desempenham um papel instrumental dos
interesses comuns aos professores. Numa relação assimétrica de poderes entre Agrupamento de Escolas e a administração
central, os docentes aliam-se aos pais e autarquias para prosseguirem com os seus interesses. Neste sentido, estes actores
poderão assumir o papel de escudos protectores dos docentes face à posição fragilizada destes na relação com a
administração central.
A participação destes “novos” actores no contexto escolar poderá, por um lado, possibilitar a construção mais
ampla de uma comunidade educativa; e por outro lado, esta participação poderá constituir uma estratégia defensiva para
legitimar as decisões tomadas dentro do campo escolar face à administração central. Assim, no que se refere às relações com
a administração central, a Assembleia do Agrupamento, através da presença de diferentes protagonistas ganha uma nova
visibilidade na agenda organizacional, sobretudo através da construção de estratégias defensivas.

Considerações Finais
A partir da investigação empreendida, podemos constatar que o processo de implementação do “regime de
autonomia” proporcionado pelo Decreto-Lei nº 115-A/98 ainda se encontra mergulhado num centralismo administrativo que

integração da escola do 1.º ciclo de [nome]. Este órgão não discorda da integração da citada escola, mas, face ao exposto, pretende que a mesma se faça com
tempo, de modo a permitir uma reorganização do Agrupamento de forma cuidada. Um documento com este teor irá ser enviado ao CAE, dando conhecimento da
posição tomada por este Conselho Pedagógico” (excerto da acta n.º 11 do Conselho Pedagógico).

641
bloqueia e inibe as iniciativas docentes. As argumentações que prevaleceram nas relações Agrupamento-Ministério da
Educação resultam de um compromisso entre a lógica de reprodução estatal alternando, por vezes, com movimentos de
produção mais congruente com o modelo político, assente em actos de resistência, conflito e desenvolvimento de estratégias.
No entanto, embora o Decreto-Lei no plano retórico centralize o conceito de autonomia - o que à partida nos indicia
uma tentativa de mudança da administração do sistema educativo para um pendor mais congruente com a descentralização -
na prática, o mesmo não teve impacto. L. Lima (2000:71) tendo em conta os pressupostos e a implementação deste Decreto-
Lei argumenta que “em todo o caso, parece relativamente descrer na possibilidade de uma mudança profunda e global da
administração da educação, isto é, na vontade política do governo para descentralizar e vir a reconhecer efectiva autonomia
às escolas”. A ausência de um plano de descentralização administrativa do sistema educativo, crucial para o desenvolvimento
da autonomia das escolas, é susceptível de diferentes interpretações. Seguindo a linha de C. Estêvão (1999:148)
considerámos que
“Não obstante o decreto convocar o princípio da descentralização, o que, à partida, pode garantir a inclinação para
o primeiro bloco de valores [democratização, igualdade de oportunidades e equidade], há que saber se esta mesma
descentralização, sobretudo num contexto de escassez de recursos, não se transformará numa técnica de gestão (em que a
responsabilidade pela captação dos recursos recai sobretudo sobre a sociedade civil), com efeitos claros ao nível da tão
apregoada ‘qualidade educativa’ e de versões mais radicais de justiça”.
Assim sendo, a emergência da retórica da descentralização e da autonomia convivem com o desenvolvimento de
uma lógica mais gerencialista e com práticas hiper-regulamentadas. A luta por uma “verdadeira” autonomia das escolas
implica combater o conceito de “autonomia” como uma mera “técnica de gestão” (Lima,1995) ao serviço do Ministério da
Educação. Com efeito, o ideal da autonomia poderá ficar comprometido, como um chavão sem tempo e sem lugar.

Referências Bibliográficas
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Legislação
Decreto-Lei n.º 115 – A/98, de 4 de Maio
Decreto-Lei n.º30/2002, de 20 de Dezembro
Despacho Conjunto 13 313/03 de 8 de Julho

642
Problemas de Administração Educativa em Portugal e Brasil: o Olhar Académico

Guilherme Rego da Silva


Universidade do Minho
grs@iep.uminho.pt

Resumo: O elenco dos problemas de administração educativa, tende a apresentar diferenças consoante quem o define. Faz-se aqui o
recenseamento dos problemas de administração da educação em Portugal e no Brasil, segundo a identificação e definição dos académicos e
da cultura académica, dos dois países, partindo da análise de conteúdo das comunicações de dois congressos luso-brasileiros de
administração educacional. O estudo dos congressos científicos nesta perspectiva, e noutras, deixa muito campo à exploração, tanto pela
diversidade e riqueza da informação que produzem, como pelo facto de que, por algum motivo, não costumam ser objecto de estudo
sistemático. Neste texto, fazemos uma leitura exploratória, fundamentada na análise de conteúdo, à procura daquilo que os textos das
comunicações tendem a definir como problema no âmbito da administração educacional, nos dois países e, eventualmente, também as suas
possíveis soluções. Assim, e como resultado do trabalho, para além da apresentação de uma proposta metodológica, também faremos uma
apanhado do diagnóstico de problemas e de soluções que os congressistas quiseram identificar e definir. O estudo equaciona uma
problematização do saber académico, manifesto nos congressos e respectivas comunicações, numa perspectiva de sociologia da ciência. Os
congressos tendem a ser vistos como um espaço para analisar problemas e apresentar soluções. No campo da administração educacional, os
problemas em análise podem ser referentes a qualquer uma das componentes: a investigação, o ensino e a prática. Este texto focaliza os
problemas identificados nas práticas administrativas no campo da educação.

1. Apresentação
O elenco dos problemas educativos, de algum modo conectáveis com questões de administração, tende a
apresentar-se diferente consoante quem o define. Esta comunicação faz o recenseamento dos problemas de administração da
educação em Portugal e no Brasil, segundo a identificação e definição dos académicos e da cultura académica dos dois
países, através de uma análise de conteúdo das comunicações apresentadas a dois congressos luso-brasileiros de
administração educacional.
Trata-se de uma leitura exploratória, fundamentada numa análise de conteúdo de base tipológica e categorial, à
procura daquilo que os textos das comunicações, ou os seus resumos, tendem a definir como problema, no âmbito da
administração da educação nos dois países e, eventualmente, também as possíveis razões e soluções que os autores apontam
para os referidos problemas. Assim, e como resultado do trabalho, para além da estruturação gradual de uma proposta
metodológica, que pode ser adaptada e transposta para outros objectos de análise semelhantes, também fazemos uma síntese
do diagnóstico de problemas, e de soluções, que os congressistas quiseram identificar e definir, ao mesmo tempo que iremos
focalizar a nossa atenção sobre esse fenómeno social, diverso e complexo: o congresso.

2. Fundamentação e desenvolvimento
O texto poderá ainda gerar um outro efeito, o de valorizar os congressos, e as suas respectivas comunicações, como
fenómenos relevantes para o conhecimento de uma comunidade académica, neste caso a da administração educacional, e do
modo de produzir e divulgar os seus estudos, conclusões e pontos de vista. Procura-se, em boa parte, transpor para as
comunicações alguma da atenção que a sociologia da ciência tradicionalmente dá aos textos publicados nas revistas
académicas especializadas, que cedo começaram a ser analisados; em primeiro lugar pelas suas referências bibliográficas,
indicador tradicional na sociologia da ciência, o qual fez impulsionar os estudos bibliométricos (Borgman, 1990) e a análise
das redes informais de interacção social na comunicação científica, sustentando o desenvolvimento do conceito de
“faculdades invisíveis” (Price, 1973). Mais tarde, foi o próprio conteúdo dos textos publicados nas revistas científicas que
veio a tornar-se objecto de investigação sistemática, como acontece até numa das comunicações que integram o nosso corpus
de análise (Castro & Werle, 2002). É esta atenção que queremos agora aplicar às comunicações dos dois congressos; não
procedendo, nesta fase preliminar, a uma análise bibliométrica, mesmo que ela já se comece a convidar para este estudo, o
qual poderá vir a integrar num momento posterior.
Os congressos, não sendo apenas palco para os académicos, são-no também para os “práticos do terreno”, o que
neste caso se refere àqueles que trabalham no campo da administração da educação, seja ao nível das escolas ou outras
organizações educativas, seja no nível de administração central, regional ou local. Neste caso, falamos dos administradores
que, mesmo tendo fortes contactos com a academia, essa não constitui a sua primeira identidade. Mesmo esta presença, mais
ou menos significativa, daqueles cujas funções os identificam mais com a administração educacional como prática, não retira
aos congressos o seu carácter fundamentalmente académico, uma vez que são maioritariamente os membros da “academia”,
aqueles cujas funções os identificam com a administração educacional como disciplina (o ensino) e como área de construção
do conhecimento (produção teórica e investigação), que acabam por ter mais peso nas organizações promotoras dos
congressos e, por essa via, definem a temática e agenda, o local e data, e aprovam os resumos e comunicações. Como vamos
ver, a presença destes também é mais significativa entre os congressistas que fazem comunicações. A participação dos não
académicos, mesmo que em clara minoria, como iremos ver (e que em parte também podem ser encarados como académicos,

643
principalmente quando surgem enquadrados por estes, no âmbito de processos de orientação de mestrado e doutoramento),
dão o contributo do terreno, das práticas; o que é mais importante ainda num área como a administração da educação, que
tem uma forte componente prática, transformando assim o congresso em interface para uma circulação de saberes entre a
ciência e a prática administrativa (Derouet, 2000) que em muito contribui para a riqueza destas iniciativas e para justificar a
sua existência, permitindo conceber a sua análise como fenómeno social total (Lévi-Strauss, 2001; Mauss, 2001) no campo
de estudos da sociologia da ciência. É em parte nessa perspectiva que idealizamos a análise, também como observador e
participante dos dois congressos, pois “que o facto social seja total não significa unicamente que tudo o que é observado faça
parte da observação; mas também, e sobretudo, que numa ciência em que o observador é da mesma natureza que o seu
objecto, o observador é ele próprio uma parte da sua observação.” (Lévi-Strauss, 2001, p. 24).
O estudo dos congressos científicos, deixa muito campo à exploração, tanto pela diversidade e riqueza da
informação que produzem, como pelo facto de que, por algum motivo, não costumam ser objecto de abordagem sistemática a
qual, em ocorrendo, equaciona sempre uma problematização do saber académico, bem como das formas de interacção social
dos seus membros, dos seus modos de partilhar as diferentes dimensões do conhecimento, e do poder que lhe está associado.
No final, o congresso surge como um ritual de afirmação/exibição do valor do conhecimento produzido, das pessoas e dos
grupos/instituições, e das suas interacções sociais e, por isso, estamos conscientes de que os congressos reclamam para si
mesmos um olhar etnográfico, que vá além da análise clássica da produção escrita.
Seria possível enveredar por diferentes linhas de análise para estudar os congressos, mesmo que utilizando como
metodologia apenas a análise do texto escrito das comunicações e seus resumos: o levantamento e análise das referências
bibliográficas e, particularmente, das referências cruzadas, ou a classificação das temáticas abordadas nas conferências e
comunicações. Aqui, vamos organizar a análise numa outra perspectiva, a qual corresponde ao que se costuma conceber
como sendo uma das suas funções mais clássicas: os congressos como um fórum para analisar problemas e debater soluções.
Os dois Congressos, aqui em observação, são o IIº Congresso Luso-Brasileiro, Política e Administração da Educação:
Investigação, Formação e Práticas, que se realizou na Universidade do Minho, nos dias 18, 19 e 20 de Janeiro de 2001 e o IV
Congresso Luso-Brasileiro de Política e Administração da Educação, O Governo das Escolas: os novos referenciais, as
práticas e a formação, que teve lugar na Universidade de Lisboa, nos dias 12, 13 e 14 de Abril de 2007. A organização dos
dois congressos ocorreu numa acção coordenada do Fórum Português de Administração Educacional e da brasileira ANPAE
(Associação Nacional de Política e Administração da Educação), em associação com a entidade que os concretizou no
terreno, em 2001 o Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, Departamento de Sociologia da Educação
e Administração Educacional, e em 2007 a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.
Escolhi estes dois congressos porque ambos se realizaram em Portugal, o que os torna assim mais facilmente comparáveis, e
porque participei nos dois como congressista, com comunicação (Silva, 2002, 2007), tendo assim um conhecimento destes
dois eventos que ultrapassa em muito a simples análise de conteúdo de resumos e textos das comunicações, mesmo que seja
fundamentalmente da análise dos referidos resumos e textos que vamos tratar aqui. No caso do II Congresso, a análise fez-se
com recurso aos textos das comunicações, que foram publicados em CD-ROM e no caso do IV Congresso, com recurso
apenas aos textos dos resumos, uma vez que, à data em escrevemos, ainda não foram publicadas as respectivas Actas. De
qualquer modo, e no caso deste congresso, seria pouco produtivo fundamentar a análise nos textos integrais das
comunicações, em lugar dos resumos, devido ao seu número considerável (145). Optei por incluir no estudo os resumos de
todas as comunicações, mesmo sabendo que, pelo menos uma, não chegou a ser apresentada efectivamente.

3. Metodologia e caracterização do corpus de análise


A análise dos textos, em termos da sua formulação dos problemas de educação com incidência administrativa e,
mais especificamente, com relevância nas áreas de política educativa e sociologia das organizações educativas, fez-se por
uma metodologia de categorização, inspirada na análise de conteúdo (Mucchielli, 1991; Bardin, 1994) e também de acordo
com os princípios referentes à análise tipológica (Schnapper, 2000). A informação central recolhida foi a referente à
enunciação dos problemas e ao seu enfoque teórico, político e ideológico, que enquadra a definição dos mesmos e muitas
vezes também a problemática referente às suas causas e possíveis soluções. Para alem disso, também foi recolhida outra
informação genérica de caracterização, referente a cada comunicação, nomeadamente a nacionalidade do autor ou autores, a
sua filiação institucional, o congresso em que foi apresentada e uma breve síntese da mesma. Toda a informação foi
organizada informaticamente numa base de dados muito simples cujos campos foram configurados para o efeito. É agora
possível, a partir dessa base de dados, avançar com algumas informações pertinentes referentes à informação recolhida e
organizada e, nas secções seguintes do trabalho, passar para a apresentação do essencial deste texto, referente à definição dos
problemas e da contextualização geral em que cada comunicação os enquadra. Além de apresentar a definição dos problemas,
a constituição desta base permite-nos também apontar algumas informações de contexto sobre os dois congressos, que são de
interesse para obter uma melhor percepção desses dois eventos, como manifestação social e cultural, que expressa uma
determinada comunidade, aplicando aqui com alguma liberalidade o conceito de comunidade científica de Kuhn (2000),
permitindo igualmente compreender melhor o enquadramento dos textos. Aqui reside uma boa parte do interesse destes
congressos que, com o tempo, vão configurando uma comunidade comum, construção que vai sendo possível por via da
moderna facilidade de comunicações e transportes, a que se junta a tradicional proximidade de língua e cultura, dando

644
continuidade nas últimas décadas àquilo que já era anteriormente a prática portuguesa de aquisição de livros brasileiros, os
quais desde o início do século XX foram integrando as bibliotecas de escolas e de alguns particulares (Silva, 1996).
Ainda, num outro apontamento relativo à metodologia, foi apontado apenas um problema, ou um indicador de uma
determinada tipologia de problemas para cada uma das comunicações. Isto foi possível porque as categorias criadas foram
bastante abrangentes, e porque cada uma das comunicações está relativamente centrada em problemas de uma determinada
tipologia. Como é costume fazer depois de tomada esta opção metodológica, às comunicações que apresentam problemas de
diferentes tipologias foi-lhes atribuída a tipologia dominante. A metodologia baseia-se nas ideias de análise de conteúdo e
também nas de análise tipológica (Schnapper, 2000). Foram apontados problemas que vão dos alunos aos professores,
passando pelas estruturas organizativas e a comunidade envolvente.
A elaboração das contagens e a apresentação dos dados e elaboração dos quadros respectivos levaram apenas em
conta as comunicações onde foi apurado algum problema, procedendo do modo seguinte: do total de 212 comunicações
levamos em consideração apenas as 136 (64,2% do total) onde foi possível apurar a presença de algum tipo de problema, e
assim estas passam a ser consideradas a totalidade daquelas onde há definição de problemas. Nas 136 comunicações que
apontam problemas, procurou-se agregar definições de problemas semelhantes sob uma designação comum para evitar
repetição de ideias e um número excessivo de problemas definidos apenas por uma comunicação. Esta mesma metodologia
foi usada na construção do Quadro 3, referente a ideologias de suporte e teorias de explicação e solução dos problemas.
O quadro seguinte compara um conjunto relevante de indicadores de caracterização da totalidade das 212
comunicações que foram apresentadas aos dois congressos, dando os valores conjuntos, os valores de cada um dos
congressos em separado, e ainda os indicadores relativos ao pais e instituição de referência dos comunicadores:

Quadro 1 – Alguns indicadores de caracterização das comunicações

Países Instituições
Congresso Comunicações Brasil Portugal Outros Ensino Superior Ens. Básico e Secundário Outros
IIº (2001) 67 40 25 2 56 4 7
IVº (2007) 145 104 37 4 123 6 16
Total 212 144 62 6 179 10 23

O Quadro 1 sintetiza um conjunto de informações recolhidas sobre o corpus documental. Ele permite ver o
crescimento do número de comunicações entre os dois eventos, apenas espaçados de seis anos: houve um crescimento de
116,4% no número de comunicações, ao passar de 67 para 145, e a percentagem de comunicações apresentadas apenas por
portugueses, reduziu-se de 62,5% para 35,6%. Estes dois valores, resultam da crescente participação de docentes e
investigadores brasileiros, o que é aqui ainda potenciado pelo facto de o congresso de 2007 se realizar em Lisboa, local mais
acessível para eles, em termos de transportes. O número de “outros”, atribuído na nacionalidade, é residual e refere-se a
situações em que a comunicação é assinada por portugueses e brasileiros conjuntamente, ou envolve outras nacionalidades
diferentes dessas duas. Quanto à filiação institucional dos comunicadores; no total das 212 comunicações dos dois
congressos, 84,4% (179) dos comunicadores dão os estabelecimentos de ensino superior como referência institucional,
mesmo que este valor não possa ser apreciado rigorosamente pois que uma pessoa que trabalha num escola do ensino básico
e secundário e está a apresentar uma comunicação inserida na preparação de tese de mestrado ou doutoramento, ou no âmbito
de um projecto de investigação registado num centro de investigação alocado a uma instituição do ensino superior, pode dar
esta como sua referência institucional, devendo esta opção ser lida como significativa e indiciadora de que, pelo menos neste
acto, a pessoa se identifica no contexto académico, e daí que se atinja este número de 84,4%, referente a instituições
enquadradas no ensino superior, o que mostra como estes congressos continuam a ter uma forte predominância da cultura
académica e, para a análise que aqui particularmente nos interessa, a sua definição de problemas pode ser lida legitimamente
como sendo a definição académica dos problemas. E é precisamente para essa definição que nos vamos direccionar na
próxima secção deste trabalho.

4. A identificação e definição dos problemas


Como já foi dito, a Administração tem uma componente prática, uma componente formação e ainda a componente
de investigação e construção teórica (Silva, 2006). No campo da administração educacional, os problemas em análise podem
ser referentes a qualquer uma das componentes: a investigação, o ensino e a prática. Este texto focaliza os problemas
identificados nas práticas administrativas no campo da educação, mais do que os problemas específicos da formação ou,
ainda menos, as problemáticas de investigação.
Foi utilizada a seguinte metodologia para fazer o levantamento da lista de problemas e sua frequência: em primeiro
lugar optou-se por considerar quase exclusivamente os problemas com repercussões práticas. Havia abertura para recensear
também problemas referentes ao ensino e, de facto, os textos apontavam também alguns desta natureza. Havia menos
disponibilidade para incluir os problemas de investigação sendo que, de facto, esses foram pouco considerados e isso não

645
quer dizer que fossem apresentados muitos, não. Em geral, as pessoas não vão aos congressos para apresentar problemas de
investigação, elas vão para apresentar resultados de investigação, reflexões teóricas e, em certos casos, também os próprios
projectos de investigação. Podemos considerar que a apresentação de problemas de investigação poderia ser eventualmente
interessante num congresso, mas nenhum foi encontrado no nosso corpus documental, isto se considerarmos esses problemas
como tal e não como “problemáticas” que costumam ser declaradas como objectos da investigação ou incluídas no seu
quadro teórico. Há um pouco a expectativa de que os problemas fiquem “no laboratório” e no congresso só se apresentem os
resultados. Por outro lado, uma investigação com problemas não teria a dignidade de ser escrita e a sua publicitação não
contribuiria em nada para a imagem académica de quem a quisesse comunicar: publicar problemas de investigação não faz
parte da cultura académica, pelo menos não nas ciências sociais, entendendo-se que isso não constitui matéria para uma
publicação. Em síntese, pelos motivos indicados e ainda outros que se poderiam aduzir, não foram recenseados problemas de
investigação, também não se apresentam muitos problemas concretos enquadráveis no campo da formação, sendo em geral
apenas referido o problema genérico de que deveria haver mais formação e de melhor qualidade. A maior parte das
comunicações no campo da formação, apenas descrevem a estrutura de cursos específicos, costumando realçar as suas
vantagens e bons resultados, sendo em geral textos escritos por pessoas envolvidas nessas mesmas experiências de formação
as quais, se bem que produzam comunicações interessantes, relatando aspectos inovadores no campo da formação na área,
temática com interesse para os congressistas uma vez que quase todos eles estão de algum modo envolvidos com processos e
projectos de formação em administração educacional, são também textos onde se sente que, nesta situação, as pessoas
dificilmente conseguem o necessário distanciamento relativamente aos fenómenos que descrevem.
Qual é então a natureza dos problemas recenseados, que em seguida iremos ver? Trata-se fundamentalmente de
problemas no âmbito da experiência prática do administrador educacional (ao nível local) e no âmbito da administração dos
organismos e dos sistemas de ensino (ao nível regional e nacional), e também de problemas sociais com expressão escolar e
que entram no campo das competências dos administradores escolares.
Procurou-se agregar os problemas apontados num conjunto de categorias mas, ao mesmo tempo, não criar um
número demasiado restrito de categorias onde fosse haver perda significativa de informação.
Veremos então a tipologia dos problemas apresentados e a presença desses tipos nas diferentes comunicações.
Note-se que, apenas numa parte das comunicações é possível identificar a presença de um problema bem definido,
enquadrável num dos elementos da tipologia criada para o efeito. Noutras isso não é possível. O quadro seguinte, elenca os
diferentes problemas recenseados, e a sua presença nos dois congressos e segundo os indicadores referentes ao país e
instituição de referência dos comunicadores. Vejamos então o quadro, que apresenta os problemas por ordem de frequência, o
qual será depois sumariamente lido e interpretado:

Quadro 2 – Tipologia dos problemas e sua presença nas comunicações

Congresso Países Instituições


Ensino
Ensino
Problema 2001 2007 Brasil Portugal Outros Básico e Outros
Superior
Secundário
Mercadorização e privatização do ensino 2 6 7 1 - 7 - 1
Insucesso escolar e exclusão social - 5 2 2 1 4 - 1
Ensino excessivamente centralizado e controlado pelo
2 3 2 3 - 3 - 2
Estado
Precarização e desprofissionalização do trabalho
2 2 4 - - 4 - -
docente
Mercadorização e privatização do ensino superior 1 3 4 - - 4 - -
Necessidade de melhorar a formação do gestor
1 2 3 - - 3 - -
educacional
Elevada taxa de abandono e insucesso escolar dos
- 3 3 - - 3 - -
estudantes negros. O racismo na escola
Distanciamento entre a escola e a família 2 1 1 2 - 2 1 -
Ritualismo e burocratismo do projecto educativo 2 - - 2 - 2 - -
Excessiva burocratização da gestão escolar, o que a
1 1 1 1 - 2 - -
desvia dos seus objectivos pedagógicos
Desigualdades de género 1 1 1 1 - 2 - -
Contradições na implementação das reformas
- 2 2 - - 1 - 1
educativas
Conflitos na escola - 2 - 1 1 1 - 1
As explicações: serviço complementar e concorrencial
- 2 - 2 - 2 - -
à escola
Queda da qualidade da escola pública no Brasil 1 - 1 - - 1 - -

646
Professores em conflito contra a nova regulação
- 1 1 - - 1 - -
educativa
Problemas na gestão das universidades no Brasil - 1 1 - - 1 - -
Pauperização cultural das crianças do ensino
- 1 1 - - 1 - -
obrigatório
O mal-estar docente - 1 1 - - 1 - -
Necessidade de gestores profissionais e da sua
- 1 - 1 - - 1 -
formação
Necessidade de formar os gestores educacionais do
- 1 1 - - 1 - -
Brasil para a gestão democrática
Necessidade de expandir o ensino pré-escolar em
1 - - 1 - 1 - -
Portugal
Insuficiente financiamento das escolas - 1 1 - - 1 - -
Forte procura de educação para crianças dos 0 aos 3
- 1 1 - - 1 - -
anos, sem suficiente apoio do Estado
Faltam cursos de formação de gestores educacionais
- 1 1 - - 1 - -
no Brasil
Excessiva separação entre a teoria e a prática, na
- 1 1 - - 1 - -
formação em administração educacional
Direcção monocrática da escola - 1 1 - - 1 - -
Dificuldade na implementação de novas estruturas
1 - - 1 - - - 1
organizacionais previstas nas reformas
Dificuldade em estabelecer um sistema de avaliação
1 - 1 - - 1 - -
das escolas
Dificuldade em colocar em funcionamento os órgãos
1 - - 1 - - - 1
colegiais de gestão escolar
Difícil inserção profissional dos jovens das escolas
1 - - 1 - 1 - -
profissionais
Desvalorização da educação infantil nos sistemas de
- 1 1 - - 1 - -
educação do Brasil
Desmotivação dos professores da escola pública e sua
1 - 1 - - 1 - -
crença na superioridade da escola privada
Dependência brasileira de programas financiados do
estrangeiro que dão pouca coerência à política 1 - 1 - - 1 - -
educativa interna
Crianças e jovens de risco e o modo dos directores
- 1 1 - - 1 - -
escolares lidarem com os gangs
Complexidade e ineficácia da estrutura da
- 1 - 1 - 1 - -
administração escolar em Portugal
Complexidade das estruturas de autonomia da escola 1 - - 1 - - 1 -
Baixos salários pagos aos professores 1 - 1 - - 1 - -
Autonomia decretada e avaliação das escolas - 1 - 1 - 1 - -
Abandono escolar - 1 1 - - 1 - -
A não participação dos alunos na direcção da escola - 1 - 1 - - 1 -
Escola de massas e o ensino unificado não promovem
- 1 - 1 - 1 - -
a igualdade de oportunidades
A dita gestão democrática das escolas municipais nem
- 1 1 - - 1 - -
sempre está a funcionar democraticamente
TOTAL 24 52 49 25 2 64 4 8

O Quadro 2 apresenta, em primeiro lugar, a lista dos problemas mencionados em cada um dos congressos, e depois
no seu conjunto de acordo com o indicador do país de referência dos comunicadores e a tipologia da sua instituição de
referência, na mesma metodologia já utilizada para a elaboração do Quadro 1. Como é possível constatar, a densidade de
problemas apresentados nas comunicações de 2001 e de 2007, parece situar-se ao mesmo grau, uma vez que, comparando os
valores do Quadro 1 e do Quadro 2, temos uma percentagem de comunicações com identificação de algum problema que, nos
dois casos, ronda os 35,8%, sendo o restante de 64,2% referente a comunicações que não se centram claramente na
identificação de um ou mais problemas. Devemos, de qualquer modo, ter em consideração o princípio básico interpretativo
de que a não referência de problemas, não é necessariamente o mesmo que uma ausência de problemas.

647
Procurando uma definição geral dos problemas mais mencionados, é possível ver como eles se concentram numa
crítica a determinados modelos de administração do sistema de ensino, sendo apontadas frequentemente as políticas de
privatização e de mercadorização, com a correspondente tendência para a desvalorização da escola pública, como problemas
em si e também como fonte de problemas, ou então o excesso de centralismo e de burocracia, e a desprofissionalização e
desvalorização do estatuto dos professores. Estes, são frequentemente nomeados como problema, e como causa de um outro
tipo de problema diversas vezes apontado que é o do insucesso escolar dos alunos, e o abandono escolar, do qual viria a
resultar a exclusão social.
Consultando o Quadro 2, e quando se leva em consideração que nele estão representadas bastantes mais
comunicações de 2007 do que 2001, e mais do Brasil do que de Portugal, não parece haver uma diferença significativa nos
problemas identificados nas comunicações, quando se estabelecem esses dois critérios de distinção.
Depois de apresentar os problemas que os textos definem é possível fazer alguma tentativa de classificação e
categorização desses problemas, através dos seguintes critérios:
a) Problemas socioeducativos: os que resultam da presença dos problemas sociais na escola, da expressão escolar
dos problemas sociais (desigualdades de classe, género, etnia. Desvalorização da escola pública e exclusão social).
b) Problemas específicos da escola, relativos às funções sociais da educação escolar (Pires, E. L. & Fernandes, A.
S. & Formosinho, J., 1991).
c) Problemas que dizem respeito ao enquadramento político e administrativo da escola (tipos e modelos de
administração, relação da escola com o Estado e a comunidade).
As comunicações não se limitam a fazer uma apresentação de problemas no campo educativo, muitas vezes
também apresentam diferentes teorias e ideologias que tentam explicar os fenómenos, os problemas, e procuram encontrar
uma solução para eles, ou mesmo prevenir a sua ocorrência. A próxima secção deste texto procura fazer uma apresentação
das diferentes ideologias e teorias que os textos convocam, para dar uma ideia da sua presença e representatividade.

5. Propostas de explicação e solução


Os textos que apresentam problemas também costumam apresentar um diagnóstico das suas causas e possíveis
soluções. As soluções são algumas vezes mais técnicas mas, na maior parte da vezes, são de carácter sociopolítico e
ideológico. As soluções apontadas costumam ser indicadas também como medidas que previnem o problema e não apenas
como capazes de reagir às suas manifestações. Outra vezes, as soluções não são técnicas, mas sim os problemas, os quais
assumem uma natureza técnica que resulta de determinadas opções políticas, aparecendo depois outras perspectivas políticas
como críticas da técnica, dos problemas técnicos, e das opções políticas que estariam na sua origem.
No total de 212 comunicações, foi possível identificar 93 com uma ideologia, ou teoria explicativa definida, ou seja
43,9% do total. Certamente, aqui não se está a falar de ideologias políticas, mas sim de ideologias educativas, tal como as
definidas por José A. Correia (2000) e Licínio Lima (2001), mas ainda mais específicas, porque conectadas com problemas
educativos tendencialmente concretos. Isso não quer dizer que nas outras 119 comunicações (56,1%) não sejam apontadas
referências de tipo ideológico, no entanto isso significa que não foram referidas do mesmo modo, no sentido em que não
aparecem como fundamento do texto, com a função de explicarem o problema e serem a fonte para a sua resolução e
prevenção. Nas comunicações que foram referenciadas, as diversas teorias e ideologias distinguem-se por terem esta função
completa de explicarem o problema, serem a fonte da sua solução, ou a teoria explicativa que o pode resolver e, ao mesmo
tempo, verem-se reforçadas com a presença desses problemas, no sentido em que estes constituem-se como material empírico
que, supostamente, reforça a ideologia enquanto teoria explicativa e suposta solução. Também aqui, e como apontamento
metodológico, procurou-se criar categorias inclusivas, jogando no equilíbrio, onde se tenta evitar as categorias demasiado
abrangentes, que resultam em perda de informação, e as categorias demasiado especializadas, onde se perde em visão de
conjunto.
O Quadro 3 apresenta as ideologias detectadas, as quais, como já vimos, trazem consigo o seu rol de explicações e
soluções. Este quadro apresenta uma informação diferente, pelo que não se pode procurar um paralelismo exacto com o
quadro dos problemas, uma vez que não fazemos aqui um cruzamento directo das duas informações ao modo estatístico, que
a realizar-se tornaria a análise mais complexa, e isto sem ganhos substanciais, se atendermos ao propósito deste texto. Numa
fase posterior pode tentar-se cruzar os problemas com as respectivas soluções e ideologias, o que aqui não foi executado, pelo
que iremos apontar apenas o quadro das teorias e ideologias, o qual foi construído com uma lógica específica e gera um
interesse por si próprio. Pelos motivos já anteriormente apontados, e relembrando o que antes foi dito, estas teorias e
ideologias devem ser vistas aqui como mais do que genéricas ideologias educativas, uma vez que se posicionam como
verdadeiras opções de enquadramento ideológico dos problemas educativos que as comunicações apresentam. Cada uma das
opções de enquadramento ideológico é apresentada por ordem de frequência, em cada um dos congressos, e ainda segundo o
critério que tem vindo a ser utilizado, relativo aos países e instituições de referência dos comunicadores.

Quadro 3 – Ideologias de suporte e teorias de explicação e solução

Congresso Países Instituições

648
Ensino
Ensino
Enquadramento Ideológico 2001 2007 Brasil Portugal Outros Básico e Outros
Superior
Secundário
Democratização da gestão escolar e do sistema de
7 23 22 7 1 26 2 2
ensino
Crítica do neoliberalismo, mercadorização e
9 18 22 5 - 25 1 1
privatização da educação
Promoção de uma educação democrática e igualitária
5 9 9 5 - 12 1 1
para todos
Desenvolver a educação, melhorando a formação dos
3 7 9 - 1 10 - -
gestores escolares
Modernização e racionalização da administração
4 3 3 4 - 6 - 1
escolar
Multiculturalismo e anti-racismo - 2 2 - - 2 - -
A gestão medida por resultados - 1 1 - - 1 - -
Formação de recursos humanos nas empresas, como
1 - - 1 - 1 - -
estratégia de desenvolvimento
Género, igualdade e educação - 1 1 - - 1 - -

As ideologias enquadram as teorias, enquanto estas têm uma função de explicação dos problemas e ainda apontam
para soluções possíveis (ou não). Mesmo sem fazer um cruzamento estatístico, que aqui teria pouco significado, é possível
pôr em paralelo as ideologias mais fortes (aquelas assinaladas com mas frequência) com os problemas também mais
frequentemente referidos. De facto, e como era esperado do ponto de vista lógico, é possível constatar a existência de um
paralelismo significativo a este nível de análise. Perante o problema, ou preocupação manifestada, referente à privatização,
mercadorização e neoliberalismo, contrapõe-se uma teoria (e ideologia) crítica do neoliberalismo, mercadorização e
privatização da educação; perante os problemas referentes ao insucesso escolar, abandono e exclusão, posicionam-se as
ideologias que defendem a democratização da administração escolar, e a promoção de uma educação democrática e
igualitária para todos.

6. Algumas considerações finais


As comunicações aos congressos permitem visualizar a relação estreita entre as vertentes prática e política da
administração educacional. Este estudo, que foi aqui desenvolvido, revela muito sobre as preocupações dos académicos e da
comunidade académica sobre os problemas de âmbito educativo em Portugal e no Brasil e sobre as causas e possíveis
soluções para esses problemas, mas também acaba por revelar bastante sobre esta comunidade e sobre o fenómeno dos
congressos, na sua dupla dimensão sociológica e epistemológica, enquanto fenómeno que faz parte do processo de construção
do conhecimento, mas também como fenómeno social pelo qual se expressa a comunidade científica, o grupo social, ou os
diferentes grupos sociais, que aí se movimentam. Das diversas vias possíveis para a análise do fenómeno dos congressos, nas
suas múltiplas “funções sociais”, este texto destaca especialmente o modo de difusão do conhecimento, o encontro da
comunidade, a comparação de diferentes estudos, perspectivas teóricas, políticas e ideológicas, mas também o modo de
pensar os problemas da educação e propor soluções e tentativas de explicação. Outras vias poderiam ter sido mais exploradas
e elas estão a pedir o seu investigador, nomeadamente a exploração da face ritual e ritualizada dos congressos, o seu valor
como momento de estabelecer contactos, interacções e projectos. Mesmo que a exploração do tema não tenha chegado a ser
verdadeiramente total, o trabalho aqui avançado conterá os seus aspectos positivos e creio que não poderia haver melhor local
para fazer uma primeira divulgação dos seus resultados do que num outro congresso, desta vez no X Congresso Luso-Afro-
Brasileiro de Ciências Sociais: Sociedades Desiguais e Paradigmas em Confronto.

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novos referenciais, as práticas e a formação. Lisboa: (Aguarda publicação nas Actas).

Intencionalidades político-partidárias na construção normativa da gestão


democrática do ensino público no RS - Brasil

Maria Elizabete Londero Mousquer


Universidade Federal de Santa Maria, Centro de Educação
mousque@terra.com.br

Resumo: O estudo teve como propósito estabelecer uma ressignificação no que diz respeito às relações entre a democracia e as práticas
educativas, tendo como foco a gestão democrática do ensino público, no Rio Grande do Sul – Brasil. Parte da noção de que a racionalidade
moderna preocupou-se com a instrumentalização e o controle das demandas sociais, e os sistemas de ensino curvaram-se aos ditames da
racionalidade cognitivo-instrumental, adequando-se a novas formas de organização de poder e aos modelos do sistema econômico. Ao longo
do processo histórico mais recente, a gestão da educação tem sido vista como um gerenciamento da ação coletiva com base no instituído,
uma aplicação de determinações legais, em que predomina o distanciamento dialógico, provocando uma interação distorcida nas
representações coletivas, produzindo efeitos socialmente desintegradores. A partir dessa problemática, objetivou-se refletir sobre o complexo
fenômeno da “gestão democrática”, instituída pela Constituição Federal de 1988 e pela LDB nº 9394/96, como “Gestão Democrática do
Ensino Público”. A pesquisa apresenta de forma sucinta, o percurso de definição e concretização da gestão democrática no sistema estadual
do Rio Grande do Sul. Concentra atenção na trajetória de discursos governamentais de Antônio Britto – gestão 1995-1998 e Olívio Dutra –
gestão 1999-2002 em que se discutem as tensões que atravessam a proposta de um processo emancipatório. A partir daí, ao se fazer uma
crítica ao modelo de racionalidade ocidental, permite-se desenvolver novas experiências educativas e, ao mesmo tempo, aproveitar as
existentes, confrontando-as com as hegemônicas com vistas ao desvelamento das diferentes racionalidades presentes nas políticas públicas
educacionais.

Introdução
A Lei 10.576/95 marca a sua história na educação pública do Estado do Rio Grande do Sul, pelo fato de ser
pioneira no que tange à abertura de um processo de democratização no campo das conquistas sociais educativas. No entanto,
não se pode deixar de enaltecer os avanços incontestáveis e tampouco ignorar, sobretudo a interferência de toda sorte de
interesses que os textos legais sofrem, principalmente àqueles relativos aos comprometimentos econômicos.
Neste sentido, pretendo no presente artigo traçar de forma sucinta, o percurso que a gestão democrática seguiu no
Rio Grande do Sul – Brasil - a partir de 1995. O compromisso é de uma amostra empírica que contempla as documentações
mais significativas, ou seja, a legislação e as normas, os projetos e as visões institucionais encaminhadas às escolas, a partir
da Lei de gestão Democrática do Ensino Público nº. 10.576/95, aprovada no governo de Antônio Britto – gestão 1995-1998 –
Partido do Movimento Democrático Brasileiro -PMDB - até o ano de 2002, no governo de Olívio Dutra – gestão 1999-2002 -
Partido dos Trabalhadores - PT orientado pela Constituinte Escolar – proposta de Construção da Escola Democrática e
Popular – nas instâncias executiva, legislativa e normativa. A opção em enfocar a proposta de educação desses governos se
justifica como dois grandes partidos oposicionistas e, acima de tudo, por apresentarem proposições significativas para a
educação do RS.
A intencionalidade desta investigação é, acima de tudo, realizar um exercício analítico com vistas a apresentar
principalmente à população acadêmica, os olhares diferenciados no que dizem respeito aos compromissos político-partidários
assumidos durante a gestão de seus partidos no governo, que se revelam como interesses públicos, mas que ratificam, de

650
forma indireta, o estabelecimento de demandas “sistêmicas” da economia e do Estado. Ao mesmo tempo, procuro também
apresentar uma interpretação de uma realidade que, embora se caracterize como um recorte delimitado assume o
compromisso de mostrar como se formam configurações sociais de uma determinada cultura política histórica.
As questões aqui levantadas não devem ser entendidas como “escavações em terreno movediço” no desejo de fazer
descobertas que levem a caminhos intencionalmente já delineados, mas questionamentos que podem interpelar os sujeitos
envolvidos neste processo de “gestão democrática”, no sentido de se constituir em novos referenciais analíticos. Da mesma
forma, no processo de elaboração teórica o papel e a postura dos sujeitos passam a ser determinantes na elucidação de fatos e
na compreensão das diferentes trajetórias percorridas. Salienta-se que esta reflexão não tem a intenção de traçar o perfil dos
sujeitos envolvidos no processo de gestão a nível governamental, mas identificar o campo de onde são elaborados os
discursos desses sujeitos e como aí se movem.

Tensões sociais e políticas na elaboração e aprovação do Projeto de gestão democrática do ensino


Na esteira dos acontecimentos políticos, no que diz respeito à democratização da educação no RS, não se pode
deixar de enaltecer os avanços incontestáveis decorrentes de um fenômeno que começa a ganhar visibilidade no final da
década de 70 e atinge seu ápice durante a década de 80. Nesse período se desenvolveram formas de movimentos sociais,
organizações políticas, atividades de luta por direitos que apontam para horizontes de negação e superação das grandes
desigualdades sociais. A partir da revisão da história das greves dos professores estaduais gaúchos, começa a se configurar
um espaço de lutas do magistério. Essas formas de resistência encontram nos territórios tingidos pelas reestruturações
neoliberais, os espaços privilegiados para as reivindicações de uma população vitimada principalmente pela deteriorização do
serviço público. No Rio Grande do Sul, o magistério torna-se a categoria mais organizada, constituindo o maior sindicato de
professores públicos do País – Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – CPERS.
A referência aos anos 90 no Brasil e particularmente no Estado do Rio Grande do Sul, começa a configurar-se de
forma mais sistemática, um conjunto de ações, no plano governamental, voltado para a construção de um cenário
globalizado. Com a eleição de Antônio Britto (PMDB) contra o candidato Olívio Dutra (PT), configuram-se muito
claramente duas propostas de sociedade. A primeira defende o mercado, as privatizações, tudo em nome da modernidade; a
segunda defende a ampliação do espaço público, a participação popular organizada. Consolida-se assim um projeto
hegemonicamente liberal. Para o governo torna-se imperativo investir na formação profissional em detrimento à construção
da cidadania em resposta às pressões internacionais.
Ao se deflagrar o processo de elaboração do Projeto de Lei da Gestão Democrática, não posso deixar de mencionar
a insistente reivindicação da categoria do magistério em se formar um Grupo de Trabalho para discutir e elaborar o
anteprojeto de lei da Gestão Democrática ratificando os Princípios: Eleição de Diretores e Conselhos Escolares. Para o
Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul - CPERS, a busca da democratização da escola só poderia ser
garantida no interior da mesma e a partir da igualdade de condições da participação dos vários segmentos que compõem a
comunidade escolar, respeitados os seus diferentes saberes e suas diferentes responsabilidades. Assim, é formado o
respectivo grupo formado pelo CPERS Sindicato, Associação de Círculo de Pais e Mestres - ACPM, União Gaúcha de
Estudantes - UGES e Governo do Estado.
Neste contexto pulverizado de poder e opressão onde se celebram os interesses singulares de um grupo político, o
poder Executivo encaminhou à Assembléia Legislativa um substitutivo ao projeto elaborado pelo grupo de trabalho com 69
emendas e dois requerimentos, desrespeitando com o que havia sido pactuado ao longo do processo, acrescentando alguns
pontos polêmicos que foram rejeitados anteriormente pelo respectivo grupo.
Dentre os aspectos impostos os mais polêmicos foram: realização de um curso para pré-candidatos a diretores,
tolhendo o direito de escolha da comunidade escolar; impedimento de campanha eleitoral, proibindo o direito legítimo da
propaganda eleitoral e debate amplo das questões políticas e pedagógicas que envolvem a educação; redução do mandato de
diretor de três para dois anos, o que dificulta o desenvolvimento de um projeto político-pedagógico. Institui também a
avaliação externa e o prêmio qualidade, sendo que estes dois elementos articulados poderão instaurar a competição
desenfreada entre escolas e, internamente, um clima de desconfiança, constrangimento e perseguições. Por fim, condiciona a
qualidade do ensino ao mero desempenho dos alunos em provas externas, desprezando todo o processo de aprendizagem e as
diferenças sócio-econômicas. Quatro pontos fundamentais e polêmicos nortearam as discussões no plenário: municipalização,
premiação, adoção de escola e avaliação externa.
O CPERS mais uma vez reafirmou a posição de que a trajetória no Rio Grande do Sul foi semelhante à nacional.
Com a vitória de Fernando Henrique Cardoso a Presidente da República e Antônio Britto, Governador do Estado, começa a
ser adotada, de forma articulada, a política neoliberal. “Com o conveniente rótulo de necessidade de modernização
administrativa, o governo propõe, através de reformas, o desmonte do Estado” (A SINETA. Boletim Informativo da Diretoria
do CPERS/Sindicato, set/95). Para o Sindicato, o governo Britto caracterizou-se pela reprodução de um modelo conservador,
embora tenha sutilmente omitido da sociedade, através de um esquema de mídia, na qual a educação passa a desempenhar um
papel estratégico para a afirmação do projeto neocolonialista.
Por fim, no campo de lutas do movimento sindical permeado de interações e possibilidades de diálogo entre os
universos antagônicos, sem falar das limitações e deficiências das instituições é aprovada em 14 de novembro de 1995 a Lei
da Gestão Democrática do Ensino Público no Estado do Rio Grande do Sul. É sabido que a legislação, por si mesma, é

651
insuficiente para imprimir novos rumos à realidade e possa resolver todos os problemas da escola, mas, por outro lado,
impede determinadas medidas caracterizadas como de retrocessos, herança de um sistema centralista e autoritário. Diante da
constatação de que a sociedade encontra-se organizada por instituições as quais predominam processos mecânicos de
decisões próprias de uma racionalidade predominantemente instrumental, a tomada de decisões reflete igualmente o caráter
formal do processo de participação. A invasão dessa racionalidade com fins econômicos leva os indivíduos a “aceitar formas
políticas e ideológicas de dominação que resguardam, em última análise, poderosos interesses econômicos e que isto ocorre
sem que tenham plena consciência disto – este é um tipo sofisticado e profundo de alienação” (GENTILINI, 2001, p. 45).
Para o autor, sendo as instituições educacionais atuantes na esfera pública e cultural da sociedade são visíveis os sinais onde
se processou “o estágio final da invasão da racionalidade técnica e instrumental”.

Políticas de gestão da educação no Governo Antônio Britto


Finalmente, no empenho da implantação da gestão democrática, o Governo do Estado, através da Secretaria da
Educação, elaborou diversos documentos que foram encaminhados aos estabelecimentos de ensino, como forma de reciclar,
profissionalizar e qualificar não só os diretores, mas também os demais docentes e servidores em geral. Dentre os
documentos produzidos com vistas à implementação da gestão, cabe destacar a série Cadernos de Gestão Democrática do
Ensino Público, que apresenta uma diversidade de temas – qualidade da escola, autonomia financeira, administração de
recursos humanos, LDB, regimento escolar, qualificação da gestão e do ensino- resultantes de respostas a questionários
enviados para professores, alunos, pais, funcionários e conselho escolar. Documento este elaborado sem a participação da
comunidade escolar gaúcha.
Embora a Secretaria da Educação tenha proporcionado o espaço para, através das quais as escolas pudessem tornar-
se responsáveis pelo debate educacional e por ações de capacitação dos professores, não se pode deixar de considerar as
desestabilizadoras modificações históricas pelas quais vinham passando a sociedade brasileira, em especial no Rio Grande do
Sul. O Estado encontrava-se em um processo crescente de privatização cujas ações foram focalizadas e voltadas para alguns
setores, assim como, a concessão de privilégios a grandes grupos econômicos. No campo educacional, o desmantelamento
ocorreu com estímulo de demissão voluntária dos servidores públicos estaduais. O desaparelhamento do Estado desencadeou
um violento processo de achatamento de salários e de desvalorização dos profissionais da educação.
É neste contexto da história do Magistério gaúcho, caracterizado pelo descaso e autoritarismo dos governos
sucessivos, de salários defasados, questões funcionais e educacionais não resolvidas, que se constituiu a base da discussão
sobre as questões básicas apresentadas. Como conseqüência, neste momento, predomina um verdadeiro desânimo e
descrédito pelas propostas apresentadas, pelo fato de representar anos de lutas e reivindicações agora transpostos, sem
esperança de realização, da agenda sindical para a agenda governamental. Nota-se o cansaço e a falta de fé nas instituições
escolares, ao mesmo tempo em que, o mundo da educação necessita de profundas reflexões para responder a própria filosofia
que serviu de referência até nossos dias. Há uma insatisfação com o presente e com as mudanças que nele já estão traçadas
em função das “imagens do passado”.
Os documentos encaminhados às escolas silenciam discussões referentes à semântica utilizada e conseqüente
necessidade de ressignificação de conceitos, tais como: democracia, sujeito, qualidade, participação, cidadania, entre outros.
Parecem tomados como consensuais, desprovidos de interesses distintos. Tomando o vocábulo qualidade silencia-se sobre a
qualidade que se deseja, pois pode ser entendido, em determinados momentos, como “o melhor para todos” associado às
políticas educacionais igualitárias como também as de políticas excludentes.
Da mesma forma, não adianta uma Lei de Gestão Democrática do Ensino Público que “concede autonomia dos
estabelecimentos de ensino na gestão administrativa, financeira e pedagógica” se os envolvidos com o processo educacional,
professores, pais, comunidade escolar não sabem o significado político da autonomia. Segundo o Professor Licínio Lima é
preciso cuidado com os novos significados.

O que se chama de participação nas decisões, mais se parece uma simples caixa de sugestões, podemos sugerir, mas
muitas vezes, a decisão já está tomada. E o que é chamado de autonomia na verdade significa: sejam criativos, superem-se a
si mesmos, realizem bem o que nós já decidimos por vocês (LIMA, 2003, p. 1).

Desse modo, embora uma escola com autonomia seja antiga reivindicação de educadores comprometidos com uma
sociedade mais justa, esse ocultamento leva a desconfiar do sentido que os documentos atribuem à palavra. Com o processo
de autonomia, foram ampliadas as responsabilidades sobre as decisões nas escolas, porém, elas continuaram a pertencer a um
sistema de ensino organizado na sua forma burocrática e constituída nos termos da lei. Definir normativamente a autonomia
não é suficiente para garantir a sua prática. “Ela pode ser reduzida ou anulada por efeito da construção de subjetividades que
conduzem, mesmo não conscientemente, à dependência, à conformidade e à subordinação a direitos e valores alheios”
(SARMENTO, 2000, p. 9).
Considerando que a gestão democrática, em si mesma, não apresenta força capaz de organizar e instituir uma
dinâmica processual. O material encaminhado às escolas nos leva a confirmar à ausência de um processo democrático e
participativo na sua elaboração. Restringe-se a um grupo limitado de especialistas da Secretaria da Educação, das
Coordenadorias de Educação e das escolas, além de um grupo reduzido de professores e consultores. Isso se comprova

652
mediante a carência de efetivas estratégias de planejamento, implementação e acompanhamento, com vistas a perceber os
alcances e as dificuldades encontradas. Da mesma forma, estes dados nos permitem caracterizar a proposta como sendo
desprovida de conflitos e sem perspectiva de mudanças estruturais, além de responsabilizar a escola “de sair do discurso para
a prática”. Em contrapartida, mais uma vez as escolas reagem indiferentemente encorajando os comportamentos
conformistas.

Proposta de construção da escola democrática e popular na gestão Olívio Dutra


A participação popular, condição indispensável para a realização de toda e qualquer proposta, se constitui no “eixo
fundamental do governo democrático e popular”, pois visa “resgatar os segmentos historicamente excluídos das decisões
políticas, da distribuição da renda e dos investimentos públicos nas áreas sociais” (Estado-RS, 1999). A Secretaria da
Educação, frente a esse desafio, apresentou como prioridade em 1999 o “Projeto da Constituinte Escolar – Construção da
Escola Democrática e Popular”.
O processo da Constituinte Escolar no RS. foi sendo conduzido em cinco momentos articulados, que cabe aqui
apresentar por representarem, cada um deles, subsídios para a respectiva análise. O 1o. Momento constituiu na elaboração e
lançamento oficial da proposta. O 2o. Momento propiciou que “cada comunidade” fosse convidada a refletir sobre “o seu
fazer cotidiano e histórico”, identificando as “práticas”, “critérios”, “dificuldades/conflitos” e “temáticas”. O 3o. Momento da
Constituinte Escolar denominado “Aprofundamento das temáticas”, apresentou-se como o momento da “devolução da
sistematização do 2o. Momento e discussão dos temas e temáticas” através do texto base para “as pré-conferências
municipais/microrregionais da Educação” (Estado-RS, 2000e).
O 4o. Momento caracterizou-se pela “Definição dos princípios e Diretrizes” desenvolvido na “Conferência
Estadual de Educação”. Participaram desta Conferência “integrantes da comunidade escolar (pais, alunos, professores e
funcionários), dos Movimentos popular e sindical, das instituições de ensino, dos Órgãos Públicos, das Organizações Não
Governamentais, dos Fóruns setoriais, demais segmentos da sociedade civil, autoridades, convidados oficiais e observadores”
(Estado-RS, 2000d, p. 8).
A Constituinte Escolar passou a ser à base de todos os projetos desenvolvidos pela Secretaria da Educação. Para
isso, foram realizadas reuniões de estudos, painéis, seminários, plenárias, encontros, pré-conferências municipais,
microrregionais, regionais e a Conferência Estadual da Educação, eventos que se constituíram em espaços de elaboração e
definição dos Princípios e Diretrizes que balizaram a reconstrução do projeto político-pedagógico de todas as instâncias da
Secretaria da Educação. As 3.044 escolas da Rede Estadual de Ensino foram instadas a reelaborar seus regimentos e seus
planos de estudo, com a participação de “toda a comunidade escolar”.
O trabalho desenvolvido pontuou-se na possibilidade de assegurar diversificados espaços de debate, com o
propósito de garantir as condições necessárias para articular a democracia direta e livre a partir de cada unidade de ensino,
com a democracia representativa, na busca de consensos possíveis que estabelecessem os princípios e diretrizes da educação
do RS. A tomada de consciência de que durante décadas as camadas populares tiveram sua participação reduzida à eleição de
representantes que decidem, legislam e até mesmo executam em nome dos representados, fez com que a participação
passasse a ser prioridade nas discussões das comunidades escolares.
A participação popular passou a ser a motivação inicial com abertura de espaços reais de participação pela
sociedade, em particular pela comunidade escolar. A democratização da gestão, dentre as três dimensões da democratização
da educação (democratização da gestão, democratização do acesso à escola e democratização do conhecimento) encoraja uma
dinâmica através de decisões partilhadas, a partir dessa forma de participação.
Através da democratização da gestão instituem-se os mecanismos de participação coletiva, transformam-se as
relações de poder, possibilitando a todos os segmentos da comunidade escolar a participação nas decisões administrativas e
pedagógicas das escolas. A eleição direta e uninominal do diretor e vice-diretor, a eleição do conselho escolar como órgão
máximo, composto por representantes de todos os segmentos da comunidade escolar – pais, alunos, professores e
funcionários – com poder deliberativo, configuram os principais mecanismos de emocratização da gestão (Estado-RS, 2000a,
p. 52).

Ao propor uma Educação Popular o governo enfatizou a importância de se construir um projeto de educação de
qualidade social, no sentido de construir e consolidar uma esfera pública de decisão que revertesse no controle social sobre o
Estado. Para isto, foram produzidos os seguintes cadernos: “A pesquisa de realidade na construção social do conhecimento” e
“Reconstrução Curricular via pesquisa da realidade e tema gerador”, resultantes das experiências de formação realizadas nas
escolas e comunidades junto às Coordenadorias Regionais de Educação. A opção, por partir de práticas pedagógicas
concretas, se justifica por “analisar os conflitos presentes em nossas práticas e compreendê-los como expressão das
contradições sociais, econômicas, políticas, culturais do conjunto da sociedade em que nos situamos” (Estado-RS, 2000a, p.
18).
Na expectativa de que as práticas político-pedagógicas vividas no cotidiano das escolas fossem confrontadas e
avaliadas à luz de reflexões sobre a pedagogia de Paulo Freire, a Secretaria da Educação, encaminhou o Caderno pedagógico
“Semana pedagógica Paulo Freire”, contendo “as falas dialogicamente trabalhadas” por educadores e educadoras
comprometidos com esta pedagogia. O convite para refletir alguns desafios para a vivência democrática na escola, a partir de

653
Paulo Freire, se justifica “enquanto um referencial básico no campo da educação popular – e o seu legado presente em muitas
administrações populares, ONG’s e movimentos sociais que partilham de um projeto de transformação da sociedade
capitalista” (Estado-RS, 2002b, p. 9).
Os documentos apresentaram relatos através de diferentes narrativas e vivências na construção da escola
democrática e popular. Pode-se notar pela leitura do material que a comunidade escolar estava a romper com práticas
fragmentadas e excludentes, da mesma forma também percebida pela Secretaria da Educação, quando disse que “experiência
não se troca, não se ensina. Experiencia-se, vive-se e também se relata e socializa. É um processo e não um produto acabado.
Não há modelo. Há possibilidades” (Estado-RS, 2002a).
Em meio a expectativas de mudanças e de ampliação do processo de participação, no que diz respeito
especificamente a Lei de Gestão Democrática do Ensino Público, o magistério gaúcho, representado pelo Cpers/Sindicato,
resistia à proposta do governo anterior de avaliação externa e de aprovação dos candidatos a diretor em curso de qualificação
antes da eleição. Com a nomeação de Lúcia Camini, presidente do Cpers/Sindicato, para a Secretaria da Educação,
aumentava ainda mais a expectativa da sociedade e principalmente dos professores gaúchos no atendimento às reivindicações
não atendidas.
Ainda em resposta às reivindicações de aperfeiçoamento da gestão democrática, após grandes embates em torno
dos pontos polêmicos, conforme descrito anteriormente entre os deputados e pelo sindicato dos professores, a Assembléia
Legislativa do RS aprovou a substituição na Lei de Gestão Democrática. Em 10 de dezembro de 2001 é aprovada a Lei n.
11.695 com alterações à de 1995, em atendimento aos professores. As alterações atenderam as expectativas dos professores
das escolas, ampliando o mandato de diretores de dois para três anos; possibilidade de integrante do quadro de servidores de
escola, com curso superior na área de educação ou curso normal em nível médio, ocupar a função de diretor ou vice-diretor; o
curso de qualificação dos candidatos a diretor previsto para ser ofertado antes da eleição passou para ser realizado após a
eleição. Foi extinto, neste período, o processo de avaliação externa implementada também no governo anterior. Os conselhos
escolares passaram a ter personalidade jurídica e a se constituir em unidades executoras para recebimento de verbas públicas.
Outro ponto que merece atenção especial diz respeito à imensa e diversificada bibliografia consultada e sugerida
nos documentos. São referências do ponto de vista epistemológico e metodológico, de parte de um conjunto de
pesquisadores, cientistas sociais e educadores que congregam às diversas áreas do conhecimento. Por outro lado, embora o
governo Olívio tenha sofrido diversas denúncias de ideologização da educação, por meio de uma única concepção de mundo
na bibliografia dos materiais distribuídos às escolas, não foi constatado este dado no material selecionado. Importa destacar
que os documentos coletados para esta análise, não envolvem a totalidade do conjunto das experiências, das visões
institucionais, das posições e dos ocultamentos, em função do grande volume de materiais. De qualquer forma permite
afirmar que não revela o comprometimento acima descrito.

O percurso das falas: os paradoxos dos discursos à prática


Ao atentar para o fenômeno da comunicação humana na realidade social, por considerar extremamente diversa e até
misteriosa, a ponto de carecer atenção não só para o que se diz como também para o que não se diz, considero necessário
antever determinadas controvérsias e ocultações que acabam tomando espaço entre as falas. Carregado de caráter ideológico,
os discursos, os documentos, os relatos e as visões institucionais por vezes rapidamente apresentados, porém suficiente claro
para mostrar o que talvez não desejariam, acabam por tecer uma rede diversificada de posições que configuram o espaço
educativo, enquanto campo social e político.
As duas propostas desenvolvidas na educação pública do RS – implantação da Gestão Democrática do Ensino
Público e Constituinte Escolar – são oficiais, pois foram desenvolvidas num Estado da federação e dentro de instituições que
servem aos interesses deste Estado. O que não se pode deixar de dizer que, embora por momentos alternados, ambas se
apresentam com características de propostas alternativas pelo fato de incorporar interesses construídos coletivamente.
O governo do PMDB consolidou no RS a nova concepção de gestão participativa da educação por meio dos
processos de eleição direta de diretores, instituição dos conselhos escolares com representação de todos os segmentos da
comunidade escolar e promoção da autonomia financeira da escola. No Governo de Olívio Dutra a proposta de Constituinte
Escolar pretendeu promover a inserção dos movimentos sociais alternativos na gestão. Apresentam-se, portanto, apesar dos
limites, possibilidades de participação por parte dos setores das classes populares. A primeira proposta, em consonância com
o governo federal, inicialmente pouco difere do discurso escrito pelo governo de esquerda na segunda proposta, até porque
seus argumentos são apresentados de forma ampla, vaga e não apresentam posições definidas.
Evidencio aí um hibridismo dos dois discursos, tal como Sandra Maria Corazza (2000), no seu artigo “Currículos
alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo”, assim definiu ao comparar os textos sobre Parâmetros Curriculares
Nacionais e do Movimento Constituinte Escolar do Estado do Rio Grande do Sul. Embora haja diferenças discursivas entre
os textos oficiais e alternativos, há o predomínio das similaridades nestes discursos. Tal observação contribui
significativamente para ratificar a idéia inicial deste artigo de que os conceitos elaborados e as propostas alternativas
produzidas pelos sindicatos, organizações não-governamentais, movimentos sociais, escolas, universidades, estão sendo
extraídas e utilizadas nos discursos oficiais com semânticas diferentes.
Mas o que preocupa, no entanto, não é o fato dos discursos alternativos terem sido assimilados pelos discursos
oficiais, mas a constatação de que muitos dos discursos ditos contra-hegemônicos encontram-se globalizados e a serviço de

654
políticas neoliberais. Talvez resida aí o desânimo e o descorajamento dos professores frente às propostas oficiais
apresentadas e também a apatia frente aos instrumentos de avaliações apresentados a cada nova proposta.
A partir da divulgação dos demais documentos produzidos e encaminhados as escolas, o hibridismo tende a dar
lugar a diferenças bastante acentuadas entre os discursos. No governo Britto, as identificações de problemas estruturais da
educação conviveram com uma condução autoritária, por meio da qual o governador colocava-se acima das decisões das
instituições. No que diz respeito ao Projeto de Lei da Gestão Democrática houve a falta de compromisso com o processo
democrático de negociação quando o governador mudou unilateralmente os acordos firmados com a Comissão responsável
pela elaboração do referido projeto. “Ao mesmo tempo era perceptível à falta de autonomia política da Secretaria da
Educação, sendo as principais decisões relativas ao magistério e à educação tomadas pelo grupo do governador no Piratini”
(Caderno FUG-RS, 2003, p. 29).
A gestão do ensino começa, a partir de então, sofrer os limites e a corrosão de seus princípios democráticos,
reacendendo antigas divergências entre professores, governo e outros setores da comunidade educacional deflagrado em
governos anteriores. O governo Britto, imbuído de levar adiante a política educacional implementada pelo governo Fernando
Henrique Cardoso e pelo seu Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, empenhou-se na formulação de um projeto de
pouca efetividade para os problemas básicos da educação. O respectivo governo restringiu-se mais ao atendimento às
decisões resultantes da dependência de mercados financeiros e de financiamento internacional, que se pode caracterizar como
sendo uma política de modernização da gestão educacional, porém aos moldes conservadores de sociedades dependentes.
Quanto ao governo de Olívio Dutra, em função de inúmeras denúncias recebidas pelos órgãos de comunicação,
além das citadas anteriormente, pais, alunos e partidários oposicionistas acusaram o governo de ter imprimido um caráter
partidário e ideológico na gestão da educação no Estado do RS. Tais denúncias foram resultantes da divulgação de uma única
concepção de mundo em cartilhas distribuídas às escolas. Em função desse processo disseminado de “ideologização e
partidarização” da educação, o governo caracterizou-se, segundo o Caderno “Fundação Ulysses Guimarães” – FUG-RS, por
partidarização da gestão educacional, colocando em prejuízo a tão sonhada e idealizada democracia.
Para o Grupo de Trabalho que organizou o respectivo Caderno ocorreram grandes avanços na gestão educacional
do governo Britto, por meio da avaliação externa do rendimento escolar dos alunos no ensino fundamental e médio no RS. Se
o governo Britto estava sintonizado com o debate e a política educacional implementada no país pelo Ministério de Educação
e Cultura - MEC, o governo de Olívio Dutra manteve relações contraditórias com o governo central de Fernando Henrique
Cardoso. A administração petista denunciava em diversos discursos, as distorções na política educacional do MEC,
principalmente o de submissão ao FMI e ao Banco Mundial, ao mesmo tempo em que apresentava um planejamento de
expansão do ensino profissionalizante com a finalidade de obter empréstimos junto ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento-BID, através do MEC.
Quando se analisa uma área controversa como é o caso da educação e, principalmente, no que diz respeito à gestão
democrática do ensino e suas implicações, as manifestações ocorridas tanto no nível de discurso como no nível de uma
ocultação expressa, não são suficientemente representativas no contexto geral. O fato é que entre as impressões apresentadas
e a realidade existente há uma distância muito grande e isso é o que caracteriza o funcionamento da democracia
representativa enquanto espaço público.

A democracia representativa tende a ser uma democracia de baixa intensidade. Porque ela deixa intacta muitas
relações de poder que não transforma em autoridade compartilhada; porque assenta em idéias de igualdade formal e não real;
porque só reconhece a diferença a partir de uma diferença dominante que é transformada em norma – a identidade dominante
– e determina dentro de que limites e que cada outra diferença pode ser exercida, reconhecida ou apenas tolerada (SANTOS,
2002c, p.3).

Entretanto, há de se antever que esse processo acaba, muitas vezes, resultando na secundarização dos interesses
gerais e coletivos de uma sociedade complexa e plural, no caso a brasileira e, especificamente, a do RS. O que se pode
concluir das reflexões formuladas é que se revelam fundamentais para o entendimento do “comportamento e atitudes face às
formas e dinâmicas do poder em circulação nas sociedades” (SANTOS, 2002b, p.26). São demonstrações concretas que
justificam o desânimo de muitos educadores.
O contato permanente com os problemas da escola pública, de alguma forma nas trilhas da administração escolar,
resultou em uma experiência acumulada em sucessivas frustrações com os padrões de gestão da rede pública adotados nos
últimos tempos. Trata-se daquilo que Cunha (1995) denomina de “administração zig-zag”, ou seja, “o eleitorismo, o
experimentalismo pedagógico e o voluntarismo ideológico” que caracteriza a alternância de governo no poder. Em função
desses padrões de administração que obstruem a construção de perspectivas conceituais e analíticas historicamente
aplicáveis, os educadores passam a sofrer vários tipos de limitações no seu trabalho, principalmente a desconfiança diante das
mudanças que lhes apresentam a cada início de governo.
Embora instituídos os Conselhos Escolares, enquanto instrumentos da gestão democrática, caracterizados, via de
regra, pela participação e a tomada de decisões mais coletivas, não foram suficientes para dar conta de grandes dívidas
sociais e políticas contraídas ao longo da história e em períodos alternados de redemocratização da educação. Até o presente
momento muitos educadores não se deram conta da enorme exigência que a democracia requer se for levada a sério. Existem
abundantes comprovações empíricas de que isso tudo fica cada vez mais agravante, quando se percebe a impossibilidade das

655
escolas definirem e implementarem projetos pedagógicos participativos, consistentes e inovadores. O desempenho escolar
permanece insatisfatório frente às estratégias político-educacionais vigentes que se impõem no plano da normatividade.
A partir da evidência desses fatos e antecipando alguns pressupostos da teoria de gestão do ensino, somado a
trajetória discursiva da aprovação da Lei 10.576/95, ouso dizer que a educação torna-se cada vez mais vulnerável à invasão
de elementos estranhos à sua própria natureza, pelo fato de que não possa decidir autonomamente as regras que devem
regular o próprio ensino. Os assuntos educacionais envolvem conflitos e negociações importantes entre grupos com visões
antagônicas sobre ensino de qualidade e o confronto entre as diferentes posições políticas. No Estado do Rio Grande do Sul,
na segunda metade da década de 90, torna-se bastante visível a diferente posição assumida pelos governos sobre a
intencionalidade da educação e a sua função social, embora haja o reconhecimento do campo de possibilidades que se abre a
partir das rupturas e dos conseqüentes espaços para ação coletiva.
Se o governo Antônio Britto aprovou a Lei da Gestão Democrática do Ensino Público, assegurando eleição direta
para diretores de escolas, entre outros avanços, apesar de todos os percalços ocorridos e a longa tradição de política
autoritária, pode-se dizer que houve um avanço significativo em termos de luta pela democracia. O governo Olívio Dutra, no
anseio de mudanças, estabeleceu uma nova administração estadual, conhecida como “administração popular”. Baseava-se em
uma inovação institucional que visava à radicalização da democracia, através da participação da comunidade escolar.
Ignorar as bases subjetivas da oligarquização nos partidos como o PT e o PMDB no Rio Grande do Sul,
principalmente por se revelar referências significativas e determinantes no estudo sobre gestão democrática do ensino, seria
recair na prática histórica de somente responsabilizar a escola pelos fracassos sociais ocorridos. O que não significa acreditar
na existência de contra-sensos somente nas instâncias superiores. Embora a sociedade civil não apresente uma evolução em
termos de organização, não se pode deixar desapercebidas estas questões tão determinantes na sociedade brasileira submissa
às decisões político-partidárias.
Do ponto de vista que moveu este trabalho, ou seja, de analisar os documentos produzidos/coordenados pela
Secretaria da Educação/RS, é possível fazer algumas considerações geradas a partir do encaminhamento desse material e a
trajetória dos mesmos até a realidade concreta, neste caso, as escolas estaduais. Tomando a gestão democrática como parte da
Constituinte, foi possível constatar o seguinte: diante da riqueza do material produzido, muitos entraves e limitações foram
surgindo nesta caminhada, inviabilizando grande parte da operacionalização dos objetivos e das propostas apresentadas,
justificando as rupturas que impediram a continuidade do processo em andamento.
São os seguintes fatores e circunstâncias que mais contribuíram para impedir o processo. Em primeiro lugar, os
documentos e materiais não conseguiram dar conta da complexidade das diferentes realidades escolares e os interesses que
daí advém. Em função de políticas clientelistas, de interesses ideológico-partidários e corporativistas, algumas escolas
acabaram por se tornarem espaços de reprodução e de resistência.
Em segundo lugar, o tensionamento gerado entre o governo do Estado e o Cpers/Sindicato, no sentido de que o
governo Olívio Dutra não atendeu às reivindicações salariais e previdenciárias do magistério. Enquanto oposição estimulava
essas reivindicações argumentando que tudo se resumia a uma questão de vontade política e, como situação, tentava
argumentar que o magistério deveria compreender as condições financeiras do Estado. Diante desse fato, ficou claramente
percebível que a Secretária de Educação Professora Lúcia Camini, anteriormente Diretora do Cpers, não demonstrou força
condutora e habilidade política capaz de mediatizar essas questões, demonstrando com isso que “o antídoto muitas vezes
passa a ser o veneno”.
Em terceiro lugar, outro fator importante diz respeito à dificuldade de interlocução entre a Secretaria da Educação e
as escolas pela via das Coordenadorias de Educação. A partir dessa perspectiva, é possível que o processo em tramitação nas
diversas instâncias possa tomar outra dimensão, no sentido de que pode ser alterado substancialmente pelos sujeitos enquanto
técnicos, ocasionado muitas vezes por problemas de comunicação.
Em quarto lugar, a grande influência dos meios de comunicação de massa, através de jornalistas que atuaram em
acirrada oposição às iniciativas políticas do Partido dos Trabalhadores – PT em função da partidarização de suas atividades
profissionais. Em maior ou menor escala esses profissionais mantiveram-se em constante luta no sentido de conduzir a
opinião da sociedade civil, utilizando-se de fatores emocionais e não da racionalidade que o momento exigia. Por fim, o
quinto lugar diz respeito ao curto espaço de tempo da gestão do governo para implementar e qualificar o processo de
participação popular e consolidar a democracia participativa.
Esses fatores nos levam a concluir que a proposta de construção da educação no Estado do Rio Grande do Sul,
através da Constituinte Escolar, apresenta-se inicialmente como uma iniciativa de alta intensidade democrática. Ao reunir
pais, alunos, professores, funcionários, organizações populares e instituições do poder público para discutir o papel e a
função social da escola, nas diferentes comunidades onde ela se insere, possibilitam o resgate de cada um enquanto sujeito
ativo na construção de um modelo educacional emancipatório.
Buscando o campo político e ideológico desses sujeitos, enquanto posições assumidas na esfera administrativa
percebe-se as alternâncias das posições discursivas. Este é o pano de fundo em que se posiciona a Professora Lúcia Camini
enquanto dirigente do Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul – CPERS e posteriormente como Secretária
de Educação do Estado –RS. Esta passagem de dirigente sindical para o Executivo aumenta a expectativa da sociedade, o que
pode levar a um clima de turbulência entre as três instâncias governo-partido-sindicato, com grandes repercussões e prejuízos
para a democracia. O desempenho da gestão Olívio Dutra, apesar das tréguas concedidas pelo magistério, foi duramente
marcado em função dessa complexa relação.

656
Enquanto liderança sindical, Lúcia Camini sempre exigiu o cumprimento das reivindicações e cobrou a falta de
vontade política do Executivo para o enfrentamento das questões educacionais, sendo que na função Executiva da Pasta da
Educação não conseguiu atender a totalidade dessas reivindicações. O Partido dos Trabalhadores-PT na função Executiva do
Estado foi o mais atingido nestes aspectos justamente porque sua militância e alguns em atividades nas diversas instâncias do
executivo eram oriundos de movimentos sociais: sindical, estudantil, sem terra, direitos humanos, etc., o que evidencia a
pluralidade e as diferentes visões de mundo desses sujeitos. Isto repercute na sociedade em forma de cobranças frente a
exposições feitas por estes sujeitos quando na militância em diferentes movimentos. As diversas tendências no partido
colocam em xeque o próprio conceito de democracia.

Concluindo
Embora tenha passado mais de uma década da aprovação da Lei da Gestão Democrática do ensino público no RS,
os educadores parecem ter sido tragados por interesses que se colocam além dos objetivos sociais. Convivemos com rupturas
e estrangulamentos sucessivos nas propostas educacionais de um governo e de outro, desrespeitados na caminhada de
construção coletiva, pois enquanto sociedade civil não conseguimos garantir a permanência de propostas em função da nossa
baixa mobilidade democrática.
No entanto, a cada mudança de governo nos deparamos com uma retração dos avanços ocorridos e uma situação
bastante paradoxal no sistema educativo. A necessidade que os diferentes governos têm de deixar registrado a sua marca e o
seu estereótipo, acaba por personificar a educação e, conseqüentemente, por banalizar o espaço de experimentação de
práticas sociais educativas, através da intromissão insidiosa e indiscriminada de aparatos alheios à educação. Isso se converte
em prejuízos para a formação cultural da sociedade e para a democracia. O que não se pode deixar de reconhecer é que a
educação sempre esteve a serviço de uma noção elitista do fenômeno político, ou seja, a divisão entre os dominantes e os
dominados. O atual cenário político também não acena para uma nova hegemonia na sociedade brasileira, pois o setor
político submerge num lodaçal e o jogo de faz-de-conta se presta a nos tentar fazer acreditar que se pode legislar e controlar
os equívocos e assim governar a nação.
O compromisso permanente com o vínculo entre ética e as práticas educativas favorecem o resgate e o exercício
das virtudes que se foram perdendo com o estágio supremo da razão instrumental. Da mesma forma, a racionalidade presente
quando da aprovação da Lei de Gestão Democrática do Ensino Público e, posteriormente, quando encaminhados os materiais
para as escolas, embora permeados de interesses político-partidários, apresentam-se como ponto de partida para subsidiar
novas possibilidades de construção de um modelo de gestão que poderá se denominar de critérios de alta ou baixa intensidade
democrática (SANTOS, 2000).

Referências
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Disponível em http//www.educacaoonline.pro.br
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (1995). Lei n. 10.576, de 14 de novembro de 1995. Lei da Gestão Democrática do
Ensino Público.
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SARMENTO, Manuel Jacinto (2000). Autonomia da escola: políticas e práticas. Porto: Edições ASA.

657
Refugees motivation for mandatory language training programs in Norway

Valentina Cabral Iversen Iversen


University of Science and Technology (NTNU) Trondheim, Norway
valentina.iversen@ntnu.no

Nora Sveaass Sveaass


Norwegian Centre for Violence and Traumatic Stress Studies, Oslo,
nora.sveaass@nkvts.unirand.no

Gunnar Morken Morken


University of Science and Technology (NTNU) Trondheim,
gunnar.morken@ntnu.no

Abstract: The purpose of the present study was to explore the relationship between traumatic experiences prior to migration, present
psychological distress, and motivation for mandatory language training among refugees. A total of 239 refugees undergoing mandatory
Norwegian language training received questionnaires, of which 191 (80%) were completed. The sample was divided in new arrivals
(refugees who had stayed 6-12 months in Norway) and old arrivals (12-36 months in Norway).
In order to examine the contribution of traumatic experiences, psychological distress and personal factors to motivation for mandatory
language training, a multivariate regression analyses was conducted. For new arrivals, R² =.43, F (10, 104) = 6.57, p<.001 and, for old
arrivals were R² = .49, F (10, 61) = 5.72, p<.001. Among new arrivals, the trauma category violence was negatively associated with
motivation. The trauma categories loss and isolation were positively associated with motivation for language training for the new arrivals.
Psychosomatic and anxiety symptoms were negatively associated with motivation for the old arrivals. Mastery was positively associated with
motivation for language training for both groups. Perceived discrimination was negatively associated with motivation for language training
among new arrivals, but did not seem to be associated with motivation in either way among those who had stayed longer. Monitoring of
refugees’ mental health prior to the mandatory language training might contribute to a more positive outcome of the language training
program.
Keywords: Refugees, traumatic events, psychological distress, mandatory language training

INTRODUCTION
Refugees in Norway can be viewed as representatives of different minority groups. Minority groups normally
represent non-dominant groups in the host country.
During an encounter between a dominant group and a non-dominant cultural group, the dominant group often
determines the nature of the adaptation between the two groups. This might be either formal or informal, through the
formulation of settlement/resettlement policies, regulating where the migrants can have their daily living, and to some extent
the degree of participation in social activities within a local community.
Previous studies have called attention to the poor adaptation among immigrants and refugees in Norway (Hauff &
Vaglum, 1997b; Hauff & Vaglum, 1997c; Hauff & Vaglum, 1997d; Virta, Sam & Westin, 2004a; Virta, Sam & Westin,
2004b) As a way of facilitating a positive development with regard to adaptation among refugees, the Norwegian government
introduced a new plan for a comprehensive language training program for refugees in 2003. This program, called “The
introductory programme for refugees”, is mandatory for all refugees, and offers a two year training program in the
Norwegian language as well as social studies, with special focus on the Norwegian society (Norwegian Ministry of local
government and Regional Development, 2003).
Failure to participate in the program would normally lead to a reduction in financial support from the authorities in
the local municipalities. Exceptions are made when it can be verified that participation is not possible on medical grounds.
Furthermore, application for either permanent residency or for naturalisation requires a successful completion of the program.
All refugees are expected to go through the training program as soon as possible after settlement in a municipality. In most
cases, the program is initiated before the required health examinations are carried out. This means that limited information is
available regarding the refugees’ former traumatic experiences and present mental health, prior to the start of the program.
Refugees would normally try to preserve their language as best they can, since it is an important element of their
individual and group identity. At the same time, refugees are expected to acquire the language of the host society as a part of
their adaptation to the new society (Dahl ,Hauff, Sveaass,& Lavik,1989).
On a general basis, one might assume that good knowledge of the main language in the host country is of great
importance for refugees. However, Hauff and Vaglum, in their study among Vietnamese refugees, found that competence in
the Norwegian language did not in itself predict good social contact with nationals in the host country (Hauff & Vaglum,
1997a). A pilot study in Norway revealed that 30 % of the refugees failed to attend classes in the mandatory language
program on medical grounds, i.e., primarily because of depression (5). Prior traumatic experiences and present mental health
status may be associated with refugees’ motivation for language training. Beiser, indicated that Vietnamese refugees

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experienced high levels of depression 10-12 months after arrival, and a follow up study showed that even two years later,
many of them were still depressed (Beiser,& Fleming, 1986).
Although few extensive investigations have been reported concerning refugees’ language proficiency in the
settlement country, Chiswick and Miller ((Chiswick & Miller, 2001a) have pointed out that compared to refugees, voluntary
immigrants are more likely to learn and speak a new foreign language. Lack of motivation is the most widespread reason for
failure in second language acquisition among refugees(Chiswick & Miller, 2001b).
Weine and colleagues (Weine, Razzano, Brkic, Ramic, Miller, & Smajkic, 2000) found that symptoms of
depression appeared to be frequent among refugees, and many refugees do not seek or receive help from the mental health
services. The high rate of symptoms of depression and somatisation among refugees may be caused by traumatic experiences
prior to leaving the country of origin, by social and psychological factors in exile, as well as the chronic psychological stress
associated with being a refugee (Beiser, Turner & Ganesan, 1989; Lavik, Hauff, Skrondal & Solberg, 1996).
Several studies have described a relationship between the psychological well-being of immigrants on one hand, and
locus of control and perceived discrimination on the other (Liebkind & Eranen, 2001; Phinney & Haas, 2003; Phinney &
Nummedal, 1979; Younger, 1991)(13-16). In the present study, one important question was how factors like mastery and
perceived discrimination impact on refugees’ motivation for participating in the mandatory language training.
Mastery is in this context used to encompass an individual’s response to specific stressors, and his/her life under the
stressful circumstances. Individuals, who experience stressful conditions but are able to master them, seem not to emerge
demoralized and vulnerable, but healthier and stronger, Ghazinour and colleagues has suggested that an individual’s mastery
seems to be of great importance when it comes to dealing with specific internal or external demands during stressful life
events (Ghazinour, Richter & Eisemann, 2003).
In the present study, the aims were to explore the effects of pre-migration trauma experiences as well as present
psychological distress on refugees’ motivation for language training. Furthermore, we wanted to explore whether or not there
were differences between new and old arrivals with regard to predictors of motivation for the mandatory language training.
The study also examines how personal factors such as mastery and perceived discrimination may influence motivation for
language training.

METHODS
Participants
The present study was conducted during the winter of 2004. Fourteen municipalities, all in which the compulsory
Norwegian training program was administered, were invited to participate in the study. Twelve agreed to do so. In all, 239
questionnaires were handed out, of which 191 (80%) were completed. To be eligible for inclusion in the study, participants
should have lived in Norway with a residence permit for at least six months and be enrolled as a student in this particular
program.

Procedure
The data collection involved the use of a structured questionnaire developed by using materials from previous
studies and from established scales.
All refugees between the age of 18 and 55 in the defined area were invited to participate in the study. The refugees
originated from Africa, 111 participants (59%) and Asia, 77 participants (41%). Three of the refugees did not report their
country of origin.
In the analyses, the participants were divided into two groups: refugees who had been in Norway from 6 to 12
months (new arrivals) and recently started the mandatory language training (during the last 3 months), and those who had
been in Norway from 12 to 36 months, and had been enrolled in the program for one year (old arrivals).
Measures
Demographics: Demographics included the variables of age, gender, civil status, educational level as well as
country of origin.
Traumatic events: To measure the degree of traumatic exposure, 16 items (section one) from the Harvard Trauma
Questionnaire (HTQ) was used. This questionnaire was developed by Mollica and colleagues (Mollica, Caspi-Yavin, Bollini,
Truong, Tor & Lavelle, 1992) with special focus on refugee populations. The traumatic events were scored in the following
way: “negative answer” 1,”been a witness” 2, and “self experienced” 3.
Psychological distress: The scale applied to measure psychological distress was adapted from a variety of
sources,(Beiser & Fleming, 1986; Reynolds & Richmond, 1997). The scale has been used in the International Comparative
Studies of Ethno-cultural Youth (ICSEY) (Sam, 1994; Sam, 2000; Sam & Berry, 1995) based on work on adults and
adolescents. It was a 15-item scale, with 5 items in each group, measuring depression, anxiety and psychosomatic symptoms
experienced during the last 3 weeks. Examples of items are: “I feel tired”, and “My thoughts are confused”. The overall
reliability for the five-item depression scale was .84; for anxiety it was .86; and for psychosomatic symptoms, it was .82.
Mastery: Six items that measured the extent to which refugees felt that they were in control of their lives were used
in assessing Mastery. The scale comes from the International Comparative Studies of Ethno-cultural Youth (ICSEY) (Sam,
1994; Sam, 2000; Sam & Berry, 1995) The items in the ICSEY scale were drawn from the work by Virta and Westin) and

659
are based on work on adults and adolescents( Virta, Sam, &Westin, 2004). The scale included items such as “I often feel
helpless in dealing with problems of my life". The reliability coefficient was found to be .77.
Perceived Discrimination: Perceived discrimination was measured using five items drawn from the ICSEY study
(21). Five items focusing on the individual’s experiences of being treated differently due to ethnic minority background
(e.g.“I don’t feel accepted by other Norwegians”) were included. The Cronbach alpha for these items was .76.
Motivation for language training: This ten-item scale focused on how satisfied the refugees were with the school in
general and what motivated them to learn Norwegian. To measure motivation for language training, a questionnaire was
constructed by the authors, based on results from a semi-structured interview with refugees from Africa and Asia who
attended the compulsory language training courses. A pilot study was conducted in English and Norwegian. Motivation for
language training was made up of ten items (e.g., ‘It is easier to find a job if I learn Norwegian’). The reliability coefficient
was found to be .64.
Mastery and perceived discrimination were defined as personal factors.
Unless otherwise stated, all the above scales were responded to on a five-point Likert scale where the first point
was “Strongly disagree”; the second “ Somewhat disagree”; the third “Not sure/Neutral”; the fourth “Somewhat agree”, and
the fifth “Strongly agree”. Responses to the perceived discrimination scale ranged from “almost never” (1) to “very often”
(5).
The questionnaire applied in the present study was translated from Norwegian into the different languages spoken
by the eligible refugees participating in the study (i.e., French, Somali, Farsi, Arabic, Russian, Dari and Amharic). Deviation
from translated versions was discussed with the translators and the author was called into a discussion in order to change,
better and/or approximate the translation to the original meaning. The questionnaire was tested in a sub-sample (N= 29) of
refugees from Africa and Asia undergoing the mandatory language training program.
Statistical analyses
An exploratory factor analysis was performed. A Principal Component Analysis (PCA) and varimax were used.
The independent t-test and Chi-square statistics were used for continuous and categorical data. Regression analyses by use of
the Enter method explored the effect of independent variables on motivation. The missing values were treated with
Expectation Maximization (EM) procedures. The level of significance was set to 0.05.

RESULTS
The patients’ demographic characteristics are described in Table 1. Refugees who had stayed longer in Norway
were significantly older than the newly arrived. There were no significant differences between new and old arrivals regarding
education level (table 1).

Table 1. Demographic characteristics of new and old arrivals refugees


New arrivals Old arrivals Total
N % of all N % of all N % of all
Age1
18-27 5 4.2 1 3.1 6 3.1
28-37 50 42.4 15 20.5 65 34.0
38-47 45 38.1 26 35.6 71 37.2
48-55 12 10.2 23 31.5 35 18.3
Total 112 65 117
Gender2
Males 69 60.0 48 66.7 117 62.6
Females 46 40.0 48 33.3 70 37.4
Total 115 96 211
Education level3
Formal education 101 87.1 57 79.2 158 84.0
No formal education 15 12.9 15 20.8 30 16.0
Total 116 72 188
1 Pearson’s chi-square=18.907(df =3), p< 0 .0002
2 Pearson’s chi-square= .2.11 (df =1), p =0.14
3 Pearson’s chi-square= 2.07 (df =1), p<= 0.15

In order to reduce the 16 traumatic events from the HTQ into fewer and meaningful groups, a Principal Component
Analysis (PCA) with varimax rotation was conducted (Table 3). This resulted in a three-factor solution and accounted for
54.5% of the total variance (i.e., 19.7%, 17.8% and 16.8% for Factors I, II and III respectively).
Factor I was termed “Violence” and included the items ‘been in prison’, ‘torture’, ‘serious injury’, and ‘rape or
sexual abuse’ (alpha = .84). Factor II “Loss” included items such as “Murder of family or friends”, ‘Unnatural death of
family or friends’, and ‘Lost or kidnapped’ (alpha= .79). Factor III “Isolation” included ‘Lack of shelter’, and ‘Ill-health

660
without access to medical care’ (alpha = .84) (Table 2). In order to bring the reliability of Factor III on an acceptable level,
one item was deleted.

Table 2. Principal Component Analysis, Means and Standard Deviations for traumatic exposures in
Harvard Trauma Questionnaire
Factor loading
Factor I Factor II Factor III Mean SD
19.79 17.86 16.87
Total Variance Explained (%)
5.94 1.61 1.17

Eigenvalue
Items Violence Loss Isolation

Imprisonment .68 1.87 .84


Brainwashing .67 1.77 .80
Forced isolation from others .66 2.05 .86
Torture .66 2.16 .76
Serious injury .64 1.92 .87
Forced separation from family .48 2.36 .84
Rape or sexual abuse .44 1.44 .66
Murder of family or friends .85 1.86 .74
Unnatural death of family or friends .76 2.41 .70
Being close to death .66 2.43 .82
Lost or kidnapped .50 1.85 .82
Murder of strangers .42 1.86 .74
Lack of shelter .79 2.15 .88
Ill-health without access to medical care .74 1.94 .88
Deprivation of food and water .72 2.16 .89

No significant differences were found between the new and old arrivals with regard to degree of psychological
distress. New arrivals scored higher on isolation as a traumatic experience than did the old arrivals (Table 3).

Table 3. Variables predicting motivation for mandatory language training among new arrivals and old arrivals
refugees
New arrivals (n=118) Old arrivals (n=73) t-values
Mean SD Mean SD
Traumatic events
Violence 1.97 .52 1.93 .60 .47
Loss 2.24 .53 2.23 .53 .15
Isolation 2.17 .62 1.95 .63 2.12*
Psychological distress
Psychosomatic 2.16 .88 2.44 1.02 1.68
Anxiety 2.22 1.09 2.50 1.13 1.52
Depression 2.63 1.13 1.02 1.16 .59
Personal factors
Mastery 3.61 .99 3.58 .87 .19
Perceived discrimination 2.23 .94 2.14 1.05
Motivation .64 4.09 .62 .12
4.11

*p < .05

In order to examine the contribution of traumatic experiences, psychological distress and personal factors to the
refugees’ motivation for mandatory language training, a multivariate regression analyses was conducted (Table 4).
Motivation for mandatory language training was the dependent variable and traumatic experiences, psychological distress,

661
and personal factors were independent variables. Only independent variables that showed statistical significance were
presented in the results. For new arrivals, R² =.43, F (10, 104) = 6.57, p<.001 and for old arrivals were R² = .50, F (10, 61) =
5.72, p<.001. The results showed that among new arrivals, the trauma category Violence was negatively associated with
motivation for language training and the trauma categories loss and isolation were positively associated. Mastery and
perceived discrimination are also associated with motivation for language training for the new arrivals, which accounted for
43% of the variance. Psychosomatic and anxiety symptoms were negative associated, and mastery revealed to be the
strongest predictor for motivation for the old arrivals, which accounted for 50% of the variance. High education level was
positively associated with motivation for language training only among old arrivals. Gender, age and continent of origin did
not predict motivation neither for the new nor for the old arrivals.

Table 4. Summary of the multivariate regression analysis of the contribution of traumatic events, psychological
distress and personal factors on motivation for language training (N =191).
1New arrivals refugees 2Old arrivals refugees
B Std. Error β B Std. Error β
Education .02 .05 .03 .14 .06 .22*
Traumatic events
Violence -.56 .16 -.44** -.09 .18 -.09
Loss .30 .12 .26* .22 .15 .21
Isolation .41 .13 .39** -.07 .18 -.07
Psychological distress
Psychosomatic -.06 .08 -.09 -.28 .10 -.46**
Depression -.10 .06 -.17 -.03 .09 -.06
Anxiety -.10 .07 -.17 .21 .08 .37*
Personal factors
Mastery .19 .055 .28** .45 .08 .63***

Perceived discrimination -.17 .055 -.25** -.05 .06 -.09


1R2 = .43, 2R2 = .50
*p ≤ .05; **p<.01, ***p<.001

DISCUSSION
Refugees, who prior to migration had traumatic experiences according to the category violence, were less
motivated for participation in the mandatory Norwegian language training than other refugees. This might be due to the
intrusive character of their traumatic experiences. The mandatory language training might be experienced as another strain as
they finally arrive in the host country, just trying to cope with the new situation on a day to day basis.
There seemed to be a positive relationship between traumatic experiences in the loss category and motivation for
participating in the mandatory language training program. This could perhaps be explained by the fact that most of the items
in this category are related to loss of loved ones, and that refugees, with experiences of loss of family members or friends,
might want to participate in language training course for social purposes. The traumatic experiences included in the category
isolation were found to be positively related to motivation for participation among newly arrived refugees.
One important finding is that traumatic events seem to make a significant impact on motivation for language
training only among new arrivals. When refugees in this group did not seem to be motivated for language training, it might
be explained by their constant preoccupation with recent trauma experiences, which make it difficult to establish a motivation
for learning a new language. It seems reasonable to think that the impact of traumatic experiences get weaker as times goes
by.
Psychological distress, as measured in the present study, appears to affect old arrivals more than new arrivals. The
lower the anxiety and psychosomatic symptoms, the greater was the refugees’ motivation for language training.
The lack of significant association between psychological distress and language training motivation among new
arrivals might be due to fact that the refugees had lived a relatively short time in Norway. Beiser and colleagues point out that
in the early months of resettlement; the presence of a ‘like-ethnic community’ protects individuals’ mental health (Beiser &
Feming, 1986).
Refugees might see themselves as temporary residents in the host society and, therefore, may have a higher
motivation to maintain their own language. However, the mental health of the refugees during the initial period of
resettlement may in itself affect the motivation for learning a new language.
Mastery appeared to be positively related to motivation for language training both among new and old arrivals. The
literature on coping strategies has long been related to positive health; high scores of mastery have been associated with low
levels of health complaints(Olff, 1999). Individuals who have been exposed to many stressors and have low mastery-oriented
coping, will experience more health complaints than individuals who are high mastery-oriented.

662
The ways in which individuals have perceived traumatic events, in the past and in the present, and the personal and
cultural meaning attributed to the traumatic experiences, are closely linked to coping and post-trauma effects (Dahl, Hauff,
Sveaass & Lavik, 1989) (25). Some people try actively and resiliently to deal with difficulties, while others just succumb
when negative emotions come into them (Younger, 1991). Thus, the refugees’ ability to meet demanding challenges and
control their new life is made visible by the positive relationship between mastery and motivation for Norwegian language
training.
Not surprisingly, perceived discrimination was found to be negatively related to motivation for participation in the
language training program. The association between the perceptions of discrimination and motivation may increase
vulnerability to psychological distress and consequently the motivation for mandatory language training (Jasinskaja-Lahti &
Liebkind, 1998; Kessler, Mickelson & Williams, 1999; Noh, Beiser, Kaspar, Hou & Rummens, 1999; Noh & Kaspar, 2003).
A higher level of education was associated with greater motivation only for old arrivals. The reason for this is
unclear. A possible explanation might be that in the first phase of settlement, the refugees’ trauma related experiences seem
to exert a strong influence on their situation in general and probably on their motivation for language training in particular,
independent of their level of education.
Previous studies have demonstrated that language proficiency is an important key to a migrant’s process of
acculturation. Learning the language of the country of settlement is one of major challenges for migrants, and the length of
time it takes to learn a new language, depends on many factors. One is how refugees’ special needs are met. Another is their
personal motivation, which could be strong or weak. The wider social context, in which migrants are settled, is also of great
importance (Phinney &Haas, 2003).
If successful language training is to be achieved, refugees should be given the opportunity to deal with their
traumatic past and their psychological distress while embarking on the mandatory language training program. Monitoring
refugees’ mental health prior to the mandatory language program could be seen as a first step in order to provide adequate
services to refugees’ special needs, and thus even contribute to a more successful outcome of the mandatory language
training program. An innovation in the area of psychosocial support programmes should include procedures for such
monitoring (Lopes, Talley, Burton & Crawford, 2004).
There is little doubt that efforts must be made in order to support refugees in their struggle to achieve an
appropriate level of knowledge of the Norwegian language. Without such knowledge, the refugees cannot fully participate in
the Norwegian society, and the labour market will be less willing to accept their services. On the other hand, the awareness of
pre-migration traumas and psychological distress among refugees seems to be necessary elements in any intervention
program, aiming at successful adaptation.
Since the data size did not allow us to divide refugees in different ethnic groups, the refugees were studied as one
group, just divided in accordance with the number of months they had been living in Norway. By treating the participating
refugees as one research group, we do not claim that they constituted a homogeneous group with similar cultural experiences.
That was not the case.
It is also worth mentioning that the sample was drawn from different municipalities in mid-Norway and represented
both urban and rural areas in Norway. Life in cities may be different from the life in the countryside, and sources of social
support in these two settings may vary in Norway, and thus play a role in refugees’ motivation for language training. Such
factors were just not a part of our study.

Conclusion
In summary, the results indicate that for newly arrived refugees, pre-migration trauma experiences may influence
their motivation for learning a new language. On the other hand, psychological distress seems to de-motivate refugees with
longer time in Norway from learning a new language. The results of the present study suggest that a stronger focus should be
given to the provision of rehabilitation, in addition to, or as a part of such a mandatory language training program.

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Etnoeducando e etnoaprendendo: educação pela valorização da ancestralidade


africana e afro-brasileira

Ricardo Fernandes
Unirio
ricfernandesrj@gmail.com

Maria Reis
Unirio/Universidade de Coimbra
asouzareis@fpce.uc.pt

Resumo: O presente artigo pretende abordar as relações étnico-raciais emergentes no cotidiano escolar, o modo como os educandos
percebem o outro, como lidam com a diversidade étnica e, sobretudo, se identificam e percebem as peculiaridades advindas da presença dos
saberes populares de origem africana. Quem é negro? Todos somos iguais? Quando levadas ao coletivo de educandos, a reposta
preponderante é pautada na negação do racismo e numa relação étnico-racial harmônica. Quando aprofundamos nosso olhar sobre o espaço
de convivência desses alunos, de forma violenta, um apagamento da diferença é evidenciado. Partindo de intervenções diretas em duas
escolas do primeiro segmento do ensino fundamental localizadas em comunidades periféricas do Rio de Janeiro e de visitas a educandos de
uma escola quilombola, o texto resulta de atividades pedagógicas pautadas numa metodologia qualitativa de cunho etnográfico. Nesse
caminho, visando atender as demandas do campo de pesquisa, foi feita a opção por uma metodologia de natureza qualitativa na tentativa de
buscar compreender os sujeitos como um todo, dentro desse contexto natural e cotidiano. Nesse caminho, apresenta analises de narrativas, de
historias dos cotidianos. Tendo como objetivos: (a) Identificar como o mito da democracia racial é construído; (b) identificar o modo como o
racismo é percebido pelos educandos, valorizado ou combatido; (c) valorizar os saberes construídos historicamente pelos descendentes de
povos africanos; e, (d) levantar os saberes locais alicerçados na africanidade. Apesar da formação multicultural brasileira, o paradigma

664
nacional prioriza os conteúdos hegemônicos, colaborando para a segregação dos saberes construídos oralmente pelas múltiplas tribos
africanas.

Contextualização
No presente artigo pretendemos abordar a seguinte questão: Qual a importância do patrimônio cultural afro-
brasileiro para a superação do racismo? No desenvolvimento do texto, focaremos nossas análises em experiências
pedagógicas em escolas públicas do Rio de janeiro.
Os dados das intervenções pedagógicas darão suporte na apresentação do modo como as escolas observadas
constroem seus significados sobre os saberes das populações negra. Com uma metodologia qualitativa de cunho etnográfico,
tendo como público alvo alunos e professores. Destacamos a importância da Metodologia da Educação pelos Pares1 nesse
trabalho por trazer por base o solidarismo e a cooperação, como eixo das ações multiplicadoras.
Por meio de atividades, durante três anos, nesses espaços foi lograda a efetivação de um projeto educacional para as
relações étnico raciais. Nossa opção metodológico tomou como referencial as presenças culturais afro-brasileiras inseridas no
cotidiano da comunidade escolar e, a partir de então, propós um dialógo com outros significados dessa cultura.
Numa conclusão inicial, afirmamos que os espaços de intervenção e pesquisa vivenciam a cultura negra, mas
podemos dizer que as resignificações ocorreram de modo diferente devido as peculiaridades de cada ambiente. A
comunidade quilombola é um espaço tradicional da cultura negra inserida num contexto rural, enquantos as escolas
populares, estão localizadas em comunidades negras urbanas.
Mas, o que trataremos aqui, é o modo esse grupo elabora sua auto-imagem enquanto descendentes de povos
africanos e suas relações com essa cultura. Levaremos em conta, as especificidades dos ambientes e dissertaremos sobre a
importância da negritude na/para a superação do racismo.
Este trabalho surgiu como fruto do Programa de Extensão PROETNO: Etnoconhecimento para um
EtnoREconhecimento: a importância dos saberes das comunidades tradicionais para a construção de uma educação pública e
popular com qualidade social, coordenado pela Profª Drª Maria Amélia Reis em um coletivo interdisciplinar de estudantes e
professores, que desde o ano de 2004, atua objetivando o fortalecimento da educação popular, a (re)valorização dos saberes
tradicionais que constituem as matrizes do povo brasileiro e a construção de metodologias e propostas educacionais pautadas
na etnicidade e estima pela diversidade - cultural, sexual, étnica e ambiental.

Interculturalidades ou Aculturações?
Historicamente a sociedade brasileira foi formulada por meio de intercâmbios culturais. Não podemos definir a
cultura brasileira como única e com rituais definidos para todos os seus territórios e população. Em cada espaço do Brasil, as
culturas matrizes se cruzaram de modo diferente e formularam novos ritos.
Na Declaração Universal sobre a diversidade cultural, a Unesco declara que:

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e
na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de
intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o género humano, tão necessária como a
diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o património comum da humanidade e deve ser reconhecida e
consolidada em benefício das gerações presentes e futuras (Unesco, 2002, p. 19).

São estes intercâmbios que concebem a cultura afro-brasileira, e a cultura brasileira de modo geral. Mas, qual o
motivo de frisar os intercâmbios culturais inerentes a negritude? O fato de ser uma cultura historicamente segregada e
silenciada nas relações de troca. O que ocorre é um apagamento do pertencimento étnico em prol de uma cultura padrão.
Ribeiro (1996) diz que por meio de uma série de relações sociais, de imposição ou de processos de assimilação, é
gerado o povo brasileiro. Tornando ainda mais heterogênea as capacidades de produção de saberes, formando segundo ele:

Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente
mestiça, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também
novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo
novo ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-
econômico, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial (Ribeiro, 1996,
p.136).

1
Educação pelos Pares: De Educandos a Educadores… Uma Estratégia atractiva mas de grande exigência. Ser Solidário - Boletim Informativo da Associação
Saúde em Português, Ano 4, nº 34, pp. 7-9. A grande finalidade de qualquer programa de EP será sempre a de influenciar positivamente a saúde através de
processos e experiências de aprendizagem e de desenvolvimento, que podem combinar os diferentes níveis de intervenção em saúde como seja facultar
informação, fazer sensibilização para um determinado problema, efectuar formação e, ainda, incentivar, manter ou mudar atitudes e comportamentos. Pinheiro,
M.R. (2006).

665
O que justifica uma educação para superação do racismo é a necessidade de denunciar os processos sociais de
segregação cultural do negro. É evidente a pluralidade cultural, mas nos processos de formação escolar, o que vigora é
apresentação de um modelo padronizado em que a negritude é considerada como senso comum.
É necessário então, propor uma educação intercultural que fomente a valorização dos saberes do “outro” e do que é
construído no cotidiano, independente da origem étnica. Pois, «o trabalho intercultural pretende contribuir para superar tanto
a atitude de medo quanto a de indiferente tolerância ante o “outro”, construindo uma disponibilidade para a leitura positiva da
pluralidade social e cultural» (Fleuri, 2003, p.17).
O modo oral de aprender, ensinar e se comunicar na cultura africana, não é um fator limitador. No contexto local as
vozes não soam apenas como um veículo de comunicação, é através dela que são pronunciados os saberes ancestrais, elevam-
se lideranças políticas e religiosas, ou que um jovem é promovido a um lugar de importância. Não existem avaliações
pautadas nas capacidades de escrita, mas sim, no modo como eles constroem seus conhecimentos pautados no saber
ancestral.
Foi por meio desse modo de educar que podemos vivenciar essa cultura, nos processos de formação religiosa, por
exemplo, existe a presença do ancestral que admoesta seu discípulo e no ambiente religioso, por meio dos cantos e das lições,
mantém uma educação tradicional.
A cultura oral é uma tradição que permeia todos os ritos da comunidade é uma comunicação cultural. «É uma
cultura própria e autentica porque abarca todos os aspectos da vida e fixou no tempo as repostas às interrogações dos homens.
Relata, descreve, ensina e discorre sobre a vida» (Altuna, 2006, p.115).
É na oralidade que fica evidenciado o pensamento do africano, através de suas poesias, mitos, romances,
lendas...Sua individualidade e coletividade são manifestadas pelo som que é proferido de sua boca. Toda ação dentro desse
grupo possui um sentido educativo, uma forma de manter os ritos e fortalecer os mesmos dentro dos mais jovens.
A escravidão proibiu os negros de manterem essa estrutura, era necessário transgredir para manter seus ritos.
Durante a madrugada realizar seus ritos religiosos e falar em seu dialeto em espaço de reclusão. Ainda hoje é necessário usar
a marginalização para afirmar sua identidade cultural?

Proetno: vivências do trabalho de campo em Etnoeducação


Do trabalho de campo junto as escolas foi possível inferir que não existe um diálogo efetivo com as culturas
populares, sobretudo os que possuem suas origens na africanidade. Como resultado desse distanciamento, surge a mitificação
de sua própria cultura, e o abandono na mesma no convívio escolar.
As escolas observadas, apresentaram limitações para educar para a diversidade, mas isso devido ao fato de não
conhecer essa cultura. Assim, preferem abandonar e educar de acordo com o que é divulgado pelas instituições responsáveis
pela formação. Assim:

Reconhecemos que nossa escola pública, aquela em que deve proporcionar a educação popular de qualidade, não
traz em si as possibilidades de ensinar os conteúdos produzidos pelos diferentes grupos sociais, sejam eles, oriundos da
diversidade multiplural ou, especificamente construídas pelos grupos indígenas e negros (Reis, 2005, p.15).

Durante nossas intervenções em escolas dos diferentes seguimentos2 foi possível observar que as culturas
tradicionais brasileiras são abordadas dentro de atividades periódicas, datas comemorativas ou de reflexão das questões em
pauta neste trabalho, carecendo as mesmas de contextualização necessária acerca das tradições, costumes e reconhecimento
dos saberes das comunidades tradicionais e originárias de nossa brasilidade.
Desta forma a apresentação das culturas afro-brasileiras, por vezes, restringe-se a elementos mitificados e
folclóricos, como o samba, a feijoada, a escravidão, a capoeira e a favela. Esse tipo de abordagem, que somente ressalta
elementos pontuais de histórias e culturas tão vastas e plurais, favorece a descaracterização da identidade do educando afro-
brasileiro, pois motiva uma sensação de não-pertencimento dos sujeitos ao padrão imposto de “negro de sucesso” como os
grandes jogadores de futebol e sambistas famosos. E sobre isso Ubiratan Castro argumenta que,

Claro, o negro está na favela, no morro, no carnaval, mas também está nas artes, nas letras, na política, na justiça,
na academia, nos sindicatos, nas lutas populares, enfim, em toda a vida brasileira. E, em todos esses aspectos, com uma
presença marcante, que não é destacada. Há uma série de figuras que participaram da vida política e cultural brasileira e cuja
presença não é registrada nem analisada pelos meios de comunicação. (CASTRO apud SANTOS, 2007, p.136)

Dialogando com Castro, acrescentamos para além dos meios de comunicação, a nossa escola, livros didáticos e
currículos dos cursos de formação para a docência. Sendo necessário assim, refundar o pensamento educacional, tomando em
conta o que Altuna (2006) nomeia de ciência negra.

2
Foram utilizadas como campo de pesquisa na área educacional as seguintes instituições: Escola Municipal Oswaldo Aranha, Escola Municipal
Vereador Américo de Souza e Colégio Estadual Hebert de Souza.

666
Construções de saber que transcendem a mitificação e atingem uma importância fundamental na sociedade, como
por exemplo, os saberes das ervas, a compreensão da natureza como parte da ancestralidade (compreensão ecológica).
Conhecimentos que ainda hoje se manifestam e que perduraram, nas contações de histórias e demais modos orais de ensinar.
Dentro das intervenções, no grupo de escolas, era notável o distanciamento do corpo docente com relação às
realidades desses grupos étnicos. Os professores se colocavam como sujeitos limitados para fundamentar suas aulas na
diversidade e muitos educadores evidenciaram suas limitações em abordar o etnoconhecimento em suas salas de aula.
“Nós temos medo de trabalhar com essa temática, temos medo de continuar proliferando os preconceitos” (Fala de
um educador da escola municipal Oswaldo Aranha, Caderno de campo março de 2007).
Tal fator, está ligado a ausência de um projeto educacional plural. Precisamos afirmar aqui, que nossa cultura é
diferente em cada ambiente e que a padronização determina a segregação de determinados saberes em detrimento de outrem.
Esse distanciamento dos saberes pertencentes aos grupos afro-ameríndios, colabora para segregação sócio-cultural
dos sujeitos que vivenciam e descendem desses grupos étnicos. Esse processo se constitui na mitificação do que é popular, na
segregação da memória local e do apagamento das construções de saberes construídas historicamente.
Dentro desse trabalho com os educadores, havia permanentemente uma receptividade pela proposta de trabalho de
nosso grupo de intervenção e muitos ainda participam de nossos planejamentos de oficinas visando aproximar a atividade da
realidade do grupo. Sempre justificando seus déficits para abordar a temática na carência da formação obtida durante sua
preparação acadêmica. E, afirmavam, a inexistência de políticas institucionais que possibilitassem uma formação com vista a
ampliar sua visão sobre a diversidade étnica.
Podemos afirmar, que a exclusão da cultura negra no processo educativo é fundamenta na carência de formação.
Mas junto a isso, trazemos a dificuldade de tradução de suas manifestações cotidianas como intrínsecas a cultura negra. Em
diversas atividades, percebíamos a surpresa dos educadores com a génese de determinados ritos e o significado dos mesmos.
No que tange aos educandos, em sua grande maioria negros e pardos, num primeiro olhar, poderíamos ter a falta
impressão de apagamento dos saberes afro-brasileiros. Um afastamento inicial é observado, mas devido às restrições
presentes na sociedade, ou seja, pelo medo de ser ainda mais segregado.
Mas, com o aprofundamento das atividades, os educandos apresentavam suas significações e os modos como
modificavam os conhecimentos afro-brasileiros. Negando assim, as mitificações e distanciamentos, por meio da valorização
do que aprende no contato com seus familiares.
Podemos dizer que os educandos revelam “duas culturas”, uma que é manifestada a nível macro-social e outra que
é afirmada em contextos micro-sociais e comunitários? Não, o que ocorre é a supressão dos ritos inerentes a seu espaço de
vivência comunitária. Esquecer sua cultura, seu modo de expressar, suas estruturas de pensamento para não elevar sua
exclusão.
A sociedade cria esse jogo, onde devemos padronizar os comportamentos e abandonar as historicidades. O que é
valorizada é o capital cultural passível de geração de lucros e que desfruta da visibilidade no mercado. Assim, o que é dito
peculiar é efetivado como global.
Mas, que devido a efemeridade do processo de mundialização, pode retornar ao seu lugar de segregado. Como
formular uma identidade cultural nesse contexto: Onde ainda vivemos uma segregação racial advinda da escravidão e que
atualmente, é agravada pela vulnerabilidade das práticas culturais do mercado globalizado?
Na atual fase do modelo capitalista é o imediatismo que vigora, o presente, onde o tempo e o espaço são cada vez
mais comprimidos. Tomando por base essa consideração, de que modo poderemos fornecer hipotéses sobre a nossa de
igualdade, nessa temporaneidade imediatista e fulgás, devido as intensas mudanças das regras do mercado.
E caso possamos atingir esse modelo, de que modo exercemos nossa autonomia identitária?Escrever sobre a
igualdade e sobretudo, sua importância no estabelecimento das atividades educativas trazem a tona as contradições de
formação do sujeito. Dizemos contradições pautados no modo como as relações cotidianas são frequentemente modificas
advindas das imposições do mercado e ainda, pela busca das identidades culturais em guetos de proteção sócio-cultural
(Castels, 2003).
A sociedade, independente do grupo cultural “se perde” em meio ao nosso “poder” de compra, que é divulgado
frequentemente nas campanhas de marketing e, na reclusão em nossos ritos culturais que podem favorecem nossa
manutenção enquanto grupo étnico. Nos perdemos nessa circulação, entre a capacidade de consumir cultura e viver nossa
historicidade. Assim, Nesse complexo ciclo de trocas, em certos momentos, não conseguimos definir se o que vivenciamos é
uma experiencia global ou local.
Falamos em proteção de identidades ao mesmo tempo que consumimos produtos que comercializam uma cultura
global distanciada de nossa realidade, valorizamos nossa cultura local, mas aderimos a cada instante ritos que pertencem a
uma cultura cada vez mais disforme, que obedece apenas as regras de comercialização, despontando como um produto
descontextualizado.
Para alguns defensores do processo de mundialização e de intensificação das relações e trocas culturais, esse
modelo reduz as distancia entre culturas e viabiliza as apropriação de ritos externos, por meio das oportunidades de consumir
a cultura do outrem. No entanto, todos sabemos que as redes do mercado buscam consumidores e que nem todos conseguem
exercer tal papel devido o seu lugar na economia, assim, os produtos terminam por serem focados a ethos determinados.
Vivemos numa mistura de submissão à cultura de massa e de recuo para nossa vida privada [...] quanto mais
depositamos numa vida publica cada vez mais global, através da produção, do consumo e da informação, mais sentimos

667
também a necessidade de encontrar na nossa vida privada pontos de apoio para não sermos arratados pelas mensagens
simultaneamente sedutoras e impessoais da sociedade de massa (Touraine, 1995, p114)

Não é fácil a separação entre público e particular, individual e coletivo, as identidades se confundem ao passo que
as informações são lançadas numa velocidade impossível de viabilizar separações, analises e escolhas. Pois,

Já não sabemos quem somos. Durante muito tempo, a nossa patologia principal proveio do peso repressivo que as
interdições e a lei exerciam sobre nós; vivemos uma patologia inversa, a da impossivel formação de um Eu, quer ele esteja
afogado na cultura de massa ou encerrado em comunidades autoritárias (Touraine, 1995, p.110)

4 - Educar para superar: romper barreiras


O modelo vigente de educação colabora para a segregação dos saberes. Isso se dá pela busca da racionalidade e da
necessidade de cientificar a vida. A academia precisa sobrepor sua razão e sua metodologia em detrimento dos modelos
milenares de construção do saber. Quantos dos saberes populares africanos foram perdidos, e quantos desses saberes foram
submetidos às severas regras de enquadramento e perderam a sua naturalidade. Na tentativa de manter esse regime de
produção mecanismos de respostas sustentáveis, éticas, comunitárias, locais, e principalmente, coletivas foram deixadas de
lado.
No fim de contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o
desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso é necessário propor um
modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante os
últimos duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem,
tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e
descrédito (Santos, 2001, p.23).

Essa hierarquização de saberes construiu uma educação homogênia, valorizando uma ótica cultural em detrimento
de outra que emerge das relações cotidianas de construção de saberes. Esse cotidiano que é classificado como senso comum,
está fora da escola, é classificado como secular e não deve ser “ensinado”, pelo contrário, precisa ser combatido com as
verdades propagadas pela ciência. Nesse ciclo, o educando é visto como sujeito vazio, que necessita ser preenchido com os
saberes legitimados pela estrutura de poder, poder esse exercido pela intelectualidade, seja ela local, regional ou global.
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem
perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra,
proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que
penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade (Foucault, 1999, p.123).

Assim, as organizações sociais, famílias, ancestralidade, e demais construções de saberes pautadas na vivência e na
oralidade, são limitadas por uma estrutura discursiva. Estrutura que determina o que deve ou não, penetrar no modelo
educacional vigente. Desse modo, as construções históricas sociais são desfeitas em detrimento de uma educação pautada em
censuras.
Criando verdades sobre a vida, classificando um modo de pensar como primitivo, e outro com desenvolvido,
criando ainda o meio termo como subdesenvolvimento, impondo, padrões de classificação que não passam pela avaliação dos
atores que as produzem. Impondo uma linha de tempo onde são criadas normas para enquadramento ou desclassificação,
impedindo assim, a
convivência dos saberes instantâneos da Internet com a roda de contação historias dos povos africanos. Limitando
assim as construções de mundo:
A versão abreviada do mundo foi tornada possível por uma concepção do tempo presente que o reduz a um instante
fugaz entre o que já não é o que ainda não é. Com isto, o que é considerado contemporâneo é uma parte extremamente
reduzida do simultâneo. O olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue ver nela senão o camponês
pré-moderno (Santos, 2001, p.131).

Invalidando a forma local de luta pelo poder que seus ancestrais construíram, através das resistências a
escravização, e não enxergando que negritude é um lugar de poder local, essa foi a luta dos escravos e deve ser a de seus
descendentes, criar em meio ao mato um pedaço de Ifé3, uma terra onde podiam cultuar seus deuses e vivenciar seus ritos.
Um espaço construído com luta, articulação política e organização, que hoje é atingido pelas estruturas discursivas que
induzem ao distanciamento da ancestralidade e a aproximação à padronização.

3
A cidade de Ilê-Ifé é considerada pelos yorubas o lugar de origem de suas primeiras tribos. lfé é o berço de toda religião tradicional yoruba,é um
lugar sagrado, onde os deuses ali chegaram, criaram e povoaram o mundo e depois ensinaram aos mortais como os cultuarem, nos primórdios da civilização. Ilê-
Ifé é o "Berço da Terra".

668
Nosso contexto social é cotidianamente confuso, vemos a coexistência de cultura e da mundialização, mas não é
por acaso que notamos a pressão para que tomemos uma direção. Somos sujeitos viciados na estrutura social do modelo
clássico, ou conseguimos lutar contra as pressões do mercado e de homogenização da cultura? Conseguiremos disputar com
os membros de nosso ciclo social que impõe valores distorcidos e por vezes, nos obriga a seguir normas que nos ferem. Pois,
«era a socialização que fazia triunfar o principio de realidade, que impunha à desordem dos desejos a ordem da lei, que
substituía a guerra de todos contra todos pela paz que faz reinar o Leviatão ou a vontade geral» (Touraine, 1995, p.123).
Enquanto membros da sociedade, precisamos despertar para essa nova fase das relações sociais, abandonando
assim, a crença nos “pacotes” de valores finalizados e emergir com as nossas próprias considerações de mundo. Crer na
viabilidade de convivência numa sociedade em que coexistem múltiplos projetos exige um fortalecimento das identidades
enquanto Sujeito e no respeito aos construítos do outro.
Estamos desprotegidos na atual fase da Globalização:
destruição dos conjuntos organizados e auto-regulados, civilização, sociedade, sistema político, atinge também a
experiência pessoal dado que a unidade desta se encontrava refletida no espelho das instituições: a imagem do cidadão, a do
trabalhador, interiorizavam as normas e os valores das sociedades de progresso. (Touraine,1995, p.220)
Neste bojo o corpo cultural tradicional perde espaço, pois já não é mais nas escolas, nas instituições que buscamos
gerar nossa identidade, mas na junção de nossa historicidade, do contato com outros e na reflexão do que queremos afirmar.
Assim, o conceito de igualdade, fica condicionado a geração das subjetividades dos indivíduos.
Então, um militante da causa negra, precisa antes de ser membro do grupo, construir suas noções de cultura, valores
e sexualidade, para em seguida ingressar no contato com outros, a luz de suas convicções e formar num espaço dialógico
indagações frente a sociedade. Só que não podemos deixar aqui de citar o que Touraine (1995) chama de pontos de ruptura da
Modernidade, o universo das técnicas e o comunitarismo, ainda segundo esse autor, os dois conceitos buscam fornecer aos
sujeitos, independentemente de sua identidade sexual e étnica, moldes de formulação da identidade.
A reconstrução da experiencia só pode efetuar-se por um duplo despreendimento, por uma dupla reação contra a
degradação das duas metades da experiencia. O depreendimento da comunidade está em abandonar a cultura da comunidade
e logo as regras e convenções que estavam ali estabelecidas. (Touraine, 1995, p.116)

Assim, percebemos o processo de formação do sujeito como um retorno a sua memória coletiva e sobretudo, na
negação da reclusão em espaços de formatação identitária e dos mecanismos de sedução presente na mídia em prol da
pregação dos valores do mercado mundializado. Por isso,
... leva-nos a procurar, sobretudo, não superar contradições sociais, mas tratar do sofrimento do indivíduo
dilacerado, dado que este já não pode apelar a um deus criador, a uma natureza auto-organizada ou a uma sociedade racional.
O sofrimento é individual é a principal força de resistência à dilaceração do mundo Desmodernizado. (Touraine, 1995, p.123)
negar aos modelos presentes no Mercado e fugir do conforto presente em convenções comunitárias, é um ato de
exploração da capacidade de formular novas regras para a sociedade. Limitaríamos de maneira relevante nossas experiência
se encerramos nosso “Eu” cultural na comunidade, e nos perderíamos sobremaneira se tomássemos a mundialização
enquanto formadora de nossa identidade.
A formação da identidade do sujeito, o que Touraine (1995) chama de Subjetivação, deve:
... realizar-se a partir de uma exigência do indivíduo, que não suporta estar dividido consigo mesmo ou estar numa
dupla depêndencia. Não é o indivíduo como tal que procurar reconstituir-se, encontrar a sua unidade e a consciência desta.
Esta reconstituição só pode realizar-se se o indivíduo se reconhece e se afirma como Sujeito, como criador de sentido e de
mudança e também de relações sociais e de instituições políticas. (Touraine, 1995, p.245)

Referências:
Santos, J.R. (1994). Movimento negro e crise brasileiras. Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares: Brasília.
Semog, E. (2007). Poetas negros, Movimento Negro e alguma vida. Rio de Janeiro: Uerj.
Touraine, A. (1997). Iguais e Diferentes: Poderemos Viver Juntos?. Lisboa: Piaget.
Nascimento, A. (2002). O Quilombismo. Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares.
Altuna, R.R.A. (2006). Cultura Tradicional Banta. Águeda: Paulinas.
Fiabani, A. (2005). Mato, palhoça e pilão: O quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes [1532-2004].São
Paulo:Expresso Popular.
Fernandes, F. (1978). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:Ática.
Cunha, H. (1992).Textos para o movimento negro. São Paulo: Edicon.
Domingues, P. (2007). Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Paraná: Unioeste.
Folha On Line. (2008). Desigualdade educacional entre brancos e negros. www.folhaonline.com.br (acessado em 19 de
novembro de 2008).
Karasch, M.C. (2000). A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras.

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Identidades e Diferenças em Trocas Culturais entre Crianças Brasileiras e
Portuguesas

João Josué da Silva Filho


Universidade Federal de Santa Catarina, Núcleo de Estudos da Educação na Pequena Infância
silva.jjsf@yahoo.com.br

Resumo: Este trabalho buscou examinar diálogos e trocas culturais entre crianças de realidades diversas. A idéia foi contribuir para uma
compreensão maior sobre as concepções que as crianças têm de si, dos outros e do mundo, considerando que elas não estão isoladas e nem
são impermeáveis aos contextos onde se movem. O material empírico foi coletado daquilo que as crianças produziram em oficinas de
expressão desenvolvidas em um projeto de itinerância realizado por um dos parceiros do nosso grupo de pesquisa, a Oníria (vídeo, fotografia
artesanal, registros sonoros, narração de histórias e ilustração das mesmas). Dentre todo o material com o qual pudemos tomar contato,
decidimos que seria bastante interessante analisar algumas histórias contadas pelas crianças na etapa da Amazônia. Das 43 coletadas ali,
selecionamos nove. Nossa proposta parte do desafio de apoiar a expressão daquilo que viveram, e vivem, as crianças nestes espaços, a partir
da expressão delas mesmas, de seus desejos, seus anseios, suas alegrias, e suas tristezas, sua luta cotidiana pela dignidade e a sobrevivência.
Entendemos que por estarem menos contaminadas pela projeção das conseqüências de suas perguntas e explicações, as crianças tendam a ser
mais contundentes em sua aparente simplicidade. Em nosso entender esta característica favoreceu a captura de ângulos pouco usuais do
cotidiano, ângulos talvez essenciais para a continuidade de trabalhos que se preocupem em melhorar as relações entre a cultura adulta e as
crianças, aspecto este fundamental para a tarefa dos educadores.

I. INTRODUÇÃO
Acompanhando o objetivo geral de “Promover a ampliação do esforço de indagação teórica em torno dos mundos
sociais, educacionais e culturais da infância …” explicitado no projeto federador (SARMENTO, 2005), a frente de trabalho
em que se baseia este artigo possuía o objetivo específico de analisar as produções simbólicas materiais (desenhos,
esculturas, textos verbais, outros artefatos) feitas por crianças de diferentes proveniências étnicas e culturais, a partir das
respectivas marcas históricas e de identidade, com a promoção de trocas culturais e a “re-escrita” das marcas culturais
alheias, numa perspectiva de interculturalidade ativa, bem como analisar também a relação desse processo com a construção
da educação escolar, especialmente com a educação da infância e a educação básica obrigatória.
O projeto federador como um todo se centrava na expectativa de conhecer e interpretar os modos de inserção social
das crianças portuguesas e brasileiras, numa perspectiva comparativa, tendo em vista a análise das "culturas infantis" e os
modos de produção simbólica realizados pelas crianças e para as crianças; a relação desses modos com a construção da
educação escolar, especialmente com a educação da infância e a educação básica obrigatória; estruturação das produções
simbólicas sobre as crianças e sua educação, no âmbito político, normativo e científico, quanto às suas possibilidades e
limites para uma plena e ativa cidadania da infância.
A experiência de intercâmbio foi desenvolvida entre Brasil e Portugal no âmbito da educação infantil. Nasceu no
espaço de uma proposta de cooperação internacional intitulada, Crianças: Educação, Culturas e Cidadania Ativa - CECCA –
(projeto federador), resultado da articulação existente entre a Linha de Pesquisa em Educação e Infância vinculada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil e o Instituto de Estudos da
Criança da Universidade do Minho, Portugal.
Pensamos o estudo da interculturalidade enquanto processo simbólico de troca cultural, como promoção de
estratégias efetivas para uma pedagogia da interculturalidade e da inclusão. Consideramos que a multiculturalidade é um
dado inerente à realidade social e educacional da modernidade tardia (ou, se se preferir, da pós-modernidade). Todavia, se as
trocas culturais múltiplas decorrem do cosmopolitismo contemporâneo, das migrações das populações empobrecidas e
expropriadas dos países periféricos e semi-periféricos e da difusão de expressões culturais múltiplas no âmbito das complexas
formas de difusão cultural coletiva contemporâneas, a multiculturalidade não é, em nosso entender, necessariamente
sinônimo de inclusão.
Pode ser até pelo contrário, pois ao apartheid social e ao assimilacionismo conservador há que se acrescentar as
formas de multiculturalidade considerada “benigna” que acaba implicando na promoção de exclusão social de grupos sociais,
étnicos e culturais minoritários. Estas formas, com efeito, consistem em modos de apreensão fetichista e folclórica do
diferente como exótico e não como detentor de direitos efetivos de cidadania. A pedagogia da interculturalidade não pode,
assim, dissociar-se de uma análise das implicações políticas e simbólicas das trocas culturais. Na proposta de trocas culturais
entre as crianças busca-se compreender, também no sentido social e político, como se realizam, a partir do trabalho
pedagógico com crianças, essas trocas. Nesse sentido, interpreta-se a interculturalidade no espaço-tempo onde se entrecruzam
as culturas societais e comunitárias múltiplas com as culturas infantis.
Na proposta, essas atividades foram organizadas em quatro grandes movimentos, a saber: 1) as crianças foram
estimuladas a recolher, junto ao seu contexto de vida, manifestações próprias do viver naquela comunidade (hábitos,
histórias, receitas de culinária, parlendas, objetos símbolo de algum ritual típico, brinquedos, descrição de brincadeiras, etc.);
2) o material recolhido foi “socializado” com o resto do grupo, momento em que cada um explicava o que trouxe e os adultos

670
propunham diferentes formas de registro (escrita, desenhada, esculpida, filmada, fotografada, gravação sonora, etc.); 3) esse
material era remetido às crianças de outro contexto; 4) ao contato com o material “estrangeiro”, em cada contexto, foi
proposto que as crianças produzissem algo em resposta ao que receberam de fora.

As manifestações despertadas nas crianças em cada um desses movimentos foram exploradas pedagogicamente
pelos adultos no sentido de desenvolver uma formação multicultural (através da “leitura” e interpretação do material recebido
em comparação com os produzidos no local). Entre 2002 e 2006, essas ações congregaram, no Brasil, um grupo de
pesquisadores distribuídos entre professores da rede municipal de Florianópolis, da rede particular de ensino deste mesmo
município, da UFSC (Núcleo de Desenvolvimento Infantil - NDI, curso de Pedagogia e de Psicologia), articulados em torno
do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Educação na Pequena Infância - NUPEIN -que acatou o desafio de pesquisar os modos
simbólicos das trocas culturais realizadas por crianças de diferentes contextos sociais e geográficos (Portugal – Brasil) e de
diferentes raízes étnicas e culturais, com objetivo fundamental de ampliar a compreensão sobre a interculturalidade enquanto
processo simbólico de troca cultural e a promoção de estratégias efetivas que favorecessem esta prática social. Nesse grupo
apenas duas instituições, uma federal (o NDI) e uma municipal (Creche Córrego Grande), estabeleceram efetivo contato com
as crianças portuguesas.

II. AS MARCAS DO TEMPO E A INTERCULTURALIDADE DAS CULTURAS INFANTIS


O primeiro contato e convite para realizar a troca de experiências e saberes entre as crianças brasileiras e
portuguesas ocorreu entre os meses de maio e junho de 2003, quando estabelecemos por e-mail uma primeira conversa entre
uma professora brasileira e uma professora do primeiro ciclo de escolaridade da cidade de Barcelos, Escola de Varziela–
Pereira. A proposta desse intercâmbio envolveu por parte de Portugal crianças na faixa etária de 6 anos aproximadamente, e
pelo lado do Brasil, crianças na faixa etária de 5 anos e 7 meses a 6 anos e 7 meses pertencentes ao NDI.
Aos pesquisadores da Sociologia da Infância ligados com o Instituto de Estudos da Criança interessava mais
recolher as produções das crianças e analisá-las à luz das teorias ligadas aos estudos sobre a globalização, à cultura de pares e
ao protagonismo infantil, pois um dos objetivos da proposta, conforme já expusemos, era compreender como se realizam
essas trocas, explicações, reprodução, etc., a partir do trabalho das crianças. É nesse sentido que afirmamos interpretar-se a
interculturalidade no cruzamento das culturas societais e comunitárias múltiplas com as culturas infantis. No entendimento
que carreamos dai, as “duas culturas” (CORSARO,1997, P. 26) – a especificamente infantil e as da sociedade – que se
conjugam na construção das culturas da infância, na variedade, pluralidade e até contradição que internamente enforma uma
e outra, referenciam o mundo de vida das crianças e enquadram a sua ação concreta. É desta pluralidade e destas
intersecções que nos propusemos a tratar na expectativa de contribuir, assim, para a ampliação do conhecimento sobre as
crianças e para agregar elementos essenciais, ao nosso ver, para orientar a ação pedagógica com elas.
Inicialmente, a professora brasileira e a professora portuguesa combinaram que o primeiro contato entre as crianças
se daria através da correspondência convencional a ser enviada pelo correio. As crianças portuguesas ficaram de enviar os
trabalhos para que fossem apreciados por nós. À medida em que fomos nos comunicando percebemos algumas dificuldades
relacionadas às questões espaço-temporais subjacentes a estes dois países como, por exemplo, a questão do fuso-horário, a
forma de organização tempo/espaço escolar, as estações do ano, e a demora na chegada da correspondência. Uma descrição
densa realizada pela professora brasileira sobre esta atividade com as crianças pode ajudar a compreender melhor as nuances
da atividade, os aspectos positivos e as dificuldades enfrentadas para a realização da mesma.

III. AS TROCAS DE MATERIAIS ENTRE AS CRIANÇAS – AS AÇÕES E REAÇÕES


“A organização e preparação do envio do material produzido pelas crianças portuguesas ao Brasil possibilitou
perceber as inúmeras diferenças culturais existentes entre nós e nossos amigos. A começar pelo calendário escolar, pois em
Barcelos as crianças estavam terminando o ano letivo e nós aqui estávamos a todo vapor. Outro fator interessante diz respeito
ao envio da correspondência pela forma convencional, sujeita a percalços diversas. As crianças brasileiras tiveram que lidar
com esta dificuldade, tanto pelo lado da demora quanto com a frustração, pois, a primeira correspondência portuguesa,
enviada pela professora Luísa, não chegou.
Recebemos a primeira carta somente no início de outubro, quando em Barcelos reiniciava-se o ano letivo para as
crianças. Nossa espera durou aproximadamente 4 meses. Neste período levantamos muitas hipóteses sobre o que teria
acontecido buscando assim, justificar nossa espera. Em alguns momentos esta situação gerou uma certa falta de motivação
devido ao longo intervalo entre a chegada da carta e o envio de nossa correspondência.
Mesmo assim, procuramos explorar este período, examinando com as crianças os aspectos que dificultam a
comunicação e produzindo materiais nas múltiplas possibilidades que a modalidade de intercambio proporciona. Dentre as
atividades encaminhadas com as crianças destacamos especialmente as que se referem aos estudos geográficos: localização
de Portugal no globo terrestre, pesquisas sobre o tempo e as possibilidades de transporte para se chegar até lá, a diferença de
fuso-horário, e as diferentes formas de comunicação (carta, e-mail, etc...).
A chegada do material vindo de Portugal foi inesquecível para nós. Percebemos que eles capricharam. Chegou-nos
um envelope cheio de novidades de lá. As crianças escolheram duas de suas tradicionais lendas para nos enviar: a Lenda do

671
Galo de Barcelos e a Lenda do Milagre das Cruzes. Além dessas encaminharam uma representação simbólica elaborada a
partir do desenho das crianças a respeito de uma tradicional Feira de Artesanato que tem em Barcelos.
Nenhuma de nossas crianças jamais tinha ouvido falar sobre as tais lendas e muito menos conhecia alguma coisa
sobre a localidade de Barcelos em Portugal. Foi um rebuliço enorme. As crianças agitaram-se em busca de conhecer tudo o
que estava presente nos materiais que chegaram.
Nesta experiência ocorreram trocas muito significativas, pois as famílias das nossas crianças também foram se
envolvendo, na medida em que estas chegavam em casa cheias de novidades para contar. Os pais vieram várias vezes em
nosso espaço educativo observar o material gráfico enviado pelas crianças portuguesas que se encontrava exposto em nossa
sala. Ademais, cada visita que aparecia na sala, era convidada a ver nossa exposição, além, é claro, de ter que ouvir as lendas
que foram imediatamente apropriadas pelas nossas crianças.
Outro ponto, muito importante foi à escolha do que iríamos enviar aos nossos amigos de forma que eles pudessem,
ainda que a distância, também conhecer um pouquinho do local onde morávamos, como vivíamos, o que fazíamos, nossos
gostos, enfim tudo aquilo que revelasse a eles uma pequena mostra de como nossa cultura se costitui. Este foi sem dúvida um
exercício fundamental para nós, na medida em que permitiu-nos fazer uma reflexão e reaproximação de algo que é nosso,
mas ao mesmo tempo parece não ser, obrigou-nos a resgatar elementos de nossas próprias raízes, e mais do que isso, extrair
delas aquilo que considerávamos mais relevante para que outras pessoas que nunca estiveram aqui pudessem conhecer um
pouquinho deste nosso lugar.
No percurso destas atividades o nosso grupo de crianças interessou-se em enviar uma de nossas muitas histórias
folclóricas, o Folguedo de Boi-de-Mamão, com a sua história, para que as crianças portuguesas pudessem compreender e
brincar com algo que fosse genuinamente da nossa ilha. Mandamos também, alguns postais com os principais pontos do
Patrimônio Histórico de nossa cidade, além é claro de uma cartinha calorosa. Vale destacar, que todas estas atividades foram
recheadas por intensas descobertas no processo de construção e aquisição da leitura e da escrita por parte das crianças, uma
vez que tudo era motivo de busca, exercício de compreensão e interpretação pelas crianças e por nós.
Para que nossos amigos recebessem este material foi necessário enviá-lo urgentemente, dado que nós aqui no
Brasil já estávamos entrando em férias, e mais do que isso, nossas crianças não poderiam dar continuidade ao projeto no ano
seguinte, uma vez que estariam saindo da instituição indo para a primeira série do ensino fundamental em outras instituições
educativas.
Este acontecimento, apesar de esperado, causou um certo abalo na nossa programação. Mas contornamos bem a
situação e no ano de 2004, continuamos nossa experiência de intercâmbio, envolvidos agora com outra turma de crianças,
tanto no Brasil como em Portugal. No Brasil mudamos apenas de grupo de crianças e não de faixa etária. Já nossos colegas
portugueses mudaram de faixa etária.”.

Desde o início da proposta, a idéia era acoplar à comunicação mais convencional entre as crianças (carta), outras
formas de comunicação assíncronas e sincronizadas, como a comunicação via e-mail e os Chats de conversação. Sempre
tivemos a convicção de que o intercâmbio tanto entre os professores como entre as crianças muito poderia se beneficiar se
conseguíssemos agregar ao processo uma forma de fazê-lo também pelos meios informatizados como a WEB e o correio
eletrônico (mail). Estabelecer também por meios tecnológicos atuais diferentes possibilidades de exploração dos usos da
comunicação. Contudo, somente em 2004, com o apoio do programa FUNPESQUISA de financiamento da UFSC,
conseguimos instalar um computador que permitisse desenvolver esse desejo, não obstante o surgimento de diversas
dificuldades.

As condições para que isto aconteça diretamente nas escolas e em espaços comunitários públicos é, em nosso
entender, essencial para garantir uma aproximação rica e diferenciada com a atividade das crianças. Mas as dificuldades não
são poucas. No Brasil ainda não dispomos das condições ideais para fazê-lo: há carência de equipamento e/ou de infra-
estrutura de comunicação nos espaços comunitários mais periféricos e em grande parte das escolas públicas. Superar esse
entrave, instalar conexões que permitam a agilidade e a estabilidade da comunicação que as crianças e os educadores
necessitam é, sem dúvida, um passo fundamental.
Em Portugal as condições eram algo melhores, mas ainda existiam problemas: não era universal a disponibilidade
de equipamento e nem de infra-estrutura adequada. Vivemos, tanto lá como aqui, da existência de "nichos" em que era
possível a comunicação ágil e abrangente, mas, no geral, enfrentamos problemas.
Além dos problemas gerais relativos à falta de equipamento e precariedade da infra-estrutura de comunicação para
contatos on-line, nas escolas vivemos, ainda, uma certa dificuldade entre os professores e a cultura informática. Embora se
possa dizer que a aculturação dos professores neste domínio se ampliou muito (como usuários) temos muita menos
apropriação do que é desejável para poder lidar com a informática de maneira confortável na situação de comunicação
virtual. Apesar das dificuldades avançamos bastante com a proposta de inserir a comunicação virtual como uma das formas
de intercâmbio entre crianças e entre professores. Podemos anotar como produto deste esforço a criação de um sitio na
internet dedicado à divulgação, registro e contato com as atividades do projeto no espaço formal (escolas) .
Um outro resultado interessante de se destacar nesse aspecto foi a realização da primeira comunicação síncrona on-
line entre as crianças portuguesas (de Barcelos) e as crianças brasileiras (de Florianópolis) em novembro de 2004. Tal
atividade, que já havíamos experimentado entre professores também em 2004, ocorreu via videoconferência (MSN

672
Messenger) e agregou mais um elemento interessante às nossas análises neste processo de compreensão da interculturalidade
empreendido no projeto. Experimentamos mais algumas vezes este tipo de comunicação e consideramos riquíssimo o que
pudemos observar entre as crianças e entre os professores em termos de comportamento e ampliação de experiências. A
chegada ao mercado, em final de 2005, de um outro produto (SKYPE) facilitou bastante a comunicação, embora o problema
de disponibilidade de equipamentos nas próprias salas ambiente das crianças continue ainda a ser um entrave.
Dentre as três fases enunciadas acima, as fases de produção por parte das crianças e de trocas desse material entre
elas foi iniciada com êxito em 2003 e consolidou-se em 2004 e 2005 quando foram ampliadas as formas de comunicação
entre as crianças e também entre as professoras. Dai, avançamos para os procedimentos de registro das reações das crianças
frente ao material que recebiam e para a análise deste movimento (2005-2006).
Em meados de 2005 inauguramos uma outra experiência nesse plano de trocas culturais entre crianças portuguesas
e brasileiras. Essa iniciativa foi conduzida por uma professora portuguesa, estudante de doutorado no Instituto de Estudos da
Criança/UMINHO, conforme previsto no plano de atividades do Projeto “As Marcas dos Tempos: a Interculturalidade nas
Culturas da infância”. As trocas nesse grupo aconteceram entre Novembro de 2003 e Novembro de 2005, tendo culminado
com um estágio da professora na escola brasileira que fazia parte do intercâmbio.
As crianças que participaram desta segunda iniciativa pertenciam a quatro turmas (3 turmas de 1º ano e 1 turma de
3º ano) de 1º ciclo do Ensino Básico em Portugal. As escolas onde estudavam as crianças que participaram do trabalho
situam-se em duas freguesias (uma com aproximadamente 2200 habitantes e outra com aproximadamente 1000 habitantes)
que pertencem ao distrito de Braga, fazendo parte do Concelho de Barcelos (Portugal). As crianças brasileiras estudavam na
4ª série do Ensino Fundamental de uma Escola Básica Municipal de Florianópolis. A escola, onde se encontravam as crianças
que participaram no trabalho no Brasil, situa-se no bairro da Costeira, Município de Florianópolis, Estado de Santa Catarina
(Brasil).

Quadro 1
Caracterização das crianças em função da Escola, cidade, país, turma, ano e gênero, Setembro de 2005

Escola/Cidade/País Turma/Ano Meninos Meninas Total


Escola Mámoa/Barcelos/Portugal Turma das Crianças de todo o mundo/ 1º 10 7 17
ano
Escola Mámoa/Barcelos/Portugal Sala de Estudo do 1º ano /1º ano 13 5 18
Escola Mámoa/Barcelos/Portugal Turma dos Rebeldes/3º ano 12 8 20
Escola São Julião/Barcelos/Portugal Sala dos Portugueses /1º ano 7 13 20
Escola Municipal Básica/ Turma de 4ª série 9 14 23
Florianópolis/Brasil
Total 51 47 98

Foram escolhidas, deliberadamente, crianças de diferentes faixas etárias. Os nomes das turmas em Portugal foram
escolhidos pelas próprias crianças. O trabalho teve como principal objetivo fornecer subsídios para interpretar e explicar os
modos simbólicos das trocas culturais em ambiente escolar, realizadas por crianças de diferentes contextos sociais e
geográficos (Portugal - região de Barcelos e Brasil - Estado de Santa Catarina) e de diferentes raízes étnicas e culturais.
Especialmente, nesse caso, foram abordadas temáticas associadas aos direitos da criança considerando a participação das
mesmas.
Neste caso, as trocas foram efetuadas através da mediação da profa. Catarina Tomás que trazia os materiais
enviados pelas crianças portuguesas, apresentava às crianças brasileira e conversava com elas sobre dúvidas, curiosidades,
questionamentos que levantavam. A curiosidade, o entusiasmo e o interesse que as crianças demonstraram foi uma
experiência impar. Esta motivação permitiu explorar diferentes conteúdos com as crianças e muito as estimulou a buscar
contribuições para enriquecer o material a ser enviado a Portugal.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS


O conteúdo do Projeto dirigiu-se a problemas considerados cruciais para a pesquisa e a prática pedagógica com
crianças. Problemas tais como a constituição de técnicas apropriadas para investigar a infância, o registro da produção das
crianças, a participação infantil, a compreensão daquilo que produzem, a formação para a tolerância e a compreensão do
outro, etc.
Questões teóricas também cruciais para a organização de políticas voltadas para a infância estão no âmbito das
reflexões provocadas pelas atividades inerentes ao projeto. Questões ligadas aos direitos das crianças e às dificuldades
enfrentadas para estabelecer os limites da linha demarcatória entre a autonomia e o controle, entre a proteção e a participação,
entre a afirmação da identidade e o “assujeitamento”. Aspectos que passam pelo conteúdo e pela maneira de trabalhar das
instituições, pela concepção de infância que possuem as pessoas que ali desenvolvem seu trabalho, pela formação que
possuem e pelas condições que lhes são oferecidas para fazê-lo.

673
Procuramos suscitar, com este trabalho de investigação, a hermenêutica diatópica, a promoção do diálogo e as
trocas entre crianças de diferentes países e realidades diversas, sempre numa base de respeito e promoção dos princípios
éticos no trabalho com crianças. Pretendemos contribuir para uma maior compreensão sobre as concepções que as crianças
têm de si, dos outros e do mundo; concepções que a criança construiu através da experiência culturalmente mediada que tem
desse mundo, considerando que a criança não está isolada e nem é impermeável aos contextos onde se move, aliás, muito ao
contrário, por conseguinte podemos afirmar que há uma influência mútua entre contextos e crianças.
Analisar e compreender as concepções/imagens/marcas das crianças sobre si próprias, sobre outras crianças, e sobre
o mundo, é algo de tão importante quanto complexo, porque envolve não só os aspectos políticos e culturais, mas também a
cartografia simbólica, ou seja, o espaço onde se cruzam o imaginário, a história, o contexto e a memória.
Escrever a infância é lê-la, é compreendê-la, mesmo que muitas vezes ela se mostre ilegível, incompreensível, à
primeira vista. No fundo, é uma tentativa de mapear a multiplicidade dos sentidos, as múltiplas vozes e as diferentes escalas
onde as crianças se movem e são movidas. Mas essa tentativa terá que ser feita utilizando um trabalho de tradução e
utilizando metodologias qualitativas uma vez que é através das mesmas que há uma maior aproximação e colaboração entre o
investigador e as crianças. Procurou-se uma metodologia que fosse para além de ambientes artificiais, laboratoriais e
experimentais, como muitas vezes ocorre com trabalhos de investigação com crianças, mas utilizando um design
metodológico que considere a importância dos espaços-tempos das crianças. Privilegiar os métodos que permitissem a
participação das crianças.
Pudemos perceber que os objetivos das professoras que trabalharam com as crianças e os objetivos dos
pesquisadores que as investigaram no espaço educacional possuíam pontos de tangenciamento, contudo diferenciavam-se em
vários aspectos. Ao diálogo possível entre esses interesses distintos temos chamado, estudos sócio-educativos. Esses estudos
sócio-educativos têm sido, principalmente, alimentados por uma parte de um grupo brasileiro que se interessou mais em
investigar o impacto da proposta de trocas culturais entre as crianças sobre a prática dos professores responsáveis por
conduzir o trabalho docente com elas (ação esta, desencadeada, a partir de um certo momento e denominada - CIPROCEI -
ação 2 do projeto Marcas do Tempo). Como em Portugal a componente mais forte desse subprojeto foi ligada à Sociologia da
Infância, tais estudos tiveram no grupo brasileiro, maior aproximação. Um produto importante da estada de dois
pesquisadores brasileiros realizando estágio pós-doutoral em Portugal (em 2004), foi ter conseguido trabalhar, também com
os professores de lá, a percepção desta componente que consideramos fundamental para a formação dos educadores, contudo,
no presente texto não exploraremos mais a fundo esta parte relativa ao Ciprocei, pois a mesma deu origem a um texto
específico organizado em separado.
Concluímos que as ações dessa frente de trabalho trouxeram indicações essenciais para problemas considerados
cruciais na pesquisa e na prática pedagógica com crianças. Problemas tais como a constituição de técnicas apropriadas para
investigar a infância, o registro da produção das crianças, a participação infantil, a compreensão daquilo que produzem, a
formação para a tolerância e a compreensão do outro, etc. Questões ligadas aos direitos das crianças e às dificuldades
enfrentadas para estabelecer os limites da linha demarcatória entre a autonomia e o controle, entre a proteção e a participação,
entre a afirmação da identidade e o “assujeitamento”.

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Westview Press.

A competência linguística e a relação pedagógica: necessidades para o sucesso


escolar

Carolina Gonçalves
Escola Superior de Educação de Lisboa
carolinag@eselx.ipl.pt

Resumo: Nesta comunicação, pretende-se apresentar o resultado de dois Estudos, um sobre as competências linguísticas dos alunos de
ascendência africana, tecendo comparações paralelas com as competências manifestadas pelos alunos lusos; e outro sobre a relação
pedagógica, auscultando os alunos sobre as necessidades para o bom funcionamento de uma aula de língua portuguesa. Num primeiro
momento, pretende-se averiguar as dificuldades linguísticas manifestadas pelos alunos de ascendência africana, tendo como ponto de partida
um estudo realizado anteriormente no qual se entrevistaram alunos de ascendência africana acerca das dificuldades sentidas na língua
portuguesa, e conhecer as suas interferências na aprendizagem de todas as disciplinas do currículo. Num segundo momento, a partir da
análise de questionários aplicados a alunos de ascendência africana, é nosso objectivo saber das suas necessidades e sugestões para realizar
com sucesso a aprendizagem na disciplina de Língua Portuguesa e consequentemente nas restantes disciplinas. Os Estudos pretendem
contribuir, através da reflexão, para a construção de actividades a realizar em sala de aula, assim como apresentar estratégias de ensino-
aprendizagem de uma língua, neste caso a língua do país de acolhimento, tendo sempre em vista o sucesso de todos os alunos no seu
percurso de aprendizagem, independentemente da sua origem cultural e linguística.

O ensino em Portugal é ministrado unicamente na sua língua oficial – o Português, exigindo, como tal, aos alunos
oriundos de outras nacionalidades devem ter um pleno domínio da língua de escolarização para que o seu percurso de ensino-
aprendizagem seja bem sucedido. No Estudo apresentado, os resultados parecem, por vezes, apontar no mesmo sentido,
acentuando o facto de os alunos oriundos de outros países terem maior dificuldade em prosseguir os seus estudos devido à
sua incapacidade de compreender a língua oficial do país de acolhimento.
O domínio da língua de escolarização é condição essencial para a continuação de estudos. Aliada ao fraco domínio
da língua do país de acolhimento, surge ainda outra questão relativa ao conhecimento e ao domínio linguístico dos alunos
oriundos de minorias linguísticas face à sua língua materna. São alunos que oscilam entre a sua língua materna e a língua do
país de acolhimento, sem contudo terem um bom domínio de uma das duas línguas, usam a sua língua materna entre pares,
em casa e na comunidade. Quando se encontram em contexto escolar recorrem obrigatoriamente ao uso da língua do país de
acolhimento; contudo as interferências linguísticas entre uma e outra língua impedem-nos de realizar uma plena aquisição de
uma das línguas.
A constatação de que para um elevado número de alunos a língua falada na escola não é a sua língua materna ou
aquela que é falada em casa, provoca não só “descontinuidades na linguagem e na comunicação”, como também provoca
descontinuidades entre o espaço da sala de aula e o espaço em que se movimentam. Tal como afirma Silva (2002; 83), estas
descontinuidades dão origem “a uma deficiente comunicação entre alunos e professores e a consequentes avaliações
negativas”, no sentido em que os alunos apresentam formas de comunicar diferentes daquelas que os outros, nomeadamente
os professores, esperam deles. Como forma de subverter esta situação, a cultura dos alunos é um “elemento fundamental a ter
em conta na sua escolarização” e, consequentemente, “no seu sucesso escolar” (idem; 68). Por conseguinte, a cultura dos
alunos deve ser alvo de preocupações por parte das instituições escolares, não sendo posta de parte no desenvolvimento do
seu processo de ensino-aprendizagem.
Dentre os temas abordados nas escolas portuguesas, é recorrente referir-se a dificuldade que os alunos de origem
africana têm na compreensão e no uso da língua portuguesa, o que os conduz inevitavelmente a uma situação de insucesso
escolar em todas as disciplinas. Registam-se também como consequência do fraco domínio da língua oficial do país de
acolhimento dificuldades de integração no seio da comunidade escolar. O fraco domínio linguístico acaba por segregar estes
alunos. É neste sentido que Díaz-Aguado (2000) refere que estudos em vários países concluem que grande parte dos
professores encara a cultura e a língua dos seus alunos minoritários como um entrave à sua integração escolar.
Como afirmam Resende e Vieira (2000), a Escola, acompanhando a passagem do tempo, foi-se abrindo a todos,
apesar da sua concepção de aluno médio, saído de um meio social médio e possuindo uma experiência cultural média,

675
permanecer praticamente imutável. Por consequência, o discurso escolar não se adaptou ao novo público, pelo que não é de
estranhar que, por vezes, exista uma incompreensão total das mensagens que são veiculadas na Escola por parte dos alunos.
Este facto surge, em paralelo, com a distância entre a língua da Escola e a língua falada pelos alunos, a qual é variável,
estando intimamente ligada ao seu estatuto sócio-cultural. Segundo a perspectiva de Villas-Boas (1999; 196), pode mesmo
afirmar-se que, no caso das minorias étnica, “há factores específicos que as afastam da igualdade de oportunidades, tais como
a natureza do currículo, as ideias assimilacionistas de muitos professores e a sua falta de preparação para lidar com
minorias”.
Refere, igualmente, Soares (1999; 84), corroborando com Braun (1996), que “os alunos, saídos da imigração
recente, que acumulam handicap social e origem linguística diferente, têm graves problemas na aprendizagem da língua do
país de acolhimento e isto em todos os domínios – ouvir/falar, ler, escrever”.
Se, à partida, há alunos mais desfavorecidos do que outros, não só do ponto de vista económico, como também a
nível social e educativo, no sentido em que não estão plenamente integrados no contexto escolar, cabe então à Escola tentar
combater as desigualdades e promover a Igualdade. Contudo, para ajudar estes alunos, temos de saber quais são as suas
necessidades (Soares, 1999).
Mas, se queremos saber como transmitir os conhecimentos aos alunos, é importante saber como é que eles se
situam em relação às tarefas que lhes são pedidas (Montandon e Osiek, 1997). Nesse sentido, realizou-se um estudo no qual
se pretendia, através de entrevistas e da aplicação de questionários aos alunos, apurar não só as dificuldades de aprendizagem
sentidas pelos alunos de ascendência africana, como também as suas causas. Pretendeu-se igualmente conhecer o grau de
interferência das dificuldades na disciplina de Língua Portuguesa na aprendizagem das restantes disciplinas curriculares.
Partindo destas premissas, auscultaram-se os alunos ainda com o intuito de conhecer as estratégias que mais os ajudaram na
sua aprendizagem na disciplina de Língua Portuguesa e, consequentemente, no português – língua de escolarização e língua
oficial do país de acolhimento.
Para a realização do Estudo, tomaram-se os alunos de ascendência africana, como público-alvo, a frequentar os 7º e
9º anos de escolaridade, num total de 20 alunos entrevistados e 80 alunos a quem foram aplicados os questionários. A escolha
destes anos de escolaridade deve-se ao facto destes iniciarem e encerrarem o último ciclo da escolaridade obrigatória em
Portugal. Pretendendo-se apurar igualmente as competências desenvolvidas pelos alunos no final deste Ciclo.
Quando inquiridos relativamente às dificuldades sentidas na compreensão e/ou expressão da língua portuguesa, os
alunos do 7º ano de escolaridade afirmam possuir um maior nível de dificuldade na compreensão e escrita da língua
portuguesa.
Perante os resultados, podemos concluir que os alunos do 9º ano de escolaridade são os que afirmam sentir menos
dificuldades. É importante salientar que este resultado também já se havia verificado na análise de conteúdo das entrevistas,
tornando-se essencial colocar a questão: Por que razão os alunos do 9º ano afirmam sentir menos dificuldades do que os
alunos do 7º ano?
Gráfico 1: Distribuição dos itens que correspondem às dificuldades sentidas na Língua Portuguesa
45

40

35

30

25

20

15

10

0
alunos

verbos 31
gramática 43
compreensão de texto 32
compreensão de vocabulário 40
erros ortográficos 34
produção de texto 21
expressão oral 23
vergonha de falar em público 32
desagrado pela matéria 24

Quando se pediu aos alunos que assinalassem os itens que correspondiam às dificuldades sentidas na língua
portuguesa (Gráfico 1), verificou-se que os alunos apresentam um maior número de dificuldades na “gramática em geral”; na
“interpretação e compreensão de texto”; na “expressão oral”; na “produção de texto” e na “vergonha de falar em público”; na
“compreensão de palavras difíceis”, dos “verbos” e dos “erros ortográficos”. Salienta-se ainda a referência ao “desagrado
pela matéria”. As dificuldades referidas pelos alunos centram-se sobretudo no domínio do Funcionamento da Língua, à
excepção da “vergonha de falar em público”.
Gráfico 2: Distribuição dos itens das causas das dificuldades na Língua Portuguesa

35

30

25

20

15

10
676
5

0 uso de português uso de forma desinteress desinteress


perfil do falta de falta de
outra língua outra como o e pela e pela
professor estudo atenção
língua em estrangeira língua fora professor matéria disciplina
No que respeita às causas das dificuldades sentidas na língua portuguesa (Gráfico 2), os alunos assinalam sobretudo
a “falta de estudo”; a “falta de atenção nas aulas” e a “forma como o professor explica” a matéria. Apontam ainda como
principais causas das suas dificuldades o “desagrado pela disciplina” e a “falta de atenção nas aulas”.
Por um lado, as causas das dificuldades estão directamente relacionadas com o ambiente vivido em sala de aula e a
motivação com que os alunos realizam as suas aprendizagens. Por que razão os alunos sentem desagrado pela disciplina de
Língua? Por que razão estão os nossos alunos desatentos nas aulas de língua? De que modo a forma como o professor explica
a matéria se torna um entrave à aprendizagem? Por outro, as causas apontadas pelos alunos para as dificuldades sentidas são
várias e estão sobretudo relacionadas com o “uso de outra língua em casa e com familiares” e o “uso de outra língua fora da
sala de aula”. O uso do “português como língua estrangeira ou segunda” é uma causa das dificuldades mencionada em grande
parte por alunos que estão a terminar o 3º Ciclo do Ensino Básico. Pode afirmar-se que estes alunos conseguem definir e
explicitar as causas das suas dificuldades, conseguindo especificar a forma como utilizam a Língua Portuguesa; parecem
estar conscientes que a língua em que realizam as suas aprendizagens lhes é uma língua segunda ou até mesmo estrangeira.
Mas será que esta distinção é clara para os próprios alunos? Terão noção da diferença entre língua segunda e língua
estrangeira? Também como causa referida, surge o “perfil do professor”.
Assumindo a influência das dificuldades linguísticas na aprendizagem das outras disciplinas, na medida em que a
língua portuguesa é a língua de escolarização e de realização de todas as aprendizagens, questionou-se os alunos acerca do
seu grau de influência. De acordo com as suas respostas, a grande maioria dos alunos considera que as suas dificuldades
linguísticas “raramente” ou “poucas vezes” influenciam as restantes aprendizagens.
Mas, curiosamente, os alunos afirmam que as dificuldades sentidas na disciplina de Língua Portuguesa influenciam
sobretudo as aprendizagens nas disciplinas de Inglês e Francês. Será que a influência na aprendizagem do Francês se deve ao
facto de ser também uma língua de origem românica? Então por que razão também é referida a disciplina de Inglês, sendo
esta de origem germânica? Será por se tratarem ambas disciplinas de ensino-aprendizagem de língua? Ou será porque as
dificuldades nas disciplinas de língua estrangeira se devem ao facto de os alunos não terem realizado uma boa aquisição da
sua língua materna? Como afirmam Affes (2001), Churchill (1986), Bally (1930, citado por Roulet, 1980), Lopes (2000), a
aquisição plena da língua materna leva a uma boa aquisição de uma língua estrangeira, ou seja, o aluno deve dominar a sua
língua materna, pois esta será a ferramenta fundamental para a aprendizagem bem sucedida de outras línguas. Dizem ainda
Gouveia e Solla (2004; 161) que “ um bom nível de proficiência na língua materna, o domínio de conceitos gramaticais
básicos e o treino de reflexão sobre a língua materna constituem factores que favorecem uma aprendizagem bem sucedida das
línguas estrangeiras”. O facto de alguns destes alunos terem os crioulos de base lexical portuguesa como língua materna e o
Português como língua de escolarização, faz com que haja uma deficiente aprendizagem quer das línguas, quer das outras
disciplinas. Estas interferências linguísticas devem-se essencialmente ao facto de os alunos não realizarem plenamente a
aquisição da sua língua materna. A aquisição da linguagem é um processo em si, existindo, por conseguinte, uma
continuidade entre a aquisição da primeira língua e a aquisição de outras línguas. Poder-se-á inferir, até, que a aquisição
linguística é feita de uma só forma, onde apenas são consideradas as mudanças semânticas”. Por outro lado, num estudo feito
por Brink e Moreira (2004; 89), verifica-se que os alunos referem os conhecimentos “de inglês e francês como facilitadores
da aprendizagem do português”, confirmando-se assim que os conhecimentos prévios, mesmo que adquiridos numa outra
língua, auxiliam na aprendizagem de outras línguas, caso se tenha um bom domínio.
Após apontarem as línguas estrangeiras, os alunos referenciam ainda História e Geografia como disciplinas que
sofrem influência das dificuldades linguísticas apresentadas na Língua Portuguesa. Referem-se ainda as disciplinas de
Matemática, de Ciências da Natureza e Físico-Química. Tendo em conta estes resultados e atentando nas disciplinas referidas
pelos alunos, Gouveia e Solla (2004; 37), apoiando-se em Lewin (1993), afirmam que “quando a criança é alfabetizada na
sua língua materna, obtém melhores resultados na aprendizagem de outras línguas e de todas as outras disciplinas do
currículo escolar do que quando este processo se desenvolve numa outra língua”.
Realça-se ainda o facto de, nas situações de aprendizagem em língua não materna, as necessidades de
aprendizagem se tornarem assim mais específicas, uma vez que, além de estudar a língua, o aluno tem de aprender e estudar
as outras disciplinas nessa língua. Levanta-se, então, outra questão que, segundo Crispim (1999; 4), é relativa à “variedade da
escola”, pois “a escola, além de veicular a norma, apresenta particularidades específicas”. Se atentarmos, por exemplo, no
vocabulário, verifica-se que determinadas terminologias e conceitos dizem respeito a disciplinas específicas.
Numa outra questão, pediu-se aos alunos que indicassem aspectos que as dificuldades na língua portuguesa mais
prejudicavam (Gráfico 3). Como respostas, os alunos referiram que as dificuldades na disciplina de Língua Portuguesa
prejudicam essencialmente a “compreensão da matéria”, a “compreensão de enunciados de testes ou fichas de trabalho”.

677
Estas dificuldades reflectem-se posteriormente no momento do “estudo da matéria” e no “estudo da matéria através dos
manuais”, dado que o professor não está presente para poder esclarecer eventuais dúvidas. Além das referências anteriores, os
alunos acrescentam de forma relevante, o “perfil do professor” e a “forma como o professor explica” a matéria.
Gráfico 3: Distribuição dos itens que as dificuldades na Língua Portuguesa mais prejudicam

40
35
30
25
20
15
10
5
0
compreensão estudo a produção de maneira
estudo realização de perfil do
de estudo partir do textos sobre como o
individual exercícios professor
questionários manual a matéria professor
alunos 34 36 23 19 16 17 22 15

No que diz respeito às estratégias que mais ajudaram os alunos na aprendizagem da língua portuguesa (Gráfico 4),
os alunos referem a “rotina de texto livre”, a disponibilidade do professor para “esclarecimento de dúvidas”, a “leitura de
livros”, a “realização de exercícios de gramática” e os “trabalhos de casa”. Todas elas, na opinião dos alunos, são estratégias
e actividades propiciadoras e auxiliadoras de uma boa aquisição do Português.
Gráfico 4: Distribuição das estratégias que mais ajudaram na aprendizagem da Língua Portuguesa

50

40

30

20

10

0
rotina de aperfeiço compreen esclareci repetição realização realização realização
leitura de perfil do trabalhos
leitura e amento de são de mento de da de fichas de de
livros professor de casa
escrita texto textos dúvidas matéria de exercícios actividad
alunos 32 21 47 27 48 29 18 32 38 37 17

Ao questionar-se os alunos quanto à forma de trabalho desenvolvida em sala de aula, os alunos de ambos os anos
de escolaridade demonstram preferência pelo “trabalho em grupo”. As razões apontadas para justificar estas formas de
trabalho referem-se ao facto de poderem “trocar opinião com os colegas”, além do forte “incentivo [implícito] para
trabalhar”, promove-se uma maior “entreajuda” no seio do grupo turma. Tal como afirmam Martins e Niza (1998; 235), “o
professor não é a única fonte de informação no grupo, sendo a interajuda entre os alunos bastante estimuladora”. No caso do
“trabalho individual”, os alunos afirmam que esta forma de trabalho serve essencialmente para “verificação de
conhecimentos” adquiridos. Esta é, de facto, uma forma de trabalharem a sua metacognição, de tomarem consciência dos
conhecimentos já adquiridos, de perceberem quais as aprendizagens que ainda não realizaram e quais são as suas
dificuldades, assim como de se consciencializarem de que é necessário algumas estratégias individualizadas para as
solucionar.
Vygotsky (2002; 113) chama zona de desenvolvimento proximal a este momento da aprendizagem, o qual “define
aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que
estão presentemente em estado embrionário”. Esta zona permite-nos assim traçar de forma imediata o percurso escolar do
aluno e o “seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando o acesso não somente ao que já foi atingido através do
desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de maturação”. Afirma ainda o mesmo autor que “uma
compreensão plena do conceito de zona de desenvolvimento proximal deve levar à reavaliação do papel da imitação no
aprendizado” (idem; 114). A partir deste ponto de vista, o aluno só consegue realizar as tarefas por imitação caso compreenda
os seus conteúdos plenamente. Mas, torna-se então fulcral a presença e auxílio do professor nesta fase da aprendizagem. A
figura do professor é presença imperativa para fornecer os modelos para a realização das aprendizagens e para o
esclarecimento e auxílio aos alunos, fazendo com que desenvolvam progressivamente a sua própria auto-regulação. Ainda
nesta sequência de ideias, Niza e Soares (1998; 86-87) afirmam ser fundamental a presença do professor, pois “a interacção
entre as crianças, e entre estas e o professor, a propósito da escrita dos seus textos, possibilita o diálogo, a troca de impressões
clarificadora das ideias (…). A ajuda durante a produção de textos pelas crianças é mais importante e mais eficaz para a
aprendizagem da escrita do que as correcções feitas pelo professor depois de os textos já estarem escritos”. Afirma ainda

678
Martí (1995) que a situação de interacção exige ao aluno que explique, prediga, verbalize ou indique aspectos da sua
actividade a outra pessoa favorecem o processo de exterior, contribuindo para melhorar a auto-regulação.
Ao ser pedido aos alunos para indicar quais as estratégias que considerariam mais importantes desenvolver em sala
de aula para colmatar as dificuldades apresentadas na disciplina de Língua Portuguesa (Gráfico 5), a maioria, respondeu que
se deve trabalhar mais a “leitura”, e a “escrita”. Refira-se que estes são os domínios base para a realização de qualquer
aprendizagem. Na opinião de Vygotsky (2002; 139), “o ensino da linguagem escrita depende de um treinamento artificial.
Tal treino requer atenção e esforços enormes, por parte do professor e do aluno”. Ainda segundo este autor, “o ensino tem de
ser organizado de forma a que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças (idem; 155). O ensino da escrita não pode
ser encarado como um processo mecânico, mas como algo natural, a escrita deve “ser ensinada naturalmente”. É ainda
importante referir que os “métodos naturais de ensino de leitura e de escrita implicam operações apropriadas sobre o meio
ambiente das crianças” (idem; 156). Para tal, realça-se uma vez mais a necessidade de o professor conhecer as origens dos
seus alunos, na medida em que só dessa forma poderá, em sala de aula, fazer interagir o meio escolar com o meio de onde são
oriundos. Para além disso, tal como afirma Niza (2005; 110), “a escrita constitui o mais comum suporte de expressão das
aprendizagens”.
Em seguida, os alunos pedem a “realização de mais exercícios na aula”, assim como a “realização de mais trabalhos
na aula”, rejeitando assim a imagem do professor expositor, ao quererem assumir um papel interventivo e dinâmico em sala
de aula: os alunos assumem-se actores das suas aprendizagens. Também num estudo realizado por Abrantes (2003), os alunos
oriundos de meios mais desfavorecidos consideravam as aulas expositivas maçadoras, “monótonas, aborrecidas” e sem
interesse, havendo mesmo uma aluna que afirmava “Há algumas aulas que é tudo a falar, a falar… é desde que entramos até
que saímos, sempre a falar, a falar, a falar. Há uma ou duas paragens para explicar ou para mostrar alguma figura mas o resto
é sempre a falar… Eu acho que deviam ter novos… criatividade, fazeres coisas…” (idem; 78).
É ainda solicitado o “estudo da gramática” e “apresentações orais na aula”, ou seja, os alunos pretendem que os
seus trabalhos realizados tenham uma reflexão e uma finalidade, que seja encontrado um sentido para a sua realização.
Torna-se assim, segundo Niza (1998; 16), referindo Niza (1988), “indispensável a montagem de um circuito vivo de
comunicação, alimentado por fluxos permanentes de produções, criando-se deste modo redes de interacção entre os alunos, a
comunidade escolar e o meio onde estão inseridos.
Gráfico 5: Distribuição dos itens mais importantes para a aula da disciplina de Língua Portuguesa
70

60

50

40

30

20

10

0
realização realização ensino realização apresenta
estudo da
leitura escrita de de individual de ções orais
gramática
exercícios projectos izado actividad na aula
alunos 67 67 41 42 23 20 46 34

Por fim, pediu-se aos alunos que traçassem o perfil de um professor de língua (Gráfico 6), ao que os alunos
responderam: o professor deve “ser compreensivo”, “ter em conta a opinião dos alunos”, “ensinar com clareza”, “ter uma boa
relação com os alunos” e “ajudar os alunos na integração escolar”. Além do seu papel de transmissor de saberes e de gestor
das aprendizagens e do espaço da sala de aula, o professor assume também o papel de “conselheiro ao qual se recorre em
caso de necessidade” (Postic, 1984; 91). Este perfil de professor desejado pelos alunos vai ao encontro do que Postic (idem;
92), referindo Cousinet (1952), afirmava acerca do professor, na medida em que este, além de estar presente, “com toda a sua
presença magistral”, deve ter também presente a sua dimensão humana.
Gráfico 6: Distribuição dos itens correspondentes ao perfil de professor de Língua Portuguesa em sala de aula
70

60

50

40

30

20

10

0
ter em conta ter uma boa ajudar os
ser ser ensinar com
as opiniões ser tolerante relação com alunos na
compreensivo disciplinador clareza
dos alunos os alunos integração
alunos 69 63 39 40 61 59 50

679
Da análise de conteúdo realizada quer às entrevistas quer aos questionários, salienta-se como dificuldade
apresentada pelos alunos o domínio de aprendizagem funcionamento da língua, em particular a utilização dos verbos e a
gramática em geral.
É de relevar ainda no conjunto de dificuldades apresentadas a expressão oral e a vergonha de falar em público.
Ficando assim patente, por parte destes alunos, a forte consciência que têm da necessidade, para a sua integração social, de
um bom nível de proficiência oral da língua dominante no país de acolhimento. O facto de os alunos terem referido a
vergonha de falar em público poderá significar que estão conscientes que, apesar de já estarem a terminar o 3º Ciclo da
escolaridade obrigatória portuguesa, a Escola ainda não os preparou em termos de aquisição e domínio da língua portuguesa
– língua oficial do país de acolhimento.
Os alunos esperam acima de tudo que a escola lhes dê uma formação, que os prepare para exercer uma profissão,
que lhes garanta um futuro profissional. Numa investigação levada a cabo por Montandon e Osiek (1997; 139), os alunos
afirmavam que “’A escola é para ter um bom trabalho, para ter bastante dinheiro e para viver bem’”. Ainda nesta
investigação, os mesmos alunos afirmavam que a escola lhes “deve fornecer conhecimentos, ou seja, oferecer-lhes ‘coisas’
para aprender e compreender” (ibidem). Convém que os alunos encontrem na escola, “não só um lugar de formação
intelectual, mas também um lugar de desenvolvimento da sua individualidade, da sua pessoa, uma iniciação à vida”
(Abdallah-Pretceille, 2004; 198).
Os professores queixam-se das inúmeras dificuldades que os alunos apresentam na língua portuguesa, destacando,
por vezes, o silêncio em que estes últimos se enredam. No entanto, segundo Pereira (1997), este silêncio é, muitas vezes, o
resultado da vergonha de falar em público. A Escola parece ainda não ter conseguido preparar estes alunos para lidar e
coabitar com a população da cultura dominante, uma vez que estes não se sentem à vontade para falar em público, podendo
este aspecto revelar-se mais tarde determinante para a sua vida profissional, uma vez que, ao não dominarem a língua do país
de acolhimento, poderão consequentemente demonstrar insegurança face às exigências impostas pelo mercado de trabalho,
quer na defesa dos seus direitos, quer no quotidiano profissional.
No entanto, apesar das fragilidades enunciadas, estes mesmos alunos demonstram uma notável capacidade
metacognitiva, na medida em que estão cientes dos seus conhecimentos linguísticos e são capazes de se auto-avaliarem nas
suas competências. Desta forma, submetem-se a quaisquer propostas de trabalho que lhes são apresentadas e às respectivas
condições impostas, pois ao não possuírem um bom domínio da língua, não saberão como argumentar para fazer valer os
seus direitos enquanto trabalhadores. Sabe-se que os alunos oriundos de famílias mais desfavorecidas, com um baixo estatuto
social, têm tendência a abandonar mais precocemente a escola e a ocupar os piores empregos (Costa, 1993). Realça-se, ainda
nesta perspectiva, o facto de uma aluna ter referido, nas sugestões feitas aos professores, a necessidade de se trabalhar mais a
leitura e a escrita, uma vez que precisam de “saber ler e escrever correctamente” para quando um dia tiverem “um emprego”.
Ou então, assiste-se a um cenário ainda mais desanimador, “os jovens abandonam a escola sem concluírem a escolaridade
obrigatória, vendo-se afastados de níveis de escolarização mais elevados e afectados pelo desemprego” (Villas-Boas, 1999;
180).
Segundo o Currículo Nacional do Ensino Básico (2001; 31), “o Português é a língua oficial, a língua da
escolarização (…), a língua de acolhimento das minorias linguísticas que vivem no país. Por isso, o domínio pleno da língua
portuguesa é decisivo no desenvolvimento individual, no acesso ao acolhimento, no relacionamento social, no sucesso
escolar e profissional e no exercício pleno da cidadania”. Parece, nesta perspectiva e na opinião de Grosso (2005; 33), que
“saber línguas é no séc. XXI uma das respostas às mudanças sócio-profissionais, políticas e económicas (e consequente
mobilidade), (…) o ensino-aprendizagem de uma língua emerge como uma área interdisciplinar (…); a divulgação ou
regressão de uma língua (…) tem no público-aprendente, enquanto ser social, um dos agentes do sucesso/insucesso duma
língua”.
O desinteresse do aluno pela escola e pelas matérias está sobejamente patente: “Por que é que eu tenho tão pouca
vontade de estudar? Não sei. Estudo, pronto… ficar assim a estudar é pra nós um sacrifício. É como se fosse um
atropelamento. ‘Tão-nos a atropelar, a stôra a falar, a falar, a falar e depois diz: ‘Estudem em casa!’. Pronto e nós ficamos
assim cansados e é aquela coisa... Já não é divertida”. Os resultados escolares dos alunos, para além dos seus esforços,
também se devem à motivação, interesse e vontade de aprender (Montandon e Osiek, 1997). Os aspectos motivacionais do
processo de aprendizagem são diversos, indo desde a forma como se apresenta uma actividade aos alunos, o método e
recursos didácticos utilizados, até à valorização da experiência pessoal dos alunos. Cabe, segundo Alemany (1990), ao
professor seleccionar as estratégias em que deve apostar na sala de aula, de forma a garantir a motivação dos seus alunos.
Salienta-se o facto de os alunos desejarem trabalhar mais a escrita e a leitura, pois, na sua opinião, ao se “fazer uma
composição, pensa-se mais”. Os alunos revelam uma forte consciência da importância que tem o papel da escrita no
desenvolvimento da sua aprendizagem, pois, tal como Fulwiler (1986; 21-22), afirmam que “o acto de escrever, ajuda-nos a
manipular o pensamento de forma muito específica, porque escrever torna os pensamentos visíveis e concretos, e permite-nos
interagir com eles, modificando-os”. Mas neste contexto escolar “a escrita deve ter significado para as crianças, despertando
nelas uma necessidade intrínseca e deve ser incorporada numa tarefa necessária e relevante para a vida”. Afirma Vygotsky
(2002; 156) que a escrita deve “ser ensinada naturalmente (…) dessa forma, uma criança passa a ver a escrita como um

680
momento natural do seu desenvolvimento e, não como um treinamento impossível de fora para dentro”. Tal como a fala,
também a escrita tem uma função social, estabelecendo a comunicação entre sujeitos e fazendo com que transmitam
emoções, alegrias, angústias, tristezas, acções, afectos, ideias e saberes. Gouveia e Solla (2004; 158) defendem que é
competência da escola “a estimulação linguística”, pois esta é “pedra basilar no crescimento do sujeito” e deve incidir
particularmente na “mestria da leitura e da escrita”.
Ainda na perspectiva destas autoras, é função da escola ensinar a ler de forma fluente, ou seja, os alunos devem ser
capazes de apreender o significado da mensagem transmitida. Deve ainda, no domínio da escrita, proporcionar aos alunos o
acesso às regras e técnicas necessárias à realização da tarefa, com segurança e precisão, desenvolvendo as capacidades
cognitivas facilitadores da organização do pensamento, com o objectivo de uma transmissão clara e eficaz da mensagem.
É também feito um apelo à realização de mais trabalhos / exercícios na aula, os alunos queixam-se da falta de apoio
que têm ao realizar os trabalhos de grupo fora da sala de aula. Alegam não poder contar, em caso de dúvidas, com o auxílio
imediato do professor para o seu esclarecimento; “o stôr vai ‘tar lá [na sala de aula] p’ra ver, isso era mais fácil. Mas fora da
sala, o trabalho é muito…”. Este forte apelo dos alunos à realização dos trabalhos em sala de aula faz emergir a necessidade
de se aplicar logo aí uma forma de trabalho sustentada no andaime tutorial, permitindo assim ao professor conduzir as
aprendizagens dos alunos consoante as suas dúvidas e necessidades, pois “cabe ao professor (…) a tarefa de ensinar a
aprender (Niza et al, 1990; 156).
Segundo Alemany (1990), o andaime tutorial, em sala de aula, permite que o controlo do conhecimento seja
interiorizado progressivamente pelo aluno, resultando de um processo. Inicialmente, os alunos observam o professor na
realização da tarefa, e progressivamente vão adquirindo responsabilidades para a sua execução, de forma autónoma. Ora, esta
autonomia por parte dos alunos só é conseguida se se realizar o esclarecimento de todas as dúvidas, tendo-se o conhecimento
claro do tipo de trabalho que têm de realizar. No entanto, para tal, torna-se imperiosa a presença constante de um professor
junto dos alunos. Segundo Villas-Boas (1999; 273-274, só este “tipo de interacção entre o adulto e a criança” é que lhe
permite “assumir, gradualmente, uma maior participação nesse desempenho (…) pouco a pouco, (…) a criança autonomiza-
se e vai deixando de necessitar de usar o adulto como intermediário entre ela e o escrito” ou entre ela e a aprendizagem.
Ainda que com menor relevância, os alunos apelam a um ensino individualizado que colmate as necessidades
específicas de cada aluno. Será por serem ainda pouco autónomos e, consequentemente, sentirem uma maior necessidade do
auxílio do professor para os ajudar nas suas dificuldades? Certa é a existência de um apelo feito ao direito à diferença, aos
diferentes ritmos de trabalho. O anseio por uma pedagogia diferenciada é patente, uma pedagogia que permite que “cada
aluno, enquanto sujeito da sua aprendizagem, trabalhe segundo o seu próprio ritmo de aquisição e de compreensão e que, se
necessário, possa fazer exercícios complementares ou suplementares para atingir o objectivo pretendido” (Gouveia e Solla,
2004; 66).
Para além do desejo dos alunos em realizar mais trabalhos em sala de aula, também se apela à realização do
trabalho sob diversas formas, desde o trabalho em grupo até ao trabalho individual. Desta forma, os alunos podem
experimentar as diferentes formas de trabalho e tirar proveito das suas vantagens: no caso dos trabalhos em grupo ou a pares,
a troca de opiniões entre colegas, a entreajuda, o incentivo para trabalhar, ou, na realização de um trabalho mais
individualizado, usufruírem de uma maior organização e concentração. Também referem Montandon e Osiek (1997), num
estudo realizado, que os alunos preferem variar entre as três formas de trabalho em sala de aula, sendo que os alunos de
ambos os estudos apresentam argumentos a favor de cada uma delas: “’É mais fácil em grupo, porque trabalhamos mais
rápido, porque cada um dá a sua opinião e cada um encontra uma resposta’”; “’Se somos dois, estamos mais motivados’”;
“’Concentramo-nos melhor se estivermos sozinhos’” (idem; 153- 156).
A relação pedagógica parece ser também aspecto fulcral no ensino-aprendizagem destes alunos. Em ambos os anos
de escolaridade é referida a importância que tem para eles o facto de o professor ser compreensivo e ter em conta as suas
opiniões. Já na referida investigação de Montandon e Osiek (ibidem), os alunos também esperam que um bom professor seja
aquele que saiba ensinar bem, que explique com clareza e que demonstre paciência. Referem ainda, tal como os alunos
portugueses alvo da investigação, que o professor deve saber dosear a severidade, ou seja, não deve ser nem muito severo,
nem muito benevolente. Para além de saber ensinar, o professor deve ser um intermediário cultural, estabelecendo a ponte
entre o aluno e a sociedade. Deve ajudá-lo a preparar-se para a sua vida activa na sociedade em que está inserido, auxiliando-
o na assunção do seu papel de cidadão.
É, pelas palavras de Perotti (2003; 12), papel da escola transmitir “os conhecimentos e as capacidades necessárias à
criança para que ela possa abrir-se ao universal sem renegar as suas raízes de identidade” e sem ter medo de enfrentar o
mundo que a rodeia, não se silenciando na insegurança e nos receios.
A análise efectuada às dificuldades que os alunos sentem na disciplina de Língua Portuguesa e a forma como estas
influenciam as aprendizagens nas outras disciplinas curriculares, permitiu a obtenção de um conjunto de elementos que
confirmam a necessidade de um bom domínio da língua de escolarização para o sucesso escolar e para uma melhor aceitação
na sociedade e no país de acolhimento.
Os resultados obtidos permitem verificar que não há disparidades nas opiniões dos alunos de ambas as
ascendências. Assim, os dados convergem no mesmo sentido: os alunos de minorias étnicas revelam ainda um deficit a nível
linguístico, que forçosamente os prejudica no seu sucesso e na sua integração escolar e social.
As dificuldades apresentadas pelos alunos na expressão oral e a vergonha de falar em público, aliadas às sérias
dificuldades apresentadas no domínio do funcionamento da língua, em especial na gramática, são por si só indícios de uma

681
elevada barreira escolar que se estende à sociedade. É sabido que o sucesso escolar está aliado ao domínio pleno da língua de
escolarização, caso contrário surgirão dificuldades de aprendizagem, não só na disciplina de língua, como em todas as outras
disciplinas, uma vez que esse conhecimento linguístico é basilar para a aquisição de conhecimentos nas outras disciplinas;
com efeito, o Português é a língua em que se realizam as aprendizagens em todas as disciplinas do currículo. A
interpretação/compreensão de texto, assim como a compreensão de vocabulário revelam-se competências fulcrais, não só na
aprendizagem na disciplina de Língua Portuguesa, como também nas restantes disciplinas, na medida em que “o
desenvolvimento do conhecimento linguístico tem a ver com o aproveitamento escolar em todas as disciplinas desde a
Língua Materna à Matemática, uma vez que a fluência oral e escrita vai condicionar o desempenho de todas as disciplinas
que se aprendem com livros” (Villas-Boas, 1999; 217).
O facto de o Português ser para estes alunos uma língua não materna implicará, inevitavelmente, a travessia, na
aprendizagem da língua, de um caminho que se bifurcará nos seguintes: ou estão motivados e, como tal, mais facilmente
abertos à comunicação e aprendizagem, ou então, estão desmotivados e criam-se barreiras ao uso do Português enquanto
língua dominante. É o que se verifica com grande parte dos alunos implicados na investigação, pois sempre que lhes é
possível, quer em casa, quer mesmo na escola, recorrem ao uso de outra língua, neste caso à sua língua materna – o crioulo.
Salienta-se ainda que, mesmo na escola e em contacto com os colegas, os alunos preferem falar o crioulo, uma vez que os
seus pares – os colegas com quem normalmente convivem na escola – também têm o crioulo como língua materna, o que
significa que na escola a socialização se faz, sobretudo, entre os seus semelhantes.
Além do espaço-escola, os alunos também recorrem ao uso do crioulo como língua de comunicação em casa, com
os seus familiares, apesar de, como já se verificou, haver pais que preferem comunicar com os seus filhos em Português,
aspirando desta forma a um melhor nível de vida para os seus filhos. Contudo, sabe-se que, se as crianças não progredirem na
sua língua materna, sentirão mais dificuldade na aquisição de uma língua segunda. Ora, se o contacto que têm com a língua
materna é misturado com o uso de um Português incorrecto, as dificuldades serão acrescidas a nível linguístico.
Com efeito, sendo o Português a língua de aprendizagem em todas as disciplinas, compete a todos os professores, e
não apenas aos professores de língua, verificar as origens dos alunos, assim como as necessidades individuais de cada aluno,
no sentido de ajudar a colmatar as dificuldades sentidas, por parte dos alunos, a nível linguístico. O perfil dos professores
também se reflecte na forma como os alunos encaram o processo de ensino-aprendizagem, pelo que, na opinião de Villas-
Boas (1999; 204), se impõe “a necessidade de formar professores conscientes dos problemas decorrentes duma população
escolar multicultural e capazes de conceber e desenvolver uma intervenção educativa que inclua a diversidade”. Acredita-se
que chegou o momento de ser a Escola a receber os alunos e não os alunos a receberem a escola. As adaptações devem ser
feitas no sentido inverso: não deve ser o aluno a moldar-se à escola, mas sim a instituição a “moldar-se” a este, de acordo
com as suas características, necessidades e interesses.
Os domínios eleitos pelos alunos deste Estudo são a escrita e a leitura, instaurados enquanto rotinas, tidos como
base de todo o processo de ensino-aprendizagem, em consonância com uma organização da sala por diferentes espaços, que
lhes permitam montar verdadeiros “circuitos de comunicação” (Santos, 2004; 129). A proficiência da leitura e da escrita far-
se-á a par e passo, através da implementação de estratégias diversificadas, que sejam ao mesmo tempo modeladoras e abertas
à criatividade. Segundo Villas-Boas (1999; 297), “o domínio da língua escrita parece depender em alto nível da consciência
linguística e, por isso, da capacidade de processar a forma falada. Muito mais crianças do que se possa pensar nunca atingem
esse nível e, por esse motivo, nunca dominam a língua escrita com confiança e prazer”. E a escola? O que faz para reverter
esta situação, quando os alunos exigem, a viva voz, muito mais tempo dedicado à escrita, à leitura e às apresentações orais?
Apesar da escola ser obrigatória, gratuita e laica, o que já se fez a nível educativo para melhorar e acelerar a
integração de todos os jovens, na escola e na sociedade, é ainda insuficiente, pois continua a revelar-se uma instituição que
não está ao alcance nem serve os interesses de todos.
Surge como corolário deste Estudo a necessidade de uma aprendizagem centrada no aluno, pois tal como Niza
afirma (2005; 159) “aprende-se só depois de termos passado pelo menos uma vez, com os outros, pelas coisas, antes de
podermos nomeá-las para que fiquem em nós”.

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Cor, desigualdades educacionais e diferenças de desempenho nas avaliações em


larga escala no Brasil

Julimar Constâncio
Universidade Federal de Juiz de Fora
julimar@caed.ufjf.br

Eduardo Magrone
Universidade Federal de Juiz de Fora
emagrone@terra.com.br

Neimar da Silva Fernandes


Universidade Federal de Juiz de Fora
neimarfernandes@caed.ufjf.br

Tufi Machado Soares


Universidade Federal de Juiz de Fora
tufi@caed.ufjf.br

683
Resumo: O artigo apresenta um estudo sobre a situação de desigualdade socioeducacional do jovem afro-descendente brasileiro. Pesquisas
mostram que, para este segmento da população, existe um estado de precariedade social que implica numa situação de baixo desempenho no
ensino fundamental, quando comparado com jovens brancos, e que pode produzir trajetórias sociais diferenciadas para estes grupos de
indivíduos. No entanto, as diferenças de desempenho reveladas através das proficiências medidas por testes de avaliação educacional em
larga escala, tais como SAEB (Sistema “Nacional” de Avaliação da Educação Básica), não se mantiveram iguais quando controlado o fator
socioeconômico. Estudos revelam que os alunos autodeclarados pardos apresentam desempenho igual ou superior aos dos alunos que se
autodeclaram brancos, nas mesmas condições socioeconômicas. Todavia, o mesmo não acontece com os alunos que se autodeclaram de cor
“preta”. Este trabalho apresenta uma série de estudos empíricos que apontam possíveis explicações para o fenômeno da desigualdade, entre
elas, a influência das variáveis psicosociais e a sua associação com a autodeclaração de cor. Utilizam-se, para fundamentar a discussão,
modelos de regressão de níveis hierárquicos para uma população presente nas séries iniciais do sistema educacional. Para isso, trabalhou-se
com as bases de dados apresentadas pelo Censo Demográfico 2000, PNAD (Pesquisa nacional por amostra de domicílios) e Censo Escolar
dos anos de 2006, além dos resultados de avaliações em larga escala do SAEB, PROEB (Programa de Avaliação da Rede Pública de
Educação Básica), SAERS (Sistema de Avaliação Estadual da Educação no Rio Grande do Sul) e Nova Escola.
Palavras-chave: Raça; Desigualdade educacional; Avaliação em larga escala.

1. Introdução
1.1 O impacto da cor na definição da trajetória educacional
Nas últimas décadas, mais especialmente ao longo dos anos setenta, oitenta e noventa, observaram-se alterações
substanciais no sistema educacional brasileiro. Pode-se dizer que houve uma redução generalizada das desigualdades
educacionais brutas nesse período. Segundo Silva e Hasembalg (2000), a expansão educacional das últimas décadas
conseguiu elevar o nível de instrução da população e diminuir a desigualdade educacional entre regiões, grupos de cor,
gêneros e extratos de renda. A característica mais visível do sistema educacional brasileiro atual é a sua acelerada expansão
em todos os níveis nos últimos trinta anos. Dados oficiais dão conta de que as matrículas no sistema de ensino brasileiro
aumentaram mais de 2,7 vezes nas três últimas décadas do século XX (Silva, 2003). De acordo com Castro (1998), o Ensino
Fundamental (7 a 14 anos) mais que duplicou as matrículas neste período, enquanto que as matrículas no Ensino Superior
quase quintuplicaram. No entanto, o crescimento mais considerável ocorreu no Ensino Médio (15 a 16 anos) e na Educação
Infantil (inclui as crianças com menos de 7 anos, matriculadas na pré-escola e nas classes de alfabetização). O Ensino Médio
cresceu de pouco mais de 1 milhão de alunos matriculados na década de setenta para quase 7 milhões nos últimos anos da
década de noventa, ao passo que a Educação Infantil cresceu mais de treze vezes durante as mesmas três décadas. Pode-se
dizer que houve uma robusta democratização do acesso à Educação Básica, ou seja, ao Ensino Fundamental e ao Ensino
Médio. De acordo com dados do INEP (2008): “de 1991 a 1999, a taxa de escolarização líquida da população1 de 7 a 14 anos
saltou de 86% para 96%”, representando, “em números absolutos, a inclusão no sistema de cerca de 6,8 milhões de crianças”.
Neste contexto de expansão acelerada das matrículas em todos os níveis de ensino brasileiros, a evolução das
matrículas no Ensino Fundamental apresentou um movimento interessante. Ao mesmo tempo em que elas continuam a
crescer no segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries ou dos 11 aos 14 anos), o número de crianças
matriculadas no primeiro segmento (1ª a 4ª séries ou dos 7 aos 10 anos) começa a declinar, sendo que a estimativa da queda é
de quase 3,5%, apenas entre 1999 e 2000, de acordo com o censo escolar do ano 2000. Para Silva e Hasembalg (2000), esta
dinâmica resultaria, sobretudo, da acentuada redução da fecundidade (total e diferencial) das famílias brasileiras. Silva (2003,
p.106-7), afirma que tal dinâmica encerra um “provável efeito facilitador para o melhor desempenho global do sistema
escolar” brasileiro, contrastando fortemente com o que se observava nos anos sessenta e setenta, quando “a dinâmica
demográfica representava um importante desafio para as políticas educacionais”.
Os indicadores de fluxo escolar também conheceram uma sensível melhora. Assim, a distorção idade/série no
Ensino Fundamental apresentava uma porcentagem de 76% de alunos com defasagem escolar, em 1982, e cai para 47%, em
1996. Para Silva (2003, p.107): “as condições sociais relativamente mais favoráveis desfrutadas pelas famílias, bem como a
generalização de programas destinados à melhoria da qualidade de ensino, mediante a aceleração da aprendizagem (incluindo
a adoção de sistemas de ciclos ou de “promoção automática”, em substituição ao sistema de seriação por ano), resultaram em
substancial melhora nos indicadores de fluxo”. Por seu turno, Castro (1998) aponta dois fatores que, a seu ver, estariam
respondendo pela melhoria na defasagem escolar: (i) a expansão da pré-escola e das classes de alfabetização que permitiria
uma melhor regulação do ritmo de entrada na 1ª série do Ensino Fundamental; (ii) a melhora das taxas de transição dentro do
ciclo que contou com um aumento das taxas agregadas de promoção de 58% em 1981 para cerca de 67% em 1998.
A evolução positiva dos indicadores de desempenho do sistema educacional produz um quadro correspondente de
superação possível de alguns pontos historicamente críticos do cenário educacional brasileiro. A este respeito, a taxa de
analfabetismo das pessoas de 15 anos de idade ou mais era de 34% em 1970; passou para 25% em 1980, e para 20% em
1991; chegando a atingir 13% em 1999. No entanto, ainda subsistem fortes disparidades regionais no que respeita à taxa de
analfabetismo, pois ela chega a variar entre 7,8% nas áreas urbanas das regiões Sudeste e Sul e 41% no Nordeste rural
(Hasembalg, 2002; apud Hasembalg e Silva, 2003).

1
A taxa de escolarização líquida de uma dada população consiste em uma relação da matrícula dos estudantes que se encontram na faixa etária adequada a
determinado nível de ensino e a parcela da população, situada nessa mesma faixa etária, que se encontra fora da escola.

684
Segundo Silva (2003, p.107-8), as transformações mais importantes do sistema educacional brasileiro dizem
respeito a perceptível redução das desigualdades educacionais brutas no período em foco:

Por exemplo, no que diz respeito às desigualdades de cor, enquanto o número médio de anos de estudos dos
brancos aumenta de 4,5 em 1976 para 6,8 em 1998, o valor equivalente para não-brancos (isto é, aqueles que se identificam
como pretos ou pardos) sobe de 2,7 para 4,7 anos nestas mesmas datas. Ou seja, embora a diferença tenha permanecido quase
constante em pouco mais de dois anos, a razão da escolaridade entre não-brancos e brancos aumenta de 0,59 para 0,69, o que
implica uma significativa convergência nos resultados educacionais entre os grupos de cor.

Segundo o mesmo autor, os diferenciais de gênero também são dignos de nota, pois, em que pese serem pequenos,
assinalam uma verdadeira inversão da tendência. Assim, o que em 1976 era uma vantagem para os homens, em 1998, passa a
ser uma vantagem para as mulheres, haja vista que o número médio de anos de estudo para elas era de 6 anos, enquanto que
para os homens era de 5,8 anos. Também segundo Nelson do Valle e Silva, as desigualdades de renda familiar per capita
apresentaram igualmente uma sensível redução. Se compararmos os resultados educacionais entre os quintos de renda
familiar extremos, ou seja, os 20% mais ricos com os 20% mais pobres, iremos observar que enquanto os 20% mais pobres
atingiram apenas 1,4% anos médio de estudo em 1976, os 20% mais ricos atingiram um nível médio de 6,8 anos, porém, em
1998, esses valores médios haviam se elevado para 3,3 anos e 9,4 anos, respectivamente, o que se traduz em uma razão entre
os resultados das duas faixas de renda que cai de 4,9 em 1976 para 2,8 em 1998.
Por fim, têm-se as desigualdades regionais. Estas também sofreram uma redução significativa durante o período.
Silva (2003) registra que, em 1976, os valores médios de escolaridade eram de 4,5 anos para as regiões Norte/Centro Oeste,
2,4 anos para a região Nordeste, de 4,5 anos para a região Sudeste e de 4 anos para a região Sul. Em 1998, observa-se uma
mudança significativa do quadro, uma vez que encontramos 6 anos para as Norte e Centro-Oeste, 6,6 anos para a Sudeste, 6,3
anos para a Sul e 4,5 anos para a Nordeste. Em suma, observa-se uma clara redução nas diferenças regionais com o
coeficiente de variação caindo de 0,20 para 0,11 entre as duas datas.
Ao analisar os dados para o período que compreende as décadas de setenta, oitenta e noventa, por meio de um
modelo que busca examinar os determinantes do nível médio de escolaridade da população de 15 a 18 anos e avaliar as
contribuições relativas para a produção desse resultado da melhoria da situação das famílias e do melhor desempenho do
sistema educacional, Silva e Hasembalg (2000, p. 423) concluem que a expansão educacional nessas décadas, ao mesmo
tempo em que elevou o nível educacional da população brasileira, reduziu a desigualdade educacional entre regiões, grupos
de cor, gêneros e estratos de renda, sendo que:

(...) o exercício de decomposição dos fatores explicativos da melhoria educacional proposto sugere, como
estimativa conservadora, que aproximadamente 60% dessa melhoria é devida à mudança nas condições de vida e à
distribuição geográfica das famílias, decorrente da urbanização e da transição demográfica, devendo-se os 40% restantes às
melhorias efetivas no desempenho do sistema educacional.

Um dos fenômenos que mais tem desafiado a sociologia da educação é o fato, já abordado por Boudon (1981) e por
Bourdieu (2007), de que, em regra, a expansão dos sistemas educacionais, atributo próprio das sociedades modernas, não
produz necessariamente uma maior igualdade de chances educacionais relativas. Com efeito, os resultados empíricos
freqüentemente revelam uma conservação das desigualdades sociais nas oportunidades relativas de escolarização, a despeito
das expressivas expansões dos sistemas educacionais. A este respeito, tanto as evidências empíricas, como as teorizações
sobre estas mesmas evidências coincidem com as conclusões das denominadas “teorias da reprodução” da sociologia da
educação, pois estas sempre insistiram que as expansões educacionais por si mesmas são incapazes de reduzir as
desigualdades de oportunidades de realização educacional, uma vez que não podem alterar a origem social dos estudantes e
todas as vantagens comparativas derivadas do pertencimento aos grupos socialmente favorecidos na estrutura social.
Na verdade, tal proposição não constitui propriamente uma novidade. Muitas enquetes, realizadas ainda nos anos
sessenta do século ora encerrado, serviram para pôr em evidência a resistência das desigualdades sociais ao processo de
ampliação do acesso em todos os níveis de ensino. Com base no rigor empírico exigido pelo ambiente cultural predominante
nos meios acadêmicos do período, estas pesquisas exibiam os limites dentro dos quais a ação pedagógica da escola poderia
reverter os efeitos da herança cultural familiar dos alunos. Para Bourdieu e Passeron, em la Reproduction (1970), a ação
pedagógica é violência simbólica. As relações estabelecidas na escola reproduzem as relações de força entre os grupos ou
classes sociais. Nesta visão, a posse diferenciada de bens materiais no interior do campo econômico por parte dos diferentes
grupos sociais faz com que os grupos aí privilegiados sejam bem sucedidos em sua empresa de conferir um valor diferencial
a posse de determinados bens simbólicos (hábitos culturais, costumes, preferências de consumo, educação etc.) O processo de
reprodução dá-se fundamentalmente no campo cultural, reproduzindo aí as formas de relação com a cultura dominante. A
partir de uma definição arbitrária, viabilizada em função da referida posição de força inicial, a cultura dominante é elevada à
condição de cultura legítima ou capital cultural, o que proporciona ao seu possuidor uma vantagem incomparável quando da
relação com indivíduos pertencentes aos demais grupos ou classes.
A reprodução propriamente dita irá consistir nas diferentes formas pelas quais este capital é transmitido entre as
gerações. Porém, a simples exposição de um indivíduo às formas culturais dominantes jamais assegura a reprodução delas. A

685
eficácia da reprodução depende de uma longa permanência em um ambiente cultural carregado de propriedades culturais
distintivas. Somente assim, a transmissão será capaz de engendrar disposições duradouras ou habitus. Para os autores, o
ambiente social que reúne todas as características necessárias para a realização eficaz do processo antes referido é a família.
Em todo este processo, a escola pode quando muito reforçar alguns aspectos da transmissão cultural, mas a sua função
estratégica consistirá sempre em tornar legítimas as desigualdades produzidas no âmbito familiar, exibindo-as na forma de
diferenças quanto à escolarização. Em outras palavras, a escola e obviamente os professores que nela atuam fazem com que
as desigualdades socialmente determinadas pelo nascimento apareçam como déficit em relação à cultura escolar.
Nas sociedades contemporâneas, podem ser identificadas algumas formas mais sutis e pontuais de conservação da
desigualdade de oportunidades educacionais entre os grupos sociais, no interior de um mesmo sistema de ensino. Entendendo
por estratificação social a relação entre as características de origem socioeconômica dos alunos na entrada do sistema escolar
e as características individuais observáveis na sua saída, bem como os mecanismos por meio dos quais essa relação é
estabelecida (Silva, 200, p.105), um dos fenômenos mais curiosos é a estabilidade da desigualdade nas oportunidades
educacionais que historicamente tem acompanhado certos grupos. Nesse ponto, chama atenção a dramática situação de
desigualdade quanto ao acesso, permanência e desempenho no sistema educacional do aluno afro-descendente em relação aos
alunos de descendência mais marcantemente européia, os alunos brancos. Estas considerações são atestadas por alguns
estudos que têm se dedicado a discutir a questão das desigualdades educacionais, concebendo-as como um mecanismo de
reforço das discriminações presentes no seio da sociedade brasileira.
Um dos mais importantes trabalhos a destacar a desigualdade de oportunidades educacionais dos afro-descendentes
brasileiros foi o estudo de Silva e Souza (1986). Os autores aplicaram o modelo de Mare2 para estudar a estratificação
educacional a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD)3, de 1976. Neste estudo, eles
distinguem oito transições escolares, quais sejam: de completar a 1ª série do Ensino Fundamental a completar a universidade,
uma vez que nela ingressou. Empregando como preditores cinco variáveis: status ocupacional do pai; educação do pai; lugar
de nascimento do aluno (área urbana versus rural); sua condição migratória (migrante versus não-migrante); cor (branco
versus não-branco), os autores observam que, a exceção do status ocupacional do pai, os efeitos dos preditores tendem a
declinar segundo se avança das primeiras para as últimas transições. Especificamente, eles observaram que a cor branca tem
uma grande influência na 1ª transição, revelando possíveis efeitos de discriminação racial sobre os alunos não-brancos. Este
achado foi confirmado por outros estudos como o de Barcelos (1992), que, ao analisar dados do suplemento de educação da
PNAD de 1982, concluiu que a probabilidade de as crianças brancas serem aprovadas na 1ª série do Ensino Fundamental é
27% maior do que a das crianças pretas.
Carvalho (2000) aplicou o modelo de Mare a dados da pesquisa de Padrões de Vida (PPV)4 do IBGE, adotando a
mesma estrutura de transições de Silva e Souza (1986). Os resultados também tenderam a confirmar os efeitos declinantes da
origem social ao longo das transições. Quanto à variável cor, as vantagens da cor branca igualmente se mostraram muito
fortes e positivas em praticamente todas as transições. No entanto, a última transição revelou-se uma exceção (completar a
universidade, dado que ingressou nela), pois o efeito da cor branca do estudante, a despeito de ser positivo, não foi
estatisticamente diferente de zero.
A importância particular da variável cor no contexto educacional brasileiro é igualmente destacada pela análise de
Fernandes (2001), que examina dados da PNAD de 1988. Neste estudo, o processo de escolarização é decomposto em cinco
transições: indo da transição 1 (de zero a um ano de escolaridade completo, estimando o acesso à instrução formal), até a
transição 5 (de onze a qualquer ano completo acima deste, estimando as chances de adquirir qualquer educação depois do
Ensino Médio). Os resultados da autora confirmam os das outras pesquisas, ou seja, a maioria das medidas de origem social
mostra um padrão decrescente da mais baixa para a mais alta transição escolar. Neste estudo, a variável cor exibiu um padrão
bastante diferente. O efeito desta variável declina rapidamente da primeira até a terceira transição, sendo esta tendência
revertida nas duas últimas transições. Assim, ser branco ou asiático representa uma vantagem nas chances de completar um
ano de escolaridade de mais de 100%, em relação ao grupo não-branco, ao passo que esta vantagem cai para 26%, quando se
trata das chances de terminar o Ensino Fundamental. Um dos resultados mais notáveis do estudo de Fernandes é que, ao
analisar as tendências na estratificação educacional pela comparação de coortes que cobrem toda a primeira metade do século

2
O modelo logístico sugerido por Mare (1980) visa superar um problema importante para o estudo dos determinantes da escolarização individual. Quando se
estuda esses determinantes através da especificação de uma função linear onde a variável dependente é o número de anos de estudo completos para cada
indivíduo e as variáveis independentes são os fatores que influenciam a sua trajetória escolar, negligencia-se a possibilidade de que um fator importante, em uma
dada etapa da escolarização de um indivíduo, pode ser irrelevante em uma outra etapa. Assim, a origem social de um indivíduo, por exemplo, pode ter influência
diferenciada ao longo de sua trajetória escolar, pois ela tende a ter um peso maior na permanência do sujeito no interior do sistema educacional, conforme ele
avance de um nível educacional para outro. Assim sendo, a forma mais conveniente de se analisar a determinação da escolaridade é concebê-la como
constituindo uma seqüência de transições entre níveis de escolaridade. Nessa abordagem, podem-se estudar os determinantes da escolaridade do indivíduo,
medindo-os por meio de uma coleção de probabilidades condicionais de progressão escolar. Essas probabilidades indicam as chances de um indivíduo atingir
certo nível de escolaridade, uma vez que ele completou o nível imediatamente anterior. Por conseguinte, o modelo logístico, proposto por Mare, assegura uma
análise adequada das alterações nas desigualdades de oportunidades educacionais, porque ele leva em conta apenas as diferenças autênticas de associação entre
as variáveis para revelar as diferenças de efeito entre as subpopulações, situadas, ao longo das transições, em cada nível de escolaridade.
3
A PNAD é uma pesquisa anual, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em uma amostra de domicílios de todas as regiões do
Brasil. A pesquisa busca levantar diversas características socioeconômicas da população brasileira, e seus resultados na forma de indicadores são divulgados em
publicações impressas e digitais.
4
A pesquisa sobre Padrões de Vida, realizada pelo IBGE, em convênio com o Banco Mundial, pretendeu fornecer informações que qualificassem e indicassem
os determinantes do bem-estar social de diferentes grupos sociais e permitissem identificar os efeitos de políticas governamentais nas condições de vida
domiciliar. Para tanto, foram aplicados questionários nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, sendo que a permanência no campo durante um ano (março de
1996 a março de 1997) teve como objetivo capturar dados sazonais.

686
XX, a autora conclui que “as transformações provocadas pelo processo de industrialização não diminuíram o efeito dos
determinantes da estratificação educacional no Brasil” e que “de fato, existem fortes evidências que os efeitos de ter nascido
negro ou pardo aumentaram com o desenvolvimento econômico” (Fernandes 2001, p. 61-62; grifos da autora).
Silva e Hasembalg (2001) estudaram as desigualdades sociais nas chances de transição dentro do sistema escolar
brasileiro a partir de dados da PNAD de 1999. O modelo analítico utilizado diferencia três tipos de recursos que as famílias
podem contar com o objetivo de conferir vantagens a seus filhos na competição escolar. O primeiro é o “capital econômico”
que é representado pela renda ou riqueza familiar. O segundo é o “capital cultural” que, na linha de Bourdieu (1998), pode
ser definido pelo conjunto de conhecimentos, gostos, atitudes e comportamentos que são reconhecidos e recompensados pelo
sistema escolar. Por fim, o terceiro tipo de recurso familiar é o “capital social” que, seguindo a definição de Coleman (1988),
consiste em alguns aspectos da estrutura social que facilitam a ação dos indivíduos dentro dessa estrutura. Os autores também
utilizam indicadores de dimensões espaciais (região e área de residência). O modelo estatístico utilizado é uma variante do
modelo convencional das transições. Os resultados indicaram que, ao contrário das hipóteses iniciais, apenas a variável
escolaridade do chefe da família apresentou o padrão esperado, sendo que os efeitos dos outros determinantes não tenderam a
uma atenuação conforme se avançava para transições superiores. De modo geral, os determinantes socioeconômicos
apresentavam uma influência máxima no meio do período da escolarização básica, diminuindo a sua influência tanto no
início, como, principalmente, depois das transições centrais. Neste estudo, a variável cor do respondente apresentou um
padrão de efeito inverso ao que foi hipotetizado. O que indica que as vantagens do jovem de cor branca tendem a crescer ao
longo das transições escolares, estabelecendo um processo de seletividade perversa no âmbito do sistema de ensino brasileiro.
Portanto, o que se percebe é que determinados grupos tais como os afro-descendentes não têm obtido os mesmos
benefícios dos jovens de descendência mais marcadamente européia da expansão educacional brasileira das últimas décadas.
Nesse sentido, Alves e Soares (2003, p.149) afirmam com justeza que “a escola continua sendo um produto social
desigualmente distribuído. [...]. Essas desigualdades são moduladas por filtros socioeconômicos, raciais, localização (urbano,
rural) e por tipo de rede escolar (pública, particular)”. Na mesma linha, Heringer (2004,p.58) ajuíza que “as desigualdades
são graves e, ao afetarem a capacidade de inserção dos negros na sociedade brasileira, comprometem o projeto de construção
de um país democrático e com oportunidades iguais para todos.”. Para a autora, estas desigualdades aparecem em distintas
circunstâncias da vida do sujeito, como a “saúde na infância”, os primeiro contatos com o sistema escolar e torna-se mais
forte no mercado de trabalho e, por conseguinte, na renda e no modo de se viver, de maneira geral.

1.2 As desigualdades de desempenho escolar dos estudantes afro-descendentes


Alguns estudos buscaram apreender as desigualdades de desempenho entre estudantes brancos e não-brancos em
testes padronizados de avaliação em larga escala do sistema educacional brasileiro. Nesta busca, deve ser destacado o
trabalho de Alves e Soares (2003). Eles utilizaram os dados do Saeb5 2001 e, como ferramenta de análise, o modelo de
regressão multinível que permite avaliar a influência de cada variável independente que pertence a cada um dos dois níveis
hierárquicos do estudo: alunos e escolas. Como resultado desta análise, os autores verificaram que a diferença entre alunos
brancos e negros é muito ampla em relação ao desempenho escolar e, em menor amplitude, há também diferença de
desempenho entre alunos brancos e pardos. De um modo geral, os fatores que contribuem para um melhor desempenho
escolar dos alunos podem ser assim relacionados: melhor qualificação dos professores, melhores salários dos professores,
escolas mais bem equipadas, diretores mais comprometidos, existência de livros em casa e alunos que gostam de estudar.
Com efeito, a análise dos dados mostrou que há uma forte associação estatística entre esses fatores e o desempenho escolar
dos alunos. Além disso, foi também encontrada uma forte associação entre o desempenho desigual dos grupos raciais e esses
mesmos fatores, de tal sorte que as desigualdades entre os alunos brancos e não-brancos tendem a se elevar com a elevação
da influência dos fatores antes relacionados no desempenho alcançado nos testes. Cabe observar que essa desigualdade é
maior quando comparamos os alunos de cor branca com os demais alunos, principalmente com os alunos negros. Como
resultado geral, tem-se que a forte influência destes fatores favorece especialmente o desempenho escolar das classes
socioeconomicamente privilegiadas, no caso brasileiro, os alunos brancos, contribuindo, na maioria das vezes, para aumentar
a desigualdade entre os grupos raciais.

2. Análise dos dados


2.1 O modelo de análise empregado
Para o tratamento dos dados desse estudo foi empregada a Análise de Correspondência Múltipla que consiste em
uma técnica de interdependência utilizada tanto para a redução dimensional da classificação de objetos em um conjunto de
atributos quanto ao mapeamento perceptual de objetos relativos a esses atributos. Pode ser aplicada em sua forma básica
através de uma tabela de contingência de múltiplas entradas, ela então transforma dados não métricos em um nível métrico,
possibilitando a redução dimensional e o mapeamento perceptual, este é particularmente importante, pois se pode notar o

5
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) é composto por dois processos: a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb) e a Avaliação Nacional
do Rendimento Escolar (Anresc). A Aneb é realizada por amostragem das Redes de Ensino, em cada unidade da Federação e tem foco nas gestões dos sistemas
educacionais. Por manter as mesmas características, a Aneb recebe o nome do Saeb em suas divulgações. A Anresc é mais extensa e detalhada que a Aneb e tem
foco em cada unidade escolar. Por seu caráter universal, recebe o nome de Prova Brasil em suas divulgações.

687
quanto que determinadas categorias de uma variável estão próximas às categorias de outras variáveis e da mesma variável em
questão. Também foi utilizada a Análise de variância na qual as variáveis independentes categóricas são utilizadas a fim de se
modelar o comportamento de uma variável dependente métrica e normalmente distribuída.
Para analisar as bases de dados provenientes dos modelos multiníveis das avaliações em larga escala foram
utilizados modelos de regressão multinível similares aos modelos de regressão múltipla tradicionais, estes consideram a
estrutura gregária na qual os alunos estão agrupados em turmas e estas em escola, assim pode-se mensurar os efeitos das
variáveis da composição de turmas no desempenho individual dos alunos.
Para o tratamento dos dados desse estudo foram empregadas as seguintes técnicas estatísticas: Análise de
Correspondência e Análise de Regressão Hierárquica. A Análise de Correspondência visa o tratamento de dados agrupados
segundo variáveis categóricas, permitindo a construção de um mapa perceptual, no qual podem se identificar similaridades
entre as categorias da mesma variável e as associações entre categorias de variáveis diferentes. Esta análise permitirá a
identificação do perfil de cada grupo de cor em relação a sua escolaridade. E a Análise de Regressão Hierárquica será usada
para identificar como os fatores relacionados ao perfil do aluno, e a composição da turma, estão associados ao desempenho
dos alunos.

2.2 Alguns dados sobre a atual situação da educação brasileira


2.2.1 Censo Demográfico 2000: uma correspondência entre cor e escolaridade
No sentido de fazer uma reflexão sobre o desempenho educacional da população afrodescendente (pretos e pardos)
e da branca, procurou-se utilizar das bases de dados do Censo Demográfico 2000, Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios - Pnad 2006 e Censo Escolar 2006, que trabalham com informações gerais sobre estas populações. Todavia, neste
estudo, quando se utiliza as denominações branco, preto e pardo, é porque as mesmas são assim tratadas como categorias,
para o mapeamento da cor dos indivíduos presentes na sociedade brasileira, pelo Censo Demográfico.
O Censo Demográfico 2000 abrangeu “[...] 54 265 618 domicílios nos 5 507 municípios existentes no ano de 2000,
das 27 unidades da federação.” (IBGE, 2003). Dentro deste universo pesquisado, como demonstrado na tabela 1 abaixo, tem-
se para uma população geral a seguinte distribuição: para os grupos de indivíduos auto-declarados brancos uma parcela de
56,7%, seguidos dos auto-declarados pardos, 35,1%, e dos auto-declarados pretos, 6,8%. Foram desconsiderados da amostra
os amarelos (0,5%), os indígenas (0,4%) e os sem declaração (0,6%). As categorias branco, preto e pardo juntas somam
98,6%, quase a totalidade.

Tabela 1 - Distribuição da cor na população de 25 anos ou mais

Cor Percentual
Branco 56,7%
Pardo 35,1%
Preto 6,8%
Outros 1,4%
Fonte: Censo Demográfico 2000

Como o objetivo é traçar um paralelo entre a trajetória escolar do negro em relação à trajetória do branco, a partir
desse ponto serão desconsiderados da amostra os amarelos (0,5%), os indígenas (0,4%) e os sem declaração (0,6%). Na
tabela 2, a seguir, tem-se os dados que apresentam uma população considerada acima dos 25 anos ou mais de idade, em razão
da mesma ser considerada assim pelo Censo Demográfico enquanto faixa etária de escolarização completa. Nota-se que ainda
é alto o número de pessoas que não possuem nenhuma escolaridade para uma população estimada acima dos 25 anos de
idade. Uma terça parte (cerca de 31,0%) conseguiu atingir somente a faixa de ensino que vai da 4ª a 7ª série. Daí em diante,
fica cada vez mais restrita a participação desta população no ensino, ou seja, apenas 6,4% atingem a graduação completa e
somente 0,4% conseguem obter um título de pós-graduação (Stricto sensu ou Lato sensu).

Tabela 2 - Distribuição por escolaridade em faixas de idades de 25 anos.ou mais

Escolaridade Percentual
Nenhuma 14,7%
1ª a 3ª série 18,1%
4ª a 7ª série 31,0%
fundamental completo 13,0%
médio completo 16,5%
graduação completa 6,4%
pós-graduação completa 0,4%
Fonte: Censo Demográfico 2000

688
O cruzamento das variáveis estudadas (cor e escolaridade), via análise de correspondência, permitiu obter o
seguinte resultado, como indica o gráfico 1:

Gráfico 1 - Correspondência da cor preta, parda e branca com os níveis de escolaridade

Fonte: Censo Demográfico 2000

Nota-se, pela inspeção visual do gráfico acima, que as modalidades de graduação e pós-graduação se apresentam
incomuns à população geral, pois se distanciam substancialmente de todas as categorias da variável cor. Mas, os indivíduos
que tem uma maior probabilidade de estarem associados a essas modalidades, são os de cor branca. A categoria branco está
mais próxima das modalidades de formações médio e 4ª a 7ª série, enquanto preto e pardo estão próximos das formações 1ª a
3ª série e nenhum. Porém, será o preto quem mais se associa a nenhuma escolaridade.

2.2.2 PNAD 2006: renda, cor e escolaridade


Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2008), a PNAD disponibiliza os resultados da
pesquisa de todo o Estado brasileiro, com dados básicos para se estudar e planejar o desenvolvimento social e econômico do
país, abarcando especificidades “gerais” da sociedade, migração, ensino, trabalho, rendimento e fecundidade, assim como da
família e do domicílio. Desta forma, e em razão das especificidades deste trabalho, procurou-se trabalhar com os microdados
que tratam sobre a escolaridade, rendimento e cor da população na faixa etária dos 25 anos ou mais de idade. A escolaridade
é descrita de maneira bem detalhada, entretanto, algumas de suas categorias, como alfabetização de adultos (EJA), são muito
pouco expressivas, sequer chegando a 1% do total. Assim, desconsideraram-se os analfabetos e reagruparam-se os níveis de
escolaridade em primário, ensino fundamental, ensino médio e superior.
Assim, parte-se para a análise descritiva dos dados que se apresentam estratificados por cada categoria das
variáveis de interesse: cor e escolaridade. É importante ressaltar que não se encontram problemas de generalização devido ao
tamanho da amostra ser de 410 241 pessoas. Foi utilizada como indicadora de renda o Rendimento mensal em valor dos
produtos ou mercadorias que recebia normalmente, no mês de referência, no trabalho principal da semana de referência. Tal
variável foi escolhida por apresentar informações possivelmente mais fidedignas, tendo em vista que ao entrevistado é
solicitada uma estimativa de seu rendimento mensal a partir do rendimento da semana anterior à da pesquisa. No gráfico 2, a
seguir, nota-se que todos os grupos por categorias de cor (branco, preto e pardo), constituem trajetórias, num certo sentido,
parecidas quando correlacionados os fatores níveis de escolaridade e renda. Ou seja, à medida que o tempo de escolaridade
aumenta, observa-se um aumento nos ganhos. Todos conseguem converter tempo de ensino em benefícios econômicos.
Porém, há uma desigualdade identificada no primário que vai se mantendo próxima em termos percentuais, numa faixa de
40% a 50%, entre os grupos de brancos e não brancos (especificamente os afrodescendentes, pretos e pardos), ao longo de
toda a trajetória educacional. Assim, quando o indivíduo branco possui somente o primário, a sua renda é 45,1% a mais que a
do preto nas mesmas condições. No ensino fundamental a diferença cai para a casa dos 39,6%. Já no ensino médio a
diferença sobre para 50,6% e quando ambos conseguem atingir o ensino superior a diferença fica em torno de 42,4%.

689
Todavia, as populações de pretos e pardos se confundem nas oportunidades sócio-educacionais e estes podem a ser
vistos de uma só forma na distribuição do capital cultural e econômico e assumem, assim, a configuração de destituição de
benefícios advindos da estrutura social quando comparados aos brancos. Os afrodescendentes (analisando os pretos e pardos
conjuntamente) ficam precarizados no percurso pelos anos de estudo associado à renda. Para tal circunstância, infere-se que
pretos e pardos, ainda que atinjam o topo da pirâmide educacional, não conseguirão alcançar os mesmos níveis de rendimento
que os brancos. Ou seja, a educação é um fator importante para o aumento de renda de todos os indivíduos, mas não é
garantia de equidade.
Gráfico 2 – Rendimento mensal médio ao longo dos níveis de escolaridade por cor

Fonte: PNAD 2006

2.2.3 Censo Escolar 2006: como a cor aparece na escola


O mapeamento das informações sobre o universo educacional brasileiro é feito pelo Censo Escolar. O Censo é um
instrumento para o estudo da escola e de todos os possíveis fenômenos correlacionados à instituição. É desenvolvido em
parceira com as secretarias estaduais e municipais de educação, e constitui-se dos dados das escolas públicas e privadas da
educação básica nacional.
No caso deste estudo, tendo como foco a questão racial, a cor desponta como elemento que compõe uma distinta
representatividade dos sujeitos na esfera de ensino, o que, por sua vez, se traduz em um processo de trajetória escolar
diferenciado entre brancos e não-brancos. Nesse sentido, a tabela 3 demonstra alguns índices sobre os quais se decompõe o
perfil do alunado na educação brasileira, o que indica uma baixa educacional dos afrodescendentes como categoria
participante no processo de ensino-aprendizagem. Pode ser notado que o percentual de alunos pretos e pardos tende a decair
comparando-se as matrículas na admissão e na conclusão do ensino fundamental. Assim, de maneira intuitiva, considera-se
que os alunos de cor branca teriam uma progressão escolar melhor do que dos afrodescendentes.

Tabela 3 – Percentual de alunos por cor da admissão ao final do ensino fundamental

Cor 1ª série 8ª série


Branca 40,5% 45,8%
Preta 8,5% 7,6%
Parda 48,3% 44,6%
Amarela 1,3% 1,3%
Indígena 1,5% 0,6%
Total 100,0% 100,0%
Fonte: Censo Escolar 2006

2.3 Avaliações em larga escala: a relação entre a cor e a proficiência


Para as avaliações em larga escala, procurou-se trabalhar com dados que obtivessem maior representatividade do
contexto do ensino ministrado no Brasil. Para isso, levou-se em consideração as especificidades das avaliações dos estados e
suas respectivas coberturas por regiões onde a demanda fosse diferenciada e, em justa medida, oferecesse resultados
significativos do ponto de vista da questão da cor do aluno e de sua proficiência educacional. Assim, utilizaram-se os dados
do Estado de Minas Gerais a partir das informações colhidas pelo Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação

690
Básica – PROEB. Do Estado do Rio de Janeiro, que possui um número expressivo de pretos e de pardos, aliado a um alto
desenvolvimento econômico e uma má distribuição destes bens entre a sua população através das informações obtidas pelo
programa de avaliação Nova Escola. Do Rio Grande do Sul, que se destaca por, ao contrário do Rio de Janeiro, possuir uma
baixa população de pretos e pardos, e tem-se por base de informação, o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Rio
Grande do Sul – SAERS. E, por último, do Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB, que cobre todo o território
nacional. É digno de nota que o SAEB trabalha de forma amostral e que as demais avaliações são censitárias.
A fim de se avaliar o impacto das características estudadas na proficiência dos alunos, utilizaram-se os Modelos
Lineares Hierárquicos. Às variáveis de interesse, que são cor preta e baixa condição socioeconômica, foram acrescentadas as
variáveis gênero e defasagem idade/série, pois existe uma tendência maior de defasagem entre alunos do gênero masculino e
de cor preta. Alves et al (2007), em seus estudos sobre a origem social e o risco de repetência, tendo como fator de interação
a raça e o capital econômico, corroboram a idéia deste estudo quando verificam que o “menino” mostra-se como elemento de
“risco” a uma “repetência” do aluno da “8ª série do ensino fundamental de escolas públicas das capitais brasileiras”. Do
mesmo modo, o aluno que trabalha, apresenta-se com uma possibilidade a mais para repetir que aqueles que não estão em
iguais condições. Também, a possibilidade de repetir dos alunos da “8ª série” em instituições “públicas das capitais
brasileiras” autodeclarantes pretos é acima dos que se declaram não-pretos. Dessa forma também se processa com o aluno
que se autodeclara pardo, mesmo sendo o seu “risco” menor. Carvalho (2004) também confirma isto, em seus estudos sobre
fracasso escolar, quando conclui que “pessoas negras de sexo masculino têm maiores dificuldades em sua trajetória escolar,
seguidos de mulheres negras, homens brancos e, em melhor situação, mulheres brancas.”
Sintetizando a interpretação de todos os modelos construídos, pode-se dizer que em todos eles a cor preta influencia
a proficiência dos alunos de maneira substancial, mesmo quando controlada as demais variáveis: defasagem, gênero
masculino e, principalmente, condição socioeconômica. Ou seja, considerando dois alunos de mesma condição
socioeconômica, de mesmo gênero, de mesmo nível de defasagem idade/série, numa mesma turma, o aluno preto tenderá a
apresentar um desempenho pior que os demais, como pode ser constatado através dos modelos construídos e apresentados
nas tabelas 4 e 5.

Tabela 4 – Coeficiente dos Modelos Lineares Hierárquicos para a proficiência em Língua Portuguesa nos sistemas
de avaliação considerados
Disciplina de
Língua Portuguesa
Nova
PROEB SAERS SAEB
Avaliações consideradas Escola
2007 2006 2003
2006
Intercepto 205,5** 196,3** 218,7** 180,7**
Gênero Masculino -7,5** -12,6** -9,4** -12,2**
ISE 0,0 2,4** 1,1** 4,3**
Efeito direto -10,3** -5,8** -10,5** -13,5**
1º nível (Alunos)
Cor Preta Interação com o Percentual de Alunos de
25,1** 10,6* 14,8** 21,6*
Cor Preta na Turma1
Cor Parda 1,3** 0,3 -0,3 2,1**
Defasagem -16,0** -12,5** -19,5** -15,1**
Interação ISE X Cor Preta -1,7** -3,6** -4,0** -3,1
ISE médio da Turma1 14,2** 3,1 15,0** 22,8**
2º nível (Turma)
Percentual de Alunos de Cor Preta na Turma1 -34,3** -22,6** -12,1** -12,8**

Tabela 5 – Coeficiente dos Modelos Lineares Hierárquicos para a proficiência em Matemática nos sistemas de
avaliação considerados

Disciplina de
Matemática
Nova
PROEB SAERS SAEB
Avaliações consideradas Escola
2007 2006 2003
2006
Intercepto 212,2** 202,7** 224,1** 179,4**
Gênero Masculino 3,0** 0,9 3,4** 4,1**
ISE 0,4** 2,8** 1,6** 6,1**
1º nível (Alunos)
Efeito direto -12,5** -7,8** -13,7** -13,5**
Cor Preta
Interação com o Percentual de Alunos de 26,2** 13,7* 23,4** 24,3*

691
Cor Preta na Turma1
Cor Parda 1,4** 0,5 -1,05** 1,8**
Defasagem -18,2** -11,3** -21,2** -14,2**
Interação ISE X Cor Preta -1,3** -3,5** -3,9** -4,5**
ISE médio da Turma1 11,1** -6,7* 14,1** 22,3**
2º nível (Turma)
Percentual de Alunos de Cor Preta na Turma1 -40,7** -24,9** -25,6** -10,4*
* P-valor menor ou igual que 0,05.
** P-valor menor ou igual que 0,001.

1 ISE médio da Turma e Percentual de Alunos de Cor Preta na turma, no SAEB 2003, equivalem a ISE médio da
Escola e Percentual de Alunos de Cor Preta na Escola respectivamente.

O gráfico 3 abaixo, ilustra essa conclusão obtida a partir dos modelos no caso do PROEB-2007. Como se pode ver,
pelas médias de proficiências dos alunos segundo cor e em grupos por condição econômica6, os alunos pretos apresentam em
média proficiências substancialmente inferiores aos dos pardos e dos brancos. Em Soares (2005), pôde-se notar que o
indicador do nível socioeconômico do aluno se associa a uma proficiência maior, enquanto variáveis referentes à defasagem
do aluno como raça negra, gênero masculino se associam a uma proficiência menor. Ressalta-se também o fato deste estudo
mostrar que as influências dessas variáveis: raça negra e nível socioeconômico sejam dependentes da turma em que o aluno
está inserido. Na mesma linha de discussão, o estudo de Soares & Alves (2003) visou comparar os grupos raciais pela
variável proficiência e nível socioeconômico. Observa-se, neste trabalho, que com o aumento do atraso escolar ao longo das
séries diminui a diferença de proficiência entre brancos e negros. Porém, este é um resultado que não revela um aumento de
ganho no desempenho dos pretos e sim uma baixa de rendimento dos brancos. A diferença entre brancos e não brancos se
associam a um aumento do nível socioeconômico do aluno e da escola, e é maior na rede privada.
Os resultados apresentados são importantes, na medida em que identificam desigualdades educacionais cuja
explicação vai além das observadas para estudantes de diferentes condições econômicas. Mostram que de fato a diferença de
desempenho entre pardos e brancos é substancialmente minimizada quando se controla as condições econômicas. No entanto,
uma diferença ainda é observada no desempenho dos alunos pretos quando comparados a pardos e brancos, mesmo entre
alunos de condições econômicas próximas, e pior, ainda que levadas em consideração outras condições relevantes como a
defasagem idade-série. Esse é um indicativo da precarização das condições educacionais dessa parcela da população em
relação das demais. Por outro lado, ela revela também uma dissociação do observado na relação entre a renda e a
escolaridade em que pretos e pardos apresenta semelhanças de resultados.

Gráfico 3 – Proficiência em Matemática de cada cor ao longo dos níveis socioeconômicos em turma de 4ª série

Fonte: PROEB 2007

6
Os alunos foram divididos em três grupos de mesmo tamanho (33,3%) segundo a condição econômica.
Observaram-se também algumas interações substanciais nos modelos montados entre a condição socioeconômica e
a cor dos alunos: apesar dos alunos, de uma forma geral, tenderem a apresentar um desempenho maior com melhores
condições socioeconômicas, os alunos pretos geralmente se beneficiam menos. Tal fato pode ser constatado nos modelos
criados devido a presença de interações significativas entre a cor preta e o indicador socioeconômico (ISE). Isto é, o
coeficiente do termo de interação (cor preta x ISE) é negativo o que mostra que a população de alunos de cor preta tenderá a
apresentar um crescimento menor da proficiência à medida que a condição socioeconômica sobe.
Ressalta-se novamente, observando os modelos, que os alunos que se auto-declaram pardos não possuem o mesmo
desempenho dos alunos declarantes pretos, como pode ser notado pelo coeficiente positivo associado a variável cor parda na
maior parte dos modelos construídos. Os pardos, por sua vez, possuem desempenho igual e, em algumas circunstâncias,
superior ao do branco (ver tabela 3 e 4) quando se consideram as mesmas condições.
Notavelmente nos modelos hierárquicos pode se constatar a influência das variáveis de composição de turmas no
desempenho dos alunos. Surpreende o fato de que turmas com maior concentração de estudantes de cor preta se associam a
menor desempenho de todos os alunos, e não apenas os que se declaram pretos. Esse fato é ilustrado pelo gráfico 4 abaixo.

Gráfico 4 – Proficiência em Matemática de pretos e não-pretos em turmas de 4ª série com diferentes concentrações
de pretos

Fonte: PROEB 2006

Assim pode-se intuir que talvez haja um determinado sistema de organização das turmas dentro de algumas escolas
(enturmação) cujo critério preponderante seja baseado no desempenho escolar do aluno. Infelizmente, tendo os pretos um
pior desempenho que os demais, teriam essas turmas um maior percentual desses alunos. Isso explicaria em parte o
fenômeno. O que fica claro é que esse expediente quando existe não parece, em geral, produzir uma melhora dos resultados,
ao contrário, piora os resultados de todos os alunos que são destinados a essas turmas. No entanto, é preciso estudos
específicos para aprofundar a explicação desse fenômeno. É o caso da análise dos efeitos que estão diretamente ligados a
influência das variáveis de turma do Relatório Contextual da Avaliação da 4ª série do Ensino Fundamental da Rede Pública
de Minas Gerais, que deixou à mostra notórias observações sobre a relação de composição de turma. Segundo resultado do
relatório (MINAS GERAIS, 2006) o desempenho dos alunos cai se estes pertencem a uma turma com elevada percentagem
de defasagem, elevado porcentagem de pretos e de “alunos” com baixo nível econômico. Pode haver, evidentemente, uma
carência de assistência apropriada a essas turmas, o que beneficiaria a todos os alunos e principalmente os pretos.

3. Refletindo a hipótese
O conceito de raça adotado neste estudo consistiu na autodeclaração do entrevistado em pesquisas oficiais de coleta
de dados, cuja categorização foi previamente definida. A moderna tradição das ciências sociais não costuma reservar à noção
de raça um estatuto biológico. Nesta tradição de pesquisa, a idéia de raça costuma aparecer como uma construção social. Nas
palavras de Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999:135): [raças são] “construtos sociais, formas de identidade baseadas
numa idéia biológica errônea, mas eficaz socialmente, para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios”.
Sociologicamente falando, “enxergar” raças no interior dos espaços institucionais e/ou sociais implica a mobilização de
esquemas de identificação, divisão e classificação dos indivíduos e, especialmente, das relações por eles estabelecidas
durante a rotina social presente no mesmo espaço por eles também compartilhado. Trata-se, portanto, de orientações para o
agir social, nem sempre conscientes que aparecem costumeiramente sob a forma de atitudes, expressões faciais, sutilezas,
manifestações de (des) respeito, modos de tratamento, preferências estéticas e outras modalidades de expressão do sentido
social da ação. Quase sempre referida a atributos físicos, a raça costuma ser eficaz na demarcação de lugares e (des)
qualificação social de si mesmo ou do outro. Em suma, uma das características mais marcantes da noção de raça é a sua
capacidade de, por intermédio da percepção dos atores sociais, categorizar pessoas, lugares, discursos, símbolos e, por
conseguinte, produzir efeitos eficazes de reconhecimento ou invisibilidade social.
Há cada vez mais convergência de opiniões quanto a algumas considerações a respeito da classificação racial no
Brasil e na América Latina. Especialmente no Brasil, a classificação racial apóia-se menos na ascendência biológica ou
herança genética (genótipo), sendo mais marcadamente influenciada pela aparência ou características fenotípicas tais como a
cor da pele, as formas faciais ou o tipo de cabelo. A este respeito, há de se considerar muito o status socioeconômico da
pessoa, quando se lida com questões raciais na sociedade brasileira. Não é desprovida de sustentação a idéia que estabelece a
aparência e o status socioeconômico como fatores cuja combinação é capaz de definir circunstancialmente a classificação
racial por parte de uma boa parcela da população brasileira. Como diz Marília Carvalho (2005: 78): “[...] a classificação
racial no Brasil é fluída e variável, com a possibilidade de se ultrapassar a linha de cor em decorrência da combinação entre
aparência e status social”.
Se por um lado, são plenamente reconhecidos os problemas de identidade racial e autoclassificação racial no
âmbito da sociedade brasileira, uma vez que os critérios não-físicos como a renda, a escolaridade e o local de moradia do
indivíduo interferem necessária e suficientemente na classificação racial socialmente legítima, há igualmente muita
concordância a respeito do poder identitário e demarcativo da cor na construção social das relações raciais. Mesmo como
metáfora, pode-se dizer que a cor é eficazmente acionada como recurso de demarcação aparente de diferenças e de
desigualdades sociais (Araújo, 1999).
No âmbito da educação escolar, o que mais chama a atenção é a capacidade de a cor produzir significados quase
sempre associados a uma subvalorização social dos indivíduos portadores de determinadas características fenotípicas. A
noção vaga de um “racismo difuso”, quase imperceptível em sua operosidade, mas eficiente em seus resultados, começa a
ganhar forma mais clara em alguns estudos de natureza qualitativa que talvez consigam iluminar os mecanismos responsáveis
pela produção dos grandes números da discriminação racial à brasileira no interior do campo educacional. A este respeito, a
pesquisa realizada por Marília Carvalho (2005) pode ser considerada um passo adiante na (des) construção das relações
raciais desiguais, estabelecidas no interior das salas de aula das escolas brasileiras.
A autora realizou a sua investigação em uma escola pública da capital paulista, que atende a 670 alunos do Ensino
Fundamental e Médio. Com turnos funcionando pela manhã e à tarde, a escola conta com 40 professores e professoras,
todos/as com curso superior, quase todos com jornada de 40 horas semanais e apenas 20 delas em sala de aula. As condições
de funcionamento do estabelecimento de ensino são adequadas, especialmente, se comparadas com outras escolas da região.
Todas as classes têm 30 alunos com composição social heterogênea. A pesquisa teve como foco as oito classes de 1ª a 4ª
séries, totalizando 243 crianças. Para o registro da atribuição de cor por parte dos alunos, foi solicitado às professoras,
durante a entrevista, que os classificassem de acordo com as categorias utilizadas pelo IBGE (branco, preto, pardo, amarelo e
indígena). As crianças, por seu turno, responderam, durante o período de aula, a um pequeno questionário com duas questões:
(i) Qual a sua cor ou raça? e (ii) Como você se classifica na lista abaixo? Marque apenas um. (categorias do IBGE).
A par das dificuldades enfrentadas pelas crianças para responder as perguntas acima, o que, por si mesmo, pode ser
muito revelador dos problemas da classificação racial brasileira, os resultados da pesquisa foram impressionantes, pois a
hipótese da autora restou plenamente corroborada. Segundo a hipótese de pesquisa, a classificação racial feita pelas
professoras teria como referência não apenas características fenotípicas, sexo ou nível socioeconômico (elementos estes
presentes na sociedade brasileira), mas igualmente o desempenho escolar dos alunos. A partir da quantificação das
proporções de heteroclassificação racial dos alunos por parte das professoras foi possível reunir evidências que permitiram
afirmar que “a atribuição de raça feita pelas professoras não se relacionava exclusivamente às características fenotípicas das
crianças, a seu sexo e à percepção que tinham quanto à renda de suas famílias, mas também a seu desempenho na
aprendizagem, independentemente de seu comportamento ser considerado como disciplinado ou não” (Carvalho, 2005: 94).
Prossegue a autora:

[...] Se lembrarmos que a avaliação escolar utilizada nesse caso é construída pelas próprias professoras, podemos
supor que elas tanto tendiam a perceber como negras crianças com problemas de aprendizagem, com relativa independência
de sua renda familiar, quanto tendiam a avaliar negativamente ou com maior rigor o desempenho de crianças percebidas
como negras.
Isto é, se pensarmos que o status da criança no âmbito da escola depende tanto de sua renda familiar quanto de seu
desempenho, podemos supor que o fato de a desigualdade de desempenho escolar entre brancos e negros na escola estudada
ser maior quando se usa a classificação das professoras do que quando a autoclassificação é usada, decorreria tanto de as
professoras clarearem crianças de melhor desempenho quanto de, simultaneamente, avaliarem com maior rigor crianças que
percebem como negras. Esse fenômeno é particularmente intenso em relação aos meninos, o que indica a presença de uma
associação, no quadro de referências utilizado pelas professoras para avaliar as crianças, entre um tipo de masculinidade
negra e o baixo desempenho na aprendizagem. (Carvalho, 2005: 94)

694
É bem verdade que ainda resta um longo caminho de pesquisas para esclarecer os detalhes de funcionamento dos
mecanismos acionados no interior das salas de aula que poderiam explicar os preocupantes números das estatísticas sociais e
educacionais brasileiras no que tange à questão racial. Até lá, a educação brasileira deverá continuar ampliando a oferta de
vagas em todos os níveis de ensino, sem que todos os grupos sociais possam usufruir dos benefícios de uma hoje ampla oferta
de matrículas e de uma futura melhoria da qualidade desta oferta. De resto, um dos mais importantes traços de todo esse
processo é a constatação de que, em qualquer sociedade, a instituição escolar desempenha um papel preditivo nada
desprezível do futuro social e profissional dos sujeitos que por ela logram passar. Se o desempenho escolar obtido no início
do processo de escolarização de um indivíduo pode constituir uma verdadeira promessa de longevidade escolar, a influência
decisiva que a percepção dos professores joga nesta avaliação, deveria nos alertar para a necessidade premente de
desconstruir o preconceito racial invisível da sociedade brasileira que, cada vez mais capilarizado, encontra-se talvez alojado
no espaço mais público da República: o chão das escolas públicas.

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Agressões praticadas por garotas dentro da escola: reflexões sobre escola, gênero
e violência1

Paulo Rogério Neves


EdGES/FEUSP
neves.paulo@uol.com.br

Resumo: A temática da violência tem preocupado pesquisadoras/es do mundo inteiro com as mais variadas abordagens sociológicas. Alguns
a compreendem como um processo de incivilização, de enfraquecimento do Estado Nacional, principalmente após as reformas neoliberais
ocorridas nos finais dos anos de 1990, como se os elos que mantinham a coesão da comunidade nacional imaginada estivessem cedendo. No
entanto, os estudos sobre violência apresentam várias perspectivas e outras dimensões que se articulam com esse caráter macro-social. Um
exemplo é a violência que ocorre dentro da instituição escolar. Ao ser compreendida como local de mediação entre espaço privado e espaço
público, seu princípio inerente é o de inserir a nova geração na vida pública, compreendida como política. Esse é o foco desta comunicação:
a análise de uma série de violências protagonizadas por jovens garotas no interior de uma escola pública da cidade de São Paulo (Brasil),
cujos resultados apresentados são decorrentes de pesquisa de mestrado desenvolvida na Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. Ressalta-se a importância da perspectiva de gênero para a compreensão destes eventos como forma reiterada de resistência e
reprodução dos estereótipos de gênero, bem como forma de romper a invisibilidade das jovens. Ao mesmo tempo tal prática evidencia uma
importante lacuna na função social da instituição escolar, ou seja, seu caráter ontológico de formar cidadãos para compartilharem o espaço
público, portanto espaço da argüição e persuasão e da não-violência, nas palavras de Hannah Arendt, o espaço da política.

Introdução
Desde sua origem, a escola tem sido local de disputa de consciências e de criação de disciplina, seja da mente ou
dos corpos. Foi nos séculos XVI-XVII que se situou a invenção da forma escolar (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001),
momento no qual se rompeu com a antiga dinâmica do aprender obtido por “ver-fazer e ouvir-dizer” do regime antigo e
concentraram-se as crianças em “um lugar específico, distinto dos lugares onde se realizam as atividades sociais: a escola.”
(VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 13, grifos meus). Ainda de acordo com Guy Vicent, Bernard Lahire e Daniel Thin
(2001), a forma escolar servia mais para aprender as “disciplinas escolares”, pois, para a maioria dos alunos, o aprendido era
inútil para sua vida. Essa forma escolar iria ganhar maior importância quando da instauração da República, principalmente
sob a influência do Iluminismo, pois a regra, o controle, então, deveria ser manifestação de cada um e não mais externa;
portanto, as regras de suserania e vassalagem deixavam de existir. Afirma o autor:
Se é isso o que se passa é porque a emergência da forma escolar é contemporânea a uma mudança em o político (e
no religioso) mais fundamental que as mudanças de regimes ou instituições políticas que marcaram as sociedades européias a
partir do século XVII (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 16, grifos dos autores).
Émile Durkheim é quem pela primeira vez apresenta uma reflexão sistemática sobre essa capacidade de introjeção
da regra que a escola propicia, por sua natureza socializadora ao cumprir a função de integrar os mais novos ao espaço
público, pois, para o autor, os imaturos são marcados pela falta, pela ausência porque não possuem qualidades morais, ou
seja, faltam-lhes condutas recomendadas para a convivência social, de onde decorre, também, o caráter disciplinar da escola:
A educação é ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a
vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais,
reclamados pela sociedade política, no seu conjunto e pelo meio especial a qual a criança, particularmente, se destine.
(DURKHEIM, 1978, p.41)

1
Este texto apresenta resumidamente resultados da pesquisa de mestrado. NEVES, Paulo Rogério da C. As meninas de agora estão piores do que os meninos:
gênero, conflito e violência na escola. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2008. A pesquisa contou com a concessão de
bolsa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (CAPES).

696
Aos adultos cabe educar o aluno a fim de suprir essas ausências, neutralizando sua natureza e transformando-o em
um ser social e moral. Assim, o “mal natural” será contido pela disciplina, que imporá limites morais. Para Durkheim, como
bem destaca Marília Sposito (2003), a moral era essencialmente racional e de fundamento social, sendo, portanto, passível de
ser ensinada. No entanto, a esfera doméstica, segundo o autor, não garantiria mais tal integração por causa, principalmente,
da intensa divisão social do trabalho. Assim, para o sociólogo, a escola seria a instituição que, decorrente de seu caráter
impessoal e público, afastado do ambiente determinado pelas relações afetivas características do núcleo familiar, poderia
melhor desempenhar a educação moral. Diz-nos:
A escola, dessa forma, é um grupo real, existente, do qual a criança faz natural e necessariamente parte, e é um
grupo de natureza diferente da família.[...] Conseqüentemente, por meio da escola, nós temos forma de introduzir a criança
em uma vida coletiva diferente da doméstica: nós podemos lhe propiciar hábitos que, uma vez contraídos, sobreviverão ao
período escolar e serão reivindicados pela satisfação que lhe dão. (DURKHEIM, 1947, p.199 – tradução minha)
Tais hábitos também estão relacionados com a disciplina necessária para o mundo do trabalho, pois em qualquer
escola há sistemas de regras que determinam condutas, tais como: as crianças devem obedecer a horários fixos de entrada na
sala; apresentar-se devidamente uniformizadas; evitar atrapalhar a ordem durante as aulas; fazer seus deveres; aprender as
lições — tudo sob risco de punição, caso não cumpram suas obrigações. Assim, por meio dessa disciplina escolar, à qual toda
criança se submete, é possível inculcar-lhe o espírito da disciplina necessária para o mundo adulto.
Nos anos de 1950, a filósofa alemã Hannah Arendt, radicada nos Estados Unidos, apontava para certa crise da
educação. Preocupada com o sistema de ensino estadunidense, principalmente em razão do início da corrida espacial, a
filósofa escreveu o texto intitulado A crise na Educação. Para a autora, a preocupação não seria se os/as alunos/as aprendem a
ler e/ou escrever – ainda que tais habilidades sejam importantes –, mas, principalmente com a essência da educação:
a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo. O desaparecimento de
preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos apoiávamos de ordinário sem querer perceber que
originariamente elas constituíam respostas a questões. Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas
novas e velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela
com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da
experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão. (ARENDT, 2005, p. 223, grifos meus). 2
Ser a natalidade a essência da educação significa dizer que a preocupação ímpar da educação é com os mais novos,
com as crianças, com aqueles/as que ainda não estão prontos para viver no mundo dos adultos, no mundo da persuasão, ou
seja, no mundo do discurso e, portanto, político. Assim, como os/as novos/as não possuem ainda a capacidade de
argumentação tal qual um adulto, o processo educativo consiste em, para além da aquisição dos conhecimentos específicos
das ciências, aprender a manejar a oralidade, a organizar idéias, a construir argumentos e a utilizar-se do discurso a fim de
defender suas idéias, ou seja, aprender a agir de modo político.
A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal
qual é, porém se renova continuamente através [sic] do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-
chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim a criança, objeto da educação, possui
para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um
novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo, e
não se aplica às formas de vida animais; corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um
lado, e com a vida, de outro. (ARENDT, 2005, p.234-5, grifos meus).
O duplo aspecto acima citado pode ser compreendido como a responsabilidade em relação ao mundo, pois, caso se
perca qualquer um de tais aspectos – ser a criança nova no mundo e encontrar-se em processo de formação –, a própria
possibilidade de existência de um mundo compartilhado e a permanência de um espaço político de ação estariam
comprometidos. Em outras palavras, como sua capacidade de persuasão é inferior à dos adultos, por não possuírem a
capacidade de argumentação e compreensão de suas escolhas3, deixá-los/as à sua própria sorte é, como adultos,
desreponsabilizar-nos do mundo. Ser um “novo ser humano” significa que os/as pequenos/as chegam a um mundo já
existente, com acontecimentos, fatos, histórias, descobertas das quais não compartilham, ou seja, são ignorantes da tradição,
porém, por serem humanos, poderão agir no espaço público como seres políticos no futuro. Entretanto, por ainda serem seres
humanos em formação, não possuem a capacidade de agir no mundo dos adultos como estes. Percebe-se, portanto, que a
preocupação não é com a vida biológica, pois se a criança fosse
simplesmente, uma criatura viva ainda não concluída, a educação seria apenas uma função da vida e não teria que
consistir em nada além da preocupação para com a preservação da vida e do treinamento e prática do viver que todos os
animais assumem em relação a seus filhos. (ARENDT, 2005, p. 235).
Eles/as chegam a um mundo já existente anteriormente – e que continuará posteriormente –, de cuja herança
cultural e política devem compartilhar, ao mesmo tempo que trazem a possibilidade da construção de coisas novas, desde que
isso lhes seja permitido. Nesse sentido, assim como para Durkheim, a escola estaria no intermédio entre a família e a

2
Nesse excerto é perceptível que a autora se utiliza duas maneiras a palavra preconceito. Na primeira, refere-se ao sentido mais amplo, referindo-se a “senso
comum”. Por sua vez, a última utilização refere-se à utilização de idéias desfavoráveis preconcebidas e sem comprovação científica.
3
Obviamente há situações nas quais as crianças sabem perfeitamente o que desejam, no entanto a autora pensa a persuasão na esfera política, na polis grega, para
a qual, de fato, as crianças não estão preparadas.

697
sociedade, responsável pela transição do mundo doméstico, portanto pré-político, para o mundo público, político. Isto é, tanto
o autor como a autora destacam a importância da escola em detrimento do mundo privado. No entanto, ao aproximar Arendt
de Durkheim pelo viés da escola, é necessário destacar que para este a educação para o mundo é a educação para a disciplina,
para a sociedade disciplinada. Como imagem, talvez, o colégio militar seja um bom exemplo, pois ali há uma hierarquia
extremamente bem definida, comportamentos bem estipulados, tudo isso com o propósito de que, em qualquer situação –
dentro e fora do colégio –, os comportamentos sigam o aprendido, sem qualquer contestação. Ao contrário, para Hannah
Arendt, com o acesso à tradição se alcança a possibilidade de compartir o mundo comum, distinguindo os/as seres
humanos/as e os animais pela capacidade daqueles de agir em conjunto4, pois é a única atividade exercida sem a mediação de
coisas ou de matéria, garantida pela pluralidade de homens e mulheres que habitam o mundo. Pluralidade garantida porque
ninguém foi, é ou será exatamente igual a qualquer um ou a qualquer uma que tenha existido, exista ou venha a existir
Arendt busca na tradição grega a separação entre espaço público e espaço privado. No mundo grego, aqueles que
ainda estavam presos ao reino da necessidade, da privação, isto é, aqueles que ainda estavam ligados somente ao labor, tal
como os escravos e mulheres, não podiam participar do mundo público, pois “ser político significava atingir a mais alta
possibilidade da existência humana; mas não possuir um lugar próprio e privado (como no caso do escravo) significava
deixar de ser humano.” (ARENDT, 2000, p. 74). Assim, o espaço público é o lugar da liberdade, ou seja, o local onde os
indivíduos estão isentos das necessidades relativas à sua sobrevivência.
A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da
mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando
de outro e também não comandar. Não significava domínio, como também não significava submissão. (ARENDT, 2000, p.
41, grifos da autora)
É, portanto, a partir da concepção de espaço público e da ação como atividade política por excelência que a autora
estabelece seu conceito de poder. Para Arendt (1985, p. 24): “o poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a
um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. [...] No momento em que o grupo, de onde origina-se o poder
[...], desaparece, ‘o seu poder’ também desaparece.”. Poder, então, é a capacidade das pessoas de agir em conjunto no espaço
público. Por oposição, o poder de dominação é exercido pelo governo a fim de manter as coisas em seu funcionamento,
podendo, inclusive, recorrer ao terror, ainda que este o possa colocar em risco. Portanto, o poder de dominação não é uma
ação política, não está no que a autora categorizaria como “agir em conjunto”.
Assim, discurso e ação, segundo Arendt, são fatores fundamentais das relações humanas para tornar as pessoas
seres políticos. Ao mesmo tempo, seu resultado é imprevisível, pois, no momento em que alguém propõe algo de seu
interesse, outros interesses entram em jogo na arena pública e, nessa colaboração de idéias, ainda que contrárias, os
resultados podem não ser aqueles esperados por seu/sua proponente – é o agir conjunto no espaço público que garante a
continuidade da vida política na sociedade. Abster-se do espaço público é deixar de responsabilizar-se pelo mundo. Do ponto
de vista filosófico, como diria a autora, “agir é a resposta humana à condição de natalidade” (1985, p. 46).
Consequentemente, nessa concepção, o uso da violência é estranha por negar o uso do discurso como modo de
persuasão, porém seu recurso não significa perda da humanidade. Segundo Arendt (1985), não é a violência ou o ódio que
desumaniza as pessoas, mas, sim, precisamente suas ausências5, porque ódio não é reagir com violência a qualquer coisa – a
uma doença terminal, por exemplo – mas somente àquelas condições que poderiam ser mudadas e não o são. Assim, dessa
forma, a violência é instrumental para ações transformadoras – embora seu caráter apolítico, sendo a violência capaz de
destruir o poder, mas não de criá-lo ou de criar algo novo – e, assim sendo, é racional para alcançar seu objetivo, porém
somente se buscar objetivos de curto prazo. Apesar de não ser criadora “pode servir para dramatizar reclamações à atenção
do público” (1985, p. 44). Portanto, o poder pode ser entendido como a capacidade de agir em conjunto, e a violência, cujo
caráter é instrumental, é o rompimento do espaço político, sua antítese, embora possa ser utilizada para expressar e para
dramatizar reclamações.
Assim, ao compreender a escola como local de intermediação entre o espaço privado e o espaço público –
responsável por transmitir os conhecimentos adquiridos pela humanidade possibilitando que os/as jovens compartilhem um
mundo comum e possam, por isso mesmo, agir politicamente – e, também, o uso da violência como forma de ação oposta à
ação política, como explicar a ocorrência de violência dentro desse ambiente? A seguir será discutido tal configuração.

Escola e violência
A partir de 1980, no Brasil, o tema da violência na escola ganha maior visibilidade com o processo de
democratização, como podemos ver na obra de Angelina Peralva (2000). Esta aponta as contradições de uma sociedade
recém-saída da ditadura militar, reivindicando direitos, mas, ao mesmo tempo, apresentando aumento do índice de
criminalidade, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, onde não somente os jovens da periferia, mas

4
Embora saibamos que muitos animais agem em conjunto em alguns momentos, principalmente em momentos de proteção e de alimentação, tal comportamento
é inato ou aprendido e objetiva, unicamente, garantir a vida biológica.
5
Vale a pena mencionar que o título de uma das obras de Primo Levi sobre sua experiência como prisioneiro de Auschwitz não surpreendentemente chama-se “É
isso um homem?”.

698
também a polícia se envolve em casos de violência. O envolvimento desta é com o desrespeito aos direitos humanos6 e com o
crime organizado. Segundo a autora, o paradoxo democracia/violência pode ser explicado por ser o ingresso na democracia
efetivado “no quadro de uma sociedade formatada pelo individualismo de massa” (PERALVA, 2000, p. 180). Tais questões
surgem quando o país passa para a democracia em forte crise econômica, como bem ressalta Nancy Cardia (1997),
restringindo a capacidade do Estado para promover o crescimento econômico.
Reduz-se não só a capacidade direta do Estado de conter a violência, como também a indireta, através [sic] do
estímulo ao crescimento econômico e, portanto, do mercado de trabalho e da garantia de um mínimo de qualidade de vida à
população como um todo, procurando assegurar-lhe o acesso universal à infra-estrutura de serviços públicos. (CARDIA,
1997, p. 28)
Marília Pontes Sposito (2001, p.90), em balanço da produção sobre violência escolar no Brasil, mostra-nos ter sido
aquele o momento de eclosão da demanda por proteção das escolas públicas que “precisavam ser protegidas, no seu
cotidiano, de elementos estranhos, os moradores dos bairros periféricos, atribuindo a eles a condição de marginais ou
delinqüentes.” Ao mesmo tempo que se reivindicava maior acesso e democratização da escola, também se buscava protegê-la
da violência que vinha sofrendo, principalmente dos atos de vandalismo. No entanto, à medida que os estudos foram
realizados, os resultados indicaram que a violência escolar não era algo apenas produzido fora da escola, um elemento
externo e invasor do ambiente escolar, mas que a própria instituição também gerava violência.
Tal foi o trabalho produzido por Áurea Guimarães (1988). A autora apresenta a escola como produtora de
normalizações (no sentido foucaultiano)7, por vezes não permitindo a participação dos/as alunos/as ou nem mesmo a
discussão de seus interesses. Ou seja, por serem vítimas de violências produzidas pela própria escola, alunos e alunas
revidam a esta violência, depredando as instalações escolares, embora não percebam a instituição como produtora da
violência e identifiquem os “depredadores” como revoltados, como marginais, como pessoas externas. Porém, o que mais se
destaca nesse trabalho é a conclusão de que “não há uma relação direta entre o rigor dos sistemas de vigilância e punição e a
depredação do prédio”.
A partir de 1990, no Brasil, ocorreram dois movimentos distintos e complementares. Por um lado foram realizadas
grandes pesquisas (surveys) sobre violência e juventude, um deles apontava que as mortes por armas de fogo vitimavam a
maioria dos jovens entre 15 e 24 anos, principalmente em casos de homicídios. Apesar da dificuldade em justificar as razões
dos homicídios, as pesquisas qualitativas da época iluminam, ou ao menos, tiram da penumbra tais acontecimentos.
(WAISELFISZ, 1998). Por outro, foram feitas algumas investigações de cunho mais qualitativo nas unidades escolares,
relacionando escola e violência. Os trabalhos de Alba Zaluar (1996) e Nancy Cardia (1997)8 são significativos e ilustram bem
esse período. Zaluar apresenta-nos o caminho para o crime de jovens moradores das periferias do Rio de Janeiro e, por sua
vez, Cardia revela vários aspectos da construção e da vitimização da violência – “a violência no bairro”, “a violência e a
família”, “a violência e a escola”, “a violência e as relações interpessoais na escola”...
Tais produções permitiram vislumbrar e constatar algumas conclusões: 1) a instituição escolar está sujeita não
somente à violência de agentes externos, mas também de agentes internos a ela; 2) a escola é também promotora de
violências simbólicas e morais, por meio de seus funcionários, de seus professores e de sua equipe gestora; 3) a política de
policiamento escolar é insuficiente, pois há outras relações envolvidas na escola que não são somente entre “bandidos” e
“mocinhos”.
Em paralelo à discussão brasileira, a Europa, principalmente a França, iniciou sua discussão mais sistemática sobre
violência nas escolas. Como ressalta Peralva (1997), a discussão francesa sobre violência iniciou-se por volta de 1980, mas
foi a partir de 1990 que ganhou maior destaque, principalmente na mídia, especialmente em razão da discussão acerca das
reformas institucionais produzidas9 e das crises nas periferias francesas. O marco político assemelhava-se em muito à
discussão brasileira dos anos de 1980: o aumento do desemprego devido às reformas neoliberais acentuou as contradições na
periferia francesa. A reforma educacional democratizou ao máximo o acesso à educação, tornando-a de massa, e levou uma
quantidade de jovens a não conseguir emprego, o que, por sua vez, colocou em xeque a perspectiva de ser a escola uma
forma de inserção no mercado de trabalho. Ou seja, o acesso à educação deixou de ser garantia de emprego. Revelou-se,
também, por meio de pesquisas, a escola como produtora de violência e de segregação, e não somente como o espaço de
intermediação entre o espaço privado e público, local de aprendizagem para o mundo adulto. Dessa maneira, a
experimentação de uma vida coletiva em um ambiente à parte da vida doméstica correspondia aos anseios de uma escola
republicana, isto é, laica e pública. Ao dialogar com François Dubet e Danilo Martuccelli, Marília Pontes Sposito (2003, p.
213) ressalta que tal “modelo entra em crise nos 30 últimos anos do século XX, marcados pela massificação do sistema de

6
É importante ressaltar, por exemplo, que, dez anos após as primeiras eleições diretas (no caso, a governador) e três anos depois da primeira eleição presidencial
direta após a ditadura militar, testemunhamos, por um lado, o impedimento do então presidente Fernando Collor de Melo e, por outro, o Massacre do Carandiru,
antiga Casa de Detenção, que resultou na morte, segundo dados oficiais, de 111 presos.
7
Foucault, em Vigiar e punir, indica que a função da punição é mais uma forma de indicar aos outros o comportamento esperado do que corrigir o infrator e,
dessa forma, normaliza os comportamentos. O mesmo ocorre com a vigilância, pois não necessariamente é preciso alguém vigiando, mas é necessário os
indivíduos se sentirem vigiados – como no caso clássico do panóptico. Assim, tanto vigilância quanto punição servem para separar, ordenar e hierarquizar o
“certo” e o “errado”, o “bom” e o “mau”, o “infrator” e os/as “de bem”.
8
A fim de não tornar enfadonha e repetitiva a apresentação de cada produção sobre violência e sobre violências na escola, é importante indicar como referências
algumas publicações que percorrem o caminho desta reflexão. São, portanto, demasiadamente completos os trabalhos de Luiza Camacho (2000), Marília Sposito
(2001), Vera Candau; Maria Lucinda e Maria Nascimento (2001); Miriam Abramovay e Maria das Graças Rua (2004); Miriam Abramovay (coord.) (2005);
Eugênia Paredes, Léa Saul e Kátia Bianchi (2006) e Alba Zaluar (1994, 1996, 1997 e 1999).
9
Reformas que garantiram acesso massificado ao ensino.

699
ensino e pela grande presença de populações migrantes na composição do público escolar (DUBET, 1996; DUBET e
MARTUCCELLI, 1998)”.
As pesquisas sobre violência na escola fazem um grande esforço para definir o conceito de violência, mas não
chegam a um conceito comum.
Ao analisar o fenômeno da violência, deparamo-nos com uma série de dificuldades. Uma delas se refere justamente
a essa multiplicidade de compreensões a seu respeito. Essa diversidade evidencia a fragilidade de suas fronteiras. A violência
se confunde, se interpenetra, se inter-relaciona com a agressão de modo geral e/ou com a indisciplina, quando se manifesta na
esfera escolar. (CAMACHO, 2001, p. 128)
Nessa profusão de significados que o conceito possui, alguns eventos são mais fáceis de serem classificados.
Quando um/a aluno/a agride a outro/a, claramente é uma violência, mas quando o/a professor/a deixa de responder a dúvida
de um/a de seus/suas alunos/as, também seria? Assim, violência seria somente a agressão visível, tal como o homicídio?
Ignorar alguém também o seria? Ao relacionar-se com a escola, o conceito torna-se mais complexo ainda, pois se pode
pensar ao menos em três modalidades: violência na escola; violência da escola e violência à escola. Há a possibilidade de
restringir ao máximo o conceito? As leituras indicam que não, mas a síntese da discussão acerca da violência e da violência
na escola realizada por Bernard Charlot (2002) e Éric Debarbieux (2005) ajuda-nos na melhor precisão desse conceito.

Violência na escola, violência dentro da escola, violência à escola e violência da escola.


Para Charlot, a violência na escola refere-se aos atos violentos que poderiam ocorrer em outros lugares, mas que
por razão diversa acabam ocorrendo dentro da unidade escolar. Esse é o caso de invasões de estranhos para acertos de contas
“das disputas do bairro”. (2002, p. 434). Debarbieux chamará este tipo de violência dentro da escola, pois para ele, violência
na escola
remete a fenômenos ligados à especificidade da escola; por exemplo, ameaças para que o colega deixe colar na
prova ou insultos ao professor. Claro que essa violência ocorre também dentro da escola, mas é preciso levar em conta as
especificidades da instituição escolar para entendê-la. (2005, p. 20).
Porém os insultos a professores, as pichações e os atos de vandalismos são, para Charlot, violência à escola. E, no
que se refere à violência da escola, ambos os autores chegam à mesma conclusão: a violência da escola refere-se àquelas
praticadas por seus/suas funcionários/as, que podem ir desde a agressão por parte dos/as professores/as até a chamada
violência simbólica – atribuição de notas, palavras desdenhosas dos adultos, atos considerados racistas ou pejorativos.
No caso desta investigação, a opção foi tratar de violência dentro da escola, pois são eventos de agressão que
ocorrem dentro do território. Também será privilegiada a violência na escola, caracterizada por atos de violência que, por
vezes, podem até ter origem externa à escola, mas que, por determinadas razões, possivelmente têm relação com a dinâmica
interna da escola.
Há, também, que fazer uma distinção entre crime, transgressão, incivilidade, agressividade e agressão, pois há
sensíveis, mas determinantes, diferenças entre esses tipos de violência.

Desrespeito à lei, transgressão, incivilidade


Debarbieux (2005) e Charlot (2002) apresentam uma ótima síntese sobre os conceitos de crime, transgressão,
incivilidade, agressividade e agressão. O desrespeito à lei está ligado diretamente ao delito e ao crime, como por exemplo, o
roubo, o furto, o assassinato, o porte ilegal de arma de fogo, ou seja, aqueles procedimentos definidos pelos Códigos Penal e
Civil. Por sua vez, a transgressão vincula-se ao desrespeito às normas do estabelecimento, neste caso, de ensino, tais como:
cabular aulas, não fazer os trabalhos exigidos ou não realizá-los no tempo estipulado, colar nas provas, etc., ou seja, não
configuram desrespeito à lei, portanto, não são crimes. Os autores definem incivilidade como atos e ações tais como:
empurrar os outros, xingar alguém, desrespeitar pares e funcionários, enfim, atos que dizem respeito não à lei e nem às regras
da escola, mas às regras de boa convivência.
No entanto, aqui se faz necessário trazer um outro aporte sobre a incivilidade, segundo explorado por Angelina
Peralva (2000). Ela ressalta que o desrespeito às regras de boa convivência é apenas uma de suas implicações. Peralva parte
da elaboração de Norbert Elias sobre o processo civilizatório, no qual a sustentação do Estado Nação se deu pela
identificação e pela adesão voluntária à ordem civilizada, marca do Estado nacional republicano. Até a Idade Moderna,
considerando-se o contexto europeu, a relação entre os indivíduos e o Estado consumava-se com o súdito devendo fidelidade
ao rei e à Casa Real. A constituição do Estado moderno foi, necessariamente, acompanhada da ressignificação dos conceitos
de fidelidade e lealdade, ao mesmo tempo que se remodelavam os espaços territorial e simbólico. São, assim, comunidades
políticas imaginadas (ANDERSON, 1989), constituídas de uma referência territorial precisa, que imbuem seus cidadãos de
um espírito compartilhado de nação e transmitem uma comunhão entre desconhecidos que – devido à impossibilidade de
todos se conhecerem – não possuem relações societárias, tais como nas pequenas vilas ou cidades interioranas. É nesse
sentido que o Estado necessita se tornar o detentor do monopólio do uso da força, rompendo, portanto, com a ordem anterior,
na qual era o monarca absoluto que a detinha. Assim, o processo de incivilidades conta, também, com a redução da
ressignificação de fidelidade, da diminuição da imaginação comunal, da adesão voluntária:

700
as condições em que ocorre o processo de massificação da escola francesa nos últimos dez anos, com uma
expansão particularmente notável do ensino de segundo grau e a conseqüente desvalorização da profissionalização precoce,
são francamente desfavoráveis à adesão estratégica individual a um princípio de ordem escolar, pelo menos entre segmentos
da população desprovidos de tradição de engajamento em carreiras escolares longas. (PERALVA, 1997, p. 14)
Assim, as incivilidades também podem ser entendidas como afrouxamento da adesão voluntária dos/as jovens, ao
não perceberem mais o Estado Nacional como uma comunidade de destino, isto é, ao não se sentirem pertencentes a essa
comunidade que está sob influência do neoliberalismo e da globalização do capital.
As resultantes da mundialização dos fluxos econômicos para a vida política são de múltipla natureza. Uma delas,
talvez a mais visível, diz respeito ao enfraquecimento da soberania política dos Estados nacionais por movimentos maiores
do que ele mesmo: ao lado das pressões que a economia globalizada faz incidir sobre a capacidade de gestão dos Estados, a
emergência de uma nova esfera de direitos transnacionais – os direitos humanos, por exemplo, ou os direitos ambientais –,
leva à criação de uma ordem jurídica multinacional de difícil assimilação por uma tradição política que entronizou o Estado
nacional como o responsável pela definição do bem comum e do interesse geral.” (MONTERO, 1998, p. 115)
A frouxidão jurídica e identitária do Estado nacional a partir da globalização, conjuntamente com as mudanças
econômicas e a flexibilização dos empregos faz com que a adesão voluntária à comunidade imaginária do Estado Nação se
enfraqueça. O processo de civilização, ao qual todos e todas deveriam se adequar para o bem comum, também se enfraquece.
De modo mais direto: para que ser civilizado, se essa ordem não garante benefícios? Para que respeitar faixa de pedestres, se
os outros não respeitam? Por que não aproveitar oportunidades ilícitas, se os outros se beneficiam e o “mundo é dos
espertos”?
Assim, o conceito de violência possuiu uma multiplicidade de sentidos. A violência pode ser o motor da história, o
fim da política, pode ser também compreendida como expressão de insatisfação, como tática ou estratégia política10. Ao
mesmo tempo, a violência é um conceito relativo, pois é uma construção histórica e cultural, ou seja, depende de cada cultura
e de cada período para ser compreendida como tal e está, portanto, sujeita a deslocamentos de sentido11 (ABRAMOVAY,
2005).

Relações de gênero e violência na escola: as agressões das meninas


Quando a comunidade escolar testemunha qualquer enfrentamento violento entre rapazes, esse fato, muitas vezes, é
tratado como “coisa de garoto”, ou seja, é considerado “natural” os rapazes recorrerem à violência para solucionar seus
conflitos. No entanto, encontrar garotas que afirmam poder enfrentar ou controlar a violência causa o desmoronamento de
uma das representações sociais acerca da feminilidade mais divulgada em nossa sociedade. Em pesquisa realizada por
Abramovay e Castro (n.d., p. 18), um dos diretores entrevistados corrobora essa idéia, ao afirmar que se trata de “uma
questão cultural. Porque a nossa cultura, machista nesse nosso país. As mulheres são mais coração, dizem. A mulher ela é
mais controlada, ouve mais. O homem já é mais repentino”.
A instituição escolar é também uma das responsáveis pela produção e reprodução das desigualdades de gênero
(LOURO, 1999; CARVALHO, 1999; VIANNA, 1999), quando silencia ou não reage diante da afirmação de estereótipos de
masculinidades e feminilidades. Em contrapartida, pode contribuir para a superação dessas desigualdades, quando introduz
em seu currículo e em sua prática o questionamento dessas formas de discriminação de gênero (DEBARBIEUX, 1996).
Assim, assumir a cultura como meio formador de jovens e, dessa maneira, de construção social de um conjunto de
representações sociais e culturais, de valores e atribuições sociais sobre masculinidades, feminilidades, lugares e práticas de
garotas e garotos (VIANNA e RIDENTI, 1998) é assumir o gênero como uma das categorias fundamentais de análise.
Originário dos estudos teóricos feministas e dos estudos das ciências sociais sobre as mulheres, o conceito de
gênero foi construído em oposição ao sexo, para sair das explicações que remetem as desigualdades entre os sexos às
diferenças físicas e biológicas e que ratificam a tendência a classificar os sujeitos pelas formas como se apresentam
corporalmente. Esse modo polarizado, hierárquico e cristalizado de compreensão da realidade vem sendo reforçado pela
medicina e pelas ciências biológicas, mas também pelas instituições sociais, como a família e a escola. Com base em
definições essencialistas do que é ser homem e/ou mulher, edificou-se um sistema de discriminação e exclusão entre os
sexos, além de vários estereótipos sobre homens e mulheres: agressivos, racionais, fortes, viris, para eles; dóceis, relacionais,
subordinadas, afetivas e frágeis, para elas. O feminino e o masculino são apresentados como categorias opostas, excludentes
e hierarquizadas, nas quais a mulher, os valores e os significados femininos ocupam lugar inferior. E a dicotomia daí
decorrente cristaliza concepções do que devem ser as atribuições femininas e masculinas e dificulta a percepção de outras
maneiras de estabelecer as relações sociais.

10
A distinção entre tática e estratégia tem sido presente nas discussões da esquerda revolucionária desde o século XIX, e pode ser resumida da seguinte maneira:
a tática é uma ação ou um tipo de ação que visa uma estratégia, que significa a forma pela qual se chega ao objetivo. Por exemplo: a guerrilha pode ser entendida
como uma tática ou como estratégia para a tomada do poder. Como tática será utilizada dentro de determinados contextos históricos, por exemplo, como forma
de desestabilizar ou de enfraquecer o governo e de garantir a construção de um partido operário de molde bolchevique. Como estratégia, significa que a guerrilha
é a forma, por excelência, para tomar o poder, como, por exemplo, o ocorrido em Cuba em 1959. Ver mais em Moreno (1996).
11
Como exemplos ligados ao contexto histórico-cultural, podemos citar o uso da palmatória nas escolas até o século XX e os trotes universitários, hoje tidos
como inconcebíveis.

701
O conceito de gênero, cujo caráter é fundamentalmente social, critica todo esse processo e questiona o
determinismo biológico que “desloca a culpa das evidentes desigualdades sociais, políticas e econômicas para a natureza”
(MATOS, 2001, p.70)
Uma utilização mais recente desse conceito também ressalta seu caráter eminentemente histórico e cultural,
enfatizando sua utilidade na percepção e na análise não apenas das relações entre homens e mulheres, mas também da
constituição dos significados e das relações de poder socialmente constituídas (SCOTT, 1995; NICHOLSON, 2000). Gênero,
então, pode ser compreendido como um "elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre
os sexos” e como “uma forma primária de dar significado às relações de poder" (SCOTT, 1995, p. 86). Mais do que isso,
Joan Scott alerta-nos para o fato de que o conceito remete à dinâmica da construção e da transformação social, na qual os
significados e símbolos de gênero vão para além dos corpos e dos sexos e subsidiam normas que regulam nossa sociedade;
noções, idéias e valores nas distintas áreas da organização social, na distribuição do poder e na constituição de nossas
identidades individuais e coletivas. Em rico diálogo com as reflexões de Joan Scott, Linda Nicholson (2000, p. 9) ressalta que
o conceito de gênero “tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a
distinção masculino/feminino, incluindo construções que separam corpos ‘femininos’ e ‘masculinos’”. Por meio das
contribuições de Scott (1995) e Nicholson (2000), podemos retornar à questão do poder discutida anteriormente, pois admitir
que as relações de gênero organizam a vida social, são fontes para a constituição de identidades e expressam distribuição de
poder significa dizer que mesmo a possibilidade de agir em conjunto não é garantida de modo equânime12 – expressão disso é
a clara maioria de parlamentares, sindicalistas, chefes, presidentes de empresas, etc., do sexo masculino. Dessa maneira, o
próprio espaço público possui uma nítida marcação de gênero: é masculino.
Assumir a categoria gênero como maneira de indicar construções sociais implica também sustentar que todas as
instituições, entre elas a instituição escolar, são responsáveis por sua construção. Isso quer dizer que, assim como a questão
da violência tem origens exógenas e endógenas à escola, as representações sociais acerca do gênero também as têm. A escola
não está imune a esse processo de hierarquização, polarização e exclusão de significados de gênero, inclusive quando
envolve o tema da violência escolar. Como uma instituição integrada à sociedade, ela, muitas vezes, naturaliza a violência
praticada pelos garotos13 e reprime ou ignora as práticas violentas de garotas, reiterando o senso comum de que garotas são
passivas, amorosas, maternais, frágeis e, quando presentes em cenas de violência, ocupam necessariamente o papel de
vítimas.
Um amplo diagnóstico – fomentado pela UNESCO e pelo governo federal (ABRAMOVAY; CASTRO E SILVA,
2004) – sobre como estudantes, pais, mães e membros do corpo pedagógico tratam de temas relacionados à sexualidade
juvenil teve por base a aplicação de questionários a 16.422 estudantes entre 10 e 24 anos, a 4.532 pais e mães e a 3.099
professores/as de escolas públicas e privadas de ensino fundamental e de ensino médio, em treze capitais brasileiras e no
Distrito Federal. O documento revela que muitos jovens já foram alvos de violência e faz conexão explícita com as possíveis
decorrências de gênero nesse contexto. Entre as formas de violência – atingindo 10% em algumas localidades – destacadas
pelas autoras, encontramos assédio, estupro e discriminação em função de gênero ou de orientação sexual. A intersecção
entre violência e relações de gênero, nesse caso, ganha relevo pela ótica da vítima, e não da autoria da violência, embora os
dados revelados já chamem a atenção para a urgência de pesquisas centradas nessa temática mais específica.
Por sua vez, em pesquisa intitulada Cotidiano das escolas: entre violências (ABRAMOVAY, 2005), realizada no
ano de 200314 em cinco capitais brasileiras – Belém, Salvador, Rio de Janeiro15, São Paulo e Porto Alegre –, representando
uma amostra de 1.685.411 alunos/as e 1.768 professores/as das quatro capitais e do Distrito Federal a autora revela, entre
outras coisas, a incidência de quase 10% das jovens a afirmar que já agrediram alguém na escola. Ou seja, cerca de 86.000
alunas envolveram-se em agressões físicas na escola. Essa foi a primeira vez que esses dados tomaram caráter de relevância.
Em pesquisa anteriormente citada (ABRAMOVAY; CASTRO e SILVA, 2004), as autoras indicavam a existência de tais
conflitos, no entanto anunciavam que os dados estatísticos eram irrelevantes. Nesse sentido, também é importante frisar que
Cardia (1997) já indicava a existência de brigas entre garotas, no entanto, não aprofundou a questão específica das
representações de gênero dominantes.

Gênero, resistências e reproduções


Se as relações de gênero são hierarquizações de diferenças que revelam um poder maior de um sexo sobre outro ou
de masculinidades sobre feminilidades, não é possível passar despercebida a contribuição de Robert Connell (1995) no
tocante à dominação. Para o autor a dominação passa-se no interior da própria masculinidade ou feminilidade quando, apesar
das inúmeras maneiras de ser homem ou mulher, apenas uma é mais divulgada e admitida socialmente: aquela que remete às
características tais como virilidade e coragem – entre outras – a eles, ou amabilidade e fragilidade – entre outras – a elas,
funcionando, dessa maneira, como características normalizadoras e disciplinarizadoras do comportamento e das identidades.

12
Em 4/01/2007, a deputada democrata pela Califórnia, Nancy Pelosi, é a primeira mulher a assumir o cargo de presidente da Câmara nos Estados Unidos, país
este, desde Tocqueville, tido como exemplo de democracia.
13
Embora haja, sem sombra de dúvidas, preocupação e tentativas de “pacificação” do ambiente escolar por meio de projetos governamentais ou de organizações
não-governamentais, que vêm apresentando resultados paulatinamente positivos.
14
Pesquisa esta que dá continuidade à temática iniciada com o Violências nas escolas (ABRAMOVAY e RUA, 2004).
15
A autora ressalta que o Rio de Janeiro somente participou da parte qualitativa da pesquisa.

702
Além desse caráter endógeno à feminilidade e à masculinidade, a dominação também é exercida pela subordinação de todas
as formas de feminilidade à masculinidade considerada hegemônica. Por hegemônica, Connell refere-se ao conceito
elaborado por Gramsci para interpretar a dinâmica de mudança estrutural envolvendo a mobilização e a desmobilização das
classes sociais.
Nessa mesma direção, Diane Reay (2001), em pesquisa em escola de educação infantil na Inglaterra, destaca a
construção de diferentes tipos de feminilidade: as Spice Girls, “sapequinhas” e/ou “meninas mais sexuadas”; as Nice Girls,
“certinhas”; as Girlies, “patricinhas”, “menininha” e/ou “gostosinha”; e as Tomboys “molecas”. A autora frisa o quanto as
“molecas” desafiam a feminilidade mais divulgada, ao não se comportarem tal como socialmente esperado, reforçam o
comportamento masculino como mais indicado para, por exemplo, jogarem futebol. Reay alerta também para o fato de que
“falar em feminilidade hegemônica é uma contradição em termos, porque é a versão dominante de feminilidade que
subordina as garotas aos garotos.” (2001, p. 164 – tradução livre)16.
Ao serem as masculinidades sobrepostas às feminilidades, essas relações não engendram somente dominação, mas
também resistências, pois esta é o par ordenado do poder. Conforme Henry Giroux (1986), o conceito de resistência
acrescenta nova profundidade teórica, porque o poder nunca é unidimensional, uma vez que “é exercido não apenas como um
modo de dominação, mas, também, como um ato de resistência ou mesmo como uma expressão de um modo criativo de
produção cultural e social fora da força imediata de dominação” (GIROUX, 1986, p. 147).
Isto é, ao mesmo tempo em que o poder dominante age sobre os indivíduos, ele gera forças de resistências e
concomitantemente ao gerar resistências, gera conformismo. Possivelmente seja nessa relação dialética onde poderemos
encontrar algum outro significado para os eventos violentos praticados pelas meninas.
Giroux também frisa que é imprescindível que a categoria gênero faça parte da análise das formas de resistência e
de comportamentos de oposição para além da classe social, pois ela tem sido sistematicamente esquecida dos trabalhos e
possui formas específicas de resistência “na medida em que medeiam as divisões sexuais e sociais de trabalho em vários
espaços sociais como as escolas.” (GIROUX, 1986, p. 143) e que os trabalhos têm resultado “em uma tendência teórica
bastante não-crítica de romantizar modos de resistência, mesmo quando eles contêm visões reacionárias a respeito das
mulheres.” (GIROUX, 1986, p. 143)17
Se as resistências à dominação masculina eram antes mais dissimuladas, as ações de resistência dessas jovens de
hoje indicam tanto disputa por esse poder de dominação, quanto formas de luta para não ficarem restritas, determinadas,
acossadas em lugares supostamente determinados segundo o sexo. Assim a resistência, por meio de agressões verbais, físicas
ou mediante atitudes de rebeldia, “não é nunca oposta ao poder [...] o poder produz múltiplos pontos de resistência contra si
mesmo e, inadvertidamente, gera oposição” (DEACON e PARKER, 2002, p. 107). Tampouco a violência das meninas – por
ser pontual e por não visar a “tomada do poder”, no sentido revolucionário do termo – coloca em risco a vida política.
Contudo, a solução violenta de conflitos praticados pelas jovens também pode reproduzir padrões masculinos de
comportamento. As jovens relacionam-se com formas de poder que determinam o local e o comportamento adequado tanto
dentro18, como fora da escola19 e são sociabilizadas nesse contexto violento. Como destaca Diane Reay (2001), os atos
violentos de contestação expressos pelas garotas podem também ser compreendidos como formas de reprodução da
masculinidade hegemônica. De outro modo: ao agirem de forma violenta, na ânsia de libertar-se de seu locus social, as jovens
reafirmam, inconscientemente, a hierarquia de gênero e a “superioridade” masculina como a “melhor” forma de relacionar-se
e de exigir seu reconhecimento no mundo.
Trata-se, então, de uma tensão permanente entre reprodução e resistência aos significados tradicionais de gênero.
Ao recorrerem à agressão, as jovens recusam um determinado modo de ser garota e feminina e podem expressar uma agenda
de mudanças que problematiza a associação da identidade feminina como necessariamente avessa à agressão. Ao romperem
com a visão hegemônica, potencializam o questionamento sobre a violência na escola, exigindo o olhar mais atento dos/as
profissionais sobre, até mesmo, aquelas “violências comuns” ali presentes.

A pesquisa
Um dia estava eu em um colégio da Zona Sul de São Paulo quando duas meninas se enfrentaram no pátio. Após a
coordenadora controlar a situação, proferiu, então, a frase: “As meninas de agora estão piores do que os meninos”, surgindo,
dessa forma, o mote para o desenvolvimento da pesquisa de mestrado, cuja proposta foi pensar sobre os significados
envolvidos em episódios de agressões físicas praticadas por jovens garotas, estudantes do segundo ciclo do ensino
fundamental e ensino médio e ocorridas dentro do ambiente escolar.
A pesquisa foi realizada durante o último trimestre de 2006 em uma escola da rede estadual de educação, localizada
na região Norte do município de São Paulo. A escolha da escola foi feita a partir de uma listagem endereços eletrônicos de

16
No original: “To talk of dominant femininity is to generate a contradiction in terms because it is dominant version of femininity which subordinate the girls to
the boys.”
17
Convém assinalar que, aparentemente, Giroux associa gênero a mulheres, porém, como deve ter ficado claro na parte anterior, a categoria gênero não se limita
ao estudo das mulheres.
18
Ao terem seus interesses desrespeitados por meio de violências simbólicas na escola, como, por exemplo, o comum impedimento da prática do futebol para as
jovens sob a alegação de ser este um esporte “masculino”, porque agressivo, violento e de contato físico bruto.
19
Muitas delas são vítimas de agressões, dentro do ambiente doméstico, como forma de submetê-las ao poder paterno.

703
diretores/as, coordenadores/as pedagógicos/as e professores/as que participaram de curso por mim organizado20. Foram
enviadas algumas mensagens eletrônicas descrevendo a pesquisa e o perfil desejado para a escola – ter ocorrido brigas entre
meninas dentro da escola e que elas ainda estivessem estudando lá. Prontamente a escola estudada respondeu
afirmativamente às mensagens e colocou-se à disposição. Para a realização da pesquisa, foram utilizados quatro instrumentos
de pesquisa. Primeiramente foram feitas observações em sala de aula21, no horário do intervalo e também durante as Hora(s)
de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC)22 – para as quais eu era convidado permanente. Ao todo foram realizadas cerca de
cento e vinte e sete horas de observações na escola.
O segundo instrumento utilizado foram dois tipos de questionários: um dirigido para o corpo discente e outro para o
corpo docente, direção, equipe técnica e funcionários/as em geral. Estes serviram para caracterizar a região e a escola a fim
de perceber suas convergências e divergências acerca das sensações de segurança/violência. O questionário também serviu
para que quaisquer dos/as entrevistados/as se candidatarem para participar de outros momentos da pesquisa, como por
exemplo, o grupo de discussão, terceiro instrumento de pesquisa.
Os grupos de discussão objetivaram pensar coletivamente a realidade dos/as alunos/as, permitindo uma
aproximação maior sobre como as relações sociais eram construídas e vivenciadas na escola e no local de moradia. Foram
realizados cinco encontros com temáticas especificas23. Por fim, como último instrumento de pesquisa, foram realizadas
entrevistas semi-estruturadas24.

Pequena descrição da escola


O bairro é periférico em relação ao centro da cidade, porém as explicações que igualam periferia com violência ou
usam “escola de periferia” como sinônimo de depredação e desvalorização tiveram que ser abandonadas, pois, apesar da
comunidade em torno ser carente, o bairro apresenta alguns bons indicadores e, principalmente, os/as moradores têm a escola
como um local de melhoria de vida, melhoria de futuro, como pôde ser visto nos questionários aplicados.
Sempre que ouço “comunidade carente” vêm à mente imagens de pouca área verde, muitas casas de autoconstrução
muito próximas umas das outras. Essa é uma outra realidade à qual tenho que me acostumar. Apesar do muito verde é
possível ver algumas casas de autoconstrução um pouco mais afastadas da avenida principal [...], ficam escondidas do
trânsito normal. (caderno de campo, 28/07/2006)25
Tão surpreendente quanto alguns indicadores gerais26, dados da pesquisa demonstram que também a escola não se
encaixa nessas “determinações” genéricas, ou, como expressa a fala da vice-diretora Antonia27: Depois eu saí do Giovana e
vim para cá pro Cachoeira, que eu estranhei completamente, sair de uma clientela do Cingapura e vir para uma clientela
calma aqui, aqui é super calmo (Antonia, entrevista, 12/12/2006).
A baixa presença de pichações chamou a atenção e contribuiu para aumentar a impressão de escola cuidada pela
comunidade. Isso não quer dizer que não houvesse, mas, por exemplo, no muro externo à escola havia somente uma
pichação. Nas salas de aula, elas ocupavam lugares discretos, como atrás de alguma viga, ao lado das carteiras próximas à
parede. Os tampos das mesas eram mais pichados que as paredes. Neles havia pichação com caneta e corretor (“branquinho”)
e normalmente eram nomes. Os depoimentos a seguir retratam esse aspecto:
Ela [a comunidade] ainda vê isso, que a escola é importante, que a escola é fundamental, eles vêem, eles sabem
disso. A gente nota assim... olhando que pra eles... eles ainda acham que o futuro é a educação. O futuro do país é a
educação, quer dizer, por mais que eles não consigam ver os filhos numa faculdade, eles acham primordial ter o ensino
básico completo.[...] mas pelo menos vê que a escola é o único lugar que eles têm pra conversar, pra se divertir e também pra
aprender um pouquinho, eu acredito que eles tenham respeito. (Amanda, professora, entrevista, 13/12/2006, grifos meus)
Paulo: A escola é valorizada então aqui na comunidade?
Mariano: Aqui é, graças a Deus, mas tem uns aí que acha que a escola é só pra zoar. (Mariano, aluno, entrevista,
28/11/2006)
Ou, na fala da diretora Maria:

20
Curso de formação de Multiplicadores de Grêmios Estudantis. Instituto Sou da Paz/CENP/SEE-SP
21
São ao todo quinze salas de aulas distribuídas da seguinte forma: três salas de 6as, 7as e 8as séries do ensino fundamental II e duas salas para cada ano do
ensino médio. As salas de 5ª série estão no período vespertino por falta de espaço físico da escola.
22
As HTPCs são horas de trabalho que professores/as da rede estadual de São Paulo têm que cumprir fora de seu horário de aula com a presença do professor/a
coordenador/a com o intuito de complementar a formação, elaboração de projetos, avaliar atividades, etc. É constituída por legislação específica
23
A saber: apresentação do grupo; Escola; Gênero e Violência. O encontro sobre a temática de gênero suscitou a continuidade em outro momento tanto como
forma de aprofundar o discutido, como maneira de fazer a transição para o último encontro de maneira menos imperativa.
24
Os/as participantes podem ser agrupados/as da seguinte forma: a) alunas/os envolvidas em casos de agressão e que não participaram grupo discussão; b)
alunos/as não envolvidos/as em casos de agressão e participantes do grupo de discussão; c) alunos/as escolhidos pelo pesquisador, sem a necessidade de terem
participado do grupo de discussão e/ou de terem se envolvido em casos de agressão; d) professores/as e funcionários identificados como interessados/as em
participar de outro momento da pesquisa; e) corpo diretivo da escola e f) policiais da Ronda Escolar responsáveis pela escola. Ver mais detalhes sobre os
instrumentos de pesquisa em Neves (2008)
25
Por escolha estética, as falas dos entrevistados e minhas observações estão em itálico para se diferenciar das citações teóricas, assim o destaque em qualquer
dessas citas é não-itálico.
26
Como, por exemplo, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil desenvolvido pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE). Ver mais em Neves
(2008)
27
Todos os nomes citados são fictícios. A maioria foram autonominados durante as entrevistas/grupos de discussão pelos/as entrevistados/as. O nome da escola
foi por mim atribuído e remete ao termo grego de fortuna/sorte do acaso, tal como sentido diversas vezes durante o desenvolvimento da pesquisa, desde a escolha
da escola.

704
eles têm a escola num bom conceito, assim, eles cuidam. A escola não é destruída, não é uma coisa assim, tem uma
coisa ou outra, você não vê pichação, você não vê o povo destruindo portão, você não vê esse tipo de situação. Só
eventualmente, se tiver algum caso, mas são raros. A gente sabe até o nome dos alunos que podem chegar a fazer isso, mas a
escola fica aí toda vulnerável da maneira que ela é aberta e continua do jeito que ela está, entendeu? (Maria, diretora,
entrevista, 13/12/2006)
Também expressão do cuidado com a escola é a alta porcentagem de respostas negativas para estouro de bombas
nos banheiros, pois, segundo 65,6% dos/as professores/as e funcionários/as, não há estouros de bombas nos banheiros. Por
ser a única escola de ensino médio para a qual os/as alunos/as conseguem ir sem a necessidade de pagar condução, não é de
surpreender que, ao ter a mínima chance deste ser cancelado, os alunos se tivessem mobilizado de um dia para o outro e, no
dia 12/09/2006, fizessem uma manifestação na quadra da escola, demonstrando o quanto o curso é essencial para a
comunidade. Portavam cartazes com os dizeres:
“Não roubem nossa educação”
“Ensino médio aqui no Kairos”
“Queremos uma 2ª Reunião com a diretora e TODOS [em vermelho] Alunos presentes! 8as, 1 os, 2 os e 3os!”
“Nossos direitos, nossos deveres! Ensino médio Aqui! A Favor do EM!”
“Kairos/ Não quero ir embora não! Kairos/ Só quero educação!” (CC28, 12/09/2006).
Apesar disso, durante os três meses de pesquisa de campo, ocorreram 9 brigas29, sendo três em setembro, cinco em
outubro e uma em novembro. Uma envolveu dois meninos; uma envolveu uma menina e dois meninos; uma envolveu uma
menina e um menino e seis envolveram somente meninas. Somente em duas delas ocorreu a recorrência de uma das meninas.
Três ocorreram no pátio, uma na saída perto da quadra, uma no banheiro e quatro dentro de sala de aula.

Construção da violência
As falas dos/as jovens mostram que, embora os indicadores macro-econômicos não sejam ruins como em outras
regiões periféricas do município, é na família onde estão mais expostos/as à violência. Na maioria das vezes os agressores
são o pai ou a mãe e têm como intenção o “castigo”, ou de coagir aquele/a em fazer o que está sendo mandado30, restaurando
a ordem hierárquica. É no ambiente doméstico que as meninas têm sua primeira experiência com as relações sociais de
gênero, sendo mais demandas que os rapazes para o serviço doméstico:
Paulo: Todo dia você arruma a casa?
Ana Paula: Não, nem todo dia. Todo dia, todo dia assim eu arrumo também, mas meus irmãos também arrumam
entendeu? É uma parte de cada todo dia.[...]
Paulo: E os meninos ajudam sem problema.
Ana Paula: Não. Essa é a parte difícil, tem problema sim. Eles reclamam mais do que tudo. [...] Eles falam assim:
“é limpar casa é coisa de mulher”, “não sei o que”, “eu não gosto de limpar”, “eu não vou limpar não”. Aí eu falo: “eu chamo
o pai”, eles: “não vou limpar”. Eu: “Pai!” Rapidinho eles limpam. Eles limpam sim, mas reclamam mais do que de tudo.
(Ana Paula, aluna, entrevista, 06/12/2006)
Minha mãe só me bate assim quando eu desobedeço ela. Ela fala assim pra mim não sair pra rua assim porque ela
vai sair, aí ela sai e eu vou pra rua, aí quando chega em casa minhas irmãs contam pra minha mãe: “É verdade que você
saiu.” Eu falo: “É!” Ela: “Tá bom.” Pega o fio [elétrico] e é só umas cinco fiadas só pra aprender. Ela fala assim: “isso é só
para você aprender a não me desobedecer mais.” (Aluno 6ª série, entrevista, 27/11/2006)
O recurso à violência – ou a ameaça em usá-la – é compreendido como meio legítimo de convencimento ou de
restauração da ordem hierárquica familiar e inclui também os meninos. Dessa maneira, de forma direta, está-se propalando o
uso da violência como forma de lograr alcançar seus objetivos. Tal é sua legitimidade que mesmo aqueles/as relutantes
rendem-se à sua eficiência:
eu acho mesmo que a violência não vale nada, só que meu irmão não me deixa em paz. Eu tento não bater nele, só
que quando eu vou ver eu já estou estrangulando ele. Ele não me deixa em paz.[...] Eu só vou parar de bater no meu irmão,
no dia que minha mãe e meu pai der um cacete nele pra ele aprender. (Ana Paula, aluna, entrevista, 06/12/2006, grifos meus).
No mesmo sentido, na escola, o recurso à violência também é reiterado como eficiente e legítimo, inclusive por
professores/as
Psyché: A gente tava conversando lá atrás, daí ela [professora]: ô! cala a boca aí, se não vocês vão levar um monte
de porrada no meio da cara de vocês.
Chaves: Mas ela fala brincando, não fala sério, né?
Maluquinha: Eu tava conversando com um menino e ela [professora] veio e me deu um tapa na minha cabeça.
Pops: Um dia a professora de matemática jogou um giz na testa da minha amiga, ela foi reclamar e a diretora deu
razão para a professora. (grupo, 14/11/2006).

28
A partir de agora as anotações de caderno de campo aparecerão com a sigla CC
29
Por questões de economia de espaço não será feito nenhuma descrição das brigas, principalmente porque a análise proposta é genérica e não específica.
30
Houve somente uma menina que, durante entrevista, contou que seu padrasto tentou violentá-la e que está preso, porém, como não havia preparo para lidar
com esse tipo de agressão, foi preferido não aprofundar este assunto.

705
Assim, o local responsável por inserir os/as jovens no mundo político, no mundo da persuasão, recorre à violência
como forma de manter a ordem na sala de aula e, mesmo no tocante à transmissão do legado cultural da humanidade31, fica
em suspeição
a gente tem aluno, infelizmente, com dificuldade de aprendizagem seríssima. Eu tenho aluno no terceiro ano do
ensino médio que está se formando esse ano que não sabe ler com fluência. Não é capaz de ler, interpretar um texto com
fluência. (Maria, diretora, entrevista, 13/12/2006)
Porém, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que recorre à violência – ou à ameaça – para restaurar o controle
da sala de aula, é justamente a indisciplina que dá visibilidade aos rapazes, majoritariamente, comprometendo, dessa maneira,
o “projeto de bom/boa aluno/a”32 extremamente relacionado com as construções sociais de gênero.

Como se ensina a ser menina33


A escola ganha destaque como local de encontro e socialização dos/as jovens34, o ponto de encontro entre os/as
amigos/as, o local de paqueras, porque o local de moradia desses/as jovens “Não tem nada de bom lá, não tem nem menino
bonito, nem menino legal.” (Camila, aluna, entrevista, 28/11/2006). Assim, é um dos locais onde constroem suas identidades
e, portanto, onde se confrontam constantemente com outros/as alunos/as, com os/as professores/as e, nessas relações, vão se
construindo socialmente. Socializados/as dentro dos estereótipos de gênero, percebem, que os/as professores/as sabem mais
os nomes dos rapazes que os das moças, pois eles são mais conhecidos, mais admirados e/ou mais temidos pelos/as colegas,
justamente por conta de seu comportamento mais indisciplinado, contestador, briguento. Por outro lado, as meninas são
socializadas para serem quietas, disciplinadas, pacíficas e passivas e, por essa razão, permanecem desconhecidas, se não
invisíveis, ou quase.
Se ele é bom aluno, se ele é um aluno [com conceito] A, vai ser A. Se for um aluno B, vai ser B e não vai ter
reconhecimento por isso. A gente mesmo acaba deixando passar desapercebido. Mas se ele faz bagunça, apronta, ganha
moral. (Laila, coordenadora pedagógica). Arlete reforça a fala, dizendo: A gente sabe melhor o nomes dos que
aprontam...acabamos reforçando a liderança deles... (apresentação do projeto para os/as professores/as, caderno de campo,
16/08/2006)
Se na escola as jovens “tornam-se” invisíveis, na família elas são extremamente visíveis – ao serem freqüentemente
mobilizadas para as tarefas domésticas, como já visto – e, essa mobilização para as tarefas domésticas também está
relacionada com a intenção de regular a vida social,
Meu pai não deixa eu brincar com os meninos na rua. Ele fala: “Vai lavar louça, vai arrumar a cozinha”. Eu falo:
“Mas eu já arrumei”. Ele fala que lugar de mulher é dentro de casa. (Aluna, entrevista 6ª série, 27/11/2006).
Em uma sociedade baseada nos valores do patriarcalismo (CASTELLS, 1999 e THERBORN, 2006), a
mobilização para as tarefas domésticas representa, por conseguinte, a regulação da vida sexual das garotas35. Mas as tarefas
domésticas não são as únicas formas de regular a sexualidade das meninas: a escola, por meio dos projetos sobre aborto36 –
por exemplo – e, também, a própria comunidade por meio da fofoca cumprem tal papel. Por se tratar de regulação sobre a
vida, obviamente a maioria dos alvos das fofocas são as meninas, pois, ao falar do número de namorados, está se falando se
as meninas são ou não promíscuas, como se percebe na fala de Camila:
Só por que eu fiquei...Ó, esse ano eu fiquei com oito meninos só. E namorei alguns. Tem uma menina que ficou
com vinte e ninguém fala dela, só falam de mim. Comecei a virar já “periguete”, piranha, puta, vagabunda. (Camila, aluna,
entrevista, 28/11/2006)

Agressão na escola: visibilidade e fofoca


A escola, ao ser um dos locais de sociabilização dos/as jovens da região, torna-se local de alguns conflitos
resultantes das relações sociais. Uma das dimensões da sociabilidade é ser visível e respeitável, assim aprenderam com os
rapazes – com o aval dos/as professores/as – a forma para alcançar popularidade e reconhecimento: as brigas na escola
garantem bom público para aquelas que buscam popularidade.
TX: Com certeza, com certeza. Uma coisa que eu estou percebendo aqui na escola é a busca pela popularidade.
Tem. Sabe? [...] Tem várias formas de você chamar a atenção, pra ser popular e uma delas é a briga. Tem espa...Estes dias

31
Ao contrário do que se poderia concluir por esse trabalho, a escola pesquisa é muito organizada e boa parte de seus funcionários/as e professores/as são
dedicados/as e comprometidos/as. Infelizmente, devido ao curto espaço disponível, não é possível apresentar outros dados. Ver mais em NEVES (2008)
32
Aquele que se refere a alunos/as atentos/as, interessados/as, comportados/as, respeitosos/as, estudiosos/as, dedicados/as...
33
Parafraseando Montserrat Moreno (1999)
34
Além de responsável pelo ensino e possibilidade de melhora da condição de vida.
35
Durante entrevista realizada com um grupo de alunos e alunas que se tratavam como família – usando os nomes de tratamento pai, mãe, irmã, tia... – chamou-
me a atenção como o tema de gravidez surgiu rápido e sem estímulo. Foi então que percebi que o problema de ficar na rua não era o de segurança, mas da
aproximação com o sexo oposto.
36
Infelizmente não é possível se aprofundar nesse caso, mas durante a pesquisa foram realizadas duas atividades em relação ao aborto e em nenhuma delas o
personagem paterno era citado ou tinha alguma participação, o que pode significar uma total responsabilização feminina pela contracepção e gravidez. Dessa
maneira também contribui para a regulação da vida social e sexual das jovens.

706
estava: “Nossa! Você viu a fulana bateu na fulana”, “Nossa aquele soco que ela deu foi muito bom” (TX, aluna, entrevista,
04/12/2006, grifos meus)
E, como forma de obter respeito, passa-se o mesmo, como afirma a professora Vitória:
O que eu observo é que ela [aluna] é respeitada pelos meninos. [...] Os meninos não enfrentam ela, se alguém soltar
uma piada pra ela e ela olhar assim, eles baixam, eles murcham, o mais valente da sala baixa a cabeça pra ela. [...]. Brincam
só uma vez e se ela olhar pra eles, eles não repetem. (Vitória, professora, entrevista, 11/12/2006, grifos meus)
Algo que apareceu com alguma freqüência nas entrevistas foram os boatos, o disse-me-disse, a intriga. Em quase
todas as brigas havia uma mise-en-scène, um jogo de cena: a conspiração, a rodinha, o barulho, a gritaria. O disse-me-disse,
agregado à sociabilidade da escola, complementa o quadro de socialização e a ele agrega maior tensão, ocasionando, por
vezes, momentos de agressão. A partir de pequenas ameaças, bilhetes anônimos que, ao mesmo tempo em que servem para
amedrontar, também a incentivam, “põem mais lenha na fogueira”, porque desistir é temer. Nem sempre a conspiração vem
acompanhada da rodinha, porque, tal como é, não é pública, não é exposta, é confidencial, está nos cochichos, está nos
bilhetes. Dessa maneira, o disse-me-disse não se refere somente a questões sexuais, mas também a outros conteúdos como as
intrigas de briga. A conspiração pode resultar ou não em briga; muitas vezes acaba sendo descoberta pela equipe gestora ou
pelos funcionários da escola e a possibilidade de briga é dirimida, outras vezes não.
A fofoca ao funcionar como regulação da vida alheia, traz para o espaço público, a contragosto, a vida privada
daquele/a de quem se está falando. Por sua vez, exige reparação pública37 e, para tal, as jovens recorrem à violência como
meio apreendido – nas relações domésticas e na escola – como legítimo para a restauração da honra e a dissuasão do
comportamento alheio.

Conclusão
eu admiro as meninas que fazem coisas hoje que eu não fiz que eu queria ter feito, que eu devia ter feito quando era
criança.

(Vitória, professora, entrevista, 11/12/2006)

Ao utilizar as relações de gênero como categoria de análise, foi possível se desvencilhar das análises ecológicas que
atribuiriam somente ao ambiente a causa da violência entre as jovens e, ao mesmo tempo, permitiu isolar a opinião comum
que, por conta de sua “natureza” feminina, as brigas sempre envolviam algum personagem masculino.
Foi, então, possível constatar que as razões para que as meninas briguem na escola são compostas por diversas
dimensões, nas quais as marcas de gênero estão presentes e relacionam-se com outros fatores, tais como a violência na e da
escola, a fofoca e a ausência de outra prática de solução de conflitos também na família. Perceberam-se as agressões físicas
praticadas pelas jovens contestando o modo socialmente aceito de ser garota, afirmando outra feminilidade possível para
além daquela que as identificam como “frágeis”, “inocentes”, “vítimas”. Elas se defendem e são capazes de intimidar
também aos meninos, estabelecendo e garantindo respeito a elas. Porém, ao fazerem uso da violência, reproduzem a forma à
qual são submetidas em ambiente doméstico e que está comumente associada aos rapazes. (REAY, 2001)
Assim, se por um lado há afirmação de outra feminilidade que não a da mulher sempre vitimada e/ou submissa, o
recurso à violência dentro dos muros escolares coloca em risco a razão de ser da escola: ser mediadora entre o espaço
doméstico (o da não-política) e o espaço público (exclusivamente da política); criar indivíduos capazes de se relacionar no
espaço público por meio da persuasão, e não da violência.
Resta-nos, por fim, pensar formas de intervenção sobre tais conflitos dentro da escola, transformando-a em um
ambiente de confiança e respeito, a fim de modificar o percurso percorrido até agora; assumindo a radicalidade da
transformação necessária na forma de educar os/as jovens para uma sociedade mais equânime, democrática e cidadã.

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Movimento negro no Brasil: Pedagogia Interétnica uma Acção de Combate ao


Racismo1

Ivan Lima
Universidade Federal do Ceará
dofono@superig.com.br

Resumo: O presente trabalho é um aprofundamento, iniciado no mestrado em Educação, sobre o pensar e fazer pedagógico de entidades do
Movimento Negro (MN) no Brasil, que nomearam como pedagogia os modelos que norteiam seus projetos de educação para o Brasil. Este
tema mostra-se relevante na medida em que almejo superar o desconhecimento na sociedade e na história da Educação de propostas
pedagógicas desenvolvidas pelo Movimento Negro. Investigo a Pedagogia Multirracial, desenvolvida no Rio de Janeiro, por Maria José
Lopes da Silva e um grupo de educadores, na década de 80, do século XX. Como também seu desdobramento, no século XXI, na elaboração
da Pedagogia Multirracial e Popular, no estado de Santa Catarina, pelo Núcleo de Estudos Negros (NEN), entidade do MN da capital. A
pesquisa tem como referencial teórico-metodológico uma perspectiva sócio-histórica, considerando os sujeitos, suas origens e as relações
sociais, que se estabeleceram em suas trajetórias. Esta visão histórica será combinada com o uso da História Oral temática, como
possibilidade de aprofundar os significados do universo cultural e político dos integrantes deste movimento e seus reflexos nas políticas
educacionais no Brasil. Mediante a esta proposta de sistematização das pedagogias desenvolvidas pelo MN, procuro contribuir no avanço do
debate sobre as relações raciais, que se verificam no âmbito da Educação brasileira contemporânea e que continuam a produzir exclusão e
desigualdades das mais variadas formas.

Introdução
A preocupação norteadora deste trabalho foi procurar identificar o alcance do debate travado durante a década de
70 e 80 do século XX, referente à organização de uma proposta pedagógica nos espaços educativos, a partir da emergência de
novas formas coletivas da sociedade civil, em especial do Movimento Social Negro.
Neste caso, tomei como referência uma das entidades deste movimento, situada em Salvador, o Núcleo Cultural
Afro-Brasileiro (NCAB). A premissa aqui foi a de que esta organização pode de fato ser tomada como uma expressão da luta
anti-racista no Brasil, principalmente pelo fato de seus participantes serem autores e atores políticos relevantes desse debate
de organização do Movimento Negro e de formulação de uma proposta pedagógica de combate ao racismo (Lima, 2004).
O contexto da mobilização racial em Salvador, na década de 70 do século XX, esteve ligado com a retomada dos
movimentos sociais em sua reorganização, buscando questionar a ditadura e a necessidade da redemocratização do país. O
MN nesta esteira, além destas questões mais gerais, buscou trazer para a cena nacional o questionamento da “democracia
racial” brasileira, denunciando a existência do racismo e buscando colocar na ordem do dia que as desigualdades existentes
não se situam apenas no âmbito das relações de classe.
Para alcançar o conhecimento desta experiência educativa a pesquisa procurou responder as seguintes questões
centrais:

qual o contexto social e político que levou à construção de uma proposta pedagógica com enfoque racial no Brasil,
no final da década de 70?
quais os pressupostos teóricos, políticos e culturais que foram utilizados para a construção desta proposta
pedagógica?

Para tanto, utilizou-se de entrevistas semi-estruturadas junto aos seus formuladores e integrantes do MN, e de
matérias veiculadas pela mídia impressa tendo-se como fontes a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade
Estadual da Bahia (UNEB) e o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). Assim como, de periódicos contidos na Fundação
Gregório de Matos do Arquivo Histórico Municipal de Salvador.
As entrevistas foram realizadas na cidade de Salvador, em janeiro e setembro de 2003, tendo como interlocutores:

1
Esse artigo é parte da dissertação de mestrado, defendida em junho/04, na Universidade Federal de Santa Catarina, orientada pela prof. Olga Celestina Durand.
E consta do relatório final apresentado ao 3º Concurso de Dotações para Pesquisa Negro e Educação, promovido pela Anped e Ação Educativa, com patrocínio
da Fundação Ford, sob a orientação da prof. Vânia Beatriz G. Silva (UFSC).

709
- Manoel de Almeida Cruz (1950-2004), sociólogo, um dos fundadores do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro
(NCAB) e o principal formulador da Pedagogia Interétnica.
- Geruza Bispo dos Santos, pedagoga, trabalhou como coordenadora pedagógica na Escola Criativa Olodum e na
implementação da PI, no período de 1993 a 1997.
- Lino Almeida, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU) na Bahia. Começou a militância
originalmente na Sociedade Male Cultura e Arte Negra, posteriormente constituiu o NCAB.
- Jônatas C. da Silva, atuou desde 1978 no MNU, primeiramente em São Paulo e depois na Bahia. É diretor e
coordenador do projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê.
- Ana Célia da Silva é professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb), fundadora do MNU/BA, responsável
pela formação no projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê;
- Raimunda Rodrigues Pedro, pedagoga, professora e ex-diretora da Escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita,
que implementou a PI em 1984.
Dentre esses, gostaríamos de destacar Manoel de Almeida Cruz, principal divulgador da PI, falecido em junho de
2004. Manoel nasceu em 2 de abril de 1950, em um bairro proletário de Salvador, Liberdade, filho de um operário da
construção civil e de uma empregada doméstica. Sua trajetória no ensino formal foi irregular, levando-o a partir dos 14 anos
de idade a tornar-se autodidata. Em seguida, interessa-se pela sociologia, entrando em contato com Guerreiro Ramos,
proeminente sociólogo do ISEB (Instituto Sociológico de Estudos Brasileiros), esse encontro, segundo seu depoimento
“despertou do ponto de vista intelectual a minha consciência negra no Brasil, aliado também a minha vivência de negro
baiano, o negro tem uma presença marcante e significativa [na Bahia], contudo é um dos estados mais racistas da União”2. O
reconhecido enquanto sociólogo se dá a partir de 1985, com a regulamentação da profissão no Brasil, Manoel credencia-se a
obter esse título levando-se em consideração inúmeros artigos escritos sobre o tema das relações raciais. Ao mesmo tempo,
submete-se e é aprovado no mestrado em sociologia na UFBA.
Apontam-se, assim, os formuladores da proposta pedagógica como sujeitos desse tempo histórico, que buscaram a
partir das práticas instituídas, contribuir para o debate acerca de um projeto de educação anti-racista, à luz de suas próprias
experiências políticas e culturais. Portanto, a pesquisa se situou numa perspectiva sócio-histórica, pois, com esse
procedimento possibilita-se mostrar que a evolução do ensino brasileiro está relacionada a injunções sociais e políticas,
assim:
O reconhecimento da relação intrínseca entre a educação e o processo de desenvolvimento histórico da sociedade
não nos permite analisar a educação fora do contexto sócio-econômico e político do país, desconhecendo, com isso o
conjunto das relações sociais nas quais a educação está imersa (Vale, 1996, p. 12).
No campo educacional a discussão das relações raciais necessita ser fomentada pela necessidade em se identificar
quais suas conseqüências para o ensino brasileiro, tendo como foco as experiências de intervenção das entidades negras que
discutem as desigualdades raciais ( Gomes, 1997; Silva, 1997c, entre outros), tendo em vista o desconhecimento na história
da educação brasileira acerca destas iniciativas.
Ao mesmo tempo, não se trata de uma busca de uma verdade absoluta, como bem afirma Fenelon (2000, p. 130):
“[...] mas uma leitura do tempo histórico, a partir de uma perspectiva de interesses do presente e, como tal, não tem
preocupação de se estabelecer como verdade”, o foco importante é a trajetória de luta dos sujeitos sociais.

Estratégias de mobilização do movimento negro no Brasil


As trajetórias dos processos organizativos dos movimentos sociais no Brasil foram marcadas pela retomada das
organizações coletivas: de mulheres, ecológicas, e raciais e étnicas, acarretando o desenvolvimento de estudos e campos de
pesquisa em vários centros acadêmicos (Scherer-Warren, 1999).
No sistema de ensino brasileiro esses estudos têm apontado que historicamente a escola tem sido marcada pela
desigualdade e pela exclusão, características que se tornaram tão fortemente presentes no pensamento da elite brasileira que
controla as decisões políticas, particularmente em relação à educação, que tem sido privilégio de alguns.
Para tanto, discute-se que o racismo não tem como único fundamento à escravidão do negro, mas que se encontra
vinculado a um projeto político social fundamentado em teorias sobre raças inferiores, determinismo biológico,
evolucionismos (Schwarcz, 1993), que explicam as desigualdades sociais sem ferir os preceitos liberais de oportunidades
iguais para todos (Viotti da Costa, 1999), cujo objetivo é manter à margem grupos que a sociedade marginaliza, notadamente
os negros.
Vale ressaltar que as propostas pedagógicas desenvolvidas pelo Movimento Negro, no inicio da retomada dos
movimentos populares na década de 70, são estratégias de continuidade de uma trajetória de luta e de resistência do povo
negro que remonta desde aos quilombos, nos terreiros, nas irmandades, nos grupos, associações, imprensa negra, até as
organizações atuais do Movimento Negro (MN), influenciadas por lutas iniciadas já na década de 60.
Essa década marcou um período de intensas transformações: os movimentos de independência das antigas colônias
européias (Fanon, 1979), os protestos estudantis na França e em vários outros países, a continuação dos movimentos dos

2
Entrevista concedida em setembro de 2003.

710
direitos civis nos Estados Unidos, os movimentos de contracultura, o movimento feminista, a liberação sexual e as lutas
contra a ditadura no Brasil são alguns dos movimentos sociais e culturais que caracterizaram este período, quando
apareceram teorizações que contestaram a estrutura educacional tradicional, buscando trazer para o centro do debate o jovem
e a criança, seus interesses e suas experiências, assim como questionamentos e a transformação radical daquela educação.
Na década de 703, no campo das discussões teóricas sobre a educação que influenciaram o pensamento acerca da
teoria crítica mais geral, tem-se como marcos, entre outros: Paulo Freire e a sua pedagogia do oprimido, Louis Althusser e a
ideologia e os aparelhos de Estado, Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron, com a teoria da reprodução. Esses textos se
aliaram a movimentos políticos que buscaram resgatar a cultura do povo como uma verdadeira cultura não dominante,
marcadamente a partir dos Estudos Culturais, e que se mantêm como legado para as teorias educacionais contemporâneas.
A emergência do ressurgimento dos movimentos sociais, e em especial a do Movimento Negro no Brasil, a
educação foi apontada como estratégica, porque seria uma das política públicas indispensáveis para a organização dos setores
marginalizados.
Para Winant (1994) os novos movimentos sociais recriaram a sociedade civil expandindo o território da política.
Tornaram públicos os temas que eram antes considerados pessoais ou privados, ou seja, impróprios para a ação coletiva.
Assim, nestes grupos se encontrava sob novas formas (pela primeira vez) uma gama de temas democráticos radicais –
religiosos, feministas, mas principalmente “humanistas”. Sob este enfoque, Winant (1994, p. 124) afirma que: “[...] o ascenso
negro foi uma combinação de dois fatores: a reemergência da sociedade civil, que necessariamente abriu território político
para a iniciativa do movimento social, e a politização das identidades raciais sobre este território”.
Levando-se em consideração esses argumentos, o MN numa perspectiva de rediscutir o território da educação,
trouxe não somente reivindicações, mas também problematizações teóricas e ênfases específicas (Gomes, 1997).
A autora aponta as contribuições a partir do ponto de vista do próprio Movimento Negro, para a educação
brasileira. A primeira contribuição refere-se à denúncia de que a escola reproduz o racismo presente na sociedade. A segunda
contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro refere-se à ênfase no processo de resistência negra. A
terceira contribuição refere-se à centralidade da cultura.
Os negros trouxeram para a escola a reflexão de que além de sermos seres cognitivos, somos também seres
culturais. E essa cultura muitas vezes se choca com a cultura escolar permeada por uma estrutura rígida [...] pelo tempo
linear, por uma visão restrita da corporalidade, pela ausência de musicalidade... (ibidem, p. 20).
A quarta contribuição diz respeito à existência de diferentes identidades, discutindo o caráter homogeneizador da
escola brasileira.
A partir dessas concepções o MN buscou na sua trajetória construir e desenvolver propostas pedagógicas no sentido
de modificar o espaço da educação4.
Entre elas, destaca-se em 1978, a Pedagogia Interétnica do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB), em Salvador,
objeto deste estudo.
Em 1986, a Pedagogia Multirracial desenvolvida por Maria José Lopes, no Rio de Janeiro, que utiliza como
referencia a PI, e compreende que a:
[...] escola deve ser considerada não apenas o espaço para a apropriação do saber sistematizado - como entendem
algumas concepções pedagógicas - mas também o espaço de reapropriação da cultura produzida pelos grupos sociais e
étnicos excluídos [...] a escola deve deixar de ser o espaço e negação dos saberes para enfatizar a afirmação da diferença,
num processo em que os indivíduos e grupos sejam aceitos e valorizados pelas suas singularidades, ao invés de buscar a
igualdade pela tentativa de anulação e inferiorização das diferenças (Lopes, 1997a, p. 25).
Em 2000, tem-se a proposta desenvolvida em Santa Catarina, pelo Programa de Educação do Núcleo de Estudos
Negros (NEN), intitulada Pedagogia Multirracial e Popular, que, além de se basear nas concepções apresentadas pela
proposta do Rio de Janeiro, busca incluir as práticas educativas que se desenvolvem em outros tempos e espaços, para além
da escola – como, por exemplo, os movimentos sociais.

A mobilização negra no contexto baiano


Na Bahia uma das primeiras grandes capitais, desenrolou-se na década de 70, entre outros acontecimentos políticos
e sociais, uma das primeiras experiências de construção de uma proposta pedagógica de combate às desigualdades raciais nos
espaços educativos.
No país foi um período de repressões, violências, mas também de retomada da sociedade civil, que começava a
vencer o medo e o imobilismo imposto pelo regime. A insatisfação popular manifestou-se em 1974 contra a dura repressão
no governo Médici, é o que se evidencia nas vitórias conferidas pelo povo ao partido formal de oposição, o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB). A seguir a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Igreja Católica, a
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) disponibilizaram seu quadro

3
Neste sentido, Barcelos (1996) realiza um estudo buscando mapear os diversos componentes da mobilização racial no Brasil a partir da produção das ciências,
assim aponta que uma “[...] breve revisão teórica que aponte os elementos-chave na investigação sobre os movimentos é o passo inicial nesta análise. A
discussão gira em torno da produção das ciências sociais no Brasil sobre os movimentos sociais em geral e sobre a mobilização racial em particular”.
4
No campo educacional Cunha Júnior (1999), Barcelos (1996) entre outros, têm contribuído no balanço da produção e na revisão de literatura sobre o tema no
Brasil.

711
institucional a oposição silenciada pela repressão policial. Emergiram os movimentos de base, assentados, sobretudo, nas
associações de moradores e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Irrompeu um novo movimento sindical nas greves
de 1978, 1979 e 1980 que, iniciadas na zona metropolitana de São Paulo contagiaram o resto do país. Irrompe no cenário
nacional o movimento popular, representado pelos movimentos operários e sindicais, pelos movimentos ligados aos bairros,
ao consumo, às questões agrárias, indígenas, raciais, etc. (Singer e Brant, 1985).
Na “Roma Negra”5 essa década, em termos econômicos e sociais, representou uma nova etapa na consolidação da
industrialização na Bahia, e em mudanças estruturais na capital, Salvador. Foi o momento de aporte de recursos advindos dos
benefícios fiscais do governo, por intermédio da Sudene, surgindo o Centro Industrial de Aratu (CIA), e pela instalação do
Pólo Petroquímico de Camaçari.
Com isso a capital teve um aumento em seu fluxo populacional advindo de contingentes de pessoas da zona rural,
tendo em vista o afluxo de capitais, e o respectivo crescimento econômico na construção civil e sobre o setor de comércio e
serviços.
Esse tipo de desenvolvimento capitalista consolidou o processo de formalidade do mercado de trabalho em vista do
abrupto aumento populacional, tal crescimento da cidade de Salvador não foi seguido de um respaldo pelo poder público no
que se refere à absorção desta população empobrecida que se deslocou para os centros urbanos.
Do ponto de vista cultural, essa década foi o momento em que se definiu realmente uma política governamental de
cultura e turismo, onde se institui a vertente africana como uma marca de afirmação do ser baiano, alicerçado pelo candomblé
e outras manifestações da cultura afro-brasileira (Bacelar, 2003). Assim, esse novo enfoque oficial corroborou a existência
em Salvador de uma verdadeira “democracia racial”.
Dessa dinâmica sociocultural, encontram-se as bases para a construção do Movimento Negro baiano, que se pode
caracterizar por dois momentos: num primeiro, constitui-se na esteira das várias ações de caráter cultural, com especial
atenção ao corpo e o espaço religioso. Aqui é interessante se observar que, para uma parcela significativa da população negra,
principalmente aquela ligada às religiões de matriz africana, o corpo é um elemento extremamente importante como lócus
não apenas de multiplicidade de padrões estéticos, mas ligado a uma visão de mundo, de integralidade com o universo, pois é
a partir do corpo que se (re) liga com a ancestralidade. Como salienta Silva (1997b, p. 41) “´[...] os corpos negros põem à
vista, no gingado, no gesto, na fala, nas indumentárias, o raciocínio, as emoções, as intuições, a história de diferentes grupos
étnicos, de diferentes nações africanas, reunidos compulsoriamente no Brasil [...]”.
Num segundo momento, uma intervenção de caráter político e ideológico na perspectiva de denúncia explícita do
racismo e de reivindicação das condições de igualdade entre negros e brancos. No entanto, infere-se que, estes dois
momentos não são marcadamente excludentes entre si, mas possuem articulações e contradições na trajetória deste
movimento social.
A década de 70 trouxe elementos essenciais6 para a criação de organizações negras, estruturadas em torno de uma
ação cultural e política do negro, em vários espaços sociais, como o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (1974), a Sociedade
Male Cultura e Arte Negra (1975), o Grupo de Teatro Palmares Inaron (s/d), dos Blocos Afros, como Ilê Aiyê (1974) entre
outros; e o surgimento do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (1978), que assumiu um caráter mais
contestatório da condição racial no Brasil e na Bahia.
Tem-se como ação inicial do questionamento do papel da cultura diante os agentes do estado, o surgimento do
Bloco Afro Ilê Aiyê, fundado em 1974, com a perspectiva de problematizar a ideologia dominante e, como “expressão dos
anseios de grupos de negros em busca de auto-afirmação cultural. Por auto-afirmação cultural entenda-se: os negros têm uma
história baseada em sua herança africana e querem com que esta história seja resgatada, expandida e assumida, ao menos na
Bahia” (Silva (1988, p. 281).
Posteriormente, essas e várias outras mobilizações7 criaram o caldo para o surgimento, em 1978, do Movimento
Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), a partir da manifestação na cidade de São Paulo, e que se
constituiu da convergência de várias organizações negras, que teciam críticas à forma como a cultura afro-brasileira era
manipulada e cooptada pelo poder vigente.

O NCAB da ação política a pedagogia interétnica


É nessa configuração que o NCAB surgiu, em 1º de agosto de 1974, numa perspectiva de ação política voltada para
o questionamento da situação dos negros em Salvador, num espaço e numa dimensão de intervenção diferenciados da criação
do Ilê Aiyê. Para tanto, associa-se ao Instituto Cultural Brasil Alemanha, como relembra Manoel:
5
Essa expressão, Roma Negra, metaforicamente, procura caracterizar, de um lado, a Bahia como uma polis, que confere existência transatlântica à África negra,
foi usada por uma sacerdotisa de candomblé, Mãe Aninha, fundadora da comunidade-terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. (Bacelar, 1996).
6
Do ponto de vista estético a influência da moda representada pelos cabelos e roupas como do grupo Jackson Five, e da grande influencia do Black Soul, “[...]
movimento expressivo em termos de mobilização, influenciando a trajetória de importantes militantes do Movimento Negro” (Barcelos, 1996, p. 198), que se
espalhavam pelo território nacional. Do ponto de vista políticos temos “ o movimento dos pantera negras nos Estados Unidos e as notícias sobre as figuras
emblemáticas das organizações negras norte-americanas, como Martin Luther King, Malcom X, Ângela Davis. Porém, não só, tomava-se conhecimento da
existência de fortes movimentos de resistência popular contra o jugo colonial nos países africanos lusófonos, ou seja, Angola, Moçambique e Guiné-Bissal”.
(Bacelar, 2003, p. 232).
7
Ressalta-se nessa luta social no Brasil, assim como também na Bahia, o pensamento e a trajetória de dois personagens importantes, que estão nos depoimentos e
indicados na maioria da bibliografia do debate das relações raciais no Brasil: Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez.

712
Em agosto de 1974, nós procuramos nesta época, era época da ditadura, e o único espaço aberto aqui na Bahia que
nós tínhamos era justamente o Instituto Goethe, também conhecido como Instituto Cultural Brasil-Alemanha. Intelectuais
progressistas afluíam para este ponto, surgiu esta idéia de se criar uma instituição mútua cultural para refletir sobre a cultura
negra, o negro na sociedade brasileira. Então me associei a Roberto Santos, Manoelito dos Anjos, Atolenildo Ferreira de
Santana, Jorge Milton Conceição, e procuramos o diretor do Instituto Cultural Brasil-Alemanha e ele cedeu provisoriamente
as instalações para que nós nos reuníssemos e aí a gente começou a fazer uma série de reuniões e formalizamos legalmente o
Núcleo Cultural Afro-Brasileiro.
A perspectiva do NCAB, como organização de tipo novo, era insurgir-se contra a ideologia do mito da democracia
racial, e estabelecer uma releitura da herança africana, buscando se diferenciar do que os setores hegemônicos da sociedade
baiana e da academia entendiam sobre a cultura afro-brasileira (Bacelar, 2003).
Contudo, nota-se que para obter reconhecimento público, mesmo com críticas ao mundo acadêmico, o NCAB,
estruturou-se de forma paralela a departamentos existentes na universidade, compreendendo coordenadoria, vice-
coordenadoria, tesouraria, secretaria e vários departamentos, tais como de Sociologia, História, Relações Públicas,
Psicologia, Antropologia e Artes.
A partir disso, desenvolveu várias atividades que enfatizaram uma preocupação na discussão das relações raciais,
tendo como foco às várias contribuições das áreas de conhecimentos das Ciências Sociais. Procurou também atualizar o
debate e o desenvolvimento de pesquisas que pudessem revelar o preconceito racial e a necessidade de “conscientização” do
negro e do branco.
Essa postura alicerçou-se não apenas pela luta cultural, como apostou o Ilê Aiyê, mas pela via da pesquisa e da
construção de um conhecimento científico sobre a história e a cultura, que desembocaria na construção de uma proposta
pedagógica.
A construção da Pedagogia Interétnica (PI) se deu pelo processo de acúmulos dos vários seminários, cursos,
encontros entre outras ações promovidos pelo NCAB, tendo como aporte áreas como a Sociologia e a Antropologia.
Dentre essas ações, destaca-se uma pesquisa sobre o preconceito racial contra o negro desenvolvida na cidade de
Salvador, no ano de 1975. A referida pesquisa buscou afirmar o viés acadêmico perseguido pelo NCAB, a fim de reafirmar a
existência de um pensamento próprio acerca das relações raciais, em Salvador.
Esse inquérito social constatou a presença do preconceito anti-negro e do racismo em nossa sociedade, sem,
contudo deixar de levar em consideração pesquisas anteriores realizadas por conceituados cientistas sociais, e também
considerando as nossas próprias experiências, vivencias”. (Cruz, 1983, p. 53).
Denota-se, que estas considerações contribuíram para colocar o debate educacional não só como causa, mas,
também, como resposta ao desafio do combate ao racismo, ao mesmo tempo em que identificavam outros fatores que
perpetuam este fenômeno, como se verifica nesse depoimento:
[...] surgiu à idéia de uma intervenção no processo educacional, a partir de nossos estudos e pesquisas nós
detectamos que o preconceito racial e o racismo eram transmitidos pelo processo educacional, e só uma intervenção
sistemática poderia dar uma resposta mais científica e positiva com relação a este fenômeno [...] veja bem, a escola é um dos
fatores, há a família, a própria comunidade, os meios de comunicação social que integram todo este complexo, que formam
fatores transmissores de preconceito racial e estereótipos (Manoel).
Como resultado desses processos, realizou-se o I Seminário Experimental sobre Educação Interétnica8, em 1979,
onde se apresentou como subsídio para a discussão os resultados da pesquisa sobre preconceito racial contra o negro.
Com isso, tem-se a justificativa para a necessidade de elaboração de um sistema de educação interétnica voltada
“[...] para a nossa realidade sócio-cultural, política e econômica, e dentro de uma concepção cientifica, dialética e
conjuntural, que permita a compreensão do nosso mundo, sem perder de vista as estruturas que oprimem o homem”9.
Estas reflexões foram centrais no seminário, levando seus participantes a delinearem o que seria o sustentáculo, dali
em diante, da proposta pedagógica do NCAB, definida por um sistema que contou de cinco pontos, a saber:
aspecto histórico – busca-se as raízes históricas do preconceito e da discriminação racial contra o negro;
aspecto culturológico – estudo do preconceito cultural e do etnocentrismo, e uma análise da linguagem e do
discurso racista;
aspecto antropobiológico – análise das teorias pseudocientíficas de superioridade racial, desmistificando-as;
aspecto sociológico – estudo da situação socioeconômica do negro na sociedade investigando as situações de baixa
renda;
aspecto psicológico – estudo dos mecanismos de auto-rejeição e os reflexos condicionados objetivando a mudança
de comportamento e de atitudes preconceituosas contra o negro.

De posse dessa estrutura inicial, em 1980, aconteceu o 2º Seminário de Educação Interétnica10, infere-se que nesse
momento delineou-se a idéia de pedagogia. Pedagogia entendida, como um pensar e agir sobre a educação de maneira mais
sistemática, centrada na idéia de operacionalização, como indica Manoel.

8
O documento a que se teve acesso é o programa do seminário, no qual se apresenta uma proposta de educação interétnica, prefaciado de considerações acerca
do conceito de racismo e preconceito racial, assim como dos cinco pontos que subsidiaram esta proposta e que foram os temas centrais do evento.
9
Cf. documento do seminário.

713
[...] quando a gente falava Educação Interétnica, a gente achava a coisa meio solta, aí fechamos como pedagogia
para formalizar a coisa, sistematizar mais, organizar mais do ponto de vista teórico e metodológico, então começamos a
chamar de pedagogia, porque antes a coisa estava meio solta, assistemática e meio empírica também (Manoel).
Essa percepção reforçou-se, porque o seminário teve como resultado prático à criação de uma comissão11
encarregada de elaborar um programa escolar12 fundamentado na cultura negra (Cruz, 1989).
De posse dessas elaborações, realizou-se, em 1985, o I Seminário de Pedagogia Interétnica. Percebe-se que a PI
delineou-se de forma mais completa: apresentou-se com sua estrutura básica dos cincos pilares; desenvolveu-se de forma
mais sistemática os métodos recomendados de combate ao racismo e de procedimentos metodológicos; assim como, ampliou-
se a partir da concepção de um currículo baseado nos valores e na cultura dos grupos étnicos dominados, assentado na
educação do negro e do índio.
No primeiro dia do encontro, que reuniu políticos, estudantes, representantes de entidades culturais e outros
interessados, foi discutida a elaboração de um currículo escolar baseado nos valores e na cultura dos grupos étnicos
oprimidos... O fundamental na introdução da “pedagogia interétnica” nos currículos escolares é o estudo do etnocentrismo,
ou seja, reavaliar o preconceito racial transmitido pelo processo educacional (família, comunidade, escola, meios de
comunicação), além de propor medidas educativas que repensem os valores culturais estabelecidos (Tribuna da Bahia,
24/9/1985).
Assim, considera-se como estratégia de disseminação da PI o lançamento do livro: Alternativas para o combater o
racismo: um estudo sobre o preconceito racial e o racismo: uma proposta de intervenção científica para eliminá-los, em 1989,
escrito e editado por Manoel de Almeida Cruz.
Essa obra sistematizou os referenciais teóricos da PI, e reuniu o que já havia sido desenvolvido nos seminários
anteriores e na divulgação da proposta pedagógica em vários encontros13 pelo Brasil, apresentando-se como uma alternativa
de combate ao racismo:
A pedagogia interétnica tem como objetivo fundamental o estudo e a pesquisa do etnocentrismo, do preconceito
racial e do racismo transmitidos pelo processo de socialização ou educacional (família, comunicação, escola, sociedade
global e meios de comunicação social), além de indicar medidas educativas para combater os referidos fenômenos (Cruz,
1989, p. 51).
A obra estrutura-se em dois blocos: o primeiro conceitua-se os usos, os sentidos e os estudos realizados até este
período sobre as idéias de raça, preconceito, discriminação, etnia e cultura - aqui se atualiza o debate destas categorias à luz
das Ciências Sociais, principalmente a Sociologia e a Antropologia. Tecem-se críticas ao caráter biológico da noção de raça,
e do seu uso como destituído de fundamento científico. A etnia se apresenta como uma categoria capaz de se sobrepor a estas
interpretações e de abarcar os conceitos de raça e cultura; o segundo bloco apresenta-se, sistematicamente, como se estrutura
a PI, a partir da utilização de procedimentos e métodos14, assim esquematizados:
- métodos de pesquisas sobre o preconceito e o racismo: sociológico, análise da linguagem ordinária, semiológico;
assinala-se que tais métodos devem ser aplicados com os pressupostos da pesquisa participante;
- métodos operacionais de combate ao racismo: curricular, etnodramático e comunicação total;
- aspectos estruturais: psicológico, histórico, sociológico, axiológico e antropobiológico;
- procedimento metodológico: etnofenomenológico e procedimento dialético;
- conteúdos para a didática do negro, do índio e da alfabetização de adultos.
Aqui é interessante se explicitar alguns referenciais teóricos que fundamentaram essa construção: a psicologia
social de Allport, a concepção crítica da educação de Paulo Freire, a sociologia de Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento,
influências do marxismo, de Franz Fanon, da fenomenologia de Husserl, da Filosofia da Linguagem, entre outros.
A partir da leitura da obra, documentos e falas, pode-se analisar a PI como uma construção eminentemente
sociológica, que contribuiu na crítica da construção de raça como fator biológico. Por isso, a PI apropriou-se do conceito de
etnia, enfatizando seu caráter mais abrangente, impõe-se como o diálogo possível com os segmentos acadêmicos e as
parcerias para a realização de seus vários projetos de formação e debates, o que permitiria seu uso por outros povos em
conflitos étnicos, conforme afirma Manoel:
Primeiro, que a gente viu o seguinte, somos negros, somos discriminados, mas ao lado do negro tem outros grupos
étnicos que também são discriminados, por exemplo, o índio, o próprio cigano, então a nossa pedagogia não ficou centrada
somente na raça negra, não é uma pedagogia, como prega Maulana Karenga lá nos Estados Unidos, afrocentrada ou

10
Deste seminário não se teve acesso a nenhum documento original, mas ele é citado por Manoel no artigo apresentado ao Caderno Afro-Asiático (1983), e no
livro de sua autoria de 1989.
11
A comissão era integrada por Lino Almeida, Nelson Rigaud e Eduardo Batista.
12
Cruz (1989, p. 85) aponta como programa: música, dança e contos afro-brasileiros; teatro; e modelagem.
13
Tem-se registrado, na década de 80, as seguintes participações onde foi divulgada a PI: VI Simpósio de Estudos e Pesquisa em Educação: UFBA/FACED: 18 a
22 de outubro de 1982; Encontro Nacional Afro-Brasileiro, realizado pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 1982, e publicado no Caderno de Estudos Afro-
Asiáticos 8-9, 1983, Conjunto Cândido Mendes/RJ; II Encontro Nacional sobre a Realidade do Negro na Educação, promovido pela Sociedade Recreativa
Cultural floresta Aurora, Porto Alegre, 1985; Seminário O Negro e a Educação, promovido pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade
Negra do Estado de São Paulo, organizado pela Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 1986. Resultou na publicação: Raça Negra e Educação, Cadernos de
Pesquisa, n. 69, novembro de 1987; Seminário Educação e Discriminação dos Negros, promovido pela Fundação de Assistência do Estudante e o Instituto de
Recursos Humanos João Pinheiro, 1987. A publicação foi organizada por Regina Lúcia Couto de Melo e Rita de Cássia Freitas Coelho. Belo Horizonte, Instituto
de Recursos Humanos João Pinheiro, 1988.
14
Para a compreensão de cada um destes aspectos e métodos consultar Cruz (1989).

714
afrocentrista, a nossa pedagogia é interétnica, pode ser aplicada em qualquer parte do mundo onde haja conflitos entre etnias,
quando digo etnias, envolve raça e cultura (Manoel).
Ressalta-se que no decorrer do livro Alternativas para combater o racismo..., não se aprofunda o debate teórico, de
questões do campo específico da educação, de conceitos como didática, pedagogia, escola, currículo, entre outros. Percebe-se
que a elaboração por outras áreas do conhecimento sobre a educação forneceria elementos suficientes para aprofundar tais
categorias. Assim como, tem-se como maior preocupação, da PI, o caráter de intervenção no processo educativo, já que se
apresentou como resposta científica no combate ao racismo dentro desses espaços, com isso pretendia-se intervir em todas as
esferas do processo educativo, do currículo até a formação de professor/a.
Foi esse caráter de intervenção que levou a PI a buscar outros espaços educativos15 a fim de afirmar as suas bases
teórico-metodológicas, numa conjuntura em que a legislação educacional foi abrindo brechas para a cultura afro-brasileira,
desde o parecer 357/87 do Conselho Estadual de Educação da Bahia, em 1987, que recomendou a inserção no currículo
escolar de disciplinas fundamentadas nos valores e na cultura do negro e do índio, passando por leis estaduais e municipais,
chegando-se atualmente ao Parecer CNE/CP 003/2004, “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, do Conselho Nacional de Educação/DF,
que orienta os sistemas de ensino para uma educação das relações étnico-raciais.

A socialização nos espaços educativos: na Escola Criativa Olodum (ECO)


Os integrantes do NCAB, a partir dos vários debates realizados sobre a PI na década de 80, procuraram
experimentar em vários espaços educativos sua proposta pedagógica.
A PI anunciada, metodologicamente, para a sociedade baiana levou o NCAB a construir uma trajetória de
divulgação e socialização de sua proposta pedagógica, a partir de uma série de cursos de formação que os integrantes
realizaram no início da década de 90, agora, com outros apoios.
Esse processo foi reforçado pela promulgação em 13 de maio de 1993 de uma lei municipal da Câmara de
Salvador, na esteira de outras legislações em âmbito nacional que abrem espaços para o debate das relações raciais no campo
educacional.
Permitiu-se com isso um processo de reencontro com os espaços educativos. O primeiro passo foi o convite
formulado pelo Grupo Cultural Olodum, em 1993, para Manoel integrar a equipe pedagógica da Escola Criativa Olodum
(ECO).
O Grupo Cultural Olodum foi fundado em abril de 1979 com características similares a outros blocos existentes,
como o Ilê Àiyê, o Araketu, Malê Debale, entre outros.
A Escola Criativa Olodum (ECO) foi criada em 1991, idealizada pelos diretores do Grupo Cultural Olodum, João
Jorge Rodrigues, Cristina Rodrigues e Maria Auxiliadora Dias, como parte da iniciativa do bloco de envolver as crianças do
Maciel e Pelourinho em um projeto educacional, respaldado pela experiência de um projeto anterior intitulado Rufar dos
Tambores.
É o conjunto de experiências acumuladas no período de desenvolvimento desse projeto que fez nascer a escola. Na
sua primeira fase, que vai até 1994, ela teria um caráter alternativo (Carvalho, 1994), cuja principal característica eram
atividades educativas e culturais com base nos interesses da comunidade do Pelourinho. Posteriormente, num processo de
reavaliação de sua experiência apostou-se no oferecimento de ensino escolar regular e profissionalizante.
Busca-se a Pedagogia Interétnica como suporte ao desenvolvimento teórico-metodológico da ECO, pois já existia
um campo fértil pelas várias ações de valorização da cultura negra empreendida pelo Grupo Cultural Olodum16.
Percebe-se que a preocupação de seus mantenedores era que, apesar de sua formalidade, essa escola, pudesse
incorporar elementos da trajetória do Grupo Cultural Olodum, como argumenta um dos entrevistados:
[...] o João Jorge convidou o Manoel para dar uma característica à escola, que ela não ficasse só como mais uma
escola no município de Salvador onde os meninos aprendessem a ler e a escrever, mas que tivesse também conteúdos que
privilegiassem, que tivessem a ver com a própria história do Olodum, que tivessem essa sintonia, não ficasse só mais uma
escola. Continuaria como uma escola de música, uma escola de arte, mas que teria também toda essa parte do ensino
fundamental, essa parte obrigatória de currículo, etc. (Geruza).
Desse modo, a estrutura da ECO manteve as oficinas de caráter cultural e incorporou as classes de alfabetização, da
primeira até a 4ª série, além de uma turma especial que pretendia resolver a distorção entre a idade e a série dos alunos da
Escola Criativa.
A intervenção educacional proposta pela PI na ECO objetivava contribuir com novos parâmetros para o ensino e a
aprendizagem, pois o grande desafio foi estabelecer um debate entre o currículo tradicional, caracterizado por um padrão
cultural centrado numa perspectiva eurocêntrica que não privilegiava o mundo negro, e uma proposta pedagógica na qual este
mundo negro era central. O enfoque, portanto, estaria em articular o currículo formal da alfabetização até a 4ª série com a

15
Aqui se refere ao processo de implementação da PI na Escola Criativa Olodum, ligada ao Bloco Cultural Olodum, em 1993 e na Escola Municipal Alexandrina
dos Santos Pita, em 1994. Esse processo encontra-se detalhado em Lima (2004).
16
O processo de implantação dessa proposta pode ser conhecido melhor na dissertação de mestrado, Lima (2004). Os diálogos foram efetuados entre Manoel de
Almeida e Geruza.

715
proposta pedagógica da PI de caráter multidisciplinar, trabalhando-se entre outras questões com artes, teatro, etc. Como
demonstra uma das entrevistadas
[...] que a escola não perdesse a característica que ela já tem, que é uma escola musical, uma escola percussiva, que
esse seria o ponto forte, o aliado da gente, porque escola, a gente tem o que a gente precisa é manter o aluno na escola, e
como manter esse aluno na escola? A partir do momento em que ele se identifica com a escola, e para ele se identificar com a
escola é preciso que a escola tenha um olhar para ele, que a escola fale sobre a vida dele, tenha um olhar para a história dele,
e aí pensamos nisso, que a escola continuaria como uma escola de música, uma escola de arte, mas que teria também toda
essa parte do ensino fundamental, essa parte obrigatória de currículo, etc. (Geruza).
Definido o perfil que a ECO assumiria ao incorporar essa nova diretriz pedagógica, o processo inicial foi a
capacitação dos professores/as, a fim de que eles se apropriassem em nível teórico-metodológico da filosofia da PI, processo
que se deu paralelamente na rede de ensino por força dos convênios estabelecidos, entre a ECO e as Secretarias Municipal e
Estadual de Educação de Salvador.
Os professores e as professoras que compunham os quadros da ECO foram contratados tendo como exigência, além
de formação específica, a sensibilidade em trabalhar temas relacionados à questão racial.
A preocupação com este tema particular fazia parte também das intervenções na rede municipal, já que, além dos
professores e das professoras da Escola Criativa, o trabalho de capacitação se estendia a esses educadores, aproveitando-se da
estrutura e dos formadores que contribuíam para a implementação da PI na ECO.
Mesmo com essa preocupação em buscar para dentro da ECO professores com mais entendimento sobre a cultura
negra, apareciam inúmeras dificuldades, tendo em vista as fragilidades que tais profissionais demonstravam no debate mais
aprofundado das relações raciais preconizadas pela PI, gerando resistências no enfrentamento dessa realidade.
Assim, os professores e as professoras que começaram a atuar na ECO se defrontam ao mesmo tempo com o
trabalho cultural do Grupo Cultural Olodum, de valorização da consciência racial de seus componentes e diretores, assim
como de uma nova abordagem educacional que se refletia na proposta da Escola e que leva esses professores/as a um novo
processo de aprendizado.
Dessa ótica, evidencia-se que o processo de formação dos educadores/as foi uma ferramenta fundamental para um
debate mais consistente sobre as relações raciais e para a concretização de outra prática pedagógica preconizada pela PI.
A perspectiva era que os conteúdos17 apreendidos pudessem se transformar em atividades didáticas dentro das
respectivas disciplinas, ao mesmo tempo em que os professores e professoras tinham de dar conta tanto dessa nova dimensão
pedagógica, quanto das exigências convencionais.
Nesse sentido, a proposta desenvolvida colocou em xeque no mínimo os valores expressados pela sociedade local
baseada numa cultura européia, possibilitando-se construir mecanismos de resistência contra uma padronização ideológica,
perpassada por um ensino formal.
Passados quatro anos de atuação da PI, e não contando com a legalização da Escola Criativa Olodum por parte do
poder estadual, o propósito de uma escola convencional gerida por uma organização não-governamental enfrentou problemas
na sua continuidade. Sem o aporte oficial para sua estrutura e manutenção, por ser considerado um projeto caro e cuja
pretensão era dar conta de uma outra dinâmica educacional, houve o encerramento da ECO de suas atividades formais em
1997.
Apesar de sua falta de continuidade, acredita-se que a ECO se propôs a ratificar a prioridade dada pelo Grupo
Cultural Olodum quando buscou a cultura afro-brasileira como elemento propulsor de suas ações, principalmente no campo
educacional.
Por outro lado, ainda que a PI não tenha se consolidado, tendo em vista a não-oficialização da escola pelo poder
público, verifica-se que o processo foi rico, pois aproximou os pressupostos da PI e a vivência da cultura negra promovida
pelo Grupo Cultural Olodum.

Na Escola Municipal Alexandrina dos Santos Pita


Paralelamente à intervenção na escola ligada ao Grupo Cultural Olodum, a equipe pedagógica da ECO, a partir de
convênio18 estabelecido com a Secretaria Municipal de Educação, e apoiada por uma legislação indicativa para tal, procurou
ampliar sua experiência numa escola municipal, tendo como base os pressupostos teórico-metodológicos da PI.
Assim, no ano de 1994, foi iniciado o processo na escola Professora Alexandrina dos Santos Pita, no bairro Pirajá19,
com a finalidade de se realizar um projeto piloto que pretendia se estender posteriormente por outras escolas municipais,
Tem-se como referência que o projeto chegou até esta escola com o apoio da professora Raimunda, então diretora
da escola e amiga de Manoel. Para além dessa relação de amizade, essa professora esteve comprometida com a luta de

17
Os conteúdos a serem trabalhados pelos professores e as professoras estão indicados em Manoel (1989, p. 97-101), como sistematização do trabalho
desenvolvido pelo Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, nos anos anteriores.
18
Busquei na referida Secretaria documentação sobre o convênio, no entanto nada foi encontrado. A funcionária que me atendeu alegou se tratar de uma data
muito distante, e que não há registros em função da troca de gestão, e com isso não havia um cuidado em se registrar todos os processos anteriores que passam
pelo órgão.
19
O processo de implementação teve como interlocutores Raimunda e Manoel. Ver Lima, 2004.

716
combate ao racismo, pois também fez parte dos eventos que estabeleceram o MN de Salvador, fato que reforçou a escolha
dessa escola.
Outro item a se considerar para tal escolha foi o histórico do bairro onde se localizava a escola. Uma área em que
onde se concentra hoje uma grande parcela da população negra da capital, em função da existência de um antigo quilombo.
Identificado o espaço escolar da rede municipal a ser implantada a PI, o primeiro passo foi a apresentação do
projeto a ser desenvolvido aos seus educadores, momento que se contou com a presença de representantes do poder público
municipal que referendaram o desenvolvimento dessa proposta.
Apresentado o projeto, o processo de implementação se iniciou com a preocupação em subsidiar os educadores
com os pressupostos teórico-metodológicos que constituíram a PI, a partir de cursos e seminários que, entre outras questões,
buscavam sensibilizar os educadores sobre o tema das relações raciais.
Essa formação inicial estava alicerçada pelas verificações empíricas e existenciais dos formuladores da PI, a partir
da trajetória do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, que estava sistematizada no livro Alternativas para combater o racismo..., de
1989, utilizado como suporte para esses debates com os professores e as professoras da escola municipal.
Após se trazer o repertório de conceitos e idéias defendidas pela PI, a preocupação era que tais conteúdos
contribuíssem na prática pedagógica, transformando-se em procedimentos didáticos a partir de cada disciplina.
Esse processo envolvia se definir alguns temas sobre o tema das relações raciais, as disciplinas desenvolviam os
trabalhos com seus alunos em sala de aula, buscando trazer para o cotidiano da escola esses temas.
Ao mesmo tempo, tinha-se uma percepção de que esse trabalho com a temática racial no espaço da escola acabava
se refletindo no ambiente familiar, tendo em vista haver uma ausência de um debate sobre a história e cultura negra,
pressupõe-se que com isto a família acabava reproduzindo muito dos mitos construídos socialmente que rejeitam e
marginalizam o negro.
Assim, procura-se na escola recuperar os processos sociais nos quais a população negra se educava e construía sua
identidade, numa perspectiva em alterar-se o quadro de rejeição e se construir uma auto-imagem positiva dos negros. No
entanto, para efetivação dessa discussão, os educadores/as se deparavam com falta de materiais didáticos que dessem suporte
a essa intervenção. Esse desafio foi superado em parte pelo apoio da Secretaria de Educação e pela produção desses materiais
na própria escola.
Mesmo com essas dificuldades, o projeto se desenvolveu durante o ano de 1994, contando com cerca de 40
professores dessa escola, que apresentaram seus resultados mediante uma exposição da qual participaram também os alunos e
professores.
Para Raimunda o resultado mais significativo nesse período de intervenção da PI foi a elevação da auto-estima de
jovens negros e negras da escola:
[...] eu acho que a melhor coisa que aconteceu mesmo foi os jovens, aquelas crianças, adolescentes daquela época
começaram, porque depois eles estão se amando de montão, a maioria não tá fritando seu cabelo, a maioria tem trançado, se
achado realmente bela e vendo que a coisa mais importante é ter saúde, ter sabedoria, é saber como conviver em sociedade, é
ter aprendizado de tudo bom que houver na vida, de se dar o valor a si para ser respeitado por si porque quando se respeita a
si todo, mundo respeita, então o negro daqui agora, isso melhorou a cabeça deles (Raimunda).
Apesar do considerável impacto da ação dentro da Escola Alexandrina dos Santos Pita, constata-se que não houve a
continuidade do processo de discussão das relações raciais a partir da PI.
Para Raimunda, isso se justifica pela falta de ampliação da proposta em nível estadual e pela opção governamental
de assumir as diretrizes advindas dos Parâmetros Curriculares Nacionais como estratégia suficiente para discutir as relações
raciais, em detrimento de uma proposta pedagógica considerada localizada como a PI.

Considerações finais
No processo de construção desta pesquisa, respeitando os limites temporais e acadêmicos, busquei dar visibilidade
a um conhecimento produzido pelo MN ao longo de sua trajetória histórica e cultural. Portanto, as considerações
apresentadas não devem ser tomadas como prontas e acabadas, tendo em vista que a dinâmica social está a todo o momento
submetida a novas análises e reformulações. Com isso, entendo que este trabalho suscitará novos questionamentos e
reflexões, que se pretende contribuir de forma relevante para a sociedade e para a história da Educação brasileira no debate
das relações raciais, assim como compreender que o processo educacional dos afro-brasileiros está imerso na luta por uma
Educação democrática e de qualidade social. Em se tratando do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (NCAB), constatei que esta
organização transitou por esta efervescência cultural e política a fim de debater a identidade negra e as relações raciais em
outros setores da sociedade, sendo que nos espaços acadêmicos qualificou a luta anti-racista em Salvador, na busca de se
diferenciar da visão que os setores hegemônicos da sociedade e da intelectualidade baiana possuíam da cultura afro-
brasileira.
Fica evidente que para os integrantes do NCAB havia a necessidade de estruturar uma organização que formulasse
uma teoria, construída pelos próprios negros, que desse resposta ao processo de exclusão a que estava submetida a população
negra, por isso a busca da parceria com o Instituto Cultural Brasil-Alemanha, que colaborou com a articulação do seu espaço
de atuação e no fortalecimento da discussão. Considero que esta parceria com ICBA foi estratégica, por esta instituição
reconhecer que a atuação do NCAB se situava dentro de uma luta mais geral, que não se restringia apenas aos negros, isso

717
pode ter possibilitado a utilização da etnia como uma categoria mais ampla para o debate dos conflitos étnico-raciais na
sociedade brasileira.
Alicerçado por este apoio, o NCAB desenvolve entre os anos 70 e 80 do século XX uma série de debates,
seminários e pesquisas que desembocaram na construção de uma proposta pedagógica intitulada Pedagogia Interétnica (PI).
Demonstrei ao longo do trabalho, que esta proposta pedagógica se caracterizou como uma das primeiras iniciativas
do MN como estratégia de intervenção no processo educacional junto aos sistemas de ensino para o debate das relações
raciais. Ficou evidente, na percepção de seus formuladores, de como a sociedade baiana e brasileira estabelecia mecanismos
que dificultavam o acesso da população negra, a partir da análise de que o racismo e a discriminação não estariam apenas
ligados ao eixo econômico, antecedendo um debate preconizado pelo MN brasileiro a partir dos anos 80 sobre raça e classe.
Neste sentido, a necessidade de propor uma pedagogia articulando o conhecimento científico, a partir dos aportes
oferecidos pelas Ciências Sociais, com a leitura do processo social, cultural e político onde os negros estão inseridos, com
isso desenvolver uma intervenção nos espaços educacionais a partir de uma compreensão empreendida pelos próprios negros
acerca da sua condição racial diante de uma sociedade excludente.
A PI se constituiu com uma preocupação em construir uma base teórica e metodológica, que se propunha a explicar
os pressupostos ideológicos de construção do racismo, ao mesmo tempo, que discutia ações educativas e investigativas que
pudessem contribuir na desconstrução da situação de opressão dos negros, de uma forma crítica que resgatasse a história e a
cultura dos afro-brasileiros, como estratégias de alteração do processo de alienação e exclusão que o negro vivenciava na
estrutura educacional brasileira. E se utilizava da etnia como uma categoria que servia de diálogo para o debate das relações
raciais em Salvador, buscando não se isolar dos espaços acadêmicos que mantinham a crença no mito de uma “democracia
racial”, assim como pudesse servir de parâmetros para outros povos oprimidos.
Mostrei que em suas primeiras discussões esta proposta se apresentava a sociedade baiana como uma educação
interétnica, no sentido de oferecer uma matéria para conscientização da sociedade baiana contra a discriminação,
principalmente de negros e índios. No entanto, para eles propor uma pedagogia significava operacionalização, isto é,
entendiam a pedagogia como um processo capaz de construir meios, processos e técnicas para poder efetivar no campo
educacional as mudanças necessárias sobre a história e a cultura dos afro-brasileiros, e assim buscar a escola como um espaço
de reapropriação das culturas oprimidas. A pedagogia se torna um instrumento estratégico na formulação de novas práticas
educativas para o combate ao racismo.
Constatei que a PI surgiu como um projeto político de afirmação de uma dada entidade negra no contexto da luta
racial em Salvador, e no âmbito educacional, que tinha por referência como único padrão a cultura de origem européia,
reforçar a mudança de atitudes e posturas discriminatórias, principalmente contra negros e índios e demais povos oprimidos.
No entanto, a pesquisa mostrou que embora a PI tenha contribuído em debater e sedimentar os pressupostos
teóricos necessários para sua consolidação, no estudo da história e cultura afro-brasileira, nos espaços educacionais, ela não
teve a devida importância e tornou-se frágil e limitada no campo acadêmico, por não conseguir uma ampla mobilização de
outros setores populares, em face da repressão e da crença da falta de conflitos raciais existentes no Brasil.
A fim de superar os limites de sua atuação, nos anos 90 (séc. XX), a PI buscou os espaços educacionais para
disseminar sua proposta de cunho educacional, numa conjuntura que possibilitava exercitar a execução de projetos com
recorte racial. Com isso a PI foi disseminada na Escola Criativa Olodum (ECO) e na escola municipal Alexandrina Nunes
Pita.
Na ECO, espaço educacional gerido pelo Grupo Cultural Olodum, que a partir de um projeto mais amplo de debate
das relações raciais pretendeu transformar este espaço, antes de caráter informal, em uma escola de ensino regular, a partir de
convênios junto aos órgãos oficiais de ensino. Percebo, que este desafio foi enfrentado pelo Grupo Cultural Olodum, ao
aproximar os pressupostos metodológicos da PI com sua experiência de organização cultural no universo de vivência da
cultura negra.
Esta articulação entre a PI e o Grupo Cultural Olodum contribuiu para colocar em evidencia, dentro da ECO, a
preocupação em valorizar a cultura como elemento dinamizador dos povos oprimidos ao possibilitar a seus professores e
alunos conhecimentos sobre os estudos de línguas como o ioruba e o tupi–guarani, e no exercício de outras práticas culturais
na perspectiva de avançar na sua prática pedagógica e curricular.
No entanto, a Escola Criativa Olodum não teve possibilidades de se manter como escola oficial de caráter
diferenciado, encerrado suas atividades formais quatro anos depois, em face da dificuldade de oficialização por parte do
Estado.
Na escola municipal Alexandrina Nunes Pita, tinha como perspectiva se tornar um projeto mais amplo na rede
municipal de Salvador. A experiência de trabalho dentro desta escola conseguiu se impor para além de seus muros, pois ao
trabalhar a temática racial com seus alunos estabeleceu reflexos também no ambiente familiar. O debate contribuiu em
recuperar a família como um dos espaços de construção da identidade negra, e possibilitou a compreensão para os pais o
entendimento dos processos sociais que marginalizam a população negra.
Apesar de uma relativa repercussão, a experiência nesta escola não teve solução de continuidade em função dos
limites impostos pela ação estatal e de uma legislação federal que impunha um outro projeto educacional, que avalio não
valorizou experiências anteriores que discutiram a história e a cultura afro-brasileira.
Considero que a realização dessa proposta educacional não alcançou pleno êxito, no que se refere a continuidade de
sua implantação, inclusive junto a outras organizações do MN baiano, principalmente pela estratégia acadêmica empreendida

718
pelo NCAB como afirmadora de sua identidade organizativa, assim como, pelo momento histórico, a ausência de uma
mobilização de outros setores sociais e populares que permitisse a PI tornar-se uma política pública para o conjunto do
sistema educacional em Salvador, situando-se como uma iniciativa localizada. Entretanto, considero que a criação e a
existência desta proposta e o seu processo de aplicação nos espaços educacionais impulsionaram a abertura na busca de uma
educação que incorporasse os valores culturais e históricos de origem africana no Brasil. Ao mesmo tempo, possibilitou dar
aporte para o MN desenvolver na sua trajetória outras propostas educativas, pois a PI se mostrou como uma proposta ousada
e até avançada em seu tempo, tendo em vista seu caráter de integralidade do ser humano a partir das várias áreas do
conhecimento.
Para a história da Educação esta proposta pedagógica, apesar dos seus quase 30 anos de existência, trouxe
contribuições no debate sobre a democratização da educação, ao colocar em foco o debate das relações étnico-raciais no país,
que necessita ser melhor conhecida, como um instrumento de socialização do conhecimento e promoção da cidadania aos
educadores que sempre tiveram seus olhares para educação popular.
Percebo que a PI traz como contribuição para os sistemas de ensino vigente o debate da importância da
interdisciplinaridade para o entendimento da educação como parte dos processos sociais, políticos e culturais onde está
inserida, como também propõe elementos para a elaboração de um currículo baseado nos valores dos grupos oprimidos, não
apenas enquanto denúncia, já que buscou mudanças de posturas a partir do campo educacional, e assim como superar a
crença de que a questão racial se limita apenas ao Movimento Negro e aos estudiosos do tema.
Com isso, posso dizer que segundo os depoimentos dos entrevistados o debate desta proposta educacional respalda
as referências conceituais que deram suporte a este trabalho, como a mobilização racial quando articula a organização do MN
em Salvador, ação cultural quando indica rediscutir a cultura negra para além de uma manifestação folclórica, a ação política
no debate da situação socioeconômica do negro, e da identidade e consciência negra quando propõem uma a teoria proposta
pelos próprios negros.
Considero que embora o diálogo entre o MN e o Estado seja pautado por um apoio limitado dos governos às
propostas de intervenção que debatem a realidade racial, experiências como a que vimos influenciaram para algumas
mudanças no âmbito das legislações, como foi o caso da LDB, que nos Parâmetros Curriculares Nacionais, apesar de seus
limites e críticas, traz a preocupação com a diversidade étnico-racial que, de certa forma interage com a proposta da PI, e
mais recentemente, a lei n 10.639, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficial e particular.
Percebo que a PI pode ser um dos importantes diálogos com esta legislação, pois analisa, critica e propõe ações
educativas para o enfrentamento do racismo e as discriminações, a partir do estudo e da investigação dos processos que
levam a desvalorização da cultura de matriz africana, bem como indica a utilização de métodos e procedimentos que
contribuam na revisão crítica da historiografia do negro brasileiro, indicando o respeito e a mudança de posturas e atitudes,
como demonstra a experiência nos espaços educativos. A maior dificuldade para este diálogo se refere ao desconhecimento
da complexidade desta proposta pedagógica, lacuna que este trabalho buscou superar.
Devido aos limites temporais e os objetivos propostos para esta pesquisa, indico a necessidade de novas pesquisas,
que possam aprofundar os processos de implantação desta proposta pedagógica dentro dos espaços escolares e sua
repercussão junto aos outros professores e alunos que participaram deste processo, no sentido de compreender suas
implicações na vida e na prática pedagógica no debate das relações raciais.
Entendo com este trabalho que dar visibilidade a essa discussão para o MN hoje está em reafirmar o caráter
propositivo deste movimento social no Brasil e me permitir desmistificar a idéia de submissão, de incapacidade, de
passividade e finalmente de impotência desse segmento diante da realidade social.
O conhecimento mais detalhado de uma proposta educacional inserida na história pode contribuir na divulgação e
no respeito dos processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus
descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas, ampliando o foco dos currículos escolares
para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Enfim a trajetória de construção deste trabalho me levou a inquietações, questionamentos e reflexões sobre as
relações raciais e o espaço educacional. Assim como contribuiu para o conhecimento crítico dos caminhos trilhados por
outras propostas de intervenção do MN hoje nos sistemas de ensino. Mas, acima de tudo, deu-me condições de sistematizar
conhecimentos, análises opiniões e posicionamento em relação a trajetória do Movimento Negro e seus embates na busca da
democratização do ensino e em acreditar que a todo momento é preciso um esforço de transformação para que a sociedade e
a Educação brasileira se efetivem em espaços de luta contra o racismo e toda forma de discriminação.

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A Ascensão da Diversidade nas Políticas Educacionais Contemporâneas

Tatiane Rodrigues
Universidade Federal de São Carlos
tcrufscar@yahoo.com.br

Anete Abramowicz
Universidade Federal de São Carlos
anetabra@power.ufscar.br

Resumo: Este trabalho compõe uma das etapas de pesquisa do projeto de doutoramento que tem por objetivo o estudo e análise do processo
de ascensão da noção de diversidade a uma categoria analítica presente incisivamente nas políticas públicas de educação no Brasil. Este
estudo inicial foi realizado a partir da análise nos principais periódicos de educação, no período 1990-2007, das diferentes perspectivas
teóricas presentes na educação que tem a categoria de diversidade como foco de discussão, como por exemplo, as distintas vertentes do
multiculturalismo e interculturalismo.

Contextualizando a Pesquisa
Este estudo compõe a pesquisa em desenvolvimento intitulada, “A ascensão da diversidade nas políticas
educacionais contemporâneas”, que visa, a partir de uma abordagem genealógica, analisar as relações entre as teorias, as
práticas sociais e discursivas e o contexto sócio-político que possibilitaram a ascensão da noção de diversidade como uma
categoria analítica importante no Brasil contemporâneo e que vem sendo incorporada às políticas de Estado. Neste trabalho
que pretendemos desenvolver a partir de um mapeamento inicial compreender os diferentes usos, concepções e significados
presentes, visibilizados e atribuídos a essa categoria nas políticas públicas de educação e nas pesquisas.
Ainda que a expressão diversidade possa como de resto qualquer outra, adquirir diferentes significados em
diferentes contextos sociais, políticos ou culturais, é para a sua importância e a maneira pela qual tem sido utilizada no campo
da educação que vamos nos voltar aqui.
O elemento desencadeante desta proposta é a constatação de que nos últimos vinte anos, observamos a centralidade
e uma crescente utilização da categoria diversidade e de temas a ela relacionadas no debate internacional e, no Brasil, nas
discussões sobre o desenvolvimento e formulação de políticas públicas, especialmente, de educação. Esta expressão passou a
ser cada vez mais freqüente nos títulos de programas e ações do governo federal, bem como de suas secretarias e publicações,
além de uma utilização como propaganda na mídia.

720
Se por um lado, a utilização deste conceito pode revelar o surgimento de uma inflexão do pensamento social1, por
outro lado, a imprecisão ou uso irrestrito do mesmo pode restringir-se aos simples elogio às diferenças, às pluralidades e
diversidades, tornando-se uma armadilha conceitual e uma estratégia política de esvaziamento e/ou estratégia de
apaziguamento das diferenças. Desta forma, o cujo componente diruptivo presente na diferença é abrandado de maneira que a
diferença não faça diferença.
A idéia de diversidade tornou-se, frente à crescente afirmação das identidades, fenômeno significativo
especialmente em sociedades geradas pelo colonialismo europeu, em que grupos e indivíduos reafirmam seus particularismos
locais, suas identidades étnicas, raciais culturais ou religiosas chamando a atenção dos organismos internacionais a atributos
da globalização que não são apenas econômicos e tecnológicos, mostrando a inadequação das análises estritamente
socioeconômicas.
Tal fato tem levado à crescente intervenção de organismos internacionais em questões relativas à diversidade.
Segundo Moisés (2002), o reconhecimento da diversidade cultural tem sido objeto de informes e resoluções de organismos
como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) que, já em 1995, no texto Nossa
Diversidade Criadora propôs uma nova relação do tema com os programas de desenvolvimento; em 1998, em seu Plano de
Ação, incluiu a diversidade cultural como um condicionante do desenvolvimento, e, em 2001, em sua Declaração Universal
sobre o tema considerou que o respeito à diversidade cultural não é só um direito, mas uma condição indispensável das
políticas desenhadas para promover o “diálogo entre os povos” (Moisés, 2002, p. 42-6).
Dessa forma, uma leitura possível do encontro, cada vez mais freqüente, de títulos como: O Desafio da Diversidade
(1997), Construindo um futuro comum: educando para a integração na diversidade (2002), Nossa Diversidade Criadora
(1995), Pedagogia da Diversidade (2005), é a de que há uma tentativa teórica e política de resposta ao agravamento dos
conflitos entre grupos sociais de diferentes culturas, etnias e raças2 e de acolhida às ações, demandas e discursos dos
movimentos sociais – negro, feminista, indígena e outros – que reivindicam, há algumas décadas o reconhecimento social e
político dos particularismos étnico-raciais e culturais no interior do quadro nacional. Estes movimentos chamam a atenção
para a necessidade de se produzir imagens e significados próprios, combatendo os preconceitos e estereótipos que foram
responsáveis pela inferiorização desses grupos.
A exigência por reconhecimento clama por uma revisão teórica, mostrando-nos a centralidade de algumas
categorias como etnia, raça, gênero, sexualidade, cultura e como essas categorias tencionam a retórica da consagrada
democracia racial e tradição universalista obrigando países, como por exemplo, o Brasil, a rever seu modelo singular de
pluralismo cultural. Ao introduzir o uso de particularidades grupais e ao dar ênfase positiva à construção de identidades
étnico-raciais nega-se a visão otimista e homogênea do processo de integração e consolidação da idéia de “povo brasileiro”,
viabilizado pelo silenciamento e assimilação das diferenças.
A imagem de integração harmoniosa é substituída pelas exigências de reconhecimento das diferenças étnico-raciais
realmente existentes no país contrastando-se radicalmente com o apagamento identitário contido na afirmação de uma
identidade nacional mestiça retratada, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre (1933).
Podemos notar, no Brasil, especialmente a partir da década de 1970, um processo de reorganização dos
movimentos sociais, principalmente do movimento negro, feminista e indígena, que após vinte e um anos de ditadura militar
se reorganizaram para participar e influir no processo de discussão e elaboração da Constituição Federal de 1988.
As reivindicações por reconhecimento político e respeito aos particularismos étnico-raciais e culturais apresentadas
na Assembléia Nacional Constituinte e em ocasiões posteriores trazem duas implicações, teórica e política, que no escopo
deste trabalho são analisadas em separado apenas para fins analíticos.
A primeira implicação corresponde à preocupação de distintas perspectivas teóricas que se ocupam dessa discussão,
de mudanças da matriz de políticas públicas, em como compatibilizar nas políticas públicas as exigências de respeito à
diferença reivindicadas por grupos sociais sem restringir-se ao relativismo cultural.
Ao mesmo tempo, essas distintas perspectivas teóricas atribuem diferentes significados e possibilidades à idéia de
diversidade.
A segunda implicação, concomitante a primeira e nem por isso menos contraditória é a irrupção dessa temática na
arena política. Ainda que incipiente vemos surgir a partir da década de 1990 um número expressivo de programas e
iniciativas do Governo Federal que reafirmam o caráter pluricultural da sociedade brasileira e a necessidade de respeito à
diversidade. Levantamentos iniciais indicam que essas ações concentram-se nos ministérios da Cultura, Saúde, mas,
sobretudo na Educação, o que reafirma a centralidade da educação, enquanto processo, e da escola, como instituição social no
enquadramento e/ou mediação dos dilemas colocados à sociedade brasileira nesse início de século. Campbell (2002) assevera
esta centralidade ao afirmar que “para que a educação não corra o risco de condenar a si própria à irrelevância, ela terá de
contribuir para a resolução daquele que parece ser o mais premente dos desafios enfrentados pela humanidade – alcançar a
unidade e, simultaneamente, reter, respeitar, valorizar e incentivar a diversidade” (CAMPBELL, 2002, p. 21).

1
Inflexão do pensamento social deve-se ao fato de que esse movimento contrapõe-se à orientação de vários cientistas sociais que pautavam e ainda mantém a
idéia de que de forma concomitante à emergência da sociedade industrial moderna a projeção e o significado de raça e etnia tenderiam a desaparecer em
sociedades heterogêneas. A etnicidade e as diferenças raciais seriam anacronismos restritos às sociedades pré-modernas ou tradicionais (Inglis, 1996, p. 10).
2
O conceito é utilizado por cientistas sociais e pelo movimento negro como uma categoria de interpretação, a partir de uma reapropriação social, política e
cultural construída pelo movimento negro que prescinde de qualquer sentido biológico e científico do termo.

721
Da Constituição Federal de 1988 ao atual governo, mas, sobretudo a partir de 2003, nos deparamos com diferentes
utilizações e espaços destinados à diversidade. São exemplos, na educação: o lançamento dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, que elegeram a “pluralidade cultural” como um de seus temas transversais, o Referencial e os Parâmetros
Curriculares Nacional para as Escolas Indígenas, assim como os Programas Diversidade na Universidade, Educação para a
diversidade e cidadania e Educação Inclusiva: direito à diversidade da Secretaria de Educação Especial.
Em 2004, no âmbito do Ministério da Educação (MEC), criou-se a Secretaria de Educação, Alfabetização e
Diversidade (SECAD), apresentada como fruto da reestruturação do MEC, tendo como “prioridade e objetivo a valorização
da riqueza de nossa diversidade étnica e cultural, reunindo, pela primeira vez, os programas de alfabetização e educação de
jovens e adultos, educação indígena, educação no campo, educação ambiental, diversidade e inclusão educacional” (2004).
De forma um tanto quanto paradoxal, a educação, que teve como um dos principais pilares de estruturação do
sistema educacional uma orientação eugênica3 e a prática homogeneizadora (DÁVILA, 2003)4, constituiu-se em um dos
principais elementos de mobilização dos movimentos sociais que denunciam a escola como instituição que discrimina, que
despreza as singularidades e as pluralidades existentes entre os diferentes sujeitos presentes no cotidiano escolar, ao longo
das décadas de 1980 e 1990, incorporou o discurso da diversidade e passou a ser uma das principais esferas5 desse debate. A
educação é considerada uma das principais políticas públicas, senão a basilar, à formulação de um modelo de
desenvolvimento que contemple a diversidade.
Sendo assim, é necessário analisarmos as condições de emergência teóricas e políticas que permitiram a ascensão
da categoria diversidade, bem como os significados e as implicações sociais de sua utilização na orientação das políticas
públicas de educação.

Diversidade e a (re) configuração do Nacional


Segundo Ortiz (2007), o termo diversidade se aplica de forma indiferenciada a fenômenos de naturezas diversas.
Primeiro a tipos de formações sociais radicalmente distintas – grupos indígenas, etnias, civilizações passadas e nações. “E
enquanto diferenciação intrínseca à própria modernidade-mundo: indivíduo, movimento feminista, homossexual, crise de
identidades, etc” (Ortiz, 2007, p. 79). É importante bem diferenciar e analisar essas perspectivas. Elas são geralmente
confundidas e utilizadas simultaneamente nos discursos, enquanto são bem diferentes tanto do ponto de vista semântico e
analítico, quanto nos seus efeitos políticos.
O apelo à diversidade tem se tornado quase um lugar comum, o que nos leva a sermos cautelosos com o seu uso
irrestrito. Uma das hipóteses dessa expansão aparentemente descomprometida da idéia de diversidade, admitida e repetida
inclusive pela mídia, e a de que ela revela a existência de um debate mais amplo que se refere à discussão de identidade
nacional, ou seja, à alteração de uma visão homogeneizadora para uma visão heterogênea e/ou pluricultural da sociedade
brasileira. Para Ortiz (2007), essa visão dicotômica está presente, sobretudo nos escritos dos executivos transnacionais e de
certos economistas. “Para essa perspectiva, o passado teria sido unívoco, em contrapartida, o presente se caracteriza pela
disseminação das diferenças e da multiplicidade identitária” (ORTIZ, 2007, p. 14).
Sendo assim, analisar os usos da idéia de diversidade é uma chave importante para compreender em que termos a
(re)configuração do nacional está sendo pensada e qual é o papel e o projeto para a educação neste processo.
Ortiz (2007) adverte para a presença paradoxal do apelo ao universal por trás da diversidade. Para o autor um
exemplo dessa presença paradoxal é a afirmação utilizada em diversos documentos de organismos nacionais e internacionais
de que a “diversidade dos povos deve ser preservada”, afirmação que não tem nada de natural e carrega uma carga de sentido
completamente nova. “Dizer que as culturas são um “patrimônio da humanidade” significa considerar a diversidade enquanto
valor universal” (ORTIZ, 2007, p. 15).
Para Ortiz (2007) há nessa operação algo de ideológico, por isso é importante compreender os momentos em que o
discurso sobre a diversidade oculta questões como a desigualdade, sobretudo quando nos movemos no interior de um
universo no qual a assimetria entre países, classes sociais e etnias é insofismável. É insatisfatória a imagem de que o mundo
seria multicultural, formado por um conjunto de vozes. “Ele dificilmente poderia ser visto como um caleidoscópio, metáfora
frequentemente utilizada por vários autores, instrumento que combina os fragmentos coloridos de maneira arbitrária em
função do deslocamento do olho do observador” (ORTIZ, 2007, p. 14).

3
O campo da eugenia referia-se à ciência aplicada que busca melhorar a herança genética da raça humana. Antes de sua apropriação pelos nazistas, nos anos
1930, a idéia de eugenia desfrutou de amplo apoio, em círculos tanto liberais quanto conservadores. Isso refletia uma complexa mistura de influências e
preocupações. Em parte, era o reflexo do crescimento do pensamento racionalista e do interesse cada vez maior pelo planejamento social. Refletia também a
consciência de que certas formas de incapacidade social tinham base hereditária, e finalmente era um reflexo da influência das teorias raciais, que consideravam
os negros inferiores (Outhwaite; Bottomore, 1996, p. 289).
4
Dávila (2003) ao analisar as reformas educacionais no Rio de Janeiro entre 1917-1945 mostra como a formação do sistema educacional brasileiro consolidou
um projeto educacional tributário do eugenismo no qual as contribuições das culturas indígenas e negras, por serem inferiores, deveriam ser apagadas.
5
Um dos indicadores da atualidade do tema da diferença e da identidade cultural na educação é a sua presença nos trabalhos apresentados na 25ª Reunião da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação. Dos 491 trabalhos inscritos para esta reunião, foram identificados setenta trabalhos que discutem questões
relacionadas ao tema da diversidade e diferença na educação, no campo das relações étnicas, geracionais, de gênero, assim como das diferenças físicas e mentais
(Fleuri; Bittencourt; Schucman, 2002, p. 1).

722
A falência em torno da democracia racial criou a possibilidade de (re) pensarmos o pacto social em outros termos,
daí a ascensão da idéia de diversidade que tem em seu cerne a disputa entre o focal e o universal e a tentativa de
compatibilização de ambos.
Sérgio Costa (2001) no artigo “A mestiçagem e seus contrários: etnicidade e nacionalidade no Brasil
Contemporâneo”, afirma que o modelo de nacionalidade pautado numa brasilidade mestiça, culturalmente assimilacionista e
politicamente integradora, perde crescentemente, ao longo da democratização, sua força legitimadora. Muitas das
manifestações culturais recentes assim como alguns dos atores sociais importantes no Brasil contemporâneo buscam a
identificação étnica que os distinga da nação que assimilou sem seu bojo as diferenças culturais. Tratam, dessa forma, de
exprimir o descontentamento com as desigualdades estruturais associadas ao processo de construção ideológica da nação
mestiça.
O autor reconstrói tais processos de etnização e discute as conseqüências destes para a construção democrática. A
transformação da mestiçagem em ideologia do Estado fundamentou a construção nacional a partir dos anos 1930. Trata-se de
uma visão de mundo que reinventa o país, na medida em que revela a possibilidade de convivência dos diferentes grupos
socioculturais então residentes dentro das fronteiras político-geográficas brasileiras. Deve-se lembrar que até as primeiras
décadas do século XX uma questão polarizava o debate político brasileiro, a saber, até que ponto seria possível constituir
uma nação unitária e progressista nos trópicos, partindo-se de grupos populacionais tão heterogêneos quanto ex-escravos e
seus descendentes, os diversos povos indígenas, imigrantes de diferentes origens e mestiços de todos os tons.
A ideologia da mestiçagem, segundo Costa ofereceu uma resposta clara aos problemas levantados no âmbito de tal
discussão, a dissolve. Passa-se a seguir a apresentação de traços constitutivos fundamentais da ideologia da mestiçagem e daí
à apresentação de desenvolvimentos recentes que trazem à tona os limites de tal estratégia de legitimação (COSTA, 2001, p.
145).
Gilberto Freyre reconstrói o processo de constituição do Brasil desde o período colonial e mostra que a nação
brasileira, a despeito da escravidão e da dizimação dos povos indígenas, representa o encontro efetivo de três grupos
humanos, os quais se encontram numa relação de complementaridade entre si. Assim ter-se ia constituído uma brasileiridade
– unidade da diversidade – no âmbito da qual cada um dos três grupos originais teria deixado uma contribuição relevante para
a constituição do caráter nacional (COSTA, 2001, p. 146).
O argumento do autor é que a mestiçagem, como ideologia de Estado, deixa de existir no Brasil contemporâneo,
verificando-se que elementos essenciais desse constructo político são crescentemente colocados em questão, trata-se aqui da
busca de novos canais de expressão de identidades culturais e da redescoberta de raízes étnicas, ofuscadas ou neutralizadas
no período de vigência da ideologia da mestiçagem (COSTA, 2001, p. 149).
Segundo Costa, é possível observar transformações no espaço público brasileiro nas últimas três décadas que
evidenciam um processo de pluralização cultural, destancando-se entre esses, etnicização de muitas identidades políticas,
vertiginoso crescimento do associativismo étnico, um novo direito indígena que pressupõe não mais uma paulatina
assimilação de grupos indígenas, mas a permanente preservação de suas formas de vida. São fenômenos representativos de
tais transformações: a construção de uma etnia quilombola, a reintrodução do conceito de raça no debate político e a
etnização de diferentes grupos socioculturais (COSTA, 2001, p. 149).

Educação e Diversidade
Silvério (2006) identificou três perspectivas mais recorrentes no debate público brasileiro sobre a diversidade no
tocante à educação que nos ajudam a pensar na multiplicidade de significados atribuídos a esta categoria.
No primeiro caso, segundo o autor, uma noção imprecisa de diversidade aparece associada à noção de exclusão
social que pode estar relacionada ao mundo do trabalho, à pertença étnico-racial e ao gênero. Embora haja nitidamente a
articulação de diferentes fatores sociais, o fator predominante nas análises e na matriz das políticas públicas tem como foco o
econômico, a pobreza enquanto uma dimensão fundante da desigualdade (Silvério, 2006, p.10).
A segunda abordagem identificada pelo autor é aparentemente originária no movimento ambientalista para o qual a
questão central é a sustentabilidade proporcionada pela biodiversidade, a questão de fundo é que a “destruição da diversidade
está ligada à criação de monoculturas” e, com a criação de monoculturas, a organização auto-regulada e descentralizada de
sistemas diversificados dá lugar a insumos e controle externos centralizados. Dessa forma, a sustentabilidade e a diversidade
estão ligadas ecologicamente porque a diversidade oferece a multiplicidade de interações que pode remediar desequilíbrios
ecológicos de qualquer parte do sistema (SILVÉRIO, 2006, p.11).
A terceira abordagem da diversidade é o que podemos denominar de a perspectiva que afirma o direito à diferença,
associada no Brasil ao desenvolvimento da luta anti-racista dos negros ou afrodescendentes a partir da década de 1970.
Essas perspectivas são ilustrativas e sugerem a existência de muitas outras reafirmando o conceito de diversidade
como um termo valise que se expandiu de forma heterogênea e oscilante mostrando que uma qualificação importante é
necessária no debate brasileiro de modo que precise duas posições distintas: uma para qual a introdução da idéia de
diversidade é aceitável e desejável e outra para a qual a diversidade aparece como a forma adequada de contenção da
articulação da diferença cultural no âmbito da política educacional e da escola (SILVÉRIO, 2006, p.11).
É importante destacar que atrelada à concepção de diversidade há propostas de políticas públicas que podem ser
pensadas desde uma perspectiva universalista na qual a diversidade cultural é discursivamente introduzida, mas que presta

723
pouca ou nenhuma atenção às diferenças étnicas e culturais presentes nos distintos grupos que são alvo daquelas políticas, ou
de uma perspectiva que compatibilize as proposições generalizantes de conteúdo universalista com a exigência de
reconhecimento da diferença ou ainda políticas pautadas no relativismo cultural, diferencialistas.
Tal fato tem mostrado a urgência de uma reflexão teórica sobre o que significa as várias perspectivas, cada vez
mais recorrentes nas produções acadêmicas e teorias educacionais, de uma educação: que “leve em conta a diversidade”, “na
diversidade”, “a partir da diversidade” e “para a diversidade numa perspectiva da diferença”.
É possível identificar algumas perspectivas teóricas presentes na produção bibliográfica sobre esta temática na
educação, sendo essencial uma revisão e mapeamento das diferentes perspectivas, com as quais pretendemos trabalhar,
acerca dos termos tais como: muli, pluri, inter e transcultural, buscando diferenciar como cada uma delas propõe possíveis
modelos de compreensão, administração e resposta à diversidade.
De forma geral o a aparecimento destes termos está relacionado ao ressurgimento do movimento negro e outros
movimentos sociais a partir da década de 1970 e com a consolidação de uma produção sobre a intersecção entre raça e
educação. Este acervo reúne as denúncias do movimento negro, propostas, experiências desenvolvidas pelo mesmo, e de
forma complementar, a realização de pesquisas que corroboram as denúncias do movimento negro, ao mostrarem a
disparidade entre negros e brancos nos indicadores educacionais.
Em seu conjunto, essa produção traz não somente reivindicações, mas problematizações teóricas e ênfases
específicas que denunciam a escola como instituição que discrimina principalmente os alunos negros e perpetua o racismo,
veiculando valores preconceituosos nos livros didáticos e na abordagem errônea e omissa da história oficial por não
contemplar a luta e resistências negras (GOMES, 1997, p.19).
O fortalecimento do movimento negro e outros movimentos sociais trouxeram, sem dúvida, uma nova dimensão às
propostas educacionais que buscam a articulação com a diversidade cultural e o respeito às diferenças.
No contexto acadêmico brasileiro, esse debate ganhou forma inicialmente sob o termo multiculturalismo, tendo
sido incorporado como objeto de estudos e preocupações de um grupo restrito de pesquisadores. Embora tenha se tornado
freqüente na educação não é nela que se deve buscar a origem do movimento multicultural, como afirma Gonçalves e Silva
(2001), o movimento multicultural não tem origens na escola, ele tem raízes muito mais profundas que ultrapassam qualquer
formulação curricular, elas remontam ao século passado, e retratam muito mais a luta dos povos oprimidos do que a
preocupação de educadores pós-modernos (GONÇALVES; SILVA, 2001, p.17).
O multiculturalismo surge como um movimento de reação ao assimilacionismo, de resistência e que reivindica o
direito à diferença. Nasce no embate de grupos, no interior de sociedades cujos processos históricos foram marcados pela
presença e confronto de povos culturalmente diferentes. Esses povos, submetidos a um tipo de poder centralizado, tiveram de
viver a contingência de juntos construírem uma nação moderna (BHABHA, 1998, cap. III). Nessa linha de raciocínio,
podemos muito bem estudar comparativamente como os movimentos multiculturais se conformaram em países como
Canadá, Estados Unidos, Cuba, Argentina, Brasil, Índia e muitos outros.
Mesmo tendo se tornado um fenômeno globalizado, ele teve início em países nos quais a diversidade cultural é
vista como um problema para a construção da unidade nacional. Semprini (1997), ao descrever as raízes históricas e culturais
desse movimento remete-se à realidade dos EUA, tendo como ponto de partida o movimento pelos direitos civis que surgiu
nos anos 1960 com o objetivo prioritário de por fim à segregação racial nos Estados do Sul e que trouxe como ponto chave a
discussão de como as diferenças devem ser tratadas e vai paulatinamente constituindo-se em proposta pedagógica, disciplina
curricular e área pedagógica.
O multiculturalismo coloca questões fundamentais, relativas à capacidade de um sistema social integrar uma
diferença autêntica que não seja comandada por cima para se tornar digerível. Retrata a busca de uma nova articulação entre
a identidade e o político que não se reduz à rígida separação entre esfera pública e privada. O espaço público fica, conforme a
democracia clássica, protegida das invasões de identidades particulares. Os indivíduos já não se satisfazem com uma
identidade privada, a extensão do processo de individualização é acompanhada da afirmação pública das identidades
multiculturais (SEMPRINI, 1997, p. 41).
A idéia de repensar a educação em uma perspectiva multicultural nasce da reflexão de professores afro-americanos,
docentes na área dos Estudos Sociais. Influenciados, de início, pelos precursores dos Estudos Negros e pelo impacto dos
Black Studies nas escolas, esses professores têm contribuído no desenvolvimento de pesquisas e práticas pedagógicas.
Propõem novas metodologias, principalmente para o ensino de estudos étnicos, e importantes reformulações de currículos e
ambientes escolares, articulando cultura e identidade, bilingüismo e desempenho escolar, formação de professores e
diversidade cultural.
Inicialmente a educação multicultural é vista como um esforço de combate ao racismo, mas logo se transforma em
um movimento de reforma do ensino e dos ambientes escolares ao tentar resolver questões étnico-raciais, socioeconômicas,
relações de gênero, relações entre deficientes e não deficientes, socioeconômicas, ao ensino para pessoas cuja língua materna
não é a inglesa e assim por diante (GONÇALVES; SILVA, 2001, p. 43).
Banks (2002), Peter MacLaren (1999), Semprini (1999) e Stuart Hall (2003) são alguns dos autores que têm
refletido sobre distintas compreensões do que seja uma sociedade multicultural e o que possa ser o multiculturalismo
enquanto movimento social e forma de pensar a sociedade.

724
Peter McLaren (1999) discute o multiculturalismo enquanto projeto político enumerando quatro grandes
tendências: conservadora, humanista liberal, liberal de esquerda e crítica e a última tendência na qual se situa o
multiculturalismo crítico e de resistência.
Banks (2002) propõe um modelo próprio de educação multicultural para ser um referente, baseado em cinco
dimensões interligadas, sendo: integração de conteúdo, processo de construção do conhecimento, pedagogia da equidade,
redução do preconceito e uma cultura escolar e estrutura social que reforcem o empoderamento de diferentes grupos.
Hall (2003) enumera seis perspectivas do multiculturalismo conservador, liberal, pluralista, comercial, corporativo,
crítico ou revolucionário.
Semprini (1999) discute o multiculturalismo a partir de quatro modelos: político liberal clássico, liberal
multicultural, multicultural ‘maximalista’ e multiculturalismo combinado.
O interculturalismo é outro termo recorrente deste debate e que está cada vez mais presente na literatura
educacional. Segundo Azibeiro (2003), o debate sobre a educação intercultural desenvolveu-se inicialmente na Europa, logo
após a Segunda Guerra Mundial, tentando administrar o problema emergencial da inserção dos imigrantes. Uma das
primeiras formulações da concepção de educação intercultural, de fato, encontra-se ligada à Declaração sobre raça e sobre
preconceitos raciais, documento da Unesco, datado de 1978, que propõe uma educação para a paz e prevenção do racismo.
Esse documento entende a educação intercultural como condição estrutural da educação para sociedades multiculturais
(AZIBEIRO, 2003, p. 91).
Ramón Flecha propõe a seguinte distinção entre os termos: o multiculturalismo é visto como o reconhecimento de
que em um mesmo território existem diferentes culturas. Interculturalismo é uma maneira de intervenção diante dessa
realidade, que tende a colocar a ênfase na relação entre as culturas e o pluriculturalismo é outra maneira de intervenção que
dá ênfase à manutenção da identidade de cada cultura (FLEURI, 2003, p.27).
Glória Pérez Serrano (1996) pesquisadora da Universidade de Sevilla trabalha com a óptica de um processo em
etapas, do debate sobre a educação multicultural e o multiculturalismo. Isso significa afirmar que se pode pensar a evolução
desse debate para uma perspectiva do interculturalismo aplicado à educação. Segundo observação da pesquisadora, as
sociedades multiculturais devem caminhar em direção a interculturalidade entre os diversos povos e grupos, em direção e ao
estabelecimento de relações positivas de intercâmbio e enriquecimento mútuo entre as diversas culturas do mundo
(SERRANO, 1996, p.216 apud SILVA, 2003, p.47).
Paciano Estébanez (1998) propõe a compreensão da interculturalidade como um conjunto de processos devidos às
interações de duas ou mais culturas, que podem ser tanto de origem étnica quanto de caráter migratório em um mesmo espaço
geográfico, apontando para a integração e reciprocidade de tal maneira que possam enriquecer-se mutuamente, conservando
identidades próprias e ao mesmo tempo possibilitando o cruzamento dessas culturas que acabam, por sua vez estimulando
novas construções identitárias híbridas ou mestiças (ESTÉBANEZ, 1996, p.221 apud SILVA, 2003, p.49).
Segundo Candau (2002) o interculturalismo, ainda pouco trabalhado na literatura brasileira supõe a deliberada
inter-relação entre diferentes grupos culturais, rompe com uma visão essencialista das culturas e das identidades culturais.
Parte da afirmação de que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores
da construção de identidades abertas, em construção permanente. Para a autora o prefixo inter expressa o sentido de
interação, troca, reciprocidade e solidariedade entre culturas. Permite também considerar que, ao interagir com outras
culturas, uma dada cultura pode se desestabilizar, ser relativizada ou contestada em seus princípios básicos, expondo-se à
crítica, o que favorece a eliminação dos seus elementos negativos (CANDAU, 2002).
Itxaso (1998) compreende e apresenta o interculturalismo como uma saída e crítica ao multiculturalismo, já que o
mesmo poderia ser responsável pela criação de ‘guetos’ dentro de outra cultura majoritária sem interação devido ao medo da
assimilação e para evitá-la, cada um pode acabar vivendo confinado a seu mundo (ITXASO, 1998, p.311).
O interculturalismo propõe uma convivência na diversidade, crê que por detrás da diversidade cultural há alguns
valores comuns. Isto faz possível a existência de uma legislação que consagre a universalidade dos direitos e o pluralismo
cultural. Mas quais seriam esses valores comuns? Segundo Itxaso esses valores não podem ser os de uma cultura particular,
devem ser o resultado de um processo aberto ao tempo, de convivência e diálogo entre as diferentes culturas em condições de
igualdade, comuns no universal, plurais na diversidade.
A principal preocupação da interculturalidade não é absolutamente a valorização do relativismo antropológico
segundo o qual as crenças e os sistemas de valores são irredutíveis entre eles. Não é também a crítica do universalismo
abstrato que afasta o indivíduo das suas referências culturais específicas, mas, sim o consumo, aqui ou ali de valores diversos
e sempre renovados. Assim prevalece o nível individual, cada um acaba identificando-se com um conjunto particular de
elementos e traços culturais escolhidos pelo próprio indivíduo.
Scherer-Warren (1998) afirma que a interculturalidade aponta para um projeto que, no plano educacional, pretende
intervir nas mudanças induzidas pelo contato com as diversidades, de modo a promover atitudes abertas ao confronto e
conduzir os processos aculturadores a uma integração entre culturas que não ‘colonizem’ as minoritárias” (SHERER-
WARREN, 1998, p. 27). É nessa interação que se pode, segundo a autora, desenvolver um processo dialógico de integração
intercultural e democrática.
No debate sobre a polissemia dos termos, é necessário mencionar a perspectiva da transculturalidade. Segundo
Candau (2002) é interessante notar que o prefixo trans, de origem latina, significa ‘posição além de’, através. Esta perspectiva
ressalta que alguns componentes culturais atravessam, vão além das particularidades de manifestações culturais isoladas,

725
estando presentes em todas. Segundo Forquin (1993), citado por Candau o respeito às culturas não é possível a não ser que
não se esteja encerrado em nenhuma, isto é, se existe a capacidade de um pensamento verdadeiramnte transcultural
(FORQUIN, 1993 apud CANDAU, 2002, p. 76).
Segundo D’Adesky, a intercultura que assume uma certa heterogeneidade de valores, não está apta a erradicar os
preconceitos sectarismos e racismos que subjugam o indivíduo. Não leva à tomada de consciência do necessário respeito
incondicional dos grupos particulares em suas manifestações culturais, bem como da exigência da recusa a toda escala de
valores universais entre as culturas e os povos. Também não se importa com o discurso do direito à diferença dos grupos
étnicos específicos. E na medida em que não conduz o indivíduo a uma exteriorização crítica de sua própria cultura, não se
coloca como motor de uma militância anti-racista já que atua mais no plano individual (D’ADESKY, 1996, p.259-263).
Nessa perspectiva, se o intercultural não faz apologia de um novo pertencimento comunitário, porque, antes de
tudo, se preocupa em manter relações simultâneas e múltiplas com elementos e traços culturais de diversas procedências. De
fato, convém admitir que o indivíduo, quem quer que seja, não se realiza fora do mundo, porque ir em direção ao outro
implica uma certa abertura a outras tradições, mas supõe igualmente uma certa ligação a valores coletivos. Mas ao dar
proeminência ao indivíduo, o intercultural difere fundamentalmente do multiculturalismo que busca, sobretudo a valorização
da pessoa humana enquanto cidadão a partir do reconhecimento afirmativo dos valores coletivos expressos na cultura da cada
grupo e comunidade. (D’ADESKY, 1996, p. 261).
As diferentes visões sobre o debate apresentadas anteriormente reafirmam a necessidade de analisar as condições
teóricas, as práticas e políticas que possibilitaram a ascensão da noção de diversidade nas políticas públicas de educação. Ao
focalizar este processo, enfatizar-se-á as diferentes apropriações desta categoria nas políticas públicas do governo federal
com foco na gestão do Governo Lula, que adotou a noção de diversidade como slogan de suas políticas, especialmente de
educação. Por meio de uma análise teórica e documental inspirada nos princípios da genealogia, espera-se responder quais
foram as condições de ascensão da noção de diversidade e o que as utilizações desta noção nas políticas públicas de educação
nos informam sobre a suposta passagem de uma visão homogênea da sociedade brasileira para uma visão de sociedade
heterogênea e/ou pluricultural?

Panorama Geral
Nesta primeira etapa da pesquisa nos propomos a efetuar uma revisão da produção brasileira que foi realizada a
partir do levantamento e análise das publicações nos principais periódicos6 de ciências humanas, priorizando as áreas de
educação e sociologia.
Os trabalhos foram selecionados por meio da análise dos resumos, títulos e palavras-chave, ao todo foram
encontrados 140 artigos que de forma direta ou indireta abordam a temática da diversidade.
É importante salientar que a palavra diversidade mesmo quando inserida nos artigos como palavra-chave é na maior
parte do material analisado associada às seguintes temáticas: etnia, raça, cultura, multiculturalismo, interculturalismo,
transculturalismo, gênero e orientação sexual.
Observamos que a freqüência de trabalhos sobre esta temática é maior a partir de 1997 e se mantém constante até
2007.
Num exercício inicial tentamos identificar veios teóricos que vêm secundando essa produção a sua classificação
temático-conceitual e, ainda, a sua articulação com as principais questões da educação.
Para esta primeira análise priorizamos a apresentação de duas linhas: diversidade e cultura e diversidade e
diferença.

Diversidade e Cultura
A discussão sobre diversidade no âmbito da cultura é umas das principais linhas dos debates em torno da idéia de
diversidade. Mais de 30 artigos analisados podem ser classificados nesta linha e compreendem os debates em torno do
multiculturalismo, principalmente o denominado multiculturalismo crítico, que tem Peter McLaren e Stuart Hall como
principais influências teóricas.
Nessa perspectiva podemos localizar os trabalhos de Canen e Xavier (2005), Moreira (2002), Candau E Koff
(2006) Canen e Oliveira (2002), Moreira 2001, Ana Canen e Ângela Santos (2006), Fleuri 1999, Canen 2000, Candau (2006),
Fernandes 2005, Oliveira; Canen e Franco (2000), Fleuri (2003), Canen e Santos (2006), Candau (2003),
O multiculturalismo é definido como um campo teórico, prático e político, voltado à valorização da diversidade
cultural e ao desafio aos preconceitos (CANEN; XAVIER, 2005, p. 334).

6
Revista Estudos Feministas, Revista Sociologias, Revista USP, São Paulo em Perspectiva, Tempo Social, Revista Brasileira de Educação, Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos, Revista da Faculdade de Educação USP, Revista Dados, Revista de Antropologia, Cadernos CEDES, Currículo sem Fronteiras, Educação
e Pesquisa, Educação e Sociedade, Educar em Revista, Ensaio: avaliação e políticas públicas de educação, Estudos Afro-Asiáticos Estudos Avançados, Revista
Brasileira de Ciências Sociais.

726
O interculturalismo é compreendido nessa linha como a construção de um projeto educativo intencional, numa
realidade multicultural, que tem como objetivo promover a relação entre pessoas de culturas diferentes (FLEURI, 1999, p.
279).
Segundo Canen (2001), o interculturalismo crítico, a partir do paradigma da teoria crítica, questiona as relações
desiguais de poder que legitimam certas culturas em detrimento de outras. Nesse sentido, parte da relevância de se
promoverem práticas pedagógico-curriculares que problematizam a construção das diferenças e que desafiem preconceitos
relacionados àqueles considerados diferentes (CANEN, 2001, p. 137). Para a autora esta perspectiva corresponde à busca de
estratégias que desafiem preconceitos e legitimem os discursos e as vozes daqueles cujos padrões culturais não correspondem
aos dominantes (CANEN, 2001, p. 212). Nesse sentido, reconhecer a diversidade de universos culturais de alunos no âmbito
de práticas docentes implica não só a conscientização acerca do peso dessas práticas no sucesso ou no fracasso destes alunos,
mas também na importância em se trabalhar no sentido de mobilizar expectativas positivas que promovam a aprendizagem de
todos, independentemente de raça, classe social, sexo ou padrões culturais (CANEN, 2001, p. 222).
Formação de professores, currículo e didática são as três principais esferas de preocupação dos teóricos desta linha
de diversidade e cultura.

Diversidade e Diferença
A relação entre diversidade e diferença é problematizada por um grupo de autores, Veiga-Neto e Lopes (2007),
Veiga-Neto 2002, Silvio Galo e Souza (2002), Silva (2002), Veiga-Neto, Louro (2001), Paraíso (2004), Macedo (2006), que
de forma geral problematizam a redução do debate sobre a diferença, à questão da identidade (TADEU, 2002).
Nesta perspectiva a da diferença Guacira Lopes Louro (2001) afirma que uma pedagogia queer se distinguiria de
programas multiculturais bem intencionadas, onde as diferenças (de gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas ou são
apreciadas para o processo de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente com a instabilidade e a precariedade de
todas as identidades. Ao colocar em discussão as formas como o outro é constituído, levariam a questionar as estreitas
relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, ela estaria dentro,
integrando e constituindo o eu. Ao se dirigir para os processos que produzem as diferenças, o currículo passaria a exigir que
se prestasse atenção ao jogo político aí implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural, seria
imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das negociações constitutivos das posições que os sujeitos ocupam
(LOURO 2001, p. 550).
Para Macedo, os projetos multiculturais tendem a fixar a diferença transformando-a em diversidade (MACEDO,
2006: 333). Segundo a autora, no campo educacional, a conceitualização da cultura como repertório ou acervo de
significados a serem manipulados ainda está muito presente em propostas curriculares, mesmo quanto explicitam
preocupação com a diferença. Frequentemente a cultura é pensada como algo externo à situação pedagógica de onde se deve
tirar os “conteúdos” que serão trabalhados num currículo multi/intercultural, assim mesmo se contrapondo aos princípios
universalistas da nação ou mesmo do Iluminismo, acabam por estabelecer culturas particulares como totalidades (MACEDO,
2006, p. 348).

Questões
Encerramos esta primeira fase da pesquisa com algumas questões que pretendemos retomar e desenvolver em
trabalhos futuros, tais como:

Diversidade tem nomeado processos distintos de exclusão, diferenciação e desigualdade, e na prática, tem se
constituído em uma categoria ampla ou um recurso para designar processos nos quais são difíceis de serem diagramados, ou
que não sabemos muito como se constituem e/ou o que são.

De quais formas a relação entre diversidade e raça podem ser compreendidas? Ao abordar raça na perspectiva da
diversidade não é uma tentativa teórica de aplacar e apaziguar o potencial de fissura social?

A perspectiva do diálogo e interação entre culturas é capaz de equacionar as dimensões estrutural, simbólica ou
ideológica do racismo? Este diálogo ocorre em igualdade de condições? E as diferenças que não conseguem se configurar
como diálogo, pois quando o diálogo se faz algo já pode ser trocado, como cultura, por exemplo.

Se a cultura é o principal lócus da diversidade o que ocorre com as outras formas de diferença que não se
configuram ainda como cultura?

A diversidade tem sido pensada na concepção crítica como uma síntese, construída a partir das múltiplas
contradições entre identidade e diferença, na concepção pós-crítica a diferença borra as identidades, esta é a função das
diferenças, portanto não há síntese possível.

727
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Vozes de trabalhadores sobre a sua inclusão sócio-digital na educação de jovens e


adultos: dizeres e saberes em uma escola pública de Belo Horizonte/Minas
Gerais/Brasil

Cynthia Rúbia Gontijo


Centro Federal de Educação Tecnológica do Estado de Minas Gerais
cynthiarubia@email.com

Maria Rita Oliveira

729
Centro Federal de Educação Tecnológica do Estado de Minas Gerais
mariarita2@cefetmg.br

Resumo: Este trabalho objetiva contribuir com a compreensão do uso das tecnologias de informação e de comunicação –TICs- no contexto
de processos de inclusão/exclusão sócio-digital de trabalhadores/estucandos da Educação de Jovens e Adultos-EJA. Para tanto, investigou-se
a natureza da formação para o uso das TICs na EJA e analisou-se a utilização dessas tecnologias em termos de condições de uso, objetivos e
contribuições que têm para esses -trabalhadores. Para o desenvolvimento da Pesquisa, realizou-se uma revisão da produção intelectual na
área, a partir do qual se procedeu à análise bibliográfico-documental e teórica acerca dos processos sócio-educacionais em curso no interior
da denominada “Sociedade da Informação”. O estudo empírico realizou-se em uma escola da rede pública de Belo Horizonte/Minas
Gerais/Brasil, onde se desenvolveram observações e entrevistas com sujeitos escolares. A análise dos dados sugere que a formação para o
uso das TICs na prática de escolas que trabalham com EJA ocorre numa perspectiva instrumental. No entanto, os resultados do estudo
apontam que os alunos-trabalhadores consideram que o uso das TICs contribui para o aumento da sua auto-estima e para a redução das taxas
de flutuação na EJA. Com esta Pesquisa, reafirma-se a necessidade de que se produzam estudos sobre: as finalidades que se busca ao se
incorporar ou não as TICs na EJA; as alterações curriculares necessárias no contexto dessa incorporação; a formação necessária aos
professores e à gestão das escolas em processo de incorporação das TICs; os indicadores que definirão em que situação será adequada a sua
utilização na EJA.
Palavras-chave: inclusão sócio-digital de trabalhadores; uso de tecnologias nas práticas escolares da EJA; letramento tecnológico.

1 Apresentação
No Brasil, a Educação de Jovens e Adultos-EJA- é marcada por uma série de avanços e retrocessos no decorrer do
século XX. Pelo estudo de Haddad (2000), sobre a produção acadêmica sobre EJA, produzida entre 1986 e 1998, pode-se
afirmar que apesar da ampliação das oportunidades educacionais para a população de jovens e adultos, ampliação esta
resultante, em grande medida, das lutas dos movimentos organizados ocorridos no decorrer do século XX, a EJA ainda
carece de medidas de curto, médio e longo prazo capazes de consolidar a sua institucionalização no âmbito das políticas
públicas educacionais.
Os efeitos da pouca assunção da EJA enquanto política pública, no período analisado por Haddad (2000), parece
contribuir para a persistência dos altos índices de analfabetismo na população com mais de 15 anos de idade e,
principalmente, os altos índices de analfabetismo funcional1. De acordo com os dados obtidos no censo realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE2, em 2000, o contingente de pessoas com nenhum ou menos de um ano
de escolarização no Brasil ainda era de 13 milhões, ou seja, abrangia 11% da população que enfrentaram obstáculos para
acessar um dos mais fundamentais direito sociais. Certamente se se ampliar o escopo conceitual e ao invés de se falar em
alfabetizados utilizar-se a idéia de letramento, identifica-se uma situação ainda mais preocupante.
Soares (1998, p. 18-20) explica que:
alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e escrever, não aquele que adquiriu o estado ou a condição de
quem se apropriou da leitura e da escrita [...] Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e
escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da
escrita [...] Assim ... não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber
responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente.
Em relação ao letramento tecnológico, Coelho (2002) considera que este se ancora na noção de fluência em TICs,
traduzida pela capacidade de utilização e compreensão das suas linguagens.

As tecnologias de informação e de comunicação-TICs- não são apenas ferramentas a serem aplicadas, mas
processos a serem desenvolvidos no interior das bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. Implicam processos
e produtos, frutos da ciência aplicada, nas áreas da comunicação e informação. Assim, ao referir-se as TICs não se está
tratando apenas da Internet-NET, mas do conjunto de tecnologias microeletrônicas, informáticas e de telecomunicações que
potencializam a aquisição, a produção, o armazenamento, o processamento e a transmissão de dados na forma de imagem,
vídeo, texto ou áudio.
O Programa Sociedade da Informação lançado oficialmente no Brasil pela Presidência da República, em agosto de
2000 (TAKAHASHI, 2000), com o objetivo de formular políticas de inserção, em termos de educação, cultura, trabalho,
saúde, transportes, governo eletrônico, entre outros, destaca que há uma tendência de democratização do acesso às
tecnologias na sociedade moderna. No entanto, entende-se neste estudo que, garantir e democratizar o acesso às TICs não são

1
Os conceitos e significados acerca do analfabetismo funcional são relativos e controversos. Ribeiro et. al. (2002, p. 5) considera que qualquer nível de
alfabetização é funcional, pois seu aprendizado tem funções e aplicações sociais. Dessa forma, para elas o termo funcionalidade não cabe no contexto dessa
discussão. De acordo com as autoras, “o conceito de analfabetismo funcional foi disseminado principalmente por agências internacionais e amplamente utilizado
no desenho de programas governamentais de educação de adultos, com o objetivo de salientar os benefícios sociais e econômicos desse tipo de investimento
educativo”.
2
O IBGE apura o índice de analfabetismo com base na auto-avaliação da população sobre sua capacidade de ler e escrever. A partir da década de 90, seguindo
recomendações da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura-UNESCO, o Instituto passou a apurar, também índices de
analfabetismo funcional, tomando como base não a auto-avaliação dos respondentes, mas o número de séries escolares concluídas. Pelo critério adotado, são
analfabetos funcionais as pessoas com menos de quatro anos de escolaridade. Consultar: http://www.ibge.gov.br.

730
suficientes para a produção na área, é preciso formar os indivíduos para os seus usos3. À medida que se amplia o número de
ambientes com acesso às TICs que possibilitam aos sujeitos a chance de explorar as redes globais e de utilizar a
crescentemente sofisticada tecnologia da multimídia, também aumenta a pressão da sociedade para as escolas reformularem
suas práticas, na direção daquela educação .
Porém, enquanto se discutem políticas de acesso e usos de tecnologias para as escolas regulares, em políticas de
formação para jovens e adultos, excluídos historicamente do direito social à educação escolar, não se identifica claramente na
agenda política, a preocupação com a formação desses jovens e adultos, em sua maioria trabalhadores, para o uso crítico
dessas TICs, cada vez mais presentes no cotidiano da sociedade contemporânea.
No entanto, torna-se imprescindível possibilitar a formação integral dos jovens e adultos, marginalizados não só
pela escola, mas também por outros segmentos sociais, implicando o acesso a um tempo/espaço institucional destinado ao
aprendizado crítico dos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade, entre eles as TICs.
Diante do exposto, cabe questionar se a democratização do acesso às tecnologias e a formação para os seus usos
são, realmente, para todos. Na EJA está presente a formação para o uso das TICs? De que forma está presente? E, ainda,
como o uso das TICs vêm acontecendo na prática da EJA?
Parte-se do pressuposto, neste estudo, que a reconstrução do histórico da EJA, no Brasil, representa um
compromisso social com aqueles que não tiveram acesso a determinados bens culturais na escola ou fora dela, o que implica
a exclusão dessas pessoas, nos mais diversos espaços sociais.
Nesse contexto, este estudo objetiva investigar particularmente a presença ou ausência da formação para o uso das
TICs na EJA, analisando os objetivos e as condições dessa formação na prática da EJA em escolas da rede pública de Belo
Horizonte, Minas Gerais, Brasil-BH/MG/BR.

2 TICs nos processos sócio-educacionais em curso


Neste texto, compreende-se que as TICs são processos e produtos, frutos da ciência aplicada, nas áreas da
comunicação e informação; são um conjunto de tecnologias microeletrônicas, informáticas e de telecomunicações que
potencializam a aquisição, a produção, o armazenamento, o processamento e a transmissão de dados na forma de imagem,
vídeo, texto ou áudio, desenvolvidas no interior das bases materiais e sociais da economia, da sociedade e da cultura.
A intensificação da presença das TICs no contexto das sociedades modernas articula-se à produção e ao uso
acelerado dessas tecnologias durante o século XX, intensificação essa condicionada por transformações sócio-políticas e
geográficas, entre outras, ocorridas em escala planetária, mas, também, condicionante de transformações sócio-políticas e
geográficas, entre outras, no interior das economias capitalistas. Esse processo dialético, representado pela intensificação da
produção e uso das TICs e por sua influência nos contextos macro e micro globais expressa e aprofunda transformações em
diversos âmbitos societários, tais como o do trabalho e da produção, do comércio e do consumo, do entretenimento, da
socialização e da transmissão dos saberes; enfim, da organização das empresas, dos Estados e das sociedades. Em relação a
essas transformações, Brunner (2004) destaca as mudanças no mundo do trabalho, em que se identificam novos conteúdos
nos processos e práticas de trabalho, tais como mudanças no gerenciamento e na auto-gestão do/no trabalho, mudanças nos
tempos de trabalho, deslocamentos das ocupações do setor primário e secundário para o terciário, intensificação do mercado
informal de trabalho, entre outras.
Diante da reestruturação dos processos de trabalho analisados pelo autor, emerge o seguinte questionamento: o que
ocorre com os trabalhadores e as relações sociais de produção no interior das sociedades intensamente mediadas pelas TICs?
Telles (1998), em seus estudos sobre a presença das TICs no mercado de trabalho no Brasil, adverte que, nesse
contexto, vem se institucionalizando uma dualidade entre o que ele denomina de “trabalhadores integrados” nos circuitos
modernos da economia, porque aprenderam em cursos formais ou mesmo na prática cotidiana utilizar essas tecnologias para
maximizar a produtividade dos processos e produtos envolvidos, e o que ele denomina de “trabalhadores não-integrados”,
porque não desenvolveram condições concretas para utilizá-las com esse propósito. Ressalta-se que no interior do grupo dos
“trabalhadores não-integrados”, há aqueles que sequer desenvolveram condições de utilizá-las para resolverem “problemas”
cotidianos imersos nas relações sociais mediadas culturalmente pelas tecnologias, tais como operar: máquinas eletrônicas que
vendem passes para a utilização de ônibus coletivos; um caixa eletrônico de um banco; uma urna eletrônica utilizada em
épocas de eleições, entre outros.
Entende-se que no contexto analisado por Brunner (2004) demanda-se do trabalhador a formação para o uso das
TICs. Entende-se, também, que uma formação, para o uso dessas tecnologias, em sintonia com a complexidade das
sociedades contemporâneas, abarca o fenômeno do letramento tecnológico.
Para Coelho (2002), o letramento tecnológico envolve a idéia de formação para a fluência em TICs, ou seja, uma
formação que possibilite aos sujeitos construírem capacidades para utilizarem, reformularem as informações e
conhecimentos, expressarem-se criativa e apropriadamente e produzirem informações, em vez de meramente decodificá-las.
Percebe-se que, no contexto analisado, as demandas formativas postas às escolas também se complexificaram.
Diante dessa constatação, produziu-se, nas últimas décadas do século XX, um conjunto de argumentos para justificar a

3
Neste estudo, compreende-se que o uso crítico engloba a aprendizagem de condições de seleção, avaliação, interpretação, classificação e uso contextualizado de
determinado produto ou processo.

731
incorporação das TICs no trabalho escolar, destacando-se que essa incorporação determinaria ou potencializaria mudanças
qualitativas nos processos pedagógicos e determinaria ou potencializaria maiores condições de inserção ou ascensão do
sujeito no mercado trabalho.
Segundo Cysneiros (1996), entre os argumentos utilizados para justificar a incorporação das TICs ao trabalho
escolar, destaca-se que essa incorporação potencializaria o alcance dos seguintes objetivos:
(i) desenvolver nos estudantes suas capacidades de raciocínio lógico e numérico, suas faculdades de pensamento
autônomo e criativo;
(ii) desenvolver nos estudantes condições efetivas para a compreensão dos processos científicos e tecnológicos;
(iii) potencializar nos estudantes o aumento de sua auto-estima;
(iv) propiciar aos estudantes e professores o acesso à uma fonte inesgotável de informações e banco de dados
interativos;
(v) tornar as escolas mais eficientes e eficazes, transformando os seus modos de gestão;
(vi) potencializar as relações entre escolas e comunidades através das possibilidades comunicativas das TICs;
(vii) diminuir as desigualdades tecnológicas existentes entre pessoas e nações.
Cabe aqui questionar se as políticas e práticas na área contemplam tais objetivos e, ainda, quais as possibilidades
concretas de se contemplá-los.
A análise da legislação educacional brasileira4, na qual se inclui a Lei n. 9394, que institui as Diretrizes e Bases da
Educação Nacional-LDB (BRASIL, 1996), o Parecer n. 11, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
de Jovens e Adultas (BRASIL, 2000) e a Lei n. 10.172, que estabelece o Plano Nacional de Educação-PNE (BRASIL, 2001),
percebe-se que esses documentos anunciam uma preocupação com a formação para o uso das tecnologias na EJA.
Porém, não obstante essa preocupação, constata-se uma ausência em políticas, programas e projetos de EJA,
orientações que contemplem a formação para o uso das TICs nessa modalidade de ensino5.
No Parecer n. 11, a EJA é apresentada como um processo reparador da dívida que a sociedade e o Estado têm com
os jovens e adultos excluídos da escola, um processo equalizador e um processo qualificador.
Não se pode considerar a EJA e o novo conceito que a orienta apenas como um processo inicial de alfabetização. A
EJA busca formar e incentivar o leitor de livros e das múltiplas linguagens visuais juntamente com as dimensões do trabalho
e da cidadania. Ora, isto requer algo mais desta modalidade que tem diante de si pessoas maduras e talhadas por experiências
mais longas de vida e de trabalho. Pode-se dizer que estamos diante da função equalizadora da EJA. A eqüidade é a forma
pela qual se distribuem os bens sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade,
consideradas as situações específicas (BRASIL, 2000, p. 9).
Com relação ao processo qualificador, as Diretrizes definem que esse tem a ver com a “tarefa de propiciar a todos a
atualização de conhecimentos por toda a vida, [..]. Ela tem como base o caráter incompleto do ser humano cujo potencial de
desenvolvimento e de adequação pode se atualizar em quadros escolares ou não escolares” (BRASIL, 2000, p. 10).
Essas três funções da EJA – função reparadora, equalizadora e qualificadora – demandam:
(i) a sistematização e consolidação das experiências de vida e os conhecimentos já adquiridos pelos jovens e
adultos, a fim de que possam usufruir dos bens materiais e culturais existentes no meio em que vivem, indispensáveis ao
exercício da cidadania;
(ii) o oferecimento de condições especiais para que os jovens e adultos desenvolvam suas potencialidades como
pessoas humanas, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; e
(iii) o oferecimento, a esse público, de uma adequada compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos
processos produtivos, relacionando teoria e prática no estudo das disciplinas e no desenvolvimento de habilidades
relacionadas com o uso das TICs.
Para que essas funções sejam contempladas, as Diretrizes insistem na necessidade de flexibilização curricular, na
qual as experiências que os educandos trazem consigo sejam aproveitas pela instituição escolar, e de que os temas da vida
cotidiana possam se tornar elementos geradores de um currículo pertinente à essa modalidade.
No PNE, a EJA é entendida como educação ao longo de toda a vida e como um direito público subjetivo daqueles
que não tiveram acesso ao ensino fundamental, sendo concebida no Plano a partir de três eixos: “a educação como direito, a
educação como instrumento de desenvolvimento econômico e social e a educação como fator de inclusão social” (BRASIL,
2001, p. 21).
Esses documentos sinalizam para a importância do aprendizado para o uso das TICs pelos trabalhadores. Porém, tal
compreensão não aparece nos mesmos de forma clara e sistematizada.
Pressupõe-se que o alcance desses objetivos, entre outros, demanda uma avaliação minuciosa, por parte dos
gestores das políticas na área, o que implica a sintonia entre o desenho da política e as condições concretas em que as TICs

4
Tomou-se como marco temporal a Lei n. 9394, que institui as Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDB (BRASIL, 1996) pelo fato de esta representar a
emergência legal de novas orientações para o campo em questão. Na Lei, a EJA é considerada uma modalidade de ensino da educação básica, “destinada àqueles
que não tiverem acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria” (BRASIL, 1996, p. 40).
5
A distância entre as orientações para uma certa prática social e a sua configuração é determinada por questões que envolvem tensões e forças em cenários
marcados por relações de poder desiguais no interior das relações entre classes. Dessa forma, há que se refletir que tanto a produção e formatação dessas
orientações quanto o desenvolvimento dessas na prática são circunscritas nos quadros macro e micro sociais nas quais se situam e se concretizam.

732
estariam sendo introduzidas na escola; um monitoramento do seu processo de implementação e, ainda, à resposta as seguintes
questões: (I) Com que finalidade está se buscando incorporar as TICs no trabalho pedagógico da escola? (II) Que alterações
curriculares serão necessárias no contexto de incorporação das TICs no trabalho pedagógico da escola? (III) Que formação
será necessária aos professores e a gestão das escolas em processo de incorporação das TICs em seu trabalho pedagógico?
(IV) Quais indicadores definirão em que contexto pedagógico será necessário a utilização das TICs no processo ensino-
aprendizagem?
Enfim, não há sentido em introduzir “tecnologia de ponta” – a tecnologia considerada socialmente como provida de
determinadas sofisticações em sintonia com o desenvolvimento de pesquisas na área e com as últimas novidades no mercado
de bens e serviços tecnológicos – na escola sem avaliar as condições em que essas serão incorporadas, pois sem essa
avaliação corre-se o risco de que as TICs sejam absorvidas de modo inócuo, no qual o estudante ao fazer uso das TICs
basicamente aperta teclas, sem sequer saber para que servem.

3 Notas sobre a produção intelectual na área


Na revisão da literatura na área, produzida entre 1999 e 20056, constatou-se que há uma emergência de estudos, em
âmbito nacional e internacional, que focalizam a utilização do cinema, do rádio e da televisão e em geral dos meios de
informação e de comunicação na EJA. Nessa revisão, que objetivou mapear estudos e pesquisas sobre TICs na EJA,
consultaram-se os trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação-ANPEd, nos seguintes Grupos de Trabalho-GT: GT3 – Movimentos Sociais e Educação; GT5 – Estado e Política
Educacional; GT6 – Educação Popular; GT9 – Trabalho e Educação; GT16 – Educação e Comunicação e GT18 – Educação
de Pessoas Jovens e Adultas. Consultaram-se também, no mesmo período, os trabalhos apresentados nos encontros anuais do
Simpósio Brasileiro de Informática na Educação-SBIE.
Nas reuniões anuais da ANPEd, no período considerado, há três estudos em um universo de 125 estudos
identificados. Nos encontros anuais do SBIE, no período considerado, há dois estudos em um universo de 589 estudos
identificados. No conjunto dos trabalhos analisados, três oferecem contribuições significativas quanto às questões que
interessam, de maneira particular, ao presente estudo.
No conjunto dos textos analisados7, identificaram-se quatro (Pereira et al., 2001; Bovo, 2001; Brasileiro, 2002;
Gonçalves, 2006) estudos que tratam do objeto deste texto.
Pereira et al. (2001), em estudo realizado, em Florianópolis/Santa Catarina, que tinha como objetivo identificar os
comportamentos dos alunos da EJA em contextos de uso das TICs, constatam que (i) há uma desmistificação progressiva do
computador a partir de um contato livre do aluno com esse instrumento; (ii) isso lhes possibilita a capacidade de enfrentar
desafios que se apresentam em cada momento da aprendizagem; (iii) o aluno torna-se mais curioso na busca de solução de
problemas e (iv) isso propicia o desenvolvimento da criatividade e da iniciativa na realização de atividades, o que evidencia
sua autonomia e resgate da sua auto-estima.
O estudo desenvolvido por Bovo (2001) com 20 alunos da EJA na cidade de Curitiba/Paraná, que objetivou analisar
como o uso do computador pode auxiliar o processo ensino-aprendizagem e contribuir para a melhoria da qualificação para o
mercado de trabalho, sinaliza que o computador é um instrumento que contribui, efetivamente, para a superação das
dificuldades na aprendizagem do aluno da EJA e os auxilia na melhoria da qualificação para o trabalho. Entre as suas
conclusões, destaca-se que, em relação ao uso do computador, todos os 20 alunos gostaram das aulas com a utilização desse
instrumento, mas 12 deles tiveram medo inicial, que foi sendo superado; 17 aprimoraram-se na leitura e na escrita; 20
motivaram-se para a realização das atividades propostas; seis perceberam mudanças no trabalho e 17 aumentaram suas
expectativas em relação à ascensão profissional.
Já o estudo desenvolvido por Brasileiro (2002) amplia o seu escopo em relação aos estudos apresentados
anteriormente, pois buscou compreender a influência das TICs na configuração do perfil dos alunos da EJA no contexto de
produção sócio-cultural em que estão inseridos esses sujeitos. Em sua pesquisa empírica, realizada em BH/MG, Brasileiro
(2002) constata que durante as aulas formais professores e alunos se atinham àqueles conteúdos classicamente vinculados aos
programas oficiais. No entanto, no intervalo o assunto era novela, jogos de fliperama, ídolos, notícias do rádio. Os resultados
da sua pesquisa foram: (i) o computador está presente no imaginário juvenil como um elemento vital; (ii) os jovens revelaram
sentirem-se excluídos do processo de informatização da sociedade; (iii) entre os recursos que os educandos gostariam de ter
na escola, o computador é o mais almejado. Para 98% deles, o computador na escola poderia contribuir para uma educação
de mais qualidade, pois acreditam que com essa tecnologia na escola teriam mais acesso à informação; (iv) alguns educandos
consideram que o uso do computador potencializaria o seu desenvolvimento de habilidade requerida pelo mercado de

6
Cabe aqui esclarecer que se decidiu considerar esse marco temporal, porque no Estado da Arte das Pesquisas em EJA no Brasil, Haddad (2000) apresenta os
trabalhos produzidos de 1986 a 1998. Neste Estado da Arte, não foram localizados trabalhos que têm as TICs como objeto investigativo na EJA.
7
Importa registrar que não foram encontrados livros que tratam das TICs na EJA. Dessa forma, para a realização da revisão foram consultados os trabalhos
apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação-ANPEd, entre 1999 e 2006, nos seguintes Grupos de
Trabalho-GT: GT3 – Movimentos Sociais e Educação; GT5 – Estado e Política Educacional; GT6 – Educação Popular; GT9 – Trabalho e Educação; GT16 –
Educação e Comunicação e GT18 – Educação de Pessoas Jovens e Adultas. Consultaram-se também, no mesmo período, os trabalhos apresentados nos encontros
anuais do Simpósio Brasileiro de Informática na Educação-(SBIE.

733
trabalho; (v) alguns educandos consideram que o uso do computador proporcionaria maior motivação para a realização das
atividades pedagógicas.
O estudo de Gonçalves (2006), realizado com uma turma do Movimento de Alfabetização, em São Carlos/São
Paulo, investigou quais são as contribuições e dificuldades do processo de inclusão digital na alfabetização de jovens e
adultos da EJA e quais são os fatores potencializadores do processo de inclusão digital para a re(afirmação) de identidades
desses sujeitos. Os resultados de seu estudo foram: (i) os 14 estudantes consideram que a utilização do computador no
processo de elaboração de atividades de aquisição da leitura e escrita “facilita” o desenvolvimento das mesmas, pois “[...] o
computador já traz as letras prontas no teclado, cabendo aos alunos se preocuparem em identificar as letras através do som,
sem a grande preocupação que apontam em ter que desenhar a letra [...]” (GONÇALVES, 2006, p. 9) e (ii) a maioria dos
estudantes entrevistados consideram que a inclusão digital potencializará exponencialmente a sua inserção no mercado de
trabalho, pois reconhecem que entre as demandas requeridas ao trabalhador pelo mercado de trabalho, destaca-se o “saber
usar tais tecnologias”.
No conjunto dos textos analisados nesta revisão nota-se que esses identificam potencialidades pedagógicas na
utilização das TICs na EJA e acordam que a exclusão, do público atendido por essa modalidade, da formação para seus
possíveis usos, representa a exclusão desses sujeitos do atual estágio de trabalho e de produção capitalista e, inclusive, das
possibilidades de transformá-lo.
Identifica-se na revisão da literatura na área que há poucos estudos, em âmbito nacional e internacional, que
focalizam a utilização das TICs na EJA. Diante do aparente silenciamento sobre a matéria, constatado neste estudo, há que se
problematizar o delineamento de uma possível dupla marginalização na área: (i) marginalização dessa modalidade de ensino
das políticas que visam a introdução das TICs nas escolas e (ii) marginalização das TICs nas políticas voltadas para a EJA no
País.

4 Aspectos metodológicos
Conforme assinalado, para desenvolver o presente estudo, realizou-se uma revisão da legislação educacional
brasileira a partir da Lei n. 9394 (BRASIL, 1996) e da literatura na área produzida entre 1999 e 2005.
Com relação à pesquisa empírica, realizou-se um mapeamento8 do número de escolas em BH das duas redes
públicas – Municipal e Estadual – que trabalham com EJA no ensino fundamental-EF, que têm laboratório de informática-LI
e desenvolvem projetos de formação para o uso das TICs.
Nas escolas estaduais não se identificaram projetos que envolvam as TICs. Quanto às escolas municipais, o
coordenador do setor de informatização dessas escolas apresentou o nome de uma delas considerada, pela Secretaria e pela
comunidade da qual faz parte, pioneira nessa área. Com essa informação, decidiu-se, desenvolver o estudo empírico na escola
X9.
Iniciou-se a coleta de dados nessa escola, localizada em uma região nobre do município de BH que atende a 1203
alunos na EJA, oriundos dos mais diversos bairros da região metropolitana da cidade. A Escola trabalha com turmas do 1° e
2° Ciclos do EF e do Ensino Médio, em três turnos de funcionamento10.
Através da análise da proposta de formação para os 1º e 2º ciclos do EF desta Escola, acordou-se que as entrevistas
seriam realizadas com alunos e professores do 2º ciclo, pois, segundo suas orientações pedagógico-curriculares, esse
momento seria mais propício e adequado à apropriação de determinados conteúdos culturais, como, por exemplo, as TICs.
Diante desse universo, selecionaram-se alunos e professores a serem entrevistados, buscando contemplar a
representatividade dos três turnos, de todas as turmas, dos sexos masculino e feminino e a própria vontade do sujeito em ser
entrevistado. Foram entrevistados 18 alunos, seis professores e o Coordenador do laboratório de informática-CL da Escola,
no período de novembro de 2006 à fevereiro de 2007.
A seguir, registram-se aspectos da análise dos dados do presente estudo.

5 Notas sobre as práticas de uso das TICs na EJA


O LI11 da Escola foi implementado em 2001 no contexto do Programa Nacional de Informática na Educação-
ProInfo, implementado em 1998 pela parceria entre o Ministério da Educação-MEC e as secretarias estaduais de educação e
prefeituras municipais12, mas, desde 1998, há uma discussão na escola sobre a inclusão digital, impulsionada por um grupo
de professores interessados na temática. Um desses professores assumiu a coordenação do laboratório. Segundo ele, o
primeiro momento do trabalho com as TICs envolveu a busca pela participação do corpo docente no mesmo, algo que
demandou um enorme esforço do grupo defensor da formação para o uso das tecnologias na Escola. As discussões se

8
Foram realizadas entrevistas junto aos responsáveis pela EJA nas Secretarias de Educação do Estado de MG e do Município de BH.
9
Por motivos de preservação dos sujeitos escolares envolvidos no processo investigativo, optou-se por manter em anonimato o nome da escola. Quanto aos
sujeitos, eles foram identificados por letras e números.
10
Também contribuiu para a escolha desta escola, o fato de a mesma trabalhar, apenas, com a modalidade de EJA.
11
O LI possui 14 computadores, operando com o Sistema Linux e ligados em rede. O desenho do LI segue o layot de células, modelo adotado pelo ProInfo.
12
Para conhecimento do Programa, consultar COELHO, 2002.

734
desenvolviam em encontros aos sábados, em seminários de formação organizados pelo CL, contavam com a presença de
cerca de 10% dos docentes da Escola. O Coordenador explica que:
[...] tinha uns professores que tinham uma concepção, outros professores outra; eram concepções diferentes. E a
gente tinha que amarrar isto, tinha gente que entendia o computador como espaço pessoal para digitar as coisas e o limite era
só este e tinham outros que, eu coloco no extremo do leque, pensavam na idéia de construção coletiva, que as soluções
pedagógicas tinham que ser feitas dentro do laboratório. Foi esta segunda concepção que venceu (CL e PH01).
Concomintantemente a esse processo selecionaram-se alunos interessados em trabalhar no laboratório como
monitores voluntários de informática, considerados pelo Coordenador “agentes de informática”.
Nós criamos o laboratório onde valorizamos a autogestão, a cooperação; o próprio aluno é que toma conta do
laboratório. Criamos um sistema que foi o primeiro dentro da rede, de agentes. São os alunos que se tornaram agentes de
informática (CL e PH01).
Também foram organizados cursos de formação para o uso do Sistema Windows, os quais participaram alunos,
professores e outros profissionais da Escola. O CL ressalta que naquele momento todos eram “analfabetos em informática” e
havia muita resistência no Grupo, sendo essa considerada a principal dificuldade no processo.
Nosso principal objetivo era que os professores se entusiasmem com a idéia e resolvessem perder o medo da
máquina (CL e PH01).
Outras dificuldades apontadas pelo CL foram à burocracia para o acesso aos recursos físicos – equipamentos - e
financeiros e a falta de apoio técnico por parte da Secretaria Municipal de Educação13. Estas foram sendo superadas, em
parte, através da pressão política de um grupo de alunos e professores, junto á Secretaria, e da busca por parcerias com órgãos
públicos e privados interessados em fomentar e/ou apoiar a “inclusão digital”.
O que foi legal é que com os problemas aparecendo nós fomos apresentando as demandas. Nosso problema hoje
não é o professor não ter capacidade de trabalhar conteúdos, a questão é agilizar a Internet, tornar nossas máquinas
tecnologicamente boas, melhorar o servidor, tudo isto está capenga, não só nós como toda a Rede está com problemas sérios
(CL e PH01).
Com relação às orientações para a utilização do laboratório, o CL esclarece que não há uma proposta formativa
precisa para o uso das TICs na Escola. Dentro disso, o Grupo optou pela autonomia na decisão pelo uso ou não das
tecnologias no processo pedagógico, mas há um constante incentivo por parte do CL para que o corpo docente inclua as TICs
em seu projeto ensino-aprendizagem. Os alunos são livres para utilizaram o laboratório, inclusive durante o horário das
aulas14 e os professores para desenvolverem projetos.
O CL, assim como os professores entrevistados que participam desse processo acordam que vem ocorrendo um
avanço qualitativo em termos de uso e de proposta de uso das TICs na Escola, desde a sua implementação em 2001. Durante
as entrevistas realizadas, eles apresentaram, com orgulho, projetos desenvolvidos por professores das mais diversas
disciplinas, demonstrando o intuito de demarcar um lugar: o lugar de um grupo que assumiu a responsabilidade por um
determinado processo institucional.
Conforme já anunciado, o estudo empírico realizou-se em uma escola da rede pública municipal de BH/MG, onde
se desenvolveram entrevistas com 18 alunos (A), seis professores (P) e o coordenador do laboratório de informática (CL) e
observações das práticas de uso das TICs na escola pesquisada. Trabalhou-se neste estudo com categorias de análise
(condições de uso das TICs na escola; objetivos do trabalho com as TICs na escola; contribuições percebidas pelos sujeitos
escolares com esse trabalho) construídas a priori da coleta de dados. No desenvolvimento da coleta de dados, a qual foi
orientada por essas categorias, foram sendo construídas as categorias de conteúdo, a partir das “vozes” dos professores e
alunos da EJA entrevistados.

Em relação às condições de uso, 100% dos professores (inclui-se o CL) entrevistados consideram-nas inadequadas,
o que se expressa quando eles dizem que não há equipamentos; há, mas em número insuficiente; há, mas não estão em bom
funcionamento. No entanto, mais de 70% dos alunos entrevistados consideram que essas condições de uso são adequadas,
pois a presença do laboratório de informática (LI) na escola é entendida por eles como um privilégio e não um direito. Já os
alunos que não consideram essas condições de uso adequadas se referem às condições de infra-estrutura – equipamentos e
suporte técnico – assim como os professores que as consideram inadequadas.

Tabela 1 – Condições de uso das TICs na prática escolar da EJA


Adequação P A
Sim -
Há equipamentos 14
Não
Número insuficiente 5 2
Equipamentos com mau funcionamento 2 2

13
De acordo com o CL, naquele momento haviam cerca de 700 computadores nas escolas municipais de BH, hoje são cerca de 2000, mas, ainda, não há
condições estruturais adequadas para o acompanhamento técnico desses equipamentos.
14
Há um enorme fluxo de alunos no laboratório, durante todo o horário escolar, havendo disputa pelo uso das máquinas.

735
Total 7 18
Fonte - Entrevistas realizadas com professores e alunos da EJA, 2007.

Vozes:
Falta equipamento livres para a gente usar. [...] nem sempre tem máquina disponível para gente usar (A12).
Primeiramente, eu posso dizer claro, a gente tem o básico e só. Por exemplo, eu precisei de uma televisão e a
televisão não estava boa, o DVD está sempre com problemas, os computadores sempre apresentam algum defeito [...] (P6).
Dá, dá sim [condições de uso], tem muito equipamento pra gente usar [...] há muita oportunidade para quem quer
aprender (A17).
Quanto aos objetivos pretendidos com o trabalho com o uso das TICs na prática escolar da EJA, entre os sete
professores entrevistados, cinco apontam como objetivo desse trabalho, construir determinadas habilidades referentes ao uso
das TICs demandas pelo mercado de trabalho; quatro deles consideram que esse deve propiciar condições de (re)afirmação
da cidadania; três objetivam ilustrar/exemplificar conteúdos trabalhados em sala de aula; um pretende que os alunos
desenvolvam capacidades cognitivas com o trabalho; outro objetiva aumentar a auto-estima dos alunos e dois não
responderam. Assim como alguns professores, dez alunos consideram que esse trabalho deve objetivar que o aluno da EJA
construa habilidades tecnológicas demandas pelo mercado de trabalho. Diferentemente dos professores, três alunos
entrevistados consideram que acessar informações e se comunicar deva ser um dos objetivos presentes no trabalho com as
TICs na prática da EJA; um dos alunos considera que o trabalho deva propiciar condições de (re)afirmação da cidadania aos
mesmos e cinco deles não responderam.

Tabela 2 – Objetivos do trabalho com as TICs na prática escolar da EJA


Objetivos P A
Construir habilidades sobre o uso das TICs 5 10
Desenvolver capacidades cognitivas 1 -
Ilustrar/exemplificar conteúdos de ensino 3 -
Propiciar condições de (re)afirmação da cidadania 4 1
Aumentar auto-estima 1 -
Acessar informações e se comunicar - 3
N.R. - 5
Fonte - Entrevistas realizadas com professores e alunos da EJA, 2007.

Vozes:
Se você sabe sobre algum programa [de computador] específico, você pode se encaminhar para uma profissão,
onde a vida da gente vai começar (A16).
[...] São muitas as possibilidades de aprendizado que os alunos têm ao acessar essa nova linguagem [...],
especialmente ao que diz respeito ao desenvolvimento do raciocínio lógico (P2).
Quando a gente usa uma imagem no datashow ou mesmo no retroprojetor, o aluno fixa mais o conteúdo [...].
Quando eles viram as fotos, nossa, eu acredito que eles se sensibilizaram para a temática da ditadura, que nós iríamos
trabalhar em seguida (P2).
Os professores levam a gente para o laboratório, porque lá podemos ter uma formação mais cidadã. Se a gente quer
mudar a história, tem que ser através dessa formação (A8).
[...] o objetivo da escola deve ser ajudar a gente pesquisar as informações na Internet, porque tudo está lá, todos os
assuntos, tudo que quiser se acha lá (A14).
A gente percebeu, no inicio, uma resistência muito grande [dos alunos] ao lidar com aquela tecnologia [...], mas
depois que ele começou a dominar, se sentiu muito satisfeito de estar dominando. Eu acredito que eles deixaram de se sentir
menos que os outros. [...] No momento que acessaram; aguçou a auto-estima deles. [...] acho que assim eles se sentem muito
felizes [..] (P4).
Ao que se refere às contribuições percebidas com o trabalho com as TICs na prática escolar da EJA, três
professores percebem que o uso dessas tecnologias contribui com a formação crítica do aluno; outros três consideram que
esse contribui com o aumento de sua auto-estima; dois percebem melhorias no aprendizado dos conteúdos escolares; dois que
o trabalho resulta no aumento de perspectivas de inserção/ascensão desses alunos no mercado de trabalho e outros dois que o
trabalho contribui com a redução das taxas de flutuação na Escola. Quanto aos dezoito alunos entrevistados, apesar de não
citarem como possíveis objetivos do trabalho, cinco alunos consideram que o uso das TICs na escola contribui com a
aprendizagem dos conteúdos escolares, e dois deles percebem que esse uso contribui com a redução das taxas de flutuação na
Escola. Diferentemente dos professores, três alunos percebem que o uso das TICs na prática escolar contribui para propiciar
condições de (re)afirmação da cidadania do público da EJA. Diferentemente dos professores, três alunos percebem que o
trabalho com as TICs na prática escolar contribui com a ampliação do acesso as informações e as comunicações. Dois alunos
consideram que esse trabalho contribui com o aumento de sua auto-estima e um com o aumento de perspectivas de
inserção/ascensão no mercado de trabalho. Destaca-se que as contribuições percebidas pelos professores e alunos
entrevistados são semelhantes às contribuições identificadas por pesquisadores na área em escolas públicas regulares. No

736
entanto, difere-se em duas contribuições apresentadas por esses sujeitos – aumento da auto-estima e redução das taxas de
flutuação. Entende-se que essas contribuições percebidas pelos professores e alunos no processo do trabalho com o uso das
TICs na EJA devam ser consideradas com bastante atenção, em função da sua significância na EJA.

Tabela 3 – Contribuições percebidas no trabalho com as TICs na prática escolar da EJA


Contribuições P A
Aprendizado dos conteúdos 2 5
Formação crítica 3 -
Aumento da perspectiva de inserção ou ascensão no mercado 2 1
Aumento da auto-estima 3 2
Redução das taxas de flutuação 2 2
Re-afirmação da cidadania - 3
Ampliação do acesso a informações e comunicações - 3
Fonte - Entrevistas realizadas com professores e alunos da EJA, 2007.

Vozes:
[...] Percebo que, na medida em que o aluno passa a se aproximar do laboratório, a formação dele agiliza, tanto da
leitura quanto na escrita. Ele começa a se interessar por texto, ver literatura [...]. Isso é algo que acrescenta: um professor
pode falar, apresentar mil exemplos, mas com o uso do computador tudo fica mais interessante (P1).
Eu acho que a tecnologia contribui, mas ainda acredito que o papel do professor é fundamental [...] eu acho que a
tecnologia contribui muito com a formação crítica do aluno pois permitem que o professor apresente duas versões sobre o
mundo muito rapidamente (P3).
[...] para o mercado de trabalho ajuda muito, pois é super importante saber usar [...]. Para o mercado de trabalho é
muito bom que a pessoa tenha uma base em informática, que saiba fazer um bom currículo, que tenha uma boa digitação. O
mercado de trabalho procura muito isso [...] (A18).
[...] estamos percebendo que quando o aluno descobre que pode utilizar o laboratório [...], ele faz um esforço maior
para vir para a escola, mesmo estando cansado do trabalho (P1).
[...] uma pessoa precisa estar por dentro do que está acontecendo para se tornar mais cidadão. Assim, uma pessoa
precisa estar por dentro da informática para ser mais cidadão. Eu acho que a escola está contribuindo para isso (A7).
Contribui muito, porque, às vezes, na comunidade da gente, a gente precisa de pegar alguma informação na
Internet. Serve, também, para está buscando pessoas na Internet (A10).
Eu me lembro do primeiro dia que eu fiquei em frente a um computador. Eu achava que era como se fosse um
bichinho [...]Depois, eu fui pegando intimidade. Então, achei interessante e comecei a achar assim: não, eu sou capaz, posso
demorar mais do que um jovem que nasceu dentro dessa programação, mas eu vou aprender a mexer. Então, eu me senti
assim: que eu sou capaz, posso demorar, mas eu sou capaz de navegar como os outros navegam na Internet (A7).
A análise dos dados sugere que ambos – professores e alunos entrevistados – consideram a presença das TICs,
especialmente do computador, como uma inovação no contexto da EJA, mas adotam posturas diferentes em relação à elas na
prática escolar, o que se relaciona com formas de apropriação diferenciadas dessas tecnologias por esses sujeitos. Destaca-se
que o fato de eles terem um laboratório de informática aberto para que usufruam torna-se motivo de grande satisfação e de
reconhecimento de sua cidadania. Ao lado disso, destaca-se que, apesar do aparente silenciamento sinalizado anteriormente
neste texto, alunos e professores estão construindo espaços de socialização e aprendendo a ler o mundo a partir de suas
experiências nesse espaço.

6 Considerações finais
Neste Estudo objetivou-se investigar particularmente a presença ou ausência da formação para o uso das TICs na
EJA, analisando os objetivos e as condições dessa formação na prática da EJA em escola da rede pública de BH/MG. Os
resultados do Estudo evidenciam que a formação para o uso das TICs e o próprio uso das tecnologias pelos alunos e
professores da EJA dependem de iniciativas particulares e ocorrem em condições bastante contraditórias, ou seja, há um
incentivo por parte da Secretaria para que as escolas utilizem as TICs, mas não há um apoio técnico-pedagógico efetivo para
que essa utilização ocorra; também não há projetos de formação contínuos que visem a formação dos professores para o uso
pedagógico dessas tecnologias. A formação depende de iniciativas particulares, embora professores e alunos ressaltem a
importância da formação para o uso das TICs, especialmente, no contexto das exigências do mercado de trabalho para o
trabalhador efetivo ou em potencial. Ao lado disso, o uso das TICs na escola está circunscrita à cultura que está sendo
gestada no interior desse processo. No caso da Escola pesquisada, alguns sujeitos emergem como líderes conduzindo a um
entusiasmo de alunos e professores sobre a matéria. Esse entusiasmo com as possibilidades de uso das TICs não se traduz,
necessariamente, na efetividade da formação na área, mas configura-se como uma condição fundamental nesse processo.

Referências

737
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2002, Caxambu. Disponível em: <http://www.anped.org.br>. Acesso em: 20/07/06.
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Sociedade Brasileira de Computação, 21, 2001, Fortaleza. Disponível em: <http://www.sbc.org.br >. Acesso em: 20/08/02.
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<http://www.anped.org.br>. Acesso em: 22/09/07.
PEREIRA, R. C.; et. al. (2001). Educação de Jovens e Adultos trabalhadores: a contribuição da Informática no processo de
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20/07/06.
TELLES, V. S. (1998). A “nova questão social” brasileira. Estudos Marxistas, São Paulo, 6(1), 11-35.

Inclusão social e educação: tensões e intenções nas políticas curriculares


brasileiras

Anna Rosa Santiago


Unijuí
anna@unijui.edu.br

Resumo: Este texto conduz uma reflexão sobre as condições de possibilidade de um currículo inclusivo no contexto em que se desenvolvem
as políticas públicas de educação no Brasil, a partir da última década do século XX. Leva em consideração o conceito de inclusão
internacionalmente definido, as teorizações sobre currículo e alguns princípios básicos da política neoliberal que vem marcando a
globalização econômica e o discurso educacional no período em questão. Conclui inferindo algumas possibilidades de reestruturação
curricular na perspectiva conceitual em que se propõe a educação inclusiva.
Palavras-chave: Inclusão, igualdade; diferença, competência; qualidade.

Passados quase uma década de promulgação da LDB (Lei 9394/96) e da implantação de política de educação
inclusiva no Brasil é pertinente refletir sobre os efeitos de tais políticas no desenvolvimento curricular a partir da perspectiva
conceitual em que as mesmas têm sido formuladas e divulgadas. Ou seja, na dimensão do direito à cidadania e à participação
social que pretendeu ampliar o entendimento de “educação especial” nas políticas educacionais adotadas desde a década de
1990.
Instituições internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas), a UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura) e o Banco Mundial, foram protagonistas nessa “virada” conceitual que passou
a discutir a inclusão escolar como um direito, que todos os cidadãos possuem, de acesso à educação escolarizada e a conceber
a educação especial, não mais como mero atendimento compensatório aos portadores de deficiência ou, ainda, como
assistencialismo e segregação dos excepcionais e inadaptados, mas como obrigação do Estado e, em conseqüência, da escola
pública de oferecer atendimento diferenciado a todos aqueles que, por motivos diversos, necessitem programas ou interações
pedagógicas especiais para o pleno desenvolvimento de suas possibilidades educativas.
O Conceito de inclusão rompe, assim, as fronteiras da segregação dos “especiais” e os limites dos currículos
fechados para abrir-se ao amplo respeito às diferenças: sociais, individuais, culturais, étnicas, religiosas etc.. Desse
entendimento, associado às teorizações atuais sobre o currículo, resulta a expectativa de que toda educação deve ser sempre
especial e propiciar interações que oportunizem o desenvolvimento individual e a integração social, obedecendo dois
princípios básicos da cidadania: a igualdade de direitos e o respeito à diferença.
A partir de tais princípios, as políticas de orientação curricular levaram as instituições educativas, em especial as
escolas de educação básica e os cursos de formação de professores, a reorganizarem seus currículos e desenvolverem ações
de formação continuada dos docentes a fim de acolher as diferenças e garantir a qualidade do ensino. Todavia, o fantasma da
exclusão não parece ter abandonado a escola. A crescente população de meninos e meninas de rua e os dados do
analfabetismo funcional no Brasil1, nos instigam a refletir sobre o paradoxo da inclusão/exclusão a partir de um olhar sobre o

1
O V Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), divulgado pelo INEP em 8 (oito) de setembro de 2005, apresenta pesquisa realizada pelo IBOPE,
entre os meses de junho e julho do mesmo ano, dando conta de que “só 26% da população brasileira de 15 a 64 anos tem domínio pleno das habilidades de leitura
e escrita exigidas pela vida cotidiana, no universo do trabalho e da participação social e política” (INAF, set. de 2005).
Esta nota continua na página seguinte

738
currículo escolar e as condições de possibilidade de uma prática de igualdade/diferença, levando em consideração as
desigualdades históricas da sociedade brasileira e as relações que definem a implementação das políticas públicas de
educação em países que, como o Brasil, insere-se perifericamente na economia globalizada. Para tanto, coloca-se em questão,
alguns princípios básicos que marcam o desenvolvimento neoliberal no período em questão e seus reflexos sobre as políticas
de orientação curricular.

1. Qualidade e Competência: o desafio neoliberal na pragmática da inclusão


Indubitavelmente, a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em
março de 1990, por convocação da UNESCO, foi um importante marco dos compromissos com a educação assumidos pelos
países que se integravam ao projeto de globalização neoliberal. Foi, também, a partir dos acordos ali firmados que um
conceito pragmático de qualidade de ensino, inspirado nas orientações do Banco Mundial, passou a vigorar nas propostas
oficiais de reorganização curricular, articulando o sentido ético e humanístico da “educação para todos” à racionalidade
instrumental que há muito vem rondando as reformas educacionais brasileiras no intuito de agregar a população como força
produtiva e suplantar, definitivamente, a tradição humanista e propedêutica do ensino.
A dependência de recursos externos para o financiamento da educação impôs, na assinatura dos acordos
internacionais, as reformas que marcaram a educação básica brasileira a partir do Plano Decenal de Educação de 1994, cujas
metas, nos termos da Declaração de Jomtien, seriam as seguintes: a) universalizar o acesso – garantindo sua expansão para
além da faixa de obrigatoriedade e aos grupos tradicionalmente excluídos como os pobres, as minorias étnicas e as mulheres;
b) promover a eqüidade – considerada como uma decorrência da melhoria da qualidade do ensino; c) priorizar a qualidade –
entendida como garantia de aprendizagem efetiva; d) ampliar os meios e raio de ação da educação básica – incluindo a esfera
familiar, os diversos sistemas e todos os instrumentos e canais de comunicação disponíveis; e) fortalecer alianças –
envolvendo todos os setores da sociedade bem como organizações que possam “contribuir significativamente para o
planejamento, implementação, administração e avaliação dos programas de educação básica” (Declaração Mundial sobre
Educação para Todos – Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem – Art. 2º ao 7º).
Em conseqüência, as reformas educacionais e as políticas públicas de educação, que no Brasil estiveram,
tradicionalmente, centradas na expansão da escolaridade, passam a preocupara-se, a partir de então, com orientações
curriculares voltadas especialmente para a educação básica e a formação de professores. Buscando dar conta das questões
históricas da exclusão escolar e do inadequado tratamento pedagógico da educação brasileira, a legislação e as políticas
públicas contemplam o fortalecimento da educação básica e a preocupação com a universalização desse nível de ensino,
incorporando o entendimento de que o acesso e a qualidade do ensino são condições essenciais para a superação das
desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, esse entendimento estabelece uma estreita relação entre qualidade e aprendizagem
útil. De acordo com a Declaração,
A tradução das oportunidades ampliadas de educação em desenvolvimento efetivo – para o indivíduo ou para a
sociedade – dependerá, em última instância, de, em razão dessas mesmas oportunidades, as pessoas aprenderem de fato, ou
seja, aprenderem conhecimentos úteis, habilidades de raciocínio, aptidões e valores. Em conseqüência, a educação básica
deve estar centrada na aquisição e nos resultados efetivos da aprendizagem e não mais exclusivamente na matrícula,
freqüência aos programas estabelecidos e preenchimento de requisitos para obtenção de diplomas.(Declaração Mundial sobre
Educação para Todos – Art. 4º).

Assim, as políticas educacionais da última década, embora tencionadas pelos embates teóricos que colocavam a
questão da qualidade em educação em duas esferas opostas - uma visão economicista e pragmática ligada ao projeto
neoliberal de qualidade total e outra humanista e sociológica que se propõe contemplar a subjetividade e a cultura – assumem
um posicionamento conceitual, na orientação curricular, que procura imprimir um caráter de consensualidade teórica em
propostas como a dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), por exemplo, que pretendeu ser uma ampla política,
incidindo sobre a reorientação dos currículos, a formação de professores e a elaboração de materiais didáticos, preservando-
se, porém, como uma orientação flexível, de caráter não obrigatório. Todavia, o controle sobre a qualidade do ensino, seria
exercida pela avaliação nacional, garantindo, sublinarmente, a perspectiva teórico-pedagógica anunciada pelos PCNs.
Há que considerar, também, que tais políticas emergem num período em que, paralelamente aos processos de
globalização econômica e expansão de novas tecnologias, o Brasil vive a euforia da redemocratização e a perspectiva de
construção de um projeto de desenvolvimento econômico e social capaz de colocar o País em condições de competitividade
no mercado mundial.
Nessa perspectiva, a educação assume uma responsabilidade ampliada, na promoção da inclusão social. De um lado
o compromisso histórico com os excluídos, de outra parte o dever de assegurar, não apenas o acesso de todos à escola, mas
também o domínio de conhecimentos adequados para sustentar a expansão da produção e as forças de mercado, num
contexto de crescente ampliação das tecnologias associadas a todos os setores da vida social. É por essa via que o conceito de
qualidade em educação assume, também, um caráter de competitividade engendrado por dentro do discurso democrático,

739
traduzido no conceito de competência, que passa a substituir o enfoque, antes aferido à formação técnica. Isso porque os
conhecimentos considerados “básicos” para a integração no mundo do trabalho e para o exercício da cidadania permanecem
como principal fator de mobilidade social numa estrutura produtiva, agora, dominada por tecnologias cada vez mais
complexas que ampliam, ao mesmo tempo, o desemprego, a exclusão e o estímulo ao consumo, provocando tensão e conflito
social. As políticas públicas propõem-se, assim, o desafio de
Vir a propor uma prática educativa adequada às necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais da realidade
brasileira, que garanta as aprendizagens essenciais para a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes
de atuar com competência (grifo meu), dignidade e responsabilidade na sociedade em que vivem (PCN, Vol. I, p. 33).
O discurso da competência passa a veicular nas orientações curriculares para a educação básica e nas diretrizes dos
cursos de formação de professores2 numa perspectiva conceitual que vincula as questões sociais e o exercício profissional na
estreita relação entre teoria e prática. Nos termos das diretrizes do MEC a concepção de competência é nuclear nos cursos de
formação de professores
As competências tratam sempre de alguma forma de atuação, só existem “em situação” e, portanto, não podem ser
apreendidas apenas pela comunicação de idéias. Para constituí-las, as ações mentais não são suficientes – ainda que sejam
essenciais. Não basta a um profissional ter conhecimento sobre seu trabalho; é fundamental que saiba fazê-lo (MEC, 2000, p.
33).
Essa visão pragmática, ainda que legítima e, talvez, adequada às necessidades do novo contexto social, político e
econômico brasileiro incorpora-se à racionalidade instrumental e tecnicista que orientou as reformas da década de 1970 e, no
âmbito da exclusão social e do desemprego crescente, faz do respeito às diferenças um instrumento que, paradoxalmente, tece
no interior do discurso democrático da inclusão escolar os caminhos da exclusão social. A reivindicação de uma competência
segundo a qual um profissional deve possuir, além de uma sólida formação geral, os conhecimentos específicos de sua área e
“compreensão das questões envolvidas em seu trabalho, sua identificação e resolução, autonomia para tomar decisões,
responsabilidade pelas ações feitas”. (idem.), mantém um considerável número de pessoas escolarizadas e, mesmo formadas
em curso superior, fora do mercado de trabalho.
O desafio da qualidade traduzida em um amplo leque de competências fragiliza, assim, as condições de
possibilidade de inclusão escolar nos termos definidos pelas políticas públicas, pois caberia a escola prever uma
reestruturação curricular capaz de atender a ambígua reivindicação de, a um só tempo: garantir conhecimentos básicos para
integração dos cidadãos na “sociedade do conhecimento”, pelo domínio de tecnologias e conhecimentos teórico-práticos em
permanente dinâmica de expansão e reconstrução; respeitar, no desenvolvimento curricular, as diversidades (sociais, culturais
e regionais) que se expressam em diferentes saberes, valores éticos, padrões estéticos, crenças religiosas e tradições culturais,
tão presentes na sociedade brasileira.
É no âmbito dessas discussões sobre o caráter que deve assumir um currículo inclusivo que se abandona a pretensão
de igualdade para, em conivência com as práticas neoliberais, forjar-se o conceito de eqüidade, associado à proposta de
currículo único e conhecimentos mínimos.

2. Eqüidade e Inclusão: o fim da utopia de igualdade


Nas últimas décadas, à medida que avançavam os processos de globalização, consolidando as políticas neoliberais,
foram se desvanecendo as utopias de igualdade anunciadas pelo liberalismo clássico como possibilidades individuais e
sociais. Nas relações internacionais, o conceito de dependência, antes situado no âmbito das relações de poder e visto como
pressão hegemônica exercida pelos países economicamente mais fortes sobre as nações endividadas e culturalmente
dependentes, foi cedendo lugar a uma visão sistêmica ligada à economia globalizada, “segundo a qual todos os países devem
funcionar de acordo com as diretrizes internacionais para não perturbar o equilíbrio do sistema” (Fonseca, 1999, p. 68).
Associada à conscientização sobre os problemas ambientais, que também eclodiram nesse período, essa nova
concepção de relações econômicas e políticas exclui a possibilidade de os países “emergentes” integrarem-se em condições
de igualdade ao bloco dos países desenvolvidos, uma vez que à dependência econômica soma-se, agora, o limite na
exploração de seus recursos naturais para não comprometer o equilíbrio ecológico. Segundo Fonseca (1999), é nessa fase que
a intervenção do Banco Mundial nos países em desenvolvimento provoca um deslocamento conceitual, substituindo a noção
de igualdade, antes recorrente nos documentos e discursos do Banco, pelo termo eqüidade. Segundo a autora:
(...) no começo doa anos 50, quando o Banco passou a financiar o chamado terceiro mundo, promovia-se o
crescimento dos países balizados por uma noção de progresso concebida linearmente, como se este fosse acessível a todos os
países igualmente, desde que tivessem vontade política de desenvolver-se e desde que os países centrais os ajudassem,
tecnológica e financeiramente. Essa noção foi-se modificando até que, no final dos anos 70, a noção de progresso contínuo e
linear deu lugar à noção de sustentabilidade, que pressupunha maior parcimônia na utilização de recursos naturais e a
necessidade de delimitar o crescimento das diferentes nações (Fonseca, 1999, p. 69).

2.
A perspectiva de formação de competências é central tanto no texto da “Proposta de Diretrizes para Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em
Cursos de Nível Superior”, divulgado pelo MEC em maio de 2000, quanto na Res. CNE/CP Nº. 1/2002 que “Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para os
Cursos de Formação de Professores da Educação Básica, em Nível Superior, Cursos de Licenciatura de Graduação Plena”.

740
Nessa circunstância, é compreensível por que o discurso sobre igualdade foi, também, substituído pela noção de
eqüidade nas políticas públicas de educação. Diferente do compromisso com a igualdade, a eqüidade reconhece os direitos
particulares e individuais, sem contudo, responsabilizar-se frente às condições externas que determinam as desigualdades.
Admitir o direito à igualdade significa reconhecer como legítimo o acesso de todos aos bens sociais, o que implicaria em
afastar as barreiras que impedem os indivíduos e as nações de participarem dos benefícios gerados pelo progresso que, de
acordo com a visão sistêmica, todos produziram. A eqüidade é menos comprometedora, pois, segundo Fonseca (1999),
“fundamenta-se numa justiça mais espontânea”, centrada na ação individual, no reconhecimento de direitos conquistados e na
distribuição dos benefícios sociais numa perspectiva de equilíbrio de modo que não interfira no funcionamento sistêmico do
desenvolvimento.
Esta é a concepção que perpassa os PCN e, em conseqüência, as políticas educacionais da última década, quando se
propõe “uma prática educativa adequada às necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais da realidade brasileira”
(PCN, Vol. I, p.33) e estabelece como critério de qualidade o princípio da eqüidade.
Na medida em que o princípio da eqüidade (grifo meu) reconhece a diferença e a necessidade de haver condições
diferenciadas para o processo educacional, tendo em vista a garantia de uma educação de qualidade para todos, o que se
apresenta é a necessidade de um referencial comum para a formação escolar no Brasil, capaz de indicar aquilo que deve ser
garantido a todos, numa realidade com características tão diferenciadas sem promover uma uniformização que descaracterize
e desvalorize peculiaridades culturais e regionais. (PCN, Vol. I, p. 36).
Ao reconhecer a desigualdade de condições, um referencial curricular comum, fundamentado no princípio da
eqüidade, expõe-se ao risco do “nivelamento por baixo”, ou à redução das políticas de inclusão à mera tolerância e
acolhimento dos “diferentes” na escola. Este parece ter sido o efeito de tais políticas, a julgar pelos índices de analfabetismo
funcional antes citado.
Em outra perspectiva, o princípio da eqüidade deveria ter orientado o planejamento educacional e a distribuição de
recursos e insumos de forma a proporcionar condições de permanência e aprendizagem de todos no sistema escolar,
considerando as desigualdades sociais. Assim, para além do mero reconhecimento das diferenças na orientação curricular e
das políticas compensatórias como garantia da obrigatoriedade escolar,3 uma política que pretenda buscar a equalização como
base para a qualidade do ensino teria de pautar o financiamento da educação em critérios que favoreçam o incremento da
qualidade pretendida nas comunidades mais carentes (zona rural e periferias urbanas) e não apenas no número de alunos
matriculados em cada sistema de ensino, como o fez o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental).
O FUNDEF, em que pese o seu mérito de adição de recursos nas escolas e na formação de professores, não
contemplou a educação básica como um todo, deixando de fora a educação infantil e o ensino médio. Também não
considerou critérios de discriminação positiva para garantir e eqüidade com qualidade, tais como as desigualdades sócio-
econômicas reais existentes em regiões ou escolas de população educacional semelhante.4
De outra parte, a necessidade de financiamento externo para a educação, tem atrelado a questão da qualidade à
visão utilitarista dos órgãos financiadores. Assim, a qualidade é definida pelos critérios de eficiências e produtividade
associados a padrões de rendimento escolar medido por meio de um sistema oficial de avaliação, nem sempre coerente com
os princípios de inclusão, que se fundamentam na flexibilidade dos currículos. Este é, portanto, mais um paradoxo das
políticas de inclusão no currículo escolar: a qualidade educacional avaliada a partir de padrões de rendimento escolar
eqüitativo e uniforme, no âmbito de um discurso de flexibilização e atendimento às diferenças.
Na contramão dessas políticas, as discussões acadêmicas têm situado a qualidade da educação e a questão da
inclusão no campo das relações ético-políticas e humanistas, reivindicando um currículo suficientemente flexível e autônomo
para contemplar, nas práticas pedagógicas, a pluralidade étnica, a situação de classe, as diversidades regionais e, em
conseqüência, os diferentes saberes que interagem nas relações escolares. Argumenta-se em favor de um currículo que possa
abrir espaços de valorização igualitária a conhecimentos, valores éticos, expressões estéticas, crenças e formas de
organização social próprias dos diferentes grupos que constituem a nação brasileira, tais como as populações indígenas, as
comunidades quilombolas, os habitantes das favelas, as crianças que vivem nas ruas, os descendentes de imigrantes, os
trabalhadores rurais e tantos outros excluídos, cuja cultura e saberes têm sido silenciados.

3. Os desafios de um currículo inclusivo tencionado pelas ambigüidades


Certamente, o impacto da mudança no conceito de educação especial e as políticas de inclusão escolar atingem o
fundamento normativo do currículo que, tradicionalmente, vem sendo desenvolvido na educação básica brasileira e coloca a
escola e os sistemas educacionais ante o desafio crucial de superar os problemas de aprendizagem e a conseqüente exclusão
social de um número significativo de pessoas que passam pela escola e dela saem sem ter se apropriado nem mesmo das
técnicas de leitura e escrita e dos conhecimentos considerados básicos para serem considerados “letrados”.
Nessa perspectiva, a “eqüidade”, proposta pelas políticas públicas, e a inclusão de “todos” no ensino regular
requerem mais do que a mera obrigatoriedade de acolher, na escola, as diferenças sociais e individuais. Exigem, atendimento

3
Bolsa Escola; Vale Alimentação; etc.
4
Ver a esse respeito a Lei nº 9.424 de 24 de dezembro de 1996.

741
especializado, interações multidisciplinares e uma proposta pedagógica cuja organização e dinâmica curricular possibilite a
integração efetiva, com a conseqüente aprendizagem e desenvolvimento de habilidades sociais e subjetivas, sem
discriminação dos considerados menos, ou mais, favorecidos. Isso significa que não basta dar oportunidade de matrícula a
todos pela força da lei. É preciso criar condições concretas para a aprendizagem na valorização e respeito às diferenças, o que
implica em ações pedagógicas integradas entre professores e especialistas de outras áreas.
Todavia, embora os movimentos de reconceptualização das teorias curriculares tenham se fortalecido nos últimos
vinte anos, ainda permanecem, dificultando o desenvolvimento de currículos inclusivos, a cultura excludente da educação
brasileira e a tradição conservadora em relação ao conhecimento escolar. Isto faz com que, apesar da autonomia conquistada
pela escola na construção de seu projeto político-pedagógico, ainda persistam resistências às inovações e incompreensões
acerca do caráter político e excludente dos currículos em desenvolvimento. Daí porque a primeira tarefa da escola, no
planejamento de uma educação inclusiva, é situar-se no entendimento de que a estrutura e a dinâmica curricular que
conformam sua proposta pedagógica são "invenções sociais" legitimadas pelas relações de poder (econômico, político e
cultural) de um dado momento histórico (Silva, 1999). Portanto, não são estruturas definitivas e imutáveis, mas sim
organizações contingentes e provisórias que estão a exigir, no contexto atual da sociedade brasileira e ante as propostas de
educação inclusiva, uma radical revisão e redirecionamento.
Isso significa que as instituições precisam rever suas propostas político-pedagógicas e ponderar a crítica curricular
contemporânea entendendo, como Paulo Freire, que "o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma
imposição - um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e
acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma inestruturada" (Freire, 1985, p.98). No entanto,
para que esta utopia da educação libertadora seja possível, é necessário superar o entendimento de currículo como uma
estrutura fixa e objetiva onde os conteúdos considerados “universais” são impostos pelas matérias ou disciplinas
fragmentadas, com autoridade e legitimidade na veiculação de conhecimentos "organizados em 'zonas' que correspondem a
tipos diferentes de objetos que teriam existência independente dos indivíduos cognoscentes" (Silva, 1999, p. 68).
Uma proposta pedagógica que contemple os sujeitos em suas diferenças precisa inverter a lógica do planejamento
curricular, tradicionalmente centrada na estrutura normativa e nos conteúdos informativos, e assumir como princípio a
dinâmica do processo de significação do mundo pelos sujeitos aprendizes, pois a inclusão, nos termos em que vem sendo
definida teoricamente, requer a ousadia de propostas coerentes com as condições e possibilidades reais de aprendizagem e
ensino em cada escola.
Um currículo inclusivo supõe, também, que no reconhecimento da multiculturalidade e das diferenças não sejam
minimizadas as questões pedagógicas relativas à seleção e organização das informações mediadoras na construção do
conhecimento, nem tampouco as metodologias e as formas de avaliação mais adequadas à cultura dos sujeitos escolarizados.
Há que considerar, ainda a atualidade dessas escolhas nas determinações da sociedade atual, crescentemente dominada pela
tecnologia e pela comunicação. É preciso, como propõe, Giroux e MacLarem (1995),
reconhecer que habitamos uma cultura fotocêntrica, auditiva e televisual na qual a proliferação de imagens e sons
eletronicamente produzidos serve como uma forma de catecismo da mídia, uma pedagogia perpétua, através da qual os
indivíduos ritualmente codificam e avaliam os envolvimentos que fazem nos vários contextos discursivos da vida cotidiana
(Giroux & McLarem. In. Silva, 1995, p. 144).
Reconhecendo que estes contextos produzem, não apenas conhecimentos, mas também subjetividades, um
currículo inclusivo deve levar em conta as novas relações com o saber impostas pelas tecnologias da comunicação, mesmo
que a escola esteja, ainda, distante dos recursos modernos da "sociedade em rede" (Castells, 1999) ou da "cibercultura"
(Lèvy, 1999), pois é impossível ignorar que, no novo paradigma que se instala na sociedade informatizada, também se
ampliam os conceitos de alfabetização e letramento, exigindo desenhos curriculares flexíveis, que atendam a perfis de
competências singulares e que, por isso mesmo, não podem ser planejados externamente em esquemas fechados de
programas válidos para todos.
Pode-se, assim concluir que, apesar da ressignificação conceitual apontada pelas políticas públicas e da boa vontade
das escolas na reconstrução curricular, muitos entraves necessitam, ainda, ser superados para a implementação de uma
inclusão efetiva na escola, e na sociedade a partir dos efeitos da escolarização. O primeiro deles, diz respeito à concepção
objetivista de currículo, herdeira do paradigma instrumental da modernidade e por isso mesmo, fundamentada nos binarismos
que definem o certo e o errado; o capaz e o incapaz; o saber e o não saber... tecendo as teias da exclusão na determinação dos
territórios de legitimidade sobre o “bom” e o “mau” aluno, sobre aprendizagens “bem-sucedidas” e “mal-sucedidas”, sobre
crianças “normais” e “deficientes”.
De acordo com Popkewitz (2001), nessa perspectiva “a pedagogia funciona como ‘mapas’ em cujos princípios de
conhecimento circulam normas sobre a criança ‘saudável’ que, por exemplo, tem capacidade para resolver problemas e tem
auto-estima elevada”. Esses mapas discursivos, não são apenas descritivos, são, também, normativos na medida em que
incorporam distinções e divisões que enquadram, não somente os sujeitos considerados incapazes de aprender e desempenhar
funções sociais, mas também aqueles que representam risco às normas estabelecidas, os evadidos, os delinqüentes. A estes
últimos tem sido dedicados programas especiais com apoio de instituições de assistência social e ONGs.
Todavia, pelo que se tem constado em pesquisas recentes, mesmo as escolas que se propõem a desenvolver projetos
alternativos para acolher menores evadidos e com recomendação judicial, não têm conseguido ultrapassar as fronteiras do
assistencialismo e a visão tradicional de currículo informativo e disciplinador.

742
Em relação à escolarização de crianças consideradas com distúrbios graves, um encontro com a psicanálise, nas
reflexões sobre a inclusão, poderá ajudar a superar o fundamento epistemológico que tradicionalmente conduziu as práticas
pedagógicas, ou seja, a visão de um sujeito radicalmente dividido entre o “emocional” e o “cognitivo”. Segundo Kupfer
(2000), “ao debruçar-se sobre o ato de educar, a psicanálise, munida de suas lentes, verá uma outra criança, diferente daquela
que a modernidade se habituou a ver com as lentes imaginárias ou ideológicas que nos foram colocadas no rosto por
injunções sócio-políticas” (p.36).
Este novo olhar, que se volta para o sujeito e não mais para o sintoma que ele apresenta; que percebe as
“diferenças” definidas a partir do padrão escolar como engendramentos históricos e não mais como “naturais”, revoluciona a
pedagogia e o currículo escolar abrindo espaço de interlocução entre os diferentes profissionais que atuam no processo
educativo na busca de uma inclusão efetiva, na escola e na sociedade.
Por fim, é possível inferir que a educação inclusiva não é tarefa apenas da escola e dos professores, nem, tampouco,
se faz pela mera formulação de políticas assistencialista, mas se consolida no compromisso político assumido por todas as
instâncias da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WVA Editora..
Freire, P. (1983) Pedagogia do Oprimido. 14º edição. Rio de Janeiro: Paz
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Santos, M. P.(1998) Revisitando a Inclusão sob a Ótica da
Globalização: duas leituras e várias conseqüências. In Silva L. H
(org.) A Escola Cidadã no Contexto da Globalização. Petrópolis, RJ, Ed. Vozes.
Santos, M.& Oliveira, Renato J.( 1999) Além da Visão Liberal de
Tolerância: um passo na construção de uma ética que inclua o
portador de deficiências e demais excluídos na escola e na sociedade.
In Contexto e Educação, ano 14, nº 56, Out/Dez. 1999, p. 7 - 23. Ijuí:
Ed. UNIJUÍ.
Silva, L. H. (org.) (1999) Século XXI: Qual Conhecimento? Qual
Currículo? Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
Silva, T. T. (org.) (1995) Territórios Contestados: o currículo e os
novos mapas políticos e culturais. Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
Silva, T. T. (1999) O Currículo como Fetiche: a poética e a política
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REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS
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________ Ministério da Educação.(1997) Parâmetros Curriculares Nacionais. Secretaria de Educação Fundamental (SEF). 10
Vol.
_________ Ministério da Educação.(2000) Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação
Básica, em Cursos de Nível Superior.
_________Conselho Nacional de Educação(2002) Res. Nº 1/2002 Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação
de Professores da Educação Básica, em nível Superior, Cursos de Licenciatura de Graduação Plena.

Portadores de necessidades especiais no ensino regular

Lúcia Regina Barcelos Só


Faculdades Porto-Alegrenses
luciaso2@hotmail.com

Priscila da Rosa

743
Alex Valério

Resumo: O presente artigo aborda algumas questões teóricas a respeito da necessidade de entender o processo de inclusão de portadores de
necessidades especiais nas escolas no Ensino Regular, além de um breve histórico sobre formação de professores para Educação Especial no
Brasil. Em seguida, demostrar alguns artigos da legislação brasileira sobre formação de professores para a Educação Especial. O assunto
inclusão do portador de necessidades funciona como uma quebra de tabus aplicado a novos paradigmas da educação brasileira legalmente
amparado pela Lei n.º 9394/96, o qual mostra que é obrigação da família e do Estado preparar todo indivíduo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho. É através da escola regular que o ser humano portador de necessidade especial pode buscar as mais
diferentes formas de inserir-se na sociedade de forma ativa e participativa na finalidade de realizar seus sonhos, até então desprezados,
dando-lhes apoio a auto-estima, segurança e oportunidades de viver, recebendo amor, carinho, igualdade, valorização e o respeito em suas
diferentes limitações, principalmente valorizando suas habilidades.

Introdução
Esta pesquisa é oriunda da realidade nas escolas que excluem, ou melhor, que marcam as diferenças existentes no
mundo escolar e social. Pensar a reformulação da escola é tarefa coletiva, especialmente daqueles que estão atuando no seu
interior. No micro-espaço da vida escolar podemos encontrar as fortes contradições entre o discurso e a prática, entre os
projetos pedagógicos "de ponta" e as precárias condições estruturais. É ali, onde se encontram professores e alunos e, em
alguma medida, pais, que se pode ver de perto os efeitos perversos de uma política educacional, para dizer o mínimo,
idealista, a-histórica, desenraizada das condições reais da existência.
O enfrentamento dessas condições pressupõe um conhecimento das formas como as entendemos e explicamos:
como significamos nossa rede de relações. É aí que o sistema educacional, especialmente na sua vertente socio-interacionista,
pode contribuir, ajudando a desconstruir estruturas conceituais que aparentemente contribuem para o avanço da educação,
como, por exemplo, ao entender a escola como espaço produtor e promotor da igualdade, acabamos por reduzir nossa
capacidade de lidar com as diferenças. Conhecer como os membros da escola, nas suas interações, lidam com conceitos como
igualdade e diferença, como, ao buscar diferenciar-se, enfrentam a rejeição e, ao tentar igualar-se, lidam com as perdas em
singularidade, pode ser importante para entender os conflitos criados pela situação de inclusão das crianças com necessidades
educativas especiais na chamada escola regular.
Pode ser fundamental para a construção de novos projetos educacionais que pressuponham a diferença como
elemento de construção da convivência e do conhecimento. Referenciarmos-nos na teoria socio-interacionista, especialmente
vygotskyana, para lidar com esse problema se justifica por que tal teoria defende que a aprendizagem é construção coletiva, e
mais do que isso é o processo que potencializa e "empurra" o desenvolvimento. Assim, é coletivamente, na articulação com o
outro e suas diferenças, que o ser humano aprende e se constrói enquanto singularidade.

O meio social
A história revela para a humanidade o caminho da exclusão social e humana do homem. Se, no passado, o
indivíduo com algum comprometimento era banido da sociedade através da morte, hoje, este tipo de eliminação não é mais
praticado, porém uma exclusão sutil acontece através das instituições, como cadeias, asilos e tantas outras que foram criadas
com este objetivo: segregar o "diferente" da sociedade.
Marques (1997) diz, “enquanto a pessoa está adequada às normas, no anonimato, ela é socialmente aceita. Basta, no
entanto, que ela cometa qualquer infração ou adquira qualquer traço de anormalidade para que seja denunciada como
desviante”. A pessoa portadora de alguma deficiência convive socialmente com sua família, porém este convívio não se
estende na escola, no clube, na igreja e nas outras áreas da sociedade porque é colocada como um ser diferente. O autor
aponta como causa os seguintes conceitos básicos: pessoas portadores de deficiência não correspondem às expectativas, são
anormais, diferentes (estigmatização); pessoas portadores de deficiência não são muito capazes, são pouco produtivas;
pessoas portadores de deficiência são estigmatizadas, o estigma cria preconceitos que, por si, gera medo, e o medo provoca
ignorância e afastamento; pessoas portadores de deficiências não se encaixam no valor da sociedade.
Considerando que a diferença é inerente ao ser humano, e reconhecendo a diversidade como algo natural, em que
cada ser pode usar de seus direitos coletivos na sociedade, um novo conceito surge, denominado Inclusão. Este é o termo que
se encontrou para definir uma sociedade que considera todos os seus membros como cidadãos legítimos. Reconhecer as
diferenças é essencial no caminho da integração e, principalmente, da inclusão, onde se espera que o professor não faça da
turma uma homogeneidade, trabalhando como se todos tivessem a mesma capacidade na sua construção do conhecimento.

O inserção no ambiente escolar


O capítulo V - da Educação Especial, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lança, tanto para a escola
como para toda sociedade, um desafio muito grande no que se refere à Inclusão. Falamos em sociedade, pois a escola está

744
inserida em um contexto social o qual se modifica com o desenvolvimento de sua gente, de sua tecnologia, de sua ciência,
envolvidos em uma estrutura globalizada.
A escola, como uma instituição mediadora na construção do conhecimento, tendo como objetivo levar cultura para
um número cada vez maior de pessoas, leva para si uma gama de responsabilidade muito grande. É através da escola que a
sociedade adquire, fundamenta e modifica conceitos de participação, colaboração e adaptação. Embora outras instituições
como família ou igreja tenha papel muito importante, é da escola a maior parcela.
Nosso desafio como profissionais da educação será o de trabalhar por uma escola inclusiva, com qualidade de
ensino, pois sabe-se da importância da educação básica. A educação básica é a mola mestra do desenvolvimento econômico e
social de um país. É claro que ela não está só neste desafio. Necessitamos de uma justiça que funcione, de uma saúde que
abrigue a todos e de uma política comprometida com o cidadão. Quanto mais sistemas comuns da sociedade adotarem a
inclusão, mais cedo se completará a construção de uma verdadeira sociedade para todos.
Segundo Mantoan (1997), “acreditamos, que ao incluir o aluno com deficiência mental na escola regular, estamos
exigindo desta instituição novos posicionamentos diante dos processos de ensino e de aprendizagem, à luz de concepções e
práticas pedagógicas mais evoluídas”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente recomenda, em seu Art. 15 "A criança e o adolescente têm direito à
liberdade, ao respeito e à dignidade como seres humanos em processo de desenvolvimento (...)" E continua, no Art. 53 "A
criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa... assegurando-lhes
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (...)"
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº. 9394/96, em seu Capítulo V Da Educação Especial, diz que:
Art. 58." Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais".
Considerando o aspecto legal inserido na lei, e o científico em que de acordo com Vygotsky (1991) “o ser humano
cresce num ambiente social e a interação com outras pessoas é essencial a seu desenvolvimento, estas exigências requererem
da escola uma nova estrutura, um novo conceito em relação à formação do futuro cidadão e uma visão renovada de seus
conceitos e pré-conceitos com relação ao diferente”. A questão da integração representa um movimento de inovação do
sistema de ensino que, em princípio, já deveria existir, abrangendo as diferenças existentes mesmo entre os não deficientes.
Para Marques (1997) “na verdade, o que o homem vê e teme é a sua própria fragilidade perante a vida, a sua
própria finitude. O conflito originado do confronto do que ele é com o que ele pode vir a ser provoca no homem toda repulsa
em relação à diferença”. Por vezes, não se aposta na Inclusão, por ser ela algo que ainda não aconteceu, os professores terão
que inovar sua própria prática, seu próprio conceito, e isso mexe com muitas estruturas que já estão de certa forma
enraizadas. Conforme Mantoan (1997) “as grandes inovações estão, muitas vezes, na concretização do óbvio, do simples, do
que é possível fazer, mas que precisa ser desvelado, para que possa ser compreendido por todos e aceito sem outras
resistências, senão aquelas que dão brilho e vigor ao debate das novidades“.
Segundo o pensamento de Vygotsky (1999) “uma criança portadora de um defeito não é simplesmente uma criança
menos desenvolvida que as demais, apenas se desenvolve de forma diferente”. A criança em sua essência é a mesma, precisa
do outro para se socializar e crescer como pessoa e ser humano. Construir seu conhecimento através de sua interação com os
demais fará do P.N.E. um ser capaz como os outros, não da mesma forma, mas com suas limitações, seus desejos, suas
frustrações, seus sonhos e sua vontade de ser respeitado como gente que pensa, sofre, ama, sorri, se decepciona e que busca o
que todo ser humano deseja, ou seja, ser feliz e aceito por todos. O objetivo é comum: o de construir um conhecimento capaz
de transformar uma realidade, operando mudanças de forma efetiva considerando as diferenças e as individualidades.
(...) eu agora diria a nós, como educadores e educadoras: ai daqueles e daquelas, entre nós, que pararem com a sua
capacidade de sonhar, de inventar a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai daqueles e daquelas que, em lugar de visitar
de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora, ai daqueles que em
lugar desta viagem constante ao amanhã, se atrele a um passado de exploração e de rotina. (FREIRE, 1982, p. 98)
Temos dois caminhos a seguir: ou saímos da rotina como sugere FREIRE e buscamos inovar a prática pedagógica
diante da inclusão, ou ficamos discutindo que a mesma não é viável, jogando a culpa no sistema de ensino, nos ombros do
governo, na família e em todos os setores da sociedade. Que garantias temos de que a Inclusão terá sucesso? Ou quando estas
mudanças ocorrerão na prática? Essas respostas só serão respondidas quando passarmos dos discursos e dos debates para a
prática em toda sua plenitude.

A educação especial e o comportamento dos professores


Educadores Especiais tem que demonstrar respeito para com seus alunos como seres humanos únicos. Eles devem
entender similaridades e diferenças no desenvolvimento humano e características entre indivíduos com e sem necessidades
excepcionais de aprendizagem (NEA). Além disso, educadores especiais têm que entender como condições excepcionais
podem interagir com os domínios do desenvolvimento humano e devem usar esse conhecimento para responder a uma
variedade habilidades e comportamento dos indivíduos com NEA. Os educadores especiais precisam também entender o
impacto que as experiências dos indivíduos com NEA podem causar nos seus familiares em termos habilidades para
aprender, interagir socialmente, e viver como membros contribuintes da comunidade.

745
Entender os efeitos que a condição excepcional pode exercer sobre o aprendizado do indivíduo na escola e ao longo
de sua vida. Tem que ter em mente que as crenças, tradições e valores culturais podem afetar as relações entre estudantes,
familiares e escolas da comunidade. Além do mais, os educadores especiais devem procurar entender como a primeira língua,
cultura e background familiar interagem com as condições excepcionais dos indivíduos podem causar impacto nas
habilidades sociais, atitudes, valores, interesses e opções de carreira dos indivíduos. O entendimento dessas diferenças de
aprendizagem e suas possíveis interações oferecem a fundamentação sobre a qual o educador especial vai individualizar a
instrução para oferecer aos indivíduos com NEA um aprendizado desafiador e funcional.
Planejamento Instrucional individualizado baseado em decisão de pais e profissionais, devem estar disponíveis nos
centros que oferecem serviços em Educação Especial. Os educadores especiais desenvolvem um plano de Instrução
individualizada a longo prazo ancorado em ambos, currículo especial e geral. Adicionalmente, os educadores especiais
traduzem esses planos individualizados em objetivos de curto prazo cuidadosamente selecionados onde se leva em
consideração as habilidades e necessidades dos indivíduos, e os múltiplos fatores culturais e lingüísticos. Os Planos de
Instrução Individualizada enfatizam modelos específicos e se constitui num guia prático e eficiente que garante a aquisição e
fluência da manutenção e generalização. O entendimento desses fatores, bem como as implicações das condições
excepcionais do indivíduo orienta o educador especial a selecionar, adaptar, criar e usar variáveis instrucionais valiosas. Os
planos instrucionais são utilizados para análise contínua do progresso da aprendizagem do indivíduo. Mais ainda, os
educadores especiais ajudam na facilitação desse plano instrucional num contexto colaborativo, incluindo o indivíduo com
NEA, sua família, os profissionais e pessoas de outras agências. Eles também desenvolvem uma variedade de planos
individualizados de transição, tais como: transição do ambiente de ensino infantil para o ensino fundamental, e do ambiente
do ensino médio para uma variedade de postos de trabalho e contextos de aprendizagem. Enfim, os educadores especiais se
sentem capacitados para utilizar tecnologias apropriadas que dão suporte à instrução e planejamento individualizado.

A formação de professores
Segundo Silva (1992), “a compreensão da natureza da ocupação docente é sem dúvida um objetivo importante. Mas
a tentativa de entendê-la a partir do modelo do processo de trabalho capitalista diretamente produtivo tem se mostrado
improdutiva e inútil, servindo mais para confundir que para esclarecer”. Embora a estrutura organizacional da Escola tente
imprimir um processo de divisão do trabalho (diretores, supervisores, orientadores, coordenadores pedagógicos, professores,
alunos e funcionários) estes sujeitos históricos da Educação não se relacionam de forma imediata, são relações mediatizadas
pelo saber onde, o produto do trabalho pedagógico (devir do educador, do educando e do conhecimento escolar) depende dos
sujeitos que se envolvem no processo. Estes saberes (escolares) que mediatizam as relações sociais no espaço escolar
possuem seus processos históricos específicos produzindo assim práticas pedagógicas diferenciadas, influenciando de forma
singular na constituição dos sujeitos da educação.
Mazzoni (1993) nos diz, “em linhas gerais, há duas racionalidades em oposição, ou seja, a racionalidade dos
formadores de especialistas em um campo do saber e dos formadores ou trabalhadores da educação”. Segundo o autor, os
formadores de professores “não consideram que o conhecimento de uma área deve ser a mais extensa e profunda possível, já
que não é neste nível que ensinará aos pré-adolescentes e adolescentes", e para os especialistas, os formadores são
pedagogistas reduzindo o conhecimento ao que será ensinado nas escolas fundamentais e médias”. Se olharmos para nossa
estrutura departamental, nas Universidades que formam professores, é lugar comum admitir que existe um desconhecimento
do valor do pedagógico nas áreas de formação do especialista e, no processo de formação do professor o conteúdo específico
vai apresentar um valor em si. Admitir que a área educacional desconhece o valor que o conhecimento profundo na área
específica do futuro professor, em nosso entender se constitui, no mínimo, como um falso problema para o estudo da
formação de professores.

Conclusão
Inclusão escolar vai ao viés do que é direito, do que é importante para cada ser humano, em cada época específica
de sua vida, respeitando seus momentos, suas capacidades e necessidades. Todas as pessoas têm direito a uma educação de
qualidade onde suas necessidades individuais possam ser atendidas e aonde elas possam desenvolver-se em um ambiente
enriquecedor e estimulante do seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social, seja ele regular ou especial. Para que o
processo inclusivo se concretize como uma realidade educacional, aspectos são importantes pontuar: a discussão deve ir além
do sistema de ensino regular ou especial, e sim de sistemas de ensino de qualidade que atendam a diversidade de alunos que
ali buscam seu conhecimento formal; os professores de qualquer área ou série necessitam de formação continuada, sobre
necessidades especiais e sobre como se dá desenvolvimento cognitivo das pessoas em seu processo de aquisição de
conhecimentos; as escolas necessitam mudar, todas, sem exceção; processo inclusivo de alunos com necessidades especiais
em escolas regulares demanda redimensionamento financeiro dos sistemas e instituições na implementação de serviços de
apoio.
São necessários novos professores, com novas formações e sim que os professores de hoje frente ao novo contexto
de inclusão possam refletir como vão usufruir de suas concepções e conhecimentos adquiridos durante sua vida para
posicionar-se em uma classe de escola inclusiva. Salientamos que, antes de qualquer coisa aceitar e valorizar a diversidade é

746
o primeiro passo para fazer parte de um processo inclusivo, e de criação de uma escola de qualidade para todos. Se não há
este item importante, todo o trabalho se perde nas posturas rígidas e engessadas de professores ou instituições.

REFERÊNCIAS
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Janeiro: Graal.
FREITAS, S. N. Formação de Professores: Interfaces entre educação e a educação especial. In: E. G. Mendes, M. A. Almeida
e L. C. A Wiliams (Orgs). Temas em Educação Especial: Tendências Atuais. São Carlos: Edufscar, No prelo.
LEI FEDERAL 8069/1990.(1996). Estatuto da Criança e do Adolescente. Ed. Palloti, Santa Maria.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér.(1997). A Integração de pessoas com deficiência: contribuições para uma reflexão sobre o
tema. São Paulo: Memnon. Editora SENAC.
____. (2003). Uma escola de todos, para todos e com todos: o mote da inclusão.. In STOBÄUS, C. D.; MOSQUERA, M.
(Orgs.). Educação Especial: em direção à educação inclusiva. Porto Alegre: EDIPUCRS, (pp. 27-40).
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estamos implementando a educação (de qualidade) para todos nas escolas brasileiras. São Paulo: Memnon. (pp. 223-240).
ROSA, Dalva E.Gonçalves (2002).; SOUZA, Vanilton Camilo de (orgs.). Políticas organizativas e curriculares, educação
inclusiva e formação de professores. Rio de Janeiro, DP&A.
VYGOTSKY, Lev. (1991). S., A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes.
____.(1997). Obras Escogidas V – Fundamentos de defectología. Madrid: Visor Dis.

“Só morre quem merece”: representações e estratégias dos jovens alunos para
conviver com a violência extramuros

Bruno Eduardo Ferreira


Faculdade Metodista do Espírito Santo
bruno.ferreira@metodistaes.edu.br

Rafaela Cavalcanti
Faculdade Metodista do Espírito Santo
rafaela.cavalcanti@bol.com.br

Resumo: Este trabalho se refere a uma pesquisa realizada no ano de 2007, que teve como objetivo central investigar as possíveis
interferências da Violência Urbana extramuros nas relações sociais estabelecidas entre os jovens alunos na e com a escola. Por meio de uma
abordagem qualitativa, foram utilizados como instrumentos de coleta de dados a observação participante, entrevistas semi-estruturadas e
grupos focais. Para tanto, foram ouvidos alunos com idades entre 13 e 17 anos, além de profissionais da educação. A partir dos dados
coletados, concluímos que a escola prioriza a racionalidade técnico instrumental, negando os conteúdos da cultura jovem e sua realidade
social, o que torna a escola desinteressante para o jovem aluno, que não vê utilidade para os conteúdos escolares. A negação da cultura jovem
fragiliza a instituição e suas relações, possibilitando a inserção da violência em seu espaço. Faltam espaços para o lazer (praças/quadras,
ruas), favorecendo assim o enfraquecimento dos valores coletivos e dos laços de solidariedade – fortes contrapontos à violência – além da
auto-estima, que sofre duros golpes do imaginário social, que aponta estes jovens como “casos perdidos” e criminosos em potencial. Por
outro lado os profissionais da educação adotam a “Lei do silêncio”, o que os mantém distantes da realidade do bairro, mantendo assim a
escola paralisada, inerte em relação à violência de seu entorno. Destarte a Violência extramuros penetra na escola de diferentes maneiras,
permitindo que, enquanto os jovens alunos sejam socializados pela cultura do medo, a escola legitime o seu papel de instituição neutra.

Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada no ano de 2007, com apoio financeiro da Fundação de Apoio à
Ciência e Tecnologia do Espírito Santo – FAPES, em duas escolas públicas: Escola Estadual de Ensino Médio Marinete de
Souza Lira, localizada no bairro Feu Rosa, e a Escola Municipal de Ensino Fundamental Valéria Maria Miranda, localizada
em Vila Nova de Colares, ambas no município da Serra – ES. A partir de uma abordagem qualitativa, esta pesquisa teve
como principal objetivo investigar as formas como a Violência Extramuros1 interfere nas relações sociais dos jovens alunos
com e na escola.
Para tanto foram efetuadas observações participantes nas salas de aula e no pátio, bem como em outros espaços de
convívio coletivo dos alunos, além de entrevistas com profissionais da educação das mesmas. Após a análise preliminar do
material coletado nesta etapa, procedeu-se a realização de dois Grupos Focais em cada escola, compostos por

1
“Extramuros” para Vanilda Paiva (1992) inclui condições de vida, lógica(s) utilizada(s) pela população pobre e elementos culturais dominantes entre
ela.

747
aproximadamente 12 alunos em cada um deles. As entrevistas e os grupos focais foram gravados (após consentimento prévio
dos participantes) e transcritos na íntegra, garantindo a fidedignidade das informações.
A violência na escola, de acordo com Abramovay (2002), não se limita aos incidentes que ocorrem dentro de seus
limites, ou seja, o prédio e o espaço físico onde ela funciona. O bairro, a rua onde ela se localiza e a infra-estrutura existente
no seu entorno (bares, a existência de policiamento e equipamentos de segurança de trânsito, etc) podem facilitar ou dificultar
o acesso à escola, além de melhorar ou piorar suas condições de segurança. Alteram, portanto, sua rotina e suas relações
internas, bem como as interações entre os indivíduos que participam da comunidade escolar com o ambiente social externo.
Diversos pesquisadores chamam atenção para a problemática da interferência da Violência Extramuros no
cotidiano da vida escolar, entre estes Zaluar e Leal (2001), Abramovay et al. (2002), Cardia (1997) e Guimarães (1995).
Partindo desta premissa, observamos que em ambas as escolas pesquisadas, os alunos relatam invasões por parte de
jovens moradores ou ex-alunos, não matriculados na escola, durante o período de aulas. Estes jovens invadem as
dependências da escola, de acordo com os alunos, para participar do recreio, ou das aulas de educação física, ou apenas
buscando interagir com seus pares.

Ontem entrou um que não era da escola, bateu no meu colega e eu fui lá separar (Aluna, Vila Nova, 14 anos).

Além disso, vale a pena ressaltar que alguns dos jovens entrevistados relataram ainda a presença de drogas e armas
no interior das escolas, como algo freqüente, o que reforça sua sensação de insegurança.

(Drogas, alguém já viu?) Eu, e muita ainda. Eu já vi, usando aqui dentro da escola, vendendo aqui dentro. (Aluno,
Vila Nova, 16 anos).

A partir dos discursos, verificamos que tal situação é comum nas duas escolas investigadas. No entanto a presença
de jovens na escola que não estão matriculados não é um fenômeno exclusivo das escolas investigadas nesta pesquisa.
Diversas pesquisas realizadas sobre a temática das Violências na Escola apresentam as invasões como um dos tipos de
violências mais comuns sofridas pelas escolas. De acordo com dados apresentados pela UNESCO (2004) em uma pesquisa
realizada em cinco capitais do país intitulada “Cotidiano das escolas entre violências”, 55,8% dos membros do corpo técnico-
pedagógico entrevistados afirmam que houve algum tipo de invasão de pessoas de fora da escola no ano de realização da
pesquisa (2003/2004) ou no ano anterior. Porto Alegre foi a capital com maior índice de invasões: 69% dos adultos
afirmaram que houve invasão na escola.
Embora nenhum dos alunos aponte os invasores como agentes da violência, a insegurança causada pela presença
destes indivíduos foi sentida no comportamento dos alunos durante o grupo focal, quando o assunto foi mencionado. Para
lidar com os invasores, utiliza-se a lógica do “quem não deve não teme”.

A maioria que vem aqui é amigo meu, eles só mexem com você se você mexer com eles (Aluna, Vila Nova, 15
anos).

A lógica aqui intitulada “Quem não deve não teme” se refere a uma estratégia de sobrevivência destes indivíduos,
frente à crescente perda da sensação de segurança (física e psicológica). Seguindo-se esta lógica, encontram-se justificativas
para as mortes ocorridas no contexto próximo de suas vidas (“só morre quem merece”), localizando-se a culpa pela morte nos
atos da vítima. Assim, bastaria evitar comportamentos considerados arriscados para se manter a salvo da violência ao redor.
Percebe-se, entre os alunos, uma rivalidade entre os bairros pesquisados, perpassada pela questão da violência. Um
joga para o outro a responsabilidade pela violência da região, o que pode ser analisado como outra estratégia de
sobrevivência face à violência e seus efeitos. Ao localizar no outro a violência, suas causas e seus efeitos, o indivíduo (ou
mesmo o grupo) a individualiza, e se exime de responsabilidade pela mesma – afinal, ela estaria localizada em outras
pessoas, não em si próprio.
Observamos assim a presença do mito da não-Violência (Chauí, 2003), que fabrica explicações para denegar a
Violência existente, atribuindo a esta um lugar próprio, como se o brasileiro não fosse um povo violento – “O mecanismo da
exclusão produz uma diferença entre um nós-brasileiros-não violentos e um eles-não-brasileiros violentos. Eles não fazem
parte de nós”.
Nesta perspectiva, a Violência seria uma atribuição de apenas alguns grupos da nossa sociedade, vista como um
problema pontual e localizado. Estes grupos, por sua vez, devem ser tratados como se a Violência fosse uma patologia
limitada a eles, não como uma questão social fruto das desigualdades sociais existentes. Para se garantir a continuidade desta
lógica, os grupos que contém a violência são sempre “os outros”, o que explica a rivalidade entre os bairros: violento é
sempre o outro.
A própria lógica do “só morre quem merece” é um exemplo desta representação da violência, pois apresenta-se
como uma maneira de localizar no outro a culpa pela violência que é sempre do indivíduo, que merece morrer pois, fez algo
errado, estava no lugar errado, andou com pessoas erradas ou viu algo errado. Nesta lógica não aparece o juiz que decide o
que é certo ou errado, e mais uma vez o limite entre o certo e o errado não fica claro, variando conforme o momento, a
situação ou a necessidade.

748
- (Não morre só quem deve?)
- Se tiver no meio...
- Às vezes só porque presenciou (Alunos, Vila Nova, 13 e 15 anos).

Esta percepção individualizada atinge também os profissionais da educação, que tentam a todo momento encontrar
culpados para o fenômeno da violência. Considerando a tendência de localizar no outro a responsabilidade pelos problemas, a
família e sua desestruturação surgem como os “vilões” preferidos. A questão da família é muito difícil de se tratar, pois
comumente seguimos a tendência de acreditar que o modelo nuclear, dada sua hegemonia, é o correto e tido como
“estruturado”. Assim, todos os arranjos familiares alternativos, provenientes das mudanças societárias dos últimos anos, são
considerados como desestruturação familiar. E como para o senso comum todo aquele que se configura como diferente dos
padrões sociais aceitos seria naturalmente culpado pela violência, ocorre a tendência de culpabilização do outro.

O problema de eles estarem nessa situação de adversidade é exatamente isso aí, falta de estrutura na família, então
eles vêm procurar essa estrutura aqui na escola (Profissional da educação, Vila Nova).

Os profissionais das escolas aqui pesquisadas, contudo, não vêem as invasões como uma violência, nem mesmo um
problema, além de preferir não falar sobre determinados assuntos (drogas, assassinatos, brigas na escola, entre outros). Tal
comportamento parece indicar uma tentativa de não envolvimento destas pessoas com as questões relativas à violência na
escola, constatação reforçada pela “Lei do silêncio” adotada tanto pelos profissionais quanto pelos alunos. Acreditamos que
esta forma de agir possa ser analisada como uma maneira de minimizar a realidade ou provocar um distanciamento, o que
justifica a ausência de ações de enfrentamento desta questão. Assim, estes indivíduos agiriam desta forma para evitar um
comprometimento maior com esta problemática.

Aqui tem que viver cego, surdo e mudo se quiser viver dentro do bairro (Profissional da educação, Feu Rosa).

Quanto à forma de entrada dos invasores nas escolas, apesar de muitos relatos de que estes pulam os muros, os
jovens alunos relatam que muitas vezes o próprio vigia facilita a entrada. Neste caso, assim como no de muitos profissionais
da educação, acreditamos que seja uma atitude levada pelo medo e pela ausência de envolvimento com a situação.
(Entram pessoas de fora, que não estudam aqui?) Depende do guardinha que ta monitorando (Aluna, Vila Nova, 15
anos).
Qualquer um que chega no portão, ou o guarda abre ou pula o muro, então se quiser fazer alguma coisa... (Aluno,
Feu Rosa).

Um ponto que não podemos deixar de considerar é que os invasores utilizam a escola como espaço de lazer e
socialização, de acordo com o relato dos alunos:

Tem quem vem pra ficar, pra pegar, pra jogar bola, de tudo um pouco (Aluna, Vila Nova, 15 anos).

O uso da escola como espaço unicamente de sociabilidade é apontado também por alunos que estão regularmente
matriculados. Eles demonstram um grande desinteresse pelas atividades escolares, embora continuem a freqüentar a escola.

Eu tenho muita amizade aqui, onde eu mais me divirto é aqui na escola, fico brincando com todo mundo. Na rua eu
não fico assim, eu fico mais dentro de casa, na escola é onde eu desenvolvo mais. Aí quando eu venho pra cá eu me dou bem
com a rapaziada aqui, mas no estudo não. (Aluno, Feu Rosa, 17 anos).

Quanto à questão da relação dos jovens com a escola, muitos relatos apontam a escola como um “mal necessário”.
Tal fato ocorreu principalmente na escola de ensino médio, onde muitos jovens que trabalham ou querem trabalhar não se
preocupam com a educação recebida; reconhecem apenas a necessidade do diploma para obter um emprego.

Tem que estudar, né véio? Por que pra trabalhar, ainda mais aqui na escola, que fala gíria mesmo, falar assim no
serviço é tenso, o bom é assim, tem que estudar porque senão perde serviço lá, tem que ter o histórico completo (Aluno, Feu
Rosa, 16 anos).

Em contrapartida, os profissionais de educação entrevistados entendem a educação como única forma de salvação
deste grupo, de jovens moradores da periferia, vistos por eles como carentes e necessitados.

[Educação escolar] É tudo, é a única chance que eles têm pra mudar o futuro deles (Profissional de educação de Feu
Rosa).

749
O abismo existente entre Juventude e Escola é conhecido dos pesquisadores desta temática, e entre suas causas
estão a estrutura e organização do espaço escolar e a política pedagógica pautada na cultura acadêmica, distante da realidade
do aluno. A escola que o jovem encontra é uma escola pautada no paradigma positivista, com seus rígidos controles
(horários, corpo, espaço físico). Uma escola concebida para controlar e manipular de acordo com os interesses da classe
dominante. Como afirma Bourdieu (1983), a escola é concebida como uma instituição a serviço da reprodução e da
legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes.
Sposito (2005) ressalta o enfraquecimento do papel da escola como agência socializadora do jovem, uma vez que,
com as mudanças no mundo do trabalho, a escolaridade já não se afigura mais como elemento garantidor da entrada no
mundo do trabalho. Para Corti e Freitas (2003), a distância entre o “mundo escolar” e o “mundo juvenil” tem ocasionado uma
perda progressiva da capacidade da escola gerar referências significativas para a vida dos jovens que a freqüentam.
Destarte, podemos afirmar que, enquanto a Escola se comportar como uma ilha neutra, isolada da realidade
socioeconômica e cultural de seu entorno; enquanto não perceber o jovem como sujeito de direito2, reconhecendo a
necessidade de superar a idéia da racionalidade cognitivo-instrumental como única fonte de conhecimento legítimo; e
enquanto classificar as culturas em alta e baixa, não reconhecerá a importância da cultura juvenil em seu espaço.
Esta postura fragiliza a instituição e as relações estabelecidas em seu cotidiano, possibilitando assim a inserção da
violência em seu espaço. Partimos aqui do pressuposto de que uma instituição fraca provoca a desinstitucionalização e, por
isto, as idéias, os valores e os fatores extramuros, como o medo e a violência, acabam invadindo a escola e, por conseqüência,
influenciando a construção da subjetividade dos jovens. Subjetividade esta que é construída não só na escola, mas também na
família e na rua, no contato com seus pares e com as instituições sociais presentes em nossa sociedade. Quando trabalhamos a
questão da socialização do jovem e da necessidade de espaços alternativos de sociabilidade, chegamos ao conceito de Tempo
Livre3: a utilização deste tempo próprio da juventude em atividades que proporcionem o lazer e a criatividade é
importantíssimo para a formação da subjetividade do sujeito e tem sido apontado em várias pesquisas sobre o tema, entre
estas podemos citar: Cavalcanti (2006), Camacho (2004) e Abad (2003).
Conforme Minayo et al. (1999), o lazer constitui uma importante dimensão a ser analisada, tanto pelo destaque
conferido às atividades recreativas, como pela relevância de tais atividades no desenvolvimento pessoal e integração social
desses jovens. Por um lado, estudos demonstram que os jovens possuem um imaginário associado ao prazer, expresso em
atividades recreativas. Por outro lado, diversas pesquisas vêm apontando o lazer como o "momento privilegiado para [os
jovens] afirmarem e reafirmarem laços de amizade, desenvolverem sua criatividade e confrontarem-se consigo mesmos,
numa situação interpares, intergêneros e, por vezes, entre estratos sociais diferenciados" (MINAYO et al., 1999, p. 51).
Acreditamos assim que atividades de lazer que reforcem a auto-estima, que fomentem o protagonismo juvenil, e
que reforcem os valores coletivos e os laços de solidariedade são fortes contrapontos à violência.
Quanto aos jovens pesquisados, que contam com poucos espaços para socialização e poucas oportunidades de lazer
e trabalho, e que ainda freqüentam uma escola vista como pouco atrativa, acredita-se que a ausência destas atividades possa
comprometer seu processo de construção de subjetividades e referências sociais. Esta ausência interfere no desenvolvimento
da criatividade e da racionalidade estético-expressiva destes jovens, reforçando assim o ciclo de reprodução das
desigualdades. Jovens que não têm acesso ao lazer e assim não desenvolvem sua criatividade estão cada vez mais à margem
do mercado de trabalho atual, que exige profissionais multifuncionais, criativos e expressivos. A baixa auto-estima percebida
nos jovens pesquisados (mais marcadamente nos jovens de Vila Nova de Colares) pode ser compreendida a partir das
escassas opções de lazer de que dispõem.
Na medida em que estes jovens não possuem em seu bairro condições mínimas de infra-estrutura, quanto mais de
lazer, pode-se entender o não desenvolvimento de uma auto-imagem bem-estruturada e capaz. Estes jovens internalizam o
discurso preconceituoso que os discrimina e humilha, desenvolvendo uma visão de si próprios como pessoas “que não tem
jeito”:

- (O que você quer ser?)


- Médico. Depois começaram a falar que eu não tinha futuro. Ficava falando que a gente era bandido, “ele nao tem
futuro, vamos deixar ele de lado” (Aluno, Vila Nova, 16 anos).

Assim, a partir da falta de espaços de socialização, observamos um fenômeno interessante nos dois bairros: a
utilização da igreja como alternativa para esta socialização. A maioria dos participantes dos grupos focais afirmou freqüentar
alguma igreja, embora algumas falas indiquem que freqüentar a igreja não estava relacionado somente com a questão de
salvação espiritual, uma vez que atitudes condenadas pelas igrejas (fazer uso de bebidas alcoólicas, traficar drogas ou
namorar um rapaz ligado ao crime, p.ex.) eram apontadas como normais ou rotineiras. A contradição encontra-se no fato de
que mesmo freqüentando igrejas (conhecidas por seus rígidos controles), alguns jovens parecem não relacionar as doutrinas

2
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA-Lei Federal 8.069, de 13/07/1990) promove a defesa dos direitos da criança e do adolescente, considerando-os
sujeitos plenos de direito e em desenvolvimento, procurando que tanto a família, a sociedade e o estado cumpram com suas respectivas responsabilidades.
3
O conceito de Tempo Livre é encontrado em diversas literaturas sobre o tema e diz respeito ao tempo que o jovem destina ao lazer e à distração (propiciado
principalmente pela Moratória Social), que é próprio da Juventude.

750
destas igrejas com suas rotinas diárias. Esta constatação pode ser analisada não pelo prisma da espiritualidade, mas sim da
busca por espaços alternativos de sociabilidade, onde a criatividade e o lazer são trabalhados.
Sabe-se que, na busca por conquistar mais fiéis, muitas igrejas lançam mão de atrativos como a música, o teatro e a
dança. O papel da religião, como acreditava Durkheim – um espaço de união dos indivíduos, onde os laços de solidariedade
são reforçados –, encontra sentido em uma localidade marcada pela falta destes espaços. Se considerarmos ainda o medo da
violência e da criminalidade (que leva muitos pais a restringirem as saídas de seus filhos nestes bairros), podemos concluir
que mais uma vez a igreja se apresenta como um espaço privilegiado, pois ela seria um espaço seguro dentro do bairro. A rua
(bem como os demais espaços públicos) é vista pelos pais em geral como um lugar perigoso, que deve ser evitado pelos seus
filhos. A igreja, até mesmo pelos valores que prega a seus fiéis, se configura como uma alternativa segura para os filhos
freqüentarem.

Eu moro aqui há 14 anos, sempre morei aqui, mas não conheço nada porque meus pais são assim, não me deixam
passear normalmente por aqui. Primeiramente de dia não dá, nem final de semana ela libera, nem de noite nem de dia (Aluna,
Vila Nova, 14 anos).

A crença na religião como saída para a criminalidade parece ser generalizada, e também freqüenta o imaginário dos
profissionais da educação da escola estadual de ensino médio. Quando questionados sobre as ações da escola que tinham por
objetivo minimizar a violência, estes profissionais apontavam o louvor realizado na escola, concebido como um projeto para
minimizar a violência, como uma ação planejada e eficaz da escola neste sentido.
Longe de desconsiderar o papel da religião como relevante na ação de enfrentamento à violência, esclarecemos que
tal ação desenvolvida na Escola Estadual de Ensino Médio Marinete de Souza Lira não se configura como um projeto,
programa ou ação para minimizar a violência, uma vez que não apresenta os requisitos fundamentais para ser categorizado
como tal (objetivos, metodologia, avaliação, etc). De fato, esta atividade é realizada por iniciativa dos próprios alunos,
recebendo apenas o aval da escola para ser desenvolvida.
Assim, sem ser enfrentada ou tratada como problema, a violência é sempre vista como se fosse algo normal, mesmo
os bairros apresentando altos índices de violência e criminalidade. De acordo com dados da Gerência de Estatística da
Secretaria Estadual de Segurança Pública no ano de 2007 foram registrados 26 ocorrências de homicídios em Feu Rosa e 24
em Vila Nova de Colares4.
Percebe-se nas falas dos profissionais da educação e dos alunos uma tentativa de minimizar a violência do bairro,
adotando elaborações e estratégias variadas: uma destas estratégias é a de acreditar que o bairro não é nem mais nem menos
violento que outros: uma compreensão da violência como um fenômeno presente em todos os lugares, abolindo assim as
desigualdades estruturais de nossa sociedade. Outra lógica é a que denominamos “Só morre quem merece”, utilizada para
justificar todas as mortes ocorridas na região, independente do motivo real. E, por fim, percebe-se a individualização da
violência como algo localizado exclusivamente no indivíduo: uma escolha errada, problemas com a família ou uso de drogas.

A violência no bairro é um fator não só neste bairro, a violência está no geral em todos os bairros da Grande
Vitória, do nosso país, né? A violência está sendo geral, mas os nossos alunos não sofrem tanta influência assim não, sabe?
(Profissional de educação, Vila Nova).
Rapaz, não penso em sair daqui não, porque todo mundo pensa em sair do bairro por que é violento, violência tá em
todo lugar, você vai pra qualquer lugar e tem tiroteio, pra cima e pra baixo (Aluno, Feu Rosa, 16 anos).
Ninguém morre à toa, pode saber, sempre tem alguma coisa (Aluno, Vila Nova, 15 anos).
Acho que as pessoas já nascem com um destino. Acho que não é vontade, só por querer, alguma coisa a pessoa tem,
ou viu alguma coisa quando era pequeno (Aluna, Vila Nova, 13 anos).

Os jovens alunos entrevistados relataram que algumas das pessoas envolvidas com a criminalidade em seus bairros
são seus amigos de longa data, e afirmam que mantém relações próximas com estas pessoas. A convivência muito próxima
com pessoas envolvidas com a criminalidade dificulta o reconhecimento, por parte dos jovens alunos, de seus limites e
favorece a relação dos jovens com a violência e sua naturalização e banalização. Assim, a Violência banalizada passa a
apresentar-se como um fenômeno natural e tolerável. Desta maneira, temos a cristalização do medo e a naturalização da
cultura da Violência como regras no estabelecimento das relações sociais. Percebe-se uma tentativa de naturalizar a Violência
como se sua presença tão constante fosse algo normal, e não um problema a ser analisado e resolvido.

A gente não deve nada, a gente não morre à toa, ninguém vai matar a gente à toa, agora, se fosse assim, morrer por
vontade a gente morre de uma vez (Aluno, Vila Nova, 15 anos).

A apresentação da Violência como algo normal encobre o seu verdadeiro sentido, transformando-a em algo natural.
A proximidade com a morte é grande entre estes jovens: todos conhecem pessoas que foram vítimas de homicídio (amigos ou

4
No ano de 2005 o município da Serra foi considerado o mais violento do país em pesquisa realizada pelo IPEA.

751
mesmo parentes), o que pode contribuir também para esta naturalização, uma vez que a morte não é algo distante e sim
próximo, e que pode acontecer a qualquer momento com qualquer um (exceto com eles próprios, afinal eles “não devem
nada”), de forma natural.

A minha relação com (...) era boa demais, assim, ele era uma pessoa super boa, assim, ele não devia. Comigo
mesmo, onde ele me via, ele vinha, me abraçava, falava “eu quero falar com você”. (...) Eu conheço várias pessoas que
morreram assim, amigo, assim que eu converso, mas morreu porque devia, entende? (Aluna, Feu Rosa).

Para Zaluar (1994) nos bairros marcados pela criminalidade e pelos mais diversos tipos de violências (entre elas a
opressão e a desigualdade social), a convivência com os que optaram pela vida criminosa é inevitável; no entanto, a
experiência da violência é diária e constante, e vai muito além daquilo que se delimita como o mundo do crime. O fato de
estes alunos verem alguns amigos de infância ligados à criminalidade não inviabiliza suas relações com eles; pelo contrário,
os alunos participantes desta pesquisa se valem de justificativas pessoais para a manutenção destas relações de amizade,
justificativas estas que seguem lógicas como a de que “só morre quem merece”, e “quem não deve não teme”.

Que nem, se eu quisesse matar alguém, ser traficante eu tinha sido, por que desde pequena mesmo, a convivência
(com os traficantes) é muito boa, é como se fosse um parente seu, um amigo, aí ajuda a gente, toma até conta da nossa casa
(Aluna, Feu Rosa, 15 anos).

Esta proximidade favorece também outras relações entre os jovens ligados à criminalidade e a comunidade em
geral. Geralmente, as meninas mais bonitas e desejadas são as “mulheres de bandido”. E ocupar o lugar de “mulher de
bandido”, embora perigoso, pode representar uma expressão da moratória vital5 das jovens de baixa renda6 e também
prestígio dentro daquele grupo. Esta situação acaba por gerar um ciclo vicioso, pois muitos meninos entram para o mundo do
crime buscando estes valores, já que o porte de uma arma de fogo representa tanto virilidade quanto a possibilidade de
despertar a atenção diferenciada das meninas.

Eu namorava com um menino, sabe o que ele fez? Juntou mais uns meninos, mandaram a delegacia fechar, que eles
iam tocar fogo (...). Saiu até no jornal, peguei o jornal e mostrei pra todo mundo (Aluna, Feu Rosa, 16 anos)

Quanto à relação dos alunos com a violência, para os profissionais da educação a banalização faz com que
episódios violentos se tornem um show para os alunos.

Todos querem contar, eles querem é saber mais um com o outro, (...) atrapalha porque eles usam como pretexto
para tumultuar a aula, é um motivo pra que eles saiam do conteúdo. Fica repetindo aquela história, não que ela impressione,
porque eles estão acostumados, mas é um motivo que eles têm pra tumultuar a aula (Profissional de educação, Vila Nova).

Esta euforia pode representar tanto a banalização da Violência quanto a quebra da monotonia da escola. A
ocorrência de um homicídio gera assunto, as pessoas comentam, especulam sobre a motivação, o autor. Cria-se toda uma
expectativa em torno do fato: o autor será preso, haverá retaliações do grupo rival? E, desta maneira, vive-se até o
acontecimento do próximo crime.
Acreditamos assim que esta banalização/naturalização da violência para os alunos, apontada pelos profissionais da
educação, é muitas vezes utilizada para justificar a inércia da escola e dos professores em relação à questão da violência.

(Cite casos recentes de homicídios no bairro)


Ah, não posso falar, eu não conheço, tipo assim, eu não sei da realidade, eu só venho aqui e trabalho, e eu sei
quando comentam na sala de aula, eu não sei do assunto, pra começar (Profissional de educação, Vila Nova).

Desta maneira, aquilo que os profissionais de educação não vêem ou não se permitem ver na escola, é
simplesmente ignorado como se não acontecesse. Fingir que a insegurança não existe é também uma estratégia de
sobrevivência, fruto do medo que estes profissionais têm em se envolver de alguma maneira com a Violência existente no
bairro. Através das falas dos professores nas entrevistas e da observação participante pudemos constatar que os professores
não abordam o tema da violência em sala de aula, o que acreditamos ser mais uma estratégia de não envolvimento.
Para os profissionais de educação, os seus jovens trazem uma espécie de “marca”, fruto da convivência diária com
a Violência. Assim, a Violência faz parte do processo de socialização destes jovens, uma vez que estes convivem diariamente
com este fenômeno – caracterizado por meio dos altos índices de homicídios registrados no bairro –, o que inviabilizaria

5
A Moratória Vital seria, por sua vez, uma característica que se estende a todos os jovens e diz respeito à sensação de imortalidade, o gosto pelo perigo e pelo
desafio, é o capital energético da Juventude.
6
É importante destacar aqui que este fenômeno também tem ocorrido com as jovens das classes médias e altas, no entanto, verifica-se um percentual muito maior
entre as jovens das classes menos favorecidas.

752
qualquer tentativa de mudança desta realidade. As falas dos profissionais da educação nos mostram isso, quando estes
apontam as principais características de seus alunos:

Alunos muito violentos, muito agressivos, intolerantes, estúpidos mesmo (Profissional de educação, Vila Nova).
Quando cheguei aqui pude perceber que os alunos eram extremamente bagunceiros, agressivos, ignorantes mesmo.
Já a escola era muito suja, sem uma infra-estrutura boa e pequena para tantos alunos (Profissional de educação, Vila Nova).

Os jovens alunos são, muitas vezes, rotulados como violentos e agressivos pelos profissionais de educação, o que
oculta a responsabilidade da escola nesta questão – uma vez que uma de suas funções é a de ser uma agência socializadora.
Constata-se assim o que podemos chamar de um desinteresse da própria escola pela realidade e pela vivência de seus jovens
alunos. O fato de a escola responsabilizar a família pelo fenômeno da Violência, tentar manter a sua neutralidade, fingir não
perceber a realidade social do bairro e não proporcionar uma educação ética e cidadã reforça esta constatação.
A violência incomoda profundamente os jovens pesquisados, tanto no que diz respeito ao medo e à insegurança que
vivenciam cotidianamente, como pelo estigma que são obrigados a carregar por conta da visão estereotipada que existe do
bairro e de seus moradores:

Quando tem esses jogos estudantis aqui na Serra a gente chega lá na quadra e eles falam “sai de perto desse aí que o
bairro dele é sinistro”. Isso evita de a gente conhecer gente nova, a maioria assim tem medo (Aluno, Vila Nova, 14 anos).
O professor de história falou que os amigos dele, quando ele falou que ia dar aula aqui, teve gente que falou pra ele
vir com colete à prova de balas (Profissional de educação, Vila Nova).

Esta discriminação gera uma baixa auto-estima do jovem, que não se vê como igual e reproduz em suas falas e
ações esta diferença e sensação de inferioridade, que observamos também ser reforçada pelos professores em seus relatos. A
atitude dos profissionais é compreensível, uma vez que a percepção do jovem como sujeito de direitos requer uma atitude da
escola como uma agência de preparação para a vida e para a tomada de atitudes éticas e críticas na sociedade, o que não
condiz com a realidade das duas escolas pesquisadas:

Pontos negativos, (os alunos são) violentos, agressivos, falta de compromisso, de responsabilidade. Pontos
positivos, eles são carentes, não só financeiramente, mas afetivos também (Profissional de educação, Vila Nova).

Acreditamos que a Escola desempenha um papel fundamental na superação da violência, que se acentuou nos
últimos anos. Acentuação essa que se dá devido às mudanças ocorridas recentemente nos diversos âmbitos de nossa
sociedade, trazendo uma ruptura de valores coletivos, uma crise moral que é antes de tudo institucional e vem produzindo
uma nova ordem social, estruturada no medo e na violência como forma de interação, comunicação e organização social.
Neste sentido, a Violência torna-se uma estratégia, um mecanismo de expressão na condução das ações socialmente
produzidas. Estas mudanças valorativas constroem uma cultura do medo e da violência que se torna aos poucos determinante
no processo de socialização.
Não há dúvida de que a Escola não representa a única mediadora de atitudes e comportamentos do indivíduo; no
entanto, não se pode negar a sua importância, principalmente nos bairros de maior vulnerabilidade socioeconômica, onde a
falta de acesso a alternativas de lazer, diversão e instrução é uma realidade. A Escola se apresenta como instrumento da
construção da subjetividade, no sentido em que se relaciona com o jovem e com a sociedade num processo dialético. No
entanto, para que a Escola possa agir como transformadora desta sociedade permeada pela violência, é necessário
ressignificar a escola e suas práticas, principalmente no diz respeito ao sujeito jovem.
Tais resultados, aqui apresentados de forma breve, suscitam algumas questões que devem ser consideradas na
formulação de políticas sociais que busquem enfrentar a violência presente na escola e em seu entorno, que perpassa seus
muros dominando o cotidiano escolar e estruturando as relações construídas neste espaço. Entre elas: o debate e reflexão
dentro da escola sobre a violência escolar, com a participação conjunta de profissionais da educação, alunos e comunidade;
busca por alternativas que aproximem a escola dos interesses e da cultura juvenil; a possibilidade de resolução dos conflitos
que perpassam o cotidiano escolar de forma positiva, a partir da utilização de técnicas de mediação de conflitos; a atuação da
escola como agente transformador da realidade, que por meio de um projeto político pedagógico contextualizado priorize a
formação moral e ética do jovem, conduzindo-os assim à autonomia pessoal e auxiliando na tomada de decisões de maneira
consciente e responsável (o que só pode acontecer quando há uma reflexão sobre a realidade social na qual este jovem está
inserido); a elaboração de diagnósticos contextualizados a respeito das Juventudes, partindo da premissa de que a busca por
alternativas de sociabilidade dentro destes espaços, somente será efetiva a partir de um conhecimento holístico da realidade
sócio-historica e cultural de cada uma das localidades e de seus moradores, principalmente os jovens; a articulação das
políticas públicas destinadas à juventude em rede, envolvendo União, Estados e Municípios. Por fim, a participação efetiva
dos jovens em todas as etapas de formulação, desenvolvimento e avaliação das políticas públicas destinadas a juventude é
essencial neste processo de busca da superação da violência.
Desta maneira, no sentido de políticas públicas que se apresentam como alternativas para a transformação desta
realidade, podemos citar o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI –, que propõe ações

753
destinadas à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes sócio-culturais, articulando ações de
segurança pública com políticas sociais, com objetivo de reduzir de forma significativa os altos índices em territórios de
descoesão social. Entre os territórios selecionados encontram-se os bairros de Vila Nova de Colares e Feu Rosa, áreas de
limitação geográfica desta investigação. O Pronasci tem como foco diferentes públicos em ambos os sexos: jovens entre 15 e
24 anos que estão em situação de exposição aos diversos tipos de violência (como os jovens sujeitos desta pesquisa) e ainda
aqueles jovens infratores que cumprem medidas sócio-educativas.
Vale a pena ressaltar que a implementação de um Programa complexo que integra diversos atores que atuam na
área de Segurança Pública, e que busca acima de tudo uma mudança cultural e paradigmática do conceito e da maneira de
tratar esta questão, requer uma relação próxima e compartilhada não somente com os atores legitimados e institucionalizados
da Segurança Pública, mas também com a Sociedade Civil organizada, com os jovens moradores dos bairros selecionados e
com os profissionais de educação atuantes nestas localidades, visando assim a efetivação plena do Programa, sua
consolidação, continuidade e eficácia.

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O movimento negro brasileiro e a lei 10.639/03:Uma experiência de


implementação no Municipio de Vitória

Adriano dos Santos Batista


Prefeitura Municipal de Vitória - Secretaria de Educação
adrisbatista@uol.com.br

Yasmim Poltronieri Neves


Prefeitura Municipal de Vitória - Secretaria de Educação

Resumo: As experiências que a Comissão de Estudos Afro-Brasileiros – CEAFRO tem acumulado nos últimos três anos, ao implementar a
Lei 10.639/03 nas escolas do sistema municipal de ensino e na Secretaria Municipal de Educação de Vitória, muito tem enriquecido as
discussões em torno das relações raciais no âmbito do sistema de ensino da rede municipal de Vitória. Constata-se que ao se falar sobre
práticas racistas, as pessoas inicialmente negam que isso é real, mas apenas imaginado pelos negros. A forma como educadores(as),
alunos(as) enunciam o ódio racial contra negros(as) em nada perde para as manifestações segregacionistas de épocas passadas, de contextos

754
históricos onde práticas hediondas eram cometidas contra negros(as). Muitas das práticas, consideradas por alguns vergonhosas para a
humanidade, são sistematicamente reatualizadas por entre uma rede de subjetividades, que a todo o momento produz um ser negro(a),
desqualificado(a) e menor.
Palavras-chave: racismo, educação anti-racista, negros, afro-descendência.

1- O movimento negro brasileiro


A luta do movimento social negro contemporâneo brasileiro, marcadamente a partir da década de vinte do século
passado, tem obtido conquistas simbólicas e concretas significativas. Entre os anos de 1903 e 1963, na cidade de São Paulo
surgiu um fenômeno que tem sido objeto de estudo de muitos cientistas sociais, e que se refere à criação de mais de vinte
diferentes jornais escritos por negros. Tais publicações, mantidas pelos próprios negros, com a colaboração da comunidade,
evidenciaram uma determinação em manter vivas as organizações negras daquela época. As discussões nesses jornais, a
colocação permanente dos problemas da comunidade negra, as denúncias contra o racismo e a violência policial contra
negros levaram à criação do maior movimento político negro no Brasil, A Frente Negra Brasileira, entidade fundada no dia
16 de setembro de 1931 em São Paulo, sob a liderança de José Correia Leite. O bem sucedido movimento que abrigou
milhares de negros transformou-se em partido político em 1936 e oferecia aos afro-brasileiros possibilidades de organização,
educação e ajuda no combate à discriminação racial. No entanto em 1937, o presidente Getúlio Vargas dissolveu todos os
partidos, dentre eles a Frente Negra Brasileira.
Mais adiante, entre as décadas de 1940 e 1960, outro fenômeno importante surgiu na cidade do Rio de Janeiro, a
criação do Teatro Experimental do Negro (TEN). Com o objetivo de abrir as portas das artes cênicas brasileiras para os atores
e atrizes negros (as), passou a publicar o jornal Quilombo, um retrato do ambiente político cultural de mobilização anti-
racista naquela época no Brasil. Dentre suas importantes realizações, o TEN auxiliou na criação de duas organizações de
mulheres negras: “O Conselho Nacional das Mulheres Negras”, fundado em maio de 1950, e a “Associação das Empregadas
Domésticas”, também criada em 1950. Com o golpe militar de 1964 mais uma vez assistiu-se ao recuo do movimento negro,
que somente em meados dos anos setenta ganhou impulso novamente com o surgimento de várias entidades, em São Paulo e
no Rio de Janeiro. Em 18 de junho de 1978, durante um ato de protesto realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São
Paulo, foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, posteriormente denominado Movimento
Negro Unificado – MNU.
Porém, foram nos anos 80 e 90 que, estrategicamente, pesquisadores (as) e militantes do movimento negro forjaram
espaços políticos para a inserção de suas propostas nos diferentes espaços sociais. Pelo menos dois objetivos orientavam a
ação: o combate às desigualdades raciais e a luta pela transformação social, assim como a valorização da identidade e da
cultura negra. As conquistas obtidas pela militância negra são visíveis no Brasil do século XXI, principalmente nos centros
urbanos, em que é notada a presença de jovens, mulheres e adultos negros que modificaram a forma de se vestir e de usar o
cabelo. Surgem as batas coloridas, os tifás (enfeite africano de cabeça), os cabelos trançados, tudo acompanhado de um
visível orgulho do grupo social ao qual pertencem. É a busca de afirmação positiva e de identidade negra dos afro-brasileiros.
Em junho de 1995, a então primeira-dama do país declarava à imprensa que a escola no Brasil era racista e refletia o racismo
da sociedade. Tratava-se de mais uma conquista do movimento negro, que de muito tempo já vinha pressionando as
instituições de ensino para a inclusão da História e Cultura negra nos currículos escolares. Ainda em 1995, por ocasião do
tricentenário da imortalidade de Zumbi dos Palmares, o movimento negro realizou uma marcha à Brasília que contou com
cerca de 30.000 (trinta mil) pessoas, forçando o presidente da República a reconhecer publicamente a importância do herói
negro. Assim, o dia 20 de novembro passou a ser o dia da Consciência Negra e Zumbi dos Palmares foi consagrado herói
nacional.
No entanto, talvez o grande desafio do movimento negro atual não esteja nas formulações discursivas e
organizacionais, mas sim nos fundamentos da ideologia racial que foi elaborada a partir do fim do século XIX, e meados do
século XX por uma elite de pensadores brasileiros. Uma ideologia caracterizada pelo ideário do branqueamento, um grande
obstáculo, ao dividir negros (as) e mestiços e ao alienar o processo de identidade de ambos. A busca de identidade no mundo
negro (africano e afro-americano) se tornou, desde o século XIX, um imperativo na vida dos negros (as) africanos e dos
descendentes de negros (as) escravizados (as), e surge como uma resposta à dominação, um argumento e uma relação
política, apesar da complexidade e da vulnerabilidade em torno de territórios identitários, visto que estes são maleáveis, se
constroem e se desfazem, se cristalizam ou entram em rotas de fuga, pois estes nada mais são do que o resultado de atos de
criação lingüística. A complexidade do tema evoca múltiplos fatores, que passam por aspectos históricos, psicológicos,
culturais, políticos, econômicos, sociais e ideológicos. Do ponto de vista histórico, se faz necessário na busca da identidade
afro-brasileira enfatizar a questão das raízes de matriz africana, aliado ao processo histórico no qual se desenvolveu a
resistência afro-brasileira. Resistência essa que se apresenta desde que o primeiro negro foi forçosamente trazido para estas
terras, e que se manifesta por meio das religiões de matriz africana e dos movimentos culturais. (Munanga, 1999, p.15).
Ser negro (a) no Brasil é ser excluído (a). Logo, sem minimizar outros fatores, podemos afirmar que a identidade
afro-brasileira - tão evidenciada pelo movimento social negro - mais abrangente, seria a identidade política, espaço de
afirmação positiva de um grupo étnico-racial, de um segmento importante da população brasileira, excluída da participação
político econômica. Assim, um dos grandes desafios da luta anti-racista no Brasil está em desconstruir o racismo no
imaginário social e investir em uma produção de subjetividade que afirme outros lugares, outras possibilidades para o povo

755
negro. A tese da mestiçagem ou ideologia do branqueamento, ainda tão presente na sociedade brasileira, tem em Francisco
José de Oliveira Viana (1883–1951) um dos seus maiores defensores, tendo sido ele o grande sistematizador e enfatizador de
um complexo de idéias racistas que apontavam uma possível solução para o problema racial brasileiro presente nos discursos
da década de 20. No ano de 1911, durante o “I Congresso Universal de Raças” realizado em Londres, o representante do
governo brasileiro, então diretor do Museu Nacional, Sr. João Batista de Lacerda, apresentou com extrema objetividade a
política brasileira em relação à raça negra. Ele dizia: “Os mestiços são inferiores aos negros na força, mas superiores na
inteligência. A origem deles é esquecida frente às suas qualidades morais e intelectuais. Na terceira geração eles já
apresentam traços físicos de raça branca. É lógico esperar que, no curso de mais um século (até 2011), os negros
desaparecerão”. (Martins, 1996, p.63-72). Os negros, segundo ele não resistiriam, pois desde a abolição eles tinham sido
expostos a toda espécie de agentes de destruição e sem recursos suficientes para se manterem, não sobreviveriam. Eis, pois
confirmada a prática de genocídio contra o povo negro desde a abolição.
A inferioridade do negro (a) era um fato pretensamente provado pela ciência, e, segundo muitos intelectuais da
época, a população brasileira, na forma como se constituía, não apresentava qualquer possibilidade de progresso. Uma das
saídas propostas foi o incentivo à importação de trabalhadores europeus em massa, que viria resolver o duplo problema:
formar mão de obra livre e afeita às novas condições de trabalho e reverter à composição étnico-racial da população do país.
“Progresso e “branqueamento” eram projetos inseparáveis, e o segundo aparecia como condição única para a realização do
primeiro”.
Certamente o estado brasileiro tem uma dívida muito grande com o povo negro. Sustentado nesse e em outros
argumentos, nos primeiros anos da década de 90 do século XX, foi lançado no Brasil o movimento de reparações. Este tipo
de política, que já se efetivou em vários países, em relação a outros grupos étnicos, como, por exemplo, os judeus, passa
agora a ser uma reivindicação no Brasil e do continente africano. O movimento de reparações aos povos africanos e da
diáspora, teve início ainda no século XX por meio de cruzadas pan-africanas, o movimento percussor da independência de
países na África. Em 1990 o nigeriano Bashorron M. K. O. Abiola iniciava o discurso por reparações financeiras, no Black
Caucus (Congresso Afro-americano). No Brasil, o movimento por reparações teve seu marco principal em 1995, quando
foram recolhidas milhares de assinaturas, por todo o país, e que foram anexadas a um Projeto de Lei que prevê que a União
pague, a título de reparação, a cada um dos descendentes de africanos escravizados no Brasil, o valor equivalente a US$
102.000,00 (Cento e dois mil dólares). O movimento de reparações, assim como o movimento de cotas, entre outras questões
evidenciou a polêmica discussão de quem é negro no Brasil. Segundo Silva (2003, p. 41):
A classificação por cor ou étnico-racial é tema recorrente na pesquisa sobre relações raciais no Brasil, mas para nós,
ativistas negros (as), cuja essência do trabalho é o fazer político, não há necessidade de investigações que despendem anos e
milhares de dólares para sabermos quem é negro (a) no Brasil. Temos à nossa disposição, caso precisemos de ajuda, a
definição que a polícia faz de seus suspeitos preferenciais, as escolhas dos (as) programadores (as) de televisão, dos (as)
especialistas em mostrar imagens convincentes dos protagonistas da criminalidade urbana, bem como da violência praticada
ou sofrida (de acordo com a conveniência da mensagem), dos (as) empregadores (as), diretores (as) de empresas, todos (as)
tarimbados (as) na prática de definir para o bem e para o mal, quem é negro (a).
No entanto são nas teorias raciais de Gilberto Freyre (1900–1987) que podemos encontrar os mais poderosos
argumentos de convivência pacífica e harmoniosa das três raças, formadores do povo brasileiro. É no mito da democracia
racial1 que se configura uma das faces mais perversas do racismo brasileiro. O do que somos todos iguais, vivemos em
paraíso de convivência étnica, desfrutando igualmente os bens produzidos socialmente. Num certo sentido, pode-se dizer que
foi em seu livro Casa Grande & Senzala que Gilberto Freyre fez a elaboração final do que seriam as bases da nossa nação.
Na verdade, se tomada especificamente sob o aspecto das relações raciais, esta obra narra o processo de constituição da
sociedade brasileira a partir de um dado fundamental: a “miscigenação”. Ao valorizar as contribuições das “três raças”, em
nenhum momento este autor as coloca em pé de igualdade, no que se refere à tarefa de levar a cabo a colonização e a
construção da sociedade brasileira.
O racismo2 é um elemento estruturante nas relações sociais no Brasil. Essa afirmação, por muito tempo negada,
encoberta pelo mito da democracia racial, é hoje uma constatação, objeto de reflexões e inquietações de muitos estudiosos
das relações raciais neste país, e cada vez mais presente em pesquisas na área da educação. Werneck, ao abordar a questão,
constata que levou séculos para que o Estado brasileiro viesse a reconhecer a presença do racismo como fator estruturante das
relações sociais no país, reconhecimento que só acontece ao final do século XX e início do século XXI, como resultado de
um trabalho árduo, vivido em profundo isolamento, pelos (as) negros (as) brasileiros (as). “Enquanto denunciávamos o
racismo; enquanto demonstrávamos a perversidade com que este definia privilégios e exclusões, vidas e mortes; enquanto
éramos nós mesmos nossos próprios testemunhos, o restante da sociedade permanecia em silêncio.” (Werneck, 2003, p. 39).
Nas últimas décadas, o movimento social negro brasileiro tem denunciado o quadro de desigualdades raciais3 a que
estão submetidos pretos e pardos, a presença de conflitos raciais na escola e a necessidade permanente de intervenção nas

1
Mito é uma fala, um discurso que busca aliviar uma tensão entre o real e o imaginário. O objetivo do mito da democracia racial é esconder os conflitos raciais
existentes e diminuir sua importância, passando uma idéia mais “bonitinha” para a sociedade. Assim esse mito consegue controlar a população negra com
eficácia, sem exercer uma violência visível... (Valente, 1994, p. 27).
2
Racismo é uma ideologia que postula a existência de hierarquia entre os grupos humanos. (Programa Nacional de Direitos Humanos, 1998, p. 12).
3
A idéia de raça aqui desenvolvida se constitui como uma construção social. Segundo Silvério (2003), com raras exceções, raça contemporaneamente tem sido
entendida enquanto um constructio social, não se referindo a qualquer categoria biológica.

756
práticas pedagógicas que produzem um modelo de relações sociais excludentes para alunos (as) negros (as). Em estudos
sobre relações raciais na escola, é cada vez maior o número de pesquisas que apontam o alunado negro em comparação ao
alunado branco, como sendo o que apresenta o maior índice de exclusão e reprovação escolar. Em suas análises, Ribeiro
(2001, p.88) constata que pesquisas realizadas por Eliane Cavalleiro, Irene Sales de Souza, Iolanda de Oliveira e Fulvia
Rosemberg demonstram que os professores tratam com diferenças os alunos negros e resistem a admitir o preconceito na
escola e na sala de aula. Poucos trabalham as diferenças e os conflitos raciais. A escola recria as atitudes da sociedade, sem
reagir. Fulvia Rosemberg é categórica: a “questão racial está presente na própria dinâmica educacional com a exclusão dos
estudantes negros e suas chances menores de êxito”.
Em um importante estudo sobre a desigualdade racial no Brasil e a evolução das condições de vida na década de
90, desenvolvido pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Ricardo Henriques argumenta que o pertencimento
racial tem uma importância significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas nesse país. O longo convívio
com as desigualdades no Brasil, cujas origens são históricas e institucionais, produz cotidianamente a naturalização de um
quadro social excludente, onde a cidadania dos incluídos é distinta da dos excluídos. Desnaturalizar a desigualdade
econômica e social na sociedade brasileira passa, portanto, de forma prioritária por desnaturalizar a desigualdade racial.
(Henriques, 2001, p. 2).
O estado do Espírito Santo, vizinho dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais na região Sudeste, possui
população residente de 43% de brancos e 56% de negros4, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) de 2004, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e não foge ao modelo forjado das
relações raciais no Brasil. Ainda muito invisibilizado (a), o (a) negro (a) na sociedade do Espírito Santo tem buscado afirmar
sua identidade, contar sua história, ocupar com as devidas proporcionalidades os espaços de poder e ter os elementos de sua
matriz cultural preservados e valorizados. Nas escolas do município de Vitória, por ocasião do censo escolar de 2005, no que
se refere ao quesito cor - elencado como uma das variáveis determinantes5 para a construção da tipologia escolar do sistema
municipal de ensino - o somatório de pretos e pardos auto-declarados é muito expressivo. Tal constatação permite afirmar
que neste município, como em tantos outros por este país afora, a escola pública tem cor e ela é majoritariamente negra.
Assim, as lutas do movimento social negro desse estado tem evidenciado a necessidade de políticas públicas específicas em
favor dos desiguais e de políticas de ação afirmativa que visem oferecer à população negra um tratamento diferenciado, para
compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo,.

2- A lei 10.639/03 e suas aplicações


No dia 09 de janeiro de 2003, o Presidente da República sancionou a Lei Federal 10.639/2003, que introduziu uma
importante política de ação afirmativa para atender uma antiga reivindicação do movimento negro brasileiro. Esta nova lei
alterou a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelecia as diretrizes e bases da educação nacional, e tornou
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial dos estabelecimentos de ensino,
fundamental e médio, oficiais e particulares. Da publicação da Lei à efetivação de políticas inclusivas em favor dos afro-
brasileiros, muitos caminhos têm sido percorridos, muitas dificuldades têm sido apresentadas, desde questões conceituais,
passando pelo fictício mundo da “democracia racial” e chegando ao racismo impregnado nas instituições.
A Lei 10.639/03 veio acrescentar à Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o artigo 26-A,
cujo caput torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficiais e particulares; e o artigo 79-B, que inclui o dia 20 de novembro no calendário escolar como “Dia Nacional da
Consciência Negra”. O artigo 26-A contém dois parágrafos, transcritos a seguir, que delimitam, respectivamente, o conteúdo
e a abrangência do ensino a ser ministrado:

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A interpretação sistemática do parágrafo primeiro, em conjunto com outros dispositivos da LDB e da Constituição
Federal, leva à conclusão de que o conteúdo programático deve incluir, no mínimo, aqueles itens citados, sem se limitar a
eles. Já o texto do parágrafo segundo é explícito ao fixar que os conteúdos serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, ou seja, de forma interdisciplinar, assegurando apenas que as áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileira recebam atenção especial na abordagem do tema.

4
Neste texto, quando nos referimos à população negra ou afro-descendente no Brasil, consideramos o conjunto das populações preta e parda declaradas nas
PNAD do IBGE.
5
Na construção da tipologia escolar do sistema municipal de ensino de Vitória, o quesito cor aparece como uma variável determinante, pois considera-se que
pretos e pardos são objeto de discriminação em todas as dimensões do currículo, o que aumenta a complexidade da ação pedagógica para esses grupos.

757
Com fundamento na mesma interpretação sistemática, o Parecer nº3 de 2004, aprovado pela Resolução nº1/2004,
do Conselho Nacional de Educação, estabelece que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana devem ser observadas pelas Instituições de
ensino que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira (art. 1º, caput). Depreende-se daí que tais conteúdos
devem estar presentes, tanto na educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; quanto
na educação superior, conforme definidas pela Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (art. 21). Além
disso, a Resolução prevê, no caput do artigo 3º, que o tema será desenvolvido por meio de conteúdos, competências, atitudes
e valores a serem fixados pelas Instituições e seus professores, contanto que sejam atendidas as diretrizes do Parecer. Em
toda a sua extensão, o Parecer confirma a extrema abrangência com que a Lei deve ser aplicada, realçando a
interdisciplinaridade e envolvendo todos os sistemas de educação. Assim, o tema das relações Étnico-Raciais, e a História
Afro-Brasileira e Africana não deve ser visto apenas como mais uma unidade de conteúdo conceitual a ensinar durante o ano
letivo. Não basta, por exemplo, incluir a África de forma descritiva em uma unidade ou capítulo mais longo nas disciplinas
de Geografia ou História, pois a abordagem que enfatize apenas o conteúdo não traz ganho efetivo para a construção de uma
auto-estima positiva das crianças negras.
Muito presente nos discursos da educação, as chamadas políticas universalistas têm sido um grande obstáculo para
a população negra. Sustentadas nos discursos de igualdade, tais políticas não consideram a existência de grupos étnicos em
desigualdade no conjunto das relações sociais. Uma segunda dificuldade que se apresenta nesse caminho é a permanente
necessidade de desconstrução de uma concepção de mundo eurocêntrica, cujo modelo estético é o ocidental helênico, que é o
reflexo de uma cultura hegemônica, que estabelece fronteiras entre o feio e o bonito, o “eu” e o “outro”, que veicula e
contempla apenas um pertencimento étnico – o branco – e que considera o outro - o negro, o índio - como o exótico, o
folclorizado, o tolerado, o que é aceito desde que permaneça no lugar que lhe é cotidianamente construído. Dessa forma, a
Lei 10.639/03 concretiza um conjunto de políticas de ação afirmativa e passa a compor a rede de relações escolares,
produzindo uma outra lógica, outros discursos, o de afirmação positiva dos povos trazidos do continente africano. Os
conteúdos curriculares sobre as relações Étnico-Raciais devem incluir a crítica ao modelo de beleza branca imposto pela
teoria do branqueamento ou embranquecimento. Começam a ser colocados em cheque os estereótipos associados aos traços
da fisionomia dos negros que mais se diferenciam dos brancos; o cabelo crespo, os lábios grossos e o nariz mais largo, e a
atribuição de uma inferioridade quase "inata" que serviu, na lógica racista do branco, para justificar a inferioridade social
imposta pela dominação histórica dos europeus.

3- Experiência de implementação da Lei 10.639/03 em Vitória


Dentro deste contexto e atendendo a históricas lutas do movimento negro do Espírito Santo, foi criada a Comissão
de Estudos Afro-Brasileiros – CEAFRO, em 17/08/2004, pela Portaria nº. 052 da Secretaria Municipal de Educação de
Vitória/ES, constituída por professores (as) e pedagogas, com o objetivo de desenvolver políticas de ação afirmativa voltada
para os afro-descendentes. As principais competências dessa Comissão são:
-sensibilizar os (as) educadores (as) do Sistema Municipal de Ensino a desenvolverem uma pedagogia inter-étnica
por meio de cursos de formação, capacitação, palestras, debates, oficinas, discussões e similares, no que diz respeito às
questões afro-brasileiras;
-potencializar, reativar e implementar trabalhos nessa área, destinados à educação infantil, ao ensino fundamental e
à educação de jovens e adultos;
-analisar e indicar material bibliográfico para subsidiar a comunidade escolar;
-estimular a produção científico-cultural e de material didático de matrizes africanas, destinadas à educação infantil,
ao ensino fundamental e à educação de jovens e adultos;
-difundir a contribuição de negros (as) de destaque em variadas áreas de atuação e participar efetivamente da
reformulação da proposta curricular, em todas as áreas de conhecimento.

Os membros desta comissão tem ainda a função de assessorar os Centros Municipais de Educação Infantil – CMEI
e Escolas Municipais de Ensino Fundamental - EMEF, no que se refere ao encaminhamento de projetos pedagógicos
específicos, voltados para os afro-brasileiros, assim como incentivar a inserção de questões de afirmação positiva do povo
negro no currículo escolar e no projeto político pedagógico, além de sugerir a aquisição de livros, periódicos, vídeos, textos e
outros que visem alterar o quadro de desigualdades raciais existentes nas unidades de ensino. Assim, a Comissão de Estudos
Afro-Brasileiro, vem buscando realizar ações no sistema municipal de ensino que contribuam para eliminar o preconceito e
discriminação racial no ambiente escolar, com o principal desafio de mudança do imaginário escolar, marcado por uma
concepção de mundo eurocêntrica avessa a outras possibilidades que contemplem a diversidade étnica dos alunos (as) da rede
municipal de ensino.

758
No início de 2005, a Comissão de Estudos Afro-Brasileiros elaborou um Plano de Ação6 para o período 2005-2008,
em que estabeleceu suas áreas prioritárias de atuação e as metas a atingir, destacando como a mais importante a formação de
educadores. De fato, segundo Silva (2001, p. 66), o professorado, em geral, não percebe as graves diferenças existentes nos
resultados escolares de crianças negras e brancas. Não estabelece relações entre raça/etnia, gênero e desempenho escolar, e
não percebe como esta não-percepção interfere na sua própria conduta, de modo que o despreparo constitui campo fértil para
que o racismo se perpetue e a discriminação racial sofra mutações próprias no ambiente escolar. Como produto de uma
educação eurocêntrica, alguns (mas) educadores (as) argumentam uma “falta de preparo para lidar com questões que
discutem a problemática da convivência com a diversidade e as manifestações de discriminação dela resultadas]” (Munanga,
2005, p. 15). A reprodução dos preconceitos baseados neste modelo de educação, com efeito, se manifesta consciente ou
inconscientemente na escola. São flagrantes as situações de constrangimento às quais se submetem alunos e alunas negras no
cotidiano escolar em função do seu pertencimento racial.
Transformar esta realidade é tarefa de cada educador (a) preocupado com o desenvolvimento integral de seus (suas)
alunos (as). Entendendo que a lei, por si só, não é capaz de mudar mentalidades, a CEAFRO passou a desenvolver as
seguintes ações para a implementação da Lei 10.639/03, no âmbito da rede de ensino pública do município de Vitória:
a) Formação de educadores
Uma das ações prioritárias estabelecidas pela CEAFRO. A comissão entende a necessidade da formação continuada
em relação à promoção da igualdade racial. Os cursos de formação devem ser oferecidos prioritariamente por entidades do
movimento negro organizado (sociedade civil) voltadas para a educação dos afro-descendentes no Espírito Santo. Esta ação
se dá através de convênio entre a instituição pública e o movimento negro, para a realização de cursos com carga horária
inicial de 120 (cento e vinte) horas.
b) Assessoria às unidades escolares
Os CMEIs e EMEFs recebem visitas de membros da CEAFRO com o objetivo de estimular a criação de projetos
que promovam a população afro-brasileira, bem como potencializar outros que já existem no sistema de ensino, além de
palestras e debates com a comunidade escolar a respeito da temática, exibição de vídeos, disponibilização de materiais
didáticos como livros, cartazes, periódicos e vídeos. A assessoria às unidades escolares permite aos membros da CEAFRO
estabelecer relação direta com estudantes e educadores (as), o que favorece a sensibilização dos (as) mesmos (as) na direção
da equanimidade das relações raciais em cada unidade de ensino.
c) Seleção e aquisição de material bibliográfico para subsidiar alunos (as) e professores (as)
Esta atribuição se reveste de extrema importância, inclusive, para subsidiar a formação comentada acima. A seleção
de material bibliográfico destinado às unidades escolares é um cuidadoso trabalho que demanda máxima atenção, uma vez
que existem livros que apresentam noções equivocadas a respeito da importância da população afro-brasileira e africana na
formação do Brasil e do mundo, quando não sugerem explícitos enunciados racistas. No entanto, os livros didáticos e
paradidáticos, muitas vezes veiculadores de estereótipos e preconceitos contra a população negra, podem vir a ser “[...]
utilizados como instrumentos geradores do senso crítico, através da mediação consciente e reflexiva do professor junto aos
seus alunos” (Silva, 2003, p. 57). Dessa forma, orientam-se as ações para modificar imaginários, visando à elevação da auto-
estima positiva de alunos (as) negros (as) e implementações de práticas educacionais que favoreçam as relações inter-étnicas
saudáveis no ambiente escolar.
d) Produção de material didático
A CEAFRO, no ano de 2007, produziu o vídeo-documentário “Educando Contra o Racismo” em parceria com o
Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação - FNDE, um material didático destinado à formação de educadores(as)
da rede municipal de ensino de Vitória. Acompanha o documentário um caderno de estudos que apresenta uma seqüência de
conteúdos divididos nos seguintes blocos:
-O Movimento Negro e a Lei 10.639/03
-Os conteúdos curriculares
-As ações de implementação da Lei 10.639/03
-O material didático anti-racista
-A abordagem das religiões de matriz africana.
e) Participação efetiva na reformulação da proposta curricular do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, em todas
as áreas de conhecimento.
Ainda no período de sua instituição, a CEAFRO definiu como espaço privilegiado a sua atuação junto ao corpo
técnico da Secretaria Municipal de Educação. Assim participou da elaboração das diretrizes curriculares municipais, que
regem as ações docentes no Ensino Fundamental e, mais tarde, realizou tarefa de igual importância na construção do
documento norteador da Educação Infantil. A produção de um currículo que contemple a população negra como protagonista
na construção da sociedade brasileira e capixaba é, todavia, um desejo incipiente, frente à secular história de lugar de pouca
importância dada aos negros oficialmente na educação. Iniciativas que apontam para a reversão desta história, no entanto,
despontam por meio de inúmeros (as) pesquisadores (as) em todo o país e alguns (mas) no Espírito Santo, passando a cidade

6
O Plano de Ação da CEAFRO foi elaborado pela equipe para ser executado no período entre 2005 a 2008 e encontra-se disponível na Secretaria Municipal de
Educação de Vitória.

759
de Vitória a tornar-se um campo fértil, para a implementação dessas experiências que favorecerão significativamente a
promoção da igualdade racial na escola e fora dela.
f) Estabelecimento de intercâmbios com instituições afins da sociedade civil e, em especial, com o Movimento
Negro local e nacional.
Esta atribuição da CEAFRO abarca uma particularidade singular: o reconhecimento que a conquista deste espaço
de discussão acerca das relações raciais na educação se devem unicamente aos esforços centenários do movimento negro.
Ocupar um lugar numa administração pública destinado a dar novo significado à importância do (a) negro (a) na constituição
da sociedade brasileira e mundial é, para muitos, uma novidade, todavia. Assim, tanto na esfera federal quanto nas
localidades mais próximas (Estado e municípios), muitas ações vêm sendo implementadas no sentido de combater o racismo
na educação brasileira e subsidiar educadores (as) para o enfrentamento desta tarefa. O movimento negro, contando com a
sabedoria e força das mães de santo que insistiram em manter suas tradições religiosas de matriz africana, apesar de todas as
forças contrárias; contando com mestres da capoeira que, igualmente, contrariaram a ordem do dia e mantiveram vivas as
riquezas culturais e esportivas mescladas nesta manifestação negra especialmente difundida; contando com militantes
obstinados que, comportando-se como seres blindados, enfrentaram tudo e todos para dar visibilidade ao movimento, se faz
presente nas ações da CEAFRO.
É importante destacar que a criação da Lei 10.639/03 é resultado direto da luta de movimentos sociais negros desde
a década de 1970, segundo Hasenbalg (1987) citado em Santos (2005, p. 24):
[...] a agenda de reivindicações das entidades negras contemplava basicamente as seguintes áreas: racismo, cultura
negra, educação, trabalho, mulher negra e política internacional. Na educação [...], as reivindicações eram, entre outras, as
seguintes:
-contra a discriminação racial e a veiculação de idéias racistas nas escolas;
-por melhores condições de acesso ao ensino à comunidade negra;
-reformulação dos currículos escolares visando à valorização do papel do negro na História do Brasil e introdução
de matérias como História da África e línguas africanas;
-pela participação dos negros na elaboração dos currículos em todos os níveis e órgãos escolares.
Como o movimento negro local e nacional é o grande responsável pelos avanços conquistados no âmbito
educacional para a promoção da igualdade racial, o intercâmbio com a sociedade civil e o movimento negro organizado é
uma ação fundamental para subsidiar o trabalho desenvolvido na Comissão. A lei 10.639/03 é resultado desta luta, que não se
finda com a promulgação da mesma. A outra luta é torná-la exeqüível. Para isso, mais uma vez o movimento negro se
manifesta, exigindo em cada canto do país a aplicação da Lei de forma digna, coerente e justa. Afinal, como destaca Santos
(2005, p. 34) “os movimentos sociais negros e [...] intelectuais negros engajados na luta anti-racismo levaram mais de meio
século para conseguir a obrigatoriedade do estudo da história do continente africano e dos africanos, da luta dos negros no
Brasil, da cultura negra [...] na formação da sociedade nacional brasileira.”
g) Ciclo de Debates
Consiste em promover palestras seguidas de debate com pesquisadores (as) expoentes no cenário nacional a
respeito da promoção da igualdade racial na educação. Foram as seguintes as palestras e debates:
-2004: “A criança negra no livro didático” (Professora Doutora Ana Célia da Silva, de Salvador, estado da Bahia;
-2005: “Eliminação do racismo no ambiente escolar” (Professor Mestre Luis Carlos Santos, de São Paulo), com
cerca de 400 educadores (as);
-2006: Ciclo de Debates do II Fórum Municipal de Educadores, com as palestras “Políticas públicas de ações
afirmativas para a população negra” (Professor Doutor Valter Roberto Silvério, de São Paulo) e “A Lei 10.639/03:
Implementação, Rumos e Desafios” (Professora Doutora Eliane dos Santos Cavalleiro, de Brasília);
-2007: “O (A) Negro (a) e o Currículo” (Professora Doutora Azoilda Loretto da Trindade, do Rio de Janeiro) e
“Africanidades” (Professor Severino Lepê Corrêa, de Pernambuco).
h) Semana de Consciência Negra
O evento anual Semana da Consciência Negra é uma outra importante ação e trata da celebração da memória de
Zumbi dos Palmares no mês de novembro, que tem o dia 20 instituído como o Dia Nacional da Consciência Negra. Nele, A
CEAFRO organiza oficinas culturais de matriz africana e afro-brasileira para alunos (as) do sistema municipal de ensino e
atende estudantes com idades de cinco a sessenta anos da educação infantil a educação de jovens e adultos. Nos anos de 2005
a 2007, foram oferecidas trinta oficinas diárias, nos três turnos letivos durante cinco dias e, em 2008, foram durante oito dias.
Entre os anos de 2005-2008 foram contemplados 19.870 (dezenove mil oitocentos e setenta) alunos (as) Dentre as oficinas
oferecidas estão: dança afro, aerofunk, capoeira, maculelê, teatro, grafite, penteados afro, estética negra, percussão, dança de
rua, jogos africanos, bonecas abayomi, break e contação de estórias. Este evento que é uma ação direta com estudantes tem
como principal objetivo oferecer um espaço de contato com elementos da cultura negra aliado a discussões sobre consciência
negra. A ação das oficinas tem modificado a postura de diversas crianças e jovens que passam a se sentir mais valorizados ao
descobrirem ou confirmarem a riqueza de expressão cultural da etnia negra, por eles e elas apropriada.
i) Estatueta Professora Olga Maria Borges
A entrega da estatueta “Professora Olga Maria Borges”, educadora negra do bairro Caratoíra – Vitória é realizada
para homenagear educadores (as) e/ou unidades de ensino, que desenvolveram alguma ação considerada relevante de
promoção dos afro-brasileiros e da igualdade racial na escola. A estatueta de bronze passou a ser o símbolo do

760
reconhecimento do trabalho destes (as) educadores (as) e unidades escolares. A forma remonta uma mulher negra guerreira e
expressa a altivez e dignidade das pessoas que simbolizam a resistência negra mundial. Entre os anos de 2005-2008 foram
entregues 48 (quarenta e oito) estatuetas.
Em suma, as ações implementadas pela CEAFRO, advindas das atribuições registradas e publicadas oficialmente,
correspondem ao desejo latente de participar da construção de uma sociedade mais solidária, livre de preconceitos e
discriminação em busca da eqüidade racial. O caminho se faz longo, muitas vezes cansativo, mas cada avanço é comemorado
como uma grande vitória.

4- Educação: um quadro de desigualdades raciais


No início da década de 90, Hasenbalg e Silva (1990), em um importante estudo sobre a trajetória educacional dos
grupos de cor no Brasil, tendo como base de dados o suplemento especial sobre educação da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (PNAD) de 1982, tinha como objetivo observar a escolaridade de alunos brancos, pretos e pardos de sete a
quatorze anos, faixa obrigatória de freqüência à escola. No entanto, constataram nesse trabalho a existência de um elevado
número de pessoas que não tiveram acesso a qualquer instrução ou não conseguiram transpor a primeira série do ensino
fundamental. Em termos percentuais a população que nunca freqüentou a escola é formada por 39,3% de brancos, 54,8% de
pretos e 55,7% de pardos. Um outro componente analisado se refere à variação de renda, pois as chances de ingressar na
escola variam em função da situação sócio-econômica das famílias das crianças, e estando as crianças negras em sua maioria
entre a população de baixa renda, esse passa a ser um dado significativo.
Entre as crianças de famílias mais pobres com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo, a proporção
dos que nunca ingressaram na escola é superior a 10% entre os brancos, e superior a 20% entre pretos e pardos. Por se tratar
da fase inicial da trajetória escolar, esses autores atribuem os processos de discriminação racial a fatores que operam dentro
da família, o que colocaria as crianças negras em relação às brancas em uma condição de desigualdade de acesso.
Com relação aos índices de evasão o percentual é o mesmo para os três grupos de cor. No entanto, com relação ao
rendimento escolar dos alunos (as), considerando a faixa etária de oito anos, pouco mais da metade das crianças brancas e
acima de 70% das crianças negras já apresentam uma série de atraso escolar. Nesse trabalho utilizou-se a referência idade-
série, sendo que para a primeira série a idade é de sete anos. Esses percentuais vão se elevando gradativamente e, aos dez
anos, 15,3% de brancos, 33,3% de pretos e 35,2% de pardos apresentam atraso escolar em mais de duas séries. Aos quatorze
anos, 20,8% de brancos, 46% de pretos e 6,1% de pardos experimentaram uma trajetória escolar sem atraso, sendo que,
38,4% de brancos, 18,2% de pretos e 24,6% de pardos apresentam até duas séries de atraso e 40,8% de brancos, 77,2% de
pretos e 69,3 de pardos apresentam mais de duas séries de atraso escolar.
As principais conclusões são que, no que se refere ao acesso escolar, as crianças não brancas, em proporção mais
elevada, ingressam tardiamente na escola. Concluem ainda esses autores, que essa desigualdade não pode ser explicada nem
por fatores regionais, nem devido a circunstâncias sócio-econômicas das famílias. Apesar de constatarem que a situação
sócio-econômica está ligada à redução de acesso à escola, independentemente da cor, ficou evidente uma acentuada diferença
nos níveis gerais de acesso entre crianças brancas e não brancas. Mesmo onde se verifica um nível mais elevado de renda
familiar per capita, os grupos não brancos apresentam ritmos de progressão dentro do sistema escolar marcadamente mais
lento do que aquele experimentado pelo grupo branco.
No que se refere à evasão e repetência, foi constatado que crianças pretas e pardas repetem mais as séries,
apresentando uma trajetória mais lenta e acidentada, o que contribui para a evasão. Tomando como referência alunos (as) a
partir dos doze anos se pode observar que um maior número de pretos e pardos abandonam a escola, seja devido ao acumulo
de repetências, seja devido à necessidade de trabalhar. Assim, apesar de a questão da evasão apresentar números percentuais
próximos nos três níveis de cor, é no ponto de saída do sistema escolar que pretos e pardos apresentam o menor número de
séries concluídas, o que leva esses autores a afirmar que a sociedade brasileira apresenta profundas desigualdades
educacionais, que separam brancos e não brancos.
Henriques (2001) ao analisar a desigualdade racial no Brasil no final do século XX, dentre outras variáveis, toma
para análise a evolução da escolaridade média dos brancos e dos negros. Constata este pesquisador que a escolaridade média
da população adulta com mais de vinte e cinco anos é de seis anos de estudo. No entanto, a escolaridade média de um jovem
negro com vinte e cinco anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de
8,4 anos de estudo, logo o diferencial é de 2,3 anos de estudo a mais. Esse pesquisador desenvolveu ainda um estudo
comparativo sobre a escolaridade média dos adultos brancos e negros de acordo com o ano de nascimento, iniciando com os
nascidos em 1929 e indo até 1974. O resultado é que a escolaridade de ambas as raças cresce ao longo do século, porém o
padrão de discriminação racial expresso pelo diferencial nos anos de escolaridade entre brancos e negros é mantido estável o
que nos leva a concluir que a intensidade da discriminação racial é a mesma vivida pelos pais desses jovens – a mesma
observada entre seus avós.
O quadro de exclusão escolar para a população negra se mantém inerte por um século conforme dados da pesquisa.
Durante toda a década de 90 constatou-se uma significativa melhora de todos os indicadores educacionais para jovens
brancos e para jovens negros. Quando se passa a observar em separado o desempenho conforme o pertencimento étnico o
pesquisador constata que o desempenho não é homogêneo entre as raças. Por exemplo, os jovens negros apresentam em todos
os anos da série e para todos os segmentos níveis de desempenho inferiores aos jovens brancos. O mesmo acontece com

761
relação aos níveis de freqüência a escola e de analfabetismo, que são piores entre os jovens negros do que entre os jovens
brancos. Entre os jovens brancos de dezoito a vinte e três anos 63% não completaram o ensino médio, que embora seja um
elevado percentual, não se compara aos 84% de jovens negros da mesma idade que ainda não concluíram o ensino
secundário. Em 1999 não concluíram o ensino fundamental 57,4% dos adultos brancos e 75,3% dos adultos negros.
Completaram o ensino médio 12,9% dos brancos e 3,3% dos negros. A taxa de analfabetismo de pessoas com mais de quinze
anos, em 1999 era de 19,8% entre os negros, sendo que em 1992 era de 10,6% entre os brancos.
A década de 90, evidentemente, apresenta uma trajetória de melhoria nos indicadores educacionais, (…), os
avanços são, por vezes, tímidos e, em geral não interferem de forma significativa na estrutura de discriminação racial e de
gênero. Assim, apesar dos avanços nos indicadores quantitativos, as desigualdades raciais e de gênero continuam
significativas e sinais relevantes de transformação nos padrões de discriminação ainda não são detectáveis com nitidez. O
desafio estrutural de uma reforma educacional implica, portanto, a construção de bases efetivas para implantação de um
ensino norteado pela qualidade e eqüidade, que enfrente os contornos da desigualdade racial que atravessam, de forma
contundente, o sistema educacional brasileiro. (Henriques, 2002, p. 47).

5- O racismo no cotidiano escolar


A título de aprofundamento da importância da erradicação do racismo no ambiente escolar, o seguinte texto
abordará de forma ilustrativa algumas situações presenciadas por membros da CEAFRO, presentes na escola. Ainda que soe
inusitado ou descabida a reflexão, estudos vêm mostrando há décadas que a escola é campo fértil de produção e reprodução
do racismo. Crianças da educação infantil a adolescentes no final do ensino médio, experimentam diversificadas formas de
racismo que atingem tanto a vítima quanto ao algoz, segundo as palavras de Munanga (2005, p. 16):
O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência
negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmente branca, pois ao receber uma educação
envenenada pelos preconceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas [...]
O cotidiano escolar traz inúmeras evidências de racismo manifesto nas mais diferentes situações, variando das mais
simples às mais complexas. A título de exemplo, apontamos situações reais vividas com educandos (as) da educação infantil:
-Caso 1: aluna de 4 anos de idade fala com professora: “Tia, quero limpar minha pele pra ficar igual à sua”.
-Caso 2: Tia de uma criança de 4 anos comenta em reunião de família: “Meu sobrinho tomou banho de cloro
porque queria ficar branco”.
-Caso 3: Mãe relata numa reunião de família: “Minha filha hoje de manhã disse que não queria mais tomar café que
é pra não ficar mais preta. Disse que quer beber só leite. Ela tem 6 anos”.
-Caso 4: Professora relata problema enfrentado nos preparativos de festa junina: “Não sei o que fazer na hora da
escolha dos pares. Ninguém quer dançar com os alunos negros. Nem os próprios negros”!
O relato desses casos pode estarrecer a alguns (mas), ao mesmo tempo em que pode parecer natural aos olhos de
outros (as), uma vez que esses casos se passaram todos no interior de escolas de educação infantil do sistema municipal de
ensino de Vitória, quando de encontros de formação continuada orientados pela CEAFRO. Diante desses casos, alguns
questionamentos permeiam o pensamento: o que leva as crianças de tão pouca idade a envergonharem-se do seu
pertencimento racial? Por que desejam tornar-se outras pessoas? A professora Ana Célia da Silva, educadora baiana
referência nacional nos estudos sobre a discriminação do negro no livro didático, identifica a ideologia do branqueamento
que se faz presente, entre outros lugares, nos livros didáticos. Segundo ela o livro didático reproduz, em grande parte, através
dos estereótipos, a ideologia da inferiorização das diferenças étnico-culturais e raciais e a ideologia do branqueamento se
efetiva no momento em que “o negro internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem positiva do branco,
tende a se rejeitar, a não se estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivíduo estereotipado positivamente e dos seus
valores, tidos como bons e perfeitos”. (Silva, 2001, p. 18)
Em muitas das obras pesquisadas pela autora, a pessoa negra aparece como vítima de rejeição explícita (rejeitada
num time, último da fila, a criança malcriada, objeto de zombaria etc.), exercendo atividade de baixo prestígio social
(doméstica, escrava, trabalhador braçal, mendigo etc.), considerada minoria (única criança negra num grupo de crianças
brancas), incapaz (a criança negra é desatenta, ingênua, repreendida, inibida etc.) e sem identidade (sem nome e sem origem,
ao passo que as brancas aparecem com nomes e acompanhada das famílias), além de diversas outras formas que
tendenciosamente apresentam negros e negras em desvantagem, em relação às demais pessoas registradas nos livros.
Além dos viciados livros didáticos, outros recursos didáticos concorrem para diminuir a importância da pessoa
negra em relação às demais, como no caso de murais e cartazes indicadores de datas comemorativas (dia das mães,
primavera, namorados, pais etc.) que invariavelmente apresentam figuras de pessoas brancas e felizes, ao passo que, ao se
tratar de violência urbana, guerra, miséria e fome, as figuras de pessoas negras surgem massivamente. Processo semelhante
se percebe no momento da escolha de “melhores” alunos (as) para exercerem papéis importantes nas danças e teatros da
escola: invariavelmente às meninas brancas é oferecido o papel de princesas e aos meninos brancos o papel do mocinho ou
príncipe. O que cabe às crianças negras é excuso comentar, uma vez que a naturalização destes papéis inferiorizantes dado às
crianças negras é justificado por educadores (as) como sendo a reprodução da vida real.
A que vida real se referem tais educadores (as)? Expoentes negros nacionais e internacionais nas áreas da arte
(música, teatro, poesia etc.), das ciências, do esporte e da história perfazem uma vida real desconhecida ou negada que, uma

762
vez difundidos na escola, teriam poder de exercerem influência positiva nestes meninos e meninas negros e negras para que
se desejassem tornar como eles ou elas.
Oliveira (2001, p. 11) é contundente ao afirmar que:
[...] no processo de visibilização do negro é necessário valorizar uma história do Brasil que leve em conta a
participação do negro. Pensando identidade étnica como uma construção histórica que se dá a partir da relação de condições
subjetivas e objetivas de uma determinada sociedade, temos que recuperar a história do negro no Brasil. Neste contexto,
resgatar a ação de homens e mulheres negras que se destacaram na história do país é contribuir para criar estas referências.
A apresentação de imagens positivas de pessoas negras e seus feitos pode ser uma alavanca para impulsionar a
construção e/ou afirmação de uma identidade positiva da criança e jovem negro (a). O desafio está colocado. Resta entender
que, mais que um desafio, a discussão sobre raça negra e educação, nos seus múltiplos desdobramentos, é um dever de todos
(as) os (as) educadores (as) como também daqueles e daquelas responsáveis pela condução dos processos de formação
docente. Segundo Cardoso (2005, p. 10) “a superação do racismo ainda presente em nossa sociedade é um imperativo. É uma
necessidade moral e uma tarefa política de primeira grandeza. E a educação é um dos terrenos decisivos para que sejamos
vitoriosos nesse esforço.”
Assim podemos concluir que, apesar dos gritantes números e dos perversos enunciados aqui apresentados e que
mostram a existência do preconceito e da discriminação no Brasil, são muitos os que ainda não acreditam na sua existência e
nos profundos reflexos negativos que estes podem causar à população afro-descendente. As políticas de ação afirmativa têm
como objetivo principal a inclusão deste segmento étnico nos espaços de poder socialmente construídos. A inclusão do povo
negro no mercado de trabalho, na educação, nos meios de comunicação, na saúde, na política, enfim, a inclusão dos negros
(as) na condição de cidadãos plenos na sociedade brasileira é uma luta que tem sido travada por militantes, intelectuais e
políticos brasileiros. A Lei 10.639/03 que torna obrigatória a inclusão nos currículos escolares da história e cultura de matriz
africana está sendo implementada no município de Vitória. Enquanto as relações raciais no Brasil estiverem permeadas pelo
sentimento de superioridade racial apresentado por brancos e inferioridade apresentado por negros é impossível falar em paz
social. Incluir para igualar, para promover justiça social, incluir para dialogar, diálogo entre os povos, diálogo com o outro,
diálogo com a diferença tem sido a meta perseguida pela Comissão de Estudos Afro-Brasileiros, assim como por toda a
Secretaria Municipal de Educação de Vitória.

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A Educação Infantil no Contexto dos Movimentos Sociais: duas leituras possíveis

Adilson De Angelo
Universidade Federal de Santa Catarina
adilsondeangelo@gmail.com

Resumo: Ao procurar entender a educação infantil de forma contextualizada na história brasileira, verificamos que em meados da década de
1970, sob a constância da Ditadura Militar, o cenário sócio-educacional apresentava um conceito de criança e de educação fortemente
revestidos de nuances ideológicas, dirigindo para a submissão não só as crianças que atendia, mas também as suas famílias. Porém, o

764
fortalecimento e a multiplicação dos movimentos sociais populares, no início da década de 1980, faz do “direito a creche” uma bandeira de
luta a ser empunhada não só pelo movimento feminista, mas também por outros movimentos que se sentiam minimamente comprometidos
com o alargamento das conquistas populares urbanas. O objectivo da presente comunicação é identificar e discutir o processo de
consolidação de propostas de Educação Infantil nos movimentos sociais, sobretudo aquelas presentes no Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra e no movimento comunitário, no município de São Mateus, norte do Espírito Santo. Através da recolha etnográfica e da análise
documental, tomando como realidade dois Centros de Educação Infantil e uma Ciranda Infantil, vemos emergir nestes movimentos a
consolidação de uma educação infantil que pretende se afirmar como espaço-tempo de liberdade, onde se articulam diversos contextos
subjectivos, sociais e culturais, e onde as crianças são assumidas como sujeitos do direito, do desejo e do conhecimento; cidadãos críticos,
criativos, responsáveis e, sobretudo, mais felizes.

O objetivo deste texto é identificar e discutir o processo de consolidação de propostas de Educação Infantil em
movimentos sociais, sobretudo aquelas presentes no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e no movimento comunitário.
Ao enveredar-se pela história podemos perceber que o surgimento de muitos programas de atendimento à infância brasileira
tinha como principal finalidade a solução dos problemas sociais do “quarto estrato da população brasileira”, como
ambicionava a Ditadura Militar, a partir de Abril de 1964. A investida da LBA, com o lançamento do Projeto Creche Casulo,
pretendia, explicitamente, mascarar a realidade depauperada da família e da infância brasileira. Os diferentes programas
educacionais destinados às crianças traduziam um conceito de criança pautado na abstração e na descontextualização socio-
política, que se constituía na implementação de políticas educativas deficitárias, quer em termos quantitativos, quer em
termos qualitativos. Ademais, além de solucionar o problema da miséria, os programas de Educação Infantil deveriam,
também, atenuar os altos índices de reprovação no ensino primário. Consolidava-se, cada vez mais, a ideia do atendimento à
criança pobre como sinônimo de suprimento de carências nutricionais, não cabendo, portanto, uma dimensão pedagógica
neste trabalho, dicotomizando as dimensões do “cuidar” e do “educar”, como especificidade da Educação Infantil. A
participação dos movimentos sociais nas lutas pelo acesso à creche e as discussões e propostas que a partir deles foram sendo
construídas, são aqui entendidas como contribuição importantes para a Educação Infantil continuasse a ser pensada e
concretizada como espaço que reconhece na criança a sua dimensão de sujeito do direito, do desejo e do conhecimento. Ou
seja, não reduzindo a cidadania a uma condição meramente formal mas, considerando uma dimensão que excede a esfera dos
direitos meramente reconhecidos, vai vinculá-la a um ato político inacabado, para que ela se construa como atividade
desejável.

Os flagelos educativos e a criança como objeto de compensações: rasgos históricos


Ao procurar entender a Educação Infantil de forma contextualizada na história brasileira verificamos que em
meados da década de 1970, sob a constância da Ditadura Militar, o cenário sócio-educacional apresentava um conceito de
criança e de educação fortemente revestidos dos preceitos ideológicos que caracterizavam aquela forma de governo. A
política de atendimento à infância, sobretudo a pobre e abandonada, na sequência do seu intento de preparar “a criança de
hoje para ser o adulto de amanhã”, trazia consigo toda uma ideia, historicamente construída, onde o assistencialismo se
configurava como proposta educacional, dirigindo para a submissão não só as crianças que atendia, mas também as suas
famílias. Predominava, não ingenuamente, uma tendência paternalista de proteção à infância, afastando assim qualquer
análise que pudesse ligar os problemas das crianças com a divisão das sociedades em classes sociais.
Os flagelos educacionais, causados principalmente pelo insucesso e pela evasão escolar, procuravam justificativas
que pudessem corroborar com a ideia de que os fracassos se davam na escola, mas não eram da escola.
A este respeito, Kramer destaca que “uma versão marginalizadora e preconceituosa das crianças das classes
populares, agudizava-se e tornava-se hegemônica, (...) de tal modo que infância pobre e fracasso na escola pública apareciam
como elementos de um inseparável e quase insuperável problema social”. Fatores como privação cultural e social, carência
afetiva, precariedade de moradia, problemas e atrasos linguistícos e cognitivos “eram temas e termos trazidos para explicar
que as crianças pobres não tinham sucesso na escola, porque não aprendiam, porque falhavam” (Kramer, 1998: 15). Como
resposta e este handicap sociocultural1, acreditava-se que o desenvolvimento de determinados programas de educação
poderiam fornecer instrumentos necessários para que os indivíduos escolares pudessem consolidar uma trajectória de sucesso
no que se refere à aprendizagem. A Educação Infantil seria, então, o locus ideal para o investimento em uma educação
compensatória cuja finalidade seria resolver a questão do insucesso e do abandono escolar. Mas como lembra Saviani (1999),
a constituição da Educação Infantil brasileira como "mecanismo de solução do problema do fracasso escolar das crianças das
camadas trabalhadoras no ensino de primeiro grau acaba por configurar-se em forma de contornar a problemática em questão
e não em ataca-la de frente" (p.44). A opção institucionalizada por um modelo de educação compensatória, pautado nestes
objectivos, ao buscar suprir as ditas carências de uma população espoliada, acabava por mudar o enfoque das causas do

1
O conceito de carência sociocultural esteve fortemente influenciado por teorias e pesquisas estadunidenses, que imputavam o insucesso e a evasão escolar dos
alunos de classes baixas às deficiências de carácter nutricional, afectiva e cultural das crianças economicamente desfavorecidas. Este discurso traduzia-se em
numa visão eminentemente preconceituosa e discriminatória, atribuindo à família pobre e ao seu ambiente sociocultural as causas do fracasso escolar. Como
ressalta Connel (1995), o surgimento da noção de cultura da pobreza nos meios urbanos, o que teria afectado directamente o conceito de educação compensatória
em países ricos (sobretudo os Estados Unidos e alguns países da Europa), com repercussões também no Brasil, particularmente a partir da década de 1970,
momento em que a educação passou a ser concebida como meio através do qual o subdesenvolvimento poderia ser superado e o progresso acelerado.

765
insucesso escolar, relegando-se, inclusive, a ideia de que o fracasso/insucesso escolar poderia estar subjugado a
condicionamentos da própria infra-estrutura socio-económica da sociedade.
Nos posicionamentos oficiais, a ideia de compensar as ditas carências culturais era apresentada como importante
mecanismo que poderia resolver os problemas da evasão e da repetência escolar. Por nos parecer bastante esclarecedor,
trazemos aqui fragmentos deste discurso oficial, apresentado no Documento 45, publicado pelo Conselho Federal de
Educação, de 04.06.1974, onde se ressaltava que a “as crianças (…) apresentam-se destituídas das noções de lateralidade, de
alto e baixo, sem coordenação motora, sem vocabulário, sem comunicação e sem sociabilidade. Isto obriga que as escolas,
quando bem orientadas, o que ocorre em proporção aquém do desejável, percam alguns meses, no início do ano letivo, na
tentativa de compensar em partes essas carências, com a ministração de atividades preparatórias de alfabetização”. Como
alternativa a esta realidade, o mesmo documento explicitava a necessidade e a urgência de execução e do fortalecimento de
um programa de Educação Infantil, numa perspectiva assumidamente compensatória2: “colocar a grande massa de crianças
culturalmente marginalizadas num nível de relativa igualdade de desenvolvimento que desfrutam, pela riqueza do ‘currículo
escondido’, as crianças das classes médias e altas.” (CFE, Parecer n.º 2.018, 1974: 25-6).
As análises e as interpretações dos preocupantes resultados apresentados pela escola primária, traduzidos nos altos
índices de reprovação e evasão escolar, transformaram-se em motivações para que a Educação Infantil se constituísse um
terreno fecundo para compensar aquilo que é designado por carências culturais e necessidades nutricionais existentes nas
crianças pobres brasileiras. As justificativas apresentadas estavam fundamentadas nos fatos de que este atendimento poderia
ser entendido como solução para a defasagem escolar, uma vez que estudos e pesquisas realizados em determinados países
afirmavam que “os cuidados dispensados ao pré-escolar, contribuem para a prevenção do retardo escolar e de outros
distúrbios oriundos de carências nutricionais e afetivas, e para a promoção do desenvolvimento da criança com pleno
aproveitamento de todas as suas potencialidades”. Assim, como forma salvar a educação brasileira e de superar a
desigualdade, “é durante o período de três a seis anos que seria preciso agir” (CFE, Indicação n.º 45, 1974: 31-32).
Este posicionamento, que já se apresentava claramente assumido pelo Conselho Federal de Educação, passa a
figurar nos seus documentos oficiais conferindo à Educação Infantil as responsabilidades de preparar as crianças para o
sucesso escolar, reforçando a ideia de que
“a pré-escola se viesse a formar e executar programas de compensação das carências culturais trazidas pelas
crianças oriundas de meios sociais menos privilegiados que se situam na periferia urbana e nas zonas rurais, poderia oferecer
uma eficaz terapêutica para debelação das mais gritantes deficiências de aprendizagem que essa população apresenta ao
iniciar, aos sete anos de idade, o seu processo formal de escolarização. Suprindo o vazio cultural e a insuficiência nutricional
com que essa clientela chega à idade escolar, apresentando, não raro, quatro, cinco ou seis anos de idade mental, para sete ou
oito da cronológica, os programas compensatórios da pré-escola poderiam minimizar a terrível realidade das reprovações em
massa (...)” (CFE, Parecer n.º 1.038, 1977: 81).
Como forma de executar este programa de compensações, o governo brasileiro confere à Fundação Legião
Brasileira de Assistência – LBA3 a responsabilidade de, nos moldes da filosofia do regime ditatorial, elaborar e implementar
um programa de Educação Infantil de massa: o Projeto Creche Casulo. Ao esboçar os fundamentos deste que seria o primeiro
programa brasileiro de Educação Infantil de massa, a LBA – além das ilações obtidas em projectos anteriores –, parece
imprimir no seu discurso sobre a prevenção determinados aspectos que iriam contribuir para o seu alargamento em todo o
território nacional brasileiro.

O Projeto Creche Casulo e o atendimento em (da) massa


A pesquisadora Fúlvia Rosemberg (1997), ao analisar o contexto e os textos que marcaram a implementação do
Projecto Creche Casulo, buscou identificar a sua aproximação com a ideologia da “Doutrina de Segurança Nacional”, bem
como com as propostas do programa “Desenvolvimento Comunitário”, ambos instrumentos fortemente utilizados pela
ditadura militar. Segundo Rosemberg, foi, sobretudo, destas realidades que vieram as bases teóricas orientadoras da criação
do Projecto Casulo que, para ser implementado em larga escala, procurou: “(a) adotar um novo discurso da prevenção; (b)
proporcionar uma entrada direta e visível do governo federal a nível local, sem passar pelas administrações estaduais; (c)
basear-se em pequenos investimentos orçamentários, apesar de ser um programa de massa, adotando a estratégia de

2
Muito embora a educação compensatória tivesse recebido as mais contundentes críticas em países onde havia sido apresentada como tábua salvadora (Labov,
1972; Bernstein, 1985), no Brasil insistiu-se na implementação de políticas educativas que reproduziam a sua ideologia e os seus contraditórios objetivos
(Kramer, 1982a; Silva et al., 1984; Cornnel, 1995; Saviane, 1999).
3
A LBA, instituição criada em 1942, no disseminado movimento pós-guerra de apoio aos combatentes brasileiros e suas famílias, era o órgão oficial federal de
desenvolvimento dos programas de assistência social. Abandonando o apoio restrito aos pracinhas e suas famílias, a LBA desenvolveu diferentes atividades
destinadas à população pobre brasileira, buscando no voluntariado o seu grande contingente de colaboradores. No que tange à infância, a LBA chegou a
desenvolver alguns programas, geograficamente restritos, de proteção à maternidade e à infância, cumprindo a sua política de ação preventiva, orientando “sua
atividade e seus recursos ‘na defesa (da) raça, cuidando das mães e das crianças, os homens de amanhã’ (LBA, Boletim, 1946, p. 10-11); (buscando) evitar ‘a
ociosidade e a mendicância, vistos como conseqüência do abandono infantil e da decadência moral do meio’ (LBA, Boletim, 1960, p. 15)” (Rosemberg, 1997:
122). A sua extinção, em 1995, através da Medida Provisória n.º 813, de 1º de Janeiro de 1995, foi um dos primeiros atos realizados pelo Presidente Fernando
Henrique Cardoso, na sua primeira gestão (1995-8). Em sua substituição foi criada a Secretaria de Estado de Assistência Social – SEAS, que, fazendo cumprir o
Programa “Atenção à Criança”, destinava recursos financeiros para que as unidades de Educação Infantil pudessem oferecer alimentação, atividades pedagógicas
em horário integral ou parcial, além do trabalho sócio-educativo com as famílias e com as próprias crianças.

766
participação da comunidade, ajustando-se, pois, ao modelo preconizado pelo Estado de Segurança Nacional” (Rosemberg,
1997: 121).
Com o propósito de atender um elevado número de crianças, com um custo muito reduzido, o Projecto Casulo em
1977, no ano da sua implantação, já estava presente em 243 municípios brasileiros, prestando atendimento a 21.280 crianças
em 725 unidades de creches/pré-escola. Em 1984, ano em que o último presidente do regime militar governou o Brasil, os
números apontam a sua presença em 2.627 municípios, com uma clientela de 1.015.037 crianças, atendidas em 679 unidades
de creche/pré-escola. Em 1990, eram 1.602.261 crianças atendidas em 23.265 unidade de Educação Infantil, localizadas em
3.286 municípios brasileiros. Estes números poderiam ser entendidos como animadores, se determinados problemas
estruturais, decorrentes da opção pelo baixo custo, não fossem apontado nos relatórios das avaliações que a própria LBA
realizou, comprometendo o tipo de educação e assistência destinados às crianças. Já no primeiro ano do seu desenvolvimento,
o Projecto Casulo apresentava inúmeras dificuldades que, de acordo com o relatório anual da LBA de 1978, se
caracterizavam pela “falta de pessoal capacitado; pouco conhecimento da cultura das famílias atingidas a cujo nível
educacional e econômico eram atribuídas dificuldades no desenvolvimento de atividades; inadequação de espaços físicos e
falta de água em que a creche era implantada; falta de verbas e de recursos humanos, materiais e equipamentos” (Rosemberg,
1997: 124).
Parte destes problemas poderiam ser entendidos como consequência das próprias directrizes traçadas pela LBA
que, apostando na improvisação e na ocupação de espaços físicos (cedidos pela própria comunidade) e valendo-se do trabalho
leigo voluntário, pretendia resultados quantitativamente expressivos, face ao grande número de crianças brasileiras com idade
e necessidade de atendimento em Educação Infantil. As realidades que caracterizavam este atendimento no Brasil, por via de
regras, no final da década de 1970 e, sobretudo, durante toda a década seguinte, conforme anteriormente já se fez referência,
apresentavam um modelo de Educação Infantil cujas práticas pedagógicas e assistenciais eram objectos de questionamentos.
Assumido oficialmente como projecto, a educação compensatória não trazia uma proposta pedagógica constituída,
por isso nas “instituições pré-escolares destinadas à infância pobre, o assistencialismo, ele mesmo foi configurado como uma
proposta educacional específica para esse setor social, dirigida para a submissão não só das famílias, mas também das
crianças das classes populares” (Kuhlmann Jr., 1991: 182). Ou seja, a educação não seria necessariamente sinónimo de
emancipação por apresentar-se fortemente marcada por elementos que, por si mesmos, se constituíam como impedimentos. A
superlotação das salas e dos centros educacionais (jardins de infância e creches), profissionais despreparados, falta de
recursos didácticos e materiais, condicionamento a vontades políticas, e a ausência de projectos pedagógicos sólidos e
dinâmicos, eram alguns destes problemas. E como não poderia ser diferente, às crianças restavam um atendimento duvidoso
e... questionável. Pedagogicamente, a dinâmica que se construía pautava-se, geralmente, em atividades cujo objetivo era
estimular o desenvolvimento natural das crianças. Os aspectos sociais e culturais em que as crianças se encontravam
mergulhadas, não eram considerados importantes, como também pareciam não interferir na dinâmica proposta.

A Educação Infantil como bandeira nos movimentos sociais: conquistas históricas


O carácter duvidoso do atendimento das instituições públicas, não diminuía o grande contingente de famílias que
recorriam a elas, diante da crescente necessidade de encontrar um lugar seguro, onde pudessem confiar os filhos pequenos,
enquanto realizavam a sua jornada de trabalho. O intumescimento dos centros urbanos, resultado do acelerado e forçado
êxodo rural, e também a crescente entrada das mulheres no mercado de trabalho fez com que aumentasse o número de
crianças que necessitavam de acolhimento em instituições especializadas. Os programas de acolhimento e assistência em
creches (para crianças de zero à três anos) e pré-escola (de quatro à seis), não conseguiam responder a crescente demanda, e o
discurso que apregoava o acesso a creche como direito de todos, passa a ser alvo de questionamento da população.
Porém, o fortalecimento e a multiplicação dos movimentos populares, já no início da década de 1980, faz do
direito a creche uma bandeira de luta que será empunhada não só pelo movimento feminista, mas por todos os setores que se
sentiam minimamente comprometidos com o alargamento das conquistas populares urbanas. Na pauta das reivindicações,
estava não somente a garantia deste direito, mas, principalmente, o direito a um modelo de creche diferente daquele que
apresentava precárias condições do atendimento educacional das crianças. Desta mesma forma, a reivindicação e a denúncia
estendiam-se também à educação pré-escolar.
A luta por creche, no âmbito da implementação e expansão da uma educação Infantil que respeitasse os direitos das
crianças e das famílias, continuava a suscitar uma discussão que buscava reflectir o direito a uma Educação Infantil de
qualidade4. O fortalecimento de uma visão crítica que questionava o puro assistencialismo caracterizante das propostas de
educação compensatória, levou até mesmo estudantes do curso de pedagogia a somarem força nas discussões políticas da
pedagogia para esta modalidade educativa5.

4
Este movimento ganhou fortes proporções em todo o Brasil. As grandes mobilizações populares foram fatores importantes para que a Educação Infantil,
enquanto direito da criança e da família e dever do Estado, fosse garantida na Constituição Federal de 1988.
5
Moysés Kuhlmann Jr., no artigo “Políticas para a Educação Infantil: uma abordagem histórica” (1998), aponta: “Olhávamos para o cotidiano das creches e ali
víamos – como ainda hoje podemos ver em muitas delas – que elas funcionavam como um depósito de crianças. (...) Como resposta ao desejo de transformar
essa triste realidade, passou-se a defender que as creches – e também a pré-escola que atendia as classes populares – precisavam de um projecto educacional.
Afinal, se a creche era uma instituição desconhecida no curso de Pedagogia, isto seria porque ela não era ainda educacional.” (pág. 198-9)
Esta nota continua na página seguinte

767
Se outrora uma prática puramente assistencialista, configurada como benesse salvadora, se justificava pela simples
tentativa compensar carências socioculturais, agora as exigências pareciam ser outras. Questionamentos sobre a necessidade
de uma proposta pedagógica e também sobre a importância da formação dos profissionais que atuavam na Educação Infantil,
progressivamente apontavam para as necessidade de consolidação de uma orientação pedagógica norteada por pressupostos
teóricos que apresentassem outras concepções de criança, de educação e de sociedade; bem como por uma diferente postura
teórica, face ao problema do sucesso e do insucesso escolar.
Tomando como dado adquirido que a Educação Infantil pressupõe assistência e educação, um questionamento toma
forma de movimento: que assistência? Que educação? Antes de se construir tais respostas, ao que parece, havia já uma
certeza: a urgência de uma nova prática pedagógica progressista6 – que mais que um simples ato assistencialista, fosse um ato
político –, que considerasse a criança como sujeito do direito e do conhecimento, aliada a uma nova política que respeitasse
os direitos da criança e das famílias. Ou seja, a constituição de uma pedagogia da infância fundada nos princípios de uma
educação que buscasse nos “diversificados olhares das diferentes áreas do conhecimento subsídios para compreender a
educação e nela atuar, e para conhecer a criança e com ela agir, tanto ao nível da investigação científica, quanto ao nível da
intervenção educacional” (Kramer, 1998).
No conjunto de todas estas movimentações, a aprovação da Constituição Federal de 1988, e todos os avanços por
ela trazidos – alguns deles resultantes das grandes mobilizações populares convocadas pelos movimentos sociais –, e outras
leis que se seguiram, abriram caminhos para que a Educação Infantil fosse assumida como um direito de cidadania da criança
brasileira. Podemos destacar o fato de que na própria Constituição Federal, a Educação Infantil, em regime de creche e pré-
escola, passa a ser reconhecida oficialmente como “um dever do Estado e um direito da criança” (Art. 208, inciso 4º). O
Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado como Lei Nacional em 1990, veio reforçar o direito das crianças a este
atendimento. Mas é na Lei de Directrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, que vamos encontrar estabelecido, de
forma incisiva, o vínculo entre o atendimento às crianças de zero a seis anos e a educação. Ao longo do texto desta lei,
acabamos por encontrar diversas referências específicas à Educação Infantil, que passa a ser assumida como primeira etapa
da educação básica.
Os movimentos sociais são processos cujas teceduras se dão “face aos problemas estruturais e conjunturais vividos
nas diferentes situações nacionais” (Souza, 1999: 40). No caso específico deste recorte que acabamos de apresentar, o acesso
das crianças oriundas dos meios populares a uma Educação Infantil que as respeitassem como sujeito de direito, configura-se
como problema a ser superado pela mobilização popular.
Souza (1999) alude sobre movimentos sociais como constituição de correntes de opinião e força social, afirmando
que
“enquanto correntes de opinião, aproximam-se por idéias e sentimentos semelhantes. São grupos de pessoas, com
posicionamento político e cognitivo similar, que se sentem parte de um conjunto, além de se perceberem como força social
capaz de firmar interesses frente a posicionamentos contrários de outros grupos. Pessoas que agem, afirmam posições e se
sentem vinculadas. Expressam-se como correntes de opiniões sobre os diversos campos da existência individual e coletiva,
sobretudo dos segmentos sociais explorados, oprimidos e subordinados, cujos temas, quase sempre de maior incidência em
suas vidas, em seu cotidiano são: trabalho, habitação, alimentação, participação, dignidade, paz, direitos humanos, meio-
ambiente, género, etc. portanto são força social atuante que se manifesta através de organizações de grupos de diversas e
divergentes naturezas, amplitudes e vigor” (Souza, 1999: 38).
A seguir, trazemos duas realidades desenhadas por movimentos sociais, enquanto correntes de opinião e de força
social, como forma de ilustrar o enfrentamento de algumas questões que se põem à Educação Infantil. Entendemos que das
realidades aqui trazidas não pretendemos tomá-las como universais, traduzindo a ideia de que os movimentos por elas
empreendidos encerram um caminho que vem sendo discutido e construído no sentido configurar a Educação Infantil como
um espaço e um tempo pedagógico “onde se articulam diversos contextos subjectivos, sociais e culturais, e onde as crianças
poderão ser assumidas como sujeitos críticos, criativos, responsáveis e, sobretudo, mais felizes” (De Angelo, 2007: 5).
Igualmente, não podemos deixar de assinalar que com as notas que aqui trazemos não pretendemos abarcar as
dimensões dos aspectos históricos, políticos e ideológicos dos movimentos aqui referidos, dado a sua complexidade e
expressividade. Temos aprendido que um movimento social se compõe de naturezas diversas e o exercício da sua
compreensão começa com a decomposição da sua aparente homogeneidade (Melucci, 1997), pois que "o que nós chamamos
de movimento social, muitas vezes, contém uma pluralidade de elementos e devemos ser capazes de distingui-los se
quisermos entender o resultado de uma acção colectiva" (Melucci, 1989: 57).

A Educação Infantil e a criança como sujeito de direito ao cuidado à educação


A realidade tem comprovado que o êxodo rural é um dos maiores responsáveis pelo crescimento desordenado dos
centros urbanos, provocando, cada vez mais o inchaço das suas periferias. Ele se encarrega em produzir uma urbanização

6
O termo “progressista” foi muito utilizado no Brasil a partir da década de1970. De forma simplificada se pode dizer que “progressista” é o que se opõe ao
“reaccionário”. Uma educação progressista será aquela que, em oposição ao modelo vigente, defende o “envolvimento da escola na formação de um cidadão
crítico e participante da mudança social”, conforme informa Moacir Gadotti (1993: 238).

768
desigual, traduzida pelos grandes contrastes e problemas causados por este crescimento desordenado e desorientado das
cidades. De acordo com Lopes (1998), uma das exigências da sociedade moderna é o planejamento das cidades. A partir
desta ação, torna-se possível a construção do que chamou de uma “cidade intencional”, um espaço urbano construído de
forma organizada e planejada, oferecendo aos seus habitantes o acesso a direitos básicos: moradia, transporte público,
saneamento básico, saúde, educação escolar, cultura, lazer, etc.
A cidade de São Mateus, no extremo Norte do Espírito Santo, a partir da década de 1970, passou a receber um
grande o número de famílias da zona rural que migrou em busca de melhores condições de vida e maiores perspectivas
econômicas, uma vez que as dificuldade em fazer produzir as pequenas propriedades aumentavam consideravelmente. O
destino destas famílias passava a ser as cidades de médio ou grande porte ou outras regiões que pareciam oferecer condições
mais favoráveis para a sobrevivência na pequena agricultura.
O grande e o súbito inchamento nas periferias da cidade de São Mateus não permitiu que ela tivesse tempo de
preparar a “cidade intencional”, conforme sugere Lopes. No lugar da “cidade intencional”, São Mateus via surgir a sua
primeira favela, resultante de uma grande ocupação urbana, reunindo famílias oriundas da sua zona rural, de outras cidades,
de outros Estados. Juntamente com os inúmeros barracos, cresciam nas periferias os problemas sociais emergentes destes
fenómenos: a violência, o desemprego, a falta de escola, a mortalidade infantil, a falta de estrutura básica… Daqui decorre a
sustentação de preconceitos marginalizadores destas comunidades e das suas populações, acentuando o seu sofrimento e a
sua exclusão.
A Igreja Local procurou se mobilizar para contribuir com a organização comunitária, estimulando a criação de
grupos de trabalho social e investindo na constituição de associação de moradores, ajuntamentos cooperativos, grupos de
mulheres, grupo de jovens, etc. Com as mulheres, os trabalhos organizados giravam em torno de cursos de corte-costura,
cozinha alternativa, medicina caseira, planejamento familiar, etc., e com os jovens as ações estavam ligadas à horticultura e à
fruticultura, além de momentos recreativos.
Este trabalho junto à população feminina, acabou por fazer emergir, no Bairro Santa Teresa (Comunidade da
Ponte), a criação do primeiro Jardim-de-infância a funcionar na periferia da cidade. O prédio que abrigaria este serviço
comunitário foi cedido pela comunidade católica local, mas as suas adaptações e a sua reforma foram feitas em regime de
mutirão, um trabalho coletivo reunindo moradores do próprio bairro e de bairros vizinhos. Posteriormente, em outras
comunidades da periferia, as mobilizações populares acabaram por reproduzir este movimento, abrindo espaços de creches
para acolher as suas crianças de dois a seis anos. Com a implantação do Projecto Creche Casulo, em 1977, estas creches
comunitárias passaram a receber o parco subsídio oferecido pela LBA.
Porém, nestas experiências comunitárias procurava-se ultrapassar aquela visão de atendimento meramente
assistencialista, subordinando crianças e famílias a uma ação domesticadora. A proposta pretendida era a de se demarcar
daquela ideia que traduzia todo espaço de creche destinado às classes populares como “depósito de crianças”. Esta ideia foi
perpetuando-se, pois historicamente os projetos políticos e os programas de atendimento às crianças pobres acabavam por
configurar a creche espaço, cuja principal função seria o acolhimento à criança pobre, salvaguardando-a dos perigos enquanto
os seus familiares estavam a trabalhar, ministrando-lhes algum suplemento alimentar e cuidados higiênicos. Isentava-se,
portanto, a creche de atendimentos com intencionalidade pedagógica.
Em muitos discursos e realidades, a preocupação com um trabalho de cunho mais pedagógico dirigido à criança, só
cabia nos espaços educativos propositadamente pensados para o atendimento aos filhos e filhas das classes privilegiadas.
Bifurcava-se, assim, o atendimento à criança pequena, fazendo seguir pelo caminho do mero cuidado as crianças pobres
“depositadas” em creches, enquanto seguiam pelo caminho da educação as crianças das classes abastadas. Infeliz dicotomia
que, por um lado, macula a história da creche como conquista da classe trabalhadora (garantia da vivência dos direitos
cidadãos das crianças), e por outro, dissocia cuidado e educação – especificidades fortemente interligadas no que tange ao
trabalho de atendimento à pequena infância.
Era esta bifurcação que as creches conquistadas por esses movimentos comunitário queria evitar. As suas
mobilizações seguiam no sentido de juntar no mesmo caminho a dimensão do “cuidado” e da “educação” no atendimento às
suas crianças. Nesta direção, procuravam sensibilizar as educadoras que lidavam com as crianças, desafiando-as para um
possível trabalho diferenciado, mesmo consciente das limitações estruturais dos espaços ocupados. Esta sensibilização
funcionava como pressuposto para que um programa pedagógico fosse minimamente cumprido no interior das creches, não
reduzindo, assim, o atendimento aí oferecido apenas aos cuidados infantis.
Esta possibilidade de interligação entre as dimensões do cuidar e do educar no trabalho com crianças pequenas é
apontado por Campos (1994) como um caminho para resolver o antagonismo que se põe entre o que se estabelece como
assistência e educação. O caminho desejado por estas creches, traduzindo a ideia de inseparabilidade que se põe entre
educação e cuidado, pretendia afirmar que a necessidade destas duas dimensões extrapolam idades e condições sociais.
Prosseguindo com a ideia apresentada por Campos (1994), a opção por um trabalho onde não haja a valorização de uma
dimensão em prejuízo da outra,
“não só todos esses aspectos são recuperados e reintegrados aos objetivos educacionais, como também deixam de
ser considerados como exclusivamente necessários à parcela mais pobre da população infantil, e de ser contemplados
somente para as crianças menores de 2 ou 3 anos de idade. Todas as crianças possuem estas necessidades e, se todas têm o
direito à educação, qualquer instituição que as atenda deve levá-las em conta ao definir seus objetivos e seu currículo
(Campos, 1994: 35).

769
A seguinte reflexão de Kuhlmann Jr, levanta também algumas questões sobre a necessidade de definir que a
criança, nas suas realidade e exigências, deve constituir-se como ponto de partida para as proposições pedagógica, erigindo-o
à sua condição de sujeito, conforme pretendiam o movimento comunitário dessas comunidades:
“A caracterização da instituição de educação infantil como lugar de cuidado-e-educação adquire sentido quando
segue a perspectiva de tomar a criança como ponto de partida para a formulação da propostas pedagógicas. Adotar essa
caracterização como se fosse um dos jargões do modismo pedagógico esvazia seu sentido e repõe justamente o oposto do que
se pretende. A expressão tem o objetivo de trazer à tona o núcleo do trabalho pedagógico consequente com a criança
pequena. Educá-la é algo integrado ao cuidá-la” (Kuhlmann Jr., 1999: 60 – sublinhado do autor).
Sublinhe-se, nesta recusa de artifício dicotómico, a sua reversão em práticas integradas, propícias à emergência e
consideração dessa condição de sujeito.
É assim que o suporte para este trabalho com princípios pedagógicos é apontado, por um lado, como o
envolvimento que procuravam estabelecer entre a associação de moradores e a unidade de atendimento às crianças; por outro,
a conscientização das educadoras sobre a importância do trabalho que desenvolviam para a transformação da realidade. Neste
sentido, duas estratégias eram adoptadas: a realização de constantes reuniões comunitárias, onde se procurava discutir a
representação da instituição educativa naquela comunidade, e o acompanhamento, de certa forma sistematizado, do trabalho
que as educadoras estavam a desenvolver. Para tornar mais consistente esta segunda estratégia, a instituição procurava
incentivar a formação e o estudo das profissionais que atuavam com as crianças.
Nos limiares do seu trabalho, as educadoras eram desafiadas a perceberem que a própria criança, a partir das suas
necessidades de cuidado e de educação, podia se constituir como uma espécie de grande tema gerador de todo um projeto
pedagógico pensado para ela e a ser desenvolvido com ela. No que se viam também desafiada a consolidar uma proposta
pedagógica que se apresentasse resultante de uma compreensão de criança e de Educação Infantil bastante inovadora e, em
certa medida, contrária a alguns discursos pedagógicos e políticos comuns à época.

A Educação Infantil em movimento


O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST como corrente de opinião e como força social é um
movimento que se tem afirmado a partir da identidade do sujeito Sem Terra. Identidade que se forja como sujeito cultural,
cuja conscientização e ação produzem e reproduzem um determinado modo de vida ao mesmo tempo que busca recuperar,
fortalecer e projectar valores, princípios e convicções, bem como um jeito próprio de conceber as relações sociais,
identificando e desnaturalizando as ambiguidades existentes no seu interior. Esta identidade vem sendo forjada ao longo da
própria história da luta pela terra e pela implantação da reforma agrária e agrícola no Brasil, como também pela própria
transformação da sociedade.
Desde a sua criação, o MST assegurou na sua agenda política a luta pela educação e por uma escola mais
significativa para a família Sem Terra. Para tanto, tem procurado construir ao longo de toda a sua trajetória uma projeto
educativo cujas dimensões desta pedagogia estão assentes em três pontos principais: i) “resgate da dignidade a milhares de
famílias que voltam a ter raiz e projeto”; ii) “a construção de uma identidade colectiva, que vai além de cada pessoa, família,
assentamento”; iii) “a construção de um projeto educativo das diferentes gerações da família Sem Terra que combina
escolarização com preocupações mais amplas de formação humana e de capacitação de militantes” (Caldart, 2003: 51).
Estas dimensões são reveladoras de como o MST tem construído e tem apresentado a sua pedagogia, ou melhor
dizendo, a sua proposta de práxis para a educação das pessoas que dele fazem parte. É uma construção que procura dar conta
de como sujeitos inseridos em uma luta social, integrantes de um movimento “em movimento”, se ocupam e se preocupam
com a educação. Ao longo da história, o projecto de educação do MST tem sido forjado no esforço dele mesmo se apresentar
como uma referência da prática e da reflexão do que é o próprio Movimento. Toda acção do MST pretende ser, antes de tudo,
uma acção pedagógica, uma acção de formação da pessoa humana, portanto uma prática educativa para a liberdade.
O MST reconhece nos seus integrantes a sua temporalidade própria – são crianças, adolescentes, jovens ou adultos;
a sua identidade camponesa, com saberes próprios; e a sua identidade Sem Terra, herdeiros e herdeiras de uma luta histórica.
Por isso, na aposta que fazem, a educação deve ser garantida a todo os sujeito Sem Terra e em todos os seus níveis: Educação
Infantil, ensino fundamental, médio e superior.
Na fala de uma militante do MST, podemos perceber como a Educação Infantil foi sendo revestida de importância,
e colocando-a em pé de igualdade com outras modalidades educativas: “A educação infantil, o trabalho com as crianças
menores, era uma espécie de dívida que o Movimento tinha com seus militantes, com as famílias Sem Terra. Desde o
começo, a nossa grande preocupação foi a educação de 1ª à 8ª série, com o ensino fundamental. Isso não quer dizer que nas
ocupações e nos assentamentos não tivesse criança. Isso é que não. Onde tem Sem Terra, onde tem qualquer acção do
Movimento, tem criança correndo, cantando, gritando palavras de ordem… estão juntas com os pais e os irmãos mais velhos.
São também do Movimento”.
A dívida para com a criança Sem Terra, no que respeita ao seu acesso à educação institucional, identificada no
interior do Movimento, se entendida no conjunto das realidades históricas sob a qual se efectivou a Educação Infantil no
Brasil, não parece traduzir nenhum negligenciamento. Temos que ter em conta que na sociedade brasileira a Educação
Infantil é uma realidade que se construiu com um cariz muito urbano. A própria luta por creches e por outras instituições de
educação para crianças até seis anos, que ganharam maior força na década de 1980, no mesmo momento em que o MST se

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estava a afirmar como movimento social de luta pela terra, é traduzido por suas reivindicações como uma luta muito voltada
para a realidade citadina e industrial. Um outro dado que nos parece importante referir é que na cultura camponesa a
educação escolar é, maioritariamente, pensada a partir do ensino fundamental. Também é importante que se tenha em conta
que em termos legais, somente na Constituição Federal de 1988 é que a Educação Infantil foi oficialmente tornada
responsabilidade dos Poderes Executivos. Assim, podemos ter em conta que a «dívida» do MST para com a criança Sem
Terra é, na verdade, uma dívida de toda a sociedade brasileira.
O MST não estando alheio a estas dificuldades, reconhece que
“a questão da Educação Infantil é complexa para toda a sociedade, que acredita que ela é menos importante que as
demais. Parece complicado dizer para as pessoas que um bebê de colo está participando da história. Que já é militante,
embora não grite palavras de ordem. A idéia é que a mediada em que estão com seus pais as crianças participam do
Movimento, e dão sua contribuição ao integrar a caminhada de sua comunidade” (MST, 2004a: 47).
A opção do Movimento Sem Terra é encarar a Educação Infantil como um desafio. Um desafio que pode ser
traduzido pelo compromisso em construir um projeto educativo para a criança, pensando-a como um sujeito de sua educação
e de sua história, já parte de todo o movimento que integra o Movimento, a luta pela terra, a transformação da sociedade. A
criação da Frente de Educação Infantil, um campo específico dentro do Setor de Educação do MST, vem representar esta
preocupação com o respeito à vivência da infância e o reconhecimento de que é necessário pensar para a criança um projeto
educativo que lhe seja adequado. Esta Frente assumiu como principais desafios da Educação Infantil do MST um conjunto de
ações que buscava:
“Ampliar a discussão sobre a educação familiar, a necessidade das famílias compartilharem a educação de criança
de 0 a 6 anos com a comunidade, o coletivo, a escola infantil, em nosso caso, a Cirandas Infantis; Lutar por politicas públicas
para educação infantil do campo – uma educação infantil que respeite a diversidade dos sujeitos que formam e transformam o
campo brasileiro; Lutar contra a exploração do trabalho infantil, trazendo como contraponto a participação amena das
crianças em tarefas ao lado das famílias, o aprendizado do trabalho do campo, o aprendizado da terra, de ser um homem, uma
mulher da terra” (MST, 2004b: 24).
Ao tomar como ponto de partida a criança na sua materialidade histórica, ao assumir a infância como uma
construção social, a proposta de Educação Infantil que o MST passa a apresentar está muito mais vinculada ao projecto
educativo que ele tem construído e dado a conhecer. A própria configuração de criança que apresenta está muito mais
próxima da identidade da criança Sem Terrinha que, orgulhosamente, vemos referida em diferentes documentos e discursos
do Movimento. Assim, a criança que integra a Educação Infantil é também assumida como Sem Terrinha, conquistando o
direito desta denominação que, até então, estava mais vinculada à identidade da criança Sem Terra, a partir dos sete anos.
O termo “Sem Terrinha” foi atribuído às crianças e adolescentes que integram as realidades Sem Terra por elas e
eles próprios. Em 1997, o MST do Estado de São Paulo organizou um encontro estadual de crianças e adolescentes do MST e
neste evento os seus participantes tornaram público o desejo de serem (re)conhecidos como Sem Terrinha, vinculando a sua
identidade à grande identidade do Movimento. Dado a significativa articulação existente entre as instâncias organizativas e a
facilidade de circulação de informação no MST, rapidamente o termo Sem Terrinha passou a identificar a grande população
de crianças e adolescentes que se encontra presente nos acampamentos e assentamentos do MST.
É esta a imagem de infância e de criança que emerge na proposta que o MST vem agora apresentar. O sujeito da
Educação Infantil é a criança Sem Terrinha, marcada por sua identidade histórica, social, cultural; configurada como
protagonista de um processo educativo que a reconhece como sujeito do direito, do desejo, do conhecimento. Uma criança
que só cabe dentro de um projecto político e pedagógico e dentro de uma proposta educativa de vivência de valores, de
sentido de pertença a um movimento que luta pela transformação da sociedade. Uma criança (a)gente.
O endereçamento da Educação Infantil que o MST e os seus educadores e educadoras fazem, vai no sentido de uma
Educação Infantil pensada como espaço/tempo de um trabalho dialógico entre educadores e educandos, assumindo a criança
na sua materialidade histórica, possibilitando uma compreensão da realidade e desafiando para uma possibilidade de
intervenção com ela. Um projeto apresentado como resultante de um movimento que se procurou pautar sobre: i) o
reconhecimento da identidade da criança Sem Terrinha; ii) a construção de uma identidade da/o educadora/o de infância; iii)
a valorização de espaços/tempos e de instrumentos pedagógicos próprios para o trabalho com a infância; e, por fim, iiii) a
definição de um projecto político e pedagógico que procura traduzir os princípios filosóficos e pedagógicos do MST, bem
como a sua organicidade (MST, 1996). Tudo isto como resposta aos desafios que o trabalho com a criança Sem Terrinha veio
apresentando ao Movimento, ao seu projecto educativo, ao Sector de Educação, aos seus educadores e suas educadoras, às
famílias Sem Terra.
A proposta política pedagógica para o trabalho com a criança Sem Terra é apresentada a partir da aprendizagem
como possibilidade de interacção dos sujeitos entre si, e destes com o mundo. A grande finalidade da educação aí apontada é
a construção da criança como sujeito capaz de estar no mundo para compreendê-lo mais e melhor, transformando-se ao
transformá-lo. Uma compreensão, apropriação e possibilidade de transformação do mundo, como movimento que utiliza as
mais diferentes linguagens, que valoriza a imaginação e a criatividade, que não se distancia das vivências e das experiências
vividas. Um projecto pedagógico, portanto, que não violenta o sujeito infantil, mas que o reconhece como protagonista de
uma acção desenvolvida com ele.
Nesta proposta, a criança é constituída como agente da linguagem, capaz de pronunciar o mundo. Uma pronuncia
que antecede o domínio da linguagem alfabética escrita, um leitura de mundo que precede a leitura da palavra – reportando

771
àquela perspectiva freireana. Aqui, também o MST subverte a lógica de Educação Infantil defendida em determinados
projetos oficiais que, como já anteriormente procuramos observar, concebem este trabalho pedagógico como tempo de
preparação para “a escola”, munindo a criança de mecanismos para o domínio da cultura alfabética. Não importando se este
processo se autentique numa perspectiva bancária de educação.
“Quando de se tira da criança este ou aquele aspecto da realidade, na verdade se está alienando-a da sua capacidade
de construir seu conhecimento. Porque o ato de conhecer é tão vital como comer ou dormir, e eu não posso comer ou dormir
por alguém. A escola em geral tem esta prática, a de que o conhecimento pode ser doado, impedindo que a criança e,
também, os professores [sic] o construam. Só assim a busca do conhecimento não é preparação para nada, e sim vida, aqui e
agora. E é esta vida que precisa ser resgatada pela escola. Muito temos que caminhar para isso, mas é no hoje que vamos
viabilizando esse sonho” (Freire, 2002: 15).
Este sonho, a que a educadora Madalena Freire faz referência, tem procurado ser concretude pedagógica entre os
Sem Terra. O projeto de Educação Infantil que apresentam é pensado para conduzir, orientar, criar, oferecer condições para
que as crianças se desenvolvam como sujeitos históricos autônomos, críticos, criativos, solidários, cooperadores. Criança
promotora e vivenciadora da cidadania. A realidade da infância, a presença da criança como sujeito concreto em movimento
no Movimento, a ocupação da escola, a construção de um proposta educativa resistente e alternativa, a consciência da
humanidade do ser humano como processo de construção histórica: foram vivências propulsoras deste projecto.
A proposta de Educação Infantil do MST também pode ser assumida como uma alternativa educativa. Um projecto
construído historicamente, forjado nas necessidades do Movimento em compartilhar com as famílias Sem Terra o cuidado e a
educação de suas crianças, em consonância com os direitos infantis e com a transformação da sociedade. A própria
denominação da proposta que apresentam é reveladora desta identidade alternativa de Educação Infantil. A designação
“Ciranda Infantil” procura traduzir o olhar que o MST tem sobre a educação que pretende para suas crianças. “Ciranda” é
uma palavra fortemente associada à ideia de movimento, de ritmos, de alegria, de mãos que se entrecruzam, de passos que se
dão conjuntamente, de vozes que interagem.
A Ciranda Infantil é um projecto que procura trazer as lutas dos Sem Terra à educação a ter lugar com crianças
pequenas, que procura estar inserida na realidade da luta pela terra, da transformação da sociedade. Uma prática educativa
que considere as especificidades dos jeitos que a compõem, mas que não perca do seu horizonte que toda prática educativa
tem de estar vinculada às questões da produção, da cultura, da história.
O projecto da Ciranda Infantil procura confirmar que o aprendizado da criança se dá em todos os espaços que
tornam possíveis a interacção entre os sujeitos humanos. Assinalam que no MST a grande realidade colectiva é educadora
dos sujeitos Sem Terra, e que as crianças se educam entre si e na convivência com os adultos. As realidades dos
acampamentos e assentamentos acabam por aproximar famílias que se encontram na mesma luta, e este processo é um
processo educador.
Embora reconheçam que a educação da criança é transversal à toda dinâmica vivida, a Ciranda Infantil é uma forma
de instituinte de educação da infância, como expressão de cidadania. Neste sentido afirmam que
“Cirandas Infantis são espaços que devem ser organizados em todas as atividades, instâncias e ocasiões que
estiverem presentes crianças de zero a seis anos. São momentos e espaços educativos intencionalmente planejados, nos quais
as crianças receberão atenção especial, e aprenderão em movimento a ocupar o seu lugar na organização que fazem parte. É
muito mais que espaços físicos são espaços de troca de saberes, aprendizados e vivências; de relações humanas” (MST,
2004b: 37).
Assim, prevê-se a realização da Ciranda Infantil em duas modalidades, como formas de responder as demandas
existentes nas realidades do MST: a presença itinerante e a presença permanente de crianças nos espaços do MST.
A “Ciranda Infantil Itinerante” é uma organização da Educação Infantil pensada e preparada para a locomoção onde
se está a realizar alguma atividade do MST e onde estejam presentes crianças de zero a seis anos. A primeira experiência de
Ciranda Infantil Itinerante aconteceu no Encontro Nacional de Educadores e Educadoras do MST, em 1997, reunindo 80
crianças de todo o Brasil.
Em 2000, por ocasião do IV Congresso Nacional do MST, o Colectivo de Educação organizou uma Ciranda
Itinerante que atendeu 320 crianças, cujos pais e encarregados de educação estavam presentes neste evento. “O espaço da
Ciranda Infantil foi organizada com intencionalidade pedagógica, para que houvesse troca de experiências e saberes. Este
acontecimento tornou-se um marco de referência para a organização das cirandas por parte do setor de educação nos estados”
(MST, 2004b: 25). A partir daí o projecto de Educação Infantil do MST sofreu um grande impulsionamento, culminando com
projeto de formação de educadoras e educadores infantis e de implementação da ciranda em vários municípios do Brasil.
A “Ciranda Infantil Permanente” vem a ser um espaço educativo organizado nos acampamentos, assentamentos,
centros de formação e escolas do MST. O atendimento aí prestado estará condicionada às realidades e às necessidades das
crianças que vai atender. Esta modalidade não pretende substituir ou contrapor o papel da família, mas ser colaboradora com
o processo educacional da criança.
“A Ciranda Infantil não pode ser vista apenas como um direito dos pais e das mães que participam do MST, mas
principalmente como um direito das crianças que também são sujeitos construtores do movimento” (MST, 2004b: 37) e
representa para o MST uma conquista no processo de «ocupar» e «fazer produzir» a educação escolar. “A educação infantil é
mais que a ciranda. Como a educação é mais que a escola. Mas é na ciranda que se exercita toda a prática pedagógica
pensada para a criança” (MST, 2004a: 47).

772
Contribuições dos movimentos sociais... ou para não concluir
No contexto da realidade educacional brasileira, que continua a representar um enorme desafio a ser defrontado de
forma responsável, a Educação Infantil não se permite estar ignorada. Uma grande movimentação social, sobretudo a luta por
mais e melhores creches – bandeira fortemente empunhada pelos movimentos sociais, foi permitindo que a consolidação da
Educação Infantil como lei estivesse expressa na Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, na Lei de Directrizes e
Bases da Educação Nacional, de 1996. Constata-se, portanto, que tardiamente a educação da criança brasileira (em instituição
escolar) passa a fazer parte do sistema educacional, sendo a primeira etapa da educação básica. Por muito tempo, os
diferentes projetos para o atendimento à infância estiveram vinculados a uma proposta de educação assistencialista,
promovendo uma pedagogia da submissão, que acabava por reforçar nas camadas populares os mecanismos de reprodução
das desigualdades sociais com a conformação da situação em que se encontravam.
As experiências advindas do movimento comunitário, num contexto mais localizado, e as reflexões construídas
pelo MST, num dimensão mais ampliada, são aqui entendidas como importantes contribuições a prossecução do debate sobre
a possibilidade de uma proposta de trabalho com criança, que tenha como desígnio contribuir no processo de construção e
vivência da sua dimensão de sujeito cidadão. Neste sentido, a construção e a afirmação da autonomia do sujeito infantil
reclama uma caminhada conjunta, a par e passo, do seu desenvolvimento pleno e da sua aquisição de conhecimentos
historicamente construídos, “ou até mais amplamente falando, de uma pedagogia da infância, que terá pois, como objeto de
preocupação a própria criança: seus processos de constituição como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua
cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estéticas, expressivas e emocionais” (Rocha, 2000: 69).
As contribuições dos movimentos sociais aqui trazidas, nos permitem uma maior compreensão da Pedagogia da
Educação Infantil, cujo foco principal é a criança mesma, marcada de processos que a constituem como sujeito humano, que
se realiza em diferentes contextos sociais e culturais, que valorizam e desafiam suas capacidades intelectuais, criativas,
estéticas, expressivas e emocionais. Mais do que nunca, a Educação Infantil tem reclamado a necessidade de se tomar a
criança como ponto de partida para a organização de todo o trabalho pedagógico a ser desenvolvido com ela, aproximando,
cada vez mais, as instituições educativas aos universos infantis.
E, neste sentido, podemos muito aprender com a lição dos movimentos sociais.

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Currículos praticados, emancipação social e democracia no cotidiano da escola+

Inês Barbosa de Oliveira*

Resumo: Este trabalho apresenta alguns dos resultados de pesquisa em fase de finalização, voltada para a busca de compreensão do potencial
emancipatório inscrito nas práticas curriculares cotidianas desenvolvidas em escolas de ensino fundamental no Rio de Janeiro (Brasil). O
objetivo é desinvisibilizar (Santos, 2004) essas práticas, reconhecer-lhes a validade epistemológica e pedagógica e permitir que, em sua
pluralidade, sejam consideradas como possibilidades ainda não institucionalizadas de contribuição da escola para a superação das
monoculturas do saber científico e do etnocentrismo em busca da tessitura de uma ecologia dos saberes e dos reconhecimentos (idem). A
pesquisa buscou captar, nas práticas pesquisadas, elementos de minimização das desigualdades socialmente produzidas entre os diferentes
saberes e culturas que, por promoverem aprendizagens diferenciadas daquelas previstas pelo modelo de escola capitalista burguesa,
contribuem para a formação de subjetividades mais democráticas. A escolha das escolas e experiências deu-se em função do potencial de
contribuição que apresentavam, em virtude da proposta pedagógica comprometida com a busca da emancipação social, conforme os
preceitos das pesquisas nos/dos/com os cotidianos (Oliveira e Alves, 2001; Oliveira, 2007; Pais, 2003; Garcia, 2003). O objetivo foi o de
produzir conhecimento política e epistemologicamente significativo a partir de experiências consideradas passíveis de contribuição à
emancipação social, organizando-as e discutindo suas possibilidades de multiplicação, na perspectiva da Sociologia das Emergências
(Santos, op. cit.).

Este texto é fruto do trabalho inicial de um projeto de pesquisa de mesmo título que desenvolvo desde 2006 e se
inscreve no trabalho do grupo de pesquisa que coordeno na UERJ1. Desde 1999, venho trabalhando em projetos de
investigação voltados para o cotidiano escolar, as práticas que os diferentes sujeitos em interação neles desenvolvem e o
sentido emancipatório que elas possuem ou não em diferentes circunstâncias. Ao longo desses projetos, venho percebendo e
buscando compreender muito daquilo que se passa nas escolas e que é invisível aos métodos quantitativos tradicionais de
pesquisa e à busca de modelos e explicações das práticas por meio de generalizações dos fazeressaberes2 plurais, móveis e
diferenciados que habitam as escolas. Nesse sentido, em cada um dos projetos agora concluídos, atuamos em diversas frentes.
No atual projeto, centrado sobre as possibilidades de entendimento de dimensões até aqui invisíveis das realidades escolares e
do potencial emancipatório que algumas práticas possuem, buscamos o desvendamento de possibilidades inscritas na
realidade e ainda não realizadas de contribuição da escola à democratização da sociedade.
Para isso, a pesquisa atual vem-se dedicando ao aprofundamento da reflexão teórica já efetivada anteriormente,
voltada para a busca de ampliação do campo epistemológico do cotidiano. Tenho também, estado voltada para e imersa na
busca do desenvolvimento metodológico da pesquisa nos/dos/com os cotidianos na medida em que os objetivos de todos os
projetos não foram o de estabelecer um saber sobre o cotidiano e dele desvinculado, mas o de constituir um saber derivado do
mergulho (Alves, 2001) nos cotidianos pesquisados. Busquei, sempre, ampliar a compreensão de suas dinâmicas, tecidas
pelos modos de ação, interação e reflexão dos sujeitos neles envolvidos. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que
pesquisávamos, fomos desenvolvendo os modos e procedimentos apropriados para fazê-lo, tanto por meio de estudos e
reflexões de caráter teórico-metodológico quanto através da busca cotidiana de aperfeiçoamento daquilo que fazíamos nas
escolas e com os professores envolvidos no contexto mesmo da prática das pesquisas3. O relato que aqui apresento é parte do
trabalho em busca da obtenção de alguns resultados de caráter mais amplo a respeito do potencial emancipatório inscrito nas
práticas e nos modos possíveis de sua efetivação concreta. Ainda com relação à questão metodológica, um dos aspectos mais
relevantes de sua formulação nas pesquisas recentes deu-se nos estudos e usos que desenvolvemos com imagens. As
possibilidades de uso de imagens na pesquisa e nas formas de sua apresentação e divulgação públicas tornaram-se muito
importantes ao longo do processo. Assim, neste texto, evidencio esse potencial das imagens enquanto fonte privilegiada de
informações sobre as realidades cotidianas das escolas e dos seus sujeitos usando alguns trabalhos de alunos, que constituem

+ Este texto aqui apresentado é uma versão ampliada e atualizada de texto publicado no livro Ferraço, C. E., Oliveira, I. B., Perez, C. L. V. Aprendizagens
cotidianas com a pesquisa. Petrópolis/RJ: DPetalii, 2008.
* Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pela
Université des Sciences Humaines de Strasbourg com pós-doutorado realizado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, inesbo@terra.com.br.
1
O Grupo se chama “Redes de conhecimentos e práticas emancipatórias no cotidiano escolar” e conta com estudantes da graduação ao doutorado, colegas
docentes e alguns participantes sem vínculo institucional, voluntários. Ver sítio www.curriculospraticados.com.br .
2
Seguindo alguns colegas pesquisadores (Cf. Alves, 2002; Sgarbi, 2005), que já o vêm fazendo há algum tempo, grafamos fazeressaberes em uma única palavra
para significar a compreensão da indissociabilidade dos dois termos no sentido em que os empregamos aqui.
3
Ver esse desenvolvimento e alguns debates sobre ele em Oliveira e Sgarbi, 2007; Alves, 2004 e Oliveira 2007.

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o corpus da pesquisa como elemento de compreensão das práticas curriculares e de seu potencial emancipatório. Com isso,
evidenciamos sua importância, considerando não apenas aquilo que nelas podemos ler, mas o potencial emancipatório
daquilo que elas nos dizem de diferente do esperado e que, por isso, permite o seu uso como imagens desestabilizadoras
capazes de contribuir para o Projeto Educativo Emancipatório (Santos, 1996).
Foi com base nesse material imagético – trabalhos de alunos – coletado em uma das pesquisas já concluídas que
desenvolvi4 uma primeira leitura seguindo os objetivos do projeto de pesquisa, ou seja, usando a Sociologia das Ausências, de
Boaventura de Sousa Santos (2004), para pensar concretamente o potencial emancipatório inscrito em algumas práticas
curriculares cotidianas, e a Sociologia das Emergências para pensar as possibilidades de difusão ampliada dessas práticas
como inspiração para o desenvolvimento de outras. Isso porque entendo o real como conjunto de singularidades e
especificidades, de diferentes formas de atuação docente, mas constituindo potencial para a emancipação social, não apenas
isoladamente, mas como um conjunto que respeita uma lógica, diferente das estruturas nas quais se inscrevem, mas que pode,
talvez, ser captada e formulada como uma lógica das práticas (Certeau, 1994). Considero que, mesmo sendo específicas e
singulares, por se desenvolverem em contextos e circunstâncias e por sujeitos diferentes, as práticas pedagógicas visando à
emancipação social podem constituir conhecimento sobre a contribuição possível da educação formal à democratização da
sociedade. Possuem aspectos e formas de desenvolvimento comuns que, uma vez devidamente percebidos e compreendidos,
podem levar ao reconhecimento de elementos concretos que favorecem a democratização da escola e da sociedade e,
portanto, os processos reais de emancipação social.
Pratico, aqui, a Sociologia das Emergências, aquela que pretende perceber na realidade aquilo que ela pode ser, mas
Ainda-não-é, conceito que Santos (op. cit.) toma de empréstimo a Ernst Bloch. Acredito que, assim, estamos contribuindo
para o reconhecimento da relevância dessas práticas para o projeto educativo emancipatório e, portanto, de sua possível
contribuição para a tessitura da democracia social (Oliveira, 1999, 2002, 2005).
É importante deixar claro que não abdico daquilo que já aprendemos com a pesquisa nos/dos/com os cotidianos a
respeito da impossibilidade de enquadramento do real em grades fixas e permanentes sob pena de perda de sua complexidade
e riqueza. A idéia do projeto, cujos primeiros resultados estão neste texto, é formular enredamentos de leitura5 possíveis dos
nossos "dados" a partir das premissas e objetivos da Sociologia das Ausências. Vou em busca do antes invisível e
invisibilizado. Sem a pretensão de conseguir efetivar um enredamento organizado de tudo aquilo que observamos e
registramos, o objetivo é criar a possibilidade metodológica de visibilização do diferente.
A partir das premissas ginzburguianas (1989) a respeito do paradigma indiciário, é possível afirmar que os
primeiros resultados dessa pesquisa evidenciam características e possibilidades emancipatórias reconhecíveis nas práticas
referidas – tanto pelo seu caráter mais ou menos transgressor (Certeau, op. cit.) em relação à norma estabelecida, quanto pelo
seu caráter de ruptura com as monoculturas que dominam a sociedade capitalista ocidental, estabelecido a partir da
Sociologia das Ausências e, ainda, pela desestabilização que provocam no já sabido e no inaceitável para a busca da
emancipação social, seguindo o ideário do Projeto Educativo Emancipatório (Santos, 1996).

Fundamentos teórico-epistemológico-metodológicos
A fundamentação teórico-epistemológica do Projeto na Sociologia das Ausências e na Sociologia das Emergências
(Santos, 2004) deriva de uma longa e aprofundada reflexão que venho desenvolvendo a respeito do pensamento do professor
Boaventura de Sousa Santos6. Assim, muito dessa fundamentação já se encontra em textos anteriores, embora em versões
menos atualizadas (Oliveira, 2003; 2005 e 2006). Mais do que isso, a própria reflexão epistemológica que realizo e que aqui
está presente relaciona-se especificamente à apropriação das sociologias das ausências e das emergências, não apenas como
referencial teórico-epistemológico, mas também como possibilidade metodológica. Isto se dá porque, no desenvolvimento
conceitual do que são essas sociologias, Boaventura7 as apresenta como procedimentos para a reflexão e para a ação sobre o
mundo. Assim, ao reconhecer a validade política e epistemológica dessas sociologias, assumo os procedimentos
epistemológicos que elas preconizam também como princípios metodológicos da reflexão concreta e, portanto, como parte da
metodologia da pesquisa. Mais do que isso, ao entrar em contato com a Sociologia das Ausências, reconheço-me
imediatamente como praticante dela na busca que venho fazendo, em diferentes pesquisas, das práticas emancipatórias
efetivadas pelas professoras8.
Na formulação da Sociologia das Ausências e da Sociologia das Emergências, Boaventura afirma:

4
A referida leitura foi desenvolvida por mim e pelas bolsistas de iniciação científica que integram o projeto, com a ajuda de outros membros do grupo. Por isso,
o uso do plural aqui e nos próximos parágrafos.
5
A expressão, criada para esta pesquisa, foi esclarecida na apresentação dos procedimentos de pesquisa do projeto. Sua criação se inspira na noção de tessitura do
conhecimento em rede e sua provisoriedade e dinamismo assumidos resultam da convicção de que, se todo conhecimento é assim, os estudos dele também
devem sê-lo.
6
Em 2002, passei o ano em um estágio de pós-doutorado com o professor Boaventura. A pesquisa realizada no período resultou no livro Currículos praticados:
entre a regulação e a emancipação, publicado em 2003 pela DP&A Editora (RJ). Em 2006, publiquei, pela Autêntica (BH) o livro intitulado Boaventura e a
Educação.
7
Pela beleza e inequivocidade do primeiro nome do autor, ele assim será referido neste texto a partir daqui.
8
Em texto recente (Oliveira, 2007) desenvolvi a idéia de que uma das especificidades das pesquisas nos/dos/com os cotidianos é a indissociabilidade entre a
reflexão epistemológica e a intencionalidade política. Em outro anterior (Oliveira,, 2005), referi-me, sem desenvolver o tema, a essa tríplice indissociabilidade,
entre o político, o epistemológico e o metodológico. Aqui apenas as confirmo.

775
Em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica
ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. (...) Em
terceiro lugar, (...) para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais
do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade (Santos, 2004, p. 778).
Este novo modelo seria a razão cosmopolita, fundamentada em três procedimentos sociológicos: a Sociologia das
Ausências, a Sociologia das Emergências e trabalho de tradução. O estudo e o uso desses procedimentos sociológicos
contribuem para a reflexão educacional e para o desenvolvimento de alternativas pedagógicas emancipatórias e é por isso
assumido como referencial teórico e metodológico privilegiado aqui. Para orientar a discussão, vejamos o que diz o autor.
A compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo, que a forma como ela cria e
legitima o poder social tem muito a ver com concepções do tempo e da temporalidade e ainda que a característica mais
fundamental da concepção ocidental de racionalidade é o facto de, por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o
futuro (id., p. 779).
Subvertendo essa lógica, e em vínculo direto com os objetivos das pesquisas nos/dos com os cotidianos das escolas,
a questão se torna expandir o presente no sentido de criar as condições para o conhecimento e valorização da inesgotável
experiência social que está em curso no mundo de hoje (idem) nas nossas escolas. A razão cosmopolita volta-se contra o
desperdício da experiência promovido pela razão indolente e busca tornar visíveis práticas reais invisibilizadas pelos
procedimentos da racionalidade moderna. Esta Sociologia das Ausências é, portanto, um método sociológico que permite
descobrir existências invisibilizadas pelo cientificismo moderno, que permitiu considerar inexistente ou negligenciável tudo
aquilo que não se encaixava no seu modelo de racionalidade. O alerta que faz Boaventura é o de que, uma vez conhecida a
imensidão de experiências em curso na contemporaneidade, a possibilidade de compreendê-las em sua diversidade requer a
constituição de uma inteligibilidade mútua entre as experiências de modo a não lhes destruir a identidade nem torná-las
irreconciliáveis. Ou seja, será preciso buscar não só as experiências, mas a constituição de modos de leitura destas que
permita perceber-lhes os aspectos convergentes e enunciáveis em sua semelhança no seio das diferenças e especificidades.
Na outra ponta da reflexão, encontra-se a necessidade de contração do futuro, no sentido da redução das
expectativas radiosas, consideradas possíveis mesmo quando incompatíveis com as experiências do presente, a partir da idéia
da planificação da história e da concepção linear do tempo. A esse procedimento, o autor chama Sociologia das Emergências.
O idealismo fundamentado na idéia ingênua (para dizer o mínimo) de que boas teorias da transformação social podem levar-
nos ao desenvolvimento de práticas transformadoras, por meio da aplicação das primeiras sobre as segundas, precisa dar
lugar à idéia da responsabilidade do presente com a construção dos futuros possíveis. Ou seja, só aquilo que potencialmente
está inscrito na realidade contemporânea poderá dar origem ao que será o futuro. Daí a necessidade de ampliação do presente,
tanto no reconhecimento de suas potencialidades já existentes quanto na tessitura de novas.
No estudo da chamada razão indolente, Boaventura aponta suas quatro características fundadoras, a saber: ser uma
razão impotente, na medida em que não se exerce porque nada pode fazer contra necessidades que entende como exteriores a
ela; uma razão arrogante, que não se exerce porque, sendo inteiramente livre, não precisa exercer-se para mostrar sua
liberdade; uma razão metonímica, ou seja, única forma de racionalidade possível, entendendo a sua parcialidade como
totalidade9 e, finalmente, ser uma razão proléptica, que acha que já sabe o futuro e, por isso, abdica de pensá-lo, e o entende
como superação linear e automática do presente, contínuo e previsível. A resistência dessa racionalidade à mudança e sua
capacidade de transformar interesses hegemônicos em conhecimentos verdadeiros (id., p. 781) explicam, para Boaventura, a
não reestruturação do conhecimento. Assim, para tornar essa reestruturação possível, é preciso desafiar a razão indolente, o
que o autor faz através da crítica às formas dessa razão que considera fundacionais; a razão metonímica e a razão proléptica.
A primazia do todo sobre as partes, subentendida na própria idéia de totalidade pela qual Boaventura diz que a
razão metonímica é obcecada, leva à convicção de que há apenas uma lógica que governa os comportamentos, tanto do todo
como o de cada uma de suas partes, e à homogeneização todo/parte. Assim, a existência de cada parte é entendida apenas e
sempre em referência ao todo que a inclui e qualquer variação é entendida como particularidade. A razão metonímica vê, na
dicotomia, a forma mais acabada de totalidade porque combina a simetria com a hierarquia. Contrariamente ao que pensa a
razão metonímica, Boaventura vai entender que o todo é menos e não mais que o conjunto das partes na medida em que ele é
uma delas transformada em referência. Por isso, todas as dicotomias sufragadas pela razão metonímica contêm uma
hierarquia. Sem ser novidade, a importância de assinalar este fato está nas suas duas principais conseqüências.
Em primeiro lugar, como não existe nada fora da totalidade que seja ou mereça ser inteligível, a razão metonímica
afirma-se uma razão exaustiva, exclusiva e completa. (...) A razão metonímica não é capaz de aceitar que a compreensão do
mundo é muito mais do que a compreensão ocidental do mundo. Em segundo lugar, para a razão metonímica nenhuma das
partes pode ser pensada fora da relação com a totalidade. (...) Assim, não é admissível que qualquer das partes tenha vida
própria para além da que lhe é conferida pela relação dicotômica e muito menos que possa, além de parte, ser outra totalidade
(id., p. 782-783).

9
Presidindo o debate sobre as duas culturas nos anos 60, a razão metonímica se acreditava, na época, ainda uma totalidade, ainda que menos monolítica. Foi
apenas quando do aprofundamento do debate com a epistemologia feminista, os estudos culturais e os estudos sociais da ciência que a pulverização dessa suposta
totalidade tornou-se possível. Por outro lado, mesmo quando a ciência pôde se considerar multicultural, manteve fora do debate, tanto quanto possível, os saberes
não-científicos, não-filosóficos e, sobretudo, os não-ocidentais.

776
Ou seja, mais do que uma compreensão limitada do mundo, a razão metonímica tem uma compreensão limitada de
si mesma10, o que torna paradoxal sua preponderância sobre outras formas de racionalidade que surge da sua impossibilidade
de dialogar com outras formas de conhecer e compreender o mundo, devido aos limites do seu próprio pensamento sobre o
mundo e sobre si mesma. À falta de argumentos, impôs-se coercitivamente através do não-reconhecimento e do
silenciamento delas invisibilizando-as. Outro paradoxo vem-se juntar a esse no desenvolvimento da idéia de Boaventura. É o
fato de a vertigem das mudanças se transmutarem freqüentemente numa sensação de estagnação. Esse paradoxo estaria
associado à redução do tempo presente a um instante fugaz entre o que já não é e o que ainda não é. Com isso, o que é
considerado contemporâneo é uma parte extremamente reduzida do simultâneo (id., p. 785). Ou seja, muito do que existe
como experiência, na contemporaneidade deixa de ser considerado existente e é tido como passado.
Recuperar a experiência desperdiçada, ampliando o mundo pela ampliação do presente requer, portanto, a crítica da
razão metonímica porque só através de um novo espaço-tempo, que pressupõe uma outra razão, será possível identificar e
valorizar a riqueza inesgotável do mundo. Ou seja, identificar e valorizar outros modos de pensar e de estar no mundo – para
além daquilo que a razão metonímica, com suas dicotomias e sua necessidade de ordem, percebe e aceita como existente –
são atitudes fundamentais e elas vêm sendo assumidas como base metodológica das nossas pesquisas. Assim, para se
compreender o que de fato acontece nos processos educacionais e que escapa aos modelos pedagógicos e propostas
curriculares oficiais, é preciso considerar, como formas de saber/fazer/pensar/sentir/estar no mundo válidas, tudo aquilo que a
escola tem sido levada a negligenciar em nome da primazia do saber científico e da cultura ocidental branca e burguesa sobre
os/as demais. É fundamental, para podermos entender tudo o que está nas escolas e na vida dos alunos e que vai além dessa
racionalidade, que não compreendamos como desvio ou erro os acontecimentos não-enquadráveis naquilo que a razão
metonímica permite enquadrar, recuperando a riqueza da vida real para além deles. Para tornar isso mais viável precisamos,
como já o vimos fazendo, desinvisibilizar práticas e acontecimentos através dos procedimentos metodológicos da pesquisa
nos/dos/com os cotidianos associados à prática da Sociologia das Ausências e, em seguida, identificando neles o potencial
emancipatório, exercitar a Sociologia das Emergências de modo a multiplicar as experiências emancipatórias.
Transformar ausências em presenças, reconhecendo nas práticas curriculares cotidianas inovações emancipatórias
de estatuto epistemológico a ser valorizado e investindo na tessitura de uma possível compreensão da lógica que as rege, tem
sido a tônica de nossas pesquisas nos/dos/com os cotidianos. Este texto narra os primeiros resultados de busca, na pesquisa
atualmente em desenvolvimento, de se chegar à elaboração de uma compreensão mais sistematizada dessas tantas
existências, objetivando compreender-lhes as possibilidades de multiplicação para nelas investir, ampliando a diversidade
social e epistemológica reconhecida no mundo presente, com vistas à emancipação social e à democracia ampliadas como
futuros possíveis. Nesse sentido, as diferentes lógicas de produção da não-existência identificadas por Boaventura e as
diferentes "ecologias" que derivam de sua superação constituem um possível ponto de partida para a efetivação dos
enredamentos estruturantes dos nossos dados brutos da pesquisa.
Boaventura distingue cinco lógicas – ou modos de produção da não-existência – unidas pelo fato de serem todas
elas manifestações de uma monocultura racional e entendendo que há produção de não-existência sempre que uma dada
entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível (id., p. 787). As não-
existências produzidas são, portanto, formas sociais de inexistência, partes desqualificadas de totalidades homogêneas, que
são também totalidades excludentes. Sua superação exige que se ponha em questão cada uma dessas lógicas. Ou seja, para
cada um dos modos de produção da não-existência, a Sociologia das Ausências procura revelar a diversidade e multiplicidade
das práticas sociais e credibilizar esse conjunto. Essa idéia de multiplicidade e de relacionamento não-destrutivo entre os
agentes que a compõem é dada pelo conceito de ecologia que constitui, para Boaventura, a superação da lógica monocultural
da razão metonímica e permite a constituição desse relacionamento horizontalizado entre as diferentes possibilidades de cada
campo cultural e de presentificação dos ausentes.
Comum a todas estas ecologias é a idéia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma
versão ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, isto
é, as realidades que são activamente produzidas como não existentes (id., p. 793).
Venho comparando a Sociologia das Ausências ao trabalho arqueológico na medida em que os procedimentos que
lhes são característicos se constituem por meio de um processo de descoberta e tentativa de compreensão e incorporação de
algo já existente, mas cuja existência era anteriormente ignorada. Do mesmo modo que o arqueólogo, a cada descoberta,
repensa e redesenha o anteriormente sabido sobre a civilização que pesquisa pela incorporação epistemológica e social da
“novidade”, o “sociólogo das ausências”, por meio de uma “arqueologia das existências invisíveis”, busca superar, pela
instauração de diferentes ecologias, cada forma de não-existência e de monocultura a ela associada. Para isso, precisa adotar
procedimentos que, sendo específicos a cada não-existência, têm em comum a visibilização daquilo que a razão metonímica
escondeu.
De alguma forma, todos esses procedimentos permitem duas associações principais com a questão educacional. A
primeira é o seu uso metodológico visando a permitir a presentificação de tudo aquilo que os processos metodológicos das
pesquisas inspiradas na razão metonímica vêm ocultando e tornando invisível e que constitui quase toda a existência
cotidiana real das escolas. Buscando legitimar modos contra-hegemônicos de produção de práticas educativas, no sentido de

10
Edgar Morin já anunciava idéia semelhante em seu Ciência com consciência (1996) quando faz referência à incapacidade da ciência moderna de se pensar.

777
credibilizar o saber-fazer que habita os espaços educativos como potencial contribuição às possibilidades de emancipação
social, tanto no sentido do processo educativo em si, quanto no sentido mais amplo de uma possível contribuição da escola à
transformação social democratizante, a adoção metodológica dos procedimentos inerentes à Sociologia das Ausências parece,
mais do que relevante, fundamental.
Em segundo lugar, os aspectos epistemológicos dessa sociologia trazem uma necessária reflexão a respeito dos
conteúdos escolares em si e da própria estrutura da escola, conforme referido acima, das hierarquias que eles seguem e
definem, das exigências de ordem que a eles se associam, bem como quanto aos valores subliminares que difundem através
de sua suposta cientificidade. A multiplicação de práticas tornadas visíveis, por meio da prática dessa “arqueologia das
existências invisíveis” em diferentes universos escolares, nos remete à Sociologia das Ausências e à crítica da razão
proléptica. Ou seja, a concepção de futuro com base na monocultura do tempo linear e sua pressuposição de que a história
tem um sentido único, o do progresso sem limites, instaura um futuro infinito, porém sempre igual, o que traz à luz a
indolência desta razão, a de supor já sabido o futuro e, por isso, abdicar de pensá-lo. A sua crítica tem, portanto, o objetivo de
contrair o futuro tornando-o mais escasso e, por isso, objeto de cuidado.
A sociologia das emergências consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto
é tudo como é nada) por um futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão
construindo no presente através de actividades de cuidado (id., p. 794).
Creio estar na idéia de que o futuro precisa ser construído e que essa construção de possibilidades plurais e
concretas se faz no presente, por meio de ações individuais e/ou coletivas, uma grande contribuição da Sociologia das
Emergências para se pensar a ação político-educativa e seu papel social. Se, ao contrário da perspectiva determinista,
assumimos que é das ações dos sujeitos sociais que depende o futuro deles mesmos e da sociedade, temos que conceber a
educação como uma ação voltada para a formação de sujeitos sociais capazes e interessados em “cuidar” para que o futuro
seja melhor do que o presente. Por outro lado, é preciso a consciência de que, ao deixar de ser um prosseguimento automático
do presente e passar a ser produto das ações sociais reais, o futuro encolhe na exata medida em que só poderá ser aquilo que
pode ser pensado como conseqüência – mesmo que não-linear – das ações que o constroem. Ou seja, reaproveitando uma
velha metáfora, aquilo que não foi plantado não será colhido. Em lugar de pensarmos um par dicotômico e estático, o
presente que é e o futuro que não é, passamos a pensar processualmente, na criação e gestão das possibilidades de vir a ser.
As possibilidades e capacidades concretas vão redeterminar tudo aquilo em que tocam, modificando e, portanto,
pondo em questão as determinações anteriores. Mas essa redeterminação não significa a introdução de nenhuma certeza
quanto ao que será aquilo que ainda não é. A incerteza da possibilidade concreta que se desenvolve repousa sobre o fato de
que as condições que a podem concretizar só são parcialmente conhecidas e, mais do que isso, só existem parcialmente. Ou
seja, a potencialidade é reconhecível, mas não o seu resultado. Assim, a contração do futuro nos coloca diante da
responsabilidade de não desperdício, aqui não mais da experiência, mas das oportunidades de mudança.
Em cada momento, há um horizonte limitado de possibilidades e por isso é importante não desperdiçar a
oportunidade única de uma transformação específica que o presente oferece: carpe diem (id., ib.).
O vínculo que Boaventura estabelece entre a ampliação do presente e a contração do futuro se torna mais claro a
partir dessa idéia da possibilidade que, estando inscrita na realidade, não automatiza nenhum movimento, embora defina a
direção possível deste. O futuro a ser construído, então, só pode sê-lo a partir do aproveitamento de possibilidades
criadas/inscritas no presente e, por isso, não pode nem deve ser entendido como infinito. Por outro lado, o futuro é, também,
indeterminado e isso porque o presente contém mais de uma possibilidade na medida em que inclui uma multiplicidade de
realidades invisibilizadas, mas existentes e, ainda, realidades potencialmente concretizáveis, mas ainda não realizadas.
Assim, a complementaridade entre esses dois procedimentos sociológicos – a Sociologia das Ausências e a
Sociologia das Emergências – se evidencia também. Quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo mais
experiências são possíveis no futuro (id., p. 799). Ou seja, enquanto a primeira se dedica ao desvendamento das experiências
já existentes, do que já é, a segunda vai se dedicar ao estudo das experiências possíveis, daquilo que ainda não é, mas que
amplia o que já é inserindo nele possibilidades e expectativas que ele comporta. Ambas permitem repensar o futuro,
relacionando a construção dele aos elementos concretos dessas muitas realidades, radicalizando expectativas assentes em
possibilidades reais, superando o idealismo das expectativas falsamente infinitas e universais que a modernidade criou. Tudo
isso a partir do inconformismo com uma carência cuja superação está no horizonte de possibilidades e não numa idealização
ilusória e enganosa de um futuro grandioso que nunca virá, através da busca de uma relação mais equilibrada entre
experiência e expectativa. O Ainda-Não, longe de ser um futuro vazio e infinito, é um futuro concreto, sempre incerto e
sempre em perigo. (...) A sociologia das emergências é a investigação das alternativas que cabem no horizonte das
possibilidades concretas (id., p. 796).
A Sociologia das Emergências pretende analisar as possibilidades de futuro inscritas em práticas, experiências ou
formas de saber, agindo tanto sobre as capacidades quanto sobre as possibilidades, identificando sinais, pistas e traços de
possibilidades futuros em tudo que existe (idem) efetivando a amplificação simbólica através do excesso de atenção a essas
pistas. É, também, uma investigação sobre as ausências, mas não sobre algo disponível e invisibilizado como na Sociologia
das Ausências, e sim ausência de uma possibilidade futura ainda por identificar e [de] uma capacidade ainda não plenamente
formada para levar a cabo (id., ib.).
A multiplicação e diversificação das experiências disponíveis se faz, na Sociologia das Ausências, pelas diferentes
ecologias – de saberes, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções. Na Sociologia das Emergências, a

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multiplicação e diversificação das experiências possíveis se farão pela amplificação simbólica das pistas e sinais de futuros
possíveis.

Praticando a Sociologia das Ausências pela leitura de imagens


A atividade cujos trabalhos apresento em primeiro lugar está aqui por representar uma clara interlocução entre a
formação cidadã e os conteúdos de uma classe de alfabetização. A preocupação da professora com o enredamento do
conteúdo formal com a formação para a vida adulta é evidente, e demonstra uma busca de ruptura com a fragmentação entre
escola e vida e de diálogo entre saberes formais e valores, aprendidos na vida cotidiana. Ao pedir aos alunos que escrevam e
desenhem sobre as diferenças nas obrigações da criança e do adulto, ao mesmo tempo em que valoriza a atividade infantil,
leva-os a perceber a necessidade de responsabilidade por meio do reconhecimento e não da imposição.

“A criança brinca e o adulto não brinca. O adulto trabalha e a criança não


faz”

“Brincando no balanço (AIRRC). Fazendo comida (ACEC)”.


No11 que se refere ao processo de letramento, na primeira imagem, a professora destaca de forma sutil somente as
palavras escritas com algum erro e as reescreve. Ao fazer isto, ela permite que o aluno perceba o que errou e a forma correta
de se escrever. Esse cuidado é fundamental na construção do processo de letramento, pois faz com que a criança se sinta
encorajada a continuar escrevendo. Na segunda imagem, onde a criança visivelmente ainda não consegue escrever de uma
maneira socialmente aceita como correta, a professora reescreve a frase corretamente sem desvalorizar a escrita da criança
representada apenas por algumas letras.
Ainda no que se refere à responsabilidade, as próximas imagens mostram que a professora procurou discutir que
significados os diferentes alunos atribuíam a ela.

“Trazer o filho pra escola”.


“Lavar o prato para

Em outra atividade, mas no mesmo sentido da discussão que estou fazendo, a professora trabalhou em sala de aula
com a questão da atribuição de valores, buscando levar as crianças a perceberem a diferença entre valores materiais e valores
morais. Nas três imagens que se seguem, há, em comum entre os três alunos, a idéia de que há coisas que "o dinheiro não
compra", como os sentimentos. Ele compra apenas objetos materiais. Na primeira imagem, o dinheiro compra o lanche,
“hambúrguer é um real”. Na segunda imagem, "o dinheiro compra" um carro, mas “não compra” o amor. Na terceira
imagem, "o dinheiro compra": vídeo game, casa e moto, mas “não compra” a árvore e nem paixão. E, na quarta imagem, "o
dinheiro compra" uma casa com piscina, porém “não compra” um casamento. Podemos perceber, aqui, a troca de saberes
entre professora e alunos, numa prática encaminhada no sentido da ecologia de saberes de que fala Boaventura.

“Hambúrguer é um real”.

“Dinheiro dá pra comprar carro. Dinheiro não compra amor”.


11
A partir desse ponto, sirvo-me do trabalho realizado na pesquisa pelas alunas bolsistas Suzana Martins Esteves e Alessandra Noronha Ribeiro Rodrigues, que
se debruçaram sobre o material e produziram o texto que serve de base a esta parte, apresentando-o no II Seminário interno do Laboratório Educação e Imagem
da UERJ, realizado em novembro de 2006. Agradeço às bolsistas.
“Dinheiro compra: vídeo game, casa moto. Dinheiro não compra: árvore,

“Eu compro casa com piscina. Eu não compro casamento”.

No mesmo sentido, o do enredamento entre os saberes formais dos conteúdos escolares e os saberes ético-políticos
da formação cidadã cotidiana, a atividade seguinte é uma discussão sobre a felicidade. Para um dos alunos, ser feliz é "morar
longe da favela”. Percebe-se a preocupação da criança com o sofrimento causado a moradores das "favelas" e seus arredores
pelos constantes tiroteios, incursões repentinas da polícia, e discriminação social, por exemplo. A vida cotidiana muito
ensinou a esse menino! Já na segunda imagem, "ser feliz" é algo muito mais simples: é apenas brincar, como o aluno retrata
com sua afirmação sobre o menino que "está soltando pipa, alegre”.
Em uma das figuras que se seguem, sem a atitude da professora de reescrever as frases dos alunos, seria grande a
dificuldade de percebermos a mensagem transmitida. Parece que a primeira frase que aparece no trabalho (Eu só quero é ser
feliz.) foi escrita pela professora para que os alunos pudessem copiar, ajudando-os a desenvolver o seu processo de
letramento.
É importante perceber que, nas práticas curriculares voltadas para o trabalho de letramento, a professora busca tecer
com as crianças uma relação de encorajamento e respeito.
Assim, temos aqui uma amostra do que se pode aprender a partir da leitura de imagens de práticas pedagógicas
levadas a termo em uma escola de ensino fundamental do Rio de Janeiro a respeito do potencial emancipatório que portam e
que pode ser ampliado por meio da divulgação dessas práticas.
Finalmente, cabe ressaltar que a desinvisibilização desse tipo de prática é fundamental para que os processos reais
de ensino-aprendizagem emerjam e superem os discursos desqualificantes da escola e de seus praticantes, bem como a idéia
de que a fragmentação preconizada é real ou que os diferentes saberes em circulação nas escolas podem ser dissociados e
hierarquizados. E que muitas outras práticas e procedimentos existem, para além daqueles que a razão indolente tem podido
perceber e estudar. Por outro lado, essa mesma desinvisibilização permite aprender sobre os cotidianos das escolas e aquilo
que neles se passa e se faz, abrindo portas para que percebamos o que pode ser inovado a partir do que existe e do potencial
nisso inscrito. Ou seja, que porvir é possível pensar,de modo responsável, para nossas escolas e seus praticantes.

Referências bibliográficas
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Escolar. Revista Educação e Sociedade n. 98. Campinas: Autores Associados, 2007.

Projectos educativos e promoção de igualdade – realidade ou retórica?

Teresa Sarmento
tsarmento@iec.uminho.pt
IEC – Universidade do Minho

Resumo: Portugal é, actualmente, um país multicultural na medida em que habitam o país povos de todos os continentes e de culturas muito
diversas. A situação destas populações é muito variada e desenvolvemos já estudos que mostram como as desigualdades entre os mesmos e
entre estes e a população maioritária é muito grande, especialmente no caso das mulheres.
A vivência multicultural nas comunidades é algo que preocupa e, ao mesmo tempo, entusiasma uma percentagem elevada da população
portuguesa. A escola tem sido, em muitos casos, o centro a partir do qual se criam e fortalecem laços interculturais, desenvolvendo projectos
educativos que pretendem dar vida e voz à pluralidade de culturas e de povos.
De forma a podermos aceder à forma como as escolas se organizam no sentido da inclusão das diferentes culturas, enveredamos por uma
análise empírica junto de escolas frequentadas por crianças e jovens de, pelo menos, cinco culturas diferentes. Os instrumentos de análise são

783
os projectos educativos dessas escolas, no sentido de, numa primeira fase, conhecer os documentos de base da organização pedagógica e as
perspectivas dos líderes formais destes processos sobre estas novas realidades. Entendemos que a abertura à diversidade, a colaboração entre
os diferentes actores sociais (alunos, professores, pais, comunidade) e a participação nos momentos de definição, acompanhamento e
avaliação dos projectos, são os critérios centrais para a promoção da inclusão e, através dela, do combate às desigualdades sociais. Numa
leitura sumária de resultados, encontramos um grande desfasamento entre os princípios e as práticas, sendo que a promoção da igualdade se
encontra ainda muito aquém da sua efectivação.

Portugal é, actualmente, um país multicultural na medida em que habitam o país povos de todos os continentes e de
culturas muito diversas. A situação destas populações é muito variada e desenvolvemos já estudos que mostram como as
desigualdades entre os mesmos e entre estes e a população maioritária é muito grande, especialmente no caso das mulheres.
Este texto assume a definição de grupo étnico como comunidade com uma cultura, tradições, valores e estilos de
vida próprios. Embora, muitas vezes, os termos étnico e imigrante se sobreponham, eles detêm significados distintos. Por
exemplo, actualmente, em Portugal, os africanos constituem o grupo de imigrantes maioritário; no entanto, a segunda e
terceira gerações possuem já um estatuto diferente, na medida em que as famílias estão bem sedimentadas em Portugal, não
sendo considerados já imigrantes mas pertencentes a minorias étnicas. Os ciganos são também um contingente específico no
seio da população portuguesa, com um habitus étnico1 muito demarcado, apesar de a sua sedentarização em Portugal
remontar já ao século XV/XVI.
A centralidade que neste texto se dá às mulheres imigrantes e/ou de etnias culturais, decorre do facto de sabermos,
com base num estudo prévio2 e pela análise europeia sobre as questões de (des)igualdade de oportunidades, que, dentro de
cada grupo, a situação das mulheres continua em desvantagem quando comparada com a dos homens dos mesmos grupos.
Poder-se-á assim dizer que as mulheres das minorias étnicas se encontram numa dupla situação de desigualdade: primeiro por
serem mulheres, depois por pertencerem a minorias.

Um quadro sobre a imigração portuguesa


Portugal foi durante muitos anos, séculos até, essencialmente um país de emigração; só nas últimas décadas,
particularmente a partir de 1990, se tornou também um país de imigração. Dados da Presidência do Conselho de Ministros3
referem que, actualmente, os imigrantes constituem 9 % da população activa e 4.5 % da população nacional. Em 2004,
segundo referências apresentadas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a distribuição da população com autorização de
residência em Portugal, segundo a origem continental, era a seguinte:

Imigrantes com autorização de residência em Portugal, 2004


Pessoas de: Homem Mulher Total
Europa 44.016 39.843 83.859

África 70.259 52.834 123.093

América 22.654 22.507 45.161

Ásia 6.996 5.414 12.410

Oceania 301 252 553

Outros
Apátridas 152 121 273
Desconhecido 5 7 12

Total 144.383 120.978 265.361


Fonte: SEF (Serviço de estrangeiros e fronteiras)

Como se verifica, na globalidade há mais homens do que mulheres imigrantes, embora, como mostraremos a
seguir, haja alguns casos em que a percentagem de mulheres imigrantes seja superior há dos homens. O continente com
maior representatividade nesta distribuição populacional é a África, o que terá a ver, naturalmente, com a nossa ancestral
ligação a esse continente e o facto de as populações virem de países africanos de língua oficial portuguesa. O número de
homens e de mulheres americanas em Portugal é bastante semelhante e uma análise fina dos dados, permite-nos saber que

1
Mª José Casanova (2007) define habitus étnico como a reprodução, no seio de uma comunidade, de valores e práticas específicos, construídos por essa
comunidade.
2
Sarmento, T. (2008). “Ethnic minority and Roma women in Portugal”, in Gender Equality, Social Inclusion, Health and Long Term Care, Brussels: UE
3
Resolução do Conselho de Ministros n.º 63-A/2007, de 3 de Maio de 2007 2964-(2) – Plano para a Integração dos Imigrantes

784
vivem cá imigrantes americanos de três países (Brasil, Canadá e Estados Unidos da América), sendo a população brasileira a
que apresenta um índice mais elevado (total: 45.161; homens - 13.815; mulheres - 15.141).
Há três razões principais que estão na base da imigração: as de ordem económica, por questões de dificuldade de
emprego nos países de origem e ilusão de melhores condições no país acolhedor; as de ordem familiar, para
acompanhamento, numa primeira fase ao marido e, posteriormente, para reagrupamento da família com a vinda também dos
filhos; as de ordem académica, para prosseguimento de estudos.
Nos primeiros tempos, a imigração era quase exclusivamente masculina, no entanto, actualmente, verifica-se uma
crescente imigração feminina autónoma; ou seja, há uma taxa elevada de mulheres imigrantes em Portugal, sem qualquer
acompanhamento familiar. Dados de 2004 mostram que nesse ano existiam mais mulheres do que homens imigrantes com
autorização de residência de países como a Ucrânia, São Tomé e Príncipe, Rússia e Brasil.
As mulheres de minorias étnicas estão especialmente sujeitas a situações de discriminação, dada a conotação
negativa atribuída à sua situação de imigração. Assim, em Portugal, as mulheres brasileiras estão muito conotadas com a
prostituição, o que faz com que estejam sujeitas a ouvir comentários discriminatórios e ofensivos, e o que impede muitas de
arranjar empregos quer em casas privadas como nalguns estabelecimentos comerciais. Um estudo desenvolvido por Catarino
e OSO (2000), salienta que em Lisboa, por exemplo, não há facilidade de aceitação de mulheres africanas para o serviço
doméstico, uma vez que se conhecem muitas situações de instabilidade nos bairros sociais que habitam nas zonas periféricas
da cidade, o que gera desconfiança nas possíveis entidades empregadoras. Em relação às mulheres vindas de leste
encontramos situações diversas: muitas romenas e ucranianas apresentam-se vestidas de forma ‘algo descuidada’ para os
olhares do grupo maioritário, com muitas crianças a rodeá-las, passando o dia na rua como pedintes, o que provoca alguma
rejeição da população maioritária. Há, no entanto, outro grupo dentro da mesma minoria, que consegue outro tipo de
aceitação, dado demonstrarem um conjunto de comportamentos facilitadores da integração social, tais como abdicarem das
condições que o seu estatuto académico em princípio lhes conferiria para aceitarem trabalho menos valorizado (ex:
empregadas domésticas) mas que lhes garanta a sobrevivência económica.
Numa caracterização mais evidente das situações de discriminação, sabemos que as mulheres imigrantes, em
termos gerais, têm horários de trabalho mais longos do que as mulheres nacionais, uma vez que as primeiras têm menor
acesso a trabalhos melhor pagos, procurando acumular o maior número de horas de forma a poderem rentabilizar as
possibilidades económicas. A nível das empresas, segundo estudo realizado por Albuquerque (2005), escolhem-se mulheres
portuguesas como encarregadas e entregam-se as tarefas mais pesadas e mais perigosas às mulheres imigrantes,
independentemente da sua qualificação. Isto apesar de se saber, segundo um estudo de Carvalho (2004), que o trabalho das
mulheres imigrantes nas empresas é mais eficaz e produtivo do que o das mulheres portuguesas, o que se justifica quer pela
motivação económica que está na base da imigração, quer pelo facto de uma grande parte das mulheres imigrantes não ter cá
os filhos, o que as liberta das responsabilidades maternais quotidianas.
As mulheres vindas de Leste sofrem um processo de desqualificação profissional quando vêm para Portugal, já que
realizam trabalhos desadequados às suas habilitações (Gonçalves e Figueiredo, 2005). Nas mulheres de leste encontramos
uma elevada percentagem com o ensino superior e o ensino secundário concluídos (respectivamente 37% e 30,5%). O
reconhecimento das suas habilitações pelo Estado Português obedece a um prolongado e burocrático processo de
equivalências, o que faz com que tenham grande dificuldade em arranjar um emprego compatível com as suas habilitações
académicas.
Por seu lado, uma percentagem de mulheres brasileiras sofre também um processo de desqualificação profissional
face às habilitações que possuem (uma grande percentagem de mulheres brasileiras tem formação académica de nível
secundário). Cerca de 31% e 19% da comunidade brasileira feminina residente em Portugal, em 2001, tinha concluído,
respectivamente, o ensino secundário e o ensino superior. Com níveis de escolarização mais baixa, encontramos 23,8% de
mulheres brasileiras apenas com o 1º, 2º ou 3º ciclos do ensino básico completos.
Nas mulheres de origem africana há uma maior adequação entre tipo de trabalho e habilitações académicas, dado
estas terem baixas habilitações. As imigrantes oriundas dos PALOP(s) têm, em média, um nível de qualificação académica
bastante baixo, com o predomínio de mulheres com o 1º, 2º ciclos do ensino básico completos (38,4%) e uma proporção
elevada de mulheres sem qualquer grau de qualificação académica concluído (19,7%). As sociedades africanas valorizam
muito o casamento e a maternidade, realçando o papel que as mulheres têm nessas instituições; a escolarização não é, assim,
entendida como prioritária pelos pais que preferem investir nas filhas sobretudo no âmbito do seu empenhamento na
estratégia de reprodução do background cultural (Oliveira, 2007).
Embora não tenhamos números concretos4, sabemos que actualmente um número elevado de mulheres pertencentes
a minorias étnicas se encontra a realizar formação a nível do ensino superior, particularmente no caso de mulheres vindas do
Brasil. A facilidade da língua a par do interesse dos estudos desenvolvidos, sobretudo no campo da educação, bem como o
incentivo dado pelas políticas educativas brasileiras, facilita a vinda deste grupo com esta finalidade. Também o grupo de
imigrantes africanas com mais de 15 anos se salienta no campo escolar, sendo aquele onde se verifica uma percentagem mais
elevada de mulheres de minorias étnicas a estudar. A justificação encontra-se no facto de esse grupo ser composto por jovens

4
A Lei de Protecção de Dados (DL nº 67/98, de 26 de Outubro) impede o acesso a informações sensíveis sobre as diferentes etnias, a fim de evitar
comportamentos discriminatórios, pelo que a análise de alguns é muitas vezes difícil ou mesmo impossível.

785
que procuram Portugal especificamente para estudar, enquanto que as outras desenvolvem habilitações académicas nos seus
países e, quando se deslocam para Portugal, é já para entrarem no mercado de trabalho.
Curiosamente, segundo um estudo de Belkis Oliveira (2007), nas minorias étnicas existem mais mulheres do que
homens com habilitações académicas elevadas e menos mulheres do que homens sem habilitações académicas.
Contraditoriamente, os homens imigrantes têm mais oportunidades de continuarem, em Portugal, na sua área profissional,
enquanto que as mulheres trabalham em áreas que não estão de acordo com as suas habilitações.
As mulheres brasileiras do escalão etário mais jovem (15 aos 24 anos), tal como as mulheres de leste nos escalões
etários congruentes com actividade laboral, apresentam uma taxa de actividade mais elevada do que as mulheres africanas e
do que a população feminina residente – 68,1% (mulheres do Brasil e do Leste) contra 53,9% (africanas) e 45,2%
(portuguesas), respectivamente. Sabendo-se como em todas as comunidades o acompanhamento das crianças é ‘entendido’
como da responsabilidade das mulheres, estes elementos são importantes para a análise posterior sobre a inclusão das
crianças nas escolas, sobretudo quando há evidência garantida pelo número elevado de associações étnicas, de que estas
populações se preocupam em preservar o seu ethos.
A relação e aceitação das comunidades locais face a essas minorias diverge em função de factores como a sua
origem geográfica, os estereótipos que estão associados a cada grupo étnico e as áreas de trabalho em que se inserem. Neste
ponto podemos encontrar duas situações distintas: 1) as mulheres imigrantes procuram áreas de trabalho onde se verifica uma
baixa oferta, onde há um índice de desemprego elevado, sendo mal aceites pela população que as entende como concorrentes
e ‘usurpadoras’ de bens precários; 2) as mulheres imigrantes inserem-se em áreas de trabalho socialmente não aceites, como,
por exemplo, a prostituição, e são rejeitadas na base dos estereótipos existentes sobre este fenómeno.
A abertura de Portugal para a inclusão dos imigrantes tem uma sustentabilidade legal efectiva, particularmente a
partir da implementação da Lei de Imigração (DL nº 23/2007, de 4 de Julho), ainda que em termos efectivos, na vivência
quotidiana, se encontrem muitos registos de discriminação e tentativas de exclusão dos imigrantes e mesmo daqueles que,
tendo adquirida a nacionalidade portuguesa, apresentem uma cor de pele ou traços culturais diversos.
A grande questão sobre a inclusão social das minorias étnicas coloca-se, então, na implementação desses direitos e
na aceitação da mesma pela população local: a passagem de uma sociedade monocultural para uma sociedade multicultural e
desta para uma sociedade intercultural não tem sido fácil nem rápida. Há, no entanto, alguns indicadores que mostram a
consciência de que essa alteração tem que se fazer e já começa a fazer-se, tais como: a realização de estudos de investigação;
a introdução de disciplinas nos planos curriculares sobre questões da multiculturalidade; a proliferação de projectos
educativos centrados nesta temática; a criação de associações mistas (com elementos pertencentes a minorias e elementos
pertencentes ao grupo maioritário); a implementação de medidas políticas que viabilizem a inclusão social das minorias.

Educação e inclusão social


A educação é entendida, quer pelos teóricos quer por uma elevada parte da população imigrante, como um dos
meios principais para promover a inclusão. Muitas comunidades de imigrantes organizam-se, em parceria com entidades
locais, no sentido do desenvolvimento de projectos promotores da aprendizagem da língua portuguesa, considerando isso
como vital para a inclusão social. Particularmente as famílias vindas de leste, onde se encontram os imigrantes com
habilitações académicas mais elevadas, preocupam-se em especial com o desempenho escolar dos seus filhos sabendo, de
antemão, como a inclusão e a mobilidade social são interdependentes do sucesso escolar.
Todas as crianças que habitam em Portugal têm direito à escolarização, e os dados mostram como as populações
imigrantes se preocupam com a inserção dos seus filhos na escola. O caso das crianças ciganas, cidadãs portuguesas de pleno
direito, é bastante específico. Os dados existentes sobre o número global de crianças ciganas nas escolas – quadro nº1 - são
anteriores ao ano de 1998 (ano em que entrou em vigor a Lei de Protecção de Dados Pessoais), e evidenciam um abandono
progressivo das mesmas à medida que se eleva o nível educativo. Assim, por exemplo, verificamos que no ano lectivo de
1998, estavam matriculadas no sistema educativo público 5930 crianças de etnia cigana, no entanto, só concluíram a
escolaridade mínima obrigatória 15 alunos.

A evolução do número de crianças de etnia cigana inscritas na escola


Ano escolar 92-93 93-94 94-95 95-96 96-97 97-98
Nº de crianças 4.280 4.499 4.963 5.096 5.466 5.930
inscritas

4º ano 620 614 860 859 831 873


6º ano 43 64 78 66 92 101
9º ano 18 4 12 10 9 15
Fonte: CEMME – Centro de Estudos de Imigrantes e Minorias Étnicas

Para lá da frequência, o sucesso educativo, traduzido como ‘passar de ano’ distancia-se muito da média nacional,
como podemos verificar no quadro seguinte:

786
Percentagem do sucesso escolar ao fim do 4ºano de escolaridade
92-93 93-94 94-95 95-96 96-97 97-98
Crianças de etnia 65,1 59,2 50,6 52,5 45,9 55,4
cigana
Média nacional 86,0 88,2 86,0 85,7 85,9 87,7
Fonte: CEMME – Centro de Estudos de Imigrantes e Minorias Étnicas

Não encontramos elementos quantitativos sobre as diferenças quanto a frequência e sucesso verificadas entre os
rapazes e as raparigas ciganas, no entanto, cruzando estes elementos com outros recolhidos em estudos qualitativos,
realizados em algumas localidades concretas, poderemos assegurar que as raparigas são as que mais cedo abandonam a
escola, tenham ou não sucesso escolar. Em termos gerais, o índice de insucesso e de abandono escolar, justifica-se pelo
confronto de uma cultura agrafa, de transmissão oral e de valorização do pensamento concreto e imediato com uma cultura
letrada, de transmissão escrita, em que se valoriza o pensamento abstracto (Casa-Nova, MªJ., 2007). Em termos específicos, o
maior abandono verificado nas raparigas, prende-se com o tipo de papéis sociais esperados das mesmas – tomar conta das
crianças, gerir a vida familiar - bem como a defesa destas face à possibilidade de namoro com rapazes fora da etnia. Outros
elementos significativos sobre a escolarização da população cigana mostram que são extremamente raros os casos de
elementos ciganos com habilitações superiores; os que existem resultam de famílias de casamentos exogâmicos; 55% de
raparigas com mais do que 16 anos abandonam a escola e no grupo etário feminino acima dos 65 anos, 89% de mulheres
nunca frequentou a escola.
Depois da apresentação desta sociedade multicultural, interessa reflectir sobre o papel da escola na promoção de
uma sociedade inclusiva, que dê vez e voz a todas as crianças e, através delas, às comunidades que integram as escolas, numa
perspectiva de cidadania. Esta concepção está intimamente “associada a uma nova concepção de sociedade civil” (Perrenoud,
2005: 22), imperativa num período em que se evidencia uma maior sensibilidade face aos direitos humanos, particularmente
no que concerne ao desenvolvimento da consciência da igual dignidade de raças, culturas, religiões e modos de vida. Ora,
esta perspectiva implica uma concepção activa – que ultrapassa a retórica para se tornar efectiva - de escola cidadã.

A escola cidadã
“… é aquela que se assume como um centro de direitos e de deveres. O que a caracteriza é a formação para a
cidadania. A Escola Cidadã. Então, é a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Ela não pode
ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é cidadã na medida em que se exercita na construção da cidadania de quem usa o
seu espaço. A Escola Cidadã é uma escola coerente com a liberdade. É coerente com o seu discurso formador, libertador. É
toda escola que, brigando para ser ela mesma, luta para que os educandos-educadores também sejam eles mesmos. E como
ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é uma escola de comunidade, de companheirismo. É uma escola de produção comum
do saber e da liberdade. É uma escola que vive a experiência tensa da democracia” (Paulo Freire, 1997)
A linha que seguimos revela uma concepção de escola cidadã entendida enquanto espaço de vida e agência de
desenvolvimento das comunidades, enquanto janela de oportunidades para a construção de uma sociedade que garanta o
espaço e dê voz a todos os seus cidadãos. Na medida em que, segundo a lei portuguesa, os imigrantes e as minorias étnicas
são reconhecidos com os mesmos direitos dos nacionais, a escola tem que garantir o respeito pelas características histórico-
culturais de todas as suas crianças, independentemente do seu local e cultura de origem. Ou seja, já não chega referirmos a
pertinência da valorização do local, dos ritmos e das conjunturas de cada comunidade geograficamente situada, uma vez que
o sistema de mobilidade das populações e, sobretudo, esta realidade recente em que Portugal se tornou com os processos de
imigração, implicam novos processos de reconstrução identitária das comunidades. Enquanto espaço emancipador e
democrático, a escola tem que dar voz a crianças e famílias de muitos cantos do mundo. As escolas são hoje encruzilhadas de
culturas sociais, étnicas e religiosas, pelo que só abrindo-se à promoção do protagonismo de todos (Cortina, 1997), se
conseguirá promover o diálogo entre culturas (Silva, 2003), a partir da negociação sobre a participação de cada um ou de
cada grupo, sobre os espaços de partilha e as diversas perspectivas a prosseguir, o que passa, também, pela realização de
acções comunitárias integradoras. Ora, isto só é possível num modelo de escola que admita, para lá dos imperativos legais, a
relevância de a acção educativa se inserir num projecto educativo de uma comunidade em que, como tal, todos (pais,
professores, crianças, outros actores sociais) têm espaço de participação.

Breve análise de projectos educativos


Um dos objectivos do trabalho que aqui apresentamos é analisar se esta realidade nova que é a sociedade
multicultural tem reflexos concretos nos projectos educativos das escolas. Ou seja, entendendo o Projecto Educativo (PE)
como o motor de promoção dos princípios educativos de uma comunidade, espera-se que o documento em que o mesmo está
registado, expresse o ideário educativo e as estratégias idealizadas para lhe darem forma. Assim, o PE será revelador de como
as questões da multiculturalidade e da igualdade de oportunidades estão a ser abordadas.

787
Com este propósito, consultamos quatro projectos educativos, escolhidos de forma aleatória entre muitos outros,
garantindo o critério de pertencerem a agrupamentos de escolas que integrem diferentes grupos étnicos e/ou culturais.
Limitamo-nos a fazer uma análise documental, deixando para uma segunda fase a entrevista a elementos-chave
como o coordenador do PE, alguns professores, alunos, pais/encarregados de educação e outros para aprofundar a análise da
implementação e desenvolvimento do mesmo. A análise baseia-se nos seguintes indicadores: reflexão de base para a
construção do PE; equipa construtora do PE; finalidades e/ou objectivos previstos; áreas ou dimensões que abordam;
estratégias e actividades; processo de avaliação utilizado. De forma congruente com o princípio do anonimato, cada um dos
Agrupamentos será designado de forma arbitrária. Na primeira parte apresentamos, de forma sucinta, cada um dos PE,
deixando para a segunda parte a análise transversal dos mesmos.
Projecto Educativo do Agrupamento Olival, 2005-2008. Este agrupamento de escolas situa-se na zona centro de
Portugal. O seu PE – cujos autores não são referenciados - aponta como principal finalidade a promoção do desenvolvimento
pessoal e social dos alunos. Na introdução que apresenta não se verifica qualquer reflexão sobre a diversidade cultural que
existe nas escolas. Pertencendo a uma zona com grande diversidade populacional, na caracterização dos alunos e dos
pais/encarregados de educação, não há qualquer indicação das origens culturais dos mesmos. Dos princípios fundamentais
indicados, destacam-se a promoção da igualdade de oportunidades e a promoção do envolvimento das famílias. O PE aponta
o seu desenvolvimento em três áreas ou domínios prioritários: Eu e os Outros; Eu e os Espaços; Eu e o Conhecimento. A
primeira área refere estratégias promotoras de diálogo e aceitação do outro, de uma forma global e não focalizada na
diversidade.
Projecto Educativo do Agrupamento das Estrelas, 2005-2008. Este agrupamento situa-se na zona centro de
Portugal, na margem Sul do Rio Tejo. A construção do PE é da responsabilidade do Presidente do Conselho Executivo e do
Conselho Pedagógico, e foi baptizado com o título Por uma escola de cidadãos. As escolas que integram o agrupamento são
frequentadas por uma percentagem elevada de crianças e adolescentes de proveniência africana (Cabo Verde, Guiné e
S.Tomé), bem como por crianças vindas do leste e ainda chinesas. O português constitui, para uma percentagem de cerca de
50%, a segunda língua, o que é entendido como a principal dificuldade para a aprendizagem dos alunos. A primeira
finalidade do PE é a promoção de uma cidadania activa e consciente, finalidade esta que depois se operacionaliza em três
grandes objectivos: aumentar o sucesso educativo; melhorar atitudes e comportamentos; aumentar e melhorar a participação
dos encarregados de educação. Na apresentação do PE é evidente o grande apelo à participação de alunos, pais e professores
em todas as dinâmicas educativas. É no objectivo que se prende com a melhoria das atitudes e comportamentos que são mais
claras as estratégias referentes à educação multicultural, concretamente: 7. revelar respeito pelas várias raças e culturas
existentes na Escola; 8. exigir respeito mútuo em todas as situações. Os temas a abordar ao longo dos três anos agrupam-se
em Ambiente, Segurança, Saúde, Justiça, Economia, Educação. Um olhar sobre os sub-temas mostra-nos que não há qualquer
referência a aspectos multiculturais, havendo o reforço da abordagem sobre a história local e a história de Portugal, deixando
de lado o estudo sobre a realidade dos alunos de outros países.
Projecto Educativo do Agrupamento da Lua, 2005-2008. A construção do PE deste agrupamento, situado nos
arredores de Lisboa, foi da responsabilidade de um grupo nomeado pela Comissão Executiva Instaladora e negociado entre
diversos intervenientes no mesmo (professores, pais, auxiliares de acção educativa), e recebeu a designação Educar para a
Autonomia, Intervenção e Responsabilidade. A população escolar é composta por 50% de nativos portugueses e por 50% de
oriundos de África, de Leste e da Índia. A sensibilidade dos pais pelos processos escolares, sobretudo dos africanos e
indianos, é muito baixa. O português constitui a segunda língua para metade dos alunos. Uma das três prioridades definidas
no PE, defende que “A escola deve ser local de formação para a cidadania onde deverão ser fomentados e vividos os valores
democráticos: respeito pelas regras estabelecidas; a solidariedade; o reconhecimento da diferença cultural, religiosa, étnica ou
outra; o exercício da liberdade como princípio fundador de toda a regra de convivência social”, o que pode estar na base da
forte sensibilização dos professores para desenvolverem projectos em articulação com a comunidade. Aliás, entre os
objectivos definidos no PE, encontramos a referência à formação integral dos alunos; a articulação com os pais e a
comunidade e a valorização da educação para a cidadania. Ainda no âmbito da promoção da educação cívica, aparece como
objectivo fomentar o respeito pelas diferenças religiosas, étnicas e culturais, operacionalizável na estratégia da promoção de
debates sobre usos e costumes de diferentes etnias, culturas e religiões, e em actividades como a realização de actividades
religiosas, étnicas e culturais, na realização de colóquios, semanas ‘étnicas’, e no desenvolvimento de trabalhos através da
cooperação de pares.
Projecto Educativo do Agrupamento do Sol, 2004-2007. Este agrupamento situa-se na área do Porto, cidade onde,
actualmente, convivem populações de diferentes origens geográficas e culturais, ainda que o documento analisado não nos dê
uma ideia muito clara da sua distribuição numérica. A construção do PE esteve a cargo de um grupo de docentes e apresenta
como áreas de intervenção prioritária a Educação para o Civismo e Cidadania, o Controlo da Indisciplina e o Combate ao
Insucesso Escolar. Como estratégias de actuação aponta o recurso, sempre que possível, aos saberes dos agentes educativos
da comunidade, a valorização do multiculturalismo, a divulgação da Declaração dos Direitos do Homem e o
Desenvolvimento nos alunos da capacidade de se colocarem no lugar do Outro.

Assumindo a limitação que é uma reflexão sobre a retórica ou realidade que existe sobre a promoção da igualdade
de oportunidades com base nos quatro PE(s) sumariados, não deixaremos, contudo, de experimentar uma análise de questões
centrais na sociedade actual. Assim, com base nos indicadores que enunciamos - reflexão de base para a construção do PE;

788
equipa construtora do PE; finalidades e/ou objectivos previstos; áreas ou dimensões que abordam; estratégias e actividades –
estes documentos revelam, na nossa interpretação, que:
Há uma diversidade na apresentação dos mesmos, quer na (não)elucidação de um ideário como nos aspectos
descritivos; enquanto uns manifestam uma coerência interna significativa, outros propõem meras linhas orientadoras em que
se baseiam e enunciam estratégias e actividades.
Em todos aparece uma reflexão introdutória sobre a educação e a sociedade actual, nuns de forma mais cuidada no
que noutros, constatando-se, em três deles, a referência reflexiva da composição multicultural da população escolar. Não há
alusão, contudo, à consciência de que essa heterogeneidade cultural traduza o interesse pelo desenvolvimento do PE num
contexto em que os diferentes grupos culturais sejam assumidos como actores sociais intervenientes na escola.
A caracterização da população escolar é apresentada de uma forma muito sumária, indicando a presença de alunos
originários de este ou daquele país, referindo, apenas, algumas questões relacionadas com a língua usada pelos mesmos, mas
sem qualquer abordagem a hábitos ou costumes culturais. Ora, como sabemos, sobretudo no grupo de alunos africanos,
muitos deles pertencem já a uma segunda ou terceira geração de imigrantes, em que os processos de socialização com o
grupo maioritário já pouco deixa restar de diferenças culturais. Por outro lado, a ausência de um levantamento das práticas
culturais distintas mais marcantes, pode facilitar a ignorância das mesmas e o desenvolvimento de mecanismos de
acomodação aos grupos de imigrantes e de dominação cultural do grupo maioritário; ao mesmo tempo, permite que se perca a
riqueza de alargamento de aprendizagem de perspectivas e práticas culturais potencialmente enriquecedoras para todos.
A composição das equipas construtoras é, em três casos, da responsabilidade de um grupo de docentes, ainda que
em dois dos PE(s) se refira a auscultação de pais e professores através de questionários. Pensando nos princípios teóricos
fundadores de Projectos Educativos, verifica-se que a participação, colaboração e negociação, entendidos até como valores,
dificilmente estão presentes nas práticas de construção deste pretenso fundador da autonomia dos agrupamentos. Na
composição estrita dos grupos responsáveis pela construção dos PE(s), fica de fora a possibilidade de se romperem as
fronteiras entre a comunidade escolar e a comunidade externa à escola, dificultando a promoção de um trabalho educativo de
base comunitária. Dizemos dificultando e não impedindo em absoluto, já que, utilizando uma expressão feliz do Prof. João
Barroso numas provas de agregação, sempre que se fala em fronteiras nos lembramos de contrabandismo e de
contrabandistas, ou seja, no caso em presença, daqueles que ultrapassam o prescrito e se aventuram a promover projectos de
efectiva cooperação, como nos revela um dos PE(s).
Na definição de finalidades e objectivos, em todos os PE(s) é evidente, em termos de formulação, a preocupação
pelas questões relacionadas com a cidadania, com o respeito pelo Outro e pela vivência saudável numa sociedade
multicultural. Em nenhum aparece qualquer referência a questões de género, o que nos parece estranho sobretudo pelo
conhecimento que temos de que nas zonas de pertença destes agrupamentos, as condições de desigualdade entre homens e
mulheres é muito grande, e os índices de violência doméstica são muito elevados. Atendendo à pouca valorização que
algumas comunidades africanas e a etnia cigana atribui à escolarização, particularmente das raparigas, esperar-se-ia que em
PE(s) que têm como bandeira a cidadania e a igualdade, esta problemática fosse enunciada como uma das prioridades.
Quanto às estratégias e actividades enunciadas, salienta-se a referência a debates, colóquios, semanas ‘étnicas’
entendidas como períodos de apresentação de práticas e hábitos culturais dos diferentes grupos, bem como, maioritariamente,
projectos com base na história local e na história de Portugal. Nestes PE(s) não há qualquer análise sobre os modelos
organizacionais em que os agrupamentos assentam, o que nos pareceria pertinente para o avanço deste breve estudo. De
qualquer forma, o conhecimento sobre o funcionamento do sistema educativo português, permite-nos antecipar um modelo
uniforme em aspectos como horários, espaços e conteúdos, entre outros, bastante conformes com as práticas seguidas nas
classes médias. Na linha da teorização feita por Pedro Silva (2003, 2009), “o retrato típico do aluno português para quem a
escola está direccionada é o aluno (e não a aluna) luso, falante do português, de zona urbana, branco, católico e de classe
média”, o que, à partida, é gerador de exclusão social para uma percentagem muito elevada da população escolar actual.
Assim sendo, os alunos pertencentes à classe média, na escola encontram-se numa situação de continuidade cultural,
enquanto que os restantes, particularmente as crianças imigrantes ou pertencentes a minorias étnicas, estão sujeitos a choques
culturais.
Em trabalho anterior5, pudemos constactar como o forte absentismo e abandono escolar das crianças ciganas tem a
ver com a desadequação do modelo escolar com as práticas de vida destas comunidades: os horários escolares não se
compatibilizam com os horários das idas para as feiras; as raparigas abandonam a escola (por vontade própria ou porque os
pais a isso as obrigam) quando entram na puberdade, com receios de se ligarem afectivamente com rapazes do grupo
maioritário o que não é aceite pelos primeiros, e também para tomarem conta dos irmãos mais novos, já que os cuidados
familiares e domésticos correspondem às expectativas familiares para as mesmas. Sabemos também que muitos dos
conteúdos abordados nalgumas disciplinas, por exemplo em História, não é do agrado das minorias africanas uma vez que
evidenciam fases em que os seus ascendentes estiveram numa relação de forte submissão aos portugueses colonizadores.
Assim, muitas vezes as culturas minoritárias têm que viver segundo modelos que não são os seus e onde se sentem
depreciadas, o que ajuda a compreender a conflitualidade que vai ocorrendo.

5
Sarmento, T. (2008). “Ethnic minority and Roma women in Portugal”, in Gender Equality, Social Inclusion, Health and Long Term Care, Brussels: UE

789
Por fim, a tendência ao fechamento dentro do próprio grupo cultural que muitos elementos das comunidades
(minoritárias ou maioritária) manifestam, acaba por ser outro factor a dificultar a passagem de uma escola multicultural a
uma escola intercultural. Voltando a Pedro Silva (2009) este lembra que “uma escola multicultural não é necessariamente
intercultural”. Quando falamos numa sociedade multicultural estamos a referir-nos a uma sociedade em que vivem
(convivem? sobrevivem?) populações de raízes culturais muito diversas, sejam imigrantes que procuram Portugal como país
de acolhimento, sejam elementos de minorias étnicas como, por exemplo, as comunidades ciganas que, sendo
maioritariamente constituídas por cidadãos portugueses de plenos direitos, mantêm práticas e valores que os distinguem do
grupo maioritário, sejam ainda outros grupos com fortes e fechadas raízes identitárias como, por exemplo, seguidores de
alguns credos religiosos. Ou seja, ainda que uma escola/sociedade tenha no seu seio crianças/alunos pertencentes a diferentes
grupos étnicos e/ou culturais, a sua forma de funcionamento pode impedir o estabelecimento de pontes entre as culturas. Uma
escola intercultural é uma escola cidadã que admite a identidade cultural de cada um, abrindo-se e, ao mesmo tempo,
respeitando a cultura do outro, efectivando o pensamento de Mahatma Gandhi (pacifista indiano6),“Não quero que a minha
casa seja cercada de muros por todos os lados, nem que as minhas janelas sejam tapadas. Quero que as culturas de todas as
terras sejam sopradas para dentro da minha casa, o mais livremente possível. Mas recuso-me a ser desapossado da minha por
qualquer outra”.

Retórica ou realidade?
A resposta a esta questão não é nem será nunca, estamos em crer, respondida de forma uniforme: se numas escolas
os projectos educativos são construídos e desenvolvidos de forma congruente com o propósito da promoção da igualdade,
noutras escolas não se consegue estabelecer essa ponte. A passagem da retórica à realidade implica grandes mudanças de
perspectiva e de alteração de protagonistas e do posicionamentos destes em relação aos protagonistas comuns.
Esta via assenta na perspectiva de Correia (1999) quando nos fala na lógica de interpelação, em que a relação com
o saber que ocorre no seio da escola é recuperado dos mais diversos saberes (formais e informais), na perspectiva da
produção de conhecimento estruturada em processos de reconstrução permanente, com base na realidade sócio-cultural local.
Estes processos decorrem, por um lado, da assumpção de que os alunos são a comunidade dentro da sala de aula (Canário,
1992) e, por outro, consequentemente, de que essa presença constante da comunidade na escola, além de exigir uma atenção
redobrada às diferentes formas de ler o mundo e de nele viver, obriga a que a instituição escolar se constitua como tempo e
espaço que promove a sua qualificação através da integração e valorização das diferenças no seu quotidiano, e do
desenvolvimento de uma multiplicidade de relações na perspectiva da transformação das redes de sociabilidade e de
solidariedade tendencialmente esbatidas pela sociedade de mercado (Correia, 1999).
Perrenoud refere-se ao currículo de vida, a desenvolver na escola actual, que parta do conhecimento da verdadeira
realidade social, como forma de “construção de meios intelectuais, de saberes e de competências que são fontes de
autonomia, de capacidade de se expressar, de negociar, de mudar o mundo” (2005: 31). Esta possibilidade de intervenção
passa pela participação efectiva das crianças, pais e professores, numa vivência autêntica da democracia e que se efectiva em
projectos educativos devidamente concertados e desenvolvidos por todos estes intervenientes. A cidadania construída no
saber, parte da aprendizagem da responsabilidade, o que obriga à construção da confiança que permite a delegação de
poderes e a prática comum de diálogo e negociação, o que, em termos pedagógicos, se promove a partir de metodologias
participativas em que cada um se assume como protagonista de realizações colectivas. Naturalmente que os professores,
enquanto mediadores interculturais, “têm de saber instaurar o diálogo e o respeito mútuo, não fazendo belos discursos, mas
na prática, na esperança de que essa coexistência e essa compreensão do outro, se estiverem presentes durante todo o
percurso escolar, serão progressivamente interiorizadas e aplicadas em outras esferas da vida” (Gadotti, 2006: 140). Este
papel esperado dos professores como mediadores inter-culturais não é, de todo, novo, na medida em que, na linha de Pedro
Silva (2003), a relação das escolas com as comunidades é sempre uma relação entre culturas. Ou seja, se olharmos ao
desenvolvimento do modelo escolar, verificamos que este foi acontecendo numa definição clara de fronteiras entre o interior
e o exterior, com demarcação clara de duas culturas. O professor foi experimentando, assim, várias possibilidades de relação
e de construção de alguma interacção com o exterior. Não se pode, contudo, ignorar: actualmente a realidade é, de qualquer
forma, mais complexa, na medida em que os públicos em presença vêm de raízes sociais, culturais, religiosas, étnicas e
linguísticas muito mais heterogéneas. Urge que seja reconhecido o protagonismo efectivo de cada um, seja criança ou adulto,
seja pai, professor ou aluno, tenha nacionalidade portuguesa, africana ou outra.

Referências Bibliográficas:
Albuquerque, R. (2005). “Para uma análise multidimensional da situação das mulheres: as relações entre género, classe e
etnicidade”. Imigração e Etnicidade: vivências e trajectórias de mulheres em Portugal. Lisboa: SOS Racismo
Canário, R. (1992). “O Estabelecimento de Ensino no Contexto Local”. in R. Canário (Org.) Inovação e Projecto Educativo
de Escola. Lisboa: Educa

6
Citado no Relatório do Desenvolvimento Humano, PNUD, 2004:85.

790
Carvalho, L. (2004). Impacto e reflexos do trabalho imigrante nas empresas portuguesas – uma visão qualitativa. Lisboa:
ACIME
Casa-Nova, Mª J. (2007). “A relação dos ciganos com a escola pública: contributos para a compreensão sociológica de um
problema complexo e multidimensional”. In Revista Interacções, nº2. http://nonio.eses.pt/interaccoes/artigos/B7.pdf
Catarino, C. e Oso, L. (2000). “La inmigrácion femenina en Madrid y Lisboa: hacia una etnización del servicio doméstico e
de las empresas de limpeza”. In Papers, 183-207
Correia, J. A. (1999). Relações entre escola e comunidade: da lógica da exterioridade à lógica da interpelação. Aprender, 22,
Julho, 129-134.
Cortina, A. (1997). Ciudadanos del mundo: hacia una teoria de la ciudadania. Madrid: Alianza
Freire, P. (1997). Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra
Gadotti, M. (2006). Escola Cidadã. São Paulo: Cortez
Gonçalves, Mº e Figueiredo, A. (2005). “Mulheres Imigrantes em Portugal e mercado de trabalho: diferentes percursos,
inserções laborais semelhantes”. Imigração e Etnicidade: vivências e trajectórias de mulheres em Portugal. Lisboa: SOS
Racismo
Oliveira, B. et al (2007). Factores Preditores de Empregabilidade de Migrantes. Porto: ASI
Perrenoud, P. (2005). Escola e Cidadania. O papel da escola na formação para a cidadania. Porto Alegre: Artmed
Silva, P. (2003). Escola-família, uma relação armadilhada – Interculturalidade e relações de poder. Porto: Edições
Afrontamento.

Desafios da escola multisseriada no contexto da região insular de Belém

Mariza Assunção
Secretaria Municipal de Educação de Belém
mfa@interconect.com.br

Resumo: O artigo reflete sobre os desafios didático-pedagógicos enfrentados pelas escolas multisseriadas no contexto da região insular de
Belém, buscando compreender a dinamização do trabalho pedagógico, assim como, a relação professor- aluno- conhecimento, em termos
interativos no âmbito do ensino que se pratica. Tem por objetivo, investigar a escola multisseriada ribeirinha e sua heterogeneidade no
processo ensino-aprendizagem que se dá nesse contexto. A interação se constitui então como questão central. A metodologia utilizada se
apóia no aporte teórico metodológico da pesquisa qualitativa a partir do enfoque do estudo de caso. Pode se constatar que na área em estudo
(Ilha de Urubuoca) é necessário compreender a aprendizagem como um processo social, acontecendo por meios e com os recursos
mediacionais disponibilizados por uma determinada cultura, que servem como elementos de interações e aprimoramento cognitivo e o
conhecimento como algo que não é dado, não nasce em nós, muito menos “brota das coisas”, mas se estrutura na relação dialética/dialógica
entre os sujeitos.

1 – Introdução
O trabalho com as diferentes faixas etárias no contexto das escolas multisseriadas, exige do professor mais que
experiências, exige conhecimento e respeito pela diversidade de saberes e culturas e o atrelamento da teoria e da prática na
constituição do ensino que referende a identidade dos povos do campo.
Assim, a investigação desenvolvida em classes multisseriadas ribeirinha na região insular de Belém, busca
compreender a complexidade do cotidiano destes sujeitos que nos revelam singularidades surpreendentes, por vezes
embaraçosas obrigando-nos a incursões sem âncoras ou bóias, mas acreditamos ser possível apresentar uma outra
possibilidade educacional para quem vive as margens de rios, ilhas, florestas entre outras realidades desta imensa Amazônia.
A experiência vivida na pesquisa neste processo de procura, ajuda a compreender melhor as tramas dos povos dos
sujeitos do campo, via as leituras criteriosas. Encharcados pelas águas dos rios e do conhecimento epistemológico,
mergulhamos na complexidade do real e, quanto mais estamos descobrindo, mais constatamos o quanto ainda falta para
abarcarmos a totalidade que há nas classes multisseriadas que acreditávamos de ser possível apreender. Aprendemos com
alguns estudiosos que a ciência não é a verdade, mas apenas a busca permanente da verdade.
A realidade educacional do nosso Estado, pauta instigantes desafios no campo da pesquisa e intervenção. Dados
constantes no diagnóstico de Educação do Pará (SEDUC, 2001), é uma evidência inequívoca da complexidade da
problemática da educação rural, particularmente das classes multisseriadas.
As estatísticas oficiais apontam que no Pará (INEP, 2002) do total de crianças matriculadas (1.107.151), 471.307
(42,57%) estão em classes multisseriadas. Isso significa que quase metade de nossas crianças de 1ª a 4ª séries do ensino
fundamental, frequentam esta modalidade de ensino.
Este contexto, gerou a necessidade de refletir sobre a prática pedagógica da professora no cotidiano de sala de aula,
daí os seguintes questionamentos:
Quais os conteúdos desenvolvidos em sala de aula?

791
Quais as metodologias de ensino que tem sido utilizadas para estimular a curiosidade científica dos alunos?
Quais os recursos didáticos disponíveis e/ou produzidos?
O estudo desenvolveu-se na escola situada na Ilha de Urubuoca, na parte insular da Região Metropolitana de
Belém, anexo pertencente à Escola Estadual de Ensino Fundamental Marta da Conceição, cuja sede está situada na Ilha de
Cotijuba, e foi realizada ao longo do ano letivo de 2007.

2- O Respaldo da Teoria
A partir das leituras de Vygotsky, entendemos que a função primordial dos fundamentos da educação é a
mediação no processo de reflexão crítica da prática pedagógica. Neste sentido, eles podem ser compreendidos como
instrumentos conceituais capazes de balizar o porquê, o como e o para que do processo educativo concreto. A teoria
Vygostiana, nos ajuda a compreender esses processos por buscar compreender o processo de desenvolvimento do
pensamento e das funções cognitiva do homem, situando em uma realidade histórica e contextual. Para isso, discute o
desenvolvimento do indivíduo em diferentes planos: filogenético, ontogenético, sócio-genético e microgenético. Entende que
o contato entre os indivíduos é a gênese do desenvolvimento cultural, imprescindível para a formação do indivíduo e para o
desenvolvimento histórico de nossa espécie. É na estrutura dos processos de internalização do conhecimento pelo homem,
que Vygotsky o compreende como ser histórico e cultural.
Vygotsky intencionava discutir com os educadores, era o que para ele é a função da educação, ou seja, a
idéia básica de que o aprender, como atividade que acontece mediada por outros sociais, transforma o nível potencial interno
de desenvolvimento em atual. O desenvolvimento psicológico e aprendizagem ocorrem de maneira prospectiva, referindo-se
sempre ao que está para ser. É a aprendizagem, sempre dependente de interações de indivíduos que despertara o
desenvolvimento interno. É exatamente na diversidade e na heterogeneidade que as trocas interpessoais tornam-se ricas,
gerando saltos desenvolvimentistas, implementados pela dinâmica entre o nível real e potencial do desenvolvimento.O aporte
teórico de Vygotsky é o que mais tem subsidiado nosso entendimento aliado a outros autores que no momento ainda estamos
nos debruçando a estudar para que na análise final deste estudo possamos com maior rigor científico concluir nossa pesquisa.

3- Metodologia e construção da pesquisa.


Consoante com os objetivos e as questões norteadoras a pesquisa se desenvolveu com base no aporte teórico
metodológico da pesquisa qualitativa a partir do enfoque do estudo de caso apoiada nos estudos de Ludke e André (1986).
As autoras consideram que o estudo de caso busca retratar a realidade de forma totalizante, considerando a
experiência vicária e possibilitando generalizações naturalísticas. É válido citar que “(…) o conhecimento não é algo
acabado, mas uma construção que se faz e refaz constantemente. Assim sendo, o pesquisador estará sempre buscando novas
respostas e novas indagações no desenvolvimento de seu trabalho” (LUDKE & ANDRÉ, 1986: p. 18).
As fases do estudo de caso, como são assinaladas por Nisbet e Watt (Apud LUDKE & ANDRÉ, 1986),
contemplam “(…) a fase exploratória, a fase mais sistemática de coleta de dados, e a terceira e última, a análise e
interpretação de dados.”.
O estudo realizou-se considerando três momentos articulados entre si, assim sistematizados: 1° momento: Revisão
Bibliográfica visita a campo, definição e elaboração dos instrumentos de coleta de dados, 2° momento: Pesquisa de Campo,
aprofundamento do referencial teórico, sistematização das informações e dados coletados, caracterização da realidade
pesquisada. 3° momento: Análise dos dados, elaboração do relatório final e finalização da produção do DVD.
Para tanto nos apropriamos do referencial da pesquisa qualitativa por entender que na educação este referencial
ganha destaque no cenário mundial no final dos anos sessenta. Sua origem data do século XIX, com o surgimento do impacto
causado na vida cotidiana dos Estados Unidos, advindos do processo de urbanização e do impacto da imigração crescente,
originando vários problemas nas cidades, tais como saúde pública e educação, entre outros, o que exigia estudos e
investigações, pois a vida do povo americano estava degradante. As várias denúncias apresentadas pelos jornais da época,
deram início ao “movimento dos levantamentos sociais” (BOGDAN E BIKLEN, 1994, p. 20), cujos inúmeros estudos
realizados nas mais diversas disciplinas, apontaram outras perspectivas, dando a alguns investigadores a oportunidade para
explorar a abordagem qualitativa e a defender a sua utilização, já ao final dos anos setenta.
No Brasil, as pesquisa qualitativas desenvolvidas no campo da educação iniciam no final dos anos 70 e ganham
destaque em meados dos anos 80, especialmente com os trabalhos de Lüdke e André (1984), nos quais as autoras discutem
abordagens qualitativas tais como a pesquisa etnográfica e o estudo de caso, dentre outros.
Nesse sentido, desenvolvemos a pesquisa baseada no aporte teórico-metodológico da pesquisa qualitativa, a partir
do enfoque do estudo de caso, apoiada nos estudos de Lüdke e André (1986), Bogdan e Biklen (1994), dentre outros,
adotando a abordagem narrativa (CONNELLY E CLANDININ, 1995), que considera o contexto, a trama e o tempo em que o
fenômeno estudado acontece. “Em uma pesquisa narrativa as vozes dos sujeitos são importantes e constituem o fenômeno a
ser estudado (os relatos), enquanto que a análise desse fenômeno – a narrativa – é a pesquisa propriamente dita”.
(GONÇALVES e FREITAS, 2005).
Para Connelly e Clandinin (1995), a razão principal para o uso da narrativa na investigação educacional é que para
nós, seres humanos, somos por excelência contadores de histórias, organismos que, individual e socialmente, vivemos vidas

792
relatadas. Compartilho com Gonçalves (2000, p. 35) que “a pesquisa narrativa é (...) uma abordagem metodológica que
proporciona reconstituir histórias vividas por seus personagens”. O estudo da narrativa, portanto, é o estudo da forma pela
qual os homens e mulheres experimentam o mundo.
No estudo de caso, busca-se retratar a realidade de forma totalizante, considerando a experiência vicária (imersão
em profundidade na situação pesquisada/estudada) e possibilitando generalizações naturalísticas. A compreensão de que o
conhecimento é inconcluso, que se constrói e reconstrói num permanente movimento, implica uma postura do pesquisador de
um continuum indagar durante todo o processo investigativo.
Compartilhamos com André (1993, p. 18), quando afirma que:
Conhecer a escola mais de perto significa colocar uma lente de aumento na dinâmica das relações e interações que
constituem o seu dia-a-dia, apreendendo as forças que a impulsionam ou que a retêm,… analisando a dinâmica de sala de
aula e destacando o papel e a atuação de cada sujeito nesse complexo interacional.
O desenvolvimento da presente pesquisa ocorreu no âmbito de um estudo de caso, como foi assinalado por Nisbet e
Watt (apud LÜDKE e ANDRÉ, 1986), contemplando a fase exploratória, a fase mais sistemática de coleta de dados e a
terceira e última, a análise e interpretação dos dados.
Na fase exploratória, procuramos selecionar a literatura pertinente à problemática central do trabalho, construindo
um corpus teórico que nos ajudassem no processo de pesquisa e análise dos dados; contatamos com a professora da escola
investigada, expondo nossa intenção de pesquisa; visitamos a comunidade, para ter maior conhecimento do local onde
iríamos passar nove meses em contato com alunos e professora; mantivemos conversas informais com alguns pais de alunos e
registrávamos as observações realizadas no diário de campo. Esta imersão na realidade a ser pesquisada, ajudaram-nos a
delimitar nosso plano de investigação e as estratégias que iríamos utilizar. Este mergulho reflete o que afirmam Bodgan e
Biklen (1994, p. 89):
O início do estudo é representado pela extremidade mais larga do funil: os investigadores procuram locais ou
pessoas que possam ser objeto de estudo ou fontes de dados e, ao encontrarem aquilo que pensam interessar-lhes, organizam
então uma malha larga, tentando avaliar o interesse do terreno ou das fontes de dados para os seus objetivos.
Nesses encontros fomos construindo esta pesquisa, pois pudemos rever e aprofundar algumas leituras e reorientar
nossa investigação e assim fomos rompendo com a visão de um cotidiano escolar estático, repetitivo, uniforme, homogêneo,
para tentar enxergar nele suas dimensões contraditórias, a sua historicidade, como afirma Heller (1985). Ao mesmo tempo,
nos convencemos de que o que buscávamos era o vivido, o não documentado da sala de aula multisseriada (EZPELETA e
ROCKWELL, 1989).
Na segunda fase da pesquisa, ou seja, da coleta de dados, optamos pela observação participante por permitir
registrar e analisar as interações que ocorriam na sala de aula, reconstruir os diálogos entre alunos e entre os alunos e a
professora, tarefa que consideramos desafiante, uma vez que a observação participante exige um olhar aguçado para se
perceber as minúcias, as ações desenvolvidas pelos sujeitos e os significados que vão atribuindo às ações. Enfim, justifica-se
esta opção por tentar compreender a dinamicidade dos atos ocorridos no processo de ensino e aprendizagem e a percepção
dos sujeitos que ora estão envolvidos.
Ainda nessa fase, assumimos o registro das observações, fotografias e entrevistas como instrumentos principais
para captação e compreensão do objeto da pesquisa, uma vez que:
O processo de coleta de dados caracteriza-se pela ênfase na compreensão, valendo-se da arte da descrição que deve
ser contemplada, porém, pela explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações dos eventos
investigados numa integração do individual com o social. (FREITAS, 2003, p. 28)
Essa fase suscitou novas buscas teóricas, pois sentíamos necessidade de aprofundamento de estudos acerca da
temática. Dessa forma, fomos ampliando os estudos e aprofundando-os à medida que outras leituras foram se efetivando, pois
compreendemos que durante todo o processo de análise e produção do texto final deste relatório o processo dialógico com a
literatura pertinente se mantém.
A terceira e última fase do estudo de caso, corresponde à análise e interpretação dos dados. Nesta fase, a mais
trabalhosa, exige do pesquisador bastante cuidado, uma vez que vai reunir todos os instrumentos que lhe dará embasamento
para a sua reflexão e análise. Esta será a próxima fase que iremos realizar para apresentação dos resultados finais.

3.1 A Escolha dos Sujeitos da Pesquisa


A Amazônia Rural retrata uma complexa sócio-biodiversidade, onde a variedade de linguagens, a multiplicidade de
culturas que para a região foram trazidas por habitantes vindos de várias outras partes do país e do mundo e a riqueza
biológica e cultural local constituem uma diversidade multicultural importante, que não pode deixar de ser considerada,
quando se analisam as formas de ser, estar, fazer e conviver nessa região.
A exuberância da floresta regala os olhos e alimenta o espírito de quem passa às margens de seus deslizantes rios e
igarapés que abrigam variadas espécies de organismos, muitos dos quais próprios apenas dessa região, muito associados,
também, à sobrevivência dos seres humanos que habitam essas áreas.
A imensidão territorial e a baixa densidade populacional criam algumas distorções no âmbito educacional, gerando
situações complexas, difíceis de serem gerenciadas pelos sistemas educacionais, face às realidades sócio-econômicas da
região. Em parte, essa realidade é agravada pela falta de políticas públicas educacionais (e de saúde, etc) para essas

793
peculiaridades, fazendo aumentar os bolsões de pobreza e as dificuldades de desenvolvimento humano e social, como tem
sido apontado pelos relatórios internacionais. (UNESCO, PNUD).
No Pará, os mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) situam-se no arquipélago do Marajó. O difícil
acesso a muitas dessas localidades exige altos esforços e investimentos financeiros, em geral considerados não prioritários.
Daí decorre uma realidade educacional problemática, altamente complexa, conforme dados do MEC/INEP (2006).
Esses dados são indicadores da precariedade e das dificuldades da realização da educação para as populações
rurais, o que, sem dúvida, compromete a qualidade do processo de ensino e de aprendizagem de professores e estudantes.
Por outro lado, a alternativa encontrada para que o problema não se torne ainda maior é a adoção de classes multisseriadas,
onde o mesmo professor atende todos os estudantes das séries iniciais, em um mesmo espaço, independente da idade e da
série do aluno. Longe de diminuir, essa realidade tem se ampliado ao longo do tempo:
O crescimento de 3,4% de classes multisseriadas no período de 1984 a 1997 no Brasil totalizando 124.990 classes é
uma das facetas que expressa a envergadura do desafio educacional no meio rural no país. O cenário dessas classes na região
amazônica evidencia mais ainda o desafio: a região Norte dispõe de 22.936 classes multisseriadas e o Estado do Pará
contempla mais de 50% dessas classes, totalizando 11.882 turmas que contemplam prioritariamente as séries iniciais do
ensino fundamental, e abrangem 141 dos 143 municípios do Estado, inclusive a capital que dispõe de seis classes distribuídas
em três ilhas situadas em Belém/PA. (FREIRE, 2004, p. 02)
É nesse contexto que situamos a fala da professora Lívia1: “Na classe multisseriada existe muito trabalho e pouco
aproveitamento na aprendizagem”. Segundo a professora “é difícil ensinar assim”. Não nos parece difícil compreender as
palavras da professora, principalmente se considerarmos que a situação de trabalhar concomitantemente com estudantes da
pré-escola à 4ª série vem acompanhada da falta de condições de trabalho, que se caracteriza pela falta de materiais didáticos,
merenda escolar insuficiente e ausência de outras condições mínimas desejáveis mesmo para professores que trabalham com
unissérie.
Participaram da pesquisa, a professora (com formação do curso de magistério, em nível médio, atualmente
cursando Educação Superior) e trinta alunos, sendo 16 do sexo masculino e 14 do feminino, distribuídos nas seguintes séries:
pré-escolar (Jardim I, II e III), 1ª, 2ª, 3ª e 4ª série do ensino fundamental, com idades que variam entre 04 e 17 anos, oriundos
das proximidades da escola. A escolha desses sujeitos ocorreu por pertencerem a uma escola que trabalha com classe
multisseriada sem a intervenção de programas advindos de políticas públicas, seja no âmbito federal, estadual ou municipal.
A bordo de um barquinho, deslizamos rio abaixo, rumo à comunidade a ser pesquisada. A exuberância da paisagem
nos permitia refletir sobre o ensino e a aprendizagem de conteúdos relacionados às vivências dos alunos e em especial as
ciências, numa região cercada por tantos rios, matas e uma variedade tão grande de flora e fauna. Perguntávamos sempre: o
que sabem essas crianças, jovens e adultos a respeito de toda essa biodiversidade? Como a professora trabalha os conteúdos
de Ciências e outros saberes necessários a aprendizagem? E assim, choviam perguntas em nossas conversas e nosso desejo de
realizar a pesquisa se fortalecia. Algumas vezes, as águas ficavam revoltas e o medo batia. Pesquisar em regiões assim nos
amedronta e, somos tomados pelas incertezas das marés e às vezes dá vontade desistir, mas o compromisso assumido nos
encorajavam, e assim, toda quarta-feira estávamos lá, observando, anotando, participando das construções e (re)construções
das práticas pedagógicas.
Decidimos juntas que a professora selecionaria o conteúdo a ser trabalhado com a turma inteira, a partir de
temáticas geradoras, desencadeando redes de saberes, e nós a ajudaríamos no que fosse possível, para tornar as aulas mais
dinâmicas e prazerosas, uma vez que nosso interesse estava na observação das interações que ocorriam entre os pares e sua
professora. Utilizamos vários instrumentos e procedimentos para esta coleta, em termos processuais, citamos:
a) Observações diretas, pois assim podíamos perceber as relações interpessoais entre os alunos, alunos e professora,
bem como a participação e a interação dos alunos no desenvolvimento das atividades/construção dos conhecimentos;
b) Notas de campo, para o registro e anotações dos conteúdos trabalhados e os processos interativos desenvolvidos
em sala de aula;
c) Fotografias e filmagens, para melhor visualizar os registros das interações ocorridas entre os sujeitos
investigados.

4- Mediação: elemento necessário à construção do conhecimento.


O desenvolvimento e a interiorização dos processos mentais superiores implicam uma forma de mediação que é
profundamente influenciada pelo contexto sócio-cultural, uma vez que nova forma de atividade mental não ocorre como um
processo passivo e individual, e sim como um processo ativo/interativo no interior das relações sociais. Através dos
diferentes processos de mediação social, a criança se apropria dos caracteres, das faculdades, dos modos de comportamentos
e da cultura, representativos da história da humanidade. À medida em que esses processos são internalizados, passando a
ocorrer sem intervenção de outras pessoas, a atividade mediada transforma-se em um processo intrapsicológico, dando
origem à atividade voluntária.

1
Nome fictício da professora, assegurando seu direito de manter-se anônima.

794
Vygotsky destaca que a mediação pelos signos tem um papel decisivo na organização da fala interior, sendo que
esta exerce a função auto-reguladora nos processos do pensamento e nas atividades de resolução de problemas, como
processos intrapessoais. Assim, podemos considerar que o desenvolvimento das funções intelectuais está inter-relacionado
com as formas de mediação social ( a mediação pelos signos e pelo outro). Compreendemos desta forma que a emergência e
a internalização das funções psicológicas superiores e o desenvolvimento da linguagem estão relacionados, pois a linguagem,
apresentada nos estudos vygotskyano, é um elemento importante como signo socializante por mediar os processos de
internalização das funções desenvolvidas socialmente.
De acordo com Vygotsky (1991, p. 96): “sabemos que a aprendizagem e o desenvolvimento são processos
intimamente relacionados”. Segundo este autor, o processo de desenvolvimento não precede e nem coincide com o de
aprendizagem. O processo de desenvolvimento segue o da aprendizagem.
Neste sentido, é fundamental que todo/a professor/a reconheça a transcendência da dimensão interativa do aluno e
da aluna, interpretando-a como uma relação pedagógica que depende de um diálogo contínuo entre o/a professor/a e
alunos/as comprometidos, ao mesmo tempo, com a busca do saber e com a construção de uma sociedade humana e solidária.
É na interação que o aluno e a aluna estabelece com o/a professor/a, com outros alunos/as e com o conhecimento, é
que ele vai compondo e ampliando o seu repertório de significados. O aluno não é, pois, simples receptor de estímulos e
informações: tem um papel ativo ao selecionar, assimilar, processar, interpretar, conferir significados, construindo ele próprio
seu conhecimento.

5- A guisa de conclusão:
Baseadas no aporte teórico de Vygotsky iremos analisar um episódio ocorrido em sala de aula que demonstra o
papel da linguagem e da interação na construção do conhecimento, onde se destacam as noções de “ internalização” e de ZDP
( Zona de Desenvolvimento Proximal) – Vygotsky ( 1989). Observamos que, em alguns momentos, os alunos procuram
realizar em conjunto atividades de leitura e escrita. O que acontece quando elas compartilham a leitura? Como uma criança
pode auxiliar a outra? O quanto este auxílio pode desencadear processos de aprendizagem e desenvolvimento? Como
trabalhar com uma classe multietária sem desconsiderar seus saberes, suas experiências? O que isto desperta nos alunos?
Tomando estas questões como ponto de partida, nesta análise apresentamos um episódio de leitura partilhada por
duas alunas, uma de 1ª série e outra de 2ª série. Nosso procedimento de análise se realizou a partir dos aspectos indicadores
do processo de construção de conhecimento, tomando o conceito de mediação, segundo a abordagem sócio-histórica.
Os resultados da pesquisa mostram que a heterogeneidade é propícia ao processo de ensino e de aprendizagem por
permitir criar diferentes zonas de desenvolvimento proximal entre os estudantes, ou seja, os diálogos da professora com os
grupos de alunos e os próprios alunos entre si, facilitam a compreensão da turma acerca das temáticas que estudam. Assim,
um primeiro olhar que fica é que: uma criança precisa falar. Falar é um direito da criança, já que é um elemento de seu
desenvolvimento. As crianças falando, desenhando, dramatizando, etc., estão na realidade, experimentando, gradualmente a
liberdade e a participação. Para a criança não há erro no desempenho de uma tarefa, os trabalhos devem servir para
diagnosticar como elas pensam e que estruturas estão utilizando ao resolver problemas, para que possamos organizar-lhes
tarefas correspondentes ao seu nível mental, de maneira gradualmente mais complexa, possibilitando, assim, estimular seu
desenvolvimento de uma maneira contínua. As considerações presentes nos estudos de Vygotsky assinalam a enorme
importância da educação escolar na vida das crianças. Através de suas análises é possível alimentar a crença nas
possibilidades de participação ativa e interativa do aluno de classes multisseriadas.
Deste modo, a prática pedagógica tendo a heterogeneidade como fio condutor, baseia-se nas funções interpessoais e
nas interações recíprocas de um sujeito ativo com outros sujeitos ativos. Assim, a sala de aula implica uma dinâmica social,
sendo função do professor não só a organização das relações aí estabelecidas, das quais o conhecimento é um produto mais
também orientar e direcionar o processo de apropriação da cultura, colocando-se como mediador entre as atividades do aluno
e os conhecimentos com os quais interagem. Compartilhando com Damázio (1997, p. 90), ao afirmar que, “(…) a
presença dos alunos com diferentes possibilidades torna-se um fator fundamental para a criação de ambientes propícios de
interação social, à qual será elemento mediador para a aprendizagem e ao desenvolvimento”.
Assim, a heterogeneidade, característica sempre presente nas classes multisseriadas, ganha força, quando o/a
professor/a compreende como fator importante para as interações nas classes multisseriadas. A mesma informação posta à
disposição de todos/as, com a mesma linguagem e no mesmo momento, será assimilado de maneiras distintas pelos diversos
sujeitos, por serem diferentes em suas estruturas psicossociais, demandando ações que exigem interações contínua dos/as
alunos/as entre si e com o/a professor/a.
A zona de desenvolvimento proximal, elaborada por Vygotsky para explicar a relação entre o desenvolvimento e a
aprendizagem aponta para a compreensão de que aprendizado não é desenvolvimento. O aprendizado adequadamente
organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em funcionamento vários processos de desenvolvimento que, de outra
forma, seriam impossíveis de ocorrer.
De acordo com este autor, o indivíduo através do processo de aprendizagem, interage com o mundo e aprende os
mecanismos culturalmente elaborados. A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível real e o nível
potencial, ou seja, o que o indivíduo já é capaz de fazer com a colaboração de outro indivíduo, sendo que na visão deste
autor, não pode ser considerado como fraude.

795
A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em
processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentes em processos embrionários. Essas funções
poderiam ser chamadas “brotos” ou “flores” do desenvolvimento, ao invés de frutos do desenvolvimento.
(VYGOTSKY, 1991, p. 97)
O conceito de zona de desenvolvimento proximal é de muita importância para nós professores/as, tendo em vista
que por ela somos capazes de investigar e compreender as funções que ainda se encontram em desenvolvimento no processo
mental do indivíduo e assim poder intervir, não na intenção de, somente, fazer o indivíduo chegar onde se deseja, mas que
nessa interação se estabeleça à mudança tanto no sujeito, quanto no objeto, pois na perspectiva vygotskyana, a “relação”
evolui para “interação”.
A interação, como intencionalidade da prática educacional, direciona a organização das ações, do espaço físico e
dos materiais, os quais passam ser mediadores da interação das crianças, gerando oportunidades de construções de
procedimentos e atitudes fundamentais à vida em coletividade, como a colaboração, ajuda cooperação, solidariedade e
respeito.Daí a importância do/a educador/a estar comprometido com essa questão, compromisso que passa necessariamente
pelo entendimento do seu significado, enquanto sujeito de sua aprendizagem e da aprendizagem de seus alunos/as, que vêm
de diferentes lugares, vivências e referências outras que lhes permitam a troca, a construção de novos saberes.Compreender o
conceito de desenvolvimento proximal é de extrema importância para o estudo das classes multisseriadas, uma vez que
permite a compreensão da dinâmica interna do desenvolvimento individual.
Ao estudar a zona de desenvolvimento proximal, Vygotsky nos ajuda a entender “não somente os ciclos já
completados, como também os que estão em via de formação, o que permite o delineamento da competência da criança e de
suas futuras conquistas” (REGO, 1997, p. 74), bem como, contextualizar o processo educacional em que estão inseridas as
classes multisseriadas.
É importante compreender que um dos fatores mais importantes na construção e elaboração do conhecimento que é
a mediação, uma vez que possibilita atividades psicológicas controladas pelo próprio indivíduo, as quais passam a ser
voluntárias e intencionais. Assim, é possível compreender a aprendizagem como um processo social, acontecendo por meios
e com os recursos mediacionais disponibilizados por uma determinada cultura, que servem como elementos de interações e
aprimoramento cognitivo e o conhecimento como algo que não é dado, não nasce em nós, muito menos “brota das coisas”,
mas se estrutura na relação dialética// dialógica entre os sujeitos

6 - Referências:
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SCHNETZLER, R. P. & ARAGÃO, R. M. R. (orgs). Ensino de Ciências: fundamentos e abordagens. Campinas, SP: R.
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(coords.). Educação e escola no campo. Campinas: Papirus.
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FREITAS, M. T. A. (2003). A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. IN:
FREITAS, M. T. A, SOUZA, S.J., KRAMER, S. (orgs). Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São
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FREIRE, J. C. S. (2004). Currículo e Classes Multisseriadas na Amazônia: realidade e desafio do Projeto Escola Ativa no
Estado do Pará. Texto apresentado no VI Colóquio sobre questões curriculares, II Colóquio Luso-Brasileiro sobre questões
curriculares – currículo: Pensar, inventar, diferir. UERJ – Rio de Janeiro.
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Bauru/SP.
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796
VYGOTSKY, L. S. (1998). Pensamento e linguagem. 2ed. São Paulo: Martins Fonte.
WERTSCH, J. V. (1998). Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona: Piados.

Fabricar o sucesso escolar: quando o desempenho mascara a desigualdade

Virgínio Sá
Universidade do Minho- IEP
virsa@iep.uminho.pt

Fátima Antunes
Universidade do Minho- IEP
fantunes@iep.uminho.pt

Resumo: Na panóplia de estratégias desenvolvidas pelas famílias para alcançar vantagens na competição em torno de bens educativos, o
recurso a “explicações” vem assumindo um peso crescente. Não sendo um fenómeno novo, ao longo dos últimos anos temos vindo a assistir
à sua recomposição, seja em termos quantitativos, seja em termos qualitativos.
Nesta comunicação pretendemos apresentar alguns resultados de uma investigação em fase de conclusão, centrada nos processos de
regulação da educação, e onde se problematizam algumas das desigualdades face à escola e à escolarização enquanto variante específica da
enorme paleta das desigualdades sociais. O estudo desenvolveu-se num concelho do norte de Portugal (convencionalmente designado Vila
Formosa), abarcando as escolas com oferta de ensino secundário.
A evidência empírica em que se sustenta esta comunicação resulta, predominantemente, da análise de uma parcela dos dados de um
questionário aplicado a uma amostra de cerca de oitocentos encarregados de educação. Os elementos recolhidos, além de confirmarem que as
“explicações” constituem uma “escola paralela” bastante difundida e plurifacetada, apontam também para um recurso de acesso bastante
desigual por parte das diversas famílias.

Breve enquadramento do “fenómeno”


Numa obra recentemente publicada1, Costa et al. (2008: 55) sustentam que “As explicações constituem hoje um
fenómeno à escala mundial e de globalização crescente, cujas dimensões económico-financeiras, políticas e pedagógicas se
encontram ainda longe de análise suficientemente sustentada.” Nesta comunicação, tomando como suporte empírico os dados
da nossa própria investigação, pretendemos contribuir para o debate em torno deste objecto de estudo- “o fenómeno das
explicações”- conferindo particular centralidade ao potencial impacto desta “escola paralela”, ou “educação na sombra”
como a designa Bray (1999), sobre a realização da escola pública enquanto projecto democrático promotor e sustentáculo de
uma efectiva igualdade de oportunidades (de acesso e de sucesso) para todos.
Mark Bray (2008), numa breve análise comparativa do “fenómeno das explicações” em várias regiões do mundo,
em que toma como referência estudos levados a cabo por diversos investigadores em distintas geografias sociopolíticas,
proporciona-nos alguns “indicadores transnacionais” que nos permitem uma primeira aproximação à magnitude, à
diversidade, às razões e a alguns dos impactos que este “sistema na sombra”2 pode implicar. Bray começa por destacar que a
quantificação da prática das explicações constitui um exercício bastante difícil, desde logo porque, para além da
informalidade que caracteriza esta actividade, com frequência trata-se de uma prática desenvolvida à margem da lei, ou seja,
os explicadores, com frequência, não declaram os rendimentos provenientes desta actividade ao fisco e, também por isso, são
bastante discretos, além de que, por vezes, desenvolvem a actividade ao arrepio do enquadramento jurídico-formal. Em certos
contextos culturais, as próprias crianças, e respectivas famílias, podem também não ter muito interesse em dizer que recorrem
a explicações porque reconhecê-lo pode equivaler a uma declaração pública de “incompetência” e/ou retirar mérito aos
resultados que ostentam. Apesar destas dificuldades, o autor apresenta alguns dados quantitativos3, recolhidos em estudos
diversos, que apontam para as explicações como um “fenómeno mundial” que, em alguns contextos, vem assumindo a

1
Referimo-nos à obra Xplika: Investigação sobre o Mercado das Explicações, da autoria de J. A. Costa, A. Neto-Mendes e A. Ventura, editada pela Universidade
de Aveiro. Neste trabalho os autores apresentam uma síntese dos principais resultados de um projecto de investigação, financiado pela Fundação para a Ciência e
Tecnologia, projecto que conduziram no período compreendido entre 2005 e 2008. Esta obra constitui uma referência incontornável para todos aqueles que se
interessam pelo “shadow system education”, expressão com que por vezes se designa o fenómeno das explicações.
2
Bray (2008: 11) considera que a designação de “sistema na sombra” se justifica por quatro ordens de razões: “Em primeiro lugar, este sistema só existe porque
o sistema formal de ensino existe. Em segundo lugar, este sistema imita o sistema formal: à medida que o sistema formal muda em tamanho e orientação,
também o sistema na sombra muda. Em terceiro lugar, em quase todos os países é dada muito mais atenção ao sistema formal do que à sua sombra; e em quarto
lugar, as características do sistema na sombra são muito menos distintas do que as do sistema formal.”
3
No quadro de síntese em que dá conta da dimensão quantitativa do recurso a explicações, e onde são apresentados dados diversos relativos a 14 países
distribuídos por quase todos os continentes, embora com maior incidência na Ásia, Bray (2008: 13-14) informa-nos que, por exemplo, na Coreia do Sul, em
2003, se estimava que 83,1% dos alunos do 1º ciclo frequentavam explicações, enquanto em 1980 a percentagem de alunos a frequentar explicações nesse
mesmo ciclo teria rondado os 12.9%. Por seu lado no Vietname, em 2002, 20% das despesas dos agregados familiares com a educação eram absorvidas em
explicações, percentagem que subia para os 29% quando os alunos se encontravam a preparar os exames de acesso à universidade. Gray dá-nos ainda conta de
um estudo realizado na Grécia junto de 3411 estudantes, a frequentar diferentes universidades, onde foi possível apurar que “mais de 80% tinham frequentado
sessões de explicações em grupo em centros de explicações”. Para o caso do Canadá, Gray informa-nos que, nos anos 90, o nº de centros de explicações terá
crescido entre 200% e 500%.

797
dimensão de uma “grande indústria”. Também Costa et al. (2008) se reportam à “dimensão internacional do fenómeno” e à
diversidade de formas que pode assumir, seja em termos de “oferta”, seja em termos de “procura”, esclarecendo que “A
escala do negócio das explicações pode ir da pequena actividade não declarada às entidades fiscais até à grande empresa com
sucursais em diversos países e que é cotada na bolsa” (p. 37). Para darem conta da dimensão desta actividade, estes autores
apresentam um conjunto de dados relativos a uma dúzia de países, pondo em evidência, não apenas o impressionante volume
de recursos financeiros que o “negócio” mobiliza4, mas também a expressiva heterogeneidade que caracteriza os modelos
organizativos, os prestadores do serviço, o quadro normativo que regula a actividade5 e as “funções” que esta cumpre. Por
isso, defendem Costa et al. (2008: 46), faz cada vez menos sentido falar de uma “actividade na sombra”, propondo os autores
que se fale antes da “sombra de uma actividade” que cada vez mais ensombra o sistema educativo formal (público e
privado).6 Na verdade, se em alguns casos é o sistema das explicações que se ajusta ao sistema educativo formal, noutros
casos, o sistema educativo formal parece cada vez mais refém da indústria das explicações, sendo diversos os impactos que
esta actividade pode exercer sobre a vida das escolas e no trabalho dos professores, noutros casos ainda verifica-se uma
estranha promiscuidade entre os dois sistemas, com professores das escola formal a dar explicações aos seus próprios alunos
e em que o investimento nas explicações aparece como uma forma de comprar o “sucesso”, ou assegurar o acesso às vias de
ensino mais prestigiadas e que conduzem às saídas profissionais mais apetecidas.7

Impacto das explicações na organização escolar


No que concerne ao impacto das explicações sobre o trabalho dos professores e a organização e gestão escolar, os
efeitos podem ser muito variados. Como observa Bray (2008: 17), “a escola na sombra pode afectar a dinâmica ensino-
aprendizagem nas escolas formais”. Na verdade, a frequência de explicações por parte de alguns alunos pode aumentar as
disparidades no interior da sala de aula, complexificando o trabalho do professor. Quando a maioria dos alunos beneficia de
explicações, o professor pode dispensar-se de “perder tempo” com certos “pormenores”, colocando os alunos que não
recorrem à “escola na sombra” em clara desvantagem, pressionando-os, mesmo que involuntariamente, a ajustar-se à
“norma”. Esta pressão foi-nos expressivamente relatada por uma ex-aluna de uma das escolas incluída no nosso estudo:
“[…] Mas isso era lei, ter explicações. Eu lembro-me que numa das primeiras aulas que tive de Matemática do 10º
ano, a professora virou-se para nós, e disse: ‘Eu sei que vocês têm todos explicações, por isso vamos andar com isto’. E eu
perdia-me completamente, eu não tinha explicações, não queria ter porque já tinha 6 horas de Matemática, eles [a escola]
ainda nos arranjavam mais duas horas, que era supostamente para compensar, porque não conseguiam dar a matéria toda para
os exames nacionais, e ainda tinha que ter explicações! Mas era prática, colegas meus que como queriam entrar [em
medicina] tinham explicações a Português, tinham explicações a Inglês, a Química, eles saíam da escola iam para a
explicação, eu nunca os encontrava em lado nenhum. […] Eu pelo menos disse à minha mãe para me meter em explicações,
eu arranjei um explicador particular e tive que frequentar as explicações.”8
Além da “naturalização” das explicações, o excerto acima transcrito põe ainda em evidência a multiplicação da
carga horária normal dos alunos, com repercussões potencialmente negativas sobre a sua capacidade de concentração nas
aulas. Silova e Kazimzade (2006: 128), citados por Bray (2008: 18), reportando-se à realidade do Azerbeijão, observam que:
“em média os alunos passam 28 horas na escola (38 aulas) e mais umas 12 a 16 horas em explicações todas as semanas.
Juntas, estas somam 40-44 horas por semana, as quais equivalem a mais de uma semana de trabalho de um adulto. Exaustos,
muitos alunos relaxam na escola, guardando a sua energia para as explicações”.9 Estes mesmos autores denunciam ainda o
impacto negativo das explicações sobre a assiduidade dos estudantes, afirmando que: “Os alunos começam a faltar para terem

4
Em alguns países, como esclarecem os autores, o negócio das explicações mobiliza um montante que pode ultrapassar o orçamento do respectivo Estado para o
sector da educação. O caso da Coreia do Sul constitui um caso paradigmático em que as despesas com explicações atingem valores extraordinariamente elevados.
Referem Costa et al. (2008: 43), baseando-se em Card (2005), que “Em muitos lares sul-coreanos, uma média de 700/1000 dólares é gasta por mês em
explicações” e que neste mesmo país, em 2000, foram gastos em explicações mais de 26 biliões de dólares. De resto, como esclarecem os mesmos autores, os
coreanos orgulham-se do número de horas que os seus filhos passam em explicações.
5
No que concerne ao enquadramento normativo, a diversidade de situações pode oscilar entre os países que formalmente proíbem as explicações, como é o caso
do Egipto e do Quénia, embora sem grande sucesso prático, e o caso dos países que induzem a actividade como por exemplo os Estados Unidos e a França, no
primeiro caso através do famoso programa federal “No Child Left Behind” e no segundo permitindo que parte das despesas das famílias com explicações seja
apresentada para efeitos de deduções fiscais.
6
É importante notar que o recurso a explicações não constitui um exclusivo dos alunos que frequentam a escola pública. Na entrevista que realizámos ao director
pedagógico de uma das escolas inseridas no nosso estudo, este responsável, quando questionado sobre o recurso a explicações por parte dos alunos do
estabelecimento que dirigia, observou: “Depende das turmas, tem um número razoável nas turmas que tem expectativas altas para Medicina, normalmente são 2
turmas em que há um número bastante grande de alunos que alimenta essa expectativa. Numa turma de 25 alunos uns 10 procuram explicações para conseguir
uma média superior.” (E4 PCE- Gama). Outros estudos mostram igualmente que a percentagem de alunos que recorre a explicações no ensino público não é
muito diferente da percentagem de alunos que recorre a explicações no ensino privado (Ver, por exemplo, Ventura e tal, 2008: 138).
7
Gray (2008: 17) reporta o caso do Camboja em que frequentemente os professores da escola formal dão explicações aos seus próprios alunos no final do dia na
própria sala de aula. Apesar de estas explicações não serem obrigatórias, a recusa dos pais em pagá-las pode colocar os respectivos filhos em desvantagem em
relação às crianças que as frequentam, além de que pode ser interpretado pelo professor com indicador de desinteresse. Acresce ainda que, esclarece Gray, os
professores controlam os exames de fim de ano lectivo, podendo determinar quem transita ou não de ano, o que pode levar os pais a considerar que é mais barato
suportar os custos das explicações do que ver os filhos a repetir o ano. Estas situações são mais comuns nos países em vias de desenvolvimento, contextos onde
os professores auferem baixos salários e, por isso, podem sentir-se tentados a procurar “complementos” recorrendo a processos pouco éticos.
8
Entrevista realizada a uma ex-aluna da escola Alfa.
9
À fadiga dos alunos há que acrescentar a fadiga e exaustão dos professores, sobretudo quando acumulam o ensino na escola formal com as explicações. Como
as explicações tendem a proporcionar maior retorno, seja em termos materiais, seja em termos emocionais, o tempo que deveria ser investido na preparação das
aulas da escola formal acaba frequentemente por ser usurpado pelas explicações. Esta situação tende a ser particularmente frequente nos países em que os
professores auferem baixos salários, surgindo as explicações como um complemento indispensável a uma existência com um mínimo de dignidade.

798
explicações durante o período lectivo. Alguns alunos subornam os seus professores ou administradores escolares para
poderem faltar às aulas e frequentar explicações.” (idem, ibidem). Por seu lado, Nanayakkara e Ranaweera (1994),
igualmente citados por Bray (2008: 18), agora tomando por referência o Sri Lanka, advertem para as implicações das
explicações sobre a imagem do professor e a qualidade do ensino dispensado pela escola formal. Uma vez que o ensino
dispensado nas explicações é aí considerado como tendo uma qualidade superior ao ministrado na escola formal, os alunos
tendem a ver o professor da escola formal como uma figura de segundo plano, desvalorizando o seu trabalho e este, por sua
vez, ao não ver o seu trabalho reconhecido, sente-se menos estimulado a implicar-se na realização do mesmo, gerando-se em
consequência um “circulo vicioso” de que é difícil sair.10
No nosso estudo recolhemos também testemunhos muito eloquentes acerca do modo como as explicações
interferem no (e perturbam o) funcionamento da sala de aula:
“Há os alunos sem objectivos, então esses pronto … enfim, e há os alunos com objectivos. Aqueles que vão discutir
mais uma décima, menos uma décima e tal. Todos eles têm explicação e repare, a explicação o que faz é o seguinte, vai levar
a que muitas vezes o aluno desprestigie o ensino que tem na sala de aula porque ele tem, basta-lhe escrever o sumário e
depois como ele paga, o pai e mãe pagam àquele professor, àquele outro professor, que vai explicar aquilo. Ele pode estar a
brincar com o telemóvel na aula. […] Ele está, mas não está minimamente interessado naquilo que eu estou a dizer porque
ele sabe que depois vai para explicação e tal. […] E chega ao ponto de haver em frente às escolas… Olhe, onde eu tenho o
meu filho mais novo, no 9º ano, em frente à escola, agora não sei se ainda lá está, estava um cartaz, pelo menos o ano
passado estava, a indicar um centro de explicações. Em frente à escola! Portanto é um desafio ao aluno… A ideia que passa é
esta: ‘o que é dito na escola é incompreensível, é qualquer coisa que não interessa porque é a escola pública e em Portugal o
que é público é desvalorizado’. Como sabe, o Médico que leva muito dinheiro é bom Médico. Se ele levar pouco já não é
assim tão bom. É assim o ensino, e portanto o explicador que leva pouco dinheiro não é gente para se confiar, mas se levar
muito isso é sinal que ele é bom, não é? (Ep 8)11
Se, por um lado, as explicações podem levar a um certo desinteresse do aluno pela aula, fazendo com que ele
“esteja sem estar”, por outro lado, os dados do nosso estudo reforçam também a ideia, já referenciada noutras investigações,
de que as explicações reforçam a heterogeneidade e os desequilíbrios no interior da sala de aula, complexificando
extraordinariamente o trabalho do professor:
“Agora, eu já ouvi aqui colegas meus queixarem-se disso, portanto o explicador… aliás mais, ainda o ano passado
tivemos aqui uma colega que estava a leccionar Química ao 12º e ela estava furiosa porque acontecia isto nas aulas. Ela, por
exemplo, tem, imagine, 15 alunos, há 10 que têm explicação e outros 5 não têm. Então ela dá a aula para os 5, porque os 10
vão mais adiantados na explicação e como vão mais adiantados na matéria não querem saber nada da aula e perturbam a
aprendizagem dos outros 5 com questões que ainda estão muito longe de ser tratadas para esses 5 que não têm explicação.
Então ela vivia o drama de ter que ensinar esses 5 e de ter que responder às perguntas, mais ou menos manhosas, dos outros
que vão testar os conhecimentos através da explicação. (Ep 8)
A frequência de explicações, num elevado número de horas e de disciplinas, além do cansaço que provoca nos
alunos, tem também importantes implicações na programação das actividades da escola, com particular incidência nas que se
realizam para além das actividades lectivas, nomeadamente os projectos que se desenvolvem no âmbito dos Clubes. Se, por
um lado, o aluno tem de fazer uma certa ginástica para conciliar as horas das explicações com o horário das aulas, por outro
lado, os professores vêem-se muitas vezes obrigados a reprogramar as suas planificações iniciais e a sacrificar as aulas para
fazer aquilo que de outro modo fariam nos horários em que os alunos estivessem “libertos”:
“É assim, nós aqui temos sala de estudo, e temos alunos a recorrer à sala de estudo, mas também temos consciência
de que há muitos alunos a terem explicações. Em Ciências e Tecnologias. Matemática, a Física, nomeadamente essas duas
disciplinas. Haverá um ou outro a Inglês, que me apercebo mas é basicamente a Matemática. Eu acho que já antes de ver
como é que vão reagir, há muitos… todos eles… que estão à espera que saiam os horários para saber como é que hão de
conciliar as duas coisas [explicações e aulas]. Isto porque, porque… tentamos reunir com eles nas horas que nós pensamos,
enfim, que eles estão libertos, e onde… “Ah eu tinha explicações…”, às vezes é complicado. E tenho… na turma
melhorzinha tenho dois projectos diferentes para cada uma das turmas, porque os deixei escolher o que eles queriam fazer
comigo. E a turma de Ciências e Tecnologias, que é a turma que decidiu fazer uma peça de teatro, escrever em Inglês, deveria
ser apresentada [a peça] no dia 22 de Janeiro e não foi. E isto porquê? Porque implica ensaios, e [porque os alunos estão

10
A este propósito, Nanayakkara e Ranaweera (1994. 14) afirmam: “Este facto tem uma influência negativa no respeito e na confiança que os alunos têm no
professor da turma e no seu ensino. Uma situação tão insatisfatória leva a uma maior deterioração do ensino formal, o que resulta num círculo vicioso, no qual o
comportamento negativo dos alunos e a baixa participação no processo de ensino-aprendizagem levam a um ensino de fraca qualidade, um ensino de fraca
qualidade leva à procura de explicações, as explicações levam a comportamentos negativos dos alunos na sala de aula formal o que, por sua vez, leva a uma
deterioração adicional do ensino formal e por aí adiante.”
11
Neste texto mobilizaremos dados de investigação recolhidos através de inquérito por questionário e inquérito por entrevista. As entrevistas foram realizadas em
diferentes fases da investigação. Numa primeira fase realizamos entrevistas aos dirigentes dos órgãos de gestão das escolas integradas no nosso estudo. Foram
entrevistados sete dirigentes escolares, cinco de escolas públicas e dois de escolas privadas. Quando os excertos se reportarem a estes entrevistados utilizaremos
uma codificação que inclui, além da letra E, o número de ordem da entrevista, o cargo do entrevistado e a escola a que pertence (identificada convencionalmente
com uma letra do alfabeto grego). Exemplo: (E1 PCE- Ómega). Neste caso estaríamos a referir-nos à entrevista nº1, realizada ao presidente do conselho
executivo/director pedagógico da escola Ómega. Quando convocarmos excertos das entrevistas realizadas na última fase da investigação utilizaremos apenas a
letra E, associada à letra p quando se tratar de um professor e à letra a quando o inquirido for um aluno, seguida do número de ordem da entrevista (Exemplo Ep
7- deve ler-se: entrevista nº 7, realizada a um professor. Não se fornece neste caso a indicação da escola porque todas as entrevistas da última fase da
investigação foram realizadas na mesma escola (escola Alfa).
Eventuais dados suplementares de contextualização e/ou caracterização das entrevistas serão fornecidos no texto.

799
sempre ocupados] os ensaios têm de ser feitos nas aulas e é muito difícil conciliar isto. Portanto, na próxima aula, já que
fizemos o teste, é o primeiro ensaio, a ver em que ponto é que as coisas estão, porque não vamos deixar para o fim do 3º
período.” (Ep 3)
Outra face da influência das explicações sobre a escola e os professores materializa-se através da “pressão” que os
pais exercem sobre professores, seja contestando a dificuldade dos testes, seja reclamando quanto a potenciais desfasamentos
no cumprimento do programa. Alguns dos docentes por nós inquiridos denunciaram estas pressões, observando que, por
vezes, as “queixas” dos pais replicam aquilo que ouviram aos explicadores dos respectivos educandos:
“Há pressão, sim, há pressão sim, e pais… não sei se são os pais que pensam dessa maneira, mas os explicadores
pressionam e de que maneira. Há pressões. […] Mas a situação é esta: ‘os testes são difíceis, não sei quê, não sei que mais.
Não sei quem na escola x, na escola y … os testes são mais fáceis. E estas conversas chegam aos conselhos de turma, sim.
[…] Há os pais professores, e se os pais não sabem têm os explicadores, não é? Porque os pais, pelo menos nessa situação, os
pais usaram o que é melhor para os filhos. Os filhos têm de entrar no curso x e então não há… se não conseguem de uma
maneira metem os meninos nas explicações e os explicadores dizem isso [que os professores estão atrasados na matéria]. (Ep
4)
Alguns dos nossos inquiridos expressaram uma certa perplexidade com o facto de as respectivas escolas oferecerem
internamente “explicações gratuitas” e, apesar disso, os alunos recorrerem a explicações externas pagas:
“Nós temos aqui uma sala de estudo, com os tais ditos professores “pesos pesados” [Matemática; Físico-química
…]. Mas eu não entendo isso, e a pagarem quando nós temos aqui professores a dar explicações na sala de estudo” (E5 PCE-
Delta)
“Nós temos salas de estudo, mas não utilizam muito, com um professor, que pode ser um professor duma
disciplina…são os professores que em princípio estão disponíveis para isso, mas é possível ter lá uma a duas vezes por
semana, professores de Matemática, também. […] Preferem andar todos em explicações, todos ou a maior parte, se não
precisam é porque têm noutro lado.” (E7 PCE- Sigma).
De um modo geral, os docentes entrevistados manifestaram-se críticos em relação ao recurso às explicações, seja
porque consideram que, em muitos casos, não se justificam, seja porque consideram que podem contribuir para alimentar a
dependência e preguiça do aluno, criando-lhe a falsa ilusão de que sabe:
“Em relação às explicações, eu tenho uma opinião um bocado radical, acho que entrou-se nessa cultura e muitas
vezes não era necessário, habituam-se os alunos às explicações e não faz muito sentido. Eu apercebo-me que alguns alunos
começam com a explicação antes de começarem as aulas, mas não sabem se vão precisar. (E2 PCE- Alfa).12
“Portanto acho que não vale a pena estarmos a criar nos alunos a expectativa de que eles são génios e que depois
derrapam e entram na universidade e vocês saberão melhor do que eu como é que vão entrar e o que é que eu quero dizer
com isso.” (E3 PCE- Beta)
Um dos dirigentes escolares entrevistados considerou que o sistema de acesso ao ensino superior era um dos
principais responsáveis por uma certa subversão dos objectivos do ensino secundário e pela “caça à nota” que motiva o
recurso às explicações. O acesso ao ensino superior exclusivamente baseado nos resultados escolares obtidos no ensino
secundário, particularmente nos obtidos nos exames nacionais, retirou-lhe identidade e transformou-o num mero trampolim
de acesso ao nível seguinte:
“Não é possível, os nossos alunos tirarem 18 e 19 se não for assim, só aquele dotado, muito inteligente, mas não
acredito muito. […] As explicações resultam duma necessidade, que é dos alunos poderem… o que está na base disto tudo é
o acesso ao ensino superior ser feito a partir duma média, logo as pessoas trabalham para a nota, o que está errado, porque a
conclusão do ensino secundário era uma coisa, o acesso ao ensino superior era outra.” (E7 PCE- Sigma)
Noutro caso argumentou-se que cabe à escola organizar-se de modo a dispensar os alunos e respectivas famílias da
necessidade de recorrer a explicações. Sustentou-se ainda que, a não ser assim, é a realização da escola enquanto espaço de
promoção de uma efectiva igualdade de oportunidades que está em causa:
“[…] A nossa preocupação como escola é que os alunos aprendam na escola e quando não conseguem aprender
aquilo que a escola, o que os professores acham que é necessário aprenderem nós implementamos projectos. […] Só para
acabar a questão das explicações: deve ser preocupação da própria escola evitar que as famílias tenham que despender na
educação dos seus filhos, mesmo a nível secundário, de outros meios para que eles tenham sucesso. Acho que a escola é que
têm por obrigação [de assegurar] o sucesso dos alunos. E recorrer muitas vezes às famílias para fazer com que elas tenham
que largar avultadas quantias, porque nós sabemos que são muito caras as explicações, … as famílias não têm [recursos] e
então estamos num processo de exclusão social e desigualdade e perda de oportunidades, o que eu penso que é extremamente
grave não assumir isso enquanto democracia instituída e numa Lei de Bases que fala de igualdades de oportunidades de
sucesso para todos etc.” (E3 PCE- Beta)
Em certo sentido pode dizer-se que, se por um lado, o mercado das explicações se alimenta dos défices de
funcionamento da escola formal13, por outro lado contribui activamente para perpetuar e acentuar esses défices e, por essa

12
Também registámos um depoimento de sentido contrário em que o nosso interlocutor deu conta da “muita adesão” dos alunos às oportunidades proporcionadas
pela sala de estudo: “A nossa sala de estudo, nalgumas disciplinas, naquelas que são fundamentais, funciona com muita adesão. Há alunos que vêm praticamente
todas as semanas, há outros que só vêm em época de testes, mas há muitos alunos que vêm com carácter sistemático.” (E6 PCE- Kapa)

800
via, se perpetuar e (auto)justificar a si próprio. Os dados de algumas investigações neste domínio apontam, em alguns casos,
para nebulosos processos de chantagem e corrupção, com os explicadores a valerem-se da sua posição de professores no
ensino formal para, através de expedientes diversos, fidelizarem uma clientela de explicandos. Estas situações ocorrem
sobretudo quando os explicadores têm como destinatários das suas explicações os mesmos alunos de que são docentes no
sistema de ensino formal. O risco de promiscuidade que aquela situação envolve levou diversos países a proibi-la
expressamente. Contudo, o quadro normativo que regula a actividade das explicações é, de facto, muito diverso e de
capacidade limitada na regulação das práticas.
Como esclarece Neto-Mendes (2008), as políticas de regulação dos vários Estados no que concerne ao fenómeno
das explicações caracterizam-se pela “marca da heterogeneidade”. Partindo da proposta de Hallak e Poisson (2004: 89), este
autor arruma os vários países em três categorias:
os países que ignoram a actividade das explicações;
os países que escolheram a via da proibição, total ou parcial;
os países que reconheceram a actividade e que avançaram mesmo com políticas educativas que encaram as
explicações como um aliado para a melhoria dos resultados escolares.”

Da primeira categoria fazem parte países como o Canadá e o Japão. No segundo grupo é possível discriminar dois
segmentos diferentes: i) os países em que a proibição é total, como são os casos do Quénia e do Egipto14 e ii) os países em
que a proibição é parcial, onde se inclui Portugal. No nosso país, o diploma que regula o “regime de acumulação de funções e
actividades públicas e privadas dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário” (Portaria nº
814/2005, de 13 de Setembro) determina que a acumulação de funções carece de autorização do Ministério da Educação. Nas
“Condições de acumulação” discrimina-se um conjunto cumulativo de requisitos, esclarecendo-se aí que, entre outras
condições, a acumulação só poderá ser concedida
“Se a actividade privada a acumular, em regime de trabalho autónomo ou de trabalho subordinado, sendo similar ou
de conteúdo idêntico ao das funções públicas desempenhadas pelo requerente, designadamente a prestação de serviços
especializados de apoio e complemento educativo, de orientação pedagógica ou de apoio sócio-educativo e educação
especial, não se dirija, em qualquer circunstância, aos alunos do agrupamento ou da escola onde o mesmo exerce a sua
actividade principal.” (alínea e, artº 3º).15
Realçamos a dupla restrição imposta por este normativo: o professor da escola pública, para além de ter de pedir
autorização para exercer a actividade de explicador, não só não o poderá ser em relação aos seus alunos, como também está
impedido de o ser em relação a quaisquer outros alunos “do agrupamento ou da escola onde o mesmo exerce a sua actividade
principal”.16
No grupo dos países que encaram as explicações como factor de melhoria dos resultados escolares e que
promoveram políticas educativas que constituíram um forte incentivo à expansão daquela “indústria”, destacam-se os Estados
Unidos, particularmente após a promulgação, em 2002, da lei federal No Child Left Behind.17
Em Portugal, o investimento na “indústria das explicações” ocorre por iniciativa privada e constitui uma das
modalidades de apoio das famílias à consecução de trajectórias escolares de (mais) sucesso por parte dos filhos. Também por
esta via, os pais procuram garantir alguma vantagem competitiva na disputa pelas fileiras mais prestigiadas e que dão acesso
às posições sócio-profissionais melhor remuneradas. O recurso a “explicações” assume, neste contexto, um papel
fundamental e, também por isso, tem-se verificado um aumento das investigações que as elegem como objecto de estudo.
Contudo, por razões diversas, a investigação sobre esta forma particular de “investimento escolar” debate-se com algumas
dificuldades, desde logo porque nem sempre as famílias assumem abertamente que realizam este “investimento”.18

Responder ao sistema: fabricação da excelência como investimento privado

13
Afonso (2008: 30) afirma que “A crise da escola […] alimenta há muito a procura de apoios extra-escolares compensatórios (o que parece ser o caso mais
frequente no que diz respeito às explicações), mas também alimenta a procura de apoios que são praticamente substitutivos da escolarização normal, exceptuando
aqui, portanto, aqueles apoios que não terão nenhuma relação com a crise da escola porque se constituem como reforços académicos suplementares para
indivíduos que têm percursos de escolarização relativamente bem sucedidos.”
14
A proibição das explicações nestes países parece não impedir que, de facto, elas ocorram, e em escala muito significativa, como confirmam os dados de
algumas investigações referenciadas por Bray (2008: 13).
15
Sublinhado nosso.
16
Como realça Neto-Mendes (2008: 93), este normativo veio clarificar uma ambiguidade da Portaria 652/1999, de 14 de Agosto, também ela relativa à
acumulação de funções por parte de educadores e professores, onde a redacção relativa à restrição sobre a qual incidia a acumulação era geradora de
ambiguidades.
17
Esta lei federal permite aos pais escolher o prestador, público ou privado, dos “serviços educativos suplementares” que terão que ser assegurados às crianças
quando a escola, em dois ou mais anos consecutivos não alcança o AYP (Adequate Yearly Progress). Os custos destes “serviços educativos suplementares” são
suportados por verbas públicas provenientes do governo federal. Esta obrigatoriedade estimulou a emergência de vários prestadores destes serviços, sobretudo de
iniciativa privada. Neto-Mendes (2008: 91) refere que cerca de três quartos destes prestadores de serviços pertencem à iniciativa privada, sendo os restantes
disponibilizados pelo sistema público de ensino. Com a aplicação do No Child Left Behind os fundos federais para a educação passaram de 42.2 biliões de
dólares em 2001 para 54.4 biliões de dólares em 2007. Contudo, o grau de concretização dos objectivos deste programa continua a ser objecto de disputa, com
alguns estudos apontando para a sua ineficácia, nomeadamente os que foram realizados por serviços federais.
18
Quando perguntámos a um dos dirigentes escolares que entrevistámos se tinha alguma ideia do número de alunos que frequentavam explicações, este
respondeu-nos: “Não sei, não posso dizer, até porque ninguém diz que anda nisso, a gente não tem dados sobre isso”.

801
No âmbito do estudo que serve de base a esta comunicação aplicámos um questionário a uma amostra de
pais/encarregados de educação das três escolas em que incidiu a 2ª fase da nossa investigação.19 Entre as várias questões que
colocámos à consideração dos nossos inquiridos, incluímos também alguns itens destinados a aferir a dimensão, as razões e
os resultados desta modalidade particular de investimento das famílias no percurso escolar dos filhos. Com a primeira
questão colocada aos pais inquiridos quisemos saber se estes, no ano lectivo em que foi aplicado o questionário ou em anos
lectivos anteriores, já tinham recorrido a explicações. Dos 806 encarregados de educação que forneceram respostas a esta
questão, 483 (59.3%) estavam a recorrer ou já tinham recorrido a explicações para os respectivos educandos.20 Por seu lado,
316 (38.9%) indicaram que nunca tinham recorrido a explicações. Dos 483 inquiridos que reconheceram ter recorrido a
explicações, 223 indicaram que estavam a fazê-lo pela primeira vez no ano lectivo em que foi aplicado o questionário.

Gráfico 1
Número de pais que recorreu a explicações
(n= 806)

500

223 260 316


0
Apenas Recorreu em Nunca recorreu
recorreu diversos anos
durante o lectivos
presente ano
lectivo

À medida que se sobe no nível de escolaridade dos alunos, diminui a probabilidade de sobreviver sem recurso a
explicações.
Quadro 1
Relação entre o recurso a explicações e o ano de escolaridade que o aluno frequenta
(n= 806)

Apenas recorreu no Já recorreu em anos Nunca recorreu


ano lectivo em curso lectivos anteriores
Ano de escolaridade do Nº % Nº % Nº % Total
educando
10º ano 84 30.4% 53 19.2% 136 49.3% 276
11º ano 89 28.2% 100 31.6% 124 39.2% 316
12º ano 50 23.4% 107 50% 56 26.1% 214

Enquanto quase metade (49.3%) dos pais cujos filhos frequentavam o 10º ano indicaram nunca ter recorrido a
explicações, apenas cerca de ¼ (26,1%) dos pais com filhos no 12º ano deram a mesma indicação.
Solicitámos também aos inquiridos para, no caso de nunca terem recorrido a explicações para os respectivos
educandos, indicarem o motivo. O gráfico seguinte sintetiza as respostas a esta questão

19
Os inquéritos por questionário foram aplicados a uma amostra de encarregados de educação das escolas Alfa, Kapa e Sigma (designações convencionais). Na
maioria dos casos os dados das três escolas surgem agregados. Contudo, também são apresentadas algumas análises desagregadas.
20
Esta percentagem está muito próxima do resultado apurado através de um inquérito por questionário aplicado pelo Ministério da Educação aos alunos que se
candidataram ao ensino superior (1ª fase) no ano de 2005. Dos 30 686 alunos que responderam ao questionário, 17 775 (57.9%) disseram ter recorrido a
explicações ao longo do seu percurso escolar. Para uma análise mais detalhada dos dados deste muito pouco conhecido inquérito por questionário, ver Ventura et
al. (2008: pp. 133-138). Os dados destes investigadores recolhidos através de inquéritos por questionários aplicados, nos anos lectivos compreendidos entre
2004-2005 e 2006-2007, a alunos do 12º ano a frequentar escolas secundárias da cidade Aquarela (designação convencional) também apontam para percentagens
de alunos com frequência de explicações próximas das antes referidas.
Gráfico 2
Motivos indicados pelos pais para o não recurso a explicações
(n= 317)

250
200
150
228
100
50
44 16 38
0
Não ter tido  Não ter meios  Não concordar  Deve ser a escola 
necessidade para recorrer a  com o recurso a  a resolver as 
explicações explicações dificuldades dos 
alunos

De acordo com as respostas dos nossos inquiridos, dos pais que não recorreram a explicações, uma expressiva
maioria (71.9%) indicou que não o fez por “não ter tido necessidade”. O “não ter meios para recorrer a explicações” foi
invocado por 13.9% dos inquiridos. O terceiro factor, invocado por 12% dos inquiridos, foi o argumento de que “deve ser a
escola a resolver os problemas dos alunos”.21 Por último, 16 inquiridos (5%) seleccionaram o factor “não concordar com o
recurso a explicações”.
Foi também solicitado aos pais/encarregados de educação que recorreram a explicações para os seus educandos
para indicarem os motivos dessa opção. O gráfico seguinte condensa as respostas a essa questão.

Gráfico 3
Motivos indicados pelos pais para o recurso a explicações
(n= 483)

250

200

150
228
100
113
50 69
37 47
0
Resultados  Resultados  Resultados  Resultados  Outro motivo
negatiivos às  positivos,  positivos  positivos 
disciplinas em  embora baixos,  médios,  elevados, 
que recorreu a  às disciplinas  embora não  embora não 
explicações em que  suficientes para  suficientes para 
recorreu a  assegurar o  entrar no curso 
explicações acesso à  desejado.
universidade

Apesar de o recurso a explicações ser maioritariamente (47.2%) justificado com base nos resultados negativos nas
disciplinas em que se verificou esse recurso, é também significativa (43.3%) a percentagem de encarregados de educação que
recorrem a explicações mesmo quando os resultados são positivos. De entre estes destacamos também aqueles que, apesar de
resultados positivos elevados, ainda assim recorrem a explicações. Os 37 inquiridos que se incluíram nesta categoria, apesar
de não constituírem um grupo estatisticamente muito significativo, representam um segmento de encarregados de educação

21
Nas entrevistas que realizámos aos dirigentes dos órgãos de gestão das escolas inseridas no nosso estudo registámos alguns depoimentos críticos em relação à
necessidade de recurso a explicações. Como já realçámos antes, um dos argumentos invocados para fundamentar as referidas críticas foi precisamente o de que
“deve ser preocupação da própria escola evitar que as famílias tenham que despender na educação dos seus filhos, mesmo a nível secundário, de outros meios
para que eles tenham sucesso. Acho que a escola é que têm por obrigação [de assegurar] o sucesso dos alunos.” (E3 PCE- Beta).
particularmente pró-activo na gestão da carreira escolar dos educandos. Neste caso o motivo para o recurso a explicações
decorre da preocupação em assegurar o acesso a cursos superiores muito procurados em que as médias de entrada são muito
elevadas. Não deixa de ser significativo que, dos 37 encarregados de educação que reconheceram recorrer a explicações,
mesmo quando os resultados escolares eram elevados, 27 (73%) tivessem educandos que frequentavam o curso de Ciências e
Tecnologias, ou seja, o curso que dá acesso, por exemplo, a medicina. Este subgrupo de alunos que recorre a este “aditivo”
extra-escolar corresponde ao que Costa et al. (2008b: 151) designam, de forma muito expressiva, por “explicandos-meta-
vinte”, por oposição aos alunos que recorrem a explicações por terem resultados negativos: os “explicandos-meta-dez”.
Quadro 2
Distribuição, em função do curso, dos alunos que beneficiaram de explicações, mesmo com resultados positivos
elevados
(n= 37)
Curso Nº %
Ciências e Tecnologias 27 73%
Ciências Sociais-Econômicas 2 5.4%
Ciências Sociais e Humanas 1 2.7%
Artes Visuais 1 2.7%
Tecnológico de Informática 1 2.7%
Científico-Natural 2 5.4%
NS/NR 3 8.1%
Total 27 100%

O recurso diferenciado a explicações não varia apenas em função do curso, mas também em função das disciplinas.
Solicitamos aos nossos inquiridos que discriminassem as disciplinas em que os respectivos educandos frequentavam
explicações. O quadro seguinte sintetiza as respostas a esta questão.

Gráfico 4
Disciplinas a que os alunos recorreram a explicações no ano lectivo em que foi aplicado o
questionário aos pais

História
Francês
Física
Química
Geometria Descritiva
Filosofia
Ciências
Contabilidade
Geologia
Biologia
Inglês
Português
Matemática

0 50 100 150 200 250 300 350 400

Como se pode constatar pela observação do gráfico, a matemática lidera destacada a lista das disciplinas às quais os
alunos recorrem a explicações. Dos 482 inquiridos que indicaram que os seus educandos recorreram a explicações, 369
(76.5%) declararam tê-lo feito a matemática. A física e a química ocupam o 2º e 3º lugares com cerca de uma centena de
referências cada. O português, com 52 referências, e o inglês, indicado por 48 inquiridos, ocupam as posições seguintes. Com
pouco mais de uma dezena de referências aparecem a geologia (13), a biologia (13), a filosofia (12) e a geometria descritiva
(12). As restantes disciplinas indicadas surgem com uma a três referências.22
Frequentar explicações significa acrescentar à carga horária semanal normal mais algumas horas, acréscimo que
varia em função do número de disciplinas e do número de horas por disciplina que cada aluno frequenta. No gráfico seguinte
apresentamos a distribuição dos resultados em função dos escalões considerados.

22
Estes dados são consistentes com os resultados de outros estudos, nomeadamente do Projecto XpliKa a que já nos reportámos antes. Também aí a matemática é
a disciplina com maior frequência na procura de explicações, com percentagens bastante idênticas às que constatamos no nosso estudo. Os dados do questionário
aplicado pelo Ministério da Educação em 2005 também apontam para a matemática como a líder das explicações com percentagens igualmente próximas das
nossas (neste caso 71.9%).
Gráfico nº 5
Número de horas semanais dispendidas em explicações
(n= 439)

Nº de respostas
300

200
285
100 132
17 5
0
1 a 3 horas  4 a 6 horas  7 a 9 horas  Mais de 9 
semanais semanais semanais horas 
semanais

A grande maioria dos alunos (64.9%) que recorreu a explicações dedicou às mesmas 1 a 3 horas semanais. Cerca de
30% passaram em explicações 4 a 6 horas semanais. 22 inquiridos (5%) indicaram que os seus educando passaram 7 ou mais
horas por semana em explicações. Trata-se de um subgrupo para o qual as explicações se traduzem numa muito significativa
sobrecarga horária23 e financeira. No gráfico seguinte damos conta do investimento financeiro das famílias na “escola
paralela”.

Gráfico 6
Despesa mensal em explicações
(n= 436)

250

200
Nº de respostas

150
233
100

50 93
34 43 25 8
0
Explicações  Despesa inferior  Despesa entre  Despesa entre  Despesa entre  despesa 
gratuitas a 75 euros/mês 75 e 125  126 e 175  176 e 225  superior a 225 
euros/mês euros/mês euros/mês euros/mês

Como se pode observar no gráfico 6, mais de metade dos inquiridos (53.4%) que disseram ter recorrido a
explicações suportaram um encargo mensal entre os 75 e os 125 euros.24 Por seu lado, cerca de 10% (43) indicaram como
despesa média mensal um valor compreendido entre os 126 e os 175 euros. 25 encarregados de educação seleccionaram a
opção “entre 176 e 225 euros por mês” e 8 admitiram suportar uma despesa mensal superior a 225 euros por mês. Uma verba
mais modesta (inferior a 75 euros/mês) foi indicada por cerca de 21% dos inquiridos, enquanto 34 (7.8%) recorreram a
explicações sem ter de suportar qualquer despesa.
Quando cruzamos o recurso a explicações com a escolaridade dos pais, constatamos que aquele recurso constitui
uma prática observável em todos os níveis de escolaridade. Contudo, é perceptível uma sobrerepresentação dos grupos com
escolaridade mais elevada, sobrerepresentação que também se verifica à medida que aumenta a despesa mensal com as
explicações. O quadro seguinte sintetiza os dados relativos a esta dimensão da análise.

23
Como nos relatou uma ex-aluna de uma das escolas onde desenvolvemos o nosso estudo, a competição para entrar em determinados cursos era tal que alguns
alunos recorriam a explicações a quase todas as disciplinas e, por isso, a nossa entrevistada “nunca os encontrava em lado nenhum”: “Mas era prática, colegas
meus que como queriam entrar [nos cursos mais procurados] tinham explicações a Português, tinham explicações a Inglês, a Química, eles saíam da escola iam
para a explicação, eu nunca os encontrava em lado nenhum.” Como referimos anteriormente, as explicações, ao subtraírem os alunos da escola durante tantas
horas, interferem na planificação do trabalho por parte dos professores, dificultando-lhes a organização das actividades curriculares não disciplinares que, em
princípio, deveriam ser desenvolvidas nas horas livres de actividades lectivas, obrigando os professores que querem desenvolver aquelas actividades a
“sacrificar” aulas com eventual prejuízo para o cumprimento dos programas.
24
Também aqui encontramos um certo paralelismo com os resultados obtidos no âmbito do Projecto Xplika. No questionário aplicado no ano lectivo de
2006/2007 os investigadores do referido “Projecto” puderam apurar que 56% dos inquiridos que suportaram despesas com explicações se situavam no escalão de
71-140 euros mensais (Cf. Ventura et al., 2008: 130).
Como se pode perceber pela análise do Quadro 3, quando tomámos por referência a escolaridade do
pai/encarregado de educação, observamos um aumento progressivo no peso relativo dos vários subgrupos à medida que
aumenta o nível de escolaridade.

Quadro 3

Despesa média mensal com explicações Total


Escolaridade (em euros)
do pai Gratuitas < 75 75-125 126-175 176-225 > 225 NS/N Nº %
R
1º ciclo 12 26 40 7 2 1 6 94 50.0%
2º ciclo 9 14 42 4 1 1 1 72 48.8%
3º ciclo 8 16 42 6 2 0 6 80 57.1
%
Secundário 4 22 54 9 11 5 6 111 62.7%
Bacharelato 0 2 6 5 3 1 0 17 77.2%
Licenciatura ou 1 9 43 12 5 0 3 74 62.7%
superior
NS/NR 0 4 6 0 1 0 1 12
Total 34 93 233 43 25 8 23 460

Assim, por exemplo, enquanto 50% dos pais com o 1º ciclo recorreram a explicações, essa percentagem sobe para
62.7% quando nos centramos nos pais com uma escolaridade correspondente à licenciatura ou superior. Apesar de, no caso
dos pais com o bacharelato, essa percentagem subir para os 77,2%, devemos relativizar este valor dada a reduzida
representação deste subgrupo. Pela análise deste mesmo quadro é ainda possível constatar que os pais com escolaridade mais
elevada estão sobrerepresentados nos escalões mais elevados de despesa média com explicações. Por exemplo, no escalão de
despesa mensal 136-225 euros, os pais com escolaridade de nível secundário ou superior representam 72% dos inquiridos que
indicaram esse escalão, apesar de não constituírem mais do que 38.8% dos pais que declararam ter recorrido a explicações
para os seus filhos.
Verificamos também que o recurso a explicações apresenta alguma relação com a escola frequentada pelos alunos.
Das três escolas consideradas, a escola Delta é a que apresenta uma percentagem mais baixa de alunos que recorreram a
explicações (55.7%).

Quadro 4
Relação entre o recurso a explicações e a escola frequentada
Frequência de recurso a Sim, mas apenas Sim, já em diversos Não, nunca recorri
explicações durante o presente anos lectivos a explicações
Escola ano lectivo
frequentada Total
Delta 72 26.7% 78 29% 119 44.2% 269
Sigma 72 27.1% 96 36.2% 97 36.6% 265
Alfa 79 29.7% 86 32.3% 101 37.9% 266
Total 223 27.8% 260 32.5% 317 39.6% 800

Nas restantes duas escolas a percentagem de alunos que recorreram a explicações é muito próxima (entre os 62% e
os 63.3%). A distribuição dos encarregados de educação pelos diversos escalões de investimento em explicações apresenta
igualmente alguma variação em função da escola frequentada pelos alunos, particularmente no que concerne aos dois
escalões mais elevados.
Quadro 5
Relação entre o investimento em explicações e a escola frequentada
Investimento em As Inferior a 75 Entre 75 e Entre 126 e Entre 176 e Mais de
explicações explicaçõe euros/mês 125 175 225 225/mês
s foram euros/mês euros/mês euros/mês
Escola gratuitas
frequentada To
tal
Delta 11 8% 41 29.9 68 49.6 15 10.9 1 0.7 1 0.7 13
% % 7

806
Sigma 14 9.3 30 20% 78 52% 15 10 10 6.6 3 2% 15
% 0
Alfa 9 6% 22 14.7 87 58.3 13 8.7 14 9.3 4 2.6 14
% % % 9
Total 34 7.8 93 21.3 233 53.4 43 9.8 25 5.7 8 1.8 43
% % % % % % 6

Como se pode observar a partir do Quadro 5, das 25 famílias que investiram entre 176 e 225 euros/mês em
explicações, 14 (56%) tinham os seus filhos a frequentar a escola Alfa, 10 (40%) frequentavam a escola Sigma e apenas 4%
frequentavam a Delta. A situação é idêntica para o escalão de investimento “mais de 225 euros/mês”.
O recurso a explicações representa, para algumas famílias, um esforço financeiro suplementar muito significativo.
Contudo, num contexto marcado por fortes pressões performativas, algumas famílias, mesmo com magros recursos, parecem
disponíveis para alguns sacrifícios em benefício de um futuro escolar mais promissor. Na maioria dos casos, o recurso a
explicações parece resultar da iniciativa dos próprios alunos. É também significativo o número de ocorrências em que são os
pais que identificam a “necessidade”. Também registamos situações, muito mais raras, em que a “sugestão” partiu da escola.
No gráfico 7 damos conta das respostas à questão “a quem coube a iniciativa de recorrer a explicações?”.

Gráfico 7
Iniciativa do recurso a explicações
(n= 445)

300

200
288
100 118
6 33
0
Iniciativa  Pedido  sugestão da  Outra
exclusiva dos  apresentado  escola
pais pelo aluno

Dos 445 inquiridos que explicitaram a quem coube a iniciativa, 64.7% (288) indicaram que o recurso a explicações
foi o resultado de um pedido nesse sentido do aluno. Um pouco mais de ¼ dos inquiridos (26.5%) seleccionaram a opção “o
recurso a explicações foi uma iniciativa exclusivamente dos pais do aluno”. A “sugestão/conselho da escola” dá conta de
apenas 1.3% das respostas.25 33 inquiridos escolheram a opção “Outra”, tendo, na sua maioria, indicado que a iniciativa foi o
produto de uma decisão conjunta do encarregado de educação e do educando.
O recurso a explicações constitui um investimento que, como muitos outros investimentos, envolve uma certa
incerteza. A probabilidade de sucesso depende de uma grande pluralidade de factores e a sua avaliação implica considerar os
diversos objectivos potencialmente perseguidos pelo “investidor”. No quadro 10 resumimos as respostas à questão “Como
avalia, globalmente, a influência das explicações sobre o desempenho escolar do seu filho/educando?”. Para avaliar a
influência das explicações recorremos a uma pergunta fechada, de resposta múltipla, em que as proposições deveriam ser
apreciadas por referência a uma escala de tipo Likert.
Globalmente, os pais fazem uma apreciação positiva dos resultados das explicações, podendo-se concluir que, para
a generalidade dos encarregados de educação, a aposta nas explicações permitiu alcançar os resultados visados.

Quadro 6
Avaliação da influência das explicações
C C S D D Tota

25
Esta baixa proporção de inquiridos que indicou que o recurso a explicações foi uma “sugestão da escola” contrasta com o discurso de alguns dirigentes
escolares por nós entrevistados que deram a entender que a “sugestão da escola” para a necessidade de frequência de explicações seria uma prática mais comum.
Num dos casos o nosso inquirido referiu-se àquela prática como algo que seria feito noutras escolas, mas demarcando-se da mesma: “Eu não tenho atitudes do
género: no 10º ano de escolaridade chamar os pais, um a um, e dizer-lhes por ex., ‘tenha muita paciência, mas daqui a 3 anos o seu filho vai ter exames, e se o
seu filho tiver maus resultados nos exames, a imagem da escola é prejudicada, e eu até tenho aqui uma indicação de alguns explicadores conceituados na área,
que lhe podem dar explicações, de forma que o aluno tenha melhores resultados’” (E8 PCE- Ómega). Noutro caso, a referência foi mais explicita e o registo
surge em tom de denúncia: “Quando me defronto com uma turma em que a maior parte dos alunos … há uma lista em que os alunos se inscrevem para
explicações que já estão pré determinadas … que não são daquele colega que já está a dar aquela disciplina mas do outro colega do grupo e que aceitam a partir
de média de quinze para explicações, os alunos do colega são os alunos, imagine os meus colegas, os meus alunos vão ser explicandos da minha colega e vice-
versa! Ora bem isto é público, estou a dizer isto sem qualquer tipo de relutância, toda a gente sabe que é aqui na escola [próxima]. (E3 PCE- Beta).
T O T l
Contribuíram para desenvolver novos hábitos de estudo 14 275 64 28 9 524
8
Contribuíram para aumentar a auto-confiança do aluno 13 288 77 17 8 527
7
Permitiram superar as dificuldades que motivaram a procura de explicações 15 296 58 15 7 528
2
Permitiram obter os resultados necessários para entrar no curso superior que 10 268 11 27 8 521
pretende 2 6
Não se verificaram quaisquer diferenças 9 44 77 19 18 510
3 7
O excesso de trabalho acabou por ter resultados negativos 7 34 80 17 20 502
3 8
Legenda: CT- Concordo Totalmente; C- Concordo; SO- Sem opinião; D- Discordo; DT- Discordo Totalmente.
No que concerne ao desenvolvimento de hábitos de estudo, reforço da auto-estima e superação das dificuldades,
mais de 80% dos inquiridos concordam ou concordam totalmente que os objectivos foram alcançados.26 Quanto a terem
permitido obter os resultados necessários para entrar no curso superior pretendido, o “índice de concordância” é um pouco
mais baixo (71%), mas deve-se muito provavelmente ao elevado número (116) de inquiridos sem opinião, o que se
compreende pois para muitos inquiridos, no momento em que foi aplicado o questionário, ainda não era possível aferir com
rigor se os resultados obtidos pelos respectivos educandos iriam permitir aceder ao curso pretendido. Em consonância com a
apreciação globalmente positiva da influência das explicações, os “índices de concordância” relativamente às proposições
“Não se verificaram quaisquer diferenças” e “O excesso de trabalho acabou por ter resultados negativos” são relativamente
baixos (10.3% no primeiro caso e 8.1% no segundo).
Para além do investimento em explicações, algumas famílias recorrem ainda, às vezes como alternativa, outras
vezes de forma cumulativa, a outros “complementos” visando proporcionar aos filhos uma formação mais sólida e mais
diversificada. O caso da frequência de institutos de línguas estrangeiras é talvez o exemplo generalizado. Perguntámos por
isso aos nossos inquiridos se os respectivos educandos, no ano lectivo em que foi aplicado o questionário, frequentavam
algum instituto de línguas estrangeiras. Dos 811 encarregados de educação que responderam a esta questão, 110 (13.5%)
seleccionaram a opção “Sim”. Quando fazemos o cruzamento das respostas a esta questão com as respostas relativas à
questão sobre o recurso a explicações, verificamos que há uma sobreposição significativa dos dois grupos. Cerca de 60% dos
encarregados de educação que disseram que os respectivos educandos frequentavam institutos de línguas estrangeiras
informaram também ter recorrido a explicações, o que significa que às despesas suportadas com as explicações têm ainda de
acrescentar os montantes dispendidos com os institutos. No gráfico 8 apresentamos os montantes mensais dispendidos pelas
famílias cujos filhos frequentaram institutos de línguas estrangeiras.

Gráfico 8
Montante dispendido por mês com a frequência de Institutos de Línguas Estrangeiras
(n= 103)
Nº de respostas

50

49
36
18
0
Inferior a 50  Entre 50 e 75  Superior a 75 
euros/mês euros/mês euros/mês

Dos 103 inquiridos que indicaram a despesa com a frequência de institutos de línguas estrangeiras, 85 (82.5%)
disseram despender 50 ou mais euros por mês. Cerca de 35% disseram mesmo suportar um encargo mensal superior a 75
euros.
Se adicionarmos estes valores aos encargos com as explicações analisados anteriormente torna-se ainda mais
evidente que estes “suplementos” escolares não estão ao alcance de todas as famílias. Se admitirmos, como defendem os
nossos inquiridos, que eles exercem um efectivo efeito sobre o desempenho escolar, então podemos estar perante processos
de fabricação do sucesso que mascaram uma efectiva desigualdade de oportunidades. Concordamos com Costa et al. (2008b:

26
Mais uma vez registamos uma grande proximidade entre os resultados do nosso estudo e os resultados do Projecto Xplika. Nos dois casos, e apesar do estatuto
dos inquiridos ser diferente (pais no nosso caso e alunos no Projecto Xplika), mais de 80% dos inquiridos fazem uma avaliação positiva do impacto da frequência
das explicações, nomeadamente nos resultados escolares (Cf. Costa et al., 2008b: 149)
157) quando estes autores, inspirando-se em Bourdieu e Passeron, afirmam que as explicações conduzem à emergência de
“novos herdeiros” que, ao capital cultural de origem, acrescentam vantagens suplementares “comprando mais aprendizagens”
através de “estratégias privadas”. Também nós pudemos constatar que são as famílias melhor preparadas (e capacitadas) para
explorar a “gramática escolar” que mais recorrem a explicações e que estão mais aptas a circular nos (e a explorar os)
meandros da hierarquia de excelência dos próprios explicadores.27

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Educação, 20 (1), pp. 129-161.

27
Como nos relatou a responsável pelo órgão de gestão da escola Beta, não são apenas as escolas que podem ser mais ou menos selectivas, mas também os
próprios explicadores. De acordo com o relato da nossa entrevistada, certos explicadores que servem a área das escolas inseridas no nosso estudo só aceitam
explicandos com uma classificação mínima de 15 valores!

809
Diásporas académicas: estudantes angolanos no ensino superior português

Margarida Lima de Faria


Instituto de Investigação Científica Tropical
margaridalf@iict.pt

Resumo: A globalização tem sido o motor de novas formas de mobilidade. Uma das que tem vindo a adquirir maior expressão, pela
densidade de indivíduos que mobiliza e pelos ambientes de circulação que proporciona, é a das diásporas estudantis, sobretudo as que têm
por móbil a frequência do ensino superior.
Este novos terrenos diaspóricos são especialmente interessantes pela forma como se constituem como configurações sempre novas, e de certo
modo imprevisíveis. Nesta comunicação, tendo por base entrevistas a estudantes angolanos que frequentam o ensino superior português,
procurar-se-á interpretar as situações agenciais que determinaram a saída do país, por relação com as situações estruturais que definem a sua
integração em Portugal. Quanto às primeiras procurar-se-á a sua explicação nas histórias de vida e estratégias destes indivíduos e das suas
famílias, em particular nas que envolveram o investimento em capital escolar; quanto às segundas analisar-se-ão as políticas de cooperação
de Portugal na área do ensino, sobretudo as dirigidas a estudantes dos PALOP e o seu enquadramento no campo mais vasto da recepção de
estudantes estrangeiros.
Palavras-chave: mobilidade, juventude, ensino superior, cooperação, Angola, Portugal

Introdução
O desafio deste estudo, sobre estudantes angolanos inscritos no ensino superior português, foi-me proposto pela
Ana Bénard da Costa1, como forma de ampliar o campo das investigações sobre estudantes da CPLP e das políticas
portuguesas de cooperação na área do ensino superior. Não tendo grande material teorico-empírico por onde começar, saí de
imediato para o “terreno” procurando, nos percursos de vida de estudantes angolanos a frequentar o ensino superior
português, matéria de reflexão sustentada pelos modelos da sociologia, minhas ferramentas de análise.
Realizei uma série de vinte entrevistas a jovens angolanos em Lisboa e no Porto partindo de um guião
relativamente aberto, idêntico ao utilizado no estudo de estudantes moçambicanos (Costa 2008a e Costa 2008b), guião que se
foi construindo e reconstruindo à medida que as conversas com os jovens angolanos foram trazendo novos contributos. As
entrevistas incidiram sobre indivíduos maioritariamente entre os 25 e os 33 anos (8 do sexo feminino e 12 do sexo
masculino), logo tendo nascido após a independência. A amostra foi definida de forma espontânea a partir de contactos
sugeridos pelos próprios entrevistados.
Deste primeiro contacto com os percursos de vida destes vinte estudantes, destaquei cinco temas de análise:
a problemática da mobilidade, em particular da mobilidade espacial;
o confronto entre projectos individuais e condicionantes estruturais (históricas) de acção;
a construção de uma identidade diaspórica e os suportes valorativos (assim como os interditos) que lhe servem de
alicerces;
o valor atribuído ao capital escolar na construção de trajectórias familiares;
a representação de “elite” e a visão que estes jovens têm do futuro, sobretudo quanto ao retorno ao seu país, obtido
o diploma.
Nesta comunicação deixarei de parte, devido a exigências de gestão de espaço e tempo (e porque a elas já me referi
noutros contextos Faria 2008a e Faria 2008b), a problemática da importância atribuída ao capital escolar (aqui apenas
aventada aquando da discussão da construção das identidades angolanas e estudantis em Portugal), assim como a da
representação de “elite” (também referida de forma apenas superficial quando abordo a problemática do retorno).

1. A mobilidade espacial enquanto parte de um processo de individualização


Os processos da acção humana realizam-se num diálogo permanente entre as possibilidades de criação individual e
os contextos que as condicionam. A mobilidade, seja qual for o seu motivo, põe radicalmente em confronto estas duas
dimensões. Daí ser um tópico recorrente nas discussões sobre a contemporaneidade e a sua dimensão crescentemente global.
A mobilidade espacial parte de um desassossego; tem em si alguma dose de criatividade; parte de uma invenção de
sentidos que se constrói à revelia dos quadros rígidos (que definem as trajectórias das maiorias); põe em causa a estabilidade
operativa, a regularidade dos comportamentos colectivos, que durante tempos atraiu, por isso mesmo, os criadores dos
modelos teóricos de que se alimentaram, durante todos esses anos, as teorias sociais. É esse seu pendor anti-sistémico que a
torna particularmente interessante. Escolhem-se caminhos novos, fugindo aos caminhos velhos. Fazem-se esses novos
caminhos caminhando, vão-se criando paisagens humanas sempre diversas.

1
Na altura (e hoje ainda) a investigar problemáticas semelhantes relativas a estudantes moçambicanos (Costa 2008a, 2008b)

810
Porquê a importância atribuída à questão da mobilidade local no presente estudo? Para além de ser um tópico
incontornável quando falamos em diásporas estudantis, as histórias destes jovens e das suas famílias estão
surpreendentemente repletas de eventos de deslocação – que cruzam várias gerações e atravessam o período colonial e pós-
colonial – sobretudo por:
i motivos profissionais,
ii educacionais
iii razões de segurança.
Os motivos profissionais referem-se em grande parte ao período colonial e às errâncias impostas pelo
funcionalismo do Estado (professores, enfermeiros, militares);
“O meu pai era enfermeiro e, prontos ele viajava de Luanda a Malange, naquela linha, e umas vezes estava
destacado no Cuanza Norte, outras vezes em Malange outras vezes em Luanda […] Portanto, (ri) como enfermeiro onde ele
se instalasse, e não se instalava por pouco tempo eram 2, 3 anos, ele à maneira de bom africano ali constituía família, de
maneiras que acho que ele foi muito inteligente, resolveu parar de … digamos de constituir família para qualquer lado que
fosse, e então instalou-se em Luanda arranjou uma esposa definitiva, e juntou todos os filhos de maneira que nós somamos
treze ou catorze na mesma casa, acho que foi muito lindo, foi muito lindo … […] e com uma boa gestão dos rendimentos nós
tínhamos o suficiente para estudar, pôs todos os filhos na escola.” Sexo masculino – 46 anos – doutorando – entrevista 8.
Os motivos educacionais são particularmente tocantes pois há, nas narrativas destes estudantes, histórias de
deslocação no período da infância, sobretudo de zonas rurais para zonas urbanas, para prosseguir a instrução primária que a
guerra interrompeu, correspondendo a um esforço notável quer das próprias crianças quer das suas famílias.
“Fiz o ensino primário um bocado dividido entre Bologongo e Dalatando. Portanto a iniciação, a pré até à terceira
classe fiz em Dalatando, a quarta comecei em Bologongo e depois terminei em Dalatando. Foi assim porque a situação de
guerra agravou-se, e depois continuei em Dalatando até à sétima classe. Depois fui para Luanda por causa da guerra outra
vez. Dalatando tinha sido tomada pela UNITA, então fiz a oitava classe em Luanda, depois voltei para Dalatando porque a
situação em Luanda era muito difícil para nós.” Sexo masculino – 25 anos – mestrado – entrevista 7.
“Depois da morte do meu pai em Malange durante a guerra civil, outros elementos da família tentaram dar
continuidade ao seu projecto de educação dos filhos, no meu caso fui educada por uma tia materna que era simultaneamente
minha madrinha.” Sexo feminino – 45 anos – doutoramento – entrevista 1.
Os motivos ligados à segurança envolvem deslocações para fora de zonas de guerra e, como veremos mais adiante,
temporariamente, para Portugal.
“A minha avó, quando houve lá os conflitos em Angola – a minha avó da parte da mãe – veio para cá [Portugal] e
deixou a minha mãe com o meu avô lá que entretanto arranjou outra mulher. E, prontos, a minha mãe não teve assim uma
infância muito fácil e tal... teve muitas madrastas. Uma das coisas porque ela deixou de estudar é porque tinha de cuidar das
irmãs.” Sexo masculino – 23 anos – licenciatura – entrevista 18.
“Primeiro fiquei em casa de uns primos de quem eu não gostava e fiquei dois anos com eles fiz o 10º e o 11ºano fui
viver para casa da minha avó que foi uma experiência muito má.” Sexo feminino – 21 anos – licenciatura – entrevista 12.
O envio de muitos jovens rapazes, no período da guerra, para estudar no estrangeiro (nomeadamente em Portugal)
tem ainda a ver com o imperativo de evitar que fossem recrutados para o serviço militar.
Se de um lado a paz [nos poucos anos que se seguiram a 1991] incentivou também a procura de instrução escolar
dentro do país, eu diria que o reinicio e posterior alargamento das actividades bélicas, multiplicaram e reforçaram ainda mais
essa prática só que desta vez para fora do país, principalmente entre os jovens que procuravam a todo o custo sair do país
como forma de salvaguardarem as suas vidas e os estudos, longe do cenário amedrontador das constantes rusgas no dia-a-dia.
José Manuel Gomes, 2002 :3.

2. Agência e estrutura: dois conceitos base na análise das mudanças sociais


Todas as análises biográficas (sucessão de situações agenciais) devem ter em conta os contextos mais longos e
amplos de transformação das estruturas sociais (entendidas quer enquanto sistema de regras quer enquanto conjunto de
recursos disponíveis); aquelas (as situações individuais) que surgem pela conjunção de situações de um tipo substancialmente
distinto mantêm com estas (as situações estruturais) uma relação de dependência e de enquadramento. José Machado Pais
refere-se a esta inevitável ligação na sua introdução à análise das culturas juvenis, no contexto português.
Toda a tentativa de periodização de uma trajectória (ou de um feixe de trajectórias) deve ter em conta duas ordens
de acontecimentos distintos, mas relativamente dependentes: acontecimentos históricos, que pautam a evolução das estruturas
sociais, e acontecimentos individuais, que balizam os diferentes percursos constitutivos de uma trajectória biográfica (mas
cujas regularidades reflectem a história das estruturas sociais). José Machado Pais, 2003: 43.
Quando relacionamos decisões individuais que determinam decisões de mobilidade, com os contextos nos quais
estas têm lugar, estamos a referir-nos inevitavelmente a questões de agência e estrutura, conceitos teorico-filosóficos que
atravessam, de alguma forma, todas as teorias sociais.

811
As escolhas individuais, que decidem a deslocação, correspondem ao que Norbert Elias (1993) designa por
“processos de individualização” ou processos através dos quais os indivíduos criam as suas próprias biografias, adequando,
no entanto, os seus comportamentos e acções, aos ambientes sociais onde se vão, em cada situação (ou configuração2),
enquadrando. Esses “processos de individualização” que afastam os indivíduos dos seus contextos originais (sociais,
culturais, temporais e espaciais) são, para este autor, tanto mais necessários quanto maior a densidade das relações sociais e
mais amplas as cadeias de interacção em que se envolvem. Segundo Elias, estes processos iniciam-se, historicamente, com a
deslocação de indivíduos de zonas rurais para zonas urbanas. Esta dicotomia rural/urbano facilmente se converterá nesta
outra: deslocações de zonas do mundo periféricas para zonas do mundo centrais. Segundo Elias, o processo de deslocação é
acompanhado por um processo de crescente distanciação.
A sua anterior integração inevitável e perpétua na família, no grupo de parentesco, na comunidade local e outros
colectivos deste tipo, a adequação do seu comportamento, dos seus objectivos e das suas ideias à vida em tais colectivos e a
sua natural identificação com estes, é cada vez menor. Norbert Elias, 1993: 144.
As sociedades modernas definem-se deste modo, cada vez mais, pela existência de sujeitos em processo (de
autonomia) pelo alargamento das “possibilidades de individualização”, ou alargamento de possibilidades de escolha, que se
decidem a uma escala cada vez mais global; a deslocação para a prossecução de estudos, é disso exemplo paradigmático
posto que se insere no debate mais geral sobre o investimento educativo no contexto da transnacionalização (Pinto, 2007:
116) correspondendo à crescente importância atribuída ao lugar da escola e do conhecimento; à crescente importância
conferida ao campo educativo nos processos de desenvolvimento e crescimento económico dos países, e até mesmo no
diálogo que estabelecem entre si, no palco global.
O nosso pressuposto teórico é o de que as possibilidades de escolha e as decisões de deslocação de jovens para a
prossecução de estudos avançados, se encontram numa zona de confluência entre agência e estrutura sendo, por isso,
especialmente úteis na caracterização dos cenários sociais particularmente dinâmicos, que definem os acontecimentos
históricos mais recentes de Angola. A história recente da sociedade angolana, reflecte a construção desse crescente espaço de
“individualização”, num primeiro momento pós-colonial – a partir do qual se abriram novas possibilidades (ainda que
reguladas pelo Estado) para os grupos de indivíduos mais subalternizados pela sociedade colonial; e logo no período pós-
socialista ou de crescente liberalização económica (abrindo-se mais à iniciativa individual e envolvendo estratos mais amplos
da sociedade). Assim, com o atenuar da regulação estatal, nas últimas décadas da história angolana, e com a consequente
liberalização do sistema político e económico, a responsabilidade das famílias, nas escolha das trajectórias educativas dos
seus filhos, tem vindo a reforçar-se, sobrepondo-se à regulação estatal. Ou seja, num Estado que se vai configurando como
progressivamente liberal, os capitais económico e escolar dos grupos familiares, que definem a sua “possibilidade de
individualização”, vão concomitantemente adquirindo crescente importância na concretização das estratégias reprodutivas
das mesmas.

3. Situações agenciais: a escolha de Portugal como país de ensino


Ser jovem é encontrar-se numa fase da vida em que mais escolhas são possíveis. Ou seja ser jovem é, como refere
Machado Pais no seu estudo sobre culturas juvenis, vivenciar um processo, uma sequência de trajectórias biográficas que se
desenrolam entre a infância e a idade adulta (Pais, 2003).
Uma trajectória biográfica pode ser descrita como um conjunto de percursos ao nível de diferentes quadros
institucionais, de diferentes espaços sociais, eles mesmos em constante mudança. José Machado Pais, 2003: 43.
São os jovens, ou jovens adultos, que no contexto da liberalização económica melhor têm demonstrado a sua
capacidade de adaptação, a sua capacidade de circulação e de estabelecimento de ligações entre locais, através do espaço
transnacional. (Comaroff & Comaroff. 2005). Ser jovem num país africano “jovem”, recentemente pacificado e
democratizado, e em franco crescimento económico, significa ter possibilidades acrescidas de inventar um futuro para si
próprios.
Na maioria das situações, as decisões de partir ocorrem, não porque se idealize o país de destino, mas porque não se
encontram condições de realização pessoal, de individualização, no país de origem. Ainda que não estejam totalmente
definidas à partida as lógicas que determinam estas diásporas estudantis, não existindo uma causalidade fechada entre os
pontos de partida e os locais para onde os indivíduos se direccionam. Contudo, espera-se e deseja-se que se vão definindo as
lógicas da sua boa integração nas sociedades receptoras, sobretudo ao nível dos ambientes académicos.
Portugal é um dos países escolhidos. É escolhido, independentemente das políticas de cooperação na área do ensino
que são frágeis e, como veremos, pouco facilitadoras de um bom acolhimento. Entre Portugal e Angola, no período pós-
colonial (fruto das velhas ligações coloniais), mantiveram-se, contudo, como vimos, “pontes” que tiveram várias
significações em diferentes momentos recentes da história dos dois países. Para a geração dos estudantes angolanos, hoje
inscritos nas universidades portuguesas, Portugal é um país para onde se vai quando se complicam as situações de vida,
porque já se esteve lá, ou porque parte da família já lá passou uma temporada, muitos deixando algumas infra-estruturas

2
Outro conceito chave de Norbert Elias.

812
montadas. Mais do que ruptura, há na maioria das situações uma continuidade entre a história destes jovens e a dos seus
antecessores.
“Porque nós tínhamos uma casa em Luanda, mas tínhamos já uma casa a comprar cá em Portugal todos os meses
mandava-se a renda porque o meu pai é Português, o meu pai em Angola era residente estrangeiro, portanto era daqueles
portugueses que tinha conta em Portugal, mandava aquele x por mês para Portugal, sempre com aquele objectivo de um dia
voltar, mas teve de voltar mais cedo, pelos contextos sociais que o país vivia na altura, então tivemos que voltar mais cedo,
mas como tínhamos a casa as coisas proporcionaram-se… viemos, ficamos na nossa casa.” Sexo feminino – 23 anos –
entrevista 4.
Uma grande parte dos pais dos jovens entrevistados prosseguiram o ensino para além da formação básica tendo esta
situação correspondido ora a uma tradição familiar ora ao esforço de educação-para-todos do período pós-independência.3
Portugal é, deste modo, antes de mais uma “escolha” de um certo tipo social de estudantes de ambições médias, e
para quem o capital escolar herdado é importante (seja ele de longa ou recente constituição). A escolha de Portugal como país
de formação, enquadra-se numa estratégia de reprodução das famílias que procuram, por intermédio dos filhos, melhorar a
sua posição pela manutenção ou reforço desse capital.
O ensino em Portugal goza ainda, para estas famílias, de algum prestígio, relacionado com alguma familiaridade
cultural das famílias angolanas com a lógica de ensino ministrado por este país, com o qual partilharam afinidades políticas e
culturais durante um tempo longo; por outro lado, existem representações de prestígio, miméticas, associadas à formação de
protagonistas das política nacional portuguesa, do Portugal democrático, que vêm reforçar esse sentimento de familiaridade,
dando segurança aos estudantes e às famílias.
“O ISEG acho que é uma das melhores faculdades de economia que há em Portugal, tem nome no mercado, de cá
saíram muitos líderes portugueses como o Cavaco Silva, por exemplo. tem nome!” – Sexo masculino – 23 anos -
licenciatura- entrevista 11.
Os factores que mais parecem influenciar esta escolha são, deste modo, para além dos se ordem histórica, de ordem
linguística, económica, afectiva e cultural:
facilidade linguística (ainda que, como veremos, este seja também o factor de ponderação negativa dado que a
escolha também poderá incidir, pelo contrário, em países anglófonos);
existência de laços familiares, ou mesmo inserção dos estudantes no seio de parte da sua família alargada, com
benefícios económicos óbvios4;
(ii) representação do ensino em Portugal como sendo de qualidade;
Sendo este um mercado aberto, Portugal compete contudo, com outros países como é o caso da Inglaterra, dos
Estados Unidos, do Brasil, da África do Sul (entre outros)5.
Alguns definem essas opções como obedecendo a “ondas”, ou “modas”, de dimensão simultaneamente temporal e
de “classe”.
“Eu vim para cá e fui uma das primeiras estudantes de Lubango a vir para cá, da nossa escola, e este ano, só para
ter uma ideia, vieram uns cinco ou seis estudantes, de uma vez. Ou seja em princípio evoluiu a vinda para cá. Mas com a
abertura dessa nova faculdade lá, e com a África do Sul a ficar mais atractiva, falam inglês, as pessoas pensam: fazer uma
licenciatura mas falando já inglês já é uma vantagem, mais acrescida. É preferível do que vir cá para Portugal. Depois a
África do Sul é um país que é relativamente desenvolvido. Até se compararmos com Portugal até não está assim muito
distante. Até se calhar até está superior em algumas coisas, não é? Por isso é uma boa aposta e normalmente as pessoas vão
para a África do Sul”. Sexo feminino – 21 anos – Licenciatura – entrevista 12.

4. Ser jovem e angolano em universidades portuguesas: representações de si/representações dos outros (Angolanos,
PALOP, estrangeiros, estudantes)
Em Angola os projectos de vida dos jovens tiveram de se adaptar às transformações que têm levado à transição de
um sentido colectivista a um sentido mais pragmático e individualista. Do serviço do Estado caminha-se a passos largos para
o serviço de si. As socializações juvenis que já tiveram um enquadramento político, relativamente rígido, tendem hoje para
um enquadramento mais cultural e social.
A pesquisa empírica, que serviu de suporte a esta reflexão, revelou como esses jovens angolanos se apegam a
representações de “si” por relação com “outros” jovens angolanos ou por oposição a outros jovens do mundo académico
português; representações que conferem sentido ao seu projecto de vida. Esta constatação vem sublinhar a formulação de
Machado Pais ao propor que se olhe a juventude numa dupla acepção:
Como aparente unidade (quando referida a uma fase da vida) e como diversidade (quando estão em jogo diferentes
atributos sociais que fazem distinguir os jovens uns dos outros). José Machado Pais, 2003: 42.

3
Esta distinção que classifica o conjunto de jovens entrevistados já foi por mim discutida noutro artigo (Faria 2008b).

5
De acordo com a leitura dos próprios estudantes entrevistados.

813
Ser estudante universitário em Portugal corresponde para estes jovens angolanos a um investimento em capital
escolar que valorizam como “seu” e que os distingue de outros jovens angolanos, que ficaram no país, aos quais atribuem
uma ética hedonista de vida visível nos seus hábitos de lazer e reflectindo-se no seu fraco aproveitamento escolar.
“São pessoas que como o pai tem muito dinheiro acham que não vale a pena estudar, não valorizam muito os
estudos. E não tiveram aquela força de vontade de vir para cá estudar. Acho que aqueles que os pais têm assim menos posses
são os que estão mais interessados em estudar. Depois [“os outros”] acabam por ficar meio limitados porque não podem ir
muito além”. Sexo feminino – 21 anos –Licenciatura – Entrevista 12.
“As pessoas ali ... não gostam muito de estudar... é mais vida de discotecas, a educação ainda não é muito
valorizada e depois normalmente as pessoas que têm o curso normalmente não conseguem emprego... quem consegue são os
amigos do fulano ... ou sobrinhos do ... pronto alguém conhecido ... é sempre por cunhas. Mas eu achava que não é bem
assim, o meu pai também disse-nos que não é bem assim, que as pessoas quando têm os estudos conseguem chegar a algum
lado e eu então fiz mesmo força que queria vir para cá e vim para cá com 15 anos.” Sexo feminino – 23 anos - entrevista 12.
Ser jovem angolano em Portugal corresponde, deste modo, a um tempo de passagem em que a consciência de si se
constrói todos os dias. Significa enfrentar preconceitos raciais, desconfianças sobre as suas competências e, em suma,
representações coloniais e folcloristas de “África”.
“Sim, os colegas portugueses ficaram surpresos, por acaso. Eu tinha excelentes notas e eles não estavam à espera,
acho eu ... Mesmo os colegas diziam "mas tu vens de Angola e como é que consegues ter essas notas?" ... Eu estudo, é só
isso... As pessoas não fazem a mínima ideia do que é África, às vezes... Nem todas, mas muita gente da nossa idade, os
estudantes não fazem a mínima ideia do que é o outro continente, a mim perguntavam-me se eu vivia em cima das árvores, se
vivíamos com elefantes, eu dizia: "mas você não vê o telejornal?", não é? Sexo feminino – 23 anos – entrevista 12.
Significa que, por isso mesmo, se orgulhem da sua identidade.
“E parece que eu às vezes gosto… gosto de adquirir aquele sotaque, de usar aquelas expressões nossas, e pronto…é
uma questão de identificação com a nossa origem…”Sexo feminino – 23 anos – entrevista 4.
Estamos aqui perante o que Stoer e Araújo definem como a “construção activa de sentido” que permite a integração
do indivíduo numa determinada comunidade cultural (Stoer e Araújo, 1996: 89). Os contextos de socialização destes jovens,
na sua maioria entregues a si próprios e tão longe de casa, agregam indivíduos que se definem através da exibição de
condutas, valores e de auto-imposição de certos interditos. As formas de lazer que referem com maior entusiasmo são as que
pressupõem práticas de saída (ainda que reajam mal ao clima português, por quase todos referido, com desgosto, como frio e
chuvoso). Há lugares de encontro fixos: é o caso do Centro Comercial Colombo e de algumas discotecas “africanas”. Outros
espaços de convívio são os lares ou habitações, normalmente apartamentos em zonas periféricas das principais cidades, cujo
modo de utilização de-portas-abertas contribui para a sua identificação como “africanos”.
Ser estudante angolano em Portugal constitui-se, ainda, como um modo de vida que os distingue dos estudantes
portugueses a braços ainda com o lastro da adolescência e gozando de solidariedades familiares, de vizinhança e comunitárias
assim como de proximidades afectivas, territoriais de que eles carecem. A vinda para Portugal parece constituir, para estes
jovens, tanto um espaço de regulação como de emancipação. No esforço de se afirmar como diferentes, e de construírem
identidades de reconhecimento, definem os jovens portugueses como não tendo perfis éticos “à altura”, como abusando de
liberdades, como não possuindo sistemas de auto-controlo.
“Eu vejo que aqui o excesso de liberdade subverteu alguns valores! Valores morais, valores da própria ética, não é?
E que a juventude portuguesa, não é? É um facto que eu pude constatar, a juventude portuguesa… esta geração pelo menos,
não tem nada a ver, nada mesmo a ver, são…pessoas completamente liberais e que simplesmente fazem o que querem! Sem
prestar contas a ninguém! Que é uma coisa que não sucede em Angola. Eu vou colocar-lhe o simples facto do fumo, aqui eu
encontro meninos de 12 e 13 anos a fumar – em Angola isso é impossível!” Sexo masculino – 25 anos – entrevista 13.
Se os jovens constituem os seus modos de vida a partir do triângulo família-comunidade-escola (Pais, 2003) no
caso dos estudantes da diáspora, a família é um suporte fraco. É por isso sobretudo em torno da vida académica e de uma
comunidade que descobrem e constroem com base em afinidades várias (angolanas, africanas, estrangeiras), que investem as
suas sociabilidades.
De facto, para a generalidade dos jovens, os amigos de grupo constituem o espelho da sua própria identidade, um
meio através do qual fixam similitudes e diferenças em relação aos outros. José Machado Pais, 2003: 115.
Esta experiência de alteridade é também referida por Ana Bénard da Costa na análise que faz da vivência identitária
de estudantes moçambicanos em Portugal.
“Para muitos deles, esta vivência em Portugal é também uma nova vivência de si próprios, na medida em que
tomam consciência daquilo que os distingue dos muitos “outros” com os quais interagem.” (Bénard da Costa, 2008a).
Quanto aos estudantes da sua geração a estudar no estrangeiro, o grupo em relação ao qual têm maior necessidade
de se afirmar como diferentes, é o das famílias que, possuindo grandes volumes de capital económico, entendem o capital
escolar como ocupando uma posição marginal na educação dos seus filhos. Nesta comparação, para além das vantagens
simbólicas relativas à posse de diplomas, atribuem a si próprios, valores distintivos de coragem e de esforço.

5. Condições estruturais. Condições de recepção e acompanhamento destes estudantes: políticas portuguesas de


integração de estudantes da CPLP

814
Para além do seu papel histórico que assume de forma muitas vezes exageradamente instrumental usando e
abusando de designações como a de Lusofonia, com fraco valor heurístico, em que medida Portugal não será, hoje e cada vez
mais, um lugar no mundo cujos limites territoriais dificilmente controlará: um país Europeu inserido em redes que dão acesso
a outro tipo de oportunidades: redes de informação, redes cosmopolitas onde se cruzam as mais diversas experiências de
mobilidade?
Portugal situa-se numa nova posição geo-estratégica, semi-periférica, tendo, na segunda metade da década de 1990,
reencontrado, e reconfigurado, o seu posicionamento relativo no quadro Europeu comunitário, conferindo-lhe, esta situação,
novíssimas possibilidades de usufruir de novas ligações políticas, económicas e educacionais.
Em termos das suas políticas de cooperação internacional para o ensino superior, é hoje, com o tratado de Bolonha,
sobretudo um país da Europa. Uma Europa que aposta na mobilidade e equidade do ensino dos seus membros; mas, em
simultâneo, um país da CPLP no interior do qual circulam estudantes dos países de influência linguística portuguesa. No
entanto, se se atender à afluência de estudantes estrangeiros, é bem mais importante, e duradoura, a pressão para a integração
dos da CPLP, do que propriamente para a recepção dos que vêm por intermédio de programas europeus, permanecendo em
Portugal apenas um ou dois semestres. No entanto, o esforço de integração transversal, desses programas europeus (como é
por exemplo o caso do Programa Europeu Erasmus), e a facilitação burocrática no ingresso dos seus estudantes, pela abolição
das fronteiras no Espaço Schegen, apenas vem acentuar o desequilíbrio entre estes dois mundos de imigração estudantil, ao
beneficiar os primeiros (os Europeus) em detrimento dos segundos (os da CPLP).
O maior problema dos estudantes universitários angolanos é a obtenção de visto. O visto para estudar é um
processo penoso e alvo de todo o tipo de negociações. Ir ao consulado português em Luanda é uma espécie de via-sacra, que
vai prosseguindo de fila em fila, de documento em documento.
“Vim com um visto de turista de 3 meses, eles passaram-me o visto de 3 meses apesar de eu vir fazer o curso de 3
anos, o que foi um erro... lá no SEF eles complicaram um bocadinho a entrada... “como é que tu vens para um curso e tens
aqui isto tudo e vens com um visto de turista? não pode... um indivíduo com visto de turista não pode exercer qualquer
actividade ligada a este ramo. E se eu te mandar para trás, quem se vai responsabilizar por isso?”... mas pronto, fiz amizade
com um indivíduo português no avião, e ele ficou assim à porta à espera de mim... “se houver algum problema, eu assumo a
responsabilidade e tu entras na mesma”... e pronto, o homem do SEF lá foi simpático e deixou-me entrar... acontece que o
primeiro passo foi o de renovar o visto, e cometi o erro de ir ao SEF dizer que queria renovar o visto porque estava a
estudar... a senhora ficou chateada... “como é que tu vens estudar com um visto de turista? isso não é possível...”, uma
complicação muito grande, saí desmoralizado, mas a sorte é que não fui para lá depois do visto caducar, fui fazendo já
algumas declarações, fui pensando, fui pensando, e decidi que ia para lá dizer que queria renovar o visto e não é para estudar,
não é para nada, é como se estivesse a tratar de um assunto qualquer... fui para lá, a senhora pediu-me o extracto da conta
bancária, lá mostrei, e depois renovou... muito bem... caducava em Abril... fui outra vez em Abril, renovei até Junho,
qualquer coisa assim, mas não podia ficar até essa altura, então tive que solicitar a antecipação de exames a nível do mestrado
para eu sair antes do visto caducar.” Sexo masculino – 30 anos - mestrado – entrevista 3.
Tudo se torna mais fácil se o estudante possuir dupla nacionalidade. Esta é requerida com carácter de urgência caso
hajam laços sanguíneos que a possibilitem.
“Eu e o meu irmão Hugo somos portugueses, porque o pai é português e a mãe por ter casado com o pai ficou com
a nacionalidade portuguesa, mas os dois irmãos mais velhos, quando nasceram ainda eram filhos de uma angolana, a minha
mãe ainda era angolana na altura e o pai é angolano, mas cá em Portugal uma pessoa inicia o processo como residente
estrangeiro, vai recebendo o carimbo todos os anos, no cartão de residência, tem de renovar pagar um “x”…de “x” em “x”
anos a quantia que se paga…, e neste momento ele já tem um cartão de residência completo, já iniciaram o processo de
nacionalidade, porque a mãe já é portuguesa e daqui a um ano no máximo eles já são portugueses também.” Sexo feminino –
23 anos – entrevista 4.
Ainda que estar em Portugal os aproxime do centro da circulação frenética estudantil europeia, ser angolano limita-
os, confrangedoramente, ao corredor aéreo Angola-Portugal-Angola tornado ainda mais estreito dadas as limitadas viagens de
ida e volta (não se vá perder o visto). Isto apesar da globalização da economia e da especulação financeira internacionais na
qual Portugal e Angola participam, a par com as demais nações.

6. Prolongamento dos estudos e/ou retorno a Angola


A decisão (agencial) de prolongamento dos estudos em sucessivos processos de atribuição de bolsas de
estudo, e de obtenção dos vistos respectivos, não se pode dissociar do processo (estrutural) de estabilização do processo de
democratização de Angola e consequente aumento e reforço da segurança, e das perspectivas de assistência, e de conforto,
que lhe estão associados.
Todos estes vinte estudantes que vieram para Portugal (e acentuamos a escolha do país pois, como vimos, os
distingue social e politicamente dos que foram estudar por exemplo para Londres), quando postos perante a possibilidade de
regressarem a Angola, obtido o diploma, vêem o regresso com optimismo.
“A maior parte regressa. Não digo que não há pessoas que vêm e ficam, mas a maior parte regressa.” Sexo
masculino – 23 anos – Licenciatura – Entrevista 18.

815
“Essa é uma questão que temos discutido muito. Mas até aqui não encontrámos solução para esse caso. Uns
defendem que o governo deve adoptar medidas de incentivo ao regresso dos quadros, eu não defendo esse princípio. Eu
defendo o seguinte princípio: nós é que temos de nos imbuir do espírito de regressar e contribuir para o engrandecimento do
país. Devemos antes perguntar o que é que nós podemos fazer por Angola e não o que Angola poderá fazer por nós. Eu acho
que é a única maneira de podermos, …” Sexo masculino – 34 anos – licenciatura - entrevista 15.
Encontrando-se numa zona intermédia entre os grupos no topo e os que estão mais próximo da base da estrutura
social, reconhecem-se como privilegiados; esta situação de privilégio justifica o retorno dos esforços neles investidos, em
acções que tenham alcance colectivo, que beneficiem o seu país. Definem assim expectativas elevadas quanto às suas
carreiras profissionais.
“Nós somos privilegiados. Nós temos de voltar para Angola, para dar a nossa contribuição, visto que nós tivemos
esse privilégio. Temos uma espécie de responsabilidade acrescentada de, no nosso futuro, nós termos de ir para lá” – Sexo
masculino – 25 anos – licenciatura – entrevista 6
De realçar no entanto que, ainda que queiram regressar a Angola, foram incapazes de precisar quando e como,
havendo como que um tabu em relação a esta questão. Alguns admitem a possibilidade de obterem bolsas de mestrado e/ou
de doutoramento, pós-doutoramento (dependendo do grau em que estão), prolongando a sua situação de estudantes-
angolanos-em-Portugal até ao limite das suas possibilidades. Tentam recolher o melhor dos benefícios e direitos que a
experiência de prolongamento das trajectórias escolares lhes proporciona.

Conclusões finais
Portugal é uma das paragens ou passagens desse nomadismo estudantil como o foi doutros nomadismos anteriores.
Mais do que a reabilitação nostálgica de alianças do passado, é hoje sobretudo para os estudantes angolanos no ensino
superior português uma aproximação ao “centro” das decisões, da comunicação e da inovação tecnológica.
A vinda de estudantes angolanos para Portugal é o resultado de processos negociais onde se jogam interesses de
ambos os países, correspondendo a uma sequência de cronologias políticas, ou seja, constituem-se em momentos a partir dos
quais se redefinem visões do “outro” e de “si mesmo”. Uma boa articulação entre o processo de envio, ligado às estratégias
individuais das famílias, e a construção de condições favoráveis à sua recepção em condições que os integrem
verdadeiramente no espaço Europeu, afigura-se da maior importância no acompanhamento destes jovens, com ganhos óbvios
para ambos os países.
Portugal talvez esteja a receber, comparativamente com outros países, os estudantes angolanos que melhor saberão
aproveitar e enquadrar o capital escolar adquirido. O modo como foram educados inculcou-lhes um sentido de
responsabilidade e de serviço que parece distingui-los dos filhos das velhas e actuais elites.
Por via da educação superior reinventam-se aproximações e partilhas que os políticos não previram, menos
imaginaram. Em Portugal está-se próximo da Europa e dos centros da informação global. A articulação entre o processo
agencial de envio e o processo estrutural de construção de condições de recepção afigura-se assim da maior importância na
identificação das prioridades no acompanhamento político deste fenómeno.
Dado o reconhecimento desta situação, bem mais complexa do que os dados estatísticos evidenciam, esta deverá ser
a base de ponderação das políticas de cooperação. Deverão ser ainda ponderadas as situações de marginalização destes jovens
decorrentes quer dos ambientes juvenis universitários quer muitas vezes dos próprios métodos e conteúdos de ensino.
A questão que se põe é em que medida Portugal estará a saber aproveitar esta população estudantil móvel, fixando-
a e reproduzindo-a (o mesmo será dizer não se deixando ser substituído por outros destinos), em benefício da sociedade
portuguesa, do próprio sistema de ensino português e da aproximação aos países de envio como plataforma de transição e
negociação entre diferentes mundos.

Referências
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cultural. Comunicação apresentada in VI Congresso de Estudos Africanos no Mundo Ibérico: África, pontes, ligações e
intercâmbios (no prelo).
Costa, Ana Bénard (2008b). Emigração de quadros, formação superior e desenvolvimento: o caso de Moçambique, in Revista
Pro-Posições. FE-UNICAMP (no prelo).
Faria, Margarida Lima (2008a). Formação Avançada de Estudantes Angolanos em Portugal: Problemáticas de Imigração e
Questões de Cooperação in Actas do VI Congresso de Estudos Africanos no Mundo Ibérico: África, pontes, ligações e
intercâmbios. Las Palmas, Gran Canraia, 7 a 9 de Maio de 2008 (no prelo).
Faria, Margarida Lima (2008b). Estudantes angolanos em Portugal: estratégias políticas e trajectórias pessoais. In Actas1ª
Conferência Internacional EIDAO'08: Angola: Ensino, Investigação e Desenvolvimento. Universidade do Minho, 15 a 17 de
Maio de 2008. (no prelo)
Gomes, José Manuel S. 2002. A Trajectória de estudantes universitários angolanos da Universidade Federal de Minas Gerais.

816
Elias, N. (1993). A Sociedade dos Indivíduos. Publicações D. Quixote. Lisboa.
Pais, J.M. (1993; 2003). Culturas Juvenis. Imprensa Nacional Casa da Moeda. Lisboa.
Pinto, J. M. (2007). Indagação Científica, Aprendizagens Escolares, Reflexividade Social. Edições Afrontamento. Porto.
Stoer, R. S. & Araújo, H. C. (1996). Quadros estruturais e a construção de “mapas de sentido” na semiperiferia. in José
Machado Pais & Lynne Chisholn (org,) Actas do Congresso Internacional Growing up between centre and periphery.
Instituto de Ciências Sócias. Lisboa.

Fora de lugar: imigração internacional, educação e mobilidade

Neusa Maria Mendes de Gusmão


UNICAMP – Brasil
neusagusmao@uol.com.br

Resumo: Este trabalho trata de uma forma especial de migração, a migração temporária de estudantes africanos dos PALOP que buscam sua
formação no Brasil e, nesse sentido, inscreve seu tema no âmbito da chamada Circulação Internacional1. A CI se impõem como recurso de
análise e como desafio. Recurso, posto que os estudos relativos à CI, via de regra, privilegiam os deslocamentos de indivíduos pertencentes
às elites locais e nacionais em busca de cumprir os desígnios de formação, qualificação e, principalmente, consolidação de um processo de
ascensão social. Assim, a formação de um ou mais membros de um grupo familiar e social é parte do processo de aquisição e fortalecimento
de um capital cultural (Bourdieu), capaz de colocá-los, a todos, numa escala superior de pertença social e de status. Estudos dessa natureza,
em maioria, privilegiam grupos cuja realidade é típica dos hábitos das classes médias abastadas e das elites dos chamados países em
desenvolvimento, entre estes, o Brasil. O desafio do presente estudo está em que se propõe a entender a CI de estudantes africanos que
buscam por qualificação de nível superior no Brasil, como realidade histórica e política da conformação de novos Estados nacionais em
África. A proposta, portanto, não olha, simplesmente, os estudantes em solo brasileiro, mas leva em conta a existência de relações
supranacionais típicas de um mundo globalizado no interior de um jogo de relações que lhe é próprio. Assim, a CI com finalidade de estudo
se faz no interior de um campo de poder que envolve a possibilidade da ascensão social e política para estudantes, famílias e grupos sociais
diversos que ordenam por mecanismos singulares um campo de tensão entre sujeitos migrantes quando fora de seu lugar.
O pressuposto assumido é de que a questão dos estudantes africanos no Brasil não é um movimento de simples deslocamento de indivíduos
entre um país de origem e um país de acolhimento. Trata-se de um contexto complexo em que os indivíduos que migram dentro desse
processo de migração especial (Garcia, 2004) cumprem metas postas por seus países em termos do próprio desenvolvimento. No entanto,
para os sujeitos envolvidos nos processos migratórios, tais metas podem ou não serem conscientes, dado que a migração ocorre, na maioria
das vezes, num jogo aparente de individualidade, de escolha e projeto de âmbito restrito aos indivíduos e suas famílias. Como isso se realiza?
Por que meios e quais os possíveis significados desse processo nas várias dimensões envolvidas?

Percursos e trajetórias entre projetos


Diferentes percursos conduzem a vinda de africanos ao Brasil e seu ingresso nas IES2 brasileiras, nesse sentido, a
pesquisa realizada em Campinas, estado de São Paulo e em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, revelou entre estudantes dos
PALOP, a presença de imigrantes e refugiados que se fazem estudantes e estudantes que migram com a finalidade de estudar
no Brasil. Dois grupos de estudantes, ambos assemelhados, porém diferentes.
O debate se estrutura a partir da região de Campinas, no estado de São Paulo, em razão de estar nessa região, uma
das maiores universidades públicas brasileiras que recebe estudantes estrangeiros, entre eles, os africanos. Trata-se da
UNICAMP, cujo contingente estudantil de origem africana contempla a realidade do imigrante e refugiado que se faz
estudante e do estudante propriamente dito, que mediante políticas do governo brasileiro (PEC-G e PEC-PG)3 nela ingressam,
em diferentes cursos e níveis, da graduação à pós-graduação, em busca de qualificação de nível superior.
Há em Campinas, um contingente de estudantes dos PALOP que estudam na UNICAMP, muitos dos quais residem
na moradia estudantil da universidade ou em repúblicas de estudante e que aqui estão mediante acordos bilaterais de seus
países com o governo brasileiro para qualificarem-se em programas de graduação ou de pós-graduação.
O contexto porto alegrense situa-se em área de realidade histórica, social e política diversa da de Campinas e do
estado de São Paulo. Com isso, apresenta proximidades e distâncias da realidade campineira. Outros paralelos possíveis se
constroem com relação a outras áreas urbanas no Brasil que também recebem estudantes africanos de língua portuguesa
(Belo Horizonte; Florianópolis; Fortaleza, Rio de Janeiro, etc.). A discussão contempla, ainda, pesquisadores brasileiros que
tratam academicamente em artigos, dissertações e teses, da presença de imigrantes africanos dos PALOP no Brasil com a
finalidade de cruzar diferentes olhares e construir um mapeamento das formas de representação e vivência de africanos de
língua portuguesa no contexto nacional, a partir do mundo acadêmico. Nesse sentido, considera, também, a produção

1
Trata-se de processos de Circulação Internacional (CI) que podem ou não estar atrelado a acordos bilaterais de cooperação entre países e, portanto, dizem
respeito a processos relativos a configuração dos estados nacionais emergentes em África.
2
IES – Instituto de Ensino Superior. Envolve instituições públicas e privadas. Na pesquisa em andamento estão presentes, a Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), São Paulo; a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Instituto Porto Alegre/Centro Metodista de Ensino (IPA), Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) todas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul
3
PEC-G: Programa de Estudantes – Convênio de Graduação/PEC-PG: Programa de Estudantes –Convênio de Pós-Graduação

817
acadêmica de estudantes africanos dos PALOP em trabalhos e monografias de conclusão de curso, mestrados e doutorados
que assumem por tema a vivência própria e de conterrâneos no interior da universidade e da realidade brasileira. São olhares
que se complementam, contradizem e conflitam evidenciando uma realidade tecida em trama.
Inúmeros acordos de cooperação e programas de desenvolvimento têm sido implementados pelo Brasil
com a África, entre os quais se destacam o PEC-G e o PEC-PG – este último com dotação total de bolsas do CNPq e da
CAPES nas seleções feitas em 2006 e 20074. Em particular, serão os países dos PALOP – Angola, Cabo Verde, Guiné,
Moçambique e São Tomé e Príncipe – os maiores beneficiados pelos Acordos de Cooperação assinados entre Brasil e os
países africanos, tanto por parte das instâncias federais do governo brasileiro, quanto por Acordos Institucionais firmados
diretamente com as IES nacionais ou por meio de organizações religiosas e ONGs. Aqui, os estudantes dos PALOP em
Campinas e na UNICAMP são em maioria, do Programa PEC-G do governo brasileiro. O mesmo não acontece com os
estudantes de Porto Alegre, já que são bastante efetivos nessa região os acordos diretos com as IES, como são os casos da
UFRGS, do IPA e da ULBRA, em Porto Alegre.

Africanos dos PALOP no Brasil: olhares acadêmicos5


Dados empíricos resultantes do campo (Campinas e Porto Alegre) e a literatura acadêmica considerada revelam a
existência de aspectos semelhantes vividos pelos indivíduos, independentes de suas origens ou da localidade de acolhida, seja
esta Campinas ou Porto Alegre. Em todas as falas e nas escritas dos estudantes africanos nas IES brasileiras, evidencia-se um
desconhecimento profundo da realidade brasileira e certa idealização forjada a partir de reportagens e novelas brasileiras em
África e que antecede a decisão de partir e a escolha do Brasil como destino. Esse desconhecimento acarreta uma série de
dificuldades quando aqui chegam. Os impactos no momento de chegada: a ausência de um suporte ou apoio oficial de
acolhida, os empecilhos burocráticos e administrativos em torno de definição e acesso à moradia, saúde, regularização de
documentos necessários ao estrangeiro e também ao estudante na universidade. Todos esses pontos, entre outros, constituem
desafios cujo enfrentamento é muitas vezes dependente de apoio de conterrâneos ou de outros estudantes africanos, não
necessariamente de mesma origem nacional. Contudo, de maior impacto e presente em todas as falas sem distinção, bem
como registrado em todos os trabalhos acadêmicos produzidos pelos estudantes africanos a respeito de sua experiência “fora
de lugar”, ou seja, no Brasil, está a questão do racismo. O racismo é um fato desconhecido em África e se coloca para esses
sujeitos na situação de diáspora. Confirma-se, assim, a natureza das relações sociais na sociedade brasileira que ao envolver a
questão da cor, resulta também num problema de ordem racial. No caso de uma sociedade altamente estratificada e
competitiva como é a sociedade brasileira, o campo étnico e racial gera tensões que antes de qualquer coisa, considera a
cultura do estudante africano, suas condutas e valores como diferentes. Ao mesmo tempo, os discrimina em função de sua
fenotipia e comportamentos e os olha como dotados de qualidades que os opõem aos negros brasileiros, operando uma
distinção e também certo exotismo e folclorização de seus modos de ser e de viver.
O que é possível afirmar é que a imigração desses estudantes faz parte de um projeto nacional de desenvolvimento
em seus respectivos países de origem. O que aprendem e o que esquecem ao permanecer longo tempo “fora de lugar” é hoje
o desafio para as autoridades dos países de origem. É desafio, também, para familiares, parentes e amigos, que muitas vezes,
sacrificaram-se para dar-lhes o apoio de ir em busca de seus estudos e assim, quando formados retornarem aos seus e à nação
de origem. Por seus novos modos, pela forma de vestir-se, comportar-se, ele próprio já não mais se reconhece plenamente no
grupo de origem, ao mesmo tempo, se estranham naquele mundo. São, também, estranhados pelos que ficaram naquele
mundo. Vêem-se a si mesmos, como sujeitos modernos, globalizados e portadores de perspectivas, valores de outra ordem
que se contrapõem aos valores, costumes próprios dos contextos mais tradicionais. O que percebem é que já não se é mais
inteiramente dali, mas também sabem que não são das terras onde estão em busca de novos rumos por meio dos estudos e de
qualificação profissional. Nestas são, sobretudo, estrangeiros e depois, “africanos” e negros. Na África o que são: angolanos,
moçambicanos, caboverdianos, guineenses, sãotomenses. São balantas, fulas, papel, quimbundos, ovibundos, crioulos,
mestiços sem referência étnica e, assim por diante.
O que esses estudantes vivem no processo de deslocamento cria uma visibilidade/invisibilidade, denota uma
presença e uma não presença resultantes da condição diaspórica que os coloca “fora de lugar”. Contraditoriamente, ao
qualificarem-se no sentido de contribuir na construção “do lugar” de suas nações emergentes, de um novo Estado-nação que
os necessita comprometidos, como futuro de seus quadros dirigentes e gestores, são eles, o “homem-novo”, mas qual
“homem-novo”? O que ambicionaram seus pais e parentes na ótica da libertação movida pelo ideário socialista e que norteou
a busca pela educação fora da África, logo após as independências? Um “homem-novo” transnacionalizado e idealizado pelo
capitalismo africano que agora, nomeadamente, constitui o ideário dos PALOP e, talvez, seu próprio ideário pessoal?6

Considerações Finais

4
O MEC em 2006 disponibilizou ainda, 100 bolsas via Programa Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior (PROMISES) entre estudantes do PEC-G.
5
Apenas os olhares dos estudantes africanos são aqui considerados em razão da delimitação do trabalho com vistas ao debate no interior do “Colóquio
Internacional Saber e Poder” a ser realizado em outubro de 2008 na UNICAMP/SP.
6
Tais questões exigem uma investigação mais aprofundada e que se espera possa ser desenvolvida futuramente.

818
Ao focalizar o processo de internacionalização do sistema nacional de ensino, no caso brasileiro, este trabalho
pretendeu contribuir para: a reflexão do campo político da formação de nível superior que ao envolver negros estrangeiros –
africanos que estudam nas IES brasileiras – trazem à tona as relações historicamente constituídas entre África e Brasil; a
realidade educacional dos dois lados do Atlântico e a construção contemporânea das chamadas “elites nacionais” em África.
Em jogo, princípios, valores presentes nas culturas brasileira e africanas e os interesses postos pela cooperação internacional
a partir do campo educacional. Por abordar a realidade no campo educacional, a Antropologia da Educação7 se apresentou
como instrumento valioso na abordagem e análise do universo aqui considerado. A postura que se pretendeu nesta
investigação foi de natureza dialógica e tomou por base diversos autores; diferentes perspectivas e áreas de conhecimento,
tais como a sociologia, sociologia do cotidiano, antropologia, política, relações internacionais, história.
O palco e o cenário estabelecidos mostram a complexidade do tema em tela e a ela se acrescenta a absoluta
contemporaneidade do fenômeno migratório ao final do século XX e sua dinamicidade implica em ausência de estudos
sólidos e suficientes a que recorrer. Nesse sentido, os sujeitos imigrados, refugiados ou não, todos, estudantes originários dos
PALOP são a fonte mais consistente de apreensão do fenômeno, o que significa que, aqui, se privilegiou o recorte do
universo pelo caminho das práticas e representações sociais de seus atores.
A relevância do campo educacional no universo das relações de poder estabelecidas nacional e internacionalmente
faz da educação um meio instrumental de manutenção e reprodução do status quo ou um instrumento de libertação e
autonomia para os países em consolidação enquanto Estados nacionais. O quanto de um ou de outro desses processos se
realizam nas trajetórias daqueles que deixam a África para estudar no Brasil, é uma indagação que permanece atrelada à
história contemporânea dos Estados-nação africanos na luta para consolidarem-se como nações modernas e transnacionais.
Sem dúvida, acordos bilaterais voltados para a qualificação de quadros a partir da formação em nível superior no Brasil
contribuem de modo fundamental no jogo entre nações e no papel que os PALOP vêm assumindo nas relações Sul-Sul.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA
ALMEIDA, A. M. F. et all. (2004). Circulação Internacional e Formação Intelectual das Elites Brasileiras. Campinas;Editora
UNICAMP.
CASTRO, M. G. (coord.). (2001). Migrações internacionais: contribuições para políticas, Brasil 2000. Brasília;CNPD.
DANTAS, I. L. (2002). Entre o projeto de vida e o projeto cultural: o lugar do estudante angolano. Dissertação de mestrado.
Departamento de História, PUC- RJ. Rio de Janeiro.
GARCIA, A. (2004). O exílio político dos estudantes brasileiros e a criação das universidades na África (1964-1985) In:
Almeida, A. M. F. et all. Circulação Internacional e Formação Intelectual das Elites Brasileiras. Campinas;Editora
UNICAMP. (pp. 243-256)
GUSMÃO, N. M. M. de. (2004). Os Filhos da África em Portugal. Antropologia, multiculturalidade e educação. Lisboa:ICS.
_____. Trajetos identitários e negritude: jovens africanos no Brasil e em Portugal. IMPULSO, Revista de Ciências Sociais e
Humanas. Vol. 17, nº 43, maio/agosto 2006. Piracicaba,SP:UNIMEP, 45-57
RIBEIRO, G. L. (2007). Poder, redes e ideologia no campo do desenvolvimento. In: SILVA, K.C.; SIMIÃO, D. S. Timor-
Leste por trás do palco. Cooperação internacional e a dialética da formação do Estado. Belo Horizonte:UFMG. (pp.275-299)
TOLENTINO, A. C. (2006). Universidade e Transformação Social nos Pequenos estados em desenvolvimento: o caso de
Cabo Verde. Doutorado em Ciências da Educação. Tese de Doutorado em Ciências da Educação.Universidade de Lisboa.

7
Assumir um campo em constituição como a Antropologia da Educação no Brasil resulta de minhas atividades acadêmicas na FE/UNICAMP, e considera a
contribuição singular da Antropologia com respeito à diáspora africana no mundo e a violência de uma ordem social excludente que opera no campo educacional.

819
Educação em São Tomé e Príncipe: qualificação e o potencial de geração de
rendimentos

Manuela Cardoso
CEA-ISCTE
manela.cardoso@netcabo.pt

Resumo: São Tomé e Príncipe tem-se defrontado com sucessivos entraves ao seu desenvolvimento, apesar da elevada ajuda internacional.
Se na época colonial o sistema económico se organizava em torno das “roças” que se assumiam também como pólos da vida social, no
período subsequente e também na actualidade o decréscimo do rendimento não permitiu a manutenção do fornecimento de muitos serviços,
incluindo uma educação com alguma qualidade. As infra-estruturas encontram-se degradadas, a formação de professores é muito baixa e as
taxas de escolaridade e alfabetização têm tido quebras sucessivas. As reformas introduzidas em 2003 pela nova Lei de Bases do Sistema
Educativo não foram suficientes para motivar e atrair para o sistema mais jovens. O aproveitamento endógeno das novas dinâmicas ligadas à
integração do país nas rotas de turismo mundial, à recente valorização do cacau ou à sua localização estratégica exigirão maiores níveis
educacionais e uma formação mais capacitante.

São Tomé e Príncipe tem-se defrontado com sucessivos entraves ao seu desenvolvimento, apesar da elevada ajuda
internacional, das suas riquezas agrícolas e petrolíferas e do seu potencial turístico.
Se na época colonial o sistema económico se organizava em torno das roças que se assumiam também como
importantes pólos da vida social, ao fornecerem serviços sociais entre os quais os educacionais, no período subsequente à
nacionalização, o decréscimo do rendimento das novas empresas agrícolas não permitiu a manutenção do fornecimento de
muitos deles. Embora, em algumas destas unidades produtivas continuem a ser disponibilizados serviços de ensino, as infra-
estruturas estão degradadas, a formação de professores é muito baixa e as taxas de escolaridade e alfabetização têm tido
quebras sucessivas.
As reformas introduzidas pela nova Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº2/2003, não foram suficientes para
motivar e atrair para o sistema mais jovens, apesar da expansão da escolaridade obrigatória para 6 anos e da inclusão da 12º
classe na estrutura do sistema. A aquisição de competências e o acesso à 12ª classe mantinham-se limitados. O ensino
profissional continua muito escasso.

Q.1. Estrutura do sistema de ensino


(Lei nº2/2003)
São Tomé e Príncipe
1º Ciclo 1ª – 4ª Classes
Ensino básico 2º Ciclo 5ª – 6ª Classes
1º Ciclo 7ª-9ª Classes
Ensino secundário 2º Ciclo 10ª – 12ª Classes
Politécnico
Ensino superior Universitário

Apesar da recuperação havida desde a implementação desta lei, a taxa de escolaridade líquida ainda era baixa.

G.1. Taxa de escolaridade primária


São Tomé e Príncipe

Taxa de escolaridade primária líquida


São Tomé e Príncipe
96,4
100 91,1 85,2
96,3 79,8 87,7
Taxa

93,6 77,6
80 85,8
82,2 79,4
68,3 69,3
60

Taxa escolar.primária líquida

Fontes: M Educação, Juventude e Cultura (2001), São Tomé e Príncipe, p.16;


Leal (2003), p. 1; * Salvaterra (2002), p.8; Governo de STP (2006), p.10.

820
Os efectivos escolares dos primeiros 4 anos de ensino não conseguiram acompanhar o crescimento populacional:
crescimento de apenas 0,34% entre 2002/03 e 2006/07 quando a população crescia em média 1,6% entre 1996 e 2007,
segundo dados do INE-STP.

Q.2. Efectivos escolares


São Tomé e Príncipe

Ensino Primário Ensino Secundário Ensino Pré- Total de alunos


Anos Básico universitário 5ª-12ª Classes
(1ª-4ª Classes) (5ª-8ª Classes) (9ª-11ªClasses)
1990/91 20640 Nd Nd
1995/96 21010 10277 1764 12 041
1996/97 20502 9167 1925 11 092
1997/98 20287 9625 2189 11 804
1998/99 20608 8886 2258 11 144
1999/00 20258 8405 2267 10 672
2002/03 22491 12318* 1254** 13 572
2004/05 22 721 14 424* 1 335** 15 759
2005/06 22376 15422* 1429** 16 851
2006/07 22800 16115* 1382** 17 497
Fonte: INE-STP
Notas: * Integra também a 9ª classe; ** Integra apenas a 10ª e 11ª classes.

É nos níveis pós-primários que os dados quantitativos apontam para o aumento mais notório de alunos a partir de
2002/03 a uma taxa média de crescimento anual bem superior ao aumento populacional (3,5% entre 2004 e 2006 e 1,8%
entre 2005 e 2006). Houve, no entanto, mudança de agregação estatística (inclusão da 9ª classe até 2002/03 no ensino pré-
universitário, agora secundário, e a partir desta data no básico) que não permite precisar se terá sido apenas o novo ciclo
obrigatório (5ª-6ª classes) a captar mais alunos ou os níveis subsequentes. A maior acessibilidade das infra-estruturas
educativas foi, de acordo com um responsável do ministério da tutela, um factor que condicionou positivamente, mas não foi
suficiente.
Fazendo uma comparação entre a evolução das taxas brutas e líquidas de escolaridade1 da 5ª-9ª classes, visíveis nos
quadros seguintes, embora em anos não perfeitamente coincidentes, conclui-se que tal disparidade poderá resultar da
inscrição de muitos alunos com idades superiores às que corresponderiam aos níveis de escolaridade, mesmo assim ficando à
margem destes anos de escolaridade uma elevada percentagem de crianças.

Q.3. Evolução das taxas de escolaridade brutas


São Tomé e Príncipe

Taxas 1991/92 1996/97 1999/2000 2005/06


Taxa de escolaridade
secundária básica bruta (5ª-8ª 59% 56% 53% 75,1
Classes)
Fontes: Ministério da Educação, Juventude e Cultura (2001); Mingat (2001);
Nota: * !995/96; **Governo de São Tomé e Príncipe (2006), Mesa Redonda da Educação e Formação, pág. 23;
Ministério Educação - STP (2003), dados de 2003 .

Q.4. Evolução das taxas de escolaridade líquidas


São Tomé e Príncipe
Fontes:
Taxas 2001/02 2002/03 2005/06
Taxa de escolaridade líquida
secundária (5ª-8ªClasses) 59,8% 49,5% 32%
Ministério da Educação, Juventude e Cultura (2003); PNUD, RDH (2007-08).

1
Taxa bruta de escolaridade por nível de ensino refere-se ao total dos matriculados, independentemente da sua idade em relação ao grupo etário desse nível;
Taxa líquida de escolaridade.representa a percentagem de alunos matriculados num determinado nível de ensino, com idade correspondente à idade teórica que
deveriam ter para a frequência desse nível, segundo o PNUD (2003).

821
Por outro lado, tem-se verificado um decréscimo da taxa de admissão à medida que a escolaridade aumenta. Em
2002/2003 a taxa bruta de admissão na 5ª classe era de 75% na 8ª classe só era de 26,4%2. E em 2005 só 76% das crianças
atingiam a 5ª classe3.

Q.5. Evolução das taxas brutas de admissão


São Tomé e Príncipe

Taxas 2001/02 2002/03


Taxa bruta de admissão na 5ª classe 89,4% 74,6%
Taxa bruta de admissão na 6ª classe 83,9% 57,0
Taxa bruta de admissão na 7ª classe 64,3% 43,5%
Taxa bruta de admissão na 8ª classe Nd 26,4%

Fontes: Ministério da Educação, Juventude e Cultura (2003).

Este abandono escolar entre a 5ª e a 9ª classe é também factor condicionador da reduzida população escolar no
primeiro ciclo do ensino secundário que agora vai da 10ª à 12ª classes. Há uma perda neste ciclo de 43% dos estudantes,
segundo dados do Governo4, sugerindo os números que poderá mesmo ser superior.
Por outro lado, no ensino secundário (10ª e 11ª classes, não incluindo ainda a 12ª), em 2005/06, num total de 1429
alunos apenas 429 estavam na idade ideal para a frequência deste nível, significando uma elevada taxa de repetência já em
ciclos anteriores.
Em termos privados existia uma escola destinada a todos os níveis de ensino, incluindo a 10ª, 11ª e 12ª classes, o
Instituto Diocesano de Formação, ligada à igreja católica, funcionando segundo os curricula portugueses e da
responsabilidade do Ministério da Educação de Portugal, mas acessível apenas a uma camada reduzida da população mais
favorecida (270 alunos entre a 5ª e a 12ª classes em 2003/04)5. Não dispõe, no entanto, de ensino profissional.
Aqueles dados relativos ao abandono e repetência não podem dissociar-se da falta de qualificação de professores.
A percentagem de professores do ensino básico sem formação tem vindo a aumentar, condicionando o sucesso e a
qualidade do ensino. Em 2005/2006, 62%6 dos professores do ensino primário (1ª-4ª classes) continuavam a não ter
formação, percentagem que tinha subido nos últimos anos.
O reduzido número de horas lectivas no ensino primário (3/4 horas diárias, dependendo do desdobramento ou do
tridesdobramento) também não permite a conclusão deste ciclo com as suficientes competências, condicionando o sucesso do
seguinte.

Q.7. Professores do ensino primário sem formação


São Tomé e Príncipe

1999/00 2000/2001 2004/05 2005/06


51% 54% 61% 62%

Fontes: Mingat (2001), p. 13; MEJC (2001), Pinto (2005), INE-STP (2006).

Esta percentagem mantinha-se na escolaridade entre a 5ª e 8ª classes, ciclo em que 68,4% dos professores não tinha
formação em 2005/067.
O encerramento da escola de formação de professores para este nível de ensino em 1990, a ausência de qualquer
estrutura destinada a este fim durante toda a década de 90, a falta de motivação para a profissão de pessoas qualificadas em
resultado dos baixíssimos salário são factores justificativos desta situação. A criação em 2000 do EFOPE/Escola de
Formação de Professores e Educadores, o facto do seu funcionamento ter ficado circunscrito à formação em exercício, uma
formação à distância com módulos de apoio no âmbito do programa PROFORMAÇÃO, implementado pelo governo
brasileiro nos primeiros anos do seu funcionamento mas entretanto suspenso, não permitia qualquer formação de base aos
novos docentes. Colocam-se, portanto duas questões: qual terá sido a escola responsável pela formação de 815 professores do
ensino primário (280 em 2002/03, 270 em 2003/04 e 264 em 2004/05) e mais 130 para o 5ª-8ª classes, segundo números

2
Ministério da Educação, Cultura , Juventude e Desporto-STP (2003).
3
PNUD (2007), RDH 2007-2008.
4
Governo de São Tomé e Príncipe (2006), Mesa Redonda da Educação e Formação, pág. 21.
5
CARDOSO, Manuela (2007), p.364
6
INE-STP (2006), São Tomé e Príncipe em Números 2006.
7
INE-STP (2006), São Tomé e Príncipe em Números 2006.

822
indicados no documento National Poverty Reduction Strategy Implementation Report8? Se efectivamente os números estão
correctos como não se traduziram na redução da percentagem de docentes sem formação?
Estes factores (formação de professores e reduzido nº de horas lectivas) associados à falta de perspectivas de
emprego por parte de jovens que saem do ensino formal que, maioritariamente não é profissional, e não conseguem uma
bolsa para continuar estudos no estrangeiro justificam a pouca frequência do ensino secundário.
A reversão deste processo terá que se fazer através da via profissionalizante que privilegie a formação técnica
voltada para os novos desafios do país.
E a implementação do ensino profissionalmente qualificante com 12º ano no Liceu Nacional em 2006, nas áreas de
Gestão e Administração e Humanidades, esta última incluindo uma vertente de turismo será mais um incentivo à frequência
dos ciclos pós-primários e poderá perspectivar maior facilidade de emprego. Este nível de ensino tem sido ministrado por
professores cooperantes portugueses com o apoio da cooperação portuguesa e da Fundação Calouste Gulbenkian. Em Julho
de 2008 concluíram a formação os primeiros inscritos, mas debatiam-se com dificuldades de colocação para realizar o
estágio, parte integrante do ciclo.
Esta poderá ser uma via para profissionalizar jovens em áreas tão importantes como a actividade turística, num país
que definiu esta área como determinante ao seu desenvolvimento, havendo também estudos empíricos que a apontam como
uma via para desenvolvimento de São Tomé e Príncipe9. Poderá ser também uma via para evitar a “fuga dos cérebros” que
tanto tem caracterizado este país quando envia estudantes para o estrangeiro. Estudos recentes, ainda não publicados, indicam
mesmo que os estudantes ou já diplomados que vieram para Portugal não têm intenções de regressar a curto prazo ao seu
país.
Outra escola de ensino profissional, o Centro Politécnico, criado em 1987 com apoio da cooperação francesa,
admitia um número reduzido de alunos. Era até à implementação do ensino profissionalmente qualificante o único
estabelecimento de ensino profissional, sob tutela do Ministério da Educação. Até 2001/2002 ministrou cursos básicos
(equivalentes à 9ª Classe, mas com a categoria de Técnico de Formação Geral) de Construção Civil, Electricidade, Mecânica
– Auto e Mecânica – Geral, num total de 400 jovens. A partir de 2003 o ingresso passou a ser com 9ª classe, conferindo a
qualificação profissional de Técnico Médio ao fim de 3 anos, em áreas similares.
O Centro de Formação Profissional de Budo-Budo é mais uma instituição que, embora não integrada no sistema
formal de ensino, disponibiliza cursos de formação profissional em várias áreas. Foi inaugurado em 2003, está ligado ao
Instituto de Emprego e Formação Profissional tendo sido as suas instalações financiadas pela cooperação portuguesa ao
abrigo do Programa Regional de Educação para os Palop. Os dados de que disponho não me permitem determinar a
qualidade da formação deste centro.
A Escola de Enfermagem, é outra instituição de ensino profissional de carácter médio, criada em 1983, para formar
auxiliares de enfermagem e enfermeiros.
Ao nível do ensino Politécnico e Superior existem 3 instituições: O Instituto Superior Politécnico, o Instituto
Universitário de Contabilidade, Administração e Informática e a Universidade Lusíada, criada em 2006/07. Sendo estas duas
últimas escolas privadas, a oferta pública de ensino profissional deste nível continua escasso.
Apesar de elevada ajuda internacional direccionada para o sector São Tomé e Príncipe ainda apresenta défices de
escolaridade e de qualificação. As novas dinâmicas ligadas à descoberta do petróleo, à integração do país nas rotas de turismo
mundial ou mesmo à maior valorização e visibilidade internacional que o cacau vem tendo nos anos mais recentes, exigirão
maiores níveis educacionais e uma formação mais qualificante. O reconhecimento endógeno da mais-valia da aprendizagem,
por governos e população, terá reflexos numa maior empregabilidade e nos níveis de rendimentos.

Bibliografia
Cardoso (2005), A importância da criação de infra-estruturas e da formação de recursos humanos no desenvolvimento: os
casos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, Lisboa, ISCTE,.
Cardoso (2007), Manuela, Educação e infra-estruturas como factores de desenvolvimento,Porto, Edições Afrontamento.
INE-STP (2006), São Tomé em Números, RDSTP.
INE-STP (2005), São Tomé em Números, RDSTP
Martelo (2005), A cooperação Portugal-São Tomé e Príncipe, Lisboa, ISCTE.

8
Ministério do Planeamento e Finanças (2006), STP, p.15.
9
Brito, Brígida (2004), Turismo Sustentável: uma via para o desenvolvimento de STP.

823
Exclusão / Inserção Social nas pesquisas em Educação e Infância no Brasil

Eloisa Acires Candal Rocha


Universidade Federal de Santa Catarina / NUPEIN
eloisa@ced.ufsc.br

Resumo: Este trabalho busca analisar como as pesquisas sobre educação e infância vêm articulando conhecimentos para compreender as
diferentes dimensões envolvidas nos processos educativos na infância, e de que forma tomam como preocupação a exclusão/ inserção social
das crianças, de forma a ter como conseqüência a própria inserção social da pesquisa.
No sentido de refletir sobre esta questão, recorreremos aos estudos que temos realizado sobre as pesquisas brasileiras nesta área e seus
respectivos levantamentos da produção acadêmica em âmbito nacional e regional.
A pertinência da reflexão sobre a inserção social, nas duas direções: na pesquisa e da pesquisa, exige associá-la à direção do compromisso
político que lhe orienta. Remete-nos ao seu sentido antagônico – pesquisa e exclusão social? Suscita-nos um vínculo imediato com o
compromisso social e político da atividade privilegiada do cientista e da ação no campo da investigação educativa, porém nos coloca em
posição de atenção a uma adesão inconteste de sua significação. Esta tomada de posição e o compromisso político constituíram a origem e o
próprio desenvolvimento da pesquisas em educação no Brasil num processo no qual a luta por conquistas sociais e, sobretudo pelo direito à
educação mobilizaram e mobilizam os profissionais da educação e também pesquisadores.
A exclusão/inserção social como patamar de orientação das ações e políticas educativas vem merecendo um extenso debate entre estudiosos
da Educação e tem resultado na crítica às suas formas de sua incorporação.

Este tema suscita-nos um vínculo imediato com o compromisso social e político da atividade privilegiada do
cientista e da ação no campo da investigação educativa, porém nos coloca em posição de atenção à uma adesão inconteste de
sua significação.
A exclusão social como patamar de orientação das ações e políticas educativas vem merecendo um extenso debate
entre estudiosos da Educação e tem resultado numa crítica no sentido de que, como indica Correia (2004):
(...) a noção de exclusão social tornou-se numa espécie de “lugar comum” que designa um conjunto heterogéneo de
fenómenos sem os descriminar numa lógica em que a simples designação do fenómeno parece fazer a economia da sua
explicação e da justificação das modalidades de intervenção social desenvolvidas.
...
O termo exclusão passou, pois, a ser regularmente invocado como instrumento de uma explicação que não carece
de explicação (CANARIO, 2000), (...) cuja indeterminação semântica parece ser condição para a sua eficácia ideológica.
Lembremos, por exemplo, que recentemente o tópico, inserção social foi incluído como um quesito da avaliação
dos programas de pós- graduação, no sentido de impacto social dos programas visando mudanças e indicações diretas na
sociedade e nas políticas, para avaliar como a pesquisa (e os pesquisadores), “atua em termos de desafios decisivos para a
sociedade”. (Ribeiro, 2007) Que conseqüência estará esta perspectiva imprimindo aos programas de pós - graduação na área
da Educação? Estaria suscitando uma dimensão meramente pragmática à pesquisa educacional? Põe em causa o
distanciamento da pesquisa acadêmica da realidade educacional?
A cientificidade que se associa a uma postura política no campo educativo que o encara como um espaço público
particularmente propenso ao desenvolvimento de uma acção social argumentada é, portanto, uma cientificidade argumentada
que, embora, por si própria não ofereça “nenhuma orientação concreta para resolver as tarefas práticas já que não é
informativa nem imediatamente prática” (HABERMAS, 1997:19), se ocupa, no entanto, com a explicitação dos fios
condutores capazes de “reconstruir o tecido das discussões onde se formam simultaneamente as opiniões” (HABERMAS,
1997:19) e as deliberações que constituem o fundamento de um poder democrático auto-reflexivamente construído e
partilhado. (Apud Correia, 2004).
Como já afirmamos noutros momentos, o entendimento de que cabe à Pedagogia articular uma teorização prévia e
os conhecimentos que daí resulta, às experiências práticas para a construção de um conhecimento novo, mantém o
pesquisador no lugar daquele que se diferencia, como diz Gouveia (1994, p.68): “por trazer um conhecimento de quem pode
e deve ir além do senso-comum, modalidade esta que é respeitada mas deve ser superada, exatamente onde a pesquisa
possibilita ultrapassar a mera inserção prática.”
Nesta direção, uma breve incursão na trajetória da pesquisa educacional brasileira, a partir de alguns pesquisadores
que a tem analisado, desde os anos setenta, nos permite afirmar sua intrínseca relação com um compromisso político de seus
pesquisadores.
O desenvolvimento da pesquisa educacional, que em suma tem um inegável caráter de pesquisa pedagógica exige,
em alguma medida, “dar conta” de uma dimensão concreta, de caráter praxiológico das práticas e das experiências
educativas, mas não se resume a este.
Posto isto e, frente ao desafio de contribuir para o debate sobre a pesquisa e a inserção social ou a inserção social da
pesquisa, já que esta questão pode ser analisada sobre estes dois ângulos, lembrei-me logo de uma simples afirmação que
citei num artigo sobre a pesquisa em Educação Infantil, na qual Loris Malaguzzi (1995) nos provoca afirmando que: “Se hoje

824
estamos em uma época em que o tempo e os ritmos das máquinas e dos lucros são modelos que se contrapõe aos tempos
humanos, precisamos saber de que lado está a psicologia, a pedagogia e a cultura.”
Esta tomada de posição e o compromisso político constituíram a origem e o próprio desenvolvimento da pesquisas
em educação no Brasil num processo no qual a luta por conquistas sociais e, sobretudo pelo direito à educação mobilizaram e
mobilizam os profissionais da educação e também pesquisadores.1
Neste processo, também na área da infância, encontra-se uma preocupação com o papel da pesquisa. Rosemberg
(1989) ao tratar da “Universidade e a produção de conhecimento sobre a educação de crianças pequenas”, já apontava
algumas lacunas de conhecimento teórico - metodológico e empírico que pudesse “informar tanto a elaboração de uma
política consistente de atendimento à criança pequena, quanto orientar a reivindicação, implantação e avaliação de
programas.” De acordo com autora, isto não significa, (...) que é o conhecimento que deve determinar, diretamente, as
prioridades em políticas públicas. Nesta determinação, o conhecimento deve instrumentar o Estado e a sociedade civil, na
medida em que estas opções são políticas e resultantes do jogo de interesses e pressões. (p. 62-63)
Análises anteriormente realizadas desta trajetória2 indicaram ainda que de alguma forma, particularmente nos anos
oitenta, na área da educação as pesquisas freqüentemente privilegiaram fatores macroestruturais na análise teórica, por vezes
dissociados dos próprios dados empíricos encontrados no processo de pesquisa, quando o enquadramento estabelecido (a
priori) resulta em um determinismo, ou ainda, na redução dos elementos da realidade concreta à condição de meras “figuras
ilustrativas”.
Foi neste sentido também que o polêmico livro de Azanha (1992, p.41) identificava na pesquisa educacional aquilo
que ele denominou como “abstracionismo pedagógico”, criticando os estudos da educação brasileira nos quais os autores
operam com categorias demasiadamente abstratas para permitirem análises confiáveis das práticas escolares concretas, ou por
outro lado perdendo-se em descrições cotidianas desvinculadas de seu contexto, distante de construir “explicações”
suficientemente articuladas às determinações sociais.
Analisando este mesmo processo de consolidação da pesquisa, do ponto de vista de Costa (1994), no entanto, na
afirmação da pesquisa em educação no Brasil instaura-se um “rompimento com um modelo de tradição empirista que tem
intensificado na pesquisa educacional a busca por alternativas metodológicas coerentes com uma perspectiva crítica,
considerando, sobretudo como pressuposto da investigação, o lugar social do sujeito e seu contexto histórico.” (1994, p. 19).
Vê-se assim também um adensamento do debate em torno das críticas às orientações teórico-metodológicas, para a
análise dos problemas educacionais, com uma clara preocupação em “dar conta” desta realidade educacional.
Sem dúvida, a complexidade de relações que envolvem o campo educacional, como prática social, representa um
grande desafio à pesquisa na busca por uma compreensão articulada de suas dimensões econômicas, políticas, históricas e
sociais, que contemple suas “macro” e “micro” determinações. Este desafio inclui ao mesmo tempo uma preocupação com os
processos de inserção social, tomados como foco de investigação e a própria inserção social da pesquisa de forma a contribuir
para esta efetivação.
Uma breve remissão histórica à década de 50 nos permite localizar a iniciativa de criação do C.B.P.E., que tinha
uma preocupação bastante linear na direção de uma inserção social da pesquisa. Quando foi criado por Anísio Teixeira,
indicou como meta fundar as bases científicas da reconstrução educacional no Brasil, a partir de uma abordagem
multidisciplinar das práticas educativas. O esforço dos pesquisadores ali reunidos era o da “ampliação das referências
disciplinares na análise dos fenômenos educativos, utilizando subsídios da sociologia, antropologia, economia, geografia,
história, etc., com ênfase em investigações empíricas que sustentassem substancialmente os diagnósticos e projetos da
educaçãobrasileira.”(op.cit.,p.19-20).
Esta posição apostava numa revalorização dos “métodos de observação” como forma de substituir “análises
genéricas”, que tinham como meta inovações controladas, com uma visão extremamente pragmática.
Sem prolongar mais aqui a análise desta trajetória da pesquisa em educação no Brasil, destacaríamos ainda que, foi
a partir dos anos 70, que a pesquisa educacional ressurgiu no Brasil, especialmente com a difusão dos programas de pós-
graduação na área da educação (com significativo crescimento nos anos 80), vinculando de forma decisiva a produção
acadêmica com o estudo da escola e dos sistemas de ensino como parte do processo de desenvolvimento do capitalismo no
Brasil.
Neste contexto, como já tivemos a oportunidade de divulgar noutros estudos originam-se também as pesquisas que
tem uma preocupação com a então denominada, “educação pré-escolar”. Inicialmente, com uma motivação voltada para a
busca de “eficiência” de programas de educação compensatória.
Poderíamos afirmar, neste caso que a pesquisa apresentava preocupações com a inserção social e com uma inserção
social da pesquisa?
Evidentemente a pertinência da reflexão sobre a inserção social, nas duas direções: na pesquisa e da pesquisa exige
associá-la à direção do compromisso político que lhe orienta.

1
Lembremos aqui do próprio papel da ANPEd na militância política, sobretudo na década de 80. Ver entre outros, Ferraro, 2005.
2.
Ver por exemplo o estudo da produção discente dos programas de pós-graduação em educação de Warde, 1990, que apresenta uma análise geral dos trabalhos
da educação de 82-91.

825
Perguntamo-nos a partir daí, como as pesquisas sobre educação e infância vem articulando conhecimentos para
compreender as diferentes dimensões envolvidas nos processos educativos na infância, e de que forma tomam como
preocupação a inserção social das crianças, de forma a ter como conseqüência sua própria inserção social?
No sentido de refletir sobre esta questão, recorreremos a uma breve análise da produção acadêmica apresentada nas
reuniões regionais da ANPEd no sul do país.

Anotações sobre as perspectivas da produção acadêmica nacional e regional na área da Educação e Infância
Sem pretender realizar aqui uma análise dos trabalhos apresentados em âmbito nacional e regional, pretendo
apenas realizar uma breve incursão na produção acadêmica brasileira de forma de refletir o em questão.
Inicialmente cabe destacar a recente ampliação, nestes últimos anos, das perspectivas da pesquisa nacional
referentes à Educação e Infância que, resultou inclusive na possibilidade de constituição de um eixo temático nesta reunião
regional.
Como também já pudemos demonstrar anteriormente, tivemos no Brasil uma trajetória de pesquisas sobre infância,
na área da educação especialmente no âmbito das pesquisas sobre Educação Infantil e, nesta última década passa a haver uma
ampliação do foco das investigações que passam a contemplar outros espaços educativos. Estuda-se a infância na escola; no
hospital; nos movimentos sociais, nas cidades, nos museus, nas relações com a mídia e o consumo, etc.
A pesquisa em Educação Infantil apresentava desde sua expansão, uma vinculação bastante marcada com os
movimentos políticos que lutavam pela afirmação do direito à educação das crianças de zero a seis anos no Brasil, nestes
últimos trinta anos. Neste período assistimos a afirmação um conjunto de definições conceituais, afirmações e críticas às
orientações teóricas de cunho tradicional conservadoras, nas quais as crianças são tomadas como indivíduos isolados – meros
objetos da intervenção educativa.
Mantém-se atualmente esta inserção da pesquisa preocupada com as garantias dos direitos sociais e do direito à
educação das crianças, definidas sujeitos de direitos, notando-se uma especial afirmação dos estudos sobre as políticas
nacionais e internacionais e das lutas pela sua efetivação, sendo mais recentemente associadas à crítica da influência dos
organismos internacionais sobre os Estados nacionais e as reformas no campo educacional.
Afirma-se a partir daí, a infância como categoria histórico-social que passa a orientar a análise das relações
educativas no âmbito das determinações materiais e culturais que as constituem, acompanhadas da indicação de maior
atenção às manifestações das crianças e de sua cultura, marcada por uma inserção concreta e histórica contingenciada pelas
relações de classe social, gênero, etnia e raça.
Percebe-se assim um esforço teórico de análise no qual convergem abordagens teóricas que tomam como
pressuposto epistemológico um conhecimento da realidade que articula as dimensões estruturais de determinação objetiva à
constituição dos sujeitos sociais – sua experiência social que configuram a subjetividade, e que simultaneamente produzem
uma dinâmica transformadora. (Rocha, 2007)
Como nos adverte BOURDIEU (1993:65, apud, Correia), ao discutir a exclusão social na imprensa: “a
mediatização das situações sociais onde estão envolvidas populações marginais ou desfavorecidas produzem efeitos que estão
longe de serem aqueles que estes grupos sociais poderiam esperar, já que neste domínio os jornalistas dispõem de um poder
de constituição particularmente importante, razão pela qual a fabricação dos acontecimentos escapa totalmente a essas
populações.”.

Bibliografia
Azanha, J.M. (1992) Uma idéia de Pesquisa Educacional. EDUSP, São Paulo.
Costa, Marisa V. (1994) Pesquisa em educação: concepções de ciência, paradigmas teóricos e produção de conhecimentos.
Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n.90, p.15-20.
Correia, JC. (2004) A construção político-cognitiva da exclusão social no campo educativo.
www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_educacao/edicoes_anteriores/.../16educacaon15_vol8_artigo10.
p (consultado em 29/11/2008)
Malaguzzi, L. (1995) La storia, le idee, la cultura. In: Edward, C. & Gandini,
L.,Forman. I cento linguaggi dei bambini, Itália: Edizioni Junior.
ROCHA, Eloisa A.C. (1999) A Pesquisa em Educação Infantil no Brasil: trajetória recente e perspectivas de consolidação de
uma pedagogia. Núcleo de Publicações, CED/UFSC.
________ (2007) 30 anos da Educação Infantil na ANPED: caminhos da pesquisa. Trabalho encomendado para a 30ª.
Reunião Anual da ANPEd. Grupo de Educação de 0 a 6 anos.
Caxambu – MG.
ROSEMBERG, F. (1989) A educação da criança pequena, a produção de conhecimento e a universidade. Cadernos ANPEd.
N. 1.

826
Avaliação da qualidade em educação de infância: Um processo colaborativo

Sónia Raquel Santos Góis


Universidade de Aveiro
soniagois@ua.pt

Maria Gabriela Correia de Castro Portugal


Unversidade de Aveiro
gabriela.portugal@ua.pt

Resumo: Neste poster apresentamos os resultados de um estudo de caso desenvolvido no âmbito de uma dissertação de mestrado, que visa
contribuir para o desenvolvimento de uma estratégia eficiente para avaliar e melhorar a qualidade e eficácia da aprendizagem das crianças
em contextos de educação pré-escolar, a ser desenvolvida pela Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), no
âmbito da metodologia de avaliação e melhoramento da qualidade proposta pelo projecto EEL/DQP (Effective Early
Learning/Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias). Para cumprir esse objectivo foi realizado um estudo de caso num Jardim de Infância
pertencente à rede pública e situado numa comunidade rural delimitada por serras, na zona centro de Portugal. A população empregada
divide-se entre os sectores secundário e terciário, trabalhando na sua maioria nas cidades mais próximas e utilizando, esta zona como
dormitório. Foi implementando um processo colaborativo de avaliação e desenvolvimento da qualidade e eficácia da aprendizagem das
crianças, através da análise dos contextos e processos experienciados pelas crianças e pelos adultos. Esta investigação visa caracterizar
qualitativamente a situação actual de um jardim-de-infância da rede pública, avaliar necessidades e propor em colaboração com os actores
envolvidos no processo (profissionais da educação de infância, pais e crianças) medidas de reorganização como forma de garantir a
qualidade educativa.

Introdução
Sendo a qualidade das respostas educativas no âmbito da educação pré-escolar uma das prioridades da Direcção-
Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação, no âmbito de uma nova fase de
concretização do Projecto Effective Early Learning/Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias (EEL/DQP), ao longo do ano
lectivo de 2007/2008, a Universidade de Aveiro foi convidada a integrar a equipa de trabalho DQP. Nesse contexto, propôs-
se desenvolver um projecto de avaliação e de desenvolvimento da qualidade, numa perspectiva holística e considerando as
perspectivas dos principais actores envolvidos no processo (educadores, pais e crianças), num estabelecimento de educação
pré-escolar, apoiando a formação e reflexão sobre as práticas educativas dos profissionais de educação de infância.
Assim, o presente artigo descreve o estudo de caso realizado num jardim-de-infância da rede pública, numa vila da
zona centro do país. Trata-se de um estabelecimento novo, construído de raiz, tendo sido inaugurado em Setembro de 2005 e
que compreende apenas a valência de educação pré-escolar.

Avaliação da Prática Educativa


No decorrer da avaliação efectuada, foram recolhidos documentos institucionais, realizadas entrevistas e
preenchidos questionários. Para além das 4 educadoras e 4 auxiliares de acção educativa a desempenharem funções no
jardim-de-infância, foram também entrevistados 5 pais e 7 crianças. Foram ainda seleccionadas aleatoriamente para
observação 8 crianças de cada sala. A observação foi realizada com o apoio da Escala de Envolvimento e da Ficha de
Observação das Oportunidades Educativas da Criança constantes no Projecto Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias
(Pascal & Bertram, 1995).
Todas as educadoras manifestaram acordo acerca da necessidade de um ambiente que faça as crianças felizes, que
lhes proporcione vivências enriquecedoras, sendo esse o ponto de partida para a relação e o desenvolvimento equilibrado da
criança. Mencionam ainda o desenvolvimento de competências como essencial para uma boa integração da criança na
sociedade. Os auxiliares de acção educativa, tal como os pais, consideraram que a Educação pré-escolar transmite às crianças
as bases para o ingresso no 1.º Ciclo. Os pais salientam ainda o factor socialização como essencial nesta fase. As crianças
consideram que estão na “Escola” porque já têm a idade adequada para o efeito demonstrando que faz parte de um processo
natural.
Os objectivos de aprendizagem são estabelecidos por cada educadora, no plano curricular de turma tendo em conta
a idade das crianças e as características do grupo, bem como as orientações curriculares para a educação pré-escolar. São na
sua maioria descritos pelas educadoras como objectivos de desenvolvimento social e de desenvolvimento da linguagem. Mas,
também sobressaiu uma grande preocupação, com a aquisição de capacidades e noções pré-académicas, através da realização
de fichas de trabalho (muito caracterizadas pela repetição).
Os conteúdos são desenvolvidos tendo subjacentes as orientações curriculares e os objectivos gerais programados
para o Projecto Curricular de Instituição, de acordo com o projecto educativo e com o Plano Anual de Actividades do
Agrupamento, sendo estes essencialmente temáticos.

827
Prosseguimos com a apresentação de alguns dados recolhidos através da observação dos processos subjacentes a
estes contextos.
No gráfico de barras apresentado em seguida podemos observar os resultados da avaliação realizada com a escala
de envolvimento.
Gráfico 1: Envolvimento

80
62
52

N.º de Observações
60

40
22
20 5 3
0
Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 4 Nível 5
Escala do Envolvimento
Nas observações efectuadas encontramos um nível médio de envolvimento de 3.2. Desta forma concluímos que o
nível médio de envolvimento encontrado está muito perto do nível médio considerado aceitável (3.5) apesar de não o atingir
claramente.
O gráfico 2 apresenta a predominância em relação à organização do grupo durante as actividades.
Gráfico 2: Grupo

60
46
N.ª de Observações

40
24
18
20 8
0
Grande Pequeno Par Individual
Grupo Grupo
Grupo

A situação com maior predominância e a destacar-se das demais é a de grande grupo (48%), seguidas pelas
actividades individuais (25%) e pelas actividades em pequeno grupo (19%). A situação preterida é a de par (8%).
Estes dados fazem-nos pensar nos resultados publicados por Montie et al. (2006) que destacaram a importância das
actividades iniciadas pelas crianças e das actividades em pequenos grupos, em detrimento das actividades em grande grupo,
em salas para crianças de 4 anos. Foi encontrada uma associação positiva entre as possibilidades de jogo livre e os resultados
das crianças ao nível da linguagem e ao nível cognitivo aos 7 anos. Estes autores consideram que as actividades livres
fornecem às crianças a oportunidade de conversarem informalmente com outras crianças, atribuindo papéis no jogo
dramático, estabelecendo regras para os jogos, fazendo planos para as construções com blocos, e fornece aos educadores uma
oportunidade para envolverem as crianças em conversas relacionadas com as suas brincadeiras, introduzindo novo
vocabulário relevante para os interesses das crianças. As actividades em grande grupo, pelo contrário, não são definidas tendo
em conta os interesses ou competências de cada uma das crianças, podendo ser demasiado difíceis ou demasiado fáceis, o que
torna a aprendizagem menos provável. Para aprenderem, as crianças precisam de se envolver na resolução dos problemas e
na exploração dos materiais.
No gráfico 3 estão representadas as zonas de iniciativa.
Gráfico 3: Zona de Iniciativa

60 53

N.ª de Observações
40 33

20
7
3
0
Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 4
Zona de Iniciativa

Podemos verificar pelos dados apresentados que a percentagem de observações para o nível 1 (55%), onde não é
dada escolha à criança que tem que fazer a actividade proposta, foi a mais elevada, seguida da percentagem de observações
no nível 4 (34%), onde é dada total liberdade de escolha. Os níveis 2 (7%), onde é oferecido um número limitado de escolhas
entre determinadas actividades e 3 (3%), onde há algumas actividades que não podem ser escolhidas - foram observados
muito menos vezes.
A Instituição não adopta um modelo curricular específico, sendo dado às educadoras a liberdade de adoptarem a
abordagem com a qual se sintam mais confortáveis. Desta forma, as educadoras seguem uma pedagogia tradicional, centrada
na Educadora, sendo que numa das salas a educadora tem uma formação de base no Método João de Deus. Nas restantes
salas as educadoras tentam por vezes adaptar estratégias de Modelos Curriculares como o Movimento da Escola Moderna
(M.E.M.) ou a Pedagogia de Projecto.
As salas estão organizadas por áreas que se mantêm ao longo do ano. Foi possível verificar algumas áreas comuns
às quatro salas: área do jogo; área das construções; área da informática; área da reunião/conversa; área da expressão plástica;
área da casinha; biblioteca. Havia também alguns espaços diferenciados, de acordo com os projectos a desenvolver no
momento e com as opções pedagógicas das profissionais, nomeadamente a área da matemática (uma sala) e a área da escrita
(uma sala). As áreas mais procuradas são a das construções (duas salas), a da casinha, da expressão plástica e da informática
(duas salas). Era igualmente uma característica comum a todos os contextos, a inexistência da área das ciências, que algumas
das educadoras atribuíram à falta de meios económicos para a organizar. Em dois dos contextos, havia o espaço da natureza,
com algumas plantações feitas pelas crianças. Em duas das salas ainda aproveitado o espaço exterior, contíguo à sala para
actividades ligadas à natureza. Por vezes, realizavam-se algumas experiências esporádicas, orientadas pelo adulto.
Nas paredes havia preponderância de trabalhos realizados pelas crianças nomeadamente trabalhos livres e
orientados nos quais se incluem as fichas de pintura. Havia alguns instrumentos pedagógicos, como “o cartaz dos
aniversários” (comum a todas as salas), “o quadro das presenças” (comum a duas salas) e o quadro do “registo dos dias da
semana” (duas salas) e do tempo (uma sala).
As rotinas estão organizadas de forma semelhante nas 4 salas. Refere uma das educadoras.
Verificavam-se carências de material essencialmente ao nível da falta de adequação às necessidades, afirmando a
maioria das educadoras que gostaria de ter mais material e mais diversificado e que isso não acontece por razões
economicistas. As áreas menos carenciadas são a área da casa e a área das expressões. As áreas mais carenciadas são as
bibliotecas, as grandes construções (excepto numa sala) e os jogos (excepto numa sala). Apesar das rotinas serem
semelhantes, a forma das educadoras actuarem em sala é bastante diversificada de sala para sala. Não é usual partilharem
formas de actuação e actividades a não ser quando solicitado por uma colega. Esta partilha não faz parte de filosofia adoptada
na instituição como podemos ver pelas palavras destas educadoras.
Bem, apesar de cada uma ter a sua especificidade, existe partilha. Elas têm como objectivo as competências
delineadas e chegam a essas competências de forma diferente. No fundo não existe uma filosofia de partilha mas sim a
partilha do momento. Não existe o – O que é que vamos fazer?
O gráfico 4 apresenta os dados do empenhamento do adulto nas dimensões sensibilidade, estimulação e autonomia.

Gráfico 4: Empenhamento do Adulto

31 32
30 26 26
N.º de Observações

25 21 22
18 19 20
20
15 Sensibilidade
9 10
10 Estimulação
5
5 Autonomia
0 1 0
0
Nível 1 Nível 2 Nível 3 Nível 4 Nível 5
E l d E h
O nível médio calculado para a dimensão sensibilidade é 3.8, para a dimensão Estimulação é 3.7 e para a dimensão
Autonomia é 3.8, estando todos dentro da escala de suficiente.
A planificação das actividades é feita semanalmente (duas educadoras) e diariamente (duas educadoras). Nenhuma
das educadoras faz registos das actividades desenvolvidas apesar de todas dizerem fazerem a sua avaliação (apenas
mentalmente) em função dos objectivos predefinidos e do feedback das crianças. As crianças são avaliadas em função das
competências que conseguem atingir segundo as áreas curriculares.
Todas consideram importante a partilha dos objectivos delineados para as actividades com os auxiliares de
educação mas apenas duas o fazem. Da mesma forma, não têm por hábito partilhar o Projecto Curricular de Grupo nem o
Projecto Educativo com os auxiliares de educação com quem colaboram.
A maioria das crianças conhece os adultos e as crianças das outras salas falando deles com familiaridade.

Conclusões
a) Avaliação do processo pelas Educadoras
Ao longo de todo o ano, as Educadoras de Infância envolvidas no projecto foram-nos dando algum feedback acerca
do seu sentir, factor este de extrema relevância e que foi sendo cuidado durante todo este processo. O facto de irem ser
filmadas e de serem recolhidas opiniões de outros elementos para além dos técnicos a desempenhar funções na instituição,
nomeadamente, os pais das crianças, foi um factor que veio aumentar por um lado os receios, mas por outro as expectativas
em relação a este processo.Mas para além destes receios, este projecto foi acolhido com uma enorme receptividade, por parte
do pessoal técnico a desempenhar funções na instituição, patente nas palavras de uma das educadoras.
- É bom sentir que alguém nos dá atenção e que quer trabalhar em conjunto connosco. É bom sentirmos que não
estamos sozinhas.
Ao longo do desenvolvimento do processo os receios iniciais foram dando lugar a outro tipo de sentimentos.
…a Observadora começou a fazer parte das nossas vivências e eu senti, que, afinal, o facto de estar a ser observada,
ao contrário de me intimidar ajudava-me a repensar as minhas práticas no dia a dia, sobretudo ao nível da minha intervenção
individualizada…
Em relação às práticas das educadoras, foi importante ressaltar que a formação desenvolvida e todo o
desenvolvimento do processo levou a que as educadoras fossem chegando a algumas conclusões acerca da sua forma de
intervir em sala:
- Levou-me a reflectir sobre as minhas práticas e do meu modo de estar com o meu grupo; a verificar se no meu dia
a dia, promovia a qualidade e aprendizagem das crianças e o desenvolvimento das suas competências, de um modo eficaz; se
existia equilíbrio e diversidade de actividades e se estas facilitavam a autonomia e descoberta por parte das crianças.
- Isto é giro: para nos vermos ao espelho e pensarmos…

b) Plano de Acção
Face à análise final decorrente das observações realizadas, o pessoal técnico a desempenhar funções na Instituição
em conjunto com as colaboradoras no Projecto DQP, dialogaram no sentido de encontrar formas de actuar que fomentassem
o aumento dos níveis de envolvimento das crianças e equilibrassem alguns factores observados e que poderiam não estar a
proporcionar o nível de qualidade ambicionado por todos. Sendo assim, e após serem trabalhadas as 10 dimensões da
qualidade subjacentes ao projecto DQP, foram salientados alguns aspectos a introduzir no Plano de Acção.
Ao nível das Estratégias de Ensino e Aprendizagem foi acordado que seria interessante diversificar as actividades
apostando menos no trabalho em grande grupo e nas actividades dirigidas; aumentar a interacção entre educador e crianças
durante as actividades livres. Uma das educadoras mostrou-se particularmente motivada por voltar a trabalhar com a
Pedagogia de Projecto.
Ao nível do Planeamento, Avaliação e Registo das actividades, a participação de outros técnicos, dos encarregados
de educação e das crianças na elaboração dos PCG foi um dos pontos assinalados. Também a interacção Educadora-Auxiliar
na programação das actividades foi levada em consideração.
Ao nível do Espaço Educativo seria importante diversificar os materiais e tornar pelo menos uma das áreas de
trabalho passível de ser modificada ao longo do ano consoante os interesses das crianças.
Ao nível das Relações e Interacções a insuficiência de trabalho cooperativo foi um factor salientado e levado em
consideração não pela sua ausência mas pelo que o seu desenvolvimento poderia trazer de produtivo a esta instituição. A
partilha da diversidade existente nestas salas seria um factor de crescimento para todos.

c) Outros aspectos a salientar


Acreditamos que o método de avaliação protagonizado pelo Projecto DQP poderá trazer bons resultados se
generalizado mas que existe uma necessidade subjacente de um elemento exterior ao jardim-de-infância que acompanhe este

830
processo. A complexidade do processo e o tipo de análise necessária para desenvolver este projecto de avaliação da qualidade
poderá ser demasiado moroso e trabalhoso para que as educadoras a desenvolver funções numa instituição se possam sentir
verdadeiramente motivadas para o realizar apesar da sua incontestável contribuição para o desenvolvimento das suas práticas.

Referências bibliográficas
- Laevers, F. & Van Sanden, P. (1997). Pour une approche experientielle au niveau pré-scolaire. Livre de base. Col.
Education et Enseignement Expérientiel. Leuven, Belgique.
- Montie, J.E., Xiang, Z. & Schweinhart, L.J. (2006). Preschool experience in 10 countries: cognitive and language
performance at age 7. Early Childhood Research Quarterly, 21, 313-331.
- Pascal, C., Bertram, T., Ramsden, F., Georgeson, J., Saunders & M. Mould, C. (1995). Desenvolvendo a qualidade em
parcerias: Avaliação e desenvolvimento da qualidade nos estabelecimentos da educação pré-escolar – Um programa de
desenvolvimento profissional. Lisboa: Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular.

Reflexões sobre a criança, o uso do computador e as possibilidades de narrar na


escola

Sandra Amaral Barros Ferreira


Universidade Federal do Rio de Janeiro / Universidade Federal Fluminense
sandra_abf@hotmail.com

Resumo: Este trabalho é parte dos estudos que desenvolvo na minha pesquisa de doutorado e pretende mostrar como as crianças e
professores utilizam os computadores na escola, principalmente no que se refere à leitura e a escrita. Trata-se de abordar a relação
estabelecida entre o professor, a criança e o seu texto. Interessa conhecer o contexto desta produção, dadas as mudanças anunciadas no modo
de sentir, ver, pensar, fazer e aprender. Talvez, se tenha a impressão que a escola é um lugar de impossibilidades para tais mudanças,
entretanto, todos os dias as crianças conseguem modificar o tempo fazendo rasgos que lhe permitam driblar práticas pedagógicas, entre
outras, que queiram contar a história à sua maneira. As crianças constroem narrativas, com seus amigos, durante as brincadeiras, que, numa
visão benjaminiana, representam os germes da experiência. Para pensar essa relação, tomei como recurso teórico os escritos de Certeau, que
aplicados à tela em branco, como “lugar desenfeitiçado das ambigüidades do mundo” permite ao sujeito dar “a si mesmo o campo de um
fazer próprio”. E mesmo que este fazer possa ser moldado, corrigido e até transformado em mercadoria, traz modificações para o sujeito-
autor. As reflexões feitas aqui não pretendem conclusões totalizantes ou verdades acabadas.

Introdução
O estudo ora desenvolvido no meu doutoramento pretende investigar o uso do computador como um possível
aliado do ensino nos primeiros anos da escola básica. Pesquisar a escola pública no momento em que o uso do computador já
está sendo implantado implica não somente na abordagem de um novo suporte para o escrito, mas das relações de mediação
estabelecidas, entre aqueles que usam o computador e o que é feito a partir dele. Interessa conhecer como se dão as
produções escritas e como e quando o sujeito se coloca como autor, considerando as mudanças no modo de sentir, ver,
pensar, fazer, aprender e as possibilidades de narrar na escola.
As reflexões aqui tecidas derivam da pesquisa realizada prioritariamente no laboratório de informática, incluindo o
diálogo da “informática educativa”, prevista na grade, com as atividades de sala de aula. Talvez, à primeira vista, se tenha a
impressão que a escola possa ser repetições e impossibilidades. Entretanto, a história se faz diariamente. Todos os dias as
crianças conseguem modificar o tempo fazendo rasgos que lhe permitam driblar práticas pedagógicas, dentre outras, que
tentam regular a história à sua maneira. Para além dos instituídos, cabe pensar, o que faz do aluno e também do professor,
produtores de textos, narradores, sujeitos que podem remexem suas memórias, contar suas experiências e tomar posse da
palavra para contar suas histórias.
Inicialmente, partirei do que está acontecendo na prática, esta opção metodológica é proposital por entender com
Ferraço que as pesquisas com o cotidiano têm como princípio partir da prática para compreender como a realidade se
apresenta. A teoria faz parte do esforço dialógico de tratar a realidade com disponibilidade de descobrir indícios que ampliem
nossa possibilidade de compreensão do cotidiano.
Contudo, encontro aí a primeira dificuldade, então me interrogo: esta realidade é possível? Além de plural, não está
sempre se transformando? Que sentidos os sujeitos dão ao que fazem, sabem e produzem, considerando o imprevisível, o
indeterminado, o que está em constante movimento, dada a impossibilidade, de tal realidade ser a mesma todos os dias. Penso
que compreender como a realidade se apresenta significa mostrar aspectos das práticas cotidianas que se constroem /
desconstroem / reconstroem as práticas cotidianas. Machado Pais salienta que “qualquer discurso sociológico remete para um
universo de crenças” e explica que a realidade não é a que pensamos ser real, mas a que acreditamos ser real (2003, p.35).
Assim, o autor encaminha uma concepção de realidade que está para além de um sentido metafísico e se aproxima de uma

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concepção que leva em conta quem a observa, interfere, modifica e é parte dela. Neste sentido, este pesquisador do cotidiano,
propõe considerar a realidade assim como os impressionistas, sobretudo como Monet, “multiplicando as artimanhas da
linguagem pictórica, tentando deter na tela a passagem ininterrupta do tempo escorregadio na incessante itinerância da luz e
da sombra” (id, p.51-52).
Ainda nesta concepção, considerando que a possibilidade de compreender fragmentos de realidade (s), necessita-se
da linguagem, ou seja, do discurso. A pesquisa do cotidiano faz parte desse esforço dialógico de compreender esta realidade e
descobrir nuances do que ainda se mostra na invisibilidade, mesmo que olhar seja um, dentre muitos outros possíveis, tendo
em vista o ponto de vista do pesquisador.
Certeau também propõe refletir sobre as práticas cotidianas levando em consideração as “operações dos usuários”,
ou seja, “as maneiras de fazer” cotidianas e, para isso, passa a tratar de dois aspectos da dinâmica social, que segundo ele
mesmo refere-se primeiramente, à relação sempre social que determina seus termos. “Cada individualidade é o lugar onde
atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais”. O segundo aspecto é
determinado pelos modos de operação ou esquemas de ação e não diretamente o sujeito, “que é o seu autor ou seu veículo”.
Deste modo, proponho recorrer ao autor não para estudar os sujeitos das ações, mas a lógica dessas ações, suas relações e,
portanto, verificar o seu perfil para quem sabe, chegar a um modelo e/ou um “estatuto dos dominados (o que não quer dizer
passivos ou dóceis)”. O meu interesse em debruçar-me sobre as relações “micro” (grifo meu) que postulam uma dinâmica
criativa e efervescente, talvez, impossível de ser determinada, traz à tona a importância de pensar sobre os sujeitos e as
circunstâncias que fazem a história todos os dias (2001, p.38). A esse propósito, Martín-Barbero, recorrendo a Benjamin,
também assinala que:
Não se pode entender o que se passa culturalmente com as massas sem considerar a sua experiência. Pois, em
contraste com o que ocorre na cultura culta, cuja chave está na obra, para aquela outra a chave se acha na percepção e no uso.
(2006, p.72)
Nesse sentido, tomei como ponto de partida algumas percepções e usos que se mostram nas atividades
desenvolvidas no interior da instituição escolhida para meu campo de investigação. Trata-se de uma escola pública
municipal, localizada na Região Oceânica de Niterói, que dispõe de diversas salas de aula, sala de leitura, sala de informática
e foi aparelhada com computadores para a utilização de professores e alunos.
As reflexões aqui inseridas foram organizadas, sem a pretensão de chegar a uma conclusão, mas permitindo que a
reflexão continue e possa ressoar no leitor, como aconteceu comigo durante o meu trabalho de campo.
Cena I: O computador: um novo brinquedo no reino do lápis e do papel.
Logo de início, o que me chamou atenção foi o fato de todos os computadores da sala de informática parecer
brinquedos. O monitor fica no alto sob um suporte feito de madeira que esconde o PC deixando aparecer somente entradas
para serem conectadas outras mídias. Entre o monitor e o sujeito encontra-se uma mesa acoplada com terminais para serem
utilizados com os outros materiais, como por exemplo, blocos de letras móveis, que fazem aparecer na tela composições de
sílabas e palavras a partir da escolha da criança. As cores da mesa do computador e o mobiliário contribuem para
desconstruir a arquitetura tradicional da sala de aula, inclusive a criança não usa lápis e caderno e se mantém de costas para o
quadro. Este, por sua vez, agora na cor branca e, dispensado do giz, passa despercebido, quase sem utilidade. Os alunos não
ocupam carteiras individuais, mas sentam-se em bancos, agrupados ao redor do micro. A aula aparentemente protagonizada
pelo que aparece na tela, como um fetiche, impõe novas dinâmicas nas relações entre professores e alunos e entre as próprias
crianças. O lugar de destaque da máquina parece transformá-la num novo sujeito que passa a interagir e interferir nas trocas
entre quem ensina e quem aprende. Benjamin já havia previsto que “uma emancipação do brinquedo” está a caminho “quanto
mais a industrialização avança”. Para o autor, na medida em que o “brinquedo se subtrai ao controle da família” torna-se
“cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais” (2002, p.91-92). Estas mudanças possibilitaram à criança
ganhar o seu próprio quarto de brinquedos, a sua estante, exigindo cada vez menos a presença materna. Mas, ao mesmo
tempo, os brinquedos também seduzem, incitam o desejo infantil em possuí-los. Da mesma forma, parece repetir-se com a
professora e todos os materiais que durante muito tempo compôs o ambiente das relações entre professores e alunos, cada vez
mais, os objetos, os procedimentos didáticos, o conhecimento vêm sendo substituídos. Que mudanças poderão acontecer nas
relações entre professores a alunos?
As crianças alegram-se quando vão para a sala de informática. Mesmo que percebam que se trata de uma atividade
“escolar” apresentada como muitas outras já conhecidas, logo conseguem subverter: chegam ao jogo através da internet,
apagam o que o colega escreveu, fazem experimentações. E, ainda que recorram com freqüência ao professor para utilizar a
máquina, dizem saber “macetes” para fazer aparecer o sublinhado em verde ou vermelho do corretor de palavras. Não têm
idéia do que efetivamente se trata, mas para eles tudo se transforma em brincadeira.

Cena II: Na sala de aula, como soltadores de pipa


A atividade que passarei a descrever aconteceu em três momentos distintos com uma turma do 2° ciclo. No
primeiro momento, as crianças criaram cenários no computador com diferentes motivos, tais como: castelos mal
assombrados, fundo do mar, circo, quadra de esporte, platéia, etc. Personagens e figuras muito conhecidas como, por
exemplo, sereias, a abóbora do halloween, múmias, palhaço também compunham os cenários para ser utilizado como ponto
de partida da produção de um texto em sala de aula. Neste dia, eu não estive presente.

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No segundo momento, fui convidada a observar a atividade, a convite da professora. A turma foi dividida em
grupos para a produção de texto coletivo, produzido a partir dos cenários.
No momento da escrita, cada grupo evidenciava uma dinâmica interna: num dos grupos, uma criança era a redatora
e as demais ajudavam na criação do enredo. Noutro, via-se que a folha percorria os seus componentes, possibilitando desta
forma, que todos escrevessem. As crianças utilizavam lápis e papel e o texto foi feito na sala de aula. Depois de terminado, o
texto era revisado pela professora, que pedia a cada grupo, a correção daquilo que havia sido indicado.
Aqueles que passaram pela mesa da professora deveriam retornar ao seu grupo e corrigir o texto fazendo as
modificações assinaladas. No entanto, já no grupo, não eram todas as crianças que estavam envolvidas, só uma ou duas se
ocupavam disso. As demais conversavam, ocupavam-se de outra coisa ou inventavam uma brincadeira. Com isto, percebia-se
certa turbulência tolerada pela professora, que não se mostrou incomodada com a minha presença. Em alguns momentos, ela
falava aos grupos ou citava o nome de alunos que seriam incluídos numa lista (por certo, daqueles alunos indisciplinados). A
reação da turma era de deixar de brincar, parar o que faziam momentaneamente ou mesmo procurar o texto, pegar no lápis,
ou seja, mostrar que estavam envolvidos com a tarefa e que não estavam fazendo nada que não fosse recomendável.
No grupo que estava próximo de mim, só um menino escrevia com os olhos bem próximos da folha de papel e os
demais brincavam com as canetinhas do tipo hidrocor.
As canetinhas eram os jogadores e a borracha era a bola. As crianças riam, os jogadores corriam, por meio das
mãos dos meninos, faziam gol. Depois, criavam outra brincadeira... À mesa com uma pequena inclinação, as canetinhas eram
colocadas em posição horizontal, podiam deslizar pela mesa até caírem nas mãos dos meninos ou no chão. O jogo agora era a
corrida, ou melhor, o deslizar das canetinhas, ganhava quem conseguisse que a sua deslizasse na frente das outras.
Eu não sei como nomear o que representavam as canetinhas naquele momento: jogadores, indivíduos no Tobogã,
carrinhos ou bolinhas,... Também não sei se os meninos saberiam dizer. Na verdade, não me parecia que o mais importante
fosse nomear e representar algo ou alguém com as canetinhas, mas o prazer da brincadeira, o prazer de começar de novo.
Segundo Benjamin: “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’,
transformação da experiência mais comovente em hábito” (2002, p.102).
O menino que escrevia, parava freqüentemente e ria, comentava alguma coisa, voltava a escrever, depois voltava à
brincadeira. Ele brincava com os olhos enquanto escrevia.
Durante a brincadeira, parecia que as crianças faziam um rasgo no tempo diacrônico da aula e deleitavam-se
prolongando esse rompimento. Já o menino que brincava com os olhos, rompia com a alternativa, fazia isto e aquilo
misturando o lúdico com a tarefa escolar, buscava uma sincronia, sem romper com o momento lúdico de que os colegas
participavam nem com a tarefa escolar recebida.
Outro menino, na mesa ao lado, já havia conseguido uma bolinha de frescobol. Ele pegou-a na mochila e deixou-a
embaixo da mesa. Olhava para mim e esperava que eu desviasse o olhar, chamava um colega próximo, me olhava
novamente...
O meu olhar ou o olhar da professora poderiam comprometer novos rasgos e novas possibilidades de jogo. A
professora falava sem alterar a voz: “me deixa ver quem está bonito”; “vou anotar o nome de quem não está trabalhando”;
“só vai sair quem tiver sentado”. Sempre que a professora intervinha, a reação da turma era de deixar de brincar. Mas nessa
dinâmica, me parecia que a professora também participava do jogo dos meninos, na tensão entre atividade regulada e outra de
natureza lúdica e emancipatória.
Essa prática escolar implica uma negociação implícita que permite que uma dinâmica da sala de aula seja
semelhante a outras escolas, com outros professores e alunos. Aspectos de uma cultura escolar há muito construída, fazem
ressoar aspectos que não surpreendem a quem, como eu, também sou professora.
Assim, tentando buscar uma metáfora para traduzir o que significou para mim a atividade observada, especialmente
o jeito da professora regular o grupo e ao mesmo tempo, permitir a brincadeira, a maneira como as crianças fazem a tarefa,
como se dispersam e como voltam rapidamente a ela novamente, sirvo-me da cena em que o menino solta sua pipa: dá linha,
faz empinar, sacudir, dançar no ar como se ela tivesse completamente entregue ao vento, mas num rápido movimento, o
menino puxa a linha e mostra-lhe quem comanda seu destino.

Cena III: A arte de transformar tudo em brincadeira


O texto escrito pelas crianças, tecido a partir do imaginário evocado pelo cenário e pelos personagens disponíveis
no computador, compunham histórias de castelos mal assombrados, fundo do mar, bruxas, rei e rainha. Os conceitos de
espaço e tempo se entrecruzam constantemente e definem e redefinem as situações e o contexto.
O primeiro conceito, o de espaço, materializado num lugar que tanto pode ser a sala, a mesa, o mural e a folha de
papel com o texto ou a outra se constituem, segundo Certeau, “uma configuração instantânea de posições”, “uma indicação
de estabilidade”, no entanto quando ocupado e utilizado, ou seja, “animado pelo conjunto de movimentos que aí se
desdobram” passa a ser um “espaço praticado” (2001, p.202). O registro na folha em branco representa a produção da
criança, “lugar desenfeitiçado das ambigüidades do mundo” que permite ao sujeito “possuído pelas vozes do mundo” “dá a si
mesmo o campo de um fazer próprio”. E mesmo que este fazer possa ser moldado, corrigido e até transformado em
mercadoria, transforma o sujeito em autor (id, p.225).

833
Já o segundo, o conceito de tempo, dribla o momento da produção, do registro (o texto) com o momento da
dispersão e da brincadeira (o jogo). Os alunos se soltam da obrigação, delegada a outro, para se deleitar em risos e
brincadeiras.
Enquanto a escrita é mercadoria, marca de uma prática, de uma história, que para libertar-se da sua clausura,
necessita do leitor, o lápis e a borracha, também mercadorias modernas, aprisionados por um significado e uma prática
ganham liberdade nas mãos das crianças. É o brinquedo que permite essa fuga e o desmanche da mercadoria. “Tal como o
‘bricolage’, também o brinquedo serve-se de fragmentos e de peças pertencentes a outros conjuntos estruturais” que
transformam “antigos significados em significantes e vice-versa” (Agamben, 2005, p.87). Aí a mercadoria deixa de existir
momentaneamente para entregar-se ao fragmento de memória, de experiência e de história.
Para Benjamin:
O brinquedo, mesmo quando não imita os instrumentos dos adultos, é confronto, e, na verdade, não tanto da
criança com os adultos, mas destes com a criança. Pois quem senão o adulto fornece primeiramente à criança os seus
brinquedos? (2002, p.96)

As palavras de Benjamin refletem a contradição ocidental que está posta na relação construída entre o adulto e a
criança. Os adultos ainda tentando controlar os usos e as crianças cada vez mais insistindo em subvertê-los. Não importa que
os adultos dominem as formas culturais que cercam tais objetos o movimento das crianças é no sentido da reinvenção.
Contudo, o mais interessante não é só reinventar o jogo com as canetinhas, conforme as crianças fizeram durante a
aula, mas começar de novo. E ainda, para além do começar de novo, há sempre a possibilidade de reinventar. Passar pelo
desafio de romper com o tempo, com o interdito e experimentar o jogo fora da prescrição do adulto.

Cena IV: A experiência da Internet: brincando de reinventar a escola?


Durante o meu trabalho de campo nessa escola procurei observar com mais freqüência as atividades desenvolvidas
no laboratório de informática. Desta vez, a atividade observada se deu com outra turma do 2º ciclo, tratava-se de uma
pesquisa na Internet. Neste dia, a turma estava dividida, um grupo ficou na sala de aula e o outro veio para o laboratório. As
crianças estavam organizadas em duplas, ou seja, uma dupla de alunos para cada micro. O tema a ser pesquisado era sobre
um assunto que estava sendo desenvolvido no período: Alimentação Saudável.
Acompanhei uma dupla de meninos que tentava entrar no Google (site de busca da Internet). Eles escreviam
alimentação saudável e apareciam na tela os diversos sites sobre o assunto, mas eles não conseguiam identificar a página
como resposta ao comando deles. Era a página do índice com todos os sites sobre o assunto que eles desejavam pesquisar. A
dupla ficou muito tempo repetindo o mesmo comando, esperando que se abrisse um site. Numa das tentativas, ao escreverem
a palavra “alimentação”, o acento til não saía, somente o acento circunflexo e eles não conseguiam resolver. Depois de um
tempo, o Google respondeu dizendo ter entendido o que eles queriam dizer, mas mesmo assim faltava escolher o site. Neste
momento, me pareceu que as crianças não sabiam como prosseguir. A professora sozinha procurava atender às muitas
solicitações. As crianças também buscavam soluções com os colegas, se dispersavam, trocavam de mesa, enfim procuravam
diferentes maneiras de lidar com a ansiedade de resolver seu problema. A professora se aproxima, um deles responde:
“agente lemo tudinho... tem várias alimentação saudável!”.
Nesse momento interroguei-me sobre que diferenças e aproximações poderíamos fazer sobre o que as crianças
estariam nos chamando a descobrir entre o que acontece em sala de aula e as aparentes dificuldades de diálogo com a
internet.
A primeira dificuldade apresentada, sobretudo quando se deseja utilizar a web para pesquisar, é dada pelo índice.
Ao escrever o assunto que se deseja pesquisar abre-se uma lista de possibilidades, mas nem todas atendem ao que é desejado
tanto no que se refere ao conteúdo quanto no grau de complexidade. Outra dificuldade está na forma como estão organizadas
as informações, predominando o hipertexto. Para McKnight, Dillon e Richardson o hipertexto consiste em pedaços de
informação ligados entre si e que qualquer texto que se refira a outro, ou seja, que tenha uma conexão com outro texto pode
ser considerado um hipertexto. Por exemplo, “qualquer texto que use notas de rodapé pode ser visto como pedaços de
informação”. Eles também salientam que o seu diferencial está no seu funcionamento, como “machine-supported”.
Para os autores:
Quando o leitor escolhe um link do hipertexto, o ‘movimento’ entre os dois pedaços aparecem automaticamente.
Esta é a razão pela qual o advento do hipertexto teve que esperar pela combinação do poder de processamento e a
personificação da exibição no computador moderno (1993, p.2-3).

Neste sentido, a leitura e a construção do sentido se dão de outra maneira e não daquela em que estamos
acostumados nos textos lineares.
Ao executar uma busca, a criança terá que ter um objetivo inicial, isto é, tem que saber o que está procurando, deve
saber “seguir uma idéia rapidamente”. Para isto é necessário fazer constantes associações e relações entre as informações que
vão aparecendo na tela a cada janela que é aberta. Este procedimento parece com o de um leitor que, percorrendo as estantes
de uma biblioteca, tendo o nome do título e do autor de uma obra, não sabe qual é o capítulo exato ou a página em que está o
que procura. Tal procedimento, mesmo que implique em um mergulho em diferentes títulos e que haja uma dispersão, em
virtude de descobertas que ele vai fazendo durante sua procura, deverá ser bem sucedido na sua busca (id, p.6).

834
É fato que para utilizar a Internet é fundamental que a criança saiba ler palavras, ícones, etc. Contudo, se ela quiser
fazer pesquisas, movida pela sua curiosidade, possivelmente, mesmo com dificuldades, encontrará prazer nas descobertas,
tanto no que se refere aos labirintos da Internet, quanto nas imagens e textos que encontrará pelo caminho.

Cena V: Quanto tempo dura o novo?


Quando a professora propõe o jogo como atividade na sala de informática, as meninas, apesar de transitarem por
diversos tipos de jogos, escolhem com freqüência, os jogos disponíveis no site da Barbie. O jogo observado trata de uma
nova maneira de brincar com a boneca Barbie, inúmeros modelos de roupas e acessórios encontram-se disponibilizados ao
grupo de meninas que visitavam o site, trocando e combinando as roupas de acordo com a preferência de quem comandava o
mouse.
Antes, a brincadeira era coletiva, cada criança com a sua boneca, ou mesmo dividindo a mesma boneca, contavam
histórias que serviam como enredo para cada roupa que era vestida. Imaginavam o que estava acontecendo, elas conversavam
por meio das bonecas. Agora a boneca é virtual. Desta forma a brincadeira coletiva acontece de outra maneira, ou no mínimo,
está sendo reinventada. Por meio dos jogos virtuais as crianças experimentam mais possibilidades de ação, mesmo que seus
corpos estejam mais estáticos. A casa pode ser uma casa nova a cada dia, pois é possível mudar o papel de parede e trocar os
móveis e utensílios. O vestuário pode ganhar novas combinações. Imersos numa sociedade de consumidores, qual será então
as produções possíveis para as crianças? Como serão as novas narrativas feitas durante a brincadeira? Como serão as
histórias, agora não mais tecidas no fazer com as mãos, mas no movimento dos dedos no mouse ou nas teclas, fazendo do
olho o substituto do ouvido? Aí está o que o mundo moderno trouxe para o mundo infantil!
Então Gagnebin ressalta:
Se o novo está, por definição, destinado a transformar-se no seu contrário, no não mais novo, no obsoleto e no
envelhecido, então o moderno designa um espaço de atualidade cada vez mais restrito (...) (1994, p.56).

E a partir de Benjamin, a autora salienta ainda que:


“... esta compreensão da temporalidade é inseparável da produção capitalista, em particular do seccionamento do
tempo no trabalho industrial e da transformação dos produtos da atividade humana em mercadorias, ‘novidades’ sempre
prestes a se transformarem em sucata” (id, p. 59).

Cena VI: Que construções possíveis estão sendo narradas na escola?


Para Canclini “A identidade é uma construção que se narra” (1995, p.139).
Ao me deparar com esta afirmativa fiquei intrigada... Logo o autor explica que a identidade é fundada a partir da
história de um povo, suas conquistas, os acontecimentos que permearam a conquista de um território, as lutas que precisou
travar para protegê-lo e os registros de tudo isso que ficaram para perpetuar e consagrar os rituais e os discursos de uma
nação. Esta história tecida como se fosse uma rede entrelaçada e não como se estivesse sendo forjada a cada nó de uma
costura linear, feito da mesma maneira; compõe-se de experiências vividas, contadas e re-significadas por cada ouvinte com a
intenção de continuá-la.
Com a modernização, encadeada pelas industrializações, novas mídias, novas tecnologias, novas configurações são
propostas para velhas dicotomias: elites e massas, o próprio e o alheio, nacional e estrangeiro, culto e popular, cidade e
campo e possivelmente outras. E os grupos hegemônicos, ainda no controle da informação, dos meios de produção, dos
meios para divulgá-la, tentam influenciar os discursos e fazer a narrativa.
Contudo, a identidade pode ser propagada e reinventada, principalmente por meio de narrativas, difundidas em
livros, museus e pela mídia.
Salgado, Pereira & Jobim e Souza problematizam a relação da mídia com o público infantil, principalmente no que
se refere ao que é veiculado pela televisão, como: desenhos animados, anúncios publicitários, etc. que “podem ser
considerados discursos culturais” e, portanto “expressam formas de conceber a infância no mundo contemporâneo e de
estabelecer diálogos com as crianças, convidando-as a participarem do mundo”. E valendo-se Bakhtin (1992), as autoras
salientam: “o discurso que vem do outro, aberto a transformações, penetra em nossa consciência, provocando o nosso
discurso como resposta, a contrapalavra”. E reafirmam:
A pesquisa com crianças, nesta perspectiva dialógica (Jobim e Souza & Castro, 1997; Jobim e Souza, 1994), abre
brechas para a construção de uma "contra-imagem" da própria criança. Assumir o princípio metodológico da dialogia no
processo de pesquisa com crianças, no qual o pesquisador é sempre o adulto - um Outro por excelência com relação à criança
-, significa deixar ouvir as vozes que foram ou que estão emudecidas. Em uma cultura infantil, em que a presença do adulto
(seus valores, sua autoridade, seu saber e suas experiências) tem se esvaziado a cada dia, o resgate do diálogo entre crianças e
adultos, mais que um princípio metodológico, consiste em um princípio educativo, de modo que o adulto possa compreender
a criança, deixando-se surpreender pela sua singularidade, e a criança possa ver no adulto outras formas de perceber e lidar
com a vida contemporânea” (2005, p.8).

Mesmo consciente do tamanho da citação achei importante trazê-la aqui, dada a sua relevância para a reflexão ora
desenvolvida. Assim, como a escola lidará com as novas apropriações que as crianças trazem de suas outras experiências

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cotidianas, fora da escola, com o computador? E que pensar de identidades em movimento num mundo de aceleradas
transformações?
Em que medida a modernização da escola possibilita à criança não aderir simplesmente ao que lhe é imposto, mas
criar uma relação dialógica entre o próprio e o alheio?
Para concluir...
Apesar da chegada dos computadores à escola trazer novas possibilidades de aprendizagem, faz conviver o velho e
o novo no mesmo tempo e espaço que lhe é dado ainda não rompeu com o modelo escolar de ensinar e aprender.
As professoras e os alunos procuram fazer uso do computador a partir das suas experiências. Neste sentido, mesmo
no espaço escolar, a relação entre professoras e alunos é recriada diante da tela. Tanto a professora busca redefinir o lugar de
quem ensina aprendendo, como o aluno, o lugar de quem aprende, ensinando. Ao mesmo tempo em que ambos estranham o
objeto novo, sentem-se seduzidos em descobri-lo. Os problemas continuam sendo apresentados, alguns relacionados com as
práticas já existentes e outros frutos de novas descobertas. As práticas existentes na escola acabam por apresentar a
convivência entre o novo e o velho. Nesta convivência criam-se tensões e desafios.
Então, assim como o texto está deixando de ser linear, o tempo já não é, está cheio de concomitâncias, ocorre
diferentemente em espaços diversos e não pode ser aprisionado para ser narrado e nem pode criar textos universais. A criança
reedita o tempo por meio do brinquedo, força o adulto a libertar-se e, portanto, escreve a história do presente. E
parafraseando Gagnebin:
É porque a in-fância não é a humanidade completa e acabada, é porque a in-fância é, como diz Lyotard, in-humana
que, talvez, ela nos indique o que há de mais verdadeiro no pensamento humano: a saber, sua incompletude, isto é, também a
invenção do possível (1997, p.99).
A escola passa a ser um lugar de muitas possibilidades...

Referências Bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. (2005). ‘Infância e história’. Belo Horizonte, MG: Editora Humanitas.
BENJAMIN, Walter. (2002). ‘Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação’, São Paulo, SP: Editora 34 Ltda.
CANCLINI, Néstor García. (1995). ‘Consumidores e Cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização’, Rio de Janeiro, RJ:
Editora UFRJ.
CERTEAU, Michel de. (2001). ‘A Invenção do Cotidiano’, Petrópolis, RJ: Editora Vozes.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. (1994). ‘História e narração em Walter Benjamin’, Campinas, SP: Editora da Unicamp; São
Paulo, SP: Editora Perspectiva.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. (1997). ‘Infância e pensamento in Infância, escola e modernidade’, São Paulo: Editora Cortez;
Curitiba, PR: Editora da UFPR.
FERRAÇO, Carlos Eduardo. (2006). ‘Os Sujeitos das escolas e Complexidade de seus fazeressaberes: Fragmentos das redes
tecidas com o Cotidiano’ In GARCIA, Regina Leite & ZACCUR, Edwiges (orgs.). (1993). ‘Cotidiano e diferentes saberes’,
Rio de Janeiro, RJ: DP&A.
McKNIGHT, Cliff; DILLON, Andrew & RICHARDSON, John. Hypertext in Context. Cambridge: Cambridge University
Press.
MARTÍN-BARBERO, Jésus. (2006). ‘Dos meios às mediações – Comunicação, cultura e hegemonia’, Rio de Janeiro, RJ:
EditoraUFRJ.
PAIS, José Machado. (2001). ‘Vida Cotidiana. Enigmas e revelações’, São Paulo, SP: Cortez Editora.
SALGADO, Raquel G., PEREIRA, Rita Marisa R. & JOBIM E SOUZA, Solange. (2005). ‘Pela Tela, pela Janela: Questões
Teóricas e Práticas sobre a infância e televisão’, Cad. CEDES, v. 25, n. 65, Campinas, jan./abr. Disponível em <
http://www.cedes.unicamp.br>

Criança constituindo-se sujeito na sala de aula

Patrícia Cava
Universidade Federal de Pelotas
pcava@via-rs.net

Resumo: Pautada pelo problema de pesquisa, “Como a criança que não está aprendendo na escola vai se constituindo sujeito de
conhecimento e de singularidade”, desenvolveu-se uma pesquisa de campo, numa turma de segunda série do ensino fundamental, numa
escola pública, na cidade de Pelotas (RS/ Brasil), por intermédio de observações em sala de aula e entrevistas. O trabalho, resultado do
doutoramento em educação, pretendeu olhar para o sujeito-criança como um ser constituído e em formação, ao mesmo tempo; entender o
processo de aprendizagem mediante suas interdições e emergências; compreender como e por que as representações calcificadas do que vem
a ser um aprendiz se mantêm; identificar formas de resistência ao instituído, utilizadas pelo sujeito-criança na escola e verificar os processos
de conhecimento que aí transitam. O foco desta pesquisa foram sete crianças encaminhadas pela professora para as aulas de apoio

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pedagógico, oferecidas na escola, no turno inverso ao das aulas. Além das crianças, foram entrevistadas suas mães, um dos pais e a
professora da turma. O referencial teórico pautou-se pela interlocução com autores como Piaget, Morin, Bachelard, Meirieu. As categorias de
análise apresentam-se em quatro temas que constituem o sujeito-criança na escola: dos sujeitos e de suas relações; da infância; da escola e do
aprender. Os dados indicam a necessidade de reconhecimento do sujeito na criança, para que o sujeito singular possa de fato manifestar toda
sua singularidade e desenvolver seu conhecimento. Sujeito de direitos. Direito às necessidades humanas fundamentais, que possibilitem
liberdade de escolhas e emancipação.

Introdução
Pautada pelo problema de pesquisa, “Como a criança que não está aprendendo na escola vai se constituindo sujeito
de conhecimento e de singularidade”, e com os objetivos de entender o processo de aprendizagem mediante suas interdições;
compreender como e por que as representações calcificadas do que vem a ser um aprendiz se mantêm; identificar formas de
resistência ao instituído, utilizadas pelo sujeito-criança na escola e verificar os processos de conhecimento que transitam na
escola, desenvolvi uma pesquisa qualitativa de tipo etnográfico.
A pesquisa de campo realizou-se numa turma de segunda série do ensino fundamental, numa escola pública,
durante o ano letivo de 2005, por intermédio de observações em sala de aula1 e entrevistas. O foco desta pesquisa foram sete
crianças encaminhadas pela professora para as aulas de apoio pedagógico, oferecidas na escola, no turno inverso ao das aulas.
Além das crianças, entrevistei suas mães, um dos pais e a professora titular da turma.
O referencial teórico pautou-se pela interlocução com autores como Piaget, Morin, Bachelard, Meirieu. Busquei
responder ao problema de pesquisa guiada pelas seguintes hipóteses:
1 – O determinismo proveniente de uma lógica dedutivo-identitária2 deixaria a criança que não está aprendendo na
escola por demais marcada, ocupando o não-lugar em relação ao conhecimento e recebendo atitudes desencorajadoras, o que
dificultaria o movimento em direção ao aprender.
2 – Por desconhecer os processos de conhecimento de seus alunos, a professora se apegaria por demais a marcas de
identidade da criança que não está aprendendo, não a ajudando a desenvolver atitudes de aprendizagem.
3 – As interdições e quebras no processo de aprendizagem revelam não-linearidades (ou circularidades) presentes
no próprio ato de conhecer e no próprio percurso de se constituir sujeito.
4 – A dificuldade no processo de comunicação entre adulto e criança, no ambiente da escola (na qual pouco se leva
em conta a opinião de alunos e alunas, na elaboração do planejamento, execução e avaliação das atividades, de acordo com
suas idades), tornaria as crianças pouco participativas, na medida em que se sentem submetidas ao desejo e à lógica dos
adultos, sem espaço para sua manifestação como sujeitos de vontade e de ação.
Apresento neste artigo os resultados dessa pesquisa, em quatro grandes temas – as categorias de análise – que
constituem o sujeito-criança na escola: dos sujeitos e de suas relações; da infância; da escola e do aprender. Acredito, a partir
das reflexões aqui expostas, que estudar questões referentes à constituição dos sujeitos, aos processos de aprendizagem, à
produção e à transmissão do conhecimento, desde a educação infantil até o ensino superior, é tarefa primordial para quem
trabalha na formação de professores, que atuarão com crianças, adolescentes e adultos em práticas de ensino e de
aprendizagem.

Dos sujeitos e de suas relações


As crianças desta pesquisa, com exceção de uma delas, nasceram no próprio bairro, onde fica localizada a escola
pesquisada. Portanto, a identidade com o lugar, bairro de periferia, com dificuldades básicas de saneamento, luz, água,
pavimentação das ruas e complementado pela dificuldade de espaços públicos de lazer, conforma um viver na cidade e um
constituir-se sujeito nesse espaço-tempo.
Nas preferências, quereres, consciência destas crianças, estas vão dando inúmeras indicações do jeito como vão se
constituindo sujeitos de singularidade e de conhecimento: têm consciência de que não sabem ler; sentem-se “ruim” e “burra”
por não conseguirem aprender; não fazem as coisas porque não sabem; demonstram saber o que é mais fácil e o que é mais
difícil de fazer na sala de aula; sentem medo de levar os livros da biblioteca para casa, pois podem estragá-los e ter que pagá-
los, quando em casa circulam muitas pessoas, os espaços são pequenos e elas nem sempre conseguem ter o controle sobre
seus materiais; percebem que as práticas de leitura e escrita na escola são poucas; têm consciência de que prestar atenção,
ouvir a professora, fazer os temas, as provas, ter bom comportamento são condições importantes para tornarem-se aprendizes
na perspectiva da escola; sentem quando são injustiçadas na sala de aula por colegas e mesmo pelas professoras.
Enfim, as crianças manifestam-se como sujeitos de ação e de vontade, apesar da escola, no geral e os adultos, em
particular, teimarem em não ouvir e não enxergar tais manifestações, pois estas quando acontecem são nas brechas, nos
“socos e pontapés”, no “emburramento”, na “distração”, no “apego”, na “troca de olhares”, no “não fazer”. Ouvir tais

1
Realizei observações em sala de aula, com a professora titular, além das aulas de educação física, artes, biblioteca, apoio e recreio orientado, desenvolvidas por
outras professoras da escola.
2
Morin (2001, p. 215) utiliza tal conceito ao referir-se a uma lógica clássica: esta “fecha-se na indução e na dedução, colocando fora da lógica o que é realizado
pela invenção e pela criação”.

837
manifestações é um aprendizado, que só acontece quando reconhecemos em nossos alunos os sujeitos constituídos que o são,
e não apenas, ao vê-los como um vir a ser.
Por sua vez, as mães e pai destas crianças, contrariando o que o senso comum costuma dizer sobre as mães das
crianças de classes populares, demonstram conhecer os caminhos e descaminhos percorridos por seus filhos e filhas na escola
e expressam suas opiniões sobre o que consideram importante na relação pedagógica. Reconhecem que só o
convencionalmente certo é aceito pela escola, então quando seus filhos trocam letras, erram as operações matemáticas, não
sabem interpretar os problemas, porque não conseguem ler, colecionarão fracassos e terão a reprovação, como resultado.
Frente a esse quadro às vezes se desesperam, outras vezes ficam desesperançosas, outras agressivas, descontando ora na
escola, ora na professora, ora nos próprios filhos tais sentimentos. Percebem que os filhos e filhas se distraem, esquecem, são
agitados, não acompanham, sofrem as conseqüências pelas desventuras de suas vidas. Inquietam-se por seus filhos não
aprenderem apesar de freqüentarem a escola todos os dias. Comparam-se com seus filhos, enxergando neles suas próprias
dificuldades no seu tempo de escola.
Ao mesmo tempo indicam o que consideram importante para seus filhos terem sucesso na escola: maior diálogo
com a professora, para entender os motivos e razões das dificuldades das crianças e para aprender como fazer para ajudá-las;
mais tempo para a aprendizagem. Por outro lado, percebem, assim como seus filhos, que o bom comportamento, o ficar
quieto, o prestar atenção, o não conversar, ou seja, as representações calcificadas do que vem a ser um aprendiz, contam
pontos na ascensão destes na escola e, portanto, insistem em tais atitudes com seus filhos e filhas.
A professora, ao falar das características dos seus alunos em situação de dificuldade na escola, demonstra suas
concepções de ensino-aprendizagem, seu jeito de olhar os alunos, mesmo que de maneira implícita. Qualifica alguns de
imaturos, distraídos, isolados, inseguros, outros de desinteressados, preguiçosos, pouco sociáveis, revoltados. Reclama que
alguns alunos “não acompanham” os conteúdos de sala de aula, mas por outro lado, ela também não consegue, muitas vezes,
acompanhar o processo de aprendizagem de seus alunos, dizendo que alguns têm “problemas psicológicos”, mas que apenas
ouviu falar de tais problemas. Parece que ao não compreender o desenvolvimento da criança e não ter elementos teóricos para
refletir sobre seu processo localiza na criança problemas psicológicos gerais, imaturidade, falta de concentração, falta de
empolgação, entre outros elementos presentes na fala da professora.
As manifestações da professora expressam suas expectativas ou falta delas em relação aos seus alunos e alunas:
aqueles que segundo ela têm chances de passar para um “nível de terceira série”, aqueles que se alfabetizam com “chances de
repetir a segunda série já alfabetizados”, aqueles que podem ter, ou não, “estalos de leitura”. Dessa maneira também vai
conformando uma maneira de olhar para as crianças em situação de dificuldade na escola, esboçando, muitas vezes, atitudes
desencorajadoras, ou falta de investimentos teóricos nessas atitudes – interações problematizadoras e afetivas.
Como pesquisadora, questiono: a criança se isola sentando no fundo da sala de aula ou é a forma como o ambiente
está organizado que isola algumas crianças? As crianças esquecem, ou como diz Dolle (2004, p. 65), “não foram
‘solicitadas’, no sentido de estruturar suas representações, seja em relação ao espaço, seja em relação ao tempo, ou mesmo no
sentido lógico e causal”? As crianças não demonstram interesse pelas atividades ou elas não têm os esquemas necessários
para realizar determinadas assimilações (PIAGET, 1987)? As crianças não aprendem ou é a falta de investimento teórico-
prático que não permite que essas crianças aprendam?
Este é um primeiro panorama dos sujeitos desta pesquisa. Nos próximos itens os dados ajudarão a compor outros
traços constitutivos desses sujeitos e outros elementos importantes para a interlocução necessária entre teoria e empiria.

Da infância: ou dos direitos das crianças


O lugar da infância foi sendo construído ao longo da história da humanidade. Segundo o historiador francês
Philippe Ariès (1981), até o final do século XIX as crianças apareciam misturadas com os adultos na vida cotidiana, apenas
no final daquele século percebe-se uma tendência em separar o mundo dos adultos do mundo das crianças. Três sentimentos
da infância3 foram marcando essa construção. A consciência da particularidade infantil constrói-se sob a marca do
disciplinamento corporal e mental, do enclausuramento e separações por idades, classes e gêneros na escola. Distinções que
vão dando um contorno ao ser criança, ao seu corpo, a forma como vive e ocupa seu tempo e seu espaço. Ao longo da
história constituíram-se saberes a respeito da infância que foram dando sentidos ao ser criança.
Assim como o sentimento da infância foi sendo construído ao longo da história, também o foram os direitos das
crianças, como relata Ruth Rocha (2002). Ela localiza na Revolução Francesa, em 1789, mais precisamente, na “Declaração
dos direitos do homem e do cidadão” tal origem. O documento falava em direitos universais do homem que precisavam ser
respeitados. Em 1924, após a Primeira Guerra Mundial foi redigida a primeira “Declaração dos direitos das crianças” que
“afirmava o direito do menor ao crescimento normal, protegido de todo tipo de exploração”. Em 1948, a ONU (Organização
das Nações Unidas), criada após a Segunda Guerra Mundial, aprovou a “Declaração universal dos direitos humanos”,
afirmando mais uma vez a dignidade e o direito de todos os seres humanos. Juntamente com a ONU foi criado o Unicef
(Fundo das Nações Unidas para a Infância), com a finalidade de dar assistência a crianças vítimas de guerras e expandindo-se
posteriormente, para o resto do mundo.

3
Ao falar em sentimento da infância, Ariès refere-se à consciência da particularidade infantil ao longo da história. Os três sentimentos são: a possibilidade de
paparicar as crianças; a preocupação em discipliná-las e preservar os costumes; a preocupação com a higiene e a saúde física destas.

838
Em 1989, o Brasil participou da “Convenção sobre os Direitos da Criança”, assumindo juntamente com outros
países “o compromisso de dar assistência aos pais ou responsáveis por menores de dezoito anos” (ROCHA, 2002). Como
decorrência dessa participação, em 1990 foi promulgado então o “Estatuto da criança e do adolescente” 4 (ECA), dando força
de lei à preocupação com o menor de idade.
Entre os direitos previstos no ECA estão os referentes à vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer,
profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária. O direito à liberdade (artigo
16) compreende, entre outros aspectos, os direitos de ter opinião e expressão e o de brincar, praticar esportes e divertir-se.
Não estarão infringindo-se tais direitos?
O brincar aparece na fala das crianças desta pesquisa como um constituinte significativo do sujeito-criança e, ao
mesmo tempo, como algo roubado delas5. Questiono a partir dos dados: qual o lugar (em tempo e espaço) do brincar no
cotidiano da escola e na vida destas crianças? Como a brincadeira é tratada pelos adultos? São as crianças que precisam
cometer transgressões para brincar ou são os adultos que estão descumprindo sua responsabilidade em proporcionar
momentos de brinquedo livre às crianças?
Dirão alguns, me acusando de romântica: mas as crianças não sabem brincar, ao invés disso, elas se machucam e
machucam os outros!6 Retomarei, do alto do meu romantismo, minha questão: a extinção de espaços de convivência e da
experiência do jogo e do brinquedo, entre crianças, irá diminuir as práticas de violência e de agressão ou só fará aumentar tais
práticas, numa sociedade já tão desumana?
O lúdico pede passagem nas falas e ações cotidianas das crianças. Mas quais são os momentos em que a escola
permite ao lúdico manifestar-se? Nas aulas de artes e de educação física? Por quê? Serão esses espaços pouco sérios,
possibilitando o brinquedo, a expressão criadora e a manifestação de vontade, ou serão esses também espaços cerceadores?
Mas na aprendizagem da língua escrita e das operações matemáticas também não é necessário o direito à opinião, à
expressão, ao lúdico (para voltar aos direitos)?
Brincar é levar a vida a sério sim! Piaget (1978), apropriadamente, discute o lugar do jogo, ou atividade lúdica, na
formação do símbolo na criança, a fim de demonstrar sua importância no desenvolvimento cognitivo dos sujeitos humanos.
No entanto, as crianças desta pesquisa reproduzem o discurso dos adultos de que brincar impede a aprendizagem. Estão lhes
ensinando a seriedade conformista desde pequenas. Desde cedo na escola desenvolvem-se apenas atitudes referentes ao
sujeito prosaico, de que nos fala Morin (2002), sério e utilitário, desestimulando a constituição de sujeitos poéticos,
imaginativos, criativos. Quais serão as razões para tanto? Já sabemos a resposta: o tal desenvolvimento de um espírito sério,
responsável condizente com um sujeito trabalhador, para sobreviver na sociedade capitalista.
Precisamos ser sérios como uma criança sonhadora, como nos ensina Bachelard (2001), para vislumbrarmos
alguma possibilidade de alteração desse quadro, acreditando, fundamentalmente, na constituição de sujeitos singulares e de
conhecimento emancipados. Será que constituir-se sujeito de direitos nas classes populares é ainda mais difícil?
Lembro o verso de Ruth Rocha (2002): “os direitos das crianças todos têm de respeitar”. Para isso, penso,
precisamos desenvolver o espírito inventivo e crítico das crianças – com atitudes responsáveis e corajosas; precisamos
permitir às crianças verem o mundo com seus próprios olhos e não através dos nossos olhos de adultos; praticar idéias de
solidariedade e responsabilidade; transformar nossas escolas públicas e gratuitas em escolas de vida, como nos ensina Morin
(2003), em escolas da língua, da expressão, da poesia, da descoberta de si, da complexidade e da compreensão humanas. Os
direitos das crianças das classes populares avançaram, mas ainda é preciso muito para falar em igualdade de direitos.

Da escola: trajetórias, sentidos e experiências


Ah, a escola! Lugar onde se apreende o mundo, ou prende-se ao mundo? Isso não é trocadilho, antes fosse! É
fundamentalmente, um grande dilema vivido na escola, por aqueles que nela atuam, sejam sujeitos ensinantes ou sujeitos
aprendentes. Apreender um mundo novo de possibilidades e emergências ou prender-se a uma realidade limitada e
impeditiva? Criar e desenvolver um texto inédito ou apenas repetir o texto reservado ao seu papel?
Ao pensar a escola, discuto na pesquisa, as trajetórias escolares das mães, pai, professora titular e a atualização
dessas na vida escolar dos filhos e filhas e dos alunos e alunas, refletindo-se de alguma maneira no sentido dado à escola por
crianças e adultos. E, por fim, as experiências em realização na escola conformando diferentes tipos de sujeitos a partir de
determinadas concepções epistemológicas, pedagógicas e humanas.
As trajetórias escolares expõem conflitos e angústias dos sujeitos, interdições em seus processos de formação
humanos, as marcas que os percursos impõem. Mas, ao mesmo tempo, emergências geradoras de mudanças, possibilidades
de criação e emancipação nesse circuito recorrente, que não significa mera repetição de dificuldades, mas que indica a
necessidade de um esforço sobre-humano de compreensão dessas dificuldades para posterior superação.
As interdições nos mostram sujeitos boicotados no direito de estudar por diversas motivações externas e internas.
No caso das mães e pai destas crianças, excluídos da escola antes de concluí-la, no caso da professora, também boicotada em

4
Lei Nº. 8069, de 13 de julho de 1990.
5
Um dos elementos marcantes desse “roubo” é a ausência do recreio todos os dias na escola. Este acontecia, no período da pesquisa, apenas uma vez por semana
e com orientação da professora.
6
Essa é a idéia preponderante nas falas de mães e professora desta pesquisa.

839
algumas de suas vontades, mas com a oportunidade de ter alcançado o ensino superior. São dificuldades materiais;
dificuldades de entendimento cognitivos e humanos; medo em não ser aceito; vergonha em não atender ao esperado pela
sociedade; luta para apropriar-se da língua escrita e da linguagem dos números, considerados básicos, mas tão complexos em
sua construção. Essas e outras interdições reveladas pelos sujeitos nos falam de uma escola dura, utilitária, séria e fria, que
não leva em conta sujeitos humanos em construção.
As emergências revelam, por outro lado, sujeitos pensando sobre suas realidades e questionando as mesmas com
seus recursos racionais e simbólicos. Questionam as relações de autoridade entre crianças e adultos; as exigências da escola
para a produção de aprendizes; refletem sobre a necessidade do afeto e da atenção na relação entre professores e alunos; a
importância da valorização do conhecimento; as formas efetivas da participação dos pais das classes populares na escola.
Essas e outras emergências nos mostram uma escola humana, solidária, complexa que precisa levar em conta sujeitos em
busca de emancipação.
Os sentidos da escola para as mães atualizam, em seus filhos, de alguma maneira, as expectativas geradas em suas
trajetórias. O estudar como possibilitador de melhores condições de vida, que envolvem ter acesso ao mundo letrado, para ter
um trabalho melhor ou, simplesmente, ler os bilhetes da escola dos filhos que porventura venham a ter, ou ler o nome das
ruas por onde passarem, num futuro incerto de adulto. Repetições de um script já representado. Mas, os sentidos trazem
também novas possibilidades de significação a esse palco que é a escola: brincar, jogar, desenhar, passear, escrever para
descobrir um mundo que não é dado de antemão, mas que é construído e cuja construção abre novas possibilidades de leitura
e atuação nesse próprio mundo.
As experiências em realização na escola, por sua vez, acontecem num espaço e num tempo determinados, no
espaço da sala de aula, no momento pedagógico7. Após analisar e refletir, na pesquisa, as diferentes atividades de sala de
aula, nos diferentes espaços e tempos da escola e as idéias que aí circulam, sinto-me perante uma aparente certeza pedagógica
instalada na escola e pouca surpresa em face da existência do aluno. Os programas já estão dados; o tempo para desenvolvê-
los também; a forma como se trabalham os conteúdos repetem-se ano após ano, mesmo quando o profissional que chega à
escola seja novo, até porque se sair do script programado terá problemas; a avaliação já está definida.
Nesse palco montado, os diferentes atores assumem seus papéis. Se eu desempenho o papel de professora onde o
lúdico pode fazer-se presente eu posso sorrir, fazer brincadeiras e não ter maiores preocupações com a aprendizagem de meus
alunos. Se eu ocupo o papel de protagonista, sendo a professora titular da turma, a forma de atuar muda, nesse espaço preciso
ser séria, disciplinada, para que meus alunos obtenham a aprovação, ao final do espetáculo.
Até o texto parece ser sempre o mesmo, as reclamações, as queixas, os alunos que aprendem, os alunos que não
conseguem aprender já são esperados. Os demais atores em cena acabam entrando no espetáculo, cumprindo os papéis que se
lhes espera: as mães das crianças dos alunos que não aprendem resignam-se com o fato de seus filhos não conseguirem
aprender, tomando muitas vezes para si e seus rebentos a responsabilidade para tais impossibilidades; as crianças, por sua
vez, também repetem o texto das suas impossibilidades, das suas faltas, reafirmando seu lugar na cena, o lugar do não-
aprender, chegando muitas vezes a desistir de seguir em frente.
Se o momento pedagógico é o instante onde professores e alunos estão colocados frente a frente, em suas
materialidades concretas, o espaço pedagógico, é um texto a ser lido (FREIRE, 1996). E é essa leitura que pretendi fazer, pois
a escola, assim como a vida, não segue um script determinado, mas envolve situações incertas, onde os programas não
bastam!
Talvez as brechas estejam ainda apenas nos momentos de conflito e embate entre alunos e professores, momentos
em que os preconceitos e insatisfações vêm à tona, momentos em que as diferenças gritam por seus espaços, insistindo para
mudanças de atitudes. As brechas podem estar também no momento em que o aluno e o professor possam dizer sem medo
nem vergonha: “não sei, mas quero aprender, me ajuda”; “me ajuda a te ensinar que eu te ajudo a aprender”; no momento em
que o pedido de ajuda seja possível sem que a criança e mesmo o professor sejam ridicularizados. Desinstalando-se de seus
papéis resignados para a criação de novos papéis sem roteiro pré-definido.
Notamos que a dificuldade na aprendizagem das crianças, na escola, se deve, entre outras razões, à dificuldade na
comunicação entre professoras-alunos, professoras-professoras, tanto por intermédio da fala – escassez/excesso/desperdício
desta – como por intermédio da pouca escuta de gestos e atitudes; à dificuldade das professoras em entender a forma de
pensamento das crianças, ou em não conseguirem descentrar-se do seu ponto de vista para melhor compreender o ponto de
vista do sujeito aprendente.
As dificuldades na comunicação; as diferenças de interesses; o desconhecimento; as impaciências; os medos e
vergonhas; as exclusões; entre outros motivos, impedem a circularidade de saberes, de quereres, de entendimentos entre
professoras e alunos, no momento pedagógico. No resistir a tais impeditivos está a presença das “emergências do humano
que se exercita em ser” (BACHELARD, 2001, p. 106).
O aluno concreto, do seu lugar, fala um outro texto que precisamos escutar: fala da importância da presença do
outro na aprendizagem, do olhar atento, da escuta responsável; do tempo necessário às suas ações; do seu repertório de
brincadeiras e jogos e das suas maneiras de interagir nesses momentos; do mal estar provocado por determinadas atitudes e

7
Conceito desenvolvido por Meirieu (2002, p. 58): “[...] é a irrupção da materialidade aleatória do outro [aluno concreto], dessa ‘matéria’ rígida e firme que
resiste à potência de meu pensamento e de meu projeto [professor]”.

840
práticas na escola; da necessidade em exercitar suas criações e poder manifestá-las a fim de tornar-se o sujeito de suas
próprias aprendizagens.
Falta à escola reconhecer o sujeito na criança; falta à escola “atribuir sentido ao que se troca, ao menor gesto, ao
menor grito, à menor transação afetiva e cognitiva” (MEIRIEU, 2002, p. 112). Faltam à escola coisas básicas: recreio,
socialização, afeto, diálogo, respeito, aprendizagens. Até quando fingiremos escutar as crianças e seguiremos com nossas
atuações já definidas, pois dão menos trabalho, provocam menos inquietações e desconforto, causam menos incomodações
para nós adultos? Quando a escola se tornará palco de um teatro onde sejam possíveis desenvolvimentos improvisados e o
final jamais seja previsto de forma concludente?
A presença dessa certeza pedagógica na escola, sobre a qual falei no início deste item, responsável pela repetição
do mesmo, só impede a constituição de sujeitos livres para manifestar sua singularidade e desenvolver seu conhecimento.
Precisamos romper com esse círculo vicioso e perceber que há uma circularidade no mundo da vida que exige outras formas
de compreensão ao mundo da escola.

Do aprender: encontros e resistências


Ao ouvir dos diferentes sujeitos as razões para aprenderem ou não-aprenderem, ao olhar as estratégias de ação
utilizadas no espaço da sala de aula, os indicadores de colaboração na aprendizagem e as dificuldades e resistências presentes
nas atitudes de crianças e professoras estabeleço um diálogo com algumas idéias presentes na obra de Meirieu (1998),
Frankenstein educador. Pretendo, neste item, pensar quais as exigências necessárias para que as crianças realmente aprendam
na escola, ao invés de seguirmos pensando nas exigências da escola nessa produção.
Meirieu em seu livro traz sete exigências para o que ele aponta como uma verdadeira “revolução copernicana” em
pedagogia: situar no coração da educação a construção de um sujeito no mundo.
A primeira exigência defendida pelo autor: “o acolhimento”. A renúncia em exercer com a criança o nosso desejo
de dominação, de tê-la como a continuidade de um caminho e, ao mesmo tempo, a ruptura com o caminho dado e também da
necessidade de acolhimento àquele que chega. Essa necessidade de acolhimento seja por intermédio da atenção, do apego ou
do pedido de ajuda foi manifestada pelas crianças desta pesquisa, ao mesmo tempo a renúncia ao desejo de dominação foi
pouco experimentada pelos adultos. Tal renúncia não implica a abstenção pedagógica, mas o respeito ao sujeito criança em
formação e suas possibilidades de manifestação.
A segunda exigência diz respeito à presença de alguém que resiste no ato educativo. Nesse sentido, educar é negar-
se a entrar na lógica da exclusão ou do enfrentamento, lógicas tão presentes na escola, como constatamos em nossos dados.
Educar exige reconhecer que a fonte do progresso intelectual do aluno não está na qualidade do espetáculo em si, mas no que
tal espetáculo provoca nele, nas conexões estabelecidas com o que já sabe, e, sobretudo, no que o aluno faz com tudo isso.
O autor chega assim a formular a terceira exigência para essa revolução: aceitar que a transmissão sempre “supõe
uma reconstrução, por parte do sujeito, de saberes e conhecimentos” (MEIRIEU, 1998, p. 77) 8 e que não se realiza de modo
mecânico. Isso significa pensar que só o sujeito pode decidir aprender, mas os educadores não podem renunciar a ensinar. A
aprendizagem deriva de uma decisão que só o outro pode tomar. Nós, professores, pesquisadores, mães e pais insistimos em
querer saber o que as crianças podem e devem aprender sem deixar a elas a possibilidade de ruptura com a repetição do
mesmo e a abertura ao imprevisível que nos assusta e as encanta. Aprender é negar-se a repetir modelos prontos. É construir
novidades que desestabilizam o estabelecido. Aprender é um ato de rebeldia!
A quarta exigência em direção à revolução copernicana em pedagogia consiste, na perspectiva de Meirieu (1998),
em reconhecer o caráter irredutível da decisão de aprender. Educar deve ser um espaço de resistência em um espaço de
segurança. Resistência contra os excessos de individualismo e contra a competição. A educação deve possibilitar aos sujeitos
que ocupem seus espaços, mas que se atrevam a mudá-los num espaço de segurança, onde não sejam ridicularizados, onde
possam errar sem ter medo, onde possam pedir ajuda sem serem pressionados.
Nessa direção, o autor aponta a quinta exigência dessa revolução, a pedagogia deve criar espaços de segurança para
que a criança possa aprender. O educador precisa criar espaços e referências que possibilitem aos alunos construírem sua
relação com o saber. Criar espaços a quem chega e oferecer-lhe meios para ocupá-los. Nossos dados apontam a falta de
espaços apropriados ao desenvolvimento das crianças e a falta de referências para suas aprendizagens.
A sexta exigência consiste em pensar a autonomia do sujeito, a qual se adquire no curso de toda a educação. O
autor enfatiza a importância de combater a ilusão da autonomia como um estado definitivo e pensá-la como um processo que
nunca termina realmente. O educador precisa organizar um sistema de ajudas que permita ao sujeito aceder aos objetivos que
se fixa até poder prescindir de tais ajudas, num sistema de vinculação e emancipação. Como exigir que as crianças aprendam
sem espaços de segurança e sem um sistema de ajudas?
A sétima e última exigência em direção à revolução copernicana: pensar a pedagogia como um projeto e não como
um caminho traçado. Pensar na pedagogia como movimento, um movimento que permita percorrer nossos percursos como
caminhos jamais acabados.

8
As citações de Meirieu presentes neste item, da obra de 1998, Frankenstein educador são traduções minhas, da tradução espanhola de sua obra.

841
Para isso convém estarmos atentos às diferentes manifestações dos alunos em sala de aula, ao que possibilita o
encontro com o outro – as idéias de inventividade, as estratégias de ação – e, ao que rompe esse encontro – exclusões e
impeditivos. Encontro e rompimento como dois termos da ética pedagógica que exigem do professor ao encontrar uma
resistência, compreendê-la para superá-la, mas novamente escutando o que o outro diz ao resistir. Convém indagar: como
fazer da sala de aula um lugar de invenção e de encontros, sem renunciar a tarefa educativa?
Meirieu nos dá pistas: pensar a resistência como indicação de que há um outro alguém no ato educativo e, ao
mesmo tempo, não há dois alunos que aprendam do mesmo jeito, mas cada um apresenta seus repertórios, suas estratégias: o
educador precisa pensar em métodos diferenciados de ensino. Meirieu (1998, p. 108) argumenta: “quando só há um método,
um único meio de acesso ao saber, ‘só os mais adaptados sobrevivem’ e têm êxito”. Essa situação é a que mais observamos
com os sujeitos desta pesquisa. Os mais adaptados sobrevivem e os outros são jogados entre determinações externas e
internas, sem maiores opções, ou se adaptam à lógica da escola, reproduzindo-a interminavelmente, ou mantém-se na
periferia do conhecimento assumindo para si a responsabilidade desse lugar, como se tivessem tido opções de escolha!
É fundamental ao professor fazer a ponte entre a cultura do mundo do aluno e a cultura da escola, buscar sentidos
ao que ensina e aplicações aos saberes. O homem para desenvolver-se precisa de cuidados e da arte da conversação. Essa
conversação, alerta o autor, não significa de forma alguma tagarelice ou doutrinamento, mas uma interlocução com um
professor que “permite a alguém pensar-se a si mesmo em sua relação com o mundo e deixar o professor para encarar o
mundo” (MEIRIEU, 1998, p. 119), com suas próprias ferramentas de aprendizagem.
A questão não está em renunciar às exigências que se põem à tarefa educativa, mas em mudar o foco dessas
exigências. Ao invés de determinismos externos ou internos pensarmos em compromisso ético com a presença do outro que
se constitui; compromisso ético com o processo de humanização. O projeto da humanização, a meu ver, passa pela
continuidade daquilo que constitui o sujeito como humano na sua relação legítima com o outro (encontro) e passa também
pela ruptura dos aprisionamentos que condicionam e impedem o sujeito de ser ele próprio (rompimento). As resistências
aparecem como garantias desse processo.

Considerações finais
As “respostas-indagações” expostas ao longo deste trabalho tentam compreender o problema de pesquisa a partir de
diversos ângulos, de variadas aproximações e distanciamentos. Realizo nestas conclusões o esforço de síntese, ou melhor, da
“síntese das sínteses” dos dados coletados interpretados à luz da revisão teórica, mas sem perder o movimento e a riqueza das
idéias.
Nessa tentativa retomo as quatro hipóteses desta pesquisa, explicitadas na introdução, reformuladas e transformadas
agora em teses.
A criança que não está aprendendo na escola vai se constituindo sujeito de conhecimento e de singularidade na
tensão entre os múltiplos lugares e o constante movimento: entre determinismos e atitudes; entre desconhecimentos e marcas;
entre interdições e emergências; entre comunicações e incomunicabilidades.
Entre determinismos e atitudes. (a) Afirmo minha tese principal. O determinismo proveniente de uma lógica
dedutivo-identitária deixa a criança que não está aprendendo na escola por demais marcada com os estigmas de imatura, de
insegura, de preguiçosa, de avoada, de desinteressada, entre outros rótulos destinados pelas professoras às crianças desta
pesquisa. Isso faz com que elas continuem a ocupar o não-lugar em relação ao conhecimento; ou o lugar da repetição do
mesmo, do script programado; e sejam alvos de atitudes desencorajadoras, o que dificulta o movimento em direção ao
aprender. Tal lógica expulsa da escola a contradição, o inusitado, o imprevisível, as solidariedades, as emergências, não
conseguindo enxergar que o caminho em direção ao aprender é, simultaneamente, ordenado e desordenado, aberto e fechado,
singular e universal, individual e coletivo, previsível e imprevisível.
Entre desconhecimentos e marcas. O despreparo didático-pedagógico das professoras leva ao desconhecimento das
formas como as crianças conhecem, desenvolvem-se e aprendem, marcando-as com identidades repetidas, como as que
acabamos de destacar (imaturas, distraídas, preguiçosas, briguentas), ou com as faltas: não conseguem, não sabem, não lêem,
não escrevem, provocando com isso um grande mal estar discente que, algumas vezes, atordoa as crianças, impedindo-as de
sair dessa teia construindo estratégias de ação e de pensamento que as permitam manifestar-se como sujeitos aprendentes.
(b) Afirmo minha segunda tese: por desconhecer os processos de conhecimento de seus alunos, a professora apega-
se demais a marcas de identidade da criança que não está aprendendo na escola, negando a ajuda necessária para que ela
desenvolva atitudes de aprendizagem.
Essas duas primeiras teses deixam muito pouco espaço para a emergência de complexidades na constituição dos
sujeitos-crianças. No entanto, mostram como essa fabulosa emergência precisa se fazer por caminhos tortuosos, repletos de
interdições e inibições. As próximas teses vislumbram algumas possibilidades de superação dessa realidade.
Entre interdições e emergências. As interdições são inúmeras e se sobrepõem às emergências na sala de aula.
Diferentemente da elaboração inicial da minha terceira hipótese, penso que esta precisa desdobrar-se em duas teses.
(c) Terceira tese. As interdições, entre as quais o medo de errar, de não saber; a necessidade de quietude corporal e
mental para repetir com maestria o programado pela escola; a desconfiança em relação às ajudas que porventura as crianças
tenham, tanto no espaço da escola, como no espaço da casa; as impossibilidades do sujeito-criança em manifestar-se por

842
intermédio das brincadeiras, do lúdico. Elas bloqueiam o processo de aprendizagem. No entanto, é fundamental compreender
tais interdições para superá-las e permitir, então, que os sujeitos constituam-se em espaços de segurança e de liberdade.
(d) Quarta tese. O percurso de se constituir sujeito é composto por não-linearidades, assim como o próprio ato de
conhecer, que podemos chamar de quebras, rupturas. Tais quebras ou rupturas precisam ser entendidas para que as
emergências apareçam: renúncia ao nosso desejo de dominação em relação às crianças; acolhimento dos sujeitos em processo
de formação; negação da lógica da exclusão; reconhecimento de que só o sujeito pode decidir aprender e os professores não
devem renunciar a ensinar; abertura de possibilidades aos sujeitos para que ocupem seus espaços, sem, no entanto, serem
aprisionados pelos mesmos; respeito aos direitos das crianças em toda a sua plenitude, criando condições para que estes
possam ser desenvolvidos; criação de espaços e referências para que as crianças possam construir sua relação com o saber;
pensar a autonomia como um processo que se constitui entre múltiplas interdependências; pensar a pedagogia como
movimento, como um percurso que jamais acaba.
Entre comunicações e incomunicabilidades. As comunicações na escola são gritantes e sutis, comunicam e não
comunicam, ao mesmo tempo. A criança mostra-se e esconde-se em sala de aula de tantas formas que é preciso estar atento
para compreender tais expressões: os gestos; as atitudes; as ações; os olhares; as transgressões; as resistências; as falas e os
silêncios. Por outro lado, a dificuldade em ouvir o outro; a falta de diálogos entre adultos e crianças e entre elas e seus pares;
as falas excessivas – o desperdício e as poucas falas revelam as incomunicabilidades em nossos tempos cibernéticos. Sem a
possibilidade de expressão de opiniões, vontades, inquietudes, dúvidas fica difícil o desenvolvimento da autonomia de
pensamento e a manifestação dos sujeitos de ação e de vontade.
(e) Afirmo minha quinta tese: as dificuldades nos processos de comunicação entre adulto e criança, no ambiente da
escola tornam as crianças pouco participativas, na medida em que se sentem submetidas ao desejo e à lógica dos adultos, sem
espaço para manifestar-se como sujeitos de vontade e de ação. Pouco se leva em conta, na escola, a opinião de alunos e
alunas na elaboração do planejamento, execução e avaliação das atividades, de acordo com suas idades. A criação de tais
espaços passa pela assunção da criança como sujeito.
Para que o sujeito singular possa de fato manifestar toda sua singularidade e desenvolver seu conhecimento,
necessita, antes de tudo, ser reconhecido como sujeito. Sujeito de direitos. Direito às necessidades humanas fundamentais,
que possibilitem liberdade de escolhas e emancipação. Falta à escola, em particular e à sociedade, em geral, reconhecer o
sujeito na criança para que ela não se torne prematuramente o “sujeito-homem” das cenas cotidianas de exclusão e violência
que assistimos temerosos, nos canais de comunicação; cenas que invadem nosso cotidiano.

Referências
Ariès, Philippe. (1981). História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.
Bachelard, Gaston. (2001). Os devaneios voltados para a infância. In: _____. A poética do devaneio. São Paulo: Martins
Fontes. Cap. III, p. 93-137.
Dolle, Jean-Marie. (2004). Lições da experiência e da observação. In: ______; Bellano, Denis. Essas crianças que não
aprendem: diagnósticos e terapias cognitivas. 6.ed. Petrópolis, RJ: Vozes. Cap. 2, p. 57-96.
Freire, Paulo. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. (Coleção
Leitura).
Meirieu, Philippe. (1998). Frankenstein educador. Barcelona: Editorial Laertes.
_____. (2002). A pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Porto Alegre: Artmed.
Morin, Edgar. (2001). O método 4: as idéias, habitat, vida, costumes, organização. 2.ed. Porto Alegre: Sulina.
_____. (2002). O método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina.
______. (2003). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Piaget, Jean. (1978). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. 3.ed. Rio de
Janeiro: Zahar.
_____. (1987). O nascimento da inteligência na criança. 4.ed. Rio de Janeiro: Guanabara.
Rocha, Ruth. (2002). Os direitos das crianças segundo Ruth Rocha. São Paulo: Companhia das Letrinhas.

Investigação com crianças pequenas: rompendo fronteiras

Elaine De Paula
Universidade Federal de Santa Catarina/ Prefeitura Municipal de Florianopolis
janainajoao@hotmail.com

Resumo: Investigação com crianças pequenas: rompendo fronteiras. Este texto originou-se a partir de uma investigação cujo objetivo central
foi buscar compreender as práticas educativas desenvolvidas em uma instituição de educação infantil pública brasileira. Participaram da
pesquisa 20 crianças com idades entre três e quatro anos. Busquei analisar, em especial, as relações estabelecidas entre as crianças e os
adultos que lidavam com elas, destacando no cotidiano aquelas situações encaradas pelos adultos como pontos de conflitos, os quais são, em

843
geral, marcados por eles como “transgressão”. O movimento da própria pesquisa exigiu que destacasse também as relações estabelecidas
entre as próprias crianças (relação entre pares). O maior desafio enfrentado no processo de investigação foi, certamente, quais estratégias
escolher para a coleta dos dados. Acabei lançando mão de diferentes estratégias, a depender daquilo que a cada momento me parecia mais
interessante para traduzir o que observava. Dentre elas destaco: os registros: escrito, fonográfico e fotográfico (em algumas situações as
crianças foram as próprias fotógrafas). Privilegiando o percurso metodológico, ancorada principalmente na perspectiva teórica que toma
como base os estudos recentes da Sociologia da Infância e inspirada nas investigações que recorrem aos estudos etnográficos, procuro, neste
texto, contribuir com a reflexão sobre as possibilidades de realização de pesquisas que levem em conta as crianças em uma condição de
sujeitos sociais plenos.

“Eu sei que vocês brincam disso há um tempão, mas agora eu estou no meio. E eu sou diferente...”
Nita1

Introdução
Este texto pretende suscitar reflexões a partir do mergulho empreendido por ocasião de um trabalho de investigação
desenvolvido entre os anos de 2005 e 2007, especialmente reflexões em torno do trabalho de campo ocorrido entre março e
setembro de 2006, o qual contou com a participação de um grupo de 20 crianças com idades entre três e quatro anos que
freqüentavam uma instituição pública de educação infantil municipal na região sul do Brasil (Florianópolis – Santa Catarina).
Fazer pesquisa envolvendo crianças na faixa etária de 0 a 6 anos tem sido um dos desafios postos para a área da educação
infantil nos dias atuais. Se investigar sobre as crianças já gerava dúvidas e inquietações no pesquisador, o que dizer da
proposta de fazer pesquisa com as crianças, reafirmando o propósito de considerá-las como interlocutores competentes para
dizerem de si mesmas obrigando-nos a levar em conta também os pontos de vista delas. Partilhar nossos objetivos e intenções
com elas, bem como incorporar em nosso plano de trabalho outros direitos, desejos e indicações. Algo que até então era
unilateral.
Como a perspectiva teórica que serviu de referência para o trabalho propugna que as crianças são capazes de falar
por si e de apontar desejos e direções que melhor atendam aos seus interesses, colocou-se como um dos desafios para a
pesquisa, “ouvir” as crianças. Tentar perceber o que expressam e como se expressam sobre aquilo que lhes é consentido ou
negado na creche, foi o grande desafio metodológico no caminho de tentar compreender como se constituía aquele cotidiano
institucional (espaço físico, pessoas adultas, outras crianças). A principal expectativa era conseguir reconhecer ali, na prática
cotidiana, indicadores da capacidade de agência das crianças, bem como situar em que momentos isso se revelava.

Adultos e crianças: os sobretons dessa relação


Começo com a observação do cotidiano das crianças na creche, procurando conhecê-las a partir de suas formas de
tecer relações sociais, tanto com seus pares como com os adultos. A intenção era marcar, especialmente, aquelas situações
consideradas pelos adultos como sendo de “transgressão” por parte das crianças. A opção por esses momentos foi por
entender que, pelo fato de expressarem conflitos intergeracionais, tais momentos poderiam revelar questões importantes nas
relações estabelecidas no interior da creche. Procurei também confrontar essas relações com aquelas estabelecidas entre as
próprias crianças, bem como analisar essas últimas na tentativa de capturar a lógica delas e sua maneira de dar sentido ao que
vivenciavam. Para tanto, procurei utilizar alguns procedimentos inspirados nos estudos qualitativos de cunho etnográfico2.
Acompanhando a rotina da instituição: o lanche; os momentos de higiene; as atividades dirigidas; as atividades no
espaço externo à sala de referência (parque); o almoço; o sono e até os passeios (para fora da creche), fui desvelando um
mundo marcado pela diversidade, pela cumplicidade entre as próprias crianças (pares) e pela construção de estratégias de
resistência, principalmente quando as crianças encontravam-se afastadas dos adultos. Fui observando, também, o mundo dos
adultos e percebendo certa tendência de homogeneização das práticas educativas quando interagiam com as crianças. Embora
sejam mundos que se interpenetram, as crianças e os adultos produzem significados e sentidos, muitas vezes distintos, que, ao
se entrecruzarem, produzem tanto oposições, acomodações, como conflitos, que geram tensões para ambos os lados.
Durante os dias na creche, fui percebendo as crianças submersas numa sucessão de atividades, seja com seus pares,
seja com crianças de outras idades ou com os adultos. Quase sempre faziam o que era proposto e previsto, mas, às vezes,
reinventavam jeitos de fazer, especialmente naquilo que nem sempre lhes era permitido naqueles espaços e tempos,
rompendo obstáculos que se opunham aos seus interesses.
A aceitação das crianças da minha posição como parceira nas suas brincadeiras, nos seus contos, nas suas ‘coisas
sérias’, permitiu imiscuir-me em seus mundos, resgatando minha dimensão da infância adormecida sob o manto da seriedade,

1
Nita, personagem da história: Bento-que-bento-é-o-frade, de Ana Maria Machado.
2
Segundo GEERTZ (1989), etnografia é uma prática realizada na antropologia e consiste num descrição densa do trabalho em campo, o que importa numa busca
profunda e contextualizada dos significados. Portanto, penso que nós, da educação, o que fazemos são estudos que seguem as orientações da prática etnográfica
.Ver também outros autores: ANDRÉ (1995); GRAUE E WALSH (2003).

844
da produtividade e até da sisudez que muitas vezes caracteriza os adultos. Tentei acatar o que relata Corsaro (2005) quando
de uma experiência de entrada em campo, “A melhor maneira para tornar-me parte dos universos das crianças era, não agir
como um adulto típico” (p. 446).
Embora não pretendesse me livrar da condição de adulta, entendi também ser preciso libertar-me das amarras
adultocêntrica e das dimensões utilitaristas que amiúde atribuímos a todos os atos que realizamos. Assim, estar com as
crianças foi esforçar-me para transcender o olhar daquilo que estava acostumada a ver, perceber a incompletude de cada ser,
de cada grupo humano, de cada cultura.
Nesta direção, senti-me reforçada na certeza de que a abordagem metodológica mais adequada para a pesquisa
fosse mesmo uma abordagem qualitativa, uma vez que buscava compreender os fatos em sua dimensão de totalidade não
aditiva, mas sim significativa pelas relações que estabelecem entre si partes e todo. Foi esta percepção que implicou em
tomar como referência os estudos do tipo etnográfico com o intuito de observar de forma sistemática as crianças e os adultos,
principalmente naqueles momentos em que se colocavam regras explícitas de controle e organização. Na busca de captar a
dinâmica do cotidiano, acompanhei muitas vezes a chegada das crianças à creche, bem como os momentos de saída. Apoiada
também no conceito de observação participante ( Cohn,2005, p. 45) registrei a ação das regras explícitas ( por meio de um
mapeamento) e as relações estabelecidas entre adultos e crianças.
As alternativas para apreender o que as crianças tinham a dizer delinearam-se de diversas maneiras. Inicialmente
utilizei-me de um caderno para anotar os acontecimentos no terreno. Tentava registrar tudo o que acontecia. Claro que nem
sempre isso era possível, pois as crianças insistiam em também fazer anotações no meu caderno e o revezavam comigo. Em
um primeiro momento, o foco foi a observação das relações entre os adultos e as crianças: como as crianças reagiam ao que
estava sendo proposto pelos adultos e como estes construíam as regras implícitas e explícitas nas suas condutas? Apenas em
um segundo momento passei a observar as relações das crianças com seus pares na tentativa de apreender também o sentido
que elas atribuíam às coisas que estavam a sua volta. Lembrando que parti do princípio segundo o qual as crianças são
competentes para dizer de si mesmas e para apontar desejos e direções que melhor atendam aos seus interesses, tornava-se
imperioso perceber em que momentos e em que espaços isso, de fato, se evidenciava.
Tentei estabelecer uma relação com os envolvidos na pesquisa por meio de uma aproximação que possibilitasse
trocar impressões e registrar aspectos relevantes acerca do objeto investigado. Tal estratégia, que envolveu observação,
partilha de conhecimentos e participação em algumas situações nos espaços utilizados pelas crianças e professores, facilitou
bastante o estabelecimento de um vínculo de respeito, confiança e afetividade. É importante destacar que foi necessário
assumir uma nova ‘atitude epistemológica3 possível de ser traduzida em um olhar e em uma escuta sensíveis a interpretar,
compreender e atribuir significados às ações das crianças e dos adultos. Da mesma forma considero importante destacar que a
investigação retratou minha preocupação em focalizar as crianças também como sujeitos da pesquisa. O pressuposto aqui é
que a relação pesquisadora-pesquisados não se dá de maneira unilateral, mas sim pelo estabelecimento de um diálogo e pelo
exercício da alteridade, procedimento imprescindível ao respeito à cidadania de que cada um – criança ou adulto - é portador.
Conforme Jobim & Souza (2005),
Assumir o dialogismo e a alteridade como marcas das relações estabelecidas no contexto da pesquisa significa ir ao
encontro do outro e compartilhar experiências, conhecimentos e valores que se alteram mutuamente. O outro, no caso aqui a
criança, não é apenas um objeto a ser pesquisado ou um informante de dados a serem analisados, mas é um sujeito cuja
palavra confronta-se com a do pesquisador, exigindo um posicionamento, uma resposta.. (p. 4)
A imersão que realizei no espaço das crianças revelou-se um universo, muitas vezes, inusitado e imprevisível. Um
universo também construído pelas crianças, pois muitas vezes rompiam com as determinações do cotidiano, obrigando-me,
assim, a um repensar a respeito das explicações sociológicas tradicionais (Durkheim,) de uma socialização unidirecional de
cima para baixo, segundo as quais, a sociedade determina a lógica de existência das pessoas e suas ações são praticamente
soterradas sob a estrutura social.
Nesse movimento pude perceber que, com a saída de cena dos adultos, as crianças tendiam a ampliar os espaços de
“clandestinidade” nos quais, muitas vezes, invertiam regras e ordens pré-determinadas, criando estratégias em favor de
interesses e direitos que julgavam ter. Antes de adentrarmos em exemplos das falas das crianças vale a pena ressaltar que
embora compreenda que o entendimento dessas falas possa resultar dificultado, optei, no presente texto, por representá-las de
forma semelhante àquela que elas se expressaram durante as sessões de pesquisa. Reproduzi acréscimos, omissões, alterações
tônicas, flexão verbal diferenciada, acentuações, etc. que representavam a maneira como elas falavam naquele local e naquele
momento. Tal representação não deve ser lida de forma alguma como um demérito ou uma marca de incompetência por parte
das crianças, mas apenas como ilustração de uma forma de jogo de palavras que elas vão exercitando ao longo de suas vidas.
Vejamos, então, um exemplo das estratégias de negociação e contorno de dificuldades expresso pelas crianças:
As crianças estavam brincando nas mesas. Relo foi até sua mochila e pegou um saquinho de bala. Power Rangers
lhe pediu uma, como Relo lhe negou, automaticamente o denunciou à professora, esta ,por sua vez pediu que as balas fossem
guardadas. Relo então falou baixinho para o amigo: “não vou guardar porque foi minha avó que me deu”. Ao passo que
Power Rangers respondeu: “Ah é, vou falar pra professora de novo.” Relo então rapidamente falou: “Tá bom seu ‘zolhudo’,

3
FERREIRA (2002), atitude epistemológica significa uma escuta sensível por parte do pesquisador daquilo que as crianças dizem, procurando captar a densidade
de sentidos do que está envolvido na situação

845
eu te dou uma, só uma, porque da outra vez tu comesse quase tudo.” Power Rangers aceitou a bala e Relo pode comer o
restante, clandestinamente.(Registro Escrito- 18/04/2006)
Diante da tentativa de descortinar os universos infantis a partir de um ‘olhar e de uma escuta atenta’, sobre o que
elas fazem e dizem, a leitura de Kramer (2002) levou-me a acrescentar alguns questionamentos: Como ir até onde as crianças
estão e ser realmente aceita por elas? Qual a maneira mais adequada para entender como as crianças agem, como se
relacionam? Se, de fato, produzem cultura, como o fazem? Qual a necessidade de descentralizar o olhar do que estamos
acostumados a ver? Por que ouvir o que as crianças falam? Por que olhar para a direção que elas nos apontam? Enfim, quais
as razões para não enxergá-las apenas como meros figurantes?
Aproximar-se de novas maneiras de investigação com as crianças e considerar seus pontos de vista requer a
abertura de novas perspectivas e possibilidades de ação com elas. Interpretar suas falas para além do verbal não é tarefa das
mais fáceis, pois exige, no mínimo, um olhar mais afinado e sensível. Lancei-me nesse desafio para tentar colocar em
evidência os pontos de vistas das crianças e evitar a naturalização que nega ou dissimula as manifestações delas por
considerá-las sem importância. Fi-lo com o pressuposto de que as crianças, ao se diferenciarem dos adultos, fazem emergir
contínuas e novas situações que precisam ser discutidas e pensadas, tanto para reorganização do cotidiano como para a
compreensão da forma como sentem, imaginam e pensam o mundo em que vivem diariamente.
Transgressões, regras e percursos; situações que se revelam nas ações e nas vozes das crianças
Tive uma preocupação inicial em relação ao nome das crianças. Manter os verdadeiros ou atribuir-lhes
denominações fictícias? Por uma questão ética é comum propor a adoção de nomes fictícios para as crianças, mesmo que
não se tenha a intenção, como foi meu caso, de fazer um trabalho denunciatório que possa colocá-las em risco. De qualquer
forma, optei por alterar seus nomes quando fosse transcrever seus pontos de vista. Isso gerou meu primeiro impasse. Ora, se
parto de uma concepção teórica que concebe a criança como ator social e como sujeito da pesquisa, não seria condizente com
meus referenciais excluí-las desta decisão. Na verdade aqui existiam duas decisões a serem tomadas: uma em relação à
necessidade de usar um nome fictício e outra em relação a qual nome usar.
Admito que nem todas as questões que causam impacto nas relações sociais possam ser discutidas, com toda a
complexidade que possuem, com crianças de qualquer faixa etária. Mas, para mim, o importante foi não “naturalizar” as
restrições que impomos às crianças, pois esse procedimento, em meu entender, acaba por não mobilizar qualquer esforço no
sentido de ampliar as formas de diálogo potencialmente favorecedoras de uma participação mais envolvente das crianças
naquelas decisões que também dizem respeito à vida delas. Devemos, no mínimo, não esconder de nós mesmos a existência
de tais restrições e a necessidade de serem permanentemente revistas e criticadas.
Entendi que, através da segunda questão (qual nome escolher ?), poderia inserir um processo pelo qual as crianças
pudessem perceber, pelo menos em determinada medida, o teor das questões éticas e sociais que estavam envolvidas na
decisão de trabalhar com nomes fictícios e não com seus verdadeiros nomes.
Para tanto, inspirei-me em uma experiência descrita no texto ‘O que falam de Escola e Saber as crianças da Área
Rural? Um desafio da Pesquisa no Campo’ (LEITE, 1996), na qual a autora discorre sobre a opção, por ocasião de sua
pesquisa de campo, de substituir os nomes verdadeiros das crianças e pedir que elas mesmas escolhessem os nomes que
gostariam que aparecessem no texto. A pesquisa de Leite, contudo, foi realizada com crianças entre seis e quatorze anos de
idade. Servia-me como referência, mas, para os sujeitos de três a quatro anos, com os quais interagia, o que fazer?
Precisava encontrar uma maneira significativa para que as crianças participassem da criação de seus nomes.
Resolvi, então, criar uma história a partir do cruzamento de três livros de literatura infantil4, à qual acabei chamando: “Nome
de Brincadeira”. O enredo da história era novo, mas as imagens foram retiradas dos três livros, assim as crianças puderam
manusear as figuras e fazer comentários de maneira simultânea à invenção dos nomes. O trabalho foi desenvolvido com
quatro grupos, numa média de três a seis crianças por grupo. A todos os grupos relembrei o que estava fazendo na creche e o
que escrevia no caderno freqüentemente.
Perguntei, então, às crianças quais nomes gostariam que fossem consignados a elas na pesquisa. Diziam elas, ‘dexa
eu escrevo no teu caderninho’. Alguns escolheram personagens de séries da televisão como: Powers Rangers, Emília,
Batmam; outros, de contos de fada: Cinderela, Branca de Neve, Emília; houve opção por nomes ou apelidos de amigos ou
familiares: Gabriel, Aline, Tuana, Stefani, Duda; houve os que não concordaram em trocar seus nomes, e por fim, alguns
nomes foram inusitados, como: Tarandelo, Raudio e Relo. Nesses últimos nomes julguei que seriam esquecidos
rapidamente, porém, quando fomos para a sala, as crianças foram as primeiras a anunciá-los para as demais que lá estavam.
Para uma outra atividade que me interessava desenvolver com as crianças na busca de compreender o que as
crianças achavam da vida que levavam ali na creche, desenvolvi uma estratégia semelhante à utilizada para a brincadeira dos
nomes. Assim como na construção dos nomes, também interagi com grupos pequenos de crianças, numa média de três a
cinco por grupo e num espaço separado das demais. A proposta foi iniciar com a narração da seguinte história: ‘Do que é que
você gosta?’, de GERARD GRÉVERAND (2001)

Deitadas ou sentadas no parque as crianças ouviam a história, e sobre ela opinavam e desenhavam.
-Ah!, sabe que eu gosto muito de brincá de ‘Barbie girl’? Tu também né, Emília?

4
PAUSEWANG (2000); PADILHA (2006); LIVIA E ORLOV (2003).

846
Emília apenas consentiu com a cabeça. Duda continuou falando:
- Eu tenho ‘Barbie girl’ na minha casa. Só que minha mãe não deixa traze pra creche, porque senão as outras
crianças vão pegá... daí eu não trago.
Raudio, olhando a Duda mexeu a cabeça negativamente e lhe disse:
-Eu trago o meu carrinho, ta lá na minha mochila.
Tarandelo interveio em tom intimidador e, esticando o pescoço e olhando enviesado para Raudio, falou:
-Então pega pra nós brincá aqui fora.
Raudio, novamente mexendo a cabeça negativamente, falou:
- Tu não sabe que nós tamo fazendo outra coisa, não?
Tarandelo não respondeu e falou do que gostava de fazer:
- Eu gosto mais de brincá de bola e de parque. Enquanto falava, Tarandelo desenhava.
Raudio disse que gostava de brincar de pipa e também desenhou.
Perguntei a Emília, que até então não tinha falado, porém estava a todo o tempo desenhando com hidrocor, o que
ela gostava de fazer.
Emília me olhou séria, depois estralando a língua e mexendo a cabeça , parecendo estar meio impaciente,
respondeu:
Tem um montão de coisa que eu gosto de faze, né ? Eu gosto de brincá com as amigas. Não tás vendo?E apontou
para seu desenho.

As crianças algumas vezes paravam de desenhar e falar e dirigiam-se aos brinquedos do parque para mostrar como
gostavam de brincar.
Quando novamente nos reunimos, criei uma história, sem imagens, falando de coisas que as crianças não podiam
fazer. Interessante naquele momento foi o convite do Tarandelo para que fôssemos para dentro dos canos de cimento que
existem no parque, para que pudéssemos ficar ‘escondidinhos’, ou como disse Duda:
-É, tem que falá baixinho pra ninguém escutá. Perguntei por que e Duda arregalou os olhos dizendo-me: - Senão
elas vão escutá. Talvez referindo-se a dois adultos que passavam próximos a nós.
Tentei ainda fazer outras questões sobre isso, mas as crianças começaram a discutir as cores das canetas hidrocor.
Depois Tarandelo retomou a conversa.
-Sabia que não pode brincá quando faz bagunça? Para representar a bagunça ele fez um desenho com várias voltas.
Raudio que até então olhava sério para Tarandelo, deu de ombros e falou:
- Também quando vai dormi não pode brincá, tem que fechá o olho.
Em seguida convidei as crianças para irem à sala, já que as demais crianças estavam vindo para o parque e eu
gostaria de continuar conversando com eles.
Ao chegar à sala Duda foi logo falando:
- Sabe que não pode levá boneca pro parque? Emília retrucou:
- Ahhh..., Duda, tem vez que pode, sim.
Duda não respondeu. Raudio também falou que não podia mexer nas caixas com brinquedos sem falar para a
professora, porém olhou para Tarandelo e falou:
- Vão pegá? Tarandelo rapidamente consentiu.
Ambos pegaram a caixa, que parecia estar muito pesada pela expressão que fizeram. Dentro havia óculos, bolsas e
vários objetos pequenos. Tarandelo após colocar os óculos escuros pediu-me para tirar uma foto sua na rua. Duda interveio e,
apontando e balançando o dedo indicador para Tarandelo, falou:
-Tu não sabe que não pode i pra rua com esse óculos?
-É di sol, respondeu Tarandelo, e foi para rua, mas apenas para que tirássemos uma foto sua.
(Registro escrito e fotografado- 11/08/2006)

Os desenhos das crianças, em geral, permitiam entrever muito de sua forma de ver o mundo, de suas emoções, mas
chamou-me a atenção que, naquilo que consegui interpretar, as coisas agradáveis e permitidas de se fazer na creche se
apresentaram em número bem maior do que as coisas que não podiam ser feitas.
Coerente com a convicção, muitas vezes reiterada, de que as crianças têm condições de interpretar as coisas que
estão a sua volta, bem como condições de instituir novas maneiras de agir, mantive a proposta de envolver todas as crianças
na dinâmica e dei continuidade, num outro dia, com outro grupo de quatro crianças.
Parti novamente da mesma história do grupo anterior e utilizei os mesmos materiais: folhas de cartolina, hidrocor,
máquina fotográfica. Acrescentei nesse dia um gravador. Assim, as crianças puderam escutar suas vozes, o que causou um
grande contentamento e espanto ao ouvirem, ao final, o que haviam falado.
Com esse grupo, utilizei outra dinâmica para que as crianças pudessem se expressar. Apesar de ter iniciado também
com a mesma história, nesse grupo, diferente do grupo anterior, as crianças expressaram com mais ênfase o que não podiam
fazer na creche. Em seguida fizemos a representação de um dia de creche, em que os papéis e personagens foram escolhidos
pelas próprias crianças. Mais uma vez, reitero que as crianças são capazes de se expressar utilizando outras linguagens, de
serem autoras de suas ações e de “falar” sobre suas infâncias.

847
Para continuar conversando sobre o cotidiano na creche e sobre as relações estabelecidas com os adultos, propus
que brincássemos de casinha no parque. Rapidamente as crianças aceitaram e Stefani determinou os papéis de cada um. Ela
seria a mamãe, Vilson, o papai e Oscar e eu, os filhos. Batmam não aceitou participar da dramatização. Um outro
personagem foi acrescentado à brincadeira, uma boneca, que seria o bebê.
Além de criar estratégias para que as crianças se expressem verbalmente ou através de outras formas de expressão,
é necessário organizar espaços para que isso aconteça. Quando nos dispomos a escutá-las, percebemos o quanto elas têm a
dizer daquele lugar em que tanto elas quanto os adultos passam grande parte do dia e das suas vidas. Percebemos que as
crianças conseguem relativizar as regras entre os pares; ainda que constrangidas pela estrutura social, elas conseguem ouvir e
fazer-se ouvir e até alterar suas ações, mesmo no confronto de opiniões.
As crianças tanto dizem o que gostam de fazer como também o que não gostam, então, por que mesmo assim
continuamos a insistir em fazer o que elas não querem? Será que estamos realmente prestando atenção ao que nos falam?
Perceber a atuação das crianças nas relações sociais e no interior dos espaços em que circulam diariamente é
compreender que elas produzem sentidos para as experiências que vivenciam tomando como referência o sistema simbólico
que as envolve. Também partilham significados que, embora diferentes dos adultos, não significa que sejam inferiores.
Portanto, continuo reiterando minha convicção de que as crianças têm condições de instituir novas maneiras de agir sobre a
realidade.
Para continuar explorando possibilidades de perceber a expressão das crianças utilizei, certa vez, fantoches para
dialogar com elas. O cenário foi criado utilizando algumas miniaturas: carrinhos, loucinhas, bonecas, animais, avião. Mais
uma vez constatei a maneira diferenciada de expressão das crianças e de tradução daquilo que vivenciam.
Como um dos pontos delicados na creche é o momento do sono, fui criando com o fantoche uma história em que
ele falava sobre o sono na creche. E por meio da história as crianças faziam relação com aquilo que experimentavam, mas
não apenas com coisas imediatas, também com aquelas ocorridas há algum tempo. As crianças demonstraram um plexo de
visão da realidade alargado, expressando-se tanto por meio do desenho, como através da oralidade. Vejamos este diálogo
originado de uma história sobre o sono por mim contada:
- Eu gosto de dormir! Diz Tuana
- Não gosta, não gosta, tu até chora, retruca Emília
- Na minha casa que eu durmo, na creche que eu não durmo, diz novamente Tuana
- Ela dorme mas não gosta, diz Gabi.
- Dexa Tuana, faz assim oh! Fica só com um (olho) fechado na creche, nem eu durmo, só fico acordado, fala por
último Raudio. (Registro gravado -05/09/2006)

O que expressam as crianças fez-me refletir sobre se, de fato, estamos considerando seu ponto de vista no
planejamento do cotidiano da creche. Em que medida suas reivindicações ou opiniões são atendidas? Se a estrutura física e os
recursos humanos são insuficientes nos espaços institucionalizados, o que precisa ser feito? Será que são as crianças que
devem arcar com as dificuldades existentes?
Com algumas crianças, a despeito do interesse demonstrado ao escutar a história, não houve manifestação do desejo
de desenhar ou falar sobre aquilo que estava sendo proposto. Resolvi, então, experimentar uma outra dinâmica: utilizar a
lente da máquina fotográfica para estimular a conversa sobre o que gostavam e o que podiam fazer na creche5. De acordo
com Guran (2000, p. 156), “uma das potencialidades da fotografia é destacar um aspecto particular da realidade que se
encontra diluído num vasto campo de visão, explicitando assim a singularidade e a transcendência de uma cena”. Não era
minha intenção “trabalhar” as fotografias, ou seja, escolher melhor ângulo para fotografar, cuidar da posição do sol, fixar a
máquina para que as imagens não saíssem tremidas, dentre outros cuidados que aquilo que é considerado uma ‘boa’
fotografia exige, até porque, tanto eu como as crianças éramos amadores. Meu intuito foi perceber o que as crianças iriam
destacar, assim como incluir outras maneiras de sua participação na pesquisa e compreender o contexto da creche pela
perspectiva de seus olhares.
Quando retornei com as fotos já impressas, nos sentamos em círculo na sala e distribuí as fotos para que todos
tivessem acesso à totalidade de fotografias tiradas, já que, apesar de iniciar com um grupo específico de crianças, a máquina
fotográfica foi dada também para outros grupos em momentos diferentes.
Inicialmente senti-me frustrada porque as crianças não identificaram as fotos que haviam feito. Também suas
intenções ao verem as fotos já não eram mais as que haviam verbalizado quando as fizeram e o desejo agora era pelas fotos
em que eles apareciam, não por aquelas que haviam tirado.
Entendi com essa avaliação das crianças, e por meio dos registros que fiz na ocasião das fotos, que o que foi
significativo para elas naquele momento e, agora, também para mim, foi o ‘uso afetivo’ que elas fizeram daquele
instrumento, ou seja, das emoções que elas viveram ao manusear a máquina (a emoção de fotografar e ver o resultado na
câmara digital instantaneamente), da euforia com o fato de chamar os amigos para juntos ver e rirem das ‘caras e bocas’ que
apareciam nas imagens. Permitir às crianças o uso da máquina fotográfica proporcionou a elas, antes de tudo, a partilha de

5
Havia lido em um outro trabalho (FERNANDES,1998) que a pesquisadora utilizou o mesmo recurso e que havia dado certo. Não obstante meus sujeitos fossem
de outra faixa etária, resolvi experimentar.

848
vivências lúdicas com seus amigos e a satisfação de utilizar um instrumento que, geralmente, integra o “universo” dos
adultos.
O momento de circulação das fotos foi eivado de significados pela discussão que proporcionou entre as crianças.
Como acima destaquei, o interesse naquele momento foi pelas imagens em que elas apareciam, o que acabou trazendo alguns
problemas, uma vez que havia mais de uma criança em cada foto. O impasse se estabeleceu para ver com quem ficaria a
foto. A intervenção dos adultos deu-se em alguns momentos, porém em outros as próprias crianças negociaram com quem
ficariam as fotos, utilizando razões bem convincentes, como a que Xuxa usou para convencer Aline: “Tu não pode ficá oh,
teu olho nem tá na foto!” E Aline aceitou o argumento.
Ao final, com as fotos já escolhidas, falei às crianças que algumas daquelas fotos talvez integrassem o texto do meu
‘caderninho’, assim como outras que eu já havia feito. Falei-lhes também da autorização dada por suas famílias para que eu
pudesse utilizar as fotos e mostrei-lhes o documento assinado pelos pais. Mostrei às crianças um documento similar àquele
outro, porém com um pedido para que elas, e não os seus pais, me autorizassem a utilizar as imagens que registramos.
Enfim, solicitei a autorização das crianças para publicação das fotos em minha pesquisa.
Esse procedimento pode parecer, ao leitor, evasivo, por considerá-lo destituído de significado para as crianças,
porém, para além da cartorização ou burocratização de um ato, no que tange à assinatura ou não de um documento, a
magnitude daquele momento para as crianças deu-se pela seriedade com que fizeram sua ‘assinatura’, insistindo para que eu
apontasse onde estavam seus nomes. Aqui o importante é o fator pedagógico no que diz respeito ao direito de expressar seu
acordo ou desacordo em situações que as envolvem diretamente.
Ainda com a intenção de dar visibilidade e compreender as diferentes representações sociais das crianças a partir
delas mesmas, continuei a reinventar procedimentos que pudessem captar suas interpretações sobre a realidade que as cerca,
suas relações inter ou intrageracional, ou ainda com os espaços físicos/temporais do cotidiano institucional. Dessa forma,
procurei utilizar as fotografias já impressas para que as crianças, individualmente, fizessem a leitura das experiências naquele
espaço. Minha proposta foi de conversar apenas com algumas crianças em razão do tempo escasso que tinha para terminar a
pesquisa de campo, mas tive o cuidado de escolher para conversar não apenas aquelas crianças que tinham a oralidade mais
presente, mas também as que pouco se expressavam verbalmente em sala. Minha surpresa foi grande ao perceber que as duas
crianças que convidei para falar sobre as fotos, as quais na sala pouco falavam com as demais, nomeavam os amigos
presentes nas fotos, falavam sobre as brincadeiras captadas pelo instantâneo da máquina fotográfica, falavam de suas
preferências, enfim, expressavam modos diferentes daqueles de quando estavam em grande grupo.
As considerações das crianças ao manusearem as fotografias revelou que as imagens podem ser instrumentos
auxiliares de análise e de reorganização das práticas educativas, à medida que se faça uso delas para compreender o que as
crianças estão dizendo e querendo. As informações levantadas podem ajudar os adultos a criarem espaços mais motivadores
para as crianças e confirmar nossa perspectiva de que as crianças são competentes para expressar o que desejam no cotidiano
em que estão imersas diariamente.

Em uma das fotos Raudio falou:


-Olha aqui, nós se escondendo da Sandra. A Maria disse pra nós se esconde e disse que brinca depois de dormi e
todo mundo dormiu... eu não.
Quando viu a foto de Batmam (uma das crianças do grupo) de pé no balanço se assustou;
-Oh! esse daqui é bem louco olha lá onde ele foi, foi bem pra lá na pedra. Ele pode batê e voá“pitffffff”, batê e se
machucá.
Quando perguntei como ele achava que Batmam deveria brincar, respondeu-me:
-Sentado, devagarinho porque senão bate nos bebês e daí machuca. Eu brinco sentado assim... não consigo fica em
pé... mas eu queria.
Esse excerto também demonstra que as crianças, apesar de constrangidas pela estrutura e reproduzirem os
condicionantes de uma ordem social, ensaiam uma leitura diferente do que está determinado e deixam escapar o quanto
gostariam de fazer de outro jeito.
Quando viu um de seus amigos subindo na árvore falou:
-Oh! ele subindo aqui na árvore, pode subir, porque a árvore não é pequeninha, se ela é pequininha ia quebrar e ele
ia caí. Essa arvore é grande.
(Registro gravado - 20/09/06)
Os destaques que Raudio foi fazendo das fotografias revelam aspectos importantes das brincadeiras, das relações
estabelecidas com outras crianças e com os adultos, e daquilo que foi ou poderia ser significativamente vivido por elas,
levantando aspectos que convidam a refletir sobre esse cotidiano. Dar visibilidade e relevar as interpretações das crianças
pequenas pode ser um grande passo para incluí-las como partícipes, tanto da pesquisa quanto do contexto educativo.
Finalmente, sintetizando essa questão, ressalto que a auto-avaliação, a auto-análise que as crianças realizaram por
meio das fotos mostraram sua capacidade de distanciamento e discernimento ao avaliarem fatos e situações ausentes no
tempo e no espaço, ainda que tornados presentes e vivos pelo registro fotográfico. No meu entender, essa dinâmica oferece
valiosos subsídios no desenvolvimento e avaliação de atividades pedagógicas.

849
Considerações pretensamente finais... mas apenas para esse momento
Embora as ações mencionadas acima sejam ainda incipientes e possam suscitar reflexões mais abrangentes, não
deixam de apontar um caminho na perspectiva de considerar as crianças também como agentes no campo da investigação e
desencadear desafios, tanto teóricos como metodológicos, que nos levem a compreender o sentido que as crianças atribuem
às coisas que as circundam, assim como as experiências que vivenciam no cotidiano da instituição, aspectos freqüentemente
considerados como sem importância.
Ao partilharmos desses significados e legitimarmos as ações das crianças, enfatizamos sua competência social e
seus modos de agir, entendendo que elas também têm direito a ver valorizados seus próprios interesses e não apenas os
interesses que os adultos atribuem à vida delas.
Ao utilizar o campo de estudos da nova Sociologia da Infância, importa dizer que, embora este campo (ainda em
formação) em sua gênese nos remeta mais a outras realidades, não deixa de representar uma orientação que potencializa os
conhecimentos que vimos construindo na realidade brasileira. Temos, sem dúvida, ainda um longo caminho a percorrer
quando falamos de pesquisas com as crianças pequenas. Várias pesquisas permitem perceber que elas ainda não foram
totalmente constrangidas pelo controle das ‘pessoas grandes’ e pelas ordens instituídas na sociedade, podendo, portanto,
ajudar-nos no processo de constituição do novo. Ao lançarem mão de estratégias criadas pelo seu repertório imaginativo, suas
vivências, suas brincadeiras, seus questionamentos, suas ‘desordens’, enfim, suas culturas, as crianças tendem a desafiar a
racionalidade dos adultos, tendem a transitar entre o instituído e o que pode ser transgredido, mostrando-nos formas de
organizar o pensamento que a nós parecem estranhas e que, portanto, podem auxiliar a ampliação do nosso ponto de vista
sobre a realidade.
É uma aposta, sem dúvida, mas que considero tão importante que não pode deixar de ser investigada em diversas
frentes e de diferentes modos.

Referências
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PAUSEWANG, G. (2000). A escola dos meninos felizes. São Paulo: Loyola.

Produção de conhecimento numa comunidade: imagens da alteridade

Francisco Ramos de Farias


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/PPGMS)
frfarias@uol.com.br

850
Resumo: Aborda-se o processo de intervenção numa comunidade no Rio de Janeiro, mediante solicitação de uma mãe que nos procurou para
auxiliá-la em medidas educativas para evitar o ingresso de crianças no crime organizado do narcotráfico e na prostituição. Um planejamento
de intervenção visava a esclarecer os passos do desenvolvimento para construir idéias sobre a educação da criança. Assim foram feitas
reuniões semanais, num espaço de lazer daquela comunidade, com participantes que se prontificaram voluntariamente a fazer parte do
processo. As reuniões tinham como objetivo dar visibilidade aos participantes: aos mesmos, era dada a oportunidade de expressarem suas
idéias sobre os impasses vividos. Inicialmente, fez-se o registro escrito, para servir como objeto discussão e reflexão. Esses registros eram
lidos no início de cada reunião e os integrantes do grupo, tinham a liberdade de se expressarem face ao conteúdo apresentado. Pela
colaboração de um deles que possui uma máquina filmadora, seguiu-se um registro também em imagens. Com isso, construiu-se uma
modalidade de olhar-escuta, além da documentação escrita, visando à produção de subjetividade, considerando o cenário atual, atravessado
pela multiplicidade e efemeridade o que conferem à experiência o caráter fragmentário e fugidio. Os instrumentos (palavra e imagem
técnica) constituíram-se elementos de suma importância na mediação da experiência produtora de saber e de transformação subjetiva, pois
possibilitaram ao sujeito o encontro consigo mesmo e o retorno da percepção externa numa relação dialógica. Devido a resposta positiva da
comunidade, alguns participantes expressam a vontade de que o trabalho poderia ser realizado também em outros espaços.

1 – Introdução
Aborda-se, nesse ensaio, o processo de intervenção psicológica no contexto social de uma comunidade no Rio de
Janeiro, mediante solicitação de uma moradora. Trata-se de mãe aflita ante à possibilidade do encaminhamento de seus netos
e de outras crianças para o mundo do tráfico e da prostituição. Sua pretensão era a de encontrar medidas educativas para
evitar o ingresso de crianças no crime organizado. Tal demanda aconteceu após uma apresentação do autor num programa de
televisão sobre a violência e em particular o assassinato, momento em que apresentou com alternativas para o crime, saídas
como a arte e a educação. Face à solicitação dessa mãe, um planejamento de intervenção foi elaborado, inicialmente, no
intuito de esclarecer o contexto do desenvolvimento psíquico, para construir idéias sobre a educação da criança. Daí então
aconteceram reuniões semanais, num espaço de lazer daquela comunidade, com participantes que se prontificaram
voluntariamente a fazer parte do processo.
As reuniões tinham como objetivo propiciar a construção de arranjos subjetivos, pelo viés do confronto de cada
morado com sua produção discursiva e dar visibilidade aos participantes: aos mesmos, era dada a oportunidade de
expressarem suas idéias sobre os impasses vividos. Inicialmente, fez-se o registro escrito, para servir como objeto discussão e
reflexão. Esses registros eram lidos no início de cada reunião e os integrantes do grupo, tinham a liberdade de se expressarem
face ao conteúdo apresentado. Pela colaboração de um deles que possui uma máquina filmadora, seguiu-se um registro
também em imagens. Com isso, construiu-se uma modalidade de olhar-escuta, além da documentação escrita, visando à
produção de subjetividade, considerando o cenário atual, atravessado pela multiplicidade e efemeridade o que conferem à
experiência o caráter fragmentário e fugidio.
Os instrumentos de criação pela memória do acontecer daquela comunidade (palavra e imagem técnica)
constituíram-se elementos de suma importância na mediação da experiência produtora de saber e de transformação subjetiva,
pois possibilitaram ao sujeito o encontro consigo mesmo e o retorno da percepção externa numa relação dialógica. Foi criado
um espaço de transformação que consistia na produção de arranjos subjetivos mediados pela incidência da experiência
compartilhada e do recurso à imagem técnica. Devido a resposta positiva da comunidade, alguns participantes expressam a
vontade de que o trabalho poderia ser realizado também em outras comunidades.
É importante ressaltar que numa cidade como Rio de Janeiro que concentra um grande contingente de comunidades
vivendo em condições precárias, é, como os demais centros urbanos, na atualidade, alvo de muitas preocupações,
principalmente, em relação às dificuldades enfrentadas pelo homem no seu viver cotidiano.
Narcotráfico, ambiente de incidência do crime, prostituição infantil e utilização do trabalho de crianças são algumas
das questões que atravessam o cotidiano daqueles que vivem num espaço urbano onde a violência se destaca como principal
ocorrência a colorir as páginas de jornais, revistas e preencher grandes espaços nos jornais televisivos. Todos aqueles que
habitam uma grande cidade não passa incólume por tais afetações, de modo que, todos são diretamente convocados a
responder, seja em formas de ações devastadoras, seja pela construção e divulgação de saber. É por esse pórtico que os
pensadores se ocupam dessa problemática, s no sentido de produzirem reflexões.
A esse respeito, quando da apresentação dos resultados de uma investigação sobre a criminalidade, através de um
programa da TVE, fui interpelado por moradores de uma comunidade carente para fornecer soluções aos impasses vividos
cotidianamente. Em razão desse convite, planejei uma intervenção nessa comunidade, mediante solicitação de uma mãe,
bastante desesperada em relação aos três netos dos quais se encarregava de educar. Alimentava a esperança da existência de
medidas educativas para a contenção da violência a quês esses moradores estão expostos, mas buscava também recursos para
evitar o ingresso de crianças no narcotráfico e na prostituição, pois nas comunidades de baixo poder aquisitivo não é muito
raro que crianças sejam utilizadas pelas organizações criminosas nos seus “serviços”.
Diante de tal circunstância, propôs-se um planejamento de uma ação psicológica com estratégias de intervenção que
visavam, primeiramente, esclarecer os passos do desenvolvimento psicológico, no sentido de os moradores daquela
comunidade pudessem construir idéias sobre a educação da criança. Em seguida, pretendeu-se produzir uma modalidade de
consciência crítica acerca da responsabilidade coletiva de cada um engajado num dado projeto social. Essas modalidades de

851
intervenção tinham lugar em reuniões semanais, num terreno baldio, cujo dono deixou aos cuidados de uma família, temendo
a invasão e apropriação, o que não surtiu efeito, pois uma das “figuras de poder” da comunidade determinou que aquele seria
um espaço de reunião e de atividades festivas. Para tanto propiciou uma reforma com uma parte coberta e a colocação de um
piso. As reuniões semanais, com grupo de até trinta pessoas, além do caráter informativo, tinham como objetivo propiciar aos
participantes certa visibilidade pela possibilidade de construção de arranjos subjetivos num processo de interação contínua,
fundamentada em aspectos de cunho político. Era também dada aos mesmos, a oportunidade de expressarem suas idéias sobre
as questões apresentadas como impasses, considerados insolúveis. Nesse primeiro momento, adotou-se a metodologia de
realização de registro escrito das reuniões para servir como objeto discussão e memória do acontecimento.
O registro de uma reunião era lido no início da reunião seguinte e todos os integrantes tinham a liberdade de se
expressarem face ao conteúdo apresentado, tecendo comentários, seja sobre si mesmos, seja sobre os demais. Pela
colaboração de um deles que possui uma máquina filmadora, seguiu-se um registro em imagens, sendo que, doravante, não se
procedeu mais o registro escrito. Decorrente dessa mudança de estratégia, construiu-se uma modalidade de olhar-escuta, que
configurou o segundo momento da intervenção, visando à produção de arranjos subjetivos em termos de alteridade,
considerando o cenário atual, atravessado pela efemeridade que confere à experiência o caráter fragmentário e fugidio.
Os instrumentos palavra e imagem técnica constituíram-se importantes na mediação da experiência produtora de
saber, de construção de conhecimento e de transformação subjetiva. Essa experiência de visibilidade de cada um concorreu
para a construção de trocas coletivas, que resultou na formulação de um projeto para a comunidade a ser executado pelos
participantes, sendo conduzida com olhar crítico do pesquisador, no sentido de apontar as possibilidades de transformações
subjetivas, priorizando o respeito à alteridade, mediante a constituição de um espaço de voz e de ação aos participantes.
Situações que podiam ser mudadas e que passavam despercebidas eram objeto de discussão. Com isso questionou-se o foco
de responsabilidade até projetado exclusivamente nas entidades governamentais. Para tanto, a cegueira de cada um sobre suas
reais potencialidades e possibilidades sequer era trazida à baila. Nesse sentido, a principal meta do processo interventivo
consistiu em mobilizar os participantes quanto a um estado de “impotência” muitas vezes difundido como um beco sem saída
e que neutraliza, quase por completo, a iniciativa de ações transformadoras. Não queremos admitir com isso a inexistência de
situações do viver cotidiano em relação às quais as opções do sujeito são bastante reduzidas no que concerne à produção de
soluções.
As atividades iniciaram-se de forma tímida e com um número bem reduzido de mães e avós (doze no total). Mas
devido à repercussão e difusão dos conhecimentos produzidos, atualmente, transcorridos dois anos de intervenção, conta-se
com dois grupos, devido o tempo disponibilizado para tal fim: quatro horas na tarde de domingo, sem qualquer permissão
para ultrapassar o limiar das dezoito horas. Existe uma lista de pessoas que querem participar, numa outra oportunidade do
projeto em razão dos resultados produzidos em termos de um processo de conscientização com efeitos predominantes na
educação e orientação das crianças para a vida no sentido da construção da cidadania.
Como efeito imediato e extremamente positivo, destacam-se as mudanças consideráveis realizadas pela organização
dos moradores. A grande primeira medida consistiu no processo de acondicionamento do lixo que resultou numa política de
acondicionamento e recolhimento para evitar possíveis doenças. Em segundo lugar, as estratégias educacionais de orientação
e esclarecimento sobressaíram-se à prática de espancamento das crianças, devido à circulação das informações, também
discutida nos encontros, cerca dos possíveis prejuízos decorrentes dessa prática. Enfim, devido à resposta positiva dada pela
comunidade sobre o trabalho realizado, alguns participantes expressam a vontade de que o trabalho em pauta poderia ser
realizado também em outras comunidades. Em termos de grandes transformações destaca-se a reflexão que focalizou a
questão da diferença e do diferente num processo de conscientização.

2 – O diferente e a diferença
O presente cotidiano compõe-se das mais sugestivas ilustrações do que denominamos de construções sociais, como
a criança, o pobre, o estrangeiro, o selvagem, o favelado o bandido, o dependente de substâncias químicas entre outras.
Tratando-se de produções coletivas, consideradas marginas à tessitura social, são objeto de preocupação e de grande
incômodo, razão pela qual observa-se o desencadear de ações que visam apenas extinguir os efeitos deixando as causas
incólumes. Não obstante, quase sempre, as políticas destinadas a essas figuras emergentes que insistem em se fazer presentes,
lançando por terra os sonhos de adequação ideal e promovendo verdadeiras fraturas do tecido social, escamoteiam as
condições que poderiam ser um passo na solução, delegando ao cidadão a tarefa e a responsabilidade de resolver, sozinho,
questões de cunho governamental.
É digno de observação que essas categorias são concebidas mediante a torpeza da visada científica sempre
poderosa em fornecer explicações, por vezes, inquestionáveis. Sem sombra de dúvidas essas figuras, provavelmente,
resistiriam muito bem a um cenário diferente daquele produzido pelas formas de poder que criam a necessidade de nomeação
e ordenação: o selvagem e o educado; o honesto e o desonesto; o louco e o normal; o bandido e o cidadão de bem; o cidadão
de bairros nobres e os moradores de comunidades; o decente e o imoral; o civilizado e o bárbaro que, entre outras tantas
dicotomias, nos servem de guia para pensar nas variações em torno do Mesmo, como o próximo aceitável, e do Outro como o
diferente recusável. Disso então depreendemos o eixo da temática abordada: em que circunstâncias podemos compreender o
diferente sem tratá-lo como uma forma de multiplicidade? Dito em outras palavras: que formas de viver são aceitas como

852
condizentes e às quais são negados os direitos de uma vida digna? Em suma, de onde surge a necessidade imperiosa de
diferenciar, identificar o diferente, anular as diferenças e eliminar o diferente?
Questões espinhosas, se admitirmos estar diante de formas de sabedoria que contemplam, conhecem, ignoram,
horrorizam-se e maravilham-se no contínuo exercício de caça e captura da identidade, em nome da promoção de condições
alteritárias. São, sabemos, formas explícitas de fragmentar o dentro e o fora, de inventar e de descobrir e de homogeneizar e
segregar que concorrem para a produção de pensadores, salvo raras exceções, adeptos da busca de critérios de delimitação no
afã desesperado para separar o joio do trigo. Apegado às mais claras formas de determinação, colocam-se a serviço da
reivindicação da identidade, numa busca do Mesmo, por estarem ébrios da diferença como algo atormentador. Mas, pensar a
identidade não se pode fazê-lo por outro caminho que o recurso ao diferente (Freud, 1976). Quer dizer, todo projeto de
igualdade presume a produção de um resto a ser segregado como diferença inaceitável, reconhecida na antiga terminologia
bíblica de “bode expiatório”. Disso entendemos que a diferença não pode ser situada numa ordem alheia àquela regulada pelo
princípio da identidade. Sendo assim, lutar pelo reconhecimento da diferença e ainda de diferenças específicas, pode
significar um passo importante na construção dos esteios necessários ao exercício da cidadania e não o desertar da identidade
como aquilo que não tem convivência pacífica com a diferença.
Eis o grande obstáculo encravado no imaginário social que apagam os frágeis contornos das experiências passadas e
esfumaça a visão em termos de uma perspectiva futura, seja pela exaltação dessas fraturas do social, seja no tocante ao fato de
considerá-las inexistentes. Certamente, é preciso salientar que a produção social de tais figuras seja, tão somente, a
reivindicação para que determinados segmentos da tessitura social possam conseguir meios de identificação e de
diferenciação.
O engendrar configurado no social pela existência de diferentes, aparentemente, sem coexistência pacífica, parece
revelar a geometria do exercício de poder com dissecações precisas e mirabolantes guiadoras de uma modalidade de olhar e
de discurso expressa no corredor da cegueira e da surdez. A tão proclamada exaltação pela busca da figura do si mesmo
individualizado parece ser uma ressonância dos mecanismos segregativos que fraturam o tecido social (Lipovetsky, 1994).
Via de regra, nessa dinâmica, apagam-se os limites acerca da possibilidade de fazermos parte de um horizonte onde
o nosso pertencimento decorre de um parentesco singular. Trata-se de um topos, objeto de aspiração máxima do homem na
atualidade, onde deveriam ser nomeadas todas as coisas existentes e inexistentes, a ponto de se alcançar o momento em que o
fosso entre o idêntico e o diferente fosse completamente abolido, mesmo às custas do devorar nossos sonhos para que
pudéssemos nos afirmar idênticos em nosso ser.
De forma óbvia esses apontamentos nos levam ao domínio bastante problemático da experiência da subjetividade
aplicada não mais ao Outro, qualquer que seja a categoria, mas ao si mesmo. Em suma, trata-se da experiência do si mesmo
com o Outro, ou melhor, do idêntico a si frente ao diferente. Eis o grande desafio indicado por Foucault (1997) quando
sugeriu ao homem a necessidade de que para viver seria preciso deixar de ser aquilo que é, como uma modalidade ética para o
desprender-se de si mesmo. Árdua tarefa que requer a revisão, por cada um, do que seja a condição de alienação e submissão.
O desafio do desprender-se de si mesmo somente pode orientar o sujeito ao confronto da íntima identidade no exercício da
partilha dialógica, visando à construção dos modos de subjetivação, carreadas pelas transformações históricas, políticas e
científicas. Assim, acreditamos, ser possível produzir maneiras de reduzir os densos contornos que afugentam o sujeito do
conhecimento necessário ao exercício da cidadania.
Devemos começar tentando reunir filigranas que nos apontem as especificidades culturais da identidade para
analisar o diferente, o exótico e o bode expiatório produzidos em cada época. Isso pode servir de ilustração no deslindar das
possibilidades de visibilidade e enunciação, a pluralidade de formas de conhecimento, os tipos de saberes praticados e as
práticas adotadas como modalidades de identificação. Desse modo, conseguiríamos consagrar, tanto a produção dialógica
quanto a visibilidade como os critérios de formulação, atribuição e reconhecimento da identidade no seio da diferença. Eis a
tônica dos novos movimentos sociais que fincaram suas fronteiras no século passado.
Munidos dessas idéias, mergulhamos numa experiência de um universo edificado em raízes estruturais bem
demarcadas no contexto social: a comunidade do Morro da Coroa na cidade do Rio de Janeiro, situada sobre o túnel Santa
Bárbara, composta de descentes afro-brasileiros e de habitantes oriundos das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Deparamo-
nos com uma massa difusa com características ideológicas díspares. No entanto, diferencia-se um coletivo preocupado com as
questões cotidianas, na esperança de construção de novas formas de viver, no sentido de oporem-se as até então vigentes.
Reivindicam por balizadores outros para a identidade. E foi esse o pórtico de ingresso nessa comunidade.
Por ter realizado uma investigação sobre criminalidade, fui convidado a participar do programa de Televisão “Olhar
2002”, da Rede Brasil. Nessa ocasião quando indagado sobre as possíveis soluções para a criminalidade, apresentei como
alternativas a arte e a educação defendendo que esta última modalidade, em nosso país, é a mais viável, dado à forma de
inscrição no imaginário social de grande parte da população do que seja a saída pela arte.
Uma moradora dessa comunidade, que trabalha na casa de um parente meu, viu o programa e aventou a
possibilidade de uma intervenção. Difícil tarefa colocada desde então como um impossível: a senhora em questão, mãe de três
filhos expressou seu desespero, solicitando-me fazer alguma coisa no sentido de lhe oferecer meios para educar seus filhos de
modo a distanciá-los, o máximo possível, da realidade cotidiana de seu viver. Alimentava a expectativa de haver um manual
de educação que pudesse oferecer alternativas aos seus filhos e às crianças da comunidade além do ingresso no universo do
crime, especialmente, o narcotráfico; a dependência à substâncias químicas; a prostituição infantil entre outras mazelas que

853
revestem com uma sombra negra de medo e terror o colorido do viver dos habitantes dessa comunidade. Quase sempre só
existem duas saídas: tornarem-se bandidos ou refém deles. Diante de difícil posposta fascinante, fez-se necessário criar
condições operativas de uma intervenção social construída na franja em que a psicologia e a educação, como práticas sociais
teorizadas, podem traçar um dialogo salutar. Em princípio, estaríamos diante de uma psicologia ao avesso ou mesmo de uma
modalidade singular de educação. Nessas circunstâncias, alguma intervenção deveria ser realizada frente a demanda, diante
das possibilidades inerentes ao funcionamento de uma prática dessa natureza naquela comunidade.
Para adentrar em seara tão complexa, tomamos com guia a indicação de Bichat de que a vida é esse conjunto de
forças que resiste à morte. (Canguilhem, 1978). É preciso apostar em tal assertiva uma vez que adentrar numa comunidade
para realizar um trabalho tem suas conseqüências, tanto por ser uma novidade aos supostos “mandantes”, quanto por
introduzir modalidades de pensar que podem ir de encontro àquilo que é esperado pelos mesmos. Nem precisa, a esse
respeito, mencionar a advertência dessa mãe para não mencionar o teor de seu pedido no sentido de desviar os jovens da
comunidade do ingresso no narcotráfico.
Em principio, situamo-nos diante de uma grande contradição: essa mãe recorre, para um conjunto de sua
comunidade, à possibilidade transformação pelo saber. É claro que sua demanda situa um ponto de relação com o saber,
especialmente o saber fazer. Por outro lado, não se desconhece as regras de funcionamento dessas comunidades, onde
geralmente existe um ser déspota, esse “macho viril, criação do discurso” (Lacan, 1992, p. 53), que não deseja absolutamente
nenhum saber. Trilha sinuosa a ser seguida, mas que, com devidas precauções, pode se vislumbrar alternativas de
transformação e produção subjetiva. A proposta de trabalho demandava uma espécie de curso esclarecedor sobre os cuidados
a serem seguidos na educação das crianças, uma vez que no imaginário da comunidade existe a idéia de que para os adultos
nada há de ser feito. Em princípio, partiu-se do diagnóstico circunstancial e em seguida produziu-se um calendário de
reuniões.

3 – O processo de intervenção e a produção de saber


Uma vez aceito o desafio, teve início o trabalho de intervenção, inicialmente voltado para uma espécie de curso
informativo acerca do desenvolvimento da criança e das condições a serem seguidas no processo de sua educação. Foi
acordada então uma modalidade encontro semanal, às tardes de domingos, com mães preocupadas no destino de seus filhos.
Estabeleceu-se o critério de que o número de participantes não poderia ser superior a trinta, bem como o tempo de três horas
para os encontros numa área destinada ao lazer, num terreno, ainda sem construção, cujo proprietário encarrega um membro
da comunidade a cuidá-lo para evitar invasões. Existem, nesse local, bancadas de alvenaria circundando o terreno amurado
com piso de cimento. Adotou-se o recurso de registro, a cargo do responsável pela intervenção, em anotações para serem
objeto de leitura, discussão e reflexão sempre no início de cada reunião. Com isso teve lugar a construção de uma memória
escrita de um processo em que pessoas daquelas comunidades puderam retornar às suas produções. Muitas vezes, o fator
surpresa ecoava de forma significativa quando um participante afirmava não ter falado tal coisa. Nessas ocasiões, geralmente,
havia a procura de um cúmplice, momento em que o participante em questão queria ter a certeza, perguntando a outro, se teria
falado ou não aquilo que estava escrito. Em seguida, uma voluntária dispôs-se a fazer o registro, pois já estava terminado o
supletivo relativo à conclusão do segundo grau.
Vale registrar que na quarta reunião foi relatado, no encontro, por um dos participantes a intenção do mandante em
conhecer o pesquisador. Mostrou-se interessado e, talvez, preocupado com a repercussão dos resultados da pesquisa-
intervenção. Diante de situação tão delicada, foi informado sobre a possibilidade de participação a todos os habitantes
interessados da localidade. Esse senhor não compareceu, mas algumas mulheres perguntaram se podiam trazer seus maridos.
Essa colocação revelou uma mudança: o pedido formulado originalmente foi circunscrito apenas às mães, numa espécie de
engano de que a educação e condução das crianças não fossem também do encargo dos pais. Daí então, face à procura, outro
grupo foi formado tendo como participantes mães e pais.
Um dos participantes aderiu à condição de voluntário e, por ser dono de uma máquina filmadora, demonstrou seu
interesse em colaborar no registro das reuniões em forma de imagens. Foi sugerido um rateio das fitas e, partir de então, as
reuniões foram vídeogravadas. Nessa ocasião, cada grupo funcionava no espaço de tempo de duas horas. Surgiu então um
impasse: o tempo era exíguo para a exibição da fita e das discussões.
Os participantes foram convocados a produzir uma solução: houve uma mudança na periodicidade de encontro que
passou a ser quinzenal para que o trabalho de reflexão sobre o registro imagístico tivesse lugar.
Desse modo, construiu-se uma modalidade de olhar-escuta com a finalidade da produção de subjetividade,
considerando o presente cotidiano atravessado pela dimensão do múltiplo e da efemeridade, condições que conferem à
experiência, o caráter fragmentário e fugidio. Com isso, articula-se a função do encontro com a imagem técnica, seguido de
reflexão como o vetor de grande importância na mediação da experiência produtora de saber e de transformação subjetiva.
Os temas abordados nos encontros não sofreram grande alteração do momento em que o registro se fez pela escrita
até a modalidade atual em imagens. Mas, no tocante à posição dos participantes, no momento em que se passou a operar o
registro em imagens, houve uma mudança radical: tornou-se visível a preocupação com a aparência, com a vestimenta, com a
maneira de falar diante do encontro do sujeito com sua imagem o que parecia traduzir-se em fonte de provisão narcísica. Esse
procedimento propiciou, de certo modo, a transformação de estilos de vida, principalmente na atenção ao imperativo que

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comanda o cenário do mundo atual onde se tem a palavra de ordem “consuma” como a apelo ao qual o homem não pode
fugir. Teve-se o cuidado de não cair no ciclo vicioso do consumo que proclama a aparência, pois o homem vive atualmente
voltado para si próprio, de certo modo “sem se preocupar com as tradições e nem com a posterioridade”. (Lipovetsky, 1993,
p. 49).
As mulheres revelaram que precisavam se produzir mais para aparecerem na televisão, pois era assim que tomavam
ciência de si. Esse modo de expressão de uma vontade parece sugestivo de que há uma tentativa, mesmo que de forma lúdica,
de não cair no estado de indiferença pura.
Além dessa curiosa questão, a temática que atravessava e continua atravessando os encontros, era e continua sendo,
a preocupação de quais meios estariam ao alcance da comunidade no sentido de produzir anteparos para a proteção de uma
espécie de guerra. Esta se configurava como uma guerra de classes, mas que, no presente se mostra como a guerra de todos
contra todos, seja pelas rígidas burocracias, pela proliferação de imagens que ditam procedimentos de correção, pelas
ideologias terapêuticas amplamente difundidas, pelo culto ao consumo como agente de garantia de vida subjetiva, pelas
transformações na família, pela inversão de valores, pelas modalidades de educação permissiva acompanhada de relações
humanas cada vez mais bárbaras e conflitantes e, enfim, pela banalização do sofrimento e da dor.
Os relatos produzidos eram repletos de indicações de busca de imperativos de sucesso, que se não forem atingidos,
são tomados como fortes críticas a quem apresenta tais aspirações.
Tudo sugere o desaparecimento de esperanças numa capacidade de apatia, revelando uma espécie de um
embotamento sobre o que é possível fazer. Nesse esteira foi formulado o pedido numa esperança de que o saber científico
pudesse servir na terceirização da educação, tema bastante discutido, pois emergia freqüentemente na roupagem da pergunta:
o que os pais podem fazer para dar uma boa educação aos filhos?

4 – Produção de arranjos subjetivos pelo encontro com a imagem


A introdução da imagem técnica propiciou uma mudança: das preocupações sobre a educação das crianças,
saneamento, saúde, habitação, prostituição, narcotráfico, dependência química e gravidez na adolescência, passou-se a dar
destaque a questões concernentes ao sujeito, momento em que se refletiu sobre a temática do compromisso e da
responsabilidade. Além de a necessidade de cada um tornar público, as particularidades da vida, para seguir o roteiro ditado
nos dias atuais, ressaltou-se o chamado a construir um modus vivendi de acordo com a singularidade numa experiência
partilhada.
O homem de nossos dias, totalmente ligado aos conteúdos transmitidos pelos diversos meios de comunicação é
testemunha de uma grande transformação: se outrora a ficção imagística era utilizada como meio de entretenimento, nos dias
atuais, a vida real é transformada em imagens bem produzida numa estética que nem sempre visa à diversão. De certo modo,
podemos admitir que, estar em imagens significa uma possibilidade de vida, de modo que as nuanças da vida subjetiva são
consideradas como objetos valiosos para produzirem altos índices de audiência na mídia (Castro, 1998).
Acreditamos que a produção de imagem nos encontros não seguiu um caminho diferente a não ser como
instrumento para a reflexão e tomada de posições que podem ocorrer mediante o encontro do sujeito com sua imagem, não
somente constitutivo, mas reparador.
Há de se ressaltar o valor simbólico para os participantes pelo fato de terem suas falas conservadas em escrita e em
imagens: a imagem devolve o reconhecimento da existência para o sujeito e serve para retratar a sua presença no mundo,
frente àqueles que testemunham o seu percurso de vida. Trata-se assim de um recorte de vida revelador de singularidade,
sendo o recurso à imagem de estremo valor na constituição da vida subjetiva. Além de ser fonte de provisões amorosas, a
imagem é também um suporte que amortece o estado de desamparo. Daí então se poder afirmar que o homem da atualidade
precisa de imagem como precisa de alimento, de ar, de companhia e até mesmo da imagem construída pelo saber científico,
conforme formulado pela mãe da comunidade em estudo, que solicitou a intervenção.
A título de ilustração, vale referir ao comentário de um participante que, de forma bastante elucidativa, afirmou: “eu
acho demais essa presença ai. É mais do que a minha: parece que estou vendo tudo”.
O conceito bakhtiniano de exotopia (Bakhtin, 2000) foi o eixo matricial para se proceder a intervenção sustentada
pela dinâmica da visão do sujeito: sobre si mesmo, o olhar do outro, o olhar do outro expresso em palavras e a expectativa do
sujeito acerca do que é captado no olho do outro.
Houve também o olhar crítico do pesquisador (Amorin, 2001) mediante sua inserção no campo em estudo que,
atento ao diálogo dos participantes, ocupou-se em apontar possibilidades de produção de subjetividade em função do ato de
convocar o sujeito a confrontar-se com sua imagem de modo a construir uma produção dialógica de saber acerca de sua
singularidade no coletivo.
Assim, o campo de trabalho opera-se dando relevo a alteridade pela construção do espaço de voz aos participantes,
momento em tomam ciência de sua posição subjetiva frente ao andamento da comunidade em questão, seja, no que concerne
à demanda de necessidades, seja na produção de alternativas para os impasses detectados. Desse modo, garantiu-se a
visibilidade, a cada um, instaurada num sistema de trocas, numa espécie de experiência crítica sobre os pactos necessários ao
viver em comunidade. Com isso, pôde-se retratar a história pessoal face aos limites necessários ao projeto próprio da
comunidade em encontrar soluções para questões como: prostituição infantil, prostituição, engajamento de menores no

855
narcotráfico, dependência química, educação, condições higiênicas e de saúde.
A expressão dessa temática revela a expectativa por uma vida digna tanto, pela assunção, por cada um, de sua
responsabilidade, quanto da atenção das instâncias governamentais e de outras interessadas na promoção do bem estar social.
As experiências que tiveram lugar no transcorrer dos dois últimos anos constam que a imagem técnica, como meio
de produção de saber, pode ser o indício para o sujeito em encontrar alternativas viáveis, para os impasses da vida, mas de um
outro lugar, uma vez que toma ciência de sua condição de ser no mundo, também ante a possibilidade que, mediante a
imagem, foi possível um tipo de interlocução para, de forma coletiva, discutir questões do cotidiano da comunidade,
separando o que seria da iniciativa de cada um daquilo que concerne à alçada das autoridades governamentais.
Não só ficou evidenciado, nesse tipo de olhar escuta, que o sujeito tem condições de interferir no andamento de suas
condições de vida, pelo questionamento dos modelos disponíveis, como também houve a ciência do império das imagens,
numa atualidade em que o solgan “imagem é tudo” toma a dianteira no momento da tomada de decisões. Embora saibamos
que o sujeito é capturado pela imagem, seja a técnica ou a que advém do discurso do outro, não descartamos o seu grande
poder de transformação. Desse modo, o homem, nos dias atuais, não tem mais como viver no anonimato: por varias vias é
constantemente convocado a ver e a ser visto. A imagem conclama a ação de ver na esperança promissora do sujeito de um
dia ser visto.
A imagem mostra a realidade (JOBIM e SOUSA, 2002) nua e crua que, de tão bem contornada, parece confundir o
espectador se está diante da produção artística de fatos de relatos vivos da tragédia humana. Mas acreditamos que dessa forma
pode haver o enfrentamento aos aspectos da realidade e, uma vez, conhecidos, pode-se pensar em mudá-los.
A transmissão de saber é importante pois abre caminho para disponibilizar, ao sujeito, alternativas de mudanças. A
esse respeito duas situações dessa comunidade são bem interessantes. As mães tinham o hábito de combater os piolhos de
seus filhos de forma manual. Num encontro foi levantada a possibilidade do uso de produtos químicos, o que foi prontamente
adotado, mas, com um agravante: havia uma senhora que cobrava pelos serviços de limpeza das cabeças das crianças!
Outra circunstância foi a de uma jovem mãe que expressava sua dificuldade em orientar a filha quando a mesma
estivesse “naqueles dias”. Houve um interesse dos participantes em sugerir a essa mãe que indicasse para a filha o uso de
absorventes. Houve um silêncio prolongado dessa mãe que, depois de relutar muito, afirmou que, por não ter dinheiro para
compra de absorventes, valia-se de toalhinhas higiênicas feitas de camisetas que são distribuídas promocionalmente em
campanhas eleitorais.

5 – Apontamentos para reflexão


Cabe tecer considerações acerca de uma intervenção dessa natureza. O encontro do pesquisador, com um dado
objeto de investigação, tem conseqüências marcantes para ambos. Primeiro, pelo fato de que a entrada do investigador em
campo é claramente uma possibilidade de intervenção na medida em que transformações têm lugar em razão de seu ingresso.
Além disso, o próprio objeto modifica-se devido ao processo de conscientização decorrente da produção coletiva. Disso
então, a participação numa empreitada dessa natureza é sempre um veio de indagações constantes acerca das questões que
atravessam o social. Sendo assim, muito mais que pensar em conclusões, faz-se mister sugerir aspectos que possam inquietar
pensadores a se engajarem da discussão de complexa temática: a educação como alternativa possível a ser oferecida ao sujeito
capaz de fazê-lo declinar de sua vontade para o crime, para a prostituição e para outras modalidades de ação que revestem
com um “caldo perverso” o contexto social. Eis uma fonte de esperança!
Não obstante há uma singularidade nessa pesquisa-intervenção: em princípio, houve um pacto de co-participação no
sentido da construção e do uso dos espaços destinados a voz de cada participante, aliado a uma escuta atenta para apontar
singularidade de modo a discerni-las do individualismo exacerbado que, muitas vezes, aparece com a roupagem enganosa de
recurso a ser adotado como a postura do sujeito para a construção de modalidades de subjetivação. Cabe destacar que a
metodologia de ação foi construída em processo, mediante a explicitação das demandas dos participantes. Quer dizer, à
medida que a densidade da questão em tela teve lugar pela enunciação dos agentes-autores, oriundos de realidades diversas,
foram desfeitas fronteiras de modo a surgir um diálogo que considerasse a diferença e o diferente como condições necessárias
ao diálogo de forma a evidenciar nuanças de alteridade.
É claro que a entrada em campo não ocorreu sem o acompanhar de uma intencionalidade, mas sem o
aprisionamento a um método padrão. O eixo norteador foi a dimensão do olhar-escuta como meio de intervenção pela
transmissão de saber. Todo o processo de produção subjetiva consistiu em convocar a comunidade a produzir saber, tanto na
mediação pela escrita quanto pela utilização do recurso relativo à imagem técnica, para que, numa espécie de acontecer
coletivo, houvesse transformações subjetivas a serem testemunhadas a multiplicadas aos demais (Camerini, 2002).
Houve muitos desafios a serem enfrentados:
a) os participantes teriam de se posicionarem frente a determinadas questões o que fazia eco às ordens recebidas
para não trazer a público àquilo que era vetado pelo “mandante”. Numa ocasião em que o tema em discussão era a
reprovação, uma mãe disse a outra “seu filho foi reprovado, por que não freqüenta as aulas”, tendo como resposta “você sabe
por que”. Seguiu-se um longo silencio e uma senhora revelou que as crianças, às vezes, têm de prestar serviços ao
narcotráfico soltando pipas e, assim, naquele dia não vão à escola. Ficou patente que quem decide a ida das crianças à escola
é o mandante da comunidade e,

856
b) a presença da filmadora produziu um tipo de constrangimento: as pessoas falavam baixo e sempre recusavam
usar o microfone. Por outro lado, a ampliação da voz parece ter sido um fator relevante no sentido de que cada um tinha a
certeza de ser escutado além de ser visto.
Apesar da produção da imagem técnica ter inicialmente causado certa inibição, esta foi relativa, não tendo
culminado numa paralisação, quando num dado momento o foco do projeto coletivo consistiu na alternativa de construção do
registro de um conjunto de fatos memoráveis acerca da trajetória de vida.
Disso, constata-se atualmente a colaboração espontânea de alguns participantes em encorajar os outros no sentido
da tomada de decisões ante questões delicadas próprias daquela comunidade. Assim, procedeu-se a uma desconstrução
sistemática de valores perdidos no esfumaçar próprio da falta de informações, seja pela modalidade de relacionamento que
passou a funcionar, em pessoas da comunidade, que não se conheciam, pela possibilidade garantia, a cada um, de um espaço
de voz e de ser ouvido.
O campo ético foi erigido no sentido de oferecer a cada participante, devidamente implicado, nas questões
discutidas, a possibilidade de se ver como agente construtor de um projeto coletivo, mas também de se deixar ver e conviver
com as críticas que uma modalidade de relação, como essa, é capaz de suscitar. A tônica em pauta foi a de convocar os
participantes a serem os agentes formadores de opinião acerca das ocorrências que colorem o cotidiano da vida numa
comunidade que, na atualidade, guarda pouca distância da vida que tem lugar nos faustos bairros da classe média alta, pelo
menos, no sentido daquilo que chega em imagens.
A experiência compartilhada em encontros, não só foi a mola propulsora da construção da estória que revelou a
cada um, em ínfimas filigranas, as agruras do viver em condições de vida apressada, fragmentada e sem referências. Para
tanto, fez-se necessário um movimento de propulsão para afastar toda e qualquer nostalgia de um reviver, pois a expectativa
era de reconstituir momentos memoráveis, sem abrir mão da singularidade, nem o aprisionamento às experiências do passado,
mesmo considerando a importância das mesmas.
É nesse sentido que acreditamos ter colocado o sujeito numa báscula: ora a experiência com a imagem fazia-o
retomar um passado; ora captava-se em outra dimensão sendo o espectador de si mesmo. Sendo assim, face às transformações
subjetivas, o sujeito constrói conhecimento acerca de si e o do mundo a sua volta. Provavelmente, foi fornecido, nesse
processo, aos participantes condições para realizar acabamentos provisórios, no sentido de conferir, pela transmissão de saber,
um espaço próprio para analisar, de forma aprofundada, determinadas questões tanto na esfera individual quanto na coletiva.
Disso resultou a possibilidade de enunciar intenções de forma clara, tanto pela construção de novos sentidos quanto pela
provisão narcísica que a imagem pôde propiciar.
Acredita-se também que a imagem técnica quando transformada em objeto de reflexão opera no sentido de
impulsionar trocas verbais de fundamental importância na constituição de modos subjetivos, numa dada comunidade, não
somente no que concerne à formação de valores, como também pela possibilidade do confronto de valores solidificados com
modalidades que circulam no contexto social (Jobim e Souza, 2000). Sendo assim, a intervenção mediada pela imagem
forneceu aos participantes uma abertura para se pensar uma concepção de mundo construída, num projeto coletivo, que tem o
comércio de palavras como o principal eixo, tanto partindo das expressões oriundas da ideologia do cotidiano, no sentido de
questioná-las, quanto na fomentação de sistemas ideológicos construídos.
De um modo ou de outro, envereda-se por uma trilha que propicia um processo de conscientização, tendo em vista
que, a construção alteritária (Sarlo, 1998) decorrente do intercâmbio de idéias pelos participantes, revela-se ser uma grande
conquista, vertida na delimitação da responsabilidade dos papéis a serem assumidos e na advertência quanto aos limites
próprios da condição de vida.
Mediante o que foi possível depreender do funcionamento coletivo, constatamos que as preocupações com temas
voltados para a cidadania, a carência, os cuidados preventivos e profiláticos em relação ao consumo e tráfico de drogas, o
papel dos pais na educação das crianças e a prostituição infantil foram alvo de discussões profícuas, resultando na produção
de informações, inicialmente, dispersas, mas que aos poucos confluíram para uma modalidade de saber compartilhado,
produzido consensualmente. Ainda, no âmbito da relação dialógica alteritária, caracterizada pelo confronto de opiniões e por
mecanismos de identificação, houve a construção de um espaço propício para a dinâmica em termos de trocas, desta feita,
vertidas em condições de reestruturação de situações cotidianas da vida, de modo a ser produzida uma nuança de
subjetividade crítica e criativa, sempre tendo em vista os limites do viver na própria comunidade.
Cabe, por fim, fazer uma ressalva: se a mídia ocupa-se atualmente em revelar cenas de desmoronamento e de
destruição, parecendo indicar uma modalidade de posição subjetiva sem esperanças, por outro lado, a experiência do coletivo
com a imagem técnica, nessa comunidade, quando solicitada a refletir sobre o espetáculo produzido, contribuiu, de forma
significativa, na dinâmica dos processos perceptivos, dos laços identificatórios, na flexibilização dos sistemas de trocas de
informação e na possibilidade de tolerância à diferença e ao diferente.
Constatou-se, com o desenrolar do processo de intervenção, o surgimento de uma atitude interpretativa de cunho
criativo, pela circulação do saber produzido como uma forma reveladora de transformações subjetivas. Com isso, alcançou-se
no coletivo, pelo exercício da reflexão, a elaboração sobre determinadas nuanças do contexto social, bem como o
entendimento da diferença entre políticas de cunho meramente assistencialistas e aquelas que respeitam as singularidades no
intuito de garantir ao sujeito a produção de meios para exercer a cidadania, numa espécie de atitude cooperativa. Desse
modo, a construção de saber, aliada ao processo de produção de subjetividades, constituiu-se num vetor para a formulação de

857
projetos coletivos, resultantes de uma ação pautada na vontade transformadora.
Acrescente-se a isso que a utilização do recurso imagético revelou ser uma espécie de espelho mágico, em que cada
participante ao se captar é imediatamente afetado podendo, a partir de então, escolher transformar-se. Sem dúvida, os
participantes esperavam do processo de intervenção a “doação” de um saber para ser utilizado, de forma prática, no
atendimento às necessidades. Mas outros horizontes foram se construindo no sentido da manutenção de cada um naquele tipo
de atividade. Além da possibilidade da construção de uma história a partir de um projeto coletivo, a experiência demonstrou
ser encontrado um tipo de suporte para o atenuado abandono próprio dos dias atuais. Eis o veio de transformação subjetiva,
que teve como pórtico de entrada, a demanda de saber para a satisfação de necessidades, mas que se edificou nas condições
em que o sujeito era convocado a falar de si para assumir, com dignidade, a sua condição de cidadão. Sendo assim, primou-se
pela iniciativa de reflexão para a construção de saber pelos meios disponíveis no sentido de realizar uma espécie de escrita-
documento acerca da existência.
De resto, as iniciativas sobre os modos de educação das crianças, o combate ao consumo e ao tráfico de drogas, a
prostituição infantil e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, devem comprometer o sujeito a implicar-se no
processo de produção da arma mais poderosa: o saber. Somente assim, as vozes desesperadas de mães, moradoras em
comunidades, preocupadas com o destino de seus filhos tem de ser ouvidas como um apelo indicador de uma experiência
vivida. Sem dúvida, essas vozes ecoam a esperança de que projetos políticos direcionem uma modalidade de olhar para o tipo
de vida em condições de uma comunidade que habita, não apenas por uma mera escolha, uma comunidade.
A esperança é a aposta de ver promessas verter-se em ações eficazes. Disso então, conclui-se que é de fundamental
importância a escuta dessas vozes, mas de maneira compartilhada, sem perder a compreensão de que não se deve deixá-las
cair no vácuo escuro das trevas!
Eis o sentido que perseguimos: encontrar um terreno para tratar o diferente sem toda a vestimenta dos estigmas e
preconceitos produzidos pela rede de relações sociais, pois acreditamos que tais concepções segregacionistas são produto de
uma história, ou seja, de uma determinada forma de ação nos mecanismos de ordenação das relações entre os homens.
É preciso minimizar os elos da forte corrente que aprisiona o sujeito que vive em condições específicas, num crivo
de exclusão e de anormalidade, eliminando assim as ricas possibilidades de transformação de seu universo subjetivo.
Ainda mais, faz-se mister a produção de um movimento a partir do princípio da diversidade de olhares e de saberes
para, desse modo, ser rompida a lógica das hierarquias e da padronização que ataca a pluralidade.
Assim, chegamos a argumento que norteou essa intervenção: o dialogo salutar entre o campo da prática educativa e
o da prática psicológica, encontro que possibilitou a construção de modos de subjetivação pautados do esfacelar das
dicotomias separatistas, para inscrever o sujeito numa rede de relações sócio-históricas que se vale da dialética entre os
termos dessas dicotomias e não da polarização num extremo ou noutro. Desse modo, viabilizou-se uma modalidade de
intervenção que opera com a diferença, com o diferente e com o estranho sem considerá-los, em princípio, condenados pela
exclusão a que estão submetidos.
Eis a trilha a ser seguida: o homem é essencialmente um ser social, determinado pelo meio social de seu entorno
imediato, que se apropria da história para se produzir e produzir a história da humanidade. Nesse processo de convergência do
plano social com o histórico ocorrem as produções de subjetividade, mediada pela linguagem. Assim podemos fundamentar
um projeto social tendo como foco as transformações do sujeito através de condições participativas de cooperação e
responsabilidade mútuas. Consentimento e comprometimento numa forma de participação digna que seja acolhedora e
compartilhada!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bakhtin, M. (2000). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins fontes, 2000.
Camerini, M. F. A. (2002). A produção de saber mediada pelo uso do vídeo com classes populares urbanas: pela
reconstrução da dignidade humana numa experiência de pastoral. Rio de Janeiro: PUC, Tese (doutorado).
Canguilhem, G. (1978). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Castro, L. R. (1998). Infância e adolescência na cultura do consumo. Rio de Janeiro: Nau.
Freud, S. (1976). Psicologia das massas e análise do ego. Rio de Janeiro: Imago.
Foucault, M. (1997). Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Jobim e Sousa, (2000). Subjetividade em questão: a infância como crítica da cultura. Rio de Janeiro: 7Letras.
________(2002). S. O olho e a câmara: desafios para a educação na época da interatividade virtual. Advir, 15.
Lacan, J.(1992). O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Lipovetsky, G. (1993). A era do vazio. Lisboa: Relógio D’Água.
_________ (1994). O crepúsculo do dever. Lisboa: Dom Quixote.
Sarlo, B. (1998). Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: EDUFRJ.

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(In)disciplina, normatização e normalização na escola

Ana Lúcia Ratto


Universidade Federal do Paraná
anaratto@ufpr.br

Resumo: Este trabalho visa refletir sobre os usos das normas nas dinâmicas de disciplinarização sobre as crianças no cotidiano escolar tendo
em vista especialmente o referencial analítico foucaultiano e dando ênfase à diferenciação entre processos de normatização e de
normalização. Apóia-se num conjunto total de aproximadamente seiscentas narrativas de livros de ocorrência usados em uma escola pública
das séries iniciais do ensino fundamental entre os anos de 1998 e 2000 (Curitiba-Brasil). Tais livros são usados para registrar os
comportamentos infantis considerados indisciplinados, visando com isso corrigi-los. Entre outros, busquei identificar e problematizar alguns
dos aspectos que informam a normatização vigente na escola no sentido das relações a serem estabelecidas entre as crianças e o tempo, o
espaço, as atividades e as autoridades escolares. E, no movimento de questionar a normatização que institui o comportamento
(in)disciplinado na escola, analisei aspectos vinculados aos processos de normalização implicados nessas dinâmicas.

Situando a pesquisa: considerações preliminares


Com este texto, objetivo refletir sobre alguns dos sentidos e usos que certas normas adquirem no cotidiano escolar,
tendo em vista os processos de disciplinarização que ocorrem sobre as crianças.
Tenho por base empírica especialmente um conjunto de narrativas existentes em livros de ocorrência recentes
usados no dia a dia de uma escola pública localizada em Curitiba (sul do Brasil, capital do Paraná). Trata-se de uma escola
pública de grande porte localizada na periferia desta cidade, atendendo uma população de baixo poder aquisitivo.1
Esses livros constituíram o principal material empírico de minha pesquisa de doutorado,2 livros estes destinados às
crianças de primeira à quarta série do ensino fundamental, utilizados para registrar e corrigir os comportamentos infantis
considerados pelas autoridades escolares como indisciplinados. Trabalhei sobre um universo total de aproximadamente 600
ocorrências, referentes aos anos de 1998, 1999 e 2000.
Enfocarei, neste texto, à luz das narrativas dos livros de ocorrência, certas normas referentes a alguns dos
parâmetros básicos a partir dos quais a escola se organiza e estabelece aquilo que é necessário em seu ordenamento cotidiano.
Trata-se de problematizar, especialmente a partir do referencial analítico foucaultiano, algumas das regras instituidoras do
comportamento (in)disciplinado das crianças, tendo em vista o tipo de relação que elas são ensinadas a estabelecer com o
tempo, o espaço e as atividades na escola. E, no movimento de questionar a normatização que direciona o tipo de
disciplinamento veiculado através dos livros de ocorrência, analisarei alguns aspectos relacionados aos processos de
normalização implicados nestas dinâmicas disciplinares, diferenciação que explicarei na próxima seção deste texto.
Feitas essas considerações ressalto, desde já, que a problematização que faço não significa pressupor que certas
regras de organização ou ordenamento na escola com relação ao tempo, espaço, atividades, ou a quaisquer outros parâmetros,
não devam existir, sobretudo se não perdemos de vista estar em jogo, no contexto escolar, a viabilização das relações entre
tantos sujeitos que devem conviver juntos. Enquandramentos temporais, espaciais, dentre outros, parecem ser mesmo
inevitáveis no contexto de cada cultura. A questão aqui é a de contribuir em dois sentidos interligados: na de desnaturalizar
tais ordenamentos; e na de identificar em que tipo de lógica (com quais pressupostos, instrumentos, valores, princípios ou
efeitos tendenciais nos indivíduos) estes enquadramentos são construídos em meio aos processos de socialização para a partir
daí, refletir e avaliar o que se ganha e o que se perde tendo em vista os objetivos discursados e praticados nas escolas.

Normatização e normalização
Quero, inicialmente, chamar a atenção para a significativa importância que o respeito às normas escolares, ou termos
correlatos, adquire nas narrativas dos livros de ocorrência. Eis alguns exemplos:

Ocorrência 1. O aluno Glauber A Janz, série “x”, está sendo advertido pois não está respeitando as normas da sala
de aula com a Professora Guiomar que está substituindo a Profa. Dirlanda Fiher que está em L.T.S. [licença de tratamento de
saúde]. O mesmo fica ciente de que, se o mau compto. tornar a se repetir só entrará na escola com a presença do responsável.
[Constam a rubrica da pedagoga, a data e a assinatura do aluno.]3

1
Por questões éticas, omitirei qualquer dado que possa, direta ou indiretamente, levar à identificação da escola ou das pessoas envolvidas nos registros das
ocorrências analisadas. Aproveito para, mais uma vez, agradecer a disponibilidade da escola que, anonimamente, permitiu o desenvolvimento de minha pesquisa.
2
Concluí meu doutorado em dezembro de 2004, sob a orientação do Professor-Doutor Alfredo Veiga-Neto. A Tese intitula-se Livros de Ocorrência: disciplina,
normalização e subjetivação (Ratto, 2004) e foi publicada em livro pela editora Cortez (Ratto, 2007).
3
As citações do conjunto das ocorrências existentes neste texto são sempre a transcrição literal dos registros, incluindo abreviações, letras maiúsculas e
minúsculas, vírgulas, erros gramaticais, de ortografia e quaisquer outras marcas próprias do registro original. A intenção é mantê-lo o mais intacto possível. As
ocorrências citadas são numeradas em ordem crescente; a numeração está grifada em negrito, para facilitar sua localização. Utilizei a fonte garamond para
destacar e diferenciar a citação dos livros de ocorrência do texto principal e da citação de autoras/es. Quando julguei pertinente, fiz entre colchetes observações,
para facilitar a leitura, prestar esclarecimentos ou indicar que há trecho suprimido, tendo em vista o objetivo da citação. Para garantir o anonimato, utilizei nomes
Esta nota continua na página seguinte

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Ocorrência 2. Os alunos Ernani Bernardes, Moacir Z. de Toledo, Jonas C. de Brito, Ubaldo Vaz e Abraão Rangel,
não se comportam na sala de aula desrespeitando a profa. e brincando de puxar o material dos colegas e escondendo. Todos
foram alunos da escola nos anos anteriores e sabem do regulamento. Os pais serão convocados para tomar ciência do fato e
caso venha a se repetir as brincadeiras e a falta de respeito com colegas, professores e demais funcionários seremos obrigados
a relatar as ocorrências ao Conselho Tutelar para providências. [Constam a data, a assinatura da pedagoga e as assinatura das
mães dos cinco alunos, duas delas com a impressão digital do polegar.]

Ocorrência 3. Aos “x” dias do mês de “x” de “x”, foi trazido à Coord. Pedagógica pela profa. Rosita Vargas,
regente da série “x”, o aluno Nicanor A. Bozza, pois segundo a profa., desde o início da aula, o mesmo vem provocando os
colegas, dizendo-lhes palavras de baixo calão, o que vem gerando conflitos na sala de aula. Conversamos com aluno e
professora, fizemos a leitura dos direitos e deveres dos alunos no Regimento Escolar e refletimos juntos sobre o ocorrido.
Ficou decidido que o aluno deve modificar o seu comportamento, pois até o final do 1º. semestre estava indo bem com a
professora Rosita. Pensou-se, também, em posteriormente, caso seja necessário, mudá-lo de sala; porém, decidimos esperar
por mais um tempo. [Constam a rubrica da pedagoga e a data.]

Trata-se de um conjunto de narrativas que, dentre os vários aspectos mencionados, referem-se à importância de as
crianças respeitarem as normas vigentes na escola, entendendo-as praticamente como sinônimo das regras estabelecidas. Tais
normas disciplinares, muitas vezes, não são explicitadas no cotidiano das escolas, permanecendo intocadas em seus
fundamentos, finalidades e efeitos sobre as subjetividades, na medida em que tendem a ser tomadas de modo naturalizado,
automatizado, como parte de um dia-a-dia escolar que não é questionado. Tendo em vista os momentos em que essas regras
aparecem de modo explícito, cabe retomar algo do que consta escrito no regimento escolar então vigente no momento em que
coletei os dados empíricos dessa pesquisa. Selecionei alguns trechos mais diretamente ligados ao que abre o campo para a
realização de atos indisciplinados por parte dos/as alunos/as. No regimento4, dentre os deveres referentes ao alunado, consta:
[...] executar tarefas definidas pelos docentes [...]; cooperar na manutenção da higiene e na conservação das
instalações escolares, responsabilizando-se por danos [...] que vier a causar; respeitar seus colegas e todos os profissionais da
Escola; [...] cumprir as determinações [da Escola]; cumprir e fazer cumprir horários e calendários escolares; comparecer
pontualmente às demais atividades, mantendo assiduidade.
Dentre as proibições referentes ao alunado, destaco:
[...] tomar decisões individuais, que venham a prejudicar o processo pedagógico; ocupar-se, durante o período de
aula, com atividades estranhas ao saber pedagógico; [...] utilizar sem a devida permissão qualquer material pertencente a
outros alunos; trazer para a escola material de qualquer natureza estranha ao estudo; [...] agredir verbal ou fisicamente
colegas, professores e demais funcionários da Escola; [...] entrar e sair da sala durante a aula, sem a prévia autorização do
respectivo professor; [...].
Portanto, fica especificado no regimento escolar um conjunto de comportamentos sob a forma de deveres das
crianças e outro de proibições, entendendo-se que as últimas são mais categóricas do que os primeiros, embora estes também
abram o campo de constituição do comportamento indisciplinado por parte do alunado. Assim, ficam estabelecidos deveres
com relação à pontualidade, assiduidade, respeito para com todos os sujeitos da escola, responsabilidades quanto à
conservação das instalações escolares e o dever de cumprir as tarefas definidas pelas autoridades escolares, dentre outros. Já
o leque de prescrições relativo às proibições aponta, a princípio, para o que está vedado incondicionalmente ao alunado,
como, por exemplo, agredir física ou verbalmente as pessoas.
Mais do que me deter no aprofundamento das questões passíveis de problematização existentes neste regimento,
interessa-me aproveitar aquilo que as narrativas exemplificam em termos dos tipos de situação e de comportamento que
constituem transgressão concreta a essas regras. Dessa maneira, a dimensão generalizante existente em todo regimento
adquire detalhamentos e sentido em ato.
Outra questão preliminar remete aos sentidos que darei ao termo “norma”. Tal como aparece nos exemplos antes
citados, o comportamento indisciplinado é apresentado como aquele que, genericamente, desrespeita as normas ou regras
estabelecidas na escola. Esse tipo de entendimento sobre o que constitui a disciplina está também presente em definições
tomadas como pontos de partida nas discussões feitas por diversos autores. Por exemplo: “Se entendermos por disciplina
comportamentos regidos por um conjunto de normas [...]” (La Taille, 1996, p. 10); “A disciplina enquanto ‘regime de ordem
imposta ou livremente consentida que convém ao funcionamento regular de uma instituição (militar, escolar, etc.)’,
implicaria na observância a preceitos ou normas estabelecidas” (Guimarães, 1996, p. 73); “Entende-se o ato indisciplinado
como aquele que não está em correspondência com as leis e normas estabelecidas por uma comunidade, um gesto que não

fictícios para as pessoas envolvidas, procurando seguir a estrutura da narrativa: quando são mencionados nome e sobrenome, inventei um nome e um sobrenome;
se é mencionado apenas o nome, apenas este foi substituído. Em geral, selecionei ocorrências em que as crianças não são reincidentes; quando o forem, isso será
explicitado na citação, entre colchetes. Quando aparecem nos trechos citados a data da ocorrência, a série em que estuda a criança ou qualquer outro dado de
identificação avaliado como desimportante ou sigiloso, substituo-os pelas letras finais do alfabeto. Os trechos italizados são destaque meu.
4
O regimento escolar é documento obrigatório nas escolas públicas de Curitiba. Contém definições relativas a gestão da escola, organização, regime didático,
currículo e programa vigentes e ao conjunto de direitos, deveres, proibições e sanções referentes à comunidade escolar. Para evitar identificação da escola em que
foi realizada esta pesquisa, não consta das Referências Bibliográficas.

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cumpre o prometido e, por esta razão, imprime uma desordem no até então prescrito” (França, 1996, p. 139); e “[...] a noção
de disciplina como ordenadora e padronizadora do comportamento [...]” (Carvalho, 1996, p. 132).
Todas essas são definições de disciplina que transitam em torno de noções como um conjunto de
normas/regras/padrões comportamentais estabelecidos por uma comunidade/instituição/sociedade sobre seus componentes a
fim de assegurar um funcionamento ordenado da coletividade. O recorrente entendimento de que a disciplina implica
submissão a um conjunto de regras ou normas aponta para uma dimensão de equivalência entre ambas, correspondência que
também pode ser encontrada no senso comum.
É possível considerar que, no pensamento foucaultiano, as normas adquirem dois sentidos básicos. Um se articula
exatamente a essa dimensão de equivalência entre normas e regras, o que remete ao âmbito do que Schmid (2002) coloca em
termos de normatização, em uma perspectiva não excludente, ou não contraditória à problematização feita por Foucault no
âmbito da ética.
Veiga-Neto, em explicações dadas em sala de aula,5 ressaltava que o termo “normatização” está inserido no campo
do regramento, referindo-se às ações de citar normas, de escrevê-las, de organizá-las. Normatizar, nesse sentido, significa
criar normas. Conforme aponta Schmid, o tipo de problematização feita por Foucault sobre a questão da norma não pressupõe
haver sociedades nas quais inexistam restrições, ou parâmetros de cunho obrigatório e universal de ordenamento das relações
sociais. Quando tais parâmetros desembocam no âmbito da normatização, depreende-se que o relevante é que esse conjunto
de normas possa ser permanentemente avaliado, criticado e reinventado, na direção dos sujeitos estabelecerem relações ativas
e criativas consigo próprios.
O outro sentido básico dado à questão da norma no pensamento de Foucault vincula-se aos mecanismos de
normalização, estes sim excludentes ao enfoque dado à questão da ética. Conforme Veiga-Neto enfatizava nas aulas, o termo
“normalização” refere-se ao movimento de trazer o outro para a norma, no sentido de torná-lo normal. Volta-se para o
enquadramento de alguém ou de algo na faixa da normalidade, significando tirá-lo da anormalidade para colocá-lo no campo
do normal. Assim, se a norma é o produto final da normatização, o normal é o produto final da normalização. Nessa
perspectiva, a normalização das formas de existência é excludente à ética foucaultiana, na medida em que se destina a
objetivar e subjetivar os indivíduos a partir de padrões ou modelos homogeneizantes, desconsiderando, assim, a dimensão da
singularidade implicada no âmbito da ética e da estética da existência numa perspectiva foucaultiana (ver, dentre outros,
Schimid, 2002).
Assim, a disciplinarização das crianças depende de um extenso conjunto de aprendizagens com relação aos padrões
e regras comportamentais estabelecidos na escola, tendo em vista as exigências relativas às várias relações interpessoais, aos
vários espaços, tempos ou atividades existentes em seu cotidiano. Disciplinar as crianças significa fazer com que elas
incorporem  internalizem dentro de si, de seu corpo  sentidos e práticas de ordenamento a serem estabelecidas com todos
esses aspectos  tempo, espaço, atividades, objetos, valores, dentre outros. O que diverge desses vários ordenamentos tende
a converter-se em sinônimo de indisciplina, abrindo o campo para os comportamentos sancionáveis.
Desse modo, se a “ordem” está associada à extensa imobilidade do corpo infantil na sala de aula, as correrias ou
andanças que aí se dão tendem a serem definidas como sinais de indisciplina. Se a regra está atrelada a imperiosidade do
silêncio na escola, os gritos, as conversas excessivas ou inoportunas tendem a constituir ações sancionáveis. Se a norma está
associada às expectativas de um ensino pleno, baseado na harmonia, no entendimento, na ausência de conflitos, conforme
explorei em outro texto (Ratto, 2007, p. 113-142), tudo o que nega esse tipo de expectativa tende a converter-se em
comportamento indisciplinado. Eis, portanto, apontamentos iniciais quanto à questão do tempo na escola.

Sentidos e usos do tempo na escola: controle, pontualidade e homogeneização


Com relação ao tempo escolar, as narrativas mencionam problemas disciplinares relativos a atrasos, desrespeito ao
sinal ou ao fato de se “fazer certas coisas na hora errada”, como é o caso de deixar para tomar água ou ir ao banheiro depois
que bate o sinal de término do “recreio”, ou nos casos em que as crianças brincam, em vez de fazer tarefas ou as atividades
exigidas. A normatização vigente com relação ao tempo, nesses aspectos, relaciona-se sobretudo com o cultivo da
pontualidade, do uso homogeneizado ou sincronizado do tempo e de que “há hora certa para tudo”. As seguintes narrativas
exemplificam essas dimensões:

Ocorrência 4. Os alunos Leopoldo N. Alferes, Margarida C. Lobo, Noêmia X. Razolini, Olga B. Sem, Olívia M.
Amarante e Nicole P. Gravina, não estão respeitando as normas da escola, não respeitam o sinal de entrada do recreio,
deixam pra ir tomar água depois que o sinal já bateu. Se houver reincidência do fato os pais serão convocados para ciência e
providências. [Constam data e assinatura da pedagoga.]

Ocorrência 5. Os alunos Euzébio D. Link e Ernani Bernardes [já citado na ocorrência 2] foram trazidos até a sala da
Coordenação Pedagógica pelo guarda municipal Amilcar, porque os mesmos não respeitam o sinal de entrada do recreio;

5
Curso “Os estranhos”, ministrado por Alfredo Veiga-Neto durante o primeiro semestre de 2001 e oferecido no âmbito da linha de pesquisa Estudos Culturais
em Educação, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, em Porto Alegre.

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depois que bate o sinal eles vêm tomar água e ir ao banheiro, sendo que depois do sinal todos devem se dirigir à fila. Ficam
os dois cientes de que se houver reincidência do fato, serão convocados os pais para tomarem ciência. [Constam a data, a
assinatura da pedagoga e uma outra, não identificável.]

Ocorrência 6. O aluno Damaceno Luiz Pacheco da série “x”, foi trazido a sala da Coordenação Pedagógica pela
pedagoga Verônica, por ter saído da sala de aula sem autorização da professora Flavia. Quando chegou na porta da sala da
coordenação se negou a entrar e ficou brincando e tirando sarro da cara da pedagoga Verônica, voltando em seguida para a
sala onde ficou segurando a porta para a pedagoga não entrar, dizendo que tinha autorização da professora para sair. Antes da
pedagoga chamar sua atenção, ela consultou a professora e já havia avisado os alunos de que ela iria lavrar a ocorrência dos
meninos que saíssem da sala de aula sem autorização prévia da professora. Existem vários meninos que saem da sala a hora
que eles querem e ainda fazem pouco das ordens da professora. Se o fato voltar a ocorrer, será enviado relatório ao Conselho
Tutelar.6 [Consta apenas a assinatura da pedagoga.]

Ocorrência 7. Os alunos Isidoro e Jerônimo estavam brincando no horário de aula e foram informados de que se
isso ocorrer novamente, os pais serão chamados a comparecerem na escola para serem comunicados. [Constam as assinaturas
dos dois alunos.]

Ocorrência 8. As alunas Olinda B. Vivaldi e Patrícia M. Vespúcio estão sendo advertidas por chegarem na escola às
8h e 55 minutos. Estão levando convocação para os pais comparecerem à escola para tomarem ciência do fato. [Constam a
assinatura da pedagoga, a data e outra assinatura, provavelmente da mãe de uma das meninas.]

Ocorrência 9. Os alunos Severino F. Brunati, Sócrates B. Calderari e Teodorico V. Brante, chegaram às 9 horas e
10 minutos na escola, pois estavam no Farol do Saber [espaços públicos vinculados à Prefeitura de Curitiba construídos na
forma de farol, contendo biblioteca e serviço de informática] para fazer uma pesquisa para a irmã do Sócrates. A professora
não autorizou a entrada dos mesmos na sala. [Constam a rubrica da pedagoga, a data e as assinaturas dos dois alunos.]

No primeiro e no segundo exemplo, há a menção de que a regra da escola é a de que as crianças respeitem os sinais.
Neste caso, o que sinaliza para o final do “recreio”. É durante o “recreio” que as crianças devem aproveitar para tomar água e
ir ao banheiro. Satisfazer essas necessidades fora do tempo de “recreio”, portanto, abre o campo de constituição para o
comportamento indisciplinado, passível de punição e correção, correção esta a ser garantida pela própria criança ou, se
necessário for, pelos seus pais, ameaça especificada em ambas as narrativas.
No terceiro exemplo, as normas que o aluno transgrediu referem-se principalmente à exigência de respeitar as
autoridades, que não devem ser ridicularizadas, devem ser obedecidas, etc. No entanto, há também a menção de que “existem
vários meninos que saem da sala a hora que eles querem”, sendo que tal saída depende estritamente da autorização da
professora ou de alguma outra regra que estabeleça quando isso pode acontecer, como, por exemplo, quando o sinal soa.
A quarta narrativa trata da conhecida regra de que não se pode brincar durante o tempo das aulas, supondo-se que
isso possa acontecer desde que haja autorização da professora. É bom ressaltar que esta regra e todas as demais são
relativizadas por uma das regras escolares mais importantes, ou seja, a de que tudo depende da permissão das autoridades e
da obediência a elas.
Os dois últimos exemplos referem-se à pontualidade, regra que costuma ser vivida de modo bastante rigoroso pelas
escolas no Brasil. Em uma das narrativas, os pais são convocados pela escola, e a assinatura de uma das mães aparece ao
final da anotação de ocorrência. A última narrativa sobre atraso traz a conseqüência de a professora não ter autorizado a
entrada dos meninos na sala, o que alude aos espaços de autonomia do corpo docente.
Assim, há que ser pontual, há que aprender a noção de que existe o tempo certo para tudo, há que se sujeitar aos
usos padronizados do tempo, válidos para cada um e ao mesmo tempo para todos. Nesse sentido, as aprendizagens escolares
valorizam, sobretudo, a internalização de que o tempo escolar deve ser usado do modo mais homogêneo e sincronizado
possível, tornando condenável tudo o que ameaça essa norma.
Milstein e Mendes (1999), em sua pesquisa de cunho etnográfico em escolas da Argentina, apontam que um dos
critérios de ordenamento do cotidiano escolar mais comum observado nas práticas de ensinamento dos docentes é exatamente
o que se refere à homogeneização de tempos e ritmos, o que não exclui, no entanto, haver também muitas variações nas
maneiras de ensinar e atuar sobre tais parâmetros junto às crianças. Por exemplo, os autores apontam variações quanto às
formas de começar e terminar uma aula ou atividade, quanto às formas de comunicar esses parâmetros às crianças, quanto
aos diferentes acomodamentos e reações com relação aos usos e significados do tempo, universo este que indica os
constantes ajustes e desajustes efetuados no cotidiano escolar.
Os autores também abordam a importância do tempo do recreio na regulação do tempo para as atividades regulares
de sala. Às vezes, a professora deixa que algumas crianças saiam para o “recreio”, mesmo sem ainda ter batido o sinal,

6
Tais conselhos atendem casos de desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes e os encaminham para outros órgãos competentes em caso de necessidade.
Na cidade de Curitiba, em 2003 havia oito Conselhos Tutelares, compostos por cinco membros cada um, com mandatos de três anos, recebendo salário mensal de
R$ 800,00, eleitos pela população de cada região a qual cada conselho se vincula.

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geralmente porque elas concluíram as tarefas previstas. Às vezes, a professora utiliza-se da aproximação temporal do
“recreio” para estimular que as crianças se apressem — “os que se apurarem vão poder sair para brincar antes”; “se fazem
tudo bem e rapidinho, vão ter mais recreio” (Milstein & Mendes, 1999, p. 46; minha tradução).
Às vezes, porém, algumas das crianças não querem sair para o “recreio” porque ainda não terminaram as tarefas,
mesmo quando a professora sinaliza que o tempo para fazê-las terminou e que não há problemas. Então, a professora precisa
convencer essas crianças a sair: “Não se preocupe, depois você vai ter tempo de terminar. Está lindo o sol, vamos sair”
(Milstein & Mendes, 1999, p. 46; minha tradução). Ou ainda, às vezes, a professora retém algumas das crianças em sala
porque elas não terminaram as atividades previstas: “Como antes se dedicaram a brincar, agora, quando o resto das crianças
brincam, vocês têm que trabalhar” (Milstein & Mendes, 1999, p. 46; minha tradução). E nem sempre, nesses casos em que o
tipo de relação estabelecida com o “recreio” funciona como punição, a professora fica em sala com essas crianças. No
entanto, aquilo que é relevante, conforme os próprios autores salientam,
[...] não se situa no plano das variantes mas no fato de se conseguir a coincidência grupal em relação ao uso do
tempo e em que sejam os professores que o decidem e controlam. [...] É evidente que nas turmas de primeiro ano, das escolas
observadas, não se impõe um único ritmo estritamente uniforme, mas há uma certa regularidade. Poderíamos dizer que os
professores apelam para múltiplas maneiras de atuar e falar para regularizar o ritmo da classe, quer dizer, para incorporar
todas as crianças a um ritmo medianamente uniforme. E este ritmo uniforme não é nem muito acelerado, nem muito lento.
Manifesta-se na constante insistência dos professores por regular a “velocidade” em diversos momentos da aula (Milstein &
Mendes, 1999, p. 47; minha tradução).7
O que vale reter, por enquanto, é que, para além das ricas variações e margens de flexibilidade observadas nas
práticas dos docentes, especialmente tendo em vista as observações feitas nas salas das crianças menores, aquilo que lhes é
comum com relação à regulação do tempo escolar remete à tendência de um uso homogeneizado, uniforme ou sincronizado,
características que já estavam colocadas por Foucault (1977) em Vigiar e punir, como um dos campos básicos de controle e
ordenamento exercido cotidianamente pelas relações de poder de tipo disciplinar analisadas por ele. Um dos grandes méritos
dessa pesquisa dos autores argentinos é o de buscar aproximações a respeito de como as várias formas de ordenamento se dão
cotidianamente, nas escolas de hoje.8
No que se refere aos livros de ocorrência, devem funcionar em meio a essa variedade de formas possíveis de
regular à utilização do tempo escolar, apontando em particular para uma forma coercitiva de disciplinamento, baseada em
advertências, ameaças ou punições. Os livros de ocorrência indicam exatamente para o que há de inflexível, de rigoroso, de
impreterível ou inevitável em torno do objetivo maior de controlar extensivamente o uso do tempo na escola. Como afirma o
ditado popular, “se não for por bem, que seja por mal” que as crianças aprendam a imperiosidade de certos ensinamentos.
Essa parece ser a mensagem final dada pelos livros de ocorrência: “[se] não respeitam o sinal [...], os pais serão convocados”;
“[uma vez que chegaram atrasados na escola] a professora não autorizou a entrada dos mesmos na sala”; “se o fato voltar a
ocorrer [se os alunos continuarem saindo da sala na hora em que quiserem], será enviado relatório ao Conselho Tutelar”.
Nessa perspectiva, este tipo de livros de ocorrência vincula-se a uma lógica disciplinar específica que sinaliza para
o momento em que as margens de tolerância deixam de existir, sejam lá quais forem. A dimensão ameaçadora, inflexível,
coercitiva presente nas narrativas remete àquela tradição pedagógica estudada por Foucault, que, nesse caso, se expressa por
uma tendência de rigorosidade quanto aos usos homogeneizados do tempo ou à pontualidade. Conforme tal lógica, aquilo que
decisivamente parece importar para o estabelecimento da ordem escolar é o controle e homogeneização intensos sobre a
utilização do tempo ali empregado, com o combate à ociosidade e a transformação máxima do tempo “em tempo de trabalho”
(Foucault, 1996, p. 116) ou em “tempo útil” (Foucault, 1977, p. 137), convertendo tendencialmente em indisciplina tudo o
que pode interromper o ritmo massificante e intensamente produtivo estabelecido.
Essa tradição pedagógica remete ainda à conhecida desproporção existente entre o tempo de trabalho e o tempo de
“recreio”, este comprimido no tempo médio e “fulminante” de quinze minutos. Não deixa de ser intrigante o “ritmo fabril”
que a escola segue impondo ao tempo de permanência da criança na escola. Um dos alunos entrevistados na pesquisa de
Guimarães exprime-se de forma bem-humorada:
O tempo é marcado e ocupado de modo que seja utilizado intensamente. O aluno deve ser rápido, cumprindo as
atividades que lhe são determinadas: “Você chega... você vai tomar merenda, certo. Você pega aquele filão do INPS9 lá
(risos). Sai de lá e pega outro filão, o do banheiro, e acaba o tempo. Você só pode comer e ir ao banheiro e subir. Você não
pode ter uma conversa diferente para distrair um pouco, pra depois, na hora que você sobe, estar com a cabeça assim limpa
pra você aproveitar as próximas aulas. Então você tem que ir ao banheiro rápido, voltar, comer rápido e pronto e subir”
(Guimarães, 2003, p. 74).
Como já mencion

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